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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

VICTOR MOREIRA VOLCOV

TRABALHO DE AVALIAÇÃO - QUESTÕES DE ENSINO DE FILOSOFIA

PROFESSOR: HOMERO SANTIAGO

SÃO PAULO - SP

2017
O ato de criação na filosofia de Deleuze & Guattari.

Na obra “O que é a Filosofia?”1, Deleuze & Guattari se ocupam na investigação da


própria natureza do ato de filosofar, buscam responder afinal qual é o verdadeiro lugar do
filósofo dentro de um universo tão ricamente povoado de “rivais”, que de formas diversas
competem entre si, aspirando solucionar as mais profundas questões da humanidade.

Antes de esclarecer o papel da filosofia, é necessário apontar algumas concepções


distorcidas sobre o pensamento filosófico que podem permear o senso comum e aparecem
muitas vezes inclusive em filosofias de pensadores mais clássicos como Platão e Aristóteles.
Sendo assim, Deleuze & Guattari deixam claro que filosofar não deve em nenhum momento
ser confundida com contemplação, reflexão ou comunicação. Os autores afirmam:

Ela não é contemplação, pois as contemplações são as coisas elas mesmas


enquanto vistas na criação de seus próprios conceitos. Ela não é reflexão,
porque ninguém precisa da filosofia para refletir sobre o que quer que seja:
acredita-se dar muito à filosofia fazendo dela arte da reflexão, mas retira-se
tudo dela, pois os matemáticos como tais não esperaram jamais os filósofos
para refletir sobre a matemática, nem os artistas sobre a pintura ou a música;
[...] E a filosofia não encontra nenhum refúgio último na comunicação, que
não trabalha em potência a não ser de opiniões, para criar “consenso” e não o
conceito.2

Podemos concluir então que essas concepções nada dizem respeito ao pensamento
filosófico segundo as razões citadas no trecho acima. Além disso, já é indicada a importância
do conceito no ato filosófico. Isso porque, Deleuze & Guattari definirão o que é a filosofia em
uma simples e direta afirmação: “A filosofia é a arte de formar, de inventar, de fabricar

1
Gilles Deleuze & Félix Guattari, O que é a filosofia? (3. ed., São Paulo, Editora 34, 2010).
2
Ibidem, p. 12.
conceitos”3. Essa sucinta definição já nos revela o frescor que a filosofia desses autores nos
traz.

Não apenas isso, o filósofo é assim posto em um ato de criação “[...] ele é o conceito
em potência [...] pois os conceitos não são necessariamente formas, achados ou produtos. A
filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos”4. A filosofia
como ato de criação é de suma importância para o entendimento do pensamento de Deleuze
& Guattari, ela altera diversos paradigmas que se cristalizaram durante a história da filosofia
até esse momento. É importante apontar que os “conceitos não nos esperam inteiramente
feitos, como corpos celestes. Não há céu para os conceitos. Eles devem ser inventados,
fabricados ou antes criados, e não seriam nada sem a assinatura daqueles que criam”5. Dito
isso, fica mais fácil entender o motivo pelo qual o pensamento filosófico não deve colocar-se
como contemplativo como já feito no passado. A contemplação não exprime o sentido da
filosofia pois ela se dá a partir de Universais, porém “toda criação é singular, e o conceito
como criação propriamente filosófica é sempre uma singularidade. O primeiro princípio da
filosofia é que os Universais não explicam nada, eles próprios devem ser explicados”6. Platão
em sua filosofia afirmava ser necessário contemplar as Ideias, mas deixava velado que o
próprio conceito de Ideia teve que ser criado por ele para o desenvolvimento de tal
pensamento. “Segundo o veredito nietzschiano, você não conhecerá nada por conceitos se
você não os tiver de início criado, isto é, construído numa intuição que lhes é própria: um
campo, um plano, um solo, que não se confunde com eles, mas que abriga seus germes e os
personagens que os cultivam7”.

É necessário indicar que a filosofia não é a única disciplina que possui a capacidade
de criação, Deleuze & Guattari indicam ainda mais duas atividades que são exercidas a partir
de um ato de criação: as ciências e as artes. O que diferencia essas três disciplinas é o
produto desse processo de criação, sendo que cada disciplina produz algo totalmente distinto
e particular. A ciência tira prospectos (proposições que não se confundem com juízos), à
principal diferença entre conceitos e prospectos é que no caso da ciência as proposições

3
Ibidem, p. 8.
4
Ibidem, p. 11.
5
Idem.
6
Ibidem, p. 13.
7
Ibidem, p. 13, 14.
tratam de observadores parciais extrínsecos, cientificamente definíveis com relação a tal ou
tais eixos de referência: “Sob um primeiro aspecto, toda enunciação é enunciação de posição,
mas ela permanece exterior à proposição, porque tem por um objeto um estado de coisas
como referente, e por condições as referências que constituem valores de verdade8”. No caso
dos conceitos são personagens conceituais intrínsecos que impregnam tal ou tal plano de
consistência. Ao contrário dos prospectos produzidos pela ciência, “a enunciação de posição é
estritamente imanente ao conceito, já que este não tem outro objeto senão a inseparabilidade
dos componentes pelos quais ele passa e repassa, e que constitui sua consistência9”. No caso
da arte, esta produz perceptos e afectos (que também não se confundem com percepções ou
sentimentos). Em uma palestra dirigida à estudantes de cinema, Deleuze esclarece sobre os
produtos da criação na arte:

Eu digo que faço filosofia, ou seja, que tento inventar conceitos. E vocês que
fazem cinema, o que vocês fazem? O que vocês inventam não são conceitos
— isso não é de sua alçada —, mas blocos de movimento/ duração. Se
fabricamos um bloco de movimento/duração, é possível que façamos cinema.
Não se trata de invocar uma história ou de recusá-la. Tudo tem uma história.
A filosofia também conta histórias. Histórias com conceitos. O cinema conta
histórias com blocos de movimento/duração. A pintura inventa um tipo
totalmente diverso de bloco. Não são nem blocos de conceitos, nem blocos de
movimento/duração, mas blocos de linhas/cores. A música inventa um outro
tipo de bloco, também todo peculiar. Ao lado de tudo isso, a ciência não é
menos criadora. Eu não vejo tantas oposições entre as ciências e as artes.10

Como visto, o produto resultante do ato de criação do filósofo é o conceito. “O


filósofo é bom em conceitos, e em falta de conceitos, ele sabe quais são inviáveis, arbitrários
ou inconsistentes, não resistem um instante, e quais, ao contrário, são benfeitos e
testemunham uma criação, mesmo se inquietante ou perigosa11”. Mas o que é um conceito
afinal? Conceituar um conceito é ironicamente uma tarefa necessária e Deleuze & Guattari

8
Ibidem, p. 32.
9
Idem.
10
Gilles Deleuze, Palestra “O ato de criação“ de 1987, (São Paulo, Folha de São Paulo, 27/06/1999).
11
Gilles Deleuze & Félix Guattari, O que é a filosofia? (3. ed., São Paulo, Editora 34, 2010), p. 9.
optam por assim fazer descrevendo o funcionamento do mesmo. Primeiramente, “não há
conceito simples. Todo conceito tem componentes, e se define por eles12”. Assim sendo, os
autores acrescentam:

Todo conceito tem um contorno irregular, definido pela cifra de seus


componentes. É por isso que, de Platão à Bergson, encontramos a ideia de que
o conceito é questão de articulação, corte e superposição. É um todo, porque
totaliza seus componentes, mas um todo fragmentário.13

É essencial que não exista conceitos de um só componente, mesmo o primeiro


conceito pelo qual uma filosofia começa só pode constituir-se de múltiplos componentes. Por
exemplo, na filosofia de Descartes, mesmo buscando-se um início seguro no qual o filósofo
possa ancorar sua certeza clara e distinta, o cogito desde sua formulação já está embebido de
múltiplos conceitos. Eu penso, logo eu sou: “este conceito tem três componentes: duvidar,
pensar e ser14”. Deleuze & Guattari afirmam:

Em primeiro lugar, cada conceito remete a outros conceitos, não somente em


sua história, mas em seu devir ou seus conexões presentes. Cada conceito tem
componentes que podem ser, por sua vez, tomados como conceitos [...] Os
conceitos vão, pois, ao infinito e, sendo criados, não são jamais criados do
nada. Em segundo lugar, é próprio do conceito tornar os componentes
inseparáveis nele: distintos, heterogêneos e todavia não separáveis, tal é o
estatuto dos componentes, ou o que define a consistência do conceito, sua
endoconsistência.15

Com essas ideias postas, é possível esboçar um papel para a filosofia dentro da cadeia
de saberes humanos. A filosofia é a disciplina que cria conceitos, mas não “se cria conceitos,
à não ser em função dos problemas que se consideram mal vistos ou mal colocados

12
Ibidem, p. 23.
13
Idem.
14
Ibidem, p. 33.
15
Ibidem, p. 27.
(pedagogia do conceito)16”. Em sua palestra, Deleuze comenta sobre essa etapa do processo
de criação com os estudantes de cinema:

É preciso que haja uma necessidade, tanto em filosofia quanto nas


outras áreas, do contrário não há nada. Um criador não é um ser que
trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que tem absoluta
necessidade. Essa necessidade — que é uma coisa bastante complexa, caso ela
exista — faz com que um filósofo (aqui pelo menos eu sei do que ele se
ocupa) se proponha a inventar, a criar conceitos, e não a ocupar-se em refletir,
mesmo sobre o cinema.17

Concluindo, é relevante expor brevemente como se daria esse processo de criação


filosófica dentro de uma problemática recorrente na história do pensamento humano. Dado o
problema como o de um conceito primeiro (semelhante ao que Descartes busca responder em
seu cogito), como Deleuze & Guattari respondem essa questão? Primeiramente, os autores
indicam, seria o outrem necessariamente segundo em relação a um eu? Eles formulam assim
o problema:

Em que consiste a posição de outrem, que o outro sujeito vem ocupar quando
ele me aparece como objeto especial, e que eu venho, por minha vez, ocupar
como objeto especial quando eu lhe apareço? Deste ponto de vista, outrem
não é ninguém, nem sujeito nem objeto. Há vários sujeitos porque há outrem,
não o inverso.18

Este conceito é formulado com três componentes inseparáveis: mundo possível, rosto
existente, linguagem real ou fala. Outrem não aparece aqui como um sujeito, nem como um
objeto mas, o que é muito diferente, como um mundo possível em relação à um campo de
experiências. Um campo que existe nesse momento como um mundo calmo e repousante. De
lá, surge um rosto existente assustado que olha alguma coisa fora desse campo. “Outrem é

16
Ibidem, p. 24.
17
Gilles Deleuze, Palestra “O ato de criação“ de 1987, (São Paulo, Folha de São Paulo, 27/06/1999).
18
Gilles Deleuze & Félix Guattari, O que é a filosofia? (3. ed., São Paulo, Editora 34, 2010), p. 24.
antes de mais nada esta existência de mundo possível. E este mundo possível tem também
uma realidade própria em si mesmo, enquanto possível: basta que aquele que exprime fale e
diga tenho medo19”. O conceito de outrem não necessita do “eu”, sendo necessariamente
primeiro à este. O “outrem faz o mundo passar, e o eu nada designa senão um mundo passado
(eu estava tranquilo…)20”.

19
Ibidem, p. 25.
20
Ibidem, p. 27.

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