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Montagem1

Entrevista com Thelma Schoonmaker

P: Qual foi a maior dificuldade enfrentada em Cassino (Casino, 1995), mais longo que os
filmes anteriores de Martin Scorsese?
R: O mais difícil foi encontrar uma estrutura. Nos demos conta de que queríamos tratar da
ideia da corrupção em Las Vegas desde o começo do filme. No roteiro não estava escrito assim. Há
uma cena onde vemos um dos empregados do casino entrar em um recinto, na sala de finanças,
depois colocar dinheiro em uma mala. Primeiro, essa cena deveria aparecer apenas após uma hora
de filme. Decidimos mostrar essa cena logo no início, a fim de que se sinta a corrupção durante todo
resto da narrativa, como um pano de fundo. Fizemos também várias modificações na estrutura do
início do filme: jogamos com todas essas disposições de estrutura buscando enxergar o que
funcionava melhor. Essa foi a maior dificuldade. A dimensão épica do filme demanda muito
trabalho. Tive a impressão de trabalhar em dois filmes ao mesmo tempo! (risos).
P: A senhora poderia comparar o trabalho em Cassino com outros filmes nos quais trabalhou
com Scorsese?
R: Creio que foi bem diferente dos filmes anteriores porque, como diz Marty, é um filme que
tem uma história, mas nenhuma trama. Ele experimentou muitas coisas para tentar não recair em
uma trama. O filme funciona, além disso, quase seguindo uma lógica de episódios. Era então bem
experimental de uma certa maneira. Se quisermos, podemos dizer que enfrentamos os mesmos
problemas de restruturação da narrativa em Depois de horas (After Hours, 1985): tivemos que
cortar 45 minutos de Cassino realmente maravilhosos. Era a única coisa a se fazer para que o filme
pudesse funcionar. Mas Depois de horas é completamente diferente…
P: A senhora falava dessa decupagem em episódios a propósito de Cassino. Foi também o
caso de Os Bons Companheiros? Quais são, para a senhora, os pontos comuns e as diferenças entre
os dois filmes?
R: A narrativa em Os bons companheiros (Goodfellas, 1990) era mais concentrada, pois
havia menos personagens. Era um grupo de pessoas que logo conhecíamos, e os seguíamos mais
facilmente ao longo do filme. Cassino possui uma dimensão mais ampla, pois se trata de gângsteres
de Chicago influentes em Las Vegas ao promover relações de negócio. Há mais personagens, mais
atores. Cassino é menos restrito. Em Os bons companheiros, a história pessoal era mais importante.
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Entrevista realizada por telefone no dia 3 de fevereiro de 1996 por Nicolas Saada. Publicado originalmente em
Cahiers du cinema, nº 500, março de 1996. Tradução de Ciro Lubliner.
Em Cassino, Marty tenta contar duas histórias em paralelo, a história pessoal e a outra história, essa
da corrupção, das ligações entre o submundo do crime e Vegas. O desafio consistia em conseguir
conduzir essas duas narrativas. Em Os bons companheiros, o submundo, o meio, era apenas um
pano de fundo…
P: A senhora lê o roteiro antes da filmagem e da montagem?
R: Sim, leio logo de início, mas tento esquecê-lo em seguida porque prefiro sentir o filme
através das provas que me enviam regularmente durante a filmagem. Quero ver o que filma Marty e
reagir unicamente em função disso. Em seu trabalho, o roteiro não é realmente o reflexo do que ele
vai fazer. Os filmes são sempre mais complexos e mais profundos que os roteiros. Ele fornece
detalhes, uma atmosfera. Os bons companheiros é um roteiro bem “fechado”, porque Marty
trabalhou nele por dois anos, e o livro já tinha sido escrito. Creio que cortamos somente uma cena:
uma em que o menino aprende a beber expressos. Nós cortamos bem mais em Cassino. As
pesquisas, a documentação, continuava durante as filmagens. Eles mudaram bastante coisa
enquanto filmavam. Novos elementos, novas informações chegavam e influenciavam certas cenas,
orientando-as em novas direções. Foi mais difícil de se controlar do que Os bons companheiros,
onde a narrativa era mais restrita.
P: Em que o estilo de Scorsese influencia seu trabalho? Ele recorre a planos mais longos ou
prefere planos muito curtos?
R: Ele adora experimentar, partir para uma direção precisa de acordo com cada novo projeto.
Aprendo bastante com sua experiência e amadurecimento com o decorrer dos anos. Meu estilo de
montagem é, na verdade, o seu. Ele me ensinou tudo e trabalhamos há tanto tempo juntos que é
como se fossemos um na sala de montagem. Após quatro ou cinco filmes, ele se concentrou nas
passagens dos planos objetivos para os planos subjetivos. Um plano parece ser mostrado de um
certo ponto de vista, depois um personagem entra nesse plano que se torna um plano simples dele,
de modo que ele acaba por se tornar um plano subjetivo. É algo sobre a qual ele trabalha após
alguns anos e que ele aperfeiçoa a cada novo filme. Ele realiza pesquisas, mais e mais elaboradas a
partir desse princípio. Ele experimenta também muitos movimentos com maquinaria e efeitos de
montagem. Por exemplo, as fusões2 se tornaram um estilo em Cassino, e quase que por acaso. Nós
achávamos certos movimentos de câmera um pouco longos demais e começamos a produzir fusões
no interior desses movimentos de câmera, por vezes até mesmo no meio do movimento. Foi
magnífico. Fizemos uma primeira tentativa na cena em que De Niro observa os apostadores
japoneses. Havia um movimento maravilhoso de trilho em direção a Bob, e queríamos ver a fumaça
do seu cigarro sair de sua boca. Fizemos uma fusão no meio do travelling, que se revelou muito
belo, pois vemos a fumaça sair nesse exato momento. Depois, nós repetimos o procedimento no

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Uma imagem encadeada sobre outra por uma trucagem de laboratório.
filme, para produzir uma figura de estilo. Por uma necessidade. Isso se dá sempre assim na
montagem, e na filmagem também com os atores que às vezes têm ideias.
P: Geralmente, a fusão é uma figura de estilo hollywoodiano clássico, um procedimento que
servia para mostrar a passagem do tempo. Como evitar toda a conotação nostálgica nessa nova
utilização que a senhora fez?
R: Foi muito importante para nós evitar isso, de fato. Recordo que no início, tínhamos uma
grande aversão quanto às fusões. Mesmo Marty já tendo as utilizado em seus primeiros filmes, nós
evitávamos recorrer a elas de maneira tradicional (como quando mostramos a passagem do tempo,
por exemplo). Éramos hostis a sua utilização porque vínhamos do documentário, e também por
conta da Nouvelle Vague, que nos havia provado que podíamos cortar isso ou aquilo, sem fazer
disso um costume, sem necessariamente utilizar a fusão. Era quase como um princípio de estilo de
Marty em seu início. Com A cor do dinheiro (The Color of Money, 1986), ele partiu para tentativas
de utilização mais complexas da fusão. Em Cassino, é diferente. Não se trata da fusão clássica. São
efeitos que encontramos trabalhando na sala de montagem.
P: A senhora monta durante a filmagem?
R: Não, eu começo por uma espécie de primeiro corte geral bem elaborado com muitas
opções para a mesma cena de modo que ele escolhe entre quatro ou cinco versões, sobretudo para a
interpretação. Faço isso para que ele possa ter essa escolha, mesmo sobre uma simples réplica. Em
seguida, na sala de montagem, tomamos as decisões em conjunto. A montagem começa
verdadeiramente aí, o que é bastante excepcional e que não tem nada a ver com a forma como
fazemos filmes hoje.
P: Seu trabalho a partir desse primeiro corte consiste então em encontrar uma forma?
R: Não, porque não se trata de um primeiro corte no sentido clássico do termo, mas sim de
uma junção bem elaborada, bem organizada, não montada, que oferece a Marty séries de tomadas
diferentes a serem escolhidas para cada plano. Isso o ajuda muito quanto à interpretação. Por
exemplo, pode haver cinco tomadas diferentes de uma réplica de De Niro seguida por cinco
tomadas diferentes de uma réplica de Sharon Stone etc. A partir daí, escolhemos o que nos parece
mais satisfatório do ponto de vista da interpretação, depois monto a cena e mostro para ele. Ele
reage e me lanço em seguida ao trabalho até que ele retorne novamente para conversar comigo. Ele
toma muitas decisões sobre a interpretação na montagem. Ele não faz isso na filmagem, preferindo
deixar uma certa margem de manobra para a montagem… Ele pode controlar melhor as coisas,
refletir melhor. Quando temos quatro tomadas da mesma réplica consecutiva, podemos realmente
fazer uma escolha precisa. Algumas vezes, ele me pede para colocar duas tomadas de lado para que
eu possa trabalhar na sequência…
P: Por que esse método seria atípico se comparado ao funcionamento “normal” da
montagem em Hollywood?
R: Porque a maioria dos montadores começam a montar o filme desde o primeiro dia de
filmagem. Mas creio que Woody Allen trabalha como nós, e Kurosawa também. Sei que Marty se
dedica muito a essa etapa do trabalho. É o que ele prefere em seu ofício.
P: Porque ele começou como montador?
R: Talvez… Ele é realmente apaixonado pela montagem, pelo efeito que pode dar a
justaposição de duas imagens. É algo que lhe obceca e que vemos em seus storyboards. Podemos
perceber desde essa etapa que ele tem uma verdadeira noção da montagem. Ele estudou de perto
Eisenstein. Para ele, o filme se faz nessa etapa. A filmagem é como as estacas do filme, suas
fundações. Mas a montagem lhe permite dar uma vida e uma forma ao filme, modelar a
interpretação dos atores, colocar em evidência certos movimentos de câmera; experimentar estilos
bem novos. Há também menos pressão do que no set, onde as horas passam e milhares de dólares
são gastos a cada dia; a pressão é horrorosa, a luz é fraca, um ator passa mal, um travelling não
funciona (risos). É estressante para todos os realizadores. Na montagem, eles podem realmente se
acalmar e se concentrar no filme.
P: Ficam apenas vocês dois na sala de montagem?
R: Sim, nós não temos assistentes. Ele tem a necessidade de controle, e de concentração. Se
pergunto a ele o que ele acha de um efeito de montagem ou de um corte, ele responderá de forma
bem precisa e séria. Ele reflete bastante sobre as questões das pessoas e é por isso que ele necessita
de calma na sala de montagem. É por conta disso que ficamos só nós dois, eu sou realmente
mimada (risos). Construí essa relação de trabalho privilegiada com ele, o que me permitiu aprender
bastante no decorrer dos anos e ao mesmo tempo de vê-lo evoluir. E sobretudo de ajudá-lo a fazer
seus filmes.
P: Há cenas de uma grande brutalidade. Temos a impressão de que a montagem visa sempre
mostrar, não o espetáculo da violência, mas sua realidade, sua selvageria. A morte de Joe Pesci é um
exemplo disso. Como vislumbrar esse tipo de cena no contexto da utilização de cenas de violência
hoje em Hollywood?…
R: Criticam frequentemente muito injustamente a violência dos filmes de Marty. Creio que
seja por conta do realismo dessas cenas que nos fazem realmente sentir a violência daquelas
pessoas. Hoje em dia a violência nos filmes hollywoodianos é espetacular e ela passa direto sem
que percebamos. Chega a ser bem brutal em certo momento. Marty sempre pensou que a violência
deveria ser utilizada em um filme para afirmar um ponto de vista moral. Se ela é realista, até mesmo
perturbadora, é porque há uma razão. Não é um divertimento; é uma maneira de mostrar como as
pessoas escolheram viver. Não tenho nenhuma objeção quanto a isso, porque acho que ele utiliza a
violência de maneira realmente adequada. Nesse filme a violência nos deixa com um sentimento
profundo de tristeza. Nesse ponto de vista, é bem diferente de Os bons companheiros. Vemos o fim
de uma época. Em Os bons companheiros, a violência é inesperada e chocante, mas é por outras
razões. A cena na qual Joe Pesci é espancado até a morte em Cassino é muito estranha, quase calma.
P: É uma sequência de planos estáticos…
R: Era preciso tornar a violência evidentemente real. Era preciso que fosse convincente.
Precisávamos então fazê-lo de uma certa maneira para que isso não se tornasse ridículo na imagem.
Primeiro, era necessário que a sequência funcionasse de um ponto de vista puramente realista. Em
seguida, era preciso encontrar a atmosfera que conviria à cena. Marty queria mostrar que, apesar das
coisas horríveis às quais o personagem de Pesci era responsável, poderíamos compreender sua dor,
o que ele sentia quando via seu irmão ser espancado até a morte. Ele conseguiu fazer isso. Marty se
concentrou no fato de Joe ver seu irmão morrer. A morte de Joe é mostrada de modo mais breve na
tela. Quando o enterram, é mais curto.
P: Não nos concentramos na ação. Antes, nos concentramos sobre o efeito que pode produzir
essa ação sobre uma testemunha… ou sobre o espectador.
R: É exatamente isso. O espectador fica muito surpreso ao provar uma forma de simpatia
por Pesci, porque ele não espera isso de jeito nenhum. Marty sabe, por experiência, que esses tipos
de acontecimentos não se desenrolam como os prevemos. Ele se relacionava, quando era jovem,
com pessoas que eram muito gentis com ele, levavam-no para a praia de Coney Island… e mais
tarde ele soube que aquelas pessoas eram assassinos capazes do pior. Ele sabe que essas pessoas,
mesmo sendo elas bastante brutais, podem ter sentimentos. Creio que enxergamos realmente isso
em seus filmes.
P: Cassino foi montado com uma técnica nova, a montagem eletrônica. Quais foram as
vantagens?
R: Para mim, isso foi uma revelação porque eu me mostrava bem resistente a essas novas
técnicas. De início, pensava que me demandaria um tempo absurdo para aprender a manipulá-las.
Mas foi, na verdade, bem rápido. Com essa técnica podemos tentar várias coisas: fazer uma versão
da montagem, depois uma outra que permitia manter ao mesmo tempo a primeira, como fotocópias
de um original. Podemos realizar todo tipo de trabalho na imagem, mudar a ordem dos planos de
modo bem rápido, sem se preocupar com a pista sonora. Podemos picotar uma cena infinitamente
preservando uma primeira possibilidade de montagem, que é de todo modo memorizada e à qual
podemos retornar. Com o filme em película, se decidimos mudar a montagem, é necessário refazer
tudo, desmontar tudo para se obter algo novo. Isso toma muito tempo…
Essa nova técnica permite trabalhar mais rápido, com menos preocupações. É algo que
liberta bastante. O perigo que isso comporta, sobretudo para um realizador inexperiente, é de se
pegar com dezesseis versões diferentes do mesmo filme sem conseguir escolher. Mas Marty sabe
tomar decisões e nós não nos confrontamos com esse tipo de problema.
P: Essa técnica permite marcar as fusões3?
R: Sim, é possível! Podemos acelerar um plano ou retardá-lo. Com a película, é preciso
esperar que o filme retorne do laboratório. Com esse procedimento, podíamos ver como ficariam as
fusões. Certamente, quando retornamos ao suporte da película, as fusões são então indicadas de
forma clássica, com as marcas preparatórias para o trabalho no laboratório, mas ao menos, nós já
vimos na tela de vídeo como ficarão esses efeitos.
P: O quadro é respeitado?
R: Sim, o único inconveniente da imagem digital, é que a informação é comprimida ao
máximo para que ela possa ser registrada na máquina. Isso tende a alterar a qualidade da imagem.
Ela fica bem ruim. Mas com os anos, esse procedimento vai se afinar e melhorar. É verdade que,
por ora, isso se torna um problema. Mas penso que no futuro continuarei a trabalhar com esse novo
equipamento.
P: A senhora tem a impressão de experimentar mais nesse filme do que nos outros?
R: Não, não exatamente. Houve um trabalho enorme em Touro indomável (Raging Bull,
1980), por exemplo. Experimentamos várias coisas em Os bons companheiros. Em Depois de
horas, passamos horas inteiras debruçados sobre um plano simples no qual as chaves do
apartamento caem na rua. Foi a mesma coisa em A cor do dinheiro, onde havia um trabalho pesado
com as fusões. Todos esses filmes são bem experimentais.
P: Quanto tempo durou a montagem?
R: Cerca de onze meses, o que, dada a complexidade e a duração do filme, é bem razoável.
Como eu lhe disse, há quase dois filmes em um!

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Em geral, uma fusão é indicada na imagem no momento da montagem por uma marca feita com giz branco ou preto
que indica o momento onde ela será posicionada.

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