Acordo de madrugada assombrado novamente por este maldito pesadelo.
Não consigo jamais me lembrar de detalhes de tamanho horror, somente do sentimento inigualável de medo que consumia-me frente a visão infernal que deveria estar passando naquele imaginário ridículo que geralmente é a mente humana. Sempre tento evitar espelhos a essa hora, por pura superstição, então no lugar de limpar o suor da testa com água corrente no banheiro, prefiro ir tomar uma água e ver a paisagem soturna da varanda de casa. As pampas sempre me impressionam, com sua extensão magnânima e sua importância imprescindível, mesmo sem os verdes monumentos naturais de tirar o fôlego que tantos poetas idolatram em seus versos estrangeiros. Isso me lembra, estamos preparando as coisas para nos mudarmos de Joinville. Eu disse que não gostava da ideia, mas papai e Helena afirmam que será o melhor para a família se mover até um centro comercial como São Paulo ou mesmo Salvador. Sempre que penso nisso, vem-me cada vez mais medo do futuro. Na verdade, ouso dizer que não tenho sentido muitas coisas nos últimos tempos. O que deveria ser embaraçoso ou ao menos um pouco empolgante para mim, como a viagem, tão pouco me traz lembrança ou sentimento. Os moleques vizinhos que sempre me deixavam esbaforido com seus travessos vandalismos a nossa casa agora só me trazem desânimo. O único destes que ainda me cativa de forma inclemente e insistente é o medo. É ele que me traz aqui fora em horário tão avançado, e é também este algoz invisível que desnorteia meus sentidos e me torna tão próximo de um animal. Minha querida irmã, que compadece por minha condição, nem mais deixa que eu saia de casa, aterrorizada com a possibilidade das vozes que escuto me chamando afetarem-me frente ao populacho, que poderia se aproveitar de minha vulnerabilidade para usar-me de formas inimagináveis. Sinto-me cada dia mais doente por esta condição, escasso de empatia, sentimento ou mesmo ambição. Meu corpo rejeita a comer e eu próprio não possuo a mesma veracidade em conhecer o mundo e viver suas dubiedades. Eu, que antes estava tão apaixonado pela vida, agora não vejo mais sentido em viver. Quando era escritor — ou melhor, quando ainda conseguia escrever qualquer texto —, as palavras e os sentimentos vinham-me em maior facilidade, como se fosse natural dissertar poeticamente sobre o cotidiano em um pedaço velho de papel, contudo, a sensibilidade deste ofício foi me abandonando a medida que também sentia minha humanidade esvair de minh'alma como água que escorre de um copo furado. Às vezes, para tentar corrigir minha falha profissional, rememorar-me das histórias que minha mãe contara em vida sempre ajudava. Todavia, isso só me gerou mais angústia à medida que lembrei de seus contos de terror que sabiamente me ensinaram as lições que tenho hoje como guias morais e éticos. Uma das que me lembro em destaque é seu conto sobre seres imortais que, por falta do sentimento neles próprios, buscavam absorver a empatia dos mortais por meio de seu sangue. Malditos sanguessugas parasitas que ela nomeou de vampiros, assustam-me até hoje com seus dentes pontiagudos e pele tão alva quanto a de um cadáver. Não digo que temo-lhes por seus atos vis, mas sim pela possibilidade de me tornar semelhante a eles. Destes pobres miseráveis, na verdade, sinto pena. Que vida miserável seria essa de depender daquilo que os outros têm e falta em ti tomado de forma tão selvagem que nos reduz à meros animais ferozes sedentos pela necessidade de sobrevivência? Seria um regresso da humanidade, e me imaginar nesse meio é mais atormentador que qualquer coisa que pudessem me contar. Já calmo e recuperado de um assalto à minha paz, retorno-me aos meus aposentos na esperança de tirar uma boa madrugada de sono. Nem isso me empolgava, na verdade, mas gosto de pensar que nesta época ainda havia algo vivo dentro de mim. Quando adormeço, deparo-me novamente com o pesadelo que tenho todos os dias. Nele, não sinto mais nada, e a inveja me impele a coisas terríveis. Vejo os sentimentos e as ambições dos outros e, pela falta da minha, busco me satisfazer nas emoções dos outros, devorando seus corpos e parasitando-os aos poucos. Aquilo era tão real e palpável que o gosto ferroso do sangue ainda penetrava em minha boca, envenenando meu paladar pela blasfêmia do canibalismo. Desta vez, fora tão intenso que me desperta novamente de madrugada, juntamente com uma euforia e loucura sem sentido lógico que me acomete meu maior erro… Corro imediatamente até o banheiro, a voz trancada na garganta, minha respiração falhando em seu compasso desritmado. Procuro cegamente o espelho do cômodo, crente de que havia algo ou alguém atrás de mim esse tempo todo, observando-me enquanto dormia. Quando encaro meus olhos, entretanto, mesmo que com a vela apagada, percebo que eles não me pertencem. Encaro aflito minha pele, e ela é mais pálida do que posso lembrar. Mais terrível ainda é quando chego aos dentes, que se transfiguravam em apenas duas presas longas que devoravam lentamente o sangue de meu pai e minha irmã, sem arrependimento algum no semblante. Aquele era meu pesadelo? O maior medo havia se concretizado? Era só ilusão? O que estava acontecendo!? Depois disso, as imagens do evento se confundem na minha mente. Recordo somente de berrar apavorado após ser invadido pelo medo irracional da humanidade de não pertencer a lugar algum. Poucos segundos após o surto, vem à mim meu pai e irmã para tentar acalmar os ânimos, mas todos os esforços são em vão. Quando se aproximam, ficam tão paralisados quanto eu mesmo ao notarem que ele estava lá. Eles também viam meu pesadelo, encaravam aquela coisa, paródia distorcida de minha imagem, junto a mim e torturando-me com sua mera existência. Eu, carente de coragem e razão, desesperadamente comecei a caçar e atacar todos ao meu redor, reduzido a meros instintos de sobrevivência que minha espécime outrora ousou esquecer… No dia seguinte, quando finalmente acordo, percebo minha família em prantos ao meu redor. Encontro-me deitado repousando no quarto onde meus pesadelos se tornaram realidade, frente ao medo que aqueles à quem amo tanto sentem de mim… Esse cheiro, que odor é este? Meu paladar parece agitado, como se lhe fosse este o elixir mais belo que a vida poderia trazer. Só que a mim, que já provei tantas coisas nesta vida, sinto estranheza. Não é como se eu não soubesse o que é, todavia, o significado que isto toma parece impossível. Haveria este medo de ter cheiro e gosto? Mais ainda, gostaria de prová-lo e teria a necessidade de consumi-lo? Não consigo sentir mais nada além do medo, então poderia conseguir a empatia que não me resta pela benevolência de outras pessoas? Vejo-as tão fragilizadas, como se pudessem ser devoradas a qualquer momento… Preciso devorar o medo deles também.