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SÉRIE: A TURMA DO POSTO 4


VOLUME: 2
TÍTULO: OPERAÇÃO TORRE DE BABEL
AUTOR: LUIZ DE SANTIAGO
CAPA:
EDITORA: EDIOURO - TECNOPLINT
ANO PUBLICAÇÃO: 1973
PREÇO DA EDIÇÃO:
PÁGINAS: 176

SCANS: RENATA BARBOSA


renatab@gmail.com

TRATAMENTO: RÔMULO RANGEL


romulorangel@bol.com.br

DISPONIBILIZAÇÃO
BOLSILIVRO-CLUB.BLOGSPOT.COM.BR
bolsilivroclub@gmail.com

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LUIZ DE SANTIAGO

OPERAÇÃO
TORRE DE BABEL

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A TURMA DO POSTO QUATRO

LUIZ DE SANTIAGO (LULA) — chefe da patota e


autor do livro que vocês vão ler. Tem 14 anos de idade,
nasceu em Copacabana e é filho de imigrantes portugueses.
O pai dele é gerente de uma confeitaria da Rua Barata
Ribeiro. Lula é um garoto moreno, nem magro nem gordo,
tem cabelos pretos e topete, olhos verdes e se amarra na
literatura. Frequenta o 3° ano ginasial e é ponta-direita do
Atlântica Futebol Clube, um time de futebol de praia com
escudo, camisa e tudo. Seu maior orgulho é um canivete
sensacional, com saca-rolhas, que tem lâmina Solinger.

MARIA APARECIDA DE CARVALHO (CIDINHA)


— é a namorada de Lula. Tem 12 anos de idade, cursa o 1.°
ano ginasial e nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais. É
miúda, sardenta, loura (cabelos feito espiga de milho) e tem
os olhos grandes e azuis. Às vezes, banca o juiz de futebol,
nos jogos entre o Atlântica e os seus rivais de Copa.

CARLOS CAVALCANTI (CARLAO) — nasceu no


Ceará, tem 15 anos de idade e é o mais parrudo da turma.
Estuda no mesmo ginásio, e cursa o mesmo ano que Lula.
Seus pais são pobres (imigrantes nordestinos) e, por isso, à
tarde ele trabalha numa academia de judô e karatê da Rua
Santa Clara.

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ANTÔNIO MATTEWS (PRÍNCIPE) — é o rapazinho
mais granfino da patota, daí seu apelido. Tem a mesma
idade de Carlão (15 anos), mas é gorduchinho, de cabelos
louros, compridos e anelados, e usa óculos de aros de ouro.
Príncipe não gosta de esportes violentos, mas tem uma cuca
genial e sabe de tanta coisa que parece uma enciclopédia
ambulante. Estuda em casa, com professores particulares.
Seu pai é inglês, muito rico, e tem uma fábrica de máquinas
pesadas em São Paulo, mas a família mora no Rio, no
Edifício Mattews da Avenida Atlântica. Príncipe nasceu na
capital paulista.

FRANCISCO DA CONCEIÇÃO (PAVIO


APAGADO) — é um crioulinho de 10 anos, magro e meio
torcido para a frente, igual ao pavio de uma vela. Sua cabeça
é escura e pelada. Ele estuda numa escola pública, onde
cursa o 3.° ano primário. Seu pai é o porteiro do Edifício
Mattews e sua mãe lava roupa para fora. Pavio Apagado é
esperto e mentiroso, mas honesto e leal. Nasceu na favela
da Catacumba e é o maior craque (ponta-esquerda) do
Atlântica F. C.

Como se vê, embora alguns dos personagens principais


deste livro não tenham nascido no Rio de Janeiro, são todos
cariocas. A maioria dos cariocas não nasceu na Guanabara.
Ser carioca é uma questão de temperamento.

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OPERAÇÃO
TORRE DE BABEL

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PRIMEIRA PARTE

OS DETETIVES EM AÇAO

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CAPÍTULO 1

O CRIME DA GARAGEM

Não sei se vocês já conhecem a “operação da semana”,


que a nossa patota realiza todos os sábados e domingos.
Como se trata de uma operação secreta, é possível que
vocês não a conheçam. O caso é que a Turma do Posto 4
não é igual às outras de Copacabana, que fazem muita onda,
mas não concorrem, com coisa alguma, para o progresso do
bairro ou para a defesa da sociedade. Nossa turminha é
legal, barra limpa, avançada, e já está noutra jogada mais
quente, sempre empenhada em transas úteis, destinadas a
concorrer para o bem-estar, a segurança ou a alegria da
comunidade. Aí é que entra a “operação da semana”.
Durante cinco dias, nos intervalos dos estudos, a gente lê
jornais, bate-papo com os amigos, escuta rádio e assiste à
televisão — e, na sexta-feira à noite, reúne-se na garagem
do Edifício Mattews, onde cada enturmado dá um palpite
sobre um assunto de interesse para a coletividade. O assunto
mais importante é eleito por votos, e assim a gente fica
sabendo qual a “operação” que deverá executar no sábado
e domingo.
Da última vez, nossa “operação” teve o nome de código
de “Macaco Velho”; desta vez, o negócio foi mais sério. Em
vez de caçar um chimpanzé, a Turma do Posto 4 partiu para
caçar um assassino.

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Às oito horas da noite de sexta-feira passada, lá
estávamos nós, muito nervosos, reunidos no vestíbulo do
edifício da Avenida Atlântica. Pavio Apagado foi o último
a chegar, embora morasse ali mesmo (no rés-do-chão, num
pequeno apartamento dos fundos), pois “seu” Baltazar é o
porteiro do prédio. Os olhos do moleque estavam
vermelhos e inchados, de tanto chorar.
— Oi, turma!
— Oi! — respondemos, em coro.
E Cidinha acrescentou, naquele seu jeito carinhoso :
— Ainda não há notícias de seu pai?
— Nenhuma — respondeu o moleque, dando uma
fungadela. — Mamãe falou que eles prenderam o velho e
não deixaram ela falar com ele.
— Daremos um jeito nisso — prometi, assumindo a
presidência da “mesa”. — Faça a chamada, Cidinha!
Minha namorada obedeceu. Estávamos todos ali e
respondemos “presente”.
— De acordo com a lei da Turma do Posto 4 —
declarei, com voz grave — está aberta a sessão! Creio que,
hoje, não será preciso fazermos uma votação para eleger a
“operação da semana”. Todos nós trazemos a mesma idéia
na cuca, não é verdade?
— É verdade — concordaram Carlão, Príncipe e
Cidinha.
— Menos eu — disse Pavio. — Tem uma favela, em
Botafogo, que está sendo despejada e seus moradores não
têm onde morar. O que aconteceu na quinta-feira é ruim, e
a prisão de meu pai também é ruim, mas o problema dos
favelados é ainda mais ruim. Se vocês quiserem...
— Trataremos dos dois assuntos ao mesmo tempo —
interrompeu Príncipe. — Vou falar com meu velho sobre a
ameaça que pesa sobre esses pobres favelados. Meu velho

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se dá com o governador, vocês sabem. Na minha opinião, o
assunto mais quente é o crime da garagem. Não acredito
que seu pai esteja envolvido nele, Pavio. A turma precisa
tirar “seu” Baltazar do xadrez e descobrir o verdadeiro
assassino!
Todos os enturmados aprovaram gravemente. E
começamos a discutir os detalhes da aventura daquela
semana. Imaginem vocês que tinha ocorrido um crime de
morte, na noite anterior, no próprio Edifício Matews! Pois
é. Logo naquele arranha-céu, onde moravam três dos cinco
membros da Turma do Posto 4! Era um desafio à nossa
organização!
Eis como se deu o crime misterioso, que atraiu para o
nosso edifício as atenções de toda a cidade (senão de todo
o Brasil) e criou um ambiente de suspeita e mal-estar entre
todos os seus moradores: Na quinta-feira, às onze horas da
noite, a mãe de Pavio deu um grito na garagem, que atraiu
o marido dela (que estava tomando banho), o filho (que já
tinha se deitado) e os moradores do 2° e 3° andares do
prédio. “Seu” Nicolau Karlovski (o russo do apartamento
201) e sua empregada Aliocha, o professor Vasconcelos e
sua empregada Maria do Carmo (apartamento 202), o casal
de franceses do apartamento 301 (“seu” Legrange e dona
Claudine), bem como a empregadinha deles, Michelle,
todos desceram correndo à garagem e encontraram dona
Maria da Conceição chorando diante do corpo
ensanguentado do zelador do prédio, o Severino, que estava
caído no cimento, perto da escadinha que liga a garagem ao
vestíbulo do edifício. O faxineiro ainda não morrera, mas
estava muito machucado. Quando “seu” Karlovski, “seu”
Baltazar e o prof. Vasconcelos se ajoelharam perto do pobre
Severino, este murmurou claramente:
— Foi ele... Ele me matou!

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As empregadas (Aliocha, Maria do Carmo e Michelle)
também ouviram. Mas ninguém sabia quem era “ele”, pois
não havia mais ninguém na garagem. Logo em seguida, o
faxineiro exalou o último suspiro. Tinha levado duas
facadas no peito, uma nas costas e outra na barriga. Não
havia nenhuma faca no local, de maneira que todos viram
logo que o assassino fugira dali com a arma do crime. Mas.
fugira por onde? O portão da garagem que dava para a rua
(no alto da rampa dos automóveis) estava trancado. Aliás,
todo o prédio estava trancado, pois “seu” Baltazar sempre
fecha as duas portas de entrada às dez horas da noite e,
depois disso, só podem entrar os moradores que tenham
chave. O Edifício Mattews não tem porteiro noturno.
Vendo que Severino morrera, o prof. Vasconcelos subiu
ao vestíbulo (pela escada interna) e telefonou para a 13a
Delegacia Distrital. Nessa altura, já outros moradores do
prédio estavam na garagem, mas não mexeram em nada,
pois o pai de Pavio tomava conta e não deixava ninguém se
aproximar do cadáver. Mamãe não desceu, mas eu e papai
fomos até lá, para ver a sangueira. Uma coisa horrível! Daí
a pouco, chegou um carro da Radiopatrulha, com dois PMs
(um cabo e um soldado) que tomaram o lugar de “seu”
Baltazar, isolando o local. Os dois militares constataram o
crime e perguntaram se alguém conhecia a identidade do
criminoso. Como ninguém conhecesse, o cabo falou que era
um “homicídio de autoria desconhecida” e mandou o
soldado chamar o comissário do distrito. Ao mesmo tempo,
pediu que ninguém se afastasse dali, até chegarem os
detetives, pois eles iriam arrolar testemunhas. Isso queria
dizer que todos nós éramos suspeitos e teríamos que prestar
declarações. É claro que, num caso desses, a gente deve
cooperar com as autoridades e ajudá-las a descobrir o
culpado, contando tudo o que sabe. Por isso, ninguém saiu

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da garagem, à espera do resto da polícia. Todos os
moradores do Edifício Mattews (menos o assassino, é claro)
tinham interesse em esclarecer o mistério. Apenas as
mulheres é que saíram da garagem.
Por volta da meia-noite, chegaram o comissário de
plantão e quatro detetives. O comissário era magro, de
bigodes grossos, careca e invocado. Os detetives
chamavam-se José, Mancada, Boneco e Ulisses. Aí, o
comissário deu início às investigações, no local do crime,
sem mudar a posição do cadáver. Não havia nenhum
documento nas vestes do morto, que usava apenas calça de
brim e camiseta de meia.
— Alguém viu a arma? — interrogou o comissário. —
Deve ser uma “peixeira”, ou um facão de cozinha bastante
afiado.
Ninguém tinha visto nada parecido. Aí, o comissário e
os detetives deram uma busca na garagem, mas não
encontraram nada. Também espiaram dentro dos carros
estacionados (e no interior do incinerador) e não
encontraram coisa alguma. Então, fizeram o tal
“arrolamento” das testemunhas, tomando nota do nome de
todos os moradores do prédio e fazendo um sinal adiante
dos nomes das pessoas mais ligadas à vítima: o porteiro, o
síndico do edifício (que era o Dr. Aparício) e o velho
Legrange, proprietário do apartamento 302. que estava
vazio e onde dormia o faxineiro. Os detetives também
revistaram o apartamento 302, cuja porta estava apenas
encostada, mas não encontraram nada suspeito. O pior é que
o comissário ficou sabendo que “seu” Baltazar tinha
discutido, nessa noite, com o zelador assassinado.
— Que discussão foi essa? — quis saber ele.
“Seu” Baltazar disse que Severino estava gastando
muito detergente, na limpeza, e que ele lhe chamara a

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atenção. Na verdade, o faxineiro era desonesto e comprava
quatro latas de detergente por semana, mas só gastava duas.
Isso além de outros pequenos furtos, que seriam apurados
depois. O sindico (Dr. Aparício) confirmou as acusações do
porteiro e disse que também estava para chamar a atenção
do zelador.
— Como foi a briga? — insistiu o comissário.
“Seu” Baltazar começou a ficar nervoso. Confessou que
acusara Severino de ser um trambiqueiro e que ia fazer
queixa ao síndico, para botá-lo no olho da rua. Aí, o
faxineiro ameaçara dar uma surra no pai de Pavio, dizendo
que ele não tinha que se meter, e o pai de Pavio respondera
que, se ele se atrevesse, ia levar um tiro na cara.
— Você tem arma de fogo? — perguntou o comissário.
— Não, senhor — respondeu “seu” Baltazar. — Só falei
aquilo para botar Severino no seu lugar. Ele era muito
atrevido. Claro que eu não tenho arma nenhuma, nem fazia
tenção de cumprir a ameaça. Falei aquilo só por falar, no
meio da discussão. Acho que eu estava fora de mim.
— A discussão foi na garagem?
— Não, senhor. Foi na porta do apartamento 302, onde
Severino estava dormindo de favor. O apartamento pertence
a “seu” Legrange, mas, como está vazio, “seu” Legrange o
cedeu a Severino, até ser alugado outra vez. Os dois
apartamentos do 3.° andar pertencem a “seu” Legrange, o
apartamento 201 pertence a “seu” Karlovski e o 202 ao
professor Vasconcelos; todos os outros apartamentos são de
propriedade de Mister Mattews, que os aluga aos demais
moradores. Mister Mattews mora no nono e último andar,
no apartamento de cobertura.
— A que horas foi a discussão?
— As dez e pouco, logo depois que eu fechei as portas
do prédio.

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— E depois disso?
— Depois, desci ao meu cochicho, nos fundos do rés-
do-chão. Na hora do crime, já estava no banheiro, debaixo
do chuveiro. Minha mulher sabe disso.
— Muito bem — rosnou o comissário. — Seu
testemunho é precioso. Você vai comigo para a delegacia!
Foi assim que a polícia prendeu “seu” Baltazar, que era
o principal suspeito, por causa da ameaça de morte e porque
teria tomado banho de chuveiro, depois do crime, para lavar
as manchas de sangue. Depois disso, o comissário telefonou
para a Delegacia de Homicídios. Já eram quase duas horas
da madrugada quando chegaram um inspetor, uma “turma
de locais” e três peritos (dois técnicos e um fotógrafo) do
Instituto de Criminalística. A maioria dos moradores do
edifício já se recolhera a seus apartamentos, mas os nomes
de todos estavam na lista do comissário. Este falou que as
testemunhas arroladas teriam que depor, na delegacia, logo
que recebessem um convite da polícia. Não era uma
intimação, disse ele sorrindo, era um convite... Só depois é
que o cadáver de Severino foi levado para o Instituto
Médico Legal e todo mundo pôde andar livremente pela
garagem.
A essa altura, eu e papai também tínhamos voltado para
casa, no oitavo andar, mas fiquei sabendo do resto pelos
jornais. A Delegacia de Homicídios tomara conta das
investigações, recolhendo provas e fazendo pesquisas na
garagem. As testemunhas arroladas foram divididas em três
grupos. O primeiro, que incluía o porteiro (que já estava
preso), a mulher dele, o síndico, o prof. Vasconcelos, “seu”
Karlovski e “seu” Legrange, devia ser ouvido, na delegacia,
nessa sexta-feira à tarde; os outros dois grupos seriam
interrogados no sábado e na segunda-feira. A polícia
respeitava o domingo.

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Na sexta-feira à tarde, as primeiras testemunhas foram
à delegacia e prestaram seu depoimento. Os jornais tinham
publicado reportagens completas do caso, dizendo que o
porteiro fora detido e ia confessar a qualquer momento. É
claro que, na opinião da Turma do Posto 4, o pai de Pavio
estava inocente e não ia confessar coisa nenhuma. Todos
nós estávamos convencidos da inocência de “seu” Baltazar,
que é um ótimo porteiro, muito educado, e uma pessoa de
bons sentimentos. É verdade que ele é crioulo e beiçudo,
mas quem vê cara não vê coração. E o fato de “seu” Baltazar
já ter morado numa favela, antes de ir ser o porteiro do
Edifício Mattews, não quer dizer nada.
O caso estava nesse pé, na sexta-feira à noite. A arma
do crime (possivelmente uma “peixeira”) não apareceu.
Dona Maria, a mãe de Pavio, tinha um facão de cozinha
amolado, mas os detetives confessaram que não era a faca
que eles procuravam. Ninguém mais falou que tinha facões
em casa, embora todos tivessem e a polícia bem que
soubesse disso. Por enquanto, a Delegacia de Homicídios
não tinha ordem judicial para entrar nos apartamentos dos
proprietários e inquilinos do prédio. Mas todo mundo sabia
que o assassino só podia ser um dos seus moradores, pois
não havia sinais de ter entrado um estranho na garagem.
Para ajudar os leitores a compreenderem a transa, aqui vai
um desenho (que eu mesmo fiz) do Edifício Mattews, com
a localização dos apartamentos e respectivos moradores:

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1 — Portão da garagem
2 — Entrada principal do edifício
3 — Garagem, com o corpo de Severino
4 — Incinerador (lixeira)
5 — Escada e elevadores
6 — Cochicho do porteiro
7 — Apto. 201, de “seu” Karlovski
8 — Apto. 202, do prof. Vasconcelos
9 — Apto. 301, dos velhos Legrange
10 — Apto. 302, vazio (onde dormia o faxineiro)
11 — Apto. 401, de Jasmim
12 — Apto. 402, do Dr. Ezequiel
13 — Apto. 501, da família Assadib
14 — Apto. 502, dos dois japoneses
15 — Apto. 601, dos Zimbermann
16 — Apto. 602, do Dr. Aparício (o síndico)
17 — Apto. 701, dos Giovanelli
18 — Apto. 702, de “seu” Valdemar
19 — Meu apto., 801 (família Santiago)
20 — Apto. 802, dos Herrera
21 — Big apto. 900, de Mr. Mattews
22 — Terraço (uso exclusivo dos Mattews)

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Agora, ali estávamos nós, reunidos em volta da mesinha
do porteiro, no vestíbulo do Edifício Mattews, preparados
para dar início à “operação da semana”. Devido ao crime da
garagem, não nos fora permitido fazer a reunião no lugar do
costume, em volta do capô do Mustang do pai de Príncipe.
— Estamos todos de acordo — disse eu, depois de ter
aberto a sessão. — Desta vez, vamos bancar os detetives e
ajudar a polícia a descobrir quem matou Severino! Alguém
tem alguma dúvida sobre a inocência de “seu” Baltazar?
Os protestos foram gerais. Ninguém tinha dúvidas. O
pai de Pavio era legal, bacana, gentil, e estava sendo vítima
de um erro judiciário.
— Erro “policial” — acentuou Príncipe, que entendia
mais dessas coisas. — “Seu” Baltazar ainda não foi
apresentado como suspeito e, portanto, a justiça não deve
ser responsabilizada pelo erro. Aliás, o próprio delegado
disse que “seu” Baltazar não está preso, mas apenas detido
para averiguações. Nós descobriremos o mistério, antes que
a polícia encerre o inquérito e entregue os autos, e o
indiciado, ao promotor público!
Ninguém entendeu nada, mas todos bateram palmas.
Príncipe sempre fala bonito às pampas, porque tem uma
cuca de ouro e entende um pouco de tudo.
— Que nome de código daremos a esta operação? —
quis saber Cidinha. — Trata-se de um assunto muito
quente, muito delicado, e ninguém deve saber que a Turma
do Posto 4 está metida nele. Nossas investigações devem
ser ultra-secretas. Nem a polícia deve saber. E muito menos
o criminoso, é claro.
— Alguém quer batizar a operação? — perguntei.
— Eu batizo — disse Príncipe. — Como o Edifício
Mattews está cheio de estrangeiros... russos, franceses,
árabes, japoneses, alemães, italianos, ingleses e espanhóis...

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é uma verdadeira Torre de Babel. Esse deve ser o nome de
código da operação: “Torre de Babel”.
Achamos a sugestão muito bacana e a aprovamos sem
discussão.
— O que é Torre de “Babel”? — perguntou Pavio.
Era a oportunidade que Príncipe esperava, para deitar
sapiência. E explicou para seus ouvintes atentos:
— Babel significa “confusão” e é o nome hebraico da
Babilônia. Segundo conta Moisés, na Bíblia, os
descendentes de Noé, salvos do dilúvio e habitantes da
planície de Senaar, resolveram construir uma torre que
atingisse o céu. Cada um dos andares dessa torre seria
dedicado a um deus estelar e pintado de cor diferente. Mas
a empresa não colou, porque Jeová, percebendo o orgulho
e a ambição dos construtores, castigou-os, misturando-lhes
as línguas... ou melhor, os idiomas... de maneira que eles
não se entenderam mais e não puderam terminar a obra.
— Quem é a “Balbilônia”? — perguntou Pavio.
— Babilônia era um antigo império da Ásia, entre os
rios Tigre e Eufrates. Sua capital tornou-se tão importante
que ocupou toda a planície de Senaar.
— E Moisés? Quem foi ele?
— Moisés foi o autor dos primeiros cinco livros da
Bíblia, chamados Pentateuco. É o mesmo Moisés que fez as
leis dos judeus e apareceu naquele filme do Roxy,
atravessando o Mar Vermelho a pé enxuto.
— E o que é deus “estrelar”? — insistiu Pavio.
— Estelar. É um deus ligado às estrelas. Júpiter, por
exemplo.
— E “Jová”?
— Jeová é o nosso Deus, na linguagem bíblica. E não
me pergunte mais nada, senão não vamos sair mais daqui!

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— Aprovado o nome da operação — disse eu. —
Agora, vamos traçar nossos planos. Todos vocês leram os
jornais e sabem de tudo a respeito do crime. O assassino só
pode ser um homem.
— Quem? — perguntou Pavio.
— Qualquer um, mas homem.
— Por quê? — interrogou Cidinha. — Hoje em dia, tem
mulheres capazes de meter a faca em qualquer atrevido.
— Seis testemunhas ouviram Severino falar, antes de
morrer: “Foi ele... Ele me matou!” Está na cara que “ele” só
pode ser homem.
— Está na cara — concordou Carlão. — Se fosse
“muler” não era “ele”, era “ela”.
— Portanto — prossegui — já sabemos que foi um
homem quem matou Severino. Mas sabemos mais. Só pode
ter sido um morador deste arranha-céu. O crime ocorreu às
onze horas da noite, quando a portaria estava fechada e não
havia nenhum visitante aqui dentro. Foi o que a polícia
apurou.
— Certo — disse Príncipe. — A polícia trabalhou bem
em tudo, menos num ponto. “Seu” Baltazar não é o
criminoso, embora haja um forte indício contra ele. Depois
daquela discussão com Severino, “seu” Baltazar tinha um
motivo para matar o faxineiro.
— Meu pai não matou ninguém — protestou Pavio. —
Eles prenderam ele “incolumicável” só porque ele é
humilde!
— Prenderam ele, o quê? — quis saber Cidinha.
— “Incolumicável.” Foi o que mamãe falou.
— Incomunicável — emendou Príncipe. — Ou seja: a
polícia não deixa que ele se comunique com ninguém.
— É isso aí — disse Pavio. — Se vocês entenderam,
não cansem a minha beleza!

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Perdoamos a bronca de Pavio, em razão do seu estado;
normalmente, ele não é muito malcriado. Cidinha adotou
uma atitude dramática:
— Estamos todos prontos para investigar o mistério até
o fim? — perguntou, com voz grave. — Ninguém tem medo
das ameaças e dos perigos que sempre cercam os detetives?
Imaginem se o verdadeiro assassino descobre que a
turminha está na pista dele! Já pensaram nas
consequências?
Houve uma pausa. Pavio estava cinzento de susto.
— Eu desisto — disse ele. — Não tinha pensado nas
“sequências”!
— Se Pavio desiste — disse Carlão — eu desisto
também! Sempre acompanho os amigos!!
— E se vocês desistirem — retruquei — serão afastados
da Turma do Posto Quatro, para darem lugar ao Lúcio e ao
Mário Girafa! Não queremos covardes entre nós! Me
admira você, Carlão! Um homem desse tamanho, que sabe
lutar judô e karatê, com medo de um rato!
— Um assassino não é um rato — disse Carlão. — Mas,
se vocês querem mesmo bancar os detetives, eu topo. Tenho
medo de nada, não! Só os mariquinhas é que têm medo! E
eu sou um cabra decidido!
— Então, eu também topo — murmurou Pavio. —
Papai não vai brigar comigo, quando souber que eu “bimba”
por querer tirar ele do xadrez...
— Eu “bimba”, o quê? — irritou-se Cidinha. —
Ninguém vai lhe bater, seu medroso!
— Não se sabe... O bandido que matou Severino pode
bater, porque nós nos metemos na vida dele. Mas eu topo,
para mostrar àquele comissário que meu velho não matou
ninguém!

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— E por onde vamos começar? — perguntou Príncipe,
incrementado. — Se vocês entrarem na minha, vai ser mole
encontrar provas contra o verdadeiro assassino!
— Qual é a sua? — quis saber Cidinha.
— Vou botar o meu bonezinho escocês e usar a lanterna
elétrica e a lupa que papai me comprou. Só não vou fumar
no cachimbo do velho porque ele não gosta. Realmente, não
pega bem um garoto fumar.
— Você não tem nada que imitar Sherlock Holmes —
ralhou Cidinha. — Só porque tem um boné de xadrez não
deve esnobar em cima dos outros! Isso é muito feio,
Príncipe! Jeová pode te castigar!
— Se eu não botar o boné, não investigo coisa
nenhuma! Só sei bancar o detetive com a lupa e o
bonezinho! Todos os detetives usam lupa!
— Está bem — resolvi. — Pode botar o boné, Príncipe.
Quem quiser que use o disfarce que entender. Mas é preciso
cuidado, para não botar o assassino de pé atrás. Não se
esqueçam de que ele ainda está neste edifício... e pode ser
qualquer um dos treze homens que moram aqui!
— São treze suspeitos? — perguntou Cidinha,
alarmada. — Tantos assim?
— Tantos assim. Só excluí meu pai e o pai de Príncipe,
não só porque são nossos pais como também porque não
podiam ter cometido o crime. Meu velho estava lá em casa
comigo, e Air. Mattews estava em São Paulo, com o
Mustang e seu chofer particular.
— Tem razão — disse Príncipe. — Papai e “seu” Zeca
foram a São Paulo na quinta-feira e só voltaram hoje de
tarde, depois que souberam do crime. Eles iam voltar na
segunda-feira. Mas temos treze suspeitos, que precisam ser
investigados. Algum de vocês tem alguma pergunta a fazer?
— Eu tenho — disse Pavio. — O que é “lurpa”?

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Príncipe explicou que lupa é uma lente de aumento,
redonda, com um cabinho, e que depois lhe mostrava. E eu
encerrei a reunião, marcando outro encontro com a turma,
na manhã seguinte, às oito horas. Já eram nove horas da
noite e dali a pouco o Dr. Aparício (o síndico) devia descer
para fechar o prédio, na ausência do porteiro. Não era
seguro fazer pesquisas na garagem com as portas abertas,
pois a polícia podia nos surpreender. E, com as portas
fechadas, só eu, Príncipe e Pavio poderíamos ter livre
acesso ao local do crime, já que morávamos no prédio. Daí,
ficou assentado que nós três é que daríamos início à
“Operação Torre de Babel”, depois que as portas fossem
fechadas. Tive a impressão de que Cidinha e Carlão não
lamentaram ficar de fora das primeiras investigações,
naturalmente porque não achavam muito agradável visitar
a garagem à noite... Quem sabe? A alma do defunto podia
ter ficado por lá...

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CAPÍTULO II

O SEGREDO DA LIXEIRA E DO RODAPÉ

Depois que Cidinha e Carlão foram embora, eu e


Príncipe ainda ficamos alguns minutos conversando na
portaria, enquanto Pavio olhava para nós sem dizer nada.
Príncipe tinha aberto um jornal, em cima da mesinha de
“seu” Baltazar, e leu os principais trechos de uma
reportagem sobre o crime da garagem. Ali estavam os
nomes de todos os moradores do Edifício Mattews, do apto.
201 ao 900, embora fora de ordem. Pacientemente, copiei
as informações do jornalista sobre cada um dos suspeitos e
fiz uma lista organizada, que começava no russo do 201 e
acabava no pai de Príncipe.
— Aqui temos os treze suspeitos — concluí, mostrando
o meu trabalho aos outros dois garotos. — Graças a esta
lista, ficamos sabendo que os suspeitos diminuíram.
Pavio piscou os olhos, espantado.
— Quem diminuiu? Já não está todo mundo do mesmo
tamanho?
— Claro que está! O que diminuiu foi o número de
prováveis assassinos! De acordo com o que a Delegacia de
Homicídios apurou, dois homens estão fora da jogada. Isso
reduz a lista para onze suspeitos, apenas.
Príncipe leu a relação e concordou. Tal como Mr.
Mattews, os homens dos aptos. 501 e 701 também não

— 25 —
podiam ter cometido o crime, pois estavam ausentes na
noite de quinta-feira. O primeiro era “seu” João Assadib,
um libanês gordo e moreno, proprietário da “Butique
Bayrouth”, no Leme. “Seu” Assadib morava no 501, com a
mulher (dona Fátima) e 5 filhos menores, que nunca
brincavam com as outras crianças do bairro, porque os pais
não queriam que eles se misturassem. O gordo negociante
árabe cheirava sempre a cebola e vivia implicando com os
moleques que jogavam pelada no pátio, mas, embora fosse
um chato, não podia ser o assassino. A polícia comprovara
que, na noite do crime, ele e dona Fátima estavam de visita
a uma família síria, na Rua da Alfândega.
O outro suspeito que também não podia ter morto o
faxineiro era o italiano do sétimo andar, “seu” Giuseppe
Giovanelli, um velhote sempre vestido de preto e fedendo a
suor que vivia de rendimentos e (segundo diziam)
emprestava dinheiro a juros. Nós gostaríamos que ele fosse
o criminoso, pois era muito antipático e avarento, mas,
infelizmente, não podia ser. “Seu” Giuseppe e a mulher
(dona Júlia) tinham passado a noite de quinta-feira numa
festinha de aniversário, em São Cristóvão, e só regressaram
a Copa de madrugada, com os bolsos cheios de doces. Tanto
a família Assadib quanto os Giovanelli eram simples
inquilinos do Edifício Mattews (o pai de Príncipe era o
senhorio deles) e não possuíam automóvel.
— Podemos riscar esses dois nomes da nossa lista —
disse eu. — Mas, assim mesmo, restam onze suspeitos, que
precisam ser interrogados. Amanhã de manhã trataremos
disso. Agora, vamos disfarçar e esperar que o Dr. Aparício
feche as portas do edifício. Depois, então... já se sabe!
— Já se sabe o quê? — perguntou Pavio, assustado.

— 26 —
— Vamos dar uma busca na garagem. Não tem perigo;
a polícia não deixou nenhum guarda lá embaixo. E eu tenho
o palpite de que a arma do crime ainda está lá!
— É mesmo? — fez Príncipe, cujos olhos azuis
brilhavam por trás dos óculos. — Nesse caso, vou botar o
meu bonezinho e apanhar a lupa e‘ a lanterna elétrica. Os
detetives sempre dão buscas, armados com o seu material
de trabalho... Se a gente encontrar o facão, não deve tocar
nele com os dedos desprotegidos. Eu me encarregarei de
examinar a arma com a minha lente, a fim de procurar as
impressões digitais do último homem que a usou, ou seja, o
assassino.
— Que barato! — murmurou Pavio, impressionado. —
O que são impressões digitais?
— Marcas de dedos — explicou o sabichão, sempre em
voz baixa. — O estudo das impressões digitais chama-se
datiloscopia e é usado pela polícia de todo o mundo. Como
não há duas marcas de dedos iguais, é fácil identificar um
criminoso pelos vestígios que ele deixa nos objetos que
toca.
Mesmo com as mãos limpas, as pontas dos dedos da
gente imprimem sinais nos objetos, devido à constante
umidade da pele. Se eu encontrar impressões digitais do
assassino no facão, e se obtiver as impressões digitais de
todos os moradores do prédio, logo descobrirei quem é o
culpado. Os dedos não mentem jamais!
— Bacana! — disse Pavio. — Depois você deixa eu
também olhar as impressões na sua “lurpa”?
— Talvez — condescendeu Príncipe. — Mas, primeiro,
é preciso encontrar o facão. Lula já tem uma pista. Não é
verdade, Lula?
Eu não tinha nenhuma pista, mas apenas um palpite. A
arma do crime podia estar escondida dentro da caixa

— 27 —
d’água. Havia um depósito de água no piso da garagem,
com um tampão de zinco, que os lavadores dos carros
usavam no seu trabalho. Nenhum jornal dizia que a polícia
tinha procurado a “peixeira” na cisterna da garagem.
— Vamos disfarçar e esperar que o Dr. Aparício feche
as portas — repeti. — Cada um deve ir para sua casa e
aguardar a hora H, para então dar uma busca lá embaixo. A
hora H pode ser às dez e meia. A essa hora, o síndico já
deve ter ido se deitar.
Mal eu acabara de dizer isto e o Dr. Aparício saiu do
elevador social, encaminhando-se para nós. Era um homem
forte e mal-encarado, de cabelos e bigodes cinzentos, que
também não gostava de crianças. Como sofria de bronquite
asmática, estava sempre fungando.
— Que é que vocês estão fazendo aqui? — perguntou
ele, desconfiado.
Príncipe dobrou o jornal e eu meti no bolso a lista de
suspeitos, da qual também fazia parte o próprio Dr.
Aparício Dias de Carvalho... Ele não devia nem suspeitar
da “Operação Torre de Babel”! Apesar de ser médico
espírita, bem que podia ter morto Severino, pois não
gostava do faxineiro.
— Não estamos fazendo nada, não — respondi,
sorrindo candidamente. — A gente estava se despedindo,
para subir... Já passa das nove, não é?
— Não quero que vocês fiquem atrapalhando a
passagem, aqui no hall — continuou o síndico, bronqueado.
— Depois do que aconteceu na garagem, quanto menos
pessoas andarem aqui por baixo, melhor! A polícia me
pediu que tomasse conta de tudo e não deixasse ninguém
mexer em nada! Crianças gostam muito de bolir nas coisas
e podem criar complicações! Deem o fora, vamos! Chô,
chô!

— 28 —
E pôs-se a fungar com jeito ameaçador.
— Já estávamos indo, doutor — disse Príncipe, com
uma cortesia exagerada. — Nossa turma não se interessa
pelo que aconteceu na garagem. Foi um crime horrível, que
nos impressionou demais, mas não temos nenhum desejo de
ir à garagem. Não somos curiosos e respeitamos o
regulamento.
— Nem vamos bancar os detetives — acrescentou
Pavio. — Príncipe vai botar o bonezinho e a “lurpa”, mas é
só para disfarçar...
Tapei a boca do moleque com a mão espalmada e dei-
lhe um beliscão no traseiro.
— Não fala besteira, Pavio! Ninguém, aqui, tem lupa,
nem quer disfarçar coisa nenhuma! Vamos dar o fora! O
doutor está mandando!
E empurrei o imprudente na direção dos fundos do
vestíbulo, onde ficava o cochicho de “seu” Baltazar. E o Dr.
Aparício ficou junto da mesa da portaria, olhando para nós
de boca aberta, com a respiração sibilante. Será que ele
tinha desconfiado?

***

Quando o elevador parou no oitavo andar, saltei e


Príncipe seguiu para o nono. Nosso encontro, na garagem,
estava marcado para as dez e meia. Entrei na sala do meu
apartamento e encontrei papai e mamãe assistindo à
televisão. Não temos empregada, porque mamãe é uma
perfeita dona de casa e também sabe cozinhar.
Esperei que acabasse o programa que eles estavam
assistindo e, quando apareceram os anúncios no vídeo do
aparelho de TV, comentei:

— 29 —
— Papai? Que é que o senhor acha do crime da
garagem, hem? Agora mesmo, o Dr. Aparício estava
dizendo que a polícia suspeita de. todos os moradores deste
prédio e não quer que ninguém mexa em nada...
Meu velho é um português simples e meio grosso.
— Esse Dr. Aparício é uma besta — disse ele. — Ou
melhor, é um finório. Ele disse que o falecido Severino era
um ladrão, mas o maior ladrão é ele mesmo! Todos os
síndicos são uns malandros, que compram as coisas por um
preço e mostram aos condôminos uma fatura “arranjada”,
com o dobro do preço! Não confio nesse médico de
farmácia! Na minha opinião, a polícia cometeu um engano,
prendendo o Baltazar. Não foi esse pobre crioulo que matou
o zelador. Para mim, foi outra pessoa, de quem nós nem
suspeitamos. Podia ter sido o próprio Dr. Aparício, ou
aquele comunista do segundo andar. O azar do Baltazar foi
ter discutido com Severino, ontem à noite, pouco antes do
crime. Mas isso não quer dizer que ele seja o criminoso.
Quem ouviu a discussão já queria matar o zelador e
aproveitou a oportunidade para pôr a culpa em cima do
outro...
— Pois é — disse eu. — A Turma do Posto Quatro
também acha que o criminoso não é o porteiro. Tivemos
uma reunião, agora mesmo, e discutimos o caso à luz da
lógica...
— Oh, não! — exclamou papai, encarando-me. —
Essa, não! Não me venhas dizer que vocês andaram
comentando essa história desagradável! Não quero meu
filho envolvido com a polícia! Vocês não têm nada que
tomar partido ou se meterem nisso! Deixem a polícia agir,
porque essa é a obrigação dela! Não quero que a Turma do
Posto Quatro nos dê novas dores de cabeça!
— “Seu” Baltazar é inocente, papai.

— 30 —
— E daí? Se ele for inocente, acabará sendo solto, ora
essa! A Delegacia de Homicídios tomou conta do caso e vai
esclarecer tudo, mais dia menos dia. Não se metam nisso,
pelo amor de Deus!
— Não podemos ficar de braços cruzados, papai!
Queremos ajudar a polícia!
— Ai as minhas encomendas! — gemeu ele, erguendo
as mãos para o ar. — Quando é que vocês irão criar juízo?
É o excesso de leituras que estraga a mocidade de hoje!
Vocês sempre querem se meter em tudo, dar palpites,
complicar as coisas mais simples! No meu tempo, os
moleques da tua idade ainda vestiam calças curtas! E não
criavam tantos problemas para os pais! No meu tempo,
ninguém sabia o que era contestação!
— É claro que vamos deixar a polícia trabalhar em paz
— disse eu. — Mas podemos dar uma mãozinha à
Delegacia de Homicídios... Se o verdadeiro assassino for
um dos moradores do prédio, pode muito bem permanecer
impune. A polícia vai ouvir todas as testemunhas, mas não
vai entrar na casa delas...
— Que queres dizer com isso? — perguntou papai,
invocado.
— Quero dizer que pode haver alguma pista, nalgum
apartamento, da qual a polícia não tomará conhecimento. A
Delegacia de Homicídios ainda não obteve ordem judicial
para visitar os moradores em suas residências, de maneira
que, se eles estiverem escondendo alguma coisa... a arma
do crime, por exemplo... a polícia nunca vai saber disso! Ao
passo que nós já conhecemos todos os suspeitos e
poderemos entrevistá-los, sem despertar suspeitas...
Meu pai ficou olhando para mim com cara feia. Esperei
que ele falasse, me proibindo de bancar o detetive, mas foi
mamãe quem falou primeiro:

— 31 —
— Lula não deixa de ter razão, Manuel. Que é que tem
que os meninos visitem os nossos vizinhos, desde que não
provoquem desconfianças? Eu também não acho justo que
a polícia prenda “seu” Baltazar e queira acusá-lo do crime!
Dona Maria é minha lavadeira há anos e eu compreendo o
seu drama. Gostaria imenso que os garotos descobrissem
quem matou Severino.
— Estás maluca, mulher? — gritou papai. — Achas
direito que nosso filho se meta na casa do bandido,
arriscado a levar uma surra, ou coisa pior?
— Não tem perigo não — disse eu. — Nós só queremos
conversar com os suspeitos e dar uma espiada nos
apartamentos. Ninguém vai nos fazer mal, não. Mesmo
porque ninguém desconfia de nós.
Ainda discutimos alguns minutos, mas, quando
começou o filme, na televisão, meu pai resolveu acabar com
o papo:
— Está bem — suspirou ele. — Se tua mãe concorda,
não quero ser um “botas de elástico”... um quadrado, como
dizem vocês. Está bem, raios! Podes fazer as visitas que
quiseres! Mas, se encontrares alguma coisa suspeita, pelo
amor de Deus fala logo com a polícia! Deves tomar muita
cautela com essa brincadeira! Porque, se o criminoso te der
uns tabefes, ou coisa que o valha, eu acabarei o serviço!
Dou-te uma surra da qual nunca mais te esquecerás!
Foi assim que obtive permissão de meus pais para levar
avante a “Operação Torre de Babel”. Suponho que os outros
enturmados também tenham agido da mesma maneira. No
fundo, nossos pais nos compreendem. Eles são bacanas à
beça.

***

— 32 —
Às dez e meia pedi licença aos velhos, disse que não me
demorava e voltei ao rés do chão. As portas da rua estavam
fechadas e o síndico já tinha se mandado do vestíbulo. No
momento em que eu ia descer a escadinha que dava para a
garagem, Pavio apareceu à porta do apartamento dos fundos
e foi ao meu encontro.
— Príncipe já desceu — sussurrou ele. — Eu estava
espiando atrás da porta e vi ele passar, vestido de detetive.
O Dr. Aparício subiu, pelo elevador, logo depois de fechar
as portas. E mamãe já está dormindo. Ela sempre acorda
cedo.
— Você se esqueceu de uma coisa — retruquei
friamente. — Falou comigo e não me deu a senha. É como
se você não existisse.
— Desculpe — disse ele, encabulado. — “Operação
Torre de Babel!”
— “Operação Torre de Babel! “ — repeti. — Agora,
vamos! Não temos tempo a perder!
Descemos a escada de pedra e encontramos Príncipe
escondido atrás de um dos automóveis estacionados na
garagem. Havia ali 5 carros de passeio (o Mustang de Mr.
Mattews, o Citroen de “seu” Karlovski, o Chevrolet do Dr.
Ezequiel, o DKW de “seu” Hermann e o Austin do Dr.
Aparício), um fusca (pertencente ao cabeleireiro Jasmim),
um jipe Toyota (dos dois japoneses do 502), uma
motocicleta Honda (do mulato do 702) e uma Kombi,
também de propriedade do pai de Príncipe. Nosso gordo
companheiro não mudara de terninho, mas tinha posto o seu
boné de xadrez e empunhava uma lanterna elétrica e uma
lupa. Isso bastava para lhe dar a aparência de um detetive
de verdade.
— Não quis fazer nenhuma pesquisa sem vocês
chegarem — disse ele. — Mas já verifiquei que a polícia

— 33 —
liberou a garagem. “Seu” Artur, aquele velho capenga que
lava os carros, só vai chegar de madrugada.
Senti um arrepio.
— Puxa vida, Príncipe! Não pensamos nesse capenga!
Ele também tem a chave do portão da garagem! Lembra-se
que seu pai deu para ele?
— Mas “seu” Artur não vai vir hoje — anunciou Pavio,
com voz medrosa. — Mamãe falou que ele também está
preso “incolumicável”. Os jornais não disseram porque a
polícia não deixou, para não atrapalhar as diligências.
— Será que foi ele? — murmurou Príncipe. — Não, não
creio. “Seu” Artur é aleijado e, por isso, seria identificado
facilmente, se tivesse vindo ao edifício às onze horas da
noite. Além disso, ele não estava aqui, quando “seu”
Baltazar discutiu com Severino. E está na cara que o
assassino matou o faxineiro, logo depois da briga, para
botar as culpas no pai de Pavio.
— “Seu” Artur é muito amigo de papai — disse o
moleque. — Ele nunca que matava ninguém para azarar a
vida do velho! Não foi o capenga, turma.
Eu também achava que não tinha sido. Ninguém vira o
lavador de carros no prédio, na noite anterior; ele só
aparecera às duas horas da madrugada, como de costume, e
fora apanhado pela polícia.
Então, demos uma busca minuciosa em toda a garagem,
à luz da lanterna de Príncipe, mas ficamos tão adiantados
como antes. Não havia nada dentro da caixa d’água, a não
ser um rato assustado. Depois de vinte minutos de pesquisas
infrutíferas, Príncipe apagou a lanterna e regressamos ao
lugar onde fora morto Severino, junto da escadinha de
pedra. O piso de cimento fora lavado e não tinha mais
manchas de sangue. Não adiantava nada olhar para ele,

— 34 —
através da lupa. Mas Pavio fez questão de olhar, assim
mesmo.
— A lixeira! — lembrei. — Ainda não olhamos dentro
da lixeira!
Príncipe acendeu outra vez a lanterninha.
— Você quer dizer... o incinerador?
— Sim! o assassino pode ter jogado alguma coisa
suspeita pelo buraco da lixeira, no andar de seu
apartamento! Um lenço com iniciais, por exemplo!
— Se jogou, já foi queimado. “Seu” Baltazar sempre
acende o incinerador às onze horas da noite. E o fogo
destrói tudo.
— Papai não acendeu o gás ontem de noite — disse
Pavio. — Teve essas coisas todas e ninguém pensou em
queimar o lixo. Desde quarta-feira que ninguém acende o
“cinerador”. E também não vai acender hoje, porque a
polícia recolheu o lixo de ontem e só tem um pouquinho de
hoje.
Fui abrir a portinhola de ferro do incinerador e
comprovei que ele estava quase vazio; realmente, os peritos
tinham retirado o lixo, talvez para analisá-lo. O incinerador
era uma grande caixa de ferro, nos fundos da garagem, que
recebia o lixo jogado por dentro de uma chaminé; depois da
combustão, a fumaça saía por outra chaminé mais estreita.
Os dois buracos ficavam por dentro, na parte superior da
enorme caixa de ferro alaranjada.
— O lixo que ficou à vista não deve conter nenhum
elemento suspeito — disse eu. — Mas é possível que o
criminoso tenha jogado a arma do crime pelo buraco da
lixeira e ela esteja entalada na chaminé, sem ter caído no
recipiente. Um de nós tem que entrar no incinerador e dar
uma espiada!

— 35 —
Pavio começou a protestar, porque eu e Príncipe
olhamos firme para ele, mas viu logo que não adiantava
chiadeira. Ele era o mais franzino e o único que cabia dentro
do incinerador. Escancaramos a portinhola e empurramos o
moleque lá para dentro.
— Me dê a lanterna — pediu ele a Príncipe, com voz
espremida. — Se eu também sou detetive, tenho que usar a
lanterna e a “lurpa”!
Príncipe achou razoável e emprestou-lhe os dois
objetos. E Pavio desapareceu todinho dentro da lixeira
escura e fedorenta. Daí a pouco, ouvimos sua voz
esganiçada:
— Não tem nada nas chaminés. Vocês querem que eu
bote o lixo para fora? Estou pisando em meleca.
— Deixe a meleca aí! — gritou Príncipe. — Veja se não
tem nenhum facão sujo de sangue nalgum canto. De
preferência, com impressões digitais.
— Nenhum facão — respondeu a voz do moleque. —
Mas tô vendo uma coisa gozada... Aqui, do lado de dentro,
atrás da portinhola. Tem uma chapa de ferro meio solta,
calçada com pedaços de couro...
— Tire para fora — pedi. — Pode ser o couro do
assassino!
Instantes depois, Pavio saía do incinerador, calçado
com um par de luvas pretas! Sim, eram umas luvas de
pelica, velhas e meio rasgadas, com a etiqueta arrancada...
e sujas de sangue! Não havia dúvidas sobre isso, pois
Príncipe arrancou o achado das mãos de Pavio, examinou-
o com a lente e identificou aquelas manchas castanhas e
secas.
— Eureca! — exclamou o gorducho. — São as luvas do
criminoso! Admira como a polícia não as encontrou!

— 36 —
— Não podia encontrar — repliquei. — As luvas não
foram atiradas pelo buraco da lixeira; foram metidas no
incinerador, através da portinhola. O criminoso as escondeu
do lado de dentro, esperando que elas fossem destruídas
quando acendessem o fogo. Mas, como o lixo não foi
queimado...
Aquela primeira pista nos deixou muito satisfeitos. Mas
ainda era pouco. Como não havia mais nada para pesquisar
na garagem, sugeri:
— Vamos dar uma busca no quarto de Severino, no
apartamento vazio? Pode ser que a faca esteja lá.
— Não acredito — disse Príncipe. — Mas não custa
tentar. Eu fico com as luvas, para examiná-las no meu
microscópio de brinquedo. Sei como se faz, para identificar
o sangue humano. É pena que as luvas não guardem
impressões digitais. Se elas fossem de vidro, guardariam.
Mas, aí, não seriam luvas...
Subimos para o vestíbulo e, daí, para o terceiro andar,
usando o elevador. O corredor estava escuro e deserto, mas
havia luz filtrando por baixo da porta do apartamento 301,
sinal de que os franceses ainda não tinham ido se deitar.
Sem fazer barulho, experimentamos a porta social do 302,
mas estava fechada a chave. Também tinha um papel colado
(por cima das dobradiças) que seria rasgado se alguém a
abrisse.
— O apartamento foi lacrado pela polícia — informou
Príncipe. — Não podemos entrar por aqui. Mas a bandeira
da porta de serviço tem o vidro quebrado. Faz três meses
que “seu” Legrange está para botar outro vidro. A abertura
mede mais de meio metro.
Voltamos a olhar para Pavio e ele voltou a reclamar.
Não adiantou. Eu e Príncipe fizemos uma cadeirinha com
as mãos e Pavio teve que subir para os nossos ombros, a fim

— 37 —
de atingir a bandeira da porta que dava para a área de
serviço do apartamento. Mais um pulo e ele passava pelo
buraco (felizmente, sem se machucar nos cacos de vidro)
pulando para o interior do apartamento vazio, escuro e
silencioso. A luz estava cortada há três meses, desde que os
últimos inquilinos tinham se mudado sem pagar o aluguel.
— Tem uma chave na banda de dentro — anunciou
Pavio, do outro lado da porta. — Vocês querem que eu
abra?
— Não — disse Príncipe, irritado. — Queremos que
você feche, seu idiota!
Na mesma hora a porta estava aberta e pudemos entrar
no apartamento, precedidos pela luz da lanterna. Não havia
quase nada na sala, nem nos dois quartos, nem nas outras
dependências. Só encontramos o colchão onde Severino
dormia (no quarto da frente) e meia dúzia de roupas velhas,
inclusive um macacão azul. Nenhum documento, nada.
Uma sacola de lona, jogada a um canto da sala, estava vazia.
Fora disso, só havia vassouras, latas de detergente e outros
materiais de limpeza.
Passamos para o quarto dos fundos (vazio), ao lado da
área de serviço que dava para o pátio. Aí, pesquisamos as
paredes e o assoalho, à luz da lanterna. Príncipe ficou de
quatro, empunhando a lupa, e também pesquisou a poeira.
Nada. De repente, apareceu uma barata tonta, no meio do
quarto, e correu para um rodapé da parede, desaparecendo
numa fresta. Pavio deu um chute no rodapé, que soou a oco
e se desprendeu ligeiramente.
— Oba! — exclamei. — O sarrafo está solto! Eu sabia
que íamos encontrar alguma coisa misteriosa! Severino não
era flor que se cheire!
Príncipe clareou o local com a lanterna e eu enfiei as
unhas entre o rodapé de madeira e a parede de caliça,

— 38 —
conseguindo deslocar alguns centímetros do sarrafo pintado
a óleo. Por trás dele havia uma cavidade, onde encontramos
meia dúzia de papeizinhos coloridos. Puxei-os para fora e
vimos que eram cédulas bancárias.
— Dinheiro! — gritou Pavio. — Estamos ricos, turma!
— Cale a boca — rosnei. — Este dinheiro não nos
pertence e deve ser entregue à polícia! Por que será que
Severino enrustiu estas pelegas no rodapé? E por que será
que a polícia não as encontrou?
— A polícia não quis causar danos ao prédio —
raciocinou Príncipe. — E nós só encontramos o esconderijo
por acaso. Não era mole encontrar.
Recoloquei o sarrafo no mesmo lugar e examinei o
dinheiro com a lupa, à luz da lanterna de Príncipe. Eram
duas notas de cem cruzeiros e quatro de cinquenta — uma
fortuna!
Nesse momento, ouvimos uma voz, que vinha da porta
que dava para a área de serviço:
— Que é que vocês estão fazendo aqui, seus moleques?
O assassino! Ou, então, a alma de Severino! Nosso
susto foi tão grande que Príncipe deixou cair a lanterna e eu
soltei o dinheiro, como se ele tivesse me queimado os
dedos. E ali ficamos os três, tremendo de medo, enquanto
um homem gordo e feioso entrava no quarto, com uma
pistola na mão.
Vocês leram bem? Com uma pistola na mão!

— 39 —
CAPITULO III

ENTREVISTAS COM OS SUSPEITOS

Pavio reconheceu logo o homem feioso, que eu nunca


tinha visto.
— Ih, turma! — gemeu o moleque. — É aquele doutor
da polícia! Agora, sim, que estamos fritos!
O homem guardou a pistola que tinha empunhado,
apanhou a lanterna elétrica de Príncipe (focalizando-nos
num halo de luz) e repetiu a pergunta:
— Que é que vocês estão fazendo aqui? Como foi que
abriram a porta?
Fui o primeiro a recobrar a calma. Apesar de termos
entrado ali sem licença (o que constitui um crime), sempre
era melhor cair nas mãos da polícia do que nas garras do
assassino ou do fantasma do faxineiro.... Pisquei os olhos,
sob o clarão da lanterna, e respondi com voz trêmula:
— Pavio abriu a porta. Ele entra em qualquer buraco.
— Quem é esse Pavio? — tornou o detetive de verdade.
Apontei disfarçadamente para o crioulinho, evitando
que ele visse o meu dedo duro. Pavio começou a
choramingar.
— Eles mandaram eu abrir a porta! Me empurraram
pela bandeira da porta! Mas nós não somos ladrões, não,
senhor. Somos a Turma do Posto Quatro!

— 40 —
— Já ouvi falar em vocês — disse o homem gordo, num
tom mais amável. — Não tenham medo. Vamos sair daqui
que está muito escuro. Na área, poderemos conversar
melhor. Quero saber quem foi que mandou vocês entrarem
aqui, para bisbilhotar!
— Ninguém nos mandou — respondeu Príncipe,
recuperando também o uso da voz. — Estamos ajudando a
polícia a descobrir quem matou Severino.
Íamos saindo do quarto quando o detetive viu as notas
de dinheiro no assoalho. Aí, ele assobiou e correu a apanhá-
las. Depois, saímos todos para a área de serviço do
apartamento, onde já estavam outros dois homens. Estes
eram magros, mas também tinham pinta de detetives.
— Que dinheiro é este? — quis saber o homem gordo,
olhando para nós com desconfiança.
Príncipe explicou tudo. Os três policiais se
entreolharam, surpresos, e um deles voltou a falar:
— No rodapé da parede? Isso não tem sentido!
— Pode não ter sentido — disse Príncipe — mas foi lá
que encontramos as economias de Severino! Certamente,
ele não confiava nos bancos.
O homem gordo fez um sinal para um dos homens
magros.
— Vá dar uma espiada, Elias!
O magro apanhou a lanterna das mãos do gordo (que
parecia o chefe deles) e entrou no quarto. Entretanto, o
chefe continuou nos interrogando:
— Quer dizer que vocês agiram por conta própria?
Ninguém lhes pediu que viessem buscar esse dinheiro?
— Ninguém nos pediu nada — respondi. — Nem nós
esperávamos encontrar dinheiro neste apartamento.
Estávamos apenas dando curso às nossas investigações

— 41 —
particulares, destinadas a provar a inocência de “seu”
Baltazar. Não foi o porteiro quem matou Severino!
— Como é que vocês sabem disso?
— Conhecemos “seu” Baltazar melhor do que a polícia!
Ele é o pai de Pavio. O pai de um enturmado do Posto
Quatro é incapaz de matar uma mosca!
O homem gordo sorriu.
— Vocês são vivos, hem, garotos? Estão brincando de
detetives, não é? Pois não deviam fazer isso. Com essas
coisas não se brinca. Digam-me tudo o que sabem sobre o
crime. Eu também acho que o porteiro é inocente.
— Não sabemos nada demais sobre o crime — disse
Príncipe. — Mas acabaremos sabendo, porque estamos
investigando o mistério. E não acreditamos que o senhor
ache que “seu” Baltazar é inocente, porque, se achasse, não
teria prendido ele!
— “Incolumicável” — acentuou Pavio.
O detetive voltou a sorrir.
— Não fui eu quem prendeu o porteiro — esclareceu.
— Sou o inspetor Mendonça, da Delegacia de Homicídios,
e só fui chamado depois que o comissário deteve o suspeito.
O porteiro está apenas sendo interrogado e, se for inocente,
logo será posto em liberdade. Mas recebemos uma grave
denúncia contra ele e precisamos apurá-la.
— Eu sei — disse Príncipe. — “Seu” Baltazar discutiu
com Severino, ontem à noite. Mais de seis pessoas ouviram
o bate-boca.
— Não é só isso. O síndico do edifício também nos
disse que o porteiro odiava o zelador. Não era a primeira
vez que eles brigavam.
— Quem falou? — disse Pavio. — Papai não gostava
daquele atrevido, mas isso não quer dizer nada! Muita gente
não gostava dele!

— 42 —
— Quem “entregou” seu pai foi o Dr. Aparício — frisou
Príncipe. — É o que diz o inspetor. Foi “seu” Aparício que
fez o veneno. Olho nele!
O inspetor sorriu, mais uma vez, e logo ficou sério.
— Que foi que vocês encontraram mais, além destas
notas bancárias?
Permanecemos em silêncio, olhando uns para os outros.
— Podem dizer — continuou o inspetor. — Se vocês
são detetives, devem fazer o seu relatório. Todos os
detetives que se prezam contam a seus superiores tudo o que
vão descobrindo. E contam logo, para não correrem o risco
de serem os únicos a saberem das coisas perigosas...
Entendem?
— Não — disse eu. — Não somos detetives de verdade.
Só amadores.
— Mas estão ajudando a polícia, não é?
— Isso, é. Nossa turminha está sempre do lado legal.
— Pois, então, falem. Se vocês sabem de mais alguma
coisa que possa desmascarar o verdadeiro assassino, tratem
de falar. Vocês correm perigo, se guardarem esse segredo.
O criminoso acabará descobrindo que vocês sabem demais
e... Será preciso dizer?
Eu e Príncipe compreendemos. Mas Pavio respondeu:
— Será preciso dizer. Que acontecerá, se o criminoso
souber que a gente sabe demais?
— Bimba! — disse eu.
Só então Pavio entendeu e ficou mudo, de tão
apavorado. Aí, Príncipe olhou para mim, com uma
interrogação no olhar.
— É melhor — respondi. — Dê para ele.
E entregamos ao inspetor o par de luvas pretas, que
Príncipe tinha guardado no bolso. O homem gordo ficou
assanhadíssimo.

— 43 —
— Onde estava isto?
— No incinerador — informei. — São as luvas do
assassino, ainda sujas de sangue coagulado. Nenhum dos
moradores do edifício usa luvas, mas o assassino teve que
usar, para não sujar as mãos.
O inspetor examinou as luvas, cautelosamente e soltou
um assobio.
— Sim, parece... No incinerador, hem? Então, como é
que aqueles imbecis não as encontraram? Não há dúvida de
que a etiqueta foi arrancada!
Príncipe explicou que o achado estava escondido atrás
de uma chapa de ferro, o que provava que fora metido na
lixeira, pela portinhola, e não jogado pela chaminé, como
se jogam as outras coisas. O inspetor concordou.
— É isso. Ele teve tempo de esconder as luvas, antes de
aparecer a mulher... Ou talvez tivessem trabalhado de
acordo... Seja como for, esta prova é preciosa. Por
intermédio dela, talvez consigamos chegar ao verdadeiro
culpado. Agora, venham comigo! Quero olhar de novo esse
incinerador!
Nisso, chegou o detetive que tinha entrado no quarto e
disse que não havia mais nada no rodapé da parede. Mas
confirmou:
— A madeira está solta, chefe. Só a gente sabendo disso
é que nota. Ninguém procurou nada em rodapés soltos. Os
rodapés não costumam se soltar.
Descemos de novo à garagem e Pavio mostrou ao
inspetor onde estavam as luvas. Ainda ficamos alguns
minutos em companhia dos três policiais, prestando
esclarecimentos; por fim, o inspetor falou:
— Vejo que vocês têm boas intenções. Já nos ajudaram
muito. As luvas e o dinheiro abrem novos horizontes no
caso. Mas.se querem um conselho, não continuem as

— 44 —
investigações. Brinquem de outra coisa. Vocês já foram
úteis à polícia e devem tirar férias... Não quero encontrá-
los, outra vez, metidos numa encrenca! Tá?
— Nós nunca nos metemos em encrencas — menti. —
Estamos apenas colaborando com a lei. E nossos pais
permitiram que ajudássemos “seu” Baltazar.
— Não devem continuar — retrucou o inspetor,
irritado. — Se eu os encontrar outra vez cometendo um
delito, por menor que seja, tratarei de castigá-los! Há um
limite, também, para a ajuda à polícia! Vocês já fizeram o
que deviam fazer. Agora, chega! Nunca mais banquem os
detetives, ou se arrependerão! Assim como fomos nós que
os surpreendemos naquele apartamento vazio, podia ter
sido o assassino! E, se assim fosse, vocês não estariam aqui
para contar a história! Quem matou o zelador demonstrou
uma brutalidade e uma frieza fora do comum; um homem
nessas condições será capaz de cometer outros crimes ainda
mais revoltantes, como seja matar uma criança! Voltem
para seus apartamentos e esqueçam-se do que aconteceu.
Eu já me esqueci. Por isso, não vou prendê-los e metê-los
no xadrez, como devia fazer! Mas, para outra vez, meto
mesmo! Sumam daqui!
Pavio já tinha sumido. Mas eu e Príncipe, antes de
subirmos a escadinha da garagem, ainda perguntamos ao
inspetor como é que ele tinha desconfiado de nossa visita
ao apartamento 302. Ele respondeu:
— O professor Vasconcelos, que mora no 202, ouviu
passos no andar superior e telefonou para a Delegacia de
Homicídios. Eu e minha turma viemos correndo ainda a
tempo de apanhar vocês em flagrante. Mas, da próxima vez,
talvez vocês não tenham tanta sorte... Afastem-se de mim!
Tá?
— Tá — respondemos, em coro.

— 45 —
E subimos para o vestíbulo. Creio que Príncipe pensava
o mesmo que eu. O prof. Vasconcelos nos traíra, avisando
a polícia, e talvez fosse o criminoso! Pelo menos, nós
estávamos na bronca com ele!

***

No dia seguinte, às 8 horas da manhã, a turma voltou a


se reunir, no vestíbulo. Quando desci, pelo elevador, os
outros garotos já ali se encontravam.
— Oi, turma!
— Oi!
— “Operação Torre de Babel!”
— “Operação Torre de Babel!”
Dei um beijo repinicado na face de Cidinha e abri a
sessão, revelando à minha namorada e a Carlão tudo o que
nos acontecera na noite anterior. Eles ficaram muito
impressionados com a atitude agressiva do inspetor
Mendonça, mas ninguém falou em desistir. Nossa turma
não tem medo de caretas.
O Dr. Aparício não estava na portaria, nem deixara
ninguém no lugar do porteiro. Mas havia um desconhecido
na entrada do prédio, um sujeitinho cabeludo, que Pavio
informou ser um detetive. Por isso, saímos dali e fomos
discutir na garagem, onde ninguém nos podia ouvir.
— O Dr. Aparício foi para o seu consultório, na Zona
Norte — disse Príncipe. — Ele também dá consultas aos
sábados. Mas os outros moradores do edifício devem estar
nos seus apartamentos. Hoje é sábado e pouca gente
trabalha. É o dia ideal para se interrogar os suspeitos.
— Vamos dividir a tarefa — disse eu. — Temos onze
suspeitos para visitar. Eu me encarrego dos moradores do
segundo e do terceiro andares. Cidinha vai falar com o

— 46 —
cabeleireiro Jasmim e com o Dr. Ezequiel Sampaio, porque
já conhece eles e tem alguma intimidade com dona Marta.
Carlão fica encarregado de interrogar aqueles dois
japoneses misteriosos do 502, bem como o judeu alemão do
601. Nem o Dr. Aparício nem a mulher dele estão em casa,
mas Carlão pode falar com a empregada, que sempre fica
fazendo o almoço.
— Deixe a crioula comigo — disse Carlão. — Risoleta
vai me contar tudo a respeito dos patrões!
— E eu? — perguntou Príncipe. — Que é que eu faço,
Lula?
— Você vai visitar aquele mulato parrudo do 702, que
também é macumbeiro, e, depois, sobe para falar com o
espanhol do 802. São só esses os nossos suspeitos. As onze
horas, voltaremos a nos encontrar aqui embaixo. Certo?
— Papo firme — disse Carlão, enquanto os outros
aprovavam com a cabeça.
Já íamos nos separando quando Cidinha me pegou pelo
braço.
— E a polícia? — sussurrou ela.
— Que é que tem a polícia? Ninguém precisa interrogar
a polícia!
— Não é isso. Vocês não falaram que o inspetor proibiu
a turma de continuar a “Operação Torre de Babel”? Vamos
transgredir a lei?
— Não — respondi. — O inspetor nos aconselhou a
parar, mas apenas porque receia que nos aconteça alguma
coisa. É claro que, de agora em diante, tomaremos mais
cuidado e não entraremos em nenhum lugar sem pedir
licença. Visitar os suspeitos de um crime não é transgredir
a lei. E descobrir o verdadeiro culpado é colaborar com a
justiça! Falei?
— Falou e disse — concordou ela, suspirando.

— 47 —
E cada um de nós partiu para a sua aventura, com a
esperança de descobrir o assassino antes de ser descoberto
por ele.

***

De acordo com o meu próprio esquema, cabia-me


visitar os suspeitos dos apartamentos 201, 202 e 301.
Comecei pelo russo do 201, “seu” Nicolau Karlovski, um
dos que ouvira Severino dizer que fora um homem, que lhe
tinha enfiado a faca. Este “seu” Karlovski era um senhor de
seus 40 anos, moreno e cabeludo, que não se dava com os
judeus do sexto andar e levava uma vida reservada,
desconfiado de todos, ótimo personagem para ser o
assassino! Ele era viúvo e quase não recebia visitas, mas
“seu” Baltazar tinha me dito, certa ocasião, que o russo era
muito rico, pois possuía duas lanchonetes na Zona Sul.
Quando toquei a campainha do apartamento 201, foi a
empregada Aliocha que me atendeu. “Seu” Karlovski não
estava. Tinha ido para a lanchonete de Ipanema.
— Posso entrar? — perguntei. — Gostaria de trocar
duas palavras com a senhora...
Aliocha não era moça nem velha e falava o português
com dificuldade.
— Não — respondeu ela. — O patrão não quer que eu
receba ninguém no apartamento. Que é que você quer,
menino?
Vi que minha primeira investigação não ia ser lá essas
coisas, pois seria feita no corredor, sem nenhum conforto e
sem que eu pudesse dar uma espiada na casa do russo. Mas
não podia deixar de cumprir o meu dever de detetive. Então,
comecei a interrogar a criada, com habilidade, sem deixar
transparecer o meu interesse pelas suas respostas. A

— 48 —
mulherzinha parecia sincera e disposta a contar tudo o que
sabia sobre o crime da garagem. Em pouco tempo, fiquei
sabendo do seguinte:
1°) — “Seu” Karlovski não tinha muita intimidade com
o falecido Severino e, para ele, tanto fazia que o zelador
morresse como ganhasse o bolão da loteria esportiva.
2°) — “Seu” Karlovski não era comunista, embora
fosse simpático à política de sua terra. Mas Severino não
tinha nada a ver com isso.
3°) — Na noite do crime, “seu” Karlovski estava em
casa, de pijama russo (de seda branca), quando se deu a
discussão de “seu” Baltazar com Severino, no andar de
cima. A empregada Aliocha é que ouviu e chamou a atenção
do patrão. E “seu” Karlovski disse que aquilo não lhe
interessava e que ela não devia meter o nariz nas coisas dos
outros. Disse isso em russo, e talvez com outras palavras,
mas o sentido era o mesmo.
4°) — “Seu” Karlovski continuava no apartamento, de
pijama de seda, quando se ouviram os gritos de dona Maria
(a mãe de Pavio) na garagem. Ele e Aliocha saíram logo
para o corredor, a tempo de pegar o elevador, onde já vinha
descendo o casal de franceses do terceiro andar. O prof.
Vasconcelos e sua velha empregada só desceram um
minuto depois.
5°) — Estava provado que o assassino esfaqueara
Severino poucos instantes antes dos gritos de dona Maria.
Portanto, “seu” Karlovski não teria tempo de agredir o
faxineiro na garagem, e subir, e entrar no seu apartamento
e tornar a sair na hora dos gritos. Ainda por cima, teria que
botar o pijama.
6°) — “Seu” Karlovski era namorado da empregada
dele, mas isso a gente não devia espalhar.

— 49 —
7°) — Em suma: o russo podia ser tudo, menos o
assassino. Tinha um álibi perfeito.

***

Minha segunda visita foi feita ao apartamento 202, do


outro lado do corredor daquele andar. Acho que o prof.
Vasconcelos tinha escutado a minha conversa com Aliocha,
escondido atrás da porta de seu apartamento, pois, mal eu
toquei a campainha, a porta se abriu. O professor era um
velho de 60 anos, de lunetas e cabelos brancos, solteirão e
muito ágil para a sua idade. Estranhei que ele mesmo
abrisse a porta, mas não disse nada.
— Entre, meu filho — arrulhou ele, com grande
amabilidade. — Que agradável visita! Adoro os meninos
inteligentes como você! Entre... entre...
Fiquei muito desconfiado, mas entrei. Aí, ele fechou a
porta e perguntou se eu aceitava uma laranjada sintética.
Respondi que não. A sala do apartamento era grande e
pouco iluminada, mas vi metade do rosto da velha Carmo
(a empregada) espiando pela fresta da porta da cozinha. As
paredes da sala estavam cobertas de quadros com molduras
de vidro, onde se via uma porção de borboletas mortas, de
asas abertas e coloridas. Uma das manias do professor era
colecionar borboletas, espetando-as com um alfinete e
guardando-as naqueles quadros.
Nem bem eu acostumara os olhos à meia penumbra da
sala e o dono da casa convidou-me para ir até seu
laboratório, onde estava fazendo umas experiências. Eu
sabia que ele era professor de Biologia (aposentado) e
também tinha a mania de inventar coisas sem valor prático.
Todo mundo sabia disso no Edifício Mattews. Mas o que eu
não sabia era que ele montara um pequeno laboratório de

— 50 —
análises, num dos quartos do apartamento, onde se divertia
com seus instrumentos científicos. Quando vi a mesa de
trabalho do professor, com um microscópio e uma porção
de lâminas de vidro, tudo num amontoado confuso, senti
um arrepio. Entre aquelas bugigangas havia um rato morto
e sujo de sangue, com a barriga aberta!
— Sou apaixonado pela citologia — disse o velhote,
esfregando as mãos de contente, ao ver o horror estampado
na minha face. — A citologia é a parte da Biologia que se
ocupa da célula, unidade básica de todos os seres vivos. É a
primeira vez que você me visita, não é, meu filho? Suponho
que goste de experiências científicas... Todas as crianças
gostam. Estamos na Idade da Ciência! Mas, conte, conte...
Quem matou Severino?
Aí, notei que ele tinha ficado sério e um pouco
ameaçador. Balbuciei qualquer coisa e ele prosseguiu:
— Ouvi você interrogar a empregadinha do russo... Sua
curiosidade é elogiável, meu filho. Devemos sempre querer
saber de tudo, na vida. Os franceses do terceiro andar são
surdos, mas eu tenho ótimos ouvidos. Tenho tudo ótimo,
graças a Deus... se é que Deus existe. Para mim, Deus é a
Ciência!
Aquela heresia também me causou horror. Um homem
que não acredita em Deus é capaz dos piores crimes! Mas
procurei disfarçar os meus sentimentos. E o interrogatório
continuou. Aproveitando-se do meu nervosismo, foi o prof.
Vasconcelos quem fez as perguntas e eu dei as respostas.
Um verdadeiro fracasso! No fim da visita, o suspeito sabia
de tudo a meu respeito e eu pouco conseguira extrair dele.
Mas fiquei certo de uma coisa:
— O prof. Marcos Vasconcelos não tinha álibi, para a
hora do crime, pois fora o último a descer à garagem, depois
dos gritos de dona Maria, e vinha vestindo o paletó. Isso

— 51 —
queria dizer que ele podia ter matado Severino, subido ao
segundo andar, mudado a roupa suja de sangue e só então
se juntado aos outros.
Além disso, fiquei sabendo que o professor estava
empenhado, naquele momento, em dissecar cadáveres de
ratos, para examinar os pedacinhos ao microscópio. Ele
chamava isso de citologia (e não deixava de ser), mas,
naquelas circunstâncias, esses estudos eram muito
suspeitos...
— Você já conhece os meus inventos? — perguntou
ele, quando eu demonstrei desejos de ir embora. — Beba
um copo de minha laranjada sintética e verá que eu não sou
maluco. Obtenho um copo de laranjada desidratando uma
dúzia de laranjas, isolando uma parte do pó químico e
acrescentando água. O processo é caro, mas dá resultado,
embora a laranjada fique com outro sabor. Ainda ontem
registrei mais uma patente. Trata-se de uma armadilha
contra os ladrões de cofres, que atira um jato de narcótico
na cara do assaltante, obrigando-o a dormir no local. Uns
acham que o aparelho é muito complicado, mas eu sei que
não é. Com um pouco de capital, acabarei industrializando
os meus inventos. A ratoeira para pegar ratos pequenos e
obrigá-los a comer trigo roxo depois de uma semana de
jejum, já está pronta e até já peguei alguns ratinhos na
garagem...
Eu me sentia cada vez mais assustado. Por fim, pedi
licença e disse que precisava ir, pois meu pai estava me
esperando. Ai, o professor me bateu de leve no ombro e me
pôs para fora do apartamento, concluindo:
— Continue as suas investigações, meu filho! É dessa
massa que se fazem os detetives e os cientistas! Tenho
certeza de que a Turma do Posto Quatro acabará
descobrindo quem matou o zelador. Eu não fui, nem o

— 52 —
russo. Mas acredito que também não tenha sido o porteiro.
Foi pena vocês terem dado as luvas do assassino ao inspetor
Mendonça; senão eu as examinaria ao microscópio e lhes
diria se o sangue é de Severino. Mas espero que vocês sejam
felizes, nessa brincadeira de detetives... Se precisarem de
alguma análise química, estou às suas ordens. Adoro os
garotos inteligentes. Não deixe de falar comigo, se
descobrir mais alguma coisa. E agora, vá tranquilo!
E eu fui embora, sem tranquilidade nenhuma, abatido
pelo fracasso e pela vergonha. Como vocês já imaginaram,
eu tinha confessado tudo para o prof. Vasconcelos,
omitindo apenas o nome de código da “Operação Torre de
Babel”. Também, do jeito que o velhote me interrogou,
quem é que não confessaria?

***

Minha última visita (ao casal de franceses do terceiro


andar) foi a mais demorada. “Seu” Jean Legrange era ainda
mais velho do que o prof. Vasconcelos, pois devia ter para
mais de 70 anos; além disso, era míope e surdo como uma
porta. A senhora dele, dona Claudine, dirigia o Salão de
Beleza “Le Charme”, que eles possuíam no Leblon, de
maneira que encontrei apenas o velho em casa. A
empregadinha Michelle tinha saído para fazer compras.
Meu pretexto para visitar o francês foi a prisão de “seu”
Baltazar. Disse ao velho que estava fazendo uma “enquete”
no edifício, para conhecer a opinião dos moradores sobre a
culpabilidade do porteiro na morte do zelador. “Seu”
Legrange me recebeu muito bem e disse que eu era muito
“interressant”. Conversamos, na sala, das nove e meia até
às 11 horas e fiquei sabendo de quase tudo sobre a vida do
casal, inclusive que dona Claudine fora artista de teatro, em

— 53 —
sua mocidade, tendo se apresentado em Paris, vestida de
moleque, cantando cançonetas maliciosas. Em Paris é tudo
assim...
— Quanto ao porteiro — disse o velho Legrange —
acho que não foi ele que matou o zelador. Quando a mulher
dele gritou, na garagem, logo depois do crime, eu, Claudine
e Michelle saímos para o corredor e descemos, pelo
elevador, para o segundo andar. Aí, já encontramos
monsieur Karlovski, que também entrou no elevador. Nesse
momento, monsieur Karlovski disse que alguém ia subindo
pela escada. Olhei para o vão das escadas e vi um vulto
passar correndo, na direção do andar superior. Mas, como
eu estava sem óculos, não reconheci o homem. Minha
mulher e Michelle não viram nada, porque estavam dentro
do elevador.
— O senhor disse isso à polícia? — perguntei, tomando
nota das declarações da testemunha.
— Disse, mas não sei se eles me acreditaram. Monsieur
Karlovski também não pôde identificar a pessoa que subiu
a escada correndo. Mas, seja quem for essa pessoa, não
pode ser o porteiro; só pode ser um morador dos andares
superiores. Tive a impressão de que era o síndico, mas devo
ter me enganado... Monsieur le docteur é asmático e não
teria fôlego para subir cinco andares a pé...
— Onde estava o senhor, quando dona Maria gritou?
O velhote pediu que eu repetisse a pergunta, porque não
tinha ouvido bem. Era surdo como uma porta. Repeti e ele
respondeu:
— Eu, Claudine e Michelle estávamos na área de
serviço, com a luz acesa. As crianças de monsieur Assadib,
que estavam debruçadas no muro da área do quinto andar,
tinham jogado umas cascas de banana no nosso tanque e
nós estávamos discutindo com elas. São uns infantes muito

— 54 —
malcriados, os filhos dos libaneses! Nisso, ouvimos os
gritos, lá embaixo, e saímos para o corredor. O elevador
estava no sexto andar e tivemos que chamá-lo.
Enquanto eu interrogava o velho, a empregadinha
chegou, com o carrinho das compras, e confirmou as
palavras do patrão. Ainda tomei um copo de refrigerante,
que eles me ofereceram, e despedi-me. O relógio de cuco
da sala acabara de bater as onze horas.
Foi “seu” Legrange quem abriu a porta, para eu passar,
e reparei que usou a mão esquerda para girar a maçaneta.
Voltei-me do corredor:
— O senhor usa luvas, “seu” Legrange?
Ele piscou os olhos, deformados pelo grosso vidro dos
óculos.
— Não, não tenho luvas. Na Europa, usava..., mas isso
já faz trinta anos. Ninguém usa luvas no Rio de Janeiro. Esta
é uma cidade tropical.
Era verdade. Assim como era verdade que o velho
francês era canhoto. Mas, naquele caso, infelizmente, não
havia nenhum indício de que o assassino fosse canhoto...
Além disso, como “seu” Baltazar e Pavio também são
canhotos, achei melhor esquecer esse detalhe.

— 55 —
CAPÍTULO IV

OS SEIS QUE FICARAM

Como Cidinha demorou um pouco mais do que os


outros a entrevistar os seus suspeitos, a Turma só pôde se
reunir, na garagem, às onze e quinze. Eu, Carlão, Príncipe
e Pavio já estávamos preocupados, quando a garota
apareceu, toda sorridente.
— Oi, turma!
— “Operação Torre de Babel!”
— “Operação Torre de Babel!”
O capô do Mustang do pai de Príncipe era a nossa
“mesa de conferências”. Botei em cima dele um jornal que
Carlão trouxera (edição das 10 horas), um caderno em
branco, uma caneta esferográfica e alguns papeluchos, nos
quais tomara nota dos depoimentos dos meus suspeitos. Só
eu, que me amarro nos livros policiais, sabia que um
detetive sempre toma nota de suas observações; por isso, os
outros enturmados não tinham tomado nota de nada.
— Visitaram os prováveis assassinos? — perguntei,
depois, sem me dirigir a ninguém em particular.
Eles responderam que sim.
— Muito bem! Vamos trocar os nossos relatórios.
Primeiro, falo eu. No fim, fala Pavio, que é o de menor
idade.

— 56 —
— Eu não tenho nenhum relatório para trocar —
protestou o crioulinho. — Vocês não me deixaram visitar
nenhum suspeito! Estou na bronca por isso!
— Pouco importa — retruquei. — Você ficará como
observador. Você ainda é muito criança para fazer
inquéritos policiais. Um detetive precisa ter certos
conhecimentos que você só vai adquirir com o tempo...
Preste atenção no que ouvir, mas não tire conclusões
apressadas, nem dê palpites errados! Tá?
Pavio arregalou as butucas, prestando uma atenção de
coruja.
— Pra mim — murmurou ele — o assassino é o Dr.
Aparício!
— Cale a boca! — gritou Carlão. — Lula disse para
você não dar palpite! O Dr. Aparício não podia ter morto
Severino, porque tem um álibi! Eu sei porque falei com a
Risoleta e...
— Cada coisa a seu tempo — interrompi. — Guarde o
seu relatório para quando chegar a sua vez, Carlão!
Primeiro, falo eu, que entrevistei os suspeitos dos andares
mais baixos. Eis as minhas conclusões:
E revelei à Turma o que obtivera, nas visitas aos
moradores dos apartamentos 201, 202 e 301.
Depois, escrevi na primeira folha do caderno em
branco:

“SUSPEITOS QUE FICARAM


1) — Professor Marcos Vasconcelos”

— Por que você suspeita do velho? — quis saber


Cidinha. — Ele também desceu à garagem logo depois do
grito de dona Maria. Se fosse o assassino, não desceria logo,

— 57 —
porque estaria com a roupa suja de sangue. A polícia falou
que o criminoso deve ter sujado a roupa de sangue.
— Eu sei — respondi. — Mas o professor só desceu à
garagem um minuto depois de “seu” Karlovski e de “seu”
Legrange. Num minuto, ele teria tempo de mudar de roupa.
Aliás, há testemunhas de que, quando ele tomou o elevador
para descer à garagem, vinha abotoando o paletó! Dos meus
três suspeitos, só ficou o professor. Ele é um coroa muito
esquisito, que gosta de furar a barriga dos animaizinhos e
espetar borboletas com alfinete!
— Que horror! — exclamou Cidinha. — Então não há
dúvidas de que é o assassino! Um homem que faz
perversidades com os animais é um criminoso!
— Pode ser e pode não ser — ponderou Príncipe. — Os
cientistas têm que fazer experiências com seres vivos, para
descobrirem remédios úteis à humanidade. Quando essas
experiências são exageradas é que constituem crime. Por
exemplo: as experiências com cobaias humanas, nos
campos de concentração nazistas. Quando a crueldade é
justificada pela maioria das pessoas, deixa de ser crueldade
para ser ciência. Os homens entendem assim.
— Mas a crueldade do prof. Vasconcelos não pode ser
justificada — disse eu. — Além disso, ele é ateu e queria
que eu tomasse laranjada sintética! Percebi logo que ele
queria me envenenar!
Minhas deduções impressionaram a Turma, que ficou
logo com raiva do professor. Mas havia outros suspeitos
que também poderiam ter morto Severino.
Cidinha falou depois, fazendo o seu relatório sobre as
entrevistas que tivera com os moradores dos apartamentos
401 e 402.

— 58 —
— Suspeito do cabeleireiro Jasmim — anunciou ela. —
Aliás, sempre suspeitei daquele rapaz esquisito! Ele tem
toda a pinta de ser o assassino!
— Ter pinta não basta — disse Príncipe. — Os maiores
criminosos do mundo têm cara de anjo, ao passo que muita
gente feia é incapaz de fazer mal a uma borboleta. Devemos
nos limitar às provas materiais e não às opiniões
particulares. Minha pergunta é a seguinte: “Podia o
cabeleireiro de senhoras Jasmim Siqueira matar o faxineiro
Severino Cavalcanti?” Responda!
— Podia — confirmou Cidinha, irritada. — Embora
tenha um álibi, fornecido por dona Marta Sampaio, ele
podia matar até dois faxineiros!
— Explique isso direito — disse eu, empunhando a
caneta.
Cidinha contou que Jasmim, o inquilino do 401,
mostrara-se muito nervoso, durante a sua visita, e insinuara
que o assassino era o porteiro. Aparentemente, ele queria
afastar as suspeitas de si mesmo. Na hora do crime, Jasmim
estava na porta de seu apartamento, conversando com dona
Marta (a mulher do advogado do 402), que fora lhe pedir
uma xícara de açúcar emprestada. Eles tinham batido papo
durante uns vinte minutos, de pé, no corredor, com as portas
de seus apartamentos abertas. E só se separaram quando
houve aquele rebuliço no prédio, devido aos gritos da mãe
de Pavio.
— Isso inocenta o cabeleireiro — observei. — Se ele
estava conversando com dona Marta, no quarto andar, não
podia ter descido à garagem e esfaqueado Severino!
— Mas eu não gosto dele — disse Cidinha. — Não
gosto e pronto!
— Isso é outra coisa, meu bem. Devemos ser justos e
imparciais. Lembre-se de que a polícia também não gosta

— 59 —
de “seu” Baltazar... e nem por isso nós achamos que ele seja
o culpado. Em todo caso, como o instinto feminino não
falha, podemos botar Jasmim na lista dos suspeitos que
ficaram. Mas, isso, só para agradar a você.
— Obrigada — disse Cidinha. — Jasmim é muito
delicado..., mas, por isso mesmo, não vou com a cara dele!
Homem muito delicado não é flor que se cheire! É ou não
é?
— E a sua entrevista com o Dr. Ezequiel e dona Marta?
— perguntou Carlão. — Conte tudo, para Lula tomar nota.
Eu já tinha posto o nome de Jasmim debaixo do nome
do prof. Vasconcelos, na lista de suspeitos que ficaram.
Cidinha voltou a falar:
— O Dr. Ezequiel não estava em casa, quando visitei o
apartamento 402, mas dona Marta confirmou o álibi de
Jasmim. Também disse que o Dr. Ezequiel já estava
deitado, quando se ouviram os gritos de dona Maria.
O Dr. Ezequiel Sampaio e dona Marta eram um casal
de gaúchos, torcedores do Grêmio de Porto Alegre, que
nunca tinham empregada, devido às implicâncias da
mulher. O Dr. Ezequiel era advogado, com escritório na
cidade, e funcionário de uma construtora e incorporadora
de obras.
— Não basta que dona Marta diga uma coisa —
observei. — Ela precisa provar!
— Está provado — afirmou Cidinha. — Jasmim ouviu
a voz do Dr. Ezequiel, chamando pela esposa. Como lhes
disse, dona Marta e Jasmim ficaram muito tempo batendo
papo, no corredor, e o Dr. Ezequiel deu a bronca. Ele queria
o açúcar, para botar no chá, porque estava com gripe.
— Há provas dessa gripe?
— Há. Ainda hoje o apartamento deles cheira a remédio
contra resfriado. E eu acabei de ver o Dr. Ezequiel sair,

— 60 —
talvez para ir ao médico, e ele usava cachecol e espirrava
como um bode.
— Cachecol e luvas? — perguntei, esperançoso.
— Não. Só cachecol e lenço no nariz. Nenhum dos
meus suspeitos usa luvas. Ou, se usa, não confessou.
Jasmim é o tipo do homem capaz de usar luvas às
escondidas. Ele se veste com essas roupas unissex e a gente
não sabe se ele é homem ou mulher... Ainda mais, com
aquele cabelo comprido e cheio de ondinhas... Não gosto
dele, Lula! Bota na lista!
— Já está. Por outro lado, se o Dr. Ezequiel estava em
casa, na hora do crime, não podia ter descido à garagem.
Podemos riscá-lo da lista. Esse advogado também tem um
álibi perfeito.
— Licença? — pediu Pavio, erguendo um dedinho no
ar.
— Você quer ir lá dentro? — indaguei.
— Não. Quero saber o que é “áulibi” Vocês falam
inglês e não traduzem para a gente! Isso é sujeira! Todo
mundo tem que saber das coisas!
— Álibi é uma coartada — explicou Príncipe.
Ficamos em silêncio, esperando o resto, porque
ninguém sabia o que era coartada. Aí, Príncipe
suspirou, como se nos julgasse umas crianças ignorantes, e
continuou a explicação:
— Álibi significa “em outra parte”. Coartada é a
justificação lógica, que inocenta os suspeitos de um crime.
Graças a um álibi, eles provam que estavam noutro lugar,
quando acontece alguma coisa num lugar. Neste caso do Dr.
Ezequiel, por exemplo, ele estava no seu apartamento,
quando mataram o faxineiro, e, portanto, não podia estar na
garagem. Ninguém pode estar em dois lugares ao mesmo
tempo.

— 61 —
— Deus bem que pode — disse Pavio, em tom de
desafio.
— Mas Deus é Deus — irritou-se Príncipe. — Deus é
onipresente, oniciente e outras coisas! E não foi Deus quem
matou Severino, pois ele morreu assassinado e não de morte
natural!
Interrompi a discussão e pedi a Carlão que fizesse o seu
relatório. Ele contou que visitara os dois japoneses do 502
e nenhum deles tinha álibi ou coartada. Além disso, não
eram cristãos, como nós; eram budistas.
— Os japoneses falam muito, mas não dizem nada —
concluiu Carlão. — A gente quase não entende o que eles
dizem. São muito misteriosos, esses japoneses do 502! E
estão sempre sorrindo, fazendo curvaturas e trocando
piscadelas de olho... Pra mim, eles sabem de alguma coisa!
Na noite do crime, estavam em casa, mas não desceram à
garagem, fingindo que não sabiam de nada!
— Atitude francamente suspeita — concordou
Príncipe.
— Vou tomar nota dos nomes deles — decidi. — Como
é que se escreve?
— Não sei — disse Carlão. — O mais baixo chama-se
Carlos e o outro, Ivan. Mas escreve-se “Kasuo” e “Iwao”.
Kasuo Kasamoto e Iwao Tanaka.
Escrevi “Carlos Carvalho” e “Ivan Teixeira”. E
perguntei.
— E o alemão do 601?
— Esse é suspeito mesmo — afirmou Carlão. — Ele
nem queria que eu entrasse no apartamento! Pra mim, é um
ex-nazista, igual a esses que fugiram para o Paraguai. Está
no Brasil há trinta anos e veio da Alemanha.
— Que bobagem — disse eu. — “Seu” Hermann
Zimbermann é judeu e não podia ter sido nazista! Ele fugiu

— 62 —
da Alemanha, no tempo de Hitler, justamente porque é
judeu! Por que você acha que ele é suspeito mesmo?
— Porque não tem álibi ou coartada. Ninguém o viu, na
noite do crime, e a mulher diz que ele estava tomando
banho, quando houve o rebuliço no prédio.
— Suspeito — decidi. — O assassino deve ter tomado
banho depois do crime, para se livrar das manchas de
sangue. — Tomei nota do nome de “seu” Hermann e
perguntei a Carlão: — E a empregada do síndico?
— Falei com Risoleta e ela me disse que o Dr. Aparício
tem um álibi. Na hora do crime, estava em casa, recebendo
a visita dos inquilinos do apartamento 802, que se
queixavam de uma goteira. Risoleta falou que Dom José
Herrera, a mulher dele e a empregada estiveram na casa do
síndico das dez e meia até a hora do grito de dona Maria.
Só depois disso é que desceram à garagem, todos juntos.
— Inocente — decidi, imparcialmente, embora não
gostasse do síndico. — Fale você agora, Príncipe! Que me
diz daquele mulato feioso do 702?
— “Seu” Valdemar também é suspeito — respondeu o
gorducho. — Vocês o conhecem e sabem que ninguém
simpatiza com ele, aqui no bairro. Basta a alaúza que ele
faz, com aquela motocicleta, quando volta para casa de
madrugada. Na noite do crime, ele estava lá em cima, mas
preparado para sair. “Seu” Valdemar só sai de noite, de
motocicleta, e ninguém sabe direito o que é que ele faz na
vida... Papai falou que ele está sempre atrasando o
pagamento do aluguel, na imobiliária. E a mulher dele,
aquela mulatinha bonita e atrevida, também não é flor que
se cheire! Pode botar o nome dele na lista, Lula!
Tomei nota do nome de “seu” Valdemar da Silva e
perguntei:
— Boto, também, o nome do espanhol do 802?

— 63 —
— Não, esse não. Dom Herrera tem um álibi, conforme
Carlão acabou de falar. Ele, dona Carmen e a empregada
Frederica estavam no apartamento do Dr. Aparício quando
mataram Severino. Tinham ido lá reclamar do síndico a
goteira do banheiro.
— Inocente! Não se discute mais. Dom José vive
metendo o pau no Generalíssimo Franco, mas todos os
espanhóis são fanfarrões...
Ficamos um minuto em silêncio, enquanto eu analisava
a lista dos seis suspeitos que tinham sobrado. Eram o prof.
Vasconcelos, Jasmim, os dois japoneses, o judeu alemão e
o mulato parrudo do sétimo andar. Um deles devia ser o
criminoso — mas qual?
— Vocês não querem dar uma espiada no jornal? —
interrogou Carlão, quebrando o silêncio. — A polícia
descobriu mais uma coisa. Achei que devia trazer o jornal,
para nosso governo. Veja as manchetes, Lula.
Abri o jornal e li os cabeçalhos. Na primeira página,
via-se um retrato de “seu” Baltazar (tirado na delegacia)
onde ele aparecia com cara de lobisomem. Segundo o
Instituto de Criminalística, as unhas do faxineiro
assassinado apresentavam indícios de que ele lutara com o
seu agressor e talvez o tivesse arranhado nos pulsos. Nesse
caso, o assassino devia ter os braços esfolados, inclusive
sem um pedacinho de pele.
— É uma ótima pista — disse eu, Incrementado. — Mas
nenhum dos meus suspeitos tinha esfoladuras. Pelo menos,
que eu visse. É verdade que eles estavam usando mangas
compridas...
— Jasmim tem arranhões no rosto — acusou Cidinha.
— Ele disse que foi uma briga com uma freguesa, no salão
de cabeleireiro onde ele trabalha.

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— Está bem. Já eliminamos metade dos suspeitos. Isso
facilita o resto das investigações. Agora, vou procurar
provar que um dos seis suspeitos restantes matou Severino.
Vocês já fizeram os seus relatórios e podem se mandar. Eu
me encarrego do resto!
— Nada disso — protestou Príncipe, que continuava
usando o bonezinho e a lupa de detetive. — Você não pode
nos tirar da jogada, só porque é o chefe da Turma do Posto
Quatro! Somos todos detetives! E eu também quero me
encarregar do resto!
— Está bem. Mas só nós dois. Os outros podem ir para
casa e esperar os novos resultados. As quatro horas, outra
reunião da Turma, na garagem! Tá?
— Que é que vocês vão fazer? — quis saber Cidinha.
— Vamos visitar os suspeitos que sobraram e descobrir
qual deles é o culpado! Aquele que tiver os pulsos
arranhados, está frito!
E assim foi feito. Depois do almoço, eu e Príncipe
descemos juntos ao segundo andar e fomos visitar o prof.
Vasconcelos. O velho inventor recebeu-nos com a
amabilidade de sempre e perguntou como iam as nossas
investigações. Dessa vez, porém, eu tinha Príncipe para me
ajudar, e não fui na conversa do velhote. Também não
tomamos a laranjada sintética que ele queria nos impingir.
Príncipe interessou-se muito pelo laboratório de citologia e
disse que ia montar um igual, porque também se amarrava
na ciência. Mas o professor não tinha esfoladuras nos
pulsos, nem no rosto.
— Também li os jornais — confessou o suspeito,
quando eu e meu companheiro nos despedíamos. — A
polícia afirma que o criminoso foi arranhado pela vítima...
e o porteiro não tem arranhões. Se vocês me trouxessem os
pedaços de pele, encontrados nas unhas do cadáver, eu lhes

— 65 —
diria que tipo de sangue tem o culpado. Mas acho que a
polícia já sabe disso. Voltem sempre que quiserem, meus
filhos. Estou aqui para ajudar os detetives inteligentes como
vocês!
Príncipe ainda olhou para as mãos do professor, com a
lupa encostada ao nariz, e saiu para o corredor. Eu fui
correndo atrás dele, porque tinha medo de ficar a sós com
aquele perverso espetador de borboletas...
Depois, visitamos o cabeleireiro Jasmim, que não tinha
ido trabalhar naquele sábado. Ele falou que estava
abaladíssimo com o crime e resolvera tirar folga naquele
fim de semana. Era um rapaz de seus 25 anos, magro e
cabeludo, vestido com um peignoir colorido. Durante a
entrevista, ele confirmou o álibi do Dr. Ezequiel, dizendo
que emprestara uma xícara de açúcar a dona Marta e ouvira
o marido dela gritar, na sala do outro apartamento.
— Tem certeza de que era a voz do Dr. Ezequiel? —
perguntei.
— Certeza absoluta. Ele tem um adorável sotaque
gaúcho...
Não ficamos muito tempo no apartamento perfumado
de Jasmim, porque ele começou a dizer que eu era um
rapazinho muito bacana e eu não gosto dessas intimidades.
Como o suspeito confirmou o seu próprio álibi (fornecido
por dona Marta), resolvi riscá-lo da lista dos seis, apesar da
antipatia que Cidinha nutria por ele. Antipatia não é prova
de nada.
Em seguida, eu e Príncipe fomos visitar os dois
japoneses. Era como Carlão tinha falado. Quase não
entendemos o que os suspeitos disseram. Eles eram sócios
e tinham um escritório na cidade, onde representavam uma
fábrica de aparelhos eletrônicos de Osaka, no Japão.
Também tinham uma empregadinha japonesa, chamada

— 66 —
Mineko, tão risonha e cheia de rapapés quanto os patrões.
Nenhum dos nipônicos tinha sinais de arranhaduras; pelo
menos, Príncipe examinou a pele deles com a lente e não
encontrou nada. Os japoneses acharam muito engraçado
esse exame, porque não sabiam que nós éramos detetives...
E, enquanto eles riam, eu ia dando uma busca no
apartamento. Mas não encontrei nada demais, além de uma
certa falta de higiene.
O alemão do 601 também continuou na lista negra,
porque nos recebeu com ar de suspeita e recusou prestar
informações, dizendo que não gostava de crianças
abelhudas. A mulher dele, dona Guerda, foi muito bem
educada e pediu que desculpássemos o mau gênio do
marido, alegando que ele tinha sofrido muitas perseguições,
na Alemanha, e era um revoltado. Ela nos prestou todas as
informações e jurou que “seu” Hermann não tinha nenhum
sinal de arranhadela no corpo. É claro que isso não bastava
para inocentar o malcriado. Ainda por cima, ele estava
tomando banho, logo depois de terem esfaqueado Severino.
O assassino também devia ter tomado banho...
Por fim, fomos visitar o mulato Valdemar, no 702, onde
nos aguardava uma surpresa. A companheira dele estava
sozinha, na sala, chorando às pampas.
— Que aconteceu? — perguntou Príncipe, olhando para
ela através da lupa.
— A polícia prendeu Valdemar, na hora do almoço —
disse ela, entre soluços. — Ele não tem nada a ver com o
crime da garagem, mas o inspetor falou que tinha outros
motivos para detê-lo! Eu bem que avisei Valdemar, mas ele
não quis dar o pira! Agora, vão descobrir todos os seus
trambiques! E eu não posso fazer nada, porque os homens
são capazes de me grampear também!

— 67 —
A mulatinha falava tudo em gíria, mas nós entendemos
perfeitamente. E soubemos que o inspetor Mendonça
encontrara provas de que “seu” Valdemar era um vendedor
de maconha e outras porcarias. Ficamos gelados! As
acusações contra o bandido eram muito sérias! Mas isso não
queria dizer que ele tivesse assassinado Severino.
Tentamos consolar a mulatinha, mas, quando ela
começou a dizer palavrões, compreendemos que a polícia
tinha toda a razão em perseguir aquela dupla de marginais!
“Seu” Valdemar e Etelvina eram dois contraventores!
— Que é que você acha? — perguntei a Príncipe,
quando descemos, pelo elevador social, para o vestíbulo do
Edifício Mattews.
— Acho que já sei quem é o assassino — respondeu ele,
guardando a lupa no bolso do paletó de seu terninho.
— Puxa vida, Príncipe! — exclamei, maravilhado. —
Qual dos seis?
— O seu!
Senti um arrepio. O meu suspeito era o prof.
Vasconcelos!
— Está na cara — continuou Príncipe. — Você se
esquece das luvas que encontramos no incinerador? De
todos os suspeitos, o professor é o único que usa luvas,
apesar do clima do Rio de Janeiro!
— Eu não vi.
— Mas eu vi! Ele tem um par de luvas, no laboratório,
ao lado do microscópio! Nada mais natural do que um
cientista usar luvas, seu bobo!
— Tem razão! Só pode ser ele, Príncipe! E agora?
Vamos denunciá-lo ao inspetor?
— Não. Nós mesmos devemos obrigá-lo a confessar!
Vamos pegar Carlão e voltar ao laboratório do professor! O
apartamento dele fica perto do vão da escada e bem por

— 68 —
cima do local do crime! Se o prof. Vasconcelos demorou
um minuto a descer à garagem, depois dos gritos da mãe de
Pavio, foi porque estava mudando de roupa, depois de ter
metido a faca em Severino! Ele também tem várias lâminas
afiadas, em cima da mesa do laboratório!
Olhei para Príncipe, cheio de admiração, entusiasmado
com as suas deduções detetivescas, dignas de Sherlock
Holmes, Hércules Poirot, Philo Vance, Nick Carter e outros
heróis dos romances policiais. Não havia dúvidas de que o
prof. Vasconcelos era o assassino! Agora, só nos restava
obter a sua confissão. E, para isso, teríamos que levar
Carlão em nossa companhia, pois Carlão é o único
enturmado do Posto Quatro que sabe lutar judô e karatê. Se
o professor saísse para a briga, eu era mais Carlão!

— 69 —
CAPÍTULO V

A CILADA DAQUELE FILME QUE PASSOU NO


RYAN

Quando eu e Príncipe partimos para a casa dos pais de


Carlão (que fica numa vila da Rua Edmundo Lins),
resolvemos subir a Figueiredo Magalhães, em vez da Santa
Clara. Isso foi ótimo, porque encontramos Carlão
comprando briga com cinco moleques da turma da
Figueiredo.
— Qual é o problema? — quis saber Príncipe,
enfrentando os nossos adversários.
Não tem um garoto de Copa que não respeite Príncipe,
porque ele anda sempre vestido com terninho e gravata.
— Não há nada, amizade — disse um dos moleques. —
Nós só estávamos pedindo a esse cabeça-chata para não vir
paquerar os brotinhos do nosso território. Vocês são da
praia e nós somos do campo. Tem muita menina na
Atlântica, mas esse grandão cisma de fazer hora aqui na
Figueiredo!
— Não vale a pena brigar — disse eu. — As meninas
são livres e namoram os enturmados que quiserem! Se
algum brotinho da Figueiredo deu bola para Carlão, vocês
não têm nada com isso! A rua não tem dono!
— Falou, tá falado — disse o moleque. — A gente não
quer criar caso com a Turma do Posto Quatro. Vocês são

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bacanas. Mas levem o grandão daqui, para evitar um atrito!
A polaquinha do 87, essa que ele está dando em cima, já
tem namorado! Não queremos confusão, mas sabemos
defender os nossos direitos! Tá?
— Tá. Agora, não temos tempo para discutir. Tchau!
E arrastamos Carlão para o nosso território, na Avenida
Atlântica. Os outros cinco garotões não passaram da
esquina da Domingos Ferreira.
— Para onde vamos? — indagou Carlão. — Aquela
sardenta do 87 me deu bola! Se ela não se abrisse comigo,
eu não entrava na Figueiredo!
— Vamos para o Mattews — respondi. — Precisamos
de você, para enfrentar o assassino!
Carlão arregalou os olhos.
— Xentes! Já sabemos quem é o homem?
— Já. É o prof. Vasconcelos. Ele usa luvas e espeta
borboletas com alfinetes. Agora, vamos visitá-lo outra vez
e saber por que ele demorou um minuto a descer à garagem,
depois de ter ouvido os gritos de dona Maria. Príncipe acha
que ele estava tirando a roupa suja de sangue.
— Então, foi ele mesmo! Aquele velho rabugento
nunca me enganou! Tem problema não! Eu o prendo e
entrego à polícia! E, assim, a gente prova que o pai de Pavio
é inocente!
Explicamos a Carlão que ainda não tínhamos provas
contra o professor e era preciso fazer com que ele
confessasse. Carlão entendeu a jogada e prometeu que só
tomaria uma atitude se o suspeito se tornasse agressivo.
Mesmo que o professor nos ameaçasse com um facão ou
coisa que o valha, Carlão conhecia defesa pessoal e logo o
reduziria à impotência. Eu mesmo já tinha visto o nosso
judoca derrubar um bêbado, armado com um porrete, e

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entregá-lo ao guarda de trânsito da esquina da avenida com
a Constante.
Mal tocamos a campainha do apartamento 202, a velha
Carmo abriu a porta. Quando nos reconheceu, ela
resmungou e quis empurrar a porta outra vez. Mas o pé de
Carlão (calçado com uma alpercata de couro) já estava na
abertura, impedindo 1 a porta de se fechar.
— Que é que vocês querem, seus moleques? —
guinchou a empregada. — O professor, agora, está muito
ocupado! Ele não gosta que o interrompam, durante as suas
experiências! Voltem amanhã!
— Diga-lhe que é a Turma do Posto Quatro —
repliquei, com voz de detetive. — Ele terá prazer em nos
receber, pois disse que está sempre à nossa disposição. Mas,
se não estiver, vamos à delegacia!
Na mesma hora o professor apareceu na sala, vestido
com uma bata branca suja de sangue, e convidou-nos a
entrar. Passamos para a sala e a velha resmungona fechou a
porta, voltando para a cozinha. A sala continuava escura e
pouco acolhedora, com aquelas borboletas mortas nas
paredes.
— Aceitam um copinho de laranjada? — perguntou o
dono da casa, muito amável.
Eu e Príncipe dissemos que não, mas Carlão aceitou.
Não resolveu nada a gente dar caneladas nele, porque ele
disse que estava com sede. Então, o professor mandou a
empregada trazer um copo da “sua” laranjada. Carlão só
bebeu metade, disse que estava ótimo, pois tinha sabor de
maracujá, e devolveu o copo à velha resmungona.
— Você acabou de beber o equivalente a seis laranjas
naturais — anunciou o professor, sorrindo para Carlão. —
Se bebesse o copo todo, meu prejuízo seria de doze laranjas,
a três cruzeiros a dúzia. Concordo em que a minha laranjada

— 72 —
sintética não é barata, nem gostosa, mas é muito científica.
E, hoje em dia, estamos na Era da Cibernética! Por mais
complicadas que sejam as coisas artificiais, são o produto
maravilhoso da tecnologia! Muito breve, o homem
conseguirá fabricar uma laranjada igual à da Natureza! A
ciência tem um poder ilimitado, meus filhos, e o cientista é
um deus!
Eu e Príncipe nos entreolhamos, cada vez mais
convencidos de que aquele velho maluco era um assassino
perigosíssimo. Ele adivinhou os nossos pensamentos, pois
deu uma risadinha.
— Já sei! Já sei! Vocês julgam que eu sou doido...
Todos os grandes cientistas foram tomados por doidos,
meus filhos. Mas, quando virem o meu último invento,
vocês se renderão à evidência! Venham até o laboratório!
Quero lhes mostrar as minhas bananas artificiais!
Era o que nós queríamos: visitar o laboratório.
Passamos para o quarto, pegado à sala, e vimos que tudo
continuava mais ou menos nos mesmos lugares. Carlão, que
ainda não visitara o laboratório, ficou impressionado com o
microscópio e os cadáveres dos ratos dissecados. Mas
limitou-se a olhar tudo de longe, coçando a cabeça.
— Vocês gostam de bananas? — indagou o professor.
— Pois eu consegui produzir bananas artificiais, utilizando
as cascas dessa fruta. Este invento, sim, é muito econômico.
Até agora, as cascas das bananas não eram comestíveis. E
agora? Vejam esta maravilha!
E ele tirou uma lata de dentro de uma gaveta do armário.
Nessa lata via-se uma massa gelatinosa, amarelada, com um
aspecto pouco apetitoso.
— Bananas e bananas! — exclamou, muito contente. —
Podem examinar o produto ao microscópio. Fabriquei estas
frutas, adicionando um ácido emoliente às cascas das

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bananas naturais, amolecendo-as e tornando-as
comestíveis. As vitaminas aí estão, na mesma dosagem da
polpa madura! O gosto é horrível, de cascas de bananas,
mas basta acrescentar uma pitada de sacarina e o paladar
melhora. Querem provar?
— NAO!
— Nem você, meu valente rapaz? — insistiu o velho,
estendendo a lata para Carlão.
Carlão fez uma careta e recuou, até bater com as costas
na parede. Mas o cientista não se ofendeu; provou um pouco
daquela porcaria, cuspiu disfarçadamente e meteu a lata
outra vez na gaveta do armário.
— Estou às suas ordens — disse, depois, apanhando
uma faquinha em cima da mesa onde estava o microscópio.
— A que conclusão vocês chegaram, sobre o crime da
garagem? Precisam de alguma ajuda tecnológica?
Olhei para Carlão e vi que ele estava atento, observando
a faca na mão do suspeito. Isso me tranquilizou cinquenta
por cento.
— Sim, professor — respondi, cautelosamente.
— Gostaríamos de saber se o senhor tem outro par de
luvas, além desse que usa nos seus trabalhos...
O velhote apanhou as luvas na mesa e mostrou-as. Eram
feitas de um pano grosseiro, azulado, e costuradas com
grandes pontos pretos.
— Eu mesmo fiz estas luvas — anunciou ele.
— Não, não tenho mais nenhum par. As luvas de pelica
que vocês encontraram na lixeira não são minhas, se é isso
que vocês querem saber. Nunca usei luvas de pelica. E não
fui eu quem matou o zelador. Se vocês vieram aqui para me
acusar do crime, perderam seu tempo! Já fui interrogado
pela polícia, ontem à tarde, e contei tudo o que sabia. Vocês
são uns garotos muito inteligentes e deviam saber que um

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professor de Biologia nunca mata um homem a facadas.
Isso é serviço de magarefe.
— Açougueiro — traduziu Príncipe, baixinho, no meu
ouvido.
Mas não havia nenhum açougueiro no Edifício
Mattews; havia apenas um dono de lanchonete, um
cabeleireiro, um advogado, um joalheiro (“seu” Hermann),
um médico, um trambiqueiro e um gerente de confeitaria,
que era meu pai.
— Eu devia expulsá-los daqui agora mesmo —
continuou o professor, sem se exaltar. — Mas respeito os
meninos inteligentes. Sei que vocês não fazem isso por mal.
Vocês querem descobrir quem matou Severino e suspeitam
de mim, porque uso instrumentos cortantes nas minhas
experiências de citologia... Compreendo perfeitamente. A
polícia também suspeitava de mim, até que tudo foi
esclarecido. Se eu demorei um minuto a descer à garagem,
foi porque estava com a roupa suja de sangue e tinha que
me trocar.
— Ah! — exclamei. — O sangue de Severino!
— Não. O sangue dos ratos. Sempre uso esta bata
branca, mas, anteontem, esqueci de proteger a roupa e me
sujei todo. Carmo está aí de prova. Vocês não devem perder
mais tempo comigo, meus filhos. Não fui eu.
— Jura? — perguntou Príncipe.
— Juro por Deus! — disse ele, sorrindo, com aquela
cara de Satanás. — Querem falar com Carmo? A palavra de
minha empregada vale mais do que um juramento. Carmo
estava aqui, comigo, quando mataram o zelador. Vocês
acham que essa velha malcriada ia mentir à polícia, para me
defender? Nunca! Se eu fosse um criminoso, ela ia bater
palmas de contente! Carmo é uma megera, uma peste que
me persegue há trinta e dois anos, mas só diz a verdade.

— 75 —
Realmente, a velha empregada confirmou o álibi do
patrão, garantindo que ele não tinha saído do laboratório das
oito às onze horas da noite de quinta-feira. E acrescentou
que, no seu entender, fora a empregada russa de “seu”
Karlovski que matara Severino, porque os russos são todos
uns assassinos e Aliocha já botara até uma pá de lixo na
porta daquele apartamento.
Ao ouvir isso, chegamos à conclusão de que o prof.
Vasconcelos não podia ser o criminoso. E Carmo também
não podia ser, pois o culpado tinha que ser um homem. Nem
mesmo na escuridão da garagem Severino iria confundir
aquela velha com um homem.
— Precisam de mais algum esclarecimento? —
perguntou o professor, encaminhando-se para a saída.
— Mais nada — respondi. — Peço que nos desculpe,
professor. O assassino deve ser outra pessoa. Vou riscar seu
nome da lista de suspeitos.
Os olhos dele cintilaram, por trás dos vidros das lunetas.
— Querem uma pista? Procurem investigar os
movimentos do Dr. Aparício, na noite de anteontem... Até
agora a polícia não encontrou o móvel do crime. É muito
importante o móvel de um crime! Ora, o síndico é o
responsável pelo prédio e o zelador apenas cumpre as
ordens dele. Se Severino roubava os condôminos, é claro
que o Dr. Aparício sabia disso... Talvez eles fossem
cúmplices e tivessem brigado, na hora de repartir o dinheiro
dos furtos. Detesto o Dr. Aparício e abomino suas
mesquinhas perseguições! Se eu não fosse proprietário
deste apartamento, ele já teria me mandado embora daqui,
alegando que eu sujo a área interna com as sobras das
minhas experiências! Essa é uma deslavada mentira!
Depois de inventar as coisas, eu jogo tudo na lixeira!

— 76 —
***

As quatro horas, eu, Príncipe, Carlão e Cidinha


passamos pelo vestíbulo, a caminho da garagem, e
encontramos dona Maria sentada à mesa do porteiro,
vestindo um blusão limpo em Pavio. A simpática senhora
disse-nos que acabara de voltar da delegacia, onde
finalmente conseguira falar com o marido.
— Como está “seu” Baltazar? — perguntou Cidinha,
com acento carinhoso.
— Está bem de saúde, mas muito revoltado. Também,
não é para menos! O Dr. Ezequiel já falou com um juiz e
vão soltar Baltazar depois de amanhã, se não aparecer
nenhuma prova contra ele. Contei para ele o que vocês estão
fazendo para ajudá-lo e ele ficou muito agradecido.
Mandou lembranças para todos, mas pediu para vocês
deixarem a polícia trabalhar em paz. O inspetor Mendonça
prendeu “seu” Valdemar do 702 e acha que, por intermédio
dele, chegará ao assassino de Severino. Parece que Severino
tinha negócios escusos com aquele maconheiro. O crime
pode ter sido vingança de uma quadrilha de marginais.
Baltazar falou para vocês não se meterem nisso.
— Desculpe, dona Maria — disse Príncipe,
gentilmente. — A Turma do Posto Quatro nunca faz as
coisas pela metade! Agora, que eu botei o meu bonezinho,
vou até o fim! “Seu” Valdemar pode ser um contraventor,
mas talvez não seja o assassino. Se ele tivesse morto o
faxineiro, pegava a sua motocicleta e fugia. Este crime foi
planejado! E o criminoso voltou a subir a escada do edifício,
depois de meter a faca em Severino. Se ele subiu a escada,
era porque tinha que estar no seu apartamento na hora de
encontrarem o corpo! Ou seja: ele preparou um álibi!

— 77 —
— Ou coartada — acrescentou Pavio, olhando firme
para a mãe dele.
A lógica de Príncipe era perfeita. Até dona Maria ficou
impressionada. Aproveitamos o espanto da mulher do
porteiro e a interrogamos, querendo saber se o marido
suspeitava de alguém.
— Não — respondeu ela. — Baltazar falou que uma ou
outra empregada do prédio não vale nada, mas não suspeita
de ninguém. Eu também acho que essas domésticas são
muito sujas e relaxadas, e muito oferecidas, mas só isso.
Quanto aos moradores, nem eu nem Baltazar temos o que
dizer. O único de quem Baltazar desconfia é de “seu”
Valdemar. Aliás, nós já andávamos de olho nele, mas
tínhamos medo de falar, porque ele é um elemento
perigoso. O Dr. Aparício sabe disso, mas também tem medo
de falar.
— E o móvel do crime? — perguntei. — “Seu” Baltazar
não faz idéia?
— Nenhuma. Mas, na teoria dele, o assassino já queria
matar Severino, por qualquer motivo, e aproveitou aquela
discussão para matá-lo e botar a culpa em cima de Baltazar.
Isso é o que a polícia também acha. Reparem que eu
encontrei Severino, ferido, uma hora depois da discussão.
Foi o tempo do assassino se preparar para cometer o crime!
A lógica de dona Maria também era perfeita. Logo, o
assassino só podia ser um dos moradores que tinham ouvido
a discussão, no terceiro andar, às dez horas da noite de
quinta-feira! Ou seja: um dos homens do segundo, do
terceiro ou do quarto andares, pois, dali para cima, ninguém
mais sabia do bate-boca. Mas qual seria o móvel do crime?
— Severino arrumava sempre dinheiro de maneira
misteriosa — disse, ainda, dona Maria. — Não sei quem é
que lhe dava esse dinheiro, mas só podia ser sujeira... Ele

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roubava parte do material de limpeza, para vender, mas isso
não dava muito lucro... Na teoria de Baltazar, o assassino
também tinha negócios escusos com Severino!
Ainda conversamos alguns minutos com a mulher e,
depois, descemos à garagem. Aí, nos reunimos gravemente
ao redor do capô do Mustang de Air. Mattews. Pavio, que
teve permissão para nos acompanhar, foi o primeiro a
romper o silêncio:
— Vocês estão procurando o móvel do crime? Na
minha teoria, só pode ser o “cinerador”! Não tem nenhum
outro móvel aqui embaixo, além dos “autosimóveis”.
— Móvel do crime — explicou Príncipe — é o
“motivo” do crime, ou seja, a razão pela qual mataram
Severino! Até agora, ninguém sabe por que ele morreu.
— Ele morreu porque meteram a faca nele. Vai ver que
o móvel do crime foi a faca. Se foi, mamãe sabe e não quer
que eu diga.
— Não. A faca foi o instrumento. O móvel é o motivo.
E, a não ser seu pai, ninguém mais tinha interesse em matar
o faxineiro. Quer dizer: seu pai também não tinha interesse,
mas brigou com ele e falou que matava.
— O pior não é isso — disse eu. — Já risquei todos os
suspeitos da minha lista! Ficamos sem nenhum!
— Que chato! — queixou-se Cidinha. — Como é que
vai ser? Sem suspeitos, não podemos azucrinar a vida de
ninguém!
— Isso quer dizer que vocês se enganaram nalguma
coisa — continuei. — O verdadeiro culpado pode ser outro
morador do edifício de quem já suspeitamos e não
suspeitamos mais. Alguém deve estar mentindo! Mas,
depois das declarações de “seu” Baltazar a dona Maria,
chegamos à conclusão de que o assassino só pode ser um,
entre cinco suspeitos.

— 79 —
— Por quê, xentes? — perguntou Carlão, coçando o
buraquinho do ouvido.
— Porque, se o assassino matou o faxineiro, naquela
noite, para botar a culpa em cima de “seu” Baltazar, só pode
ser um dos moradores que ouviu a discussão e sabia que o
pai de Pavio jurara matar Severino. Ora, só os moradores
do segundo, terceiro e quarto andares ouviram o bate-boca,
na porta do apartamento 302. Logo, o assassino é um deles!
— Homem ou mulher? — quis saber Cidinha.
— Continua sendo homem. As últimas palavras do
morto são sagradas.
Príncipe pediu licença para olhar o meu caderno de
apontamentos, pesquisou os meus garranchos com a lupa e
comentou:
— Temos, outra vez, cinco suspeitos, como você disse.
O russo, o professor, o francês, o cabeleireiro e o advogado.
Mas todos têm álibis. Nós mesmos verificamos. E todos os
álibis parecem perfeitos.
Tirei o caderninho das mãos dele, com ciúme da minha
caligrafia.
— Um deles pode parecer, mas é falso. Resta saber
qual. Você faz alguma idéia, Cidinha?
— Nem por sombras. Andei conversando de novo com
as mulheres do prédio, pedindo informações sobre costura,
mas não consegui mais nada. Os álibis dos maridos delas
são ótimos. Temos que descobrir um meio de fazer o
criminoso se desmascarar, apesar dos álibis.
— É nisso que eu estou pensando — murmurei. — E
acho que descobri o jeito! Vamos fazer o bandido cair numa
cilada! Agora, que sabemos que ele só pode ser um desses
cinco, fica mais fácil enganá-lo e obrigá-lo a mostrar o jogo!
— Como? — perguntou Príncipe. — Qual é o seu
plano?

— 80 —
— Vocês se lembram daquele filme de bangue-bangue
que passou no Ryan? Aquele onde o criminoso foi
desmascarado devido à sua curiosidade?
— Me lembro — disse Carlão. — Pavio não foi ver
porque era impróprio até os 14. Fomos só nós três, eu, você
e Príncipe, e depois você contou o enredo para Cidinha e
deu um beijo nela. Isso já tem um mês, se não me engano.
Era um filme bacana, passado em Silver City.
— Também me lembro — confirmou Cidinha. — O
chefe dos ladrões de gado caiu numa cilada do mocinho e
levou uma surra, na delegacia. Ninguém esperava que o
bandido fosse o xerife.
— Pois é — disse eu. — Que é que vocês acham de
armar uma cilada ao nosso assassino e atraí-lo para fora do
Edifício Mattews? Estou pensando numa armadilha
parecida com essa do filme que passou no Ryan.
— Mas nós não sabemos quem é o assassino — disse
Príncipe. — Nesse caso, você teria que armar cinco ciladas.
— Exatamente. Mas está na cara que só o verdadeiro
culpado cairá na dele, porque os outros estarão inocentes.
Não acredito que os assassinos sejam dois ou três. Só deve
ser um. Que é que a turma acha da minha idéia? Os que
estiverem de acordo fiquem de pé!
A sugestão foi aprovada por 4 a 0, porque Pavio não
entendeu nada e preferiu ficar de cócoras.
Acabei de combinar os detalhes da operação e nos
despedimos, marcando novo encontro, no calçadão da
Avenida Atlântica, para as oito horas dessa noite.
Depois, subi ao meu apartamento e fiquei tomando
conta dos movimentos de mamãe, na sala e na cozinha. O
telefone ficava no corredor, perto da porta da cozinha, e
mamãe podia ouvir tudo o que eu falasse... Esperei até que
ela se metesse no banheiro e, quando escutei a água do

— 81 —
chuveiro correr, apanhei o telefone, botei um lenço aberto
em cima do bocal e disquei o número do aparelho do prof.
Vasconcelos. “Seu” Karlovski não tinha telefone.
Quando o professor atendeu, engrossei a voz e pedi, em
tom lúgubre:
— Quer me chamar o Karlovski, no 201? Aqui é um
amigo dele!
O professor disse que estava bem. Esperei mais um
minuto e ouvi a voz do russo:
— Alô? Karlovski falando!
— Aqui é um amigo — continuei, com a mesma voz
fúnebre. — Sei que o senhor matou o faxineiro Severino!
Não me pergunte como, mas sei! E tenho uma prova disso!
Estou disposto a vendê-la, por cem cruzeiros, em notas de
cinco. Essas notas não devem ter a numeração em série.
— Alô? De que está falando? Que prova é essa?
— Outra prova, além das luvas em poder da polícia!
Leve os cem cruzeiros no bolso e encontre-se comigo, logo
mais, às nove horas da noite, naquele terreno baldio que fica
no finzinho da Travessa Frederico Pamplona, aqui mesmo
em Copacabana. Sabe onde é?
— Sei. Mas não estou entendendo! Isso é uma
brincadeira?
— Não, é coisa séria! O senhor matou Severino, mas
não direi nada à polícia, se me pagar os cem cruzeiros.
Levarei a prova comigo. Até logo!
E desliguei. Depois, tornei a ligar para o mesmo número
e disse a mesma coisa ao próprio prof. Vasconcelos,
pedindo-lhe cem cruzeiros e marcando um encontro no
mesmo local. Eu conhecia muito bem aquele terreno baldio,
onde às vezes jogava pelada com a Turma da Constante.
Desliguei o telefone (antes que o professor fizesse novas
perguntas) e disquei o número do aparelho do casal de

— 82 —
velhos franceses. “Seu” Legrange custou a ouvir o que eu
lhe dizia, porque era muito surdo, mas acabei me fazendo
entender. E marquei outro encontro com ele, à mesma hora
e no mesmo lugar. Depois, também telefonei para o
cabeleireiro Jasmim Siqueira e para o Dr. Ezequiel
Sampaio, dizendo a mesma coisa, com a mesma voz grave
e rouca. Os dois também foram convidados a levarem cem
cruzeiros ao terreno baldio da Travessa Frederico
Pamplona.
A cilada estava armada. Se um dos cinco suspeitos fosse
o verdadeiro criminoso, é claro que ficaria assustado e iria
ao encontro, ou para levar o dinheiro ou para calar a boca
da testemunha... E a Turma do Posto 4, preparada para o
que desse e viesse, ali estaria para desmascarar o bandido!
O bandido que talvez fosse o xerife...

— 83 —
SEGUNDA PARTE

OS DETETIVES EM MAUS LENÇÓIS

— 84 —
CAPÍTULO I

A CILADA NÃO COLA

Meu plano seria muito bacana, se não tivesse sido um


fracasso. É que essas ciladas só dão certo no cinema. Foi a
partir desse momento que os detetives do Posto 4 passaram
a se meter em maus lençóis...
Depois do jantar, pedi licença a meus pais e desci ao
vestíbulo do Edifício Mattews. Pavio estava sentado na
cadeira do pai dele, na portaria.
— “Operação Torre de Babel” — sussurrei, de
passagem, fingindo que não o reconhecia.
— “Operação Torre de Balbel” — respondeu ele,
correndo atrás de mim.
— Preciso de você na calçada! Os outros já chegaram?
— Ainda não. Também não apareceu nenhum suspeito.
Vá na frente, Lula, que eu vou depois. Ainda é cedo, não é?
E mamãe foi no banheiro.
Eram oito e quinze. Desci ao calçadão da avenida e não
vi sinais dos outros enturmados. Encaminhei-me para a
rampa da garagem (o portão ainda estava aberto) e desci.
Também não havia ninguém no recinto, debilmente
iluminado. Atravessei pelo meio dos carros e fui apanhar a
minha bicicleta, no fundo da garagem, voltando com ela
para o calçadão. Agora, já havia um táxi parado perto da

— 85 —
esquina da Rua Santa Clara. Eu tinha sugerido a Cidinha
que ficasse de tocaia dentro de um táxi...
Fui até o carro, levando a bicicleta, e vi uma cabeça de
espiga de milho encolhida no assento traseiro. O motorista,
sonolento, estava sentado ao volante, e olhou para mim sem
grande interesse.
— “Operação Torre de Babel!” — murmurei.
— Isso aí — respondeu a voz de Cidinha, no interior do
táxi. — Esse moço que dirige o carro é amigo de papai. Ele
se prontificou a colaborar com a Turma do Posto Quatro.
Mas não está por dentro do serviço secreto...
— Só quero saber quem vai pagar a corrida — rosnou
o chofer.
— Príncipe paga — assegurei. — Não tenha medo que
a gente não passa calote em ninguém. Fiquem alerta, tá? O
primeiro suspeito pode sair a qualquer momento!
E afastei-me discretamente do automóvel. Minutos
depois, Príncipe apareceu do outro lado da primeira pista da
avenida, no calçadão do meio. Os carros que passavam
incessantemente, na direção do Posto 6, não me deixavam
ver se ele estava com a sua lambreta, mas devia estar. Então,
encostei a bicicleta ao meio-fio, fui me sentar no limiar do
portão da garagem do Edifício Edelweiss (ao lado do nosso)
e também fiquei na paquera...
Estava tudo combinado. Enquanto eu, Cidinha, Príncipe
e Pavio vigiávamos as saídas do Edifício Mattews (para
seguir os suspeitos que deixassem o prédio antes das nove
horas), Carlão já se encontrava de sentinela no terreno
baldio da Travessa Frederico Pamplona, armado com o meu
canivete de lâmina Solinger e um sarrafo de madeira. Se o
assassino fosse ao encontro marcado, não o apanharia
desprevenido...

— 86 —
Esperei ainda meia hora, até que um fusca verde-garrafa
saiu da nossa garagem. Era o carrinho de Jasmim Siqueira!
O cabeleireiro estava ao volante. Fiz um sinal quase
imperceptível na direção do táxi onde se escondia Cidinha
e fui montar na bicicleta. O pequeno Volkswagen partiu
pela avenida, no meio da torrente do trânsito, e eu fui atrás
dele, pedalando desesperadamente a bicicleta. Era eu o
detetive que devia seguir o primeiro suspeito; Cidinha,
Príncipe e Pavio se encarregariam de seguir os outros, se
houvesse mais algum...
Felizmente, o fusca do cabeleireiro não corria muito.
Dobramos para a Rua Santa Clara e subimos sempre, até à
Rua Tonelero, depois de atravessarmos a Domingos
Ferreira, a Avenida Copacabana, a Barata Ribeiro e a Cinco
de Julho. Os sinais da avenida e da Barata Ribeiro me
ajudaram na perseguição, detendo momentaneamente o
carrinho verde. Afinal, quando o fusca dobrou à esquerda,
na Tonelero, convenci-me de que Jasmim ia mesmo ao
encontro marcado. Apesar disso, pedalei furiosamente a
bicicleta, pois não queria que Carlão enfrentasse sozinho o
terrível criminoso.
Ao chegar ao terreno baldio, já encontrei o fusca
estacionado e Jasmim conversando animadamente com
Carlão, ambos sentados num murinho. O cabeleireiro
estava fumando um cigarro, na maior calma, e Carlão dava
risadas. Saltei da bicicleta e corri para eles, horrorizado com
a atitude de Carlão.
— Que bagunça é essa? — gritei. — Não é hora de rir!
Pegamos o assassino do faxineiro ou vocês querem me
fazer de palhaço?
Carlão e Jasmim me acalmaram, dizendo que não
tinham essa intenção. O cabeleireiro jogou fora a guimba
do cigarro e explicou:

— 87 —
— Acabei de saber, por este simpático garotão, que
vocês armaram uma cilada ao verdadeiro criminoso...
Confesso que fiquei cheio de curiosidade, depois de receber
aquele seu telefonema, mas não trouxe os cem cruzeiros em
notas de cinco...
— Por que não? — perguntei, irritado. — Foi você, não
foi? Se não fosse, não teria caído na armadilha! Você está
preso, seu assassino!
— Calma — disse Carlão. — Ele não é o assassino,
Lula. Só deu uma chegada aqui por curiosidade, para saber
qual era a nossa. Ele acabou de me explicar tudo. Não
trouxe o dinheiro, nem o facão, nem quer calar a boca de
nenhuma testemunha. Só quer saber se nós conhecemos,
realmente, a identidade do homem que matou Severino.
Fiquei envergonhado com o fracasso.
— Isso é verdade? Não foi você?
— Eu, hem? — disse Jasmim. — Tenho horror a
sangue! Foi por isso que nem olhei direito o cadáver do
faxineiro! Deus me livre de empunhar uma faca, para
machucar os outros! Eu não faço guerra, só faço amor! E
acho que todas as pessoas deveriam ser carinhosas umas
para as outras, em vez de viverem discutindo e se matando
por causa de bobagens. Não, Lula! Imagina! Não tenho
nada a ver com a morte de Severino! Já contei tudo para seu
amigo. Sabe que ele é uma parada? Garotão bacana está
aqui!
E o cabeleireiro apalpou os músculos do braço de
Carlão, que logo ficou muito vermelho e encabulado. Mas
eu continuava com a pulga atrás da orelha. E rosnei para
Jasmim:
— Se você não é o assassino, e não caiu na cilada, então
o que foi que veio cheirar aqui?

— 88 —
— Você me convidou para vir aqui — lembrou ele. —
Achei adorável terem me confundido com um homem mau!
Logo eu, hem? Aí, como eu tinha que me encontrar com uns
amiguinhos, na Galeria Alasca, passei por aqui, para dar
uma espiada e ver se vocês apanhavam o verdadeiro
criminoso... É até ridículo suspeitarem de mim! A polícia
sabe que eu não podia matar Severino!
— Não podia por quê?
— Porque tenho um álibi perfeito, ora essa! Como é que
eu podia apunhalar aquele mulato horroroso, às onze horas,
se estava no corredor do quarto andar, conversando com
madame Sampaio? Nem eu, nem madame, nem o marido
dela podemos estar em dois lugares ao mesmo tempo! É ou
não é?
— Dona Marta pediu-lhe uma xícara de açúcar
emprestada, não foi?
— Foi. Madame Sampaio é uma senhora muita fina. Ela
estava sem açúcar em casa e lembrou-se de mim. Eram
umas dez e meia, ou dez e quarenta, quando ela bateu à
minha porta, com a xícara vazia. Ficamos conversando um
tempão, sobre diversos assuntos femininos, enquanto o Dr.
Ezequiel gritava, na sala do apartamento dele. Ele não é um
homem tão educado quanto a esposa. Esse: advogados de
porta de xadrez são tão grossos!
Nem bem o cabeleireiro acabara de falar e parou um
carro velho em frente ao terreno baldio Era o Chevrolet
preto do Dr. Ezequiel Sampaio! Dentro dele estavam o
advogado e a esposa. Quando o casal saltou, muito
incrementado, vi que o homem usava cachecol e chapéu,
por causa do sereno, t ainda tossia um bocado. Bem que
Cidinha falara que ele estava com gripe!

— 89 —
— Logo vi que era uma brincadeira desses moleques —
disse dona Marta, quando nos viu ali reunidos. — Eu não
falei para você, Cuca?
O apelido familiar do Dr. Ezequiel era Cuca, mas ele
não gostava que o chamassem assim, por isso mesmo, dona
Marta só o tratava de Cuca. Eles eram gaúchos, altos e
fortes, e pareciam ter uma saúde de ferro. Mas as mudanças
de clima, no Rio, não respeitam ninguém...
— Afinal, que história é essa? — perguntou o
advogado, com voz rouca. — Fui obrigado a sair da cama,
para nada? Onde está o assassino? Quem foi que me
telefonou, com voz disfarçada, dizendo aquelas tolices?
Fiquei calado, fingindo que aquilo não era comigo.
Nesse momento, também chegou o táxi do chofer sonolento
(que tinha seguido o Chevrolet) e Cidinha aproximou-se
correndo, para engrossar o grupo.
— O assassino é o Dr. Ezequiel? — perguntou ela,
afobada.
— Não sei — respondi. — Mas está me parecendo que
também não é.
O advogado deu uma risada, que terminou num acesso
de tosse. Dona Marta bateu nas costas dele, mas não
adiantou. Ele só parou de tossir quando quis. Depois, olhou
para mim com expressão de malícia e falou:
— Já entendi! Foi um golpe desses garotos espertos!
Sabe que vocês me convenceram? Pensei que ia conhecer o
verdadeiro assassino do faxineiro. Mas fiquei tão
preocupado com as consequências, que trouxe minha
mulher. Ela é mais corajosa do que eu.
Todo mundo, no Posto 4, dizia isso (que a mulher do
advogado mandava nele) mas só então eu acreditei nessa
fofoca. Dona Marta começou a falar e todos nós nos
sentimos pequeninos e desamparados, diante de sua língua

— 90 —
ferina. Ela nos acusou de estarmos atrapalhando o trabalho
das autoridades, de sermos uns grandes mentirosos e de
estarmos querendo levar uma surra. E concluiu exigindo
que lhe explicássemos a razão daquela brincadeira de mau
gosto, pois o marido estava resfriado e podia piorar. Criei
coragem e confessei que, na verdade, não sabíamos quem
era o assassino, mas tínhamos armado aquela cilada para
apanhá-lo.
— E vocês têm alguma prova contra o culpado? — quis
saber ela, bronqueada.
Foi Cidinha quem respondeu, pois era a única capaz de
acalmar a mulher:
— Não, senhora. Por enquanto, não temos prova
nenhuma. Lula é que “bolou” essa cilada, mas não deu
certo. Já vi tudo! Também não foi o Dr. Ezequiel quem
matou Severino!
— Tinha graça! — explodiu o advogado. — Natural
que não fui eu! Eu estava com uma gripe bárbara, no meu
apartamento, quando mataram aquele desgraçado! Jasmim
sabe disso! Ele me ouviu chamando por Marta! Minha
mulher levou mais de quinze minutos para pedir
emprestado um pouco de açúcar! E o meu chimarrão
esfriando, em cima da mesa! É por isso que nunca mais vou
ficar bom deste resfriado!
Eu estava abatido pelo fracasso. Mesmo que os outros
três suspeitos acorressem ao encontro, já não acreditava que
encontrássemos o assassino. A cilada não tinha colado; ali
só havia inocentes, tão curiosos quanto nós em conhecer o
culpado. Pedi desculpas a Jasmim, ao Dr. Ezequiel e a dona
Marta e admiti o meu erro, ao copiar a cilada daquele filme
que passou no Ryan. Ao ver a minha confusão e o meu
arrependimento, o advogado tornou-se menos agressivo.

— 91 —
— Tudo lindo — disse ele, em tom apaziguador. —
Vocês tiveram boas intenções, no más! Mas não é assim que
vamos descobrir o criminoso. De quem é que você suspeita
mais, meu valente rapaz?
O “valente rapaz” era eu. Confesso que gostei do
tratamento.
— Bem... Também telefonei para o prof. Vasconcelos,
para “seu” Karlovski e para o velho Legrange. Mas já são
nove horas e eles não apareceram. Acho que não vêm mais.
Foi tudo um desastre!
— Natural que foi — riu o Dr. Ezequiel. — Esses três
paisanos também são inocentes e não ligaram a mínima
para a cilada. O verdadeiro culpado deve se julgar muito
seguro... e também não apareceria, se você o chamasse.
Compreendo por que vocês suspeitam dos moradores dos
andares baixos. Só esses é que ouviram a discussão entre o
porteiro e o faxineiro, não é?
— É — confirmei, emburrado.
Ele deu outra risada e tossiu mais um pouquinho.
— Vocês são espertos, realmente! O inspetor
Mendonça também acredita que o homem tenha matado
Severino para pôr as culpas no porteiro. Eu consegui provar
que o crioulo Baltazar está inocente, apesar de não ter
aparecido a arma do crime. Atendendo a uma denúncia
telefônica, o inspetor Mendonça revistou o cochicho do
porteiro e não encontrou o facão. O sumiço da arma é muito
misterioso. Mas acabaremos por encontrá-la, nalgum lugar.
Na segunda-feira, a Delegacia de Homicídios vai dar buscas
em todos os apartamentos do Edifício Mattews e, então, o
Dr. Aparício verá com quantos arreios se amansa um pingo
chucro!
— O Dr. Aparício? — gemeu Cidinha.

— 92 —
— Sim. A polícia, agora, suspeita do síndico. Eu
também suspeito, mas estou mais inclinado a suspeitar
daquele marginal do sétimo andar. Valdemar da Silva é um
traficante de tóxicos e já foi preso. No ano passado, eu o
livrei da cadeia, mas, desta vez, não quero negócios com
ele! Sei lá se o faxineiro não tinha alguma ligação com esse
mau elemento!
Todos nós estávamos calados, presos às palavras do
advogado. O Dr. Ezequiel falava tão bonito (apesar de tossir
de vez em quando) que eu prometi a mim mesmo que,
quando crescesse, iria me formar em Direito. Dona Marta
era um bocado antipática, mas o marido conquistava
qualquer pessoa.
— Se vocês querem ser uns detetives bacanas —
concluiu ele, botando a mão no meu ombro — fiquem de
olho no Dr. Aparício Dias de Carvalho! Eu confio muito
nas intuições de minha mulher...! O síndico do edifício é a
pessoa mais indicada para ser o assassino do faxineiro! Eles
deviam ser cúmplices, nalgum trambique que a polícia
ainda não descobriu!
Prometi ao Dr. Ezequiel que iríamos vigiar o síndico e
ele ficou muito satisfeito, dando a entender que também não
gostava do médico espírita. Gozado é que os dois pareciam
muito amigos, até aquele momento. Mas bastara o crime da
garagem para que o advogado e o médico começassem a
falar mal um do outro! Amigos, amigos, crimes à parte...

***

Já era quase nove e meia quando eu, Carlão e Cidinha


regressamos à Avenida Atlântica, acompanhados pelo casal
Sampaio. Jasmim tinha seguido, no seu fusca, para a
Galeria Alasca.

— 93 —
As portas do Edifício Mattews ainda estavam abertas e
vimos dona Maria sentada no vestíbulo. Logo que o
advogado e a mulher subiram para o quarto andar, a Turma
do Posto 4 voltou a se reunir, no calçadão da avenida.
Príncipe e Pavio ouviram a nossa história e também ficaram
muito aborrecidos com o fracasso.
— Ninguém mais saiu do prédio — informou Príncipe.
— O russo, o professor biruta e o francês não deram sinais
de vida. Certamente não acreditaram no trote pelo
telefone... Temos que sair para outra, Lula.
— É o jeito. O Dr. Ezequiel falou que a gente deve ficar
de olho no Dr. Aparício...
— É o “cínico” do prédio — disse Pavio. — Mas papai
gosta dele.
— Boa pedida — retrucou Príncipe. — Se a gente
pudesse afastá-lo do edifício e revistar o apartamento dele,
talvez encontrasse a arma do crime. O facão está
desaparecido até agora e tem que estar nalgum lugar!
Com o canto do olho, percebi que Pavio fazia uma
careta.
— Qual é a tua? — perguntei ao moleque.
— Nada, não — respondeu ele, disfarçando. — Acho
que vou me mandar. Mamãe está ali no “saugão” e falou
que é para mim ir para casa antes das dez.
— Para “eu” ir — emendou Príncipe.
— Pode se mandar — decidi. — Amanhã, encontro da
turma, às oito horas, na sede! O jogo de futebol de praia
com o Olímpico fica suspenso. Nenhum dos enturmados da
“Operação Torre de Babel” pode jogar.
— Por que não? — meteu-se Carlão. — Uma coisa não
tem nada a ver com a outra! E, agora, não dá mais tempo de
prevenir o resto da equipe! Eu vou jogar, ué! É a minha

— 94 —
chance de pegar no gol, porque Mário Girafa está de castigo
porque levou nota 6 em Matemática!
— Quer dizer que vamos enfrentar o Olímpico assim
mesmo? Com um assassino solto no Mattews?
— Não podemos transferir o jogo — disse Cidinha. —
E eu quero ser o juiz! Está tudo combinado, turma! Seja
como for, é um amistoso, não é? Não faz mal que a gente
jogue preocupada e leve uma lavagem...
Parecia que ela estava adivinhando!
— Tá legal — concordei. — Amanhã, encontro na
praia, às oito horas, todo mundo de tênis e camisa do clube!
O Atlântica não enjeita parada!
Pavio disse “até amanhã, turma” e entrou no Edifício
Mattews. Logo em seguida, Carlão e Cidinha também se
despediram e se mandaram, pela avenida abaixo. Eu e
Príncipe ficamos sozinhos no calçadão.
— E agora? — perguntei.
— Vamos fazer uma visitinha ao russo, ao professor e
ao francês, para saber por que eles não caíram na cilada;
depois, então, também podemos ir dormir.
Foi o que fizemos, depois de deixar a minha bicicleta e
a lambreta de Príncipe no fundo da garagem. Subimos ao
segundo andar e visitamos os dois primeiros. Foi aí que
ficamos sabendo que o fracasso da minha cilada tinha sido
maior do que eu imaginava. Tanto “seu” Karlovski quanto
o prof. Vasconcelos tinham reconhecido a minha voz, pelo
telefone, e estavam na maior bronca com a Turma do Posto
4! Na opinião deles, aquele telefonema fora uma farsa e, por
isso, não tinham ido ao terreno baldio; além do mais,
estavam com a consciência tranquila, pois não eram
assassinos.
Visitamos o velho Legrange, no terceiro andar, e ele nos
disse a mesma coisa. Um verdadeiro fiasco! Pedi desculpas

— 95 —
aos nossos três vizinhos, um por um, e prometi que nunca
mais ia disfarçar a voz, mesmo porque não adiantava. É
muito difícil disfarçar a voz, pelo telefone, quando quem
atende está prevenido contra a gente...
Às dez e pouco, quando eu e Príncipe descemos ao
saguão, o Dr. Aparício já tinha fechado a porta da frente e
o porão da garagem, mas não se encontrava lá embaixo. A
mãe de Pavio também tinha se recolhido ao cochicho dos
fundos.
— Nada mais a fazer — disse eu. — Conversarei com
dona Maria, amanhã, sobre a estranha atitude de Pavio. Ele
está nos escondendo alguma coisa! Não gostei da reação
dele, quando você falou que a arma do crime tem que estar
nalgum lugar! Esse moleque não me engana! Vai ver que
ele sabe onde está a arma do crime!
Por mais um pouco, suspeitaríamos também de Pavio,
que é nosso chapa e merece toda a confiança!
Subi com Príncipe até o último andar do edifício (pelo
elevador social) e despedi-me dele à porta do apartamento
900. Depois, desci o tortuoso lance de escadas, até o meu
andar. E, de repente, ao desembocar no corredor do oitavo
piso, senti uma mão forte agarrar no meu braço! Que susto!
— Eu estava à sua espera, Lula — disse a voz grave e
sibilante do Dr. Aparício.
Ali estava ele, no corredor mal iluminado, olhando para
mim de cara feia! Só então reparei na sua semelhança com
um artista que sempre interpreta os homens maus no
cinema: Charles Bronson! O síndico tinha toda a pinta do
ator que fizera o papel de xerife naquele filme que passou
no Ryan!

— 96 —
CAPÍTULO II

O FUGITIVO DE ALGUM LUGAR

Comecei a gaguejar:
— Não... não me mate, doutor! Nós... não temos...
nenhuma prova... contra o senhor! Juro que...
Ele continuava agarrando meu braço, num aperto
ameaçador. Sua respiração era sibilante, talvez devido à
bronquite.
— Não tenha medo — sussurrou. — Não quero lhe
fazer mal. Quero, apenas, conversar com você. Chega de
falar em mortes, caramba!
— O senhor... não é... o assassino?
— Que assassino? Está me estranhando, Lula? Sou eu,
oDr. Aparício! Vim esperá-lo aqui em cima para poder falar
com você sem testemunhas. Mas não vou largá-lo, para que
você não saia correndo! Eu sei que vocês estão metidos
nisso! E você vai me dizer tudo o que sabe!
— Eu... não sei... de nada!
— Deixe de tremer tanto, garoto! Você e seus
amiguinhos andaram encontrando coisas no incinerador e
no quarto de Severino... um par de luvas e dinheiro... e
devem saber de mais alguma coisa! Os jornais disseram que
“uns meninos” encontraram as provas... e esses meninos só
podem ser vocês! Quero saber até onde vocês foram, só
isso.

— 97 —
— Não fomos a parte alguma — respondi, com voz
mais firme. — Encontramos as luvas do criminoso e o
dinheiro de Severino, mas foi por acaso. E ainda não
sabemos quem é o assassino. O senhor não precisa ficar
preocupado, porque ainda não temos nenhuma prova contra
o senhor.
— Não estou preocupado. Ou, se estou, é porque
também quero saber quem matou o faxineiro. Não acredito
que tenha sido Baltazar.
— Não foi ele, não, senhor.
— Ah! Então, vocês já sabem que não foi? Nesse caso,
devem saber quem foi! Conte para mim, Lula! Eu sempre
fui seu amigo! As provas indicam que foi o prof.
Vasconcelos, não é?
Ele ainda arfava, mas eu comecei a respirar melhor.
— Não, senhor. O professor não pode ser, porque tem
um álibi. Ele demorou um minuto a descer à garagem
porque estava trocando a roupa suja de sangue.
— Ah! Então, foi ele! Eu sabia! Desta vez, ficamos
livres daquele velho maluco! É um mau elemento, que
esquarteja os animais e está sempre entupindo a lixeira com
cadáveres de ratos e outras porcarias! Isso, quando não joga
o lixo na área interna! A empregada dele é outra débil
mental, suja
e relaxada, que só me cria problemas e tem uma língua
de cobra! Espero que a polícia prenda logo essa dupla de
marginais!
— Não foi o professor — insisti. — Ele disse que foi o
senhor. Mas nós sabemos que não foi, porque o senhor é
médico, muito simpático, amigo dos pobres, e os espíritas
são incapazes de fazer mal aos outros! É verdade que o
assassino subiu a escada, logo depois de cometer o crime,

— 98 —
mas o senhor não podia subir cinco andares a pé. Não é
mesmo?
— Claro que não — sibilou ele, com a respiração
opressa. — Sinto falta de ar até para descer a escada! Ontem
mesmo, fui depor na delegacia e a polícia se convenceu da
minha inocência! Mas acho que Baltazar também está
inocente. Quem matou Severino quis pôr as culpas no
crioulo, porque ouviu a discussão que eles tiveram no
terceiro andar.
Lembrei-me de um detalhe que talvez inocentasse o
síndico.
— O senhor ouviu essa discussão, doutor?
— Não. Como é que eu podia ouvir? Só soube disso na
delegacia, depois que eles prenderam Baltazar. Mas
Baltazar tinha toda a razão, ao acusar aquele patife de ser
um ladrão! Severino roubava o material de limpeza... e até
eu podia levar a culpa! Os síndicos são sempre os bodes
expiatórios! Nenhum condômino compreende o drama de
um síndico, nem colabora com ele! É um inferno! Maldita
a hora em que me ofereci ao Dr. Mattews para ser o síndico
deste edifício, só em troca do apartamento! É verdade que
não pago aluguel, mas, em compensação, levo uma vida de
sacrifícios, de lutas, de incompreensões! E para quê? Tenho
o meu consultório e podia viver tranquilamente, sem
problemas!
Minha mulher é professora e também colabora com o
MOBRAL, dando aulas a adultos, depois do jantar.
Podíamos viver muito bem..., mas, como sou o síndico, e
me dedico honestamente a zelar pelo edifício, todos os
inquilinos me detestam! E alguns, como esse inventor
maluco, ainda por cima me acusam de ser um criminoso!
Isso tem cabimento?

— 99 —
E ficou olhando para mim com seus olhos vermelhos e
saltados, de boca aberta, arfando como um fole.
— Não tem cabimento — concordei, prudentemente.
Ele largou meu braço e tirou uma bombinha do bolso,
pondo-se a pulverizar qualquer coisa na garganta. Era um
remédio contra a falta de ar. Daí a pouco, sentiu-se melhor,
guardou o vidrinho e a pera de borracha e prosseguiu:
— Um dia, eu largo este lugar de síndico! O Dr.
Mattews que me desculpe, mas eu largo! Estou farto de
sacrificar as minhas horas de lazer, inspecionando o edifício
e cuidando de tudo! Cada inquilino me cria um caso, todo o
dia! Agora é a goteira do 802! Por que aquele espanhol não
conserta? O defeito é no banheiro dele e não nas instalações
comuns! O mais que eu posso fazer é fechar a água daquela
coluna! Não posso gastar meio milhão de cruzeiros sem
convocar uma assembleia-geral de condôminos! E, de que
adianta? Só os inquilinos recalcitrantes é que vão às
assembleias, para dizer que não! Na última assembleia,
quiseram até me bater! Mas, um dia, eu largo! Sou médico
e não preciso disto para viver! Só não larguei antes porque
devo muitos favores ao Dr. Mattews! Mas, um dia, eu largo!
Não foi para isto que eu vim de Belo Horizonte!
Aquele papo não me interessava, nem como inquilino
nem como detetive.
— Se não foi o senhor quem matou Severino —
arrisquei — então, quem foi? Como lhe disse, o prof.
Vasconcelos está fora de suspeitas.
Ele olhou para mim piscando os olhos. Suas pupilas
tinham voltado para dentro das órbitas e já não estavam tão
congestionadas.
— Se não foi aquele débil mental, só podia ter sido o
Dr. Ezequiel! Esse advogado só se dá com marginais,
devido à sua profissão, e podia ter alguma ligação com

— 100 —
Severino, que também não era muito católico... De qualquer
maneira, o assassino só pode ser algum dos moradores dos
andares mais baixos, que ouviram a discussão do porteiro
com o faxineiro. Não foi isso o que vocês descobriram?
— Foi — admiti. — Nossa lista de suspeitos, agora, só
tem cinco nomes. Mas, depois do encontro no terreno vazio
da Frederico Pamplona, só suspeito dos dois que foram lá:
o cabeleireiro Jasmim e o Dr. Ezequiel. Os outros não se
interessaram pelo encontro e, por isso, talvez sejam
inocentes.
O Dr. Aparício não sabia da cilada daquele filme que
passou no Ryan e eu tive que lhe contar o meu fracasso. Ele
ficou muito assanhado.
— Isso mesmo! Foi o advogado!
— Mas o Dr. Ezequiel tem o mesmo álibi de Jasmim.
Um ajuda o outro.
— São cúmplices, então. Dona Marta é o elemento de
ligação. Não foi ela que criou o álibi, indo pedir açúcar
emprestado ao vizinho? Podia ser tudo combinado! Dona
Marta é uma megera e não para empregada no apartamento
deles! Houve realmente o pedido de açúcar... porque “seu”
Legrange também ouviu dona Marta conversando com
Jasmim, no andar de cima..., mas podia ser tudo
combinado! Você entende, Lula? Eu confesso que não!
— Não entende por que o senhor está atrapalhando tudo
— repliquei. — Se eles estavam conversando, no quarto
andar, combinados ou não, não podiam estar na garagem!
O assassino foi outro. Talvez tenha sido o russo do 201.
Embora não tenha ido ao terreno vazio. Se não foi o russo,
foi o francês!
E continuamos a discutir o caso, sem chegar a uma
conclusão. Depois da desconfiança inicial, eu e o síndico
tínhamos acabado ficando amigos e, quando ele se

— 101 —
despediu, chegou mesmo a apertar a minha mão e a pedir
desculpas por haver me assustado. O que queria era ter
certeza de que a Turma do Posto 4 não tinha nenhuma prova
contra ele. E também queria fazer o seu “veneno” contra o
prof. Vasconcelos e o Dr. Ezequiel...
Logo que fiquei livre do Dr. Aparício, entrei no nosso
apartamento e fui me deitar. Papai e mamãe já estavam
fechados no quarto, conversando em voz baixa, mas não
ouvi o que diziam, porque é muito feio escutar atrás das
portas, mesmo que o escutador seja um detetive. Vesti o
pijama, gritei “boa noite” para a porta do quarto dos velhos
e deitei-me. Mas não consegui dormir! Minha cabeça
fervilhava, cheia de cadáveres, luvas, dinheiro, facões,
suspeitos e outros bichos. Bateram as onze horas e nada do
sono chegar. Súbito, pensei na atitude de Pavio, quando
Príncipe falara na arma do crime, e abri os olhos na
escuridão do quarto. A faca! Onde estaria a faca? Onde é
que Pavio teria visto a arma do crime? E por que o moleque
nos escondia esse mistério tenebroso, se ele também era
detetive e devia colaborar conosco?
— Puxa vida! — exclamei. — Pavio viu o facão no
apartamento 302!
Saltei da cama e saí, cautelosamente, do quarto. Meus
pais já deviam estar dormindo. Atravessei a sala, abri a
porta (tudo sem fazer barulho) e saí para o corredor. Como
estava descalço, meus passos não podiam ser ouvidos pelos
inquilinos do apartamento 701, no andar inferior.
Chamei o elevador (que estava no 3.® andar) e entrei
nele, descendo a esse mesmo pavimento. Ali estava o
corredor, escuro e cheio de “suspense”. E se o assassino
aparecesse naquela horinha? Carlão não estava ali para me
defender! E o bandido podia ter pensado o mesmo que eu...
Se ele escondera a arma do crime no apartamento vazio, não

— 102 —
ia querer que a Turma do Posto 4 a encontrasse, para
entregá-la à polícia! Eu corria o maior perigo!
Felizmente, não encontrei ninguém no corredor.
Também não havia nenhuma luz se filtrando por baixo da
porta do apartamento 301, o dos franceses. Mas, quando me
aproximei da porta de serviço do 302, senti um arrepio!
Havia dois caixotes no corredor, um em cima do outro, e
alguém estava se debatendo, em silêncio, no alto da porta!
Eu só podia ver duas pernas nuas, grossas e brancas,
esperneando no ar, do lado de fora da bandeira da porta.
Depois do primeiro susto, olhei melhor e reconheci as
perninhas de Príncipe. Sim, era ele, entalado no buraco da
bandeira da porta, com metade do corpo do lado de dentro
e a outra metade (traseira) do lado de fora! Criei ânimo e
subi nos caixotes, agarrando uma das pernas voadoras do
outro detetive.
— “Operação Torre de Babel” — sussurrei, junto às
calças curtas de seu pijama de seda branca.
A voz de Príncipe saiu espremida, por cima das costas
entaladas na abertura:
— “Operação Torre de Babel!” Graças a Deus, Lula!
Tire-me daqui!
Custou um pouco, mas consegui puxar-lhe o corpo
rechonchudo, ajudando-o a ficar de pé em cima dos
caixotes. Ele tinha arranhado os braços, mas muito de leve.
E, apesar de estar vestido com o pijama, ainda usava o
bonezinho de detetive e tinha a lanterna elétrica na mão.
— Que aconteceu? — perguntei. — O assassino quis
matar você?
— Não, Lula. É que eu fiquei preocupado com o que
você disse, sobre a estranha atitude de Pavio, e, depois de
pensar muito, achei que Pavio talvez tivesse visto a arma do
crime neste apartamento, ontem à noite, quando estivemos

— 103 —
aqui. Então, arrumei estes caixotes e vim dar uma espiada.
Pensei que você estivesse dormindo e era muito tarde para
bater na sua porta. Mas não deu para passar pelo buraco.
Faz um tempão que estou entalado, sem entrar nem sair e
sem poder gritar por socorro!
— Está vendo? — censurei. — É nisso que dá a gente
querer fazer as coisas sozinho! Cada vez que a Turma do
Posto Quatro se separa, só dá mancada! A união faz a
segurança!
— E você, por que está aqui? — perguntou ele, em tom
de desafio.
— Porque pensei o mesmo que você — admiti,
encabulado. — Também pensei que você já estivesse
dormindo...
— Será que a arma do crime está aí dentro? — tornou
ele, ajeitando os óculos em cima do nariz.
— Pode ser. Se dois detetives pensaram a mesma
coisa..., mas você não cabe no buraco da bandeira da porta.
Devia ter visto logo. Eu, que sou mais magro, pode ser que
entre... Entro?
— Você é que sabe. O chefe da turma é você e não eu.
— Deixa comigo! Já agora, vamos até o fim!
E, ajudado por ele, enfiei o corpo pela abertura da
bandeira da porta (primeiro as pernas e, depois, o tronco),
atravessando para o outro lado, com alguma dificuldade.
Deixei-me cair no interior do apartamento, dobrando as
pernas para amortecer a queda e não fazer barulho, e abri a
porta com a chave que continuava na fechadura, pelo lado
de dentro. Príncipe entrou e acendeu a lanterninha. A área
de serviço logo ficou clara. Não havia ninguém ali. Nem
polícia nem assassino.
— Também trouxe a lupa? — sussurrei.

— 104 —
— Está no bolso. Vamos andar na ponta dos pés, para
que o prof. Vasconcelos não ouça nada, lá embaixo. Senão
ele chama o inspetor outra vez!
Príncipe estava de chinelos e tinha que andar com
cuidado, mas eu estava descalço e não me preocupei com
isso. Começamos a dar outra busca meticulosa no
apartamento vazio, à procura de algum esconderijo onde
pudesse caber uma faca de cozinha. Nada! O único rodapé
solto era o do quarto dos fundos, mas a cavidade estava
vazia. Examinamos tudo com a lente, palmo a palmo, e não
achamos coisa alguma. Já íamos desistir quando me lembrei
de que não era apenas a luz elétrica que estava cortada
naquele apartamento; também não havia gás...
— O fogão — murmurei, no ouvido de Príncipe.
Fomos para a cozinha (cujos ladrilhos já tínhamos
pesquisado) e, enquanto eu mantinha a luz da lanterna
virada para baixo, Príncipe esquadrinhou o interior do
fogão, cuja porta já estava aberta. Lá dentro, porém, só
havia fuligem, poeira e teias de aranha.
— Nada — soprou o gordo detetive, guardando a lupa
no bolso do paletó do pijama. — Não adianta, Lula! A
polícia já procurou em todos os lugares!
— O aquecedor do banheiro social — sugeri. — Sua
mão é menor do que a do inspetor Mendonça.
Fomos para o banheiro (onde já tínhamos examinado
até o vaso sanitário) e também demos uma busca no miolo
do aquecedor. Príncipe enfiou a mão por um buraco e tateou
qualquer coisa lá dentro, por cima do “piloto”. Era a
“serpentina”, por onde passava a água que devia ser
aquecida.
— Tem um papel aqui em cima — anunciou ele,
triunfante.
— Shiu! Não grite! Tire para fora!

— 105 —
Ele continuou a tatear, pelejando para apanhar o tal
papel. Por fim, sussurrou:
— Acho que rasgou um pedacinho. Estava preso entre
os ferros.
— Não importa! Tire o resto para fora! Vai ver que é
dinheiro!
Não era, não. A mão de Príncipe saiu do aquecedor,
armada com um pedacinho de papel de jornal, rasgado e
amarelecido pelo tempo. Aquele recorte devia ter sido
tirado de um jornal bem antigo.
— Suspenda a luz — pediu Príncipe. — Vamos ler o
que diz. No mínimo, tem o nome do assassino!
Quase que tinha, mesmo. De um lado, o recorte de
jornal falava numa loja de roupas feitas, mas, do outro lado
(que era o que nos interessava) tinha uma notícia
encabeçada por uma manchete em letras grossas:

“PROCURADO PELA POLÍCIA O ASSASSINO DO


CÚMPLICE”

Emocionados, eu e Príncipe lemos a reportagem, à luz


da lanterna elétrica. Era uma notícia de um jornal qualquer,
dizendo que a polícia local (não dizia de que local) estava à
procura de um perigoso ladrão de automóveis e
contrabandista de tóxicos, que tinha assassinado um
comparsa a facadas e fugira daquele Estado. A polícia
estava à procura do bandido, mas acreditava que ele tivesse
fugido para Brasília ou para a Guanabara, onde sua
quadrilha tinha ramificações.
— Puxa vida! — exclamei. — O assassino do comparsa
deve ser o mesmo assassino do faxineiro! Ele veio para a
Guanabara!
— Não sei por que deve ser o mesmo — disse Príncipe.

— 106 —
— Você não entende, seu bobo? Está na cara! Severino
sabia que o fugitivo estava aqui no Edifício Mattews e tinha
esta prova contra ele! Então, ele extorquia dinheiro ao
bandido, para não o denunciar à polícia! Por isso, o bandido
queria matar o faxineiro... e matou-o, aproveitando a
discussão dele com “seu” Baltazar! Puxa vida, Príncipe! Já
conhecemos o móvel do crime!
Ele estava muito pálido, à luz da lanterna elétrica, e
tinha os olhos arregalados, por trás dos óculos de aros de
ouro.
— Você tem razão, Lula! O nosso assassino é o fugitivo
cuja cabeça está a prêmio!
— A cabeça dele não está a prêmio. Aí não fala nada
disso. O jornal só pede que os leitores ajudem as
autoridades a encontrar o delinquente. Mas, para a Turma
do Posto Quatro, não interessa que haja recompensa ou não.
— Pois é. E olhe o nome do delinquente, Lula! Só pode
ser o inventor maluco do segundo andar!
O nome do fugitivo de alguma parte (ou melhor, o
apelido) era “Mário Professor”!

— 107 —
.CAPÍTULO III

ONDE CIDINHA DESAPARECE

Nossa investigação acabou ali. Não havia mais nada, no


recorte de jornal, que nos ajudasse a identificar o assassino;
nem sequer ficamos sabendo de que cidade do Brasil era
aquele jornal. Guardei o papelzinho no bolso e saímos,
silenciosamente, do apartamento 302, deixando a porta de
serviço fechada apenas pelo trinco. Príncipe voltou para o
apartamento dele, no último andar do prédio, e eu fiquei no
oitavo. Tínhamos combinado entregar o recorte de jornal ao
inspetor Mendonça, logo depois do jogo contra o Olímpico,
no campo de futebol de praia, em frente à Rua Santa Clara.
O jogo começou bem para o Atlântica, na manhã
seguinte, às oito e meia. Como se tratava de um amistoso, o
vencedor seria o time que primeiro fizesse seis gols. Nos
primeiros quinze minutos não houve abertura de contagem.
Cidinha era o juiz e nossa defesa (um pouco ajudada pela
garota, que marcava os impedimentos) conseguira evitar o
avanço da linha do Olímpico, onde havia jogadores mais
parrudos do que os nossos.
A equipe do Atlântica F. C. era a seguinte: Carlão
(reserva); Brucutu e Bira (reserva); Maroto (reserva), Lúcio
e Tunico; Lula, Zico, Tarzan, Cisquinho (reserva) e Pavio
Apagado. A equipe do Olímpico jogava com Gorila;
Frankestein e Massa-Bruta; Golias II, Paredão e Peito-de-

— 108 —
Aço; Sarrafo, Destróier, Super-Homem, King-Kong e
Canhotão. Por aí vocês já viram que não era mole! Se não
fosse Cidinha segurar o Alberto Super-Homem no apito, ele
já teria marcado uma porção de gols! Carlão é um
“frangueiro”.
Mas, quando a parcialidade do juiz se tornou evidente
(e os assistentes começaram a gritar ‘‘Juíza ladrona!” o
treinador do Olímpico exigiu que o árbitro fosse substituído
por um banhista, amigo dos dois clubes, que já fora
massagista do Flamengo. Cidinha conformou-se e entregou
o apito. Daí em diante, o panorama do jogo se modificou e
o Atlântica acabou levando uma “lavagem” de 6 a 1. Nosso
tento de honra foi consignado por Pavio, num chute
indefensável de canhota, quando o escore já estava 5 a 0.
Pavio é um craque e poderia ter feito, sozinho, meia dúzia
de gols, mas não estava jogando bem naquele domingo.
Numa hora em que ele me passou a bola e eu “furei”,
chutando a areia, voltamos juntos para o nosso meio-
campo. O crioulinho tinha lágrimas nos olhos.
— Já sei — disse eu, irritado. — Era um gol feito! E
daí?
— Não é isso — respondeu ele, baixando a cabeça. —
Eu também não centrei bem. Tou... tou muito
envergonhado, Lula! Mas é por outra coisa...
Não tive tempo de apertá-lo com perguntas sobre a
arma do crime, porque a bola já estava em jogo outra vez.
Isso aconteceu no meio da peleja, justamente quando vi os
três espectadores extras que nos observavam com profundo
interesse. Eram os três maiores suspeitos do Edifício
Mattews: o Dr. Aparício, oDr. Ezequiel e “seu” Karlovski!
Até aquele dia, nenhum deles assistira às exibições do
Atlântica F. C., nem demonstrara gostar de futebol de
praia... Mas ali estavam os três, lado a lado, com os olhos

— 109 —
fixos em mim, acompanhando todas as minhas jogadas e
me aplaudindo cada vez que eu chutava na trave! Aquilo
era muito esquisito... Comecei a suar, dentro da camisa
vermelha e branca, embora não me empenhasse nas bolas
divididas. Que será que aqueles três prováveis assassinos
estariam pensando? Por que olhavam para mim com um
sorriso malicioso?
Então, me lembrei do recorte de jornal que tinha no
bolso do calção. Eu dormira com aquela prova debaixo do
travesseiro e esperava não me separar dela, até poder
entregá-la ao inspetor Mendonça. Será que o matador do
faxineiro sabia disso? Não, não podia saber..., mas, agora,
aquele papel talvez me ajudasse a descobrir qual dos três
matara Severino! Eles estavam de olho em mim e isso era
muito intuitivo...
O jogo estava quase acabando (com 5 a 1 no placar de
areia), quando driblei Golias II e Frankestein, safei a canela
e chutei para fora, fingindo que perdia o equilíbrio e me
agarrava ao bolso do calção. Habilmente, puxei para fora o
recorte de jornal e deixei-o cair na areia, olhando para o
outro lado, como se não tivesse visto nada. Eu tinha caído
aos pés dos três espectadores atentos (que estavam sentados
no paredão) e, com o canto do olho, vi que eles se
inclinavam para a frente, as butucas pregadas no pedacinho
de papel impresso...
— Ei! — gritou Gorila, o goleiro do Olímpico.
— Você perdeu esse treco! É um anúncio, não é?
— Puxa vida! — exclamei, em voz bem alta.
— Que perigo! Este recorte de jornal é uma prova que
vale ouro! Não posso perdê-lo!
E limpei o papelzinho, com gestos nervosos,
guardando-o no bolso outra vez. O jogo prosseguiu e
acabou cinco minutos depois, quando o juiz apitou

— 110 —
longamente e a equipe do Olímpico começou a pular e a
gritar de contente. Não é sempre que o Olímpico enfia 6
gols nas redes do Atlântica; isso só acontece quando Mário
Girafa não é o arqueiro.
Cidinha e Príncipe tinham assistido à peleja, sentados
perto dos três espectadores extras, e também olhavam para
eles com expressão de desconfiança. Acabado o jogo, eu,
Carlão e Pavio fomos para junto deles, cabisbaixos,
abatidos pela derrota.
— Vencer não é importante — sentenciou uma voz
risonha. — O que interessa é competir!
Era o Dr. Ezequiel, o advogado, mostrando os dentes de
lobo. O síndico e o russo também sorriam, com a mesma
cara de gozadores. Fiquei com vontade de dizer uns
desaforos, mas um garoto bem educado não ofende os mais
velhos, pelo menos enquanto não tem certeza de que eles
matam os faxineiros.
— Demos azar — respondi. — Quando começar o
campeonato, a gente tira a forra. Perdemos o jogo, mas não
perdemos a moral!
Eram dez e meia e o resto da nossa equipe já se
mandara. Príncipe perguntou se íamos para a garagem.
Respondi que estava com sede, e estava mesmo. Foi aí que
“seu” Karlovski ofereceu:
— Querem tomar alguma coisa na minha lanchonete de
Copa? Fica logo ali, na Bolivar. Eu “penduro” a conta, em
homenagem ao Atlântica...
Cidinha e Príncipe não queriam, mas eu e Carlão
aceitamos. O rosto de Cidinha estava tão pálido (de
contrariedade) que as sardas pareciam, moscas pousadas em
cima de seu narizinho.
— Se vocês vão com eles — disse a garota, mordendo
o lábio inferior — eu me mando para casa, com Príncipe!

— 111 —
Mas, depois, talvez vá até o Mattews, fazer uma visitinha...
Pensei numa coisa que me disseram e que não combina com
as outras coisas... Quando nos encontraremos outra vez?
Antes do almoço não dá.
— Depois da “bóia” — respondi, fingindo não perceber
a sua bronca. — Novo encontro, às duas horas da tarde, no
lugar do costume! Até lá, eu já terei ido ao lugar que vocês
sabem, entregar aquilo que vocês conhecem e que encontrei
naquele apartamento que vocês não ignoram...
Ninguém demonstrou entender a minha linguagem
cifrada, mas também ninguém fez comentários. Cidinha me
deu um beijo muito frio e partiu, pelo calçadão da avenida,
acompanhada por Príncipe. Pavio também não quis ir à
lanchonete e correu para o Mattews, dizendo que dona
Maria precisava dele. Ficamos só eu e Carlão, diante dos
três risonhos moradores do prédio.
— Vamos indo? — convidou o Dr. Aparício. — “Seu”
Karlovski não é muito de oferecer as coisas e não podemos
perder a oportunidade... O senhor vem também, Dr.
Sampaio?
— Natural — respondeu o advogado. — Não perdi um
lance do jogo de Lula e achei-o genial! Este menino será
um craque, quando crescer! Merece um brinde ao seu
talento!
E ele me abraçou, tossindo em cima do meu ombro. Os
outros dois homens também me deram os parabéns,
repetindo que “o que interessava era competir”. Depois,
fomos, a pé, para a lanchonete da Rua Bolivar, sentamo-nos
diante do balcão e comemoramos a derrota como se fosse
uma vitória. Depois de vários copos de milk-shakes, eu e
Carlão já nos sentíamos alegres e aceitávamos os abraços
dos três suspeitos sem fazer cara feia.

— 112 —
— Milk-shake é a melhor bebida — disse “seu”
Karlovski. — Ela tem a seu favor a proteína do leite, o
carboidrato do chocolate e a energia do açúcar. O resultado
é um alto valor calorífero, indispensável aos adolescentes
em fase de crescimento. Mas eu prefiro os refrigerantes
engarrafados, embora só valham pelo seu teor de açúcar. A
industrialização do refrigerante obedece a certas normas
que, se não forem cumpridas, fazem a garrafa explodir. Pelo
menos, é o que dizem.
Ficamos na lanchonete só até as onze horas, porque o
Dr. Ezequiel tinha que ir à delegacia e “seu” Karlovski
desaparecera, na cozinha da lanchonete. Carlão se despediu
e foi embora. Então, eu e o Dr. Aparício regressamos ao
Mattews, conversando amigavelmente. Falamos sobre o
crime da garagem, é claro, mas nenhum de nós aludiu ao
recorte de jornal que eu deixara cair na praia, para eles
verem.
Despedi-me do síndico no vestíbulo (onde estava a mãe
de Pavio) e subi para o oitavo andar. Ao saltar do elevador,
meti a mão no bolso do calção e não encontrei mais o
recorte de jornal! Vire o bolso do avesso e nada! Alguém
tinha me roubado a prova, num daqueles abraços de amigo-
urso!
Não era exatamente isso o que eu esperava, mas não
fiquei aborrecido. Pelo menos, agora, estava certo de que o
fugitivo de algum lugar, único interessado em destruir a
notícia do jornal, era um dos três suspeitos que tinham
assistido ao jogo e me abraçado, na lanchonete! E devia ser
muito hábil em “bater” carteiras! O diabo é que qualquer
um dos três podia ter me furtado o papelzinho! O assassino
era um dos três — mas qual?
Como era domingo, a Confeitaria e Panificação “Ao
Galo de Barcelos” (da qual meu pai era o gerente) estava

— 113 —
fechada e o velho não saíra de casa. Logo que me viu entrar,
ele me pediu que o acompanhasse ao seu quarto, pois queria
falar comigo em particular. Papai estava muito sério.
— Que foi que eu fiz? — perguntei, já meio assustado.
Ele fechou a porta, para que mamãe não nos ouvisse, e
falou severamente:
— Tu te meteste numa alhada, ó filho! Era o que eu
dizia cá comigo! Vocês não se emendam! Por que não
acabam com essa mania de praticar “operações” nos fins de
semana? Agora, são detetives... e estão em maus lençóis! E
eu, que sou teu pai, e preciso zelar por ti, devia te proibir de
continuar com essas investigações sobre o crime da
garagem!
— Mas... por quê? Aconteceu alguma coisa?
O velho estava mais furioso do que assustado.
Mas sua fúria não era contra mim, graças a Deus. Sua
voz era baixa e ameaçadora:
— O assassino do faxineiro... um peralvilho muito
atrevido... teve a audácia de me telefonar, agora há pouco,
com voz disfarçada, ameaçando quebrar a cara de meu
próprio filho! Por pouco tua mãe não percebia! Ouvi o
patife até o fim, para ver se o reconhecia, mas não
identifiquei o raio daquela voz! Imagina que ele mandou-
me prender-te cá em casa e aconselhar a Turma do Posto
Quatro a não se meter mais em camisas de onze varas! E ele
falava sério, Lula! Se continuares nessa brincadeira, pode
te acontecer alguma coisa desagradável! Esses malandros
não ameaçam em vão!
Fiquei triste, prevendo o pior.
— O senhor quer que eu pare, não é, papai? Devo ter
medo e... ?
— Vais parar o diabo que o carregue a ele! — vociferou
papai, e logo se arrependeu, baixando a voz: — Agora é que

— 114 —
vocês devem continuar firmes até desmascarar esse maldito
sem-vergonha! Se ele apelou para a grossura, é sinal de que
não se sente seguro! Vocês devem estar no caminho certo,
seus ladinos! E filho meu não é um marícas, que tenha medo
de pilantras de mau caráter! Vais continuar, sim, porque eu
quero! Agora, estou furioso com esse atrevido e faço
questão de saber quem é ele! Vai em frente, Lula! Mas toma
cautela, heim? Sempre que descobrires alguma coisa,
comunica-te com a polícia! Nenhum de vocês deve se meter
sozinho nos apartamentos dos suspeitos! Muita cautela, fé,
coragem... e pé na tábua! Mas trabalha direito, pá, que tua
mãe não deve desconfiar que estás a correr perigo!
Vocês já sabiam que meu velho é um português grosso
e quadrado, mas não sabiam que ele também é bacana.
Claro que ele temia pela minha segurança, mas não queria
que eu fosse um covarde... Quando a gente está praticando
uma ação nobre e justa, deve lutar até o fim, sem temer
coisa alguma, para que os homens maus não tomem conta
do mundo! Meu velho tem pouca instrução (porque não
pôde pagar o colégio), mas não é burro. É o homem mais
bacana que eu conheço!

***

Depois do almoço (ajantarado), a turma voltou a se


reunir, na garagem, para traçar novos planos. Apenas
Cidinha não apareceu na hora combinada. Passaram-se as
duas horas, as duas e meia, e minha namorada não aparecia!
Entretanto, revelei aos outros enturmados o sumiço do
recorte de jornal e a ameaça que papai recebera pelo
telefone. Príncipe ajeitou o bonezinho no alto da cabeleira
loura e fez as suas deduções:

— 115 —
— Se o assassino telefonou para seu apartamento,
pouco antes de você chegar, não pode ser o Dr. Aparício.
Você não disse que ele ficou no saguão, quando você subiu?
Ele não tinha tempo de pegar o telefone. E, na lanchonete,
esteve sempre ao lado de você e Carlão.
— É verdade — admiti. — Papai falou que tinham
ligado “agora há pouco”. Isso quer dizer que ligaram
minutos antes. O assassino só pode ser “seu” Karlovski! Ou
o Dr. Ezequiel! Mas, qual dos dois?
— Isso é o que temos que descobrir, Lula. Seu velho
tem razão. Em vista dessa ameaça, de agora em diante a
Turma do Posto Quatro não deve se separar! Vamos contar
tudo para a polícia e visitar os dois suspeitos, à procura do
recorte de jornal!
— A estas horas, o bandido já queimou a prova. Temos
que desmascará-lo de outro jeito. Talvez encontrando a
arma do crime...
E olhei fixamente para Pavio. Príncipe e Carlão também
o contemplaram, num silêncio tão ameaçador que o
crioulinho começou a chorar, de medo, de vergonha ou de
arrependimento.
— Você sabe onde está escondido o facão, não sabe,
Pavio? — perguntei, asperamente. — Por que não quer
dizer? Quem é que você está protegendo? O assassino, por
acaso, é mais seu amigo do que nós?
Aí, Pavio confessou, em voz baixa e entrecortada pelos
soluços:
— É! Tou protegendo minha mãe! Ela não quer que eu
conte nada para ninguém. A arma do crime tá com mamãe!
Tá, que eu vi!
Aquela declaração foi tão surpreendente que ninguém
disse nada, durante quase um minuto. Depois, Príncipe tirou
a lupa do bolso.

— 116 —
— Sua mãe matou o faxineiro? — perguntou, olhando
para o moleque através do vidro de aumento.
— Não — choramingou Pavio. — Se meu pai não
matou, minha mãe muito menos! Agora não adianta mais
esconder nada! Vou chamar mamãe e ela vai contar tudo
direitinho! Vocês têm que me perdoar, por eu ter ficado na
encolha. Mamãe tem medo que a polícia encontre mais essa
prova contra o velho...
Pouco depois, chamada pelo filho, dona Maria desceu
do vestíbulo. Trazia uma faca enorme, que tinha ido
apanhar no cochicho dos fundos, e que segurava na
pontinha dos dedos protegidos pelo avental. Era uma faca
afiada, com dois palmos de comprimento, e a lâmina tinha
manchas de sangue coagulado! Não havia dúvidas de que
era o facão com que tinham matado o faxineiro!
— Só a encontrei na manhã de sexta-feira — disse dona
Maria, mal contendo as lágrimas. — Estava na sala, caída
atrás do sofá. O sofá fica encostado à parede, por baixo
daquele basculante que dá para o saguão do edifício. O
assassino passou por ali e jogou a faca pelo basculante, para
botar as culpas em cima de Baltazar! Quando encontrei a
arma, na hora de varrer a sala, fiquei apavorada! E não disse
nada a ninguém. Mas Pavio fuxicou no baú e viu a faca... e
eu tive que lhe pedir segredo. A polícia está procurando
uma prova contra Baltazar e, se souber que o facão estava
lá em casa... Que é que eu faço, meninos?
Pavio chorava baixinho, agarrado a ela. Príncipe
examinou o facão com a lupa, tomando cuidado para não
lhe tocar, e suspirou:
— Que espeto, turma! É a arma do crime, sem dúvida!
Mas não parece ter impressões digitais.
— Não pode ter — disse eu. — O assassino usou
aquelas luvas de pelica. Mas não foi “seu” Baltazar quem

— 117 —
matou o faxineiro. Sabemos que não foi. O verdadeiro
culpado também jogou a faca pelo basculante, para
comprometer o pai de Pavio! Não chore, não, Pavio. Eu
desconfio que já sei quem é o criminoso!
— Que é que eu faço? — lamentou-se dona Maria. —
Não quero ficar com essa coisa horrível no meu baú! Eu
devia ter jogado a faca no buraco do elevador!
— Nada disso — falou Carlão. — Entregue-a à polícia.
A gente não deve complicar as coisas! Entregue a faca ao
inspetor Mendonça e conte tudo. A Delegacia de
Homicídios é um órgão especializado e tem prática dessas
coisas. Eles sempre acabam descobrindo a verdade.
Dona Maria fez uma cara de mártir, agarrou outra vez
no facão, com os dedos protegidos pelo avental, e subiu a
escada da garagem, com Pavio pendurado às saias. Logo
que eles desapareceram, chamei a atenção de Príncipe e
Carlão para a demora de Cidinha. Aquilo já estava me
assustando.
— Acho que ela não vem mais — disse Príncipe. —
Misterioso, hem? Cidinha desapareceu!
Senti um arrepio. Será que o assassino, além de ameaçar
papai pelo telefone, também tinha se virado contra minha
namorada? É claro que, se ele tivesse raptado Cidinha, ou
coisa que o valha, eu desistiria de persegui-lo e entregaria o
caso à polícia. Deus me livre de que Cidinha sofresse algum
atentado, por causa de minha mania de bancar o detetive!
— Vamos telefonar para a casa dela — sugeriu Carlão.
— Dona Nair deve saber de alguma coisa. Vai ver que
Cidinha está em casa, na maior folga.
Subimos ao vestíbulo, telefonamos e a mãe de Cidinha
disse que não sabia da menina. Ela saíra de casa à uma hora,
depois do almoço, dizendo que ia visitar uma senhora no

— 118 —
Edifício Mattews. Uma senhora que devia saber de algumas
coisas interessantes...
— Que senhora pode ser essa? — perguntou Príncipe,
desligando o telefone. — “Seu” Karlovski é viúvo e a
empregada dele não pode ser chamada de “senhora”... Essa
“senhora” que Cidinha falou só pode ser dona Almerinda, a
mulher do Dr. Aparício, ou dona Marta, a mulher do Dr.
Ezequiel! Isso, se não for dona Claudina Legrange!
Mas eu tinha todos os motivos para acreditar que
Cidinha desaparecera depois de visitar o apartamento do
advogado! Ou talvez ainda estivesse prisioneira de dona
Marta!

— 119 —
CAPÍTULO IV

AS LUVAS E A XÍCARA DE AÇÚCAR

Para não despertar suspeitas, eu queria ir sozinho ao


apartamento do Dr. Ezequiel, mas Carlão e Príncipe não
deixaram, alegando que também eram detetives e tinham
todo o direito de visitar os suspeitos. Além disso, Príncipe
era o único que usava bonezinho e lupa, sendo que esta
última podia ser de grande utilidade nas investigações.
— “Operação Torre de Babel” — lembrou Carlão, com
voz misteriosa. — Eu também estou nessa, “xente”!
— A turma toda está — acrescentou Príncipe. — Não
se esqueça do conselho de seu pai, Lula! De agora em
diante, a Turma do Posto Quatro deve andar sempre junta!
Já basta Cidinha ter andado separada! Deus permita que ela
ainda esteja conversando com dona Marta, dona Almerinda
ou dona Claudina Legrange! Deus permita!
Já passava das três horas da tarde quando tocamos a
campainha do apartamento 402. Esperamos um tempão, no
corredor, e tocamos outra vez. Será que não tinha ninguém
em casa? Carlão, que se afastara um pouco, voltou para
junto de nós, assobiando para disfarçar, e sussurrou:
— Jasmim está no apartamento dele, turma! Senti
perfeitamente que ele espiou pelo “olho-mágico” da porta
do 401! Isso quer dizer alguma coisa?

— 120 —
— Nada — respondi, também em voz baixa. — Se eu
morasse naquele apartamento vizinho e fosse curioso,
também espiaria... Por que será que o Dr. Ezequiel e dona
Marta não atendem? Será que eles fugiram para o exterior,
com passaportes falsificados?
Nos romances policiais que eu lera sempre havia um
casal de suspeitos que fugia para o exterior. Mas a porta do
apartamento acabou por se abrir e a mulher do advogado
apareceu, de cara amarrada, com uma faca enorme na mão!
Uma faca com a lâmina suja de sangue!
— Ah, são vocês? — fez ela, desfazendo a carranca. —
Entrem, meninos, entrem... A casa é nossa... Meu marido
saiu, para ir à delegacia ver se consegue soltar o pobre
porteiro, e só volta na hora da janta...
Eu, Príncipe e Carlão ficamos duros como estátuas, os
olhos arregalados e pregados no facão. Ao perceber o nosso
susto, a mulher sorriu e escondeu a faca atrás das costas.
— Desculpem... Que cabeça a minha! Eu estava
picando carne, na cozinha, e trouxe a faca na mão...
— Carne de quem? — perguntou Carlão, que sempre
fala sem pensar.
— Carne de quem? — repetiu dona Marta, dando uma
risada. — Que horror, meu jovem! Nós, aqui, só comemos
carne de boi. Filé-minhão, para ser mais exata... Estou sem
empregada, de maneira que sou eu quem faz a comida...,
mas, entrem! A que devo tão agradável visita?
Hesitamos um pouco, mas acabamos entrando, em fila
indiana, um com a mão no ombro do outro, como um
cortejo de cegos. A sala do apartamento era meio escura,
atapetada e mobilada com luxo e bom gosto; tinha até
cortinas nas janelas. Príncipe, encabulado, tirou o
bonezinho e olhou para mim de esguelha, esperando que eu
falasse. Carlão também ficou na dele.

— 121 —
— Viemos conversar um minuto com a senhora —
disse eu, criando coragem. — Cidinha não está aqui?
Pergunto só por perguntar...
— Quem é Cidinha? — indagou dona Marta, embora
soubesse muito bem quem era Cidinha. — Ah, sim! Aquela
menina bonita e inteligente, que me fez tantas perguntas
sobre costura e tricô? Não, ela não veio hoje aqui. Só
conversei com ela ontem à tarde e ensinei-a a reformar os
vestidos. Hoje em dia, as meninas precisam estudar e
aprender artes domésticas, também. Cada vez há menos
empregadas, cozinheiras, arrumadeiras... E como são
porcas e relaxadas! Não, Cidinha não veio aqui hoje. Por
quê? Ela lhes disse que vinha?
Percebi logo que a mulher do advogado estava
mentindo. Não sei por quê, mas percebi. Isso me assustou,
mas, ao mesmo tempo, me deu a certeza de que estava na
pista certa. Cidinha estivera ali e desaparecera!
— Não — apressou-se a dizer Príncipe. — Cidinha não
falou que vinha aqui, não, senhora. É que ela sumiu e a
gente está preocupada com isso.
Dona Marta fez-nos sentar no sofá, botou o facão em
cima de uma arca colonial que havia na sala e também se
sentou, numa poltrona.
— Não me diga! — exclamou, sacudindo a cabeça. —
Está vendo no que dá vocês se meterem a detetives? Todo
mundo sabe, no edifício, que a Turma do Posto Quatro está
investigando o crime da garagem! Se, realmente, o porteiro
não matou o zelador, como diz meu marido, o verdadeiro
criminoso pode fazer miséria com vocês! Está vendo? Eu
no lugar de vocês, desistia de brincar de detetive e deixava
a solução do caso para a polícia e para Ezequiel. Meu
marido já tem uma pista e foi falar a esse respeito com o

— 122 —
inspetor Mendonça. Amanhã, tudo estará esclarecido, se
Deus quiser!
— Nós queremos ver se esclarecemos tudo hoje —
retrucou Príncipe, rodando o bonezinho nas mãos
gorduchas. — Amanhã de manhã temos aula... e os estudos
estão em primeiro lugar! Viemos aqui para que a senhora
nos ajude a inocentar os suspeitos. Assim, por eliminação,
chegaremos ao culpado. Já visitamos os apartamentos do
prof. Vasconcelos, de “seu” Karlovski e de “seu” Legrange
e não encontramos nada contra eles.
O rosto feio e bexiguento de dona Marta ficou duro
como uma pedra.
— Aqui vocês também não encontrarão nada — disse
ela, com voz seca.
— Eu sei — acudi, disfarçando o mal-estar. — Pavio
falou que o Dr. Ezequiel também é suspeito, mas eu disse
que não é. E quero provar a Pavio que ele está enganado! O
Dr. Ezequiel é muito legal!
— Quem é Pavio? O filho do porteiro? Ora, aquele
moleque não sabe o que diz! Imagina! Meu marido é um
advogado famoso, muito conceituado! Vocês sabem que a
calúnia também é um crime, previsto no Código Penal? Se
eu quisesse, podia meter esse Pavio na FUNABEM, que é
o lugar dos menores perdidos e linguarudos!
— Não faça isso — gemeu Carlão. — Nenhum dos
enturmados suspeitam do Dr. Ezequiel. Mas precisávamos
visitar este apartamento, assim como visitamos os outros. A
senhora se incomoda de nos mostrar a casa toda?
— Claro que não me incomodo — disse a mulher,
acalmando-se. — Não guardamos esqueletos no armário...,
mas aquela menina, Maria Aparecida, já nos visitou ontem
e ficou satisfeita. Não tem importância... A casa é nossa...
O que é que vocês procuram?

— 123 —
— Nada de especial — disse eu, com um sorriso
amarelo. — Só queremos olhar as coisas por alto... e bater
papo com a senhora, já que seu excelentíssimo marido não
está...
— Se procuram luvas ou facões, não vão encontrar nem
uma coisa nem outra. Nós nunca usamos luvas nem... Bem,
eu tenho uma coleção de facas, fabricadas em Blumenau,
mas a série está completa. Nenhuma daquelas facas podia
ser usada no crime. Querem ver? O estojo está ali, em cima
da arca.
Era verdade. Pedi licença, levantei-me e fui olhar de
perto a tal coleção de facas. Compunha-se de uma dúzia de
lâminas, de vários tamanhos e feitios, espetadas numa caixa
de madeira envernizada. Na frente do estojo, via-se uma
gravação, em letras pretas, feita a fogo:

HAUPTMANN
INOX

Uma das ranhuras do estojo estava vazia. Faltava uma


faca!
— Se você está procurando a faca de cozinha que falta
— disse dona Marta, adivinhando o meu pensamento —
olhe para o facão que eu estava usando. É ele, não é?
Príncipe também se levantou, empunhou a lupa e
examinou a faca manchada de sangue, em cima do móvel.
Suas dimensões correspondiam à ranhura da caixa de
madeira; além disso, o cabo era igual aos outros, só um
pouquinho maior.
— A senhora e o Dr. Ezequiel são de Santa Catarina?
— quis saber Carlão.
— Não. Somos de Porto Alegre, conterrâneos do prof.
Vasconcelos. Mas só conhecemos o professor aqui no Rio.

— 124 —
Há três anos que viemos para a Guanabara, como devem
saber. Meu marido já era advogado, no Sul.
Enquanto conversávamos, fomos caminhando pelo
apartamento, sem que dona Marta nos detivesse. Assim,
entramos no quarto de dormir, também mobilado com luxo
e conforto. O aparelho de ar condicionado não fazia barulho
nenhum. Em cima de uma das duas mesinhas de cabeceira
vi o retrato de uma família. O homem era o Dr. Ezequiel,
mas a mulher gorda, que estava ao lado dele, não era dona
Marta, que era magra e musculosa.
Também havia uma garota de seus 15 anos no retrato,
uma garota que eu nunca vira antes.
— A família Sampaio de Porto Alegre — anunciou a
mulher do advogado, aborrecida. — Este bidê é o de
Ezequiel e ele não quer se separar dessa relíquia... A
fotografia foi tirada no inverno de 66, à beira do Guaíba,
quando a primeira esposa de Ezequiel ainda era viva. Anita
morreu, num acidente de automóvel, no ano seguinte. Foi
depois disso que ele se casou comigo e viemos para o Rio.
Essa mocinha é a filha única do primeiro matrimônio de
meu marido. Chama-se Júlia e, hoje em dia, está casada com
um militar e mora em Caxias do Sul. A polícia ainda não
viu esse retrato, mas já sabe que Ezequiel era viúvo quando
se casou comigo. Vocês acham que isso nos compromete?
— concluiu ela, sorrindo sem vontade. — Mesmo que não
fôssemos casados legalmente, nem por isso seriamos
assassinos, não é mesmo?
Apanhei a lupa nas mãos de Príncipe, em silêncio, e
examinei a fotografia, ampliada pelo vidro de aumento. O
rosto do Dr. Ezequiel estava diferente, de barbicha de bode,
mas via-se que era ele mesmo. A mulher gorda também era
antipática pra chuchu! Notei um detalhe, no retrato, que me
arrepiou, mas não demonstrei nenhuma emoção.

— 125 —
Recoloquei a moldura em cima da mesinha de cabeceira
(que dona Marta chamava de “bidê”), devolvi a lente a
Príncipe e olhei ao redor, para o quarto silencioso e
aconchegado. Também havia cortinas na janela fechada. E
o ambiente estava fresquinho.
— Aqui não tem nada suspeito — concluí. — Vamos
até a cozinha, ver a carne que dona Marta estava picando?
Eu conheço carne de boi.
Minha voz estava ligeiramente trêmula. Fomos para a
cozinha e vimos um pedaço de filé-minhão, sangrento,
numa tábua, em cima da pia. Era carne de boi, mesmo; não
era nenhum pedaço do corpo de Cidinha.
— Aceitam um refresco? — ofereceu a dona da casa.
— Devo ter guaraná na geladeira... É muito gostoso, feito
em Porto Alegre.
Eu e Príncipe recusamos o refrigerante, mas Carlão
aceitou uma garrafinha. Enquanto ele bebia, Príncipe pediu
licença e abriu o armário de fórmica. Entre as latas de
gêneros alimentícios (todas com rótulos e florzinhas) havia
uma que dizia: “AÇÚCAR”. Lembrei-me de uma coisa e
abri a lata. Tinha mais de um quilo de açúcar no fundo.
— Vocês esperavam encontrar a lata vazia, não é? —
disse a dona da casa, um pouquinho nervosa. — Acontece
que já comprei três quilos de açúcar na loja de seu pai, Lula.
Na noite de quinta-feira, estava sem açúcar em casa... por
isso, pedi um pouco £0 nosso vizinho Jasmim..., mas, na
sexta-feira de manhã, tratei logo de comprar três quilos, dos
quais já gastei dois. Está explicado, senhor detetive?
— Sim — disse eu, pensativamente. — Está explicado.
E prometi a mim mesmo comprovar, com papai, a
compra dos três quilos de açúcar. Eu já sabia que os
Sampaio eram fregueses da Confeitaria e Panificação “Ao

— 126 —
Galo de Barcelos”, onde compravam fiado, para pagar no
fim do mês.
Continuamos a visita ao apartamento, mas não
entramos no quartinho dos fundos, que dona Marta afirmou
estar transformado em arquivo de documentos e depósito de
velharias.
— Meu marido é que tem a chave — disse ela, sorrindo.
— Ezequiel não gosta que eu leia os seus vade-mécuns... É
tão ciumento, o meu querido maridinho! Mas posso lhes
garantir que a arma do crime não está aí dentro... Nem nada
semelhante. Parece-me que chega, não chega, meus
valentes detetives?
Respondi que chegava e despedi-me da irônica e feiosa
senhora, disfarçando a repugnância que sentia por ela.
Carlão e Príncipe também se despediram e saímos para o
corredor. Logo que a porta do 402 se fechou, sussurrei, ao
ouvido de Príncipe:
— Vamos até o basculante do quartinho, que dá para o
corredor de serviço! Pode ser que Cidinha esteja presa
naquele falso depósito!
— Você suspeita da mulher? — perguntou Carlão,
empalidecendo. — E eu que bebi aquele guaraná todinho!
Quem sabe estava envenenado? Olha aí, turma! Já estou
sentindo dor de barriga!
Era pura sugestão. Fomos até o corredor da entrada de
serviço do apartamento 402, onde havia um basculante que
dava para o quarto dos fundos, e eu trepei nos ombros de
Carlão, encostando o nariz à persiana. O quarto estava
escuro como carvão e não dava para ver nada.
— Cidinha? — chamei, em voz baixa. — Você está aí?
Responda!

— 127 —
Não estava. Ou, pelo menos, não me respondeu. Escutei
durante um longo minuto e não ouvi coisa alguma. Então,
desisti e saltei para o chão.
— Você pensa que Cidinha foi aprisionada por dona
Marta? — perguntou Príncipe, assustado, as bochechas
mais brancas do que o leite.
— Pior do que isso — respondi. — Penso que ela pode
ter sido assassinada! Os gangsters sempre matam as pessoas
que sabem demais!
— Essa não!
— Mas, como não tenho provas, não vou chamar a
polícia. Um detetive deve agir sempre dentro da lei!
— Se você não tem provas — sussurrou Carlão — por
que essas ideias de jerico?
Olhei gravemente para os dois e respondi, mal contendo
o tom de triunfo:
— Porque descobri duas coisas estranhas, nesse
apartamento, que não combinam com aquilo que sabemos!
O Dr. Ezequiel, atualmente, pode não ter luvas em casa,
mas já as usou! Eu examinei, com a lente, aquele retrato
tirado em Porto Alegre durante o inverno, e o suspeito está
de luvas pretas!
— Oh! — exclamou Príncipe, arregalando as butucas.
— Só se nota através da lupa, mas suas mãos estão
escuras! Ora se ele usava luvas em Porto Alegre, de onde
veio há três anos, é natural que ainda possua um par. Um
par de luvas de pelica preta, por exemplo... Mas isso é
apenas uma suposição, ainda não é uma prova. Antes de
mais nada, preciso obter uma prova contra esse casal que
fugiu do Rio Grande do Sul!
Naquela altura dos acontecimentos, eu tinha quase a
certeza de que o recorte de jornal encontrado no aquecedor
do 302 pertencia a um diário qualquer de Porto Alegre! E

— 128 —
que fora o dr. Ezequiel que o roubara do bolso do meu
calção!

***

Depois de deixar meus companheiros no vestíbulo do


edifício, subi ao oitavo andar e entrei correndo em casa.
Papai tinha saído.
— Para onde é que ele foi? — perguntei a mamãe. —
Ele só vai depor, na delegacia, amanhã, às duas horas! Papai
faz parte do terceiro grupo de testemunhas!
— Seu pai não foi à polícia — respondeu mamãe,
desconfiada. — Por que você está tão afobado, Lula? Seu
pai deve estar na confeitaria, conferindo o estoque, como
faz todos os domingos. Só vai voltar à tardinha.
— ótimo! Um beijo para a senhora!
E me mandei para a Rua Barata Ribeiro. Príncipe e
Carlão viram-me passar correndo pelo vestíbulo, mas eu
apenas acenei, dando a entender que estava com pressa, e
saí como um foguete. A Confeitaria e Panificação “Ao Galo
de Barcelos” não ficava longe. Encontrei papai na loja, com
as portas de aço fechadas, menos aquela por onde ele tinha
entrado.
— Que raio tens tu? — perguntou o velho, ao ver a
minha afobação.
— Nada — respondi, despistando, pois não queria que
ele ficasse preocupado com as minhas últimas descobertas.
— Cidinha não aparece, mas deve estar por aí... Quero
apenas lhe perguntar uma coisa, papai.
— Pois pergunta, pá!
— Dona Marta Sampaio sempre faz compras aqui na
casa, não é? O senhor toma nota de tudo?
Ele olhou para mim com expressão de espanto.

— 129 —
— A mulher do advogado? Pois, pois! São nossos
fregueses há três anos, desde que chegaram ao Mattews.
Dona Marta paga por mês, porque eu lhe forneci uma
caderneta. Que é que estás a magicar, ó filho? Pelo amor de
Deus, não me digas que aqueles dois estafermos... ?
— Veja a caderneta deles — pedi. — Quero saber se
dona Marta comprou três quilos de açúcar, na sexta-feira de
manhã, logo depois do crime!
Meu velho correu à gaveta do balcão e tirou para fora
uma lista, onde copiava tudo quanto anotava nas cadernetas
dos fregueses.
— Está certo — disse, depois. — Cá temos os três
quilinhos de açúcar. Dona Marta sempre compra três quilos,
no princípio da semana, que lhe dão para sete dias. Na
segunda-feira, comprou os três quilos do costume.
Na segunda-feira e não na sexta! Aquela revelação me
deixou gelado. Mas não disse nada a papai. Se dona Marta
comprara três quilos de açúcar na segunda-feira (três dias
antes do crime) e esse açúcar sempre lhe durava sete dias,
era sinal de que, na quinta-feira (dia do crime), ainda devia
ter mais de um quilo na lata de mantimentos! Ora, se ela
possuía tanto açúcar na lata, por que fora pedir uma xícara
emprestada, ao cabeleireiro do 401?
Agradeci a papai, fingindo que estava tudo certo, e me
arranquei de volta para o Edifício Mattews. Dessa vez, não
vi Príncipe nem Carlão no vestíbulo da nossa Torre de
Babel. Esperei por eles, durante meia hora, refletindo sobre
as minhas descobertas. O Dr. Ezequiel usava luvas... dona
Marta tinha açúcar em casa... Depois de tantas surpresas, eu
estava convencido de que o advogado matara o faxineiro,
na garagem, enquanto a mulher dele falava com Jasmim, no
4.° andar! Restava destruir o álibi do culpado! Sim, porque,
se dona Marta estabelecera um álibi para ele, com o

— 130 —
testemunho do cabeleireiro, era preciso provar que esse
álibi fora forjado e não era tão perfeito quanto parecia! Mas,
como provar o golpe? Jasmim afirmara à polícia que ouvira
a voz do Dr. Ezequiel, no interior do apartamento 402,
enquanto conversava com dona Marta! E o faxineiro fora
esfaqueado justamente quando eles conversavam, lá em
cima! Como é que o assassino podia estar em dois lugares
ao mesmo tempo? Como?
Será que vocês já manjaram o golpe do advogado?
Confesso que eu só descobri tudo quando vi aquela
máquina nas mãos de dona Marta.

— 131 —
CAPÍTULO V

O TÚMULO DE CIMENTO

Depois da longa espera (mais de meia hora) vi dona


Maria e Pavio entrarem no vestíbulo, vindos da rua. Eles
tinham ido à delegacia, entregar a faca suja de sangue, e
estavam mais aliviados. Entre outras coisas, o inspetor
Mendonça lhes dissera que “seu” Baltazar seria» posto em
liberdade no dia seguinte.
— A polícia não ficou bronqueada? — perguntei. —
Afinal, a senhora escondeu a arma do crime este tempo todo
e prejudicou as diligências...
— Foi o que o delegado falou — disse dona Maria. —
Ele até quis me prender, mas o Dr. Ezequiel estava lá e
conseguiu convencê-lo de que eu sou apenas uma
ignorante... Por isso, me deixaram voltar para casa. Agora,
eles suspeitam que aquele mulato do 702, “seu” Valdemar,
é que seja o assassino. Mas, mesmo que não seja, vai ser
processado como traficante de maconha. A cana é dura para
esses miseráveis!
— O Dr. Ezequiel é muito legal — comentou Pavio. —
Não suspeita mais dele, Lula. Foi ele que fez o delegado
soltar mamãe.
Preferi não discutir. Antes de mais nada, eu precisava
entrar naquele quartinho do 402, para ver se o cadáver de

— 132 —
Cidinha não estaria lá dentro... Só de pensar nessa
possibilidade, meus cabelos ficavam em pé!
— Vocês, por acaso, viram Carlão? — indaguei.
— Vimos, sim — respondeu dona Maria. — Ele e o
filho do Dr. Mattews estão jogando bola de gude na
pracinha. Não creio que venham para aqui tão cedo.
— Azar deles — rosnei. — Sou um detetive melhor do
que esses dois inconscientes! Onde se viu Sherlock Holmes
jogar bola de gude?!
— Ainda mais, de bonezinho e “lurpa” — acrescentou
Pavio.
Despedi-me de mãe e filho e entrei no elevador social,
sem lhes revelar os meus projetos. Dona Maria também
gostava muito de Cidinha e ficaria ainda mais preocupada,
se soubesse daquilo que eu sabia...
O elevador me deixou no quarto andar, naquele mesmo
corredor deserto e sombrio. Apesar de serem apenas quatro
e meia da tarde, a luz do dia não chegava até ali. Avancei
cautelosamente até a porta do 402 e encostei o ouvido à
fechadura. A voz do Dr. Ezequiel soava, na sala do
apartamento:
— Meritíssimo Sr. Juiz... Senhores membros do júri...
Pelo jeito, ele estava se preparando para alguma defesa
no tribunal. Fiquei escutando, fascinado, o discurso que ele
fazia. Mas, de repente, a voz dele foi ficando mais aguda e
mais rápida, cada vez mais rápida, até que parecia a voz do
Pato Donald dando a bronca no Mickey Mouse! Nisso, ouvi
passos leves, no corredor, e voltei o rosto, sobressaltado. E
ali estava o próprio Dr. Ezequiel, olhando para mim de cara
feia! O advogado tinha subido pela escada, vindo da rua!
Como é que podia, se eu acabara de ouvir a sua voz dentro
do apartamento?!

— 133 —
— Olá, garoto curioso! — disse ele, agarrando-me por
um braço. — Escutando atrás da porta, hem? ótimo! Eu
queria mesmo falar com você... sozinho!
Reparei que a voz dele já não estava rouca, como se ele
tivesse se curado milagrosamente do resfriado. Na mesma
hora, a porta se abriu e apareceu dona Marta, com uma
espécie de maleta nas mãos. Olhei para aquela caixa (onde
se via dois carretéis de fita magnética e um alto-falante) e
compreendi tudo. Era uma máquina de gravar, que o
advogado usava para reproduzir os seus discursos e
aperfeiçoar as suas inflexões!
— Então, foi isso! — exclamei, sem poder segurar a
língua. — Foi por isso que Jasmim ouviu a sua voz, quando
o senhor não estava aqui!
O Dr. Ezequiel tapou minha boca com a mão e
empurrou-me para dentro do apartamento. E dona Marta
fechou a porta.
— Você não devia ter mexido no gravador —
repreendeu o marido, dirigindo-se à mulher. — Agora, este
moleque descobriu tudo! Temos que fazê-lo desaparecer
também!
Fiquei apavorado. Mas, mesmo depois que o homem
tirou a mão de minha boca, não tive coragem de gritar. Só
olhava para os dois bandidos e tremia como varas verdes.
Cadê a voz?
— A menina continua quietinha — disse dona Marta.
— Você já pensou no meio de nos livrarmos, também, deste
intrometido? É preciso matá-lo, para que ele fique de bico
calado!
— Claro. Logo mais, depois do jantar, vamos levar os
dois para a obra da Rua Raimundo Correia. Onde cabe um,
cabem dois. Espero que ele não tenha dito aos seus

— 134 —
amiguinhos que vinha para aqui... Você falou, seu
moleque?
— Não, senhor — respondi, com voz esganiçada. —
Não falei para ninguém! Mas já sei que foi o senhor que
matou Severino! O senhor tem luvas, naquele retrato tirado
em Porto Alegre!
O bandido olhou para a mulher com expressão de raiva.
— Sua idiota! Você mostrou o retrato para ele? Aquilo
deve ser destruído, antes que a polícia apareça! Imagine se
ele tivesse tempo de dizer alguma coisa ao delegado!
Felizmente, estive na delegacia e sei que não houve
nenhuma denúncia. Mas temos que calar a boca desses dois!
E ele tirou o cachecol. Vi, então, que o seu pescoço
estava arranhado e manchado de mercúrio-cromo. Também
tinha outros arranhões no queixo, que deviam ter sido feitos
pelas unhas de Severino, ao lutar com ele na garagem. Quer
dizer: ele não estava resfriado coisa nenhuma; tinha botado
aquele cachecol só para esconder os arranhões.
— Foi o senhor quem matou o faxineiro, não foi? —
insisti.
— Você ainda tem dúvidas? — rosnou ele, fazendo um
sinal com a cabeça na direção da mulher. — Vocês são uns
moleques muito atrevidos, que meteram o nariz onde não
deviam e vão pagar por isso! Eu estava de olho em vocês e
sabia que vocês iam acabar descobrindo tudo! Não adiantou
nada telefonar para seu pai, ameaçando-o! Aposto que você
desobedeceu às ordens de seu pai e continuou bancando o
detetive! Mas, agora, a brincadeira acabou! Claro que fui eu
quem matou aquele chantagista! Você já deve saber por
quê. Ele estava me extorquindo dinheiro, porque sabia que
eu tinha fugido do Rio Grande do Sul, depois de liquidar
um traidor! Sim, eu sou o “Mário Professor”, chefe daquela
gangue de contrabandistas de Porto Alegre, que teve de

— 135 —
fugir para o Rio com a polícia nos calcanhares! Marta me
acompanhou, porque minha verdadeira mulher preferiu me
abandonar! E, dois anos depois de instalado neste edifício,
vem esse faxineiro e descobre a minha verdadeira
identidade! Não sei como, ele encontrou aquele recorte do
jornal “Zero Hora”, de Porto Alegre, e reconheceu o meu
retrato!
— Não tinha retrato no jornal — murmurei.
— Tinha, sim! Quando vocês tiraram o recorte do
aquecedor, rasgaram o pedaço onde estava o retrato. Logo
depois que recuperei o recorte, tirando-o de seu bolso, fui
ao apartamento 302 e encontrei o pedacinho que faltava,
dentro do aquecedor. Agora, queimei tudo! Não há mais
nenhuma prova contra mim, porque as luvas não têm
etiqueta e o dinheiro não tem boca para falar...
Dona Marta tinha saído da sala, mas voltou logo,
trazendo a faca da cozinha.
— Vamos levá-lo também para o depósito — disse ela,
encostando a lâmina ao meu pescoço.
Meu Deus, como era frio aquele facão! Caí sentado no
sofá, com as pernas moles que nem geleia de morango.
— Por favor, não me matem! Foi com essa faca que o
senhor fez aquilo? Não foi com a outra?
— Que estupidez! — rugiu o advogado. — Foi com a
outra, é claro! Por isso é que minha mulher estava usando
essa, da coleção de Blumenau! Depois de matar Severino,
joguei o facão no cochicho do porteiro, para aumentar as
provas contra ele. Mas não adiantou! Vocês se meteram e
atrapalharam tudo! Maldita a hora em que encontraram as
luvas, no incinerador, e o dinheiro, no rodapé da parede!
Procurei o recorte de jornal e o dinheiro por toda a parte, no
apartamento 302, e não encontrei! E vocês, que são umas

— 136 —
crianças sem experiência nenhuma; encontraram! Tem
cabimento?
— Não somos umas crianças sem experiência —
repliquei, encolhido no sofá, sob a ameaça do facão que
dona Marta empunhava. — Somos a Turma do Posto
Quatro! E os outros enturmados também já sabem que foi o
senhor o culpado! Se eu não voltar lá para baixo dentro de
cinco minutos, eles chamarão a Delegacia de Homicídios
e...
— Mentira! Não tente me enrolar, seu atrevido! Você
acabou de dizer que mais ninguém sabe que fui eu! E
ninguém sabe, também, que você voltou a este
apartamento! Vai ser fácil livrar-me de você e sua
amiguinha! E, depois que vocês desaparecerem sem deixar
vestígios, continuarei livre, para acusar Valdemar e
despistar a polícia! O delegado é meu amigo!
— Chega de conversa — disse dona Marta, irritada. —
Vamos metê-lo no depósito e esperar a queda da noite.
Depressa, antes que apareça outra visita desagradável!
Num instante eles me agarraram e me arrastaram para
os fundos do apartamento. Tentei gritar, mas a mão do
advogado estava plantada na minha boca. Enquanto ele me
imobilizava, a mulher abria a porta do quartinho, sem largar
a faca. Depois, o Dr. Ezequiel apanhou umas cordas, dentro
do depósito, mandou-me sentar no chão e me amarrou os
pulsos e os tornozelos. Também colou um esparadrapo na
minha boca, que me impedia de gritar. Por fim, atirou-me
num canto do quartinho escuro e saiu, fechando a porta.
Daí a pouco, alguma coisa se moveu, na escuridão...
Meus olhos tinham se acostumado às trevas e pude enxergar
Cidinha, deitada no assoalho, também amarrada e com um
esparadrapo na boca. Seus grandes olhos azuis pareciam
dois faróis, arregalados e chamejantes.

— 137 —
— Hum-hum-hum? — perguntou ela, falando pelo
nariz.
Rastejei pelo assoalho, com muito sacrifício, até que
meus dedos alcançaram o rosto da menina. Não podia
desfazer os nós das cordas, mas consegui arrancar-lhe o
esparadrapo da boca. Imediatamente, ela começou a falar
como um papagaio:
— Ai, que medo! Você já sabe, Lula? Foi o Dr.
Ezequiel quem matou o faxineiro! Não sei como, mas foi!
Eu desconfiei de dona Marta, porque ela me disse que, na
hora do crime, o marido estava no quarto com gripe, mas, à
polícia, disse que ele estava na sala, à espera do chimarrão.
Além do mais, nenhum gaúcho que se presa bota açúcar no
chimarrão... Pensei nisso tudo, durante o jogo de futebol de
praia, e vim conversar com a mulher do advogado. Foi o
meu erro! Ela percebeu que tinha caído em contradição e
me prendeu aqui, dizendo que o marido ia dar um jeito em
mim, se eu falasse demais! Bem que eu ouvi você me
chamando, pelo basculante do corredor, mas não podia
responder... Agora, eles também prenderam você! Qual é o
jeito que eles vão dar em nós, Lula?
— Não sei. Eles têm um facão e nós não temos nem um
canivete! Minha esperança é que Príncipe e Carlão deem
pela nossa falta e chamem a polícia. Mas aqueles dois
detetives de araque estão jogando bola de gude!
— Eu tenho uma arma — choramingou Cidinha. —
Está na minha mão. É um alfinete que encontrei aí no chão.
Pensei que, se pudesse espetar dona Marta... Ela é muito
malvada, Lula! Mas um alfinete não serve para nada!
— Me dê isso — retruquei, apalpando a mãozinha dela.
— Vou ver se consigo romper as cordas com ele. Tudo, na
vida, tem a sua serventia... até mesmo um humilde alfinete!

— 138 —
Mas, por mais que pelejasse, não consegui nada. As
cordas eram muito duras e o alfinete entortou, mas não
entrou nas grossas fibras de cânhamo. Desanimado, preguei
o alfinete na gola do meu blusão e preparei-me para
esperar...
Passou-se uma hora. Eu já tinha me libertado da
mordaça, mas não podia alcançar o basculante, para gritar
por socorro. E, se gritasse ali embaixo, só dona Marta e o
marido é que podiam me ouvir... Permanecemos em
silêncio, eu e Cidinha, de mãos dadas, deitados um ao lado
do outro, à espera da morte... O bandido tinha dito que ia
nos matar!
Quando a escuridão aumentou, ouvi vozes, na área de
serviço do apartamento. Seria o casal, que vinha nos torcer
o pescoço? Não! Era a voz de Príncipe, falando com dona
Marta!
— Desculpe, minha senhora — dizia a voz dele. — A
senhora tem razão. Nem Lula nem Cidinha estão aqui.
Peço-lhe que nos perdoe o incômodo. Não é, Carlão?
Quando o Dr. Ezequiel voltar...
E as vozes se afastaram! O silêncio voltou, outra vez!
Agora, eu não tinha mais esperanças de nada!
Passaram-se mais algumas horas (duas ou três) e
ficamos com fome e com sede. Infelizmente, era domingo
e lá em casa não costumamos jantar aos domingos; por isso,
meus pais não podiam desconfiar de nada... Já era noite
quando a porta do depósito se abriu e o Dr. Ezequiel entrou,
seguido pela mulher. Dessa vez, ele trazia uma pistola na
mão! Seria a hora do nosso fuzilamento? Cidinha começou
a chorar.
— Quietinhos! — ordenou o bandido. — Já são oito
horas e podemos nos arriscar a sair, para o passeio até a Rua
Raimundo Correia. Acabei de apanhar uma duplicata da

— 139 —
chave da obra, e o vigia está sozinho. Vejo que vocês
tiraram as mordaças, mas compreenderam que não adianta
chiar... O primeiro que gritar leva um tiro! Estou sendo
claro?
E ele mostrou a pistola. Eu nunca tinha visto uma arma
tão feia, nem mesmo no cinema! Sentei-me em cima de um
maço de jornais velhos e fiquei imóvel.
— Por que o senhor é tão malvado? — choramingou
Cidinha. — Estas coisas não se fazem com as crianças! As
crianças são sagradas!
— Crianças! — exclamou o bandido, fazendo uma
careta. — Agora vocês são crianças, não é? Vocês
atrapalharam todos os meus planos! Se não fosse vocês se
meterem, a polícia já teria obrigado o porteiro a confessar!
E eu ficaria livre dê' uma vez! Agora, terei que carregar com
outros dois cadáveres na consciência! Mas é preciso! Não
posso deixar de fazer vocês sumirem da face da terra! Meu
plano foi muito bem bolado e daria certo, se não fosse
vocês! Há muito tempo que eu queria matar aquele
chantagista... desde que ele me obrigou a pagar-lhe a
primeira mensalidade... e a discussão que ele teve com o
porteiro deu-me a idéia de liquidá-lo naquela noite e pôr as
culpas em cima do crioulo. Fui muito inteligente, hem?
— Muito — concordei, de olho na pistola. — O senhor
foi genial!
Ele fingiu não ligar para o cumprimento. E prosseguiu,
empolgado:
— Marta é que se lembrou do gravador de fita
magnética. Também foi uma lembrança genial! Gravei
minha voz, chamando por Marta, e preparei-me para
liquidar o patife. Eram quase onze horas da noite quando
calcei as luvas, vesti uma capa, agarrei no facão da cozinha

— 140 —
e desci ao terceiro andar. Não podia usar a pistola, para não
fazer barulho...
— E o silenciador? — perguntei, lembrando-me dos
filmes de James Bond.
— Não tenho silenciador. Essa porcaria só se usa nos
romances de espionagem. Desci ao terceiro andar, chamei
Severino...
— Que horror! — interrompeu Cidinha. — Não conte
mais nada, seu malvado! Não quero ouvir essas coisas! Sou
uma menina sensível e...
— Eu quero ouvir! — retruquei. — Você é uma
molenga, isso sim! Conte tudo, doutor. O senhor está
provando que é muito inteligente. Conte, direitinho, como
foi que meteu a faca naquele chantagista!
O Dr. Ezequiel olhou para mim, desconfiado, e soltou
uma fungadela.
— Se você pensa que vai escapar, seu moleque, perca
as esperanças! Já sei! Você quer que eu confesse, para
depois me acusar! Mas você não ficará vivo, para servir de
testemunha! Seja como for, não vou contar mais nada!
Pronto!
— Não precisa contar — retorqui. — Já sei de tudo.
Enquanto dona Marta estabelecia o seu álibi, deixando a
máquina de gravar funcionando na sala e indo conversar
com o cabeleireiro, o senhor desceu à garagem e matou o
faxineiro!
— Desci ao apartamento onde ele dormia — emendou
o assassino. — Ninguém me viu. Então é que atraí Severino
à garagem e, aí, o matei! Primeiro, enfiei-lhe a faca nas
costas e...
— Chega! — gritou Cidinha, num ataque de nervos.

— 141 —
— Não chega! — gritei eu, irritado. — Uma facada não
chega, porque o faxineiro levou três ou quatro! E não
morreu logo!
Nessa altura, todos nós estávamos gritando.
— Calem a boca! — rugiu dona Marta, fechando a porta
do quartinho.
— Não, o faxineiro não morreu logo — continuou o Dr.
Ezequiel, em voz baixa. — Deixei-o agonizante, escondi as
luvas no incinerador e levei o facão, protegido por um
lenço, para atirá-lo pelo basculante do cochicho do porteiro.
Foi então que Severino soltou aqueles gemidos. Escondi-
me no saguão, enquanto a mulher do crioulo corria para a
garagem. Aí, ela começou a gritar por socorro. Subi
correndo a escada, mas acho que aquele russo do segundo
andar me viu passar, embora não pudesse me reconhecer...
Esperei na escada, entre o terceiro e o quarto andares, até
que o cabeleireiro e minha mulher pegassem o elevador. Só
então entrei em casa, desliguei o gravador, tirei a capa suja
de sangue e desci também. Meu álibi era perfeito! Todos
pensavam que eu estava no meu apartamento e...
— Basta — disse dona Marta. — Vamos fazer
desaparecer estes dois intrometidos! Agora, mais do que
nunca, eles não podem falar!
— Como é que vamos desaparecer? — perguntei, num
fio de voz, rasgando nervosamente uma tira de um jornal
velho.
Os dois monstros sorriram e piscaram o olho um para o
outro.
— Muito simples — respondeu o homem. — Eu sou o
advogado daquela firma que está construindo um arranha-
céu na Rua Raimundo Correia. A construção está apenas
começando e os operários ainda não terminaram os

— 142 —
alicerces. Vocês sabem como são feitas as fundações de um
edifício?
— Príncipe deve saber — respondi, enrolando e
desenrolando a tira do jornal. — Mas Príncipe não está aqui.
Ele sempre sabe de tudo.
— Mas nunca saberá como foi que vocês
desapareceram — disse o Dr. Ezequiel ameaçadoramente.
— Lá na obra, as formas de madeira e vigas de aço que
receberão o concreto armado ainda não foram cheias... Pois
eu vou meter os corpos de vocês em duas daquelas valas e
cobrir com um pouquinho de cimento fresco... Amanhã, as
máquinas se encarregarão de jogar mais concreto no
estacamento, sepultando vocês dois! Não será agradável,
meus amiguinhos? Vocês serão enterrados num túmulo de
cimento e seus corpos nunca mais aparecerão! Vocês farão
parte da subestrutura de uma Torre de Babel!
Aquela revelação acabou por vencer Cidinha; ela
revirou os olhos e perdeu os sentidos. Mas eu aguentei
firme, porque era um detetive. Apesar do meu terror, pus-
me a pensar num meio de frustrar os planos maquiavélicos
do assassino... Como? Se eu pudesse me comunicar com
Príncipe ou Carlão..., mas não podia! Eles não sabiam que
nós estávamos ali!
— Para descer à garagem — disse ainda o Dr. Ezequiel
— teremos que passar pelo vestíbulo. Eu levarei a pistola
escondida no bolso. Se algum de vocês disser qualquer
coisa que me denuncie, matarei todo mundo! Todo mundo,
entendem? Vocês vão nos acompanhar até a obra, sem
despertar suspeitas, como se estivéssemos indo à delegacia.
Uma palavra qualquer... e eu atiro! Estou sendo claro?
— Claríssimo — respondi. — Mas Cidinha não pode
caminhar. Ela está dormindo. Por que não deixamos isso
para amanhã?

— 143 —
— Minha mulher se encarregará de fazê-la voltar a si!
Marta já foi enfermeira, no Sul.
Não sei se as enfermeiras do Sul usam esses processos,
mas acho que não. Dona Marta agarrou Cidinha pelos
cabelos e deu-lhe uma porção de tapas na cara! Na mesma
hora, a menina acordou e começou a chorar. O Dr. Ezequiel
também lhe recomendou silêncio, dizendo que devíamos
despistar qualquer pessoa que nos perguntasse qualquer
coisa. Depois, sob a ameaça da pistola, eu e minha
namorada fomos desamarrados e nos preparamos para sair
do Edifício Mattews e entrar no túmulo de cimento.

***

Na saída do quartinho, ainda abracei o Dr. Ezequiel,


pedindo-lhe que não nos matasse, mas não adiantou.
Descemos pelo elevador social, na frente do casal de
cúmplices. O advogado tinha posto outra vez o cachecol
(que lhe escondia os arranhões do pescoço) e mantinha a
mão no bolso do paletó, agarrada à pistola. Direitinho como
naquele filme de suspense, dirigido pelo Hitchcock, que eu
tinha visto no Roxy...
— Atenção agora — sussurrou o bandido, ao ver que
havia gente no vestíbulo. — Mantenham-se calmos e digam
que vamos à delegacia! Se disserem outra coisa, ou fizerem
um gesto suspeito, eu mato todo mundo!
Eu e Cidinha queríamos nos manter calmos, mas não
podíamos. Nossas pernas tremiam às pampas! Imaginem
quem estava no vestíbulo? Príncipe e Carlão! Se eu pudesse
dar a entender a eles que estávamos caminhando para a
morte..., mas não podia, porque, se dissesse alguma coisa,
o bandido daria tiros em todo mundo! Era preciso evitar
uma carnificina!

— 144 —
— Estávamos procurando vocês — disse Príncipe,
quando nos viu passar. — Para onde vão?
Cidinha ficou muda, de olhão arregalado, mas eu segui
o conselho do nosso raptor, que não perdia de vista nenhum
dos meus gestos.
— Vamos à delegacia — respondi. — Já sabemos que
foi “seu” Valdemar do 702 que matou o faxineiro. Vocês
devem esperar aqui, até nós voltarmos. Não é assim, Dr.
Ezequiel? Vamos apenas dar um passeio...
Eu sabia que “dar um passeio”, em linguagem de
gangsters, quer dizer “sair para ser assassinado”, mas
Príncipe não entendeu.
— É assim mesmo — confirmou o Dr. Ezequiel,
sorrindo. — Esperem por nós. Não demoraremos.
Cidinha abriu a boca, para dizer alguma coisa, mas dona
Marta puxou-a pelo braço e fez com que ela descesse a
escadinha da garagem. Eu e o Dr. Ezequiel descemos
depois. Príncipe e Carlão ficaram no alto da escada, com os
olhos arregalados pregados nas nossas costas.
O velho Chevrolet do advogado estava em frente à
rampa da saída. Entramos e o homem ligou o motor,
esperando um pouco para que ele esquentasse. Um minuto
depois, o carro começou a subir a rampa. Foi aí que o portão
se fechou com estrépito, bloqueando a passagem.
— Diabos! — rosnou o Dr. Ezequiel. — Quem
empurrou o portão?
O automóvel voltou a descer a rampa, de marcha à ré, e
parou no meio da garagem. O advogado saltou e foi abrir o
portão. Quando ele ia subindo a rampa, dona Marta gritou:
— Que história é essa? Olhe nas suas costas, Ezequiel!
Nisso, ouvimos um zunido e uma bolinha colorida
bateu, com toda a força, na cabeça do homem. Ele se voltou

— 145 —
para nós, espantado. Uma mancha de sangue apareceu na
sua testa.
— Esses malditos moleques! — rugiu, tirando a pistola
do bolso.
Eu também não tinha dúvidas de que fora Carlão que
atirara uma bola de gude na testa do bandido. Carlão devia
estar na rua, do outro lado do portão de ferro.
— “Operação Torre de Babel!” — gritou a voz de
Príncipe, ressoando na garagem.
Aquele grito de guerra parecia vir da escadinha da
garagem, mas ninguém sabia onde Príncipe se escondera.
Com a pistola em punho, o Dr. Ezequiel correu para a
escada. Mas não chegou a subir, porque um homem
apareceu lá em cima, com um revólver na mão. Era o
detetive cabeludo que ficara tomando conta do prédio.
— Não reaja — avisou ele, em tom autoritário. — É a
polícia! Se atirar, é um homem morto!
Então, o covarde assassino do faxineiro deixou cair a
pistola no piso da garagem e pôs as mãos na cabeça. E eu e
Cidinha demos dois tapas na cara de dona Marta (que estava
paralisada pelo susto) e saímos do Chevrolet. O pesadelo
tinha acabado.

— 146 —
EPÍLOGO

Com a prisão do casal de criminosos foragidos de Porto


Alegre, tudo ficou esclarecido, nos seus mínimos detalhes.
Nessa mesma noite, o Dr. Ezequiel Bento Sampaio (vulgo
“Mário Professor”) confessou, na Delegacia de Homicídios,
não só que matara o zelador do Edifício Mattews como
também que pertencia a uma nova quadrilha de
“puxadores” de automóveis, que roubava os carros no Rio
e em São Paulo para vendê-los noutros Estados. Na mesma
hora, “seu” Baltazar foi posto em liberdade e apareceu no
Mattews, muito contente, dizendo que, se não fosse a
Turma do Posto 4, ele seria vítima de uma terrível
conspiração, pois o Dr. Ezequiel fingia ser seu amigo, mas
queria ver a caveira dele... A volta do porteiro para a sua
mesinha do vestíbulo foi saudada por todos os moradores
do prédio, com expressões de simpatia e o Dr. Aparício (o
síndico) chegou até a fazer um discurso de boas-vindas,
entrecortado por fungadelas, devido aos seus ataques de
asma.
No dia seguinte, os jornais publicaram a história toda,
com fotografias do bandido e sua cúmplice, de “seu”
Baltazar, do inspetor Mendonça e da Turma do Posto 4. Só
então o público ficou sabendo que éramos nós os heróis da
novela. Alguns jornais chegaram a dizer que eu e Cidinha
tínhamos sido resgatados pela polícia já à beira do túmulo
de cimento, mas isso não é verdade; a verdade foi essa que

— 147 —
eu contei neste livro. Tudo acabou na garagem, quando o
detetive cabeludo prendeu os dois bandidos, que não
ofereceram resistência.
Aliás, Pavio Apagado devia ter entendido tudo, mas
ficou com uma dúvida, que eu esclareci:
— Não foi com a lupa que Carlão bateu na testa do Dr.
Ezequiel; foi com uma bola de gude. Logo depois de
perceberem que havia alguma coisa errada na atitude do
assassino, Príncipe e Carlão resolveram fechar o portão da
garagem e chamar o detetive cabeludo. E Carlão jogou a
bola de gude na cabeça do Dr. Ezequiel para ver se ele
perdia os sentidos. Mas, como a pancada não chegou para
derrubar o raptor, Príncipe deu aquele grito, atraindo-o para
dentro da garagem, para dar tempo ao detetive de aparecer.
A Turma do Posto Quatro agiu com grande serenidade e
presença de espírito, como sempre. E minha mensagem de
alerta foi perfeitamente interpretada por Príncipe, que
demonstrou ser um detetive de primeira classe, ao contrário
de Carlão, que só suspeitou do Dr. Ezequiel depois que
Príncipe lhe deu ordem para empurrar o portão da garagem.
— E um rabo tem mensagem? — foi o que Pavio
perguntou, de boca aberta.
— Claro que tem, seu bobo! Principalmente, naquela
ocasião. Quando eu abracei o Dr. Ezequiel, na hora de sair
do quartinho e descer à garagem, prendi aquele rabo de
papel nas costas dele, com o alfinete torto que Cidinha me
dera. Era o único jeito de chamar a atenção sobre o raptor.
Se você visse o Dr. Ezequiel com aquela tira de jornal
pendurada nas costas, não suspeitaria logo dele?
— Eu não — disse Pavio. — Por que havia de
suspeitar? Eu apenas ia dar risada. A gente bota rabo nos
outros para dar risada.

— 148 —
— Isso, porque você ainda não é um detetive de
primeira classe. Mas Príncipe, ao ver o advogado com
aquele rabo, percebeu logo que eu e Cidinha estávamos
sendo raptados e tínhamos botado o rabo no bandido para
chamar a atenção sobre ele. Felizmente, Príncipe entendeu
e tudo deu certo. O único perigo era que dona Marta visse
o rabo antes da hora, mas não viu porque ela e Cidinha iam
na frente e nós íamos atrás... Dona Marta só viu o rabo do
marido na hora que ele subiu a rampa e Carlão acertou
aquela bolada na cabeça dele. Bem que eu tinha dito a
Cidinha que nada é inútil, na vida; tudo o que existe sempre
tem a sua utilidade, até mesmo um alfinete torto e uma tira
de papel...
— Menos as coisas ruins — contestou Pavio. — As
coisas ruins não servem para nada!
— As coisas ruins também servem. Até o Mal que Deus
botou no mundo tem a sua serventia, porque, sem ele, o
Bem não podia existir...
— É mesmo — concordou Pavio. — Se só houvesse o
Bem, e a gente não visse a diferença entre ele e o Mal,
ninguém ligava para os crimes do Dr. Ezequiel... e papai
entrava de gaiato! Tem razão, Lula. Até o Mal é necessário,
para dar valor às pessoas que praticam o Bem!

***

Nessa segunda-feira não fomos a aula, mas os


professores não nos deram a falta, porque também estavam
entusiasmados com a nossa coragem. Toda a imprensa,
escrita e falada, botou a gente nas alturas, comparando a
Turma do Posto 4 aos “Quatro Homens Justos” de um
romance de Edgar Wallace, com a diferença de que nós
somos cinco e não tomamos o lugar da polícia. Como disse

— 149 —
Príncipe ao Chacrinha, no programa de televisão ao qual
comparecemos, a polícia deve ser respeitada e ajudada
pelos cidadãos, mas nunca substituída, porque, no fim das
contas, todos nós precisamos dela. O Chacrinha gostou
muito da gente, mas nossa entrevista não foi muito
brilhante, porque Cidinha estava falando demais e o
Chacrinha tapou-lhe a boca e pediu palmas para ela. De
qualquer maneira, aquela foi uma noite de glória! A
“Operação Torre de Babel” fora concluída com inteiro
êxito, o Dr. Ezequiel e dona Marta estavam presos e seriam
processados severamente, e mais uma vez a Turma do Posto
4 fora útil à coletividade, descobrindo o verdadeiro
assassino do faxineiro e levando a paz e o sossego aos
outros moradores do Edifício Mattews.
A última vez que visitamos o inspetor Mendonça foi
quando tivemos que depor, no inquérito da Delegacia de
Homicídios. Os detetives nos trataram com toda a
consideração, mandaram buscar sanduíches e refrigerantes
para nós, mas nos aconselharam a não entrar outra vez em
maus lençóis, investigando sozinhos os crimes misteriosos
da cidade.
— Da próxima vez — acentuou o inspetor Mendonça
— vocês devem comunicar tudo o que souberem à polícia,
para evitar outro rapto ou coisa pior! Mas, segundo espero,
não haverá outra vez!
— Não — disse Príncipe. — Vai ser muito difícil
ocorrer outro crime de morte no nosso edifício. Alguns dos
moradores são malucos, mas incapazes de matar uma
mosca...
— Menos o prof. Vasconcelos — lembrei eu. — Esse,
corta a barriga dos ratos e espeta borboletas com alfinetes!
Pode ser que a ciência aprove essas perversidades, mas a
Turma do Posto Quatro acha que matar os bichinhos é um

— 150 —
crime como outro qualquer! Os homens não devem abusar
da força e da inteligência que Deus lhes deu, usando o seu
poder contra os direitos dos mais humildes!
— Vocês tiveram sorte — concluiu o inspetor
Mendonça, encerrando o papo. — Se “Mário Professor”
usasse uma pistola de verdade, as coisas teriam se
complicado, para vocês e para nós. Mas, assim, não houve
tiroteio.
— Como? — perguntou Cidinha, arregalando o olhão
azul. — Aquela pistola não era de verdade?
— Não — revelou o gordo detetive, sorrindo. — Era
um brinquedo de matéria plástica. “Mário Professor” e
“Marta Maçaneta” não tencionavam matar vocês, mas
apenas assustá-los, junto ao túmulo de cimento, para que
vocês jurassem não dizer nada a ninguém... Ainda que eles
levassem vocês até o prédio em construção, não teria
importância, porque, na volta, nós os apanharíamos. Eu já
suspeitava deles e estava apenas à espera de um pretexto
para prendê-los.
Eu e Cidinha agradecemos ao chefe de turma da
Delegacia de Homicídios e ficamos com raiva dele. Como
não teria importância? Pelas dúvidas, era melhor que o caso
tivesse acabado assim!

FIM

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