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Luiz de Santiago

Operação
Jangadeiros

A Turma do Posto 4
Volume 24
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Operação
Jangadeiros

A Turma do Posto 4
Volume 24

Luiz de Santiago
(Hélio do Soveral)

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S235o Santiago, Luiz de. (1918-2001)

Operação Jangadeiros (A Turma do Posto 4:


Volume 24) / Luiz de Santiago (Hélio do Soveral). – Rio
de Janeiro: Ediouro, 1977.
106 p.

1. Literatura Brasileira Infanto-Juvenil. 2. Santiago, Luiz


de. I. Soveral, Hélio do. (1918-2001). II. Título. III. Série.

CDD 808.899282

Índice para catálogo sistemático:


Literatura Infanto-Juvenil
CDD 808.899282

Copyright © 2021
Ediouro

Impresso no Brasil

4
ÍNDICE

A Turma do Posto 4 .......................................................... 7

PRIMEIRA PARTE ............................................................. 9

O Mestre Desaparecido ................................................... 9

Capítulo I – A Carta da Velha .......................................11

Capítulo II – Príncipe Bota a sua Banca ................... 19

Capítulo III – A Vila dos Jangadeiros........................ 27

Capítulo IV – Uma Lição sobre Jangadas ................. 33

Capítulo V – O Bilhete Anônimo .................................. 41

Capítulo VI – A Volta do Desaparecido ..................... 49

Capítulo VII – A História do Mestre ........................... 55

SEGUNDA PARTE............................................................. 63

O Radar Cearense ........................................................... 63

Capítulo I – Viagem Decidida ...................................... 65

Capítulo II – A Partida .................................................. 71

Capítulo III – A Pescaria .............................................. 77

5
Capítulo IV – A Tempestade ........................................ 83

Capítulo V – Os Náufragos Inimigos.......................... 89

Capítulo VI – O Dr. Jomite Confessa ......................... 95

EPÍLOGO .......................................................................... 101


A Turma do Posto 4

LUIZ DE SANTIAGO (LULA) — chefe da patota e autor do


livro que vocês vão ler. Tem 14 anos de idade, nasceu em
Copacabana e é filho de imigrantes portugueses. O pai dele é
gerente de uma confeitaria da Rua Barata Ribeiro. Lula é um
garoto moreno, nem magro nem gordo, tem cabelos pretos e
topete, olhos verdes e se amarra na literatura. Frequenta o 3°
ano ginasial e é ponta-direita do Atlântica Futebol Clube, um
time de futebol de praia com escudo, camisa e tudo. Seu maior
orgulho é um canivete sensacional, com saca-rolhas, que tem
lâmina Solinger.

MARIA APARECIDA DE CARVALHO (CIDINHA) — é a


namorada de Lula. Tem 12 anos de idade, cursa o 1° ano
ginasial e nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais. É miúda,
sardenta, loura (cabelos feito espiga de milho) e tem os olhos
grandes e azuis. Às vezes, banca o juiz de futebol, nos jogos
entre o Atlântica e os seus rivais de Copa.

CARLOS CAVALCANTI (CARLÃO) — nasceu no Ceará, tem


15 anos de idade e é o mais parrudo da turma. Estuda no
mesmo ginásio, e cursa o mesmo ano que Lula. Seus pais são
pobres (imigrantes nordestinos) e, por isso, à tarde ele trabalha
numa academia de judô e karatê da Rua Santa Clara.

ANTÔNIO MATTEWS (PRÍNCIPE) — é o rapazinho mais


grã-fino da patota, daí seu apelido. Tem a mesma idade de
Carlão (15 anos), mas é gorduchinho, de cabelos louros,
compridos e anelados, e usa óculos de aros de ouro. Príncipe
não gosta de esportes violentos, mas tem uma cuca genial e
sabe de tanta coisa que parece uma enciclopédia ambulante.
Estuda em casa, com professores particulares. Seu pai é inglês,
Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

muito rico, e tem uma fábrica de máquinas pesadas em São


Paulo, mas a família mora no Rio, no Edifício Mattews da
Avenida Atlântica. Príncipe nasceu na capital paulista.

FRANCISCO DA CONCEIÇÃO (PAVIO APAGADO) — é um


crioulinho de 10 anos, magro e meio torcido para a frente, igual
ao pavio de uma vela. Sua cabeça é escura e pelada. Ele
estuda numa escola pública, onde cursa o 3° ano primário. Seu
pai é o porteiro do Edifício Mattews e sua mãe lava roupa para
fora. Pavio Apagado é esperto e mentiroso, mas honesto e leal.
Nasceu na favela da Catacumba e é o maior craque (ponta-
esquerda) do Atlântica F. C.
Como se vê, embora alguns dos personagens principais deste
livro não tenham nascido no Rio de Janeiro, são todos cariocas.
A maioria dos cariocas não nasceu na Guanabara. Ser carioca é
uma questão de temperamento.

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

PRIMEIRA PARTE
O Mestre Desaparecido

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Capítulo I – A Carta da Velha

Naquele Natal, Cidinha ganhara um gravador K-7 e não


cabia em si de contente. Vivia gravando tudo o que podia, com
o pequeno aparelho a tiracolo; depois, apagava a fita
magnética e gravava tudo outra vez. Vocês sabem que eu e
Cidinha somos noivos, embora não oficialmente, e a minha
alegria era tão grande quanto a dela. Se há uma coisa no
mundo que me faz feliz é ver a felicidade dos outros.
Principalmente, é claro, a felicidade de Cidinha...
Foi assim que, na sexta-feira, dia 2 de janeiro, quando
nos reunimos na garagem do Edifício Mattews, para a
assembleia geral da Turma do Porto Quatro, a “jovem repórter
Maria Aparecida de Carvalho” levou o seu gravador, a fim de
registrar os debates. Como vocês sabem, nossa turma sempre
escolhe as duas missões secretas nas noites de sexta-feira,
para executá-las no fim-de-semana. E essas missões, como
vocês também sabem, são destinadas a decifrar mistérios,
desmascarar bandidos e concorrer para a segurança e o bem-
estar da comunidade. No princípio de nossas atividades, a
gente atuava apenas no Rio, mas, com o correr do tempo,
passou a ser uma “organização” interestadual...
Naquela sexta-feira também não chegou a haver votação,
para se eleger a melhor operação da semana. Eu e Cidinha
fomos os primeiros a comparecer à garagem do Mattews. Ainda
não eram oito horas da noite. Minha namorada estava linda,
com os olhos azuis cintilantes, o narizinho arrebitado,
ornamentado com sardas artisticamente dispostas, e os cabelos
dourados lisos e espetados feito espiga de milho. Cidinha já
tem 13 anos de idade e é a garota mais charmosa de
Copacabana, física e espiritualmente. Não há outra mocinha
mais bonita e inteligente do que ela, modéstia à parte. Nem
mesmo eu, que já fiz 15 anos e sou o líder da Turma do Posto

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

4, tenho um talento tão grande como o de Cidinha. Príncipe,


que já tem 16 anos, pode ser mais culto do que nós, porque é
cheio da nota e tem explicador particular, mas não chega aos
pés de Cidinha, em raciocínio e vivacidade! Minha namorada é
o máximo!
Pouco depois de termos nos sentado em dois caixotes, ao
lado do capô do Mustang cinzento de Mr. Mattews (o pai de
Príncipe, pois Príncipe chama-se Antônio Mattews) quem
também desceu à garagem foi Pavio Apagado. Esse vocês
conhecem bem. O verdadeiro nome dele é Francisco da
Conceição, mas todos o tratam por Pavio Apagado porque ele é
um moleque de 11 anos de idade, magrinho e torcido para a
frente, feito o pavio de uma vela.
— Oi, Lula! Oi, Cidinha!
— Oi, Pavio! — respondemos. — Tudo legal?
— Tudo! Papai está na portaria e mamãe foi entregar
umas roupas lavadas e ainda não voltou. Mas eles sabem que
hoje é dia de reunião. Por isso, saí sem pedir licença.
Pavio é filho de seu Baltazar, o porteiro do Edifício
Mattews, e a mãe dele lava roupa para fora. O Mattews, como
vocês sabem, é um prédio da Avenida Atlântica quase todo de
propriedade do pai de Príncipe, onde eu moro no oitavo andar
e Príncipe no nono, que é o último e tem um big terraço com
piscina e tudo.
Pavio sentou-se noutro caixotinho e ficamos à espera do
resto da patota. O terceiro a chegar foi Príncipe. Lá veio ele,
muito gordo e compenetrado, vestido com seu terninho azul,
de gravata borboleta, os cabelos louros muito bem penteados e
os olhos azuis pisca-piscando por trás dos óculos de aros de
ouro. Príncipe é um pouco míope, talvez porque lê muito, e daí
o seu apelido de Enciclopédia Ambulante...
— Oi, turma!
— Oi, Príncipe! Tudo legal?

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— Tudo cem por cento! Trago uma grande ideia para a


operação desta semana! Como estamos de férias, podemos
muito bem fazer uma viagem às Cataratas do Iguaçu! Parece
que lá, tem uma quadrilha de contrabandistas paraguaios
dando trabalho à polícia!
— A ideia é boa — comentei. — Mas eu tenho uma outra
que talvez seja melhor...
— Qual é? Qual é? — perguntaram os outros.
— Só direi depois de instalada a assembleia geral. É
contra o regulamento revelar as sugestões antes da hora legal.
Na verdade, eu estava pensando em irmos a São Paulo,
verificar se a polícia bandeirante estava exorbitando de suas
funções. Era um assunto “quente” e perigoso, mas a Turma do
Posto 4 não recua diante de nada, desde que possa fazer
justiça.
Mais alguns minutos de espera e chegou o último
membro da Patota. Lá vinha Carlão, arrastando as alpercatas
pelo cimento da garagem e torcendo as mãos enormes, com ar
de sofrimento. Carlão, que se chama Carlos Cavalcanti, tem a
mesma idade de Príncipe, mas parece mais velho. É cearense e
o mais alto e parrudo da turma. Além de estudar no mesmo
ginásio e cursar a mesma 8ª série do 1º grau que eu, ele
também trabalha, como faxineiro, numa Academia de Judô e
Caratê da Rua Barata Ribeiro. Mas os seus golpes não são lá
essas coisas...
— Qual é o problema, Carlão? — indaguei, ao ver a
aflição estampada no rosto dele.
— Oi, turma! É um aperreio da peste! Acho que, esta
semana, não tenho jeito para fazer nada, não! Mamãe recebeu
uma carta da velha e...
— Que velha? — perguntamos, em coro.
— Minha avó, mãe de mamãe. As notícias do Ceará não
são nada boas e a gente estamos muito aperreados!

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— Que aconteceu? — quis saber Cidinha, falando com


sua voz doce e musical. (Puxa, que voz maravilhosa que tem a
Cidinha! Bem que ela podia trabalhar no rádio ou na televisão!)
Carlão sentou-se pesadamente no último caixote vazio e
desabafou:
— É um aparreiro da morte! Meus avós moram perto de
Fortaleza, na Praia de Mucuripe, e meu avô é dono de uma
jangada. De primeiro, ele era lavrador, mas a seca obrigou ele
a fugir do sertão e mudar de vida. Fez uns cinco anos que é
pescador de lagostas.
— E a desgraça é só essa? — indagou Príncipe, piscando
os olhos por trás dos óculos. — Muitos retirantes sofrem o
mesmo problema, pois a falta de chuvas no Ceará não é mole!
O Ceará faz parte do chamado “polígono das secas”. Quando a
caatinga fica seca, os lavradores têm que ir para as cidades,
para não morrerem de fome e de sede. Basta passar dois anos
sem chuvas e morre tudo! O problema é muito antigo e ainda
não foi solucionado... e acho que, isso, nem a Turma do Posto
4 poderá resolver! É um grilo da Natureza... e a gente só pode
matar os grilos dos homens!
— Pois é — suspirou Carlão, desanimado. — Mas o pior
não é isso. A carta da velha diz, em suas mal traçadas linhas,
que meu avô foi agredido por um bandido e está apavorado.
Ele e o resto da família, que são minha avó Anita e meu tio
Mundinho. O nome do meu avô é Mestre Raimundo.
— Todos os donos de jangadas, quando comandam as
suas embarcações, são chamados de Mestre — esclareceu
Príncipe, virando-se para nós.
— Poxa! — exclamou Cidinha. — Olha aí uma operação
bacana, para a Turma do Posto 4! Se o avô de Carlão está
sendo perseguido por um cangaceiro, a gente pode ir ao Ceará
e resolver a parada!

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Os olhos de Carlão se arregalaram, de surpresa e


felicidade.
— É mesmo? Vocês acham que dá operação?
— Lógico que dá operação — disse Príncipe, indulgente.
— Nós ainda não conhecemos o Ceará. Por que foi que esse
bandido... que não pode ser cangaceiro, pois não há
cangaceiros no litoral... bateu em seu avô e está apavorando a
família toda?
— Sei não — respondeu Carlão, outra vez desanimado. —
Não deve ser coisa de valia, nem coisa que perturbe o bem-
estar da coletividade... É um caso particular, que só tem valor
para os meus velhos, por causa dos velhos deles.
Nada disso! — protestou Cidinha, que tem um coração de
ouro. — Se o seu avozinho está sendo molestado por um
marginal, o problema interessa a todos nós, que somos seus
amigos, Carlão! Eu acho que esse caso é da maior gravidade e
deve ser esclarecido pela Turma do Posto 4! E quanto mais
depressa, melhor! Deve haver um motivo muito forte, e um
grande mistério, para essa violência! Eu voto a favor de nossa
ida ao Ceará! Ou à Praia de Mucuripe, para ser mais exata...
— Eu também voto a favor! — bradou Pavio Apagado. —
Quero conhecer a fortaleza! Eu me amarro nos castelos dos
livros de figurinhas!
— Um momento! — atalhei, erguendo a mão espalmada.
— Fica adiada a assembleia geral da Turma do Posto 4! A
sugestão de nosso companheiro Carlão foi aceita por
unanimidade. Resta saber como é que a gente dá um jeito de ir
ao Ceará!
Minhas palavras foram como um chuveiro de água fria,
que arrefeceu o entusiasmo geral. Todos os outros membros da
patota emurcheceram. Todos, menos Príncipe.
— Tenho uma ideia — disse o gordo, ajeitando os óculos
no nariz. — A caixa da Turma do Posto 4 anda baixa, por falta

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

de contribuições e porque o nosso jornalzinho não está


vendendo muito, mas sempre se quebra o galho... Não
podemos deixar de investigar esse caso policial, em que está
envolvido o excelentíssimo avô de nosso companheiro Carlão!
Vou bater um papo com meu velho e conseguir o dinheiro e a
permissão para a viagem! Não será a primeira vez que papai
colabora, financeiramente, para uma operação da Turma do
Posto 4! Certo, Lula?
— Certo — respondi, empolgado. — Mr. Mattews é legal
às pampas! Quando ele souber que uma quadrilha de
assassinos massacrou o avô de Carlão e agarrou a avó dele e...
— Sem exagero! — atalhou Cidinha. — Não podemos
dizer nem sequer a verdade a Mr. Mattews. Temos que
inventar uma história leve e fagueira, como das outras vezes.
Que tal uma viagem de estudo a Fortaleza?
— Nas férias, não — choramingou Pavio Apagado. — Eu
não quero estudar nas férias!
— Não pega — disse Príncipe, dirigindo-se a Cidinha. —
Vou dizer a metade da verdade. Vou dizer que a Turma tem
que fazer uma composição escolar sobre o modo de vida dos
jangadeiros e dos pescadores de lagostas da costa cearense. E,
na volta, faremos mesmo a composição, relatando tudo o que
virmos por lá. Nossos professores vão ficar empolgados.
— Legal às pampas! — exclamou Cidinha. — Vou falar
com mamãe, para que ela me deixe ir com vocês! Composição
escolar pega bem!
— Contanto que dona Nair não queira ir junto —
acrescentei eu. — Sua mãe pode atrapalhar as nossas
investigações. Deve haver um outro jeito de você ir, sob a
responsabilidade de uma outra pessoa de maior idade. Príncipe
também pode bolar isso... não pode, Príncipe?
— Bolar o quê? — perguntou o gordo, que estava
pensando noutra coisa.

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— Bolar um jeito de Cidinha ir com a gente, sem levar a


mãe dela!
— Deixa comigo! — concluiu Príncipe, muito orgulhoso. —
Eu resolvo tudo! Amanhã, às dez horas da manhã, novo
encontro aqui na garagem! Vou falar com papai das oito até às
dez! Amanhã ele fica em casa e vai ter que me ouvir!
— E o nome da operação? — perguntou Pavio
timidamente. — Operação Fortaleza do Ceará
— Sem essa! — rosnei. — Depois a gente batiza a
operação. Isso é o de menos, Pavio.
— Sim — acrescentou Cidinha, olhando de lado para a
cabeça de Carlão. — Isso é o de menos...
Mas eu já sabia que nome ela queria dar à operação. Só
não falamos, naquela hora, porque não queríamos ofender
Carlão.

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Capítulo II – Príncipe Bota a sua Banca

Ainda dessa vez tudo deu certo. Na manhã seguinte, a


Turma do Posto 4 voltou a se reunir, na garagem do Mattews,
e Príncipe deu conta de sua missão:
— Está tudo arrumado, turma! Falei com o papai e ele vai
pagar as passagens da gente, ida e volta, de avião! Eu disse
que a gente ia fazer um estágio numa colônia de pesca, para
conhecer os hábitos peculiares da população do litoral
cearense. Falando “hábitos peculiares” é fácil dobrar o meu
velho, porque ele se amarra nos termos difíceis... Também falei
que os avós do Carlão moram nessa colônia de pesca.
— O maior barato! — exclamou Pavio Apagado. — Eu sou
vidrado em andar de avião! Da primeira vez tive medo, mas já
me acostumei!
Vocês falaram com seus pais, pedindo permissão para a
viagem de estudos? — perguntei, ao resto da turma.
Cidinha respondeu que tinha falado com dona Nair e que
a mãe dela só permitiria que a filha fosse ao Ceará se alguma
pessoa de maior acompanhasse a expedição.
— Não tem problema — disse Carlão, incrementando. —
Minha mãe quer ir com a gente, para saber das coisas melhor.
Se Mr. Mattews pagar a passagem da velha... Será que ele
paga?
— Papai paga tudo! — afirmou Príncipe. — Sua mãe pode
ir com a gente, para servir de babá para Cidinha... Vamos levar
dona Maria à presença de dona Nair e elas se entenderão.
Quando é que vocês querem partir?
— O mais depressa possível — respondi. — Que tal
depois de amanhã? Assim, teremos tempo para comprar as
passagens e fazer as malas...
Eu também tinha falado com meus pais e obtivera o
consentimento para a viagem. Príncipe disse que estava legal.

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— E o nome da operação? — lembrou Pavio Apagado. —


A gente não pode entrar nessa sem o nome da operação!
Olhei para Cidinha e Cidinha olhou para mim; depois,
todos nós olhamos para Carlão.
— Não, senhor! — rosnou ele. — Nada de Operação
Cabeça Chata! Não só os cearenses são chamados assim!
— Carlão está certo — disse Príncipe. — O apelido
“cabeça chata” é aplicado a todos os nortistas e nordestinos, de
uma maneira geral. Mas, principalmente, aos cearenses.
— Por quê? — quis saber Pavio. — A cabeça de Carlão
não é chata em cima.
— Mas é chata atrás — explicou Príncipe. — Por isso é
que o pessoal do Sul chama os nortistas desse jeito. Mas, como
é um apelido depreciativo, não acho que esse seja um bom
nome para a nossa operação. Eu prefiro Operação Cearense.
— Nem uma coisa nem outra — concluí eu. — Como líder
da Turma do Posto 4, eu batizo a operação de Jangadeiros! Fim
de papo!
No dia seguinte, domingo, tratamos de preparar a nossa
bagagem. Dona Maria, a mãe de Carlão, entrou em
entendimentos com Dona Nair, a mãe de Cidinha, e ficou
responsável pela menina. Não havia mais problemas. E, na
segunda-feira, de manhã, a Turma do Posto 4, acompanhada
por dona Maria, embarcou num avião a jato e partiu para
Fortaleza. Tinha início a Operação Jangadeiros.
A bordo do avião, logo que deixamos o Aeroporto do
Galeão e pudemos desapertar os cintos de segurança,
cercamos Príncipe e pedimos esclarecimentos sobre o Estado
do Ceará. A nossa enciclopédia ambulante ajeitou os óculos e
botou a sua banca. Nunca vi ninguém com tanta memória para
datas como Príncipe!
— Em 1534, quando o Brasil foi dividido em capitanias —
disse ele — a região situada entre os rios Jaguaribe e Parnaíba

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

ficou repartida entre três capitanias. Os primeiros europeus a


se estabelecerem na costa foram os piratas franceses, que se
instalaram na Serra Ibiapaba, de onde foram expulsos, em
1624, por Pero Coelho de Souza. O primeiro colonizador do
Ceará deveria ser Antônio Cardoso de Barros, mas, ao vir para
o Brasil, naufragou nas costas de Alagoas e foi devorado pelos
índios caetés. A terra passou, então, para Pero Coelho de
Souza, que expulsou os piratas franceses e fundou Nova
Lusitânia. Depois, em 1653 e 54, o litoral da região foi ocupado
pelos holandeses e os colonizadores portugueses se internaram
no sertão; daí, o interior do Estado ser melhor colonizado do
que a costa. Mas os holandeses também foram expulsos. Outro
grande colonizador da terra foi Martim Soares Moreno. Esse era
legal às pampas, pois se misturou com os índios. Ele ficava
pelado, pintava o corpo e falava a língua dos índios. Foi Moreno
quem ajudou a expulsar os franceses e os holandeses do
Ceará. E foi ele quem inspirou José de Alencar no romance
“Iracema”.
— José de Alencar era cearense? — perguntou Pavio.
— Sim, senhor! Esse grande romancista brasileiro nasceu
em Mecejana, a treze quilômetros de Fortaleza.
— Continue, Príncipe — pediu Carlão. — Fale do Ceará!
Fale do Ceará!
— Em 19 de janeiro de 1799 — prosseguiu a nossa
enciclopédia ambulante — o Ceará separou-se de Pernambuco.
Com a declaração de Independência do Brasil, em 1822, o
Ceará tornou-se uma das Províncias do Império do Brasil,
sendo, aliás, uma das primeiras a abolir a escravatura. Isso foi
em 25 de março de 1884, quatro anos antes da Lei Áurea, que
é de 13 de maio de 1888. Em 1889, com a Proclamação da
República, a Província do Ceará passou a ser Estado.
— Cearense é danado para brigar, não é? — indagou
Pavio, olhando para Carlão com ar de respeito.

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— É mesmo — confirmou Príncipe. — Houve muitas


agitações políticas no Estado, destacando-se a de 1824, em
que os cearenses aderiram ao movimento republicano que
acabou conhecido como Confederação do Equador e tentou
separar todas as Províncias do Norte do resto do Brasil
Imperial. Isso sem falar na revolução chefiada pelo Padre
Cícero, em 1914, que deu um trabalho danado ao governo.
Ainda hoje, Padre Cícero é venerado por muitos cearenses e
respeitado por todos.
— E as secas? — indagou Cidinha, com o olhão azul
arregalado. — Todo mundo fala que as secas no Ceará não são
mole, não!
— É verdade — disse Príncipe. — O Ceará é um dos
Estados brasileiros mais sacrificados pelas secas. Mas nem por
isso desanima de progredir, na medida do possível. Seus filhos
são valentes pra chuchu! Quando o sertão seca, começam as
grandes retiradas das populações, mas, logo que as coisas
melhoram um pouco, ali estão eles, os valentes cearenses,
voltando a lutar contra a Natureza agreste! As maiores secas de
que se tem notícia foram as de 1844 e 1877, que dizimaram
quase toda a população da Província. Na “Grande Seca” de
1877, só em Fortaleza morreram 56 mil habitantes, de um total
de 120 mil — e, em toda a caatinga, morreram 600 mil
pessoas! Em cinco cidades, a mortandade reduziu a população
a menos da metade! Em cinquenta anos, mais de cinco milhões
de homens abandonaram a terra!
— Que horror! — gemeu Cidinha, que é uma menina
muito sensível.
— Mas, quando chove — prosseguiu Príncipe,
deslumbrado — tudo se modifica! O deserto se povoa de
formosas flores perfumadas! A caatinga se converte num
imenso jardim... os açudes enchem-se de água... os pássaros

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

voltam a cantar... é a glória! Aí, o Ceará se transforma num


paraíso! É por isso que os retirantes vão e voltam.
— E o Ceará é muito rico? — quis saber Cidinha.
— Lógico que não pode ser rico! Mas é muito corajoso e
enfrenta o azar com destemor! Ao contrário do que muita
gente pensa, a presença do negro no Ceará foi muito pequena.
Lá não existiam canaviais. O índio é que se adaptou à vida
pastoril e, com o seu cavalo, participou da criação de gado. É
por isso que tem tanto mestiço de índio na caatinga. O sol e o
sal ajudam o Ceará a abastecer as regiões Nordeste e Central
de carne-seca, a famosa carne-do-ceará.
— Nem me fale! — disse Carlão, lambendo os beiços. —
Se Deus quiser, vou encher a barriga de carne-de-sol!
— Outra riqueza da terra — continuou Príncipe — é a
carnaúba, produzida em sessenta municípios. Até o início do
século dezenove o crescimento econômico da Província foi nulo,
mas, depois da abertura dos portos brasileiros, o cais de
Fortaleza começou a ganhar importância como escoadouro da
produção sertaneja de algodão. Agora, construído o Distrito
Industrial de Fortaleza, a 22 quilômetros do porto de Mucuripe,
melhoraram as condições do Estado, com o aparecimento de
novas fábricas. O principal produto agrícola é o algodão,
seguido pelo feijão, caju, milho, mandioca e banana.
Atualmente, há grandes plantações de café na região das
serras de Baturité, Ibiapaba e Meruoca. A pesca da lagosta
também contribui para a receita estadual, mas não é lá essas
coisas. O algodão rende mais.
— Fala da fortaleza! — pediu Pavio, empolgado. — É um
castelo medioval?
— Fortaleza — explicou Príncipe — é o nome da capital
do Estado. Mas, realmente, a cidade teve sua origem na
Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, que ainda hoje pode
ser vista, no passeio público, e tem uma imagem primitiva da

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

padroeira da cidade. Essa fortaleza era um forte chamado


Schoomenborch, construído pelos holandeses de Mathias Beck,
em 1611, na embocadura do Rio Pajéu. O forte foi rebatizado
pelos portugueses, depois da expulsão dos holandeses de
Nossa Senhora de Assunção. O povoado, ao redor do forte,
cresceu e virou comarca independente, em 1723. Três anos
depois, era elevado à categoria de vila. E, em 1799, quando o
Ceará se separou de Pernambuco, Fortaleza foi escolhida para
sede da capitania do Ceará. Em 1823, passou a ser cidade e
capital da Província. E, após a Proclamação da República,
capital do Estado. Mas o seu progresso foi muito lento. Em
1848 as ruas de Fortaleza eram iluminadas com azeite de peixe
e só em 1855 teve início a pavimentação das ruas. Em 1880
passou a ser iluminada a gás de carbono e dotada de bondes,
puxados a burro. De 1920 a 1930 é que se construíram jardins
e grandes bairros residenciais. Mas, hoje em dia, Fortaleza não
fica nada a dever às outras capitais brasileiras. Mas que foi
duro progredir, isso foi!
— A Natureza não ajuda — queixou-se Carlão. — É por
isso que tem tanto cearense fora do Ceará. A começar pelo
meu velho. Bem que papai gostaria de voltar para a terra, se
houvesse mais canais de irrigação na caatinga. Mas, algum dia,
o milagre vai acontecer!
Depois que Príncipe botou a sua banca de sabichão, a
viagem transcorreu, serena, e, às cinco horas da tarde, o avião
estava descendo no Aeroporto Pinto Martins, a 11 quilômetros
do centro da capital cearense.
— Cadê a fortaleza! — insistiu Pavio Apagado, com o
nariz esborrachado contra o vidro da janela. — Só estou vendo
uma cidade igual às outras! Cadê a fortaleza dos holandeses?
— Aguenta a mão — disse Príncipe, dando uma risada. —
Se a gente tiver tempo, vai conhecer a Fortaleza de Nossa
Senhora de Assunção. Também podemos visitar Aquiraz, com

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

suas construções coloniais e suas ruínas históricas; Mecejana,


onde nasceu José de Alencar, as famosas praias dos
jangadeiros e outros lugares pitorescos próximos de Fortaleza...
Mas, infelizmente, isso não foi possível. A Operação
Jangadeiros foi tão “quente” que não tivemos tempo para
passear.

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Capítulo III – A Vila dos Jangadeiros

Dona Maria Cavalcanti tinha mandado um telegrama à


mãe dela, que se chamava dona Auta do Crivo, de maneira
que, quando desembarcamos no aeroporto de Fortaleza, já
encontramos um senhor de meia-idade à nossa espera. Era um
caboclo troncudo, vestido modestamente, com o rosto crestado
pelo sol e cheio de rugas miudinhas. Usava chapéu de palha e
calçava alpercatas. Nem bem entramos no saguão do prédio do
aeroporto e ele foi ao encontro da mãe de Carlão.
— Dona Maria, se mal pergunto? — disse ele, tirando
respeitosamente o chapéu. — Sou o Inaço da Cuia, proeiro da
jangada do senhor seu pai. Foi dona Alta que me mandou, para
mode buscar a senhora e os meninos. Dr. Aguinaldo emprestou
o automóvel para nós.
Saímos do aeroporto e entramos numa camioneta
cinzenta, dirigida por um motorista de óculos escuros. Dona
Maria foi sentada no banco da frente, ao lado do chofer e de
seu Inácio e a Turma do Posto 4 se acomodou atrás. Logo que
o veículo partiu, a mãe de Carlão perguntou a seu Inácio como
estavam as coisas. O homem do mar coçou a cabeça chata e
acabou revelando:
— As coisas se complicaram um pouco, dona. A gente até
que não sabe o que fazer! Mestre Raimundo, com perdão da
palavra, desapareceu!
Ninguém esperava por essa notícia. Ficamos todos num
silêncio de morte.
— Desapareceu como? — quis saber dona Maria, aflita.
— Não voltou para casa, ontem de tarde. Conforme a
senhora já deve de saber, ele foi ameaçado por dois cabras da
companhia da lagosta e chegou até a brigar com eles. Depois
disso, as coisas pareciam ter se acalmado, mas, ontem, Mestre

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Raimundo não voltou para casa! A gente procurou por ele em


toda a parte e quedê que alguém o encontrou!
— Ele saiu na jangada? — perguntou dona Maria, muito
pálida.
— Não, senhora, dona. A jangada não saiu mais, des o
princípio da semana. E, agora, sem Mestre Raimundo, também
não vai sair amanhã. A gente está tendo um grande prejuízo
com isso, eu e Severino, que é o bico-de-proa! O garoto, que
faz de rebique, é Mundinho mesmo, o filho de Mestre
Raimundo e, portanto, irmão da senhora...
— Sim — disse dona Maria. — Mundinho é meu irmão
caçula. Ele está bem, não está?
— O garoto está bem, mas muito aperreiado. Passamos o
dia todo na busca do pai dele e não encontramos. Mestre
Raimundo desapareceu mesmo! Mas esperamos que não seja
de vez. Quem sabe ele está escondido, nalgum lugar, com
medo dos homens da companhia. Mas, se estivesse, teria dado
uma notícia a dona Alta, a senhora não acha? Não sabemos o
que pensar, dona!
O silêncio voltou a cair, na camioneta, enquanto esta se
dirigia para a Praia de Mucuripe, a 3 quilômetros de Fortaleza.
Chegamos lá ao entardecer. A praia ficava numa espécie de
promontório, a noroeste do Cabo Iguape. Ali também havia um
porto de respeitável tamanho, mas a praia propriamente dita só
tinha jangadas. A vila dos pescadores, onde morava Mestre
Raimundo com a mulher e o filho, estava situada ao norte da
praia, num local pitoresco, recuado, cheio de cajueiros e
palmeiras farfalhantes. Como todas as colônias de pesca de
jangadeiros, era um aglomerado de choças de palha ou taipa,
cobertas por folhas de coqueiro e apoiadas em caibros de
madeira. Algumas delas erguiam-se na areia e manchavam a
brancura da praia com os seus telhados de palha seca. Eu e o
resto da turma pensamos logo na colônia de pesca de Laguna,

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

em Santa Catarina, onde tínhamos levado a efeito a Operação


Barriga-Verde.
A casa de Mestre Raimundo era muito simples, mas de
bom tamanho, pois tinha uma sala e dois quartos, em vez de
uma sala e um quarto só, como a grande maioria das outras
casas da vila. Na frente do barracão havia uma área de terra
batida, coberta de sapê, com dois bancos compridos. A porta,
de madeira, era dividida ao meio, de maneira que a parte de
cima podia ser aberta, formando uma trincheira. As janelas
tinham caixilhos, mas não tinham vidraças. E o banheiro, com
sua bacia e suas cuias cheia d’água, ficava do lado de fora da
casa.
A camioneta parou em frente à “varanda” e nós saltamos,
com as malas e as mochilas nas mãos. Havia uma senhora
idosa, na área, em companhia de um rapazinho de seus 15
anos de idade.
— Aquele é seu tio — disse Maria, indicando o garoto a
Carlão. — Você ainda não o conhece, mas também deve tomar
a bênção dele. É o costume, ouviu? Não importa que ele só
tenha quinze anos! Nem por isso deixa de ser meu irmão!
Carlão fez as apresentações e começamos a conversar,
no alpendre. Dona Maria também nos apresentou a dona Auta
e a mulher do jangadeiro disse que era uma honra nos receber
em sua casa. Carlão também pediu a bênção da avó e, dessa
vez, beijou mesmo a mão dela.
— Agora, se vosmicês me dão licença — falou seu Inácio
da Cuia — eu vou andando. Amanhã cedo volto para saber
notícias de Mestre Raimundo, ou para trazer notícias, Deus é
quem sabe. Minha mulher já preparou o jantar e está me
esperando, lá em casa. Fiquem com Deus!
Despedimo-nos do caboclo e ele voltou a entrar na
camioneta, que se afastou rapidamente, rumo ao outro lado da
vila dos jangadeiros.

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— Eu também já fiz a comida — anunciou dona Auta,


sempre com voz triste. — Espero que chegue para todos.
Somos pobres, mas, com a ajuda do Senhor, nada nos tem
faltado! Só agora é que falta o principal!
E pôs-se a chorar. A boa senhora queria se referir ao
marido.
— Mas, afinal de contas, que aconteceu? — indagou dona
Maria, contendo as lágrimas. — Vocês me escreveram dizendo
que papai tinha sido agredido e estava sendo ameaçado! Por
quê?
— Não sabemos por quê — respondeu a avó de Carlão.
— É um mistério! Raimundo nunca se meteu na vida de
ninguém!
— Ele não tem inimigos? — perguntei, sem poder me
conter.
— Nenhum. Sempre se deu bem com todos. Aqui, em
Mucuripe, somos que nem uma grande família, pobre mas feliz.
Só de vez em quando é que algum jangadeiro bebe demais e
arruma uma discussão. Mas todos se entendem muito bem.
— Seu Inácio falou numa companhia — lembrou Cidinha.
— Falou em dois homens de uma companhia de lagostas...
— Sim — disse dona Auta, enxugando as lágrimas. —
Existe, em Fortaleza, uma companhia estrangeira que negocia
com lagostas, para exportação. Mas Raimundo não fazia
negócios com eles, não. Dizem que foram dois empregados
dessa companhia que discutiram e bateram em meu marido.
Não sei se isso é verdade, só sei que Raimundo ficou muito
aperreado, depois da agressão. E não quis me contar nada a
respeito. Só falou que foi um desentendimento.
— E agora — disse Carlão — vovô desapareceu, não é?
— Desapareceu — confirmou dona Auta. — Desde ontem
que ele não volta para casa! Só Deus sabe onde estará metido!
Olhei para Príncipe e ele olhou para mim.

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— Pode ser... — murmurei.


— Pode ser! — concordou o gordo. — Mestre Raimundo
pode ter sido sequestrado, como vingança, depois desta briga!
Mas, qual teria sido o motivo do desentendimento com os
homens da companhia?
— Aí é que está!
— Ai é que está...
Depois disso, fomos jantar. O barracão era iluminado por
um lampião a querosene (que eles chamavam de “gás”) e
várias lamparinas a óleo, penduradas pelas paredes de taipa. A
comida era modesta, mas gostosa. Cidinha se amarrou no
peixe frito com farinha de caju. Às oito horas da noite, depois
de um novo bate-papo no alpendre, fomos dormir. Dona Auta,
dona Maria e Cidinha ficaram num quarto, Mundinho, Carlão e
Príncipe ficaram no outro e eu e Pavio Apagado ficamos na
varanda coberta. Mundinho armou uma rede para mim, mas
Pavio teve que dormir no chão, em cima de uma esteira.
A noite estava quente e enluarada. Peguei logo no sono,
pois estava cansado da viagem, e dormi direto até próximo da
meia-noite. Nessa hora, abri os olhos, sem mesmo saber por
quê, e vi um clarão vermelho passar rapidamente pelo alpendre
e desaparecer na escuridão. Despertei completamente, saltei
da rede e fui olhar para fora da varanda, mas não vi mais nada.
A vila dos jangadeiros repousava na paz e no silêncio. No
entanto, eu podia jurar que aquele clarão vermelho era a
cabeleira ruiva de alguém que viera espionar a casa de Mestre
Raimundo! E logo à meia-noite!
Fiz o sinal-da-cruz, rezei um Padre-Nosso e voltei para a
rede. E não tardei a pegar no sono, outra vez.

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Capítulo IV – Uma Lição sobre Jangadas

E eu Pavio Apagado acordamos às cinco horas da manhã,


ao som das vozes rudes de dois jangadeiros que tinham
entrado na varanda. Eram seu Inácio da Cuia e um outro
pescador, também com a cara escura e coberta de rugas.
— Bom dia, meninada! — saudou seu Inácio, quando eu
saltei da rede e Pavio pulou da esteira. — Dormiram bem, com
a graça de Deus?
— Muito bem, obrigado — respondi. — Não é a primeira
vez que durmo numa rede. Fora uma dorzinha no pescoço, está
tudo legal...
O homem do mar deu uma risada e chamou por dona
Auta. A avó de Carlão apareceu logo na porta, cuja metade
superior estava aberta.
— Entre, Inaço! — convidou a boa senhora. — Entre,
Severino! Venham tomar café com a gente! O resto do pessoal
já está de pé.
— Nenhuma notícia de Mestre Raimundo? — indagou seu
Inácio.
— Nenhuma. Pensei que vosmicê trouxesse boas
novidades.
— Por enquanto, nada! Ninguém sabe onde ele se meteu!
A jangada não pode sair! Nem a turma ia sair, sem o Mestre!
Além da dona da casa e seu filho Mundinho, todos
os outros hóspedes também já tinham se levantado e ido
ao banheiro. Eu e Pavio fomos também, para lavar o rosto
e pentear os cabelos. Na volta, dona Auta nos sentou à
mesa e nos serviu café com leite e bolos de mandioca.
Príncipe tinha acabado de tomar café e ainda estava
sentado à mesa.

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— Pelo que sei — disse ele, em voz baixa — os


pescadores cearenses não têm o costume de tomar café com
leite de manhã... Isto foi preparado para nós. O mais comum é
uma paçoca feita com a castanha do caju pilada e misturada
com farinha de mandioca e mel de caju...
— Eles gostam muito de caju, hem? — comentou Pavio.
— Filho de pescador — disse Príncipe — já nasce com o
caju na mão! Uma de suas primeiras comidas é caldo de peixe,
engrossado com farinha de caju. O caju cria gente forte e dura,
preparada para aguentar o serviço do mar. Eles dizem que
Deus criou o caju para que os pescadores do Ceará não passem
fome, como os matutos do sertão. O caju está presente em
quase todos os pratos dos jangadeiros: na tambança, o vinho
de caju, na paçoca, no angu de castanha de caju, em tudo
quanto é comida! O caju também dá mel. Basta apurar o caldo
no fogo, até a consistência necessária. Não tem nenhum
problema que o caju não resolva!
Que barato! — exclamou Pavio. — Eu vou querer provar
desse mel!
— Pode ficar descansado que você vai comer caju de
todas as maneiras possíveis! Aliás, vocês já viram que peixe
frito com farofa de caju é uma delícia! Mas ainda nos falta
conhecer o mocororó, o suco fermentado de caju, a bebida
predileta dos jangadeiros.
Eu e Pavio acabamos de tomar café e saímos da sala para
o alpendre, onde já estava reunido o resto do pessoal. Príncipe
foi atrás de nós.
— A jangada não sai — estava dizendo seu Inácio. — Os
outros já partiram ou estão de saída, mas a nossa turma tem
que esperar a volta de Mestre Raimundo! Quem sabe os
meninos querem assistir a partida das jangadas? Enquanto
damos uma volta pela praia, vamos fazendo perguntas ao
pessoal. Pode ser que alguém saiba de alguma coisa...

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Ficamos indóceis, deslumbrados com a perspectiva de ver


a partida das jangadas. Dona Maria disse que podíamos ir dar
uma voltinha, com seu Inácio, seu Severino e Mundinho, mas
que ela preferia ficar em casa, para ver os trabalhos da mãe
dela. Dona Auta era rendeira e vendia as suas rendas em
Fortaleza, para ajudar o marido.
— Eu também fico em casa — anunciou Cidinha. —
Nunca vi como se faz renda de crivo e quero ver! Depois a
gente se reúne para tratar daquilo que vocês sabem... Certo,
Lula?
— Certo — respondi. — Reunião antes do almoço, para
tratar do assunto sabido! Agora, vamos assistir à partida das
jangadas, para fazermos a nossa composição escolar... Certo,
Príncipe?
— Certo — concordou o gordo. — Como disse seu Inácio,
pode ser que a gente tenha alguma notícia de Mestre
Raimundo, pelo caminho...
Os dois jangadeiros e Mundinho tomaram conta de nós —
e partimos para a praia de areias brancas. Príncipe levava o seu
binóculo e marchava de cabeça erguida, os óculos faiscantes,
farejando o ar do mar como um cão de caça.
Ainda nem tínhamos chegado ao porto das jangadas,
Mundinho aproximou-se de mim e pôs-se a falar em voz baixa:
— Vocês vieram investigar o que aconteceu com o pai,
não é, não? E você é o chefe da Turma do Posto 4, não é, não?
Eu sei que vocês gostam de decifrar mistérios... Pois este caso
precisa ser decifrado logo! Foram os homens da companhia da
lagosta que raptaram o pai!
— Como é que você sabe? — perguntei, também em voz
baixa.
— Sei porque, anteontem, pouco antes do pai
desaparecer, eu vi o Dr. Jomite conversando com o pai, na
porta do barracão de seu César! O Dr. Jomite é aquele

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

advogado de cabelos vermelhos que trabalha na companhia da


lagosta!
Ao ouvir falar em cabelos vermelhos, fiquei arrepiado.
Então, não fora um sonho! Eu vira, realmente, um homem de
cabelos vermelhos atravessar o alpendre, naquela noite! E esse
homem devia ser o tal Dr. Jomite!
Mas Mundinho não sabia mais nada, além disso.
Continuamos a andar, pela areia fina, e chegamos ao lugar de
onde os jangadeiros partiam com as suas embarcações
rústicas. Várias jangadas já se tinham feito ao largo, mas
outras estavam saindo naquele momento. As enormes balsas,
providas de enormes velas, eram arrastadas, por cima de toros
de madeira roliços, e entravam na água mansa, uma atrás da
outra. Cada tripulação era composta de quatro pescadores.
Aproximei-me de Príncipe e perguntei:
— Que é que você me diz, hem? Com quantos paus se
faz uma jangada?
Carlão e Pavio também se aproximaram da nossa
enciclopédia ambulante. Estávamos, todos, ansiosos por saber
detalhes sobre aqueles barcos sem amurada. Como é que umas
embarcações tão frágeis podiam enfrentar o mar alto?
— As jangadas — disse Príncipe, indicando um dos barcos
que era empurrado para o mar — vieram da Índia, trazidas
pelos povoados portugueses, nos fins do século dezesseis. Daí
o seu nome: xangá. Esse tipo de embarcação adaptou-se
perfeitamente ao Nordeste brasileiro, pois a plataforma
marítima e as condições do vento ajudaram. Na construção de
uma jangada não se usam pregos de metal e sim de madeira.
Reparem naquela, ali. É feita de madeira leve, se não me
engano a piúba, que vem do Pará. São usadas seis toras, em
cima de duas, transversais, estas chamadas maiás, uma delas
mais baixa para que a proa fique mais alta. As seis toras
paralelas são as seguintes: duas mimburas, dois bordos e dois

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

paus-do-meio. Assim fica formado o piso. Em cima dele são


colocados o banco-de-vela, a carninga, a salgadeira, o banco
de governo, o calçador, o espeque, a bolina, o tolete, o mastro,
a tranca, etc. a jangada “boa de remo” é a que tem os bordos
mais baixos e o meio mais alto; assim, a água passa com mais
facilidade pelos bordos e ajuda a velocidade. Os jangadeiros
foram os primeiros brasileiros que se recusaram a transportar
negros escravos, vindos dos navios para serem vendidos como
animais de trabalho.
— Fala da jangada! — pediu Pavio Apagado. — Para que
servem esses trecos em cima: banco-de-vela, caraninga e essas
coisas?
Príncipe respirou fundo e continuou:
— Bem... No piso da jangada é adaptado o banco-de-
vela, que é uma trave com um furo no meio, onde é colocado o
mastro. Perto, tem um outro furo, no centro da jangada, onde
é metida a bolina, que é uma prancha de madeira, funcionando
como uma quilha, quando mergulhada na água. Embaixo do
banco-de-vela está a carninga, que é uma trave presa de uma
a outra mimbura; aí se veem onze furos, onde o pé do mastro
é mudado, conforme o vento. O banco de governo, ali na popa,
é uma tábua de sucupira, sustentada por quatro pernas de
pau-de-mangue, a mais ou menos meio metro de altura do
piso. Nesse banco é que dorme o Mestre, em alto-mar. O
calçador está atrás do banco de governo; são dois paus
fincados nas mimburas, onde se amarra o cordame da vela,
chamado escota.
— E a vela? — indagou Carlão, incrementando. — Fala da
vela!
— A vela, costurada numa corda que é presa ao mastro,
é feita de várias faixas de algodão cru, com o formato de um
triângulo, cuja base está no mastro. Para manter a vela aberta
há um pau, chamado retranca, ou tranca, que se apoia no

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

mastro do meio de uma forquilha. Manejando-se a tranca,


através dos cordames, a jangada é impulsionada pelo vento. E
é assim que pode ser manobrada.
— Mas tem muita coisa mais, em cima da jangada —
observou Pavio. — Olha lá! Não estão vendo, naquela? Para
que serve aquela miudeza toda?
Príncipe olhou para uma jangada quase afastada e
respondeu:
— Aquela deve ser uma jangada para a pesca da
sardinha. Os jangadeiros sempre levam, com eles, o samburá,
feito de cipó ou taquara, para guardar o peixe; um barrilete
para a água potável; o tauaçu, ou toaçu, que é uma âncora
feita com uma pedra furada e amarrada a varetas que agarram
firma na areia; duas quimangas, que são vasilhas para a
comida e para o sal; a biquara, que é aquela vara onde vão
penduradas as linhas e os anzóis; o bicheiro, uma vara com
gancho e corda para fisgar os peixes grandes, e a araçanga,
um pau para bater nesses mesmos peixes grandes. Isso sem
falar na linha de prumo, que tem um peso e serve para medir a
profundidade do mar, ou no remo de governo, em forma de pá,
que é usado como leme. Ufa! Parece que chega! Não decorei
mais nada!
— Não chega, não! — disse eu. — Também queremos
saber o que é proeiro! Qual o papel de seu Inácio da Cuia? E o
que é que fazem os outros tripulantes?
— Entre os pescadores — disse Príncipe, com voz
cansada — existe muita disciplina e solidariedade. A hierarquia
é respeitada à beça. Primeiro, existe o Mestre, que dirige a
jangada e fica sempre no banco de governo. Depois, vem o
proeiro, que vigia a proa e fica ao lado da salgadeira. Esse,
recolhe os peixes e coloca-os no samburá. Quando é preciso,
também molha o pano, com a cuia-de-vela, para que o impulso
do vento seja melhor aproveitado. Depois, vem o bico-de-proa,

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

que, na jangada de Mestre Raimundo, já vi que é seu


Severino... Esse fica na frente da jangada, ajudando o proeiro.
E, por fim, vem o rebique, ou contra-bico, que é o Mundinho,
tio de Carlão. O trabalho do rebique é o mais leve e pode ser
feito até por um moleque...
— Eu quero ser rebique! — gritou Pavio. — Eu quero ser
rebique!
— E todas as jangadas são iguais? — quis saber Carlão.
— Nem todas — respondeu uma outra voz, atrás de nós.
— Eu conheço quatro tipos. A nossa é uma jangada de
dormida.
Voltamo-nos e sorrimos para Mundinho, que estava ali,
ouvindo as explicações de Príncipe.
— Por que “jangada de dormida”? — perguntei. — Ela
tem camas?
— Não, mas é a que vai mais longe e, às vezes, fica dias
e dias em alto mar. A nossa jangada tem oito metros de
comprimento por três e meio de largura. Só a vela tem
quarenta metros de pano! Mas existem outras menores. Mestre
Quincas tem um paquete, com seis metros de comprimento e
uma vela de vinte metros. Mestre Jorge tem um paquetinho de
cação, com cinco metros de comprimento e uma vela de quinze
metros, e seu Manuel Caolha tem uma jangada de chiqueiro,
de três metros, tão pequena que ele usa remos e só navega
nos lugares rasos, perto da praia. E o Dr. Jomite? —
acrescentou ele, virando-se para mim. — Vocês não acham
bom a gente saber se foi o Dr. Jomite que fez o pai
desaparecer?
Com aquele papo das jangadas eu tinha me esquecido
completamente daquilo que Mundinho me dissera, a respeito
do pai dele e do misterioso homem da cabeça vermelha! Voltei-
me para os outros membros da Turma do Posto 4 e dei a
senha:

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— Operação Jangadeiros!
— Operação Jangadeiros! — repetiram Príncipe e Pavio,
olhando firme para a cabeça de Mundinho e de Carlão. — O
que é que nós vamos fazer?
Já era hora de começar as nossas investigações.

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Capítulo V – O Bilhete Anônimo

Revelei a Príncipe, Carlão e Pavio tudo o que o filho de


Mestre Raimundo me contara, sobre o homem dos cabelos
vermelhos, acrescentando:
— Esta noite, vi uma cabeleira vermelha passar pelo
alpendre da casa do avô de Carlão! Esse Dr. Jamite, com
certeza, estava espionando a gente! Vai ver que ele soube que
a Turma do Posto 4 está na terra e ficou com medo! A fama de
nossa patota deve ter chegado ao Ceará antes de nós.
— Onde fica essa companhia da lagosta? — indagou
Príncipe, voltando-se para Mundinho.
— Lá em Fortaleza, na Avenida Presidente Queno, em
frente à Praia de Iracema.
“Presidente Queno” devia ser “Presidente Kennedy”...
— O lance é esse — falei eu. — Vamos interrogar esse
Dr. Jomite e descobrir se ele sabe o que foi feito de Mestre
Raimundo! A Turma do Posto 4 não tem medo de bandidos de
cabeça vermelha!
Mundinho concordou em nos levar à sede da tal
companhia. Dissemos a seu Inácio e seu Severino que íamos
dar uma volta e nos arrancamos. Mundinho nos levou, de
ônibus, para a cidade. Ainda andamos um bocado, a pé, e
chegamos à beira da famosa Praia de Iracema. Ali também
havia um porto de jangadas, mas as embarcações já tinham se
feito ao mar. Percorremos um trecho da Avenida Presidente
Kennedy e Mundinho nos indicou um edifício de cimento
armado, com uma tabuleta:

GOD SAVE THE LOBSTER CO.

— Deus salve a lagosta — traduziu Príncipe. — É um


nome muito bacana, para uma firma que negocia com

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

crustáceos... Aposto o que vocês quiserem como eles são


americanos. Os ingleses não gostam de brincadeiras.
Entramos no hall do edifício e vimos uma porção de
escritórios envidraçados. Tomei a dianteira do grupo e
perguntei a um guarda de segurança onde poderíamos
encontrar o Dr. Jomite. O guarda não conhecia esse nome.
— É um senhor de cabelos de fogo — elucidou Príncipe.
— Creio que se trata do advogado da firma...
— Ah! — fez o guarda. — É Mr. John Smith! O gabinete
dele é o terceiro, naquela direção. Podem entrar.
Enfiamo-nos por um corredor e fui bater à terceira porta
da esquerda. Depois, como ninguém atendesse, abri a porta.
Havia uma mocinha loura sentada à uma mesa, na antessala do
escritório do advogado.
— Bom dia — disse Príncipe, falando em inglês. —
Queremos falar com Mr. John Smith, por favor.
— Têm entrevista marcada? — indagou a mocinha,
falando em português.
— Não, senhorita. É a respeito de Mestre Raimundo
Cavalcanti. Diga isso a seu patrão.
A secretária acenou com um lápis e saiu por uma porta
interna. Um instante depois, voltava e nos convidava a entrar.
— Não todos juntos — advertiu ela. — Entre, apenas, o
representante do grupo. Mr. John Smith não gosta de bagunça.
Acenei para Príncipe e entrei, sozinho, no gabinete do
advogado. Quando a porta se fechou às minhas costas, tomei
um susto, mas logo me acalmei. O gabinete era fresquinho e
luxuosamente mobiliado. Um homem alto e vermelhaço, de
cabelos ruivos, levantou-se de trás de uma mesa e cravou em
mim os penetrantes olhos azuis.
— O que há com Mestre Raimundo? — perguntou ele,
com voz fria e sotaque estrangeiro. — Quem são vocês, my
boy? O que querem aqui?

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Engrossei a voz:
— Mestre Raimundo desapareceu, míster! Somos a
Turma do Posto 4, de Copacabana, e viemos a Fortaleza
decifrar esse mistério! Mestre Raimundo é o avô do nosso
colega Carlão! Ora, como o senhor foi visto conversando com
Mestre Raimundo, um pouco antes de ele desaparecer,
gostaríamos que nos ajudasse a seguir a pista dele!
Understand?
O advogado nem piscou os olhos.
— Vocês estão enganados, my boy! Eu não tenho o
prazer de conhecer Mestre Raimundo. Já ouvi falar nele, pois é
um famoso pescador de lagostas, mas não sei de nada a
respeito de seu desaparecimento. Creio que isso basta, não
basta? Procurem uma pista noutro lugar! E dê-me licença, my
boy, pois não posso perder tempo com bobagens! Sou um
homem muito ocupado!
Ainda tentei discutir com ele, mas fui posto para fora do
seu gabinete. Na saída, ameacei:
— Tá legal, doutor! Se o senhor não quer colaborar com
a Turma do Posto 4, tanto melhor! Iremos fazer queixa à
polícia! E, aí, o senhor vai ver com quantos paus se faz uma
jangada.
Depois disso, fomos escorraçados da God Save The
Lobster Co. e só paramos, para respirar, em frente à Praia de
Iracema.
— O camarada é aquele mesmo! — disse eu. — Foi a
cabeça dele que eu vi andando pelo alpendre! E, pelo jeito
como nos tratou, deve estar envolvido no sequestro de Mestre
Raimundo! Mas como é que vamos provar isso? Um advogado,
de uma firma importante como essa, tem mais prestígio do que
uma patota de garotos, que nem sequer têm diploma de
detetives! Não vai adiantar nada fazer queixa à polícia!
Ninguém acreditará em nós!

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— Temos que encontrar uma prova contra ele! — disse


Príncipe. — Com uma boa prova nas mãos, podemos procurar a
polícia, sim, senhor. Afinal, Mestre Raimundo foi raptado! Só
não entendo porque um advogado de uma grande firma
americana pode estar envolvido no rapto de um modesto
pescador de lagostas!
— Eu também não entendo — retruquei. — Mas posso
jurar que está! Senão, ele não teria ido espionar a casa de
Mundinho, ontem à noite! Aqui há coisa! Olá se há!
— O maior grilo! — comentou Pavio Apagado. — Mas a
gente vai acabar matando ele! A gente já matou outros
maiores!
Voltamos para Mucuripe e ainda encontramos seu Inácio
e seu Severino no porto das jangadas, fazendo perguntas a
respeito de Mestre Raimundo. Mas ninguém sabia de nada. Às
onze horas, represamos à casa dos avós de Mundinho e fomos
almoçar. Cidinha perceber a nossa incrementação e ficou cheia
de curiosidade. Tive que lhe contar, em segredo, a nossa
aventura na sede da companhia das lagostas.
— Que legal! — exclamou Cidinha. — Quer dizer que a
gente vai ter que enfrentar a maior empresa norte-americana,
com advogados e tudo? Essa vai ser a maior operação da
Turma do Posto 4! Tomara que a gente não acabe no xadrez,
por ter se metido com uma gangue tão importante!
Dona Auta ouviu nossos cochichos e quis saber do que se
tratava. Tive que lhe confessar que estávamos investigando o
sumiço de Mestre Raimundo.
— Talvez seja melhor chamar a política — disse a avó de
Carlão. — Não quero que vocês se metam nisso! Raimundo
ficou apavorado, depois daquela briga! Deve ser uma coisa
muito séria! Tenho até medo de procurar a polícia e, ainda por
cima, sofrer um vexame qualquer! Gente pobre precisa agir
com muita cautela!

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Começamos a discutir o assunto, no alpendre, quando


ouvimos o ruído de um automóvel, na rua, em frente à praia.
Na mesma hora, Cidinha soltou um gritinho de surpresa e foi
apanhar um papel, que estava caído na entrada do alpendre.
Ninguém tinha visto quem pusera o papel ali.
— É um bilhete anônimo! — anunciou Cidinha, depois de
desdobrar o papel. — Que legal! Os bandidos estão com medo
da Turma do Posto 4.
Apanhei o papel das mãos dela e li, em voz alta:

Não procurem a polícia. Mestre Raimundo já vai voltar


para casa. Se vocês desobedecerem, é muito pior.

As letras de forma, mal traçadas, não revelavam a


identidade de seu autor. Como havia um erro de gramática até
mesmo um jangadeiro poderia ter escrito aquilo.
— Operação Jangadeiros! — sussurrei, no ouvido de
Príncipe. — Vamos nos reunir nos fundos da casa! Traga a sua
lupa e o material para levantar impressões digitais! Este bilhete
tem que ter uma pista! Afinal, nós somos ou não somos
detetives?
O gordo assentiu e foi buscar a sua lente redonda, uma
caixinha com pó de grafite e um pincel macio. Um minuto
depois, estávamos todos reunidos, debaixo de um cajueiro, nos
fundos do barraco. Todos menos Mundinho (que não pertencia
à Turma do Posto 4) e Pavio Apagado. Pois é, Pavio Apagado
tinha desaparecido!
— Essa não! — exclamou Cidinha. — Cadê o moleque?
Ele almoçou do meu lado! E saiu para ir ao banheiro!
Procurei Pavio no banheiro, mas não estava. Não estava
em nenhum lugar da casa de taipa, nem nos seus arredores!
Tinha sumido, mesmo!

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— Foi raptado! — esbravejou Carlão, cerrando os punhos.


— Os bandidos pegaram Pavio, para cobrar um resgate por ele!
Ou, então, para nos obrigar a desistir da operação! Mas isso
não fica assim! Eu pego esses gângsteres, dou um taque neles
e...
Mundinho reuniu-se a nós e, ao saber que Pavio tinha
desaparecido, também ficou feito uma fera. Queria ir à sede da
companhia de lagostas, brigar com o Dr. Jomite, mas nós não
deixamos. Foi uma boa providência, porque, uma hora depois
quando já tínhamos desistido de pesquisar as letras e as
inúmeras impressões digitais do bilhete anônimo, Pavio
reapareceu, muito fagueiro, com um picolé na mão.
— Onde é que você foi? — gritei, com vontade de dar um
tapa no moleque. — Pensamos que também tivesse sido
sequestrado! Que tipo de imprudência você cometeu, desta
vez?
— Imprudência nenhuma! — respondeu ele, orgulhoso,
chupando o picolé, sem oferecer uma lambida a ninguém. —
Fui atrás daquele gringo da cabeça de fogo, só isso! E, agora,
já sei que foi ele que jogou um papel no alpendre! A casa de
Mestre Raimundo não é lata de lixo!
— O quê?! — exclamamos, de boca aberta.
— É isso mesmo! Eu estava no banheiro, espiando para
fora, quando vi uma mão desse tamanho jogar um pedaço de
papel na entrada da varanda, como se fosse lata de lixo! Me
abotoei e saí correndo, para ver quem era o atrevido. Aí, só vi
um fusca saindo dali em frente, na rua. Não deu para ver quem
era o careta que estava no carro. Então, o que foi que eu fiz?
Esperamos que ele continuasse, mas ele ficou à espera
da resposta.
— O que foi? — indagou Príncipe, impaciente.
— Me pendurei atrás do carro e fui de carona! E vocês
sabem onde foi que o fusca parou?

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Nova pausa.
— Não — disse Cidinha, irritada. — Onde foi? Fale de
uma vez!
— Parou naquela avenida onde nós estivemos, em frente
à Praia de Iracema! E o motorista, quem era, adivinhem?
— Quem era? Bomba! — gritou Carlão.
— Era o homem dos cabelos de fogo, sem tirar nem pôr!
Felizmente, ele não me viu. E eu voltei, de carona, num
caminhão que tinha para Mucuripe! E até ganhei um picolé, do
ajudante do motorista!
A revelação sobre o homem dos cabelos de fogo nos
deixou deslumbrados.
— Puxa! — exclamou Príncipe. — Já temos uma prova
contra o Dr. John Smith! Foi ele o autor do bilhete anônimo!
Mas ainda não sei se devemos chamar a polícia ou...
— Vamos proceder a uma votação — disse eu. — Quem
foi a favor da política, levante um dedo! Quem preferir
continuar as investigações sem a política, fique quieto! Um,
dois e... três!
Todos ficaram quietos. Não havia dúvidas de que a
Turma do Posto 4 confiava muito em si mesma.
Depois disso, voltamos a examinar o bilhete anônimo e a
traçar planos para combater o Dr. John Smith e a firma em que
ele trabalhava. Onde estaria escondido o avô de Carlão? Era
isso o que precisávamos descobrir!

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Capítulo VI – A Volta do Desaparecido

Mas não foi preciso cairmos em campo, para descobrir


onde estava Mestre Raimundo. Pouco depois de termos voltado
para dentro da casa de taipa, ouvimos um alarido, do lado de
fora, e três homens apareceram no alpendre. Dona Auta e
dona Maria correram, na nossa frente, para ver o que era. Dois
dos homens eram seu Inácio da Cuia e seu Severino, e o
terceiro era um senhor de cabelos brancos, cara de índio, com
um boné azul no alto da cabeça. Usava uma japona preta,
velha e esfiapada, com botões de metal dourado. Cada botão
tinha uma âncora gravada.
— Raimundo! — gritou dona Auta.
— Pai! — gritaram dona Maria e Mundinho.
E a mãe e a filha correram para abraçar o velho, que,
afinal, era o avô de Carlão. Bem que o bilhete anônimo dissera
que ele já ia voltar para casa!
— O que aconteceu? — perguntou dona Maria,
acariciando a barba rala do idoso pescador. — Onde é que o
senhor estava? Nós chegamos ontem, do Rio, para visitá-lo!
Está se sentindo bem, papai?
Mestre Raimundo olhou ao redor, para a casa velha e
para o cajueiro dos fundos, e uma lágrima apareceu nos seus
olhos, entre as pálpebras engelhadas.
— Não aconteceu nada — respondeu, sacudindo a
cabeça. — Agora, está tudo bem! Eu tive uma desavença com
dois desordeiros da vila e resolvi desaparecer por uns dias,
para evitar outras brigas. Foi só isso!
— Mas onde é que você estava, meu velho? — insistiu
dona Auta. — Por que não deu notícias? Pensávamos que você
tivesse saído do mar e morrido afogado! Ou coisa pior!
— Vira essa boca pra lá! — resmungou Mestre Raimundo.
— Não houve nada disso! Eu só passei estes dois dias na casa

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

de um amigo, lá na Barra do Ceará. Mas agora, estou de volta.


Não aconteceu nada, ô gente! E é melhor não se falar mais no
assunto!
— O senhor está passando bem, pai? — perguntou
Mundinho, ao ver o abatimento do velho.
— Estou, sim! Apenas com fome e com sede. Ainda não
almocei. E não me façam mais perguntas. Não posso dizer mais
nada, além o que já disse! Não aconteceu nada! Nada! Nada!
Dona Auta providenciou logo o almoço do marido e ele
sentou-se à mesa, para comer. Eu e o resto da turma ficamos
na porta da sala, olhando fixamente para o velho lobo-do-mar.
Carlão já tinha nos apresentado ao avô, mas este não ligara
muito para nós, pois não conhecia a força da Turma do Posto
4...
— Por favor, meninos — disse ele, ao ver a atenção de
que era alvo. — Vão dar uma voltinha, está bem? Não fiquem
me olhando, como se eu fosse um bicho raro! Deixem-me
comer em paz, por favor!
E pôs-se a devorar o peixe cozido e o pirão de caju que
dona Auta lhe servira. Príncipe fez um sinal com a cabeça e
saímos da casa, indo nos reunir debaixo do cajueiro.
— Operação Jangadeiros! — sussurrou o gordo.
— Operação Jangadeiros! — repetimos, em voz um pouco
mais alta.
— Tem roupa na corda... — acrescentou Pavio Apagado,
cutucando o meu braço e o braço de Cidinha.
Realmente, Mundinho também ali estava, cheio de
curiosidade, querendo conhecer os segredos da Turma do
Posto 4. Aquilo era contra o regulamento, mas, como o tio de
Carlão merecia nossa confiança e até nos ajudara a localizar o
antipático Dr. Jomite, achei que ele podia ouvir os debates, na
nossa assembleia geral. O depoimento do jovem jangadeiro
podia nos ser útil, na investigação do mistério.

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— Que é que você acha, Mundinho? — indaguei,


encarando o rapaz. — Acha que seu pai disse a verdade?
— Meu pai sempre diz a verdade! — respondeu ele, em
tom severo. — Um jangadeiro não mente, a não ser quando é
preciso. Desta vez, eu acho que papai mentiu, mesmo. Ele não
esteve na Barra, foi sequestrado! Portanto, tem um grande
mistério nisso tudo! Papai está com medo de alguma coisa!
— Justamente o que eu acho — falou Príncipe. — Mestre
Raimundo foi raptado, com toda a certeza, mas os bandidos
que o raptaram ficaram com medo de alguma coisa e
resolveram dar-lhe liberdade, outra vez. Mas devem tê-lo
ameaçado, para que ele não diga a verdade para a família! É
por isso que ele tem medo de falar! Certo?
— Certo — disse eu. — E quem são esses bandidos?
Sejam eles quem forem, estão ligados ao Dr. Jomite! Foi depois
que nós visitamos o advogado daquela firma, e falamos em
chamar a polícia, que ele resolveu escrever o bilhete anônimo e
soltar o Mestre... Está na cara, não está?
— Na caríssima! — confirmou Cidinha, empolgada. —
Mas, por que é que o avô de Carlão foi sequestrado? Tem
lagosta nesse negócio! Mestre Raimundo é pescador de
lagostas e o Dr. Jomite pertence a uma empresa que compra e
vende lagostas, segundo me parece...
— É isso mesmo — falou Mundinho. — Aquela companhia
compra e exporta lagosta, depois de tratadas na fábrica. Mas
nunca comprou nenhuma a papai. A gente vende as lagostas
diretamente aos hotéis de Fortaleza. Papai tem uma freguesia
certa e a gente ganha o bastante para viver, sem precisar de
intermediários.
— Quanto costuma ganhar Mestre Raimundo na pesca
das lagostas? — indaguei, sem refletir sobre minha indiscrição.
— Varia muito — enrolou Mundinho, sem querer contar
toda a verdade.

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— Depende do tamanho da lagosta. As grandes dão um


bom lucro. Agora, por exemplo, a gente está com sorte, porque
papai descobriu um viveiro de lagostas muito rico, lá no meio
do Oceano Atlântico. Os outros pescadores vendem as lagostas
por uma ninharia, aos intermediários.
— Seu pai está certo — comentou Príncipe. — São
sempre os intermediários que exploram os produtores e
encarecem o produto! A pesca das lagostas, no litoral
nordestino começou praticamente por volta de 1962, quando
muitos jangadeiros se dedicaram a esse tipo de pesca. Mas eles
vendem o produto aos tais intermediários, que o revendem a
preços altos, enquanto pagam aos jangadeiros uma quantia
irrisória por lagosta! É ou não é, Mundinho? Eu entendo de
tudo sobre lagostas!
— Pois não é que entende mesmo?! — exclamou
Mundinho, deslumbrado. — Mas nós vendemos o produto
diretamente nos hotéis. O lucro é dividido em oito partes, cinco
para o papai que é o mestre e o dono da jangada, e uma parte
para cada outro tripulante. Eu também recebo uma parte.
Fazendo cinco pescarias por semana a gente consegue um bom
dinheiro por mês! Às vezes...
— Um minuto! — atalhei. — Você falou que seu pai tem
um viveiro de lagostas muito rico?
— Não é bem isso — esclareceu o rapaz. — O pai
encontrou um parcel, em alto-mar, num lugar que só ele
conhece, onde tem as melhores lagostas da região. É cada
bicho deste tamanho! Só a gente é que pesca naquele lugar, no
meio do oceano, longe da costa. O lugar é mais raso do que o
resto do mar. Mas só o pai é que sabe onde ele fica, pois tem
um aparelho que ele inventou e que localiza o parcel. Não tem
nenhuma ilha por perto.
— Que bacana! — exclamou Cidinha. — Esse aparelho
deve ser uma espécie de radar cearense!

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— É uma caixa de madeira com uma janela de vidro e um


mecanismo complicado, por dentro — explicou Mundinho. —
Mas só o pai é que sabe mexer nele. A gente sai na jangada e
vai, direitinho, para o viveiro das lagostas. Aí, é só jogar o puçá
e ir botando os bichos no samburá...
— O resto da turma também não sabe onde fica o parcel?
— indagou Príncipe, desconfiado.
— Sabe, não. Nem seu Inácio, nem seu Severino sabem
usar o aparelho. Sem o pai no barco de governo, a jangada não
sai.
— Um parcel rico em lagostas graúdas, hem? —
resmunguei, varado por uma suspeita. — Creio que está aí a
resposta!
— Que resposta? — perguntou Cidinha, com o olhão azul
arregalado.
— A solução do mistério, ora essa! Mestre Raimundo está
sendo perseguido e foi sequestrado por causa desse viveiro de
lagostas. Naturalmente, a God Save the Lobster quer saber
onde fica o parcel, para explorar essa pesca maravilhosa, e
Mestre Raimundo não quer dizer! Por isso, ele foi agredido e
raptado! Trata-se de um caso de espionagem industrial, acho
eu... Espionagem industrial dá uma operação muito bacana!
— Isso mesmo! — disse Príncipe. — Ainda que
roubassem o radar cearense de Mestre Raimundo, os donos da
companhia não encontrariam o parcel, porque não saberiam
manejar a tal caixa de madeira! Se é que ela ainda não foi
roubada...
— Foi não — disse Mundinho. — O pai sempre esconde a
caixa num lugar que só ele e eu conhecemos. E a primeira
coisa que eu fiz, quando ele sumiu, foi ver se a caixa estava
lá... E está! Ninguém tocou nela!
— Qual é a sua opinião, Príncipe? — perguntei, voltando-
me para o gordo. — Mestre Raimundo não vai falar, com medo

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

de uma vingança... Como é que vamos ter certeza de que o Dr.


John Smith está metido nisso?
— Só se Mestre Raimundo falasse sem saber... —
murmurou Cidinha.
Olhei fixo para ela e tive uma inspiração. Já sabia como
proceder, para que Mestre Raimundo confessasse que fora
agredido e raptado por espiões industriais! Era só usar o
gravador que Cidinha ganhara nesse Natal! Eu sabia que ela
levara o aparelho, na sua mala de mão, para gravar as canções
dos jangadeiros de Mucuripe!

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Capítulo VII – A História do Mestre

Pedi licença aos outros, chamei Cidinha em particular e


revelei-lhe o meu plano. No princípio, ela não entendeu.
— Mas Mestre Raimundo não quer falar, Lula! De que
adianta botar o meu gravador na boca dele? Ele não vai abrir a
boca!
— Entenda, meu bem! Vamos colocar o aparelho no
quarto dele, antes que ele acabe de almoçar. Depois do
almoço, com certeza, ele vai descansar um pouco, no quarto, e
dona Auta vai lhe fazer companhia... Garanto que ele vai contar
para a esposa o que aconteceu, realmente! E, aí, tudo será
registrado na fita magnética do gravador, escondido debaixo da
cama! Morou?
— Ah! E quem é que vai botar o gravador debaixo da
cama? — perguntou ela, desconfiada.
— Você, ué!
— Eu, não!
— Você, sim! Não tem perigo nenhum, sua boba! Se eu,
ou algum outro menino, entrar no quarto, Mestre Raimundo
pode suspeitar do lance... Mas você, não. Ninguém suspeita de
uma menina com a cara que você tem...
— Cara de quê? — bronqueou ela. — Cara de boboca,
não é?
— Cara de ingênua, Cidinha! Você é tão bonita, e tão
meiga, que todo mundo confia em você... Faça isso, tá legal? É
uma ordem!
Só assim Cidinha se decidiu. E, enquanto Mestre
Raimundo comia, na sala do barracão, ela foi buscar o seu
gravador K-7 e levou-o, disfarçadamente, para o quarto do
dono da casa. Eu fiquei distraindo dona Auta e dona Maria, na
sala, para que Cidinha não fosse surpreendida na sua atividade
de espiã eletrônica. Meio minuto depois de ter entrado no

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

quarto do casal, Cidinha apareceu reapareceu e piscou um olho


muito azul, dando a entender que tudo tinha corrido bem. O
cartucho de fita magnética do gravador era daqueles que levam
uma hora para desenrolar de um lado e enrolar do outro.
Mestre Raimundo acabou de comer e, de acordo com as
minhas previsões, disse que ia descansar um pouco. A comida
tinha caído na fraqueza... Mas falou em se deitar na rede do
alpendre! Ao ouvir isso, eu e Cidinha ficamos alarmados.
— Ih! — exclamou Cidinha. — Como eu gosto dessa rede!
Que pena, que Mestre Raimundo vai se deitar nela! Bem que
eu gostaria de me balançar um pouquinho na rede... mas,
assim, não dá...
— Não seja por isso — acudiu eu. — Mestre Raimundo
não se importa em ir fazer a sesta no quarto dele, em
companhia de dona Auta... Assim, você pode brincar na rede,
Cidinha. Não é mesmo, Mestre?
O velho lobo-do-mar resmungou qualquer dois, mas
concordou. E foi para o quarto, acompanhado pela mulher. Eu
e Cidinha soltamos um suspiro de alívio. Agora, era só esperar
pelo resultado da gravação.
Seu Inácio da Cuia e seu Severino tinham ido embora,
prometendo voltar mais tarde, para receberem ordens do
Mestre; reuni a Turma do Posto 4 no alpendre e, enquanto
Cidinha se balançava na rede, cheia de falso entusiasmo,
ficamos jogando bola de gude na terra batida. Uma hora se
passou. Aproximei-me de Cidinha e perguntei, em voz baixa, se
o gravador desligava sozinho.
— É automático — sussurrou ela. — Quando a fita se
esgota, ele dá um estalo e o cartucho salta para fora. Mas só
salta pela metade. Deus permita que eles não ouçam o estalo,
debaixo da cama!
— Deus permita! — repeti fervorosamente.

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Mais meia hora se passou e nada de Mestra Raimundo ou


dona Auta saírem do quarto! Eu já estava suando frio. Será que
eles tinham descoberto o gravador, escondido debaixo da
cama?
Finalmente, às quatro horas da tarde, seu Inácio e seu
Severino voltaram a aparecer, querendo falar com o dono da
jangada. O velho pescador saiu do quarto, acompanhado pela
esposa, e foi falar com os tripulantes de sua embarcação.
Enquanto eles conversavam, na sala, eu deslizei
disfarçadamente para fora e entrei no quarto do casal. O
gravador de Cidinha estava debaixo da cama, desligado, com
metade do cartucho para fora. Agarrei nele e saltei pela janela
do quarto, para não ter que passar outra vez pela sala. Leve o
gravador para debaixo do cajueiro, virei o cartucho e tornei a
enfiá-lo no aparelho, apertando o botãozinho da “reprodução”.
Durante alguns minutos não se ouviu nada, no alto-
falante, a não ser um zumbido e alguns estalos. Mas, por fim,
escutei a voz de dona Auta, muito longe, dizendo para o marido
se deitar na cama. Fiquei cheio de curiosidade e de receio. O
que será que marido e mulher iriam dizer, julgando-se sozinhos
no quarto? Aquele tipo de espionagem não me agradava nada,
pois fazia com que eu me sentisse um criminoso!
Mas não houve nenhuma indiscrição. Depois de ouvir
algumas palavras incompreensíveis, que deviam ter sido
resmungadas por Mestre Raimundo, escutei claramente a voz
de dona Auta, perguntando ao marido o que é que tinha
acontecido realmente com ele.
— Agora, você pode falar a verdade — dizia a vó de
Carlão. — Estamos sozinhos e ninguém nos escuta. Você foi
raptado, não foi?
— Sim — respondeu a voz grave de Mestre Raimundo. —
Eles me pegaram. Vou te contar tudo o que aconteceu, mulher.
Mas, pelo amor de Deus, você não comente isso com ninguém!

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Eles ameaçaram botar fogo na nossa casa, se eu contasse a


história a outra pessoa! Ninguém deve saber de nada! E muito
menos esses meninos de Copacabana, que são muito
enxeridos!
Que alegria senti! Apurei o ouvido e escutei atentamente
o relato de Mestre Raimundo. A história dele era incrível! Bem
que valera a pena a gente ter se metido naquela operação!
O depoimento do velho jangadeiro durou apenas dez
minutos; o resto da fita magnética não tinha gravado nada de
interessante. O carretel ainda não tinha acabado de girar,
dentro do cartucho do gravador, e Cidinha apareceu nos fundos
da casa, à minha procura.
— E então? — indagou ela, empolgada. — Deu certo? Ele
falou?
— Falou! — respondi, vitorioso. — O assunto é “quente” à
beça! Agora, sou eu quem vai falar com ele! Não podemos
permitir que esses bandidos façam uma coisa dessas com o avô
de Carlão!
— Nem que não fosse o avô dele! Qualquer pessoa
humana, vítima de uma perseguição, merece a solidariedade da
Turma do Posto 4!
Nesse momento, Príncipe também apareceu, nos fundos
da casa, querendo saber o que é que nós estávamos
escondendo dele.
— Operação Jangadeiros! — respondi. — Já sei por que
Mestre Raimundo foi sequestrado! Aguentem a mão, vocês
dois, que eu vou fazer com que o avô de Carlão confirme a
revelação do seu segredo!
Príncipe e Cidinha se entreolharam, preocupados,
enquanto eu me dirigia corajosamente para a sala da casa de
taipa. Mestre Raimundo e seus dois companheiros de jangada
estavam combinando sair para a pesca da manhã seguinte.

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— Com licença, Mestre — disse eu, encarando o velho


com firmeza. — Na qualidade de líder da Turma do Posto 4,
peço-lhe uma audiência em particular! O senhor tem que
confiar em nós, Mestre! Se aqui estamos, em Mucuripe, é
porque queremos ajudá-lo a resolver o seu problema!
— Não há nenhum problema, meu filho — respondeu ele,
nervoso. — Esqueçam-se disso! Tudo já passou e a nossa vida
precisa voltar ao normal! Eu tenho que...
— Nada passou! — atalhei, com voz firme. — Tive um
sonho, Mestre, no qual vi e ouvi tudo o que aconteceu com o
senhor e os homens da God Save The Lobster! E não quero
que ninguém bote fogo nesta casa!
O velho jangadeiro ficou pálido como um defunto.
— Ô xente! Você sabe?
— Sei! Mas quero ouvir a história diretamente de sua
boa, para confirmar as minhas suposições! Podemos bater um
papo em particular? Ou o senhor prefere que eu vá chamar a
polícia? Fique sabendo que isso é um caso de política!
— Não! — gemeu o pobre homem. — Nada de polícia!
— Então, vamos bater um papo, tá legal?
Dona Auta também estava apavorada, pensando que eu
fosse um adivinho. Ela estava longe de conhecer a espionagem
eletrônica...
— Está bem — suspirou Mestre Raimundo. — Venha,
comigo, até o quarto, meu filho! Vocês são terríveis! Eu... vou
lhe contar tudo!
Que alívio! Entramos no quarto do casal, ele fechou a
porta e sentou-se na beira da cama.
— O que é que você sabe? — indagou, abatido. — Como
foi seu sonho?
— Sei que o senhor está sendo perseguido por dois ou
três funcionários daquela companhia estrangeira, que querem
descobrir o local do parcel das suas lagostas! E sei que, depois

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

de agredi-lo, há dias, os bandidos o sequestraram, para obrigá-


lo a falar! Mas o senhor não disse nada. E eles ameaçaram
queimar a sua casa, se o senhor procurasse a polícia! Foi assim
o meu sonho!
— Foi assim a realidade — confessou Mestre Raimundo.
— Mas quem são vocês, para enfrentar aqueles bandidos?
Vocês são umas crianças!
— Isso é o que o senhor pensa! O senhor não conhece a
Turma do Posto 4! Conte a história direitinho e deixe o resto
por nossa conta! Eu lhe prometo que não chamaremos a
polícia. Aliás, a nossa patota nunca precisou da polícia, para
decifrar os mistérios e ajudar as pessoas humanas e os animais
em dificuldades!
— Os animais? — gemeu ele.
— Os animais, também! Mas isso, é claro, não se refere
ao senhor...
Então, o velho jangadeiro respirou fundo e contou a sua
história:
— Tudo começou no princípio do mês, quando dois
empregados da companhia das lagostas me procuraram e
quiseram me obrigar a dizer onde fica o parcel das lagostas
graúdas, que só eu conheço. Eu não disse nada e eles me
bateram, mas nem assim eu contei onde fica o parcel! Ai, eles
ameaçaram botar fogo na minha casa, se eu procurasse a
polícia. Quando foi anteontem, o Dr. Jomite, que é um
advogado da empresa, também falou comigo, pedido que eu
lhe vendesse o meu aparelho de localizar lagostas graúdas. Eu
não quis fazer negócio com ele e, então, os outros dois
bandidos me raptaram e me levaram para uma casa velha, lá
na Praia do Futuro, perto das dunas, a cinco quilômetros da
capital. Aí, eles me deixaram de castigo, sem comer nem
beber, exigindo que eu falasse. Mas eu não falei! Passei dois

60
Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

dias e duas noites preso, até que, hoje eles me soltaram, em


Fortaleza, e me deixaram voltar para Mucuripe.
— Para que é que a companhia das lagostas quer
conhecer a localização do seu parcel? — indaguei. — Eles
também pescam lagostas?
— Não. Eles apenas tratam o produto, para exportação.
Mas pode ser que queiram pescar, com barcos modernos e
ajuda de máquinas que sugam as lagostas às centenas. Ouvi
falar muito nesses barcos pesqueiros com radares e tudo o
mais. É um desperdício de peixe que você nem queira saber!
— Pesca tecnológica — esclareci, gravemente. — A
máquina substituindo o homem. Ora, como a máquina não
raciocina por conta própria, acaba fazendo besteiras!
— É isso! Se eles descobrem o meu viveiro de lagostas
graúdas, em pouco tempo acabarão com as reservas! Essas
grandes empresas pescam em alta escala, para exportar o
produto, e não respeitam nem os filhotes das lagostas! A gente
pesca com bom senso, recolhendo apenas os bichos bem
desenvolvidos. Mas eu não falei nada, nem vou falar! Só tenho
medo de que aqueles bandidos cumpram a ameaça e toquem
fogo nesta casa!
— Não se preocupe, Mestre Raimundo — respondi, com
voz firme. — A Turma do Posto 4 está empenhada na Operação
Cabe... na Operação Jangadeiros! Conte com a gente, tá legal?
Antes de que esses invasores dos parcéis alheios toquem fogo
nesta casa, se for preciso, a gente toca fogo na empresa deles!
E tenho dito!
Pela primeira vez, vi Mestre Raimundo sorrir. Não tive a
menor dúvida de que ele confiava na Turma do Posto 4. Agora
é que ia começar, verdadeiramente, a Operação Jangadeiros!

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

SEGUNDA PARTE
O Radar Cearense

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Capítulo I – Viagem Decidida

Mestre Raimundo tinha combinado, com a sua turma,


saírem para pescar na manhã seguinte. Já fazia quatro dias que
a jangada não se fazia ao mar e a venda das lagostas fora
interrompida.
— É um grande prejuízo! — queixou-se o velho
jangadeiro, a seu Inácio e seu Severino, na sala da casa. —
Além disso, se a gente não trouxer novas lagostas, para vender
nos hotéis, acaba perdendo a freguesia! E são as lagostas que
nos dão o pão de cada dia!
— E Mestre Mocororó? — perguntou seu Inácio da Cuia.
— Ele também não sabe localizar o parcel. Só eu sei onde
fica o viveiro, porque só eu sei quando é que a caixa dá o sinal.
Partiremos amanhã de manhã, cedinho, e ficaremos dois dias
no mar. Na quarta-feira estaremos de volta, com a jangada
cheinha de lagostas graúdas! Deus nunca nos desampara,
meus irmãos!
Eu e os meus companheiros também estávamos na sala,
ouvindo a conversa dos mais velhos.
— Me diga uma coisa, Mestre — falei eu, olhando firme
para o avô de Carlão. — Quando o senhor esteve ausente de
casa, nestes últimos dois dias, não teria comentado com
alguém que iria voltar à pesca, logo que ficasse livre de
perseguição?
O velho jangadeiro pensou um pouco e respondeu:
— É... você tem razão, meu filho! Acho que eu disse que
tinha que voltar à pesca, logo que chegasse em casa. Por que
pergunta?
— Por nada — respondi, evasivamente. — Foi uma ideia
que eu tive... Aliás — acrescentei, com ar de pouco caso —
nem eu nem a Turma do Posto 4 temos o menor interesse em

65
Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

assistir à pesca das lagostas. Príncipe conhece o processo de


cor e salteado.
Minhas palavras provocaram um coro de protestos, entre
os membros da Turma do Posto 4. Justamente o que eu
esperava.
— Que ideia é essa, Lula? — censurou Cidinha. — Nós
viemos ao Ceará para estudar os hábitos dos jangadeiros, para
a nossa composição escolar! Já se esqueceu dos nossos
deveres? Lógico que queremos ver como é a pesca da lagosta!
Lógico que queremos passear de jangada, com o avô de Carão!
— Vocês querem mesmo? — perguntei, fingindo-me
admirado. — Ué! Pensei que preferissem ficar em casa, em
segurança. Viajar nessas jangadas tão frágeis é uma verdadeira
temeridade! Uma imprudência!
— Nem por isso — falou Príncipe. — As jangadas
parecem frágeis, mas são muito seguras. Só tem perigo quando
há tempestade e o mar fica muito agitado. Assim mesmo,
muitas jangadas de dormida custam mais a afundar do que um
caíque, ou até mesmo um iate. Como não têm bojo, elas são
praticamente insubmersíveis! Só o que tem é que dão um
banho na gente...
— Isso é verdade, Mestre Raimundo? — perguntei,
espantado. — Nós podemos ir com o senhor, assistir à pesca
das lagostas sem correr risco de um naufrágio?
— Esperem lá! — exclamou o velho. — Eu não estou
dizendo...
— Eu sei. O senhor não está dizendo que somos
obrigados a ir, na sua jangada, assistir à pesca maravilhosa.
Nunca se deve obrigar os estudantes a fazerem os seus
deveres escolares! Mas, como somos muito aplicados no
estudo, e viemos a Mucuripe aprender coisas úteis, aceitamos o
seu amável convite.

66
Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— Que convite? — estranhou dona Maria. — Papai não


está convidando vocês para...
— Entendi perfeitamente... — interrompeu Cidinha,
demonstrando que tinha entendido mesmo. — Lula tem razão.
Embora contra vontade, também vou assistir à pesca. Em
primeiro lugar, estão os nossos deveres de estudantes
disciplinados! Sou uma menina tímida e delicada, mas estou
resolvida a sacrificar o meu conforto, em prol dos estudos
sobre o modo de vida dos jangadeiros cearenses! Está bem,
Lula! Se se trata de adquirir conhecimentos sobre a condição
dos pescadores cearenses, concordo em acompanhar Mestre
Raimundo, seu Inácio, seu Severino e Mundinho! Mas não
garanto que seja útil nalguma coisa, pois nunca tripulei uma
jangada de dormida.
— Eu não vou! — disse Pavio Apagado. — Tenho medo
de que esse treco vire e afunde comigo! E eu não sei nadar!
— Lógico que você não vai — disse Carlão. — Você vai
ficar sozinho, na praia, servindo de isca para aquelas pessoas
que nós sabemos...
— Eu vou também! — gritou Pavio. — Não quero servir
de isca para ninguém! Não façam isso comigo, seus
desalmados! Me levem com vocês!
— Esperem um pouco! — acudiu Mestre Raimundo. — Eu
não falei que...
— Se é para o bem dos estudos tecnológicos do meu
ginásio — atalhou Príncipe, que também tinha entrado na
minha — eu me sacrifico e vou com vocês, assistir à pesca das
lagostas! Aliás, já conheço teoricamente o assunto e terei
satisfação em comprová-lo praticamente. Obrigado, Mestre
Raimundo! Meu professor vai ficar muito contente!
— Obrigado de quê? — gemeu o velho alarmado. —
Vocês querem ir, com a gente, ao parcel das lagostas graúdas?

67
Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— Todos nós — disse eu. — Seu neto Carlão e nosso


companheiro Pavio Apagado também aderiram à resolução, e
agradecemos a sua gentileza, uma vez que se trata de uma
viagem de estudos. Nós sabíamos que os jangadeiros
cearenses iriam insistir em nos mostrar sua pesca artesanal.
Muito obrigado!
Mestre Raimundo e os seus companheiros de turma se
entreolharam, perplexos. Depois, o velho jangadeiro suspirou e
disse:
— Bem... Se os meninos querem ir, o problema é deles!
Não há nenhum conforto, a bordo... mas, como se trata de
estudos, a gente dá um jeito. Eu sempre tive um grande
respeito pelos estudos, porque sou analfabeto. Não podemos
prejudicar os estudos da mocidade, pois os jovens de hoje
serão o Brasil de amanhã, como diz o rádio. Mas, francamente,
não me lembro de ter convidado ninguém para ir com a gente
ao parcel das lagostas graúdos! Não me lembro, mesmo!
Aquele problema estava resolvido. Graças ao meu
expediente, a Turma do Posto 4 iria acompanhar Mestre
Raimundo ao seu viveiro particular de crustáceos. Se eu não
tivesse enrolado o velho, talvez ele não quisesse nos levar na
sua jangada. E alguma coisa me dizia que aquela pescaria ia
ser uma das mais emocionantes já praticadas pela nossa
patota! Foi o que falei a Cidinha e Príncipe, quando eles me
chamaram, em particular, e perguntaram porque é que nós
tínhamos que ir passar dois dias em alto-mar, a bordo de uma
jangada de dormida.
— Vocês não entendem? — retruquei. — Foi uma
inspiração que eu tive! Mestre Raimundo falou, para os homens
que o raptaram, que ia voltar à pesca, amanhã de manhã...
Ora, se os bandidos estão querendo localizar o parcel das
lagostas graúdas, é lógico que vão seguir a jangada do Mestre,

68
Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

para ver onde é que ela vai parar! Aposto com vocês que
teremos espiões industriais andando atrás de nós!
— É mesmo? — perguntou Cidinha, impressionada!
— Lógico! E, assim, arrastando os bandidos atrás de nós,
para o alto-mar, será mais fácil desmascará-los! Mas Mestre
Raimundo não deve saber de nada, porque, senão, é capaz de
não querer sair com a jangada!
— E a gente cabe, todos, na jangada dele? — quis saber
Príncipe. — Acho que não vai dar! Uma jangada de dormida,
por maior que seja, não é um transatlântico! Pode afundar,
com o nosso peso, e aí...
— Nesse momento, Mestre Raimundo nos chamou e
voltamos a entrar na sala.
— Está tudo resolvido — disse ele. — Mestre Mocororó
vai sair com a gente amanhã de manhã. Assim, metade de
vocês vai na minha jangada e a outra metade, na jangada dele.
Agora, vocês escolham quem quer ir comigo e quem quer ir
com Mestre Mocororó. A menina vai comigo.
Não me agradava muito dividir a Turma do Posto 4, mas
não havia outro jeito. Então, ficou combinado que eu, Príncipe
e Cidinha iríamos na jangada de dormida de Mestre Raimundo,
ao passo que Carlão e Pavio, iriam na jangada de Mestre
Mocororó. Nenhum dos dois gostou da resolução, mas
acabaram se conformando.
— Uma jangada vai pertinho da outra — disse eu. —
Será, até, divertido, Carlão. Durante a viagem, a gente pode
fazer sinais semafóricos, uns para os outros... Leve uma
bandeirinha que nós levaremos outra, tá legal?
E a viagem ficou decidida. Dona Maria não queria que
Cidinha arriscasse a vida numa aventura daquelas, mas dona
Auta convenceu-a de que o perigo era mínimo, pois a jangada
do marido dela nunca sofrera nenhum acidente. Era feita de
piúba e resistente como o diabo.

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— O parcel não fica longe da costa, minha filha — disse


dona Auta. — Esteja descansada, que Deus protege os
cearenses. E, se não acontecer nada com os homens, também
não vai acontecer nada com a menina. Ela até vai apreciar o
passeio. Eu já andei de jangada e sei que é muito gostoso!
Depois disso, jantamos e fomos dormir. E eu tive a
impressão de ver uma sombra e um archote aceso, rondando a
casa de taipa, por volta da meia-noite. Mas até hoje ainda não
tenho certeza se era um espião industrial ou se tudo não
passou de um sonho. Eu estava empolgado com a operação e,
quando a gente se impressiona com uma coisa, chega a ver
fantasmas até no teto do quarto... O que interessa é que
ninguém botou fogo na casa de Mestre Raimundo. E todos
dormiram na santa paz do Senhor.

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Capítulo II – A Partida

Mestre Mocororó morava perto da casa do avô de Carlão.


Era um senhor alto e calado, que usava um chapéu de couro,
redondo, em vez de um boné, e tinha bigodes compridos e
caídos. Os outros tripulantes de sua jangada (igualzinha à de
Mestre Raimundo) eram: o proeiro César Cisco, um caboclo
parrudo e ignorante, o bico-de-proa Gumercindo (Guma), um
negro risonho, e o rebique Pereba, um garotão moreno, da
mesma idade de Príncipe e Carlão — 16 anos.
Às quatro horas da manhã seguinte, fomos acordados e
nos preparamos para a partida. Príncipe não se esqueceu de
levar uma bússola e um binóculo. Tomamos café com leite,
saímos da casa de Mestre Raimundo e fomos para a praia. Ali
já estavam os outros homens do mar, conversando
animadamente, diante do oceano largo e serena. Ainda estava
escuro; de um lado, a lua descia, vagarosamente, no horizonte;
do outro lado, começava a nascer a claridade do sol. Não fazia
frio nem calor; a temperatura era muito agradável.
As duas jangadas estavam pousadas na areia, em cima
de troncos de coqueiro, grossos e roliços, com as velas
enroladas embaixo. Outras embarcações já se faziam ao mar,
tripuladas por outros valentes jangadeiros. Eu e a Turma do
Posto 4, acompanhados por dona Auta e dona Maria, assistimos
aos preparativos para a largada. Vimos os homens carregarem
diversos equipamentos para cima das enormes pranchas de
madeira e, depois, empurrarem estas últimas, por cima dos
roletes, na direção do mar. Eram precisos seis homens, para
empurrarem cada jangada. Tal como Mundinho dissera,
aquelas embarcações rústicas tinham oito metros de
comprimento. A jangada de Mestre Raimundo chamava-se
“Dengosa” e a de Mestre Cocororó chamava-se “Saravá”.

71
Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— Jangada de dormida — disse Príncipe, enquanto


apreciava os esforços dos jangadeiros. — Tal como nos livros!
Cada uma delas pode carregar até uma tonelada de carga! Não
há barcos mais seguros e resistentes do que esses! Pelo
menos, espero que os livros estejam certos...
Afinal, as duas embarcações foram levadas para dentro
d’água e ficaram boiando, na beira da praia, ao sabor das
ondinhas. Aí começaram as despedidas. Dona Maria abraçou e
beijou Cidinha, dizendo-lhe que tivesse cuidado com os
tubarões e se divertisse bastante, durante o passeio. A partir
desse momento (depois de ouvir falar em tubarões) Cidinha
ficou muito séria. Mas tratou de disfarçar o susto.
Subimos para os nossos barcos e sentamo-nos no piso
oscilante. Carlão e Pavio Apagado estavam na bronca, porque
também queriam ir na jangada de Mestre Raimundo, mas
tiveram mesmo que embarcar na outra, de Mestre Mocororó.
— Adeus!
— Até à volta!
— Boa viagem!
Os jangadeiros desenrolaram e suspenderam as velas e
cada Mestre foi se sentar no seu banco de governo, na popa.
Eram cinco horas da manhã e o dia clareava de todo.
Vagarosamente, as duas jangadas se afastaram da praia,
enquanto nós acenávamos, a bordo delas, e as duas mulheres
acenavam, também, na beira da água. Cidinha abanava
distraidamente a mão no ar, com os olhos azuis parados, talvez
pensando nos tubarões... Dona Maria não devia ter falado
aquilo!
Eu e Príncipe nos sentamos em duas mimburas, de
pernas cruzadas, e ficamos assistindo às primeiras manobras
dos jangadeiros.

72
Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— Vai de bolina! — Gritou Mestre Raimundo,


mergulhando a prancha de madeira na água, para que
funcionasse como quilha.
O vento inflava a vela triangular, impelindo a jangada
para longe da praia. Pouco a pouco, a região de Mucuripe foi
ficando longe, cada vez mais longe, até que não deu para ver
mais nenhum detalhe da paisagem. Apenas uma linha grossa e
escura no horizonte, denunciava as costas do Ceará.
— Preparem-se para ver apenas céu e mar — avisou
Mestre Raimundo, agarrado à prancha de madeira. — Durante
oito ou nove horas não haverá mais nada para ver.
Ele se enganava, porém. Durante a longa viagem, vimos
diversas coisas interessantes. O mar era verde e brilhante, o
céu era azul e repousante, o sol brilhava no alto e uma porção
de peixes saltava ao redor da jangada. Tinha, até, peixinhos
que voavam! E, no espaço, havia gaivotas voando em círculos,
imitando planadores ou asas voadoras. Em breve, Cidinha
estava sorrindo, deslumbrada com o espetáculo, já esquecida
dos tubarões.
— Que bacana! — exclamava, a todo o instante. —
Parece, até, que a gente está andando, a pé, por cima das
águas! É impressionante, não é, Lula?
Eu concordava. A jangada deslizava, pela superfície do
mar calmo, quase sem se sacudir; e, como era muito baixinha,
parecia que a gente estava boiando, por um milagre, andando
na crista das ondas a pé enxuto...
— Nossos companheiros de viagem vêm pertinho —
comentou Príncipe, em dado momento, com o binóculo nos
olhos. — Daqui, dá para reconhecer Carlão e Pavio. Eles estão
de boca aberta, sentados no banco de governo. Deve ter sido
uma gentileza de Mestre Mocororó!
— Me empreste o binóculo — pedi. — Quero ver também!

73
Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Olhei pelo aparelho e vi que tudo estava em paz, a bordo


da outra jangada, que nos seguia a uma distância de cem
metros. Depois, Cidinha também olhou pelo binóculo e disse
que Mestre Mocororó estava preparando linha e anzol, como se
fosse pescar. Retomei o binóculo das mãos dela e confirmei o
fato.
— A gente também vamos pescar sardinhas, pelo
caminho — esclareceu Mundinho, sentando-se perto de nós. —
A gente precisa de peixes frescos, para servirem de isca para
as lagostas...
— Exatamente como nos livros — confirmou Príncipe,
gravemente.
Olhei, pelo binóculo, para a vela da jangada de Mestre
Mocororó e, depois, comecei a pesquisar o oceano largo, à
procura de alguma outra novidade. Não se via mais nada, a
não ser um ou outro peixe saltador. O mar estava calmo e
verde, como líquida esmeralda, igual ao mar descrito por José
de Alencar no seu romance Iracema.
Depois de uma hora de viagem, começou a pescaria de
anzol. Apenas eu, Cidinha, Príncipe e Mestre Raimundo não
pescamos nada; nós três continuávamos a apreciar a paisagem
marítima e o Mestre passou a se ocupar com uma caixa de
madeira crua, quadrada, que levava no colo. Vi logo que era o
tal “radar cearense”, assim batizado por Cidinha. Esperei alguns
minutos e fui fazer companhia ao avô de Carlão, junto a caixa
de madeira.
Ele fez acena afirmativo, sorrindo.
— Sempre para nordeste, meu filho. Por enquanto, não
tem o que errar. É só seguir a direção da agulha...
— Ah, é? Interessante... Nesse caso, essa caixa é uma
bússola, não é?
Ele ficou sério.

74
Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— Mais ou menos... Eu nunca vi uma bússola. Bússola de


cearense é o sol, de dia, e as estrelas, de noite.
E botou a caixa de madeira debaixo do banco de
governo, em cima do qual estava sentado. Percebi que ele não
queria falar sobre o aparelho de sua invenção. E, como eu
continuasse a olhar muito para a caixa, pôs um pedaço de lona
em cima dela.
Entretanto, seu Inácio da Cuia, seu Severino e Mundinho
estavam pescando peixes pequenos, que iam enfiando num
samburá. O cesto tinha a boca estreita e os peixes, por mais
que saltassem, não podiam sair.
— Cadê a bandeira? — perguntou Príncipe, de repente. —
Quero fazer sinais semafóricos a Carlão! Nós combinamos que
“bandeira no alto” quer dizer “tudo normal” e “bandeira
embaixo” quer dizer “piratas à vista”.
— Piratas? — Gemeu Cidinha, piscando o olhão azul.
— Piratas de mentirinha — esclareceu Príncipe, dando
uma risada. — Não há mais piratas, nem franceses nem
holandeses, nas costas do Ceará...
Fui apanhar uma flâmula vermelha, que tínhamos levado
para a brincadeira, e Príncipe pôs-se a trocar sinais com a
jangada de Mestre Mocororó, que continuava nos seguindo à
mesma distância de uns cem metros. Enquanto isso, peguei no
binóculo de Príncipe e fui me sentar na proa, próximo de seu
Inácio, pesquisando o horizonte com muita atenção. Durante
meia hora não vi nada de alarmante. A linha de terra estava
sumindo, ao longe, e só se via céu e mar. Mas, daí a pouco,
senti um baque no peito. Meus olhos, através das lentes do
binóculo, tinham acabado de surpreender uma outra vela
triangular, no horizonte, que não era a vela branca da jangada
de Mestre Mocororó! Chamei Príncipe e entreguei-lhe o
binóculo, pedindo-lhe que olhasse naquela direção. O gordo
obedeceu e soltou um gritinho de surpresa:

75
Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— Essa não!
— Essa sim!
— Puxa, Lula! Tem uma outra jangada nos seguindo, a
uns duzentos metros, pelo menos! Parece que está mais longe
porque as jangadas são baixinhas e a gente só pode ver a
vela... Aquela é uma vela bastante velha, quase preta, cheia de
remendos mais claros, como eu nunca vi igual! Será que você
está pensando o mesmo que eu?
Não respondi, pois não sabia o que ele estava pensando.
Mas não tinha dúvidas de que Príncipe estava enganado: ainda
havia piratas, nas costas do Ceará! E nós estávamos sendo
seguidos por eles! Aqueles remendos mais claros, naquela vela
desconhecida, podiam muito bem ser o desenho de uma
caveira com duas tíbias entrecruzadas!

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Capítulo III – A Pescaria

Almoçamos a bordo, por volta das onze horas da manhã,


e a viagem continuou. A essa altura, Mestre Raimundo já
estava usando o remo de governo, uma espécie de pá que
servia de leme. Reparei que ele não consultava mais o “radar
cearense” e isso me deixou intrigado. Mas, quando me viu
olhando para a caixa de madeira, coberta pela lona, o avô de
Carlão tratou de destapá-la e dar uma espiada no visor de
vidro.
— Tantos graus — murmurou ele. — Latitude...
longitude... Correto! Esta caixinha não se engana nunca!
Depois acenou afirmativamente com a cabeça e voltou a
tapar o aparelho com a lona.
A longa viagem já se tornara cansativa havia muito
tempo. Aquela história de navegar à flor da água, vendo
apenas céu e mar, era muito chata! Mas, finalmente, às duas
horas da tarde, Mestre Raimundo voltou a consultar o “radar
cearense” e anunciou:
— Estamos chegando! É aqui o parcel das lagostas
graúdas!
Olhamos para todos os lados e não vimos nada demais,
na superfície enrugada do mar, nem no alto dos céus. Nada! As
águas continuavam escuras e movediças e o céu continuava
azul, com algumas nuvens cinzentas. Tudo, exatamente, como
antes, durante as nove horas de viagem.
— Desconfio de uma coisa — murmurou Príncipe
inclinando-se para mim.
— De quê? — perguntei, alarmado.
— De que estamos fora das duzentas milhas referentes
ao mar territorial brasileiro! Ou seja, estamos no meio do
Oceano Atlântico, entre o Brasil e a África! Sabe lá o que é
isso?

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— Você está maluco! — exclamei. — Mesmo depois de


navegar nove horas, esta jangada não podia ter se afastado
tanto de Mucuripe! Vamos perguntar a Mestre Raimundo onde
é que estamos! Ele vai nos dizer!
Fizemos a pergunta e o velho pescador sorriu.
— Nem tanto à costa, nem tanto ao mar, meus filhos.
Estamos dentro das duzentas milhas marítimas, sobre a
plataforma continental brasileira. Mas só eu é que conheço este
lugar! É o trecho mais raso do Atlântico... e só por acaso é que
eu o descobri! Agora, vamos localizar o ponto exato do parcel,
que tem apenas uma milha de diâmetro.
— Um monte submarino, então? — arriscou Príncipe.
— Isso mesmo, menino esperto. O cume de um vulcão
extinto!
Dito isto, o Mestre jogou ao mar uma linha, com um peso
na ponta. Este afundou, levando a linha, e o Mestre foi dando
corda, dando corda, até que sentiu que o peso tocava o fundo
o mar.
— Trinta e sete metros! — anunciou. — Tome conta do
fio de prumo, Severino! Eu vou para o remo de governo!
Quanto a você Inaço, vá para a escota e prepare-se para
amarrar o cabo no espeque!
Os tripulantes da jangada se moveram, em silêncio, cada
um deles cumprindo a sua tarefa. Daí a pouco, seu Severino
anunciava:
— Vinte e nove!
Puxa! Vinte e nove metros de profundidade, apenas, em
pleno Oceano Atlântico! Era incrível! Por mais um pouco, um
navio de grande calado não poderia passar por ali! Príncipe
olhou para mim, espantado. Mas o nosso assombro aumentou,
cinco minutos depois, quando seu Severino gritou:
— Vinte e um! Vinte e dois! Vinte e um!

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— É aqui! — retrucou Mestre Raimundo, alvoroçado. —


Escota no calçador! Cordame no espeque! Arreiem a vela! O
vento está aumentando!
Os outros três tripulantes trataram de fazer o que ele
mandava. Seu Severino recolheu a linha de prumo e pegou nas
cordas da vela, enrolando-as num torno, que ficava na popa da
embarcação. Ao mesmo tempo, seu Início e Mundinho tratavam
de fazer descer a vela. Depois, o próprio Mestre Raimundo
pegou no tauaçu – a pedra furada de que Príncipe tinha falado
— e atirou-o na água. Aquele tipo de âncora desceu, por dentro
d’água, durante alguns minutos, até que a corda que a prendia
ficou frouxa; aí, o Mestre deu um puxão nela e anunciou:
— Estamos amarrados! Vamos às lagostas!
Eu, Príncipe e Cidinha nos encaramos, em silêncio.
— Vocês conhecem uma lagosta? — perguntou Príncipe,
com ar de sabichão, pronto para demonstrar a sua sabedoria
enciclopédica.
— Eu já comi — respondeu Cidinha. — Mas nunca vi uma
lagosta viva. Pavio falou que uma lagosta é um peixe vermelho
que anda para trás. Só quero ver!
— Apenas numa frase — retrucou Príncipe, divertido —
Pavio disse três besteiras! A lagosta não é peixe, é crustáceo; a
lagosta não é vermelha, é roxo-esverdeada; e a lagosta não
anda para trás, feito o caranguejo!
— É vermelha, sim! — insistiu Cidinha. — Eu já comi! A
carne dela é branca, mas a casca é vermelha! Igual ao
camarão!
— A casca da lagosta é roxo-esverdeada! — repetiu
Príncipe. — Só fica vermelha depois de cozinha, devido a um
processo químico. A lagosta é um crustáceo decápode macuro
marino, da família dos palinurídeos!
— Tudo isso? — perguntei espantado.

79
Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— Tudo! No inverno, elas vivem nas profundezas dos


mares, mas, no verão, costumam se avizinhar das costas,
preferindo os lugares pedregosos. Alimentam-se de peixes
pequenos e outros animais marinhos, e servem de alimento
para o homem. O representante brasileiro do lagostim europeu
é o Senex Argus, ou Palinurus Argus, que não tem as antenas
tão compridas como as outras lagostas da fauna do Norte da
Europa; estas não têm equivalente na fauna brasileira. A maior
lagosta que se conhece é o Homarus Americanus, uma espécie
rara, com pinças muito desenvolvidas, que atinge até meio
metro de comprimento. Mas essa espécie está quase extinta,
por ter sido muito pescada, nestes últimos anos. O que a gente
chama de lagosta não passa de lagostim, ou seja, o Palinurus
Vulgaris europeu. Entenderam?
Depois desse papo, começou a pescaria, com a jangada
imobilizada por cima do tal vulcão extinto. Os tripulantes
jogaram três cestos redondos ao mar e eles afundaram
bonitinho, presos a uma corda. No centro dos cestos iam peixes
mortos, para servirem de isca. Também jogaram três redes
redondas, tipo arrastão.
— Esses cestos são os puçás — informou Príncipe. —
Também servem para pescar camarões. Mas as lagostas
rendem mais.
Enquanto esperávamos pela volta dos puçás e das redes,
lembrei-me da Operação Jangadeiros. Pedi o binóculo de
Príncipe emprestado e pesquisei a superfície do mar, ao redor
da nossa jangada. A “Saravá” de Mestre Mocororó também
tinha arriado a vela e estava parada, a uns quinze metros de
nós. Vi Carlão e Pavio sentados na borda da jangada, batendo
com os pés descalços na água. Depois, voltei a pesquisar o
mar, mas não consegui localizar a outra vela triangular, com
remendos mais claros, que tanto me impressionara. O barco

80
Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

dos espiões tinha desaparecido. Ou, então, também arriara a


vela e seu casco não podia ser vista ao longe.
— Eles devem estar por perto! — sussurrei, para Príncipe.
— Naturalmente, estão à espera de que a nossa jangada fique
cheia de lagostas, para nos assaltar! É assim que procedem os
piratas!
— Você acha? — indagou o gordo, empalidecendo. —
Não temos armas, para resistir a uma agressão! Até me esqueci
de trazer minha espingarda de ar comprimido! Se aquela
jangada pertence ao Dr. John Smith e seus cúmplices, estamos
fritos! Eles podem até nos matar, para não deixarem
testemunhas da abordagem!
— Venderemos caro a nossa vida! — retruquei, metendo
a mão no bolso da calça e agarrando o meu canivete com saca-
rolhas.
Uma hora se passou e nada de lagostas! Outra hora
transcorreu. Afinal, Mestre Raimundo deu uma ordem e os
outros tripulantes da “Dengosa” recolheram os primeiros puçás!
E lá vinham as lagostas! Eram enormes, cheias de braços, de
aspecto ameaçador! E roxo-esverdeadas, em vez de vermelhas!
— Homarus Americanus! — exclamou Príncipe,
deslumbrado. — São as maiores do mundo!
— Que bichos feios! — gemeu Cidinha. — Se eu tivesse
visto eles ao natural, nunca que teria comido eles com
maionese! Pufte!
Os pescadores jogaram as lagostas nos samburás e
voltaram a fazer descer os puçás, com outra carga de peixes
mortos. O tempo se passou, com os jangadeiros recolhendo as
redes e as lagostas graúdas. Mais duas horas e começou a
escurecer. Ao mesmo tempo, um vento frio soprou sobre nós,
vindo do leste, do meio do Oceano Atlântico. Mestre Raimundo
olhou para o céu escuro, coberto de nuvens negras, e ficou
sério.

81
Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— Recolham os puçás e as redes! — ordenou. — Vamos


ter tempestade! A pescaria acabou!
Nem bem acabara de falar e o vento aumentou de
intensidade. As ondas cresceram, transformando-se em
vagalhões. E o céu ficou negro como se já fosse noite alta!
— Depressa! — voltou a gritar o Mestre. — É uma
daquelas que não mandam recado! Vamos sair daqui!
Seu Severino apressou-se a agarrar na corda da “âncora”,
mas, nesse momento, uma onda maior se levantou, às nossas
costas, e veio desabar em cima da jangada! A água
espumejante varreu a plataforma de madeira, arrastando tudo
o que não estava segura e quase nos arrastando também. Foi
um banho inesquecível!
— O cabo arrebentou! — era a voz de seu Severino,
misturada com o rugir do temporal. — Perdemos o toaçu,
Mestre!
— Para o diabo o toaçu! — retrucou o avô de Carlão. —
Não podemos usar a vela, com uma ventania dessas! Deixem o
mar nos levar!
E lá fomos nós, soltos na crista das ondas gigantescas,
sacudidos de um lado para o outro, agarrando-nos ao mastro e
aos bancos pregados nas mimburas.
— Ai, meu Deus! — gemeu Cidinha. — Dessa vez, a
gente vai morrer afogada!

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Capítulo IV – A Tempestade

De repente também começou a chover e a trovejar! Os


raios e os trovões cortavam o espaço negro, fustigando o
oceano revolto! Agarrei numa corda e amarrei Cidinha ao
mastro, para evitar que uma onda mais forte a levasse; depois,
mandei Príncipe se proteger debaixo do banco de governo e
fiquei abraçado ao banco-de-vela, onde também estava seu
Inácio da Cuia. Quanto a seu Severino e Mundinho, não
consegui mais enxergá-los, no meio daquele mundo de água
espumejante. Será que o mar bravio tinha arrastado os nossos
companheiros de viagem?
Mestre Raimundo estava sentado no banco de governo,
com as pernas abertas (o rosto gordo e pálido de Príncipe
aparecia entre as suas pernas), agarrado à pá que servia de
leme. Mas seus esforços eram vãos, no sentido de orientar a
jangada. A prancha de toras de madeira era impelida de um
lado para o outro, sem uma direção certa, ora subindo na crista
de uma onda, ora descendo para o fundo de um abismo. A
escuridão que nos cercava tornava a cena ainda mais
alarmante. Só de vez em quando é que um relâmpago
iluminava a superfície deserta do mar, para nos mostrar que
estávamos na maior solidão. Nem sinais da jangada de Mestre
Mocororó! Nem sinais da vela dos piratas! E, naquele momento
de angústia, bem que eu preferia ter os piratas ao meu lado!
Apesar de seus malfeitos, piratas são pessoas humanas, iguais
a nós.
Por cima do rumor cavo do mar e do crepitar incessante
da chuva, ouvia-se o choro magoado de Cidinha. Seus soluços
eram de cortar o coração! Por que é que eu tinha trazido
Cidinha para aquela aventura maluca, onde corríamos um
perigo de morte?! Comecei a chorar também.

83
Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Mas nem as nossas lágrimas, nem as nossas preces,


conseguiam aplacar a fúria da Natureza. A tempestade
continuou a fustigar a jangada, fazendo tudo com ela, menos
afundá-la. Parecia que o demônio se divertia ao nos torturar
daquele jeito! Às vezes, tínhamos a impressão de que íamos a
pique, mas logo subíamos, outra vez, para a crista de uma
onda, ou até mesmo para o espaço, por cima dela, esvoaçando
como um pássaro gigantesco! E tome chuva no lombo! E tome
trovões nos ouvidos! E tome relâmpagos nos olhos! Acho que,
em toda a minha vida, eu nunca tinha passado por um aperto
daqueles.
Durante duas horas a situação não se modificou, nem nós
saímos dos lugares onde estávamos agarrados. Finalmente, por
volta das nove horas da noite, as ondas diminuíram um pouco
de altura e a chuva diminuiu bastante de intensidade. Parecia
que o demônio tinha se cansado de brincar com a alma da
gente. Mas o céu continuava escuro, fechado pelas nuvens
negras, e o vento ainda não parara de todo. Ao sentir que a
jangada balançava menos e as ondas já não passavam por
cima dela, Mestre Raimundo criou novo ânimo e saiu do banco
de governo. Agarrado ao banco-de-vela, vi o velho lobo-do-mar
dar alguns passos cambaleantes, por cima do estrado de
madeira flutuante, e ir se amparar ao mastro onde Cidinha
estava amarrada pela cintura.
— Não chore, menina — disse ele. — O pior já passou. É
sempre assim. Agora, o tempo vai melhorar. E podemos voltar
à pescaria. Deus quis apenas experimentar a nossa fé!
— Anhmmm! — foi o comentário de Cidinha, com o olho
azul arregalado e coberto de lágrimas.
Também eu, ao ver que a jangada balançava menos,
larguei o banco-de-vela e dei uns passos trôpegos por cima dos
paus-do-meio. Seu Inácio da Cuia estava sentado no piso da
embarcação, agarrado a um samburá.

84
Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— Tudo legal? — perguntei, para dizer alguma coisa.


Nossos olhos já estavam acostumados à escuridão. Ele
me contemplou profundamente, viu os meus olhos vermelhos e
respondeu:
— Foi uma hora danada! Mas acho que não perdemos
ninguém...
Só então vi seu Severino e Mundinho, um pouco adiante
de nós, agarrados à carninga e ao torno da proa, onde estava
amarrada a corda do tauaçu. Só que a corda balançava de um
lado para o outro, partida ao meio, porque não havia mais
tauaçu...
— Alguém se machucou? — perguntou a voz de Mestre
Raimundo, na escuridão, do outro lado do mastro.
Ninguém respondeu. Apesar dos solavancos e das
chicotadas das ondas, nenhum de nós estava ferido. Tinha sido
só o susto.
— Agora, o tempo vai melhorar — continuou a voz do
Mestre. — Me ajudem a conferir os prejuízos! Perdemos coisa
que não foi vida!
Enquanto os tripulantes da jangada conferiam os
destroços que tinham sobrado em cima da embarcação, fui
desamarrar Cidinha.
— Tá tudo legal! — afirmei, com cara de bobo, para não
fingir aliviado. — O perigo passou! Essas coisas sempre
acontecem, aos jangadeiros que se aventuram no mar alto.
Para eles, uma tempestade é simples rotina... E, como disse
Príncipe, uma jangada é praticamente insubmersível.
Cidinha abriu a boca para dizer alguma coisa, mas apenas
soltou outra série de soluços. Aproveitei a oportunidade para
alisar-lhe os cabelos molhados e tentei lhe dar um beijo
reconfortante na bochecha. Mas, como recebi um tapa, desisti
da segunda iniciativa.

85
Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Nesse momento, seu Severino gritou, na proa da


jangada:
— Aí vem a “Saravá”, turma! Acho que estão piores do
que nós!
Olhei para o mar que nos cercava, em todas as direções,
mas não enxerguei coisa alguma. As ondas tinham diminuído
de altura e o mar apenas se movia, como um lençol de lama,
mas nem mesmo assim eu conseguia enxergar nada, naquela
escuridão.
— Eles não viram a gente — continuou seu Severino, que
devia ter olhos de coruja. — Passaram ao largo, adernados, e
também estão perdidos. Mas acho que ficaram todos a bordo,
inclusive os garotos.
Já era alguma coisa! Mas imaginei como Pavio não estaria
chorando, naquele momento! A Operação Jangadeiros
redundara num desastre terrível! Mas não por causa dos
bandidos e sim por culta na Natureza. Só mesmo a Natureza
poderia vencer a Turma do Posto 4!
— Qual foi o prejuízo? — quis saber Mestre Raimundo,
quando parou completamente de chover e o céu clareou um
pouco.
Seu Inácio e seu Severino tinham acabado de avaliar os
danos causados pelo temporal.
— Perdemos dois samburás cheios de lagostas graúdas –
respondeu seu Inácio. — O barrilete com água também se foi,
porque não estava bem amarrado. A salgadeira e as quimangas
da comida e do sal também se perderam. Só conseguiu salvar
este samburá.
— O resto está mais ou menos? — tornou o avô de
Carlão.
— Mais ou menos. A vela não sofreu muito, porque
estava arriada. A tranca rachou, mas ainda dá para sustentar o

86
Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

pano. Vou amarrar os cordames que se arrebentaram.


Principalmente a escota.
— A bolina e o remo de governo estão perfeitos! —
concluiu o Mestre. — Ponha tudo em ordem! Logo que o vento
amainar, vamos voltar ao parcel, para ver se encontramos a
“Saravá”! Eles devem estar a meio caminho daquele lugar!
Nisso, Cidinha soltou um grito e apontou para o mar.
— Olhali! Alguma coisa vem vindo! Parece um tubarão!
Que tubarão, que nada! Era um monte de madeiras, solto
nas ondas, com três homens montados em cima dele. Aquilo
era tudo o que restava da terceira jangada — o barco dos
piratas. Seu mastro não existia mais e a mimburas, quase
soltas em cima dos maiás, parecia que iam se desconjuntar a
qualquer momento.
— Ó de bordo! — gritou Mestre Raimundo, fazendo das
mãos porta-voz.
Os destroços da outra jangada boiavam, a cerca de dez
metros da nossa.
— Socorro! — responderam os três homens, agarrados às
toras de madeira.
Reparei que nenhum deles tinha o cabelo vermelho. Um
parecia mulato e os outros dois eram brancos, ou, então,
estavam pálidos demais... A cara de um destes últimos não me
era estranha, mas a distância era muito grande, e a escuridão
maior, para que eu a visse com nitidez.
— São eles! — exclamou Mestre Raimundo, na bronca. —
Tônio Pedro e Zico Esponja! Foram esses cabras da peste que
me prenderam, por ordem do Dr. Jomite! Vamos fazer de conta
que não vimos a jangada deles! Que o tinhoso os leve para as
profundas dos infernos!
E então, tal como se o diabo tivesse ouvido a maldição do
velho jangadeiro, os destroços da outra jangada se separaram,
se desfizeram, e os três homens, perdendo o equilíbrio, caíram

87
Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

no mar revolto! No meio daqueles torvelinhos de água


espumejante, os bandidos não tardariam a morrer afogados!
Mas eu não podia permitir que isso acontecesse! Afinal de
contas, os espiões e os piratas são gente como a gente!

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Capítulo V – Os Náufragos Inimigos

— Depressa! — gritei, afobado. — Arranjem uma corda!


Vamos puxá-los para cima!
Mestre Raimundo, seu Inácio, seu Severino e Mundinho
fingiram que não estavam ouvindo. Cada um caminhou para
um lado e puseram-se a olhar para o céu. Foi Príncipe quem se
aproximou de mim, trazendo um rolo de cordas nas mãos
gordas e trêmulas.
— Onde estão eles? Onde estão? Onde estão?
Olhei outra vez para o mar e não vi mais os homens, nem
os destroços da jangada dos piratas. As ondas tinham nos
separado.
— Onde estão eles? — repeti, estupidamente, com as
cordas na mão.
— Eles quem? — perguntou Mestre Raimundo,
aproximando-se também.
— Os náufragos! — respondi, agoniado. — Aqueles
homens que raptaram o senhor! Nós vimos eles ali adiante, não
vimos? Mas, agora, não estão mais ali! E a noite está tão
escura que...
— Que o tinhoso os leve! — repetiu o velho jangadeiro.
— Esses cabras da peste merecem uma boa lição! Eles que se
arranjem, meninos! Vamos procurar a “Saravá” de Mestre
Mocororó! É nela que estão os nossos companheiros!
— Mas aqueles três náufragos também precisam de
nossa ajuda! — insisti. — Eles caíram no mar e vão morrer
afogados! Temos que salvá-los!
— Salvar bandidos? — rosnou seu Inácio, aproximando-
se também. — Nós não somos coiteiros, para dar ajutório ao
cangaço!
— Devemos salvar quem quer que seja! — retruquei, em
tom severo. — Uma vida humana em perigo deve ser salva,

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

custe o que custar, material ou espiritualmente! Nem mesmo


que essa vida pertença ao pior cangaceiro do sertão! Depois de
salvar um culpado, aí sim, é que devemos entregá-lo à justiça,
para que decida sobre a sua culpa!
— É mesmo? — indagou seu Severino, de boca aberta. —
Vosmicê acha que a gente deve também deve de salvar os seus
desafetos?
— Deve, sim! — disse Príncipe. — Primeiro, salvar e,
depois, executar! É assim que fazem com os gângsteres, nos
Estados Unidos, antes de mandá-los para a cadeira elétrica!
Todos eles têm direito a tratamento médico!
Mestre Raimundo resmungou qualquer coisa. Depois,
seus olhos brilharam, entre as pálpebras engelhadas.
— É... — murmurou ele. — É isso mesmo... Os meninos
têm razão! Tônio Pedro e Zico Esponja são jangadeiros, como
nós, e um jangadeiro nunca deixa o outro morrer afogado!
Vamos caçar esses cabras da peste e, depois, fazer justiça! Eles
estão aqui a mando do Dr. Jomite! Vamos ver se ainda
encontramos esses espiões da moléstia, agarrados aos paus da
jangada que se desfez!
O vento amainara um pouco, mas ainda soprava, por
cima do mar oleoso; naturalmente, fora esse ventinho frio que
afastara a nossa jangada dos destroços da outra, onde estavam
agarrados os três náufragos. As ondas tinham diminuído de
altura e o mar apenas se movia, para cima e para baixo, como
um elevador maluco. Mas a escuridão da noite era tão profunda
que não nos deixava enxergar muito longe.
— Ó gente! — gritou Mestre Raimundo, em todas as
direções, fazendo um porta-voz com as mãos calosas.
Daí a pouco, ouvimos um grito, muito ao longe, que vinha
de dentro da noite escura:
— Ó gente!

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— É o eco — falou Cidinha, muito pálida, sentada numa


mimbura.
— Não é, não — retrucou seu Inácio. — É a voz de
Mestre Mocororó! Eu já velejei com ele e conheço muito bem! A
“Saravá” também está aqui por perto!
— Continuem a gritar! — ordenou Mestre Raimundo. —
Eles vão acabar se orientando na nossa direção!
Pedir a Cidinha para gritar é o mesmo que pedir a um
macaco para comer bananas; ela não esperou outro convite
para abrir o berreiro:
— Ó gente! Tamos aqui! Socorro! Já vamos ajudar vocês!
Socorro!
Enquanto isso, eu e Príncipe também gritávamos, noutra
direções, com os olhos pregados na superfície negra e
movediça do oceano. Nem sinais da outra jangada! E nem
sombras das cabeças dos três náufragos inimigos!
— Acenda a lanterna, Inaço! — ordenou Mestre
Raimundo, que tinha voltado a empunhar o remo de governo,
na popa da jangada.
O proeiro correu ao mastro, onde estava pendurado um
lampião a querosene apagado, e acendeu-o, com muita
dificuldade, usando uma caixa de fósforos meio molhada. Daí a
pouco, aquele pingo de luz brilhava, a meia altura, na
imensidão do oceano. E todos nós ficamos torcendo para que
os outros jangadeiros — amigos ou inimigos — se orientassem
por aquele sinalzinho luminoso e fossem ao nosso encontro.
Naquela solidão, eles tanto precisavam de nós quanto nós
precisávamos deles.
Meia hora ainda se passou, sem que víssemos sinais de
vida, no mar negro e imenso; depois, a noite clareou mais um
pouco e uma lua tímida e branca espiou por trás de uns
farrapos de nuvens cinzentas. Algumas estrelas pisqueiras
também apareceram, pelos buracos das nuvens. Pouco a

91
Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

pouco, a noite ia ficando bonita, como quase todas as noites do


Ceará.
— Já não tem mais ondas — comentou Cidinha, com voz
rouca, porque passara esse tempo todo a gritar por socorro.
Realmente, o mar se acalmara e apenas se movia,
cadencialmente, para cima e para baixo, fazendo a jangada
oscilar muito ao de leve. A gente já podia andar em cima dela
sem ter que se agarrar nas coisas.
— Suspendam a vela! — ordenou Mestre Raimundo. —
Vamos voltar ao parcel!
O vento leve era favorável à navegação. Seu Inácio, seu
Severino e Mundinho trataram de desenrolar a vela triangular e
puxá-la para cima, com o auxílio do cordame. Daí a pouco, a
nossa jangada passou a ser impelida pelo vento e pôs-se a
singrar as águas com rapidez. Reparei que Mestre Raimundo
manobrava o remo de um lado para o outro, fazendo a
embarcação navegar em círculos cada vez mais largos. Não
havia dúvidas de que, apesar de bronqueado com os piratas,
ele também estava à procura deles. Cheguei, mesmo, a ouvi-lo
resmungar:
— Uma vida humana em perigo deve ser salva, custe o
que custar... Tá certo! Mas, depois, eles vão se ver comigo!
Cabras da peste! Só servem para aperrear a vida dos outros!
Navegamos mais uns quinze minutos, pesquisando a
superfície do mar com os olhos arregalados, até que Príncipe
soltou um brado de alerta:
— Aí vem coisa!
— É tubarão! — gemeu Cidinha, com o cabelo molhado
espetado para cima.
O gordo estava com o binóculo nos olhos e o dedo
estendido para a frente. Mestre Raimundo fez a proa da
jangada se virar para o ponto indicado e fomos em frente.
Poucos minutos depois, vimos surgir, ao longe, o perfil da

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

“Saravá”. A outra jangada ainda não suspendera a vela e


continuava à deriva, sobre as ondas molengas.
— Ó de bordo! — gritou o avô de Carlão.
— Estamos aqui! — respondeu a voz de Mestre Mocororó.
Vagarosamente, uma embarcação se aproximou da outra,
até que as duas ficaram lado a lado. Aí, então, os tripulantes da
“Saravá” jogaram umas cordas nas mãos dos tripulantes da
“Dengosa” e as duas jangadas se juntaram, bordo com bordo,
e ficaram firmemente amarradas uma à outra.
Não faltava ninguém, na balsa de Mestre Mocororó. Ali
estavam os três tripulantes, molhados como pintos, Carlão e
Pavio Apagado, este último mais apagado do que nunca. O
moleque tinha encolhido tanto, com o susto, que parecia uma
trouxa de roupas, atirada no piso da jangada.
— Alguém se machucou? — quis saber Mestre Raimundo.
— Ninguém — respondeu Mestre Mocororó. — Mas
perdemos as lagostas e uma boa parte do material. Também
não podemos içar a vela. O jeito é vocês nos rebocarem para
Mucuripe. Vamos?
— Nada disso! — replicou o avô de Carlão. — Vamos
voltar ao parcel das lagostas graúdas e acabar a pescaria! Não
vou voltar para terra com os samburás vazios!
Ele se esquecera de que só havia um samburá... Nesse
momento, três vozes roucas vieram de dentro do mar:
— Socorro!
— Olha nós aqui!
— Nos salvem, pelo amor de Deus!
Eram os náufragos inimigos! Ali estavam eles, a cinco
metros das duas jangadas gêmeas, agarrados aos pedaços de
pau que lhes serviam de salva-vidas. Antes que Mestre
Raimundo dissesse qualquer coisa, Carlão deu uma corridinha e
— tchibum! — mergulhou nas águas movediças, nadando na
direção dos três bandidos. Enquanto isso, eu jogava uma corda

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

no mar, sem perceber que não adiantava nada, porque a ponta


dela não ia muito longe. E, diante dos olhares espantados dos
tripulantes das duas jangadas, foi Carlão quem salvou os
náufragos inimigos, puxando-os, um por um, pelos cabelos, e
entregando-os a seu Inácio e seu Severino, que os recolheram
a bordo da “Dengosa”.
Valente Carlão! Esse ato de heroísmo bastava para
redimi-lo de todos os seus pecados, como lutador de caratê!
Carlão nadava como um peixe! E também era cearense!
Mas ainda nos aguardava uma surpresa. O último
bandido a ser salvo, que tinha uma cabeleira negra e comprida,
quando chegou a bordo da nossa jangada já parecia um outro
homem. Seus cabelos eram vermelhos como fogo! E sua
cabeleira postiça estava pendurada nos dedos de Carlão!
— É o Dr. Jomite! — exclamou Cidinha, deslumbrada.
E era.

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Capítulo VI – O Dr. Jomite Confessa

Os três náufragos ficaram sentados sobre os paus-do-


meio da “Dengosa”, olhando para nós como cães sem dono.
Estavam fracos demais para reagirem.
— Com que então, são vocês, hem? — rosnou Mestre
Raimundo, na bronca. — Vieram atrás de nós, para
descobrirem o lugar do parcel das lagostas graúdas, não é?
Os bandidos olharam uns para os outros e não
responderam. Dei um passo a frente e falei gravemente, para o
avô de Carlão:
— Mestre Raimundo, agora o senhor não tem mais
motivos para se calar! Estes três indivíduos estão presos e não
lhe podem fazer mal, nem ao senhor nem à sua família! O
senhor reconhece, nesses dois pescadores morenos, os homens
que o sequestraram?
Todos os tripulantes das duas jangadas gêmeas assistiam
à cena com interesse. Todos, menos Carlão, que estava
torcendo a roupa do corpo, encharcada d’água, e espirrando
como um bode. Mestre Raimundo encarou os três náufragos,
torcendo o nariz e respondeu:
— Sim, senhor! Sim, senhor! Foram esses dois cabras da
peste que me prenderam, lá naquela casa velha das dunas,
querendo que eu dissesse onde ficava o meu parcel! Eu não
disse nada, nem adiantava dizer, porque, mesmo que eu
falasse onde era, eles nunca iriam encontrá-lo. Mas esses dois
malandros não são pescadores, são a vergonha da classe!
Tônio Pedro está desempregado faz mais de dez anos e Zico
Esponja só sabe beber mocororó e pedir dinheiro emprestado!
Foi por isso que o Dr. Jomite contratou eles, para me
obrigarem a falar!
Voltei-me para o homem dos cabelos vermelhos, que
parecia ainda mais acabrunhado do que os seus cúmplices.

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— Que é que o senhor me diz a isso, doutor? Confessa o


seu crime? Confessa que a empresa onde o senhor trabalha, a
God Save The Lobster, deu-lhe ordem para descobrir o local
secreto do parcel de Mestre Raimundo? Trata-se, portanto, de
um caso de espionagem internacional?
O advogado sacudiu negativamente a cabeça.
— Não é nada disso — confessou, falando com um
sotaque ainda mais carregado do que antes. — A empresa
onde eu trabalho não tem nada a ver com isso. É uma firma
honesta, que trabalha dentro da lei, rival de outras empresas
americanas como a Freewater Catfish, do Rio Grande do Norte,
e a Thompson Anderson Enterprises. Fui eu, sozinho, quem
teve a ideia de descobrir o viveiro de Mestre Raimundo, para
também ir pescar as Homarus Americanus!
— O senhor é pescador? — estranhei.
— Ainda não, porque essa vida de jangadeiro não
desperta a cobiça de ninguém... Mas, se eu arranjasse um
dinheiro extra, na empresa onde trabalho, e comprasse uma
traineira moderna, talvez ficasse rico, pescando lagostas e
vendendo-as, em grande escala, à God Save The Lobster. Meu
sonho era esse... Mas foi tudo por água abaixo! Agora, que
vocês salvaram minha vida, estou arrependido do que fiz e só
desejo o perdão de Mestre Raimundo!
— O meu perdão, hem, cabra da peste? — rosnou o avô
de Carlão. — Isso, nunca! Um cearense nunca perdoa!
E virou as costas para os prisioneiros.
— Foi uma tentação do demônio! — lastimou-se o Dr.
Jomite. — Quando me disseram que Mestre Raimundo tinha um
aparelho de radar primitivo, uma espécie de bússola, que
indicava o local exato do parcel das Homarus Americanus,
tentei me apoderar desse aparelho maravilhoso. Mas, por mais
que tentasse, não consegui encontrá-lo, no barraco de Mestre

96
Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Raimundo! Procurei por toda a parte, dentro da casa e no


quintal! Ele devia estar muito bem escondido!
— Até que não — sorriu Príncipe. — Eu descobri o radar
cearense com a maior facilidade. Como disse Edgar Allan Poe, a
melhor maneira de se esconder uma coisa é botá-la bem à
vista...
Todos olharam para o gordo, admirados.
— Você sabia onde estava a caixa de madeira? —
indaguei.
— Desde que entrei na sala da casa de taipa. O radar
cearense de Mestre Raimundo estava num buraco de parede,
com o visor virado para fora! Era o “relógio” da sala... Eu
reparei que ele só tinha um ponteiro e esse não andava, de
jeito nenhum!
— Vote! — exclamou Mundinho. — É isso mesmo! A
gente não usamos relógio. Aquele era o aparelho de papai. Mas
o mecanismo dele não funciona faz muitos anos. Aliás, acho
que nunca funcionou...
— Procurei o aparelho por toda a parte — queixou-se o
Dr. Jomite. — Mal sabia eu que ele estava ali, na sala, diante
do meu nariz! Há uma semana que eu entrava no barracão,
durante a noite, para procurar o tal aparelho misterioso... e
nada! Então, resolvi apelar para a violência, Deus que me
perdoe! Ameacei Mestre Raimundo de todo o jeito, mas ele não
confessou onde ficava o parcel, nem onde escondia o radar
primitivo. Diante disso, contratei Tônio Pedro e Zico Esponja,
para que fizessem o velho falar. Também não adiantou! Falei
que ia tocar fogo no barraco, e nada! Agora, quando esses
meninos de Copacabana apareceram por aqui, querendo
descobrir o mistério, fiquei com medo e mandei soltar Mestre
Raimundo. E resolvi seguir a jangada, para ver se descobria o
parcel.

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

— O que também não deu certo — acrescentei, em tom


de triunfo. — A tempestade se encarregou de desmantelar a
sua jangada-pirata e proteger o parcel de Mestre Raimundo,
que por direito lhe pertence! Foi Deus quem mandou esse
temporal, na hora certa!
— Deve ter sido — concordou o Dr. Jomite, abatido. —
Mas, mesmo sem tempestade, nunca que outro pescador iria
encontrar o parcel, no meio desse mar todo igual! Não há
nenhum ponto de referência! Sem o aparelho, ninguém poderá
descobrir o lugar! — ele fez uma pausa dramática e concluiu:
— Fui um louco, em me meter nessa aventura! Foi a ambição
que me perdeu! Agora, vocês vão me denunciar à polícia... e
está tudo acabado! Nem parcel, nem liberdade! Eu sei que
cometi um ato muito feito, mas me arrependo de tudo! Devo a
vida a vocês... fui recolhido pela jangada de Mestre
Raimundo... e juro, perante Deus que nos ouve, que nunca
mais levantarei um dedo contra a segurança dos jangadeiros do
Ceará! Eles que continuem na sua pesca artesanal, sem as
confusões e os crimes ecológicos do progresso, na sua vidinha
santa e humilde, abençoada pelo Senhor! Se Mestre Raimundo
não me perdoa, pior para mim! Hei de levar para o túmulo este
grande remorso!
E o bandido pôs-se a chorar como uma criança. E, o que
era mais espantoso, suas lágrimas eram de verdade!
— Vamos para o meu parcel! — gritou Mestre Raimundo,
agarrado ao remo de governo. — Não quero voltar para
Mucuripe com o barco vazio! Proeiro! Bico-de-proa! Rebique!
Cada um no seu posto!
E pôs-se a cantar?

Minha jangada de vela,


que vento queres levar?
Tu queres vento da terra

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

ou queres vento de mar?

Toda a tripulação das duas jangadas se movimentou e as


embarcações, amarrada uma a outra, singraram velozmente as
ondas do Oceano Atlântico, agora serenas sob a luz branca do
luar. Enquanto viajávamos, de regresso ao local do viveiro das
lagostas graúdas, Cidinha ia se sentar na ponta do banco de
governo, ao lado de Mestre Raimundo, e punha-se a sussurrar
um monte de palavras ao ouvido do velho marinheiro. Não sei
o que foi que ela disse, mas, quando as duas jangadas
chegaram ao parcel e a “Saravá” arriou o tauaçu no fundo do
mar, Mestre Raimundo levantou-se e foi até o banco-de-vela,
onde o Dr. Jomite estava sentado, com as mãos escondendo o
rosto molhado de lágrimas.
— Cabra da moléstia! — disse, então, o velho lobo-do-
mar. — Cearense não perdoa, quando o seu desafeto é
cabeçudo! Mas, quando um cabra se arrepende de seus erros e
promete nunca mais fazer besteiras, um cearense faz de conta
que perdoa! Vamos esquecer tudo isso, Dr. Jomite, e viver sem
ódio no coração, o senhor no seu escritório e eu no meu parcel!
Mas eu apenas o desculpo; só Deus, ou Pade Cícero, é que
pode perdoá-lo!
E os dois homens trocaram um aperto de mão, enquanto
Cidinha batia palmas, empolgada. Eu não disse que minha
namorada é maravilhosa? O que tem de beleza física, tem de
bondade moral! Abençoada Cidinha! Fora ela quem convencera
Mestre Raimundo a fazer as pazes com os nossos inimigos! E
as histórias que terminam em paz, sem vinganças nem
castigos, são as melhores histórias do mundo!

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

100
Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

EPÍLOGO

O resto foi uma beleza. Passamos a noite toda no parcel,


uns pescando lagostas, outros dormindo e outros consertando
a jangada de Mestre Mocororó, que estava em piores condições
do que a nossa. A Turma do Posto 4, é lógico, dormiu o tempo
todo. A luta contra o mar bravio tinha sido muito violenta e
nenhum de nós aguentava mais em pé. Mas a pescaria foi
sensacional! Tudo quanto era cesto de palha serviu para
guardar lagostas; havia lagostas, até, nas redes e nos puçás,
depois de recolhidos e guardados em cima das jangadas! E era
cada bicho deste tamanho — tão grande que Cidinha chegou a
ficar com medo deles!
Finalmente, às sete horas da manhã, quando acordamos,
Mestre Raimundo deu ordem de partida. Recolhemos o tauaçu
da “Saravá”, suspendemos as velas, desamarramos os cabos e
que uniam as duas jangadas — e lá fomos nós, de volta à Praia
de Mucuripe, com os barcos abarrotados de lagostas.
Pelo caminho, Pavio Apagado só olhava para Mestre
Raimundo e resmungava:
— Como é que pode?
Perguntei ao moleque qual era a dele, mas ele disse que
não era nada, não. Príncipe e Cidinha também estranharam a
atitude de Pavio, mas não conseguiram descobrir o que é que
ele estava pensando. O que seria?
A viagem de volta foi mais rápida do que a de ida. Em
menos de seis horas estávamos chegando a Mucuripe. Havia
uma pequena multidão de pescadores, na praia, à nossa
espera, querendo saber se tínhamos sofrido muito com o
temporal. Mestre Raimundo contou tudo o que tinha acontecido
(menos o episódio relacionado com o Dr. Jomite e seus dois
cúmplices) e os jangadeiros ajudaram os colegas a retirar as
jangadas da água, com o auxílio dos roletes de coqueiro.

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Depois, as duas tripulações da “Dengosa” e da “Saravá”


descarregaram a carga de lagostas graúdas, sob os olhares de
admiração dos outros homens do mar. Mas eram olhares só de
admiração; nenhum dos mucuripenses demonstrou tem inveja
da sorte de Mestre Raimundo e Mestre Mocororó...
Ali mesmo, na praia, despedimo-nos do Dr. John Smith e
dos outros dois piratas arrependidos.
— Muito obrigado por tudo! — disse o advogado da God
Save The Lobster, apertando a mão de Mestre Raimundo. —
Pode ficar descansado, Mestre! Eu nunca mais o incomodarei!
Está tudo esquecido... e o meu prejuízo foi maior do que o seu,
pois perdi uma jangada que me custou muitos dias de trabalho!
Mas está tudo esquecido! Esses dois malandros também vão
ficar quietos!
Tônio Pedro e Zico Esponja estavam com medo de serem
presos, como sequestradores, e ficaram muito aliviados ao
saberem que Mestre Raimundo não ia fazer queixa contra eles.
— O senhor nos conhece, Mestre — disse um dos
malandros. — Só fizemos essa sujeira com o senhor porque o
Dr. Jomite prometeu que nos pagaria muito bem. Mas não
vamos cobrar nada, não. E nunca mais vamos perseguir o
senhor, Mestre! Deus Nosso Senhor lhe pague, pela sua
bondade! Se fosse eu, fazia queixa na polícia. Mas o senhor é
um santo! Deus Nosso Senhor, mais a Virgem Maria, estejam
sempre convosco! Sua bênção!
E fizeram a menção de beijar a mão do avô de Carlão.
Mestre Raimundo, emocionado, recolheu a mão e abençoou os
bandidos, aconselhando-os a mudarem de vida e nunca mais se
meterem em confusões. E, ainda por cima, emprestou um
trocadinho a Zico Esponja, para que ele fosse beber umas
cachaças à sua saúde.
Dona Auta e dona Maria esperavam por nós, na casa de
taipa. Elas também tinham tido notícias do temporal em alto-

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

mar, mas não estavam assustadas, nem sequer preocupadas,


pois não podiam imaginar que nós tivéssemos passado tantos
perigos.
— Está tudo acabado, com a graça de Deus! — disse
Mestre Raimundo. — Ficamos livres de perseguições! Agora,
vou voltar à minha vidinha de sempre, vendendo as lagostas
graúdas aos hotéis de Fortaleza! A freguesia deve estar
aperreada com a demora!
E assim foi. A vida do avô de Carlão voltou ao normal e a
Turma do Posto 4 deu por encerrada a Operação Jangadeiros.
Ainda ficamos uma semana em Mucuripe, passeando de
jangada com os habitantes do lugar e visitando Fortaleza uma
vez ou outra, até que nos cansamos daquilo tudo e resolvemos
voltar para Copacabana; a vida, no litoral do Ceará, era feliz
demais para o nosso gosto... Um dia antes de regressarmos,
Mestre Raimundo recebeu uma visita, na sua modesta
residência. Era o Dr. John Smith.
— Vim me despedir de vocês — falou o advogado, que
tinha emagrecido bastante naqueles últimos dias. — Vou voltar,
amanhã, para a Flórida. Já não trabalho mais na God Sabe The
Lobster e fui aconselhado a partir, antes que os diretores da
companhia me metam no xadrez!
E confessou que os peritos em contabilidade da firma
tinham descoberto uma irregularidade na escrita, atribuindo ao
Dr. Jomite o desfalque de cerca de dois mil dólares. Não era
uma fortuna, mas bastaria para condená-lo como ladrão.
Então, os diretores da firma tinham-no obrigado a repor o
dinheiro e dispensado os seus serviços profissionais.
Depois disso, nunca mais ouvimos falar no homem dos
cabelos vermelhos. E não sabemos se ele se regenerou ou se
virou gângster, na terra dele. Deus permita que o Dr. Jomite
tenha se regenerado e, hoje em dia, seja um homem de bem!

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

Quando saímos de Mucuripe para Fortaleza, a fim de


pegar o avião que nos levaria de volta ao Rio, Mestre
Raimundo, dona Auta e Mundinho nos acompanharam até o
aeroporto. O velho pescador estava feliz da vida, porque tudo
voltara ao normal e ele podia pescar as suas lagostas graúdas,
sem a ameaça de ser sequestrado ou de ver a sua casa pegar
fogo.
— Graças a vocês! — desabafou ele, abraçando-nos com
força. — Nunca me esquecerei da ajuda da Turma do Posto 4!
É uma honra, para meu neto Carlão, pertencer a uma turma de
meninos tão valentes e simpáticos! Quantas lagostas vocês
querem levar para Copacabana?
Eu não queria levar nenhuma, mas Cidinha (sempre
Cidinha!) aceitou uma lagosta morta, do tamanho de um gato,
embrulhada num papel pardo, que exalava um tremendo cheiro
de maresia. Reparei que Pavio Apagado continuava a olhar
para Mestre Raimundo de um jeito esquisito e a murmurar:
— Como é que pode?
Aí, não me contive e exigi, como líder da Turma do Posto
4, que o moleque dissesse o que estava pensando. Ele soltou
um suspiro fundo e confessou:
— Não é nada, não Lula... Eu só estava pensando no
“radar cearense”...
Senti um arrepio. Depois daquela aventura, em alto-mar,
eu não tinha visto mais a caixa de madeira, com o mecanismo
de relógio quebrado, que Mestre Raimundo usava como
bússola!
— Que é que tem o “radar cearense”? — indaguei,
irritado.
Pavio olhou, mais uma vez, para o avô de Carlão e
respondeu:
— Bem turma... É que, depois daquela tempestade
danada, em que a gente quase foi a pico, o radar cearense não

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

estava mais na jangada de Mestre Raimundo! Eu procurei ele,


para ver de perto, e não estava! Assim como não está!
Príncipe também estremeceu.
— É mesmo! O aparelho de Mestre Raimundo perdeu-se,
durante a tempestade! Eu sei porque estava debaixo do banco
de governo e, depois da inundação, a caixa foi levada pelas
ondas e afundou! Nesse caso, como foi que Mestre Raimundo
conseguiu localizar, outra vez, o parcel das lagostas grandes?
Ele já não tem mais o “radar cearense”. E, no entanto, continua
pescando no mesmo lugar!
— Pois é — concluiu Pavio. — Como é que pode?
Olhamos todos para Mestre Raimundo e vimos que ele
estava sorrindo, meio contrafeito.
— Não pensem mais nisso, meus filhos — murmurou. —
Nunca existiu nenhum “radar cearense”. Aquela caixa de
madeira era apenas para enganar os trouxas... Jangadeiro não
precisa de bússola, porque tem o sol, as estrelas e a cor do
mar. A cor do mar é que é importante, meninos! Radar de
cearense é a experiência!
Essa explicação do velho marinheiro encerrou,
definitivamente, a Operação Jandadeiros.

FIM

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Operação Jangadeiros – Luiz de Santiago

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