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Luiz de Santiago

Operação
Falsa Baiana

A Turma do Posto 4
Volume 9
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Operação
Falsa Baiana

A Turma do Posto 4
Volume 9

Luiz de Santiago
(Hélio do Soveral)

3
S235o Santiago, Luiz de. (1918-2001)

Operação Falsa Baiana (A Turma do Posto 4:


Volume 9) / Luiz de Santiago (Hélio do Soveral). – Rio
de Janeiro: Ediouro, 1973.
136 p.

1. Literatura Brasileira Infanto-Juvenil. 2. Santiago, Luiz


de. I. Soveral, Hélio do. (1918-2001). II. Título. III. Série.

CDD 808.899282

Índice para catálogo sistemático:


Literatura Infanto-Juvenil
CDD 808.899282

Copyright © 2021
Ediouro

Impresso no Brasil

4
ÍNDICE

A Turma do Posto 4 .......................................................... 7

PRIMEIRA PARTE ............................................................. 9

Terça-Feira Gorda ............................................................. 9

Capítulo I – Reunião na Garagem ...............................11

Capítulo II – Bahia de Todos os Santos .................... 21

Capítulo III – Antes do Baile ....................................... 29

Capítulo IV – O Baile do Caramuru ............................ 39

Capítulo V – Visita ao Candomblé .............................. 49

Capítulo VI – O Dedo Cortado ..................................... 59

SEGUNDA PARTE............................................................. 69

Quarta-Feira de Cinzas.................................................. 69

Capítulo I – Volta ao Candomblé ................................ 71

Capítulo II – Terror no Reino de Exu ........................ 81

Capítulo III – Missão: Abrir o Baú ............................. 93

Capítulo IV – Cinco Linguinhas Ameaçadas ...........103

5
Capítulo V – Com a Ajuda dos Orixás ....................... 113

Capítulo VI – O Som do Berimbau.............................123

EPÍLOGO .......................................................................... 131


A Turma do Posto 4

LUIZ DE SANTIAGO (LULA) — chefe da patota e autor do


livro que vocês vão ler. Tem 14 anos de idade, nasceu em
Copacabana e é filho de imigrantes portugueses. O pai dele é
gerente de uma confeitaria da Rua Barata Ribeiro. Lula é um
garoto moreno, nem magro nem gordo, tem cabelos pretos e
topete, olhos verdes e se amarra na literatura. Frequenta o 3°
ano ginasial e é ponta-direita do Atlântica Futebol Clube, um
time de futebol de praia com escudo, camisa e tudo. Seu maior
orgulho é um canivete sensacional, com saca-rolhas, que tem
lâmina Solinger.

MARIA APARECIDA DE CARVALHO (CIDINHA) — é a


namorada de Lula. Tem 12 anos de idade, cursa o 1° ano
ginasial e nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais. É miúda,
sardenta, loura (cabelos feito espiga de milho) e tem os olhos
grandes e azuis. Às vezes, banca o juiz de futebol, nos jogos
entre o Atlântica e os seus rivais de Copa.

CARLOS CAVALCANTI (CARLÃO) — nasceu no Ceará, tem


15 anos de idade e é o mais parrudo da turma. Estuda no
mesmo ginásio, e cursa o mesmo ano que Lula. Seus pais são
pobres (imigrantes nordestinos) e, por isso, à tarde ele trabalha
numa academia de judô e karatê da Rua Santa Clara.

ANTÔNIO MATTEWS (PRÍNCIPE) — é o rapazinho mais


grã-fino da patota, daí seu apelido. Tem a mesma idade de
Carlão (15 anos), mas é gorduchinho, de cabelos louros,
compridos e anelados, e usa óculos de aros de ouro. Príncipe
não gosta de esportes violentos, mas tem uma cuca genial e
sabe de tanta coisa que parece uma enciclopédia ambulante.
Estuda em casa, com professores particulares. Seu pai é inglês,
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

muito rico, e tem uma fábrica de máquinas pesadas em São


Paulo, mas a família mora no Rio, no Edifício Mattews da
Avenida Atlântica. Príncipe nasceu na capital paulista.

FRANCISCO DA CONCEIÇÃO (PAVIO APAGADO) — é um


crioulinho de 10 anos, magro e meio torcido para a frente, igual
ao pavio de uma vela. Sua cabeça é escura e pelada. Ele
estuda numa escola pública, onde cursa o 3° ano primário. Seu
pai é o porteiro do Edifício Mattews e sua mãe lava roupa para
fora. Pavio Apagado é esperto e mentiroso, mas honesto e leal.
Nasceu na favela da Catacumba e é o maior craque (ponta-
esquerda) do Atlântica F. C.
Como se vê, embora alguns dos personagens principais deste
livro não tenham nascido no Rio de Janeiro, são todos cariocas.
A maioria dos cariocas não nasceu na Guanabara. Ser carioca é
uma questão de temperamento.

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

PRIMEIRA PARTE
Terça-Feira Gorda

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Capítulo I – Reunião na Garagem

A operação mais quente em que a Turma do Posto


Quatro se viu envolvida, depois daquela do mar ouriçado, foi,
sem dúvida, essa da falsa baiana. Por isso, deixo de registrar
em livro os casos dos pivetes da Zona Sul e da excursão (a pé)
ao alto do Corcovado. A turma conseguiu regenerar os
ladrõezinhos de bolsas de senhoras (arrumando escola para
eles) e subiu o morro, sem grande dificuldade, para pedir a
bênção à estátua do Cristo Redentor — de maneira que essas
operações não merecem referência especial. Já a Operação
Falsa Baiana, levada a efeito durante o carnaval do ano
passado, é digna de ocupar as páginas deste livro. Quase todos
os fãs da Coleção Mister Olho, que acompanham as transas da
Turma do Posto Quatro desde aquele caso do macaco velho,
estão por dentro da jogada e conhecem o macete das
operações da semana; por isso, não vale a pena perder tempo
com explicações.
Desta vez, a coisa aconteceu em fevereiro do ano
passado, no finzinho das férias, pois as aulas iam começar em
março. O carnaval estava marcado para 18, 19 e 20 de
fevereiro (domingo, segunda e terça-feira) e a turma já tinha
planejado brincar num clube de Copacabana, mas entrou areia.
Na sexta-feira à noite (dia 16) houve uma nova reunião, na
garagem do Edifício Mattews, e, aí, todos os nossos projetos
foram para o brejo...
Como vocês sabem, as reuniões na garagem, às sextas-
feiras, representam as Assembleias Gerais da Turma do Posto
Quatro, para eleger a operação da semana a ser executada no
sábado e domingo seguintes. Como vocês também já sabem,
nossas operações são muito bacanas e sempre se destinam a
resolver um problema da cidade (ou do Brasil) cuja solução
concorra para o bem-estar, o progresso ou a segurança da

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

população. Também não é segredo para ninguém que a turma


está sendo imitada por outras patotas legais da Guanabara,
que se amarraram nos nossos lances e também estão se
tornando úteis à coletividade, colaborando com os mais velhos
na solução dos grilos e no respeito às leis e aos bons costumes.
Essa minoria de alienados, que ainda cria casos ou vive na base
do parasita social, está desaparecendo, porque o quente,
agora, é ser barra limpa e dar uma de mocinho, em vez de
sofrer o vexame de passar por bandido...
Naquela sexta-feira, como eu estava dizendo, teve
reunião na garagem. No que o relógio bateu as oito horas da
noite, pedi licença aos meus velhos e desci, pelo elevador
social, para o vestíbulo do Edifício Mattews. Aí, encontrei o pai
de Pavio Apagado. Seu Baltazar é o porteiro do prédio e
sempre fica sentado naquela cadeira de palhinha, diante
daquela mesinha, até às 22 horas, que é quando fecha os
portões e vai dormir no seu cochicho dos fundos. Dona Maria e
Pavio também dormem no cochicho e dona Maria lava roupa de
fora.
— Oi, seu Baltazar! — cumprimentei.
— Boa noite, Lula — respondeu ele, muito gentil, pois
ficou devendo muitos favores à turma, desde a Operação Torre
de Babel.
— Chiquinho já desceu? — indaguei. (Chiquinho é Pavio
Apagado, mas não pega bem falar com o pai dele usando esse
apelido, de maneira que, quando eu falo com seu Baltazar,
chamo Pavio Apagado de Chiquinho.)
— Neste momento — respondeu o porteiro. — Também
vi Príncipe passar, com aquela pasta preta debaixo do braço.
Hoje é dia de reunião, não é?
— Sim, senhor. Vamos proceder à votação secreta, para
eleger a Operação Carnaval. Se minha proposta for aceita pela

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

maioria democrática, não vai haver mais bagunça naquele baile


que a patota da Miguel Lemos faz na rua!
— Isso é bom — assentiu o simpático crioulo. — No
carnaval passado, teve uma briga feia, embaixo do coreto. Eu
também acho que vocês devem ensinar os garotos da Miguel a
vigiar os penetras, para evitar confusões! A Turma da Miguel é
muito bacana, mas os bicões não deixam as meninas se
divertirem em paz... A culpa é dos moleques que vêm de fora!
— É isso aí. Minha ideia é criar um corpo de vigilantes, na
Miguel Lemos, para acabar com os abusos. Vamos ver se eu
venço a eleição.
— Tomara que sim, Lula. Pode descer pela escadinha de
dentro.
Agradeci a gentileza e me mandei para a garagem. Como
de costume, só havia duas lâmpadas acesas, por cima daquele
mundo de automóveis. O Mustang cinzento de Mr. Mattews
estava no seu lugar, debaixo de uma das lâmpadas penduradas
no teto, e Príncipe já tinha aberto a sua pasta (de pelica preta)
em cima do capô. Além do gorducho, também já ali estavam
Carlão e Pavio Apagado, discutindo futebol. Só Cidinha é que
ainda não chegara.
— Oi, turma!
— Oi, Lula! — exclamaram os outros três enturmados.
— Operação Carnaval! — arrisquei.
— Operação Z—5 — respondeu Pavio Apagado.
— Operação Piratas do Norte — disse Carlão.
— Operação Escravos de Jó — acrescentou Príncipe.
Estava na cara que cada um de nós tinha uma sugestão
diferente para a operação daquele fim de semana! Era sempre
assim; a eleição tinha que ser feita por votos, pois cada
enturmado achava que a sua ideia era a mais importante...
— Vamos esperar a secretária da mesa — disse eu,
assumindo o meu posto de presidente, na frente do capô do

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

carrão do pai de Príncipe. — Cidinha se atrasa de propósito,


para esnobar em cima da gente. Vocês sabem como são as
mulheres... Gostam de se mostrar...
— Cidinha está ficando muito orgulhosa — queixou-se
Príncipe, ajeitando os óculos de aros de ouro na cara de lua
cheia. — Só porque fez sucesso nos bailes pré-carnavalescos,
com aquela fantasia de baiana rica, ela pensa que é muita
coisa! Mas a verdade é que, se não fosse você desenhar o
modelo que eu bolei, e a mãe de Carlão costurar a roupa, ela ia
sair no carnaval com uma havaiana muito mixuruca!
— Sem falar nem mim — lembrou Pavio. — Baiana sem
escravo não ia realçar nada!
— Tem razão — admiti. — Ninguém é ninguém sem a
colaboração dos outros. Mas Cidinha ainda não tem idade para
compreender isso. Vamos desculpar o orgulho dela, turma.
Essas crianças são de amargar!
O caso é que minha namorada tinha feito sucesso,
realmente, nos dois bailes infanto-juvenis de Copa que
precediam o carnaval. Ela exibira uma fantasia muito bacana,
inspirada por Príncipe (que lera muito a respeito dos trajes
típicos afro-brasileiros) e confeccionada pela mãe de Carlão,
que é costureira profissional. A roupagem de baiana rica saíra
muito legal, toda de cetim e paetês, com uma saia rodada de
várias cores, uma anágua engomada, uma bata de seda
enfeitada com rendas de bilros, um pano das costas listrado,
um torso (turbante) com uma cestinha de frutas de cera
iluminadas por dentro (a pilha elétrica) e um par de sandálias
de pelica branca com saltos de madeira tipo Carmen Miranda.
Legal às pampas! Cidinha chegava a ficar quase da minha
altura!
Mas Príncipe tinha razão: o sucesso da menina fizera com
que ela ficasse vaidosa, esquecendo-se de que cada um de nós
colaborara na confecção da fantasia, de um jeito ou outro. Até

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Carlão ajudara a mãe dele a pregar vidrilhos na roupa. Isso


sem falar em Pavio Apagado, que desfilara atrás de Cidinha,
vestido de escravo negro (inspirado num desenho de Debret)
com um leque de plumas quase do seu tamanho. E o moleque
ainda valorizara mais o espetáculo, dando três passos de urubu
malandro, abanando a baianinha e dizendo:
— Minha sinhazinha é a maior... minha sinhazinha é a
maior...
Tudo isso quanto não valia? Se Cidinha desfilasse
sozinha, com os seus próprios recursos, duvido que fosse
fotografada (como foi) pelos repórteres da Manchete e do O
Cruzeiro! Não é para me gabar, mas o desenho que eu fiz, da
fantasia sugerida por Príncipe, foi a base de tudo; sem o meu
croqui, nunca que ia haver sucesso!
Dez minutos depois das oito horas, finalmente, lá veio
Cidinha, martelando o cimento da garagem com os saltos de
suas botinhas. Claro que ela não usava a fantasia de baiana;
estava vestida com a mesma calça Lee, a mesma blusa branca
e a mesma jaqueta de camurça amarela de sempre.
— Oi, turma!
— Oi, Cidinha!
— Tudo legal?
— Tudo — respondi, estendendo os beiços em O, para
lhe dar um beijinho na face sardenta.
Ela recebeu o beijo com a naturalidade do costume e
disse que eu podia abrir a sessão. Todos notamos que ela
estava com um grilo na cuca, mas fingimos que não tínhamos
notado nada... Se a gente começasse a fazer perguntas, ela ia
esnobar, e ninguém estava ali para bancar o bobo!
— Muito bem — disse eu, com voz grave, depois que
todos os enturmados ocuparam os seus lugares, ao redor do
capô do Mustang. — Como presidente da mesa, peço à sra.

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

secretária, Maria Aparecida de Carvalho, que faça a chamada


regulamentar!
Cidinha anuiu e fez a chamada, à qual respondemos
presente. Não faltava ninguém. Então, voltei a falar, com a
mesma voz grave:
— De acordo com a lei da Turma do Posto Quatro, está
aberta a sessão! Que fale o primeiro enturmado, sugerindo a
Operação Carnaval desta semana!
O primeiro enturmado a falar acabou sendo Pavio
Apagado, porque era o menor de todos e ninguém queria expor
suas ideias antes dos outros. O crioulinho ainda ensaiou um
protesto, mas Carlão deu um coque na cabeça dele e ordenou-
lhe que abrisse o samburá.
— Minha sugestão — disse o moleque — é a seguinte:
Tem uma Colônia de Pesca no Caju, por nome Z-5, que está
ameaçada de despejo, para que uma empresa faça um
estaleiro naquele lugar, para construir navios grandões. Os
pobres pescadores não têm para onde ir e, se forem removidos
sem indenização, nunca que terão dinheiro para armar seus
barracos noutra praia! Minha sugestão é para que a turma não
deixe os pescadores serem prejudicados, por causa da
construção dos navios grandões. As costas do Brasil são muito
compridas e essa empresa rica e poderosa pode ir construir
seus navios no raio que...
— Sem grossura — atalhei. — Sua proposta será votada
mais tarde. Pode falar, Carlão! Qual é a sua?
Nosso companheiro nordestino tomou a palavra e disse
que tinha uns piratas nas costas do Pará e do Amapá que
atacavam os barcos de seus colegas de contravenção, para lhes
roubar o contrabando. E concluiu:
— Sugiro que a turma viaje para o Pará e para o Amapá,
passando por Crato, no Ceará, e combata esses piratas do

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

século vinte, para acabar com as violências e as mortes


naquelas paragens! Falei!
O assunto era quente, mas não interessava muito à
coletividade, pois a Turma do Posto Quatro não estava ali para
proteger os barcos dos contrabandistas do Amapá. Além disso,
uma viagem dessas sairia muito cara e Carlão só queria que
nós a fizéssemos para poder passar por Crato, no Ceará, e
rever a sua terra natal. Ele não era bobo nem nada...
Em seguida, falou Príncipe, sugerindo outra viagem,
dessa vez ao interior do Estado do Paraná, onde tinha uma
fazenda cujos proprietários maltratavam os lavradores,
exigindo-lhes trabalho escravo e mandando seus capangas
matar os recalcitrantes. Príncipe tinha lido a notícia nos jornais
e estava uma fera.
— O assunto é quente — admiti — e fica para ser votado
no fim da sessão. Mas não vai ser mole arrumar dinheiro para
as passagens até o interior do Paraná! Nem mesmo Mr.
Mattews nos ajudaria desta vez, pois há evidente perigo de
vida nessa Operação Escravos de Jó! Pode falar, Cidinha!
— Nada disso — respondeu minha namorada. — Fale
você, meu bem. Eu tenho uma bomba para o final...
Nós já sabíamos, pelo brilho do olhão azul de Cidinha,
que ela estava na encolha; por isso, expus a minha sugestão, a
respeito da bagunça no coreto da Rua 1 Miguel Lemos. E
terminei confessando que minha Operação Carnaval não era lá
essas coisas, mas não deixava de ser de interesse para a
garotada do bairro, que queria se divertir sem brigas nem
palavrões.
— Agora, diga qual é a sua — falou Príncipe, em tom de
desafio, encarando Cidinha através de seus óculos de grau.
— Vocês perderam seu tempo — retrucou minha
namorada, com ar de superioridade. — Nem vai ser preciso
fazer votação! Eu já ganhei!

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Não sei por quê — disse eu, desconfiado da alegria


dela. — Qual é a sua? Não vem com outra Operação Mar
Ouriçado; não vem que não tem!
— Melhor do que isso — falou Cidinha, enquanto todos
nós olhávamos para ela com uma atenção de corujas. — A
Turma do Posto Quatro está convidada para me acompanhar à
Bahia, para me incentivar num concurso de fantasias
carnavalescas do qual vou participar com a minha baiana rica!
Aquela notícia foi mesmo uma bomba! Ninguém sabia
que Cidinha ia concorrer a um concurso desses, e logo na
Bahia! Mas a garota explicou:
— O baile infanto-juvenil, que vai oferecer prêmios às
melhores fantasias, será realizado na terça-feira gorda, à tarde,
nos salões do Clube Caramuru da Boa Viagem, que é um clube
tão bacana quanto o Iate Clube da Barra, o Baiano de Tênis ou
o Cajazeiras de Golfe. O primeiro prêmio é de dez mil cruzeiros,
uma verdadeira fortuna! Mamãe vai comigo a Salvador, a
convite de Mestre Catrapuz, que é amigo de papai e me
convidou para participar do concurso, pois viu o meu sucesso
nas revistas da semana passada. Mestre Catrapuz é dono de
um terreiro de capoeira, na capital baiana. Que é que vocês
acham?
— Eu acho uma glória — disse Pavio. — Principalmente,
se eu também for fantasiado de escravo de primeira grandeza,
abanando aquele bruto leque de plumas de pavão! Se eu for, é
uma glória!
— Lógico que você vai — disse Cidinha. — Mestre
Catrapuz nos ofereceu três passagens de ida e volta, em avião,
e dois dias de estadia. A gente vai na segunda-feira, passa a
terça-feira em Salvador e volta na quarta-feira de cinzas.
— E o resto da turma? — indaguei, mordendo o lábio. —
Nós estamos sempre duros! Quem vai pagar as passagens para
Carlão, para Príncipe e para mim? Príncipe, está certo, que o

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

pai dele é cheio da nota, mas eu e Carlão somos uns tesos! Se


você virar a gente de cabeça para baixo, só caem moedinhas
de dez centavos!
— Aí é que está o problema — disse Cidinha. — Temos
que arrumar o dinheiro de qualquer jeito! Mas eu não posso ir
à Bahia sozinha com Pavio, pois o resto da turma também
colaborou na confecção da minha fantasia e seria uma
ingratidão não levar todo mundo a Salvador. Eu devo esse
sucesso a vocês e não a mim mesma, pois não passo de uma
boneca fantasiada... Se vocês não forem, não vai ninguém,
pronto! — concluiu ela, fazendo beicinho e com um pingo de
lágrima no olhão azul.
Aí, Príncipe pigarreou e fez ouvir a sua voz esganiçada:
— Peço permissão à nobre assembleia para convidar Lula
e Carlão para um passeio a Salvador, em minha companhia e à
custa de meu pai! Tenho certeza de que o velho nos oferecerá
o dinheiro das passagens e da estadia, se eu tiver uma boa
papa para dizer no seu ouvido... Além do mais, não tem perigo
nenhum na operação, pois não há nada mais pacífico do que
concorrer a um concurso de fantasias de carnaval!
— Salvo seja — disse Cidinha, pensando nas brigas do
concurso de fantasias do baile do Teatro Municipal, quando
havia desfile masculino.
— Pelo que entendo — acudi eu, disfarçando o
entusiasmo — a proposta de Cidinha ganhou por unanimidade
e não será preciso pôr em votação as outras operações da
semana. Por mim, está legal, desde que nossos velhos
concordem com a viagem e o velho de Príncipe pague as três
estadias e as três passagens que faltam. Mas, como dona Nair
também vai tomando conta da turma, acho que nossos velhos
concordarão... Resta, apenas, batizar a operação.
— Está na cara — falou Cidinha. — Operaçãozinha Falsa
Baiana!

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Falsa baiana por quê? — protestou Pavio. — Sua


baiana é muito da verdadeira! Tem até pano das costas!
— Mas eu nasci em Juiz de Fora — justificou a garota. —
Sou mineirinha de ouro, meu nego!
Foi por isso que a nova operação da Turma do Posto
Quatro, destinada a fazer Cidinha ganhar o concurso de
fantasias do Clube Caramuru, recebeu esse nome aí. O que nós
não sabíamos é que a Operaçãozinha Falsa Baiana iria se
transformar numa aventura cheia de mistério e suspense, num
terreiro de candomblé da Bahia!

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Capítulo II – Bahia de Todos os Santos

Nessa mesma noite, Príncipe entrou com a sua papa, no


ouvido do pai dele, e acabou por conquistar o velho. Aliás, Mr.
Mattews é muito fácil de conquistar, porque tem uma grande
admiração pela Turma do Posto Quatro. Como Príncipe é um
menino louro e grã-fino, meio gordo e meio tímido, o pai dele
acha que ele ganha muito em andar enturmado com uns
garotos ouriçados que nem nós (Cidinha inclusive) pois, assim,
não se transformará num mariquinhas. Aliás, isso é verdade,
pois nós não admitimos filhinhos da mamãe na nossa turma!
O fato é que Mr. Mattews não só concordou com o
passeio do filho à Bahia, como também ofereceu 2 mil cruzeiros
à turma, para as despesas da viagem. Duas mil pratas, para
um homem rico igual a Mr. Mattews, não é nada, mas, para
nós, que somos uns duros, foi a salvação da lavoura!
Mais difícil foi obter a permissão de meus pais e dos pais
de Carlão. Meu velho é um português meio grosso e já estava
invocado com as nossas aventuras anteriores, nas quais
tínhamos nos arriscado a levar uma surra dos bandidos, no
mínimo. Mas, na manhã seguinte (sábado), quando Cidinha
levou a mãe dela lá em casa e dona Nair explicou tudo ao meu
velho, ele também topou.
— A senhora fica-me responsável pelo miúdo — disse ele.
— Cautela com esse diabrete! Mas, pensando bem, talvez ele
me passe um carnaval mais sossegado na Bahia do que aqui,
no Rio... Pode levá-lo, dona Naíre, e que Deus a ajude a
conservá-lo quieto! Esses moleques são de amargar!
Os pais de Carlão também acabaram permitindo que o
filho passasse aqueles dois dias e meio em Salvador, desde que
o passeio não lhes custasse nada... Quanto a seu Baltazar e
dona Maria, deram graças a Deus por se verem livres de Pavio

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Apagado durante dois dias e meio, transferindo para dona Nair


a responsabilidade de zelar pela segurança dele.
Quer dizer: nesse sábado, os enturmados concluíram as
negociações com seus respectivos progenitores e ficaram livres,
para tratar das passagens. Dona Nair telegrafou para o amigo
dela em Salvador, pedindo-lhe que reservasse vagas, na
pensão, para mais quatro garotos, e dizendo que as despesas
extras correriam por conta da turma e que a torcida de Cidinha
poderia influir no resultado do concurso de fantasias do Clube
Caramuru. No mesmo telegrama, dona Nair informou que a
turma sairia do Rio no avião da Cruzeiro que chegaria a
Salvador na segunda-feira à tarde.
Depois disso, reservamos as seis passagens aéreas e
preparamos nossas bagagens. Como não havia mais nenhum
concurso de fantasias na Guanabara, Cidinha também pôde
brincar conosco na avenida e se esbaldou no coreto de
Madureira. Passamos a noite de sábado (e o domingo todo)
cantando e dançando pela cidade em festa, sempre juntos e na
companhia de um de nossos parentes (que se revezavam para
aguentar o embalo) e, na segunda-feira à tarde, já estávamos
prontinhos para embarcar. O carnaval no Rio não tinha mais
surpresas para nós e ansiávamos por conhecer o carnaval da
Bahia.
O embarque foi às duas e vinte da tarde, no Aeroporto do
Galeão. Estávamos todos nervosos, excitados, e dona Nair tinha
dificuldades em nos manter juntos, dentro do avião. Mas,
quando o aparelho levantou voo, fomos amarrados aos
assentos, com os cintos de segurança, e nos conformamos em
ficar quietos, por alguns minutos, até que o letreiro luminoso
avisou que podíamos respirar aliviados outra vez.
A viagem foi ótima, naquele Boeing 727. Não sentimos
medo nem nada. Aliás, não éramos aviadores de primeira
viagem, pois já tínhamos voado a Belém do Pará (durante a

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Operação A Vaca Vai Pro Brejo) e sabíamos que há mais


segurança dentro de um avião, no espaço, do que dentro de
um automóvel, na estrada, do jeito que anda esse trânsito...
Chegamos ao Aeroporto Dois de Julho, de Salvador, às
três e meia da tarde e encontramos um senhor à nossa espera.
Era um crioulo de pixaim branco, magro e espigado, cheio de
energia, que dona Nair nos apresentou como seu amigo Mestre
Catrapuz, um baiano da velha guarda que fizera grande
camaradagem com o pai de Cidinha quando passara seis anos
no Rio. Mestre Catrapuz (nunca cheguei a saber o verdadeiro
nome dele) é que convidara Cidinha para concorrer ao
concurso de fantasias do Clube Caramuru e estava muito
contente porque ela aceitara o convite. E disse que também
estava muito contente com a nossa ida à Bahia, pois, assim,
teria oportunidade de nos mostrar a boa terra, berço da nossa
nacionalidade.
— Mestre Catrapuz é professor de capoeira — informou
dona Nair, sorrindo para o preto velho. — A escola dele é uma
das mais afamadas de Salvador. E ele é um dos mais velhos
baianos vivos, descendente dos primitivos escravos africanos
que vieram para a Bahia.
— Com muita honra — acrescentou Mestre Catrapuz. —
Sou neto de escravo ioruba legítimo, uma raça de africanos que
ajudou a construir o Brasil. Agora, vamos andando. Aluguei um
carro grande, para nos levar para a cidade. Espero que todo
mundo caiba dentro dele.
Saímos do aeroporto, com as malas, e fomos para um
automóvel antigo, (Ford ou Chevrolet) que nos aguardava, com
outro crioulo ao volante. Mais tarde, soubemos que o motorista
era filho de Mestre Catrapuz.
Antes de entrarmos no veículo, Príncipe indagou do nosso
anfitrião:

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Este é o Aeroporto Dois de Julho, não é, Mestre? Mas,


ali adiante, tem outro... ou eu me engano?
— Não se engana — respondeu o crioulo, mostrando os
dentes muito brancos. — Aquele é que é o verdadeiro
Aeroporto de Ipitanga, agora transformado em Base Aérea. Eu
sou um baiano teimoso, que não aceita esses modernismos! A
Bahia é uma terra cheia de tradições históricas e um baiano
legítimo não se conforma com as mudanças que possam
prejudicar a tradição! Por mais que mudem os nomes das
coisas, para mim a Bahia continua sendo o que era e sempre
foi! Por isso, para todos os efeitos, vocês desembarcaram no
Aeroporto de Ipitanga e não no Dois de Julho! Ainda que esta
data represente a Independência da Bahia, o meu aeroporto
continua a ser aquele e não este! Foi em Ipitanga que vocês
desembarcaram na Bahia de Todos os Santos!
— Perfeitamente — disse eu. — Não tem problema! Nós
nem vimos o novo aeroporto... E achamos muito bacana o
Aeroporto de Ipitanga, onde acabamos de desembarcar de um
DC—3 da Panair!
O velho crioulo ficou encantado com as minhas palavras e
disse que já tinha simpatizado muito com a Turma do Posto
Quatro, pois estava vendo que nós éramos uns garotos bem
educados e apreciávamos as tradições, embora eu e Príncipe
usássemos os cabelos um bocadinho comprido...
— Isso de cabelos compridos não quer dizer nada —
afirmou Príncipe. — Castro Alves também usava os cabelos
compridos! E ele foi o poeta que mais combateu a escravidão!
Castro Alves também era legal às pampas!
— Isso é verdade — concordou Mestre Catrapuz. — Eu
acho que vocês fazem muito bem em imitar Castro Alves, que
foi um grande baiano! Agora, vamos para o Campo Grande,
pela Estrada Velha do Aeroporto!

24
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

E o carro partiu, transportando-nos para a cidade, ao


longo de uma rodovia moderna e bem cuidada. Percorremos
uns dez quilômetros de estrada e passamos em frente a uma
praia cheia de coqueiros.
— Itapoã — anunciou Príncipe, olhando avidamente para
o mar e para umas jangadas que repousavam na areia, em
cima de roletes de troncos de coqueiro.
— Itapoã — confirmou Mestre Catrapuz. — Antigamente,
tudo isto era deserto e romântico. Amanhã de manhã, se vocês
quiserem, podemos vir até aqui, dar um passeio de carro.
Agora, não, porque dona Serafina está à nossa espera para o
jantar.
— Vejam aquelas jangadas — disse Carlão, incrementado.
— Meu avô era jangadeiro no Ceará. Esses pescadores vão um
bocado longe, para apanhar peixe! O jangadeiro é um cabra
macho como quê!
— Jangada é barco, não é? — quis saber Pavio, olhando
de esguelha para Príncipe.
— Jangada é jangada — retificou a nossa enciclopédia
ambulante. — Eu não preciso olhar para saber como é uma
jangada. É feita de piúba, uma madeira que dá muito no Pará.
Uma jangada grande, do tipo de-dormida, que enfrenta o alto
mar, tem sete a oito metros de comprimento por dois e meio a
três e meio de largura. Sua vela, triangular, é de algodãozinho
e tem quarenta metros de pano. A jangada é feita com cinco
ou seis paus compridos, pregados lado a lado em duas ou três
traves, chamadas tornos, por meio de pregos de madeira que
varam as tábuas. A grossura dos paus varia, mas os do centro
são mais altos, de maneira que a jangada fique boa de remo,
ou seja, com as bordas mais baixas do que o centro, para que
a água passe com mais facilidade e a jangada corra mais.
— Puxa vida! — exclamou Cidinha. — Me admira como
esses pescadores têm coragem de enfrentar o mar alto num

25
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

amontoado de toros como esses! E eles passam muitos dias


pescando longe da costa?
— Às vezes, passam até uma semana — respondeu
Príncipe. — Eles levam farinha, bananas, rapadura e sal, numa
vasilha chamada quimanga, e água doce no barruete. Também
levam um samburá de taquara, para botar o peixe salgado, e o
toaçu, uma âncora de pedra furada, com varetas que agarram
firme na areia do fundo do mar. Isso sem falar na linha de
prumo, para medir as profundidades, e no remo de governo,
em forma de pá, que serve de leme.
— E como é que eles pescam os peixes — perguntou
Pavio. — É que nem Mestre Pedro e os pescadores de Cabo
Frio?
— Mais ou menos. Eles também usam linha e anzol, que
levam pendurados numa vara chamada biquara, mas, muitas
vezes, fisgam os peixes maiores com o bicheiro, que é uma
vara com um gancho de metal numa ponta e uma corda na
outra. Se o peixe escapa, os jangadeiros vão dando corda, até
cansá-lo, e, depois, pegam ele na base da paulada. Para
caquerar os peixes, eles usam um pau chamado araçanga.
— Que barato! — exclamou Cidinha. — Mas eu acho um
perigo, sair para o mar alto em cima desses troncos de piúba!
Custa a crer que uma embarcação tão frágil aguente uma
viagem tão longa!
Mestre Catrapuz, que estava ouvindo o papo, não pôde
deixar de observar:
— Jangadeiro baiano é bicho tinhoso, garotada! Vocês
não conhecem aquela história de Mestre Zuza? Ele foi
apanhado no mar alto, num dia de tempestade, mas nem ligou.
Aí, apareceu um enorme navio inglês e, ao avistar aquela
jangada com três homens esmulambados, a tripulação do navio
pensou logo que eles fossem náufragos, agarrados a uma balsa
improvisada. Aí, o capitão mandou parar as máquinas e jogar

26
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

uma corda a Mestre Zuza, gritando qualquer coisa em inglês.


Mestre Zuza ficou uma fera! “Olha aí, gente’’ — falou ele, para
os outros jangadeiros. — “Numa hora dessas, vêm esses
gringos nos pedir reboque!’’
A turma achou graça na piada, mas compreendeu que
aquela história não passava de outra lenda do Nordeste... A
Praia de Itapoã ficou para trás e o carro seguiu pela rodovia.
Mais 14 quilômetros e passamos em frente a outra praia bonita,
cheia de prédios modernos, inclusive hotéis.
— Amaralina — disse Mestre Catrapuz. — Vejam que
tranquilidade! Este lugar deserto é um dos mais românticos da
Bahia! A gente anda léguas, sem ver ninguém... É só areia, céu
e mar...
— Creio que o senhor se engana — arriscou Cidinha. —
Em frente à praia está assim de edifícios. E tem muita gente
passeando pelo Balneário.
— Pra mim — retrucou o velho baiano, invocado — não
tem ninguém! Não estou vendo os prédios que eles botaram aí
para estragar a paisagem! Amaralina continua sendo bonita e
deserta, beijada pelo mar... Esse negócio de balneário moderno
é uma vergonha, um crime contra a tradição!
O carro prosseguiu viagem, pela estrada, correndo mais
alguns quilômetros, sempre bordejando o Oceano Atlântico.
— Ali é Mariquita — apontou Mestre Catrapuz. — Logo
adiante, fica o local onde naufragou o Caramuru, que foi o
primeiro português a entrar na Bahia. Antes dele, aqui só tinha
índio.
— Caramuru — explicou Príncipe — chamava-se Diogo
Álvares Correia e naufragou por aqui em 1508, depois que
Nicolau Coelho, da armada de Pedro Álvares Cabral, desceu em
terras do Brasil, junto à foz do Rio Caí, perto do Monte Pascoal.
A descoberta do Brasil foi a 22 de abril de 1500, mas,

27
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

realmente, Caramuru foi o primeiro branco a tomar conta da


terra desconhecida.
— Eu sei porque chamaram ele de Caramuru — disse
Pavio, orgulhoso. — Meu professor deu isso, na aula de
História. Os índios nunca tinham visto uma espingarda e,
quando o náufrago deu um tiro, chamaram ele de Caramuru,
que queria dizer Deus do Trovão. Falei?
— Não, senhor — emendou Príncipe. — Caramuru é o
nome de um peixe, muito comum neste litoral. Os índios que
receberam o náufrago eram da raça tupinambá. Diogo Álvares
Correia fez camaradagem com eles e casou com a filha de um
dos chefes, chamada Paraguaçu, depois batizada com o nome
cristão de Catarina, em homenagem à Rainha da França
Catarina de Médicis que, segundo a lenda, teria sido a
madrinha dela, em Paris, onde o casal Caramuru esteve de
visita...
— Por falar em Caramuru — acudiu dona Nair, que
viajava no banco da frente com Mestre Catrapuz — o senhor
comprou os ingressos para o baile do clube?
— Claro — respondeu o preto velho. — Já tenho as sete
entradas e já inscrevi a menina no concurso. Amanhã à tarde,
iremos todos para o Clube Caramuru da Boa Viagem, que fica
num local deserto e romântico de Monte-Serrat...
Eu e Príncipe trocamos um olhar de entendimento. No
mínimo, esse local deserto e romântico também estava cheio
de prédios modernos e não se parecia em nada com a velha
Bahia de Todos os Santos que existia apenas na saudade de
Mestre Catrapuz. Mas era melhor não contrariar o bom
baiano...

28
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Capítulo III – Antes do Baile

Naquele trajeto histórico, do aeroporto à pensão que


Mestre Catrapuz escolhera para nós, ainda passamos pela Praia
de Ondina (que o nosso cicerone disse estar deserta, mas
estava cheia de edifícios e restaurantes) e vimos, à direita da
rua, um muro que cercava um campo enorme.
— Ali é o Jardim Zoológico — disse o chofer do carro, que
até ali se mantivera calado.
— Não dê informações erradas aos meninos — censurou
Mestre Catrapuz, fulminando o motorista com um olhar torvo.
— Ali é a Feira de Gado, ou, como eles dizem, a Exposição de
Pecuária!
— Já foi a exposição — admitiu o chofer — mas, agora, é
o Jardim Zoológico. Não adianta o senhor bronquear, porque é!
E essa rua que nós descemos é a Evaristo de Matos! A Avenida
Oceânica começa aqui!
— Essa é uma deslavada mentira — rugiu o velho
saudosista. — A Avenida Oceânica vai da Barra a Amaralina,
passando pelo Rio Vermelho!
Ninguém contestou, para não o irritar, e continuamos a
viagem, pela rodovia litorânea. Mais adiante, Mestre Catrapuz
apontou para a direita, do lado oposto ao mar. Olhamos e não
vimos nada.
— Esta rua vai dar na Igreja da Graça — disse o velho. —
É a primeira igreja da Bahia e do Brasil. Foi construída no alto
de uma colina, em 1510, por Catarina Paraguaçu, a mulher do
Caramuru. É um simples templo de varas trançadas e coberto
de palha... E não admito que me contradigam!
— O senhor tem razão — falou Príncipe. — A Igreja de
Nossa Senhora da Graça já foi uma cabana humilde, ao ser
erigida por Catarina Paraguaçu, em 1582; mas, hoje, é uma
igreja muito bacana, como todas as outras de Salvador.

29
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— A Bahia tem 365 igrejas — arriscou Mestre Catrapuz.


— Salvador tem apenas 165 igrejas, como o senhor quer
dizer. Mas, assim mesmo, é a capital que tem maior número de
templos, em todo o Brasil. Tem uma catedral, trinta matrizes,
noventa e oito igrejas e trinta e seis capelas, todas ricas e
bonitas. Já dizia o Padre Antônio Vieira, quando esteve na
Bahia: “Por menos que se fale, ouve-se numa igreja o que se
faz na outra.” Os baianos são muito católicos.
— Nem todos — rosnou Mestre Catrapuz. — Nós somos
crentes da Linha de Ioruba e nosso Deus é Olarum, que manda
em todos os Orixás!
— A macumba — explicou Príncipe, sem se alterar — é
uma mistura dos rituais do antigo Reino dos Iorubas, que os
franceses chamam de Nagôs, com os rituais católicos e
ameríndios. Muitos deuses africanos têm seus correspondentes
nos santos católicos. Por exemplo: Oxalá é o Senhor do Bonfim,
Ogum é Santo Antônio, Oxóssi é São Bento, Xangô é Santa
Bárbara ou São Jerônimo, Omolu é São Bento, Iemanjá é Nossa
Senhora do Rosário ou da Piedade, e assim por diante...
— E Exu? — indagou o motorista, impressionado.
— Exu é o diabo!
Pavio fez o sinal-da-cruz (os pais dele frequentam
macumba) e, no silêncio que se seguiu, fez ouvir a sua voz
esganiçada:
— Entendi tudinho, Príncipe. Menos uma coisa. Que são
os rituais ameríndios?
— Ameríndio é o nome que se dá aos índios da América.
No Brasil, as crenças afro-católicas acabaram se misturando
com as dos indígenas, de maneira que a macumba da Linha de
Umbanda perdeu a sua pureza original. Mas dizem que, nos
quinhentos terreiros de candomblé da Bahia, ainda se
encontram alguns dos rituais animistas do Reino dos Iorubas.
Animista — acrescentou, olhando firme para Pavio — é a

30
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

doutrina que considera a alma como o princípio básico da vida.


Os espíritas também professam o animismo.
— Isso mesmo — aprovou Mestre Catrapuz. — A gente
precisa alimentar o espírito, porque, enquanto a alma da gente
for forte, o corpo não fica doente. Vejam eu, por exemplo!
Estou com oitenta e cinco anos bem vividos e ainda me sinto
muito legal! A gente só morre, de velhice, porque a alma
também se gasta...
— Posso perguntar uma coisa? — volveu Pavio. — Dona
Nair disse que o senhor é professor de capoeira. Que raça de
galinhas o senhor ensina a botar ovo?
Todo mundo riu e o crioulinho não gostou da gozação.
Mas Mestre Catrapuz explicou, pacientemente:
— Capoeira não é galinheiro, meu filho. É uma espécie de
dança e de luta que os primeiros escravos bantos trouxeram de
Angola. Antigamente, havia famosos capoeiras em todo o
Brasil, mas, agora, os melhores estão na Bahia. Além da minha
Academia de Capoeiragem, existem as de Mestre Bimba,
Mestre Gato, Mestre Canjiquinha e outros, todas muito boas.
Depois eu lhe apresento os meus discípulos. Meu professor foi
Mestre Amorzinho, que fundou a primeira Escola da Bahia.
— Nós já tivemos grandes capoeiras no Rio — afirmou
Príncipe. — Mas eram uns malandros muito atrevidos, que
usavam navalhas para agredir os seus adversários. Os
capoeiras formavam maltas, isto é, grupos de vinte a cem
desordeiros, que provocavam arruaças, machucando todo
mundo. A antiga Malta dos Nagoas ficou famosa, no Rio. Hoje,
a capoeira é praticada mais por amor ao esporte do que pelo
desejo de provocar conflitos.
— Exatamente — disse Mestre Catrapuz. — Na Bahia
também. A capoeira é um esporte e uma dança, que exige
força e habilidade. Depois eu mostro para vocês. Há setenta
anos que sou professor!

31
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Mas o senhor ainda dança a capoeira? — espantou-se


Cidinha.
— Quem sou eu? Minhas juntas estão muito duras... Eu
só toco o berimbau.
Entretanto, o carro tinha descido, pela Avenida Oceânica,
até à Barra; aí, pudemos ver o farol e a entrada da Baía de
Todos os Santos. Não foi preciso Príncipe me dizer que aquela
era uma das maiores baías do mundo, com seus 70 quilômetros
de extensão norte-sul, nem que tinha sido descoberta em 1516
por Cristóvão Jacques, enviado por Portugal para combater os
piratas franceses; eu aprendera isso no colégio. Mas não há
nada como a gente ver as coisas, para conhecê-las bem. No
que Cidinha enxergou a baía, lá embaixo, cheia de saveiros
(que são barcos parecidos com as jangadas) ficou ouriçada e
queria saltar do carro para descer a encosta, mas Mestre
Catrapuz falou que já passava das cinco horas e a dona da
pensão estava à nossa espera. Seguimos, então, pela principal
rua de Salvador (a Avenida 7 de Setembro) que acabava na
Barra e começava na Praça Castro Alves, no centro da Cidade
Alta. Nem bem tínhamos passado pelo Forte de Santa Maria
(num pedaço de terra que entrava pela baía) e Príncipe
anunciou:
— Foi por aqui, entre os Fortes de Santa Maria e São
Pedro, que desembarcou Tomé de Souza, em 1549, para
fundar a capital baiana. Antes disso, já aqui estivera Martim
Afonso de Souza, que encontrou o Caramuru na maior folga, e
Francisco Pereira Coutinho, que ganhou a Capitania da Bahia e
se estabeleceu na Vila Velha.
— A Vila Velha — esclareceu Mestre Catrapuz — ficava
aqui mesmo, onde estamos, entre os atuais bairros da Vitória e
da Graça. Foi fundada pelo Caramuru.
— Mas seu Coutinho acabou sendo devorado pelos
tupinambás da Ilha de Itaparica — continuou Príncipe — e, aí,

32
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

a Coroa Portuguesa mandou Tomé de Souza para cá, para ser


o Primeiro Governador-Geral do Brasil. Como vocês sabem, seu
Tomé fundou Salvador, que foi a primeira capital da colônia. Só
em 1763, quando apareceu ouro em Minas Gerais, é que a
sede do governo passou para o Rio de Janeiro, que ficava mais
perto das minas...
Continuamos a viagem em silêncio, ao longo da Avenida
7 de Setembro (Mestre Catrapuz falou que aquele trecho da
avenida era o Corredor da Vitória) e passamos em frente a uma
praça bacana, larga e ajardinada, que Príncipe disse que era a
Praça 2 de Julho e o crioulo velho retrucou que era o Campo
Grande, ou o Passeio Público da Rua das Mercês, pois ele não
conhecia nenhuma Praça 2 de Julho na Bahia... Nessa praça é
que ficava o Teatro Castro Alves, um dos melhores da América
do Sul, sob o ponto de vista técnico.
— Por que é que aqui em Salvador tudo é na base do 2
de julho? — quis saber Pavio, invocado.
— Porque o 2 de julho é a maior data cívica baiana —
esclareceu Príncipe. — Foi em 2 de julho de 1823 que o Brasil
se tornou verdadeiramente independente, com a expulsão das
últimas tropas portuguesas, que fingiam não terem ouvido o
grito de Dom Pedro Primeiro. Os baianos têm muito orgulho
disso. Não é, Mestre Catrapuz?
— É — respondeu o nosso anfitrião. — Mas, para mim, o
Campo Grande não tem nada a ver com a Independência. E
esse Teatro Castro Alves, com todos os seus modernismos, fica
longe do Pavilhão da Lapinha, do meu compadre Zé Cunha! As
únicas peças de teatro que eu gosto são as comédias de
Martins Penna! E tem que ser Penna com dois nn!
Não houve tempo para mais conversa, porque tínhamos
chegado a uma casa velha, na Rua Newton Prado (paralela à
Avenida 7 de Setembro) e o motorista freou o carro junto ao

33
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

meio-fio. Era ali a Pensão Serafina, onde deveríamos ficar


hospedados naqueles dois dias.
Dona Serafina dos Anjos, a proprietária do solar, era uma
senhora mulata, gorda e sorridente, que logo nos pôs à
vontade. Cidinha e dona Nair ficaram num quarto da frente, eu
e Príncipe num quartinho do lado e Carlão e Pavio Apagado
num quarto dos fundos, que era o melhor de todos, porque
tinha vista para a Baía de Todos os Santos.
Jantamos às seis horas (Mestre Catrapuz comeu conosco)
e, depois, dona Nair falou que estava cansada da viagem e não
queria sair nessa noite. Nós estávamos doidos para dar uma
volta pela cidade, para ver o carnaval Baiano, mas respeitamos
os desejos da mãe de Cidinha (que era o nosso Anjo da
Guarda) e também ficamos na pensão, batendo papo com
Mestre Catrapuz e assistindo ao carnaval pela televisão. Ao
mesmo tempo, combinamos um passeio pelo litoral, na manhã
seguinte. Às dez e meia, o preto velho foi-se embora, (ele
morava para os lados do Tororó, onde funcionava o seu terreiro
de capoeira) e nós fomos para a cama.
Minto. Antes de nos deitarmos, conhecemos outro
hóspede da pensão, que ficou muito interessado quando soube
que Cidinha ia concorrer ao concurso de fantasias do Clube
Caramuru da Boa Viagem. Era um mulato magro, de olheiras
fundas, muito limpo e cheiroso, chamado Dermeval.
— Que coincidência! — disse ele, sorrindo para Cidinha.
— Eu também vou ao baile do Caramuru! Tem uma menina,
afilhada de minha patroa, que vai concorrer ao concurso. Mas,
se a sua fantasia for tão bonita quanto você, o primeiro prêmio
será seu! Sinceramente, gostaria que você ganhasse, com a
sua baiana estilizada. Tanto isso é verdade que vou lhe
oferecer uma medida do Senhor do Bonfim, para lhe dar sorte.
Saravá, minha nega!

34
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

E ele botou nas mãos de Cidinha uma tira de pano azul-


marinho, com uns desenhos dourados, que ela aceitou e
guardou no decote da blusa. Não gostei muito do atrevimento
do mulato perfumado, mas não disse nada, porque minha
namorada ficou muito feliz com aquele breve. Além disso,
quem sabe? Podia ser que desse sorte, mesmo...
Às sete horas da manhã seguinte (Terça-Feira Gorda)
fizemos nossa higiene e fomos tomar café. Para nossa
surpresa, era um café com leite normal, assim como tinha sido
normal o jantar. Nem vatapá, nem caruru, nem mungunzá,
nem nada! Perguntamos a dona Serafina se os baianos comem
igual aos cariocas e ela respondeu que sim, mas que, se
quiséssemos provar as comidas típicas da Bahia, ela podia
mandar a cozinheira fazer vatapá no almoço.
— Nada disso — falou dona Nair. — A cozinha baiana é
muito condimentada, com pimenta e azeite de dendê, e pode
dar dor de barriga em quem não está acostumado com ela.
Lembrem-se de que vamos ao baile, logo mais à tarde, e seria
muito desagradável brincar o carnaval com dores de barriga...
Nossa pajem tinha razão e resolvemos deixar o vatapá
para a 4.a-feira de cinzas. Às oito horas, Mestre Catrapuz
apareceu de volta, no carro velho, e saímos para o tal passeio
pela orla marítima. Mas não houve nada digno de registro, pois
já tínhamos passado por aqueles lugares, na tarde anterior. A
única novidade é que Pavio espetou o pé num ouriço, em
Amaralina, e ficou dançando uma porção de tempo numa perna
só, feito um saci. Mas, como era 3.a-feira de carnaval, ninguém
ligou para isso.
Às onze e meia, regressamos à pensão e, ao meio-dia,
almoçamos. Depois, cada um de nós vestiu a sua fantasia, fácil
de ajeitar porque não ia concorrer a nenhum concurso. O baile
do Caramuru começava às duas horas e não podíamos perder
tempo. Enquanto Cidinha se fantasiava, no quarto da mãe dela,

35
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

procurei pelo mulato Dermeval, mas ele já não estava no


quarto que ocupava, ao lado do meu.
— Dermeval foi para Mont-Serrat — informou dona
Serafina, olhando com respeito para a minha roupagem de
bandeirante. — Ele está de folga, no terreiro de candomblé de
Mãe Gandula, porque o terreiro não funciona durante o
carnaval, mas disse que vai assistir ao baile infanto-juvenil do
Caramuru. Vocês o encontrarão por lá.
Agradeci a informação e me juntei à turma, na sala. Não
disse nada a ninguém, mas fiquei invocado. Pelo jeito,
Dermeval trabalhava num terreiro de macumba... e isso não
era de molde a me deixar sossegado!
Mestre Catrapuz apareceu, para nos apanhar de carro, na
hora em que Cidinha acabou de se aprontar. Minha namorada
estava espetacular, na sua baiana rica; não tive a menor dúvida
de que ela iria ganhar o concurso.
— Já ganhou! Já ganhou! Já ganhou! — exclamei,
entusiasmado. — Não pode haver outra baianinha mais bacana
do que essa! É o fino!
— Talvez seja — disse Cidinha, ajeitando o turbante e a
cestinha de frutas iluminadas por dentro — mas deve haver
outras fantasias ricas, ainda mais ricas do que esta. No
entanto, se depender de mim, o primeiro prêmio será da Turma
do Posto Quatro! Espero que vocês me ajudem, batendo
palmas e fazendo uma boa alaúza, na hora em que eu desfilar!
Tá legal?
Nesse momento, Pavio Apagado também apareceu na
sala, vestido de escravo africano e com o gigantesco leque de
plumas na mão, e nós demos uma vaia nele. O moleque ficou
uma fera, mas logo se acalmou, quando eu disse que era
brincadeira e ele também estava espetacular.

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Se depender de mim — respondeu Pavio, abanando o


leque — Cidinha será a Rainha do Baile! Minha sinhazinha é a
maior... é a maior... é a maior...
— Depressa! — falou Mestre Catrapuz. — Já passa de
uma e meia! Cidinha precisa se apresentar no clube antes da
abertura do baile!
Saímos todos correndo e entramos no carro, que era
dirigido pelo mesmo chofer. Foi então, durante a viagem para o
Clube Caramuru (que ficava do outro lado da cidade) que
conhecemos o carnaval de rua da Bahia. Não achei muita
diferença do carnaval carioca, a não ser quando paramos na
Praça Tomé de Souza (que Mestre Catrapuz chamou de Paço
Municipal) e vimos o Trio Elétrico. A praça (onde ficava o
Palácio Rio Branco, que é o Palácio do Governo) e a Rua Chile,
estavam cheias de foliões fantasiados, todos de olho num
caminhão enorme, circundado por alto-falantes, em cima do
qual se via três músicos, solistas, tocando cavaquinho,
bandolim e violão, e outros dez ou doze acompanhantes,
tocando instrumentos de percussão. Era aquele o falado Trio
Elétrico do carnaval de Salvador! Atrás do caminhão desfilavam
blocos tradicionais, com estandartes coloridos: Cada Ano Sai
Pior, As Muquiranas, As Barbulhas, Bafo de Jegue, Rato Fufão
— e até um bloco só de mulheres (eram mais de 200) chamado
Lá Vêm Elas. Fazendo coro com o Trio Elétrico, o povo cantava
um frevo bem mexido.
— Esse é o hino do Esporte Clube Bahia — informou
Mestre Catrapuz. — Eles adaptaram a música para frevo e
tocam em todos os carnavais. É pena vocês não terem chegado
na Bahia trasanteontem. Todos os sábados tem rodas de
samba no Mercado Modelo...
— O Mercado Modelo fica no antigo prédio da alfândega
— intercalou Príncipe, que tinha lido e decorado tudo o que
dizia respeito a Salvador.

37
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Para mim, não fica, não — retrucou Mestre Catrapuz,


que não queria ler nada e fechava os olhos para a realidade. —
Andaram dizendo que aquele incêndio acabou com o Mercado
Modelo e ele passou para a alfândega, mas eu me recuso a
admitir! Para mim, o Mercado Modelo continua na frente da
rampa, do outro lado da Praça Cairu! Assim como não admito
que tenham acabado com a Feira de Água de Meninos, ali
embaixo, ao lado do ancoradouro dos saveiros! Quando a gente
passar por lá, eu mostro o lugar para vocês...
E havia uma pequenina lágrima no olho triste do bom
baiano.

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Capítulo IV – O Baile do Caramuru

Não sei se já disse que a turma toda estava fantasiada


(menos dona Nair); por isso, cada vez que o carro parava, no
centro da cidade, a gente descia para a calçada e o povo
brincava conosco, numa confraternização geral.
— É o entrudo — suspirava Mestre Catrapuz. — No
entanto, todos se entendem e ninguém se compreende...
Eu ia fantasiado de Fernão Dias (bandeirante), Príncipe ia
de Rajá de Brahmachoka (príncipe hindu) e Carlão, de Virgulino
Ferreira, o Rei do Cangaço. Isso sem falar em Cidinha (Carmen
Miranda) e Pavio Apagado (Zumbi dos Palmares), cujas
fantasias eram mais ricas e brilhantes, porque iam concorrer a
um concurso.
Mal saímos da Praça Tomé de Souza, Príncipe olhou para
todos os lados, com avidez, e perguntou:
— Cadê o Elevador Lacerda? Ele tem 72 metros de altura
e liga a Cidade Baixa à Cidade Alta...
— O Elevador Lacerda — respondeu Mestre Catrapuz —
já ficou para trás. Vocês não o viram porque estamos na
Cidade Alta. É um ascensor hidráulico, que sai da Praça Cairu e
vem parar ao nível do Paço Municipal. Foi construído, em 1875,
por Antônio Francisco Lacerda, para substituir as cadeirinhas
carregadas pelos escravos libertos.
— Desculpe — retrucou Príncipe. — O Elevador Lacerda
foi eletrificado em 1907 e, agora, é tão moderno quanto o
resto...
— Azar dele — rosnou o crioulo velho. — Eu é que não
entro nessas geringonças elétricas! Meu terreiro de capoeira só
tem lampião de querosene!
— Além do Elevador Lacerda — continuou Príncipe,
dirigindo-se à turma — existem dois Planos Inclinados em
Salvador, ligando a Cidade Baixa à Cidade Alta. O primeiro é o

39
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Gonçalves, que sai da Rua Francisco Gonçalves e sobe até a


Praça Ramos Queirós; o segundo, é o Elevador do Pilar, que
liga a Rua do Pilar à Rua Joaquim Távora. Salvador é assim,
cheia de altos e baixos. Na Cidade Baixa ainda se podem ver
muitos sobradões coloniais portugueses, cobertos de azulejos;
mas, aqui em cima, só dá edifícios modernos. Isso, sem falar
nas ladeiras íngremes e tortuosas. A Rua J. J. Seabra, por
exemplo...
— Não diga esse nome, por favor — gemeu Mestre
Catrapuz. — Você está se referindo à Baixa do Sapateiro! Não
conheço nenhuma Rua Seabra na Bahia; só conheço a Baixa do
Sapateiro! Aliás, vamos passar perto do Pelourinho...
Depois que pegamos a Avenida Frederico Ponte (que
Mestre Catrapuz disse que era a Jequitaia), a corrida foi mais
rápida. Em menos de doze minutos cobrimos os sete ou oito
quilômetros que nos separavam da Rua Imperatriz, na
Península de Itapagipe. Mas, apesar da rapidez com que o
carro rodava pelo asfalto, Mestre Catrapuz ainda nos mostrou o
local onde existira a Feira de Água de Meninos e (já na Avenida
Luiz Tarquínio) apontou as duas ruas que iam dar na famosa
Basílica do Senhor do Bonfim, ou seja, a Avenida Dendezeiros
do Bonfim e a Rua Imperatriz. Pouco abaixo desta última,
quase no extremo da península, é que ficava o Clube Caramuru
da Boa Viagem.
— Aqui é Monte-Serrat — anunciou o velho baiano. — Ali,
à direita, fica a Igreja da Boa Viagem; à esquerda, na beira da
baía, fica o Forte de Monte-Serrat, e, mais adiante, na ponta da
península, o farolete e a Ermida de Nossa Senhora do Monte-
Serrat, que deu o nome ao lugar.
— É quase isso — admitiu Príncipe, com ar indulgente. —
O Forte de Mont-Serrat, em forma hexagonal, tem torreões nas
saliências e está situado num pequeno promontório da Praia da
Boa Viagem. Sua aparência é muito semelhante à de uma

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

montanha da Catalunha, Espanha, que se chama Mont-Serrat e


possui a crista recortada desse jeito. Nessa montanha existe
um famoso mosteiro beneditino que, segundo consta, data do
ano 880. Ora, como antes mesmo da chegada de Tomé de
Souza, e da fundação de Salvador, aqui já havia uma colônia de
portugueses e espanhóis, sob a liderança do Caramuru, é
provável que eles é que tenham dado o nome de Mont-Serrat a
este lugar...
— Sim, é provável — disse Mestre Catrapuz, mordendo o
beiço. — Seja como for, Monte-Serrat é outra relíquia da velha
Bahia, do tempo das cadeirinhas e da luz a gás!
— Salve a Bahia, sinhô! — completou Carlão, apesar de
ser cearense.
O Clube Caramuru da Boa Viagem era muito bacana e
tinha um jardim na frente do prédio moderninho, de cimento
armado. Em vez dos azulejos portugueses dos antigos solares
coloniais de Salvador, ostentava painéis de pintores avançados,
cubistas e surrealistas. Eram duas horas em ponto quando
entramos na sede do clube, atrás de Mestre Catrapuz e dona
Nair, e encontramos o salão cheio de fantasiados, meninos e
meninas, dos 5 aos 15 anos. Também havia acompanhantes,
senhoras e cavalheiros, mas nenhum deles usava máscara. A
orquestra ainda estava afinando os instrumentos.
— Cidinha e Francisco vêm conosco — disse Mestre
Catrapuz, dirigindo-se a dona Nair. — Os garotos ficam na
mesa que eu aluguei, à nossa espera. Vamos até lá dentro,
mostrar a menina à Comissão Julgadora, e não demoramos
nada. Este ano, o júri será presidido por um jornalista baiano
que mora no Rio de Janeiro, chamado Mister Eco, e estão
dizendo que vai ganhar a melhor fantasia, no duro. Mister Eco
não admite proteções.
— De quanto é o prêmio? — perguntei.

41
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— O primeiro prêmio é de dez mil cruzeiros e o segundo,


de cinco mil. Também haverá cinco prêmios de consolação,
mas esses não nos interessam. Cidinha tem que tirar o primeiro
lugar!
E o velho baiano desapareceu do salão, carregando dona
Nair, Cidinha e Pavio Apagado. Eu, Príncipe e Carlão sentamo-
nos à mesa que nos fora indicada, num dos ângulos do salão
de baile, e ficamos bebendo água de coco e vendo as modas.
Havia muitas fantasias ricas, entre as crianças que desfilavam
pelo salão, mas nenhuma era tão espetacular como a 'de minha
namorada. Aliás, tudo o que Cidinha usa é maravilhoso, porque
ela tem muito bom gosto e não existe outra garota tão bonita e
graciosa igual a Cidinha.
De repente, a orquestra começou a tocar e teve início o
baile infanto-juvenil. A garotada toda saiu pulando pelo salão,
enquanto os seus acompanhantes ficavam batucando nas
mesas.
Eu e Príncipe não tínhamos vontade de brincar, mas
Carlão ajeitou os seus óculos de Lampião (que tinham um vidro
branco e outro preto) e saltou para a pista de danças,
requebrando, atrás de uma garota que dera bola para ele.
E nada de Cidinha voltar lá de dentro! Eu já estava
apreensivo, com medo de que os promotores do concurso não
quisessem aceitar a inscrição da falsa baiana. Mas Príncipe
falou que talvez a eleição fosse feita fora do salão de baile e,
por isso, Cidinha e Pavio estivessem presos na sala dos jurados,
à espera dos votos. Se fosse assim, era uma sujeira, porque o
povo também devia aclamar a melhor fantasia!
Nisso, um mulato magro e risonho, vestido com uma bata
branca, atravessou o salão e foi falar comigo e Príncipe. Era
Dermeval, o hóspede da Pensão Serafina. Na companhia dele
estava uma mulata, nem magra nem gorda, vestida de baiana
e cheia de colares de contas vermelhas e pretas.

42
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Só agora vi vocês — disse Dermeval. — Cidinha está


na Sala do Júri, não é? Maria do Socorro também foi se
apresentar a Mister Eco, com a sua fantasia de Iemanjá...
Eu e meu companheiro nos levantamos, formalizados.
— Estes são os garotos cariocas que eu falei —
prosseguiu o mulato perfumado, sorrindo para a baiana. — O
magro chama-se Lula e o gordo chama-se Príncipe. São uns
meninos muito vivos e pertencem a uma turma bastante
conhecida no Rio de Janeiro. Eu já li algumas coisas, nos
jornais, a respeito deles...
— Prazer — disse a mulata, com voz mole, apertando as
nossas mãos. A mão dela também era mole às pampas.
— Esta é a minha patroa — completou Dermeval. — Mãe
Gandula de Exubê, que serve como babá em Pitangueiras. Mãe
Gandula é madrinha de Maria do Socorro e uma das mais
afamadas Mães-de-Santo da Bahia. Sarava!
— Saravá — disse Príncipe respeitosamente.
A baiana sentou-se à nossa mesa, muito da atrevida, e
começou a elogiar as nossas fantasias. Ao mesmo tempo, ia
comendo um dos nossos sanduíches.
— Eu já estive no Rio — papagueou ela. — Servi aos
meus santos num terreiro de Jacarepaguá. Depois, estive em
Ilhéus e, há cinco anos, me estabeleci em Salvador. Sou baiana
da Ribeira, meus filhos! Faço votos para que vocês gostem da
boa terra. A amiguinha de vocês veio vestida de Carmen
Miranda, não é? Eu só vi a menina de passagem...
— É — disse eu, com voz seca. — Cidinha está
espetacular e vai ganhar o concurso, fácil, fácil! Não é qualquer
Iemanjá que passa ela para trás! Cidinha tem o apoio da Turma
do Posto Quatro!
— Minha afilhada também é muito bonita — retrucou a
mulata, sorrindo. — Ganhará a mais bela. Mas, se Socorro

43
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

perder, paciência. Eu tenho dezenas de afilhadas. E um


concurso de fantasias, afinal, não é uma guerra...
— Nós nunca vimos um candomblé — falou Príncipe, sem
se poder conter. — A senhora recebe almas do outro mundo,
dona?
A baiana deixou de sorrir.
— Você não entende disso, meu filho! Eu recebo apenas
os Orixás Maiores e minhas iaôs recebem os Exus, que são os
moleques dos Orixás! Só trabalho com Xangô, Ogum, Omolu e
Iansã. Não recebo Oxalá, Oxóssi, Iemanjá, Oxum, Nanã,
Oxumaré, Irocô, Ifá, nem os gêmeos Ibegi; esses são santos
muito doces para mim... Vocês sabem que é mais fácil usar os
poderes do Mal do que do Bem...
Fiquei gelado e acho que Príncipe não se sentiu melhor
do que eu, ao ouvir aquilo. Mas Mãe Gandula não parou de
falar:
— Infelizmente, não abrimos durante o carnaval, quando
os Exus andam soltos e prejudicam os trabalhos sérios...
Senão, eu lhes mostraria o meu terreiro, que é o melhor da
Bahia. É verdade que eu cobro um pequeno tributo dos
visitantes e dos ogans, mas uso o dinheiro todo em oferendas
aos Espíritos das Trevas. Os Exus comem de tudo...
— Que pena — disse eu, querendo encerrar o papo. — Se
o seu terreiro abrisse no carnaval, a turma teria muito prazer
em visitá-lo. É chato vir a Salvador e voltar sem ter assistido
uma sessão de macumba.
— Macumba não, candomblé! — emendou o mulato
Dermeval. — Mãe Gandula não trabalha com macumba. O
candomblé de Pitangueiras é da Linha de Ioruba e não de
Umbanda. Na Umbanda, os Orixás não descem, mas mandam
representantes. E os Exus são sempre mal recebidos...
— O senhor tem toda a razão — disse eu.

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— No entanto — acrescentou a baiana, pensativamente


— se vocês fazem questão de conhecer um terreiro de
candomblé, posso levá-los até o meu, na quinta-feira. Até
quando vocês ficarão em Salvador, meus filhos?
— Só até amanhã de manhã — respondi. — Infelizmente,
não dá tempo. Mas ficamos muito agradecidos, do mesmo
jeito. A senhora é muito gentil, dona.
— Podemos ir hoje à noite ao terreiro — propôs a
macumbeira, percebendo que eu estava assustado. — Já
agora, farei gosto em que vocês conheçam as imagens dos
meus santos, que foram feitas por grandes artistas baianos.
Não haverá sessão, hoje à noite, mas o terreiro e o altar lhes
darão uma idéia de como funciona um candomblé legítimo...
Querem ir? Depois, ao voltarem para o Rio, vocês podem fazer
propaganda do meu terreiro...
— Ainda não sabemos se vamos — respondi, invocado.
— É claro que vamos — respondeu Príncipe,
incrementado. — Mas isso não depende do resultado do
concurso de fantasias, não é?
— Lógico que não — disse a Mãe-de-Santo, dando uma
risada. — Pelo contrário. Se a amiguinha de vocês ganhar o-
primeiro prêmio, terei ainda maior prazer em lhes mostrar o
meu terreiro. Só as eleitas dos Orixás é que ganham os
concursos de fantasias...
Pouco depois, o casal de mulatos se afastou e Cidinha
apareceu no salão, em companhia de dona Nair, Mestre
Catrapuz e Pavio Apagado. Atrás deles, também vinha uma
garota de seus 14 anos, fantasiada de sereia (metade menina
morena e metade peixe prateado) com os longos cabelos
verdes derramados sobre o busto. Carlão também voltou para a
mesa e Cidinha nos apresentou a “Iemanjá”, que era a tal
Maria do Socorro, afilhada de Mãe Gandula. Logo fizemos

45
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

camaradagem com a garota, que era bonita e educada, e


esperamos a hora do concurso.
— Tivemos um desfile lá dentro, para a Comissão
Julgadora — sussurrou Cidinha, no meu ouvido. — Fiquei tão
nervosa, Lula! Mas acho que agradei. Eu e Maria do Socorro
somos as mais cotadas. A fantasia dela também é jóia, embora
seja muito ousada, com as costas e a barriga de fora... O
desfile das candidatas, no salão, será às quatro horas. Mas o
resultado do concurso só será conhecido amanhã de manhã.
Depois disso, enquanto esperávamos a hora do desfile,
fomos dançando e brincando, sozinhos ou em grupos, ao som
das marchas, dos frevos e dos sambas tocados pela orquestra.
As horas passaram ligeiro. Daí a pouco, vieram buscar Cidinha
e Pavio Apagado (Maria do Socorro já tinha se mandado para a
mesa de Mãe Gandula) e, logo em seguida, ouviram-se
fanfarras na orquestra e começou o desfile das fantasias de
luxo. Cidinha foi a terceira a atravessar uma passarela
improvisada e recebeu muitos aplausos, gritos e assobios de
entusiasmo. A Turma do Posto Quatro era a mais ouriçada e,
sozinha, valia por uma multidão de assobiadores.
— Já ganhou! Já ganhou! Já ganhou!
Maria do Socorro desfilou em sétimo lugar, com a sua
belíssima fantasia de Rainha do Mar. Também recebeu muitos
aplausos e gritos, mas ninguém assobiou de entusiasmo,
porque Carlão tapou a boca do único baiano que queria
assobiar.
Havia apenas onze candidatas; após o desfile, o baile
prosseguiu, no mesmo embalo, e Cidinha se esbaldou, porque
já podia bagunçar a fantasia... Pulamos o tempo todo, mas não
nos esquecemos de comer e beber, para alimentar a energia.
Como disse dona Nair, saco vazio não fica em pé...
Pouco antes das seis horas (que era a hora marcada para
acabar o baile) ocorreu um pequeno incidente que me deixou

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

invocado, pois não entendi nada. Mãe Gandula, Dermeval e


Maria do Socorro tinham vindo para a nossa mesa, bater papo
(e a Mãe-de-Santo reiterou o seu convite a dona Nair e Mestre
Catrapuz, dizendo que nós queríamos visitar o seu terreiro)
(piando Pavio Apagado, numa manobra desastrada, derramou
meio copo de guaraná no braço nu da mulata baiana! Não era
nada demais, num baile de carnaval, mas Mãe Gandula ficou
tão furiosa que todo mundo reparou. Ela deu um berro de ódio,
botou um guardanapo em cima da pele molhada e saiu
correndo para o banheiro das senhoras. E, atrás dela, foram
dois crioulos altos e parrudos, vestidos dê branco, com pinta de
macumbeiros. Os dois homens ficaram na porta da toalete,
enquanto a baiana esteve lá dentro, e não deixaram ninguém
entrar.
Tudo aquilo era muito esquisito e ficamos olhando uns
para os outros, de boca aberta. Um minuto depois, Mãe
Gandula regressou ao salão, outra vez sorridente, e pediu
desculpas a Pavio, lamentando o seu ataque de fúria,
verdadeiramente inexplicável.
— Foi uma coisa à-toa — disse ela, afagando o coco do
moleque — mas eu me assustei, com esse líquido gelado.
Tenho pavor de coisas frias! Me perdoe, meu nego... e, para
outra vez, tome sentido no que faz! Você já tem idade para não
ser tão desastrado!
Em seguida, ela se sentou ao lado de dona Nair e voltou
a falar na visita ao candomblé, como se não tivesse acontecido
nada. Seus braços escuros e roliços mexiam-se muito depressa,
fazendo tilintar as pulseiras de bronze.
— Não sei — disse a mãe de Cidinha, intimidada. — Não
sei se as crianças devem ir a um lugar desses... A senhora me
desculpe, mas... minha filha pode ficar impressionada e não
dormir direito...

47
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Que nada — acudiu o mulato Dermeval. — O terreiro


de Mãe Gandula é Ioruba legítimo e não tem nada que
impressione as crianças. De mais a mais, hoje não é dia de
receber os santos. Não vai acontecer nada, minha senhora.
Aí, eu olhei para a porta do salão de baile e vi um dos
crioulos altos e fortes, de braços cruzados, parado na entrada.
O homem não tirava os olhos de cima de Mãe Gandula — e
parecia um zumbi! Eu já tinha lido um livro a respeito desses
mortos-vivos invocados pelos feiticeiros do Vudu (que é um
ritual das Antilhas, semelhante à macumba da Linha da
Quimbanda) e confesso que perdi todo o interesse em visitar o
candomblé! Mas Cidinha queria ir e a mãe dela acabou
concordando. E Mestre Catrapuz (que já conhecia Mãe
Gandula) concordou também.
Às seis e quinze o baile acabou e lá fomos nós, no carro
velho e fumegante, para o terreiro de macumba de
Pitangueiras. O resultado do concurso de fantasias (como já
disse) só seria divulgado na manhã seguinte; por isso, ninguém
sabia se a vencedora tinha sido Cidinha ou Maria do Socorro.
Mas, na opinião de todo mundo, só podia ser uma das duas.

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Capítulo V – Visita ao Candomblé

Eu pensava que todas as Mães-de-Santo fossem pobres e


não ligassem muito para o luxo; por isso, foi com grande
surpresa que vi o carrão Dodge-Dart de Mãe Gandula,
estacionado no pátio do Clube Caramuru. Ninguém poderia
esperar que uma mulata baiana, dedicada ao culto de Ogum,
levasse uma vida de granfina. Mas era isso aí: Mãe Gandula era
proprietária de um dos automóveis mais bacanas de Salvador!
E tinha chofer particular (um dos dois crioulos parrudos) e
ajudante de ordens (o outro crioulo) e uma espécie de moço de
recados, que era o mulato Dermeval!
— Nós vamos na frente — falou a macumbeira, antes de
entrar no carrão. — De passagem, quero deixar Socorro na
casa dos pais dela. Vocês podem nos seguir.
Mestre Catrapuz respondeu que estava bem e nos levou
para o modesto carro de praça, preto e desengonçado, dirigido
pelo filho dele. Olhando para trás, vi um dos crioulos abrir
respeitosamente a porta traseira do Dodge e Mãe Gandula
entrar, ajustando as saias às pernas, junto com a menina
fantasiada de Iemanjá; em seguida, Dermeval e os dois
crioulos sentaram-se no banco (ia frente e o carro partiu, na
maior suavidade...
— Mãe Gandula deve estar faturando uma nota —
comentou Mestre Catrapuz. — Ela nasceu na Penha da Ribeira,
aqui mesmo na capital, mas só se desenvolveu em Ilhéus, onde
foi iaô do Babalorixá Pedrinho do Almada. Faz cinco anos, de
volta à Bahia, ela teve a sorte de atrair os mais ricos ogans da
cidade e eles ajudam muito o terreiro de Pitangueiras. As
outras Babás censuram o modo de vida de Mãe Gandula, mas
eu acho natural. Se os santos querem que ela goze os prazeres
da vida material, ela tem que se submeter. Quem trabalha com
os luxus pode acabar no inferno depois de morto, mas leva um

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

vidão enquanto está vivo... Eu não invejo essa Mãe-de-Santo;


se eu estivesse no lugar dela, também cumpriria a minha sina!
Os dois carros percorreram as ruas cheias de foliões, que
festejavam o último dia de carnaval, e chegaram a uma ladeira,
no Bairro da Liberdade, onde o Dodge parou. Nós paramos logo
atrás dele.
— Aqui é a Lapinha — indicou Mestre Catrapuz. — Essa é
a Ladeira da Soledade. Se a gente for em frente, vai passar
perto do Forte do Barbalho, que é uma das maiores e mais
seguras fortalezas da Bahia. Como vocês veem, estamos bem
defendidos contra os invasores!
— O Forte do Barbalho já era — murmurou Príncipe, de
maneira a não ser ouvido pelo velho. — Hoje, as nossas
defesas são outras...
Maria do Socorro saltou do carrão e foi levada, por um
dos crioulos, para uma casa modesta da ladeira. Minutos
depois, o negro voltou sozinho, entrou no Dodge e o carro
partiu outra vez. E nós fomos atrás dele.
Mais quinze minutos de viagem, através das ruas
congestionadas pelos veículos enfeitados e pelos blocos de
foliões, e passamos por uma praça, entrando na Rua Joaquim
Maurício. À nossa direita, erguia-se uma enorme construção de
cimento, que fez Príncipe soltar um grito de júbilo.
— Olhem! É o Estádio Municipal Otávio Mangabeira! Não
é, Mestre?
— Não sei — retrucou o bom baiano, invocado. — Não
estou vendo nada!
— Olhe ali! — insistiu Príncipe. — Esse estádio também é
muito bacana, embora seja menor do que o do Maracanã.
Chama-se Otávio Mangabeira em homenagem ao grande
político baiano, que foi governador do Estado.
— Ali é o Estádio da Fonte Nova — rosnou Mestre
Catrapuz, com ar teimoso. — Não tive a honra de conhecer o

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Dr. Otávio Mangabeira. E, para mim, o verdadeiro estádio


municipal da Bahia continua a ser o da Canela, entre o Campo
Grande e a Igrejinha da Graça! Aqui, na Ponte Nova, criaram
apenas outro monstrengo, para desmoralizar o esporte baiano!
Continuamos perseguindo o Dodge-Dart e entramos
noutra rua, chamada Frederico Costa.
— Esta estrada — disse Mestre Catrapuz, como se
estivéssemos no meio do sertão — vai dar no Acupe. É o
caminho dos bondes que vão pura Brotas. Agora, não temos
mais bondes, infelizmente, e a estrada mudou de feição, mas
um baiano que se preza nunca se deixa enganar pelos disfarces
da civilização! Vocês precisavam ver o que fizeram com o
Dique! Quem não conhece o Dique, que vai da Fonte Nova até
Barris e Garcia? Pois, agora, acaba no Tororó! Eles andaram
fuxicando tanto no Dique que aquela maravilha virou um
jardim! Mais um pouco e ninguém reconhece o formato da
Bahia!
O terreiro de candomblé de Mãe Gandula ficava numa
elevação, não muito longe da Avenida Frederico Costa, que era
um beco sem saída. Os dois carros subiram por uma estradinha
particular e foram parar diante de um solar muito antigo, com
as paredes precisando de pintura. O local era ermo e sombrio,
pois só havia dois lampiões em toda a estradinha. As luzes do
prédio também estavam apagadas.
— Este é o Alto do Exubê — informou Mestre Catrapuz. —
Quase todos os candomblés da Bahia ficam em terrenos
elevados. Faz poucos anos, o mais afamado terreiro era o de
Joãozinho du Goméia, lá para os lados do Retiro e do Tanque
da Conceição, mas, agora, é o da Menininha do Gantois, na
Federação.
— Joãozinho da Goméia morreu, não é? — indagou
Cidinha.

51
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Não, não morreu. Os Babalorixás não morrem;


desencarnam!
— E depois da Menininha do Gantois? — quis saber
Carlão. — Qual é o candomblé mais badalado?
— Depois, talvez seja o de Mãe Gandula de Exubê,
porque é frequentado pela alta sociedade e por todos os
turistas que vêm à Bahia. Dizem que Mãe Gandula chega a
cobrar até mil cruzeiros por um despacho, para comprar
presentes que oferece aos Orixás! Mas tem outros terreiros
muito bons na cidade: o de Mãe Ondina, de Claudionor de
Saldanha, e Neve Branca, Olga de Alaketo, Mãe Maria
Valentina, Carolina da Silva Sá, Dona Helena, Oxumaré,
Waldomiro Bispo de Paris, e outros. Nenhum deles é tão rico
como o de Mãe Gandula. É por isso que muita gente tem inveja
dela e diz que ela tem parte com o demônio. Eu não digo que
sim nem que não. O fato é que, até hoje, ninguém provou que
Mãe Gandula não seja sincera nos seus trabalhos. E os Orixás
Maiores só descem no terreiro dela!
Eu e Príncipe trocamos um olhar de apreensão. Não era
muito agradável saber que iríamos entrar num casarão velho,
ao lado de um terreiro escuro, onde desciam os Orixás Maiores,
invocados por uma mulata que talvez tivesse parte com o
demônio! Sem essa!
Mas logo esquecemos as nossas prevenções, pois as
luzes elétricas do solar se acenderam e o local ficou claro como
se fosse de dia. Um velho corcunda e capenga (livra!) apareceu
à porta do casarão e recebeu Mãe Gandula com profundas
reverências. Esse aleijado devia ser o vigia da propriedade.
Mas, como era um homem branco (e português) não podia ser
um Exu...
Saltamos do nosso carro e fomos nos juntar à mulata
baiana e a Dermeval, pois os dois negros sumiram com o

52
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Dodge-Dart. Enquanto nos aproximávamos do casal de


mulatos, cutuquei o braço de Príncipe e sussurrei:
— Repare na figura da macumbeira, Príncipe... Vista
daqui, sob essas luzes, ela parece uma pintura de Di
Cavalcanti...
Meu companheiro olhou e disse que parecia, mesmo. Ele
também conhecia algumas gravuras das telas desse pintor
moderno, que se amarra em pintar mulatas baianas. Mãe
Gandula era, direitinho, um modelo de Di Cavalcanti!
Aí, começou a visita ao candomblé. Eram sete horas da
noite e tudo estava em silêncio. Só quando se acenderam as
luzes do terreiro é que um galo acordou e pôs-se a cantar,
enganado pela claridade. Vi que se tratava de um galo preto,
empoleirado num caixote, no fundo da Imensa área cimentada.
Ao lado dele, amarrado a um toco de árvore, também havia um
bode de barbicha comprida. Preto, naturalmente.
— Que barato! — exclamou Cidinha. — Eu não sabia que
um terreiro de candomblé era igual a uma área de arranha-céu,
em Copa! Só que esta é maior!
— Comumente — disse Mãe Gandula — os terreiros são
de terra batida, mas eu mandei cimentar o nosso, para não
levantar poeira. Dizem que a gente deve fazer as suas rezas
com os pés no chão, em contacto com a natureza, mas Ogum
me falou que isso não tem a mínima influência. Meus ogans são
pessoas de bom gosto, muito finas, e têm alergia à poeira. Os
bancos dos beneméritos também são estofados e forrados de
veludo.
Por outras palavras: aquele era um terreiro de candomblé
sofisticado, muito mais confortável do que os outros, e por isso
atraía maior número de crentes cheios da grana... Talvez Exu
gostasse de tanto luxo, mas era de admirar que os Orixás
aprovassem a ostentação de Mãe Gandula; não havia dúvidas

53
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

de que os santos daquela macumbeira eram diferentes dos


outros...
— É aqui que baixam os Orixás Maiores — informou a
dona da casa, indicando o enorme pátio vazio. — Já lhes
mostrarei o peji, que é o altar de Ogum. As sessões começam à
meia-noite e vão até o amanhecer. Eu invoco os Orixás, ao som
dos atabaques, e, quando eles descem, realizo os desejos dos
crentes que se fizerem merecedores disso. Os ogans e as iaôs é
que ficam em estado de santo e recebem os deuses, para que
eu possa falar com eles. As sessões são muito interessantes;
começam com o povo cantando os pontos e os músicos
tocando os tambores, cada vez mais rápido, até atingirem o
ritmo vivo do opanigê. Aí, os santos baixam e entram no corpo
dos cavalos. Depois que os Orixás estão entre nós, os
interessados podem fazer os seus pedidos, que serão
atendidos, desde que paguem os seus tributos aos Exus, por
intermédio de Mãe Gandula de Exubê. Os Exus também fazem
o Bem, indiretamente, e têm curado muitos crentes. É tudo
lindo, alegre e colorido, no candomblé de Mãe Gandula!
Quando vocês voltarem para o Rio, meus filhos, e souberem de
alguma pessoa importante que venha à Bahia, indiquem-lhe o
meu terreiro. Nós resolvemos todos os problemas e abrimos os
caminhos para aqueles que precisam se livrar de um feitiço, ou
enricar sem fazer força, ou atrasar a vida de um inimigo... Os
poderes de Ogum não têm limites e suas receitas são mais
eficazes do que as dos médicos, porque a Medicina é uma
vigarice!
Eu e Príncipe (que tínhamos ficado para trás) voltamos a
trocar um olhar de espanto. Contudo, Mestre Catrapuz e dona
Nair ouviam a baiana no maior silêncio e pareciam concordar
com tudo o que ela dizia. Ora, se duas pessoas crescidas
ouviam aquela grossura sem protestar, o que é que nós
podíamos fazer?

54
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Eu respeito todas as religiões — sussurrou Príncipe, no


meu ouvido — mas essa, não! Onde se viu, dizer que a ciência
é uma vigarice? A gente só pode tratar do corpo com remédios
materiais, ora essa! Se qualquer Babá semianalfabeta tivesse o
poder de curar os males da matéria, não valia a pena a gente
estudar para saber das coisas! E, se todo mundo deixasse de
estudar, não haveria pessoas cultas e a humanidade
regressaria à Idade das Cavernas! Corta essa, dona Gandula!
— Cale a boca! — gemi, assustado, olhando ao redor. —
Algum Exu pode estar ouvindo! Não fale mal da Mãe-de-Santo
dentro do terreno dela!
Mas Príncipe estava tão revoltado (o pai dele é formado
em Medicina) que passou a assobiar e a olhar para o céu,
enquanto a baiana nos falava do candomblé. Fiquei com medo
de que os outros notassem a atitude do gordo e me afastei
dele, isolando-me no meio de Cidinha e Carlão.
Pavio Apagado caminhava ao lado de Mãe Gandula e
parecia vidrado no papo da mulata, mas Pavio a gente tem que
desculpar, pois os velhos dele frequentam macumba e, às
vezes, levam o moleque para fazer coro nos pontos...
O terreiro era largo e limpo, decorado com fitas de papel
colorido, penduradas em arames que iam de um lado ao outro,
como numa quermesse. Flâmulas brancas, vermelhas, azuis,
verdes e amarelas. Logo na entrada, havia um poste preto,
com um pendão vermelho, onde estava escrito, com letras
douradas: “SARAVA, OGUM”. Ogum, como se sabe, é o Grande
Orixá Guerreiro, deus da guerra e das desavenças, equivalente
ao São Jorge dos católicos.
Do lado direito do terreiro, via-se um estrado de madeira,
com poltronas macias, destinado aos convidados especiais,
patronos e benfeitores, os tais que pagavam até mil cruzeiros
por um despacho. Do lado oposto, via-se uma mesinha, em
cima da qual (segundo esclareceu Mãe Gandula) era colocado o

55
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

material para as sessões: um chicote de três pontas, charutos


para defumar os assistentes, uma espada, uma cruz de ferro,
uma figa da Guiné, garrafas de cachaça, latas de óleo de dendê
e tigelas para o sangue das galinhas sacrificadas nos embés,
durante o ritual. Ao fundo do terreiro é que ficava o altar, que
não passava de uma armação de ripas de madeira, coberta por
um pano vermelho e preto. No momento, o peji estava
limpinho, sem nada em cima dele, mas, durante as sessões, os
ogans ornamentavam-no com velas acesas, flores naturais e
artificiais, quadros com símbolos africanos e umas estatuetas
coloridas representando os Quatro Orixás Maiores invocados
pela Mãe-de-Santo e os Exus seus criados.
— As imagens estão num depósito — disse Mãe Gandula.
— Nós só as colocamos no altar, e tio redor do terreiro, em
noites especiais; fora disso, rendemos culto apenas às imagens
de Ogum e Exu.
Em frente ao altar também havia uma fila de bancos
rústicos, onde se sentavam o alabê (chefe dos músicos) e os
outros tocadores de atabaques; os bancos da esquerda eram
destinados tios homens (ogans) e os da direita, às mulheres
(iaôs).
— É aqui que baixam os meus santos — repetiu Mãe
Gandula, com seu sotaque baiano. — É aqui que eu recebo os
Orixás Maiores e Menores, as Forças da Natureza, os Oguns...
que são espíritos desencarnados que vêm do plano astral... e
os Exus, que são os mensageiros dos Orixás e só prestam
serviços quando ganham presentes de valor. Mas os Exus
nunca falham, meus negos, e pobre de quem assobia, ou ri
deles, ou fica olhando para o céu em vez de prestar atenção ao
que diz Mãe Gandula!
Foi aí que Príncipe se engasgou com o assobio, pediu
desculpas e passou a prestar uma atenção de coruja às
palavras da mulata. Mas ou sabia que ele (tanto quanto eu)

56
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

começava a duvidar da sinceridade da mulher... Príncipe é


protestante e eu sou católico, respeitamos a crença dos
africanos ou dos asiáticos, mas aquele tipo de religião, baseado
no Mal, não merecia a nossa confiança! Essa, não!

57
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

58
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Capítulo VI – O Dedo Cortado

Ficamos duas horas e meia no solar de Pitangueiras,


visitando o candomblé, bebendo chá e comendo os doces de
coco e fubá que Mãe Gandula nos oferecia com gestos graves,
como se fossem sagrados. Numa dependência do casarão,
também vimos as imagens dos santos de que a baiana nos
falara —e Cidinha ficou muito impressionada com elas. Eu,
porém, não me assustei nem um pouco, pois vi logo que
aquelas figuras mais ou menos humanas eram feitas de gesso
pintado. Contudo, uma estátua de Omolu (ou Xapanam, o deus
da peste) era realmente fora de série! Imaginem um corpo
monstruoso, do tamanho de um homem de verdade, negro
como o pixe e magro como um esqueleto, com os dedos em
garras espetados para a frente! E os olhos do bicho, no fundo
das órbitas, brilhavam como se tivessem luz própria! A maior
parte das imagens (inclusive sete Exus de dentes
arreganhados) tinha as distorções comuns às esculturas
modernas, mas aquela estátua de Omolu parecia um crioulo
vivo, disfarçado de Gênio do Mal! Só vendo quanta
perversidade havia no jeito com que ele olhava para a gente!
— Xangô, meu pai, me proteja! — gemeu Pavio Apagado,
vigiando a estátua com o canto dos olhos. — Vamos sair daqui,
turma! Não gosto de ver essas coisas, não!
Durante a nossa palestra com Mãe Gandula, na sala
confortável do solar, a baiana disse que Cidinha podia se
transformar numa iaô, se quisesse, pois tinha jeito de ser
médium e devia desenvolver esse dom divino; mas minha
namorada agradeceu a sugestão e respondeu que os pais dela
nunca a deixariam frequentar macumba, inclusive porque esses
lugares não são próprios para as crianças.
— É uma pena — suspirou Mãe Gandula. — Se você
quisesse, podia ser minha afilhada. E eu iniciaria você nos

59
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

segredos do legítimo candomblé de Ioruba, até transformar a


sua descrença numa convicção. Os médiuns que não
desenvolvem sofrem muito neste mundo, minha filha...
Felizmente, a macumbeira não insistiu em querer fazer de
Cidinha um cavalo. Mas deu-nos uma porção de prospectos,
que falavam das virtudes do seu terreiro, pedindo-nos que os
distribuíssemos pelos nossos amigos cariocas em boa situação
financeira.
Às nove e meia, despedimo-nos da dona do terreiro,
agradecendo muito a hospitalidade, e voltamos para o táxi
preto. Mãe Gandula nos abraçou, um por um, dizendo Sarava,
sarava, e nos desejou felicidades. O filho de Mestre Catrapuz
(que também tinha comido e bebido na sala) já estava no seu
posto, agarrado ao volante do carro.
— Eu ainda fico mais um pouco — disse Dermeval. —
Mãe Gandula quer falar comigo... Como lhe disse, ela é minha
patroa.
Também nos despedimos do mulato e partimos. Mestre
Catrapuz foi conosco até à pensão, para nos deixar em casa,
mas não entrou.
— Amanhã de manhã — prometeu ele — eu volto com a
notícia sobre o resultado do concurso do Caramuru. Acredito
que Cidinha seja a vencedora. Boa noite para todos!
— Saravá! — respondeu dona Nair, que também ficara
impressionada com o candomblé.
Depois que o carro do preto velho partiu, entramos na
pensão e cada um foi para o seu quarto. O carnaval tinha
acabado, para a Turma do Posto Quatro, embora ainda
houvesse folguedos nas ruas de Salvador. Eu e Príncipe nos
despedimos dos outros, botamos nossos pijamas e apagamos a
luz do quarto.
— Que foi que você achou, hem? — quis saber Príncipe,
depois que já estávamos metidos entre os lençóis.

60
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Achei o concurso muito legal e também penso que


Cidinha vai ganhar o primeiro prêmio!
— Não me refiro ao baile, Lula. Estou falando do
candomblé de Mãe Gandula! Você não achou meio mandraque
aquele terreiro de macumba?
— Mandraque, como? Por quê?
— Sei lá! Nada daquilo me cheirou bem! A baiana me
parece uma grande cascateira! Você viu o interesse dela em
fazer propaganda do seu negócio? Nenhum umbandista de
verdade encara a religião como uma fonte de receita! Aquela
macumba me cheirou a cascata da grossa!
As palavras de Príncipe me deixaram preocupado.
— Não se deve duvidar dessas coisas, Príncipe! Existem
muitos mistérios na vida... e os negros podem estar certos,
embora usem rituais primitivos. Cada um tem a sua maneira de
louvar a Deus... É melhor esquecer a visita ao candomblé! Bem
que eu não queria ir lá! Você ficou impressionado e, agora,
nem vai dormir direito, por causa dos olhos de Omolu!
— Conversa! Eu não acredito em nada daquilo! Quem
ficou assustado com as estatuetas foi você!
— Foi você, Príncipe! Eu nem estou pensando mais
naquilo!
— Eu também não. Foi você quem se assustou!
— Foi você!
— Acho melhor a gente não discutir, Lula.
— É melhor, mesmo. Não há motivos para a gente ficar
assustado.
— É o que digo. Mas continuo achando que essa mulata
baiana é uma cascateira! O candomblé dela não combina com
os outros. Eu já li muito a respeito das principais religiões do
mundo, desde o Judaísmo e o Cristianismo até o Maometismo e
o Budismo... desde os politeístas e fetichistas até os
monoteístas e animistas... e nenhuma dessas crenças se baseia

61
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

nos deuses do Mal! Se Mãe Gandula invoca apenas os Exus, é


um perigo para a sociedade! O Mal nunca deve ser invocado,
nem mesmo para curar doenças ou atrasar a vida dos nossos
inimigos! A gente só deve prestar culto aos deuses do Bem!
— Se você está tão preocupado com os rituais da baiana
— retruquei, bocejando — é porque acredita neles! Aí é que
está! Você acredita na macumba e finge que não liga! Por
todos os motivos, é melhor não falar mais nessas coisas! Quer
existam ou não existam, vamos deixá-las de mão!
Príncipe resmungou qualquer coisa, deu boa noite e ficou
em silêncio. Passou-se quase uma hora e eu não conseguia
dormir, pensando no candomblé de Pitangueiras. Era só fechar
os olhos e pronto: via a estátua negra de Omolu, no alto de seu
pedestal, ameaçando jogar um punhado de bacilos da peste em
cima de mim! Vade-retro, Omolu!
E, de repente, ouvi um gemido cavernoso nalgum lugar,
dentro do silêncio e da escuridão do quarto! Abri os olhos e
sentei-me na cama, com os cabelos em pé. Príncipe também se
levantou de um pulo e correu para o comutador da luz,
acendendo a lâmpada do teto.
— Que foi isso? — indaguei, afastando as cobertas.
— Um gemido — sussurrou Príncipe, esquecendo-se de
que as almas do outro mundo podem ouvir até os suspiros da
gente.
— Eu sei. Não foi você?
— Não. Pensei que fosse você. Ou você pensa que eu ia
pensar que tivesse sido Xangô?
— Mas, então, quem foi que soltou esse gemido?
Antes que Príncipe respondesse, voltamos a ouvir o
lamento e conseguimos localizá-lo. Nosso quarto tinha uma
porta (fechada e sem a chave) que dava para o quarto pegado,
onde dormia o mulato Dermeval. Era daquela porta que vinham
os gemidos.

62
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Depressa! — sussurrei. — Vamos ver o que há! Nosso


vizinho deve estar passando mal!
— Gozado que eu não ouvi ele entrar... Será, mesmo,
Dermeval?
Não perdi tempo com suposições; abri a outra porta do
nosso quarto e saí para o corredor. Príncipe foi atrás de mim.
Quando paramos em frente à porta do dormitório contíguo, o
gemido se repetiu. Era ali mesmo.
— Seu Dermeval? — chamei, a meia voz. — Está sentindo
alguma coisa? Abra, por favor!
Ainda se passou um minuto, até que o mulato abriu a
porta. Vimos que ele estava completamente vestido (com a sua
túnica branca de Cavaleiro de Aruanda) e tinha a mão direita
escondida atrás das costas.
— Não é nada, garotos — disse ele, fazendo uma careta
de dor. — Vão dormir que eu me arranjo... E não falem alto,
para não acordar os outros!
Mas o mulato tinha ficado branco, de tão cinzento! Não
havia dúvidas de que ele estava passando mal! Príncipe ficou
invocado, rodeou o homem e soltou um gritinho de surpresa.
Aí, Dermeval tirou o braço de trás das costas e eu também vi
que sua mão direita estava enrolada num lenço
ensanguentado!
— Que foi isso, seu Dermeval? — perguntei. — O senhor
se cortou?
Ele parecia contrariado.
— Foi... Uma coisa à-tóa... Não é nada, não. Calem a
boca, por favor! Eu... eu me cortei, num acidente, e...
Mas Príncipe já tinha agarrado no pulso dele e levantou o
lenço. O que vimos nos deu náuseas, de tão horrível que era!
Dermeval tinha só quatro dedos na mão direita; o dedo
indicador fora cortado pela metade! Era apenas um cotoco,
com a ponta cheia de sangue!

63
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Nossa! — exclamei, apavorado. — Cadê o seu dedo,


seu Dermeval?
— Não sei — respondeu ele, voltando a enrolar o lenço
no pedaço do dedo, de onde o sangue pingava. — Não é nada,
estou dizendo! O sangue já vai parar! Eu...
— Onde está o dedo? — retrucou Príncipe, branco que
nem uma folha de papel. — O senhor precisa de socorros
médicos! Temos que encontrar o seu dedo e levá-lo a um
hospital, para ser grudado outra vez! Quando acontecem esses
acidentes, com os dedos, os narizes ou as orelhas, os médicos
costuram a parte decepada e tudo fica legal como antes! Mas é
preciso levar o pedaço do dedo!
— Não sei onde está o dedo — grunhiu o mulato,
impaciente. — Deixem-me em paz, está bem? Já disse que não
é nada! O dedo não está aqui! E eu não posso ir a nenhum
hospital! Esses doutores fazem muitas perguntas... e não quero
complicações com a polícia! Nada de médicos, nem hospitais!
Deixem-me em paz, está bem? Vão dormir, vão!
— Nada disso — protestou Príncipe, que é teimoso como
um jumento. — O senhor tem que ir ao hospital! Nós vamos
também, para ampará-lo! E podemos dizer aos médicos que foi
um acidente caseiro... A toda hora estão acontecendo
acidentes, não é?
— Pois é — disse eu. — Isso é muito comum e ninguém
vai chamar a polícia. A toda hora tem gente perdendo os dedos
por aí...
Afinal, o mulato se convenceu (talvez porque o ferimento
estivesse doendo demais) e concordou em ser levado a um
hospital. Eu e Príncipe vestimos rapidamente metade de nossas
fantasias (que eram as roupas mais à mão) e saímos com ele
da pensão, sem ter tempo de avisar ninguém. Uma vez na rua,
caminhamos até à Avenida Sete de Setembro e fizemos parar
um táxi.

64
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Onde fica o pronto-socorro de Salvador? — indaguei


do motorista.
— Fica na Canela — respondeu ele. — O Hospital Getúlio
Vargas tem pronto-socorro dia e noite. Não é longe daqui.
— Nosso amigo se distraiu e perdeu um dedo — explicou
Príncipe. — Leve-nos à Canela, por obséquio.
Entramos no carro, seguimos pela Avenida Visconde de
São Lourenço e, na continuação dessa rua, encontramos o
hospital. Dermeval pagou a corrida e saltou, agarrado à mão
machucada. O lenço dele estava ensopado de sangue.
Fomos atendidos por um enfermeiro e, depois, por um
médico ainda jovem, muito simpático, chamado Dr. Mattos
Serpa. Ele examinou a mão de Dermeval, fez-lhe algumas
perguntas e quis saber onde estava o resto do dedo. Direitinho
como Príncipe falara.
— Não sei — respondeu o mulato. — Quando me cortei,
com a lata, o dedo caiu e não pude encontrá-lo. O senhor não
pode dar um jeito, doutor?
— É um acidente bastante estranho — disse o médico,
severamente. — No carnaval estão sempre acontecendo desses
desastres... Temos o hospital cheio de acidentados, alguns
cortados por navalhas! Não quer me contar direito onde foi a
briga? Paciência! Mas, se você me trouxesse as duas falanges
que faltam, poderíamos fazer um reimplante e você voltaria a
usar o seu dedo. Assim, nada feito! É claro que posso suturar a
ferida, mas você ficará aleijado para sempre. E o indicador é o
segundo dedo mais precioso da mão, depois do polegar!
Dermeval fez uma careta, assustado, mas insistiu em
dizer que não sabia onde estava o dedo. Aí, Príncipe perguntou
ao doutor se a operação de reimplante era possível mesmo, e
se tinha havido outros casos em que o paciente recuperara o
uso de um dedo cortado.

65
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Claro — respondeu o Dr. Mattos Serpa. — Só eu, já fiz


umas quinze intervenções desse tipo, embora sejam muito
delicadas e trabalhosas. Este rapaz sofreu um golpe violento,
com uma lâmina cega, que lhe decepou o dedo indicador
justamente na articulação entre a falange e a falanginha.
Aparentemente, não há perda da substância óssea. Como
vocês veem, em cada dedo encontram-se estes três artículos,
chamados falanges, sustentados por outros tantos ossinhos,
que têm o mesmo nome. Só o polegar é que tem apenas duas
falanges. A terceira falange, ou falangeta, é protegida por uma
lâmina córnea, a unha, e, por isso, chama-se falange ungueal.
Nosso amigo perdeu a falanginha e a falangeta, mas ainda tem
a primeira falange em bom estado. Se ele me trouxesse a
ponta do dedo que falta, nós a recolocaríamos no seu devido
lugar, costurando os dois tendões extensores, que fazem mover
o dedo, as duas artérias e veias colaterais, os vasos linfáticos e
os nervos. Em cinquenta por cento dos casos, a reimplantação
devolve ao dedo todos os seus movimentos.
Mas, para se fazer esse trabalho, é necessário ter o
verdadeiro dedo do paciente, dentro de duas ou três horas,
para que não haja rejeição. Onde está o dedo?
— Onde está o dedo? — repeti, olhando com cara feia
para o mulato. — O senhor tem que nos dizer, seu Dermeval!
Onde foi que o senhor enfiou o dedo? E quando foi que se deu
o acidente? Precisamos trazer o dedo para o doutor dentro de
duas ou três horas!
— É para o seu próprio bem — acrescentou Príncipe,
irritado. — O senhor não quer ficar aleijado para o resto da
vida, quer? Há quantas horas se deu o acidente? E onde está o
dedo?
Foi um custo fazer o mulato falar, mas ele acabou
confessando que tinha cortado o dedo, numa lata, no terreiro

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

de candomblé de Mãe Gandula, pouco antes de voltar para a


pensão.
— E o dedo ficou no terreiro? — indagou Príncipe,
incrementado.
— Ficou — gemeu o mulato. — Caiu no cimento e eu não
apanhei. Isso já faz mais de uma hora.
Príncipe acenou, com a cabeça, na minha direção.
— Então, temos apenas duas horas para pegar o dedo e
trazer ao hospital! Venha comigo, bula! Antes das duas horas
da madrugada precisamos estar de volta, com o dedo de seu
Dermeval! Enquanto isso, o doutor fica cuidando do cotoco!
Certo, doutor?
— Certo — disse o médico. — Se vocês me trouxerem a
falanginha e a falangeta, dentro de duas horas, tentarei o
reimplante.
— Por favor — choramingou Dermeval, assustado. — Não
digam nada a Mãe Gandula! Eu não quero que...
Mas eu e Príncipe já estávamos longe, correndo atrás de
um táxi.
— Primeiro, vamos à pensão — disse eu, quando nos
afundamos no assento do carro. — Esta operação deve ser
levada a efeito pela Turma do Posto Quatro e não apenas por
dois de seus membros. Lembre-se do regulamento, Príncipe!
Até mesmo Cidinha também deverá ir conosco ao candomblé,
para apanhar o dedo! Um por todos e todos por um!
E assim aconteceu. O mais difícil foi acordar e arrastar
Cidinha do quarto da mãe dela, sem que esta acordasse. É
claro que dona Nair não iria concordar com a Operação Dedo
Cortado..., mas, ao bater da meia-noite, a turma já estava
reunida e partia, no mesmo táxi, para Pitangueiras, deixando a
mãe de Cidinha no maior sono. Tinha acabado a terça-feira de
carnaval e estávamos entrando na quarta-feira de cinzas. Ora,

67
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

se aquela fora uma terça-feira gorda, imaginem o que não seria


a quarta-feira!

68
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

SEGUNDA PARTE
Quarta-Feira de Cinzas

69
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Capítulo I – Volta ao Candomblé

O primeiro problema era pagar a corrida de táxi, pois


todo o dinheiro da turma, oferecido por Mr. Mattews, estava
com dona Nair. Ao perceber a nossa indecisão, o chofer parou
o carro e perguntou como é que era. Mas Príncipe, que é um
garoto prevenido, catou nos bolsos de sua fantasia de Rajá de
Brahmachoka e encontrou seis notas de 10 cruzeiros. 60 pratas
dariam, de sobra, para as despesas da operação. Aliviados,
mandamos o motorista continuar a viagem, rumo a
Pitangueiras.
— O senhor conhece o Alto do Exubê? — indaguei.
O chofer de praça era um baiano caladão, de beiços
entreabertos mostrando uns dentes grandes e separados.
— Conheço — respondeu. — Mas, ali, só tem uma casa,
no alto da rampa. E vocês não podem ir para lá.
— Não podemos por quê? — replicou Carlão, já querendo
briga. — Pois é para lá que nós vamos, bichinho!
— Mas aquilo é um terreiro de candomblé! — espantou-
se o chofer. — Não é lugar para crianças! De mais a mais, hoje
está fechado!
— Por isso é que vamos lá — disse eu. — Se tivesse
sessão, ninguém ia, porque não queremos negócios com os
santos da macumba... Somos amigos de Mãe Gandula e vamos
lhe fazer uma visita. Mas não queremos ficar lá, sem condução
para voltar. O senhor já viu que nós temos dinheiro! Queremos
que o senhor nos espere, na porta do candomblé, e nos traga
de volta ao hospital! Tá?
O homem lambeu os dentões e concordou. Mas, quinze
minutos depois, quando o carro parou, no meio da subida da
colina, vimos que o solar ainda ficava longe.
— Seu carro não sobe até lá em cima? — quis saber
Cidinha.

71
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

O chofer mostrou os dentes.


— Sobe. Eu é que não vou subir. Hoje é quarta-feira, Dia
de Xangô, e não se sabe o que pode haver num terreiro de
candomblé... Eu espero por vocês aqui! Tá?
Nós nos entreolhamos, contrafeitos, com vontade de
desistir e deixar para lá o dedo de seu Dermeval. Mas eu não
podia dar parte de fraco, para não perder o meu cartaz de
chefe da patota.
— No carnaval não tem Dia de Xangô nem de Exu —
declarei. — Eles só descem nos outros dias, quando são
invocados. Vamos em frente, turma!
Saltamos do carro e cobrimos, a pé, o resto do percurso
que nos separava do velho solar. Tudo estava às escuras, tal
como quando ali tínhamos estado da primeira vez. De um lado
e outro da estradinha só havia mato.
— Agora, estou mais satisfeito — comentou Carlão, em
voz baixa, enquanto nos dirigíamos para o terreiro. — Gostei
muito de passear em Salvador, achei o baile do Caramuru um
barato, mas a verdade é que a Operação Falsa Baiana foi uma
sopa. Agora, sim, vamos entrar num embalo legal! Sabe lá o
que é procurar um dedo num terreiro de macumba?
Interrompi a marcha e troquei outro olhar apreensivo
com Cidinha e Príncipe. As palavras de Carlão, tal como as do
chofer do táxi, quase que nos faziam desistir. Mas, logo,
recuperamos a coragem e continuamos a caminhada, dentro da
noite quente, ouvindo ao longe o cricri dos grilos. Pavio
arrastava os pés atrás de nós, piscando os olhos sonolentos.
Afinal, chegamos ao nosso destino.
— Que fazemos? — interrogou Príncipe, parando em
frente à cerca de arame que protegia o terreiro deserto. — Seu
Dermeval falou para a gente não contar nada para a patroa
dele...

72
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Não vamos contar — respondi. — É facílimo pular a


cerca. Vamos procurar o dedo, no terreiro, sem precisar entrar
na casa. Vocês já sabem que aqui não tem cachorros.
— Mas isso é invasão de propriedade — protestou
Cidinha. — Acho melhor a gente tocar a campainha e falar com
Mãe Gandula. Ela não vai nos negar o dedo do empregado
dela.
— Não se sabe — retruquei. — Pelo jeito, aquele mulato
perfumado não estava fazendo boa coisa, quando ficou sem o
dedo! Se fosse um simples acidente, ele teria contado tudo
logo. Mas vocês bem viram que ele não queria confessar onde
cortou o dedo. E só falou depois de muito apertado. Isso
demonstra que não estava fazendo boa coisa!
— Concordo com Lula — disse Carlão. — Ele estava
fazendo alguma sujeira, quando perdeu o dedo! Alguma coisa
que Mãe Gandula não deve saber...
— Talvez estivesse bulindo no altar — lembrou Cidinha.
— Deve ser pecado bulir no altar dos santos, principalmente
numa noite em que não tem macumba e eles não podem se
defender. Sim, talvez seja melhor a gente procurar o dedo sem
dizer nada à dona da casa. Mas vamos entrar só no terreiro,
para aliviar a invasão da propriedade...
Dito e feito. Pulamos a cerca e entramos na grande área
cimentada, que afundava na escuridão. Não havia nem uma
luzinha acesa e, embora a noite fosse de luar, não dava para
enxergar as coisas muito bem.
— Vamos nos dividir — sugeri, em voz baixa. — Uns
procuram por aqui, outros pela direita, outros pela esquerda e
outros pelo meio. É preciso examinar o chão, palmo a palmo,
pois um dedo desirmanado é muito pequeno e pode passar
despercebido, no meio das outras coisas. Felizmente aqui fora
não tem muitas coisas... Olhem debaixo do estrado e das
poltronas. Vocês sabem como é um dedo, não sabem?

73
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Na verdade, nenhum de nós já tinha visto um dedo


separado dos outros e solto no mundo, mas dava para imaginar
como seria... E partimos para a busca. Pavio Apagado (cheio de
sono) ficou pesquisando o cimento por ali mesmo, no começo
do terreiro, enquanto Príncipe seguia pela esquerda, Carlão
pela direita e eu pelo meio, levando Cidinha pela mão.
— Escuro pra dedéu — sussurrou minha namorada. —
Devíamos ter trazido uma lanterna elétrica. Mas não sei se
Príncipe trouxe a dele, na mala...
— Silêncio! — ordenei, levando um dedo aos lábios. —
Procure com atenção, meu bem! Olhe que você pode pisar no
dedo!
Ela estremeceu e passou a caminhar na ponta dos pés,
olhando atentamente para o terreno onde pisava. Eu
caminhava encurvado, apalpando o solo, aqui e ali, onde me
parecia haver um dedo, mas não havia senão uma
irregularidade da área cimentada. A luz da lua não ajudava
muito.
— Aqui pelo meio não tem nada — soprou Cidinha,
apertando minha mão com força.
Tínhamos chegado ao fim do terreiro, onde ficava a
armação do altar. À minha esquerda, junto à parede da casa, yi
a silhueta de Príncipe e seus cabelos louros brilhando ao luar;
ele não tivera tempo de botar o turbante de Rajá e viera sem
chapéu. À minha direita, também vi a silhueta de Carlão,
inclinada para o solo, progredindo lentamente.
— Vamos ver no altar — sussurrei no ouvido de Cidinha.
Ela acenou com a cabeça (o olhão azul arregalado) e
adiantou-se para o peji, examinando o tampo da armação de
sarrafos. Enquanto isso, eu me esgueirei para baixo do altar e,
numa completa escuridão, pus-me a apalpar o cimento. Nada!
Depois de um minuto de pesquisas, saí pelo outro lado da
armação e esbarrei no arame que fechava o terreiro, nos

74
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

fundos. Tínhamos dado uma busca completa, em todo o local,


e não havia nada que se parecesse com um dedo perdido! Será
que o galo (adormecido em cima do caixote) ou o bode preto
teriam comido a falanginha e a falangeta de seu Dermeval?
— Nem dedo nem lata — falou Cidinha, saindo de trás do
altar.
— Que lata? — sussurrei.
— A lata onde seu Dermeval se cortou. Você não disse
que ele falou que tinha cortado o dedo numa lata?
— Foi. Você tem razão. Aqui também não tem lata
nenhuma...
Olhei para a direita e para a esquerda, à procura de
Príncipe e Carlão, mas não vi mais as silhuetas dos nossos
companheiros.
— Ué!
— Que foi? — perguntou Cidinha, assustada, olhando de
esguelha para o bode preto, que pastava ao lado do terreiro.
— Cadê Príncipe e Carlão? Eles estavam ali agora mesmo!
Príncipe, daquele lado, e Carlão, do outro! Já era tempo de
chegarem aqui!
O terreiro estava deserto, sob o luar; nem sombras dos
dois enturmados! A única coisa que se movia era o bode,
ruminando as ervas.
— Engraçado — murmurou Cidinha. — Como é que eles
desapareceram?
— Não sei! Não estou gostando disso! Eles estavam ali
agora mesmo!
— Vamos voltar — sugeriu a garota, puxando-me pelo
braço. — Certamente, eles estão junto com Pavio. Vai ver que
também não encontraram o dedo e...
Antes que ela terminasse a frase, já estávamos correndo,
juntos, pelo terreiro a fora, na direção da cerca por onde
tínhamos entrado. Mas, ao chegar lá, também não vimos Pavio.

75
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Essa não! — disse Cidinha, com um sorriso forçado. —


Esses moleques estão brincando!
— Eles se esconderam, na certa, para nos pregar um
susto! Que hora de brincar de pique!
Olhamos ao redor, desconfiados, mas não vimos nada
que pudesse servir de esconderijo para três brincalhões de mau
gosto.
— Não estou gostando disso — repeti, mal contendo o
tremor da voz. — Será que eles entraram pela terra a dentro?
Mas, aqui, não deve haver alçapões, como nos terreiros de
Vudu... Ouvi dizer que, nas Antilhas, os zumbis entram e saem
por dentro da terra, que nem tatus. Mas, no candomblé baiano,
não me consta que haja zumbis...
— Não fale nisso, Lula — gemeu Cidinha. — Vamos
procurar Príncipe, Carlão e Pavio! Eles têm que estar por aqui!
Têm que estar!
Mas o fato é que não estavam. Demos uma volta
completa ao terreiro e não encontramos viva alma. Era o
bastante! Não quis mais saber do dedo de seu Dermeval, nem
da lata, nem de coisa alguma; agarrei na mão de minha
namorada e puxei-a para a cerca, doido por me ver longe dali!
Mas, nem bem tínhamos dado alguns passos, as luzes do
terreiro se acenderam, clareando o local como se fosse de dia.
Eu e Cidinha, ofuscados, paramos junto da cerca e nos
abraçamos fortemente, possuídos pelo mesmo pavor. Na nossa
frente estavam os dois crioulos parrudos que sempre
acompanhavam Mãe Gandula! E a expressão do rosto deles era
a de dois Exus!
— Voltem! — ordenou o negro mais alto, com voz
cavernosa. — Mãe Gandula quer falar com vocês!
Cidinha tremia tanto que parecia um liquidificador. Mas
eu não tardei a ficar calmo, porque vi que aqueles dois

76
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

homens, apesar de ameaçadores, eram de carne e osso. De


mais a mais, estavam do lado de fora da cerca.
— Desculpem — balbuciei. — Acho que entramos na casa
errada... Onde fica a saída?
— Voltem! — repetiu o crioulão. — Seus companheiros já
foram lá para dentro! Entrem pela porta do lado! O velho está
esperando!
Olhei para o lado e vi que havia uma porta, na parede
lateral do casarão. Agora, com as luzes acesas, tudo parecia
mais natural. Uma janela do solar, que dava para o terreiro,
também estava iluminada.
— Venha — falei para Cidinha. — Mãe Gandula está à
nossa espera. Afinal, o diabo não é tão feio como o pintam...
Vamos contar tudo para Mãe Gandula; ela é uma senhora
muito distinta e compreenderá...
Cidinha anuiu, sem largar a minha mão, e caminhamos
para a porta que nos fora indicada.
Lá chegando, vimos que o velho capenga e corcunda (o
vigia da propriedade) estava parado do lado de dentro, fitando-
nos com seus olhos pretos e vermelhos.
— Boa noite — disse eu, encabulado. — Até que enfim,
encontrei a porta da casa! Nós viemos visitar Mamãe Gandula,
sabe? Aconteceu um acidente.
— Pois, pois — rosnou o português. — Um acidente muito
esquisito, pá! Vamos ver o que é que vocês estavam a procurar
cá dentro, seus peralvilhos!
A atitude do velho não era muito cordial, mas nós
fingimos não ouvir a grosseria... Entramos pela portinha
(evitando roçar no aleijado) e caminhamos por um pequeno
corredor, ouvindo um toque-toque atrás de nós. Só podia ser
uma perna de pau, que nos seguia de perto! O corcunda tinha
perna de pau, igualzinho a um pirata das Caraíbas!

77
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Na frente da casa — ordenou ele. — A Maria está na


sala! Não me façam perder a tramontana!
Percorremos o corredor, dobramos à esquerda e fomos
sair na sala da frente do casarão, profusamente iluminado. O
velho pirata empurrou-nos para dentro e fechou a porta. E ali
estavam, encolhidos em duas poltronas da sala, Príncipe e
Carlão! E também ali estava a mulata baiana, sem turbante,
nem pano das costas, nem balangandãs! Evidentemente, ela
fora despertada pela nossa intrusão e não tivera tempo de se
vestir de todo...
— Sentem-se, seus moleques — disse ela, com ar severo.
— Vocês quase não se assustaram, hem? Agora, chegou a hora
de falar! Que diabo vieram fazer aqui?
— Procurar um dedo — respondi, relanceando os olhos
por Príncipe e Carlão. — Eles não lhe falaram? A senhora
desculpe, mas não queríamos incomodar... Pensávamos que o
dedo estivesse lá fora...
— Outra vez esse dedo? — grunhiu a macumbeira,
irritada. — Não estou entendendo patavina! Esses dois
moleques também me falaram num dedo! Vocês estão
brincando comigo? Que raio de dedo é esse, afinal?
Antes que eu esclarecesse o episódio, Príncipe fez ouvir a
sua voz culta, mais fina (e esganiçada) do que nunca:
— Conte para ela, Lula! Não somos ladrões, nem
queríamos bisbilhotar o candomblé! Eu e Carlão fomos
agarrados por aqueles dois cavalheiros de cor e trazidos para
aqui, com a boca tampada! Eu falei que a gente só quer o
dedo, mas Mãe Gandula não acredita!
— Não acredito mesmo — retrucou a mulata, invocada.
— Vocês vieram aqui fazer um trabalho sujo de espionagem!
Que é que estão procurando? Quem foi que os mandou meter
o nariz no meu terreiro? Sabem que o Papá quase lhes deu um
tiro, pensando que vocês fossem ladrões? Mas eu achei melhor

78
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

esperar, para ver o que vocês queriam... E, agora, vocês me


dizem que querem um dedo! Essa lorota não cola, seus
moleques! Vocês devem saber de alguma coisa!
Desembuchem!
— É o dedo de seu Dermeval — desembuchei. — Ele se
cortou, numa lata, aqui no terreiro, e perdeu um dedo...
Quando chegou na pensão e foi ver, viu que tinha só o
cotoco... Aí, nós viemos apanhar o resto do dedo, para que um
doutor do hospital do pronto-socorro faça um reimplante...
— Eu falei — disse Príncipe. — Ela não quer acreditar!
A mulata baiana tinha a testa franzida. De repente, seus
olhos se iluminaram e ela soltou uma risada.
— Ah, ah, ah! Agora, compreendo! Sim, pode ser
verdade! Pode ser isso mesmo!
— É isso mesmo — afirmei, aliviado. — Viemos buscar o
dedo. E não sabemos de outra coisa, não, senhora. Seu
Dermeval não queria que a gente falasse com a senhora, mas
acabamos falando... Só queremos levar o dedo, para que ele
não fique aleijado para o resto da vida.
— Sim, é isso! — falou a mulata, dando outra risada. —
Então, ele lhes falou que perdeu o dedo no terreiro, hem? Pois
é mentira, meus filhos! Vocês são uns ingênuos... e, afinal,
estão inocentes. Não se assustem, não. Foi tudo um mal-
entendido..., mas vocês deviam ter me procurado, em vez de
invadirem a minha propriedade!
— Viu? — choramingou Cidinha. — Bem que eu avisei!
Invasão de propriedade pode dar uma cana danada!
— Mas estão perdoados — tornou Mãe Gandula, voltando
à amabilidade anterior. — Claro que vocês só querem o dedo
de Dermeval..., no entanto, não foi no terreiro que ele se
cortou... e não é lá fora que está o dedo dele. Eu sei onde está!
Está no meu quarto!
— E podemos levá-lo? — indaguei, ofegante de emoção.

79
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Sem dúvida que podem! Quero, mesmo, que vocês o


levem ao hospital, com os cumprimentos de Mãe Gandula... Eu
não ganharia nada em que Dermeval ficasse aleijado para o
resto da vida... Esperem aqui, meus filhos. Vou buscar o dedo
no baú...
Olhamos uns para os outros, ainda pálidos de susto,
enquanto a baiana saía da sala, arrastando as chinelas.
Durante a ausência dela, ninguém teve coragem nem de se
mexer. Dois ou três minutos depois, a mulata voltou, trazendo
uma caixa de fósforos (tamanho família), e disse:
— Encontrei o dedo onde esperava que ele estivesse.
Podem levá-lo. E digam a Dermeval que ele está despedido e
não apareça mais na minha frente! Genor e Miro estão aí
mesmo, para me defender dos maus elementos!
A voz da macumbeira era tão ameaçadora que voltamos a
estremecer. Depois, apanhei a caixa de fósforos, acenei para os
outros enturmados e beijei respeitosamente a mão de Mãe
Gandula. Cidinha, Príncipe e Carlão fizeram o mesmo. Graças a
Deus, a porta da frente estava aberta. E pudemos sair
correndo, sob as vistas dos dois crioulos parrudos (Genor e
Miro) que esperavam do lado de fora. Descemos, numa
carreira, metade da colina e entramos no táxi ali estacionado.
— Depressa! — gritei ao motorista. — Para o Hospital
Getúlio Vargas! Encontramos o dedo! Encontramos o dedo!
— É melhor espiar dentro da caixa — advertiu Príncipe,
com voz esganiçada. — Ainda não sabemos se isso é, mesmo,
o dedo de seu Dermeval...
Mas, felizmente, era.

80
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Capítulo II – Terror no Reino de Exu

Nossa Ansiedade em levar o dedo ao hospital era tão


grande que não pensávamos em mais nada senão nisso;
portanto, ninguém deve se admirar de que não tivéssemos
dado pela falta de Pavio Apagado. Além disso, também havia o
problema de Mãe Gandula e da maneira pouco gentil com que
ela nos recebera.
— Essa mulata é uma cascateira — reafirmou Príncipe,
quando o táxi acabou de descer a colina. — Se ela fosse Mãe-
de-Santo de verdade, não precisava andar protegida por dois
capangas! Está na cara que ela ficou com medo da gente!
— Pelo contrário — falou Cidinha. — A gente é que ficou
com medo dela.
— Eu não tive medo de nada — acudiu Carlão. —
Cearense não enjeita parada! Só não dei uns taques naqueles
crioulos porque eles me pegaram na traição, me tamparam a
boca e me empurraram para dentro da casa!
— Ela estava com medo de que a gente descobrisse
alguma coisa fora do comum — insistiu Príncipe. — Por isso, o
vigia não falou nada, e esperou para ver o que a gente estava
procurando no terreiro. Aposto que aquele velho branquela viu
a gente chegar logo, logo, mas foi avisar a patroa, em vez de
perguntar qual era a nossa! Há um mistério naquele
candomblé, turma!
— Há uma pá de mistérios — disse eu. — A começar
pelos santos da macumba. O mais seguro é deixar a mulher
com os seus capangas e tratar do dedo de seu Dermeval.
Ninguém nos chamou a esse candomblé, nem pediu que a
Turma do Posto Quatro desminta as cascatas dessa
macumbeira.
— Aí, depende — acudiu Príncipe. — Se ela não for uma
Mãe-de-Santo autêntica, é uma contraventora, que explora a

81
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

boa-fé do povo! Receber presentes, para fazer despachos, sem


ser médium, é um crime como outro qualquer! E a Turma do
Posto Quatro está aí mesmo, para combater os maus
elementos que perturbam a harmonia da sociedade!
— Eu também acho que Mãe Gandula é uma exploradora
da crendice popular — afirmou Cidinha. — Vocês não a ouviram
dizer que nós estávamos fazendo um trabalho sujo de
espionagem? Sua irritação prova que tem a consciência pesada!
Uma pessoa inocente não ia ficar tão cabreira, só porque uma
patota de garotos foi fuxicar no seu terreiro...
— Correto — admiti. — Há uma pá de mistérios, nesse
solar, a começar pelo mistério do dedo cortado. Seu Dermeval
perdeu o dedo dentro da casa e não no terreiro, como nos
falou! Ele também é um cascateiro!
— E Mãe Gandula acaba de despedi-lo — acrescentou
Príncipe. — Ela ficou danada da vida com alguma coisa que o
mulato lhe fez... Não podia ter sido boa coisa! Se ele tivesse
cortado o dedo num acidente normal, a patroa não ficaria
furiosa desse jeito... É o que eu digo, turma: seu Dermeval
meteu o dedo onde não era chamado! E aquela mulata é uma
cascateira das grossas!
Nisso, chegamos à Rua Araújo Pinho, na Canela.
Saltamos correndo (depois de pagar os 20 cruzeiros do táxi) e
entramos no hospital. O Dr. Mattos Serpa estava de plantão, à
nossa espera, na porta da enfermaria. Entreguei-lhe a caixa de
fósforos, com o dedo encurvado lá dentro, e perguntei como é
que seu Dermeval estava passando.
— O paciente está bem — respondeu o doutor. — Já
preparei o campo, para o reimplante. Vou operar
imediatamente. Espero obter um resultado positivo, apesar de
se ter passado tanto tempo, depois do acidente...
— Podemos trocar duas palavrinhas com o paciente? —
indagou Príncipe.

82
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Não. Agora, não. Voltem amanhã. Agora não temos


tempo a perder!
E ele desapareceu no interior da enfermaria, batendo a
porta na nossa cara. Foi aí que Cidinha soltou um gemido. No
primeiro momento, pensei que a porta tivesse acertado no
nariz dela; isso seria horrível, pois Cidinha tem um nariz muito
bacaninha. Mas, logo depois de gemer, ela esclareceu:
— Cadê o Pavio? A gente não trouxe o Pavio!
Acho que todos nós empalidecemos.
— Ih, xentes! — exclamou Carlão. — Pavio não veio no
carro! Ele desapareceu no candomblé! E ninguém se lembrou
dele até agora!
Era uma notícia muito desagradável, que depunha contra
a boa camaradagem da Turma do Posto Quatro. Como é que
tínhamos nos esquecido de um dos nossos companheiros mais
queridos? Só mesmo a afobação em salvar o dedo de um ser
humano poderia ser desculpa para aquela desumanidade!
Tínhamos deixado Pavio no solar de Pitangueiras, nas garras de
uma mulata geniosa, um pirata corcunda e dois negros mal-
encarados!
— Depressa! — gritei. — Vamos voltar ao candomblé!
Temos que apanhar Pavio, antes que a macumbeira faça
alguma coisa com ele!
Em menos de um minuto saímos do hospital, acenamos
para um táxi que ia saindo e entramos dentro dele.
— Para o Alto do Exubê — ordenei, incrementado.— Fica
em Pitangueiras! O senhor segue a Avenida Sete de Setembro,
depois a Joana Angélica...
— Eu sei — disse o homem ao volante, virando o rosto e
mostrando os dentões separados. — Viemos de lá agora
mesmo!

83
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Era o mesmo chofer que nos levara ao candomblé!


Príncipe tirou duas notas de dez pratas do bolso e acenou com
elas, na maior folga.
— Mais vinte cruzeirinhos para o senhor! Mas, desta vez,
tem que nos esperar em frente ao terreiro, porque estamos
cansados de correr de um lado para o outro!
— Eu também — rosnou o motorista, escondendo os
dentes.
Já passava de uma e meia da madrugada quando o táxi
parou na estradinha, em frente ao solar de Mãe Gandula. Tudo
estava escuro e deserto, como de costume. Nenhuma luz na
casa, nem no terreiro. Mas, dessa vez, não queríamos passar
por espiões; saltamos do carro e fomos apertar o botão da
campainha da porta. Não se ouviu nenhum som, mas a figura
de um homem corcunda surgiu na quina do prédio, do lado do
terreiro, e ouvi perfeitamente o som de uma perna de pau
batendo no cimento...
— Raios os partam! — grunhiu o velho pirata, saindo pelo
portão da cerca de arame. — Que é que vocês querem aqui
outra vez, seus peralvilhos?
— Só levamos o dedo — respondi secamente. — Agora,
queremos o Pavio!
O vigia arregalou os olhos, que eram pretos no meio e
vermelhos ao redor.
— Ai, Jesus! Não sei onde estou que não lhes dê uma
coça! Levaram um dedo e, agora, querem o pavio! Pois, se
vocês me tocarem nas velas dos santos, eu lhes arrebento a
cabeça! Fora daqui! Maria está a dormir!
Diplomaticamente, Príncipe explicou ao corcunda quem
era Pavio e perguntou onde é que eles o tinham metido. O
português continuava com os olhos arregalados.

84
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Homessa! Pois vocês não levaram o negrito? Cá dentro


é que ele não está! Não o vi mais, depois que o apanhei no
terreiro e o meti na sala! Aqui é que ele não ficou, ora essa!
— É melhor dar uma busca na casa — sugeriu Cidinha. —
Pavio está lá dentro! E nós exigimos que ele nos seja devolvido!
Não tem graça nenhuma voltar para o Rio sem Pavio! Nunca na
vida iríamos dar esse desgosto a seu Baltazar e dona Maria! Se
Pavio foi vítima de um sequestro, o senhor terá que nos dar
conta dele!
— Qual sequestro, qual carapuça! — esbravejou o
corcunda. — O moleque não está cá! Vão-se embora, vamos!
Não quero que vocês apoquentem a Maria! Vão-se embora por
bem, ou vou chamar o Angenor e o Baldomiro!
Diante da ameaça de sermos entregues à sanha dos dois
negros mal-encarados, perdemos toda a vontade de discutir.
Cidinha olhou para Príncipe, este olhou para Carlão e os três
olharam para mim.
— Não tem importância — disse eu, sorrindo (amarelo)
para o vigia. — Se o senhor diz que Pavio não ficou aqui, é
porque não ficou... Muito obrigado... e boa noite! Vamos,
turma!
E nos afastamos do solar, entrando no táxi e mandando o
chofer partir. O corcunda ficou parado no portão do terreiro, de
braços cruzados, em atitude ameaçadora.
— Pare aqui — ordenou Príncipe, quando o táxi já ia na
metade da descida. — É aqui que o senhor deve nos esperar!
O carro freou e nós saltamos, procurando as beiras da
estradinha, para refazer o percurso a pé. A noite continuava
escura. Tanto o solar como a área cimentada não tinham luzes
acesas. Àquela distância, o vigia não podia nos ver. E, mesmo
quando nos aproximamos outra vez da casa, ele também não
podia nos ver, pois caminhávamos atrás dos arbustos que

85
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

marginavam a subida... Chegamos ao portão do terreiro e não


encontramos mais o homem.
— Ele entrou no solar pela porta lateral — sussurrou
Príncipe. — Como é que a gente vai entrar, para libertar Pavio?
A estas horas, o moleque deve estar sendo torturado para
falar!
— Falar o quê? — soprou Cidinha, muito pálida.
— Não sei. Mas, em todas as histórias de espionagem, os
agentes inimigos torturam os amigos, para que eles deem as
informações. Ora, como nós não temos informações a dar,
Pavio está sendo torturado de graça!
— Shiu! — fiz eu, tapando a boca do gordo. — Tenho
uma ideia! Você sabe assobiar coió, Príncipe. Atraia o vigia aqui
para fora, enquanto nós entramos no prédio. Carlão tem que ir,
porque só ele sabe lutar caratê.
— Legal — disse Príncipe. — Vou atrair o pirata para
longe do solar! Mas não demorem, porque não quero ir muito
longe, no meio desse mato escuro!
Tudo combinado, pulamos a cerca e, enquanto eu,
Cidinha e Carlão nos escondíamos numa quina do prédio,
Príncipe avançou para a porta lateral e pôs-se a assobiar
estridentemente, imitando um pássaro assanhado. Não
demorou muito e a porta se abriu, para dar passagem ao
corcunda. Príncipe correu para o outro lado do terreiro e
assobiou outra vez. Para nossa satisfação, o velho capenga foi
atrás dele.
— Agora! — soprei, puxando Cidinha pela mão.
Carlão nos seguiu, abrindo e fechando os dedos, num dos
exercícios de caratê. Entramos pela porta aberta e enfrentamos
o corredor mal iluminado. Ninguém. A casa toda estava em
silêncio. Sempre deslizando, encostados à parede, atingimos a
sala da frente e demos uma espiada. A única claridade vinha de
uma lamparina acesa, diante de uma imagem de São Jorge

86
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

metida num nicho da parede. Às apalpadelas, revistamos a sala


toda (inclusive debaixo dos móveis) e não encontramos Pavio.
— Na câmara de torturas — sussurrou Cidinha. — Onde
será que fica?
Tapei-lhe a boca e puxei-a para fora da sala, por outra
porta que dava para um segundo corredor. Carlão foi atrás de
nós. Havia no ar um cheiro forte de incenso.
— No depósito das imagens — lembrou Carlão, em voz
baixa.
Senti um arrepio, ao pensar na estátua de Omolu, o deus
da peste, com os seus olhos vermelhos e ameaçadores. Mas
Carlão tinha razão: Pavio podia estar metido no meio dos Exus,
como castigo pela sua curiosidade! E a porta do depósito (que
nós tínhamos visitado) era a segunda daquele corredor. Eu
também me lembrava muito bem disso.
— Abro? — sussurrei, botando a mão na maçaneta.
— Não abra — gemeu Cidinha, botando a mão em cima
da minha.
— Deixa que eu abro — respondeu Carlão, passando na
nossa frente e abrindo a porta.
Lá dentro, só havia silêncio e escuridão. Mas ali estavam
as silhuetas das estátuas dos santos e dos demônios. Nenhuma
delas se movia.
— Entro? — perguntou Carlão, parando no limiar da
porta.
— Não entra — murmurou Cidinha.
— Ele não está aqui — disse eu, vendo que tudo
permanecia quieto.
— Vamos olhar de perto — resolveu Carlão. — Não
tenham medo, não. Esses bonecos de gesso não fazem mal a
ninguém.
Entramos, cautelosamente, mas não fechamos a porta. A
débil claridade do corredor era um consolo. Carlão meteu-se

87
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

pelo meio das imagens, apalpando-as, e eu fui atrás dele, com


Cidinha pendurada no braço. Demos uma volta pelo recinto e
recuamos para a porta. Foi nesse momento que senti uma
mão, dura e fria, pousar no meu ombro. Parei até de respirar.
Carlão estava longe de mim. Engoli em seco e sussurrei:
— Cidinha?
— Hem? — soprou ela, estremecendo.
— Quantas mãos você tem?
Uma das mãos de Cidinha estava no meu braço e a outra
nos olhos dela. A garota respondeu, ciciando, que tinha apenas
duas mãos, como todo mundo.
— Nesse caso — gemi, sacudindo o ombro — alguém
está me segurando! Socorro!
Minha namorada olhou para trás, viu a estátua de Omolu
com as mãos estendidas (e uma delas no meu ombro) e deu
aquele berro! Eu nunca tinha ouvido um grito de terror tão
agudo; quase fiquei surdo de um lado!
Depois, assustados com o grito, eu e Carlão gritamos
também. E corremos, os três, para a porta, saltando para o
corredor. A estátua do deus da peste continuou no mesmo
lugar, oscilando vagarosamente, porque eu lhe dera um
trompaço.
No mesmo momento, ouvimos o barulho de uma porta
que se abria e um dos crioulos parrudos apareceu no corredor,
vestido com um pijama listrado. Corremos para o lado da sala,
mas, aí, já estava o segundo crioulo! Ainda tentei empurrar
Cidinha por baixo, dele, para que ela escapasse, mas o bandido
nos segurou pelos cabelos e nos levantou do assoalho com a
maior facilidade. Enquanto nós esperneávamos, Carlão também
era agarrado (pelo outro crioulo) e reduzido à impotência.
— E agora? — rosnou um dos monstros. — O que é que
vocês vão dizer a Mãe Gandula?

88
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Fomos levados para a sala e jogados em cima do sofá.


Um dos negros acendeu a luz, enquanto o outro saía para
chamar a dona da casa. E ali ficamos, trêmulos de pavor,
vendo o crioulo que nos vigiava limpar as unhas com a ponta
de uma navalha! Direitinho que nem um filme de gângsteres!
Cinco minutos depois, a mulata baiana apareceu na sala,
estremunhada, na maior bronca. Vestia um peignoir de mangas
compridas e tinha a cara toda besuntada de creme. Seus
cabelos crespos estavam cheios de grampos.
— Que história é esta? — indagou ela, furiosa. — Outra
vez? E, agora, dentro de minha casa? Que foi que deu em
vocês?
Fui o primeiro a criar ânimo e pus-me a falar,
nervosamente, explicando tudo:
— Pavio ficou aqui, Mãe Gandula, e nós queremos saber
o que fizeram com ele! Aquele simpático corcundinha disse que
ele não está aqui, mas nós sabemos que está! Acho que este
sequestro merece a intervenção da polícia!
A macumbeira piscou os olhos, perplexa.
— Que estão dizendo? O moleque ficou aqui? Não pode
ser! Mas... realmente, eu não o vi sair com vocês! Então, onde
foi que ele se meteu? Se ficou aqui, deve estar escondido
nalgum lugar! Para que é que nós íamos sequestrar aquele
moleque? Ora, não digam disparates!
Os dois negros altos e fortes trocaram um olhar de
entendimento e saíram da sala, sem dizer nada. Ouvimos
portas abrindo e fechando e, daí a pouco, os bandidos
reapareceram, arrastando Pavio Apagado por um braço. O
moleque ainda estava tão cheio de sono que nem protestava.
— Onde é que ele se meteu? — quis saber Mãe Gandula.
— Estava no seu quarto — respondeu um dos crioulos,
gravemente. — Dormindo dentro do armário, naquela prateleira
de baixo!

89
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Pavio bocejou ruidosamente, abriu os olhos e falou com


voz pastosa:
— Me deixem! Quero dormir! Amanhã a gente continua a
operação! Me deixem dormir em qualquer canto!
Mas, depois de umas boas sacudidelas, ele acordou de
todo e pôde explicar o seu estranho procedimento:
— Eu estava com sono, só isso. Enquanto vocês falavam,
na sala, procurei uma cama para dormir..., mas fiquei com
medo de me deitar na cama grande do quarto e fui para o
armário. Ali embaixo também tem lençol e travesseiro... Me
deixem dormir!
Mãe Gandula custou a acreditar na inocência do intruso,
pois não sabia que Pavio tem o dormidor frouxo, mas acabou
vendo que ele não era malicioso, nem mal-intencionado, como
não é mesmo.
— Está tudo explicado — disse eu, agarrando a mão da
mulata, para beijar. — A bênção, Mãe Gandula! Não queremos
incomodar mais...
A macumbeira escondeu a mão atrás das costas, mas
suspirou e acabou fazendo um gesto para os dois crioulos.
— Não foi nada, Genor. Deixe-os irem em paz. São
apenas uns idiotas, uns desastrados! É melhor a gente ficar
logo livre deles, antes que aconteça alguma coisa pior! Eles não
foram mandados por Dermeval.
— Podemos ir? — perguntou Cidinha, ainda assustada.
— Sim, podem — concluiu a mulata. — Mas nunca mais
me apareçam por aqui! Outra brincadeira destas e vocês se
arrependerão amargamente de terem se metido no Reino de
Exu!
Então, ali era o Reino de Exu! Agora, não tínhamos mais
nenhuma dúvida sobre isso!
Nesse momento, o vigia português também entrou na
sala, trazendo Príncipe, que ele conseguira agarrar, pelo

90
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

pescoço, no terreiro do candomblé. Novas explicações, novos


pedidos de desculpas, e o gordo também recuperou a
liberdade. Afinal, depois de ouvirmos outras ameaças de Mãe
Gandula, fomos jogados para fora do solar e descemos a
estradinha, seguidos de longe pelo vigia da perna de pau.
Mais um minuto e estávamos dentro do táxi, descendo o
Alto do Exubê. Sacudi Pavio, que já tinha pegado no sono com
a cabeça no colo de Cidinha, e passei-lhe o maior sermão da
paróquia. O moleque ouviu tudo calado doido para dormir outra
vez, e só murmurou:
— Tá legal, turma! Eu não faço mais! Mas, se eu não
estivesse escondido no armário, nunca que via as pernas
brancas da mulata! Aí é que está! Ela só é escura por cima!
Depois destas palavras enigmáticas, ele quis adormecer
de novo, mas é lógico que ninguém deixou.

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

92
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Capítulo III – Missão: Abrir o Baú

— O que foi que você disse? — rugi, sacudindo Pavio


pelos ombros.
Ele voltou a abrir os olhos, despertando de vez.
— Eu vi as pernas brancas de Mãe Gandula — reafirmou,
em tom de desafio. — Ela é mulata na cara, mas é branca
azeda no resto do corpo! Eu vi e pronto!
— Você não devia ter espiado essas coisas — censurou o
chofer do táxi, virando a cabeça para trás. — Não sabe que é
muito feio um menino olhar uma senhora mudar de roupa?
— Meta-se com a sua vida — retrucou Carlão,
bronqueado com o homem. — O senhor não faz parte da
Turma do Posto Quatro e não pode dar palpites! Olhe para a
frente, senão vai acabar subindo com o carro na calçada!
O motorista desvirou a cabeça, encolheu os ombros e
passou a nos vigiar pelo espelhinho do carro. Mas, daí em
diante, além de ter os dentes separados, também ficou com as
orelhas em pé.
— Você tem certeza disso? — falou Príncipe, olhando
severamente para Pavio. — A mulata tem as pernas brancas?
— Tem, que eu vi! Eu ainda não tinha adormecido, no
armário, quando ela chegou e suspendeu a saia rodada. Aí, eu
vi que as pernas dela são brancas que nem leite! Mas eu estava
com um sono danado e nem liguei... Aquela mulata só é escura
por cima! E daí?
— Daí — disse eu, encarando Príncipe — ela não é mulata
de verdade! É uma mulher branca, pintada de marrom! Que é
que você acha disso, Príncipe?
Nosso gordo companheiro estava mais ouriçado do que
um porco-espinho.
— Bacana às pampas! Há várias maneiras de uma pessoa
branca virar mestiça, sob a ação de processos químicos. A

93
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

ciência tem constatado casos de garotas brancas, filhas de


europeus, que se tornam mulatinhas claras, devido ao uso de
loções bronzeadoras, conjugadas com o sol quente da praia.
Mas este não é o caso. Mãe Gandula deve usar uma tintura
especial, feita à base de pigmentos herbáceos, que escurece a
pele sem necessidade de sol. Até nisso ela é uma cascateira,
Lula!
— Está na cara que é. Mais do que uma cascateira, é
uma criminosa!
— Que legal! — exclamou Carlão. — Agora, sim, estou
gostando da Operação Falsa Baiana! O assunto ficou quente à
beça!
— Criminosa por quê? — falou Cidinha. — Será que uma
senhora branca não tem o direito de se bronzear?
— Ela não se bronzeou — retorqui, empolgado. — Ela se
disfarçou, o que é muito diferente! Agora, que Pavio falou
nisso, estou pensando noutras coisinhas mais... O nariz da falsa
mulata não é chato e suas feições não são as de uma legítima
mestiça! Ela é uma mulher branca, pintada de escuro! E só
pode ser uma criminosa, porque uma pessoa decente não se
pinta desse jeito, para passar por outra! No mínimo, Mãe
Gandula é uma presidiária que escapou da penitenciária e se
disfarçou de mulata para não ser reconhecida pelas
autoridades!
— Operação Pernas Brancas — sugeriu Pavio, que tinha
perdido o sono e também estava empolgado com o novo rumo
dos acontecimentos. — O que é pinguimento erbaço, Príncipe?
— Pigmento é a substância que impregna os tecidos ou
os líquidos orgânicos — respondeu a nossa enciclopédia
ambulante. — E herbáceo é o que vem das ervas!
— Operação Pernas Brancas — repetiu o moleque.

94
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Operação Falsa Baiana — respondi eu. — Se essa


mulher branca não é mulata, o mais provável é que também
não seja baiana!
— Falou e disse — apoiou Carlão. — Ela também não é
baiana, igual a Cidinha! Nossa operação muda de feição, mas
não precisa mudar de nome. É tudo baiana de araque!
— Temos que esclarecer esse mistério — murmurou
Príncipe, remexendo-se no assento do carro. — Estou com Lula,
turma! Essa macumbeira é uma criminosa, que deve ter
assassinado uma porção de criancinhas!
— Vai ver que ela nem sequer é macumbeira — sugeriu
Cidinha. — Nem mulata, nem baiana, nem macumbeira!
— Essa mulher não existe — completou Pavio. — É
melhor a gente ir dormir!
— Existe, sim — retruquei, incrementado. — Existe e é
um perigo para a sociedade! Agora, está tudo claro!
— Tudo escuro — teimou Pavio. — Só é claro por baixo.
— Cale a boca — rugi. — Agora, compreendo tudo! Estamos
enfrentando uma mulher diabólica, uma feiticeira, que talvez
queira dominar o mundo, com seus processos infernais! Ela
própria falou que a casa dela é o Reino de Exu! Já viu, uma
criminosa com o poder de invocar as legiões dos demônios e
usá-las na prática do Mal e na conquista da humanidade? Se a
Turma do Posto Quatro não tomar uma providência, Mãe
Gandula escravizará a Bahia, o Brasil e o mundo! Não tenho a
menor dúvida de que ela é uma criminosa disfarçada, ainda
mais ambiciosa do que o doutor Fu-Manchu!
— Gelei — disse Pavio. — Quem é o doutor Fumachuchu?
— O doutor Fu-Manchu — explicou Príncipe — é um
personagem de uma série de romances policiais de Sax
Rhomer. É um chinês diabólico, que pretendia conquistar o
mundo, mas sempre quebrava a cara, na hora de enfrentar o
mocinho...

95
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Eu quero ser o mocinho — disse o moleque. — Hoje em dia,


o mocinho também pode ser crioulo!
— Você não tem que se meter — retruquei, aborrecido com
aquele papo-furado. — Este caso é muito sério e precisa ser
investigado por detetives competentes, mais tarimbados do que
um crioulinho sonolento e perguntador! Vocês topam, enfrentar
outra vez a falsa mulata e seus guarda-costas?
O silêncio caiu. Cada um esperou que o outro falasse primeiro.
— Eu topo — respondeu Carlão. — Se ela for uma
criminosa, precisa ser desmascarada! Não podemos permitir
que essa Fua-Manchua conquiste a Bahia e o mundo, com seus
poderes macumbais! Se ela manda nos Exus, nós pediremos a
proteção de meu padim Pade Ciço! Deus sempre é mais forte
do que o Diabo e vence todas as artimanhas do Capeta!
— É o que dizem — falou Príncipe. — E é o que vamos
provar! Fé em Deus e pé na tábua!
— Não posso correr mais — disse o motorista, virando a
cabeça.
— Não falei com o senhor — retrucou Príncipe,
severamente. — O senhor não pertence à turma e não tem voz
ativa! Cumpra a sua obrigação de cinesíforo, dirigindo o carro,
e deixe o resto por nossa conta!
— Que vamos fazer? — indagou Cidinha, receosa. —
Vocês não querem voltar ao candomblé pela terceira vez,
querem?
— Lógico que temos de voltar — respondi. — Precisamos
decifrar o mistério! Seu Dermeval está sendo operado e não
recebe visitas, de maneira que não podemos contar com a
ajuda daquela testemunha...
— Você acha que esse mulato perfumado é uma
testemunha?
— Está na cara, meu bem. Ele deve saber de alguma
coisa que compromete Mãe Gandula... e, por isso, cortou o

96
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

dedo. Deve haver alguma prova dos crimes da mulher num


certo baú, no quarto dela... Seu Dermeval foi apanhar a prova
e... lape! ficou sem o dedo!
— Mas que baú é esse?
— Não sei. Ainda não vimos o baú. Mas sabemos que ele
existe. Vocês não se lembram de que, quando estivemos no
solar à procura do dedo, a falsa mulata disse que sabia que ele
estava no quarto dela? E não se lembram de que ela falou que
ia buscar o dedo no baú?
— Falou e foi buscar mesmo — concordou Príncipe. —
Mas eu não me lembro de ouvir falar em nenhum baú.
— Eu também não me lembro — acrescentou Cidinha.
— Nem eu — disse Pavio. — Não me lembro, mas vi o
baú.
— Você viu? — indaguei, ouriçado. — Onde está ele?
— Não digo — respondeu o moleque, emburrado. — Você
me sacudiu e mandou eu calar a boca! Agora, não falo mais
nada, pronto!
— Pavio querido — disse eu, afagando-lhe o coco —
peço-lhe que me perdoe pela minha grossura. Você sabe que
eu sempre tive uma profunda admiração por você. A Turma do
Posto Quatro não seria nada sem o seu precioso concurso.
Agora, fale, se não quiser levar um pescoção!
Onde foi que você viu o baú, seu moleque sem-
vergonha?
— No quarto da mulata branca por baixo — respondeu
Pavio, intimidado. — Tem um baú de ferro ao lado do armário.
Pensei até que fosse do pirata.
— Estão vendo?! — bradei. — As provas dos crimes da
falsa Mãe-de-Santo estão nesse baú, no quarto dela! E nós
precisamos ir buscá-las!
— Não dá pé — disse Príncipe, franzindo os lábios. —
Quem é que tem peito de entrar no quarto da mulher, agora

97
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

que ela nos expulsou da casa e ameaçou nos entregar aos seus
matadores profissionais? Ainda se ela não estivesse dormindo
no quarto, podia ser... mas, assim, não dá!
— E se ela tiver o sono pesado? — desafiou Carlão.
— Também não dá — teimou Príncipe. — Entrar naquele
quarto, com a dona da casa lá dentro, é um suicídio! Nem
mesmo o Sombra seria capaz!
— Nós também temos o nosso Sombrinha — repliquei,
enigmaticamente.
— Qual é a sua? — quis saber Cidinha.
— Tenho um plano, mas só falo depois que a gente
estiver dentro do solar de Pitangueiras. E é para lá que nós
vamos!
— Para o Alto do Exubê — ordenou Príncipe, dirigindo-se
ao chofer. — Vamos voltar ao local do crime!
— Seu Sinosifro — acrescentou Pavio, pensando que esse
fosse o nome do homem.
O baiano limitou-se a encolher os ombros e a girar o
volante, fazendo o carro dar volta a um quarteirão. Dez
minutos depois, tínhamos regressado ao ponto de partida. Mais
um pouco e o táxi freou em frente ao solar. Aí, o motorista
virou-se para nós, mostrou os dentes separados e falou:
— Eu, se fosse vocês, não entraria de novo nessa casa,
não! Se eu entendi bem e vocês descobriram que Mãe Gandula
do Exubê não é mulata nem Mãe-de-Santo, devem contar tudo
à polícia! Vocês são muito jovens para se meterem nessas
aventuras! E o menos que pode lhes acontecer é levarem uma
surra dos ogans dessa macumbeira! Ela é muito afamada, aqui
em Salvador, e tem uma porção de protetores, inclusive
políticos e militares! Vocês estão se arriscando muito, garotões!
— O senhor sabe com quem está falando? — irritou-se
Carlão. — Somos a Turma do Posto Quatro, de Copacabana!
Nunca ouviu falar no Macaco Velho, na Torre de Babel, no

98
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Fusca Envenenado, no Mar Ouriçado e nos índios Paracanãs?


Pois fomos nós que deciframos todos esses mistérios, bichinho!
— É mesmo? — espantou-se o chofer. — Nunca ouvi
falar. Pelas dúvidas, vou ficar de olho na casa... e, se perceber
alguma coisa errada, chamo a polícia!
Agradecemos e partimos para a nova missão secreta.
Dessa vez, tínhamos que agir com mais cautela, para não
sermos apanhados; se a falsa mulata e seus capangas nos
pegassem em flagrante, babau! Foi o que eu disse aos outros
enturmados, em voz baixa, depois que pulamos a cerca de
arame.
— Babau quer dizer o quê? — quis saber Pavio.
— Pode querer dizer muita coisa — sussurrei. — Pode
querer dizer uma boa surra ou até uma morte violenta! Já
vimos que esses dois negrões não são para brincadeiras! E um
deles tem uma navalha! Hoje em dia, ninguém mais faz a barba
com navalha! Morou?
— Morei — gemeu Pavio, encolhendo-se todo. — Já não
estou gostando dessa operação! Pra que é que eu fui dizer que
a mulata era branca?
— Cale o bico — rosnei, no ouvido dele. — Fique atrás de
nós e faça tudo o que seu Mestre mandar! Você é uma criança
e não tem iniciativa própria! Venha, mas não solte nem um pio!
Príncipe é que vai piar!
Combinamos a nova operação e repetimos o truque,
graças ao qual já tínhamos entrado no casarão. Enquanto eu,
Cidinha, Carlão e Pavio esperávamos nas sombras, Príncipe
pôs-se a cacarejar como uma galinha, para atrair o vigia. Mas o
galo do terreiro acordou e pôs-se a cacarejar também, para
atrair Príncipe. Este ficou invocado e, em vez de imitar uma
galinha, começou a grasnar como um papagaio. A porta lateral
do prédio se abriu e o corcunda apareceu, armado com um

99
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

revólver. Aquela novidade nos apavorou, mas aguentamos


firmes, escondidos atrás da quina da casa.
— Quem está lá? — perguntou o português, sondando a
escuridão com seus olhos congestionados.
Príncipe já estava do outro lado do terreiro, imitando os
gritos de uma arara. E o vigia foi capengando, naquela direção.
Entramos rápida e silenciosamente pela porta aberta e
percorremos o corredor, até à sala da frente. Tudo voltara a
ficar escuro e deserto. Os moradores do solar já deviam ter se
deitado e pegado no sono...
— Como é que vamos entrar no quarto? — indagou
Carlão, no meu ouvido. — Quem é o Sombrinha que você
falou?
Apontei para Pavio e respondi, também em voz baixa:
— Só pode ser este feliz enturmado, sempre disposto a
se sacrificar pela vitória do Bem! Ele, agora, vai despir essa
roupinha de Zumbi dos Palmares e ficar só de short preto. No
escuro, ninguém enxergará o corpo dele. E, se ele fechar os
olhos, ninguém enxergará o resto.
O moleque ouviu e tentou escapulir, de volta para o
corredor, mas Carlão o pegou na passagem. Tudo no maior
silêncio.
— Não façam isso comigo — choramingou Pavio,
debatendo-se nas mãos do nosso campeão de caratê. — Eu
não vou entrar no quarto dessa macumbeira! Ela me pega,
turma! Ela vai me matar!
— Cale o bico — sussurrei, tapando-lhe a boca. — Não
temos tempo a perder! Você vai abrir o baú e nos trazer todos
os documentos que encontrar! Enquanto você se prepara, vou
ver se a porta do quarto não estará fechada a chave. Se
estiver, você tem que entrar pela bandeira da porta!
Príncipe e Carlão começaram a despir o moleque (que
protestava baixinho) e eu caminhei cautelosamente pelo

100
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

segundo corredor, até à porta do quarto da dona da casa.


Cidinha foi comigo, no mesmo silêncio. Escutei um instante,
com o ouvido colado à porta, e ouvi a respiração pesada de
Mãe Gandula. Então, experimentei a fechadura e vi que a porta
não estava fechada a chave. Entreabri-a uns quatro dedos e
espiei para dentro. O quarto estava às escuras e a falsa mulata
dormia profundamente, na larga cama de casal. Eu poderia
entrar e tentar abrir o baú, mas Pavio era o mais indicado para
essa missão noturna. Se Mãe Gandula acordasse, dificilmente
poderia enxergá-lo no escuro:
Claro. Era só por isso. Nenhum de nós tinha medo de
perder um dedo...

101
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

102
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Capítulo IV – Cinco Linguinhas Ameaçadas

Tudo correu tal como eu tinha planejado, menos o final


da operação. Pavio Apagado ficou só de short preto e, seguindo
minhas instruções, fechou os olhos (para que não se visse as
suas pupilas brancas) e esgueirou-se pela abertura da porta do
quarto de Mãe Gandula, tateando a parede como se fosse um
cego. Eu, Cidinha e Carlão, ficamos na porta, torcendo para
que ele não perdesse o rumo e não fosse apalpar a mulher
adormecida...
Passou-se um longo minuto. A escuridão do quarto não
nos deixava enxergar os movimentos de Pavio, mas ouvíamos
uns barulhinhos surdos e uma respiração opressa... O moleque
devia estar fazendo força para abrir o baú.
Esgotado o minuto de espera, Pavio voltou a aparecer à
porta, de olhos meio abertos, e sussurrou:
— Não dá para abrir, turma! O baú está fechado a chave!
Eu pelejei, pelejei, mas a tampa não levanta!
Carlão respirou fundo (enchendo os pulmões de ar) e
perguntou, baixinho, se o problema era fazer força.
— Força não adianta — respondeu o moleque. — A gente
precisa de uma chave.
Ninguém tinha uma chave. Aí me lembrei de que certos
detetives utilizam um arame para abrir as fechaduras mais
complicadas... Cidinha não usava grampos nos cabelos, mas
meu canivete tem saca-rolhas, abridor de garrafas, furador de
gelo e uma porção de coisas assim... Entreguei o canivete a
Pavio e disse-lhe que experimentasse as diversas lâminas, até
transformar uma delas numa gazua. O moleque perguntou
baixinho o que era gazua, eu sussurrei: “É uma chave, seu
animal!”, e ele voltou silenciosamente para dentro do quarto,
levando o canivete.

103
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Mais um longo minuto. Ruídos surdos de metal batendo


em metal... uma respiração ofegante... pancadas abafadas...
um gemido de dor... E Pavio voltou para a porta, com o
canivete aberto na mão.
— Não abre — sussurrou. — Seu canivete é muito
bacana, Lula, mas não tem gazuas! E o baú está muito bem
fechado!
— Idiota! — soprei, indignado. — Eu sabia que você não
servia para agente secreto! A mulher está dormindo forte? Não
se mexeu na cama?
— Não. Ela está tão ferrada no sono que chega a
assobiar.
— Então, saia da frente, seu imprestável! Eu mesmo vou
abrir esse baú! E, se for preciso, Carlão me ajuda a levantar a
tampa! Vamos!
Resumindo: cinco minutos depois, estávamos todos os
quatro em volta do baú, ora tentando abrir a fechadura com o
canivete, ora tentando erguer a tampa na violência. Aquela
enorme caixa de madeira, forrada de lâminas de ferro e com a
tampa abaulada, resistia a todos os nossos esforços!
— Ih, que ódio! —rosnou Cidinha, dando tapas e
pontapés no baú: — Só chamando um serralheiro!
— Quem é?
— Um serralheiro!
Na mesma hora, estremecemos e olhamos para a cama.
A voz que perguntara Quem é? era a de Mãe Gandula! A
macumbeira tinha acordado com o barulho e estava sentada na
cama, preparada para acender a luz!
— Corre, turma! — gritou Carlão. — Ela deu fé!
Foi um alvoroço! Corremos, os quatro, para a porta e ali
nos embolamos, cada um querendo sair primeiro. É claro que o
resultado dessa afobação só podia ser este: ninguém conseguiu
passar!

104
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Mãe Gandula acendeu a luz do abajur e gritou por


socorro, enquanto nós também gritávamos, entalados na porta.
Quando, finalmente, saímos para o corredor, as luzes já tinham
se acendido e a nossa retirada estava cortada, de um lado e
outro, pelos dois crioulos parrudos, vestidos com pijamas
listrados! Corremos para cá e para lá e acabamos parando no
meio do corredor.
— Não atirem! — implorou Carlão, levantando as mãos.
— Ninguém vai reagir! A gente se rende!
Eu e Cidinha também levantamos os braços,
sugestionados pela atitude do nosso lutador de caratê, e Pavio
ficou de cócoras, tapando os olhos com as mãos.
— Tem cabimento? — esbravejou Mãe Gandula,
aparecendo à porta do quarto. — São aqueles moleques, outra
vez! E estavam fuxicando no meu baú!
Tínhamos sido apanhados em flagrante e não podíamos
negar o delito. Na verdade, nenhum dos dois negros
gigantescos estava armado (Carlão se precipitara, ficando de
mãos ao alto igual aos bandidos do cinema) mas o nosso susto
era tão grande que só a presença dos homens bastava para
nos render.
Fomos levados para a sala da frente, debaixo de tapas, e
jogados no sofá. Aí ficamos, encolhidos, desmoralizados, na
maior fossa. Um dos negros acendeu a luz, enquanto o outro
nos vigiava. Mãe Gandula foi vestir o peignoir e também entrou
na sala, danada da vida.
— Francamente! — gritou ela, dardejando olhares
furiosos em cima de nós. — Eu não disse para vocês irem
embora e não se meterem comigo? Acreditei na inocência de
vocês e deixei-os partir em paz, pensando que vocês não
fossem espiões! E, agora, olha aí! Vocês voltaram, entraram na
minha casa, invadiram o meu quarto e tentaram abrir o meu
baú! Como se explica isto, seus descarados?

105
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Não se explica, não — disse Carlão, olhando de


esguelha para os dois crioulos. — A gente nem sabe como veio
parar aqui! Eu, pelo menos, entrei nesta casa sem sentir!
— Fomos atraídos por uma força superior — acrescentou
Cidinha, com voz fraca. — Eu não frequento candomblés, mas
acredito no poder do Astral. Na certa, foram os santos que nos
atraíram para aqui, para nos experimentar. Depois deste
milagre, estou pronta para ser médium! Recebi o espírito do...
— Você não recebeu porcaria nenhuma! — gritou a falsa
mulata, agitando as mãos brancas. — Vocês vão receber é uma
boa surra, para deixarem de meter o nariz naquilo que não lhes
diz respeito!
O nariz! Seu Dermeval tinha metido o dedo... e, agora,
nós tínhamos metido o nariz! Ora, se seu Dermeval perdera o
dedo...
— Por favor! — gemi, agoniado. — Não cortem o nariz de
Cidinha!
— Era o que vocês mereciam! — rugiu Mãe Gandula,
dando um coque na minha cabeça. — Vamos! Confessem tudo!
Quem foi que mandou vocês aqui?
— Ninguém nos mandou, não, senhora — respondi,
procurando pensar numa justificativa salvadora, mas pensando
apenas num nariz cortado. — Nós sempre nos metemos em
encrencas sozinhos. Não era nossa intenção abrir o seu baú,
não, senhora! Somos uns meninos bem-educados e não
costumamos bulir nos pertences dos outros. Estávamos só
admirando as preciosidades deste magnífico candomblé,
legitimamente Ioruba!
— Não minta, seu malandro! Vocês vieram mexer nos
meus guardados! Que é que estavam procurando? Respondam!
O que é que vocês sabem?
— Não sabemos de nada — choramingou Cidinha.
— Então, o que é que querem saber?

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Nada, não, senhora. Lula falou a verdade. A culpada


fui eu! Fiquei deslumbrada com o seu maravilhoso candomblé e
pedi à turma que me trouxesse aqui, para ver os santos e as
relíquias africanas... Estávamos procurando uma figa da Guiné,
para nos dar sorte...
A bofetada que a mulher deu no rosto de Cidinha chegou
a estalar no meu coração! Mãe Gandula não estava brincando;
dessa vez, queria nos arrebentar! Ao ver minha namorada
soluçando, com uma das faces mais vermelha do que um
tomate, não aguentei mais e pus-me a gritar, feito um doido:
— Pare com isso, sua... sua desalmada! A senhora não
pode bater nas crianças! Cidinha só veio aqui porque eu a
obriguei! Bata em mim, sua mulata fajuta! Mentirosa!
Cascateira!
Ouvindo isso, a mulher empalideceu e olhou, alarmada,
para os seus cúmplices. Em seguida, agarrou nos meus cabelos
e me obrigou a encará-la. O rosto dela, a um palmo do meu,
era uma. máscara de Satanás!
— Que foi que você disse?
— É isso mesmo! — gritei, com lágrimas (de raiva) nos
olhos. — Nós sabemos que a senhora não é mulata coisa
nenhuma! Olhe as suas mãos! Olhe o seu rosto, besuntado de
creme! Olhe os seus cabelos, enrolados nos grampos! A
senhora é branca, branca, branca, e está disfarçada, para
escapar da polícia! Nós descobrimos o seu segredo, sua
macumbeira de araque!
Para que é que eu fui falar! Um dos crioulos avançou para
mim e me deu uma bordoada tão forte que caí de quatro, no
assoalho, com um ouvido zunindo igual a um avião. Mas deu
para ouvir a voz de Carlão:
— Não bata nele, seu covarde! Bata em mim, se você é
cabra macho!

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Foi a vez de Carlão também levar uma bordoada, que o


atirou contra a parede, do outro lado da sala. Depois, os dois
crioulos nos sentaram outra vez no sofá e um deles mostrou
uma navalha que tinha na mão.
— Levante o nariz — rosnou, fazendo a lâmina cintilar.
— Espere! — ordenou Mãe Gandula, segurando no braço
do bandido. — Quero saber de tudo! Como foi que eles
descobriram isso? Dermeval deve ter dado com a língua nos
dentes!
Eu não estava chorando, mas tinha a voz embargada pela
indignação.
— Sabemos de tudo! — esganicei. — E, se vocês não nos
soltarem agora mesmo, temos um amigo que vai chamar a
polícia! Sabemos que vocês são uns impostores, que enganam
o povo para ganhar dinheiro! Uma verdadeira Mãe-de-Santo
não ludibria a boa-fé dos crentes, nem explora os outros,
porque se dedica apenas a fazer o Bem!
— Quem lhes disse que eu não sou mulata? — rugiu a
mulher, ameaçando me dar outro bofetão.
Protegi o rosto com as mãos e continuei a falar, no
mesmo embalo:
— Ninguém me disse! Eu que descobri! Um amigo nosso
viu as suas pernas brancas! A senhora usa uma tinta no rosto e
nas mãos, para escurecer a pele! Seu Dermeval também
descobriu isso e a senhora cortou o dedo dele! Ele ia
desmascará-la, pegando as provas no baú, e a senhora... ou
esse bandido aí, que tem uma navalha... decepou o dedo dele!
— Você tem razão — tornou a falsa mulata, rilhando os
dentes. — Vocês sabem de tudo! Mas não ganharão nada em
ser tão sabidos! Pensam que, depois disto, vou deixá-los sair
do Reino de Exu? Não, senhor! Vocês vão se arrepender de
tudo e pedir perdão aos meus santos! Eles obrigarão vocês a
pedirem perdão! E vocês só sairão daqui depois de jurarem por

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Deus que não contarão nada a ninguém! Ninguém mais sabe


disso e, se vocês ficarem calados...
— Seu Sinosifro sabe — disse Pavio, com voz fininha. —
Ele ficou de olho na casa e, se perceber alguma coisa errada,
chama a polícia!
A falsa mulata agarrou o moleque pelo pescoço e
perguntou, furiosa:
— Quem é esse Sinosifro?
— Não diga nada — avisei.
Mas, depois de duas sacudidelas (que quase lhe
arrancaram a cabeça) Pavio pediu altos e contou tudo:
— Seu Sinosifro é o moço que dirige o automóvel. Ele
está lá fora, à espera da gente, e vai chamar a polícia!
Um dos crioulos fez uma careta e rosnou para a patroa:
— Pode deixar Maria. Vou dar um jeito no chofer! Esses
abelhudos não escapam daqui! Você não pode ser
desmoralizada!
E saiu da sala, depois de esconder a navalha no bolso.
Fiquei rezando para que não acontecesse nada ao motorista
baiano...
Entretanto, Mãe Gandula dava outras ordens ao seu
segundo guarda-costas:
— Vamos meter os moleques no depósito das imagens,
com as luzes apagadas! E, quando amanhecer, vocês podem
cortar a língua deles!
— Só a língua? — perguntou o bandido, decepcionado.
— Sim. A língua basta. Assim, eles não poderão falar...,
Mas pode ser que jurem por Deus não contar nada, depois de
ficarem algumas horas em companhia de Xangô, Ogum,
Omolu, Iansã e os sete Exus!
Nosso pavor não evitou que o crioulão nos levasse para o
quarto, onde estavam as estatuetas, e nos jogasse lá dentro,

109
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

um atrás do outro. A roupa de Pavio também foi jogada em


cima dele.
— Pensem bem — ameaçou Mãe Gandula, antes de
fechar a porta a chave. — Se se resolverem a jurar por Deus
que não contarão nada, não perderão a língua! Caso contrário,
veremos! Só aceito um juramento em nome de Deus!
E bateu a porta, deixando-nos a sós, no escuro, entre as
imagens dos Orixás. Ali estavam os deuses do relâmpago, da
guerra, da peste, e da tempestade, sem falar na legião dos
demônios! Cinco estátuas e sete estatuetas negras, cada uma
mais pavorosa do que a outra!
— Vou jurar por Deus que não falo nada — murmurou
Cidinha, agarrando na minha mão.
— Tenho medo, Lula!
— Eu não juro — retruquei, batendo o pé.
— Nunca invoco o nome de Deus em vão, ou quando não
pretendo cumprir o juramento! Ocultar os crimes dessa bandida
é ser cúmplice dela! E a Turma do Posto Quatro não ajuda os
contraventores a escapar dos rigores da lei! Está mais do que
provado que Mãe Gandula é uma criminosa! Eu não me calo!
Podem me cortar a língua que eu falo pelo nariz! Também
tenho medo, mas falo! Falo, falo e falo!
— Então, eu também não juro por Deus — disse Cidinha,
contendo os soluços. — Tenho medo dos diabos, mas não vou
incomodar Deus, só por causa da minha fraqueza! Ele que me
ajude, se achar que eu mereço!
— Ele nos ajudará — afiancei, afagando-lhe os cabelos
espinhentos. — Deixe-me pensar... Pode ser que a gente
escape daqui...
— Seu Sinosifro vai chamar a polícia — lembrou Pavio,
que tinha acabado de vestir a sua fantasia de Zumbi.
— E Príncipe ainda está livre — completou Cidinha.

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Pois é — sussurrou Carlão, esperançado. — Príncipe


vai nos tirar deste aperreio, com as suas bolações! Contanto
que ele chegue a tempo, antes que esses cabras da peste
cortem a língua da gente!
Não se passou nem dois minutos e a porta do depósito
das imagens se abriu. E Príncipe também foi jogado ali dentro,
com os cabelos ouriçados e os óculos pendurados numa orelha.
— Oi, turma! — disse ele, fazendo um sorriso amarelo. —
Que azar, hem? O vigia me pegou outra vez! E essa cascateira
falou que, amanhã, vai cozinhar cinco linguinhas em azeite de
dendê... Eu não gosto de língua. Vocês gostam?
Não, nenhum de nós gostava.

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Capítulo V – Com a Ajuda dos Orixás

Pouco depois de Príncipe ter sido jogado em cima de nós,


a porta do depósito de imagens voltou a se abrir e Mãe
Gandula apareceu.
— Como é? — indagou ela, com voz ameaçadora. —
Estão dispostos a jurar por Deus que não vão falar? Ou
preferem ficar presos, até perderem a língua?
Eu ainda não conhecia a opinião de Príncipe, mas
respondi em nome da turma:
— Não vamos jurar coisa nenhuma! Descobrimos que a
senhora é uma criminosa, foragida de uma penitenciária, e não
descansaremos enquanto não a levarmos de volta para o
xadrez! Seus crimes monstruosos serão castigados, com a
exibição das vítimas inocentes, e a senhora não tomará conta
do mundo, para estabelecer o Reino do Mal!
— Que crimes monstruosos? — replicou ela, assombrada.
— Quem é que quer tomar conta do mundo?
— A senhora mesmo! — acusou Cidinha. — Sua... Fua-
Manchua!
— Vocês estão exagerando — rosnou a mulher, irritada.
— Eu não fugi de nenhuma penitenciária, nem quero tomar
conta de nada! Parem de sonhar, seus moleques! Só quero que
vocês jurem não dizer a ninguém que eu não sou mulata. Só
isso. Estou apenas defendendo o meu negócio! Vocês é que
são uns criminosos, porque querem me desmoralizar e acabar
com o meu terreiro! Quando a minha freguesia souber que eu
não sou mulata, terei que mudar de profissão! Maldita a hora
em que convidei vocês para visitar o meu candomblé!
— A senhora não matou ninguém? — quis saber Príncipe,
fitando-a severamente.

113
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Que história é essa? — protestou ela. — Vocês estão


se deixando levar pela imaginação! Já lhes disse que não sou
uma criminosa! Nunca estive em nenhuma penitenciária!
— Pois devia estar — disse eu. — A senhora também não
é baiana!
— Está bem! Está bem! Confesso que não sou baiana!
Nasci em Portugal e vim para o Brasil aos cinco anos! Mas isso
não quer dizer nada! Há muitos médiuns portugueses que
recebem seus caboclos e, quando ficam em transe, falam
imitando um preto velho! Tudo isso faz parte da profissão!
— A senhora é portuguesa? — espantou-se Cidinha. —
Que graça! Igual a esse corcunda da perna de pau?
— Papai não tem perna de pau! — gritou a mulher. — Ele
tem apenas uma perna mais curta do que a outra!
— Como? O vigia é seu pai? — estranhou Carlão.
— Sim, é meu pai! Que tem isso demais? Meu verdadeiro
nome não é Durvalina, é Maria Joaquina d’O1iveira! Mas eu
sou’ médium, ouviram? Ouço vozes... tenho visões... e respeito
muito os meus Orixás!
— Quando começou a exercer o ofício de Mãe-de-Santo?
— interrogou Príncipe, com inflexão de repórter de jornal.
— Há muitos anos que trabalho com os santos —
respondeu a falsa baiana, distraída com o papo. — Só no Rio
de Janeiro, trabalhei onze anos, num terreiro de Jacarepaguá!
Mas a polícia começou a me perseguir, porque eu era
portuguesa, e tive que sair da Guanabara. Estive alguns anos
no Recife e, depois, fui para Ilhéus, onde adotei o nome de
Durvalina de Jesus. Aí, percebi que o público só acreditava nas
Mães-de-Santo negras ou mulatas... e resolvi ser mulata
também. Tomei por modelo uma tela de Di Cavalcanti, que
representava uma baiana bem baiana, pintei a pele com uma
tintura especial e... pronto! Quando abri este terreiro, em
Salvador, passei a ser mais respeitada e acreditada do que se

114
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

fosse portuguesa! Criei fama e fortuna! E, agora, não permitirei


que vocês estraguem tudo, revelando o meu segredo!
— Por isso é que a senhora brigou comigo, hem? —
comentou Pavio, de boca aberta. — Lá no baile do Caramuru,
quando eu molhei o seu braço com guaraná, a senhora ficou
uma fera!
— Natural! O líquido podia manchar o meu braço pintado!
Mas, felizmente, sequei a tempo!
— Viu? — falou Cidinha. — A senhora é uma mentirosa!
Não é mulata, nem baiana! Portanto, não pode ser uma
legítima Babá!
— Como é que não? Já curei muita gente! Minha
aparência de mulata é apenas física, para impressionar a
assistência, e não tem nada a ver com os meus poderes
espirituais! Vocês não entendem nada disso! Às vezes, a gente
precisa enganar o povo, para poder ajudá-lo!
— Conversa fiada — disse Carlão. — Quem engana de um
jeito, também engana do outro! Se a senhora se disfarçou de
mulata, foi para explorar a boa-fé dos incautos! E a senhora
mesma confessou que só recebe os santos que praticam o Mal!
Isto, aqui, é o Reino de Exu!
— Os Exus têm muita força — disse a falsa baiana,
benzendo-se. — E eles tanto trabalham para o Bem como para
o Mal. Se os meus moleques atrasam a vida dos inimigos de
uma pessoa, estão fazendo o bem a essa pessoa! É lógico, não
é?
— Isso é que não! — protestei. — A gente não deve se
meter com o Diabo, nem mesmo para ajudar os esquecidos por
Deus! E quem presta culto aos Exus acaba ficando igual a eles!
— Seu Dermeval não sabia que a senhora era branca? —
indagou Cidinha.
— Não — confessou Mãe Gandula. — Dermeval não veio
comigo de Ilhéus. Só Genor e Miro é que conhecem o meu

115
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

segredo e me ajudam no negócio. Contratei Dermeval, aqui em


Salvador, para ser meu ogan, mas ele desconfiou de que eu
não fosse baiana e resolveu investigar... Esta noite, depois que
vocês saíram do candomblé, ele foi abrir aquele baú, com uma
chave falsa, para apanhar a minha verdadeira certidão de
nascimento, mas eu o surpreendi a tempo. Na hora que ele
estava metendo a mão no baú, cheguei correndo e fechei a
tampa! Ele ainda retirou a mão, mas a 'lâmina da tampa do baú
cortou-lhe um dedo. Vi o sangue, quando ele fugiu correndo,
mas não percebi que o dedo tinha caído dentro do baú... Só
depois, quando vocês vieram procurar o dedo, é que
compreendi a extensão do acidente. Mas aquele malandro
merecia esse castigo! Genor falou que ele pretendia conseguir
provas contra mim para me exigir dinheiro e não para me
denunciar à polícia!
— Por isso é que seu Dermeval não queria falar — disse
Príncipe. — As intenções dele não eram muito corretas... Mas
nós somos diferentes! Não queremos dinheiro nenhum para
ficar calados! E vamos falar!
— Não! — berrou Mãe Gandula, furiosa. — Vocês não
podem me desmascarar! Ou juram por Deus que não dirão
nada a ninguém, ou ficarão sem a língua! Não estou brincando!
Genor e Miro são dois malandros sem escrúpulos e fazem tudo
o que eu mando! Para isso é que eu lhes pago! E eles cortarão
a língua de vocês, se vocês não jurarem que vão voltar para o
Rio de Janeiro sem dizer nada!
Olhei para Príncipe e vi o gesto negativo que ele me fazia.
— Não vamos jurar coisa nenhuma! — declarei,
surpreendido com a minha própria coragem. — A Turma do
Posto Quatro não protege malfeitores! A polícia precisa saber
que a senhora não é mulata nem baiana!
— E seu Sinosifro foi chamar a polícia! — concluiu Pavio,
bocejando.

116
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Não sejam idiotas! — replicou a mulher. — Genor já se


livrou do chofer que trouxe vocês aqui! Ninguém vai ajudá-los
não, seus intrometidos! Genor pagou a corrida ao motorista e
convenceu-o de que tudo não passava de uma brincadeira de
moleques... E o homem acreditou!
— Azeite! — disse Carlão. — Logo que a gente puder, vai
falar com a polícia!
— Ninguém acreditará em vocês — tornou a falsa baiana,
com ar de desprezo. — Mãe Gandula do Exubê é muito
respeitada na Bahia! Mesmo que vocês procurem a polícia, o
delegado não acreditará nessa história! Vocês sabem quem é o
ogan que bota as flores no meu peji? É o próprio delegado!
Olhamos uns para os outros, surpresos e assustados. Não
podíamos contar com a polícia! Ninguém nos acreditaria! A
falsa Mãe-de-Santo só poderia ser desmascarada se
confessasse publicamente o seu delito! Mas estava claro que
ela não confessaria nunca!
— E então? — rugiu Mãe Gandula. — Juram por Deus que
não falam nada?
— De jeito nenhum — respondi, depois de trocar outro
olhar com Príncipe. — Preferimos ficar sem a língua, a ser
cúmplices dessa impostura!
A mulher distribuiu alguns tapas pelas nossas caras e saiu
do quarto, fechando a porta a chave. Devia estar arrependida
de ter falado tanto, mas era tarde. Quase todos os criminosos
são assim, muito vaidosos de seus malfeitos, e gostam de se
gabar...
— Temos que sair daqui — disse Príncipe, em voz baixa,
quando o silêncio e a escuridão caíram sobre o depósito das
imagens. — Não se assustem com essas estatuetas de gesso
pintado. Procurem não olhar para o rosto dos Orixás... Os olhos
deles são de vidro, mas... Eu vou ver o que se pode fazer!

117
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

E deu uma volta pelo recinto, no escuro, apalpando as


estátuas dos Orixás e tropeçando nas estatuetas dos Exus.
Minutos depois, voltou para junto de nós e ciciou:
— Vou me concentrar, pensando num meio de escapar
daqui... Entretanto, fiquem quietos, sem erguer os olhos para
essas imagens pavorosas. Logo, logo, saberei o que fazer! A
ciência não tem limites!
— E seu Sinosifro não foi chamar a polícia! — lamentou-
se Pavio.
A concentração de Príncipe durou uma hora, e foi tão
profunda que todos nós adormecemos, inclusive ele mesmo.
Estávamos exaustos. Mas Príncipe nos despertou, às cinco
horas da manhã, e anunciou:
— Pronto, turma! Já tenho o plano todo bolado!
— Qual é a sua? — sussurrei. — Este quarto não tem
janelas, nem outra abertura qualquer! A prova é que já deve
ser dia claro e nós continuamos no escuro! A única saída é pela
porta, que está fechada a chave pelo lado do corredor! Como é
que vamos sair, sem nenhuma chave?
— Chave, não — murmurou Pavio, sonolento. — Gazua!
Não temos nenhuma gazua!
— Simples — respondeu Príncipe. — Este é um solar
antigo e a bandeira da porta é de vidro, pintado com florzinhas!
— Mas não podemos quebrar o vidro sem fazer barulho
— sussurrei. — E, mesmo que tenham voltado para a cama,
Mãe Gandula e os seus guarda-costas ouvirão o barulho!
— Aí é que está! — retrucou Príncipe, com ar misterioso.
— Os Orixás vão nos ajudar a retirar o vidro da bandeira da
porta, sem fazer barulho! Preciso, apenas, de quatro coisas: a
estátua de Omolu, um chiclete, uma fita e um anel de
brilhantes. O chiclete fica por minha conta.
E ele tirou do bolso uma caixinha, com duas pastilhas de
goma de mascar; imediatamente, botou os tabletes açucarados

118
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

na boca e pôs-se a mastigá-los. Enquanto isso, Cidinha pescou,


no decote, a medida do Senhor do Bonfim que seu Dermeval
lhe oferecera e perguntou se aquela fita servia.
— É ótima — disse Príncipe, sempre mascando os
chicletes. — É a sua vez, Carlão! Empurre a estátua de Omolu
para junto da porta! Como o meu serviço pode ser demorado,
vou ficar trepado nos braços do Orixá, para alcançar a bandeira
da porta. Você, Lula, recolha todas as joias que ornamentam as
imagens dos santos! Quase todos os colares, anéis e pulseiras,
devem ser fantasia, mas tem que haver algum diamante de
verdade! Tudo depende de se encontrar um pedacinho de
diamante!
— Qual é a sua? — indaguei, pela segunda vez.
Ele sorriu, na penumbra, e respondeu:
— Vocês não conhecem as propriedades do diamante? O
diamante é uma pedra preciosa, feita de carbônio puro, que
tem valor justamente por causa de sua dureza. Todos os
vidraceiros usam uma ponta de diamante para riscar e cortar o
vidro...
— É mesmo! Mas, se você cortar a vidraça da bandeira
da porta, ela vai cair no chão e fazer um barulho dos diabos!
— Um barulho dos Exus — emendou Pavio, de olhos
fechados.
— Depende — tornou Príncipe. — Para evitar isso é que
eu preciso de minha goma de mascar e da fita de pano que
Cidinha me forneceu. Vá procurar o diamante, Lula, e deixe o
resto por minha conta!
Príncipe é genial! Em pouco tempo, examinou as joias
que eu catei nas estátuas e encontrou um anel com um
diamante legítimo. Carlão já tinha arrastado a estátua de
Omolu para junto da porta. Aí, Príncipe subiu pelo corpo de
gesso do deus da peste e ficou de pé, nos braços estendidos do
Orixá, de forma a atingir a bandeira da porta. Apesar da

119
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

escuridão, pude ver o que ele fazia. Primeiro, grudou as duas


pontas da fita no vidro, uma de cada lado, usando os dois
chicletes bem mastigados. Assim, a fita se transformou num
laço, preso à vidraça pintada com florzinhas.
— É preciso esperar um pouco — sussurrou o nosso
engenheiro mecânico, descendo da estátua. — O chiclete
sempre demora a secar... Mas temos sorte. Mãe Gandula e os
crioulos apagaram a luz do corredor e devem ter ido dormir...
Vamos escapar com a maior facilidade!
Ainda se passou meia hora, até que Príncipe achou que a
goma de mascar tinha secado. Então, voltou a trepar nos
braços de Omolu e procedeu à delicada operação de cortar a
vidraça da bandeira da porta. Vi quando ele passou o diamante
do anel ao redor do vidro, junto dos caixilhos, riscando-o
profundamente; depois, também vi quando ele deu um puxão
violento no laço de fita. O enorme vidro estalou e saiu,
inteirinho, pendurado na fita!
— Cuidado! — gemi. — Não o deixe cair!
Mas a vidraça estava firmemente colada aos chicletes e
foi descida, devagar, até ser pousada no chão. Graças à ajuda
dos Orixás, a bandeira da porta estava aberta! Contudo, era
uma abertura muito estreita para dar passagem ao corpo de
Príncipe, de Carlão, de Cidinha ou de Luiz de Santiago...
— Já sei! — resmungou Pavio, abrindo um olho
congestionado pelo sono. — É a minha vez de ser voluntários!
Nessas horas, o herói sou eu!
Só podia ser ele mesmo. Príncipe e Carlão ajudaram-no a
subir pela estátua e, num instante, o moleque passou pela
abertura, descendo do outro lado, pendurado nas mãos de
Carlão. O corredor estava deserto e com as luzes apagadas.
Pavio girou a chave da porta e esta se abriu silenciosamente.
Estávamos livres! E com a ajuda dos Orixás!

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Agora, cuidado! — sussurrei, quando nos amontoamos


no corredor. — Não podemos sair pela porta lateral da casa,
pois o pai de Mãe Gandula deve estar por lá! Temos que
escapar pela porta da frente!
Ainda dessa vez demos sorte. Quando chegamos à sala
da frente, tateando no escuro, vimos que a chave da porta
principal do solar estava na fechadura. Foi uma sopa abrir a
porta e correr para o ar livre. Antes que o vigia corcunda nos
visse, já estávamos descendo a estradinha, numa carreira, à
procura de outro táxi.
Mas, para falar a verdade, agora que tínhamos ficado
livres, não sabíamos o que fazer! Se o próprio delegado era um
ogan, não podíamos contar com a polícia! E agora? Como é que
a gente ia sair dessa?

121
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

122
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Capítulo VI – O Som do Berimbau

Foi aí que me lembrei de Mestre Catrapuz e seu terreiro


de capoeira. Já estávamos na Rua Frederico Costa, à procura
de um táxi; segurei no braço de Príncipe e disse:
— A polícia não vai acreditar em nós! Mãe Gandula criou
fama e fortuna e é muito querida em Salvador! Ninguém vai
acreditar! Mas existe um baiano velho que jamais admitirá que
uma falsa Babá desvirtue os rituais sagrados do candomblé!
Esse baiano velho é Mestre Catrapuz!
— Mas o que é que Mestre Catrapuz pode fazer? —
lamentou-se Príncipe. — A bandida tem dois crioulos
gigantescos para defendê-la! Dois malandros deste tamanho,
armados de navalha!
— E Mestre Catrapuz tem uma academia de capoeira —
retruquei, incrementado. — Vamos contar tudo para ele, turma!
Ele já demonstrou não simpatizar muito com Mãe Gandula;
imaginem quando souber que ela é uma impostora e ficou rica
à custa dos ingênuos! Nenhum crente sincero poderá aprovar
que uma portuguesa invoque os Orixás num candomblé de
araque!
— Estou com Lula — falou Cidinha. — Vamos contar tudo
ao velho baiano e pedir-lhe que obrigue Mãe Gandula a
confessar que é uma cascateira!
Aprovada a sugestão, entramos num táxi (que acabara de
atender aos acenos de Carlão) e ordenamos ao motorista:
— Leve-nos ao terreiro de capoeira de Mestre Catrapuz,
no Tororó! Sabe onde é? Nós não sabemos!
O chofer conhecia a academia do velho baiano. Pelo
caminho, observou:
— Vocês brincaram bem o carnaval, hem? Têm as
fantasias feitas em pedaços! Isso é que é ser folião!

123
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Carioca é fogo, bichinho — disse Carlão. — Neste


carnaval a gente se acabou!
Só Pavio é que não disse nada, porque já estava
dormindo, com a cabeça no colo de Cidinha. Como vocês
sabem, Pavio tem o dormidor frouxo.
Quinze minutos depois, estávamos na Rua do Amparo,
depois de percorrermos toda a margem esquerda do Dique. Era
ali que Mestre Catrapuz morava, numa casinha baixa, nos
fundos da qual havia um terreiro com arquibancadas, parecido
com um circo. Tudo estava escuro e calado. Príncipe pagou o
chofer (com os seus últimos 20 cruzeiros) e fomos bater à
porta da casa. Um cachorro latiu, nos fundos, e o rosto de um
crioulo sonolento apareceu numa janela. Reconhecemos o
motorista do carro velho que nos levara a passeio até
Amaralina. Ele também nos reconheceu e apressou-se a abrir a
porta.
— Entendo, não! Que estão fazendo aqui, a estas horas
da madrugada?
Eram seis e meia da manhã e ele usava um pijama de
bolinhas.
— Queremos falar com Mestre Catrapuz — respondi. — É
um assunto grave e urgente! Descobrimos que Mãe Gandula do
Exubê não é mulata nem baiana!
O crioulo arregalou as butucas e meteu-se no interior da
casa, deixando-nos na sala. Cinco minutos depois, Mestre
Catrapuz veio ao nosso encontro, completamente vestido
(inclusive de colete) e nos pediu melhores esclarecimentos.
Contamos tudo, tim-tim-por-tim-tim. Ele ficou logo ouriçado.
— Bem me parecia! Sempre desconfiei daquela mulher e
de sua maneira de fazer dinheiro! Um Babalorixá não explora
os crentes! Quer dizer que ela pinta o corpo de escuro, hem? E
não nasceu na Bahia! É um caso de polícia, meninos, é um caso
de polícia!

124
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— Mas o delegado é ogan de Mãe Gandula —


obtemperou Cidinha. — Só devemos procurar a polícia depois
de obter a confissão da cascateira! Lula pensou que o senhor e
os seus capoeiras talvez nos ajudassem a obrigar Mãe Gandula
a confessar seus crimes... Ela tem dois capangas que usam
navalha! E eles ameaçaram cortar as nossas línguas!
— Navalha não é problema não — respondeu o bom
baiano, indignado. — Um legítimo capoeira não usa armas
brancas, nem armas de fogo! Vocês têm razão! Se Mãe
Gandula do Exubê é uma vigarista, merece castigo! É um
pecado usar o nome dos santos em proveito próprio! Vou
chamar meus discípulos Bigode de Seda, Américo Ciência, Zé
Bom Pé, Chico Três Pedaços, Vitorino Braço Torto e Zé do
Saco! Eles darão um jeito nisso!
Depois, ficamos sabendo que os nomes dos discípulos de
Mestre Catrapuz não eram esses; eles tinham adotado esses
apelidos em homenagem aos mais famosos capoeiras que já
existiram na Bahia.
Mais vinte minutos e apareceram os atletas, que
moravam nas proximidades e tinham sido chamados, às
pressas, pelo filho do velho. Chegaram apenas quatro homens
(um crioulo, dois mulatos e um branco) que eram Zé Bom Pé,
Bigode de Seda, Chico Três Pedaços e Américo Ciência. Mestre
Catrapuz explicou-lhes a situação e disse que eles deviam ir
preparados para uma exibição de capoeira, a fim de neutralizar
os capangas da falsa baiana, no caso de eles reagirem à prisão.
— Capoeira de Angola, Regional Baiana ou Estilizada? —
quis saber Américo Ciência, que era o homem branco do grupo.
— De Angola, como manda Mestre Pastinha — respondeu
Mestre Catrapuz. — Nem a Regional Baiana de Mestre Bimba,
nem a Estilizada de Carlos Sena! A legítima capoeira é a de
Angola, porque não tem golpes de savata, nem jiu-jitsu, nem
luta livre! Eu trabalho na base do tradicional!

125
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

— A gente só sabe dançar ao som do berimbau —


lembrou o crioulo Zé Bom Pé. — Somos atletas e não
arruaceiros! Sem música, não dá pé!
— Eu sei — respondeu Mestre Catrapuz. — Vou apanhar
o meu instrumento. Olegário, meu filho, toca o amelê e Bigode
de Seda vai de pandeiro!
Enquanto o velho ia buscar o seu instrumento musical,
Príncipe explicou, com ar de sabichão:
— O berimbau é um pedaço de ferro, em forma de
ferradura, no centro do qual existe uma lingueta. Toca-se
colocando-se a parte curva presa entre os dentes e batendo
com o dedo na lingueta. A boca serve de caixa de ressonância.
Mas, quando Mestre Catrapuz voltou, trazia nas mãos um
arco sem flecha, com uma cabaça pendurada, muito diferente
do instrumento descrito por Príncipe. Dessa vez, a nossa
enciclopédia ambulante quebrara a cara! Olhamos todos para
ele, sorrindo com ar de gozação.
— Não me enganei — disse Príncipe, ficando vermelho
que nem um tomate. — É porque eles também chamam o
urucungo de berimbau-de-barriga. Isso é um urucungo! É um
arco de madeira, com um arame retesado de ponta a ponta. No
meio do arame é presa essa cabaça, que tem uma abertura
circular. O som é obtido pelas batidas de uma vareta de metal
no arame. E a cabaça funciona como caixa de ressonância.
Vocês vão ver que sons estranhos e melodiosos saem desse
instrumento primitivo!
— Vamos em frente! — ordenou Mestre Catrapuz. —
Olegário já trouxe o automóvel! Bigode de Seda leva os outros,
no jipe!
Em seguida, partimos, de volta a Pitangueiras, no carro
preto, seguidos por um jipe aberto, onde iam os quatro
capoeiras. Os atletas riam e contavam piadas, na maior folga,
como se não fossem para a guerra.

126
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

As ruas de Salvador estavam quase desertas, naquela


manhã ensolarada de quarta-feira de cinzas. Só de longe em
longe passávamos por um bêbedo, dormindo na calçada,
enrolado em serpentinas. Pavio Apagado também ia dormindo,
com a cabeça no colo de Carlão.
No que os dois carros subiram a estradinha do Alto do
Exubê, vimos que o Dodge-Dart de Mãe Gandula estava parado
em frente ao solar. E havia duas malas no chão, atrás do
veículo.
— Olhem ali! Olhem ali! — gritou Cidinha.
— A bandida está se preparando para fugir! Chegamos
bem a tempo, pessoal!
Era verdade. Foi só o nosso carro parar, perto do outro, e
Mãe Gandula surgiu à porta do casarão, acompanhada pelo
vigia capenga e pelos dois crioulos parrudos, que traziam
outras duas malas nas mãos. A mulher vinha fantasiada de
baiana, o rosto e os braços pintados de castanho. Saltamos do
carro e enfrentamos a quadrilha.
— Alto lá, sua cascateira! — gritou Príncipe.
— Você não vai escapar, não, senhora! Contamos tudo
para Mestre Catrapuz e ele acreditou!
A falsa baiana fez uma careta de ódio e também se pôs a
gritar:
— Genor! Miro! Acabem com eles!
Imediatamente, os dois negros largaram as malas e
tiraram as navalhas do bolso. Mas o jipe também tinha chegado
e os quatro capoeiras correram para junto de nós. Eles se
vestiam de igual (sapatos de tênis, calças de brim azul e
blusões brancos) e moviam-se como felinos.
— Atenção, camaradas! — disse Mestre Catrapuz,
empunhando o berimbau. — Lá vai o preceito!
E pôs-se a tocar o instrumento, cantando com voz rouca:
— Ê, valha-me Deus, camarada!

127
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Seu filho Olegário tocava um ganzá (uma espécie de


chocalho), enquanto o mulato Bigode de Seda batia num
pandeiro. E todos responderam, cantando em coro:
— Aruanda, aruandê!
— Ê, pára de beber, camarada! — continuou cantando,
Mestre Catrapuz.
— Aruanda, aruandê! — respondeu o coro.
— Ê, que vai fazer, camarada?
— Aruanda, aruandê!
— Ê, ele é mandingueiro, camarada!
— Aruanda, aruandê!
— Ê, faca de matar, camarada!
— Aruanda, aruandê!
— Ê, o galo cantou, camarada!
— Aruanda, aruandê!
Os dois crioulos parrudos só olhavam, impressionados
com a cerimônia, as navalhas na mão. Aí, os três capoeiras de
Mestre Catrapuz (Zé Bom Pé, Chico Três Pedaços e Américo
Ciência) benzeram-se e começaram a dançar, gingando, ao
som repinicado do berimbau.
— Berimbau, berimbau, berimbau — cantou Mestre
Catrapuz. — Berimba, berimba, berimbau!
O ritmo da música tornou-se um pouco mais acelerado,
enquanto os capoeiras se contorciam, dando saltos e
cambalhotas, como se fossem feitos de borracha. Era um
verdadeiro espetáculo de balé.
— Acabe com eles! — rugiu Mãe Gandula, dirigindo-se ao
pai dela. — O senhor tem uma arma, Papá!
O corcunda sacou o revólver e apontou-o para nós e para
os três dançarinos, sem saber em quem devia atirar primeiro.
— Chapa de frente! — ordenou Mestre Catrapuz, sem
deixar de tocar o berimbau. — Jogo-de-pé, camarada!

128
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Antes que o português disparasse a arma, um dos


capoeiras tinha apoiado as mãos na terra, com uma ligeireza
incrível, e mandado o pé no peito do vigia. Este caiu de costas
e largou o revólver, que um outro capoeira chutou para longe,
sempre no ritmo da melodia. E o pai de Mãe Gandula ficou
estirado no campo de batalha, sem forças, botando sangue
pela boca.
— Matem! Esfolem! — berrou a falsa baiana. — Saravá,
Exu! Saravá!
Então, Genor e Miro mostraram que também conheciam
capoeira. E, ao som do berimbau, do ganzá e do pandeiro,
começaram a pular de um lado para o outro, tentando dar
navalhadas nos discípulos de Mestre Catrapuz. Mas os nossos
amigos capoeiras tinham uma agilidade assombrosa e nunca
estavam nos lugares por onde as navalhas passavam.
— Saravá, Olorum, meu Pai! — cantou Mestre Catrapuz.
— Eu apelo logo para Deus, camarada!
Os golpes e contragolpes se sucediam, de parte a parte,
sem que uns lutadores conseguissem atingir seriamente os
outros. Foi uma empolgante exibição de malícia e agilidade,
como nunca tínhamos visto, nem mesmo no judô ou no caratê.
Os bailarinos plantavam bananeira, davam balões, mandavam
pernadas, cabeçadas, rabos-de-arraia e cutiladas, um pouco de
tudo! A gente até se esqueceu de que estava assistindo a uma
briga de verdade e, de vez em quando, aplaudia um golpe ou
uma defesa mais espetacular.
Súbito, o ritmo tintilante do berimbau se tornou ainda
mais acelerado e Mestre Catrapuz pôs-se a cantar:
— Zum-zum-zum, capoeira mata um! Zum-zum-zum,
capoeira mata um!
Era o sinal convencionado para o final do espetáculo.
Antes que se dessem conta disso, os dois crioulos gigantescos,
receberam dois coices inesperados (eles pensavam que os seus

129
Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

adversários tinham desistido e iam fugir) e deixaram cair as


navalhas. Então, um dos discípulos de Mestre Catrapuz saiu do
campo de batalha (passando a assistir à cena com os braços
cruzados) e os outros dois enfrentaram os bandidos de igual
para igual. Foi tudo muito rápido. Os dois capoeiras de Mestre
Catrapuz se transformaram em dois piões, girando
vertiginosamente ao redor de seus antagonistas. Genor e Miro
ainda reagiram, dando pontapés e socos no ar, mas acabaram
levando tantos bofetões, coices e cutiladas, que tombaram,
desacordados. Estavam tão feridos que só não morreram por
milagre.
— Zum-zum-zum — cantou Mestre Catrapuz pela última
vez. — Capoeira mata um!
E disse que chegava, acrescentando:
— Podem levar as armas deles, camaradas! Baiano que
se preza ainda faz a barba com navalha!
Ao ver os seus três cúmplices fora de combate, Mãe
Gandula soltou um rugido de fera e correu para o Dodge-Dart.
Mas não chegou a entrar, porque Cidinha (que estava mais
próxima) deu-lhe uma rasteira e atirou-a ao solo. A mulher caiu
com tanta infelicidade que destroncou um tornozelo e não pôde
se levantar. E todo mundo viu as suas pernas brancas, por
baixo das saias emboladas na cintura.
— Muito bem jogado — aprovou Mestre Catrapuz,
afagando a cabeça de minha namorada, — Você é bamba no
jogo-de-baixo, menina! Até me faz lembrar Júlia Fogareira e
Maria Homem!
Mais tarde, ficamos sabendo que esses eram os apelidos
de duas famosas mulheres-capoeira da Bahia. Que honra para
Cidinha!

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

EPÍLOGO

Com a queda de Mãe Gandula terminou a segunda


Operação Falsa Baiana, muito mais quente do que a primeira,
que era destinada apenas a fazer Cidinha ganhar o primeiro
prêmio do concurso de fantasias carnavalescas. Mestre
Catrapuz interrogou a impostora do Alto do Exubê e ela
confessou tudo, nos mínimos detalhes, tal como já tinha
confessado à Turma do Posto Quatro. Ela era branca,
portuguesa, chamava-se Maria Joaquina d’01iveira (e não
Durvalina de Jesus), usava uma tintura para parecer mulata e
não tinha o curso completo de Mãe-de-Santo, razão pela qual
não passava de uma contraventora, que exercia a falsa religião,
para auferir lucros sem pagar imposto de renda.
Uma vez tudo esclarecido, Mãe Gandula e seus três
cúmplices (inclusive seu pai, que tinha quebrado uma perna
alguns anos antes, no Rio, ao fugir da PM e cair por uma
pirambeira) foram entregues à polícia. O delegado do bairro,
que era ogan daquela Babá de araque, ficou tão indignado com
o caso que até deixou de acreditar em macumbas e voltou a
frequentar a Igreja de Cristo, para assistir às missas dos
domingos. Aliás, ele garantiu que Maria Joaquina iria gastar
todo o seu dinheiro, ganho ilicitamente no terreiro de
candomblé, durante o processo judicial a que teria de
responder.
Felizmente, a Turma do Posto Quatro não foi envolvida
nesse processo, nem sequer como testemunha, pois Mestre
Catrapuz se encarregou de assumir toda a responsabilidade
pela descoberta e prisão da falsa baiana. O bom crioulo falou
que, assim, estar íamos livres para regressar ao Rio, mas, às
vezes penso que o intuito dele foi levar a glória de ter
desmascarado a impostora...

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Digo isso porque, logo depois de encerrado o caso, o


velho baiano mandou fazer uns cartões que diziam:

“Atenção, Srs. Turistas!


Vindo na Bahia,
Visitem a legítima

ACADEMIA DE CAPOEIRA
DE
MESTRE CATRAPUZ

o famoso vencedor da
Batalha do Exubê!!!
Rua do Amparo — Tororó
Bahia de Todos os Santos”

Às nove horas daquela manhã de quarta-feira de cinzas,


depois do encerramento da operação da semana, a Turma do
Posto Quatro foi para a Pensão Serafina, onde ouviu a maior
bronca de dona Nair. A mãe de Cidinha estava preocupadíssima
com o nosso sumiço e não quis aceitar as explicações sobre o
dedo cortado e o mistério do candomblé, ameaçando contar
tudo aos nossos velhos, logo que chegássemos ao Rio. Mas
Príncipe nos defendeu com tanta diplomacia (e tanto
brilhantismo) que acabou convencendo dona Nair de que não
tínhamos corrido perigo nenhum, apesar de envolvidos naquela
aventura contra nossa vontade, pois nenhum mortal pode fugir
ao seu destino... Realmente, dizem que a Turma do Posto
Quatro está sempre procurando encrencas, mas, dessa vez,
ficou provado que são as encrencas que procuram a Turma do
Posto Quatro... A gente saiu de Copacabana para conhecer a
Bahia e ajudar Cidinha a ganhar um concurso, com a sua falsa
baiana... e, no fim das contas, teve que desmascarar uma

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

baiana ainda mais falsa do que ela! A gente não manda em


nada, nesta vida; é esta vida que manda na gente...
— Está bem — suspirou dona Nair, quando Príncipe
acabou de enrolar a boa senhora, com o seu papo macio. —
Vocês estão perdoados. Não vou contar nada para seus pais,
para que eles não se zanguem. Mas, para outra vez, quando se
meterem nessas aventuras, me chamem também! As crianças
precisam sempre de orientação de uma pessoa mais
experiente. E, se eu tivesse ido com vocês ao candomblé,
certamente teria visto logo que essa mulata era branca! Sou
muito observadora e ninguém me engana!
Deixamos dona Nair nessa ilusão e fomos dormir,
enquanto esperávamos o resultado do concurso do Clube
Caramuru. Ao meio-dia, Mestre Catrapuz apareceu na pensão e
todos acordamos, menos Pavio. O professor de capoeira trazia
uma notícia pouco agradável.
— Cidinha tirou o segundo lugar — informou ele,
contrariado. — O prêmio é de cinco mil cruzeiros, apenas. A
vencedora foi a fantasia “Iemanjá, Rainha do Mar”, de Maria do
Socorro de Carvalho. Não podemos apelar, porque Mister Eco
já voltou para o Rio. Aliás, as decisões da Comissão Julgadora
são inapeláveis. Os prêmios serão entregues logo mais, às três
horas da tarde, na sede do clube. Mas são apenas cinco mil
cruzeiros!
— Não faz mal — respondeu Cidinha, com um sorriso
sem graça. — Estou muito satisfeita com o resultado. A gente
nem sempre pode pegar os primeiros prêmios... Ganhar ou não
ganhar é secundário; o que importa é competir! E, depois,
aquela mulatinha saliente estava mais bonita do que eu... Aqui
entre nós, as frutas de cera de minha cestinha, acesas por
dentro igual a um carro alegórico, eram um bocado cafonas...

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

Abracei Cidinha, para consolá-la, e fomos almoçar, para


comemorar, a meia vitória. O almoço foi vatapá, mas não nos
deu dores de barriga.
Antes de voltarmos para Copacabana, ainda estivemos no
Hospital Getúlio Vargas, onde visitamos seu Dermeval. O
mulato perfumado estava passando bem, com o dedo
enfaixado em gaze, e pôde bater papo conosco, confirmando
as declarações de Mãe Gandula. Ele suspeitara da falsa mulata
e tentara se apossar de sua certidão de nascimento, que estava
no baú, mas a mulher fechara a tampa e lhe cortara o dedo.
— Se eu provasse a culpa de Durvalina — concluiu ele —
iria procurar a polícia, como todo o cidadão baiano! Nunca me
passou pela cabeça pedir-lhe dinheiro para ficar calado, apesar
de saber que ela estava faturando uma nota firme no seu
candomblé. Isso é intriga de Genor e Miro!
Não discutimos esse aspecto da questão, porque a polícia
se encarregaria de esclarecer tudo; nosso maior interesse era
saber se o dedo da testemunha fora reimplantado com êxito. O
Dr. Mattos Serpa respondeu que sim.
— O reimplante durou quatro horas — disse o médico. —
Foi um trabalho muito delicado, que honra a cirurgia baiana! Eu
e minha equipe suturamos os nervos e as artérias com êxito,
pois não havia perda de substância. Quando a incisão cicatrizar,
o paciente terá recuperado todos os movimentos do dedo
indicador. Posso garantir que não haverá rejeição.
— Graças a meu Pai Xangô — gemeu seu Dermeval. —
Mas eu juro que nunca mais vou meter o dedo no baú de
ninguém!
Às três horas, já estávamos no Clube Caramuru da Boa
Viagem, para receber o prêmio de Cidinha, e, às quatro e meia,
regressamos ao Rio, sempre sob a vigilância de dona Nair.
Mestre Catrapuz nos levou ao aeroporto, no carro preto de seu

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

filho Olegário, e ficou muito contente quando Cidinha lhe deu


2.500 cruzeiros, insistindo para que ele os aceitasse.
— Eu esperava cinquenta por cento do primeiro prêmio —
confessou o bom baiano. — Mas não sou um empresário
ambicioso. O que importa é competir!
Assim terminou a Operação Falsa Baiana. Nessa mesma
noite, já de volta ao Edifício Mattews, na Avenida Atlântica,
contei a minha mãe as nossas aventuras em Salvador (aliviando
um pouquinho as cenas de perigo) mas preferi não entrar em
detalhes, ao ser interrogado pelo meu velho, que é um
português muito desconfiado.
— E então? — indagou ele, ao voltar do trabalho. —
Vocês aproveitaram bem a viagem? Como é o raio desse
carnaval da Bahia?
— Muito pobre — respondi. — Só tem um baile infanto-
juvenil, um candomblé fechado e o Trio Elétrico, parado no
meio de uma praça...
Depois de dizer isso, eu me arrependi, mas não podia
emendar a mão, para não me comprometer. Na verdade, nós
só tínhamos visto isso, naquela terça-feira gorda. Contudo,
todo mundo sabe que o carnaval da Bahia é o mais
incrementado do Nordeste, tanto que até o frevo (antes
privilégio do Recife) já se naturalizou baiano... É por essas e
outras que os turistas, muitas vezes, levam uma impressão
errada dos lugares que visitam. O carnaval do Rio também não
é só o baile do Municipal e o desfile de Escolas de Samba,
naquele pedaço fechado da Avenida Presidente Vargas...

FIM

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Operação Falsa Baiana – Luiz de Santiago

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