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Luiz de Santiago

Operação
Vikings da Amazônia

A Turma do Posto 4
Volume 4
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Operação
Vikings da Amazônia

A Turma do Posto 4
Volume 4

Luiz de Santiago
(Hélio do Soveral)

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S235o Santiago, Luiz de. (1918-2001)

Operação Vikings da Amazônia (A Turma do Posto


4: Volume 4) / Luiz de Santiago (Hélio do Soveral). –
Rio de Janeiro: Ediouro, 1973.
102 p.

1. Literatura Brasileira Infanto-Juvenil. 2. Santiago, Luiz


de. I. Soveral, Hélio do. (1918-2001). II. Título. III. Série.

CDD 808.899282

Índice para catálogo sistemático:


Literatura Infanto-Juvenil
CDD 808.899282

Copyright © 2021
Ediouro

Impresso no Brasil

4
ÍNDICE

A Turma do Posto 4 .......................................................... 7

PRIMEIRA PARTE ............................................................. 9

À Procura dos Vikings ...................................................... 9

Capítulo I – O Gateiro sem Língua e o Manuscrito


do Cantil .............................................................................11

Capítulo II – O Balão ..................................................... 19

Capítulo III – A Távola Redonda ................................ 27

Capítulo IV – A Pirâmide Asteca ................................. 35

Capítulo V – A Cidadela Viking .................................... 41

Capítulo VI – Presos no Paraíso.................................. 47

Capítulo VII – A Saga dos “Homens do Norte” ....... 53

SEGUNDA PARTE............................................................. 59

Fugindo dos Vikings ....................................................... 59

Capítulo I – O Ouro e Monsieur François.................. 61

Capítulo II – O Pântano da Morte .............................. 67

5
Capítulo III – Felicidade Enjoada............................... 73

Capítulo IV – O Plano de Príncipe .............................. 79

Capítulo V – O Princípio da Fuga ................................ 85

Capítulo VI – O Fim da Fuga ........................................ 91

EPÍLOGO ........................................................................... 97
A Turma do Posto 4

LUIZ DE SANTIAGO (LULA) — chefe da patota e autor do


livro que vocês vão ler. Tem 14 anos de idade, nasceu em
Copacabana e é filho de imigrantes portugueses. O pai dele é
gerente de uma confeitaria da Rua Barata Ribeiro. Lula é um
garoto moreno, nem magro nem gordo, tem cabelos pretos e
topete, olhos verdes e se amarra na literatura. Frequenta o 3°
ano ginasial e é ponta-direita do Atlântica Futebol Clube, um
time de futebol de praia com escudo, camisa e tudo. Seu maior
orgulho é um canivete sensacional, com saca-rolhas, que tem
lâmina Solinger.

MARIA APARECIDA DE CARVALHO (CIDINHA) — é a


namorada de Lula. Tem 12 anos de idade, cursa o 1° ano
ginasial e nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais. É miúda,
sardenta, loura (cabelos feito espiga de milho) e tem os olhos
grandes e azuis. Às vezes, banca o juiz de futebol, nos jogos
entre o Atlântica e os seus rivais de Copa.

CARLOS CAVALCANTI (CARLÃO) — nasceu no Ceará, tem


15 anos de idade e é o mais parrudo da turma. Estuda no
mesmo ginásio, e cursa o mesmo ano que Lula. Seus pais são
pobres (imigrantes nordestinos) e, por isso, à tarde ele trabalha
numa academia de judô e karatê da Rua Santa Clara.

ANTÔNIO MATTEWS (PRÍNCIPE) — é o rapazinho mais


grã-fino da patota, daí seu apelido. Tem a mesma idade de
Carlão (15 anos), mas é gorduchinho, de cabelos louros,
compridos e anelados, e usa óculos de aros de ouro. Príncipe
não gosta de esportes violentos, mas tem uma cuca genial e
sabe de tanta coisa que parece uma enciclopédia ambulante.
Estuda em casa, com professores particulares. Seu pai é inglês,
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

muito rico, e tem uma fábrica de máquinas pesadas em São


Paulo, mas a família mora no Rio, no Edifício Mattews da
Avenida Atlântica. Príncipe nasceu na capital paulista.

FRANCISCO DA CONCEIÇÃO (PAVIO APAGADO) — é um


crioulinho de 10 anos, magro e meio torcido para a frente, igual
ao pavio de uma vela. Sua cabeça é escura e pelada. Ele
estuda numa escola pública, onde cursa o 3° ano primário. Seu
pai é o porteiro do Edifício Mattews e sua mãe lava roupa para
fora. Pavio Apagado é esperto e mentiroso, mas honesto e leal.
Nasceu na favela da Catacumba e é o maior craque (ponta-
esquerda) do Atlântica F. C.
Como se vê, embora alguns dos personagens principais deste
livro não tenham nascido no Rio de Janeiro, são todos cariocas.
A maioria dos cariocas não nasceu na Guanabara. Ser carioca é
uma questão de temperamento.

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

PRIMEIRA PARTE
À Procura dos Vikings

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Capítulo I – O Gateiro sem Língua e o


Manuscrito do Cantil

— Esta — disse Príncipe, fazendo um gesto circular — é


Manaus, a capital do Estado do Amazonas. Como vocês estão
vendo, fica situada à margem esquerda do rio Negro, a vinte
quilômetros da confluência deste rio com o Amazonas, na área
de convergência das vias de comunicação fluvial da mais rica
região seringueira da Amazônia. Como porto, Manaus é
responsável por oitenta e sete por cento do movimento
econômico do Estado. Exporta borracha, cacau, castanha-do-
pará, essência de pau-rosa, óleo de copaíba, peles de animais e
fibra de juta. A copaíba é uma árvore e a juta, um arbusto.
A Turma do Posto Quatro — Príncipe, Cidinha, Carlão,
Pavio Apagado e eu — estava em Manaus havia dois dias,
aproveitando as férias de fim de ano. Era um sábado, 9 de
janeiro. Naquele momento, tínhamos subido a uma elevação,
de onde se dominava toda a capitão amazonense, e Príncipe
botava sua banca.
— A criação, em 1967, da Zona Franca de Manaus, um
centro comercial livre de impostos destinado a superar o atraso
proveniente do isolamento da região, contribuiu decisivamente
para intensificar o desenvolvimento da cidade. Seu principal
estabelecimento industrial é uma refinaria que, abastecida pelo
petróleo bruto vindo do Peru, pode processar sete mil barris
diários. No município há, ainda, uma usina termoelétrica. E, em
outubro de 1972, foi instalada em Manaus a primeira fábrica de
aparelhos eletrônicos do Brasil.
— Conta a história histórica de Manaus — solicitou Pavio
Apagado, que estava bebendo uma garrafinha de guaraná
manauense. — Faz muito tempo que afundaram ela?
— Mais de trezentos anos — respondeu Príncipe. —
Manaus originou-se da Aldeia do Destacamento de Resgate,

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

depois Vila da Barra, fundada por Frei Teodósio e Pedro da


Costa Favela, em 1668, à volta da Fortaleza de São José do Rio
Negro. Em 1774, o povoado tinha apenas 220 habitantes. Em
1791, foi sede da Capitania de São José do Rio Negro, criada
em 1758 e cuja capital tinha sido a Vila de Barcelos mas, oito
anos depois, perdeu essa função, recuperando-a nos princípios
do século XIX. Contudo, continuou a ser um simples povoado.
Só se elevou à vila em 1833, quando, devido ao casamento do
sargento Guilherme Valente com uma filha do cacique dos
Manaus, estes índios ali foram morar e a vila recebeu, então o
nome de Manaus. Quinze anos depois, quando recebeu o título
de cidade, foi rebatizada com o nome Barra do Rio Negro. Seu
nome anterior, e que ela ostenta até hoje, foi-lhe devolvido em
1856.
“Nessa época, a cidade não passava de um aglomerado
de casas sem importância, cujo atraso refletia o de toda a
região amazônica. Seu progresso começou de repente. No
período enganador de 1890 a 1920, conhecido como o do
“Ciclo da Borracha”. Manaus se transformou, gozando de uma
prosperidade desconhecida até mesmo no Sul do país. Em 1889
tinha apenas 20 mil habitantes; em 1911, quando se tornou
definitivamente a capital do Estado, seus habitantes já eram 65
mil! Grandes obras públicas foram então empreendidas:
aterros, canalização de água potável, construção de pontes
sobre os inúmeros igarapés que atravessavam a cidade,
abertura da avenida principal sobre um pântano, e a
construção de imponentes edifícios, entre os quais o luxuoso
Teatro de Manaus.
“Ela foi a segunda cidade brasileira a adotar a luz elétrica,
em 1896. Mas, a esse período de prosperidade, seguiu-se uma
fase de decadência, devido à queda do preço da borracha no
mercado internacional. Após um longo período de marasmo,
Manaus voltou a se animar, nos últimos anos, graças à nova

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

economia agrícola que se vai, aos poucos, implantando na


Amazônia. A produção de borracha prossegue, em nível mais
baixo, para suprimir o mercado nacional, enquanto a extração
de castanha e essências florestais visa a exportação. Como
vocês viram, o centro da cidade guardou, com seus sobrados, a
aparência da fase áurea da borracha. Hoje, a instalação de
algumas indústrias, a criação da Zona Franca e o turismo, ao
lado do aparecimento de bairros operários e favelas, estão
mudando muito a fisionomia da cidade. Pensei que a gente
encontrasse uma boa operação, para executar, em Manaus,
mas estou vendo que não dá pé. Isto aqui, já foi uma terra
cheia de mistérios, hoje em dia, o progresso acabou com todo
o seu romantismo.”
Vocês, que acompanham as aventuras da Turma do Posto
Quatro, já sabem a que tipo de operação Príncipe se referia.
Em Copacabana, nossa patota sempre se reúne às sextas-
feiras, na garagem do Edifício Mattews, para planejar uma
operação, destinada a resolver qualquer problema da
coletividade, surgido na ocasião. Foi assim que solucionamos os
mistérios do macaco velho, da Torre de Babel, do fusca
envenenado e tantos outros, que já relatei, nos livros anteriores
desta série. Mas Príncipe tinha razão: ali, em Manaus, não
parecia haver nenhum problema policial, digno da Turma do
Posto Quatro.
— Vamos voltar para o hotel — sugeriu Cidinha, com sua
voz doce e musical. — Mr. Mattews deve estar preocupado com
a nossa demora. E a senhora dele já deve ter comprado tudo o
que queria, na Zona Franca, onde os comerciantes não pagam
impostos e podem vender as coisas mais barato.
Os Mattews, que são os pais de Príncipe, é que tinham
convidado a turma para aquele passeio a Manaus, a fim de
conhecermos a capital do Amazonas. Mr. Mattews é podre de
rico, pois tem uma fábrica de máquinas pesadas em São Paulo,

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

mas a mulher dele gosta de fazer economia, à maneira dela;


por isso, tinha ido a Manaus comprar uma TV a cores,
economizando cinco mil cruzeiros na compra e gastando
cinquenta mil na viagem...
Voltamos para o Hotel Amazonas, onde estávamos
hospedados, e entramos discretamente na sala de estar.
Aquele hotel era o maior e mais luxuoso da Amazônia e um dos
mais bacanas do Brasil. Mr. Mattews e a Srª Mattews estavam
sentados em duas poltronas, batendo papo com um senhor alto
e vermelhaço, que nós não conhecíamos.
— Hello, my boys! — exclamou o pai de Príncipe, quando
nos viu chegar. — Venham cá! Quero apresentá-los ao meu
novo amigo, o professor Thompson, que já ouviu falar de
vocês!
O homem alto e vermelhaço, que tinha longos cabelos
louros e olhos muito azuis, sorria, encantado. Avaliei a idade
dele em 40 ou 45 anos.
— Este é o meu filho Tony — apresentou Mr. Mattews,
indicando os óculos de aro de ouro de Príncipe. — Tem 16 anos
e nasceu em São Paulo. Não é para me gabar, mas ele é tão
estudioso que os outros o chamam de “enciclopédia
ambulante”! Este é Luiz de Santiago — continuou, apontando
para o meu topete. — Tem 15 anos e nasceu em Copacabana.
É o líder da Turma do Posto Quatro e tem grande imaginação,
esse menino! Esta é Maria Aparecida de Carvalho — e ele
apontou para os cabelos louros e espetados de Cidinha. — Tem
13 anos e nasceu em Juiz de Fora. Muito sonsa, essa menina!
Quanto a este aqui — ele indicou as alpercatas de Carlão —
chama-se Carlos Cavalcanti e nasceu no Ceará. Tem a mesma
idade de meu filho, mas parece mais velho, porque é mais alto
e troncudo. Dizem que ele sabe lutar caratê, mas nunca o
viram dar um golpe que prestasse... E, por fim, vem este
negrinho — e ele deu um tapa carinhoso na cuca de Pavio

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Apagado. — Chama-se Francisco da Conceição, tem apenas 11


anos e é filho do porteiro do meu prédio de apartamentos, no
Posto Quatro da Avenida Atlântica...
Cada um de nós fez uma reverência, cumprimentando o
novo amigo de Mr. Mattews, e ficou à espera, para saber quem
era ele.
— O professor Georges Thompson — explicou o pai de
Príncipe — é um arqueólogo norte-americano, correspondente
do Viking Museum de Nova Iorque, que se encontra no
Amazonas à procura de vestígios de antigos piratas
noruegueses. Ele demonstrou desejos de conhecer vocês
pessoalmente.
Ficamos empolgados com a revelação. Não é a toda hora
que se encontra um maluco, à procura de esqueletos de piratas
escandinavos nas terras do Brasil! Mas, daí a pouco, quando
Cidinha perguntou ao americano qual era a dele, o homem
abriu o livro:
— Mr. Mattews não falar direita — disse ele, com uma
pronúncia arrevesada. — Eu ser arqueóloga de Viking Museum,
especializada em navegadores vikings do Antiguidade. E eu ter
certeza de que piratas escandinavas ter estado em América do
Norte, no século X, em América Central, no século XI, e em
América do Sul, no século XII, tudo antes de Columbus e Pedro
Alves Cabrales! Têm aparecido muitos objetos, atribuídos aos
vikings, enterradas em Canadá, Michigan, Wisconsin, Minnesota
e Virgínia, e também devem aparecer em América Central e do
Sul! Agora, eu seguir o pista de descendentes dos vikings,
ainda vivos, no floresta amazônico! Eu saber que um gateira e
um outro arqueólogo do Viking Museum terem visto o cidadela
deles, com seus próprios olhos! Yes, indeed!
Era demais! Procurar uma cidadela de vikings na
Amazônia! Que zorra! E Príncipe ainda dizia que não havia
nenhum mistério naquela região surpreendente!

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— Poxa! — exclamou Cidinha, deslumbrada. — Conte


tudo para nós, professor! Estamos justamente estudando a
civilização viking, que começou antes de Cristo e só
desapareceu completamente no século XV da nossa era! Os
vikings eram piratas do norte da Europa, que fizeram “miséria”,
no seu tempo, invadindo a Inglaterra, a França e a Itália!
Certo, Príncipe?
— Certo — confirmou a nossa “enciclopédia ambulante”.
— Alguns deles — esclareceu o cientista norte-americano.
— Os vikings, nome pelo qual eram conhecidos os suecas,
dinamarqueses e noruegueses, eram camponeses e pescadores
que, no século V, se instalaram no Escandinávia. A partir do
século VIII, eles passaram a invadir as outras países do
Europa, instalando-se no Normandia. Eram os terríveis “homens
do Norte”! Mas, durante o século IX, os noruegueses também
foram até a Groenlândia, de onde desceram para os Américas.
As sagas norueguesas falam das longas viagens de Naddod,
que descobrir o Islândia no ano 867, de Eric, o Vermelho, que
descobrir o Groenlândia em 982, de Ari Marson, que descobrir o
Terra Novo em 983, de Leif Erickson, que descobrir o Nova
Escócia, e o Vineland, ou seja, o América do Norte, em 1003!
Tudo isso foi comprovada! Mas eu supor que os vikings descer
até o Flórida, América Central e o Sul! E, agora, eu saber existir
homens brancos, descendentes de noruegueses, no interior do
floresta amazônico. Yes, indeed!
— O senhor sabe?! — espantou-se Príncipe. — Pois eu
me amarro nas sagas dos vikings, mas nunca ouvi falar nesse
absurdo! Que provas tem o senhor?
— O gateira sem língua e o manuscrita encontrada no
cantil! — respondeu o arqueólogo, em tom de triunfo. E, diante
do nosso assombro, continuou: — Eu explica. Em 1962, o
Viking Museum teve notícia de ter aparecido uma canoa com
um caçador de onças, vulga gateira, no cidadezinha de

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Taracuá, no beira de rio Uaupés, afluente de rio Negra, e esse


gateira, chamada Chico Cipó, estar sem o língua do boca!
Assim mesmo, ele revelar, rabiscando no areia, que ele ter
encontrado índios brancos, altos e louras, com lanças e
capacetes de chifres, nas nascentes do rio Jacumã, afluente do
Uaupés, em plena selva amazônico! O gateira morrer logo, mas
três colegas meus, um arqueólogo norueguês, um geólogo e
um antropóloga, todos do Viking Museum, vieram ao Brasil,
subiram o Jacumã e não voltaram do mata virgem! Em 1974,
aparecer um cantil de couro, boiando no rio Negra. Tinha
dentro um manuscrita, com o narrativa de Hellyud Sovralsson,
o arqueóloga desaparecida, falando de uma cidadela viking no
interior do Amazônia! Foi por essa época que eu trabalhar para
o Viking Museum, por correspondência, porque eu ser radicado
em São Paulo. Eu me interessar pelo caso do manuscrita, mas
diretoria do museu não querer financiar um expedição. Por
isso, eu levar cinco anos a economizar dinheira e preparar
viagem às nascentes do Jacumã, o que vai fazer agora! Yes,
indeed!
— Sozinho? — indaguei.
— Não! Eu e monsieur François d’Agache, aeronauta de
montfolfiera, que estar me esperando em Taracuá! Nós vamos
para o floresta num baloon!
Senti um delicioso arrepio na espinha dorsal.
— Num balão, professor?! E pode?
— Yes, indeed! Meu dinheira não chegar para comprar
helicóptera, e eu não me aventurar a entrar no selva a pé. Eu
acredito no gateira sem língua e no manuscrita do cantil! Os
descendentes dos vikings ainda morar no Amazônia, vindos do
América Central! E eles criar uma civilização próprio, sem
contato com o espanhola nem o portuguesa! Agora, eu ir para
Taracuá, onde estar o meu Montgolfier! E, depois, eu e pilota

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

francês sobrevoar o floresta virgem, no baloon, à procura dos


vikings! Yes, indeed!
Aquilo era bom demais para ser verdade! Será que a
Turma do Posto Quatro ia ter vez nessa aventura sem par?

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Capítulo II – O Balão

Almoçamos no refeitório do hotel, em companhia do casal


Mattews e do professor Thompson, e Cidinha encheu o
arqueólogo de perguntas, querendo saber tudo sobre os piratas
vikings. Mas Príncipe foi mais prático:
— Professor — disse ele, na hora da sobremesa —
quando é que o senhor vai para Taracuá?
— Amanhã de manhã — respondeu o norte-americano. —
Eu levar comidas e bebidas, para pôr no barquinha de baloon.
Meu pilota, monsieur François, esperar em Taracuá, faz dois
dias. Seguir viagem, na baloon, depois de amanhã.
Meteorologia diz que tempo ideal para subir, sem chuva nem
vento. Aqui, no Amazônia, chover muito. Yes, indeed!
Foi aí que começou a choradeira da Turma do Posto
Quatro.
— Nós gostaríamos tanto de ar uma volta de balão! —
disse Cidinha, depois de piscar um olho para mim. — Eu nunca
subi num aeróstato! Eu não queria morrer sem dar uma
voltinha num dirigível.
Eu, Carlão e Pavio dissemos a mesma coisa, agarrados ao
arqueólogo, enquanto Príncipe se dirigia ao pai dele,
implorando que nos deixasse passear no Montgolfier do
professor Thomson.
— É só uma voltinha, pápi! Se o professor permitir, a
gente pode subir no balão com ele e o piloto, e ver Taracuá do
alto. Só isso, pápi! Não queremos ir muito longe, nem correr
nenhum perigo. Deixe a gente dar uma voltinha, deixe! Só uma
voltinha, tá legal?
Por fim, Mr. Mattews suspirou e perguntou ao seu novo
amigo se ele achava aquilo razoável. O professor, que já estava
ensopado com as lágrimas de Cidinha, respondeu:

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— Well... Se os meninas querer dar só um volta no


baloon, não achar inconveniente. Mas o baloon estar em
Taracuá e eu ir para o cidadezinha numa lancha. Ser uma
viagem muito longa, de mais de mil quilômetras, pelo rio. Mas,
se o senhor pagar os despesas, eu concorda. Os meninas, são
muito inteligentos e merecem isso. Eu ler, nos jornais de São
Paulo, os aventuras do Turma de Posto Quatro. Oh, yes,
indeed!
Ficou tudo resolvido. No dia seguinte, às oito horas da
manhã, partimos todos para Taracuá, numa lancha voadora,
com passagens pagas por Mr. Mattews. A Srª Mattews também
estava deslumbrada com aquele passeio pelo rio Negro, cujas
águas eram escuras mesmo, da cor da coca-cola. A vasta
extensão de água parecia um mar doce, tão largo como o
badalado Amazonas. Subimos o rio durante o dia todo,
cruzando com outros barcos maiores, alguns dos quais
(segundo o professor Thompson) vinham da Colômbia. Era
impressionante! Quando a noite caiu, fomos nos deitar em
camas improvisadas, numa pequena cabina da lancha. A
viagem prosseguiu durante a noite toda, mas, como estávamos
dormindo, não vimos a lancha entrar no rio Uaupés. Este rio
era mais estreito do que o Negro, mas também parecia
enorme. Da beira da água, onde floresciam arbustos e árvores
de pequeno porte, vinha um bafo quente e úmido. De vez em
quando, uma andorinha cinzenta ou uma garça branca
sobrevoava o vasto lençol d’água, à procura de peixes.
Quando chegamos a Taracuá eram duas horas da tarde
de segunda-feira, dia 11 de janeiro.
— Estamos perto do fronteira de Colômbia — informou o
professor Thompson. — Esta ser o floresta mais denso do
mundo! Também ter índios ferozes, como os vitotos, os cubéus
e os tucunas. Ninguém deve sair de cidadezinha!

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Taracuá era um povoado igual a centenas de outros que


bordejam os rios da Amazônia. Tudo ali era pobre, primitivo e
sem o menor conforto. Só mesmo quem viaja pelo interior do
Brasil pode dizer que conhece a miséria! Mr. Mattews ficou
indignado com a sujeira do “hotel” onde fomos nos hospedar.
Mas a Natureza que nos cercava era tão exuberante, tão
bacana, que a gente esquecia a falta de civilização. Logo ao
entrarmos no refeitório do hotel, para almoçar, encontramos
um senhor moreno, de seus quarenta anos, baixo e barrigudo,
com umas imponentes suíças pretas e uma boina da mesma
cor. Era monsieur François d’Agache, o “aeronauta de
montgolfiera”. Ele e o professor Thompson se abraçaram e,
depois das apresentações, também se sentaram para comer.
Acabado o almoço, fomos ver o balão, que estava guardado
num galpão, em frente à praça central da cidadezinha. Fiquei
decepcionado, porque o Montgolfier estava vazio e não passava
de um monte de tecido brilhante, em gomos azuis e brancos,
preso a uma larga cesta de vime com mais de um metro de
altura.
— Partimos amanhã de manhã — disse o arqueólogo
norte-americano. — Antes, daremos uma voltinha por cima de
Taracuá, para levar os meninas a passeia. Mas não poder ser
um passeia demorada, am?
Príncipe examinou o balão, por todos os lados, e disse
que nunca tinha visto um aparelho tão legal.
— Por que esse balão se chama Montgolfier? — quis
saber Cidinha.
— É uma homenagem aos irmãos Joseph e Jacques
Montgolfier — respondeu a nossa “enciclopédia ambulante”. —
Foram eles os primeiros homens a fazerem subir um balão
tripulado. E era um balão desse tipo.

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— Não foi o padre brasileiro Bartolomeu de Gusmão? —


estranhou Carlão. — Sempre ouvi dizer que foi ele quem
inventou o aeróstato.
— Nada disso — retrucou Príncipe. — Duzentos anos
antes de Cristo já o cientista grego Arquimedes enunciou o
princípio que permite o voo em balão: um gás, menos denso do
que o ar, sofre uma pressão vertical de baixo para cima, igual
ao peso do ar que desloca. Os balões são “empurrados” para
cima pelo movimento ascendente do ar quente, produzido em
seu interior por uma mecha acesa. Os balões-satélites hoje em
dia usam o hidrogênio, que é o gás mais leve que se conhece.
Mas este balão do professor Thompson usa o ar quente,
produzido pela queima do propano, que é o gás mais barato
que se conhece.
— Fala dos balões — pediu Pavio Apagado. — Quem que
inventou eles?
— A história é curiosa — respondeu Príncipe, botando sua
banca. — Em 1670, o padre italiano Francisco Lana ideou um
engenho, projetando detalhadamente numa prancha. O
princípio do balão estava aplicado em quatro globos de cobre,
ocos, que sustentavam uma barquinha muito leve. Mas esse
projeto nunca chegou a ser realizado. Aliás, se fosse,
fracassaria redondamente, pois a pressão do ar amassaria os
globos ocos... Uma nova tentativa foi feita em 1709, por outro
padre, o brasileiro Bartolomeu de Gusmão, mas também não
deu certo. Só em 1782 é que os irmãos Montgolfier, na França,
fizeram um balão subir direitinho. Era feito de papel e cheio de
ar quente, igual aos balões de São João. O maior sucesso veio
no ano seguinte, a 5 de junho, quando eles encheram de ar
quente um aeróstato de 12 metros de diâmetro. O globo,
também de papel, alcançou 2 mil metros de altitude, num voo
de cerca de 20 minutos. A tripulação era um pato, um galo e
um carneiro.

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— Ora bolas! — exclamou Cidinha. — Eu quero saber é


de um balão tripulado por gente!
— Isso só aconteceu no ano seguinte, 1784, quando o
físico inglês J. A. C. Charles construiu um aeróstato parecido
com os dos irmãos Montgolfier, feito de tecido envernizado e
cheio de hidrogênio. Ele conseguiu alcançar 3 mil metros de
altitude. A barquinha era de vime, com sacos de areia que iam
sendo esvaziados pouco a pouco. Nesse mesmo ano, o físico
francês Pilâtre de Rozier e seu amigo François d’Arlandes de
Santon, voaram num Montgolfier através de Paris, enquanto o
italiano Vicent Lunardi, na Inglaterra, subia acompanhado por
um cão, um gato e um pombo, usando remos para orientar o
rumo. Depois disso, outros navegadores aéreos aperfeiçoaram
o invento: Jean-Pierre Blanchard que, em 1785, atravessou o
Canal da Mancha num aeróstato provido de lemes e
paraquedas; Madame Blanchard que, em 1810, deu uma volta
por cima de Paris; e Henri Giffard, em 1851, cujo balão, em
forma de charuto, já tinha um pequeno motor auxiliar. Mas
somente com a adaptação de motores a gasolina é que foi
possível controlar a direção dos aparelhos. Em 1901,
finalmente, o nosso Alberto Santos Dumont deu uma volta
completa à Torre Eiffel, em Paris, provando que podia dirigir o
seu balão. Alguns anos depois, o general alemão von Zeppelin
construiu os famosos dirigíveis que levam o seu nome. Mas
houve tantos desastres que a ideia foi praticamente posta de
lado. Contudo, ainda hoje os balões são usados nas
comunicações e pesquisas meteorológicas. O primeiro balão-
sonda foi o Ecos I, dos Estados Unidos, lançado em 1960. Mas
este Montgolfier do professor Thompson não tem motores e
não acredito muito que possa ser dirigido, como o de Santos
Dumont. Em todo caso, vamos ver. A gente só vai dar uma
voltinha.

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Regressamos ao hotel, jantamos e fomos dormir. Nossa,


como tinha pulgas na cama! Às seis da manhã já estávamos de
pé e acompanhamos o professor Thompson e o piloto francês
ao galpão, para ver como era enchido o Montgolfier. Mr.
Mattews e a mulher dele também foram.
— Prestem atenção — disse Príncipe, quando vários
homens começaram a retirar o balão murcho de dentro do
hangar. — Esse aparelho é um autêntico Montgolfier. Existem
outros dirigíveis mais aperfeiçoados, mas um passeio, neste
aqui, é mais emocionante. É como se a gente voasse
pendurado num balão de São João! Bacana às pampas!
— Indubitavelmente — concordou Pavio Apagado, com as
butucas arregaladas e torcido para a frente como o pavio de
uma vela.
— Esse baloon me custar 40 mil francos — disse o
professor Thompson. — Foi fabricado em Tours e é um dos
mais perfeitas, em seu tipo. Monsieur François também é um
dos maiores pilotas de Europa, diplomada como “aeronauta de
montgolfiera” pelo Governo francês. Yes, indeed!
— Oui — acrescentou o piloto francês. — Será uma
viagem três Jolie! A meteorologia diz que teremos bom
tempo... um excelente dia para voar!
— O bojo desse balão — tornou Príncipe, com as gordas
bochechas tremelicando — tem o nome de “envelope”. É feito
de uma espécie de náilon, leve e muito forte, especialmente
tratado para se tornar impermeável e resistente ao calor. Ele
tem dois controles: um, é a entrada de ar frio, chamada
maneuvering, que fica um pouco acima do balão e pode ser
aberta em voo, para deixar sair o ar quente; o outro, é um
pedaço do tecido que pode ser rasgado, formando uma enorme
seção, no alto do bojo, usada para esvaziar completamente o
balão. O “envelope” é preso, por fios metálicos, à barquinha,
mantida a uma boa distância, longe das chamas. A cesta é de

24
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

vime entremeado de fios de metal. Aquela corda, de náilon


trançado, é a “âncora”, ou estabilizador de aterrissagem. O gás
de propano, líquido, é carregado naqueles quatro cilindros
leves, presos aos quatro cantos da cesta. Eles possuem uma
válvula, que abre e fecha e somente é usado um cilindro de
cada vez. O fogo, que produz o ar quente, fica logo acima da
cabeça dos tripulantes e é alimentado por um jato constante,
libertado por três tubos de saída. Quanto ao equipamento da
cesta, pelo que vejo compõe-se de um mapa, um altímetro, um
compasso, um variômetro, um termômetro e um extinto de
incêndios. O propano, ao contrário do hélio, é um gás muito
inflamável.
Assistimos ao enchimento do balão e ficamos
empolgados. O enorme bojo de náilon foi desdobrado e
estendido na praça, com a barquinha virada de lado; em
seguida, os homens começaram a agitar a boca do “envelope”,
para enchê-lo com um pouco de ar ambiente. Quando o bojo
arredondou ligeiramente, o piloto francês acendeu os tubos de
saída do gás e o ar quente começou a inchar o balão. Pouco a
pouco, o enorme “envelope” foi engrossando e subindo no
espaço, até tomar a forma de uma gigantesca bola de futebol
azul e branca. Esse globo estava preso à cesta de vime, a qual,
por sua vez, estava amarrada ao solo por quatro cordas. A
operação durou mais de vinte minutos. Afinal, o balão ficou
pronto e o professor Thompson nos convidou para entrar na
barquinha. O “aeronauta de montgolfiera” já estava no seu
posto, dentro da cesta de vime, olhando os manômetros do
painel de instrumentos.
— É apenas um passeio de alguns minutos — disse
Príncipe, despedindo-se do pai dele. — Uma exploração de
mentirinha, pápi. Logo, logo, estaremos de volta!
Mas, dessa vez, a nossa gorda “enciclopédia ambulante”
estava enganada. Quando entramos na cesta do Montgolfier,

25
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

estávamos, sem saber, dando início à Operação Vikings da


Amazônia. O professor Thompson não contava com os
caprichos da Natureza... ou com os erros da Meteorologia...!

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Capítulo III – A Távola Redonda

O tempo estava ótimo, firme e seco, e o Sol brilhava num


céu sem nuvens. Entramos na barquinha do balão, que já
estava em pé, e preparamo-nos para a largada. Cidinha e Pavio
Apagado eram os mais empolgados. Carlão olhava para todos
os lados com expressão de desconfiança, e Príncipe, na ponta
dos pés, achatava a barriga contra a parede da cesta de vime e
endireitava nervosamente os óculos com a ponta do dedo.
Como vocês sabem, ele é baixo e gordo e tem a vista curta,
naturalmente porque lê demais.
— Lá vamos nós! — bradou Cidinha, batendo palmas.
O piloto francês recolheu as cordas, que os taracuaenses
tinham desamarrado, e o enorme globo azul e branco começou
a subir no espaço, à razão de vinte metros por minuto,
puxando a barquinha onde estávamos aglomerados.
— Os movimentos de um balão deste tipo — disse
Príncipe, com voz esganiçada pela emoção — são determinados
pelas condições atmosféricas. Os ventos variam, de acordo com
a altitude, e o balão pode ser governado, mudando-se a
altitude pelo controle do fogo. Mais gás, a gente sobe; menos
gás, a gente desce. Um aeróstato destes pode subir até dez mil
metros de altitude. Mas tudo isso é teoria; eu quero ver é na
prática! O vento está aumentando pacas!
Nem bem o gordo acabara de falar e uma lufada de vento
agitou violentamente a cesta de vime, e nós, pendurados no
espaço, também fomos sacudidos de um lado para o outro.
— Diabos! — rosnou o professor Thompson. — O
Meteorologia dar bom tempo! Mas o Sol desaparecer!
Era isso mesmo! De repente, nuvens escuras taparam o
Sol e começou uma ventania tremenda! Ao mesmo tempo,
também começou uma chuva daquelas, mornas e copiosas, tão
comuns na região amazonense!

27
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— Ai, meu Deus! — gemeu Cidinha, abraçando-se ao


pescoço de Pavio.
— Ai, meu gogó! — gemeu o crioulinho, tentando se
livrar do abraço.
Olhei para baixo e não vi mais Mr. Mattews, nem os
taracuaenses, nem a pracinha, nem a cidadezinha. Agora,
voávamos vertiginosamente sobre a densa floresta tropical.
— É uma tempestade! — bradou monsieur François,
consultando os manômetros da barquinha. — Estamos a
duzentos metros de altitude, voando a uma velocidade de
cinquenta quilômetros por hora! E a direção é sudoeste!
— O direção de rio Jacumã — disse o professor
Thompson. — Era para lá que eu querer ir. Mas sem os
meninas no baloon!
— Agora, paciência — repliquei. — O senhor terá que
levar “os meninas”!
Creio que, de todos os tripulantes do balão, eu era o mais
calmo. Meu velho sempre me ensinou que a gente não deve se
afobar.
— Operação Vikings da Amazônia! — sussurrou Príncipe
ao meu ouvido, com os olhos arregalados por trás das lentes
dos óculos.
— Operação Vikings da Amazônia! — confirmei,
incrementado. — Vamos atrás deles, Príncipe! E Deus permita
que encontremos a cidadela perdida no “inferno verde”! Nunca
realizamos uma operação deste gênero, puxa vida!
— É a primeira vez — gemeu o gordo — e espero que
seja a última! Estou me sentindo mal! Meu estômago está
subindo para a garganta!
Cidinha também tinha ficado amarela, com cara de
enjoada. É que a cesta virara um pouco de lado, arrastada pelo
globo cheio de ar quente, e sacudia mais do que um barquinho
em alto mar.

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— Sessenta quilômetros por hora! — exclamou o piloto


francês. — É uma velocidade surpreendente! Estamos sendo
arrastados pela ventania! Vou tentar subir um pouco! Abra a
válvula, professor! Eu controlo o fogo!
Enquanto os dois homens procuravam manobrar o balão,
a Turma do Posto Quatro contemplava fascinada, a floresta
virgem que parecia correr lá embaixo. Só se viam as altas
copas das árvores verdes, como os gomos de um edredom sem
fim. Súbito, surgiu um rio, de águas barrentas, cortando aquele
mundo de verdura.
— Ser o Jacumã! — bradou o professor Thompson. —
Estar subindo o Jacumã! Estar indo no direção de seu nascente,
no floresta mais denso do mundo! Yes, indeed! A tempestade
ainda nos acompanhou por muito tempo, empurrando-nos para
o meio da selva. Duas horas se passaram, naquela corrida
vertiginosa, até que o vento amainou e a chuva cessou, como
que por encanto. De repente, um Sol muito amarelo surgiu
outra vez, no meio do céu, acariciando a paisagem encharcada
de lágrimas.
— Navegamos mais de cento e vinte quilômetros —
anunciou monsieur François. — Agora, estamos fazendo vinte
quilômetros por hora, sempre na mesma direção sudoeste. Vou
levantar um pouco o balão, para diminuir a velocidade. Voilá!
— Já não ver mais o Jacumã! — queixou-se o professor
Thompson. — Estar perdida no meio do floresta! Alguém
querer beber água ou comer alguma coisa?
Ninguém estava com sede, nem apetite. Mas, como a
temperatura passara de todo, o perigo já não parecia tão
grande.
— O maior barato! — exclamou Pavio Apagado,
agarrando-se à borda da barquinha, para olhar para baixo. —
Quantas árvores! A gente quase não vê o chão! Será que tem
alguém debaixo dessa folhagem?

29
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— Tem os bichos — respondeu Príncipe animando-se. —


E os índios selvagens, como disse o professor. A Bacia
Amazônica é a maior do mundo, com seus oito milhões de
quilômetros quadrados, dos quais quatro milhões no Brasil. Foi
von Humboldt, o famoso naturalista alemão, quem designou a
Amazônia pelo nome grego de “Hileia”, ou seja, mata
verdadeira. São cerca de três milhões de quilômetros
quadrados de selva sombria, fechada, úmida e eternamente
verde. Ela se divide em mata de igapós, permanentemente
inundada, com arbustos até vinte metros de altura; mata das
várzeas, situada nos terrenos baixos e alcançada pelas
enchentes uma ou duas vezes ao ano; e mata de terra firme,
nos terrenos altos, com vegetação muito densa e árvores
gigantescas, de 30 a 60 metros de altura. Estamos passando
por cima da terra firme.
— Fala do Amazonas — pediu Pavio Apagado. — Meu
professor falou que ele começa muito depois de ter começado.
Como é que pode?
— Pode, sim — admitiu Príncipe. — Seu professor quis
dizer que, antes de ser o Amazonas, ele é o rio Ucaiali que,
antes é o Urubamba. Há quem prefira ver o início do Amazonas
no Marañon, que se junta ao Ucaiali, no Peru. Aí, surge o
Amazonas. Mas, ao atravessar a fronteira do Brasil, vira
Solimões; só depois de se juntar com o Rio Negro, na altura de
Manaus, volta a ser Amazonas. Para uns, ele é maior do que o
rio Nilo. Contando do Marañon, tem seis mil e quinhentos
quilômetros de extensão. É, também, o maior rio navegável do
mundo. Os navios, entrando pela sua foz, chegam à cidade
peruana de Iquitos, que, embora fique apenas a cem
quilômetros do oceano Pacífico, é considerada um porto do
Atlântico, ainda que esteja a seis mil quilômetros deste oceano.
Neste momento, estamos sobrevoando a mata virgem, entre o
Uaupés e o Japurá, que também é um afluente do Solimões, ou

30
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Amazonas. Quando a gente encontrar os vikings do professor


Thompson, e descer na cidadela deles, vocês vão ver de perto
as maravilhas desta terra selvagem!
Ficamos no maior silêncio, vendo as copas das árvores
deslizarem por baixo da barquinha do balão. A sombra do globo
azul e branco parecia correr por cima da floresta fechada. Mais
uma hora se passou, até que o vento parou de soprar e o balão
ficou quase imóvel, no espaço. A barquinha já não balançava e
a viagem se tornou muito mais agradável.
— O balão está perdendo altura! — anunciou o
“aeronauta de montgolfiera”, olhando para cima. — Mon Dieu!
Que desastre! O vento rasgou um pedaço do envelope! Está
escapando muito ar quente!
— E agora? — gemeu o professor Thompson, que estava
agarrado a um mapa da Região Amazônica. — Não ver mais o
rio Jacumã! Não saber onde estar!
— Temos que descer — tornou monsieur François. — Não
posso mais controlar o balão! E não quero gastar toda a nossa
reserva de combustível.
— Descer? No meio dessas árvores? Ser uma temeridade!
— Não há outro remédio, professor. Temos que descer,
para consertar o envelope! Se eu não costurar o rasgão, nunca
mais poderemos subir, para voltar a Taraucá!
Olhamos ansiosamente para baixo, mas só vimos os
gomos verdes do arvoredo. Vagarosamente, o balão
sobrevoava a mata virgem, sempre no rumo sudoeste.
— Olhali! — gritou Cidinha, que se recuperara da
indisposição. — Estou vendo uma mesa redonda, no meio da
floresta! Ali, em cima, tem um pedaço sem árvores! É um
monte pelado!
O professor Thompson pôs um binóculo nos olhos e
espiou ansiosamente para baixo.

31
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— Sim, a menino ter razão — disse, depois. — Ser uma


serra... uma platô, muito alta, no meio do selva. Estar cercada
de água... um pântana. Em cima de morro, ter um trecho de
planalta, onde o baloon poder descer com segurança! Ir para
lá!
Era fácil dizer. O piloto francês aumentou o fogo, para
fazer o balão subir um pouco, mas a corrente de ar não
ajudava a manobra. Só depois de meia hora de tentativas, indo
e vindo, é que o Montgolfier obedeceu ao comando e foi se
aproximando, vagarosamente, da montanha em forma de
mesa. Aquele maciço de pedra, descoberto por Cidinha, devia
ter mais de oito quilômetros de diâmetro.
— Acho que somos os primeiros exploradores a visitar
estes lugares — disse Cidinha, com o olhão azul cintilante. —
Vejam como esse platô se parece com uma mesa! Eu te batizo
“távola redonda”!
— O que é trábola? — perguntou Pavio Apagado.
— Távola é o mesmo que mesa – elucidou Príncipe. — E
“távola redonda” era o nome da mesa onde se sentavam o Rei
Artur e seus cavaleiros medievais; assim, nenhum deles se
sentia mais importante do que o outro... O Rei Artur foi um rei
lendário do País de Gales, que teria comandado vitoriosamente
os bretões contra os saxões, por volta do ano 500 da nossa
Era.
Vagarosamente, o balão perdeu altura, descendo na
direção do imenso platô, que emergia do meio do pântano
como uma panela numa bacia cheia d’água. Mais alguns
minutos e estávamos em cima do trecho do morro, onde não
havia vegetação. Aí, o “aeronauta de montgolfiera” jogou a
âncora, que prendeu a uma pedra, e começou a puxar o cabo.
O professor Thompson e Carlão ajudaram-no nesse mister.
Depois, o piloto apagou os bicos de gás e o balão desceu,
suavemente, até que a barquinha bateu no chão, quicou e ficou

32
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

imóvel. Imediatamente, o professor Thompson saltou para fora


e amarrou o cabo a uma pedra maior. Como não havia mais
vento, o gigantesco globo azul e branco foi descendo,
verticalmente, em cima da cesta de vime, e nós tivemos que
afastá-lo com as mãos.
— Vamos saltar — convidou Príncipe, que estava pálido
de emoção. — Não podia haver uma aterrissagem mais segura.
Agora, enquanto monsieur François conserta o envelope,
podemos dar uma voltinha pelo platô, para ver as modas...
— Não sair de perto de baloon! — Recomendou o
arqueólogo norte-americano. — Logo que ele for consertada,
vamos subir novamente, para voltar para Taracuá! Eu não
querer encontrar cidadela de vikings com meninas, pois ser
muito perigosa! Yes, indeed!
Pois sim que íamos ficar ali, perto do balão! Enquanto o
piloto francês controlava o esvaziamento total do envelope,
para poder costurá-lo, eu e meus companheiros saltamos da
cesta de vime e começamos a andar de um lado para o outro,
observando o ambiente. O único animal que vimos, naquele
descampado, foi uma formiga. Mas havia alguns pássaros
cruzando os céus.
O professor Thompson não resistiu à curiosidade e
também se afastou do balão, examinando, com profundo
interesse, as pedras soltas do platô. Assim, nos separamos,
pois, enquanto ele ia para a direita, nós íamos para a esquerda.
Chegamos à beira de um penhasco e vimos o pântano, a mais
de quinhentos metros abaixo do local em que estávamos. A
“távola redonda” tinha seus flancos cortados a pique, de
maneira que ninguém podia descer para o igapó.
— Puxa via! — exclamou Cidinha, maravilhada. — Que
altura! Aqui em cima é que não pode haver índios. Vai ver que
nem tem onças, nem macacos. Como é que eles iam subir, não
é mesmo?

33
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Nesse momento, o professor Thompson apareceu


correndo, com uma pedra na mão.
— Runa! — gritava ele, empolgado. — Encontrar uma
runa! Encontra uma runa!
No primeiro momento, ninguém entendeu o que ele
queria dizer. Mas Príncipe logo botou sua banca.

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Capítulo IV – A Pirâmide Asteca

— A runa — disse a nossa “enciclopédia ambulante” —


era uma escrita escandinava, que os vikings gravavam nos
rochedos e vasos de madeira. O alfabeto rúnico era semelhante
ao antigo futhark germânico. Foi graças às runas, encontradas
ao longo das costas da América do Norte, que os estudiosos
seguiram a pista dos vikings até a Flórida.
— Ser um runa! — repetiu o professor Thompson,
chegando perto de nós. — Os vikings estiveram aqui!
E mostrou o seu achado. Era uma pedra quadrada, do
tamanho de um punho, com três lados polidos e o quarto cheio
de arestas e rabiscos entrecruzados. Príncipe apanhou-a,
ajeitou os óculos e pôs-se a examinar os rabiscos.
— Não dá para decifrar — disse, depois, devolvendo a
relíquia ao arqueólogo. — Mas, realmente, parece o futhark...
Parabéns, professor!
— Também não consigo ler — confessou o norte-
americano. — Vai levar o pedra para o Viking Museum. Mas,
agora, não restar dúvida que os vikings também estiveram no
Amazônia! Esta ser uma descoberta sensacional! Yes, indeed!
Nisso, ouvimos o “aeronauta de montgolfiera” chamar por
nós e voltamos, correndo, para junto do balão. Monsieur
François estava muito afobado, tentando equilibrar o globo azul
e branco, que murchava a olhos vistos.
— Preciso de ajuda — pediu ele. — Amparem o envelope,
até que ele fique vazio. Só poderei costurar o rasgão depois de
esvaziar completamente o envelope e estendê-lo no chão. Este
platô vai servir de oficina.
Com o nosso auxílio, a enorme bola de náilon foi
esvaziada e estendida na areia grossa; em seguida, o piloto
francês armou-se com um fio de náilon e uma longa agulha
encurvada, acocorou-se em cima do tecido do balão e pôs-se a

35
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

costurar uma de suas seções. Deixamo-lo empenhado nessa


tarefa e fomos dar uma volta pela “távola redonda”.
— Não sair de perto de mim — recomendou o professor
Thompson. — Não conhecer estes lugares e poder ser
perigosa! Eu estar armada e defender vocês!
E abriu o paletó, para mostrar o cabo de um revolver,
que levava entalado no cinto. À vista daquela arma, eu,
Príncipe e Carlão ficamos mais sossegados. Mas Cidinha e Pavio
Apagado ficaram ainda mais assustados.
— Olhali! — gritou a menina, em dado momento, quando
atingíamos o local onde a clareira acabava e começava um
bosque de castanheiros.
— O que é? O que é?
— Pegadas! Vocês não estão vendo o que eu vejo?
Olhamos na direção de seu dedinho esticado e vimos uma
série de rastros, no solo, onde o cascalho era substituído por
um trecho de lama. O professor Thompson adiantou-se para o
local, em silêncio, ajoelhou-se e examinou o novo achado.
— Yes, indeed! — murmurou, depois. — São marcas de
pés calçadas com sandálios ou alpercatos! Os índios tucunas
não usar calçadas! Muito interessante, isso! Os vikings usar
botas e sandálios!
Senti um friozinho na espinha dorsal. Príncipe devia ter
sentido a mesma coisa, pois olhou para mim com aquele seu
jeito indagador.
— Pode ser — admiti. — Estamos à procura deles... e
pode ser que acabemos por encontrá-los! Mas, se assim for,
nunca vi tanta coincidência!
— Vamos entrar no bosco! — decidiu o professor. —
Caminhar junto de mim! Ninguém se afastar, para não ficar
sozinha! Se vocês virem alguma coisa estranho, gritem por
socorro. Eu estar armada!

36
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Acenamos, em silêncio, e penetramos na sombra das


árvores altas e copadas. Além de castanheiros, aquele bosque
também tinha palmeiras buriti e uma ou outra sumaumeira,
com seus galhos largos no alto, formando uma pequena copa,
em cujas pontas brilhavam flores brancas como o algodão,
envoltas numa cápsula cor-de-rosa. Depois de andarmos alguns
minutos, Pavio Apagado nos pregou o maior susto.
— Socorro! — gritou ele, coçando o coco pelado.
Imediatamente, o professor Thompson sacou o revólver,
enquanto nós nos escondíamos atrás dos troncos dos
castanheiros.
— O que foi? — indagou Cidinha, que estava ao lado do
moleque.
— Uma dessas árves me atacou! — disse ele. — Me jogou
em cima uma bala de algodão hidrófobo!
E mostrou uma flor de sumaumeira, na mãozinha aberta.
— Seu idiota! — rosnou Príncipe, saindo de trás do
castanheiro onde se tinha refugiado. — É assim mesmo! Essas
árvores produzem flocos de paina, que o vento arranca e leva
para longe. É assim que as sumaumeiras se reproduzem,
quando encontram solo fértil. Essa árvore não agrediu você, se
bobão; são os homens que agridem a Natureza e não a
Natureza que agride os homens!
Pavio se acalmou e passou a esfregar o floco de
sumaúma no rosto, para sentir a sua maciez. O professor
Thompson voltou a enfiar o revólver no cinto, e continuamos a
caminhar, sempre em linha reta, à procura do fim do bosque.
Mas o arvoredo parecia não acabar mais! Ali embaixo, o
ambiente era úmido e sombrio, pois o calor e a luz do Sol não
conseguiam varar as copas espessas das árvores.
— Voltar! — comandou o professor. — Já estar muito
longe do baloon! Voltar, antes que se perder no selva! Aqui em
cima do platô, o floresta ser tão denso como lá embaixa.

37
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Vamos voltar, consertar o baloon e saborear o região, para ver


se encontrar outras pistas. Lá em cima, no baloon, estar menos
perigosa!
Já íamos atender à ordem do arqueólogo, quando Cidinha
voltou a dar um gritinho, apontando o dedo para a frente:
— Olhali! O bosque acaba logo ali!
Realmente, do ponto onde estávamos, podíamos ver as
últimas árvores do bosque, para lá das quais o Sol voltava a
iluminar o platô.
— É uma clareira — elucidou Príncipe. — Alguns metros
adiante, começa um outro bosque de castanheiros. Vamos
espiar na clareira? Aquelas pegadas que vimos, na lama,
vinham desta direção. Quem sabe tem índios por aqui?
— Vamos olhar — concordou o professor. — Mas vocês
não dever se afastar de mim! Eu estar armada! E os índios
podem ser ferozes!
A sugestão fez os cabelos louros de Cidinha se arrepiarem
ainda mais. Pus a mão no braço dela, para sossegá-la, mas
recebi um safanão. Vocês sabem que minha namorada não
gosta de confianças, nem mesmo na hora da morte...
— É uma clareira — confirmou Carlão, que caminhava na
nossa frente. — E, ali, tem a coisa mais esquisita que eu já vi!
Vote! Parece que estamos no Egito!
Avançamos todos para a saída do bosque e nos
derramamos pela clareira. Ali, o solo era pedregoso, como
aquele onde tínhamos deixado o balão, e o cascalho cintilava
sob o Sol ardente. O que assombrava Carlão era um estranho
monumento de pedra, que se erguia no meio da clareira,
apontando o seu pico para o céu. Era semelhante a uma
pirâmide egípcia, mas devia medir apenas uns 50 metros de
altura e tinha uma escada, numa de suas quatro faces.

38
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— O maior barato! — exclamou Pavio, esfregando o floco


de sumaúma na testa. — Será que essa coisa foi feita pelos
vikings do professor? Vai ver que a gente encontrou eles!
Ninguém disse nada. Estávamos emudecidos pela
surpresa e pela emoção. Imaginem, encontrar uma pirâmide de
pedra, em plena Floresta Amazônica! Os nossos índios não
eram muito chegados a pirâmides.
— Ficar aqui! — aconselhou o professor. — Eu ir ver esse
monumenta de perto. Se acontecer algo, gritar por socorro!
Mas só se acontecer algo perigoso, am?
E olhou com cara feia para Pavio Apagado, que lhe
retribuiu a careta com riso de anjinho negro.
— Parece uma pirâmide incaica — falou Cidinha, com o
olhão azul arregalado. — Já vi uma dessas no nosso livro de
História. As pirâmides egípcias eram maiores, porque serviam
de túmulo para os faraós.
— O que é incaica? — quis saber Pavio.
— Relativo aos incas — respondeu Príncipe,
automaticamente, com os olhos pregados na pirâmide. — Mas
essa não me parece com uma pirâmide incaica. O forte dos
incas, antigos habitantes do Peru, não eram as pirâmides, eram
as múmias com feições horrorosas.
— Nem fala! — gemeu Cidinha, botando as mãos no
rosto. — Eu vou morrer de susto, se a gente encontrar uma
múmia! Nem fala!
Enquanto isso, o professor Thompson tinha se dirigido
para a pirâmide e examinava os blocos de pedra que a
compunham. Aproximamo-nos, quase sem sentir, e também
observamos de perto o curioso monumento. Seus
paralelepípedos eram cimentados uns aos outros.
— Ser um observatória astronômica — concluiu o
arqueólogo norte-americano. — Não ter inscrições mas, pelo
estilo, ser de origem asteca. Isso combinar com os vikings,

39
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

que teriam passado pelo península de Yucantán e se misturado


com os maias-toltecas. Sim, ser um pirâmido asteca! Isso
também comprovar o meu teoria de que os vikings vieram do
América do Norte para o América do Sul, passando por América
Central! Eles receber influência de maias-toltecas-astecas,
durante o seu peregrinação! Agora, eu estar certa de que os
descendentes dos vikings estiveram no Amazônia... se é que
ainda não estar!
Nesse momento, ecoou no espaço um grito terrível,
quase sobre-humano, que nos gelou o sangue nas veias!
Giramos nos calcanhares e vimos uma das cenas mais
apavorantes do mundo! Diante de nós, no meio da clareira
banhada pelo Sol, acabara de aparecer um grupo de homens
estranhos, que não pareciam selvagens nem civilizados. A
maior parte deles era índios cor de bronze, quase nus, pintados
de preto e vermelho e armados com arcos e flechas; mas, na
frente deles, erguia-se um homem branco, louro, gigantesco,
com um capacete de chifres e uma horrorosa máscara de
caveira no rosto! Esse ser monstruoso, cujo corpo estava
protegido por uma malha dourada, empunhava um escudo e
uma espingarda. E fora ele quem dera o grito terrível!

40
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Capítulo V – A Cidadela Viking

A cena era tão impressionante que nenhum de nós disse


uma palavra. Estávamos duros como um bloco de bonecos de
gelo. Os índios e o estranho guerreiro mascarado também não
diziam nada, olhando para nós com cara feia. Afinal, o
professor Thompson pigarreou e fez ouvir a sua voz,
esganiçada pelo susto:
— Hello!
A resposta do gigante louro foi outro berro, que nos fez
recuar alguns passos. Evidentemente, ele estava querendo nos
assustar. Mas o professor recuperou o sangue-frio e mostrou as
mãos vazias. Seu revólver continuava entalado no cinto, por
baixo do paletó.
— Amigo! — disse ele. — Friend! Freund! Ami! Amico!
Não querer briga! Só estar aqui de passagem.
— Nam! — gritou o guerreiro, erguendo a espingarda,
cujo cano tinha a boca quase tão larga como a de um
bacamarte.
— Ele usa uma escopeta — sussurrou Príncipe, no meu
ouvido. — A escopeta era a arma dos carabineiros dos séculos
XVI e XVII. Vê se pode!
Antes que o homem disparasse a arma, Cidinha também
criou coragem e avançou alguns passos, postando-se na frente
do arqueólogo norte-americano.
— Amigos! — disse ela, com voz trêmula. — Não atire!
Não faça “buuum”! Temos crianças na nossa expedição!
E apontou para Pavio Apagado. Pelos buracos da máscara
de caveira, os olhos azuis do guerreiro contemplaram a menina
com assombro; depois, ele abaixou a escopeta e sacudiu a
cabeça, ornamentada com o capacete de chifres.
— Xaim — rosnou, contrariado.

41
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— Ele deve estar falando um antigo dialeto normando —


deduziu Príncipe. — Seu capacete é típico dos piratas vikings do
século XI. Só a caveira é que não combina. Vai ver que ele só
usa essa máscara para assustar os intrusos...
Devia ser isso mesmo, pois o gigante bateu com o pé no
chão, contrariado, e acabou por tirar a máscara de caveira. Seu
rosto era largo, bexiguento, com grande bigodes e uma longa
barba loura, que lhe caiu sobre o peito da malha dourada.
— Raaaa! — grunhiu ele, na bronca, desviando o olhar de
Cidinha.
O professor Thompson respirou, desafogado, e tentou
estabelecer um diálogo com o selvagem.
— Good morning, sir — disse ele, afavelmente. — Do you
speak english?
— Nam — negou o gigante, fazendo outra careta.
— Somos simples viajantes — prosseguiu o professor. —
Estávamos dando um passeio, de baloon, e nos perdemos no
floresta. Falar português?
— Nam!
— Deutch?
— Nam!
— Eu não falar seu língua — insistiu o professor. — Mas
nós poder nos entender por gestos, que é uma linguagem
universal... O. K.?
— Xaim — rosnou o guerreiro, batendo no peito largo. —
Kêptâm Lâitâm!
— O que é que ele quer dizer? — indagou Cidinha.
— Para mim é grego — disse Pavio.
— Deve ser um dialeto muito antigo — opinou Príncipe.
— Mas parece ter suas raízes no latim, como o português e o
francês. Evidentemente, esse pessoal não é tupi-guarani. Esses
índios são brasileiros, mas este cavalheiro parece europeu, pois
tem o biótipo longilíneo, como os nórdicos. Deve ser, pelo

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

menos, descendente de europeus. Raça branca e ariana, diria


eu.
— São os vikings — disse Pavio, empolgado. — Bem que
o professor falou que eles atravessaram as Américas e vieram
até aqui! Olha eles na nossa frente!
— Xants! — apresentou o gigante, fazendo um gesto
largo na direção dos índios que o acompanhavam. — Ómans
Dunorte!
Ficamos deslumbrados com o que ouvíamos. Homens do
Norte! Não havia dúvidas de que estávamos diante dos
descendentes dos vikings! Os vikings não eram os terríveis
“Homens do Norte”?
— Kêptâm Lâitâm! — repetiu o guerreiro, batendo no
peito.
— Professor Georges Thompson — apresentou-se o
arqueólogo, batendo também no peito. — Chefe do expedição
perdida no Amazônia! Muito prazer!
— Maria Aparecida de Carvalho — disse Cidinha, batendo
no peito.
E todos nós nos apresentamos, batendo no peito e
fazendo uma reverência. Pavio quis beijar a mão do gigante,
mas ele não deixou.
— Xaim — tornou a dizer o kêptâm, com voz de trovão.
— Bams! Bams!
Imediatamente, os índios nos rodearam apontando-nos
as flechas nos arcos retesados. Não podíamos discutir;
assentimos gravemente e preparamo-nos para acompanhar o
estranho pelotão. Antes disso, porém, o guerreiro louro abriu o
paletó do arqueólogo e tirou-lhe o revólver do cinto.
— Não reaja — recomendou Carlão, ao ver o professor
cerrar os punhos. — Se o senhor bronquear, eles são capazes
de acabar com a raça da gente! Deixa comigo! Eu sei lutar
caratê! Se for preciso, dou um taque nesse careta e...

43
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Mas logo se calou, ao ver que o kêptâm estava olhando


para ele com cara feita. Depois, os índios nos cutucaram com a
ponta das flechas e nos obrigaram a caminhar. Ainda tentamos
seguir pelo primeiro bosque de castanheiras, na direção do
platô, onde tínhamos deixado o balão e o piloto francês, mas os
índios nos indicaram o rumo oposto. Atravessamos a clareira,
onde se erguia a pirâmide asteca e mergulhamos na sombra
quente e úmida do segundo bosque.
— Srtam! — anunciou o guerreiro louro, fazendo um
gesto largo, que abrangia toda a mata ao nosso redor.
— Não tenho a menor dúvida — sussurrou Príncipe, que
caminhava ao meu lado. — Estes índios são tucunas e foram
dominados pelos homens brancos que vieram do Norte! Ainda
não sei se se trata de vikings ou descendentes dos espanhóis
do tempo de Colombo e Francisco Orellana. Seja como for, é
sensacional! Só peço a Deus que eles nos tratem bem e nos
mostrem o estágio em que se encontra sua civilização. Os
tucunas usam zarabatanas. Não sei como estes estão usando
arco e flechas.
— Influência dos brancos — sugeri. — Foram os “Homens
do Norte” que lhes ensinaram a usar armas mais modernas. Os
vikings tinham escopetas?
— Não — suspirou Príncipe. — Que eu saiba, não. As
escopetas só apareceram no século XV.
— Pois vou dizer uma coisa — meteu-se Pavio Apagado,
que marchava atrás de mim. — A escopeta desse lourão está
toda enferrujada! Duvido que ela dê um tiro direitinho! Duvido
— acrescentou — mas não quero experimentar...
— Cala a boca, Pavio! — ralou Cidinha.
Continuamos a andar, em silêncio, pelo recesso da
floresta de árvores altas e copadas, até chegarmos a uma
curiosa muralha de pedra. Reparei que os paralelepípedos eram

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

iguais aos usados na construção da pirâmide e também


estavam cimentados com argamassa.
— Obra dos brancos — disse Príncipe. — Os tucunas não
conhecem esse processo. Também pode ser obra dos
descendentes dos maias-toltecas-astecas. Só o professor
Thompson, que é arqueólogo, poderá dizer.
Mas o cientista norte-americano marchava calado,
emburrado, desde que o kêptâm lhe tomara o revólver. Ainda
caminhamos alguns metros, para a direita, seguindo ao longo
da muralha, e encontramos um largo portão de metal amarelo,
guardado por uma sentinela armada com uma lança e um
escudo. Também era um homem branco, como o kêptâm, mas
não tinha capacete. Os dois guerreiros se cumprimentaram e o
portão foi aberto pela sentinela.
— Ouro! — sussurrou Príncipe, no meu ouvido, depois de
examinar as grades do portão. — Só vendo se acredita! Estas
grades são feitas de ouro maciço!
— Sem essa! — murmurei, sentindo um friozinho na boca
do estômago.
Atravessamos o portão e penetramos numa espécie de
cidadela, formada por casas de madeira, baixas e compridas,
cobertas por folhas de palmeiras.
— Sem skalas! — anunciou o professor Thompson, saindo
de seu mutismo. — Casas característicos de período viking!
Nunca haver dessas habitaçons entre os índias brasileiras! Ser
skalar! Yes, indeed!
Continuamos a andar, por uma rua da aldeia, que parecia
deserta, e chegamos a uma casa maior e mais imponente, que
ficava no fim da rua. Era um verdadeiro palácio de mármore,
com uma escadaria na frente. Aí, o kêptâm nos fez sinal para
esperar e subiu lepidamente os degraus de mármore. Príncipe
olhou para cima e nós seguimos o seu olhar. Tanto as casas
como o palácio estavam cobertos por trepadeiras floridas. O

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

bosque de castanheiros não chegava até ali mas, graças às


folhagens das trepadeiras, parecia tudo igual.
— Eles são espertos — murmurou a nossa “enciclopédia
ambulante”. — Camuflaram a cidadela, para não ser vista do
alto! Esse mesmo truque foi usado pelos incas, ao construírem
a sua Paititi, no Peru, também era uma cidadela invisível do
céu.
— Tudo combinar! — exclamou o professor Thompson. —
As descendentes de vikings não querer serem vistos por
conquistadores espanhóis! Tal como as toltecas quando, em
fins do século IX, abandonaram Tollan, no Méxica, e fugiram
para o península de Yucatán! As toltecas destruíram os
vestígios de seu civilização e as vikings fazer o mesma!
Nesse momento, ouvimos soar uma trompa de caça e o
Kêptâm Laitâm reapareceu, no alto da escadaria de mármore,
fazendo-nos gestos para subir. Os índios se ajoelharam
respeitosamente, e subimos sozinhos. Ao chegarmos ao alto da
escada, nossa surpresa foi ainda maior. Havia uma mulher
gorda e loura, vestida com uma túnica branca, sentada num
banco, atrás do kêptâm.
— My God! — gemeu o professor Thompson,
assombrado. — Ser um valquíria! Só poder ser um valquíria!
Príncipe assentiu gravemente, tão assombrado quanto
ele.
— Sim, professor! É uma valquíria! Se isto tudo não for
um sonho, estamos no Valhala! Os vikings encontraram o seu
Valhala, na floresta amazonense!
Eu, Cidinha, Carlão e Pavio Apagado nos entreolhamos,
espantados. Nenhum de nós sabia o que era Valhala.

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Capítulo VI – Presos no Paraíso

Ao chegarmos diante da mulher loura, o Kêptâm Lâitâm


apontou para ela e disse simplesmente:
— Achâf!
A estranha valquíria sorriu, sacudindo a cabeça, e
acrescentou:
— Dugubârn!
— Dugubârn! — repetiu o professor Thompson, supondo
que aquela palavra desconhecida fosse uma saudação.
Fizemos uma reverência e ficamos à espera do resto.
Mas, por mais que falassem, cada um usando um idioma
diferente, o professor e a mulher não conseguiam se entender.
Ele experimentou falar alemão, inglês, francês e italiano, mas a
resposta era sempre a mesma:
— Nam... Nam... Nam...
Então, apelaram para a mímica. Quando o arqueólogo
juntou dedos levou-os à boca, a mulher sorriu, encantada, e
mudou de tom:
— Xaim! Xaim! Xaim!
Pelo menos, ficamos sabendo que eles iam nos dar de
comer... Já era meio-dia, pelos nossos relógios, e o meu
estômago roncava. A mulher gorda bateu palmas e o kêptâm
se mandou. Mas não ficamos muito tempo sozinhos com a
valquíria. Nem bem o guerreiro desceu a escadaria e partiu
com o seu bando de índios, uma outra mulher apareceu no
saguão do palácio de mármore. Era miúda, morena, de grandes
olhos castanhos, e também usada uma túnica branca.
— Amana — apresentou a mulher gorda.
— Izmana — emendou o professor. — É uma deusa maia,
não é? Izmana, Quetzalcoatl, Teocali, Coatlicue...
— Nam — retorquiu a valquíria. — Ómria!
E repetiu o gesto de levar comida à boca.

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— Deve ser uma deusa asteca — sugeriu Príncipe. —


Ómria não parece o nome de uma simples cozinheira... Ela
gostou do senhor, professor.
Realmente, a moreninha olhava para o arqueólogo com
um sorriso cativante nos lábios.
— Eu também simpatizar com ela — dissae o professor,
retribuindo o sorriso. — Ter que ser cautelosas com este
gente... Eles não nos entender, mas perceber nossas gestos.
Com o tempo, e usando desenhos em folhas de papel, talvez
eu chegar a conhecer o origem deles. Agora, vamos almoçar,
eu espera.
A mulher loura sorriu, como se tivesse entendido a
sugestão do arqueólogo, e bateu palmas. Atendendo à ordem,
a moreninha deu o braço ao professor e nos convidou a entrar
no palácio de mármore. Fomos atrás do casal e a valquíria
gorda foi atrás de nós. Os sorrisos das mulheres eram tão
abertos que fiquei desconfiado. Aquilo podia ser uma cilada!
— Será que elas não são antropófagas? — perguntei,
baixinho, no ouvido de Príncipe.
— Deixa disso, Lula — retrucou o gordo. — Pessoas tão
educadas não podem ter desses vícios nojentos!
A sala principal do palácio era ampla e cheia de espelhos,
mas mobiliada com parcimônia. Tinha apenas um armário, uma
mesa grande e oito bancos toscos, tipo tamborete. Ao lado da
sala ficava um banheiro, com as paredes cobertas de azulejos,
onde lavamos as mãos. A bacia e a jarra de água eram
amarelas e pesadas.
— Ouro! — repetiu Príncipe, deslumbrado. — Tudo feito
de ouro! Isto já não é mais o Valhala, é o Eldorado!
No que voltamos para o salão já ali encontramos outras
três mulheres, vestidas como as anteriores, que também se
sentaram à mesa. Todos os pratos e talheres eram de ouro,
mas não havia garfos; apenas facas e colheres.

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

O almoço constou de uma bacalhoada de pirarucu, farofa


de ovos de tartaruga e um prato de vegetais cozidos. Também
nos deram frutas, creme de Chantilly e uma espécie de vinho
doce e pouco fermentado.
— Hidromel — disse Príncipe. — É feito de água e mel de
abelhas. Era uma bebida que tomavam os mortos, no Valhala
dos vikings.
— Ai, meu Deus! — gemeu Cidinha. — Será que vamos
morrer?
— O que é Valhala? — quis saber Pavio.
— É o Paraíso — explicou Príncipe, em voz baixa. — Na
Mitologia escandinava, o Valhala era a moradia dos heróis
mortos em combate. E os banquetes — acrescentou, indicando
uma das mulheres que trazia as bandejas de ouro — eram
presididos pelo deus Odin e servidos pelas valquírias. Aqui só
está faltando Odin.
— Tenho a impressão — disse eu, também em voz baixa
— que este é um matriarcado. Ou seja: são as mulheres que
governam a cidadela...
— Também me parece — admitiu Príncipe. — Mas os
vikings, embora respeitassem as mulheres, não as aceitavam
como governantes. A coisa deve ter mudado, aqui, na
Amazônia. Essa senhora Achâf parece uma rainha.
Acabamos de almoçar e fizemos largos gestos, pedindo
licença à mulher gorda para sair do palácio. Ela compreendeu e
concordou com a cabeça, sempre sorrindo.
— O senhor vem, professor? — perguntou Cidinha,
voltando-se para o arqueólogo. — Queremos dar uma voltinha
pelo Valhala. Só uma voltinha...
— Não — respondeu ele, com ar distraído. — Querer
conversar um pouco com Ómria. Este mocinha talvez me
esclarecer certas dúvidas que eu ter no cabeça. Ela estar
gostando de mim, eu presumo.

49
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— O senhor é solteiro, professor? — indagou Pavio


Apagado, com ar de malícia.
— Oh, yes! Eu ser viúva! Yes, indeed!
Depois disso, cumprimentamos as valquírias e tratamos
de sair do palácio de mármore. Ninguém nos impediu a
passagem. Descemos a escadaria e nos encontramos na rua
principal da aldeia. Para surpresa, havia uma porção de
pessoas caminhando de um lado para o outro. Eram todos
homens brancos, louros e morenos, e não usavam outra roupa
senão uma espécie de ceroulas de algodão. Não vi nenhuma
mulher entre os transeuntes, mas Cidinha espiou pela porta de
uma casa e disse que as mulheres estavam lá dentro, com as
crianças.
Caminhamos até o princípio da rua, sem ver nenhum
veículo. Todos os habitantes da cidadela sorriam, à nossa
passagem, demonstrando a maior alegria em nos ver. Um velho
careca até nos ofereceu um punhado de jabuticabas, que Pavio
aceitou logo, fazendo uma reverência e beijando a mão do
velho.
— Miúds... miúds... — disse este, carinhosamente,
afagando o coco pelado do moleque.
— Pelo jeito — comentou Carlão — esse pessoal está
muito contente com a sua maneira de viver. Vote! Nunca vi
ninguém, em nenhuma cidade, andar na rua com tanta alegria!
Lá em Copa, o pessoal sai para a rua como quem vai para a
guerra! Aqui, eles nem sequer dão cotoveladas uns nos
outros...
— A felicidade está na simplicidade — disse Príncipe,
gravemente. — A nossa civilização materialista acabou com a
alegria das pessoas. Nas grandes cidades modernas, onde
reinam a ambição e a inveja, não pode haver felicidade. Mas,
aqui, no meio do mato, isolados de todos, esses vikings são
felizes, porque não desejam mais do que aquilo que a Natureza

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

lhes dá. Aliás, se isto é o Valhala, não podia ser de outra


maneira. Não há dinheiro no Paraíso.
— Isto é que há! — contradisse Pavio, com a boca cheia
de jabuticabas. — Você mesmo falou que aqui tem ouro à
beça! Tudo é feito de ouro! Vai me dizer que ouro não é
dinheiro?
— Você ainda não morou na jogada — acudi eu. — Eles
usam o ouro como quem usa o ferro ou o alumínio, sem lhe dar
grande valor. Deve haver uma grande mina de ouro, neste
platô, ao passo que talvez não haja ferro. Daí, o ouro, para
eles, passou a ser um metal comum. Os metais só aumentam
de valor devido à sua raridade. É ou não é, Príncipe?
— É isso mesmo — concordou o gordo. — Mas eu
gostaria de ver a fundição da cidade... Se eles trabalharem o
metal pelo processo primitivo do século X, não restará mais
nenhuma dúvida de que estamos no Valhala!
— Essa não! — exclamou Cidinha, de repente.
Seguimos na direção de seu olhar e vimos uma casa de
pedra, no meio das casas de madeira. Era uma capela cristã!
Tinha até uma cruz, no alto da torre!
— Pode ser? — indaguei, virando-me para Príncipe.
— Pode, e é — respondeu ele. — No século X, os
escandinavos já eram cristãos. Se este povo veio da
Groenlândia, como pretende o professor Thompson, é natural
que trouxesse consigo, a sua religião. Vamos aproveitar e rezar
um pouco, nessa igrejinha? Ainda não agradecemos a Deus por
continuarmos vivos, depois dessa aventura com o balão...
Entramos na capela vazia e nos sentamos num dos
bancos de pedra. Príncipe é protestante, Carlão, Cidinha e eu
somos católicos, e Pavio diz que é umbandista, mas todos
rezamos ao único Deus que existe e que se revelou a Jesus
Cristo, Moisés, Buda, Confúcio, Maomé e outros tantos

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

profetas. Depois, nos benzemos e saímos da capela. Havia dois


homens brancos, de ceroulas, à nossa espera.
— Oi! — disse eu, ao ver que eles não sorriam. — Qual é
o problema?
— Bams! Bams! — rosnou um dos homens, pegando-me
pelo braço.
Fomos levados para uma casa de madeira, coberta de
sapê, e empurrados para um quarto abafado, onde havia duas
redes e quatro esteiras, no chão. A porta do cômodo era de
jacarandá e a fechadura, de ouro.
— Sem essa! — exclamei. — Estamos presos! O que foi
que fizemos de mal? Não tem graça, ficar preso no paraíso!
— Eu comi jabuticaba — disse Pavio. — Mas o castigo de
quem come muito não é ser preso, é ter dor de barriga...
— Não sei o que fizemos — respondeu Príncipe. — Vamos
esperar pelo professor Thompson. Talvez ele nos explique tudo.
Vai ver que não devíamos ter entrado na capela cristã! Os
vikings, na sua maior parte, eram pagãos!
Sentamo-nos nas esteiras, desanimados, e ficamos à
espera de socorro. Mas o resto do dia se passou, sem que se
lembrassem de nós. Só às sete horas da noite é que apareceu
o professor Thompson, em companhia de monsieur François, o
piloto francês. Os dois também foram empurrados para dentro
do quarto fechado. Apesar disso, o arqueólogo norte-americano
parecia muito feliz. Qual seria a dele?...

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Capítulo VII – A Saga dos “Homens do


Norte”

— Estar tudo comprovada! — bradou o professor


Thompson, logo que a porta se fechou. — Eu conversar com
Ómria e acabar entendendo tudo direitinha! Ómria conhecer o
história de seu povo por tradição oral, porque ele só falar o
necessária e não usar linguagem escrito...
— Ah! — disse Pavio. — Eles são anarfabéticos!
— Analfabéticas — emendou o professor. — Estamos
num aldeia de descendentes de vikings, que vieram do
Groenlândia no século XII! Eles ser descendentes de membros
do expedição de bispo Erik Gnupson! Agora, eu saber de tudo!
E, o que eu não saber, eu deduzir! É assim que se faz o
Arqueologia!
— E qual é a saga desses vikings? — perguntou Príncipe,
muito sério.
— O que é sagra? — quis saber Pavio.
— As sagas — explicou o gordo — são as histórias e as
lendas dos povos escandinavos. Agora, cale a boca e deixe os
mais velhos falarem, tá legal?
— No ano de 1121 — contou o arqueólogo — Erik
Gnupson, primeira bispo cristão do Groenlândia e Vineland,
chegar a Groenlândia e erigir, em Vestribyeggd, o seu catedral.
Já então, o Vineland, ou América do Norte, ter sido descoberta
por Leif Erikson, em 1003, e visitada por Thorwald Erikson,
Thorfinn Karlefim, Freydin Erikson e Trud Halfdanson. No ano
de 1121, o bispo Gnupson partir para Vinelândia, num drakkar,
com 30 homens e 10 mulheres, e nunca mais se ouvir falar
nele. Segundo o meu teoria, o barca viking percorrer toda a
costa leste de América do Norte até Flórida, onde ficar os
limites conhecidos do bispado.

53
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

“Aí, deve ter havido um tremendo tempestade, que fez o


drakkar ultrapassar o estreito do Flórida e o atirou,
desarvorada, para o Golfo de Méxica. Sob a violência de tufão,
o barca afundar, nos costas de Península de Yucatán, onde os
náufragas procurar refúgio. Aí, eles encontrar os índias
skraelings, maias-toltecas, mas fazer amizade com eles. O
bispo, que usar um sotaina preto, talvez ser recebida como o
deus Quetzalcoatl e ser bem tratada por skraelings. Então, os
“Homens do Norte” se estabelecer no Yucatán, ao lado de
maias-toltecas, mas não se misturar com eles. Pouco depois,
em 1205, aparecer os astecas, no península, e subjugar os
maias-toltecas, mas respeitar os deuses brancos do colônia
viking.
“O tempo se passar e o colônia aumentar muito, com o
nascimento de filhos. Trezentos anos depois, em 1492,
começar a chegar os espanhóis, e astecas e vikings fugir para o
lago El Petén e para Tikal, no Guatemala, onde erguer dois
aldeias independentes. Os descendentes de primitivos “Homens
do Norte” de expedição de bispo Gnupson destruir todos os
vestígios de seu passagem, com medo de perseguição de
espanhóis. O êxoda de astecas e vikings continuar, de 1500 em
diante, à medida que os espanhóis ir penetrando nos sertões
do América Central. A última vez em que os dois povos se
estabelecer juntas deve ter sido em Copán, entre o Guatemala
e Honduras; daí em diante, os “Homens do Norte” fugir
sozinhas, sempre destruindo os instrumentas que não podiam
carregar e desfazendo os seus pistas. Eles atravessar o
Nicarágua, o Costa Rica, o Panamá e o Colômbia, e se
estabelecer no Amazônia. E aqui, se julgar seguros para
sempre... aqui, no sua Valhala!”
— É uma história curiosa — disse eu, impressionado. —
Pode ser verdade. Isso prova que os piratas vikings foram os

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

primeiros homens brancos a pisar nas Américas! Muito antes de


Cristóvão Colombo e Pedro Álvares Cabral!
— Vou te contar! — exclamou Pavio. — A gente nunca fez
uma operação tão didátrica! Meu professor de História vai ficar
vidrado nela, quando eu lhe contar!
— Resta saber uma coisa — falou Carlão. — Se esses
vikings da moléstia não querem que ninguém encontre eles,
devem estar na bronca, porque a gente entrou aqui... Será que
eles vão deixar a gente ir embora, depois que a gente sabe o
que sabe e viu o que viu?
— Esse é o problema — disse eu, com voz fúnebre.
— Eles não ser selvagens como os antigos norrman —
replicou o professor. — Durante esses anos de migração, eles
aperfeiçoaram o seu modo de vida e não se dedicar mais ao
guerra. Atualmente, eles ser pacifistas, alegres e felizes. Pelo
que eu deduzir do que Ómria me contar, eles só trabalhar de
manhã, depois do missa, e ter o resto de dia livre, para passear
e se divertir. Estar sempre alegres e agradecer a Deus tudo o
que Ele lhes dar: o vida, o Sol, o comida, o bebida e o
liberdade! Eles só querer viver em paz, no sua Valhala!
— Mas não querem que outros homens descubram a
cidadela — lembrei eu. — E o gateiro sem língua, professor? Às
vezes, eles se tornam sanguinários, como os seus avós! Na
minha opinião, estamos prisioneiros desses selvagens e não
vamos sair vivos daqui!
— É o que eu penso, também — disse monsieur François,
que ouvia tudo com expressão de abobalhado. — Esses índios
me prenderam, quando eu estava acabando de consertar o
balão, e não tive tempo de encher o envelope! Um índio ficou
lá, tomando conta, com uma lança de ouro na mão! Oh, mon
Dieu! Uma lança de ouro!
— Sim — admitiu Príncipe. — Estamos correndo perigo!
Eles só não nos arrancaram a língua porque somos crianças.

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Vocês não viram o jeitão daquele guerreiro louro, com o


capacete normando?
— Ser Kêptâm Lâitâm — disse o professor. — Eu
conversar com ele. Ele ser um chefe militar, que comandar
alguns índias tucunas integradas, para defender o cidadela de
platô. Ele ser sanguinário, mas só cortar o língua de quem falar
demais. Ele usar máscaras com chifres para afugentar os
estranhos e ter malha acolchoada, pintada com pó de ouro,
para se proteger dos flechadas. Esse colete e o escopeta, ser
de século XVII. Não saber como ele conseguir isso! Mas o
escopeta não funcionar e ele não ter pólvora, para pôr no
arma...
— Mas estamos prisioneiros deles! — choramingou
Cidinha.
— Oh, não! Não estar prisioneiras. O porta ter fechadura
de ouro, mas fechadura não ter lingueta. Nenhuma porta de
Valhala ter chave, tudo aberta! Vamos dormir e, amanhã de
manhã, visitar cidadela! Depois do missa, of course!
O professor tinha razão. Verificamos que a porta não
estava fechada à chave e havia o maior conforto naquela casa.
Só não tinha geladeira. Mas encontramos frutas, creme de
Chantilly, doces e bebidas fresquinhas e deliciosas. Por volta
das dez e meia da noite, deitamo-nos nas redes e nas esteiras
e adormecemos. Antes de cair no sono, ainda ouvi o
“aeronauta de montgolfiera” murmurar:
— Ouro! Muito ouro! Tudo feito de ouro! Oh, mon Dieu
de la France!
O tom de sua voz deixou-me arrepiado. Será que o ouro
também pode enlouquecer um piloto de aeróstato?
Às sete e meia da manhã acordamos, tomamos banho
(numa banheira de ouro), comemos creme de Chantilly e nos
mandamos para a capela da aldeia viking. A missa começou às
oito horas, oficiada por um sacerdote católico que, para nossa

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

surpresa, falava latim. A loura Achâf e a morena Ómria


estavam na capela e sorriram para nós.
— Não resta a menor dúvida — sussurrou Príncipe, no
meu ouvido. — Essa Achâf é governante dos “Homens do
Norte”. Se eles não progrediram muito, isolados neste platô da
Amazônia, pelo menos atingiram um estágio de civilização em
que os homens trabalham no pesado e as mulheres é que
administram os bens do povo. Isso para mim é um grande
progresso, pois as mulheres têm mais jeito para a economia
doméstica...
Depois da missa, o professor Thompson deu o braço a
Ómria e os dois começaram a bater papo, a maior parte das
vezes por mímica.
— Vamos conhecer o aldeia — anunciou o arqueólogo,
depois de consultar a Achâf. — Os “Homens do Norte” gostar
de crianças, sim. É por isso que vocês estar sendo bem
tratadas. Continuar quietas e não cometer imprudências, am?
Visitamos então a cidadela, camuflada pela folhagem.
Embora possuísse um ou outro vestígio de seu passado viking
(no entender do professor) aquela localidade perdida na
Amazônia parecia antes uma aldeia do século XVII. Foi isso o
que nos falou Príncipe, que também entende dessas coisas:
— Isso prova que os “Homens do Norte” aperfeiçoaram a
civilização escandinava de sua época, durante estes últimos
séculos, embora não atingissem o grau de progresso dos outros
povos da Europa, nesse mesmo período. Hoje em dia, por
exemplo, uma fundição é quase toda mecânica. Eles ainda não
conhecem a eletricidade; por isso, usam velas e archotes.
A fundição era uma skala enorme, ao lado de uma
ferraria que podia ser chamada de ourivesaria, pois o metal
empregado pelos operários era o ouro. O alto-forno da fundição
era feito de tijolos, e o vento que alimentava o carvão-de-pedra
aceso provinha de um fole, movido por um curioso sistema

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

hidráulico. Por toda parte encontramos estatuetas de ouro,


tábuas de ouro, bolas de ouro, tudo de ouro. Príncipe tinha
razão, ao dizer que havia uma mina do precioso metal naquele
platô, mas isso as valquírias não quiseram nos mostrar... De
resto, visitamos as 21 skalas, que abrigavam mais de duzentas
famílias; a olaria, onde eram feitos os tijolos, os azulejos e os
vasos de cerâmica; o hospital, onde só havia remédios
vegetais; o moinho de vento, onde o trigo se transformava em
farinha; e outros lugares curiosos, todos semelhantes aos que
existiam na nossa Idade Média. Também ficamos sabendo que
eles eram vegetarianos e não matavam os animais de sangue
quente.
No fim do passeio, por volta do meio-dia, fomos almoçar,
no palácio de mármore, que era a sede do governo. Eu e
Príncipe nos atrasamos, propositadamente, para podermos
trocar algumas palavras em segredo.
— Operação Vikings da Amazônia! — sussurrei, em meio
da escadaria.
— Operação Vikings da Amazônia! — respondeu ele,
também em voz baixa.
— O que é que você acha disso tudo?
— Não sei, Lula. Pode ser uma aldeia dos descendentes
dos vikings do bispo Gnupson. Mas isso não me tranquiliza nem
um pouco! Pelo contrário! Os vikings eram traiçoeiros como o
diabo! Tinham até um provérbio que dizia: “Se queres tirar os
bens e a vida de outro homem, faz-te amigo dele e acorda
cedo”. Cuidado, Lula! Na minha opinião, agora que os
encontramos, devemos fugir deles!
Essa era, também, a minha opinião. Mas não ia ser mole,
escapar daquele platô, a bordo de um balão vazio! Haveria
outra saída? Era o que iríamos ver, na segunda parte de nossa
operação.

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

SEGUNDA PARTE
Fugindo dos Vikings

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Capítulo I – O Ouro e Monsieur François

Comemos uma variedade imensa de legumes, creme de


Chantilly, e frutas maduras. Depois do almoço, tivemos outra
vez liberdade para passear pela cidadela viking. Dessa vez,
porém, nenhuma valquíria nos acompanhou. Era muito melhor
assim.
— Vocês poder andar sozinhas — disse o professor
Thompson, depois de consultar a gorda e loura governante da
comunidade. — Monsieur François ir com vocês. Eu ficar em
palácio, para conversar com Ómria. Ela ser muito inteligente e
saber muitas coisas interessantes... Este povo ser governado
por mulheres, eleitas por voto popular. Achâf ser viúva e Ómria
ser solteira. Vocês poder passear e se divertir, mas não se
aproximar de baloon! Eles não querer que nós encher baloon,
para voltar para nossa civilizaçon!
As palavras do arqueólogo nos deixaram ainda mais
preocupados. Estava na cara que os descendentes dos vikings
iam nos prender ali para sempre, se é que não estavam
planejando nos cortar a língua! Saímos do palácio, caminhando
de cabeça baixa, sem a menor alegria.
— Vamos dar uma volta pela aldeia — propôs o
“aeronauta de montgolfiera”. — Vocês têm certeza de que
esses homens são escandinavos? Muitos deles são morenos e
têm grandes bigodes...
— Eram escandinavos — respondeu Príncipe, abatido. —
Agora são brasileiros porque nasceram aqui. Faz cinco séculos
que eles estão na Amazônia. Mas ainda têm os costumes de
seus antepassados. É provável que haja alguns mestiços no
meio dos índios tucunas, pois não acredito que todos os vikings
tenham evitado se casar com as índias, nestes cinco séculos de
convívio. Acontece, porém, que os índios não vivem na

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

cidadela, mas sim lá embaixo, na floresta, onde tomam conta


do platô.
— Preconceitos racial — rosnou Pavio Apagado. — A
gente tem culpa de ser escurinho?
— É por isso que existem índios brancos, no interior das
Américas — prosseguiu Príncipe. — Há muitas notícias deles,
para ser apenas uma lenda. Os maias e os astecas eram feios e
cor de cobre, mas temos notícia de outros nativos que tinham a
pele clara.
— É verdade — disse eu. — Há muitos anos, havia uma
tribo de índios, no norte do Amazonas, cujos guerreiros eram
gigantes.
— Os pavilhanas — elucidou Príncipe. — Mas, esses,
também eram cor de cobre, embora fossem muito altos. A raça
deles se extinguiu há duzentos anos.
— E os pacaranãs? — lembrou Pavio. — A gente esteve
no meio deles, naquela operação que a vaca foi pro brejo!
— Os pacaranas também são escuros, iguais aos outros
— retorquiu Príncipe. — Mas temos notícia de selvagens mais
claros, como os guaiaquis, do Paraguai, e os boroanos, do
Chile. Isso sem falar nos beothuks, da Terra Nova, que eram
brancos e altos, talvez descendentes destes mesmos vikings.
Eles foram dizimados pelos brancos. O último grupo
sobrevivente dos beothuks foi visto em 1824 e o último
indivíduo, uma mulher, morreu em 1829.
Enquanto conversávamos, passeávamos pelas ruas da
cidadela, correspondendo aos cumprimentos risonhos de seus
habitantes. Todos os “ómans”, ou “xants”, pareciam felizes e
sem problemas. As casas tinham as portas escancaradas e as
crianças brincavam com bolas de caucho e bonecas de ouro.
— Mon Dieu de la France! — murmurava monsieur
François, com os olhos arregalados pela cobiça. — Ouro! Mais
ouro! Tudo feito de ouro!

62
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Nossa peregrinação nos levou até o extremo norte da


cidadela, para lá do palácio de mármore. Ali vimos um enorme
reservatório de água, de onde partiam canos de metal amarelo
e brilhante.
— Aqui em cima não há nenhuma nascente — disse
Príncipe. — Eles captam a água da chuva, durante os meses de
inverno, e guardam-na para os dias quentes de verão. Na
Amazônia chove muito e, por isso, nunca falta água. Vamos
espiar na beira do platô?
Caminhamos até a extremidade da “távola redonda”,
passamos por um portão e chegamos até a beira de um
precipício. A altura do platô era imensa e, lá embaixo, vimos
cintilar as águas escuras do pântano. Só havia árvores a dois
quilômetros de distância da “távola redonda”.
— Ninguém pode fugir por aqui — lamentou-se Carlão. —
Um pulo, desta altura, é morte certa! Nem os vikings
conseguem descer para a floresta, nem os índios conseguem
subir para o platô!
— Depende — disse Príncipe. — Eles devem ter um meio
de se comunicarem com a floresta, lá embaixo. Senão, os
índios não teriam subido para nos apanhar, quando saltamos
do balão.
Foi Cidinha quem descobriu o “elevador”. De repente, ela
apontou para alguma coisa e soltou um daqueles seus gritinhos
de alarma. Fomos ver e encontramos uma gaiola de madeira,
parecida com um elevador, presa por cordas a uma roldana
primitiva, que devia ser manejada com a mão. Não havia
nenhum “óman” tomando conta daquele singular ascensor.
— Está explicado o mistério — comentei. — Eles têm este
elevador, que sobe e desce, encostado ao paredão da “távola
redonda”. Só não entendo como é que os índios atravessam o
charco, lá embaixo. As águas devem ser fundas.

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— Vai ver que têm canoas — sugeriu Príncipe. —


Reparem na roda dentada da roldana. O eixo dela é de
diamantes! Vai durar a vida toda!
— Diamantes! — murmurou o piloto francês. — Mon Dieu
de la France!
Continuamos o passeio, de volta ao centro da cidadela, e
também conhecemos a skala, onde as mulheres teciam algodão
e fabricavam os seus camisolões. Não havia nenhuma operária
na fábrica mas, a avaliar pelos teares, o processo de tecelagem
era bastante primitivo.
— Século XVII — opinou Príncipe. — Pelo que vejo, esses
vikings levaram nove séculos para atingir o grau de civilização
que nós atingimos apenas em seis. Isso se deve,
provavelmente, ao fato de viverem isolados, no meio do mato.
Eles ainda estão na Idade Média, por assim dizer.
Passamos o resto do dia andando de um lado para o
outro e, ao escurecer regressamos à nossa skala, na rua
principal. Estávamos cansados de não fazer nada. Que pena,
não termos levado uns bons livros para ler!
— Aqui não tem cinema? — indagou Pavio Apagado.
— Que ideia, Pavio! — censurou Cidinha. — Onde você
viu cinema na Idade Média? O cinema foi inventado pelos
irmãos Lumière, em 1895!
— Aperfeiçoado — emendou Príncipe. — Como toda
invenção complexa, o cinema não pode ser atribuído à cuca de
um só inventor. No século XVII os chineses já projetavam
sombras numa tela branca e, no século XVIII, apareceu a
lanterna-mágica, que foi aperfeiçoada por A. Robertson e
recebeu o nome de fantascópio. Esse aparelho foi sendo
aperfeiçoado cada vez mais, até que os irmãos Lumière criaram
a primeira câmera cinematográfica. Lógico que os vikings não
iam ao cinema! O divertimento deles eram a guerra e a
pilhagem!

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— Nem fala! — gemeu Cidinha. — Felizmente, estes


vikings parecem mais bem comportados...
Jantamos, na nossa skala, e ficamos à espera do
professor Thompson.
— Essa não! — exclamou Carlão, de repente. — Cadê o
monsieur? Ele não veio com a gente, turma!
Era verdade! O “aeronauta de montgolfiera” não estava
entre nós!
— Será que ele se perdeu? — perguntou Cidinha. — Vai
ver que não conhece o caminho de casa.
— Sem essa — falei eu. — Esta aldeia é tão pequena que
ninguém pode se perder. Esse francês está aprontando alguma!
Tomem nota do que eu digo! Não gostei do jeito como ele
olhava para as bonecas das meninas vikings! Eu também nunca
vi bonecas de ouro, mas nem por isso estou falando sozinho!
Ficamos preocupados, torcendo para que monsieur
François aparecesse logo. O professor Thompson ainda devia
estar no palácio de mármore conversando com Ómria, como na
noite anterior.
— Quando o professor chegar — disse Cidinha — vamos
fazer queixa desse monsieur François! Também notei que ele
está de olho no ouro dos vikings! Isso pode nos trazer
complicações com essa gente!
Finalmente, às dez e meia da noite, o “aeronauta de
montgolfiera” apareceu na nossa skala, com uma sacola de
linho nas costas. Vinha nervoso e cansado, com a testa coberta
de suor.
— O que é isso, monsieur? — perguntou Cidinha, quando
ele depositou a sacola em cima da mesa da sala.
— Psiu! — fez ele, com os olhos luzindo como carvões
acesos. — Estamos ricos, meninos! Apanhei tudo quanto era
objeto de ouro que encontrei pelo caminho! Essa gente não dá

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

valor à fortuna que possui! Mas este ouro, em Paris, dará para
comprar metade do Bois de Boulogne! Ó-lá-lá.
— O senhor está louco! — bronqueou Carlão. — Trate de
devolver essas coisas aos seus legítimos donos! Não somos
ladrões!
— Louco está você! — rosnou o piloto. — Loucos estão
vocês todos, se pensam em ficar morando neste platô para o
resto de suas vidas! Eu vou-me embora, com o ouro dos
vikings!
— Embora, como? — disse Príncipe. — O balão está vazio
e vigiado pelos índios! Não podemos escapar daqui, monsieur!
— Conheço um caminho — retrucou o homem, sorrindo
como um demente. — O elevador não tem guardas. Basta
entrar nele e ele descerá sozinho, rente à encosta da
montanha, até o pântano. Lá embaixo há uma canoa, pronta
para nos receber! Oh, sim, eu vi a canoa, encostada ao
barranco! Vocês querem fugir comigo?
— Nunca! — respondeu Cidinha, apavorada.
— Pois, então, fugirei sozinho! Eu e o meu ouro! Ah, ah,
ah!
— Nada disso! — acudiu Carlão, cerrando os punhos. —
O senhor vai ficar quietinho, até o professor chegar! Quero ver
se o professor concorda com isso!
Foi aí que o piloto levantou a perna da calça, tirou uma
pistola do cano da bota, apontou-a para o nariz de Carlão e
perguntou se ele ia impedi-lo de fugir dali. Diante desse
argumento, o nosso campeão de caratê sorriu amarelo e disse
que não estava dizendo nada, não.

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Capítulo II – O Pântano da Morte

A pistola que monsieur François empunhava era preta e


reluzente, igual às que nós já conhecíamos, dos filmes de
gângsteres. Ao vê-la, Cidinha soltou um gritinho agudo. Mas eu
não me assustei tanto quanto ela e Carlão; o líder da Turma do
Posto Quatro não podia dar sinais de covardia! Avancei um
passo, na direção do “aeronauta de montgolfiera”, e falei com
voz pausada:
— Guarde essa arma, monsieur! Não adianta nada o
senhor nos ameaçar! Estamos todos no mesmo barco, correndo
o mesmo perigo, e devemos nos aliar, em vez de nos
dividirmos. Se o senhor tiver um bom plano para a agente dar
o fora daqui, lógico que concordaremos com ele. Ninguém está
querendo ficar o resto da vida morando com esses vikings do
século XVII. Mas o seu plano tem que ser bom mesmo. Essa
história de escapar de canoa, pelo pântano, não me parece
sensata!
O piloto olhou para mim, de boca aberta, refletindo, e
acabou por rosnar:
— Só tenho esse plano, garoto! Não há outro caminho. O
balão está murcho e vigiado pelos selvagens. Vou-me embora
pelo pântano, sim senhor! E ninguém vai me segurar! Quem
quiser fugir daqui, que venha atrás de mim!
Dizendo isto, apanhou a sacola, cheia de objetos
metálicos que tilintavam, e caminhou para a porta da skala.
Ninguém fez um gesto para impedi-lo, nem se propôs a
acompanhá-lo. Depois de olhar mais uma vez para nós, o
homem pôs a sacola nas costas e saiu rapidamente para a
noite escura. Nesse momento, estourou um trovão e começou
a chover com toda força. A água atravessava as folhagens que
cobriam a cidadela e pingava no chão.

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— Ele está louco! — gritou Príncipe. — Duvido que


consiga escapar, usando o elevador e a canoa! Certamente os
índios estão lá embaixo!
— Vamos! — comandei. — Atrás dele!
— Nunca! — gemeu Cidinha. — Eu não entro nessa onda!
Nem você vai entrar, Lula! De jeito nenhum!
E ela se agarrou ao meu braço, num desespero gostoso.
— Só para ver — expliquei. — Lógico que não vamos
embarcar nessa canoa furada! Também tenho a certeza de que
isso não vai dar certo!
Parece que eu adivinhava! Saímos atrás do piloto francês,
numa paquera discreta, e percorremos rapidamente a rua
principal da cidadela adormecida. Não se via ninguém, em
parte alguma. As portas e as janelas das casas estavam
fechadas, talvez por causa da chuva que caía abundantemente.
Em pouco tempo estávamos encharcados d’água, mas não
desistimos da paquera. Monsieur François caminhava a mais de
vinte metros à nossa frente e tínhamos dificuldades em vê-lo.
Mas, como sabíamos que ele ia para o extremo norte do platô,
também foi para lá que nos dirigimos.
— Estou estranhando esta solidão — comentou Príncipe,
que caminhava a meu lado. — Ninguém na rua... Pode ser que
não haja polícia, nesta aldeia viking, mas será que também não
há notívagos?
— Que nada! — respondi. — Cidadela sem teatros, nem
cinemas, nem botequins, não pode ter boêmios! A estas horas
está todo mundo dormindo, para acordar cedo. Ninguém quer
perder a missa das oito.
Eram dez e cinquenta no meu relógio de pulso, quando
atravessamos o portão e nos dirigimos para o lugar onde
estava o elevador. Tal como monsieur François previra, não
havia nenhum índio de sentinela. A chuva caía que Deus dava!
Ao chegarmos à beira do precipício, o piloto francês acabara de

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

empurrar a gaiola de madeira para fora do paredão e entrava


dentro dela com a sacola nas mãos. Escondemo-nos atrás de
uma rocha e ficamos só olhando.
— Ai, meu Deus! — gemeu Cidinha, com os cabelos
louros ensopados d’água. — Ele vai cair! Esse treco não
aguenta!
Mas o elevador começou a descer vagarosamente, às
sacudidelas, enquanto as cordas que o amarravam à roldana
iam se desenrolando. Todo o conjunto tremia e dava estalos.
— A engrenagem é perfeita — comentou Príncipe, em voz
baixa. — A carretilha deve ser dentada, de maneira que o peso
do elevador faz com que ele desça aos poucos. Mas os vikings
do século XII ainda não conheciam esse processo de relojoaria;
eles devem ter inventado a traquitana depois de nove séculos
de experiências. Em 1510, Leonardo da Vinci já planejava um
aparelho semelhante.
Corremos para a beira do precipício e olhamos para
baixo. O estranho elevador ia descendo, aos pulinhos, rente ao
paredão. Daí a pouco atingiu o nível do pântano e a gaiola de
madeira pousou numa estreita faixa de terra seca que
bordejava a “távola redonda”. Aí, vimos uma ubá, de seus dois
metros de comprimento, com um par de remos na popa.
Parecia estar ali de proposito, para ser usada por um fugitivo!
O “aeronauta de montgolfiera” entrou na pequena embarcação,
depositou a sacola no fundo, sentou-se num banco e apanhou
os remos.
— Está dando certo! — disse eu, fascinado pela cena. —
Ele vai embora, com o tesouro dos vikings!
Subitamente, acenderam-se archotes no alto da
montanha, e toda a beira do platô ficou iluminada, sob a chuva
grossa que caía. Ao mesmo tempo saíam homens e mulheres
de todos os cantos, fazendo uma tremenda algazarra. Em
menos de um minuto, havia uma verdadeira multidão de

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

espectadores na beira do precipício, dando risadas e comendo


pipocas com mel. Era como se aquele trecho da aldeia viking
tivesse se transformado num circo romano!
— Ai, meu Deus! — gemeu Cidinha.
Não pudemos nos esconder e fomos envolvidos pela
turba ululante. Mas nenhum dos habitantes da cidadela nos
molestou; eles queriam apenas assistir ao espetáculo, tal como
nós. Príncipe me cutucou o braço e indicou com os olhos
alguma coisa, para lá da multidão de “Homens do Norte”
vestidos com camisolas brancas. Olhei e vi o professor
Thompson e as duas valquírias — Achâf e Ómria — sentados
em três banquetas, assistindo à cena como se estivessem no
cinema! E o arqueólogo norte-americano usava uma túnica de
linha branco, igual ás das governantes do Valhala!
— Não tou gostando disso, não! — rosnou Carlão. — Que
aperreio! Parece que essa gente já esperava pela fuga do
monsieur! Mas não vejo os índios lá embaixo...
Não havia nenhum outro barco, no imenso charco
salpicado pela chuva, a não ser a ubá do fugitivo. Transidos de
horror, vimos monsieur François remar afanosamente,
enquanto a canoa se afastava da margem e afundava
vagarosamente. Os grossos pingos da chuva borbulhavam na
superfície plácida do lago.
— Essa não! — exclamei. — A canoa está furada!
— Foi o que você disse antes, não foi? — replicou
Príncipe, suspirando.
À medida que atingia o centro do igapó, a ubá ia
mergulhando nas águas escuras e fundas. Seu ocupante só
percebeu isso quando a água subiu até os seus joelhos. Era
tarde demais para voltar! O pobre homem ainda jogou fora a
pesada sacola com o ouro, mas não adiantou; a canoa
continuava a afundar inexoravelmente! Chegamos a ouvir o
grito de desespero do piloto francês, quando ele sacudiu os

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

braços e também mergulhou no pântano, logo atrás do


barquinho. Durante alguns minutos o náufrago se debateu nas
águas traiçoeiras, só com a cabeça de fora; depois, sua cabeça
desapareceu e a água fervilhou, nos círculos concêntricos que
se formaram no local do naufrágio.
— Piranhas — observou Príncipe, ajeitando os óculos no
nariz. — Esse igapó deve estar infestado de piranhas! Vai ver
que também tem jacarés!
Cidinha quase desmaiou, Carlão fez uma careta de nojo,
Pavio Apagado engasgou-se com o picolé que estava
chupando, mas eu apenas fechei os olhos. Quando os abri
novamente, a superfície do charco estava serena, apenas
salpicada pelas gotas da chuva, como se nada tivesse
acontecido. Logo em seguida, um barco comprido saiu da beira
do pântano, do lado da floresta, e se dirigiu para o local onde a
ubá afundara. Era uma espécie de drakkar do tempo dos
vikings, com uma cabeça de cobra esculpida na proa. Dentro
dele estavam o Kêmtâm Lâitâm e seus índios tucunas.
— Eles sabiam — exclamou Príncipe. — Eles sabiam o
tempo todo! E ficaram escondidos, à espera do desenlace, sem
moverem um dedo para salvar o pobre monsieur François!
Selvagens! Selvagens, é o que eles são!
Fiquei em silêncio, assistindo ao final do drama. Debaixo
da chuva, que não parava de cair, o barco viking chegou ao
meio do igapó e seus tripulantes jogaram uma corda com uma
espécie de gancho na ponta, que mergulhou nas águas
serenas. Depois de alguns minutos de sondagens, os índios
recuperaram a sacola com os objetos de ouro e a canoa furada,
que foi rebocada para a estreita faixa de terra, junto ao
paredão da “távola redonda”, e deixada no mesmo lugar em
que estava. Os “Homens do Norte” que enchiam a esplanada, à
beira do platô, aplaudiram delirantemente a cena e o Kêptâm
Lâitâm correspondeu aos aplausos, sacudindo o capacete de

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

chifres. O espetáculo tinha terminado, com a morte de seu


protagonista! Os moradores da cidadela voltaram para as suas
skalas e os archotes que iluminavam a cena foram apagados,
um a um. Apenas a chuva continuou a cair, em cachoeira.
— Que horror! — foi o único comentário de Cidinha.
— Vamos embora — convidei, segurando no braço dela.
— Ficamos sozinhos aqui. Graças a Deus, eles não nos jogaram
no pântano, de cima da pirambeira!
— Tudo planejado! — murmurou Príncipe, pálido como
um lírio. — Eles sabiam que monsieur François queria roubar o
ouro! Por isso, deixaram a canoa furada, naquele pedaço de
terreno seco, para que ele caísse a cilada! Esses monstros já
devem estar habituados a esse tipo de espetáculo!
Provavelmente já tiveram outros prisioneiros na cidadela, aos
quais deram um destino semelhante! Que barbaridade! Resta
saber o que é que eles planejam fazer com a gente, se a gente
tentar fugir daqui!
Ninguém fez comentários. E, vagarosamente, tontos de
sono e de angústia, voltamos em silêncio para a nossa skala,
na rua principal daquele incrível Valhala.

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Capítulo III – Felicidade Enjoada

Choveu a noite toda. Talvez por isso o professor


Thompson não tenha aparecido na skala, preferindo passar a
noite no palácio das valquírias. Não sei se os outros membros
da Turma do Posto Quatro dormiram; eu não consegui pregar o
olho. A toda hora estava revendo aquela cena impressionante;
o piloto francês gritando por socorro, afundando no pântano e
sendo devorado pelas piranhas! Que horror!
Na manhã seguinte, o Sol voltou a brilhar. Às sete horas,
já encontramos o nosso café na sala, numa bandeja de ouro.
Café com leite, frutas, pão e mel. Também havia um pote com
creme de Chantilly fresquinho, mas Cidinha e Príncipe
recusaram a iguaria, fazendo uma careta de enjoo.
— É demais! — bronqueou a menina. — Esses selvagens
só nos dão creme de Chantilly?
— Ué! — disse eu. — Você mesmo falou, durante o
primeiro almoço que comemos no palácio, que era doidinha por
creme de Chantilly... Nós também dissemos que gostávamos
muito. Daí, os vikings resolveram nos servir bastante creme de
Chantilly. Foi muita gentileza da parte deles.
— Tudo bem — falou Príncipe. — Mas até as coisas boas,
usadas exageradamente, cansam e aborrecem. Deus me livre
de comer mais creme de Chantilly! Prefiro mingau de milho
verde!
Evitamos falar na morte trágica de monsieur François
para não perdermos o apetite. Mas, depois do café, Príncipe
olhou para mim com expressão grave e deu a senha:
— Operação Vikings da Amazônia!
— Operação Vikings da Amazônia! — respondi. — Você
tem algum plano?
— Ainda não. Mas precisamos dar um jeito de sair daqui!
Isso que eles fizeram com o pobre monsieur François não me

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

agradou nem um pouco! Reconheço que estamos sendo bem


tratados, mas esta não é a nossa civilização. Agora, que
comprovamos que os vikings estiveram mesmo nas Américas,
temos que levar a notícia ao nosso mundo, para sairmos na
televisão... Certo?
— Certo. Mas penso que o melhor é conversarmos com o
professor Thompson, antes de tomarmos qualquer iniciativa.
Afinal, ele é o chefe da expedição.
— Eu, por mim — disse Carlão — estou me sentindo
muito bem aqui, no paraíso dos escandinavos. Me amarrei no
hidromel, servido pelas valquírias! Lá em Copacabana eu não
levava uma vidinha tão boa.
— Nem eu — confessou Pavio. — Lá em Copa, eu tinha
que estudar, e tudo era proibido. “Não faça isso, não faça
aquilo.” Aqui, não. Vocês não viram que a gente pode pisar na
grama e fazer tudo o que entender?
— Deixa de dizer bobagens, Pavio — ralhou Cidinha. —
Tem que haver o respeito à lei, senão a vida vira bagunça! E,
se você ficar pisando sempre na grama, acaba por estragar o
relvado! A gente deve saber se comportar em sociedade, tá
sabendo? Não nego que aqui tem coisas boas, mas ainda falta
muito para ser o Paraíso. Ninguém morre afogado no Paraíso,
morre?
Nesse momento chegou o professor Thompson, vestido
com uma túnica de linho branco, e mudamos logo de assunto.
Não sabíamos qual era a opinião dele sobre o Valhala e
achamos perigoso criticar a civilização primitiva dos “Homens
do Norte”...
— Preparar-se! — avisou o arqueólogo. — Vamos à missa
e, depois, vocês ter que trabalhar! Não há ociosos no Valhala.
Todos fazer alguma coisa útil, para pagar o que comer! Achâf
quer que vocês aprender um ofício! Ir trabalhar no olaria!

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— No olaria? — resmungou Pavio. — Não pode ser no


Framengo?
— Escute, professor — disse eu. — Qual a sua opinião
sobre essa gente esquisita?
— A melhor possível — respondeu o norte-americano com
voz severa. — Aqui não ter gente esquisita, garoto! Nós é que
ser esquisito, com os nossos estúpidos preceitas! Aqui ter
liberdade! Eu gostar de Valhala e esperar que vocês gostar
também. Quem não gostar de Paraíso, ser maluca do cabeça!
Agora, vamos ao missa e trabalhar! O trabalho fazer bem para
o saúde! Yes, indeed!
Não podíamos discutir. E lá fomos nós para a capela,
assistir à missa das oito. Dali, fomos levados para uma skala
enorme, onde havia um forno e montes de tijolos. Era ali que
os “Homens do Norte” fabricavam azulejos e pratos de
cerâmica. Os outros operários da oficina eram alegres e
estavam sempre cantando, mas falavam pouco e só diziam
coisas que nós não entendíamos. Havia um velho, chamado
Xoisa, que foi muito amável e nos ensinou a amassar o barro.
Contudo, eu sentia que estávamos sendo vigiados e olhados às
furtadelas pelos descendentes dos vikings.
O trabalho até que não era muito pesado mas, como não
estávamos acostumados a ele, cortamos uma volta, até
aprender a amassar a tabatinga! O horário do serviço também
era curto — das nove ao meio-dia — mas pareceu-nos uma
eternidade! Afinal, tocou uma sineta e ficamos livres da olaria.
Voltamos para casa e já encontramos o almoço à nossa espera.
Havia um cozido, sem carne, e mais creme de Chantilly, mas
também havia um pote com creme de milho verde. Alguém
devia ter ouvido Príncipe dizer que gostava de mingau de milho
verde...

75
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— Já não tou mais gostando daqui! — bronqueou Pavio


Apagado, durante a refeição. — Lá em Copa eu não dava duro
para comer creme de Chantilly!
— E você comia creme de Chantilly? — perguntou Carlão.
— Só comi uma vez — confessou o moleque. — Mas
ninguém me botava para amassar barro! E eu podia jogar bola,
todo dia, na praia!
— Aqui você também pode jogar — disse eu, dando uma
risada. — Só que a bola é de ouro.
— Escute, Lula — falou Príncipe, que estava sério e
preocupado — hoje à noite, se o professor aparecer na nossa
skala, vamos conversar direitinho com ele! Temos que escapar
daqui! Eu sei que é arriscado, mas temos que escapar! Se a
gente se habituar ao modo de vida dos vikings, depois será
mais difícil fugir!
— Eu nunca vou me habituar a essa vida chata! —
esbravejei. — Não nasci para ser oleiro! O que eu quero é me
formar em Engenharia! Lógico que temos que ir embora daqui!
Também já estou cheio de creme de Chantilly!
— Quando a esmola é muita, o pobre desconfia — citou
Cidinha. — Tudo é muito gostoso, muito fácil, mas só isso. A
vida, sempre igual, com tudo na mão, acaba enchendo! Já
estou cheinha desse paraíso!
— Também eu — concordei. — Esta noite, vamos falar
francamente com o professor Thompson! Com a ajuda dele,
talvez a gente dê o fora daqui!
— Sei, não — rosnou Carlão. — Pra mim, esse professor
já aderiu aos costumes dos vikings e não quer voltar para a
nossa civilização. Vocês não viram o jeito dele?
O nosso campeão de caratê tinha razão. Às seis horas da
tarde, quando voltamos para a skala, depois de termos dado
um passeio pelos bosques da “távola redonda”, encontramos o
professor Thompson à nossa espera.

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— Hello! — saudou ele, aberto num sorriso. — Então?


Estar gostando de Valhala? Divertir-se muito, no bosco? Não há
nada melhor do que o liberdade, não é mesma? Vocês
comerem o que quererem, fazerem o que lhes dar no veneta e
ninguém dizer nada, não é?
— É — admitiu Príncipe. — Está tudo legal, professor. O
Paraíso tinha que ser assim mesmo... Mas nós somos de uma
outra civilização e não nos acostumamos a viver com a
simplicidade dos bichos! O senhor não viu o que aconteceu com
monsieur François, o seu “aeronauta de montgolfiera”?
O arqueólogo fechou a cara.
— Esquecer aquele ladrão! — explodiu. — Monsieur
François ser um traidora, um patifo, que querer roubar o ouro
de “Homens do Norte”! Ele receber apenas o que merecer! Se
vocês se portar direitinha, e respeitar os costumes de
comunidade, nada lhes acontecer de mal. Aqui ser um
verdadeira paraíso! Ninguém passar fome, nem dormir no rua,
e trabalhar só um pouquinha... Quando é que, no nossa
civilização, vocês ter creme de Chantilly todos os dias? E
hidromel? E crema de milho verde?
— Não me fale mais em creme de Chantilly! — gemeu
Cidinha, fazendo uma careta de nojo. — Já comi tanto creme
que não aguento nem o cheiro!
— O caso é o seguinte, professor — disse eu, criando
coragem. — Queremos dar o fora daqui, entende? Tudo é
muito bonito, mas está começando a enjoar. Não acontece
nada neste platô, que não seja previsto! Está tudo certinho,
tudo muito fácil! E as coisas fáceis não têm muito valor. É ou
não é?
— O quê?! — escandalizou-se o arqueólogo. — Vocês
querer fugir de nosso Valhala? Mas isso ser um ingratidão!
Vocês ter tudo para ser feliz! Oh, não, não, nunca! Ninguém vai
sair daqui! Eu vai me casar com Ómria!

77
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— Como é que é?! — exclamou, todos, ao mesmo tempo.


Ele deu a maior gargalhada.
— Yes, indeed! Eu vai me casar com Ómria e ficar para
sempre em Valhala! Eu ser feliz e vocês ter que ser também!
Vocês precisar apenas se adaptar à nova vida, sem leis, mas
também sem crimes. A felicidade ser assim: tudo estar bom,
tudo estar doce, tudo estar igual!
— Mas essa felicidade é meio enjoada — obtemperei,
cautelosamente. — Já estamos cheios de creme de Chantilly e
hidromel! A gente só dá valor às coisas boas quando conhece
as coisas más, e só acha uma coisa doce depois de provar uma
coisa amarga. Ora, se aqui é tudo bom, deixou de ser bom,
para ser igual. É esse excesso de bondade, doçura e igualdade
que acaba enchendo a gente, professor! Tanta felicidade
também cansa!
— Ah, é assim? Seus ingratas! Pois muito bem! Se vocês
não estar satisfeitas com o Paraíso, eu arranjar mais trabalha
para vocês, para vocês se distrair e não pensar em bobagens!
Ninguém vai fugir de Valhala! Aquele que discutir e não quiser
ser feliz será jogada no pântano, para os piranhas comer! Yes,
indeed! Nós não querer dissidentos no nosso paraíso!
E agora? Sai dessa!

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Capítulo IV – O Plano de Príncipe

Uma coisa era certa: não podíamos contar com a ajuda


do professor Thompson! O louro norte-americano se
apaixonara pela morena Ómria e se transformara num novo
viking do século XX! Se quiséssemos escapar da cidadela dos
“Homens do Norte” teríamos que agir sozinhos, sem a
experiência de um homem de maioridade. Tanto melhor! A
Turma do Posto Quatro nunca precisara dos conselhos de
ninguém, nem mesmo para cometer as suas imprudências!
O professor foi-se embora, para dormir no palácio de
mármore, e o resto da noite se passou sem novidades.
Deitamo-nos às dez horas, mas não sei se alguém dormiu bem.
Eu só consegui pegar no sono de madrugada, cansado de
pensar numa solução para o nosso problema.
O dia seguinte foi igual aos outros: sereno, vazio, sem
nenhuma surpresa. Fomos à missa, pedimos a Deus que nos
ajudasse a encontrar um meio de dar o fora dali, e nos
metemos na olaria, para amassar barro. O velho Xoisa disse
que estávamos indo bem. Ele nos chamava de “miúds” e
demonstrava gostar de nós. Mas também não podíamos contar
com ele para escapar do Valhala. Almoçamos verduras,
bolinhos de milho verde, e fomos dar um passeio até o extremo
sul da “távola redonda”. Ninguém nos impediu a passagem
pelos bosques de castanheiros e sumaumeiras. O balão do
professor Thompson estava no mesmo lugar, com o bojo vazio,
estendido no solo, e a barquinha virada de lado. Havia dois
índios altos e parrudos vigiando o aparelho.
— Eles usam azagaias de ouro — sussurrou Príncipe. —
Vai ser difícil escapar por aqui! Além do mais, o envelope está
murcho e leva quase meia hora para encher... Repare, Lula.
Um dos índios é mestiço de branco! Afinal, sempre houve
miscigenação!

79
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— Que foi que houve? — quis saber Pavio Apagado, que


escutava o papo.
— Miscigenação — repetiu Príncipe. — Quer dizer
cruzamento de raças. Aquele índio tucuna é um miscigenado,
ou seja: filho de pai branco com mãe índia, ou vice-versa.
Vamos olhá-lo de perto. Espero que ele não nos dê uma
dentada...
Chegamos junto da sentinela mestiça e olhamos para ela
com profundo interesse. Príncipe chegou até a limpar as lentes,
para ver melhor. O índio aguentou firme o exame, sem nos
ameaçar com a sua azagaia. Mas o outro selvagem aproximou-
se e rosnou:
— Mamluk!
— Sim, senhor — disse eu, gentilmente. — Muito prazer
em conhecê-los... Estamos só olhando a paisagem, mas já
vamos indo... Adeus, seu Mamluk!
E tratamos de dar o fora dali, antes que um dos guardas
nos espetasse com a lança. Já tínhamos visto que o balão
estava em perfeitas condições.
— Eles não são ferozes — comentou Cidinha. — Aquele
mestiço, que o outro chamou de mamluk, sorriu para mim.
Talvez a gente possa enrolá-lo e...
— Talvez — murmurei. — Vou pensar no assunto.
— Eu já estou pensando — retorquiu Príncipe, com ar
misterioso.
Voltamos para a cidadela e fomos jantar. Mais creme de
Chantilly e mingau de milho verde! Eu preferi comer algumas
frutas e beber um copo de leite. O professor Thompson não
apareceu. Às dez e meia da noite, fomos nos deitar.
Outro dia nasceu e tudo continuou como dantes. Missa,
trabalho, passeio, hidromel e muito creme de Chantilly. Se não
fosse as frutas passaríamos fome, pois nenhum de nós
suportava mais as iguarias do Valhala. O professor Thompson

80
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

continuava metido no palácio do governo, confraternizando


com as valquírias. Fomos dormir às nove horas da noite, e
acordamos às cinco da manhã. Infelizmente, ainda faltavam
três horas para a missa; não tínhamos nada para fazer durante
esse espaço de tempo, a não ser conversar em voz baixa,
pondo em dúvida o valor da nossa felicidade e a perfeição do
“paraíso” em que tínhamos ido parar.
Nessa tarde, quando caminhávamos pelo bosque, fomos
surpreendidos com a aparição do professor Thompson. De
repente, ele saiu de trás do tronco de um castanheiro e dirigiu-
se para nós, sorrindo amistosamente. Usava a mesma túnica
branca dos outros “Homens do Norte”.
— Hello, my boys! Estar gostando de passeia, am? Não
pensar mais em ir embora, não é mesma? Aqui vocês ter tudo
para ser feliz!
— Nem tudo — disse eu. — Estamos conformados, mas
não convencidos. A felicidade deve ser outra coisa, diferente da
monotonia. Agora mesmo Príncipe estava me dizendo o mesmo
que eu pensava professor. Estamos com saudades do ginásio e
das aulas de Matemática.
— Estar com saudades de estudo? — espantou-se o
arqueólogo.
— Sim, professor — acrescentou Cidinha, com sua voz
doce e musical! — Eu não dava valor ao colégio, até que me
afastei dele. Fico gelada só ao pensar que não vou mais assistir
às aulas de meus mestres, nem me encontrar outra vez com as
minhas colegas! Aqui não tem ginásio, tem?
— Não ter — respondeu o norte-americano. — Vocês
aprender um ofício e não precisar estudar muito! Só precisar
saber aquilo que ser útil à comunidade. No palácio ter velhas
alfarrábias, mas só as valquírias sabem ler. Muita cultura desvia
o povo do trabalha e divertimenta! Vocês devem apenas
trabalhar e se divertir! Essa ser a lei de Deus, em Valhala!

81
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— Tou com saudades de Copa — choramingou Pavio


Apagado. — Lá eu era mais feliz. A gente estudava, lia,
brincava na praia, fazia uma pá de coisas que não faz aqui.
Também tou com saudades dos coques que mamãe me dava
na cabeça quando eu aprontava alguma. Agora, não tenho meu
velho, nem minha mãe para me bater e me fazer carinhos! A
gente se sente muito triste, professor!
— Muito triste — confirmou Carlão. — Aqui não acontece
nada! É um aperreio danado! Se eu pudesse, dormia o dia e a
noite toda! É muito chato acordar para ser feliz desse jeito!
Viva a faxina que eu fazia na academia de caratê!
— Vocês não dever reclamar — censurou o professor. —
Com o tempo, vocês se acostumar a gozar os prazeres de
Valhala e esquecer os desgraças de nossa civilização. Aqui ser o
paraíso e, lá fora, ser o inferna! Repetir isso, todas as manhãs,
depois do missa, até vocês se convencerem que é verdade!
— Cadê a runa que o senhor encontrou? — disse
Príncipe, mudando de conversa. — Eu gostaria de traduzir o
futhark, se é que o senhor ainda não o traduziu.
— Oh, yes! Ainda não — confessou o arqueólogo. — Eu
já me desinteressar de passado. Este pedra não ter o menor
valor. O Arqueologia ser uma bobagem, que não fazer ninguém
feliz.
E tirou de dentro da túnica a pedra com os rabiscos,
entregando-a a Príncipe. O gordo examinou-a, de um lado e
outro, e meteu-a no bolso do paletó. Instantes depois o
professor se despediu, dizendo que tinha um encontro marcado
com Ómria, e sumiu pelo meio dos castanheiros. Olhamos para
todos os lados e não vimos ninguém na paquera. Então,
Príncipe tirou do bolso a pedra rúnica e estendeu-a para Pavio
Apagado.
— Guarde isso — recomendou. — É uma prova de que os
vikings estiveram na Amazônia. Quando chegarmos ao Rio,

82
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

esta pedra vai dar o que falar! É um precioso achado


arqueológico!
Pavio olhou para a pedra com respeito e enfiou-o no
bolso do blusão.
— Operação Vikings da Amazônia! — tornou Príncipe a
meia voz.
— Operação Vikings da Amazônia! — repetimos em coro.
— Vai ser esta noite — continuou o gordo. — Esta noite,
vamos dar o fora daqui!
— Você bolou um plano para a fuga? — indaguei, trêmulo
de emoção. — Eu confesso que não bolei nenhum. Não
podemos escapar pelo pântano, é claro.
— É claro. Aquele charco é uma armadilha. Vamos subir
no balão!
— No balão? — assustou-se Cidinha. — Sem o “aeronauta
de montgolfiera”?
— Eu sei dirigir um aeróstato — afirmou Príncipe,
estufando o peito. — Isto é, penso que sei... Durante a viagem,
sobre a floresta, observei todos os macetes de monsieur
François e vi que eram iguaizinhos àqueles que a gente
aprende nos livros. Não tem segredo. Mas vou precisar de um
ajudante, para controlar o fogo.
— Eu tomo conta do gás — ofereceu-se Carlão. —
Também vi que não tem segredo. É só controlar as válvulas dos
bujões. Mais fogo, mais ar quente... e o balão sobe; menos
fogo, menos ar quente... e o balão desce. Deixa comigo que eu
garanto!
— Já estou vendo tudo! — gemeu Cidinha. — Vamos cair
no meio da Selva Amazônica, justamente na região onde ela é
mais densa e impenetrável! Ai, meu Deus! O que será de nós?
— Muito bem — disse eu, virando-me para Príncipe. — Se
o professor Thompson gosta tanto do paraíso viking, ele que

83
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

fique aqui, comendo creme de Chantilly e mingau de milho


verde! Dá para agir esta noite, Príncipe?
— Dá — respondeu a nossa “enciclopédia ambulante”. —
Mas temos que distrair as duas sentinelas, enquanto enchemos
o envelope.
— É aí que entra Cidinha — sugeri, virando-me para a
minha namorada. — Você não disse que aquele mamluk sorriu
para você?
— Entendo — concordou ela, procurando firmar a voz. —
Deixa comigo, Lula! Você não é mais corajoso do que eu! Eu
me encarrego de distrair os índios, enquanto vocês preparam o
aeróstato. Mas vê lá, hem? Não entrem na barquinha antes de
eu chegar! Aquele treco pode subir e me deixar aqui embaixo!
Prefiro morrer de fome no meio do inferno verde!
— Não tem perigo — afiancei, dando uma risada. — Eu
nunca iria embora deixando você comendo creme de Chantilly
no almoço e no jantar! Prometo que só vou entrar na cesta
depois que você já estiver lá dentro!
— O maior barato! — concluiu Pavio Apagado. — Vamos
dar outro passeio de arostrato! Eu também quero controlar o
gás.
O plano de Príncipe nos deu tantas esperanças de
libertação que começamos a cantar. Não podia haver nada que
nos deixasse mais felizes do que fugir do “Paraíso”.

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Capítulo V – O Princípio da Fuga

Nossa alegria era tão grande que jantamos com apetite,


bebemos um litro de hidromel e devoramos seis potes de
creme de Chantilly. Depois, ficamos à espera da melhor hora
para agir. O professor Thompson não apareceu e demos graças
a Deus por isso. Mas, de repente, ouvimos um trovão e a chuva
começou a cair com violência! Era uma água grossa e morna,
que escorria do céu como uma cascata!
— Ai, meu Deus! — gemeu Cidinha. — O balão não vai
subir, com uma chuvarada dessas!
— Chove demais, aqui na Amazônia — disse Príncipe,
preocupado. — Já choveu um pouco hoje à tarde, e pensei que
as nuvens estivessem vazias... Vamos rezar para que seja uma
chuva bem amazonense, que é forte mas não demora muito.
A chuvarada durou exatamente três horas; só às dez e
meia da noite é que as folhagens, que cobriam a cidadela
viking deixaram de pingar água.
— A hora é essa, turma! — alertou Príncipe. — Vamos
para o extremo sul da “távola redonda”! Cidinha já sabe o que
deve fazer!
— Deixa comigo! — disse a garota, com os cabelos
amarelos mais espetados do que nunca.
Saímos cautelosamente da nossa skala e pesquisamos a
rua principal da aldeia. Ninguém à vista. Assumi o comando da
expedição e fiz um gesto, para que os meus companheiros me
seguissem.
— Estamos levando tudo o que precisamos? — indagou
Carlão.
— Tudo — respondi. — Não me agrada levar nenhum
objeto de ouro dos vikings, nem mesmo como souvenir. Já
basta a pedra rúnica que Príncipe deu para Pavio. Vamos!

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Seguimos rapidamente pela rua, calçada com grandes


lajes irregulares, e atingimos o primeiro bosque de
castanheiros. Ainda ninguém à vista; durante e depois da
chuva, os moradores da cidadela deviam ter se metido em suas
casas, encostando as portas e as janelas.
— É por aqui! — comandei, procurando a trilha do
bosque, já conhecida.
Durante quinze minutos marchamos pelo meio das
árvores altas e copadas, até desembocarmos na clareira onde
se erguia a estranha pirâmide asteca. Aí, olhamos para o céu e
vimos a Lua e as estrelas, brilhando contra o fundo azul-
marinho. Depois da chuva, que lavara a túnica do céu, estava
uma bela noite de luar. O vento, morno e constante, também
não era muito forte e soprava na direção nordeste.
— Excelente tempo para subir num balão — comentou
Príncipe. — O vento vai nos levar, direitinho, para o rio Jacumã!
Espero que os índios não tenham rasgado o mapa do professor
Thompson. A bússola da barquinha pode ter sido inutilizada,
mas tenho uma outra no bolso. Nunca viajo para o Amazonas
sem a minha lanterna e a minha bússola.
Atravessamos a clareira e continuamos a andar,
apressadamente, pelo meio do segundo bosque de
castanheiros e sumaumeiras. Mais quinze minutos e chegamos
ao fim da floresta. Diante de nós estendia-se o trecho do platô
pelado, coberto apenas de terra seca e cascalho. Agachamo-
nos atrás de umas pedras e observamos o local. Os dois índios
altos e parrudos que vigiavam o balão vazio eram os mesmos.
Fiz um sinal a Cidinha e ela se destacou do nosso grupinho,
marchando corajosamente ao encontro dos selvagens armados
com azagaias amarelas.
— Deus nos ajude! — murmurei, fervorosamente. — Se
Cidinha conseguir afastar as sentinelas, quando chegarmos ao

86
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Rio vou acender uma vela para Santa Bárbara! Desta vez
acendo mesmo!
— E eu — acrescentou Pavio — vou acender outra para
Iansã, o que vem a dar no mesmo. Príncipe falou que Iansã é
Santa Bárbara disfarçada...
Ficamos na paquera, atrás das pedras, e vimos Cidinha
trocar algumas palavras com os índios, apontando para o
bosque. Daí a pouco os guardas agitaram as azagaias e
partiram, junto com ela, para o meio das árvores. Logo que os
três desapareceram, fiz um sinal aos meus companheiros e
corri para o local, onde estava estendido o balão azul e branco.
Tínhamos pouco tempo para enchê-lo e fazê-lo subir.
O bojo de náilon estava encharcado de água, pois
apanhara todas as chuvas dos últimos dias, mas o tecido era
impermeável. Carlão e Pavio Apagado se encarregaram de
sacudir a boca do balão, enquanto eu e Príncipe cuidávamos da
barquinha. Felizmente não havia nada quebrado. Príncipe
acendeu os tubos de saída do gás e o ar quente começou a
inflar o “envelope”. Entretanto, eu punha em ordem os
instrumentos de bordo e estendia o mapa sobre o painel. O
professor Thompson tinha feito uma cruz, a lápis, no local em
que se encontrava a “távola redonda”, a sudoeste da floresta
que nos separava do rio Uaupés.
Durante uns vinte minutos o ar quente entrou pela boca
do balão, arredondando o gigantesco bojo de náilon. Pouco a
pouco, o globo azul e branco, que se tornara perfeitamente
redondo, foi subindo no espaço, subindo, subindo... A cesta de
vime, puxada pelos fios metálicos, ficou em pé e também
acabou por subir alguns centímetros, destacando-se do solo.
Mas estava presa a uma pedra pela corda da “âncora”, e logo
se imobilizou.
— Tudo legal! — disse Príncipe, saltando para dentro da
barquinha. — Pode ir chamar Cidinha, Lula! Carlão deslocará a

87
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

âncora, depois que estivermos todos a bordo! Depressa com


isso, tá legal? O vento está de boa feição!
Fiz uma continência e saí correndo para o bosque. Não
tardei a ver Cidinha e os dois índios. Estavam sentados numa
pequena clareira, fazendo gestos uns para os outros. A
distância era de vinte metros, mais ou menos. Levei dois dedos
à boca e soltei aquele assobio. Acho que até os bichos noturnos
da floresta deviam ter se assustado! Cidinha pulou do lugar em
que estava e disparou numa carreira maluca, na minha direção.
Agarrei-a pela mãozinha e continuamos a correr, juntos, para a
saída do bosque. Não olhei para trás, para não perder tempo,
mas supus que os índios estivessem correndo atrás de nós.
— Ai, meu Deus!
— Coragem! Estamos perto! O que foi que você fez para
distrair os tucunas?
— Fiz uma porção de mágicas de salão. Sou uma boa
prestidigitadora. Só foi pena que eu não tivesse trazido um
baralho de cartas... Ai, meu Deus!
Ficamos livres das árvores do bosque e logo vimos o
enorme balão azul e branco, suspenso no espaço, no meio do
platô careca. Cidinha era meio mole e tive vontade de pegá-la
no colo, mas isso ainda nos atrasaria mais. Por sorte os índios
deviam ter vacilado um pouco, antes de saírem em nossa
perseguição, e ainda estavam longe. Corremos pela planície de
cascalho e chegamos esbaforidos ao local onde estava a
barquinha pendurada. Príncipe e Pavio já se encontravam
dentro dela, controlando as válvulas dos bujões de gás.
— Depressa! — gritou o gordo. — Todo mundo a bordo!
Vamos zarpar!
Ajudei Cidinha a pular por cima da borda da cesta e pulei
atrás dela. Carlão ainda estava em terra, agarrado à corda da
“âncora”.
— Solta! — ordenou Príncipe.

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Os dois índios altos e parrudos vinham saindo, nesse


momento, do bosque. Ao verem o balão, puseram-se a ulular
como lobos.
— Solta! — repetiu Príncipe, agoniado.
Carlão se esforçava para livrar a “âncora” da pedra mas a
corda, retesada, não cedia aos seus puxões.
— Olhali! — exclamou Cidinha, apavorada. — Vejam
quem vem daquele lado!
Olhei para a saída do bosque, próxima do despenhadeiro,
e vi um grupo de pessoas que corria também ao nosso
encontro. Entre elas vinha o professor Thompson e Ómria,
ambos vestidos com camisolões de linho branco. As outras
pessoas eram o Kêptâm Lâitâm, com sua máscara de caveira e
seu capacete de chifres, e alguns índios tucunas, armados com
arcos e flechas. Debrucei-me sobre a borda da cesta de vime e
gritei para Carlão:
— Larga! Venha para bordo, Carlão! Não podemos perder
mais tempo!
Nesse instante, partiu uma flecha, do grupo de índios, e
foi se espetar no vime da barquinha! Carlão largou a corda e
pulou agilmente para dentro da cesta. Agora, estávamos todos
a bordo. Tirei o meu canivete do bolso, abri-o nervosamente e
comecei a cortar o cabo que prendia o balão à pedra do platô.
Mas a corda era tão grossa e resistente que pensei que não ia
conseguir cortá-la.
— Parar! — gritou o professor Thompson, que se
aproximava, correndo, à frente do Kêptâm e dos índios. — Não
subir! Não subir!
— Boltem! Boltem! — gritava, também, Ómria, que corria
logo atrás do arqueólogo norte-americano.
— Eles vão nos pegar! — choramingou Pavio Apagado,
atirando qualquer coisa em cima dos nossos perseguidores.

89
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Por um momento, julguei que a corda não cedesse


mesmo e fôssemos apanhados pelos “Homens do Norte”; mas,
de repente, o cabo estalou e se partiu ao meio! Meu canivete
tem lâmina Solingen e é capaz de cortar até um cano de
chumbo! Que alívio! O globo azul e branco subiu no ar, dando
um salto violento, e a barquinha subiu também, com a
velocidade de um elevador desenfreado. Quando os índios, o
Kêptâm Lâitâm, o professor Thompson e a morena Ómria
chegaram ao local da largada, o balão já estava a trinta metros
de altura, boiando no espaço e arrastando a barquinha com
toda a Turma do Posto Quatro. Àquela distância, as flechas dos
selvagens já não podiam atingir o globo de náilon e se perdiam
no ar, ao redor da cesta de vime.
— Deus seja louvado! — bradou Cidinha, abraçando-me
com força.
— Louvado seja! — completei, dando-lhe um beijo na
bochecha.
Aquilo, sim, é que era o Paraíso!

90
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Capítulo VI – O Fim da Fuga

O balão continuou a subir, por cima da “távola redonda”,


até que o enorme platô rochoso ficou pequenino, lá embaixo,
no meio do igapó e da floresta tropical. Aí, Príncipe ordenou a
Carlão:
— Diminua o fogo! Vamos aproveitar esta corrente de ar!
Um vento leve e morno impelia o balão para o meio da
floresta impenetrável, feita de copas de árvores verdes coladas
umas às outras. Consultei a bússola de bordo e vi que
estávamos voando, lentamente, na direção nordeste. Aquele
era o rumo do rio Jacumã, afluente do Uaupés.
Carlão mexeu nas válvulas dos bujões de gás e o fogo
dos queimadores diminuiu, estabilizando o balão a uma altitude
de 500 metros. A noite estava clara, enluarada, e podíamos ver
aquele oceano de ondas de árvores, de um preto-esverdeado,
estendido debaixo de nós. O vento continuava a empurrar o
balão para o nordeste, a uma velocidade de 18 quilômetros por
hora. Eram onze e meia quando partimos da “távola redonda”:
à meia-noite, Cidinha bocejou e disse que queria dormir.
Abrimos espaço, no interior da cesta de vime, e ela se deitou,
com as pernas encolhidas. Mas, como o lugar era apertado, só
podia dormir um tripulante de cada vez. Pavio Apagado
choramingou, dizendo que também estava com sono, mas eu,
Príncipe e Carlão aguentamos firme. Aliás, os novos
“aeronautas de montgolfiera” não podiam dormir em serviço...
Durante duas horas, o vento nos tocou para o nordeste
mas, por volta das duas da madrugada, sentimos uma
mudança na atmosfera e o balão começou a dar uma volta,
tomando rumo norte, depois, o rumo noroeste, depois, o rumo
oeste e, por fim, o rumo sudoeste! Príncipe mandava Carlão
aumentar e diminuir o gás, mas não adiantava: contra a nossa

91
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

vontade, o diabo do balão regressava, lentamente, ao ponto de


partida! Que azar! Estávamos voltando à “távola redonda”!
Mais duas horas se passaram. Pus o binoculo de bordo
nos olhos e pesquisei a floresta, abaixo de nós. Estávamos
boiando no espaço, a uma altura de 300 metros, e pude ver o
gigantesco platô rochoso que parecia se aproximar
vagarosamente de nós! Aí vinham o Kêptâm Lêitâm e seus
guerreiros tucunas!
— Menos fogo! — ordenou Príncipe, agoniado. — Quem
sabe a corrente de ar, abaixo de nós, é mais camarada do que
as outras e nos leva, de novo, para nordeste? Menos fogo,
Carlão! Menos fogo, estou dizendo!
Carlão diminuiu as chamas dos queimadores e o balão
desceu um pouco, já em cima da “távola redonda”,
estabilizando-se a uns 150 metros de altura. Pude observar
tudo muito bem e, devido à posição da Lua, até percebi a
sombra da pirâmide, projetada na pequena clareira pedregosa.
Mas não vi ninguém. A cidadela viking também não era visível
do alto; a metade norte da montanha, onde ela se encontrava,
parecia constituída apenas de folhagens.
— Ora graças! — exalou Príncipe, olhando para a bússola.
— Estamos virando de bordo! O balão pegou uma nova
corrente de ar e vai voltar para a floresta que nos separa do rio
Jacumã!
Foi o que aconteceu. Uma hora e meia depois, quando
uma leve claridade no horizonte anunciava o nascer do Sol, já
estávamos voando, outra vez, no rumo norte, por cima do
edredom verde formado pelas copas das árvores. Como Cidinha
não acordava, Pavio tinha se deitado ao lado dela, quase
atrapalhando os movimentos de Príncipe e Carlão. Eu me sentei
num canto da cesta e dormitei um pouquinho, mas não cheguei
a dormir. Os dois pilotos não pregaram olho o tempo todo.

92
Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Pela manhã, às seis horas, Cidinha acordou e eu tomei o


lugar dela, passando por um sono ligeiro. Depois, Carlão
acordou Pavio e tomou o lugar dele. Príncipe dormiu também,
depois que eu lhe cedi o meu lugar. Por sorte tínhamos água
potável e víveres a bordo. Aquecemos as latas de conservas no
fogo dos queimadores e pudemos almoçar e jantar.
A longa viagem de volta levou dois dias e três noites. Não
vimos outra coisa, durante este espaço de tempo, a não ser o
céu azul e as copas verdes das árvores. De quatro em quatro
horas, chovia, mas o balão suportava bem o aguaceiro sem
descer muito, pois Príncipe mandava Carlão aumentar o gás.
Mas, na manhã de quarta-feira, 20 de janeiro, aconteceu um
imprevisto. Nessa hora, estávamos todos acordados e
gozávamos alegremente o prazer daquele passeio pelo teto da
Amazônia.
— Mais fogo! — ordenou Príncipe, ao notar que o balão
descia lentamente para a floresta impenetrável.
— Já abri as válvulas todinhas! — respondeu Carlão,
empalidecendo.
Corri para olhar o medidor de combustível e vi que a
agulha marcava zero.
— Ai, meu Deus! — gemeu Cidinha olhando para o
manômetro, por cima do meu ombro. — O gás acabou! Agora
só podemos descer!
Príncipe também ficou branco como um copo de leite.
— Essa não! Já não temos comida, nem água, e agora
também não temos propano! Isto é o fim, turma!
Pus o binóculo nos olhos e vi que o balão descia
vagarosamente, na direção de um rio largo e barrento, que
cortava a floresta de árvores gigantescas. Ninguém tinha visto
aquele rio. Seria o Jacumã?
— Estamos indo ao encontro de um rio! — avisei. — Será
que esta barquinha é uma barquinha mesmo?

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— De jeito nenhum! — gritou Príncipe. — Se a cesta


pousar na água, vai afundar como um prego! Vou abrir a saída
de ar quente para ver se descemos, antes de chegarmos ao rio!
Dito e feito. Ele puxou uma cordinha e uma seção do
globo de náilon se entreabriu, deixando escapar um jato de
fumaça. Imediatamente, a enorme bola azul e branca perdeu
altitude e baixou sobre a floresta que marginava o rio.
Apavorados, vimos as copas das árvores crescerem e virem ao
nosso encontro, como se quisessem se chocar com a
barquinha.
— Segurem-se bem! — advertiu Príncipe.
Nesse mesmo momento, o fundo da cesta raspou a copa
de uma palmeira buriti e formos sacudidos de um lado para o
outro. Mas o balão ainda voou alguns metros, dando cabeçadas
e arrastando a barquinha, e acabamos por descer, aos saltos,
numa estreita faixa de terra vermelha, à margem direita do rio
largo e caudaloso. A barquinha bateu na terra mole e foi
arrastada ao longo do rio. Antes que algum golpe de vento nos
levasse para dentro d’água, Príncipe puxou a cordinha do
maneuvering, abrindo completamente a saída de ar quente, e o
enorme globo de náilon começou a murchar, perdendo a força
que o mantinha no ar. Como não havia vento, o globo azul e
branco deitou-se de lado, enquanto murchava, e a cesta de
vime tombou, despejando toda a Turma do Posto Quatro na
estreita faixa de terra da margem do rio.
Ninguém se machucou; apenas Cidinha é que arranhou
um joelho. Logo nos levantamos e corremos a agarrar a
barquinha, para que não fosse levada para dentro d’água. O
balão continuou a murchar e, de repente, soltou um clarão,
seguido por uma explosão violenta! Príncipe tinha se esquecido
de mandar Carlão apagar o fogo dos queimadores! Num minuto
o “envelope” de náilon foi consumido inteiramente pelas
chamas! Só a barquinha escapou do incêndio.

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— E agora? — gemeu Cidinha. — Não podemos sair


daqui! Estamos perdidos no meio da floresta mais densa do
mundo! Não temos água nem comida, para sobreviver! Será
que valeu a pena fugir do “Paraíso”?
Nem eu nem Príncipe tínhamos um plano para escapar do
inferno verde. Desanimados, sentamo-nos na terra vermelha, à
margem do rio, e pedimos a Deus que nos ajudasse. Ora, como
somos meninos legais, estudiosos e bem-intencionados, é
lógico que Deus nos ajudou.
— Ei! — gritou uma voz de homem, ainda não sei de
onde. — Quem são vosmicês?
Levamos o maior susto e ficamos de pé olhando para
todos os lados. A floresta continuava quieta, cheia de pássaros
cantando.
— Olhali! — exclamou Cidinha. — Aí vem nosso Senhor,
andando sobre as águas!
Que heresia! Era apenas um pescador, de pé, em cima de
uma jangada. O homem enfiou uma longa vara na água
barrenta do rio e fez a balsa encostar à margem. Começamos a
falar todos ao mesmo tempo, contando a nossa aventura, até
que o pescador pediu que falasse um de cada vez. Então, eu
contei a nossa história. E Príncipe acrescentou que, se o
homem nos levasse de jangada até Taracuá, onde estavam
nossos parentes, o pai dele lhe pagaria mil cruzeiros.
— Não aquerdito em nada do que vosmicês tão contado
— rosnou o pescador, que era magro, cabeludo, desdentado e
tinha a barba por fazer. — Essa aldeia cheia de ouro deve ser
outra lenda do Amazonas! Este rio não é o Jacumã, é o Tiquié,
que vai dar no Jacumã. Não aquerdito nessa história, seus
moleques endiabrados, mas porém, se o pai de vosmicês me
pagar meio milhão, eu levo vosmicês inté em Taracuá. Podem
assubir para o meu barco.

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Meio milhão eram 500 mil cruzeiros. Achamos o preço


razoável e pulamos, de pés juntos, para cima da balsa. E esta
afundou que foi uma beleza!

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

EPÍLOGO

Felizmente sabíamos nadar e o pescador, que se agarrara


à jangada até que ela flutuou outra vez, conseguiu nos pescar
com a sua vara. Depois do banho, aprendemos a entrar numa
jangada: devagarzinho, pé ante pé, sem fazer onda...
— Esperem um pouco! — exclamou Príncipe, quando já
íamos nos afastar da margem do rio. — Vamos levar a cesta do
balão para Taracuá! Ela tem alguns instrumentos de valor!
A barquinha era leve e não foi difícil pô-la em cima da
balsa, depois de livrá-la dos bujões de gás vazios. Só então
pedimos ao pescador que tocasse a sua embarcação.
Não vou perdeu tempo contando como foi a viagem de
volta para Taracuá, mesmo porque não aconteceu mais
nenhum episódio digno de registro. Descemos o rio Tiquié
durante um dia e meio, entramos no Jacumã e continuamos a
descer a correnteza, durante outro dia e meio, até chegarmos
ao Uaupés. Tudo isso levou três dias, durante os quais só
comemos o peixe que o pescador apanhava em sua rede e só
bebemos a água barrenta do rio, que Cidinha filtrava num
lenço. Afinal, na manhã de sábado, 23 de janeiro, chegamos
sãos e salvos à cidadezinha de Taracuá. Tinham se passado
apenas onze dias, desde a nossa partida no balão do professor
Thompson, mas parecia ter passado onze séculos! Vocês já
imaginam como foi que encontramos Mr. Mattews... O pai de
Príncipe, que fora mordido pelas pulgas durante esses dias
todos, estava uma fera!
— Isso se faz?! — esbravejou ele, quando nos viu chegar,
sujos e rasgados, ao hotelzinho da localidade. — Que
aconteceu? Faz quase quinze dias que vocês partiram, para dar
uma voltinha de balão, e só agora aparecem?! Onde estão o
professor Thompson e monsieur François? O que foi que vocês

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

aprontaram, seus peraltas? Já comuniquei o desaparecimento


de vocês à polícia, mas não adiantou! Aqui, neste fim-de-
mundo, ninguém toma providências! Ninguém quer se arriscar,
no sertão! Pensei que os índios tivessem comido vocês!
Esperamos que ele se acalmasse, pedimos-lhe que
pagasse os quinhentos mil cruzeiros ao pescador que nos
trouxera do “inferno verde”, e fomos almoçar. Estávamos
mortos de fome. Enquanto comíamos, Príncipe relatou toda a
volta, na jangada do pescador, depois da incrível aventura na
“távola redonda”. Quando falamos no afogamento do piloto
francês, no pântano da morte, a Srª Mattews quase teve um
chilique. Mas o pai de Príncipe ouviu tudo sem piscar os olhos
azuis e desconfiados.
— Por que vocês não contam a verdade? — rosnou ele,
quando Príncipe acabou de falar. — Não é preciso inventar essa
história maluca, para justificar o acidente com o balão! Vocês
são uns meninos muito imaginativos, mas não exagerem! Onde
se viu uma cidadela viking em plena selva do Amazonas?
Ninguém engole essa, seus imprudentes! Vocês caíram mais foi
numa taba indígena... e, agora, estão criando essa lenda das
valquírias e do guerreiro escandinavo com chifres de boi!
Contem a verdade, vamos! Eram índios, não eram?
— Não, senhor — disse eu. — São homens brancos, que
vivem num platô, isolados do resto do mundo, e ainda mantêm
os hábitos de seus antepassados! Não garanto que eles sejam
vikings, nem que aquela aldeia seja o Valhala, mas não são
índios brasileiros, de jeito nenhum! O professor Thompson ficou
na cidadela e só ele, que é arqueólogo, poderia dizer...
— São vikings! — afirmou Príncipe, vermelho como um
tomate. — Os “Homens do Norte” descobriram o Brasil antes
de Cabral! E nós podemos provar isso, papai! Trouxemos uma
pedra rúnica, que prova a existência dos vikings na Amazônia!
Mostre a pedra para ele, Pavio!

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

Pavio Apagado, que estava comendo ovos de tartaruga,


engasgou-se com a farofa e teve um acesso de tosse. Depois,
fez uma cara de bobo e confessou:
— A pedra? Hum... Não tenho mais ela, não. Eu joguei
aquela pedra em cima dos índios, quando eles queriam nos
pegar!
Foi aí que me lembrei de que, efetivamente, na obra da
fuga, o moleque jogara qualquer coisa em cima dos nossos
perseguidores! A falta daquela prova punha em dúvida todas as
nossas afirmações. Nem Mr. Mattews, nem a mulher dele, nem
ninguém acreditou em nós. Aposto que vocês também não
acreditam.
No dia seguinte, regressamos a Manaus, levando a cesta
do balão do professor Thompson, e Mr. Mattews contou às
autoridades a história de nossa viagem, dizendo que o
Montgolfier se incendiara e o professor Thompson estava
perdido na selva, tal como se perdera o Major Fawcett, em
1925. Mas não disse uma palavra sobre a cidadela viking, pois
não queria passar por mentiroso...
Voltamos para o Rio alguns dias depois. Acendi uma vela
a Santa Bárbara, conforme tinha prometido, e voltei aos
estudos, feliz por estar livre do paraíso e do creme de Chantilly.
Na sexta-feira seguinte à nossa chegada a Copacabana,
quando nos reunimos na garagem do Edifício Mattews,
finalmente, Príncipe matou a charada.
— Turma — disse ele, afogueado, depois de descer a
escada da garagem — nós fomos enganados pelas aparências,
na Operação Vikings da Amazônia! Na verdade, não estivemos
numa cidadela escandinava coisa nenhuma! O professor
Thompson se enganou e nos enganou também! Aquela pedra
rúnica era uma pedra comum, com alguns riscos que parecia o
futhark, mas não queriam dizer nada!
— Como foi que você descobriu isso? — perguntei.

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

— Então, onde foi que estivemos? — quis saber Cidinha,


com os cabelos amarelos espetados feito um porco-espinho.
— Estivemos num arraial português do século XVII! —
afirmou o gordo, botando sua banca. — Acabei de confirmar as
minhas suspeitas! Tudo combina, turma! Aqueles homens
brancos, que encontramos na Amazônia, são descendentes de
colonos lusitanos que se instalaram na selva, em 1637, e ali
ficaram morando!
— Como é que você sabe? — insisti.
— Nesse ano de 1637 — relatou Príncipe — um tal Pedro
Teixeira partiu de Manaus, com uma grande expedição, para
explorar o Amazonas. Ele subiu o rio até Iquitos, no Peru e, na
volta, tomou posse da terra, em nome do Rei de Portugal. Mas
nem todos os expedicionários voltaram para Manaus. Encontrei
um livro que fala num grupo de colonos transmontanos e
minhotos, compostos por vinte e dois homens e onze mulheres,
que teriam se separado da “entrada” de Pedro Teixeira e
afundado no mato, para fugir aos vícios de nossa civilização.
Esse grupo era chefiado pelo Padre Henrique Miudinho, um
jesuíta avançado, que sonhava com a criação de uma colônia
democrática na Amazônia. Os nossos “vikings” não passam de
descendentes desses minhotos e transmontanos, que
continuam a viver como se estivessem na Idade Média!
— É mesmo! — exclamou Cidinha, deslumbrada. — Só
pode ser isso turma! Foi o sotaque deles que nos enrolou! Na
verdade, eles falam português... o português castiço do século
XVII!
— O português do Minho e de Trás-os-Montes —
emendou Príncipe. — “Kêptâm Lâitâm” quer dizer Capitão
Leitão... “Axâf dugubârn” quer dixer a chefe do governo...
“Xaim” quer dizer sim e “nam” quer dizer não...
— “Srtam” quer dizer sertão — continuei empolgado. —
“Bams” quer dizer vamos, “xants” quer dizer gentes, “miúds”

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Operação Vikings da Amazônia – Luiz de Santiago

quer dizer miúdos, ou crianças, “boltem” quer dizer voltem, e


“mamluk” quer dizer mameluco, ou mestiço de índio e branco...
— E Ómria? — indagou Cidinha.
— Ó Maria — respondi, dando uma risada. — E “amana”
quer dizer isso mesmo: a mana, ou seja, a irmã da chefe do
governo. O nome dela era Maria. Assim como o nome daquele
velho não era “Xoisa”, era Souza. Os portugueses do Norte,
costumam trocar o “v” pelo “b” e o “s” pelo “x”. Logo, eles não
são vikings, nem aqui nem na China: são descendentes dos
minhotos e transmontanos! Mas não deixam de ser “Ómans
Dunorte”... do Norte de Portugal!
Estava encerrada e esclarecida, a Operação Vikings da
Amazônia. Pode ser que os piratas escandinavos tenham
visitado a Vineland mas, com toda a certeza, não estavieram na
Bruzundanga...

FIM

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