Você está na página 1de 106

Luiz de Santiago

Operação
Mistério de Cascais

A Turma do Posto 4
Volume 31
2
Operação
Mistério de Cascais

A Turma do Posto 4
Volume 31

Luiz de Santiago
(Hélio do Soveral)

3
S235o Santiago, Luiz de. (1918-2001)

Operação Mistério de Cascais (A Turma do Posto 4:


Volume 31) / Luiz de Santiago (Hélio do Soveral). – Rio
de Janeiro: Ediouro, 1979.
106 p.

1. Literatura Brasileira Infanto-Juvenil. 2. Santiago, Luiz


de. I. Soveral, Hélio do. (1918-2001). II. Título. III. Série.

CDD 808.899282

Índice para catálogo sistemático:


Literatura Infanto-Juvenil
CDD 808.899282

Copyright © 2022
Ediouro

Impresso no Brasil

“Esta obra reproduz costumes, comportamentos,


expressões e falas da época em que foi
publicada.”

4
ÍNDICE

PRIMEIRA PARTE ......................................................................... 7

Capítulo I – A Herança ................................................................ 9

Capítulo II – Tudo Legal .......................................................... 15

Capítulo III – A Viagem............................................................ 21

Capítulo IV – Lisboa................................................................... 27

Capítulo V – O Mistério ............................................................. 35

Capítulo VI – A Moca de Rio Maior ....................................... 41

Capítulo VII – No Local do Crime .......................................... 49

SEGUNDA PARTE ......................................................................... 57

Capítulo I – Os Retornados ..................................................... 59

Capítulo II – A Srª. Mabuto Confessa .................................. 65

Capítulo III – O Verdadeiro Culpado ................................... 73

Capítulo IV – O Beijo da Vitória ............................................. 79

Capítulo V - Coimbra ................................................................. 85

Capítulo VI – A Surpresa da Herança .................................. 95

Epílogo...........................................................................................103

5
PRIMEIRA PARTE
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

8
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Capítulo I – A Herança

Naquele domingo, pela manhã, teve um jogo amistoso,


de futebol de areia, no Posto Quatro, entre o Atlântica F. C. e o
Olímpico A. C. Era o dia 4 de julho e desde a quarta-feira que
nós estávamos gozando as férias de meio de ano. A equipe do
Atlântica era constituída pelos nossos maiores craques da
pelota: Mário Girafa, Brucutu, Carlão, Maroto, Lúcio, Tunico,
eu, Zico, Tarzan, Cisquinho e Pavio Apagado. E o juiz da partida
era Cidinha.
O jogo começou às oito e meia, no campo em frente à
Rua Santa Clara, e acabou às dez horas, quando Pavio Apagado
fez o sexto gol do Atlântica, contra três do Olímpico. Pavio é o
melhor ponta-esquerda de Copacabana mas, aquele sexto gol,
estava realmente num impedimento clamoroso que o juiz não
marcou... Depois disso tivemos que proteger Cidinha das
agressões da turma da Siqueira Campos, que não se
conformava com a derrota. Mas afinal, conseguimos voltar para
o Edificio Mattews, do outro lado da Avenida Atlântica, sem
sofrer nenhum arranhão. Apenas o nosso meia-direita, Zico,
rasgou a camisa vermelha e branca, mas foi para se soltar das
mãos do meia-esquerda do Olímpico, King-Kong, que estava
uma fera e queria lhe comer uma orelha.
Príncipe não sabe jogar futebol, mas está sempre
presente às exibições do Atlântica, porque é uma espécie de
mascote do nosso time. Dizem que o gorducho dá sorte. Eu
não acredito nessas coisas, mas pode ser que dê mesmo. Se
não dá sorte, pelo menos dá segurança ao tipo, pois é quem
paga as despesas extraordinárias. Como vocês sabem, Príncipe
chama-se Antônio Mattews e é filho de Mr. Mattews, o dono do
Edifício Mattews, que tem dinheiro às pampas. A gente chama
Príncipe de Príncipe porque ele é louro, gorducho, usa óculos

9
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

de aros de ouro e veste sempre um terninho com gravata


borboleta.
Logo que descemos à garagem do Edifício Mattews,
Cidinha entregou o apito a Pavio Apagado e disse:
– Não foi mole, turma! Se eu não segurasse a linha do
Olímpico, apitando aqueles impedimentos que não havia, vocês
tinham entrado bem! Mas Mário Girafa estava cem por cento,
nas defesas pelo alto! Palmas para ele!
Aplaudimos o nosso arqueiro, que agradeceu com as
mãos apertadas no alto da cabeça. Em seguida, o time
entregou as camisas a Pavio Apagado e se dispersou. Apenas a
Turma do Posto Quatro permaneceu na garagem. Pavio foi
guardar o material esportivo num armário que havia no fundo
da garagem, e voltou para junto de nós, vestindo o seu blusão
de linha branco, muito bem lavado e passado a ferro, porque a
mãe dele é lavadeira. O verdadeiro nome de Pavio é Francisco
da Conceição mas, como só tem onze anos de idade e é um
pretinho magro e torcido para frente, feito o pavio de uma vela
apagada, a gente o apelidou assim. Pode ser que ele não
goste, mas tem que aguentar, pois é o menorzinho da turma e
não adianta chiar. Príncipe e Carlão já têm 16 anos de idade,
eu tenho 15 e Cidinha acabou de fazer 13.
– Ainda é cedo para o almoço – disse eu. – Que é que
vamos fazer agora?
– Diga você – respondeu Príncipe. – Você é o líder da
turma.
Pois é. Desde que criamos a Turma do Posto Quatro, eu
sou o líder, modéstia à parte, porque eles acham que eu sou o
mais esperto de todos. Talvez seja. Príncipe tem mais cultura
do que eu, porque estuda muito e tem explicador particular,
mas não tem a minha audácia; Carlão (Carlos Cavalcanti) é um
cearense parrudo e corajoso, mas um pouco grosso e
ignorante; e Cidinha (Maria Aparecida de Carvalho) é linda,

10
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

com aquele olhão azul, aquelas sardas artísticas e aqueles


cabelos louros espetados feito espiga de milho, mas é muito
frágil e se assusta à toa, o que eu acho uma virtude numa
menina bem-comportada. Por isso, sou o líder da Turma do
Posto Quatro e Cidinha é minha namorada. Só ainda não
ficamos noivos por causa de nossa pouca idade e,
principalmente, porque ela não quer. Se ela quisesse, eu não
ligava para a idade, pois tenho certeza de que dona Nair
aprovaria nosso noivado.
– É uma pena – suspirei, encarando os meus
companheiros, à luz fraca da garagem. – Nesta sexta-feira não
houve Assembleia Geral da Turma do Posto Quatro, porque não
havia nenhuma operação em vista. Ficamos sem nada para
fazer, de útil, neste fim de semana. É uma pena, porque
estamos em férias e podíamos decifrar um mistério qualquer,
aqui no Rio ou em qualquer parte do Brasil. Só voltaremos a ter
aulas daqui a vinte e seis dias.
Príncipe, Cidinha, Carlão e Pavio aprovaram gravemente.
Era uma pena que não houvesse nenhuma operação em vista.
Como vocês sabem, a Turma do Posto Quatro foi criada para se
dedicar a transas úteis, destinadas a concorrer para o bem-
estar, a segurança e a alegria da comunidade. Daí a operação
da semana. Durante cinco dias, nos intervalos dos estudos, a
gente lê jornais, bate papo com os amigos, escura rádio e
assiste televisão e, nas sextas-feiras à noite, reúne-se na
garagem do Mattews, para eleger por votos o problema mais
importante, que deverá ser resolvido no sábado e no domingo
seguintes. Sempre tem sido assim, desde a criação da Turma
do Posto Quatro, e sempre temos decifrado todos os mistérios
e esclarecido todas as dúvidas que afligem a sociedade, quer
no Rio, quer nos outros Estados do nosso querido Brasil!

11
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Mas aquele fim de semana, não havia nenhum “grilo”


para matar! Nem mesmo Príncipe que sabe tudo, tinha uma
sugestão a fazer!
– Tem uns favelados que foram expulsos de seus
barracos – disse Pavio Apagado. – Foi lá no Morro do
Jacarezinho. Uma empresa construtora comprou as terras do
Governo, para construir arranha-céus, e está botando os
pobres pra correr. Eu acho que a gente devia ir lá e evitar essa
covardia! Os pobres também são filhos de Deus!
– Isso é da alçada da Justiça – retrucou Príncipe, antes
que eu dissesse a mesma coisa. – A Turma do Posto Quatro só
deve se meter nos “grilos” quando a Justiça não funciona. E,
nesses casos, os favelados podem apelar para a lei, acho eu.
– Pois sim! – rosnou Pavio. – E quem é que faz as leis?
Continuamos a discutir, sem chegar a uma conclusão. Às
onze horas, Cidinha falou que ia embora, para tomar um banho
e almoçar. Carlão também se mandou. Fomos nos despedindo
e, por fim, fiquei sozinho na garagem. Então, subi ao oitavo
andar do edifício onde ficar o meu apartamento. Príncipe mora
no nono andar, que é o último, e Pavio mora no cochichó de
seu Baltazar, o porteiro, que o pai dele.
Quando entrei em casa, meu velho estava à minha
espera. Mamãe tinha se metido na cozinha, para fazer o
almoço. Papai chama-se Manuel Segundo de Santiago, é
português e gerente de uma confeitaria da Rua Barata Ribeiro.
Ele se chama “Segundo” porque tem dois irmãos, que são os
meus tios: Tio Mané Cotó, dono de uma Colônia de Pesca em
Santa Catarina, e tio Manuel Terceiro que ficou em Portugal, na
granja de meu avô Manuelão, perto da cidade de Viseu.
– Lula – falou meu pai, com voz triste – acabei de receber
uma notícia muito desagradável, de Portugal! Seu avô morreu,
na semana passada, na Quinta da Sucapa, e seu tio Manuel

12
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Terceiro quer que eu vá à santa terrinha resolver o problema


da herança.
– É mesmo? – perguntei, sem saber se devia chorar. – Eu
não conheci o vovô, pois nasci aqui e nunca fui a Portugal... Ele
era muito rico?
Meu velho sacudiu os ombros.
– Nem por isso. Deixou a quinta de Viseu, que produz os
melhores vinhos da região do Dão, e talvez algum dinheiro no
banco... Meu irmão disse, na carta, que eu devo ir a Portugal,
para receber a minha parte da herança. A quinta, está claro,
deve ficar com o Manoel Terceiro, pois ele sempre viveu e
trabalhou ali. Não sei a quanto monta o dinheiro da herança.
Esse dinheiro, provavelmente, será dividido entre nós e seu tio
Manuel Cotó.
– Puxa, papai! – exclamei. – Quem sabe é uma fortuna?
O senhor não pode deixar de ir! Uma herança é uma herança!
– Sim, eu sei – murmurou meu pai, contrariado. – Mas
não posso fazer uma despesa muito grande. E, com esse
depósito que o Governo exige de quem sai do Brasil... Eu
gostaria de levar você e sua mãe, mas não dá. Com muito
sacrifício, talvez consiga o dinheiro da minha passagem. Mas é
claro que não posso deixar de ir receber a herança, como você
disse, uma herança é uma herança.
– E tio Mané Cotó? – indaguei.
– Manuel Terceiro já escreveu para ele, mas não sei se
ele também vai à santa terrinha. Eu tenho que ir, está visto.
Qualquer dinheiro chegará em boa hora. Quem sabe se, desta
vez, compramos este apartamentinho... e nunca mais vamos
pagar o aluguel a Mr. Mattews? Quem sabe?
Foi assim que começou a nova operação da Turma do
Posto Quatro. Naquela hora, eu não imaginava que a morte de
meu avô Manuelão levasse a turma toda a Portugal, mas a
primeira coisa em que pensei foi acompanhar papai à terra dos

13
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

nossos ancestrais. Meu velho não tinha recursos para pagar a


minha passagem, mas Mr. Mattews, o pai de Príncipe, era cheio
da nota e sempre demonstrava gostar de mim... Podia ser que,
por intermédio de Príncipe, eu conseguisse um empréstimo do
pai dele. Ou talvez Mr. Mattews pagasse a minha passagem,
sem querer saber da devolução... Dinheiro não era problema
para ele.
A primeira providência era conversar com o gordo. Depois
do almoço eu trataria disso.

14
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Capítulo II – Tudo Legal

À uma e meia da tarde, liguei o telefone para casa de


Príncipe e pedi para que ele descesse à garagem. Minha voz
devia ser tão grave que o gordo se assustou.
– Que aconteceu? Pintou alguma operação?
– Talvez – respondi, em tom misterioso. – Venha
imediatamente.
Cinco minutos depois, desci à garagem e já ali encontrei
Príncipe, andando à roda do Mustang cinzento de Mr. Mattews.
Ele devia ter descido pelo elevador de serviço.
– Oi, Príncipe!
– Oi! Qual é a sua, Lula? Você me deixou agoniado!
– Senta para não cair – retruquei. – O que é que você me
diz de uma viagem de recreio à Europa?
E contei-lhe tudo, a respeito da herança de meu avô. O
gordo ouviu calado, quase sem respirar, com os olhos muito
abertos por trás das lentes dos óculos. Quando acabei de falar,
ele soltou um suspiro.
– Puxa vida!
– Que é que você acha? – indaguei, empolgado. – Será
que dá pé? Já pensou, a Turma do Posto Quatro ir matar um
“grilo” em Portugal? Isso nunca passou pelas nossas cabeças! É
ou não é?
– É – ruminou ele. – A gente já esteve em vários pontos
do Brasil, mas nunca foi à Europa ou aos Estados Unidos... Não
deixava de ser uma boa!
– Será que seu pai topa? – insisti.
– Aí é que está, Lula. A despesa é muito grande. Se fosse
para ir ao Amazonas, ou ao Rio Grande do Sul, tenho certeza
de que papai pagaria as nossas passagens. Mas viajar para a
Europa, nas atuais circunstâncias, não é mole, não! Custa uma
nota violenta!

15
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Eu sei que custa. Por isso é que meu velho não pode
me levar. Mas, se a herança de vovô for tão grande quanto eu
imagino, depois meus pai paga a despesa ao seu pai e fica tudo
legal... É ou não é?
– Hum... sim... talvez... Já pensei nisso. É um bom
pretexto para enrolar o velho... Mas não sei se cola... No
entanto...
– No entanto, o quê? Fala, Príncipe! Temos alguma
chance?
– Ter, temos. É o seguinte: meu velho me prometeu um
presente daqueles, se eu obtivesse boas notas nas provas
parciais. Ora, eu fui o primeiro da sala. Logo, tenho o direito de
escolher o maior presente da paróquia. Daí, em vez de uma
motoca, posso escolher esse.
– Esse, qual?
– A viagem a Portugal, ué! Mas, aí, teria que ser mais de
uma viagem, ou seja: meu velho teria que pagar as passagens
e a estada de toda a Turma do Posto Quatro! É dose pra leão,
Lula! Confesse que é!
– Confesso. Só o meu velho é que não daria despesa,
porque ele paga a passagem dele. Mas nós cinco somos uns
duros... quero dizer, eu, Cidinha, Carlão e Pavio somos uns
duros, porque você não é... Mas se seu pai só pagar a sua
passagem, não vai adiantar nada. O que é que você e o meu
velho vão fazer sozinhos, em Portugal? Para ser tudo legal,
tinha que ir a turma toda!
– Lógico – concordou ele, pensativamente. – Aliás, a
época é muito boa, porque é inverno no Brasil, mas é verão na
Europa. E o verão, em Portugal, é tão quente quanto o inverno
no Rio...
– Como é que você sabe? Você já esteve lá?
– Nunca estive, mas sei. No verão, em Lisboa, os
termômetros chegam a marcar quarenta graus! Mas as noites

16
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

são frescas e o clima é seco e saudável. Julho e agosto são os


melhores meses para se passar as férias no “jardim à beira-mar
plantado”.
– E daí?
– Daí, vou levar um papo com meu velho. Pode ser que
ele tope. Daquela vez em que fomos a Goiás, papai também
gastou uma nota e não chiou. Ele gosta de ajudar a Turma do
Posto Quatro, porque sabe que nós somos legais e nunca nos
metemos numa encrenca sem razão. Há algum mistério para
resolver, na Europa, além dessa herança de seu avô?
– Que eu saiba, ainda não. Mas, por onde a gente anda,
os mistérios sempre aparecem...
– Tá legal! – decidiu Príncipe. – Hoje, meu velho só vai
sair de noite. Vou subir e bater um papo com ele. Aguente a
mão, Lula, e volte aqui à garagem, dentro de duas horas.
Acerte o seu relógio pelo meu. Se puder, reúna a turma e conte
a novidade. Se vocês fizerem uma corrente positiva, pode ser
que tudo se resolva de acordo com os nossos desejos. Eu
confio muito nas correntes positivas. Tchau!
Dito isto, o gordo ajeitou a gravatinha borboleta e se
mandou, de volta ao último andar do edifício. E eu também me
mandei da garagem, para a rua, a fim de procurar os outros
membros da Turma do Posto Quatro. Encontrei Carlão na casa
dele, numa vila modesta da Rua Edmundo Lins, e saímos à
caça de Cidinha. Ela não estava e casa, mas dona Nair falou
que talvez a encontrássemos em casa da Biluca, filha do Dr.
Bittencourt. Também na estava lá. As duas garotas tinham ido
tomar sorvete numa lanchonete da Rua Domingos Ferreira.
Fomos até lá e pegamos as duas, na hora da saída. Cheguei
perto de minha namorada e sussurrei no ouvido dela:
– Vamos a Portugal! Encontre-se com a turma, daqui a
uma hora, na sede principal. E moita! Assunto confidencial!

17
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Cidinha arregalou o olhão azul e murmurou qualquer


coisa que eu não entendi, e Carlão muito menos. Despedimo-
nos dela e da Biluca e fomos em frente. Quinze minutos depois,
estávamos no Edifício Mattews. Deixei Carlão na escada da
frente e fui bater à porta do cochichó do seu Baltazar, nos
fundos do prédio. Dona Maria me atendeu e disse que
“Cisquinho estava de castigo”, porque comera todo o sorvete
da sobremesa, na hora do almoço, quando esse sorvete devia
durar dois dias. Cisquinho também é Pavio Apagado; temos um
outro Cisquinho, no Atlântica F. C., mas esse é louro e parrudo.
– A senhora desculpe, dona Maria – disse eu – mas é um
assunto importante! Vai haver uma reunião da Turma do Posto
Quatro, para tratar da viagem de Francisco a Portugal, e a
presença dele é imprescindível, já que ele é o principal
interessado.
– O quê? – estranhou dona Maria. – Meu filho agora vai a
Portugal? Não sei disso, não!
– Talvez ele vá ou talvez não vá – retorqui, em tom
enigmático. – Ele teve boas notas no colégio, não teve?
– Bem... Lá isso teve. Este ano deve passar para a quinta
série e, quando cursar todas as séries do primeiro grau...
– Pois é. Se ele teve boas notas, também merece o
prêmio. Mr. Mattews vai homenagear os bons alunos de
Copacabana, pagando-lhes uma passagem à Europa. Suponho
que a senhora e seu Baltazar sintam orgulho em ter um filho
tão estudioso, embora um pouquinho esganado... e concordem
em que ele também vá conhecer a terra de nossos avós...
certo?
– Certo – admitiu a boa senhora, confusa. – Mas eu não
sabia disso, não! Se é isso, me desculpe, Lula, e pode levar o
moleque. Imagine, que luxo, meu filho ir passar as férias nas
Europas! Nem acredito nisso, meu o Deus!

18
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Eu também não acredito – concluí. – Mas pode ser que


dê certo. Tudo depende do pai de Príncipe. Quer me chamar o
Francisco, por obséquio?
E me mandei para a garagem, levando o negrinho a
reboque. Carlão estava à nossa espera e Cidinha chegou meia
hora depois. Ficamos à espera de Príncipe, ansiosos, com o
coração batendo na garganta. Foi Cidinha quem se lembrou da
corrente positiva; lá para as tantas, ela pegou na minha mão e
eu peguei na mão de Pavio. Ficamos todos em círculo, de mãos
dadas, rezando para que tudo desse certo. Não sei se a
corrente funcionou, mas, às quatro horas, Príncipe fez a sua
entrada triunfal na garagem.
– Oi, turma!
– Oi, Príncipe! Salve! Viva! Como é que é?
– Deu certo? – perguntei, com a boca seca pela emoção.
– Tudo legal – respondeu ele, inchado pelo orgulho. –
Meu velho foi na minha conversa. E me deu, de presente, sete
passagens de ida e volta a Portugal! Eu mereço ou não
mereço?
– Mas... sete passagens?
– Lógico, Lula. Nós cinco, mais o papai e a mamãe. Eles
também querem ir passar as férias na Europa. A oitava
passagem, de seu Manuel, será paga por ele mesmo, conforme
você falou.
– Mas... seu pai topou mesmo? – espantou-se Cidinha,
ainda agarrada à minha mão.
– Que é que você acha? – tornou Príncipe, babando-se de
satisfação. – Quando eu quero uma coisa, não há nada que me
segure! Lula já contou para vocês? Pois é! Vamos receber a
herança do avô dele! E, se aparecer algum “grilo” no caminho,
a gente também estraçalha! Dizem que, nessas viagens
internacionais de avião, sempre acontecem mistérios
tremendos! Quem sabe o avião vai ser sequestrado e...

19
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Vira a boquinha pra lá! – gemeu Pavio Apagado,


ficando cinzento de susto.
– Puxa, Príncipe! – exclamei. – É a glória! Vamos, todos,
à santa terrinha! Até parece um sonho!
– Meu velho é o máximo! – disse o gordo, na mesma
empolgação. – Ele tem um amigo em Cascais, que é um lugar
muito bacana, perto de Lisboa, que é arquiteto e também cheio
da nota. Chama-se João Sardinha. Esse amigo poderá hospedar
a gente, em seu solar, enquanto a gente não vai a Viseu, tratar
da herança. Está tudo legal, turma! Hoje mesmo, meu velho vai
telefonar para o amigo, combinando os detalhes, e, no fim
desta semana, ou no princípio da outra, a Turma do Posto
Quatro estará voando, no maior DC-10, rumo a Portugal! Meu
velho vai encarregar um despachante de tratar de nossos
passaportes, vistos, passagens e tudo o mais. Agora, vamos
cair em campo, para convencer dona Nair a deixar Cidinha
receber o prêmio pelo seu bom comportamento... Isso é o que
vai ser mais difícil!
Porém, por incrível que pareça, estava tudo legal!

20
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Capítulo III – A Viagem

Foi mais difícil obter a permissão para a viagem de Carlão


do que para a de Cidinha. Dona Nair concordou logo com a ida
da filha a Portugal, desde que a mãe de Príncipe zelasse pela
segurança dela. Mas os pais de Carlão, que são uns nordestinos
muito desconfiados, custaram a entender o lance. Imaginaram
que o filho fosse mandado para uma nova guerra em Angola ou
Moçambique... Afinal, tudo ficou resolvido da melhor maneira.
Durante aquela semana, não fizemos outra coisa senão tratar
dos preparativos para a viagem. Mr. Mattews se comunicou
com o seu amigo João Sardinha pelo telefone internacional, e
encarregou um despachante de providenciar os documentos
necessários. Meu pai aproveitou a onda e também usou os
serviços do mesmo despachante. Os passaportes foram obtidos
em tempo recorde. Eu fui incluído no passaporte do meu velho,
e Príncipe, Cidinha, Carlão, Pavio Apagado e a Sr.ª Mattews
entraram no passaporte de Mr. Mattews. As passagens, pela
Varig, também foram reservadas com antecedência. Assim,
quando chegou a segunda-feira, 12 de julho, já estava tudo
legal. Eram nove horas da noite quando fomos para o
Aeroporto do Galeão, pois o nosso voo estava marcado para as
dez e meia. O avião não era um DC-10, mas um Boeing 707.
Príncipe falou que era bom.
Mr. Mattews despachou as malas e embarcamos no
confortável aparelho voador. A cabina era comprida e tinha
várias filas de poltrona, duas de cada lado. Eu me sentei junto
de Cidinha, Príncipe e Carlão ficaram em outras duas poltronas,
do outro lado do estreito corredor. Pavio viajou perto da Srª.
Mattews e meu velho perto de Mr. Mattews. Apertamos os
cintos de segurança e ficamos à espera.

21
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Daí a pouco, o avião a jato começou a rodar pelas pistas.


Vi perfeitamente Cidinha rezar, de olhos fechados. Eu não
estava preocupado, pois gosto de voar como um passarinho.
– Lá vamos nós! – exclamou Príncipe, empolgado.
O avião rugiu pela boca das turbinas, e pôs-se a correr
pela pista. Também fechei os olhos. Mas, logo que subimos
para o ar, espiei pela janela, por cima do ombro de Cidinha, e
vi o negrume da noite pontilhado de luzes brancas. Mais um
pouco e três longas filas de luzes alaranjadas passaram por
baixo do aparelho era a Ponte Rio-Niterói. Bacana às pampas!
– Já passou o perigo? – indagou Cidinha, ainda de olhos
fechados.
– Não tem perigo nenhum – retruquei. – Foi uma
decolagem perfeita. Agora, vamos subir para além das nuvens.
Não dá para ver mais nada.
O voo prosseguiu, sereno, e todos os passageiros
começaram a conversar outra vez. O alto-falante de bordo
avisou que estava tudo legal e ia ser servida uma ceia.
Levaríamos nove horas de viagem.
Quinze minutos depois, abrimos as mesinhas, presar ao
encosto das poltronas de frente, e cada um de nós recebeu
uma bandeja com comida. Estava uma delícia! Eu não gosto de
doces e dei minha compota de pêssegos para Cidinha, que
comeu duas. A essa altura, Pavio Apagado, que ficara cinzento
da hora da decolagem, já estava pretinho outra vez.
– Ei, Príncipe! – falou ele, quando a comissária de bordo
levou as bandejas vazias. – Portugal tem uma história tão
interessante quanto o Brasil?
– Muito maior – respondeu a nossa “enciclopédia
ambulante”. – Basta dizer que o Brasil ainda não tem
quinhentos anos e Portugal já tem mais de dois mil.
– É mesmo? Então conta! Conta a História de Portugal!

22
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Não dá. É muito comprida. Basta dizer que a República


Portuguesa forma, com a Espanha, a Península Ibérica, a oeste
da Europa. Tem apenas 92.082 quilômetros quadrados de
extensão e uma população de 10 milhões de habitantes. Se eu
fosse contar toda a História de Portugal, só acabava amanhã!
– Então, conta só um pedaço – pediu Cidinha. – A gente
precisa conhecer onde vai pisar, ora essa!
Príncipe estava à espera disso para botar sua banca.
– A primeira notícia que temos da Lusitânia – começou
ele, em voz alta – vem do ano 140 antes de Cristo, que foi
quando morreu Viriato. Este Viriato era um capitão lusitano que
venceu os romanos, que tinham invadido a Península Ibérica.
Este só morreu porque Cipião comprou dois de seus
embaixadores que o assassinaram. Depois dos romanos, foram
os árabes, ou mouros, que invadiram a região. Aí pelo ano mil,
o território que foram hoje a República Portuguesa, estava mais
ou menos dividido ao meio. Do Mondego para o sul, era
ocupado pelos mouros, ou sarracenos, que seguiam a religião
de Maomé; do Mondego para o norte, estava subordinado ao
poder do Rei de Leão. Ainda não havia Portugal, no sentido que
tem hoje essa palavra. Mas o território ocupado pelos cristãos,
e que fazia parte da monarquia leonesa, estava dividido em
dois condados: um chamava Portus Callis e ficava ao norte do
rio Douro; o outro ao sul desse rio, era o Condado de Coimbra.
Aí Afonso VI de Leão reuniu esses dois mil condados e
entregou o governo de todo o território a Henrique de
Borgonha, que tinha ido da França para ajudar o rei leonês nas
suas lutas contra os mouros. Deu-lhe, também, a mão de sua
filha Dona Tareja, ou Tereza. No ano de 1093, o casal se
estabeleceu, então, no Condado “portucalense”, ou português,
e escolheu a cidade de Guimarães para sua capital. Ainda hoje
o Castelo de Guimarães é um marco da nacionalidade lusitana.

23
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– E aí? – indagou Carlão. – Passou a existir Portugal, no


sentido que tem hoje essa palavra?
– Ainda não – respondeu Príncipe. – Dom Henrique e
Dona Tereza não governaram em completa independência, pois
tinham que prestar contas de tudo ao Rei de Leão. Assim que
Afonso VI morreu, Dom Henrique tentou, em vão, a
independência. Só depois que ele e a mulher também
morreram é que o filho deles, Dom Afonso Henriques, obteve
os favores do Papa e conseguiu a independência, embora
tivesse que pagar um bocado de grana à Igreja. Depois disso,
Dom Afonso Henriques atacou os mouros e tomou Santarém,
Beja e Évora, alargando seus domínios. Esse Dom Afonso
Henriques foi o verdadeiro criador da Nação Portuguesa.
Ajudado pelos cruzados, que passavam pela foz do Douro e do
Tejo, ele também tomou Lisboa e Alcácer do Sal, garantindo a
dominação lusitana na península. O filho dele, Dom Sancho I,
foi o Povoador, mas ele foi o Conquistador. No ano 1230, todo
o Algarve, ao Sul de Portugal, caiu em poder de Dom Afonso II,
o Gordo, irmão de Dom Sancho, e que o sucedeu no trono.
Depois, vieram Dom Sancho II, o Capelo, Dom Afonso III, o
Bolonhês, Dom Dinis, o Lavrador...
– Já ouvi falar nesse – falou Cidinha. – Foi ele quem criou
a Língua Portuguesa, escrevendo O Cancioneiro. Antes dele,
todo mundo falava espanhol. Certo?
– Certo – admitiu Príncipe. – Também foi no reinado de
Dom Dinis que se deu o milagre das rosas, com a Rainha
Isabel; sua mulher, que depois virou santa. Ela era uma santa,
realmente, pois sempre evitava as guerras entre o marido e os
filhos, que viviam disputando a coroa. Aí, um dia, quando a
Rainha Isabel ia levando uma porção de pães, escondidos no
regaço, para dar aos pobres, Dom Dinis chegou e deu a
bronca. Queria saber o que é que a mulher levava no regaço.
Aí, a rainha, para disfarçar, falou que eram rosas. Aí, o rei

24
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

obrigou-a a abrir o avental... e deu-se o milagre! Só havia


rosas!
– Que bacana! – maravilhou-se Cidinha.
– Depois de Dom Dinis, em 1325, subiu ao trono Dom
Afonso IV, o Bravo, que mandou matar Inês de Castro. A
história dessa Inês também é famosa. Ela namorava o príncipe
herdeiro, Dom Pedro, mas o pai dele não queria, porque ela
não era de sangue real. Toda a corte era contra. Aí, o rei
mandou matar a pobre senhora! Dom Pedro ficou como louco!
E, depois que o pai morreu e ele foi para o trono, obrigou toda
a corte a beijar a mão da defunta, declarando-a rainha. Foi por
isso que Luís de Camões escreveu que “a bela Inês depois de
morta foi rainha”...
– E os descobrimentos? – quis saber Pavio. – Quando foi
que os portugueses começaram a procurar novas terras?
– Isso começou no século XV, no reinado de Dom João I,
o Boa Memória. Seu quinto filho, o Infante Dom Henrique,
tinha a mania das viagens. Daí ser apelidado “O Navegador”.
Foi ele quem criou a Escola de Navegação, em Sagres, no
extremo sul da Península Ibérica. Durante a vida do Infante
Dom Henrique, e depois dele, os portugueses conquistaram
Ceuta dos mouros, descobriram a Ilha da Madeira e os Açores,
dobraram o Cabo Bojador e chegaram até o Cabo Branco,
descobriram a Guiné, Cabo Verde, Gâmbia e outras regiões da
África. Em fins do século XV, Cristóvão Colombo propôs fazer
novas descobertas para os portugueses, mas Dom João II não
acreditou na empresa; por isso, Colombo descobriu a América
para os Espanhóis. Em 1498, Vasco da Gama encontrou o
caminho marítimo para as Índias. Finalmente, também no
reinado de Dom Manuel, o Venturoso, Pedro Álvares Cabral
descobriu o Brasil.
– E depois? – insistiu Carlão.

25
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– A História de Portugal continuou, cheia de reis, guerras,


traições, heroísmos e conquistas, até o fim da monarquia, em
1910, quando o trigésimo terceiro e último rei, Dom Manuel II,
foi mandado para o exílio, depois da revolução republicana.
Mas, entre todos os soberanos portugueses, eu me amarro
mais em Dom Sebastião, neto de Dom João III, que reinou
vinte e um anos e foi um bocado valente. Ele desapareceu na
África em 1578, na Batalha de Alcácer-Quibir. Uns diziam que
ele tinha sido morto pelos árabes, outros diziam que ele ia
voltar... Mas até agora, não voltou.
– E atualmente? – perguntei. – Como está Portugal?
– Meio bombardeado – confessou Príncipe. – Depois da
independência das colônias africanas, e da Revolução de 25 de
Abril de 1974, que acabou com a ditadura, o país ainda não se
habituou com o regime democrático. Mas as coisas vão entrar
nos eixos, se Deus quiser. Portugal já sofreu muitas crises, ao
longo de sua História, e acabou se saindo bem.
– Portugal ser o terra do vinho, dos sardinhas, do azeite e
do bacalhau – disse a Srª. Mattews, com sua pronúncia
engraçada. – Eu gostar muita de Portugal! Agora pode ser que
não ter muito bacalhau, mas ainda ter sardinha e vinho de
Oporto! Eu sempre gostar de Portugal.
A viagem continuou, sem nenhum contratempo. Daí a
pouco, estavam todos dormindo, na cabina às escuras. Quando
acordamos, às sete horas da manhã, tomamos o pequeno
almoço, que também estava uma delícia, e, uma hora depois, o
avião aterrissava no Aeroporto de Portela, em Lisboa. Antes de
desembarcarmos, Príncipe ainda nos contou a História de
Lisboa. Mas, isso, fica para o próximo capítulo.

26
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Capítulo IV – Lisboa

O avião ainda não tinha estacionado completamente e


Príncipe já estava botando outra vez a sua banca:
– Aqui estamos, turma! A fundação da capital portuguesa
é tão antiga que dizem que vem do tempo dos fenícios.
Diversos povos aqui entraram, formando a raça lusitana, até
que os romanos a conquistaram, aí pelo ano 205 antes de
Cristo. Passou, então, a ser um município romano, com o nome
de Olisipo. Depois de Júlio César, que viveu entre os anos 100
e 44 antes de Cristo, Olisipo também passou a ser chamada de
Felicitas Julia. Nos séculos V e VI, a Península Ibérica foi
assolada pelos Visigodos e, no ano de 714, invadida pelas
tribos muçulmanas do Norte da África. Isso até 1147, quando
foi definitivamente conquistada pelo exército de Dom Afonso
Henriques. O nome Olisipo, ou Olisopona, dos latinos tinha sido
transformado pelos mouros, em Olisibona, de onde resultou
Lisboa. A cidade nasceu de uma aldeia, na beira do Tejo,
chamada Alfama. Depois surgiu a Mouraria, o reduto dos
árabes, na encosta do Castelo de São Jorge, e a Vila Nova de
Gibraltar, habitada pelos judeus. Em meados do século XIII,
sob o reinado de Dom Afonso III, a corte mudou-se de Coimbra
para Lisboa, que passou a ser a nova capital.
O avião parou de vez e tratamos de desembarcar, sempre
de olho em Mr. Mattews. Entramos num ônibus e fomos
levados para o edifício do aeroporto. Aí, apanhamos as nossas
malas, numa esteira rolante, e as levamos para a alfândega. Os
fiscais examinaram tudo e disseram que não havia problema.
– Nada a declarar! – falou Mr. Mattews, e os fiscais
confiaram nele.
Então, saímos do prédio, levando as bagagens em
carrinhos de mão. Por mais que Mr. Mattews gesticulasse, não
apareceu nenhum carregador para nos ajudar.

27
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Do lado de fora do aeroporto, finalmente, encontramos o


amigo do pai de Príncipe. Era um senhor de cabelos brancos e
sobrancelhas pretas, tão alto quanto Mr. Mattews, mas menos
vermelhaço. Os dois se abraçaram e Mr. Mattews nos
apresentou. O Sr. João Sardinha era arquiteto, usava colete e
parecia cheio da nota.
– Tenho dois carros à vossa disposição – disse ele. –
Achei prudente alugar um veículo, pois o meu carrinho não
bastará para acomodá-los...
O “carrinho” dele era o maior Mercedes Benz de luxo!
Aliás, reparei que havia Mercedes por toda parte, inclusive na
praça. Quase todos os táxis, pretos com capota verde-claro,
eram dessa marca.
– E então? – perguntou o nosso anfitrião, depois que
metemos a bagagem nos porta-malas dos dois automóveis. –
Para onde querem que os leve? Tu me disseste, ó Mattews,
que pretendes ficar dois dias em Lisboa...
– Isso mesmo – confirmou o pai de Príncipe. – Vamos
para o Hotel Eduardo Sétimo. Quero que os meninos conheçam
Lisboa, antes de irmos passar dois ou três dias em Cascais. Mas
não se incomode, amigo João. Deixe-nos no hotel e trate da
sua vida. Hoje é dia de trabalho.
– Essa é que não! – protestou o arquiteto. – Vou comprar
os bilhetes para a corrida de amanhã, no Campo Pequeno! Os
miúdos vão gostar, pois é uma tourada à portuguesa. E, hoje à
tarde, levarei vocês ao Jardim Zoológico. Mas, depois de
amanhã, às oito horas, virei apanhá-los, em Lisboa para levá-
los para a Costa do Sol! Está decidido!
Os carros partiram e fomos carregados para um hotel
bacana, na Avenida Fontes Pereira de Melo, ao lado do Parque
Eduardo VII. Era quase no centro da cidade. Pelo caminho,
notei que Lisboa tinha muitas áreas verdes, que eram
respeitadas pelas companhias imobiliárias. Os arranha-céus

28
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

também eram poucos, em comparação com Rio ou São Paulo.


A oeste do Parque Eduardo VII ficava a enorme Reserva
Florestal de Monsanto, tão grande quanto a nossa Quinta da
Boa Vista.
– Olhali! – apontou Cidinha, em dado momento. – Quase
todos os muros e paredes das casas têm coisas pichadas!
“Viva!”, “morra”, “acima”, “abaixo”... O que é aquilo? PS...
CDS... PCP...
– Uma vergonha! – desabafou o Sr. Sardinha. – Depois
da Revolução de 25 de Abril, a cidade ficou toda suja! Ninguém
mais se entende! Infelizmente, os portugueses confundem
liberdade com anarquia! Não olhe, minha filha, porque há
algumas palavras cabeludas!
Ficamos, todos, ouriçados, mas só lemos um palavrão.
– Lisboa, como Roma, tem sete colinas – disse Príncipe,
ao chegarmos ao hotel. – Como vocês veem, o clima é ameno
e muito fresco, à noite. Esta avenida termina logo ali, na Praça
Marquês de Pombal, também chamada “a Rotunda”. Seguindo-
se em frente, na direção do Tejo, desce-se a Avenida da
Liberdade, que mede um quilômetro e meio e tem noventa
metros de largura. Essa avenida é toda arborizada por olaias,
olmeiros, plátanos e ledãos. Lá no fundo fica a Baixa, que é o
centro comercial da cidade e foi reconstruída por Pombal,
depois do tremendo terremoto de 1755. Hoje, a Baixa é cortada
por ruas retas e mais ou menos espaçosas.
– Terremoto? – assustou-se Pavio. – Aqui tem disso?
– E como! Lisboa já sofreu mais de quinze tremores de
terra! O último foi em 1807 e o maior foi em 1755, no reinado
de Dom José, quando quase toda a cidade foi destruída! O
número de mortos chegou a cinquenta mil! Mas Marquês de
Pombal, ministro de Dom José, não perdeu a cabeça e deu um
jeito em tudo, levantando de novo a capital. É na Baixa que
ficam a Praça dos Restauradores, o Rossio e a Praça da

29
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Figueira. No Rossio, ou Praça Dom Pedro IV, fica a estátua de


bronze desse rei, que é o mesmo Dom Pedro I do Brasil.
Seguindo em frente, e subindo a Rua do Carmo e a Rua
Garrett, que são duas ladeiras, chega-se ao Bairro Alto, cheio
de ruelas e prédios baixos e antigos; indo em frente, e para a
esquerda, pode-se descer a Rua do Ouro, ou a Rua Augusta,
passar por baixo do seu famoso arco e desembarcar no
Terreiro do Paço, ou Praça do Comércio, que fica à beira do rio
e, hoje, serve de estacionamento para os automóveis. Em
Lisboa, os carros andam nas ruas e os pedestres nas calçadas;
não é como em Copacabana, onde os pedestres andam nas
ruas e os carros em cima das calçadas... Há muita coisa para a
gente ver, por aqui, principalmente coisas históricas, tão
respeitáveis e impressionantes que até dão dor de barriga. Eu
fico emocionado à toa.
– Também eu – confessou Cidinha. – Não posso entrar
numa igreja antiga sem sentir um troço na alma!
– Mas você já estive em Lisboa, Príncipe? – perguntou
Carlão, desconfiado.
– Nunca – confessou a nossa “enciclopédia ambulante”. –
Mas li muito a respeito, antes dessa nossa viagem. A realidade,
porém, é mais emocionante.
Instalamo-nos no Hotel Eduardo Sétimo e o Sr. João
Sardinha almoçou conosco. Pedimos logo uma sardinhada, em
homenagem ao arquiteto. O peixe assado estava ótimo e
Cidinha chegou a lamber os dedos, embora seja uma menina
muito bem-educada.
– Portugal é a terra do peixe – comentou Príncipe. – Sem
falar no bacalhau, que é pescado na Terra Nova, os rios e o
mar portugueses fornecem os mais saborosos pargos,
salmonetes, chernes, linguados, corvinas, pescadas, sardinhas,
carapaus e fanecas. Vamos nos fartar de comer peixe da
melhor qualidade!

30
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

À tarde, demos o nosso primeiro passeio pela cidade. Vi,


então, que Lisboa ainda tinha bondes – que eles chamavam de
“elétricos”, assim como chamavam os ônibus de “autocarros”,
ou “tróleis”, quando eram de tração elétrica; mas em
compensação, já tinham metrô, cujas linhas subterrâneas
davam uma volta pela Baixa, partindo do bairro de Alvalade, ao
nordeste, e indo até Entre-Campos, ano norte-centro, e até
Sete Rios, ao noroeste. Era no bairro de Sete Rios que ficava o
Jardim Zoológico. O Sr. João Sardinha nos dava todas as
explicações, feliz com a nossa empolgação. Vimos as feras, os
pássaros e os macacos. Um gorila fez uns gestos esquisitos
para Cidinha, mas nós fingimos que não estávamos vendo... Na
“Aldeia dos Macacos”, os bichos, em liberdade, corriam de suas
casas em miniatura. Mais adiante, vimos um elefante ensinado,
que recolhia moedas com a tromba e tocava um sino e uma
trombeta. Pavio deu uma moeda de cobre para ele e ele ficou
na bronca, porque só queria moedas brancas e brilhantes; não
tocou o sino, não soprou a trombeta e ainda soltou um
esguicho de água em cima do moleque! Foi um custo segurar
Pavio, que queria ir à forra!
Mas o que mais nos impressionou foi o Cemitério dos
Cães, com suas sepulturas de mármore, igualzinho aos
cemitérios das pessoas.
– Puxa! – exclamou Cidinha, depois de ler os epitáfios. –
Quando eu morrer, não vou ganhar um túmulo tão bacana!
Que desperdício! Os portugueses devem gostar muito de
cachorros!
– Muito – confirmou Príncipe. – É por isso que há tantos
cães vadios, soltos nas ruas, nas aldeias e cidades de Portugal.
Aqui não tem carrocinha.
Voltamos para o hotel, jantamos e tornamos a sair, para
conhecer Lisboa à noite, mas Mr. Mattews nos recolheu cedo,
dizendo que ele, a mulher e meu pai iam visitar uma tasca,

31
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

onde se cantava fado, e esses lugares não eram aconselháveis


para menores. Foi pena, porque Cidinha se amarra num fado.
Na manhã seguinte, demos um outro passeio, muito
legal, para conhecer os monumentos históricos da capital
portuguesa. Mas eles eram tantos que só tivemos tempo de
visitar a Torre de Belém, o Mosteiro dos Jerônimos e o Museu
dos Coches, tudo no Bairro de Belém, perto do rio. A torre, cujo
verdadeiro nome é Castelo de São Vicente, era menor do que
eu pensava, mas muito branca e limpinha. O Mosteiro dos
Jerônimos, mandado edificar por Dom Manoel para comemorar
a descoberta das Índias, era majestoso, impressionante,
principalmente por causa de suas esculturas em pedra. O
museu também nos emocionou; ali, vimos cerca de vinte
coches de gala e uma carruagem real de Dom João VI, o
mesmo que fugiu para o Brasil, quando os franceses invadiram
Portugal.
Na volta para o hotel, passamos pelo Cais de Alcântara,
um dos melhores da Europa; pelo Arsenal da Marinha,
construído no século XVIII, e pela Câmara Municipal, de cujo
balcão foi proclamada a República em 1910.
– Muita coisa bonita ainda ficou para vocês verem – disse
o Sr. Sardinha, quando regressamos ao hotel. – O Jardim
Botânico, o Aqueduto das Águas Livres, o Museu do Carmo,
fundado em 1389, o Museu Arqueológico, o Palácio da Ajuda e
os quartéis, sem falar nas igrejas, como a Catedral, ou Igreja
da Sé, a Basílica da Estrela, fundada por Dona Maria I no fim
do século XVIII, a Igreja de São Roque, que data do século XIV
e ainda está de pé, apesar dos incêndios e terremotos, a Igreja
de São Vicente de Fora, a de São Domingos, que é a maior da
cidade, a de Conceição, a Velha, a de Nossa Senhora da
Encarnação, do século XVII, a de Madre de Deus, da Graça, de
Loreto, de São Luís de França, da Madalena e outras. Só
mesmo Salvador, na Bahia, tem mais igrejas do que Lisboa!

32
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Almoçamos no hotel (cozido à portuguesa) e fomos ver a


corrida de touros, no Campo Pequeno. A Praça de Touros é
uma construção cor de tijolo, em estilo mourisco, com lotação
para mais de oito mil espectadores. Ficamos na arquibancada
do Setor 4, bem em frente à porteira por onde entravam os
touros e à esquerda do portal por onde entravam os toureiros.
O Sr. Sardinha tinha razão: a tourada portuguesa é menos
sanguinária do que a espanhola, pois em Portugal não se
matam os touros. Os toureiros, com seus passes de capa e
muleta, são substituídos pelos cavaleiros, cada um mais hábil
do que o outro. Cidinha ficou muito nervosa, mas o resto da
turma adorou o espetáculo. Era impressionante ver o touro
investir contra o cavalo, como se fosse meter-lhe os chifres, e o
cavaleiro escapar de lado, enfiando uma farpa no cachaço do
animal enfurecido! As farpas eram pedaços de pau roliços, com
um arpão de ferro na ponta e uma porção de papéis de seda
coloridos na outra; cada vez que o cavaleiro espetava uma
delas nas costas do touro, este ficava mais enfeitado...
Assistimos a seis corridas e, em todas elas, o espetáculo
acabou com os “moços de forcado” pegando o touro à unha.
Sabe lá o que é isso? Eram seis ou sete homens parrudos, a
maioria do Ribatejo, vestidos com calças cinzentas, jaqueta
vermelha e barrete verde. Depois que os peões colocavam o
touro em boa posição, fustigando-o com as suas capas
vermelhas, os “moços de forcado” se punham em fila, com um
deles bem na frente. Aí, o líder batia palmas, empinava o peito
e desafiava o touro de todas as maneiras; depois, quando a
fera corria para cima dele, de cabeça baixa, e lhe dava uma
marrada na barriga, ele se abraçava ao pescoço do animal e
era sacudido de pernas para o ar! Logo, os seus companheiros
grudavam no lombo do touro e acabavam por imobilizá-lo. Por
fim, um deles ficava sozinho e puxava o rabo do bicho,

33
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

obrigando-o a dar voltas sobre si mesmo. Estava terminado o


espetáculo.
Era então que entrava em cena cinco ou seis vacas
leiteiras, com guizos no pescoço, e o touro saía da arena,
misturado com elas... Aí, o público aplaudia delirantemente o
cavaleiros e o líder dos “moços de forcado”, que davam uma
volta triunfal pela arena vazia, alguns espectadores até
jogavam os chapéus e os agasalhos na arena, recebendo-os de
volta, por intermédio dos toureiros e picadores. Aquele foi um
espetáculo inesquecível para nós, que nunca tínhamos visto
coisa igual! Príncipe falou que gostava mais das corridas de
touros do que de futebol, porque, nas touradas, as bestas eram
mais selvagens... Mas eu prefiro o futebol. Os touros, coitados,
não têm muita malícia e sempre entram de gaiato... Pensando
bem, isso é uma covardia! Se dependesse de mim, também
não haveria farpas nas touradas portuguesas!

34
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Capítulo V – O Mistério

Na manhã seguinte, pontualmente às oito horas, o Sr.


João Sardinha foi nos buscar no hotel. Meu pai estava ansioso
para ir à Quinta da Sucapa, receber a herança de meu avô,
mas não queria aborrecer Mr. Mattews, que se mostrava tão
gentil. E Mr. Mattews, que não tinha pressa nenhuma, queria
passar alguns dias no solar do seu amigo arquiteto, antes de
conhecer Coimbra e Viseu.
Cascais fica na chamada “Costa do Sol”, a oeste de
Lisboa, para lá da foz do Rio Tejo. O carrão do Sr. Sardinha, e
o táxi que ele alugara, nos levaram por excelentes rodovias que
beiram o rio. Percorremos, assim, a Avenida Marginal,
atravessamos Algés, Dafundo, Santo António do Estoril, São
João do Estoril e Monte Estoril, e chegamos a Cascais. O sol
nos banhou o tempo todo e a temperatura era deliciosa, nem
muito quente nem muito fria.
– O famoso Estoril – disse Príncipe, quando passamos em
frente a um jardim quase tropical – é dividido em três
localidades ligadas umas às outras. Monte Estoril é a mais
badalada, devido ao seu cassino, que fica nesse jardim à nossa
direita. Os Estoris são lugares privilegiados, destinado ao
turismo. Suas praias são muito frequentadas, no verão, embora
não sejam tão grandes e bonitas quanto as do Brasil, é lógico.
Com certeza o senhor Sardinha vai nos mostrar o cassino, de
dia, quando não há jogatina... O novo prédio do cassino,
construído um pouco à frente do antigo, é uma coisa!
– Como é que você sabe? – indagou Cidinha.
– Quem lê muito, sabe de tudo! – concluiu a nossa
“enciclopédia ambulante”.
Chegamos a Cascais e nos instalamos no solar de nosso
anfitrião, que era um prédio imenso, com todo o conforto,
inclusive uma piscina de água mineral. Na fachada tinha uma

35
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

tabuleta de azulejos, com florezinhas azuis, que dizia: VIVENDA


DOS EXCRAVOS. Reparei que o “EX” tinha sido acrescentado ao
título original e perguntei por que.
– O antigo nome era Vivenda dos Cravos – explicou o Sr.
Sardinha. – Mas, depois de abril de 1975, resolvi trocá-lo! A
“Revolução dos Cravos”, afinal de contas, não me beneficiou
em nada!
Príncipe me cutucou e eu não fiz mais comentários. O
solar era muito legal e não me interessava a linha política do
Sr. Sardinha. Eu e Príncipe ganhamos um quarto só para nós,
Carlão e Paio ganharam um outro e Cidinha ficou num quarto
menor, ao lado dos aposentos de Mr. Mattews e da mulher
dele. O Sr. Sardinha era viúvo, mas tinha três criadas, que
cuidavam de tudo. Aliás, era um milagre, porque, depois da
revolução, quase não havia empregadas domésticas em Lisboa.
Nessa mesma manhã, fomos tomar banho de mar, numa
praia da localidade, menos concorrida do que as dos Estoris. A
água estava morna, mas a areia era grossa e tinha um lodo
escorregadio. Eu, Cidinha, Carlão e Pavio fomos nadar para
longe, levando boias, mas Príncipe preferiu ficar na areia,
debaixo de um toldo, lendo alguns jornais que tinha comprado
em Lisboa.
Almoçamos ao meio-dia. A cozinheira do Sr. Sardinha fez
uma bacalhoada espetacular! Comemos tanto que tivemos que
descansar durante umas duas horas, enquanto fazíamos a
digestão. Mais tarde, às três horas, saímos para dar um passeio
pelos Estoris. Foi então que conhecemos o famoso cassino, em
Monte Estoril, no meio daquele jardim muito bem cuidado,
onde havia até palmeiras seculares. O Sr. Sardinha conhecia
tudo como as palmas de suas mãos e foi o nosso cicerone.
Todas as portas se abriam, quando ele chegava, e todos os
empregados do cassino o tratavam com grande deferência. Era

36
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

“senhor doutor arquiteto” pra cá, “senhor doutor arquiteto” pra


lá...
Começamos a visita pelos amplos corredores do prédio,
que era baixo, largo e luxuoso, cercado de vidraças
transparentes. As paredes eram tão transparentes que Pavio
não viu uma delas e bateu com a testa no vidro. Como ainda
era de dia, havia pouco movimento, mas dava para conhecer
todas as dependências do prédio e imaginar o zunzum que ali
devia haver, durante a noite. Conhecemos as salas destinadas
às exposições de arte e as lojas, tipos butiques, mas não fomos
além das portas das salas de jogos, onde havia um dístico:
SLOT MACHINES. Daí, seguimos até o restaurante – uma
dependência enorme, cercada de cortinas, com um palco
redondo à direita, onde se apresentavam os shows
internacionais. Segundo o Sr. Sardinha, a parte interna do
palco subia e descia, feito um elevador, durante os espetáculos,
mas só haveria função às onze horas da noite. O enorme
restaurante, com suas mesas para quatro pessoas, estava
vazio.
– Vamos até a boate – disse o Sr. Sardinha. – Só para
olhar, é claro... Os espetáculos, no bar, são iguais aos do
restaurante, mas só começam depois da meia-noite.
Andamos mais alguns metros, entramos pelo meio de
uma cortina, ao lado do dístico WONDER BAR, e vimos uma
boate bacaninha, também com as mesas vazias. Devia ser
muito divertido tomar um refresco, assistindo ao show, mas
aquilo não era para o nosso bico... Depois de darmos uma
outra volta pelos amplos corredores do cassino, Mr. Mattews
comprou um pacote de fumo para o cachimbo, na TABACARIA,
e saímos do prédio. Reparei que Príncipe se mantivera em
silêncio, o tempo todo, como se estivesse mergulhado em
profundos pensamentos... A atitude dele me pôs alerta. O que
seria que ele tinha lido nos jornais?

37
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Eram cinco horas da tarde quando regressamos à


Vivenda dos Excravos. Mr. Mattews e a Srª. Mattews ficaram na
sala batendo papo com o Sr. Sardinha, enquanto nós íamos
brincar no jardim, ao lado da piscina. Foi aí que Príncipe me
levou para um caramanchão florido e me mostrou um dos
jornais que tinha levado de Lisboa. Era o Diário de Notícias.
– Leia isto aqui, Lula – falou o gordo com voz grave. –
Acho que encontrei a operação!
– Que operação?
– Leia a notícia e me diga o que é que você acha. É um
mistério daqueles! Parece feito sob medida para a Turma do
Posto Quatro.
Li a reportagem que ele me indicava e também fiquei
empolgado. A notícia falava de um crime misterioso, ocorrido
no caminho de Malveira da Serra, perto de Cascais, três dias
antes da nossa chegada. Segundo o jornal, a Guarda Nacional
Republicana e a Polícia Judiciária ainda não tinham descoberto
o criminoso. A notícia, em linhas gerais, dizia o seguinte:

Na madrugada de segunda-feira, dia 12, um tal José


António Mabuto, natural de Moçambique, que retornou da
África há alguns meses, foi agredido violentamente, com uma
porretada na cabeça, em sua oficina de técnico em eletrônica, e
está internado num hospital de Cascais, entre a vida e a morte.
A tentativa de homicídio é um mistério, pois nada foi roubado,
na oficina, e a mulher da vítima afirma que o marido não tem
um único inimigo. A polícia já fez diversas investigações, mas
não descobriu o autor, ou autores, da agressão, embora
suspeite de um outro retornado, chamado Roberto Ális, que
também é preto e amigo da vítima, e tem maus antecedentes.

– Puxa! – exclamei. – O caso promete! Imagine se esse


Roberto Ális for inocente e estiver sendo acusado injustamente

38
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

pela polícia! É a hora da Turma do Posto Quatro entrar em


cena e provar a inocência dele! Mas... o que é retornado,
Príncipe?
– É um português que nasceu, ou que vivia na África, e
teve que sair de lá, depois da independência das colônias, ou
“províncias ultramarinas”, que Portugal mantinha no Continente
Negro. A maioria dos retornados veio para o continente, porém,
alguns foram para outros lugares, inclusive o Brasil. Esses não
deviam ser chamados de “retornados” e sim “emigrantes”.
– Todos crioulos? – indaguei.
– Nem todos. Também há retornados brancos, que
perderam tudo o que tinham, nos seus lugares de origem, e
tiveram que fugir só com a roupa do corpo.
– Boa coisa eles não devem ter feto por lá...
– Não se sabe. Outros escaparam a tempo, antes da
independência das colônias, e conseguiram carregar os seus
haveres. Mas a grande maioria voltou pobre e tem que ser
ajudada pelo governo. A invasão dos retornados criou muita
confusão em Portugal, que é um país pequeno e com poucos
recursos, mas, pouco a pouco, eles vão sendo integrados na
sociedade. É claro, que, enquanto não se adaptarem, eles
representam um problema para o governo, aumentando o
desemprego. Mas muitos dos chamados retornados são
homens corajosos e trabalhadores e já estão refazendo a vida,
em Portugal. Deve ser o caso desse José António Mabuto que,
pelo visto, tem uma oficina de consertos de aparelhos elétricos.
Agora eu pergunto: por que foi que tentaram matá-lo, com
uma pancada na cuca?
– Sei lá! Quem sabe ele não é tão pobre como os
retornados que fugiram só com a roupa do corpo? Quem sabe
ele carregou uma fortuna, da África, e os assaltantes estavam
atrás dele?

39
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Pode ser. Mas, se ele tivesse dinheiro enrustido em


casa, a mulher dele saberia. E botaria a boca no mundo.
– Talvez não, Príncipe. Se o retornado conseguiu retornar
cheio da grana, não ia dizer para ninguém que estava rico...
– Para a mulher ele dizia, ora essa!
– A mulher pode estar mentindo, fingindo que o marido
não tinha nada, para não dar na vista... Quem sabe é um caso
de espionagem e os agentes secretos de Moçambique vieram a
Lisboa silenciar a testemunha?
– Nem fala! Espionagem seria o fino! A gente nunca se
meteu com espiões de verdade!
– Seja como for, tem que haver uma razão para que
alguém agredisse a vítima nessa oficina eletrônica! Certo?
– Certo. E é isso que nós vamos descobrir! Seja o que for,
está no papo! Operação Mistério de Cascais!
– Operação Mistério de Cascais! – repeti, em voz alta.
E, logo, o resto da turma invadiu o caramanchão,
querendo saber qual era a nossa.

40
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Capítulo VI – A Moca de Rio Maior

Príncipe contou tudo e perguntou se alguém tinha alguma


operação melhor. Ninguém tinha. Pavio queria que a gente
resolvesse o problema dos retornados, mas Cidinha deu um
grito com ele, fazendo com que ele se mancasse.
– Muito bem – disse eu, depois que a proposta de
Príncipe foi aceita. – Operação Mistério de Cascais! Antes de
mais nada, vamos visitar o local do crime! Mas é lógico que
mais ninguém deve saber que a Turma do Posto Quatro vai
entrar em ação, outra vez! Serviço secreto, pessoal!
Todos fizeram “psiu”, com o dedo nos lábios, e saímos do
caramanchão. Príncipe meteu o jornal no bolso, bem
dobradinho, e foi até a sala, onde os mais velhos continuavam
a bater papo. Eram quase seis horas da tarde, mas o jantar só
era servido às sete. Através da vidraça de uma parede do solar,
vimos o gordo trocar algumas palavras com o Sr. Sardinha.
Cinco minutos depois, ele estava de volta ao jardim, com o
rosto redondo aberto num sorriso radiante.
– Tudo lega, turma! A Rua da Fontainha fica a quatro
quilômetros daqui, no caminho de quem vai para Malveira! Já
sei onde é! Vamos em frente!
Agarrei na mão de Cidinha e encaminhei-a para o portão
da Vivenda dos Excravos. Príncipe, Carlão e Pavio Apagado
foram atrás de nós. Saímos cautelosamente da propriedade e
seguimos, pela calçada, na direção oposta à praia de Cascais. A
avenida era larga e cimentada. Depois de cruzarmos três ruas
transversais entramos na quarta, à esquerda. Príncipe
consultou o jornal e disse que era no número 21. Caminhamos
meio quarteirão e paramos diante de um muro arruinado, que
já fora branco, mas parecia cinzento. Um número 21 em
algarismos brancos sobre fundo preto, estava pintado no muro,
à direita de um portão de ferro oxidado. Mas o que mais nos

41
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

impressionou foi ver um soldado diante do portão. Era um


homem baixo, troncudo, de bigodes caídos, fardado de
cinzento. Usava um boné de copa alta e redonda, típico dos
milicianos da Guarda Nacional Republicana.
– Não ver ser mole! – comentou Príncipe, em voz baixa. –
É melhor você entrar com a sua papa, Lula... Eu sei ler, mas
você sabe falar melhor do que eu.
Sempre segurando a mão de Cidinha, adiantei-me para o
guarda e fiz continência. Ele olhou para mim com curiosidade,
mas não disse nada.
– Boa tarde, senhor oficial – cumprimentei, com a
máxima deferência. – Calorzinho, hein? Será que a senhora
Dona Clara está em casa? Viemos do ultramar especialmente
para falar com ela. Somos a Turma do Posto Quatro e temos
uma recomendação do nosso amigo em comum, o senhor
Samora Machel.
Ao ouvir falar no nome do presidente de Moçambique, o
policial arregalou os olhos.
– Vocês vieram da África, miúdos? – perguntou ele,
estupefato.
– Do Brasil – emendei. – Mas já estivemos em
Moçambique, onde fomos muito bem tratados. Podemos entrar,
senhor? A senhora Dona Clara terá muita alegria em falar
conosco, ou quase isso. Estamos sinceramente chocados com o
que aconteceu ao marido dela! É profundamente desagradável,
senhor!
– Pois, pois – murmurou o guarda, confuso. – Não sei se
devo... Sim, por que não? Tratando-se do que se trata...
Príncipe também entrou no papo, mantendo a mesma
gravidade, e acabou de enrolar o soldado. Este encolheu os
ombros e nos deixou passar. Entramos pelo portão, de
cambulhada, antes que fosse tarde demais.

42
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Samora Machal... – sussurrou Príncipe. – Esse nome


será o nosso “abre-te sésamo”! Parabéns, Lula! Você lembrou
muito bem!
– Obrigado – respondi, modestamente.
A casa que se erguia a uns cinco metros do portão, no
meio de um quintal maltratado, era tão velha e descascada
quanto o muro. Tinha duas portas, uma no meio da fachada e
a outra à esquerda. Elegemos a do meio como a entrada
principal e batemos à porta. Não havia campainha. Um instante
depois, fomos atendidos por uma senhora gorda e triste,
mulata, com um lenço na cabeça.
– Boa tarde – disse eu, fazendo uma pequena reverência.
– Tenho a honra de falar com a senhora Clara Mabuto?
A mulher encarou-me com desconfiança.
– Sim, sou eu. Quem são vocês? O que querem de mim?
Falava num português carregado, com um sotaque
curioso.
– Somos a Turma do Posto Quatro – esclareci. –
Queremos falar com a senhora a respeito do que aconteceu
com seu marido. Trata-se de um assunto confidencial, que nem
a polícia deve saber. Somos detetives cariocas, com bastante
prática em matar “grilos” e vamos descobrir quem foi o
malvado que fez aquilo com o senhor Mabuto! O jornal diz que
a senhora se chama Clara, não é?
O espanto da mulata era enorme.
– Detetive? Vocês? Mas...
– Se a senhora quer que a verdade transpareça –
continuou Príncipe, gravemente – deve aceitar a nossa
colaboração desinteressada. Não cobramos nada pelo nosso
trabalho, pois fazemos tudo por amor à justiça, e sabemos
manter sigilo, mesmo nos casos mais escalafobéticos. A
senhora pode confiar na Turma do Posto Quatro, senhora
Mabuto!

43
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

A mulher não hesitou mais. Sempre de boca aberta, deu


um passo para o lado e nos convidou a entrar para a sala da
casa velha. Tínhamos ganho o primeiro assalto.
O resto foi mole. Entramos para uma saleta modesta e
nos sentamos, em cadeiras cambaias, ao redor da dona da
casa. Ela não tinha empregada, nem filhos, nem parentes, nem
ninguém que atrapalhasse as nossas investigações.
– Agora, minha cara senhora – disse Príncipe, sempre
numa atitude circunspecta – gostaríamos que nos contasse
tudo o que aconteceu. Os jornais não entram em maiores
detalhes. A senhora suspeita de alguém? Na sua opinião, quem
teria interesse em marretar a cuca de seu marido?
– Em fazer o quê? – espantou-se a mulher.
– Em partir a cabeça do seu esposo – traduzi com
sotaque lisboeta.
– Não sei – respondeu a mulata, torcendo os dedos! –
Não sei de nada! Meu marido não tem inimigos! E não
roubaram nada, na oficina! Agora, Zé António está às portas da
morte, no hospital, e eu... pobre de mim... sozinha aqui em
casa...
E começou a chorar. Foi a vez de Cidinha entrar com o
papo dela, para acalmar a infeliz criatura. Vimos logo que a
mulata era inocente, ou enganava muito bem. Afinal, mais
serena, ela contou a sua história, com todos os detalhes:
– Eu e Zé António casamos na Beira, em Moçambique, e
ali vivíamos muito bem. Não temos filhos. Meu marido é técnico
em eletrônica. Mas veio a guerra... a independência... e
perdemos tudo o que tínhamos! Ainda ficamos na Beira por
algum tempo, à espera de melhores dias, mas fomos
perseguidos pelos nacionalistas e tivemos que fugir. Há quatro
meses que viemos para a metrópole, apenas com a roupa do
corpo e alguns objetos de pouco valor que pudemos carregar...

44
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Nenhum dinheiro? – indaguei, olhando fixamente para


ela.
– Nem um centavo. Somos muito pobres, miúdos. Agora
é que Zé António começava a ganhar algum dinheirinho com a
sua oficina, e estava pensando em se mudar para Lisboa, onde
há mais freguesia. Mas aconteceu esta desgraça e...
– Como foi o crime? – perguntou Príncipe.
– Não sei! Na segunda-feira, às duas horas da
madrugada, Zé António deve ter ouvido algum barulho
estranho na oficina. Vestiu-se e foi lá ver. A oficina fica aqui ao
lado e a porta dá para fora. Meu marido, coitado, ia entrando,
quando foi agredido brutalmente com uma Moca de Rio Maior!
– Como é que é? – Cidinha. – Que negócio é esse?
– A Moca de Rio Maior – explicou Príncipe, antes que a
mulher falasse – é uma arma típica, que ficou na História da
Revolução Portuguesa. Moca é uma espécie de tacape, curto e
grosso, com a cabeça redonda. Depois da dominação
comunista em Portugal, em 1975, os habitantes da localidade
de Rio Maior, que fica entre Lisboa e Leiria, armaram-se com
essas mocas e puseram os comunistas para correr. Foi em Rio
Maior que começou a reação às ideologias estrangeiras. E a
Moca de Rio Maior ficou sendo o símbolo dessa reação.
– Pois, pois – disse a Srª. Mabuto. – Mas meu marido não
se mete em política! Não sei quem foi que atacou Zé António,
mas, quem quer que fosse, queria matá-lo! Ouvi a pancada e o
grito dele e saí correndo, para saber o que tinha acontecido. E
já o encontrei estirado no chão, com a cabeça coberta de
sangue, e a Moca de Rio Maior caída ao lado! Não havia
ninguém na oficina, nem no resto da casa. O criminoso deve
ter fugido pelo quintal, sem que eu visse, o que seria
impossível... Ou, então, saiu pelos fundos da oficina, onde há
uma outra porta, que dá para uma sala da casa. Mas essa porta

45
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

estava com a tranca, pelo lado de dentro, e não posso


perceber...
– Também seria impossível ele sair pelos fundos, sem ser
visto?
– Acho que também. O criminoso era invisível!
– Nada foi roubado, mesmo? – indaguei, em tom severo.
– Nada! Não falta nada! Juro por Deus!
– Hum! Quantas pancadas recebeu o seu marido?
– Só uma, mas muito forte, no alto da cabeça. Ele usa a
cabeça raspada e, por isso, sofreu mais. O doutor disse que
aquela pancada seria suficiente para matá-lo, se fosse na base
do crânio. Mas foi no alto da cabeça.
– Bem no cocuruto? – perguntou Pavio Apagado. – É
onde minha mãe costuma me bater, quando eu apronto
alguma. Mas não sai sangue.
– Você não quer comparar – rosnou Cidinha. – Sua mãe
não bate pra valer!
– Outra coisa, senhora Mabuto – tornou Príncipe. – Seu
marido conserta rádios!
– Não. Faz reparos em telefonias.
– É a mesma coisa. Ele também faz reparos em
televisores, não é?
– Também. É um técnico muito competente.
– Não falta nada, mesmo, na oficina? Nem sequer um
alfinete?
– Nada! O assaltante apenas partiu a pantalha de uma
televisão, que estava ali ao lado.
– Ah! – exclamou Cidinha. – Quebrou a pantalha, hein? O
que é isso?
– Pantalha é o écran – disse Príncipe. Ou seja, o vídeo.
– A tela?
– Sim – disse a mulher. – A pantalha. Mas, fora isso, não
há mais nada diferente, na oficina. Não sei quem fez isso, nem

46
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

por que o faria! Zé António não merecia um tratamento desses!


Ele nunca se meteu em rixas, não bebe, não fuma, nem nada!
Também não acredito que o Roberto Ális tenha alguma coisa a
ver com a história. Roberto é nosso amigo, desde que vivíamos
na Beira e, embora esteja desempregado, não seria capaz...
A mulata foi interrompida por uma pancada na porta
principal da casa velha. Todos nos assustamos e cobrimos a
cabeça com as mãos. Então, no maior silêncio, ela abriu a porta
e se afastou, para deixar entrar o visitante. E foi então que nos
vimos face a face com o homem mais feio que pode haver
neste mundo!
Era o Inspetor Carneiro, da Polícia Judiciária!

47
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

48
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Capítulo VII – No Local do Crime

O Inspetor Carneiro era baixo, corcunda, e tinha o rosto


quadrado, o nariz quadrado, a boca quadrada, tudo quadrado,
como se fosse recortado em pedra. Usava bigode e costeletas e
seus olhos, cinzentos e redondos, por trás dos óculos sem aros,
pareciam os de uma coruja. Depois de cumprimentar a Srª.
Mabuto, e antes que ela lhe desse uma explicação sobre a
nossa presença naquela casa, ele nos contemplou severamente
e rosnou:
– Samora Machel, ham? Turma do Posto Quatro, ham?
Quem são vocês, ó miúdos, e o que vieram espreitar aqui?
– Desculpe – disse eu, adiantando-me a Príncipe. – Em
primeiro lugar, quem é o senhor?
– Sou o Inspetor Lopes Carneiro, da Polícia Judiciária!
Isto é muito irregular! O polícia de guarda não devia permitir a
entrada de estranhos nesta casa! Mas, já que vocês cá estão,
não sairão sem explicarem tudo muito bem!
Pode ser que Cidinha, Carlão e Pavio ficassem
assustados, diante daquele homem tão feio e ameaçador, mas
nem eu nem Príncipe demos demonstrações de receio.
– Desculpe o pretexto do Samora Machel – disse eu, com
um sorriso amarelo. – Foi apenas um meio que os fins
justificam, senhor inspetor... Na verdade, somos a Turma do
Posto Quatro e viemos de Copacabana, para resolver o mistério
de Cascais. Também somos detetives e, se o senhor procurar
informações a nosso respeito, ficará sabendo que somos barra-
limpa e sempre temos ajudado as autoridades brasileiras a
resolver os casos mais intrincados. Podemos fazer o mesmo em
relação às autoridades portuguesas. Não é, Príncipe?
– É isso mesmo – concordou o gordo.

49
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Para nossa surpresa, o inspetor não deu a bronca.


Apenas ficou nos olhando, durante um longo espaço de tempo,
com aqueles olhos de coruja. Por fim, sacudiu a cabeça.
– Sempre me acontece cada uma! – suspirou. – Agora,
temos detetives brasileiros e menores de idade! Isto é uma
brincadeira, pois não é?
– Não é uma brincadeira, inspetor – disse Príncipe. – É
uma coisa muito séria! Tentaram matar o senhor José António
Mabuto e nós nos propomos a descobrir o autor do crime!
Agora mesmo estávamos dizendo para a senhora Mabuto...
E o papo continuou, diante do inspetor silencioso. Na
minha opinião, tínhamos ganho o segundo assalto. Apesar de
feio como a necessidade, o Inspetor Carneiro não era tão
rabugento como certos delegados brasileiros... Depois de ouvir
as nossas explicações, ele suspirou e disse:
– Pois muito bem, miúdos! Vocês querem nos ajudar, não
é isso? Nesse caso, por que não vão para casa e não rezam por
nós? Vocês não têm experiência, nem idade, para serem mais
espertos do que a polícia oficial! Portanto, se nós estamos às
aranhas, diante de um caso tão misterioso, o que se pode
esperar de vocês? Por que não vão brincar de detetives noutro
lugar, ham?
– Dê-nos uma chance, inspetor – pedi. – Quem sabe
temos mais sorte do que os senhores? Prometemos que não
estragamos nenhuma pista, se houver alguma. Não vamos
mexer em nada, não senhor. Só queremos visitar o local do
crime e tirar as nossas conclusões. Por favor, inspetor! O
senhor tem filhos?
– Tenho três miúdos, iguais a vocês – rosnou o policial. –
Mas nenhum deles teria o atrevimento de se meter em sarilhos!
No entanto...
– Por favor! – implorou Cidinha. – A Turma do Posto
Quatro é muito bacana, inspetor! O senhor vai ver que a gente

50
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

pode ser de muita utilidade! Já matamos uma pá de “grilos”, no


Brasil, e não vamos deixar escapar este, em Portugal! Confie
em nós, tá legal?
– Tá legal... bacana... pá de grilos... Não entendo nada
do que vocês dizem! Mas, tá legal! Farei uma experiência. O
que foi que vocês descobriram, até agora? Suspeitam de
alguém?
– Não, senhor – respondi. – Ainda não conhecemos tudo
direitinho. Mas o amigo da vítima, que a polícia pensa que seja
o criminoso, pode estar inocente. E nós não permitiremos que
os justos paguem pelos pecadores! Certo?
– Inhoque signo vinces! – acrescentou Pavio, sem saber o
que dizia.
O inspetor sorriu, mas nem por isso ficou mais bonito.
– Vocês são engraçados... Espertos, ham? Nós também
não queremos castigar o homem errado, miúdos. Por isso,
Roberto Ális ainda está em liberdade. Mas tudo leva a crer que
tenha sido ele o culpado!
A Srª. Mabuto soltou uma exclamação de espanto.
– Roberto? O senhor acha que foi ele? Mas...
– São apenas suposições, por enquanto – falou o
inspetor. – Esse problema dos retornados é muito complexo,
minha senhora. A maioria deles chegou a Portugal sem um
vintém, e muitos deles sem condições para viverem numa terra
civilizada. Quando o governo cedeu quartos, em hotéis, para os
retornados, os pretos sujaram tudo e roubaram tudo o que
podiam roubar! Eram verdadeiros selvagens! Não creio que
esse Roberto Ális seja melhor do que os outros. Ele está
desempregado e não quer trabalhar. Também se envolveu em
contrabando, quando vivia na Beira. Sabemos de tudo isso,
minha senhora!

51
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Mas ele é inocente, inspetor – protestou a mulata. –


Pode ser que precise de dinheiro... mas não havia nada para
roubar, na oficina do meu marido!
– Não havia, mesmo? – perguntou o inspetor, em tom
irônico. – E as libras esterlinas, minha senhora? E as moedas
de ouro que seu marido trouxe de Moçambique? Ora faça-me o
favor!
Caiu o maior silêncio na saleta. A Srª. Mabuto estava
cinzenta de susto. E nós estávamos amarelos de surpresa.
– Não é verdade! – gritou a mulher. – Zé António não
trouxe nenhum oiro de África! Somos pobres e nunca...
O inspetor interrompeu-a, fazendo um gesto com a mão
quadrada.
– Seu amigo Roberto Ális contou-nos tudo, minha
senhora. Consta que seu marido escapou da Beira com uma
porção de moedas de ouro, cozidas nas roupas, principalmente
nos seus vestidos africanos, minha senhora. Onde estão essas
libras, ham? Não teriam sido roubadas da oficina?
– É mentira! – esganiçou a mulata. – Essas libras não
existem! Não trouxemos nenhum oiro de África! Roberto Ális é
um aldrabão! O pouco dinheiro que trouxemos, meu marido
gastou para montar a oficina! É a primeira vez que oiço falar
nessas libras esterlinas!
– Interessante – falou Príncipe. – Assim, o caso muda de
figura. Não acha, inspetor? Se o senhor António trouxe moedas
de ouro escondidas nas roupas e o senhor Roberto Ális sabia
disso, o senhor Roberto podia ter assaltado o amigo para
roubar as moedas... Mas, se a senhora Mabuto está dizendo
que não havia nada de grande valor na oficina...
– Pode ser que haja – tornou o inspetor. – Pode ser que
haja e não tenha sido roubado! O ladrão talvez não tivesse
tempo de carregar o ouro. Nesse caso, as moedas continuam

52
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

nesta casa... escondidas na oficina, talvez. Foi por isso que


resolvi voltar ao local do crime!
– Nós também! – acrescentou Príncipe, empolgado. –
Vamos brincas de chicotinho-queimado, turma! Quem
encontrar as moedas de ouro ganha um doce!
E, apesar dos protestos da Srª. Mabuto, fomos todos para
o local do crime. Já havia dois agentes da Polícia Judiciária do
lado de fora da casa velha, à espera de ordens. O Inspetor
Carneiro foi muito legal e permitiu que nós também
entrássemos na oficina. Mas nos recomendou que não
mexêssemos em nada.
A porta da oficina, ao lado da porta principal da casa
velha, estava fechada, mas o inspetor tinha a chave. Quando
ele a abriu, entramos para um vasto recinto, cheio de aparelhos
de rádio e monitores de televisão. Ao fundo, em cima de uma
banqueta, viam-se os instrumentos de trabalho do dono da
oficina. Numa prateleira, também se via um quadro com a Ceia
Sagrada e um bibelô de barro, pintado de vermelho, verde e
dourado, representando um galo.
– O Galo de Barcelos – disse Príncipe, apontando para a
prateleira. – Dizem que dá sorte. É muito curiosa a lenda do
Galo de Barcelos.
– Você conhece? – indagou Cidinha, com o olhão azul
arregalado.
– Lógico. Contam que, há muitos anos, os moradores de
Barcelos, perto de Braga, ao norte de Portugal, acordaram
alarmados com um crime de morte ali cometido, cujo autor
demorava a ser descoberto. Um belo dia, apareceu na aldeia
um galego, que foi preso como suspeito, embora proclamasse
inocência. Dizia ela que se dirigia a Santiago de Compostela
para pagar uma promessa. Ninguém acreditou e ele foi
condenado a morrer na forca. Mas, antes da execução, o
galego, pediu para ir à presença do juiz, que estava pronto

53
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

para almoçar um enorme galo assado. Aí, o galego falou: “Juro


que estou inocente, senhor juiz! E é tão verdade eu estar
inocente como é certo que esse galo assado cantará três vezes,
na hora em que forem me enforcar!” Mas não adiantou nada.
Momentos depois, quando tudo estava preparado para
enforcarem o forasteiro, o galo assado ergueu-se do prato e
cantou três vezes!
– Não brinca! – gemeu Cidinha.
– Sem essa! – gemeu Pavio.
– Pois é – continuou Príncipe. – Aí, o próprio juiz correu
ao pelourinho e ainda teve tempo de salvar o galego. Dizem
que este, mais tarde, voltou a Barcelos para erigir um
monumento em louvor da Virgem de Santiago de Compostela.
Ficamos todos gelados com a história de Príncipe e
passamos a olhar, com profundo respeito, para o galo de barro
pintado, em cima da prateleira. Enquanto isso, os agentes da
Polícia Judiciária davam buscas na oficina à procura das
moedas de ouro. Mas não encontraram nada que se parecesse
com isso.
– Não temos libras! – Protestava a Srª. Mabuto. – Não
temos nada de valor! Cuidado para não partirem as pantalhas
das televisões.
Aproveitei um momento em que o Inspetor Carneiro
estava distraído, dando ordens aos seus subordinados, e puxei
Príncipe para junto da porta de entrada da oficina, que tinha
ficado aberta.
– Foi aqui que se deu a agressão. Segundo o jornal, a
vítima ia entrando quando recebeu a pancada na cuca. O
agressor devia estar atrás da porta, você não acha? Ou teria
vindo por trás?
Príncipe olhou o cenário e opinou:
– Não, não veio de fora. Devia estar dentro da oficina. E
deve ser mais alto do que a vítima... Qual será a altura do

54
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

galego? Quero dizer: qual será a altura desse senhor Roberto


Ális?
A Srª. Mabuto, que estava ao nosso lado, informou que,
realmente, o suspeito era mais alto do que o marido dela.
Príncipe ficou muito satisfeito.
– Onde é que ele mora? – indagou o gordo.
– Aqui mesmo, no fim desta rua – respondeu a mulher. –
Mora num quarto, no número 197. É um pardieiro, uma casa
vazia que foi invadida pelos retornados. Pobre Roberto! Ele não
seria capaz!
Enquanto Cidinha, Carlão e Pavio assistiam às buscas
feitas pelos policiais, eu e Príncipe examinamos
cuidadosamente o local do crime. À direita da porta da oficina
havia um aparelho de televisão, com o vidro quebrado, em
cima de um caixote.
– Repare, Lula – disse Príncipe. – O vidro foi quebrado
com uma pancada de moca, ou qualquer outro objeto de
cabeça redonda. Isso é estranho, você não acha? Por que o
agressor iria quebrar a televisão, antes ou depois de ter
quebrado a cuca do agredido? Não tem lógica! Ele quebrou a
televisão de graça!
– Não se sabe – ponderei. – Ele podia andar à procura
das moedas de ouro... Onde estará a Moca de Rio Maior?
– Deve estar na polícia. Perca as esperanças, Lula,
porque eles não vão mostrar a arma do crime para nós. Temos
que fazer suposições sobre o tamanho, peso, etc. Mas deve ser
uma moca bem pesadinha!
– Pesadíssima – concordei. – Só espero que não esteja
recheada de moedas de ouro...
– Sem essa! A moca pertence ao assaltante. Pelo menos,
a senhora Mabuto falou aos jornais que a arma não pertencia
ao marido. Ela nunca tinha visto.

55
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Por isso não. Há muita coisa que a senhora Mabuto não


quer dizer...
Examinamos a porta de entrada e vimos que tinha dois
pregos compridos, espetados no alto, quase na beirada de
cima. Aquilo também era muito estranho, pois não havia nada
pendurado nos pregos.
– A oficina só tem duas entradas – disse Príncipe. – A
segunda porta, ali no fundo, dá para dentro da casa velha, e,
segundo a senhor Mabuto, tem uma tranca do outro lado.
Logo, o agressor só podia ter entrado e saído por esta porta.
Mas, então, por que a senhora Mabuto não o viu? Se ela
acorreu logo depois da pancada e do grito do marido, teria
visto o criminoso fugir... ou, pelo menos, a sombra do
criminoso! Aqui tem coisa, Lula! Deve haver uma explicação
lógica para o caso do assassino invisível! É uma pena que a
vítima ainda esteja inconsciente no hospital!
Continuamos as investigações, mas logo tivemos que
interrompê-las. O Inspetor Carneiro e os dois agentes da Polícia
Judiciária já tinham terminado a busca na oficina e garantiam
que ali não havia nenhuma moeda de ouro. Logo, se o Sr. José
António Mabuto possuía libras esterlinas,e tinha-as enrustido na
oficina, o seu agressor devia ter carregado com elas... Seria
esse o móvel do crime?
O enigma fora proposto; agora, a Turma do Posto Quatro
precisava resolvê-lo!

56
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

SEGUNDA PARTE

57
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

58
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Capítulo I – Os Retornados

Pouco depois, saímos da casa velha dos Mabuto e


voltamos para o solar do Sr. Sardinha. Eram sete e quinze da
noite. Despedimo-nos do Inspetor Carneiro, junto ao portão do
muro, acenamos para o policial de sentinela e caminhamos,
orgulhosamente, até a avenida. Cidinha ainda olhou para trás e
disse que os detetives estavam entrando num carro azul e
branco, que devia pertencer à Polícia Judiciária. Carlão e Pavio
discutiam o problema dos retornados, mas eu e Príncipe
seguíamos em silêncio, pensando no que tínhamos visto, no
local do crime, e procurando encontrar uma solução para o
mistério. Ao meio do caminho, eu parei e disse:
– Quem sabe? Talvez esteja no Galo de Barcelos...
– Não – retrucou Príncipe, que seguia os meus
pensamentos. – Reparei que aquele detetive magrinho sacudiu
o galo várias vezes. Não pode ter moedas de ouro lá dentro.
Também pensei nisso, mas não é. Se as libras esterlinas
estavam enrustidas na oficina, o assaltante as levou. Ou, então,
estão metidas nalgum buraco da parede, sei lá.
– Talvez... Ou talvez a senhora Mabuto tenha trocado o
esconderijo do tesouro, depois do crime. Isso é o mais
provável.
Caminhamos mais alguns metros, em silêncio, e, de
repente, Cidinha agarrou no meu braço.
– Não olhe agora! – ciciou ela. – Mas alguém está nos
seguindo, do outro lado da rua! Ai que medo!
A avenida não era bem iluminada, mas dava para ver o
vulto dos pedestres, que caminhavam na calçada oposta. Olhei
disfarçadamente e vi um crioulo alto e magro, andando
devagar, cosido com a parede. Não disse nada e continuamos a
andar. Um quarteirão adiante, olhei outra vez, e lá estava o
crioulo, à mesma distância e na mesma atitude suspeita! Carlão

59
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

e Pavio continuavam a discutir, mas Príncipe percebeu o meu


desassossego.
– Não olhe agora! – disse ele, falando pelo canto
esquerdo da boca. – Mas estamos sendo seguidos! Deve ser o
tal Roberto Ális. A senhora Mabuto falou que ele é mais alto do
que o marido dela. Não sei qual é a altura do senhor José
António, mas aquele careta é bastante alto!
– Já vi – respondi pelo canto direito da boca. – Olho nele,
Príncipe! O crioulo pode estar armado com a maior zarabatana!
E não sabemos quais são as suas intenções!
– Por que uma zarabatana? – ciciou o gordo, admirado.
– Porque é uma arma africana... e não faz barulho!
– Você se engana. A zarabatana só é usada pelos índios
do Amazonas e de Bornéu. Quanto a isso, não há o menor
perigo.
Felizmente, quando chegamos em frente à Vivenda do
Excravos, não vimos mais o espião. Aliviados, entramos no
solar e fomos ao encontro de meu pai, de Mr. Mattews, da Srª.
Mattews e do Sr. Sardinha, que estavam à nossa espera, na
sala de visitas.
– Desculpem a demora – disse Príncipe. – Fomos dar uma
volta e nos distraímos... Era nossa intenção voltar às sete
horas, para não atrasar a janta.
Mr. Mattews olhou para nós com desconfiança, porque já
nos conhecia bem, mas o dono da casa disse que estava tudo
legal, porque eles também tinham se distraído e esquecido do
jantar. Fomos para a mesa e comemos uma excelente carne
assada, com arroz de forno, batatas cozidas e salada de tomate
verdes.
– Esta noite vamos até o cassino – anunciou Mr. Mattews,
depois que nos levantarmos da mesa. – Se vocês quiserem,
daremos um passeio pelo Estoril e, depois, deixaremos vocês
aqui em casa. O cassino é um lugar para adultos.

60
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Aceitamos o convite e fomos passear de carro pelos três


Estoris. Fazia um ventinho frio e não havia quase nada para
ver. Às dez horas, regressamos e fomos entregues aos
cuidados da governanta do Sr. Sardinha, que era uma senhora
severa, de bigode e sobrancelhas coladas uma na outra.
– Não se preocupem – disse eu. – Vamos direitinho para
a cama. Espero que os senhores se divirtam, no Wonder Bar,
vendo aquelas moças peladas...
Meu pai, Mr. Mattews, a Srª. Mattews e o Sr. Sardinha
sorriram e se mandaram. Esperamos que a governanta nos
deixasse a sós, na sala de visitas, e encostamos a cabeça um
nos outros, à maneira de um time de basquete.
– Operação Mistério de Cascais! – sussurrei. – Não
podemos ir todos juntos fazer a investigação na casa do
crioulo. Temos que ser discretos. Por isso, eu vou sozinho com
Carlão. Príncipe tem as pernas curtas e, se for preciso correr...
– Sem essa! – ciciou Cidinha. – Minhas pernas são tão
compridas como as suas! Quero ir com você, tá legal? Os
outros ficam para enrolar a governanta.
Carlão tentou discutir, porque queria ir comigo, mas achei
mais prudente – e mais agradável – levar Cidinha; as pernas
dela tinham a medida justa.
– Não vai ser preciso lugar caratê – obtemperei. –
Pensando bem, é uma missão discreta, e Carlão faz muito
barulho. Cidinha vai comigo para ficar de guarda, porque eu
quero procurar as moedas de ouro sozinho. Certo?
– Certo – concordou Príncipe, embora Carlão não ficasse
muito satisfeito.
Esperamos que a governanta voltasse e nos
encaminhasse para os nossos quartos. Meia hora depois, de
acordo com o combinado, eu e Príncipe saímos do nosso
dormitório e Cidinha saiu do dela. O solar estava às escuras e

61
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

em silêncio. Agarrei na mão fria de Cidinha e nos esgueiramos


pela porta da frente, que Príncipe abriu cautelosamente.
– Operação Mistério de Cascais! – sussurrei. – Fique
atento, Príncipe! À meia-noite, em ponto, venha abrir a porta
para nós. Acerte o seu relógio pelo meu. Se não voltarmos à
meia-noite, chame a Polícia! Tchau!
Príncipe acenou e fechou a porta, com a mesma cautela.
– Estou com medo – murmurou Cidinha, apertando a
minha mão gelada. – Você acha que não tem perigo? E se
aquele negro feioso nos pegar em flagrante?
– Pega nada – retruquei, fingindo que não estava
preocupado. – Só quero ter a certeza de que as moedas de
ouro não estão escondidas no quarto dele. Vamos em frente!
A avenida, escura, estendia-se diante de nós. Àquela hora
quase não havia transeuntes. Os carros também eram poucos.
Puxei Cidinha pela mão e caminhamos, apressadamente, pela
calçada deserta. Quinze minutos depois, dobramos a esquina
da Rua da Fontainha, percoremos o primeiro quarteirão e
passamos em frente à casa velha dos Mabuto. O guarda
republicano estava sentado num banquinho, diante do portão,
dormindo a sono solto. Continuamos a caminhada, de mãos
dadas, e atingimos o número 197. Tal como a Srª. Mabuto
dissera, era um pardieiro de rés do chão, caindo aos pedaços.
A porta estava fechada, mas havia luz numa das janelas da
frente.
– Fique aqui – recomendei a Cidinha. – Não sei se o
senhor Ális está em casa, ou não. Se chegar alguém, você deve
assobiar, para me prevenir. Tomara que o suspeito tenha saído
e não volte tão cedo!
Cidinha encostou-se à fachada da casa, num lugar
sombrio, e ficou de sentinela. Apertei-lhe a mãozinha, sorri
para ela e me encaminhei para a janela iluminada do casarão.
Dei uma rápida espiada pela vidraça suja, e vi um casal de

62
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

negros sentados a uma mesa, lendo e escrevendo qualquer


coisa. O homem não era alto. Continuei andar, dobrei a quina
da casa e fui espiar por outra janela. O novo quarto estava às
escuras, mas percebi um vulto gordo, deitado numa cama de
metal. Outro retornado. Mas também esse não era o suspeito.
A terceira janela dava para um quarto menor, também às
escuras, onde não vi ninguém. Experimentei empurrar a vidraça
e tive a sorte de vê-la volver-se nas dobradiças enferrujadas. A
janela não estava fechada com o trinco. Saltei para o peitoril,
sem fazer barulho e pulei para dentro do quarto. Não
aconteceu nada. A porta estava fechada e a chave na
fechadura. Mesmo no escuro, comecei a dar uma busca
meticulosa em todas as paredes. Nenhuma delas tinha buracos.
Passei, então, a examinar o assoalho feito com tábuas velhas e
empenadas. Nada de novo. Abri o armário e também não
encontrei nada que se parecesse com moedas de ouro. A
miséria do morador daquele quarto era tão grande que só havia
um terno e dois blusões nos cabides. Também havia um par de
sapatos, com dois buracos nas solas.
Minha atenção foi atraída por um retrato, em cima da
mesinha de cabeceira. Examinei-o com interesse, à luz fraca
que vinha da janela. Era a fotografia de um grupo de negros
risonhos, de dentes muito brancos. Reconheci a Srª. Mabuto,
de braço dado com um crioulo mais baixo do que ela, e prestei
especial atenção a um outro negro, alto e magro, que parecia
sorrir para mim. Aquele devia ser o Roberto Ális.
Recoloquei o retrato em cima da mesinha, ajoelhei-me e
espiei debaixo da cama. Nada, a não ser um vaso sanitário
vazio. Endireitei-me e puxei a coberta da cama, disposto a
apalpar o colchão. E de repente, soltando um grito de susto,
recuei e bati com as costas na parede. A cama estava ocupada
por um crioulo alto e magro, que olhava para mim com as
pupilas brancas arregaladas!

63
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Ai! – gemi.
– Ui! – gemeu o negro, estendendo as mãos.
Não esperei por mais nada. Antes que o homem me
agarrasse, disparei para a janela, pulei o parapeito e caí, de
gatinhas, na terra fofa, do lado de fora. Depois, sem olhar para
trás, corri para a frente do pardieiro. Cidinha foi ao meu
encontro, com o olhão azul arregalado e os cabelos amarelos
em pé, feito porco-espinho.
– E então? – perguntou ela. – Encontrou alguma coisa?
– Encontrei o retornado! – gaguejei, quase sem fôlego. –
Ele queria me pegar! Vamos dar o fora daqui!
Ouvimos gritos de alarma, que vinham da janela do
quarto do crioulo alto e magro. As luzes das outras janelas se
acenderam, dando a entender que todos os retornados
estavam acordando e se preparando para a briga. Diante disso,
agarrei na mão de Cidinha e disparei pela rua afora. Corremos
que não foi vida! Mas, ao passar diante da sentinela da Guarda
Republicana, que também se acordara e se pusera de pé, em
frente ao portão do nº 21, ainda tivemos tempo de acenar para
ele, num cumprimento rápido e gentil. Não sei o que foi que ele
pensou, mas estava tão espantado que nos deixou passar, sem
correr atrás de nós.

64
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Capítulo II – A Srª. Mabuto Confessa

Ainda esperamos meia hora, na estrada principal da


Vivenda dos Escravos, antes que o meu relógio marcasse meia-
noite e a porta se abrisse, cautelosamente, para nos deixar
passar. Príncipe estava cheio de sono.
– Tudo legal? – sussurrou. – Encontraram o tesouro?
– Nada – respondi. – Encontrei o retornado e apanhei o
maior susto! Mas tenho quase certeza de que as libras
esterlinas não estão com ele.
– Se é que essas libras existem – acrescentou Cidinha.
Entramos para a sala de visitas e nos despedimos logo,
porque Cidinha também estava tonta de sono. Depois que ela
se meteu no seu quarto, eu e Príncipe fomos para o nosso,
fechamos a porta e continuamos o nosso papo. Falávamos a
meia voz, dentro da escuridão.
– Que impressão você teve do senhor Ális? – indagou o
gordo.
– A pior possível! É um selvagem! Tem uns olhos
enormes, que brilham no escuro, e umas mãos ainda maiores,
como garras de leopardo! Tenho certeza de que, se ele me
pegasse, me estrangulava! Ou talvez me devorassse!
– Não havia nenhum cofre no quarto dele?
– Que nada! Aqueles retornados vivem na maior miséria.
Igualzinho aos nossos favelados, ou pior. Não creio que o
senhor Ális tenha roubado o ouro do amigo.
– Será que eles são amigos, no duro?
– Devem ser íntimos. Tem um retrato, no quarto do
crioulo, em que ele aparece ao lado do casal Mabuto. Eles
pareciam muito felizes naquela ocasião.
– Retrato tirado em Moçambique, com certeza...
– Com certeza. Não deu para reparar.

65
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Estive pensando no caso, sabe, Lula? E cheguei à


conclusão de que o criminoso talvez não fugisse do local do
crime, na noite de agressão... Não há assassinos invisíveis. A
senhora Mabuto deve estar mentindo!
– É o que eu penso também. As declarações dela podem
ser falsas. Mas isso não quer dizer que ela tenha marretado a
cuca do marido.
– Não é nisso que estou pensando.
– É, sim.
– Bem... Talvez seja. Por que é que ela iria mentir, se não
fosse a culpada?
– Sei lá! Podia esconder a verdade para proteger o
senhor Roberto Ális. Vamos analisar o depoimento que ela nos
fez? Temos que descobrir onde é que está a mentira!
– É uma boa. Você se lembra das palavras da senhora
Mabuto? Confesso que não me recordo de tudo
pormenorizadamente.
– Pois eu não esqueci uma palavra. Ela disse que, na
segunda-feira, às duas horas da madrugada, o senhor José
António devia ter ouvido algum barulho esquisito na oficina,
pois se vestiu e foi lá ver. Aí, ele ia entrando na oficina, quando
foi agredido brutalmente com a Moca de Rio Maior.
– Como é que ela sabia que a pancada era de moca?
– Ora, Príncipe! Pois se ela acorreu e viu o marido
machucado e a moca ao lado dele! Lógico que a pancada foi de
moca!
– Vá lá que seja. Eram duas horas da madrugada, não é?
Muito bem! Como é que ela sabia do horário?
– Naturalmente olhou para o relógio. Ou deu a hora
aproximada. Isso não prova coisa alguma. Podia ser duas
horas, ou três tanto faz. O que interessa é que era de
madrugada e eles ouviram um barulho esquisito na oficina.

66
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Mas a oficina fica separada do quarto de dormir. O


barulho devia ser muito grande, para acordar o casal. Quem
sabe o agressor queria atrair a vítima à oficina? Nesse caso, ele
faria um barulhão.
– Pode ser. Mas... espera lá, Príncipe! Espera lá!
– Que foi?
– Parece que matei o “grilo”! Se o senhor José António
estava deitado, de pijama e ceroulas, e ouviu um barulho
esquisito na oficina, qual seria a primeira coisa que ele faria?
– Eu me escondia embaixo da cama! Tenho pavor de
ladrão!
– Não, senhor. Se você fosse ver o que era, iria direto!
Ora, a senhora Mabuto falou que o marido se vestiu e só
depois é que foi lá! Está entendendo? Por que é que ele se
vestiu, para depois ir à oficina? Não tem lógica! Ou ele ia
correndo, ou não ia!
– A senhora Mabuto disse que ele se vestiu, é?
– Disse! Aliás, tinha que dizer, porque a vítima foi
encontrada completamente vestida, com colete e tudo! Você
não leu no jornal?
– Puxa, Lula! – exclamou Príncipe, empolgado. – Parece
que descobrimos a mentira da senhora Mabuto! Foi ela quem
bateu na cuca do marido com a Moca de Rio Maior!
– Talvez sim, talvez não – retruquei, varado por uma
suspeita. – Se a senhora Mabuto tiver mentido três vezes, acho
que seria capaz de esclarecer tudo! Faltam duas mentiras!
– Quais?
– Quero saber se havia, realmente, as moedas de ouro e
se a moca não pertence ao próprio casal Mabuto! Se eu provar
que existe o tesouro e que a arma do crime foi comprada pela
vítima, aí o caso muda de figura!

67
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Não sei aonde você quer chegar, Lula. Você acha que o
agressor tomou a moca da vítima e deu com ela na cabeça
dela?
– Não, não é isso. O mistério é mais complicado, Príncipe!
Mas eu vou resolvê-lo! Puxa vida! Macacos me mordam se eu
não estiver na pista certa! Amanhã, de manhã, vamos fazer
outra visita à senhora Mabuto! E, desta vez, ela vai ter que
confessar tudo o que sabe!
Príncipe ainda me apertou, querendo conhecer a minha
teoria, mas eu me fechei em copas. Afinal, o gordo se cansou
de falar sozinho e deitou-se na cama dela. Eu também me
deitei na minha cama, e adormeci logo, pensando na solução
do mistério. Só podia ser aquilo!
Às oito horas da manhã, já estávamos tomando café, na
sala. Meu pai, Mr. Mattews, a Srª. Mattews e o Sr. Sardinha
continuavam dormindo, pois tinham chegado em casa de
madrugada.
– Se vocês quiserem – disse a governanta bigoduda –
podem ir até à praia. Mas nada de nadar para longe, ouviram?
Posso confiar em vocês, miúdos?
– Claro – disse Cidinha, com um sorriso meigo. – Somos
de inteira confiança! Eu só quero tomar um pouco de sol...
– Tomar sol? Ai, meu Jesus! O sol não se toma, apanha-
se!
Vestimos nossas roupas de banho e nos mandamos do
solar.
– Operação Mistério de Cascais – anunciei, ao chegarmos
à calçada da avenida. – Vamos, outra vez, à casa velha dos
Mabuto! Já combinei tudo com Príncipe. Quero que a senhora
Mabuto confesse a verdade! Pode ser que ela não saiba quem
foi que agrediu o senhor José António, mas eu sei! Ou, pelo
menos, tenho uma teoria muito bacana, que esclarece todo o
mistério! Vamos?

68
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– É preciso ir a turma toda? – perguntou Cidinha, que


queria ir à praia.
– Lógico! A Turma do Posto Quatro costuma se dividir,
durante as operações, mas está sempre junta, na hora da
decisão! Vamos em frente, pessoal!
Carlão perguntou se ia haver briga, mas eu esclareci que,
na minha opinião, não tinha perigo, porque o culpado não ia
reagir. Então, o nosso campeão de caratê descerrou os punhos
suspirou e disse que gostava mais das operações em que havia
briga, porque só assim ele podia mostrar os seus golpes
magistrais... Ninguém fez comentários, pois já sabíamos como
eram os golpes de Carlão...
Subimos a avenida, dobramos na Rua da Fontainha e
encontramos pela frente o soldado da Guarda Republicana, que
tomava conta do portão do nº 21.
– Oi! – saudei, fazendo continência. – Tudo legal? O
Inspetor Carneiro nos pediu para vir aqui, saber se a senhora
Mabuto precisa de alguma coisa...
O guarda fez uma careta, mas nos deixou entrar. Que
sorte! Se ele me perguntasse o que tinha acontecido naquela
noite, e porque eu e Cidinha tínhamos dado aquela corrida
maluca, nenhum de nós saberia responder...
Batemos à porta principal da casa velha e a Srª. Mabuto
nos recebeu amavelmente. Também tivemos sorte, desta vez,
porque a mulata estava sozinha.
– Meu marido já recuperou a consciência – anunciou ela,
com voz triste. – O Inspetor Carneiro acaba de sair daqui. Zé
António está fora de perigo, mas não se lembra de nada,
pobrezinho. Não sabe quem foi que o agrediu com a Moça de
Rio Maior. Eu também não sei.
Sentamo-nos nas cadeiras velhas da saleta e eu tomei a
palavra:

69
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Senhora Mabuto, chegou o momento de falarmos com


toda a franqueza! Por que a senhora não disse a verdade,
quando contou que seu marido estava em casa, em sua
companhia, e ouviu um barulho esquisito na oficina?
A mulata ficou branca. Mas, antes que ela protestasse,
Príncipe acrescentou:
– Seu marido não estava em casa, minha senhora! Não
sabemos onde é que ele estava, mas veio da rua! Por isso, foi
encontrado completamente vestido! Ele não se vestiu, depois
de ouvir o barulho! Além disso, se esse barulho existisse, teria
que ser um tiro de canhão para ser ouvido no quarto! Certo,
Lula?
– Certo, Príncipe! Ou tiro de canhão, ou bater um bumbo!
A mulher pôs-se a chorar.
– Não chore – acudiu Cidinha, meiga como sempre. – A
gente não quer lhe fazer mal, minha senhora. Já basta o susto
que a senhora passou. Mas, agora, deve dizer a verdade. Seu
marido é um lalau, não é? E estava exercendo a sua
desagradável profissão, naquela noite, quando...
– Oh, não! – interrompeu a mulher, ofendida. – Zé
António é um trabalhador honesto! É técnico em eletrônica!
Ele... ele...
– Confesse! – exigi, em tom severo.
– Ele... bebe muito – disse a mulher, com voz abafada
pela vergonha. – Meu marido tem esse vício terrível, miúdos!
Ele sempre sai, à noite, para beber nas tabernas com os
amigos... e volta para casa embriagado! Foi isso o que
aconteceu na segunda-feira! Ele estava na rua e deve ter
voltado às duas horas da madrugada. Eu já estava a dormir.
Então, quando ele entrou na oficina, por engano, em vez de vir
para o nosso quarto... quando ele entrou...
– Pumba! – fez Cidinha, imitando a pancada de uma
Moca de Rio Maior.

70
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Agora, sim! – disse eu, mal contendo o entusiasmo. – A


senhora confessa que seu marido chegou da rua, senhora
Mabuto?
– Confesso, miúdos! Mas eu não queria que soubessem...
Ele bebe muito e, às vezes, fico violento, refilão... Vocês sabem
como é a bebida... Quando ao enche a pipa, ele é tão
carinhoso! Mas, quando sai para beber, volta para casa
completamente transtornado! Eu sei que a polícia vai acabar
descobrindo tudo, o que é uma vergonha, mas...
– Outra coisa – disse eu, com a mesma voz severa. –
Onde estão as moedas de ouro? Sabemos que essas moedas
foram escondidas pelo senhor José António, na oficina, mas
não estão mais lá! Também sabemos que o assaltante não
roubou nada! Logo, a senhora tirou as moedas da oficina,
depois do crime, e escondeu-as noutro lugar! Certo? Pode
dizer, porque nenhum de nós se interessa por libras esterlinas.
A mulher parou de chorar, olhou para mim com as
pupilas arregaladas e balbuciou:
– Sim, confesso! Mas o dinheiro é nosso! Eram nossas
economias, ajuntadas com muito sacrifício! O dinheiro e nosso
e o governo não tem o direito de nos tirar! Zé António
conseguiu trazer as libras esterlinas, cosidas nos meus vestidos,
e escondeu-as no Galo de Barcelos. Sim, era lá que elas
estavam: no Galo de Barcelos! Por sorte, ainda lá as achei, na
segunda-feira, antes de chamar a polícia, e escondi-as no
nosso colchão. O dinheiro está todo comigo, graças a Deus,
pois o assaltante não teve tempo de roubá-lo! E, agora, não
permitirei que a polícia m’o roube! Nem a polícia nem o
governo!
– Ótimo! – exclamei, cada vez mais feliz. – Só mais uma
pergunta, senhora Mabuto. Seu marido, por acaso, não a
proibiu de ir à oficina, na ausência dele? Quero dizer: nas
noites em que ele saía para frequentar as tabernas?

71
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Sim, é verdade – respondeu a mulata, admirada. – Ele


me recomendou que não entrasse na oficina. Mas não acredito
que Roberto Ális seja o culpado! Roberto sabia que nós
tínhamos o oiro, mas é nosso amigo há mais de vinte anos!
Realmente, ele andou envolvido com contrabandistas, na Beira,
mas já se regenerou. Foi preso, pagou pelo crime e mudou de
vida. Agora, aqui em Lisboa, está a procurar um emprego e não
encontra! A vida é muito difícil, para os retornados, aqui em
Portugal! Antes tivéssemos ido para o Brasil, onde o dinheiro
nasce nas bananeiras!
– Uma última pergunta – acrescentei, com a voz
esganiçada pela emoção. – A senhora sabia que o senhor José
António tinha comprado aquela Moca de Rio Maior? Sabia que a
arma do crime era dele?
– Oh, não! Aquela moca...
– Sabia? – insisti, com tom ameaçador.
– Sabia – confessou a Srª. Mabuto, com voz surda. – Ele
comprou a moca, em Rio Maior, para se defender de algum
assaltante que quisesse lhe roubar o oiro... Mas não teve sorte
e, como estava bêbedo, o assaltante arrebatou-lhe a moca e
partiu-lhe a cabeça! Foi isso o que aconteceu, miúdos!
Não era bem isso, mas quase. Eu já sabia como é que as
coisas tinham se passado!

72
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Capítulo III – O Verdadeiro Culpado

Despedimo-nos da Srª Mabuto e partimos para outra. Eu


ia na frente do grupo, empolgado, como um bandeirante em
busca de esmeraldas. Ao sairmos da casa velha, depois de
cumprimentarmos o soldado da Guarda Republicana, Cidinha
me agarrou pelo braço.
– Agora podemos ir para a praia? – indagou ela.
– Ainda não. Você não entende, menina? Estamos
matando o “grilo”! Só iremos para a praia depois de
encerrarmos a Operação Mistério de Cascais!
– E falta muito?
– Agora, falta pouco. Só quero obter a confissão do
senhor Roberto Ális. Vamos até a casa de cômodos dos
retornados!
– Ai, meu Deus! – gemeu Cidinha.
Descemos a Rua da Fontainha e chegamos ao pardieiro
nº 197. Estava tudo fechado. Bati à porta e apareceu um
crioulo gordo e risonho, de bermuda e uma camisa de meia
esburacada.
– Bom dia, meu caro senhor – disse eu. – Somos a Turma
do Posto Quatro e queremos falar com o senhor Roberto Ális.
Trata-se de um assunto confidencial e da maior importância.
O retornado encolheu os ombros e disse que podíamos
entrar. Caminhamos, atrás dele, por um corredor fedorento,
com portas à direita e à esquerda. Na terceira porta, à direita,
o crioulo gordo parou e bateu com força. Quando a porta se
abriu, vimo-nos na frente de um outro negro, alto e magro,
vestido com um terno surrado. Era o homem que me assustara,
com seus olhos redondos! Ao me reconhecer, ele recuou
precipitadamente, soltando um grito de susto. Nós também
recuamos no corredor, mas eu logo readquiri o sangue frio.

73
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Bom dia, senhor Ális. Somos a Turma do Posto Quatro,


que veio do Brasil para cooperar com a polícia portuguesa e
resolver o mistério de Cascais! Não tenha medo de nós, porque
nós também não temos medo do senhor. Os inocentes não
temem, embora, às vezes, se assustem um pouco...
– Vócês?! – exclamou ele, subitamente ameaçador. – Por
que voltaram aqui? O que é que vócês, querem de mim? Por
que me perseguem? Esta noite vócê invadiu o meu quarto e
pregou-me um susto! Por que não me deixam em paz?
Fiz um sinal para o negro gordo, agradecendo-lhe a
colaboração, entrei no quarto, seguido pelos membros da
turma e fechei a porta, deixando o gordo no corredor.
– Não se aborreça, seu Ális – disse Príncipe, olhando ao
redor com expressão de curiosidade. – Já sabemos que o
senhor não tem nenhuma libra esterlina neste cochichó... O
senhor é pobre, no duro. E nós gostamos de ajudar os
necessitados.
– Não preciso que ninguém me ajude! – rosnou o
retornado, ainda ameaçador. – Saiam daqui! Vão-se embora! Já
não basta a polícia? Eu não fiz nada de mal! Paguei as minhas
contas com a justiça e nunca mais me meti com aqueles
contrabandistas de má morte! Só quero viver em paz! Só quero
arranjar trabalho e ganhar honestamente a minha vida!
– Sabemos disso – falei eu, com voz firme. – O senhor
está inocente, senhor Ális. Não foi o senhor o verdadeiro
culpado. A Turma do Posto Quatro já sabe quem foi que deu
aquela mocada na cuca do seu amigo. Mas a polícia suspeita do
senhor, e o senhor deve colaborar conosco, para o completo
esclarecimento do caso. Somos detetives, entende? E o
Inspetor Carneiro se amarrou em nós.
– Não percebo nada do que vocês dizem! – gemeu o
crioulo, atônito.
– Queremos a sua confissão, senhor Ális!

74
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Minha confissão? Homessa! Eu não tenho nada a


confessar!
– Queremos que nos diga se o senhor sabia que o seu
amigo José António Mabuto tinha um bocado de moedas de
ouro escondidas em casa. Só isso. O senhor sabia?
O homem sentou-se na beira da cama, sacudindo
desesperadamente a cabeça.
– Sim, eu sabia! Já contei tudo à polícia. Mas não era só
eu que sabia. Alguns compatriotas nossos, com quem Zé
António costumava beber, também sabiam da história das
moedas de ouro. Só não sabiam onde é que Zé António
escondia o raio das libras. Eu também não sabia, embora
imaginasse eu fosse na oficina de reparos... Mas nunca fui lá!
– No entanto, pensou em ir...
– Nunca! Quero dizer... Pensar é uma coisa, e fazer é
outra! Não sou um ladrão! Estou na miséria, não arranjo
trabalho, mas nem assim quero voltar a ser um bandido! Já
sofri muito por causa da minha má cabeça! Agora, só quero
que me deixem em paz!
– O senhor ficará em paz – disse eu, abrandando o tom
da voz. – Suponho que tenha um álibi para a madrugada de
segunda-feira...
– Sim, tenho uma coartada!
– Tem o quê? – estranhou Cidinha.
– Um álibi. Eu estava dormindo, aqui em meu quarto,
quando sucedeu aquilo tudo. Os outros retornados sabem que
eu não saí deste quarto. Mas a polícia não me acredita! Juro
pela salvação de minha alma que não assaltei a oficina de Zé
António! Pensar é uma coisa, fazer é outra! Juro que estou
inocente!
– Se o senhor está inocente – acudiu Carlão, cerrando os
punhos – porque nos seguiu, ontem de noite, pela avenida

75
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

escura, com uma zarabatana e uma flecha envenenada?


Cidinha me contou!
O crioulo piscou nervosamente os olhos.
– Zarabatana? Eu? Eu nunca vi uma zarabatana na minha
vida! Fui atrás de vocês, pela avenida, porque vi vocês saírem
da casa de Maria Madalena. Só queria saber aonde vocês iam e
o que estavam a fazer.
– Maria Madalena, hein? – rosnou Pavio Apagado. – Olha
ele apelando para as santas!
– Maria Madalena – esclareceu Príncipe – e o nome da
senhora Mabuto.
Nisso, bateram à porta do quarto. Quase imediatamente,
a porta se abriu e revelou, pela abertura, o rosto feioso do
Inspetor Carneiro. A surpresa foi geral.
– Olarilas! – exclamou o agente da Polícia Judiciária. –
Parece-me que cheguei a tempo, ham? Com que, então, vocês
continuam a brincar de detetives, ham? Pois a brincadeira
acabou!
– Por quê? – perguntei.
– Porque já descobrimos o culpado! Foi este malandro
que tentou matar o amigo, para roubar-lhe as economias! O
álibi dele não vale nada, porque os outros retornados são tão
suspeitos quanto ele! É tudo uma corja! Não sei por que
Portugal recebeu de volta uma gente tão indesejável!
– O senhor se engana, inspetor – disse Cidinha, com uma
coragem surpreendente. – Estamos convencidos de que o
senhor Roberto Ális é inocente! Não é um crime a pessoa ser
pobre, humilde, e não encontrar trabalho! Antes de ofender
este cidadão lusitano, o senhor deve provar a culpa dele! Todos
os acusados são inocentes, até o momento em que se prove o
contrário!
O Inspetor Carneiro estava de boca aberta.

76
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Faço minhas as palavras de Cidinha – disse eu, criando


coragem. – O senhor não tem o direito de prender um cidadão
português, em sua própria terra, sem motivos justificados! Por
acaso o senhor José António recuperou a memória e acusou o
amigo?
– Não – confessou o inspetor. – A vítima voltou a si, mas
está sofrendo de amnésia, devido à pancada que recebeu na
cabeça. Mas o criminoso só pode ser este preto da Beira! Ele
não tem um álibi consistente, está precisando de dinheiro,
sabia que o amigo tinha moedas de oiro escondidas na oficina,
já andou envolvido com contrabandistas e...
– Isso não prova nada – retorqui, olhando de soslaio para
Príncipe. – Nós sabemos da verdade! Não foi o senhor Roberto
Ális quem assaltou o senhor José António! Assim como também
não foi a senhora Maria Madalena Mabuto!
– Ai não? – fez o inspetor, em tom de escárnio. – Nesse
caso, na opinião de vocês, quem é o verdadeiro culpado?
– O verdadeiro culpado – respondi, com voz firme – é a
vítima!
– Olarilas! – concluiu Príncipe, que tinha entrado na
minha. – O verdadeiro culpado é o próprio senhor Mabuto! E,
agora, está fingindo que perdeu a memória e não sabe de
nada!

77
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

78
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Capítulo IV – O Beijo da Vitória

O Inspetor Carneiro olhava, de boca aberta, do meu rosto


para o rosto de Príncipe. O Sr. Roberto Ális, Cidinha, Carlão e
Pavio Apagado também demonstravam o mesmo espanto.
– Ora façam-me o favor! – exclamou o agente da Polícia
Judiciária. – O que é que vocês estão a dizer, miúdos? Querem
convencer-me de que a vítima bateu com a moca na própria
cabeça, para fingir que estava a ser assaltada? Nunca ouvi
tamanho disparate!
– Não foi bem isso – falou Príncipe. – Conta para ele,
Lula. Conta como foi.
– Conta você.
– Não. Conta você, que sabe melhor das coisas. Eu
também matei a charada, mas não conheço os detalhes. Você é
melhor detetive do que eu.
– Pois muito bem – disse eu, estufando o peito. – Pela
minha teoria, tudo não passou de um acidente. Ninguém
tentou roubar as moedas de ouro do senhor Mabuto!
– Não estou a perceber – rosnou o inspetor.
– É simples. Podemos ir à oficina do senhor Mabuto? Lá,
no local em que se deram os fatos, contarei tudo melhor.
Suponho que aqueles dois pregos ainda estejam na porta, não?
Eles são necessários para reconstituirmos o acidente...
O inspetor fungou, mas nos convidou para acompanhá-lo.
Saímos da casa de cômodos dos retornados e fomos fazer
outra visita a Srª. Mabuto. O Sr. Roberto Ális foi também, assim
como os dois agentes da Polícia Judiciária que acompanhavam
o inspetor. Dez minutos depois, estávamos na oficina do Sr.
Mabuto, junto à porta que se abria na fachada do prédio. A Srª.
Mabuto também assistiu ao último ato do drama, mas não disse
uma palavra.

79
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Aqui estamos – falei eu, sorrindo para o Inspetor


Carneiro. – Foi aqui que se deu o desastre. Como? Por quê? Eu
o vou revelar agora. Antes de mais nada, porém, quero que
saibam como foi que cheguei à conclusão de que não houve
crime. Foram as declarações da senhora Maria Madalena
Mabuto, aqui presente, que me deram a solução do mistério.
Ela confessou que o marido estava completamente vestido e
tinha chegado da rua, embriagado, na madrugada de segunda-
feira. E também falou que ouviu a pancada, mas não viu
ninguém. Foi isso o que me fez desconfiar de que não havia
ninguém... Depois, quando vi aqueles dois pregos, ali em cima
da porta, compreendi tudo. O senhor Mabuto podia ter caído
numa armadilha que ele próprio preparara! E assim foi!
Todos olharam para os pregos, inclinados na beirada
superior da porta.
– Como? – indagou o inspetor, confuso.
Continuei a minha exposição:
– Sabemos que o senhor Roberto Ális e os outros
retornados sabiam do caso das moedas de ouro. Por isso, o
senhor Mabuto andava desconfiado, com medo de que lhe
roubassem as libras, escondidas no Galo de Barcelos... Então,
no que foi que ele pensou? Em defender a oficina dos amigos
do alheio! Comprou uma Moca de Rio Maior, grande e pesada,
pregou dois pregos no alto da porta da oficina, pelo lado de
dentro e, cada vez que saía de casa, deixava a moca
equilibrada nos pregos, com a porta fechada. Ou seja: fechava
a porta da frente e saía pela porta dos fundos, que tem tranca.
Assim, quem abrisse a porta da frente faria a moca escorregar
e cair bem em cima da própria cuca. Era uma excelente
armadilha; mesmo que a pancada não matasse o intruso, pelo
menos faria com que ele desse um grito, denunciando a sua
presença...

80
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Você quer dizer – falou o inspetor – que o senhor


Mabuto caiu na sua própria cilada? Como? Por quê?
– Caiu porque caiu, ora essa! Simplesmente porque, na
madrugada de segunda-feira, quando voltou para casa, estava
bêbedo como um cacho! Aí, ele se esqueceu da armadilha que
preparara na oficina e, quando abriu a porta, levou a maior
mocada no alto da cuca! É fácil reconstituir a cena. A Moca de
Rio Maior caiu dos pregos, bateu no cocuruto da cabeça do
senhor Mabuto, saltou e ainda foi quebrar o vídeo daquela
televisão que estava ali para consertar. De outra forma não se
compreenderia o desastre, pois nenhum assaltante iria quebrar
o vídeo da televisão de graça. Foi a moca, sozinha, depois de
ter rachado o quengo de seu proprietário!
– A explicação é engenhosa – admitiu o Inspetor Carneiro
– mas não me convence! Tem que haver um assaltante!
– Pois não há – afirmou Príncipe. – Eu bolei a mesma
solução de Lula. Só pode ter sido assim. Para que aqueles dois
pregos ali em cima, senão para manterem a moca deitada no
alto da porta fechada? Reparem. É só abrir a porta e a moca
escorrega e cai... Foi assim que se deu o acidente. O senhor
Mabuto bebeu muito na madrugada de segunda-feira,
esqueceu-se da armadilha que ele próprio preparara e entrou
bem... Nada mais lógico, inspetor!
– Não acredito nisso – tornou o agente da Polícia
Judiciária. – Vocês são uns miúdos inteligentes, mas têm muita
imaginação... Não acho que essa teoria explique razoavelmente
os acontecimentos. O senhor Mabuto perdeu a memória mas,
quando a recuperar, certamente denunciará o falso amigo que
lhe deu aquela pancada na cabeça! O falso amigo... para quem
estou a olhar agora!
Os olhos dele estavam fixos no rosto cinzento do Sr.
Roberto Ális.

81
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– O senhor Mabuto não perdeu a memória – acudi eu,


com voz fria. – Ele simplesmente está envergonhado por ter
caído na sua própria cilada, e não quer contar a verdade. Mas
foi assim que as coisas se passaram! Eu e Príncipe estamos
convencidos disso! O senhor Ális é inocente!
– Ora muito bem – replicou o inspetor. – Vou visitar
pessoalmente a vítima no hospital de Cascais, e acusá-la de ter
engendrado toda essa complicação! Mas, se o senhor Mabuto
negar, o senhor Ális vai para a cadeia! Eu cá prefiro um
pássaro na mão do que dois a voar!
Depois disso, despedimo-nos de todos e nos mandamos
para a praia. Cidinha queria nadar um pouco, porque se
amarrara numa boia verde e vermelha que o Sr. Sardinha lhe
emprestara. Era uma boia muito interessante, que não ajudava
ninguém a boiar, mas soltava um apito, quando a gente estava
prestar a morrer afogada...
– Nossas deduções estão certas – comentou Príncipe
quando entramos na areia. – Não fique triste, Lula. O inspetor
vai acabar confirmando tudo o que você falou. Eu também
acho que foi assim. E o senhor Mabuto vai confessar a
mancada, mais cedo ou mais tarde!
– Espero que confesse – murmurei. – Nossas deduções
são perfeitas demais para estarem erradas. Só tenho medo de
uma coisa.
– De quê?
– De que a cilada tenha sido armada pela senhora
Mabuto, sem o marido saber, e o marido tenha entrado de
gaiato... Deus permita que não seja assim!
Nessa tarde, depois do almoço, tivemos a satisfação de
receber a visita do Inspetor Carneiro. O agente da Polícia
Judiciária vinha acompanhado pelo Sr. Roberto Ális. Meu pai,
Mr. Mattews e o Sr. Sardinha ficaram espantados quando o
policial disse quem era, pois não sabiam da nossa operação.

82
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Esses miúdos são excepcionais! – exclamou o inspetor,


depois que nos reunimos na sala de visitas da Vivenda dos
Excravos. – Acabei de visitar o senhor José António Mabuto no
hospital e ele confessou-me tudo. Estava a fingir que tinha
perdido a memória, para não ter que dar explicações à polícia.
Mas foi tudo conforme os miúdos disseram. Não houve nenhum
assalto na oficina do senhor Mabuto; ele armara uma cilada aos
ladrões, equilibrando a Moca de Rio Maior nos pregos da porta
e, na madrugada de segunda-feira, ao voltar para casa, depois
de beber numa taberna, esqueceu-se do tinha feito e... Pois,
pois. Ao entrar na oficina pela porta da frente, em vez de fazê-
lo pela porta dos fundos, recebeu a mocada na cabeça e
perdeu os sentidos. Foi apenas um castigo! Quem o mandou
ser um beberrão? Além de fazer mal à saúde, o álcool também
pode ocasionar lesões gravíssimas na cabeça! Ah, ah, ah!
– Ele está fora de perigo? – indagou Cidinha, cheia de
cuidados.
– Está ótimo! – afirmou o inspetor, dando outra risada
barulhenta. – Hoje mesmo já deve receber alta e voltar para
casa. Mas não sei como é que a senhora Mabuto vai recebê-
lo... Ela me disse que está farta das bebedeiras do marido e
que, se ele não para com isso, ainda vai se arrepender! Espero
que a senhora Mabuto não lhe parta a cabeça outra vez com
um rolo de abrir massa! Ah, ah, ah!
– E o senhor Roberto Ális? – indaguei, olhando para o
crioulo alto e magro.
– O senhor Ális está em liberdade – concluiu o inspetor,
não temos mais nenhuma acusação contra ele. O caso ficou
encerrado, com a confissão do senhor Mabuto. O senhor Ális
está livre, para ver se arranja trabalho e se torna um cidadão
útil à Pátria e a si mesmo!
Foi aí que o retornado se ajoelhou diante de mim, antes
que eu saísse da minha surpresa, beijou-me longamente as

83
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

mãos. Todos os presentes ficaram mudos de assombro. A cena


foi muito comovente e, de certa maneira, anti-higiênica, porque
o senhor Roberto Ális tinha os beiços bastante grossos e me
babou as costas da mão. O beijo da vitória é muito legal, mas
prefiro recebê-lo dos lábios de Cidinha...

84
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Capítulo V - Coimbra

Tivemos alguma dificuldade em explicar, a meu pai e a


Mr. Mattews, como é que nos tínhamos envolvido no mistério
de Cascais, mas Príncipe conseguiu aliviar a barra.
– A gente não queria se meter – disse o gordo, na maior
cara de pau. – Mas a senhora Mabuto estava tão aflita, e o
senhor Ális tão assustado, que Lula resolveu dar uma mãozinha
à polícia portuguesa... E, graças a Deus, tudo deu certo!
– Ah, ah, ah! – riu o Inspetor Carneiro.
– Mas onde foi que vocês conheceram a senhora Mabuto?
– insistiu Mr. Mattews.
– Na praia – falou Cidinha, com a sua voz meiga e
persuasiva. – Eu fiquei com tanta pena dela! A gente não
queria se meter... não queria mesmo... mas os fins justificam
os meios... o senhor não acha, Mr. Mattews?
– O que eu acho – rosnou o pai de Príncipe – é que
vocês continuam os mesmos! Eu só queria saber como foi que
se envolveram nessa história, se não tinham nenhum interesse
em arranjar encrencas! De agora em diante, vou vigiar vocês
com mais cuidado! Imaginem, se houvesse realmente um
criminoso! Vocês correram um perigo tremendo, seus
imprudentes! Mas, felizmente, tudo acabou bem. Não se
metam em outra!
– Nunca mais! – prometeu Cidinha, de mãos postas e
olhos em alvo.
O Inspetor Carneiro e o Sr. Ális se despediram mas, antes
que o retornado fosse embora, o Sr. Sardinha perguntou-lhe:
– Você está à procura de trabalho, pois não está?
– Estou, sim, senhor.
– Pois, pois. Eu posso fazer uma experiência com você.
Estou a precisar de um caseiro que também saiba tratar do
meu jardim. Você se interessa pelo lugar?

85
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

A resposta do crioulo foi outra série de beijos ardentes,


nas costas das mãos do arquiteto. Aquilo era muito bacana e
nos emocionou às pampas. Se o Sr. Ális arrumasse emprego na
Vivenda dos Excravos, nunca mais pensaria em roubar as
moedas de ouro do Sr. Mabuto... Desse modo, a Operação
Mistério de Cascais estava perfeitamente encerrada. Foi o que
eu disse a Príncipe, logo que ficamos sozinhos.
– Ainda não – respondeu o gordo. – Ainda falta receber a
herança de seu avô. Já se esqueceu? A herança também faz
parte da operação!
Meu velho estava ansioso para ir a Viseu receber o
dinheiro. Ainda ficamos essa noite no solar do Sr. Sardinha e,
na manhã seguinte, partimos para o norte. O arquiteto nos
levou de automóvel para Lisboa, onde almoçamos outra
sardinhada. Depois, fomos tomar um ônibus, numa enorme
garagem da Avenida Casal Ribeiro. Aí nos despedimos do Sr.
Sardinha e ele nos desejou boa sorte. Papai estava uma pilha
de nervos.
O “autocarro” saiu da estação rodoviária às duas horas e
partiu para Coimbra. Como era sábado, muitas lojas estavam
fechadas. Depois de meia hora de viagem, fizemos uma parada
na praça de uma cidadezinha para tomar café.
– Rio Maior – anunciou Príncipe. – Foi aqui que o senhor
Mabuto comprou aquela moca.
– Cuidado com a cabeça! – replicou Pavio Apagado.
Não tivemos tempo de conhecer a localidade, mas
pareceu-nos calma e hospitaleira, como as outras cidades e
aldeias da província; ninguém diria que seus habitantes
gostavam de bater na cabeça dos outros...
O ônibus continuou a viagem, atravessando campos e
aldeias, adormecidos à beira da rodovia. Meia hora depois,
Cidinha soltou um grito:

86
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Olhali! Tem um bolo de aniversário naquele buraco!


Que coisa impressionante!
Não era bolo nenhum. Príncipe olhou e disse:
– É o Mosteiro da Batalha. Não sei por que foi construído
nessa cova, quando todos os outros se ergueram no alto das
colinas. Mas vejam que maravilha! É uma pena a gente não
poder descer e entrar nele...
– Na volta entraremos – prometeu Mr. Mattews. – Espero
regressar a Lisboa de automóvel. Não há meios de me
acostumar a viajar de ônibus!
Realmente, o Mosteiro da Batalha era impressionante,
embora visto àquela distância. Era todo de mármore branco,
cheio de torres e torrinhas, e sua fachada tinha mais de cem
estatuas! Segundo Mr. Mattews, era o mais grandioso edifício
gótico de Portugal e um dos mais bonitos de toda a Europa.
– O verdadeiro nome dele – disse Príncipe, botando a sua
banca – é Mosteiro de Santa Maria da Vitória. Foi mandado
edificar por Dom João I em memória da Batalha de Aljubarrota,
travada em 14 de agosto de 1385, em que os portugueses
venceram os espanhóis. Foi nesse combate que Brites de
Almeida, a “Padeira de Aljubarrota”, matou sete castelhanos
com a pá de forno! Os espanhóis usaram artilharia, que os
portugueses ainda não conheciam, mas todos os canhões
foram tomados pelos lusitanos, os quais, depois disso, também
passaram a usar artilharia...
– Fala no Mosteiro da Batalha – pediu Pavio Apagado,
com nariz esborrachado contra a vidraça do ônibus e os olhos
pregados no extraordinário edifício gótico, que ia ficando para
trás.
– A obra foi começada em 1835 – disse Príncipe – mas só
foi concluída em 1550, já no reinado de Dom João III. Seu
primeiro arquiteto foi Afonso Domingues, que ficou cego mas,
assim mesmo, concluiu a imensa abóbada, que todos julgavam

87
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

impossível de ser mantida no alto, sem pilares que a


sustentassem. Afonso Domingues tinha tanta confiança na sua
obra que, depois de retirado o madeiramento, ficou três dias
sentado debaixo da cúpula, para provar que ela não cairia.
Como, até hoje, não caiu.
Mais dez quilômetros, pela estrada de rodagem, e
entramos em Leiria. Aí, sim, havia um castelo, no alto de uma
colina, dominando a cidade.
– Aquela é uma das edificações mais curiosas da Europa
– comentou Príncipe. – As muralhas foram erguidas por Dom
Afonso Henriques, em 1180, e uma parte da construção
primitiva serviu de residência a Dom Dinis, em 1320. Mas foi
Dom João I, em 1400, quem construiu o castelo propriamente
dito e a capela palatina, ambos em estilo gótico. Leiria é uma
povoação muito antiga. No ano 40 antes de Cristo, foi tomada
pelos romanos aos lusitanos; no século V caiu em poder dos
suevos; no século VI pertenceu aos visigodos; e, no ano de
715, foi conquistada pelos mouros. Só em 1195 é que passou
definitivamente para a coroa portuguesa.
O ônibus ficou algum tempo estacionado numa garagem
de Leiria, e fomos até uma casa de chá pra fazer um lanche.
Depois, voltamos para bordo e seguimos viagem, sempre para
o norte. Mais meia hora e entramos, finalmente, em Coimbra.
Cidinha estava impressionada com a perícia do motorista do
coletivo. Como é que ele conseguia atravessar as ruas estreitas
e sinuosas das aldeias, sem bater numa parede? Principalmente
dirigindo um ônibus mais comprido do que os que nós
conhecíamos no Brasil, pois os “autocarros” portugueses
tinham doze filas de poltronas, ao passo que os nossos só têm
dez.
– Lisboa fica na Província da Estremadura – falou
Príncipe. – Rio Maior fica no Ribatejo, Leiria fica no norte da
Estremadura, mas Coimbra já fica na Beira Alta. Portugal é

88
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

pequenino, mas muito dividido; não é como no Brasil, onde


cada Estado ocupa o espaço equivalente a um país da Europa...
– Agora, fala de Coimbra! – pediu Pavio, empolgado,
quando o ônibus entrou numa ponte, sobre um rio largo e
quase seco.
Príncipe não se fez de rogado:
– Tal como Leiria – disse ele – Coimbra também foi
conquistada pelos romanos, pelos visigodos e pelos mouros,
até que, em 1064, Fernando Magno, primeiro rei de Castela, a
tomou dos muçulmanos e converteu as suas mesquitas em
templos cristãos. Foi em Coimbra que Dom Rodrigo Diaz de
Bivar, o Cid, foi armado cavaleiro. Depois da independência de
Portugal, Dom Afonso Henriques morou muitas vezes em
Coimbra, que foi a capital do país e 1139 a 1260. Também foi
aqui que se deu o milagre das rosas, como já falei. Se tivermos
tempo, vamos visitar o Mosteiro de Santa Clara, onde está o
caixão da Rainha Isabel, mulher de Dom Dinis. Dizem que, até
hoje, o corpo da rainha está intacto. Também foi em Coimbra
que se deu a morte de Inês de Castro, a que depois de morta
foi rainha.
– E a Universidade? – indagou Cidinha. – Coimbra é
célebre pela sua Universidade e pelos seus estudantes de capa
e batina, não é?
– Era – respondeu Príncipe. – Antes mesmo da Revolução
de 25 de Abril os estudantes já tinham deixado de usar aquelas
pitorescas capas pretas. É triste, mas é a verdade: o progresso
está acabando com a tradição. No entanto, a célebre
Universidade de Coimbra ainda é a mesma. Vamos visitá-la
também, se papai permitir. Infelizmente, os estudantes estão
de férias e talvez não encontraremos nenhum...
– Claro que vamos visitar a Universidade de Coimbra –
disse Mr. Mattews. – Podemos ficar hoje em Coimbra e seguir
amanhã para Viseu. Está bem assim, senhor Santiago?

89
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Meu velho disse que estava, embora demonstrasse maior


ansiedade em seguir viagem para a Quinta da Sucapa. Nesse
momento, o ônibus já atravessara a ponte e seguia por uma
praça larga e cheia de gente.
– Esta é a Praça da Portagem – disse Príncipe. – É a
entrada da cidade. “Portagem” quer dizer “pedágio”.
Antigamente deviam cobrar um pedágio aos veículos que
atravessavam a ponte sobre o Mondego...
– E cadê o Mondego? – indagou Cidinha. – Cadê o
badalado rio, cujas águas cristalinas e românticas foram
cantadas por uma pá de poetas portugueses?
– É isso aí – respondeu Príncipe.
– É isso aí, o quê?
Ficamos, então, sabendo que o rio Mondego, no verão,
ficava seco daquele jeito. Tudo o que tínhamos visto, durante a
passagem pela ponte, era um imenso areal, com dois ou três
filetes de água onde alguns garotos fingiam que tomavam
banho. Que diferente dos rios brasileiros, com toda a sua
poluição! Água suja, pelo menos, era o que não faltava na
nossa terra!
Desembarcamos do ônibus, numa pequena estação
rodoviária, e fomos para um hotel. Aí, meu velho telefonou
para Viseu e anunciou a nossa chegada. Ficou combinado que,
na manhã seguinte, às oito horas, uma camioneta iria nos
buscar.
Já eram quatro horas da tarde. Não tínhamos muito
tempo para conhecer Coimbra.
– Aonde é que vocês preferem ir? – perguntou Mr.
Mattews. – À Universidade ou ao Mosteiro de Santa Clara?
Preferimos visitar a Universidade, deixando o mosteiro
para a noite. Mr. Mattews alugou dois táxis e lá fomos nós para
a Cidade Alta. Quinze minutos depois, estávamos chegando a
uma praça, cercada por prédios antigos e veneráveis.

90
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– A Universidade de Coimbra – disse Príncipe,


incrementado – foi fundada em 12 de agosto de 1290, por Dom
Dinis, com o nome de Escolas Gerais. Nesse tempo ainda ficava
em Lisboa, no bairro de Alfama. Em 1308, foi transferida aqui
para Coimbra. Em 1338, voltou para Lisboa e, em 1354,
novamente para Coimbra. Em 1377, voltou para Lisboa e, em
1537, no reinado de Dom João III, foi transferida
definitivamente para Coimbra. As escolas ficavam aqui, nos
chamados “paços reais”, que foram reedificados por Dom
Manoel, nos fins do século XV. Só em 1634 é que foi erguida a
Porta Férrea, onde os calouros eram recebidos para o trote.
O edifício universitário era grande, mas sóbrio. Visitamos
rapidamente a Sala dos Capelos, tão pomposa que parecia um
tribunal, e ficamos de nariz no ar, diante de uma torre
quadrangular com um relógio no alto, erguida ao lado do
prédio principal.
– Essa torre – elucidou Príncipe – tem trinta e três metros
e meio de altura. Foi começada em 1728 e acabada em 1733,
no reinado de Dom João V. Depressa! Vamos ver a capela! Às
cinco horas eles não deixam mais ninguém entrar!
Fomos em frente. A capela era um prédio bacana,
também muito velho, com um portal impressionante, em estilo
manuelino. O interior era alegre e gracioso.
– Foi construída no tempo de Dom João III – informou
Príncipe, que olhava para tudo com sofreguidão. – Aquele
órgão, segundo dizem, faz um barulho danado! Ou, melhor
dizendo, tem um som muito potente...
Pavio queria tocar o órgão, mas o guarda não deixou.
Saímos da capela e ainda tivemos tempo de entrar na
Biblioteca. Foi o que eu mais adorei.
– Edificada no tempo de Dom João V – anunciou Príncipe.
– Foi inaugurada em 17 de julho de 1718, mas só foi concluída

91
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

em 1725. Tem mais de quarenta mil volumes nas estantes, e


cem mil nos subterrâneos! Vejam que maravilha!
Era emocionante, mesmo. As estantes cheias de livros
brochados e encadernados, a maioria em francês, eram
ricamente pintadas e douradas, com desenhos bizarros, e até a
escada, entalada num vão, tinha os lados pintados e quase
passava despercebida, entre as estantes. O teto tinha pinturas
em perspectiva e dava a impressão de ser muito alto, tipo
abóboda, quando, na realidade, era plano. Na terceira sala, ao
fundo, via-se um retrato a óleo de Dom João V. As mesas,
finamente entalhadas, eram de mogno e pau rosa, embora o
guarda dissesse que eram de jacarandá. E Pavio descobriu que
as paredes, que pareciam de pedra, eram de madeira pintada,
imitando o mármore. Seja como for, aquilo tudo nos
impressionou por demais.
– Na volta de Viseu – falou Príncipe, à saída –
conheceremos o Jardim Botânico, o Museu, o Hospital e o
Observatório Astronômico, que fica na Cumeada, a um
quilômetro daqui. Foi construído em 1780, no reinado de Dona
Maria I.
– Isso mesmo – concordou Mr. Mattews. – Agora, vamos
jantar!
Voltamos para a Cidade Baixa e fomos comer num
restaurante da Rua Sofia. Antes disso, a Srª. Mattews fez
algumas compras, nas lojas da mesma rua. Depois do jantar,
às sete e meia, voltamos a pegar os táxis alugados,
atravessamos a ponte sobre o Mondego e subimos a colina de
Santa Clara. O mosteiro ficava bem no alto e tinha um grande
terraço, com uma enorme estátua da Rainha Isabel, onde se
via toda a cidade iluminada. Entramos na igreja e nos
ajoelhamos diante do altar-mor. Era no alto deste que se
encontrava o caixão de prata da Rainha Santa.

92
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Este não é o primeiro mosteiro de Santa Clara –


sussurrou Príncipe. – O antigo fica lá embaixo, na beira do
Mondego, e tem mais de setecentos anos de idade. Devido à
moleza da terra, metade da construção afundou no lodo. Então,
em 1649, Dom João IV mandou edificar este novo mosteiro,
para onde foi transportado, em 1677, o corpo da rainha.
Acabamos de rezar, saímos do convento e fomos ver a
cidade, lá do alto. Só às dez horas da noite é que regressamos
ao hotel, para dormir. Isso foi tudo o que vimos de Coimbra; na
manhã seguinte, devíamos partir para a Quinta Sucapa, em
Viseu, a fim de que meu velho recebesse a herança do vovô.

93
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

94
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Capítulo VI – A Surpresa da Herança

O dia seguinte era domingo. Às oito horas, pontualmente,


chegou ao hotel uma velha camioneta e um motorista mulato
apresentou-se a meu pai dizendo que vinha da parte do
excelentíssimo senhor doutor Manuel Terceiro de Santiago. A
Srª. Mattews não fazia muita questão de ir à Quinta da Sucapa,
mas Mr. Mattews queria conhecer Viseu. Daí, fomos todos,
amontoados, na camioneta.
A autoestrada, que seguia para o norte, bordejava o rio
Mondego. Foi uma viagem bastante agradável, sob um sol
quente e amarelo. De um e outro lado da rodovia desfilavam
pinheiros, choupos, salgueiros e ciprestes, sem falar nas
árvores frutíferas. Atravessamos uma passagem de nível – da
Estrada de Ferro – e vimos uma barragem sensacional, que
estavam construindo no meio do Mondego.
– Em Portugal – comentou Príncipe – por toda parte se
encontram pinheiros. Acho que só em Coimbra é que não
existem. Os primeiros pinhais de Leiria foram mandados plantar
por Dom Dinis, para conter o avanço das duas marítimas.
Segundo um dito popular, “El-Rei Dom Dinis fez tudo o que
quis”.
– E Dom Sebastião – acrescentou Pavio – entrou pela
tubulação!
– Que é isso, Pavio? – ralhou Cidinha. – Tenha modos, tá
legal?
Depois de rodarmos uns vinte minutos, atravessamos
uma aldeia, onde havia uma pracinha com um ramo de árvore
espetado num monte de pedras.
– Santa Comba Dão – anunciou Príncipe. – Foi aqui que
nasceu o Primeiro-Ministro António de Oliveira Salazar, a quem
Portugal deveu uma excelente administração e, depois, um
tremendo atraso de vida. Ali, naquela praça, havia uma estátua

95
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

de Salazar, que o povo destruiu na base da dinamite. Aí,


botaram aquele ramo de oliveira no pedestal...
Mais vinte minutos de viagem, pelos campos ensolarados,
e chegamos a Viseu, capital da Beira Alta. Era outra cidade
calma e simpática, cercada por campos cultivados, onde se
viam parreiras e macieiras às pampas.
– Viseu também é uma cidade bem antiga – disse
Príncipe. – Já no tempo dos suevos, lá pelo ano de 572, foi
reconhecida como cidade episcopal. Antes disso já existia como
simples povoação, quando Viriato, no ano 146 antes de Cristo,
botou os romanos para correr. Ainda hoje se pode ver a Cava
de Viriato, a uns duzentos metros da estação da Estrada de
Ferro. É uma espécie de fortificação, que conta vinte séculos de
existência! A Cava perdeu todo o seu revestimento de pedra e
só resta um pedaço dos fossos que a circundavam; por isso,
virou passeio turístico. Também foi em Viseu que morreu o Rei
Afonso V, de Leão, quando tentava tomar a cidadela aos
mouros. Só em 1057 é que Fernando Magno, de Castela,
expulsou os invasores da província. Em 1385, um bando de
soldados castelhanos, comandados por Juan Annes de Barbuda,
que tinham escapado da Batalha de Aljubarrota, passaram por
Viseu e saquearam e incendiaram a cidade. Outro Dom Afonso
V, este de Portugal, mandou-a cercar de novas muralhas,
concluindo-se a obra em 1472. Depois de Lisboa e do Porto, o
distrito de Viseu é o mais populoso do país. Sua maior riqueza
é o vinho de lote do Dão. “Lote” quer dizer “boa qualidade” e
“Dão” é o nome do rio que banha as terras onde se cultivavam
as melhores vinhas.
– Isso mesmo – apoiou meu pai. – A Quinta da Sucapa
fica à beira do Dão.
Como ainda era cedo, fomos até a Catedral de Viseu, pois
meu velho queria rezar pela alma do vovô. As três naves
estavam cheias de fiéis. O que mais me impressionou foram as

96
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

abóbadas de ogiva, baixas e frias, adornadas com esculturas de


granito imitando cordas com nós. Sensacional!
– Primeiro prenúncio da decoração marítima que
constituiria uma das características do estilo manuelino –
sussurrou Príncipe, ao ver o meu interesse. – A Sé de Viseu é
muito antiga, mas foi várias vezes renovada. O claustro, em
estilo Renascença, é de 1534, e a frontaria, em estilo ítalo-
espanhol, é de 1640. Até há poucos anos, havia aqui muitas
pinturas religiosas, mas foram levadas para o Museu de Grão-
Vasco, que poderemos visitar depois. Grão-Vasco ou Vasco
Fernandes, foi um espetacular pintor renascentista, nascido em
Viseu antes de 1480 e morto depois de 1542. Ninguém sabe
direito a vida dele. Mas seus quadros são geniais!
Antes de seguirmos para a Quinta da Sucapa, ainda
passamos pelo centro da cidade, chamado Rossio, onde vimos
um parque, cheio de namorados, com um lago bacaninha.
Eram dez horas, quando a camioneta subiu por uma estrada de
terra, beirando o rio, e entrou numa outra estradinha que ia
dar na propriedade dos Santiago. Depois de cruzarmos uma
porteira escancarada, fomos estacionar em frente ao prédio da
residência. Era uma casa baixa, antiga, com azulejos azuis na
fachada e um Santo Antônio num nicho.
– Foi aqui que eu nasci – disse meu pai, com voz
comovida. – Minha mãe morreu... meu pai morreu... mas pelo
que vejo, está tudo na mesma...
Uma senhora gorda e risonha veio nos receber, na
varanda. Chamava-se Arlete e era a mulher do meu tio Manuel
Terceiro. Nem eu nem meu pai a conhecíamos pessoalmente e
gostamos muito dela. Foram feitas as apresentações e
sentamo-nos nas cadeiras de vime da varanda. Uma criada
parruda, de bochechas rosadas, serviu-nos refrescos de uva e
de cidra.

97
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– O Manuel foi a Viseu, assistir à missa – esclareceu


minha tia. – Enquanto ele não vem, vou acabar de fazer o
almoço. Temos pastéis de bacalhau, arroz com grelos e febras
de carne de porco. Espero que gostem. Zé da Moita vai lhes
mostrar a quinta e, se quiserem, pode levá-los até o cemitério.
Zé da Moita era o motorista da camioneta. Soubemos,
então, que ele também era um retornado, pois chegara de
Angola cinco anos antes. Meu pai fez questão de ir ao cemitério
local, ver a sepultura do vovô. Enquanto ele rezava, diante do
túmulo de mármore, nós dávamos um passeio a pé pelo velho
cemitério. Vinte minutos depois, voltamos para a camioneta.
– O patrão só chegará depois das onze horas – disse Zé
da Moita. – Não querem ver a adega? Hoje é domingo e não se
trabalha nos lagares.
– Aqui ainda usam lagares? – estranhou Príncipe.
– Pois, pois – respondeu o mulato. – Temos máquinas
modernas para fazer o vinho comercial, mas ainda usamos os
lagares para o vinho da casa e dos amigos. Ele fica mais
saboroso, quando as usas são amassadas com os pés.
– Imagino que sim – murmurou Cidinha, fazendo uma
careta.
– Com chulé e tudo – acrescentou Pavio, antes de levar
um tapa na boca.
Regressamos à quinta e fomos ver os lagares, onde eles
fabricavam o famoso vinho de lote do Dão. Pelo caminho,
Príncipe informou:
– Todos os tipos de vinho de Portugal são excelentes. No
Norte, há o famoso vinho verde, do Minho, e o não menos
famoso vinho do Porto, do Douro. Aqui, no Centro, há o vinho
maduro do Dão; o vinho tinto e palhete de Colares; o vinho
branco de Bucelas e o vinho espumoso da Bairrada. E, no Sul,
ainda há o vinho moscatel de Setúbal, na Estremadura; o vinho

98
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

de Borba, no Alentejo; e o vinho de Fuzeta, no Algarve. É vinho


que não acaba mais.
– Mas nenhum é melhor do que o nosso – assegurou Zé
da Moita, empolgado. – Vossências verão com seus próprios
olhos! O nosso vinho de pé é o da melhor cepa que se pode
desejar!
Chegamos a um enorme galpão de pedra, dividido em
dois compartimentos, construídos lado a lado, mas em níveis
diferentes. No compartimento mais elevado, ficava a máquina
de moer as uvas e, no outro, em plano inferior, ficava a adega.
Ao lado da máquina também se via os antigos lagares, que
eram largos tanques de pedra, com bordas de meio metro de
altura. Um deles não era usado há tantos anos que até tinha
teias de aranha.
– Antigamente – disse Zé da Moita – as uvas eram
amassadas nestes lagares. Depois, veio o progresso e as
máquinas substituíram os homens que as pisavam. Mas as
maquinetas não têm inteligência e não sabem rejeitar a má
uva, quando chega o momento, o que os homens sabiam fazer.
A maquineta esmigalha tudo o que se lhe põe dentro, e o vinho
não pode ser tão colorido, limpo, saboroso e aromático como
se fosse feito pelo homem. Nós, por cá, não apreciamos as
maquinetas. Em África ainda há menos do que na metrópole.
Cidinha queria saber como era feito o vinho. Antes que o
mulato explicasse, Príncipe tomou a palavra:
– Deixa que eu sei! Em primeiro lugar, vem a vindima, ou
seja, a colheita das uvas. Estas são escolhidas e colocadas na
máquina, que as esmagam para fazer sair o mosto, a parte
líquida. Ai, dá-se a fermentação do mosto. Devido ao gás, as
cascas e os caroços sobem à superfície do mosto e são
separados. É a balsa. Depois de apurado o mosto, dá-se a
sangria dos balseiros, onde fica apenas o bagaço, para fazer
aguardente. O vinho de sangria desce, por vários tubos, para

99
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

os tonéis, que ficam em plano inferior, na adega. Ainda há


algumas operações, para clarear e limpar o produto;
finalmente, o vinho definitivo é engarrafado, arrolhado, lacrado
e guardado na frasqueira. Daí, é só vendê-lo à freguesia...
Descemos o terreno inclinado e entramos na adega. Era
um grande compartimento, fresco e arejado, onde a
temperatura se mantinha uniforme. Os enormes tonéis, com
capacidade para mil litros de vinho, impressionaram Cidinha e
Pavio Apagado.
– Nossa! – exclamou o moleque. – Imagina se a gente
caísse dentro de um barril desse tamanho! Ia beber vinho do
Dão por todos os buracos!
Ainda fomos ver a frasqueira, onde havia uma pá de
prateleiras, cheias de garrafas lacradas, e depois voltamos para
o prédio da residência.
– Depois do almoço – prometeu meu pai – daremos uma
volta pela quinta. Não é tempo de uva, mas vocês poderão
comer maçãs. Quando eu era pequeno, havia muitas macieiras
na Sucapa. E que ricas maçãs!
Fomos nos sentar na varanda e, pouco depois, chegou
um carrão azul, guiado por meu tio Manuel Terceiro. O
encontro dos dois irmãos foi muito emocionante. Eu não
conhecia aquele tio e achei-o bastante simpático, parecidíssimo
com o outro, Manuel Cotó, que emigrara para Santa Catarina;
só que aquele não tinha perna de pau...
– E então? – perguntou meu velho, depois dos abraços e
das palavras de condolências. – O que foi que o nosso pai nos
deixou, além da saudade?
– Julguei que já o soubesses – respondeu meu tio. –
Nosso pai deixou-me a Quinta da Sucapa, um legado de vinte
contos para o Manuel e um garrafão de vinho maduro para ti.
– O quê? – espantou-se meu pai.

100
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

– Pois, pois, ó Manuel! Um garrafão de vinho de 1780,


com quase duzentos anos de idade! Não podia haver uma
herança mais preciosa, não achas?
Por uma questão de respeito, prefiro não repetir aqui o
que foi que meu velho rosnou.

101
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

102
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

Epílogo

Parecia piada, mas era a pura verdade. As últimas


vontades do vovô eram essas, especificadas em seu
testamento: a Quinta da Sucapa e todos os seus pertences
ficavam para seu filho caçula, Manuel Terceiro de Santiago; um
pequeno depósito bancário ficava para seu filho mais velho,
Manuel de Santiago (conhecido no Brasil como Manuel Cotó), e
apenas um garrafão de vinho maduro, fabricado em 1780, que
o proprietário da quinta guardava como um tesouro, ficava,
como herança, para seu filho do meio, Manuel Segundo de
Santiago, que era meu pai. Nada mais do que isso.

Depois da surpresa e da indignação inicial, meu velho


fechou a cara e pediu para ver o garrafão de vinho. Era uma
obra-prima de arte antiga e a carapaça de palha que a envolvia
estava tão podre que caía aos pedaços. Mr. Mattews teve a
mesma ideia de papai e ajudou-o a examinar atentamente o
garrafão, à procura de algum macete... Mas não havia nenhum
“mapa da mina”: o garrafão de vinho era apenas um garrafão
de vinho, embora tivesse quase duzentos anos de idade.
– Pois muito bem! – rosnou meu pai. – Já que o saudoso
fidalgo Manuel de Santiago legou-me este vinho do Dão, vamos
fazer honra à herança! Vamos beber esta preciosidade no
almoço!
E foi o que aconteceu. Comemos bolinhos de bacalhau,
arroz com brotos de couve e pedaços de carne de porco
assada, sem ossos nem gordura. E papai abriu o garrafão de
vinho, com tanta raiva que quebrou o saca-rolhas. Mas a
bebida era deliciosa, leve e fresca, pois o vinho português, bem
conservado, não vira vinagre – e, quanto mais velho, melhor.
Depois do almoço, demos uma volta pela quinta, para ver
as parreiras e as macieiras, e Pavio Apagado quase caiu dentro

103
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

de um reservatório de água, sem tampa; se não fosse Cidinha


a segurá-lo pelos fundilhos das calças, era uma vez um
moleque desastrado!
– Manuel já me escreveu – disse tio Manuel Terceiro,
procurando aliviar a bronca de meu pai. – Ele agradece a
herança, mas não pode vir apanhá-la em Portugal, porque as
passagens estão pela hora da morte. Vou providenciar para que
o dinheiro lhe seja remetido, para Santa Catarina, o mais breve
possível. O vinho estava giro, não estava?
Ainda ficamos dois dias em Viseu, visitando o Museu de
Grão-Vasco e outros lugares pitorescos e, na quarta-feira, 21
de julho, voltamos a Coimbra. Meu pai continuava emburrado e
só com muita insistência é que nos acompanhou, em nossos
passeios. Conhecemos outras curiosidades de Coimbra – o
Jardim Botânico, o Observatório Astronômico da Cumeada, o
Parque “Portugal dos Pequeninos” (onde havia uma série de
construções de pedra e cal, em miniatura, inclusive o Castelo
de Guimarães e a Universidade), o Mosteiro de Santa Clara a
Velha, meio enterrado nas margens do Mondego, o Choupal
(com muito menos choupos do que esperávamos), Penedo da
Saudade, a Quinta das Lágrimas (onde, segundo dizem, Inês
de Castro foi assassinada) e outros lugares tristes e bonitos. No
sábado, dia 24, fomos até Fátima, num carro alugado. Cidinha
rezou na capelinha da Cova da Iria, no local exato em que
Nossa Senhora apareceu àqueles três pastores, a Srª. Mattews
achou a basílica “prodigious”, e Pavio Apagado tomou um
banho de água benta. Daí, seguimos para Lisboa, depois de
passar por Leiria, visitar o Castelo de Dom Afonso Henriques e
Dom Dinis, e percorrer o interior do Mosteiro da Batalha. Mais
três dias de passeios pelos arredores da capital, e fomos para o
sul. Atravessamos a ponte sobre o Tejo, conhecemos Setúbal e
a Península de Troia, entre o rio Sade e o mar, onde havia
excelentes instalações para os turistas e onde comemos uma

104
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

maionese de santola – espécie de caranguejo que cresceu


demais – e continuamos a viagem, de carro, para o Alentejo e
o Algarve. Nossa visita no Promontório de Sagres foi
sensacional, pois ali ainda encontramos de pé a casa do Infante
Dom Henrique, de onde ele dirigiu as primeiras grandes
viagens marítimas dos portugueses! As praias do extremo sul
de Portugal eram parecidas com as do Brasil e tomamos tanto
sol que Cidinha ficou mulata. Finalmente, no dia 29 de julho,
voltamos para Lisboa e pegamos um outro avião (o maior DC-
10) para o Rio de Janeiro. No dia 2 de agosto, segunda-feira,
voltamos alegremente aos estudos, no ginásio de Copacabana,
matando as saudades de nossos professores.
Antes que me esqueça: ainda na Quinta da Sucapa, logo
depois de bebermos o primeiro copo de vinho do garrafão de
1780, Pavio lambeu os beiços e exclamou:
– Obra! É o maior barato!
Aí, Mr. Mattews acabou achando graça na situação e
disse que nunca um barato tinha saído tão caro... Mas, para
nós, a Operação Mistério de Cascais foi o fino!

*
* *

105
Operação Mistério de Cascais – Luiz de Santiago

106

Você também pode gostar