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IM A G I NÁSTIC
A
ABBY HANLON
Para Ann Tobias, a minha fada madrinha
ISBN 9789892343587
Reservados todos os direitos, incluindo o direito de
reprodução integral ou parcial sob qualquer forma,
de acordo com a legislação em vigor
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Ora, em paz eu não os deixo. E como não sei
o que lhes dizer, faço-lhes perguntas. Todas as
perguntas de que me lembro.
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– Mal posso esperar pelo início da escola
para termos uma folga da Pestinha! – diz
a Violeta.
– Também eu! – resmunga o Lucas.
– Não falem sobre a escola!
Tapo os ouvidos. Não quero que o verão
acabe. Gosto de ficar em casa, em camisa
de dormir, em vez de me vestir para ir para
a escola.
– É uma camisa de dormir de inverno –
diz a Violeta.
– E está do avesso –
acrescenta o Lucas.
– E ao contrário
– remata a Violeta.
– E depois? – digo eu.
– E, agora que já estás
mais crescida, tens de
deixar de ser bebé!
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– Porque é que me chamam sempre bebé?
– queixo-me.
– Porque falas sozinha! – diz a Violeta.
– E fazes birras! – acrescenta o Lucas.
– E brincas com monstros – remata a
Violeta.
Falar sozinha, eu? Não faço ideia do que
estão a dizer. Eu nunca falo SOZINHA. Eu
falo com a minha amiga Maria. Mas só eu
é que a consigo ver.
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A Maria quer
sempre br inc ar
comigo. Ela acha
que eu sou a maior.
À noite, a Maria
dorme debaixo da
minha cama.
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Durante o dia, a Maria anda sempre comigo.
Ela quer fazer tudo o que eu faço. Normal-
mente não me importo, mas às vezes tenho de
lhe dizer não.
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Eis algumas coisas que a Maria gosta de fazer:
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A Maria é o meu monstro preferido, mas a
verdade é que tenho a casa cheia deles. Temos
o Monstro da Sanita, que entra pela casa de
banho dentro se estivermos sentados na sa-
nita há demasiado
tempo.
Temos o Monstro
do Ketchup, que faz
barulhos estranhos
quando apertamos
a embalagem.
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Temos ainda o Monstro da Roupa Suja,
o Monstro da Gaveta Partida, o Monstro do
Aspirador, o Monstro do Corredor do Pri-
meiro Andar, o
Monstro da Sala,
entre outros.
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Eu tento avisar o Lucas e a Violeta sempre
que vejo um monstro.
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Mas o Lucas e a Violeta não gostam disso.
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Depois do jantar, a Violeta e o Lucas
dizem que têm uma coisa importante para
me contar.
Sigo-os até ao primeiro andar, saltando os
degraus de dois em dois. Estou tão contente.
O que será? A Violeta deixa que me sente na
cama dela. Talvez até me deixe brincar com
a Cereja.
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A Violeta pergunta-me muito devagarinho:
– Pestinha, já ouviste falar de uma…
senhora… chamada Traga Tolas?
Abano a cabeça.
– Bem, a Senhora Traga Tolas é uma
ladra… e rouba meninas – diz a Violeta.
– Tem quinhentos e sete anos e dentes
muito aguçados! – acrescenta o Lucas.
– E, bom – diz a Violeta –, vais ficar mesmo
surpreendida quando te disser isto.
– O quê? – pergunto, em pulgas.
– Tem andado à tua procura – diz ela
rapidamente.
– Estás a falar a sério? – pergunto-lhe.
– Muito a sério – garante.
– A Senhora Traga Tolas anda à minha
procura? – pergunto, espantada.
– Chiu! – diz o Lucas – Ela é tão assustadora
que tens de sussurrar quando dizes o nome
dela, assim: Senhora Traga Tolas…
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– Por isso, se eu fosse a ti, deixava de me
portar como um bebé... para que ela não
venha à tua procura – diz a Violeta.
Por um momento fico calada. É muito
em que pensar. O Lucas e a Violeta olham-me
fixamente, como se esperassem que começasse
a chorar.
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– Como é que ela vai entrar em casa? Pela
porta? Vai tocar à campainha? – pergunto.
Antes que me respondam, atiro mais
perguntas.
– Ela é sorrateira? Vou ter de a enfrentar?
Usa capa preta comprida? Feita de pele? Pele
verdadeira ou imitação? Tem os dentes po-
dres? Ela escova-os? Tem um nariz horrível?
Tem gato? Vive numa caverna? Tem ossos
compridos?
– NÃO SABEMOS! DEIXA-NOS EM PAZ!
– gritam os meus irmãos, abanando a cabeça
e fugindo a correr.
Sigo o Lucas e a Violeta pela casa.
– Oh, meu Deus! O que é que fizemos? –
pergunta-se o Lucas, tapando os ouvidos.
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– Foi a pior ideia que já tivemos –
reconhece a Violeta, tentando afastar-se
de mim.
– Mesmo – concorda o Lucas. – Mesmo.
Mesmo. Mesmo.
– Nem quero saber o que vai acontecer
a seguir – diz a Violeta.
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CAPÍTULO 2
«Ouviste a
campainha a tocar?»
Na manhã seguinte aviso a Maria.
– A Senhora Traga Tolas tem quinhentos
e sete anos, e tem dentes podres e aguçados
como agulhas, e tem os bolsos cheios
de lenços sujos. E... pode estar,
agora mesmo a caminho daqui;
por isso, não te portes
como um bebé!
Nunca vi um monstro
tão assustado.
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Quando ouço a
campainha, corro
para o rés do chão.
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Fujo e escondo-me debaixo da cama
dos meus pais. Há qualquer coisa quente e
peluda debaixo da cama. Já está alguém aqui
escondido. É a Maria.
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– Viste a minha capa? – murmuro.
A Maria leva a mão atrás das costas e pas-
sa-me a capa, toda amarfanhada. Ela está
sempre a pegar nas minhas coisas e nunca
as devolve.
– Vou enfrentá-la – digo-lhe enquanto
ponho a capa.
– Posso ajudar?
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Está escuro e quente, e cheira um bocado
mal. Por acaso estou muito feliz no armário,
por isso decido ficar. Passam-se dias e dias,
provavelmente. Ouço a minha família a
perguntar: «Onde está a Pestinha?»
– Ih-ih-ih! Nunca irão encontrar-me! –
rio-me baixinho.
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Os passos outra vez!! OH, NÃO!!!! ELA
VAI ENCONTRAR-ME!
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A porta do armário abre-se.
É só o chato do Lucas.
– Pestinha, o que estás aí a fazer? –
pergunta ele.
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– DEIXA-ME EM PAZ! – grito.
Estou mesmo zangada por ele me ter
arruinado o esconderijo.
– NÃO ME ENCONTRES! NÃO ME
ENCONTRES! – grito.
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Depois esperneio, esbracejo e atiro com
coisas. E a seguir choro tanto que o quarto
parece desfocado e de pernas para o ar.
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Depois de chorar,
sinto-me muito melhor.
– Podes emprestar-me
um dardo? – pergunto
ao Lucas, secando as
lágrimas.
– És doida – diz ele, e vai-se embora, o que
interpreto como sendo um sim.
Pego no dardo e fujo. No corredor encon-
tro a Maria. Está a apontar em frente e aos
saltos.
– A Senhora Traga Tolas foi lá para baixo!!
Está na sala! O que vais fazer? – grita.
– Vou acertar-lhe com este dardo es-
pecial. Vai fazê-la dormir durante cem anos.
– Uau! – exclama a Maria. – Mas que boa
ideia.
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– Não me sigas – aviso-a.
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Lá está ela! Sentada! Agarro no dardo,
pronta para o lançar até ao outro lado da
sala. Pronta. Um, dois... Espera. O que é que a
Violeta disse?
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– Sou a mamã e tu o papá – ouço.
Estarão a brincar às casinhas?
Deixo cair o dardo. Também quero brincar
às casinhas.
– Agora só precisamos de um bebé – diz
a Violeta.
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Bebé????
Alguém disse
bebé???
A minha irmã
e o meu irmão
olham-me com
cautela, tentando
tomar uma decisão.
Lanço-lhes o meu ar
mais fofinho de bebé.
– Guu – digo.
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– Mmmmmmm – diz o Lucas.
– Beeemmmmm... – acrescenta a Violeta.
– Mmmmm – remata o Lucas.
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À medida que me afasto, empino a cabeça
e penso: «Seja como for, não tenho tempo
para brincadeiras. Estou tão ocupada.»
Mas estava tão ocupada com o quê? Não
me lembro.
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Já sei, estava a meio de qualquer coisa.
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Quando volto ao quarto, aninho-me na
cama com o meu coelhinho. Nisto, aparece
a Maria com o meu dardo.
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– Três, dois, um... – murmuro.
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E depois salto cá para fora e atiro o dardo.
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A Senhora Traga Tolas cambaleia. Aproxi-
ma-se da parede, os joelhos dobram-se, os
olhos fecham-se... Ela cai!
– Encontro a rapariga quando acordar –
murmura, e depois adormece
profundamente.
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Tenho de contar ao Lucas e à Violeta!
Eles têm de saber que acertei na Senhora
Traga Tolas porque fui muito rápida e tive
uma excelente pontaria. Têm de saber que
nenhum bebé podia fazer o que eu fiz. Têm
de saber!
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Corro até à sala e salto para o colo da
Violeta. Levo as mãos em forma de copo ao
ouvido dela. Sussurro o meu segredo.
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– Não estou nada! Estou a dizer-te um
segredo! – grito.
E, antes de a minha mãe chegar, fujo rapi-
damente. Enquanto corro escadas acima,
ouço a minha mãe dizer:
– Onde é que a Pestinha foi desencantar
essa brincadeira pateta da Senhora Traga
Tolas?
Paro à escuta.
– Não faço ideia – diz a Violeta.
– Como haveríamos de saber? – atira o
Lucas.
Corro até ao meu quarto, tendo o cuidado
de não tropeçar no corpo que está no chão.
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CAPÍTULO 3
Perna de Frango
Ao passar pelo corpo da Senhora Traga
Tolas, a caminho do pequeno-almoço,
começo a ficar preocupada.
Cem anos parecem muito tempo mas…
e se cem anos passam muito depressa?
Decido usar um disfarce mesmo em casa
para o caso de a Senhora Traga Tolas
acordar. Só para jogar pelo seguro.
– Não tens calor com isso? – pergunta
o Lucas.
– Não. Sim. Não quero que a Senhora
Traga Tolas me reconheça
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– Para de falar sobre a Senhora Traga
Tolas! – grita a Violeta.
– Para de falar sobre a Senhora Traga
Tolas! – imito-a.
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Tento fazer com que o Lucas e a Violeta
se riam. Descobri que a melhor altura para rir
é à hora dos cereais. Quando consigo fazer
com que me saia leite pelo nariz, eles riem-se
sempre. E, se os meus pais dormem até mais
tarde, consigo fazer com que se riam dizendo
palavras de casa de banho.
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Já depois da hora dos cereais, tenho de me
esforçar muito mais para lhes captar a atenção.
– Se quiseres podes ordenhar-me – sugiro
à Violeta.
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Vou atrás do Lucas e da Violeta pela casa
fora e penso em formas de os impressionar.
A Maria segue-me.
– Posso desenhar um bigode à Senhora
Traga Tolas enquanto dorme? – pergunta
a Maria.
– Não, isso é muito arriscado!
– respondo-lhe.
– Mas ela está a ressonar tão
alto! – diz a Maria.
– Estou ocupada – digo-lhe,
enxotando-a.
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– Ei, pessoal, querem ver um truque de magia?
Veem este pau que tenho na mão? – pergunto.
Depois ponho as mãos atrás das costas.
– Agora está
nesta mão.
Tchanã!!
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Eles nem quiseram ver-me a comer um guardanapo.
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– Ei, pessoal, sabem que consigo cantar
sem abrir a boca?? Estou a falar a sério.
Ouçam!
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– Porque é que te portas sempre como
um bebé? – pergunta a Violeta.
Até que a minha mãe grita:
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Estou fula!
– Estava a cantar! Estás a
interromper-me!
Atiro-me para o chão da
cozinha. Sinto a tijoleira fria
na cara. Caem lágrimas nos
losangos que conheço tão bem,
depois de tantas birras neste
chão.
Enquanto grito e esperneio
e choro, desaperto e dispo o
fato de vaca e fico só de cue-
cas, porque está demasiado
calor para fazer birra num fato
de vaca... não porque eles
mo mandaram despir!
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Quando ter-
mino, visto o
fato de banho
e vou lá para
fora.
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Encontro a Maria a dormir debaixo de
uma árvore.
– Estás mesmo a dormir ou estás só
a fingir? – pergunto-lhe.
– Estou mesmo a dormir – diz ela, sem
abrir os olhos.
Agora, nem a Maria quer brincar.
Deito-me sozinha na cama de rede e
penso que talvez o Lucas e a Violeta tenham
razão. Talvez eu seja um bebé. Penso nas
coisas abebezadas que faço: ainda cheiro
a minha coelhinha e chucho no dedo para
adormecer. Ainda visto roupa do avesso.
Ainda não consigo assobiar. Ainda entorno
tudo quando me sirvo. Ainda quero passar
o dia em camisa de dormir.
Quando olho para as árvores, vejo através
das lágrimas alguém a olhar para mim.
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– Quem és tu? – pergunto, esfregando os
olhos e olhando para o Sol.
– Sou a tua fada madrinha – diz um homen-
zinho que desce a árvore como um coala.
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– Tens a certeza? – pergunto. – Não pare-
ces uma fada madrinha.
– Tenho pois – diz ele; mas, a mim,
parece-me estar confuso. – Bem, o mais im-
portante é que estou aqui para te ajudar.
Diz que se chama Senhor Carolo e que
vive no bosque.
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O Senhor Carolo olha-me com atenção.
Cheira-me. E toca-me. Depois, triste, abana
a cabeça.
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– Um, dois, três!
Ele agita a varinha com a mão. Ponho-me
de joelhos.
– Au, au, au! – ladro e abano a cauda.
O Senhor Carolo parece muito satisfeito.
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– Onde se meteu aquela menina? Estava
mesmo aqui! E de onde veio este cão tonto?
– pergunta a Senhora Traga Tolas ao Senhor
Carolo.
– Deves estar a imaginar coisas – diz o Senhor
Carolo. – Não está aqui nenhuma menina.
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– Sei que estás a tramar alguma, Carolo –
diz ela. – Os teus truques patetas nunca fun-
cionaram comigo.
– Cuidado – alerta o Senhor Carolo. – Este
cão morde.
Ladro desalmadamente à
Senhora Traga Tolas.
– Alguém cale este cão! –
pede a Senhora Traga Tolas.
Ela não faz mesmo ideia
de que sou eu!
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– Au, au! – digo, e isso
quer dizer: «Acabaram-se os
meus dias como humana.»
E acabaram-se mesmo.
O Senhor Carolo diz:
– Tenho de ir. A minha
mulher precisa de mim em
casa para jantar.
E começa a trepar à sua árvore.
– Au, au, au! – ladro à árvore, o que
significa: «Espera! Qual é o teu número
de telefone?»
– Podes ligar-me de qualquer banana –
diz ele lá de cima. – Não precisas de número.
E depois desaparece nas folhas de verão.
A Violeta e o Lucas vêm cá para fora
brincar com um disco e eu corro para lhes
contar as novidades.
– Tenho ótimas notícias!! A Senhora
Traga Tolas nunca me vai encontrar.
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– A sério? Deixaste de te portar como um
bebé? – pergunta a Violeta.
– Não, decidi deixar de me portar como
uma humana.
– Oh, pá! – exclama a Violeta. – Não me
digas. Não quero saber.
– Tudo bem – respondo-lhe –, porque
também não consigo falar. Au, au!! Au, au,
au, au!! – digo, correndo atrás do disco.
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– Sai daqui – diz a Violeta.
Mas o Lucas diz:
– Vem cá, cãozinho!
E faz-me festas.
– Como te chamas, cãozinho?
Tenho de arranjar um nome MUITO bom,
para que o Lucas queira brincar comigo.
Concentro-me a sério.
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Finalmente…
Digo o meu nome sem abrir bem a boca,
pois os cães não falam:
– Perna de Frango.
– Chamas-te Perna de Frango?
Faço que sim com a cabeça e digo:
– Au, au, au.
O Lucas parece satisfeito.
– Tens dono? – pergunta.
Abano a cabeça e faço olhos de cãozinho
triste.
– Bem – diz ele, fazendo-me festas. – Eu
posso ser o teu dono. Mas tens de ser um cão
bonzinho.
– Au, au, au!!
Salto, abano a cauda e dou cambalhotas
para mostrar que estou feliz. Pelos vistos,
o Lucas quer mesmo ter um cão. Não sabia.
Tenho muito pelo branco e comprido com
manchas castanhas, e tenho um laço com
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bolinhas cor-de-rosa, e um nariz molhado,
e saltito muito e normalmente tenho baba
no focinho. O Lucas não se farta de mim.
Ele adora o Perna de Frango.
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Foi assim que me tornei um cão chamado
Perna de Frango e que a Senhora Traga Tolas
ficou a andar pela casa com um ar aborrecido
e confuso. Acho que está à espera de que
eu volte.
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CAPÍTULO 4
Se levares um
cão ao médico…
O Lucas põe-me a taça de cereais no chão
e eu, cheia de fome, devoro tudo.
Ele dá-me guloseimas (que são mais
cereais) quando faço truques. Estes são os
meus truques:
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Depois vou pelo passeio,
atrás do meu pai, quando
ele sai para o trabalho.
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Ao pequeno-almoço apanho meias com
a boca e levo-as ao meu dono. Faço sons de
cãozinho pedinchão até ele lançar a meia
para longe e eu a ir buscar.
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– Tenho de ir. Porta-te bem – diz-me o
meu dono.
Deito-me de costas para que ele me faça
festas na barriga. O Lucas e a Violeta vão
a casa de um amigo. Se eu não fosse um cão,
teria ciúmes.
Mas, na verdade, estou muito feliz por
ficar em casa o dia todo a roer meias com
a Maria.
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– Despacha-te! – diz a minha mãe,
tirando-me as meias da boca.
– Au, au! – digo, querendo dizer que não.
– Pestinha! Temos de ir! Não estou a
brincar! – insiste a minha mãe. – Tens uma
consulta no médico. É preciso, antes de
começares a escola.
– Au, au! – digo-lhe, abanando a cabeça.
Não quero vestir-me,
porque não quero ir a lado
nenhum. Quero ficar em
casa só em camisa de
dormir, que na verdade
faz parte do meu pelo.
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– JÁ!!! – grita a minha mãe.
– Os cães não se vestem. Au!
A minha mãe diz:
– Estamos atrasadas, vamos!
Mas, por mais que ela diga «Dora, não me
ouviste dizer que estamos atrasadas??? Temos
uma consulta. Temos de nos despachar!»,
eu não percebo nada, porque sou um cão!
– Au-au-au-au-au... au... au... au, au, au –
digo, o que quer dizer: «Não, obrigado. Vou
ficar em casa a roer meias.»
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É já no passeio que a minha mãe consegue
finalmente enfiar-me o vestido pela cabeça.
Choro e faço uma grande birra, e as pessoas
que passam ficam a olhar para nós.
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Blhac, detesto este
vestido estúpido. Aaaaaaa!
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Eu queria voltar a transformar-me em me-
nina quando chegássemos ao consultório.
Mas descobri que é impossível deixar de
ser cão. E não podia fazer nada. Estas coisas
só me acontecem a mim.
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– Peço imensa desculpa – diz a minha mãe.
– A Dora tem uma imaginação muito fértil,
demasiado fértil, por vezes.
– Que maravilha – diz a médica, e faz-me
uma festa.
Quero lambê-la.
A minha mãe sussurra-me:
– Guarda a língua.
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A médica ouve o meu coração, vê-me
o interior dos ouvidos, mede-me a tensão
arterial e a temperatura, faz-me saltar o joelho,
e eu porto-me como um lindo cãozinho.
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A minha mãe sussurra:
– Dora, se não dizes as letras, a doutora
vai pensar que não as consegues ver e vais
ter de usar óculos. Por isso, tens de falar.
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Imagino-me com
óculos e fico muito
gira.
– Que letra é esta?
– pergunta a médica,
apontando para o «F».
– Au? – respondo.
A minha mãe diz:
– Peço imensa desculpa.
Eu sei que a Dora vê bem,
talvez seja melhor vir nou-
tro dia.
– OK – diz a médica. – Não há problema.
Só preciso de fazer mais uma coisa.
E, quando eu menos esperava, mesmo
quando a médica estava a dizer que eu era
um cãozinho saudável... vejo-lhe uma seringa
na mão. Tento fugir, mas não sou suficiente-
mente rápida. AAAAIIII!!!! Grito e choro.
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Depois, a médica estende-me um cesto
com chupa-chupas.
– Podes escolher um chupa-chupa para
agora e outro para depois – sorri a médica.
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Paro de chorar quando vejo o cesto dos
chupa-chupas. Escolho um amarelo para
agora e, quando a médica menos espera,
espeto-lhe o pauzinho do
chupa-chupa na coxa!!!!
– Ai! – grita ela.
– Toma lá uma pica-
da também – digo eu.
– Com que então…
tu sabes falar – sorri ela.
Depois faço a minha
cara de cãozinho zangado
e rosno.
– Gggrrr – faço,
de dentes bem
arreganhados.
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Chegada a hora de ir para casa, despa-
cho-me a calçar-me. Nem é preciso a minha
mãe dizer-me nada: a respiração dela já diz
tudo.
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Mas a minha mãe ouve tudo.
– Dora, chega! Estou farta! Acabou-se o cão! –
ralha-me ela, ao volante.
Faço beicinho.
Faz-se um bocadinho de silêncio no carro.
E depois tenho uma ideia.
– Querem ouvir-me a trautear alto? –
murmuro.
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CAPÍTULO 5
Castigo
Quando chegamos a casa, estou em
grandes sarilhos.
A minha mãe manda-me para o quarto,
de castigo.
Eu digo-lhe:
– Podes deixar-me a comida de cão numa
tigela ao pé da porta, au!
Isto faz com que a minha mãe fique tão
zangada que me agarra pela pata e me ar-
rasta escadas acima.
– Anda! – diz.
– Estou a andar! – exclamo.
– Com as duas pernas!!!! – grita a minha
mãe.
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Sozinha no quarto, de repente já não me
apetece ser cão. Há demasiados problemas
quando sou cão. Mostro a ferida à Maria. Ela
compreende a minha dor.
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107
Depois ouço uma voz pouco familiar.
– E ainda tem direito a um chupa-chupa?!
Quem será? Parecia uma voz maléfica...
Hãããããããã?!! Seria a Senhora Traga Tolas?
Não posso acreditar. Vou até às escadas para
ouvir melhor.
– Só ladrava. Nunca me senti tão enver-
gonhada! – diz a minha mãe.
– É tão bebezola! – ri-se a voz.
Agora tenho a certeza; é a Senhora Traga
Tolas.
Será que estão todos juntos sentados
à mesa? A rir-se de mim? E parece que estão
a comer pipocas!
– Ela precisa mesmo de um castigo – diz
a minha mãe.
– Concordo, ela que continue fechada
no quarto – resmunga a Senhora Traga
Tolas, com a boca cheia de pipocas.
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Corro de volta para o meu quarto para
contar tudo à Maria.
– Estamos presas! E a Senhora Traga Tolas
está lá em baixo a comer pipocas com a minha
família. PIPOCAS!
– O que é que as pi-
pocas têm de especial?
– pergunta a Maria.
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– Ela está a comer pipocas com a minha
família!
Se a Maria não compreende, também não
lhe consigo explicar!
– O que vais fazer? – pergunta a Maria.
– Chega de me esconder! Chega de me
disfarçar! Chega de truques! – grito. – Temos
de fazer alguma coisa em relação a isto!
– Como por exemplo? – pergunta.
– Passa-me essa banana. Vou ligar ao
Senhor Carolo!
– Está? Olá, sou eu. A Senhora Traga Tolas
está a comer pipocas com a minha família.
Sim, eu disse pipocas… Também não posso
acreditar, por isso… podias voltar?
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Bem, isso é que
é rapidez.
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– Trouxe ingredientes para uma sopa
venenosa – anuncia. – É assim que nos vamos
livrar da Senhora Traga Tolas de vez.
– O que vai acontecer quando ela comer
a sopa? – pergunto.
– Bem, primeiro vai engasgar-se um pouco,
depois vão sair-lhe penas pelos ouvidos,
depois os olhos transformam-se numa papa
nojenta, e depois cai morta.
– Oh! – exclamo, abraçando-o. – És a
melhor fada madrinha do mundo!
Mas há qualquer coisa que não bate certo.
– Não quero armar-me em esquisita – digo
–, mas podias tentar ficar um pouco mais
parecido com uma fada madrinha?
– E qual é a tua ideia? – pergunta.
Corro até ao roupeiro a buscar algumas
roupas.
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Perfeito.
114
É o Lucas.
– A mãe disse que já podes sair do castigo.
– Não, obrigada – respondo, e fecho a
porta.
Afinal, o castigo está a ser muito divertido.
Não queremos mais interrupções,
por isso decidimos mandar a Maria
lá para fora, para ser a nossa espia.
– Avisa se ela vier. E põe esta
peruca! – digo, e empurro-a lá
para fora.
115
Agora que está tudo mais calmo, eu e
o Senhor Carolo começamos finalmente
a cozinhar. Fazemos a mais mortífera e
deliciosa sopa venenosa para o jantar da
Senhora Traga Tolas.
116
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Quando a sopa fica pronta, levamo-la
para a cozinha, enquanto a Maria distrai a
Senhora Traga Tolas.
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Em seguida, eu e o Senhor Carolo junta-
mos material para um forte gigante, onde
nos podemos esconder até à hora de jantar,
enquanto a Maria fica de guarda.
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Até temos de desviar mesas e pôr as ca-
deiras em cima das mesas, e atamos tudo
com uma enorme fita.
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E a coisa mais fantástica é que fizemos
isto sem que a minha mãe desse conta,
porque está ao telefone.
– O jantar está pronto! – diz a minha mãe,
da cozinha.
– OK, é a nossa oportunidade! – digo ao
Senhor Carolo.
Do forte consigo ouvi-los na cozinha.
– Boa noite, Senhora Traga Tolas.
– És tu, Carolo? Lindo vestido.
– Obrigado.
– Tenho uma mensagem importante da
Dora. Lembras-te da Dora, a criança que
vieste buscar? Ela concordou em ir contigo.
Para a tua caverna. Para sempre.
– Ótimo, porque quase me esquecia do
que estava aqui a fazer! A Dora é mesmo
o que eu quero.
– Mas depois do jantar – diz ele.
– Tudo bem – diz ela. – Estou cheia
de fome.
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Agora que é seguro sair do esconderijo,
vou para a mesa. Sento-me ao pé da Senhora
Traga Tolas porque quero ver o momento
em que ela se engasga com a sopa venenosa e
cai morta. Ah. Ah. Ah. Eu e o Senhor Carolo
damos-lhe conversa.
– Gostas de gelado? – pergunto à Senhora
Traga Tolas.
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– Não há coisa mais nojenta – diz ela.
– Tens telemóvel? – pergunta o Senhor
Carolo.
– Não, mas queria mesmo ter um – res-
ponde. – Consegues arranjar-me um?
– Mmm...? – faz o Senhor Carolo, não
sabendo o que dizer a seguir.
– Tens gato? – interrompo.
– Comi o meu gato – responde ela. – Foi
um acidente.
– Ah, então não és vegetariana – digo.
– Pois – diz ela. – Era capaz de comer
um vegetariano. É isso que vamos jantar?
– Vamos jantar sopa – diz o Senhor
Carolo. – Só sopa.
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– Está? – pergunta o meu pai com um
ar confuso.
– Estás sentado em cima da Senhora Traga
Tolas! – explico. – Podes sentar-te noutro
sítio?
– Foi um dia muuuuuuuito comprido –
diz a minha mãe.
Finalmente está toda a gente à mesa e no
seu devido lugar. O Senhor Carolo serve
a sopa. A Senhora Traga Tolas agarra na
colher e prova a sopa.
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– Deliciosa! – exclama a Senhora Traga
Tolas, enfiando na boca mais sopa, que lhe
vai escorrendo pelo queixo.
A sopa é um desastre. Não acontece nada.
Não há penas nos ouvidos. Nem olhos de
papa nojenta. Acabou-se.
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e, quando chegar a altura de acender as minhas
velas de aniversário, não vai conseguir encon-
trar fósforos... e... e... até me pode cozinhar
numa panela grande!
– Vou ter saudades vossas – digo à minha
família. – Sempre fui tão boazinha e agora
vou ser levada para sempre.
– Adeus! – diz a Violeta.
– Tchau! – diz o Lucas.
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Ela olha para a Cereja. E para mim. Depois
outra vez para a Cereja. E depois para mim.
Respiro fundo e tento parecer muito adulta.
– Umpf! – faz, tirando-me a Cereja.
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Abro a porta e a Senhora
Traga Tolas sai com a parva
da bebé Cereja.
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A seguir ouço gritos.
É a minha mãe. Encontrou o meu forte
gigante.
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CAPÍTULO 6
Bola saltitona
Arrumar o forte demora mesmo muito
tempo, porque estou sempre a esquecer-me
de que estou a arrumar.
– Pestinha, hora de dormir!!! – diz a minha
mãe. – Vai lavar os dentes!
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Enquanto lavo os dentes, digo boa noite ao
Senhor Carolo. Já vestiu a roupa normal dele e
está com pressa de ir para casa ver a mulher.
É nessa altura que a Violeta entra na casa
de banho a chorar.
– Não consigo encontrar a Cereja! – la-
menta-se. – E já a procurei por todo o lado!
Foi-se!
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OH, NÃO! ONDE ESTÁ A BONECA?
– Volto já – digo.
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Desço em bicos de pés até ao rés do chão
e entro na sala escura. Oh! Onde é que eu pus
a Cereja? Dei-a à Senhora Traga Tolas, claro.
Mas o que é que eu fiz com ela, na
REALIDADE? «Pensa, pensa, pensa», digo
a mim própria. Verifico nos lugares ha-
bituais: frigorífico, sanita, máquina de lavar
louça, lixo, debaixo do sofá, dentro do sofá,
debaixo do tapete, lá em cima...
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Em todas as gavetas, debaixo das camas,
na banheira...
Depois de vasculhar tudo, encontrei:
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Estou tão cansada! Desisto. A Cereja não
está nesta casa.
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O meu pai ouve-me o grito e vem a correr.
– Porque é que estás a gritar como uma
louca? Vais acordar o bairro todo! Para com
isso já e vai para a cama!
– AAAAAAAAHHHHHHHHHHHH!
Ele arrasta-me pelo braço.
– Por hoje basta, Pestinha. Estamos todos
fartos, percebeste?
– AAAAAAAAHHHHHHHHHHHH!
– Para de gritar!! – berra o meu pai.
– ELA ERA REAL!!!! – grito.
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– OK, acalma-te, ela era real, como queiras
– diz o meu pai, arrastando-me pelo corredor
até ao quarto. – Vai para a cama.
Até o meu pai disse que
ela era real!
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– Fica. Na. Cama! – diz, esticando o indi-
cador e aconchegando-me depois. – Porque
não é seguro saíres daí! – diz, enquanto
fecha a porta, e acho que o consigo ouvir a
rir-se um bocadinho.
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– Violeta – digo calmamente, segurando
a bola saltitona com força atrás das costas.
– O que foi? – pergunta ela.
– Tenho de te dizer uma coisa... Mmm... Eu...
Mas, nisto, nem acredito no que vejo.
Abro a boca. Aquela é a Cereja? Deitada ao
lado da Violeta?
– Como... como... como... é que ela está aí?
– pergunto.
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– Ah, o Lucas encontrou-a quando foi
às escondidas lá fora apanhar pirilampos –
explica a Violeta. – Devo tê-la deixado à
porta de casa, mas não sei quando.
– Ah – digo baixinho.
Mas, na minha cabeça, os meus pensa-
mentos são muito altos: AAAAAHHH!!
À porta!! Claro!! Atirei-a pela porta quando
a Senhora Traga Tolas se estava a ir embora!
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– O que me querias dizer? – pergunta
a Violeta.
– Ah, pois, isso... bem... – digo, subindo
para a cama dela e aconchegando-me nas
mantas confortáveis e quentinhas.
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– Bem, a Senhora Traga Tolas afinal não é
real – digo.
– Eu sei. Fui eu que a inventei, pateta.
– Foste tu??? Ah, sim – digo. – Obrigada,
Violeta, foi um jogo divertido. Mas um
pouco assustador no final – admito.
Estou tão feliz por poder ficar nesta
casinha acolhedora com a minha família.
– Boa noite – digo à Violeta.
– Boa noite – diz ela, empurrando-me
com suavidade. – Agora vai para a tua cama.
Antes de sair da
cama da Violeta,
escondo a bola
saltitona debaixo
da almofada dela,
como uma pren-
dinha secreta.
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Na manhã seguinte é sábado e os nossos
pais ainda estão a dormir. O Lucas e a Violeta
estão a brincar com a bola saltitona que a
Violeta encontrou debaixo da almofada
dela.
Riem-se com a bola a
acertar no teto e a voar
pelas paredes
e a atingi-los
na cabeça.
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Ó pá, eu queria mesmo brincar.
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De repente faz-se silêncio. Corro até lá acima.
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– Temos de a tirar – diz a Violeta.
– E como fazemos isso? – pergunta o Lucas.
E depois viram-se para trás e veem-me
a observá-los. A sorrir.
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– A Peste vai apanhá-la, não vais, Pestinha?
– diz a Violeta, acenando com a cabeça.
Num instante arregaço as mangas da
camisa de dormir e enfio o braço até ao
fundo da sanita.
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– Aqui está! – digo, mostrando-lhes a bola
saltitona com o braço a escorrer água da
sanita.
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Durante o dia só consigo pensar na bola
saltitona. De cada vez que penso nela, sin-
to-me orgulhosa.
– Lembras-te de quando salvei
a bola saltitona? – pergunto
à Violeta.
– Mmm-mmm – faz ela.
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Mesmo antes de abrir os olhos, sei exta-
mente o que é: é a bola saltitona arco-íris.
– Podes levá-la emprestada, Pestinha – diz a
Violeta. – Não é para ficares com ela!
– A sério?! – exclamo. – A sério???
– Foste tu que a salvaste – diz ela.
Abraço o Lucas e a Violeta.
– Vamos brincar! – diz o Lucas.
– Sim! – concorda a Violeta. – Atira-a!
Tento pensar no melhor jogo de bola
saltitona que conheço. Fecho a bola na mão
com muita força, fecho os olhos e concen-
tro-me.
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Todas estas imagens
me vêm ao cérebro
ao mesmo tempo.
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– OK, já sei! A bola é na verdade uma
pastilha elástica venenosa, e se tocar no teto
explode, e sai lava quente e derretemos todos.
À medida que derretemos transformamo-nos
em pessoas das cavernas, e a Senhora Traga
Tolas mora na caverna ao lado e ela...
– Não! A Senhora Traga Tolas outra vez,
não! – exclama a Violeta.
– OK – concordo –, mas e tudo o resto?
Eles aceitam.
– OK, tudo o resto pode ser.
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Pulo e faço estrondos, o tipo de sons que o
chão faz quando rebenta.
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Agora somos
pessoas das ca-
vernas!
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