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Sinopse

Toda a sua vida, Liesl ouviu histórias do belo e perigoso Rei dos Elfos.
Eles raptaram sua mente e espírito e inspiraram suas composições musicais.
Agora com dezoito anos e ajudando a administrar a estalagem de sua família,
Liesl não pode deixar de sentir que seus sonhos musicais e fantasias da infância
estão se esvaindo.

Mas quando sua própria irmã é levada pelo Rei dos Elfos, Liesl não tem
escolha a não ser viajar para o Submundo para salvá-la. Atraída pelo mundo
estranho e cativante que encontra - e pelo homem misterioso que a governa -,
ela logo enfrenta uma decisão impossível. Com o tempo e as velhas leis
trabalhando contra ela, Liesl deve descobrir quem ela realmente é antes que
seu destino seja selado.
Glossário

Auf wiedersehen – Em alemão, adeus


Danke – Obrigado(a)
Fey – Fada
Fräulein – Moça.
Gugelhopf - um bolo à base de fermento (geralmente com passas),
tradicionalmente cozido em um molde Bundt circular distinto. (Bolo alemão
entre outros países ao redor).
Herr – Senhor
Klavier - Piano
Kapellmeister – Líder ou maestro de uma orquestra ou coro
Kobold Hödekin – Um espírito que assombra casas ou vive no subsolo
em cavernas ou minas (Mitologia Alemã).
Lorelei – Uma feiticeira (Mitologia Alemã).
Luthier – Fabricante de instrumentos de cordas, como violinos ou
violões.
Mein Brüderchen – Meu irmão.
Mein Herr – Meu Senhor.
Servus – Serve para dizer olá como para dizer adeus.
Viel Glück – Boa sorte.
Glossário de Termos

Adagio – é um andamento musical lento, normalmente fazendo parte de


um segundo ou terceiro movimento de uma Sinfonia.
Allegro - é um andamento musical leve e ligeiro.
Baixo Contínuo - pode se referir tanto ao baixo em si (a parte instrumental
mais grave e não interrompida de uma composição, destinada a sustentar sua
tonalidade) ou, no período Barroco, a um sistema de notação musical e da
prática de performance em que uma parte de baixo instrumental era escrita por
extenso, conhecida hoje por progressão do baixo (harmônica), ou
somente contínuo, como o nome implica, e um ou mais instrumentistas,
frequentemente o teclado (cravo), o alaúde ou outro instrumento similar do
período, preenchiam na harmonia com acordes apropriados à progressão, ou
improvisavam uma linha melódica.
Bagatela - é usado para se referir a uma composição musical breve, de
carácter ligeiro e despretensioso, não sujeita a um plano formal concreto,
normalmente para ser tocada ao piano. É típica do Romantismo.
Cânone - Chama-se cânone a forma polifônica, em que as vozes imitam a
linha melódica cantada por uma primeira voz, entrando cada voz, uma após a
outra, uma retomando o que a outra acabou de dizer, enquanto a primeira
continua o seu caminho: é uma espécie de corrida onde a segunda jamais
alcança a primeira.
Cantata - é um tipo de composição vocal, para uma ou mais vozes, com
acompanhamento instrumental, às vezes também com coro, de inspiração
religiosa ou profana, contendo normalmente mais de um movimento e cujo
texto, em vez de ser historiado, descrevendo um fato dramático qualquer, é
lírico, descrevendo uma situação psicológica.
Chacona - Em música, uma chacona (do italiano ciaccona) é um gênero
musical que utiliza a forma musical baseada na variação de uma pequena
progressão harmônica repetida. Originalmente, foi uma rápida dança-canção
da Espanha, com um texto muitas vezes grosseiro, a chacona, aos poucos se
tornou uma dança lenta, em compasso ternário que surgiu, inicialmente, no
século XVI.
Diminuendo - é uma diminuição gradual do volume da música.
Escordatura - é a afinação de um instrumento de cordas diferente da
afinação normal padrão. Ele normalmente tenta permitir efeitos especiais ou
acordes ou timbre incomuns, ou para tornar certas passagens mais fáceis de
tocar.
Estudo - Um estudo é uma composição musical para exercitar uma
habilidade técnica específica na execução de um instrumento solo.
Ländler – Uma dança folclórica austríaca em tempo triplo, uma
precursora da valsa.
Minueto - ou minuet é uma dança em compasso de 3/4, de origem
francesa ou uma composição musical que integra suítes e sinfonias.
Ostinato – é um motivo ou frase musical que é persistentemente repetido
numa mesma altura. A ideia repetida pode ser um padrão rítmico, parte de
uma melodia ou uma melodia completa.
Pizzicato - é uma técnica de execução de instrumentos de corda em que as
cordas são pinçadas com os dedos e não friccionadas com o arco.
Sonata - resumidamente é um tipo de composição musical para um único
instrumento ou para pequeno conjunto. A sonata é o contrário da cantata, a
música cantada, esta sendo apenas instrumental.
Prólogo

Era uma vez uma garotinha que tocava sua música para um garotinho
na floresta. Ela era pequena e com cabelo escuro, ele era alto e louro, e os dois
faziam um par de fantasia enquanto dançavam juntos, dançando a música que
a garotinha ouvia em sua cabeça. Sua avó disse a ela para tomar cuidado com
os lobos que rondavam a floresta, mas a menina sabia que o garotinho não era
perigoso, mesmo que ele fosse o rei dos elfos.
Você quer casar comigo, Elisabeth? O garotinho perguntou, e a garotinha
não se perguntou como ele sabia o nome dela.
Oh, ela respondeu, mas eu sou jovem demais para casar.
Então eu vou esperar, o garotinho disse. Vou esperar o tempo que você se
lembrar. E a garotinha riu enquanto dançava com o Rei dos Elfos, o garotinho
que estava sempre um pouco mais velho, um pouco fora de alcance. À medida
que as estações mudavam e os anos passavam, a garotinha envelhecia, mas o
Rei Elfo permanecia o mesmo. Ela lavava a louça, limpava o chão, escovava o
cabelo da irmã, mas ainda corria para a floresta para encontrar seu velho amigo
no bosque. Seus jogos eram diferentes agora, verdades, desafios e ousadia.
Você quer casar comigo, Elisabeth? O garotinho perguntou, e a garotinha
ainda não entendia que sua pergunta não fazia parte de um jogo.
Oh, ela respondeu, mas você ainda não ganhou minha mão.
Então eu vou ganhar, o garotinho disse. Eu vou ganhar até você se render. E
a garotinha riu quando ela jogou contra o Rei dos Elfos, perdendo todas as
mãos e cada rodada. O inverno se transformou em primavera, primavera em
verão, verão em outono, outono de volta inverno, mas cada virada do ano
ficava cada vez mais difícil à medida que a menina crescia enquanto o Rei dos
Elfos permanecia o mesmo. Ela lavava a louça, limpava o chão, escovava o
cabelo de sua irmã, acalmava os medos de seu irmão, escondia a bolsa de seu
pai, contava as moedas e não entrou mais na floresta para ver seu velho amigo.
Você quer casar comigo, Elisabeth? O Rei dos Elfos perguntou. Mas a
menina não respondeu.
Parte 1

O mercado Elfo

Não devemos olhar para os elfos,


Nós não devemos comprar seus frutos:
Quem sabe sobre que solo eles alimentaram.
Suas raízes famintas e sedentas?

Christina Rossetti, Mercado Elfo


Cuidado com os homens Elfo

—Cuidado com os elfos —, disse Constanze. —E as mercadorias que eles


vendem.
Eu pulei quando a sombra da minha avó varreu minhas anotações,
espalhando meus pensamentos tolos, junto com ela. Eu me esforcei para cobrir
minha música, vergonha apertando minhas mãos, mas Constanze não estava
se dirigindo a mim. Ela estava de pé no limiar, franzindo o cenho para minha
irmã, Käthe, que se preparava diante do espelho do nosso quarto - o único
espelho em toda a nossa estalagem.
—Ouça bem, Katharina. — Constanze apontou um dedo retorcido para
a reflexão da minha irmã. —A vaidade convida à tentação e é sinal de uma
vontade fraca.
Käthe a ignorou, beliscando suas bochechas e afofando seus cachos. —
Liesl —, disse ela, pegando um chapéu na penteadeira. —Você poderia vir me
ajudar com isso?
Eu coloquei minhas anotações de volta em seu pequeno cofre. —É um
mercado, Käthe, não uma Baile. Nós só vamos pegar os arcos de Josef de Herr
Kassl.
—Liesl —, gemeu Käthe. —Por favor.
Constanze deu uma gargalhada e bateu no chão com a bengala, mas
minha irmã e eu não lhe demos atenção. Estávamos acostumadas com os
pronunciamentos sombrios e medonhos da nossa avó.
Suspirei. —Tudo bem. — Eu escondi o cofre sob a nossa cama e me
levantei para ajudar a fixar o chapéu no cabelo de Käthe.
O chapéu era uma confecção imponente de seda e penas, uma afetação
ridícula, especialmente na nossa pequena aldeia provincial. Mas minha irmã
também era ridícula, então ela e o chapéu estavam bem combinados.
—Ai! — Käthe disse enquanto eu acidentalmente a espetava com um
alfinete de chapéu. —Veja onde você coloca essa coisa.
—Aprenda a se vestir, então. — Eu alisei os cachos da minha irmã e ajeitei
o xale dela para que ele cobrisse seus ombros nus. A cintura de seu vestido
estava alta sob o peito, as linhas simples de seu vestido mostrando cada curva
de sua figura. Käthe afirmava que era a última moda de Paris, mas minha irmã
parecia escandalosamente despida aos meus olhos.
—Pff. — Käthe bufou enquanto envaidecia-se ante seu reflexo. —Você
está apenas com ciúmes.
Eu estremeci. Käthe era a beleza da nossa família, com cabelos de sol,
olhos azuis de verão, bochechas de flor de maçã e uma figura rechonchuda.
Aos dezessete anos, ela já parecia uma mulher adulta, com uma cintura
pequena e quadris generosos que o vestido novo exibia com grande vantagem.
Eu era quase dois anos mais velha, mas ainda parecia uma criança: pequena,
magra e pálida. Papai me chamava de Pequeno Elfo, um bom elfo, segundo as
lendas. Para Constanze eu era ‘Fey’. Apenas Josef me chamava de linda. Eu não
era bonita para meu irmão, eu era linda.
—Sim, eu estou com ciúmes —, eu disse. —Agora, vamos ao mercado ou
não?
— Espera um pouco. — Käthe vasculhou sua caixa de bugigangas. — O
que você acha, Liesl? — ela perguntou, segurando alguns pedaços de fita. —
Vermelha ou azul?
—Isso importa?
Ela suspirou. —Suponho que não. Nenhum dos garotos da vila vai se
importar mais, agora que vou me casar. —Ela pegou melancolicamente o
enfeite de seu vestido. —Hans não é perito nem em termos de diversão ou
elegância.
Meus lábios se apertaram. —Hans é um bom homem.
—Um homem bom e chato —, disse Käthe. —Você o viu no baile a outra
noite? Ele nunca, nem uma vez, me pediu para dar uma volta com ele. Ele
apenas ficou no canto e olhava com desaprovação.
Foi porque Käthe estava flertando descaradamente com um punhado de
soldados austríacos a caminho de Munique para expulsar os franceses. —
Menina bonita. — Eles a persuadiram em seus engraçados sotaques austríacos,
—Venha nos dar um beijo!
—Uma mulher devassa é fruto amadurecido — Constanze entoou —
implorando para ser arrancada pelo Rei dos Elfos.
Um arrepio de inquietação correu pela minha espinha. Nossa avó
gostava de nos assustar com contos de elfos e outras criaturas que viviam na
floresta além de nossa aldeia, mas Käthe, Josef e eu não levávamos as histórias
dela a sério desde que éramos crianças. Aos dezoito anos, eu era muito velha
para os contos de fadas da minha avó, mas eu apreciava a emoção culpada que
me percorria toda vez que o Rei dos Elfos era mencionado. Apesar de tudo, eu
ainda acreditava no Rei dos Elfos. Eu ainda queria acreditar no Rei dos Elfos.
—Oh, vai gritar com outra pessoa, sua velha. — Käthe fez beicinho. —
Por que você sempre tem que estar me provocando?
—Marque minhas palavras. — Constanze olhou para minha irmã por
baixo de camadas de renda amarelada e babados desbotados, seus olhos
castanhos escuros as únicas coisas afiadas em seu rosto enrugado. — Cuidado,
Katharina, para que os elfos não tomem você por seus modos licenciosos.
—Chega, Constanze —, eu disse. —Deixe Käthe em paz e deixe-nos
seguir o nosso caminho. Devemos estar de volta antes que o Mestre Antonius
chegue.
—Sim, Deus me livre de perder audição de nosso querido Josef para o
famoso maestro de violino. — Minha irmã murmurou.
—Käthe!
—Eu sei, eu sei. — Ela suspirou. —Pare de se preocupar, Liesl. Ele ficará
bem. Você é pior que uma galinha com uma raposa na porta.
—Ele não vai ficar bem se ele não tiver qualquer arco para brincar. — Eu
me virei para sair. —Venha, ou eu vou sem você.
—Espere. — Käthe agarrou minha mão. —Você me deixaria fazer uma
coisinha com o seu cabelo? Você tem cachos lindos; É uma pena usa-los
amarrados em uma trança. Eu poderia...
—Uma carriça ainda é uma carriça, mesmo nas penas de um pavão. —
Eu a sacudi. —Não perca seu tempo. Não é como se Hans - alguém - notasse
de qualquer maneira.
Minha irmã se encolheu com a menção do nome de seu noivo. —Tudo
bem. — Ela disse brevemente, então passou por mim sem outra palavra.
—Ka... — Eu comecei, mas Constanze me parou antes que eu pudesse
seguir.
—Você cuide de sua irmã, menina —, ela avisou. —Você cuide dela.
—Eu não cuido sempre? — Eu retruquei. Sempre dependia de mim - eu
e minha mãe - manter a família unida. A mãe cuidava da estalagem que era
nossa casa e meio de vida; Eu cuidava dos membros que chegavam em casa.
—Você? — Minha avó fixou seus olhos escuros no meu rosto. —Josef não
é o único que precisa cuidar, você sabe.
Eu fiz uma careta. —O que você quer dizer?
—Você esquece que dia é.
Às vezes era mais fácil alegrar Constanze do que ignorá-la. Suspirei. —
Que dia é hoje?
—O dia em que o ano velho morre.
Outro arrepio na minha espinha. Minha avó ainda mantinha as velhas
leis e o calendário antigo, e essa última noite de outono era quando o ano
anterior morria e a barreira entre os mundos era fina. Quando os habitantes do
Submundo caminhavam pelo mundo durante os dias de inverno, antes que o
ano começasse novamente na primavera.
—A última noite do ano —, disse Constanze. —Agora os dias de inverno
começam e o Rei dos Elfos cavalga por toda parte, procurando por sua noiva.
Eu virei meu rosto para longe. Uma vez eu teria me lembrado sem
qualquer aviso. Uma vez eu teria me juntado a minha avó derramando sal em
cada janela, cada entrada como precaução contra essas noites selvagens. Uma
vez, uma vez. Mas eu não podia mais me dar ao luxo de minha imaginação
indulgente. Já era hora, como disse o apóstolo Paulo aos coríntios, pôr de lado
as coisas infantis.
—Eu não tenho tempo para isso. — Eu empurrei Constanze de lado. —
Deixe-me passar.
A dor transformou as linhas do rosto da minha avó em sulcos ainda mais
profundos, tristeza e solidão, seus ombros curvados curvando-se com o peso
de suas crenças. Ela tinha essas crenças sozinhas agora. Nenhum de nós
acreditava mais no Erköning, o outro nome do Rei dos Elfos
—Liesl! — Käthe gritou do andar de baixo. —Posso pegar emprestado
seu manto vermelho?
—Se importa com o que você escolher minha garota —, Constanze me
disse. —Josef não faz parte do jogo. Quando Der Erlkönig joga, ele joga para
valer.
Suas palavras me pararam de repente. —Do que você está falando? —,
Perguntei. —Que jogo?
—Você me diz. — A expressão de Constanze era grave. —Os desejos que
fazemos no escuro têm consequências, e o Senhor dos Desgostos chamará seu
acerto de contas.
Suas palavras picaram contra minha mente. Eu me importava com o
modo como mamãe nos alertava sobre a idiotice envelhecida e fraca de
Constanze, mas minha avó nunca pareceu mais lúcida ou mais séria e, apesar
de tudo, um fio de medo começou a se enrolar em minha garganta.
—Isso é um sim? — Käthe chamou. —Porque eu estou levando isso em
caso afirmativo!
Eu gemi. —Não, você não pode! — Eu disse, me inclinando sobre o
corrimão da escada. —Eu estarei bem aí, prometo!
—Promessas, não é? — Constanze gargalhou. —Você faz tantas, mas
quantas delas você pode manter?
—O que...— Eu comecei, mas quando me virei para encará-la, minha avó
se foi.
No andar de baixo, Käthe tinha tirado o meu manto vermelho do gancho,
mas arranquei-o das mãos dela e coloquei sobre os meus próprios ombros. A
última vez que Hans nos trouxera presentes da loja de artigos de tecido de seu
pai - antes de sua proposta para Käthe, antes que tudo entre nós mudasse -, ele
nos dera um lindo pedaço de lã pesada. Para a família, ele disse, mas todo
mundo sabia que o presente era para mim. O ferrolho de lã era vermelho-
sangue, perfeitamente adequado para minha coloração e aquecimento mais
escuros para minha pele pálida. Minha mãe e Constanze me fizeram um manto
de inverno com o tecido, e Käthe não fez segredo do quanto cobiçava.
Passamos por nosso pai tocando velhos sons sonoros em seu violino no
salão principal. Olhei em volta em busca de nossos convidados, mas o salão
estava vazio, a lareira fria e os carvões mortos. Papai ainda usava suas roupas
da noite anterior, e o cheiro de cerveja velha permanecia sobre ele como névoa.
—Onde está a mãe? — Perguntou Käthe.
A mãe não estava em lugar algum, o que provavelmente era o motivo
pelo qual o pai se sentia ousado o suficiente para tocar aqui no salão principal,
onde qualquer um poderia ouvi-lo. O violino era um ponto dolorido entre
nossos pais; o dinheiro estava apertado, e mamãe preferia que papai cobrasse
a tocar apenas por puro prazer. Mas talvez a chegada iminente do Mestre
Antonius tenha afrouxado as cordas da mãe e as cordas do seu coração. O
renomado artista foi parar em nossa pousada durante sua viagem de Viena a
Munique para fazer um teste com meu irmão mais novo.
—Provavelmente tirando uma soneca —, me aventurei. —Estávamos
acordados antes do amanhecer, limpando os quartos para o Mestre Antonius.
Nosso pai era um violinista incomparável, que havia tocado com os
melhores músicos da corte de Salzburgo. Era em Salzburgo que papai se
orgulhava de ter tido o privilégio de tocar com Mozart, um dos grandes
concertos do compositor. —O gênio — assim, dizia Papa. —vem apenas uma vez
na vida. Uma vez em duas vidas. —Mas às vezes, ele continuava, dando a Josef um
olhar astuto. — O raio atinge duas vezes.
Josef não estava entre os convidados reunidos. Meu irmão mais novo era
tímido perto de estranhos, então ele provavelmente estava se escondendo no
Bosque dos Elfos, praticando até seus dedos sangrarem. Meu coração doía para
se juntar a ele, mesmo quando minhas pontas dos dedos se dobravam com dor
simpática.
—Bom, eu não sentirei falta —, disse Käthe alegremente. Minha irmã
frequentemente achava qualquer desculpa para sair em suas tarefas. —Vamos
lá.
Lá fora, o ar estava vivo. O dia estava incomumente frio, mesmo no final
do outono. A luz era esparsa, fraca e vacilante, como se vista através de cortinas
ou de um véu. Uma leve neblina envolvia as árvores ao longo do caminho até
a cidade, espalhando seus galhos finos em membros espectrais. A última noite
do ano. Em um dia como esse, eu podia acreditar que as barreiras entre os
mundos eram realmente fracas.
O caminho que levava à cidade era cercado por trilhos de carruagem e
manchado com esterco de cavalo. Käthe e eu tomamos cuidado para manter as
bordas, onde a grama curta e morta ajudava a impedir que a umidade
penetrasse em nossas botas.
—Ugh. — Käthe deu um passo em torno de outra poça de esterco. —Eu
gostaria que pudéssemos pagar uma carruagem.
—Se nossos desejos tivessem poder. — Eu disse.
—Então eu seria a pessoa mais poderosa do mundo —, observou Käthe,
—pois tenho muitos desejos. Eu gostaria que fôssemos ricos. Eu gostaria que
pudéssemos pagar o que quiséssemos. Imagine só, Liesl: e se, e se, e se?
Eu sorri. Quando meninas, Käthe e eu gostávamos de jogar E Se?.
Enquanto a imaginação de minha irmã não abrangia o estranho, como a minha
e a de Josef, ela tinha uma capacidade extraordinária de fingir, no entanto.
—E se, de fato? — Eu perguntei suavemente.
—Vamos brincar —, disse ela. —O mundo ideal imaginário. Você
primeiro, Liesl.
—Tudo bem. — Eu pensei em Hans, então o empurrei de lado. —Josef
seria um músico famoso.
Käthe fez uma careta. —É sempre sobre Josef com você. Você não tem
sonhos próprios?
Eu tinha. Eles estavam trancados em uma caixa, sãos e salvos debaixo da
cama que compartilhávamos, para nunca mais serem vistos, para nunca serem
ouvidos.
—Tudo bem —, eu disse. —Sua vez, então, Käthe. Seu mundo imaginário
ideal .
Ela riu, um som brilhante, parecido com um sino, a única coisa musical
sobre minha irmã. —Eu sou uma princesa.
—Naturalmente.
Käthe me lançou um olhar. —Eu sou uma princesa e você é uma rainha.
Feliz agora?
Eu acenei para ela.
—Eu sou uma princesa —, ela continuou. —Papai é o Kapellmeister do
bispo-príncipe, e todos moramos em Salzburgo.
Käthe e eu nascemos em Salzburgo, quando papai ainda era um músico
da corte e minha mãe, cantora de uma trupe, antes que a pobreza nos
perseguisse até o sertão da Baviera.
—Mãe é a Ídola da cidade por sua beleza e sua voz, e Josef é o aluno de
prêmio do Mestre Antonius.
—Estudando em Salzburgo? —, Perguntei. —Não Viena?
—Em Viena, então —, Käthe emendou. —Oh sim, Viena. — Seus olhos
azuis brilhavam enquanto ela criava sua fantasia para nós. —Nós viajaríamos
para visitá-lo, é claro. Talvez o vejamos nas grandes cidades de Paris,
Mannheim e Munique, talvez até em Londres! Teremos uma grande casa em
cada cidade, enfeitada com ouro e mármore e madeira de mogno. Usaremos
vestidos feitos com as mais luxuosas sedas e brocados, uma cor diferente para
todos os dias da semana. Convites para as mais extravagantes bailes e festas e
óperas e peças de teatro devem inundar nossa caixa de correio todas as
manhãs, e um bando de pessoas vai invadir as barricadas a nosso favor. Os
maiores artistas e músicos nos considerariam seus conhecidos íntimos, e nós
dançaríamos e festejaríamos a noite toda com bolo, torta e schnitzel 1 e...
—Torta de chocolate. — Acrescentei. Era a minh afavorita.
—Torta de chocolate e—, concordou Käthe. —Teríamos os melhores
treinadores e os cavalos mais bonitos e — Gritou ela enquanto escorregava em
uma poça de lama. —nunca andaríamos a pé por estradas não pavimentadas
para vender novamente.
Eu ri e ajudei-a a recuperar o equilíbrio. —Festas, Bailes, sociedade
reluzente. É isso que as princesas fazem? O que de rainhas? E quanto a mim?

1 Uma fina fatia de vitela ou outra carne leve, coberta com pão ralado e frita.
—Você? — Käthe ficou em silêncio por um momento. —Não. As rainhas
estão destinadas à grandeza.
—Grandeza? — Eu meditei. —Uma coisa pobre e simples como eu?
—Você tem algo muito mais duradouro do que beleza. — Disse ela
severamente.
—E o que é isso?
—Graça —, ela disse simplesmente. —Graça e talento.
Eu ri. —Então, qual é o meu destino?
Ela me lançou um olhar de soslaio. —Ser uma compositora de grande
renome.
Um vento frio soprou através de mim, me congelando até a medula. Era
como se minha irmã tivesse chegado ao meu peito e arrancado meu coração,
ainda batendo, com o punho. Eu tinha anotado pequenos trechos de melodia
aqui e ali, rabiscando pequenas cantigas em vez de hinos nos cantos do meu
livro de domingo, com a intenção de reuni-los em sonatas e concertos,
romances e sinfonias algum dia. Minhas esperanças e sonhos, tão esfarrapados
e tenros, haviam sido protegidos pelo sigilo por tanto tempo que não podia
suportar trazê-los à luz.
—Liesl? — Käthe puxou minha manga. —Liesl, você está bem?
—Como — eu disse com voz rouca. —Como você…
Ela se contorceu. —Encontrei sua caixa de composições embaixo da
nossa cama um dia. Eu juro que não quis fazer mal algum — Acrescentou ela
rapidamente. —Mas eu estava procurando por um botão que eu tinha deixado
cair, e...— Sua voz sumiu com o olhar no meu rosto.
Minhas mãos estavam tremendo. Como ela ousa? Como ousa abrir meus
pensamentos mais íntimos e expô-los a seus olhos curiosos?
—Liesl? — Käthe parecia preocupada. —O que há de errado?
Eu não respondi. Eu não podia responder, não quando minha irmã nunca
entenderia como ela havia se rebelado contra mim. Käthe não tinha um
mínimo de habilidade musical, quase um pecado mortal em uma família como
a nossa. Eu me virei e marquei o caminho para o mercado.
—O que eu disse? — Minha irmã correu para me acompanhar. —Eu
pensei que você ficaria satisfeita. Agora que Josef está indo embora, pensei que
papai pudesse... quero dizer, todos sabemos que você tem tanto talento
quanto...
—Pare com isso. — As palavras racharam no ar do outono, quebrando
sob a frieza da minha voz. —Pare com isso, Käthe.
Suas bochechas ficaram vermelhas como se ela tivesse sido esbofeteada.
—Eu não entendo você. — Disse ela.
—O que você não entende?
—Por que você se esconde atrás de Josef.
—O que o Sepperl tem a ver com alguma coisa? — Sepperl era o apelido
de nosso irmão.
Käthe estreitou os olhos. —Para você? Tudo. Aposto que você nunca
escondeu sua música do nosso irmãozinho.
Eu parei. —Ele é diferente.
—Claro que ele é diferente. — Käthe ergueu as mãos em exasperação. —
Precioso Josef, delicado Josef, talentoso Josef. Ele tem música, loucura e magia
em seu sangue, algo que Katharina, pobre, comum, surda, não entende, nunca
poderia entender.
Eu abri minha boca para protestar, depois fechei de novo. —Sepperl
precisa de mim. — Eu disse suavemente. Era verdade. Nosso irmão era frágil,
em mais que ossos e sangue.
—Eu preciso de você. — Ela disse, e sua voz estava quieta. Ferida.
As palavras de Constanze voltaram para mim. —Josef não é o único que
precisa de cuidados.
—Você não precisa de mim. — Eu balancei minha cabeça. —Você tem
Hans agora.
Käthe endureceu. Seus lábios ficaram brancos, suas narinas se alargaram.
—Se é isso que você pensa —, ela disse em voz baixa. —então você é ainda
mais cruel do que eu pensava.
Cruel? O que minha irmã sabia de crueldade? O mundo mostrara-lhe
muito mais favor do que jamais me mostrara. Suas perspectivas eram felizes,
seu futuro certo. Ela casaria com o homem mais elegível da aldeia enquanto eu
me tornasse a irmã indesejada, a descartada. E eu... eu tinha Josef, mas não por
muito tempo. Quando meu irmão mais novo partisse, ele levaria consigo a
última parte de minha infância: nossas aventuras na floresta, nossas histórias
de Kobold Hödekin dançando ao luar, nossos jogos de música e faz de conta.
Quando ele se for, tudo o que restaria para mim era música - música e o Rei
dos Elfos.
—Seja grata pelo que você tem —, retruquei. —Juventude, beleza e,
muito em breve, um marido que te fará feliz.
—Feliz? — Os olhos de Käthe brilharam. —Você honestamente acha que
Hans me fará feliz? Maçante, chato Hans, cuja mente é tão limitada quanto as
fronteiras da aldeia provincial estúpida em que ele cresceu? Hans, seguro e
impassível, que me manteria na estalagem com um rolo de maça na mão e um
bebê no colo?
Eu fiquei chocada. Hans era um velho amigo da família e, embora ele e
Käthe não tivessem sido tão íntimos quando crianças - como Hans e eu
havíamos sido -, até aquele momento eu não sabia o quão pouco minha irmã o
amava. —Käthe —, eu disse. —Por quê-
—Por que eu concordei em me casar com ele? Por que eu não disse nada
antes?
Eu balancei a cabeça.
—Eu disse. — Lágrimas brotaram em seus olhos. —De novo e de novo.
Mas você nunca ouviu. Esta manhã, quando eu disse que ele era chato, você
me disse que ele era um bom homem. — Ela virou o rosto. —Você nunca ouve
uma palavra do que eu digo, Liesl. Você está muito ocupada ouvindo Josef em
vez disso.
Preste atenção ao que você escolhe. Culpa coagulou minha garganta.
—Oh, Käthe —, eu sussurrei. —Você poderia ter dito não.
—Eu poderia? — Ela zombou. —Você ou mamãe me deixariam? Que
escolha eu tive senão aceitar a mão dele?
Sua acusação me destruiu, me fez cúmplice do meu próprio
ressentimento. Eu tinha tanta certeza de que esse era o jeito do mundo que eu
não questionava. O bonito Hans e a linda Käthe - é claro que eles deveriam
ficar juntos.
—Você tem escolhas —, repeti incerta. —Mais do que eu terei.
—Escolhas. — A risada de Käthe foi crua. —Bem, Liesl, você fez sua
escolha sobre Josef há muito tempo. Você não pode me culpar por fazer a
minha sobre Hans.
O resto de nossa caminhada até o mercado continuou sem outra palavra.
Venha comprar, venha comprar

—Venha comprar, venha comprar!


Na praça da cidade, as bancas do mercado estavam cheias de
mercadorias, e seus vendedores vendiam suas mercadorias a plenos pulmões.
—Pão fresco! Leite fresco! Queijo de cabra! Lã quente, a lã mais macia que você
já sentiu! — Alguns vendedores tocavam sinos, alguns agitavam os badalos de
madeira, e outros ainda batiam com uma batida errática de tambor em um
tambor caseiro, tudo em um esforço para trazer objetos para suas mesas.
Quando nos aproximamos, Käthe se iluminou.
Eu nunca entendi a perspectiva de gastar moedas por prazer, mas minha
irmã adorava fazer compras. Passou os dedos carinhosamente sobre os tecidos
à venda: sedas, veludos e cetins importados da Inglaterra, da Itália e até do
Extremo Oriente. Ela enterrou o nariz em buquês de lavanda e alecrim secas, e
fechou os olhos enquanto saboreava o gosto azedo de mostarda no pretzel
pastoso que comprara. Tal prazer sensual.
Eu me arrastava para trás, demorando-me sobre coroas de flores secas e
fitas, pensando que eu poderia comprar uma como presente de casamento para
minha irmã - ou um pedido de desculpas. Käthe amava coisas bonitas; não,
mais do que amava - se deleitava nelas. Notei como as matronas de lábios
azedos e as anciãs carrancudas da cidade davam à minha irmã olhares
sombrios, como se o prazer dela em pequenos luxos fosse algo obsceno, algo
sujo. Um homem em particular, um homem alto, pálido e elegante, observava-
a com uma intensidade que teria me acendido, se ele tivesse olhado para mim.
—Venha comprar, venha comprar!
Um grupo de vendedores de frutas à margem do mercado pedia vozes
altas e nítidas que transpassavam o barulho da multidão. Seus tons prateados
e parecidos com um carrilhão formigavam a orelha, me puxando para perto,
quase contra a minha vontade. Já era tarde na estação de frutas frescas, e
marquei a cor e a textura incomuns de suas oferendas: redondas, deliciosas,
tentadoras.
—Ooh, Liesl! — Käthe apontou, nosso argumento anterior esquecido. —
Pêssegos!
Os vendedores de frutas nos chamavam com gestos fluidos, segurando
suas mercadorias em suas mãos, e o cheiro tentador de fruta madura passava.
Minha boca ficou molhada, mas me afastei, puxando Käthe comigo. Eu não
tinha moeda para poupar.
Algumas semanas atrás, eu tinha enviado alguns arcos de Josef para
serem reelaborados e consertados por um arqueiro antes do teste do meu irmão
com o Mestre Antonius. Eu havia acumulado, economizado e economizado o
que podia, pois os reparos não eram baratos.
Mas agora os vendedores de fruta tinham nos visto e nossos olhares de
saudade. —Venham, moças adoráveis! —, Eles cantaram. —Venha, querida
doce. Venham comprar, venham comprar! —Um deles bateu um ritmo nas
tábuas de madeira que serviram de mesa, enquanto os outros pegaram uma
melodia. —Ameixas e damascos, pêssegos e amoras, sintam o gosto!
Sem pensar, comecei a cantar com eles, um ooh-oo sem palavras
procurando harmonia e contraponto em sua música. Terços, quintas,
diminutas sétimas, joguei com os acordes sob minha respiração. Juntos, os
vendedores de frutas e eu tecemos uma rede de sons cintilantes, assustadores,
estranhos e um pouco selvagens.
Os vendedores de repente focaram seus olhos em mim, suas feições
afiadas, seus sorrisos se alongando. Os cabelos na parte de trás do meu pescoço
ficaram em pé e deixei a melodia cair. O toque dos olhos deles era uma cócega
na minha pele, mas atrás de mim eu podia sentir o olhar de um outro invisível,
tão palpável quanto uma mão acariciando minha nuca. Eu olhei por cima do
meu ombro.
O alto, pálido e elegante estranho.
Suas feições estavam sombreadas por um capuz, mas por baixo da capa,
suas roupas estavam bem. Notei o brilho de fios de ouro e prata no brocado de
veludo verde. Vendo minha expressão inquisitiva, o estranho se mexeu e
dobrou seu manto sobre ele, mas não antes de eu vislumbrar calções de couro
pardos delineando a forma esbelta de seus quadris. Eu virei meu rosto para
longe, meu rubor aquecendo o ar ao meu redor. Ele parecia familiar, de alguma
forma.
—Brava, brava! —, Gritaram os vendedores de frutas assim que
terminaram a música. —Moça esperta em vermelho, venha pegar sua
recompensa!
Eles acenaram com as mãos sobre as frutas em exibição, os dedos longos
e finos. Por um momento, pareceu que havia muitas juntas em seus dedos, e
senti o roçar de algo estranho. Mas esse momento passou, e os mercadores
pegaram um pêssego, oferecendo-o para mim de mãos abertas.
O perfume da fruta era espesso no ar gelado do outono, mas por baixo
do cheiro enjoativo estava o cheiro de algo podre, algo pútrido. Eu recuei e
pareceu-me que a aparência desses vendedores haviam mudado. Sua pele
adquirira uma coloração esverdeada, as pontas de seus dentes eram
pontiagudas e afiadas e, em vez de unhas, pareciam ter garras.
Cuidado com os elfos e com as mercadorias que eles vendem.
Käthe alcançou o pêssego com as duas mãos. —Oh sim por favor!
Peguei o xale da minha irmã e a puxei de volta.
—A donzela sabe o que quer —, disse um dos vendedores. Ele sorriu
para Käthe, mas era mais do que sorriso. Seus lábios pareciam esticados um
pouco longe demais, seus dentes amarelados afiados. —Cheia de paixões,
cheia de desejo. Fácil de desgastar, facilmente saciada.
Assustada, me virei para Käthe. —Vamos —, eu disse. —Nós não
devemos ficar. Precisamos passar por Herr Kassl antes de ir para casa.
Os olhos de Käthe permaneceram fixos na matriz de frutas colocada
diante dela. Ela parecia doente, as sobrancelhas franzidas, o peito arfando, as
bochechas vermelhas, os olhos brilhantes e febris. Ela parecia doente ou...
excitada. Um sentimento de injustiça tomou conta de mim, errado e
assustador, mesmo quando uma sugestão de sua excitação despertou meus
próprios membros.
—Vamos —, repeti. Os olhos de Käthe estavam vagos e vítreos. —Anna
Katharina Magdalena Ingeborg Vogler! — Eu bati. —Estamos de saída.
—Talvez outra hora, querida —, zombou o vendedor de frutas. Eu juntei
minha irmã, colocando um braço protetoramente sobre seus ombros. —Ela vai
voltar —, disse ele. —Garotas como ela nunca podem adiar a tentação por
muito tempo. Ambas estão... maduras para a colheita.
Eu fui embora, empurrando Käthe à minha frente. Com o canto do olho,
vislumbrei o estranho alto e elegante novamente. Por baixo do capuz dele, senti
que ele nos observava. Assistindo. Considerando. Julgando. Um dos
vendedores de frutas puxou a capa do estranho, e o homem inclinou a cabeça
para ouvir, mas eu senti o olhar dele em nós. Sobre mim.
—Cuidado.
Eu parei no meu caminho. Era outro dos vendedores de frutas, um
homem pequeno com cabelos crespos como um dente de leão e um rosto
comprimido. Ele não era mais do que o tamanho de uma criança, embora sua
expressão fosse velha, mais velha que Constanze, mais velha que a própria
floresta.
—Aquela —, disse o comerciante, apontando para Käthe, cuja cabeça
pendia no meu ombro. —queima como lenha. Repentina e sem calor real. Mas
você — ele disse. —Você arde como brasa, minha senhora. Há um fogo
queimando dentro de você, mas sua chama queima lentamente. Ela brilha
com o calor, esperando apenas uma respiração para ventilar a vida. Mais
curioso. — Um sorriso lento se espalhou por sua boca. —O mais curioso, de
fato.
O mercador desapareceu. Eu pisquei, mas ele nunca voltou, deixando-
me a pensar se eu tinha sonhado com o encontro. Eu balancei a cabeça, apertei
meu braço no braço de Käthe e marchamos para a loja de Herr Kassl,
determinada a esquecer esses estranhos elfos e seus frutos: tão tentadores, tão
doces e tão distantes.

Käthe me sacudiu quando nos afastamos dos vendedores de frutas. —Eu


não sou uma criança que precisa de cuidados, você sabe. — Ela retrucou.
Eu apertei meus lábios, mordendo minha resposta aguda. —Tudo bem.
— Eu estendi uma pequena bolsa. —Vá encontrar Johannes o cervejeiro e diga
a ele que...
—Eu sei o que estou fazendo, Liesl —, disse ela, pegando a bolsa da
minha mão. —Eu não sou completamente indefesa.
E com isso ela se afastou de mim, desaparecendo na agitação da
multidão.
Com algum receio, virei-me e encontrei o caminho para Herr Kassl. Não
tínhamos nenhum arqueiro ou luthier em nossa pequena aldeia, mas Herr
Kassl conhecia os melhores artesãos de Munique. Durante seu longo contato
com nossa família, Herr Kassl viu muitos instrumentos valiosos passarem por
sua loja e, portanto, fez questão de manter contato com os que trabalhavam no
ramo. Ele era um velho amigo de Papa, na medida em que um penhorista
podia ser um amigo.
Quando terminei de fazer negócios com Herr Kassl, fui procurar minha
irmã. Käthe era fácil de encontrar, mesmo nesse mar de rostos na praça. Seus
sorrisos eram os mais amplos, seus olhos azuis mais brilhantes, suas bochechas
rosadas mais rosadas. Até o cabelo dela sob aquele chapéu ridículo brilhava
como um pássaro de plumagem dourada. Tudo o que eu tinha que fazer era
seguir o caminho traçado pelos olhos dos espectadores da aldeia, aqueles
olhares de admiração e apreço que me levaram direto para minha irmã no
centro.
Por um momento, observei-a barganhar e pechinchar com os
vendedores. Käthe era como uma atriz no palco, toda emoção e intensa paixão,
seus gestos afetados, seus sorrisos calculados. Ela vibrava e flertava
escandalosamente, cuidadosamente alheia aos olhares que ela desenhava
como mariposas para a chama. Homens e mulheres traçavam as linhas de seu
corpo, a curva de sua bochecha, o beicinho de seu lábio.
Olhando para Käthe, era difícil esquecer quão pecadores nossos corpos
eram, quão propensos nós éramos à maldade. Nascidas para problemas, como
as faíscas voam para cima, ou assim diz Jó. Vestida com tecidos grudados, com
cada linha de seu corpo exposta, cada suspiro de prazer revelado, tudo sobre
Käthe sugeria voluptuosidade.
Com um sobressalto, percebi que estava olhando para uma mulher - uma
mulher e não uma criança. Käthe sabia do poder que seu corpo exercia sobre
os outros, e esse conhecimento substituiu sua inocência. Minha irmã havia
cruzado o limiar de menina para mulher sem mim e me senti abandonada.
Traída observei um jovem bajular minha irmã enquanto ela examinava a tenda
dele, e um caroço se formou na minha garganta, ressentimento tão amargo que
quase me engasguei com isso.
O que eu não teria dado para ser o objeto do desejo de alguém, apenas
por um momento. O que eu não teria dado para provar esse fruto, aquela
doçura inebriante, de ser desejada. Eu queria. Eu queria o que Käthe tinha
como certo. Eu queria perdão.
—Posso interessar a jovem de vermelho em algumas bugigangas
curiosas?
Assustada do meu devaneio, olhei para cima para ver o estranho alto e
elegante mais uma vez.
—Não, obrigada, senhor. — Eu balancei a cabeça. —Eu não tenho
dinheiro para gastar.
O estranho se aproximou. Em suas mãos enluvadas, ele segurava uma
flauta, lindamente esculpida e polida para um alto brilho. De perto, eu podia
ver o brilho de seus olhos debaixo do capuz.
—Não? Bem, então, se você não pode comprar minhas mercadorias, você
aceitaria um presente?
—Um presente? — Eu estava quente e desconfortável sob o seu
escrutínio. Ele olhou para mim como ninguém antes, como se eu fosse mais do
que a soma dos meus olhos, meu nariz, meus lábios, meu cabelo e minha
miserável simplicidade. Ele parecia como se me visse inteira, como se me
conhecesse. Mas eu o conheço? Sua presença arranhou minha mente, como
uma música meio lembrada. —Pelo que?
—Preciso de um motivo? — Sua voz não era profunda nem alta, mas
havia uma qualidade que falava de florestas escuras e noites secas de inverno.
—Talvez eu quisesse apenas tornar o dia de uma jovem um pouco mais
brilhante. As noites crescem longas e frias, afinal de contas.
—Oh não, senhor —, eu disse novamente. —Minha avó me alertou contra
os lobos que rondam na floresta.
O estranho riu e tive um vislumbre de dentes brancos e afiados. Eu
estremeci.
—Sua avó é sábia —, disse ele. —Tenho certeza que ela também disse
para você evitar os homens elfos. Ou talvez ela tenha dito que éramos um só e
o mesmo.
Eu não respondi.
—Você é esperta. Eu não ofereço esse presente para você com a bondade
do meu coração, mas com uma necessidade egoísta de ver o que você pode
fazer com ele.
—O que você quer dizer?
—Há música em sua alma. Uma música selvagem e indomável que fala
comigo. Ela desafia todas as regras e leis que vocês humanos definem. Ela
cresce dentro de você e eu desejo libertar essa música.
Ele tinha me ouvido cantar com os vendedores de frutas. Um tipo
selvagem e indomável de música. Eu já ouvi essas palavras antes, do papai.
Então, pareceu um insulto. Minha educação musical foi rudimentar, na melhor
das hipóteses; De todos nós, papai havia levado mais tempo e cuidado com
Josef, certificando-se de que meu irmão entendesse a teoria e a história da
música, seus alicerces e fundações. Eu sempre tinha escutado as lições dessas
lições, tomando as notas que podia, aplicando-as às minhas próprias
composições.
Mas esse elegante estranho não faz nenhum julgamento sobre minha
falta de estrutura formal, minha falta de aprendizado. Tomei suas palavras e
as plantei no fundo.
—Para você, Elisabeth. — Ele me ofereceu a flauta novamente. Desta vez
eu peguei. Apesar do ar frio, o instrumento estava quente e parecia quase como
a pele sob minhas mãos.
Foi só depois que o estranho desapareceu que percebi que ele havia me
chamado pelo meu nome.
Elisabeth.
Como ele poderia saber?

Segurei a flauta em minhas mãos, admirando sua constituição, passando


meus dedos pelo seu rico grão e acabamento liso. Um pensamento persistente
remexeu no fundo da minha mente, uma sensação de que eu havia perdido ou
esquecido alguma coisa, mas pairava nos limites da memória, uma palavra na
ponta da minha língua.
Käthe.
Um choque de medo agitou meus pensamentos lentos. Käthe, onde
estava Käthe? Na multidão, não havia sinal do chapéu ridículo da minha irmã,
nem um eco de sua risada. Um profundo sentimento de pavor tomou conta de
mim, junto com a sensação perturbadora de que eu havia sido enganada.
Por que aquele estranho alto e elegante me ofereceu um presente? Foi
realmente por curiosidade egoísta por minha causa, ou apenas mais uma
manobra para me distrair enquanto os elfos roubavam minha irmã?
Enfiei a flauta em minha bolsa e peguei a bainha da minha saia,
ignorando os olhares escandalizados dos burburinhos da cidade e os gritos dos
vilarejos da aldeia. Eu corri pelo mercado em um pânico cego, chamando o
nome de Käthe.
Razão guerreada pela fé. Eu era velha demais para entrar nas histórias
da minha infância, mas não pude negar a estranheza do meu encontro com os
vendedores de frutas. Com o estranho alto e elegante.
Eles eram os elfos.
Não havia homens elfos.
Venha comprar, venha comprar!
As vozes espectrais dos mercadores eram fracas e fracas na brisa, mais
memória do que som. Eu segui esse fio de música, ouvindo suas melodias
sinistras não com meus ouvidos, mas com outra parte de mim, invisível e
despercebida. A música chegou ao meu coração e puxou, puxando-me como
uma marionete em suas cordas.
Eu sabia onde minha irmã tinha ido. O terror me pegou, juntamente com
a certeza inquestionável de que algo de ruim aconteceria se eu não a alcançasse
a tempo. Eu prometi manter minha irmã a salvo.
Venha comprar, venha comprar!
As vozes estavam mais suaves agora, distantes e vazias, desaparecendo
no silêncio com um sussurro fantasmagórico. Cheguei às margens do mercado,
mas os vendedores de frutas não estavam mais lá. Não havia tendas, nem
mesas, nem frutas, nada que sugerisse que eles já tivessem estado ali. Nada
além da forma solitária de Käthe na névoa, seu vestido frágil flutuando sobre
ela como uma das Damas Brancas de Frau Perchta, como uma figura de um
dos contos de fadas de Constanze. Talvez eu tivesse chegado a minha irmã a
tempo. Talvez não houvesse nada a temer.
—Käthe! — Eu gritei, correndo para abraçá-la.
Ela se virou. Os lábios de minha irmã brilhavam - vermelhos, pegajosos
e doces -, o beicinho inchado como se ela tivesse acabado de ser completamente
beijada.
Nas mãos dela havia um pêssego meio comido, seu suco escorrendo por
seus dedos como riachos de sangue.
Ela é do Rei dos Elfos agora

Käthe não falou comigo em nossa caminhada para casa. Eu estava me


alimentando de mau humor: minha irritação com minha irmã, o encontro
inquietante com os vendedores de frutas, o tremor que o estranho alto e
elegante tinha mexido em mim - tudo girava em um turbilhão de confusão.
Uma qualidade nebulosa envolvia minhas memórias do mercado, e eu não
podia ter certeza se não tinha sido um sonho.
No entanto, aninhado na minha bolsa estava o presente do estranho. A
flauta batia contra a minha perna a cada passo, tão real quanto os arcos de Josef
na minha mão. Eu me perguntava por que o estranho tinha me dado a flauta.
Eu era uma flautista medíocre na melhor das hipóteses; os sons finos e
fantasmagóricos que eu poderia produzir no instrumento eram mais estranhos
que doces. Eu me perguntava como explicaria sua existência para mamãe. Eu
me perguntava como eu poderia explicar isso para mim mesma.
—Liesl...
Para minha surpresa, foi Josef quem nos recebeu na porta. Ele olhou para
nós ao redor dos postes, pairando desconfortavelmente no limiar.
—O que é isso, Sepp? — Eu perguntei gentilmente. Eu sabia que meu
irmão estava nervoso sobre sua próxima audição, o que custaria a ele mostrar
seu rosto para tantos estranhos. Como eu, meu irmão se escondia nas sombras;
ao contrário de mim, ele preferia lá.
—Mestre Antonius —, ele sussurrou. —está aqui.
—O que? — Eu deixei cair a minha bolsa. —Tão cedo? — Nós não
esperávamos o velho violinista até a noite.
Ele assentiu. Uma expressão cautelosa cruzou seu rosto, suas feições
pálidas comprimidas de preocupação. —Ele se divertiu nos Alpes. Não queria
ser pego por uma tempestade de neve precoce.
—Ele não precisa se preocupar —, disse Käthe. Tanto Josef como eu nos
viramos para ela, surpresos. Nossa irmã estava olhando para a distância, seus
olhos um brilho vítreo. —O rei ainda dorme, esperando. Os dias de inverno
ainda não começaram.
Meu pulso bateu forte. —Quem está dormindo? Quem está esperando?
Mas ela não disse mais nada e simplesmente passou por Josef para a
pousada.
Meu irmão e eu trocamos um olhar. —Ela está bem? — Ele perguntou.
Mordi o lábio, lembrando como a fruta dos elfos manchava seus lábios e
queixo com algo parecido com sangue. Então eu balancei a cabeça. —Ela está
bem. Onde está o Mestre Antonius agora?
—Lá em cima, tirando uma soneca —, disse Josef. —Mãe nos disse para
não perturbá-lo.
—E papai?
Josef deslizou seu olhar do meu. —Eu não sei.
Eu fechei meus olhos. De todos os momentos para papai desaparecer. O
velho artista do violino tinha sido amigo de Papa na corte do bispo-príncipe.
Tanto o mestre Antonius quanto o papai tinham deixado esses dias para trás,
mas um viajara além do outro. Um acabava de terminar um posto como
visitante na corte do imperador austríaco, enquanto o outro encontrava
consolo no fundo de um barril de cerveja todas as noites.
—Bem. — Eu abri meus olhos e forcei meus lábios em um sorriso.
Entreguei a Josef seus arcos recém-consertados e juntei um braço sobre seus
ombros. —Vamos nos preparar para fazer um show, vamos?

A cozinha estava cheia de fermento, água fervente e assados no fogão. —


Bom, você voltou —, disse a mãe. Ela assentiu com a cabeça em uma tigela no
balcão. —A carne está temperada, então comece a aparar os comprimentos. —
Ela estava em pé sobre um grande tanque de água fervente, mexendo um lote
de salsichas.
Eu coloquei um avental e imediatamente comecei a medir o revestimento
da salsicha para torcer e amarrar em ligações individuais. Käthe não estava em
lugar nenhum, então mandei Josef ir procurá-la.
—Você viu seu pai? — Perguntou a mãe.
Não me atrevi a olhar para o rosto dela. A mãe era uma mulher
extraordinariamente amável, sua figura ainda magra e jovem, os cabelos ainda
brilhantes, a pele ainda bela. À meia-luz do crepúsculo e do amanhecer, nas
horas intermediárias, na borda dourada de uma chama de vela, podia-se ver
como ela era famosa em toda Salzburgo não apenas por sua bela voz, mas
também por seu lindo rosto. Mas o tempo tinha linhas esculpidas nos cantos
dos lábios carnudos e entre as sobrancelhas. Tempo, labuta e papai.
—Liesl...
Eu balancei a cabeça.
Ela suspirou, e um mundo de significado estava dentro daquele som.
Raiva, frustração, desesperança, resignação. A mãe ainda tinha o dom de
transmitir todos os tons de emoção através da voz.
—Bem —, ela disse. —Vamos rezar que Mestre Antonius não se ofenda
com a sua ausência.
—Eu tenho certeza que o papai vai voltar a tempo. — Eu peguei uma faca
para esconder a mentira. Apare, torça, amarre. Apare, torça, amarre. —
Precisamos ter fé.
—Fé. — Minha mãe riu, mas era um som amargo. —Você não pode viver
com fé, Liesl. Você não pode alimentar sua família com isso.
Torcer, aparar, amarrar. Torcer, aparar, amarrar. —Você sabe o quão
charmoso papai pode ser —, eu disse. —Ele poderia persuadir as árvores a dar
frutos no inverno, ele pode ser perdoado por qualquer negligência.
—Sim, eu certamente sei o quão charmoso seu pai pode ser. — Disse Mãe
secamente.
Corei; Eu tinha nascido apenas cinco meses depois que meus pais
disseram seus votos.
—O encanto é bom —, disse ela, forçando as salsichas e colocando-as em
uma toalha para secar. —Mas o charme não coloca pão na mesa. Charme sai
com seus amigos à noite, quando ele poderia estar mostrando seu filho para
todos os grandes mestres.
Eu não respondi. Tinha sido um sonho da família uma vez, levar Josef
para as capitais do mundo e jogar seu talento para ouvidos melhores e mais
ricos. Mas nós nunca fizemos uma turnê para Josef. E agora, aos quatorze anos,
meu irmão era velho demais para ser apresentado como uma criança prodígio
do jeito que Mozart ou Linley tinham, jovem demais para ser nomeado para
qualquer tipo de posto permanente como músico profissional. Apesar de sua
habilidade, meu irmão ainda tinha anos para aprender e aperfeiçoar seu ofício,
e se o Mestre Antonius não o aceitasse como aprendiz, então seria o fim da
carreira de Josef.
Então, havia muita esperança na audição de Josef, não apenas para Josef,
mas para todos nós. Era a oportunidade de meu irmão ir além de seu humilde
começo e mostrar ao mundo que talento ele era, mas também era a última
chance de nosso pai tocar para todos os grandes públicos da Europa através de
seu filho. Para mamãe, era uma maneira de seu filho mais novo escapar da vida
de trabalho penoso e sofrimento que vinha com o dono de um estalajadeiro e,
para Käthe, era a possibilidade de visitar seu famoso irmão em todas as
capitais: Mannheim, Munique, Viena. E possivelmente até Londres, Paris ou
Roma.
Para mim... era uma maneira da minha música alcançar ouvidos além do
de Josef e do meu. Käthe poderia ter visto meus escritos secretos escondidos
na caixa debaixo da nossa cama, mas só Josef ouvira seu conteúdo.
—Hans! — Disse a mãe. —Eu não esperava ver você aqui tão cedo.
A faca na minha mão escorregou. Eu amaldiçoei sob a minha respiração,
sugando o corte para tirar o sangue.
—Eu não perderia o dia de Joseph Frau Vogler —, disse Hans. —Eu vim
para ajudar.
—Deus te abençoe, Hans — disse mamãe carinhosamente. —Você é uma
dádiva de Deus.
Rasguei uma tira do meu avental para envolver meu dedo sangrando e
continuei trabalhando, tentando o meu melhor para permanecer despercebida.
Ele é o prometido de sua irmã, eu me lembrei. No entanto, eu não pude deixar
de olhar para ele debaixo dos meus cílios.
Nossos olhos se encontraram e todo calor saiu da cozinha. Hans
pigarreou. —Bom dia, Fräulein. — Disse ele.
Ele estava a uma boa distância, e seu gesto doeu mais do que o corte em
meu dedo. Nós já estávamos familiarizados uma vez. Uma vez, fomos Hansl e
Liesl. Uma vez nós éramos amigos, ou talvez algo mais. Mas isso foi antes de
todos nós crescermos.
—Oh, Hans. — Eu dei uma risada estranha. —Somos quase familiares.
Você ainda pode me chamar de Liesl, você sabe.
Ele assentiu rigidamente. —É bom ver você, Elisabeth.
Elisabeth era o máximo de intimidade que teríamos agora. Eu forcei um
sorriso. —Como você está?
—Eu estou bem, obrigado. — Seus olhos castanhos estavam guardados.
—E você?
—Tudo bem —, eu disse. —Um pouco nervosa. Sobre a audição, quero
dizer.
A expressão de Hans se suavizou. Aproximou-se e pegou uma faca da
tábua de cortar, juntando-se a mim, torcendo, aparando e amarrando as
salsichas. —Você não precisa se preocupar —, disse ele. —Josef toca como um
anjo.
Ele sorriu e a geada entre nós começou a derreter. Estabelecemos o ritmo
de nosso trabalho - aparar, torcer, amarrar, aparar, torcer, amarrar - e, por um
momento, pude fingir que era como quando éramos crianças. Papai nos dera
aulas de teclado e violino, e sentamos no mesmo banco, aprendemos as
mesmas escalas, compartilhamos as mesmas lições. Embora Hans nunca tenha
avançado muito além de exercícios simples, passamos horas juntos no klavier,
nossos ombros roçando, nossas mãos nunca se tocando.
—Onde está Josef, afinal? — Perguntou Hans. —Tocando no Bosque dos
Elfos?
Hans, como o resto de nós, sentava-se aos pés de Constanze, ouvindo
suas histórias de kobolds Hödekin, de elfos e Lorelei, de Der Erlkönig, o senhor
de Mischief. Sentimentos quentes começaram a cintilar entre nós como brasas.
—Talvez —, eu disse suavemente. —É a última noite do ano.
Hans zombou. —Ele não é velho demais para estar tocando para fadas e
elfos?
Seu desprezo era uma pitada de água fria, extinguindo os remanescentes
de nossa juventude compartilhada.
—Liesl, você pode vir assistir o Iva 2? — Mãe perguntou, enxugando o
suor da testa. —Os fabricantes de cerveja devem chegar a qualquer momento.
—Eu vou fazer isso, senhora. — Hans ofereceu.
—Obrigada, meu querido. — Disse ela. Ela largou a vareta para Hans e
saiu da cozinha, enxugando as mãos no avental, deixando-nos sozinhos.
Nós não falamos.
—Elisabeth. — Hans começou timidamente.
Torcer, aparar, amarrar. Torcer, aparar, amarrar.
—Liesl...
Minhas mãos pararam por um breve momento e depois retomei meu
trabalho. —Sim, Hans?
—Eu...— Ele limpou a garganta. —Eu esperava te pegar sozinha.
Isso me chamou a atenção. Nossos olhos se encontraram e eu me vi
encarando-o, com cara de boba e direta. Ele era menos bonito do que eu
costumava lembrar dele, seu queixo menos forte, seus olhos mais próximos,

2Erva perene dos Labiates (Aiuga iva), mais precisamente o almiscarado, devido ao cheiro a almíscar
que exala.
seus lábios apertados e finos. Mas ninguém podia negar que Hans era um
homem de boa aparência, muito menos eu.
—Eu? — Minha voz estava rouca, mas firme. —Por quê?
Seus olhos escuros estudaram meu rosto, uma ruga de incerteza
aparecendo entre suas sobrancelhas. —Eu... eu quero fazer as coisas certas
entre nós, Elisabeth.
—Elas não estão?
—Não. — Hans olhou para o recipiente giratório na frente dele antes de
colocar sua vareta mexendo de lado, se aproximando de mim. —Não, elas não
estão. Eu... eu senti sua falta.
De repente, era difícil respirar. Hans parecia muito grande, muito perto
demais.
—Nós éramos bons amigos uma vez, não éramos? — Ele perguntou.
—Éramos.
Eu não conseguia me concentrar através da proximidade dele. Seus
lábios formaram palavras, mas eu não as ouvi, apenas senti o roçar de sua
respiração contra meus próprios lábios. Eu me segurei rígida, querendo
empurrá-lo, sabendo que eu deveria me afastar.
Hans segurou meu pulso. —Liesl...
Assustada, eu olhei para onde seus dedos estavam em volta do meu
braço. Por muito tempo, eu queria tocá-lo, pegar suas mãos e sentir os dedos
entrelaçados aos meus. No entanto, no momento em que Hans me tocou por
vontade própria, pareceu-me irreal. Era como se eu estivesse olhando para a
mão de outra pessoa e para o pulso de outra pessoa.
Ele não era meu. Ele não poderia ser meu.
Poderia ele ser?
—Katharina se foi.
Constanze entrou na cozinha. Hans e eu pulamos separados, mas minha
avó não notou o rubor nas minhas bochechas. —Katharina se foi. — Ela disse
novamente.
—Se foi? — Eu lutei para reunir minha compostura caída e cobrir meu
desejo exposto. —O que você quer dizer? Foi para onde?
—Acabou de sair. — Ela chupou um dente solto.
—Eu enviei Josef para buscá-la.
Ela encolheu os ombros. —Ela não está em nenhum lugar na pousada, e
sua capa vermelha está faltando.
—Eu vou procurá-la. — Hans ofereceu.
—Não, eu vou. — Eu disse apressadamente. Eu precisava colocar minha
mente e meu corpo de volta em seus devidos espaços. Eu precisava me afastar
dele e me encontrar na floresta.
Os olhos escuros da minha avó entediaram-me. —O que você finalmente
escolheu garotinha? — Ela perguntou suavemente. Ela estava debruçada sobre
sua bengala retorcida como uma ave de rapina, seu xale preto pendurado sobre
os ombros como asas de corvo.
A memória da carne sangrenta da fruta dos elfos correndo pelo rosto da
minha irmã e os dedos voltaram para mim. Josef não é o único que precisa cuidar.
Eu quero vomitar.
—Depressa —, insistiu Constanze. —Eu temo que ela Pertença ao Rei dos
Elfos agora.
Eu corri para fora da cozinha e para o grande salão, limpando as mãos
no meu avental. Peguei um xale do cabide, envolvi-o nos ombros e fui procurar
minha irmã.
Não me aventurei muito na mata, pensando que Käthe continuaria perto
de casa. Ao contrário de Josef ou de mim, ela nunca sentira um parentesco
particular com as árvores, pedras e riachos na floresta. Ela não gostava de lama,
nem de sujeira nem de umidade, preferindo ficar no interior, onde estava
quente, onde poderia se enfeitar e ser mimada.
No entanto, minha irmã não estava em nenhum dos lugares habituais
dela. Normalmente, o mais longe que ela se aventurou foi para os estábulos
(não possuíamos cavalos, mas os visitantes ocasionalmente viajavam a cavalo),
e às vezes para o depósito de madeira, onde as gramas ao redor da nossa
pousada terminavam e as bordas selvagens da floresta começavam.
Havia o cheiro fraco e impossível de pêssegos do verão amadurecendo
na brisa.
O aviso de Constanze ecoou em minha mente. Ela é do Rei dos Elfos agora.
Enrolei meu xale sobre mim e corri para a trilha na floresta.
Passando pelo depósito de madeira, passando pelo riacho que corria
atrás de nossa pousada, no fundo do coração selvagem da floresta, havia um
círculo de amieiros que chamamos de Bosque dos Elfos. As árvores cresciam
de modo a sugerir braços torcidos e membros monstruosos congelados em
uma dança eterna, e Constanze gostava de nos dizer que as árvores haviam
sido seres humanos - jovens mulheres impertinentes - que desagradavam Der
Erlkönig. Quando crianças brincávamos aqui, Josef e eu tocávamos,
cantávamos e dançávamos, oferecendo nossa música ao Lorde de Mischief. O
Rei dos Elfos era a silhueta em torno da qual minha música era composta, e o
Bosque dos Elfos era o lugar onde minhas sombras ganhavam vida.
Eu observei uma forma escarlate na floresta à minha frente. Käthe na
minha capa, caminhando para o meu espaço sagrado. Um irracional, pequeno
corte de irritação cortou meu pavor e desconforto. O Bosque dos Elfos era meu
refúgio, meu santuário. Por que ela deve levar tudo o que era meu? Minha irmã
tinha um dom para transformar o extraordinário no ordinário. Ao contrário de
meu irmão e eu - que vivíamos no éter da magia e da música -, Käthe vivia no
mundo do real, do tangível, do mundano. Ao contrário de nós, ela nunca teve
fé.
Névoa enrolada nas bordas da minha visão, obscurecendo a distância
entre os espaços, fazendo parecer o perto distante. O Bosque dos Elfos ficava a
poucos minutos a pé de nossa estalagem, mas o tempo parecia estar me
enganando, e parecia que eu andara andando para sempre e não minutos.
Então lembrei que o tempo - como a memória - era apenas mais um dos
brinquedos do Rei dos Elfos, um brinquedo que ele podia dobrar e esticar à
vontade.
—Käthe! — Eu gritei. Mas minha irmã não me ouviu.
Quando criança, fingi vê-lo, Der Erlkönig, esse misterioso governante
clandestino. Ninguém sabia como ele era e ninguém sabia qual era sua
verdadeira natureza, mas eu sabia. Ele parecia um menino, um jovem, um
homem, qualquer coisa que eu precisasse que ele fosse. Ele era brincalhão,
sério, interessante, confuso, mas ele era meu amigo, sempre meu amigo. Era
fictício, é verdade, mas até mesmo acreditar era uma espécie de crença.
Mas essas eram as fantasias de uma menininha, Constanze me contou. O
Rei dos Elfos não era nenhuma das coisas que eu sabia que ele era. Ele era o
Senhor da Malícia - mercurial, melancólico, sedutor, belo -, mas ele era, acima
de tudo, perigoso.
—Perigoso? — A pequena Liesl perguntou. — Perigoso como?
—Perigoso como um vento de inverno, que congela a medula por dentro, e não
como uma lâmina, que corta a garganta de fora.
Mas eu não deveria me preocupar, pois apenas mulheres bonitas eram
vulneráveis aos encantos do Rei dos Elfos. Elas eram sua fraqueza e ele era
delas; elas o queriam - sinuoso, enlouquecido e indomável - do jeito que elas
queriam segurar a chama ou a névoa da vela. Porque eu não era bonita, nunca
senti o peso das advertências de Constanze sobre o Rei dos Elfos. Como Käthe
não era imaginativa, ela também nunca teve.
E agora eu temia por nós duas.
—Käthe! — Eu gritei novamente.
Eu peguei minhas saias e meu ritmo, correndo atrás da minha irmã. Mas
não importa o quão rápido eu corria, a distância entre nós nunca se fechava.
Käthe continuava andando em seu caminho lento e firme, mas eu nunca
conseguia alcançá-la. Ela estava tão longe de mim como quando eu parti atrás
dela.
Minha irmã entrou no Bosque dos Elfos e fez uma pausa. Ela olhou por
cima do ombro, diretamente para mim, mas ela nunca me viu. Seus olhos
examinaram a floresta, procurando por algo - ou alguém - específico.
De repente ela não estava sozinha. Lá no Bosque dos Elfos, ao lado da
minha irmã, como se ele sempre estivesse lá, estava o estranho alto e elegante
do mercado. Ele usava sua capa e capuz, que escondia seu rosto de mim, mas
Käthe olhou para ele com uma expressão de adoração.
Eu parei no meu caminho. Käthe tinha um sorrisinho estranho no rosto,
um sorriso que eu nunca vira antes, o sorriso fino e fraco de um inválido diante
de um novo dia. Seus lábios pareciam mordidos e sua pele estava pálida. Eu
me senti estranhamente traída, por Käthe ou o alto e elegante estranho, eu não
tinha certeza. Eu não o conhecia, mas ele parecia me conhecer. Ele era apenas
outra coisa que Käthe havia tirado de mim, outra coisa que ela havia roubado.
Não era ele?
Eu estava prestes a marchar direto para o Bosque dos Elfos e arrastar
minha irmã de volta para casa, em segurança, quando o estranho recuou seu
capuz.
Eu suspirei.
Eu poderia dizer que o estranho era lindo, mas descrevê-lo assim era
chamar Mozart de “apenas um músico”. Sua beleza era a de uma tempestade
de gelo, adorável e mortal. Ele não era bonito, não do jeito que Hans era bonito;
as feições do estranho eram longas demais, pontudas demais, estranhas
demais. Havia uma beleza sobre ele que era quase feminina, e uma fealdade
sobre ele que era tão convincente quanto. Compreendi então o que Constanze
quisera dizer quando aquelas jovens condenadas desejavam segurá-lo da
maneira que ansiavam por captar a chama ou a névoa da vela. Sua beleza doía,
mas era a dor que a tornava bonita. No entanto, não era sua beleza estranha e
cruel que me movia, foi o fato de que eu conhecia aquele rosto, aquele cabelo,
aquele olhar. Ele era tão familiar para mim quanto o som da minha própria
música.
Este era o Rei dos Elfos.
Cheguei a essa conclusão sem mais surpresa do que se tivesse encontrado
o padeiro local. O Rei dos Elfos sempre foi meu vizinho, um acessório em
minha vida, tão seguro quanto o campanário da igreja, o comerciante de
tecidos e a pobreza que perseguia os calcanhares de minha família. Eu cresci
com ele do lado de fora da minha janela, assim como eu crescera com Hans, a
leiteira e as damas da praça da aldeia. Claro que eu o reconheci. Se eu não
tivesse visto seu rosto todas as noites em meus sonhos, em minhas fantasias
infantis? No entanto... não tinha sido tudo isso - fingir?
Este era o Rei dos Elfos. Essa era minha irmã em seus braços. Esta era
minha irmã inclinando a cabeça para trás para cumprimentar seus lábios.
Aquele era o Rei dos Elfos se abaixando para receber seus beijos como
oferendas sagradas feitas no altar de sua adoração. Este era o Rei dos Elfos
correndo dedos longos e finos para baixo da linha do pescoço da minha irmã,
seu ombro, suas costas. Essa era minha irmã rindo, seu riso musical alegre, e
esse era o Rei dos Elfos sorrindo em troca, mas olhando para mim, sempre
olhando. Fiquei fascinada; minha irmã ficou encantada.
Encantada. A palavra foi uma pitada de água fria e meus sentidos
voltaram com um solavanco. Este erea o Rei dos Elfos. O sequestrador de
donzelas, o punidor de más ações, o Senhor do Mal e do Submundo. Mas ele
também não era amigo da minha infância, o confidente da minha juventude?
Eu hesitei, dilacerado por desejos conflitantes.
Eu balancei a cabeça. Eu tinha que resgatar minha irmã. Eu tinha que
quebrar o encanto.
—Käthe! — Eu gritei. As árvores ressoaram e uma cacofonia estridente
de corvos assustados pegou meu grito. Ka-kaw! Ka-kaw! Ka-Käthe!
Desta vez o Rei dos Elfos tomou nota. Ele levantou a cabeça e trancamos
olhares sobre a forma estupefada da minha irmã. Seus cabelos claros rodeavam
seu rosto magro como um halo, como uma nuvem de cardo, como a juba
desgrenhada de um lobo, prateada e dourada e sem cor de uma só vez. Eu não
sabia dizer de que cor eram seus olhos de onde eu estava, mas eles eram
igualmente pálidos e gelados. O Rei dos Elfos inclinou a cabeça em um aceno
de duelista e me deu um pequeno sorriso, as pontas dos dentes afiados e
pontiagudos. Eu cerrei meus punhos. Eu conhecia esse sorriso. Eu reconheci e
entendi como um desafio.
Venha resgatá-la, minha querida, dizia o sorriso. Venha e resgate ela... se você
puder.
Virtuoso

—Käthe!
Eu corri para frente quando minha irmã entrou em colapso. O pânico me
galvanizou, transformando meu sangue em aço, e corri para pegá-la antes que
ela caísse. Minha irmã se encostou em mim, seu corpo flácido, seu rosto pálido
apertado e puxado.
—Käthe, você está bem?
Ela piscou devagar, seus olhos azuis vítreos e desfocados. —Liesl?
—Sim. — Eu fiz uma careta. —O que você está fazendo aqui?
Nós nos ajoelhamos no Bosque dos Elfos, que não era o lugar habitual da
minha irmã. Ela me levou a uma alegre perseguição, procurando por ela uma
colina e um vale, quando muito precisava ser feito antes que o Mestre Antonius
acordasse. Eu estava irritada com ela - devia ter ficado irritada com ela -, mas
meus pensamentos eram curiosamente lentos, como se descongelassem depois
de um longo inverno.
—Aqui? — Käthe se esforçou para se sentar. —Onde estamos?
—O Bosque dos Elfos —, eu disse impaciente. —Onde os amieiros
crescem.
—Ah. — Um sorriso sonhador tocou seus lábios. —Eu vim porque ouvi.
—Ouviu o que?
Suas palavras balançaram algo solto em minha mente, meus
pensamentos se espalhando pelo chão como folhas caindo. Mas eram apenas
pequenas impressões - penas, gelo, olhos pálidos - que desapareciam assim
que eu tentava segurá-las, como flocos de neve na mão.
—A música.
—Que música? — Aquela memória meio acordada fez cócegas
novamente, uma coceira que eu não pude arranhar.
Ela virou seu sorriso para mim. —Você, de todas as pessoas, deveria ter
reconhecido isso. Você não consegue ouvir o som da sua própria alma
cantando?
Um sorriso grotesco cruzou o rosto da minha irmã, os lábios sem sangue
esticados sobre uma boca escancarada e sombria. Eu recuei.
—É algo importante?
Eu pisquei e seu sorriso se foi. Havia um pouco de franzir nos lábios de
Käthe, petulante e fazendo beicinho, e ela estava com os olhos arregalados,
bochechas coradas e linda mais uma vez. Mas havia manchas escuras sob os
olhos, a pele pálida.
—Sim —, eu disse irritada. —O fato de estarmos aqui e não lá, na
estalagem. — Ajudei minha irmã a ficar de pé. —O que você estava fazendo
aqui fora?
Käthe riu, mas não soava como a dela. Havia insinuações de floresta
escuras de inverno e gelo quebrando sob aqueles tons brilhantes e marcantes,
e minha pele arrepiou, minha mente coçou.
—Ter palavras com um velho amigo.
—Que velho amigo? — Concentrei-me em colocar Käthe em pé e passei
o braço pelos ombros. Sua pele estava fria e úmida sob o meu toque, e ela
parecia mais um cadáver do que uma garota viva.
—Você —, ela disse novamente. —Como você esqueceu os velhos
tempos, Elisabeth.
Eu congelo. Käthe não fez nenhum movimento para continuar sem mim.
Ela me observava, com a cabeça inclinada para um lado, um meio sorriso nos
lábios, ambos brincalhões e doces.
Minha irmã nunca me chamou de Elisabeth.
—Você sempre falou dele como um amigo, você sabe —, disse ela em voz
baixa. —Um amigo, um companheiro de brincadeiras, um amante. — Sua
expressão mudou, mais aguda, astuta. Seu queixo parecia pontudo, as maçãs
do rosto como uma lâmina. —Você disse que iria se casar com ele algum dia.
Hans. Não, não Hans. Ele estava de volta à estalagem. Um velho amigo
na floresta, uma garota em um bosque, um rei em seu reino...
Essa coceira em minha mente ficou insuportável. Desesperadamente, eu
me agarrei, procurando e procurando por uma memória que não consegui
encontrar. Algo estava faltando. Algo se foi. O que havíamos feito antes disso?
Como chegamos aqui? O pressentimento cresceu dentro de mim,
pressentimento e medo, subindo como águas escuras em uma inundação.
—Käthe —, eu disse, a voz embargada. —O que-
Uma juba de prata e ouro, um par de olhos tão frio como gelo, um desafio
num sorriso. Eu quase a peguei, quase a descobri
Então minha irmã riu. Era a sua própria risada, brilhante e musical. —
Oh, Liesl— , ela disse, —você é muito fácil de provocar.
Escuridão e sombra se foram, a sensação de que um feitiço havia sido
quebrado. —Eu te odeio. — Eu gemi.
Käthe sorriu. Eu pensei ter visto aquele lampejo de lábios sem sangue e
uma boca escura como vinho, mas era seu próprio sorriso doce. —Venha —
disse ela, tomando o meu braço no dela. —Perdemos tempo suficiente. Mestre
Antonius acordará a qualquer momento e tenho certeza de que mamãe se
meteu em um frenesi.
Eu balancei a cabeça e me juntei, deixando minha irmã se apoiar em mim
como uma muleta. Juntas nós mancamos de volta para casa, de volta para a
realidade, de volta para o mundano.

Käthe estava certa; Mamãe estava em um frenesi. O mestre Antonius


acordou de sua soneca quando voltamos e a estalagem inteira estava em
alvoroço. Constanze e mamãe estavam no meio de um grito, enquanto Hans
pairava desajeitadamente no canto, a vassoura na mão, educado demais para
intervir, covarde demais para ir embora.
—Absolutamente não! — Um cacho solto escorregou do gorro da mãe e
ela o empurrou para o lado com uma mão cheia de farinha. —Eu não vou
permitir isso! Não esta noite de todas as noites.
Constanze segurava um grande saco de aniagem nas mãos. Um estranho
estrondo passou por mim quando vi que ela estava derramando sal ao longo
do parapeito da janela, cada soleira, cada entrada.
—É a última noite do ano! — Ela apontou um dedo acusador para a mãe.
—Eu não vou deixar esta noite passar sem proteção, quer você queira ou não.
—Chega! — Minha mãe lutou para arrancar o sal do aperto de
Constanze, mas as mãos da velha, tão retorcidas quanto as raízes de carvalho,
eram surpreendentemente fortes. —Não tenho paciência com isso hoje, não
com o Mestre Antonius e Georg desaparecendo de novo. — Ela nos viu. —
Käthe! Vem me ajudar.
Minha irmã pegou a vassoura de Hans e começou a varrer.
—Você! — Constanze me lançou um olhar sujo. —Você deve me ajudar.
Você não deve deixar o Der Erlkönig entrar.
Eu me encolhi e olhei da minha mãe para a minha avó.
—Liesl —, disse a mãe com exasperação. —Não temos tempo para
satisfazer essas fantasias infantis. Pense no seu irmão. O que o mestre Antonius
diria?
—E o que é essa? — Constanze acenou com a cabeça para Käthe. —Acha
que ela não precisa de proteção? Cuide de sua escolha, garota.
Eu olhei do sal derramado para a minha irmã. Proteção contra o Rei dos
Elfos. Então pensei em Josef e optei por não arriscar sua posição já precária
com o maestro. Peguei a vassoura das mãos da minha irmã e comecei a varrer
o sal. Constanze balançou a cabeça, os ombros caídos com resignação.
—Agora —, disse a mãe com satisfação. —Käthe, certifique-se de que seu
irmão esteja pronto para a audição, e eu vou colocar a mãe idosa do meu
marido... — Ela olhou para Constanze. — Na cama.
—Eu não estou cansada —, Constanze retrucou. —Eu não sou fraca,
apesar da esposa atormentada do meu filho. — Ela combinou com o brilho da
mãe em seus olhos.
—Ouça, velha —, minha mãe começou. —Eu desisti da minha carreira,
da minha família e do futuro de meus filhos por você, e um pouco de gratidão
seria apreciada...
Só então papai retornou. Ele voltou com uma canção nos lábios e estojo
de violino na mão, tilintando e sacudindo a cada passo.
—Tenho que ir, tenho que ir, tenho que deixar esta cidade, deixar esta
cidade!
—Você! — As narinas da mãe se abriram. —Georg, onde você esteve?
—Käthe —, eu sussurrei. —Por que você e Hans não levam Constanze
para o quarto dela? Vou me certificar de que Josef esteja pronto assim que eu
terminar aqui.
Minha irmã me deu um olhar longo e ilegível, depois assentiu. Hans
gentilmente pegou as mãos de Constanze quando ele e Käthe levaram nossa
avó embora.
—E você, minha querida, fica aqui; Quando eu voltar, quando eu voltar,
quando eu voltar, de volta, na sua porta eu vou aparecer! — Papai se inclinou
para beijar os lábios de mamãe, mas ela o empurrou para longe.
—O Mestre Antonius esteve aqui há várias horas e o homem da casa não
pode ser visto! Eu poderia apenas...
O resto de seu discurso se perdeu nos sons de um beijo abafado. Papai
deixou cair seu estojo no chão, segurando sua esposa enquanto sussurrava em
seu ouvido.
—Amor eu não posso estar com você o tempo todo, meus pensamentos
estão com você, minha querida —, ele cantou em voz baixa. —Quando eu
voltar, quando voltar, quando estiver de volta, de volta, à sua porta, eu vou
aparecer!
Eu podia ver o corpo de mamãe se curvando, tornando-se flexível no
abraço de papai, seus protestos cada vez mais indiferentes quando papai lhe
dava um beijo, e outro, e depois outro, antes que ela finalmente rompesse com
uma risada.
Papai sorriu com triunfo, mas foi apenas uma vitória temporária. Ele
havia ganhado uma risada da mãe, mas pelo olhar dela perderia a guerra.
—Vá limpar-se —, disse a mãe. —Mestre Antonius espera no salão
principal.
—Você poderia se juntar a mim. — Disse Papai, balançando as
sobrancelhas escandalosamente.
—Shoo —, disse ela, dando-lhe um empurrão. Suas bochechas estavam
rosadas. —Vai.
Mãe começou quando me viu nas sombras. —Liesl —, disse ela, alisando
as mãos sobre o cabelo. —Eu não achei que você ainda estivesse aqui.
Varri o último sal na pá e joguei no fogo. Mesmo no meio da minha
própria família, era facilmente esquecida.
—Aqui, eu vou pegar isso. — Mamãe pegou a vassoura e pá de lixo das
minhas mãos. —Os céus sabem aonde mais aquela velha bruxa chegou antes
de pará-la. — Ela balançou a cabeça. —Sal...
Dei de ombros, peguei um pano úmido e limpei as bancadas. —
Constanze tem suas crenças. — Eu fui dominada por uma súbita pontada de
apreensão. O sal era uma velha superstição, e eu não costumava ser uma
superestição, mas acabara de romper a fé com minha avó.
Minta com sua escolha.
—Bem, ela é bem-vinda a eles nos dias em que um famoso mestre de
violino não está aqui —, disse a mãe. Ela acenou para as bancadas. —Quando
você terminar aqui, vá encontrar seu irmão e tenha certeza de que ele está
pronto para hoje à noite.
Ela saiu da cozinha, resmungando ao sair. —Sal. Honestamente.
Quando terminei de limpar a cozinha, tropecei em algo no chão. O estojo
de violino do Papa. Ele estava aberto nas lajes, vazio de seu instrumento, mas
cheio de um punhado de Groschen 3 de prata em seu lugar.
Parecia que eu não era a única a fazer uma visita a Herr Kassl hoje.

3 Uma unidade monetária da Áustria (até a introdução do euro), igual a um centésimo de um xelim.
Fechei o estojo, peguei o dinheiro e guardei os dois em um lugar seguro.

Por um momento, considerei perseguir Käthe em vez de Josef. Ignorar os


avisos de Constanze me perturbou mais do que eu gostaria de admitir, e a
culpa me arranhava por dentro. Eu fiz uma careta. Havia algo que eu não
conseguia lembrar, mas quanto mais eu me agarrava a ele, mais ele escapava.
Então eu balancei a cabeça. Não, não era hora de fantasias infantis. Eu coloquei
minhas preocupações sobre minha irmã de lado e fui em busca do meu irmão
em vez disso.
Ele não estava em nenhum dos lugares habituais: seu quarto, os
caminhos na floresta, o bosque dos elfos. O crepúsculo estava caindo e Josef
não estava em lugar nenhum. Voltei da floresta, rasgando meu cabelo em
frustração.
Uma mão estendeu a mão para agarrar meu pulso enquanto eu subia as
escadas. —Liesl...
Eu pulei. Era Josef, escondido debaixo da escada. Tudo o que era visível
era o brilho refletido de seus olhos, um lobo no escuro.
—Sepperl! — Eu disse. —O que você está fazendo?
Eu desci as escadas e me agachei diante dele. As sombras esculpiram o
rosto de Josef em planos e ângulos duros, maçãs do rosto afiadas e queixo
pontudo.
—Liesl —, disse ele em tom angustiado. —Eu não posso fazer isso.
A notícia da chegada do velho violinista se espalhou como fogo pela
cidade. Josef teria uma enorme audiência para sua audição hoje à noite. Eu me
importei com o medo do meu irmão de estranhos.
—Oh, Sepp. — Eu disse. Lenta e gentilmente, como se eu estivesse
persuadindo um filhote de passarinho, peguei meu irmão pela mão e o levei
pelo corredor até seu quarto.
Seus aposentos estavam em completa desordem. As roupas de Josef
estavam espalhadas, e alguém - talvez papai - havia trazido um baú do sótão.
Seu estojo de violino estava aberto na cama ao lado dele, o instrumento ainda
aninhado em seu forro de veludo. Pelo que parece, ele não tocou o dia todo.
—Eu não posso fazer um teste para o Mestre Antonius, Liesl. Eu
simplesmente não posso.
Eu não disse nada, só abri os braços para abraçá-lo perto. Meu irmão se
parecia leve e frágil em meus braços. Nós dois éramos pequenos e de ossos de
pássaros, mas eu era forte e cheia de vida onde meu irmão era delicado. Como
bebê, ele fora tomado com scarlatina pior do que Käthe ou eu, e desde então
ele estava sujeito a febres e aítes.
—Estou com medo, Liesl. — Ele sussurrou.
—Shh —, eu acalmei, acariciando seus cabelos. —Você vai ser
maravilhoso.
—Deve ser você, Liesl —, disse ele. —Deveria você antes do Mestre
Antonius. Eu não.
—Calado —, eu disse. —Você é o virtuoso. Não eu. —Era verdade.
Enquanto papai nos ensinara a tocar violino, foi Josef cuja brincadeira brilhava
com brilho. Eu era uma compositora, não uma artista.
—Sim, mas você é o gênio —, disse ele. —Você é a criadora; Eu sou
apenas um intérprete.
Lágrimas começaram nos meus olhos. Meu irmão me disse que minha
música valia algo a cada dia de sua vida, mas ainda doía ouvi-lo dizer isso.
—Não se esconda —, ele implorou. —Você merece ser ouvida. O mundo
precisa ouvir sua música. Você não pode ser tão egoísta a ponto de guardar
para si mesma.
Ah, mas eu poderia, mas não era por egoísmo; era uma pena. Eu estava
sem treinamento, sem formação, sem talento. Era mais fácil, mais seguro,
esconder-me atrás de Josef. Meu irmão poderia podar minhas fantasias
selvagens em um belo jardim, suavizar suas arestas e apresentar uma obra de
arte para o mundo.
—Mas eu não guardaria para mim —, eu disse suavemente. —Você
tocaria minha música por mim.
Foi assim que sempre foi. Josef era meu amanuense; através dele eu
poderia tocar a música que ouvia em minha alma. Eu era o violino, ele era o
arco. Nós éramos as mãos esquerdas e direitas de um único pianista forte,
destinado a ser tocado juntos e não separados. Eu escrevia a música; Josef
tocava para o mundo. Era assim que sempre seria.
Ele balançou sua cabeça. —Não. Não.
Raiva brilhou através de mim, raiva, frustração e ciúme. Josef poderia ter
tudo, tudo o que nós sempre quisemos, se ele apenas aproveitasse a
oportunidade. E ele tinha a chance, algo que eu nunca teria. Nunca poderia ter.
Sentindo minha mudança de humor, meu irmão se virou para me abraçar
mais forte. —Oh, Liesl, me desculpe, me desculpe —, ele disse no meu ombro.
—Sou uma pessoa terrível. Eu sei que estou sendo egoísta.
Minha raiva desapareceu, me deixando exausta. Não, não era meu irmão
quem era uma pessoa terrível; era eu. Eu, que invejava a oportunidade de uma
vida porque nunca seria minha.
—Você não é egoísta, Sepperl —, eu disse. —Você é a pessoa menos
egoísta que eu conheço.
Josef olhou para a janela do seu quarto, em direção à floresta ao redor da
nossa pousada. O sol estava se pondo, emprestando um elenco sangrento para
tudo. Meu irmão passou os dedos distraidamente pelo arco do violino. Era um
del Gesù, um dos poucos violinos valiosos que nos restaram depois que papai
vendeu os outros a Herr Kassl para liquidar suas dívidas. Os Amatis, os
Stainers e os Stradivarii tinham desaparecido há muito tempo.
—E se, — ele disse finalmente. —eu fizesse um desejo, e ele responderia?
A luz avermelhada jogou todos os buracos e sombras de seu rosto em um
alívio horrível. As contusões sob seus olhos e mandíbula, onde ele descansava
contra o queixo, eram da cor do sangue velho.
—Que desejo, Sepperl? — Eu perguntei gentilmente.
—Para ser o maior violinista do mundo. — Josef traçou os buracos,
deslizando levemente os dedos até o espelho para descansar a voluta. A voluta
era uma das partes mais incomuns do violino, esculpida na forma de uma
mulher. Não era a mulher que era incomum; era o fato de que seu rosto estava
entalhado em uma expressão de agonia. Ou êxtase. Eu nunca tive muita
certeza. —Tocar com tal beleza que faça os anjos chorarem.
—Então seu desejo foi concedido. — Eu sorri, mas o sorriso torceu na
minha boca. Se apenas nossos desejos tivessem poder. Eu pensei em ser jovem
e estar sentada do lado dos meus irmãos na igreja, nossas coxas ossudas
pressionadas nos bancos de madeira dura. Lembrei-me de olhar para o cabelo
dourado da minha irmã aureolado pelo sol e desejando - não, rezando - que eu
crescesse e ficasse linda também.
—É disso que eu tenho medo. — Ele sussurrou.
—Medo? Do seu presente dado por Deus?
—Deus não tem nada a ver com isso. — Ele disse severamente.
—Josef! — Fiquei chocada. Poderíamos ter sido frequentadores
indiferentes, mas Deus era tão ritualístico e rotineiro quanto lavar-se pela
manhã. Negar-Lhe completamente era blasfêmia.
—Você, de todas as pessoas, deveria saber disso, Liesl —, disse Josef. —
Acha que nossa música vem de Deus? Não, vem de baixo. Dele. O Governante
Submundo.
Eu sabia que meu irmão não falava do diabo. Eu sempre soube que Josef
tinha fé - manteve a fé - com Constanze e o Rei dos Elfos. Mais que papai. Mais
que eu. Mas eu não tinha entendido o quão profundamente sua crença no
estranho foi costurada em seus ossos.
—De que outra forma você pode explicar a selvageria, o abandono que
sentimos quando tocamos juntos?
Josef estava com medo de ser amaldiçoado? Deus, o Diabo e o Rei dos
Elfos eram figuras maiores na vida do meu irmão do que eu imaginava. Mais
do que Käthe ou eu, Josef tinha sido sensível aos sentimentos e emoções ao seu
redor. Era o que fazia dele um soberbo e sublime intérprete de música. Talvez
fosse por isso que ele tocava com tamanha clareza, agonia, frenesi, êxtase e
saudade. Era o medo. Medo e inspiração e providência divina, tudo em um.
—Ouça-me —, eu disse com firmeza. —O abandono que sentimos - isso
não é pecado. Isso é graça. A graça não é uma dádiva concedida a você que
pode ser subitamente retirada. Está dentro de você, Sepperl, uma parte de
você. Você carrega essa graça dentro. E você vai carregá-la com você toda a sua
vida, não importa onde você vá.
—Mas e se não for graça? — Josef sussurrou. —E se for um favor para
ser reembolsado?
Eu não disse nada. Eu não sabia o que dizer.
—Eu sei que você não acredita em mim —, ele disse miseravelmente. —
E eu também não. Mas eu me lembro de um sonho, e ele retorna para mim
pedaço por pedaço, noite a noite. Eu sonho com um estranho alto e elegante
que vem até mim.
Josef virou a cabeça e, embora estivesse escuro, eu podia imaginar o
rubor que manchava suas bochechas. Meu irmão nunca havia me
confidenciado sobre suas inclinações românticas, mas eu o conhecia melhor do
que qualquer outra pessoa. Eu sabia e entendi.
—O estranho coloca a mão na minha testa, e diz que eu vou levar a
música do Submundo comigo, contanto que eu nunca deixe este lugar. — Josef
virou os olhos para mim, mas ele não parecia me ver. —Eu nasci aqui. Eu estou
destinado a morrer aqui.
—Não diga isso —, eu disse bruscamente. —Não se atreva a dizer isso.
—Você não acredita? Meu sangue pertence à terra, Liesl. O seu também.
Nós nos inspiramos, a partir do solo sob nossos pés, tão seguramente quanto
as árvores na floresta. Sem isso, como podemos continuar? Como ainda posso
tocar minha música quando minha alma está aqui, no Bosque dos Elfos?
—Sua alma descansa dentro de você, Sepperl. — Eu levemente toquei
minha mão em seu peito. —Aqui. É daí que vem a sua música. Não da terra.
Não da floresta lá fora.
—Eu não sei. — Josef enterrou o rosto nas mãos. —Mas tenho medo. Eu
tenho medo da barganha que eu acertei com o estranho em meus sonhos. Mas
agora você entende porque estou com muito medo de ir embora.
Eu entendi, mas não da maneira que meu irmão pretendia. Eu vi seu
medo e vi os demônios que ele conjurou para justificar seu medo. Ao contrário
de mim ou de Käthe, Josef nunca tinha visto nada do mundo além do nosso
cantinho da Baviera. Ele não sabia que prazeres o mundo poderia oferecer, que
visões, que sons e que pessoas ele poderia encontrar. Eu não queria que meu
irmão ficasse em casa, para ficar confinado às cordas do Bosque dos Elfos e
Constanze. Ou a minha. Eu queria que ele saísse e vivesse sua vida, mesmo
que me doesse deixá-lo ir.
—Venha. — Eu caminhei para o klavier. —Vamos tocar. Esqueça nossos
problemas. Só você e eu, mein Brüderchen. Senti, em vez de ver, meu irmão
sorrir. Sentei-me no banco e toquei uma frase repetida simples.
—Você não quer a luz? — Josef perguntou.
—Não, deixe isso. — Eu sabia onde as chaves estavam de qualquer
maneira. —Vamos apenas sentar no escuro e brincar. Nenhuma partitura.
Nada que conhecemos de cor. Eu vou te dar o baixo contínuo e você vai
improvisar.
Ouvi a leve batida de cordas contra a mesa de som quando Josef tirou o
violino de dentro do estojo, o suave silêncio enquanto passava o arco sobre o
bolo de resina. Ele colocou o instrumento sob o queixo, tocou o arco nas cordas
e começou a tocar.

O tempo passou em ondas, e meu irmão e eu nos perdemos na música.


Nós improvisamos em estruturas estabelecidas, embelezadas em algumas das
sonatas que conhecíamos de memória, e então gradualmente passamos para o
que Josef tocaria para o Mestre Antonius. Papai decidira uma sonata de Haydn,
embora eu tivesse sugerido a Vivaldi. Vivaldi era o compositor favorito de
Josef, mas Papa alegou que ele era muito obscuro. Haydn - um compositor com
aclamação crítica e popular - era a escolha mais segura.
A música acabou. —Sentindo-se melhor? — Eu perguntei.
—Só mais ua? — Josef implorou. —O largo do Vivaldi's L'inverno. Por
favor.
A essa altura, o encanto que a música tinha tecido sobre nós estava
desaparecendo. Käthe me acusara de amar Josef mais, mas não era Josef que
eu amava mais; era música. Eu amava minha irmã tanto quanto amava meu
irmão, mas eu amava a música acima de tudo.
Eu olhei por cima do meu ombro. —Nós devemos ir —, eu disse. —Seu
público aguarda. — Fechei a tampa do klavier e me levantei do assento.
—Liesl. — Algo na voz do meu irmão me deu uma pausa.
—Sim, Sepp?
—Não me deixe em paz —, ele sussurrou. —Não deixe-me entrar
naquela longa noite sozinho.
—Você não vai sozinho. — Eu o juntei. —Você nunca estará sozinho. Eu
estou sempre com você, em espírito, se não em carne. A distância não faz
diferença para nós. Vamos escrever cartas uns aos outros. Vamos compartilhar
nossas músicas umas com as outras, em papel, tinta e sangue.
Demorou muito até ele falar. —Me dê uma coisinha então —, ele disse.
—Apenas uma pequena melodia, para manter sua promessa.
Eu puxei um pedaço de melancolia e cantarolei algumas notas. Fiz uma
pausa, esperando que ele me dissesse meus acordes de abertura.
—Sétima maior —, foi tudo Josef disse. Seu sorriso era irônico. —Claro
que é com o que você começa.
A audição

Os sons dos convidados reunidos no salão principal inundaram o


corredor do lado de fora do quarto de Josef. Meu irmão recuou, mas eu o puxei
junto, trazendo-o para fora da escuridão e para a luz.
Nossa pequena hospedaria nunca tinha visto tantos clientes antes.
Muitos ali eram burgueses da cidade, incluindo Herr Baumgartner, pai de
Hans. A mãe andava de um lado para o outro entre as mesas, servindo os
clientes sozinha. Käthe emergiu da cozinha com bandejas de comida alguns
momentos depois, Hans em seus calcanhares com canecas de cerveja.
—Há o nosso pequeno Mozart! — Um dos convidados levantou-se,
apontando animadamente em minha direção. Meu coração pulou com
excitação e medo, mas então vi que ele estava apontando para Josef se
escondendo atrás de mim. —Venha, Mozart, toque-nos uma música!
Claro que o convidado não estava se referindo a mim. Eu não era
ninguém, a criança esquecida de Vogler, sem aparência nem talento para
recomendá-la. Mas a verdade nada fez para diminuir a dor do
desapontamento.
Josef agarrou minhas saias. —Liesl...
—Eu estou bem aqui, Sepp. — Eu gentilmente o cutuquei na direção do
Mestre Antonius. —Continue.
Nosso pai e o mestre do violino estavam sentados perto do piano forte
4perto da lareira. Era o melhor dos nossos dois klaviers; Papai usara quando
ainda estava ensinando. Nosso pai estava de pé sobre o célebre músico,
rememorando animadamente o tempo que eles tocaram com os “grandes”
durante suas antigas carreiras em Salzburgo. Eles falavam em italiano - a
língua materna do mestre Antonius, e uma papai não conhecia
particularmente bem. Notei os canecos espalhados ao lado do pai e estremeci;
quando nosso pai bebia um pouco nele, era impossível fazer com que ele
parasse.
—Este é o menino? — Perguntou o mestre Antonius quando Josef se
adiantou. Ele falava alemão razoavelmente bem.
—Sim, maestro. — Papa orgulhosamente bateu no ombro do meu irmão.
—Este é Franz Josef, meu único filho.
Josef me lançou um olhar assustado, mas assenti encorajadoramente.
—Aproxime-se garoto. — O Mestre Antonius fez sinal para Josef ao seu
lado. Para minha surpresa, os dedos do velho mestre estavam retorcidos e
curvados com reumatismo; Era incrível que ele ainda tocasse violino. —
Quantos anos você tem?
Josef ficou quieto. —Catorze, senhor. — Ele conseguiu depois de alguns
segundos.
—E há quanto tempo você estuda?
—Desde que ele era um bebê —, disse Papa. —Desde antes que ele
pudesse falar!

4Um piano forte é um piano antigo. Em princípio, a palavra "piano forte" pode designar qualquer
piano que data da invenção do instrumento por Bartolomeo Cristofori por volta de 1700 até o início do
século XIX.
—Vou mandar o menino falar por si mesmo, Georg —, disse o Mestre
Antonius. Ele se voltou para Josef. —Bem —, ele disse. —Como você responde?
Meu irmão primeiro olhou para mim, depois para papai. —Eu tenho
estudado desde que eu tinha três anos de idade, senhor.
Mestre Antonius bufou. —Deixe-me adivinhar: teclado, teoria, história e
composição, hein?
—Sim senhor.
—E seu pai também te ensinou em francês e italiano, presumo?
Josef parecia chocado. Além de bávaro e alemão, falamos um pouquinho
de francês, e o pequeno italiano que conhecíamos era o musical italiano.
—Não importa, eu posso ver que ele não fez. — Mestre Antonius acenou
com a mão com desdém. —Então —, disse ele, acenando para o violino na mão
de Josef. —Vamos ver o que você pode fazer.
Não havia como disfarçar o ceticismo e o desprezo na voz do velho
maestro. Ele deve ter ficado imaginando por que Georg Vogler nunca levara
seu filho a nenhuma das capitais para mais instrução, se a habilidade de Josef
fosse realmente de algum valor.
Porque, pensei com desespero, o pai não consegue enxergar mais do que
o fundo da próxima bebida dele.
—Bem? — Mestre Antonius perguntou quando Josef hesitou. —O que
você vai tocar, garoto?
—Uma sonata de Haydn. — Meu irmão disse, gaguejando um pouco.
Meu estômago se apertou em miséria solidária.
—Haydn, eh? Nunca compus nada de valor para o violino. Qual?
—O-o em D major. N-número dois.
—Eu suponho que você vai precisar de acompanhamento. François!
Tanto Josef como eu saltamos quando um jovem esguio se materializou
ao lado do Mestre Antonius, surpreso com a aparição súbita do valete. Mas eu
não sabia o que mais nos surpreendeu - a beleza do jovem, ou sua pele escura.
—Este é meu assistente, François —, disse o Mestre Antonius, ignorando
os suspiros e lacunas das massas reunidas. —Ele infelizmente não é um
violinista, mas ele toca o teclado com maestria.
Minhas sobrancelhas se ergueram ao escárnio nas palavras do velho. O
jovem, impecavelmente vestida com um casaco dourado e marfim, calça de
pele de gamo e peruca, parecia mais um animal de estimação bonito do que
um assistente de músico. Meu estômago começou a afundar de medo; Que tipo
de homem era o mestre Antonius?
Josef pigarreou e me lançou um olhar de pânico. Nós praticamos juntos
e, portanto, esperávamos tocar juntos. Eu dei um passo para frente.
—Se você quiser —, eu disse. —Eu gostaria de acompanhar meu irmão.
O Mestre Antonius me notou pela primeira vez. —Quem é?
—Minha filha Elisabeth também é educada em música —, disse Papa. —
Você deve perdoá-la, maestro; Eu gostava de suas fantasias quando criança.
Eu estremeci. Sim, papai havia me ensinado música - não por meus
próprios méritos, mas como um meio para um fim. Eu era uma reflexão tardia,
uma acompanhante, não uma música por direito próprio.
—Uma verdadeira família de músicos —, comentou o mestre Antonius
com voz seca. —Uma Nannerl normal para o garoto Wolfgang, é? 5
Papai sacudiu a cabeça. —Nós vamos, é claro, se submeter ao jovem
mestre François aqui, se esse é o seu desejo, Antonius.

5 Nannerl era o apelido da irmã igualmente talentosa de Wolfgang Amadeus Mozart, Maria Anna.
Mestre Antonius assentiu. —François, assieds-toi et aide le petit poseur
com música, sonate de Haydn, s'il te plait. Numéro deux, majeur D. 6
François fez uma reverência aguda e caminhou até o piano forte, tirando
os cotovelos enquanto se sentava no banco, dando-nos um lampejo de forro de
seda azul-celeste. Sua postura no meio dos olhares curiosos e nada amigáveis
do público foi incrível. O jovem colocou as mãos sobre o teclado e acenou para
o meu irmão, aguardando sua sugestão.
Josef estava ansioso. A juventude era linda: sua pele lisa e completamente
impecável, seus lábios cheios, seus olhos escuros, seus cílios longos. Nós nunca
vimos uma pessoa negra antes, mas eu não achei que fosse a cor da pele de
François que cativou meu irmão.
Limpei a garganta e Josef se encolheu. Ele imediatamente se ocupou com
seu violino, suas bochechas flamejantes, incapazes de encontrar o olhar de
François. O jovem tinha um leve sorriso tímido no rosto.
Meu irmão conseguiu recuperar a compostura e acenou para François,
definindo o ritmo com seu arco. Os dois começaram a tocar e um silêncio caiu
sobre o salão.
Para o ouvido não treinado, pode ter sido difícil distinguir o de Josef - ou
mesmo o de François - de qualquer outro músico profissional. Eles tocaram
todas as suas notas com precisão e clareza, com um fraseado impecável. Mas
se você conhecesse meu irmão como eu, ou mesmo se você amasse música,
poderia sentir a inteligência, a intenção, por trás de sua performance. Ele
interpretava o que estava escrito em algo quase como a fala, como se ele
pudesse arrancar palavras e frases das notas e frases.

6 Sente-se e ajude o pequeno músico, a sonata de Haydn, por favor. Número dois, D maior.
Mas a maioria dos convidados reunidos não era treinada em música, e
logo depois que os dois começaram a tocar, o baixo burburinho da conversa
surgiu mais uma vez. A maioria retornou à sua comida e bebida, mantendo
suas vozes baixas para um murmúrio respeitoso. Poucos educados
concentraram sua atenção em Josef e François: Mestre Antonius, minha família
e Hans. Mas eu espiei outro em um canto escuro do salão, e meu coração parou.
Era o rei dos elfos.
Ele estava sentado entre nós, descarado e de rosto limpo, discretamente
vestido com calças de couro e um casaco de lã áspero. No entanto, era difícil
perder sua altura incomum, seu físico esbelto, sua estranha coloração, tão
completamente diferente do resto de nós, camponeses encorpados e de cabelos
escuros. O Rei dos Elfos chamou minha atenção. Seu olhar alcançou através de
mim, tocando algum núcleo privado dentro de mim que ninguém mais podia
ver. Seus lábios se torceram para um lado, um sorriso sardônico.
Sua presença arranhou aquela coceira em minha mente, aquela sensação
mesquinha de algo perdido. E então tudo voltou para mim em uma onda de
medo: dedos finos e frutas sangrentas, minha irmã em um manto vermelho em
um bosque de inverno, uma conversa esquecida entre os amieiros. De repente,
éramos apenas nós dois, suspensos em um momento. O tempo, como a
memória, era apenas mais um dos seus brinquedos.
Eu fui rasgada. Eu queria confrontá-lo. Eu queria ignorá-lo. Mas eu
estava com medo de me aproximar do Rei dos Elfos, com medo de reconhecer
sua existência. Confrontá-lo era torná-lo real, e eu queria mantê-lo meu
segredo bonito e indulgente.
— Sim, sim. — Murmurou o Mestre Antonius, assentindo com
aprovação.
O momento estourou e os sons de Josef e François tocando retornaram
para mim, bonitos e puros.
—Muito impressionante. Muito impressionante mesmo.
Minhas esperanças se levantaram. Mestre Antonius exibia uma
expressão presunçosa e autocongratulatória em seu rosto.
—François é um bom espécime, não?
O desgosto passou por mim. Este era o homem em cujas mãos estávamos
confiando a carreira de Josef.
—Impressionante —, continuou o mestre Antonius em um sussurro
conspiratório, em voz baixa, para meu pai. —Eu o peguei como um bebê de
um viajante de Saint-Domingue. Sua mãe era escrava em Hispaniola e seu pai,
um marinheiro sem conta. Não é um fragmento de habilidade musical entre os
dois, e olhe para ele agora! Prova de que se você os tornar jovens, você pode
treinar esses negróides como qualquer outra pessoa.
Eu ia vomitar. De todas as pessoas, o velho virtuoso deveria saber que a
música era um presente de Deus para o homem. Música e uma alma.
Habilidades poderiam ser ensinadas, mas o talento não poderia. Os dedos de
François voaram sobre o teclado com facilidade, e a prova de sua alma estava
em seu jogo, mais humana que o Mestre Antonius.
Eu não aguentava mais assistir. Desabitada, meus olhos foram para o
canto escuro onde eu vira o Rei dos Elfos pela última vez, mas não havia
ninguém lá. Talvez eu o tenha imaginado depois de tudo.
Mais dois movimentos na sonata para ir, mas pude ver que o mestre
Antonius já havia se decidido. Ninguém podia negar a habilidade de Josef, mas
havia algo faltando nas notas, algo especial, algo mais.
Papai cometeu um erro, pensei. Haydn era cerebral demais para meu
irmão; Josef teria sido melhor servido por Vivaldi, como eu sugerira. Vivaldi
era violinista; ele sabia das capacidades do instrumento e escrevia para eles.
Josef sabia disso. Eu sabia disso. Papai também sabia disso uma vez.
O salão principal estava excessivamente quente agora, recheado de
corpos que digeriam confortavelmente seus Kraut, Wurst e Bier.7 Josef e
François continuaram ignorando tudo, menos a alegria da performance um do
outro. Notei como eles respondiam às pistas um do outro: o balanço do corpo
de meu irmão, a inclinação dos ombros de François, eles tocavam como
amantes que conheciam todas as nuances dos suspiros do outro. Lágrimas
começaram nos meus olhos.
Aplausos educados surgiram no salão quando o movimento chegou ao
fim. Josef e François sorriram um para o outro, um brilho de alegria banhando
ambos os rostos. Papai bateu palmas como um demônio, mas o mestre
Antonius escondeu um bocejo aborrecido atrás de sua mão.
—Muito bom, muito bom —, disse o velho virtuoso a Josef. —Você é
muito talentoso, jovem rapaz. Você irá longe com o professor certo.
O rosto do meu irmão caiu. Josef era ingênuo, não cego, e ele sabia
exatamente o que o Mestre Antonius não tinha oferecido junto com seus
parabéns: um aprendizado.
—Sim, senhor. — Seus olhos azuis brilhavam à luz do fogo. —Meus
agradecimentos pela oportunidade de tocar para você.
A visão das lágrimas não derramadas do meu irmão foi a última gota. —
E quem é o professor certo, maestro? — Minha voz cortou a nuance dos
suspiros do outro. Lágrimas começaram nos meus olhos.

7 Couve, salsicha e cerveja.


Um silêncio caiu sobre o salão. Senti os olhares surpresos como adagas
nas minhas costas, mas os ignorei. Os olhos do Mestre Antonius se aguçaram
quando se concentraram em mim.
— Ignore-a, — Antonius disse papai. —Ela se supera.
O velho virtuoso acenou para ele. —Tenho minhas razões para levar os
alunos que faço, Fräulein —, disse ele. —E enquanto seu irmão é um músico
muito talentoso, ele não tem um certo, como se diz, je ne sais quoi? 8
Sua pretensão era tão odiosa quanto sua condescendência; seu francês
não era muito melhor que o meu e com um sotaque decididamente italiano. —
E o que é isso, maestro? — Eu perguntei.
—Gênio. — Mestre Antonius parecia convencido. —Verdadeiro gênio.
Eu cruzei meus braços. —Reze, seja mais específico, maestro —, eu disse.
—Receio que nós, camponeses rústicos, não tenhamos a sua experiência
mundana. — Grunhidos da plateia e suas lâminas de curiosidade apontavam
para o Mestre Antonius agora.
—Liesl —, avisou Papa. —Você está sobrecarregada.
—Não, não, Georg —, disse o velho violinista. —A jovem senhorita tem
um ponto. — Ele sorriu. —O verdadeiro gênio não é apenas habilidade técnica,
sim? Qualquer idiota poderia aprender a tocar todas as notas certas. É preciso
uma certa... paixão e brilho para reunir as notas para dizer algo verdadeiro.
Algo real.
Eu balancei a cabeça em concordância. —Então, se o verdadeiro gênio é
desempenho, habilidade e paixão —, eu disse, sem ousar olhar para o papai,
—talvez meu irmão tenha sido mal servido pela escolha da música.

8 Eu não sei o quê?


Isso despertou o interesse do velho mestre. Ele ergueu as sobrancelhas
espessas, os olhos escuros em seu rosto carnudo. —Então a pequena Fräulein
se considera uma tutora melhor do que o pai dela! Bem, eu estou curiosa. Você
me diverte garota. Muito bem, então, vou te alegrar. O que você irá tocar para
seu irmão?
Josef virou os olhos em pânico para mim. Eu dei a ele um pequeno
sorriso, o que ele chamou de meu sorriso de elfo, brincalhão e travesso.
Eu andei até o piano forte. François gentilmente cedeu. Josef parecia
nervoso, mas ele confiava em mim, confiava em mim completamente. Coloquei
minhas mãos contra as teclas e comecei a tocar um conjunto de notas repetidas,
fazendo o melhor que pude para imitar o som pizzicato de um violino.
Os olhos do meu irmão se iluminaram quando ele reconheceu o ostinato.
Sim, Sepp, pensei. Agora vamos tocar o L'inverno.
Ele enfiou o violino sob o queixo, o arco posicionado sobre as cordas.
Depois de outra medida, Josef fechou os olhos e começou a tocar o segundo
movimento, o largo, de L'inverno, de Vivaldi.
A melodia era suave e um pouco melancólica; quando éramos bebês,
papai costumava tocar o largo como uma canção de ninar. A peça era simples
o suficiente para que Sepperl, de três anos de idade, tivesse aprendido de
ouvido em seu violino do tamanho de um quarteto, mas era uma peça para
crescer. Meu irmão havia experimentado com floreios e improvisações,
refinando a música até que ela se tornasse algo exclusivamente dele. Ninguém
conseguia arranjar nostalgia e desejo melancólico desse movimento como
Josef. Quando ficou mais velho e mais habilidoso, continuou a praticá-lo várias
vezes até que ele e seu violino fossem um deles. De todas as sonatas e concertos
que Josef conhecia, esse era o que soava mais próximo de sua própria voz,
aquele em que seu violino soava mais humano.
O violino cantava, fazendo serenata para todos os que ouviam, tecendo
um feitiço que fazia o silêncio em torno parecer reverente. Piedoso.
O movimento largo da suíte de inverno não era longo e, muito em breve,
Josef e eu nos aproximamos do final da peça. Seu corpo estava diminuindo,
tomando o último trinado diminuendo. Eu me esforcei para combinar com ele,
diminuindo o meu acompanhamento enquanto a última nota desaparecia com
um brilho trêmulo.
A lembrança trêmula daquela nota final nos manteve extasiados. Então
aplausos estrondosos quebraram o feitiço, iniciado pelo próprio Mestre
Antonius. François saltou de pé com gritos de: —Bravo! Bravíssimo!
Josef corou, mas seus olhos brilhavam enquanto ele sorria para François.
Sem aviso, ele se lançou no terceiro movimento do L'estate de Vivaldi, o presto.
Intenso e rápido, exigia todas as suas habilidades como virtuoso, e eu não
conseguia acompanhá-lo. Eu mesmo adaptei o acompanhamento ao Largo,
mas não fiz as outras temporadas. François acenou para mim e eu abri meu
lugar para ele.
Em um piscar de olhos, ele encontrou Josef na música e se lançou na
performance. Ele bateu os acordes onde meu irmão enfatizou os arrepios, ele
cedeu quando meu irmão soltou uma frase em voz baixa. Ele sabia quando
fazer uma pausa para permitir que o incrível som de Josef decolasse, onde
suplementar os buracos no acompanhamento para soar perfeitamente. Minha
garganta estava apertada; esse jovem esbelto e de pele escura conhecia as pistas
não ditas do meu irmão ainda melhor do que eu. Ele podia cair nos ritmos de
Josef sem pensar, e ele podia adaptar e modificar a música que conhecia e a
música que ele não conhecia.
De alguma forma, incrivelmente, eles terminaram exatamente em
uníssono. O salão explodiu em louvor. Papa bateu palmas nas costas de Josef,
gritando em voz alta para todos saberem que ele havia ensinado ao menino
tudo o que sabia, enquanto o mestre Antonius podia ser ouvido parabenizando
a espantosa performance improvisada de François.
—Eu nem sabia que você conhecia Vivaldi, François, seu cachorro astuto!
— O mestre do violino virou-se para Josef. —Você! — Ele disse. —Agora você
é um jovem de bom gosto e visão. Vivaldi! Il Prete Rosso, ou o Red Priest,
quando o chamamos de volta para casa. Ele fez muito pelo violino, sabe,
mesmo quando algumas pessoas — o mestre Antonius lançou um olhar para
o papai. — não reconhecem mais seu gênio.
Não importa que tenha sido eu quem sugeriu Vivaldi, não Josef; foi
perdido na pressa e nas consequências do jogo do meu irmão.
—Obrigado, maestro. — O rosto de Josef estava vermelho, os olhos
brilhando. Eu procurei seu olhar para parabenizá-lo, mas ele tinha olhos para
François. O jovem olhou para trás.
Eu me afastei. Papa gritou, brindou e bebeu para celebrar o filho, e a mãe
- mãe severa, impassível e pouco sentimental - chorou sem vergonha em seu
avental. Constanze acenou com a aprovação de seu ninho na lareira, enquanto
Käthe...
Meu coração parou.
Onde estava Käthe?
Se foi, uma voz suave murmurou no meu ouvido.
Assustada, olhei por cima do ombro. Ninguém estava lá, mas meu
ouvido formigava do toque dos lábios de alguém. O júbilo continuava ao meu
redor, mas eu estava excluída, de pé do lado de fora da empolgação de todos
os outros.
—Käthe. — Eu sussurrei.
Se foi, a voz disse novamente.
Desta vez eu o vi.
Ele estava de pé em um canto distante do salão principal, encostado na
parede com os braços cruzados. O alto e elegante estranho.
O Rei dos Elfos.
Ele era o ponto ainda em torno do qual tudo girava. Ele era a realidade
onde tudo o mais era um reflexo. Ele se destacava em agudo relevo quando
tudo estava mudo, como se fôssemos os únicos dois vivos e presentes em um
mundo de ilusão e sombra. Ele sorriu para mim, e cada fibra do meu ser queria
estar perto dele. Seu sorriso podia comandar minha carne a dançar.
Ele assentiu, indicando a porta que levava para fora. Ele se movia pela
multidão como um fantasma, passando pelos foliões como névoa. Eles nunca
notaram o toque de sua mão enquanto ele gentilmente os movia para fora do
caminho, parando apenas em suas conversas como se sentissem um frio
inesperado. Mas nenhuma alma via o Rei dos Elfos enquanto ele andava entre
eles - era eu e eu só.
Ele parou no limiar da porta, olhando por cima do ombro. Ele levantou
uma sobrancelha pálida.
Venha.
Era mais do que uma convocação; era um comando. Senti o chamado em
meus ossos, o puxão em minha carne, mas ainda resisti.
Aqueles olhos gelados brilharam e eu estava com medo. Eu tremi, mas
não com frio. Eu sofria, mas não com dor. Meus pés começaram a se mover por
vontade própria, e eu segui o Rei dos Elfos da luz para a escuridão.
O alto, e elegante estranho

—Ele toca bem, seu irmão.


Eu pisquei. O mundo ao meu redor estava escuro e demorou muito para
eu começar a ver formas na escuridão. Árvores e uma lua cheia. O bosque dos
elfos. Eu não tinha lembrança de como eu tinha chegado aqui.
Uma voz de veludo acariciou minha espinha. —Estou muito satisfeito,
muito satisfeito, de fato.
Eu me virei. O Rei dos Elfos estava descansando contra um dos amieiros
no bosque, com um braço sobre o tronco, o outro descansando casualmente
contra o quadril. Seu cabelo estava desgrenhado, bagunçado, como lanugem
de cardo, como teias de aranha, iluminado pela lua cheia em um halo sobre sua
cabeça. Seu rosto continha toda a beleza dos anjos, mas o sorriso em seu rosto
era positivamente diabólico.
—Olá, Elisabeth. — Ele disse suavemente.
Eu fiquei muda e silenciosa. Como alguém respondeu a Der Erlkönig,
Senhor do Mal, Regente do Submundo? Como alguém abordava uma lenda?
Minha mente girou, tentando enrolar minhas emoções. O Rei dos Elfos estava
diante de mim, em carne e não em memória.
—Mein Herr. — Eu disse.
—Tão educada. — Sua voz era tão seca quanto as folhas de outono. —
Ah, Elisabeth, não precisamos nos formalizar aqui. Não nos conhecemos a vida
toda?
—Liesl —, eu disse. —Então me chame de Liesl.
O Rei dos Elfos sorriu. As pontas de seus dentes pontiagudos brilhavam.
—Eu prefiro muito mais Elisabeth, obrigado. Liesl é o nome de uma garota.
Elisabeth é o nome de uma mulher.
—E como eu chamo você? — Eu me esforçava para evitar que minha voz
tremesse.
Mais uma vez o sorriso daquele predador. —Tudo o que você gosta —,
ele murmurou. —Tudo o que você gosta.
Eu ignorei o ronronar em sua voz. —Por que você me trouxe aqui?
—Tsk, tsk. — O Rei dos Elfos acenou um longo e fino dedo para mim. —
Eu tinha pensado que você era uma adversária digna. Nós estávamos jogando
um jogo, Fräulein, mas você não parece muito inclinada a me envolver.
—Um jogo? — Eu perguntei. —Que jogo?
—Por que, o melhor jogo do mundo. — Ele saltou de sua postura
lânguida pela amieiro, de repente alerta, de repente afiado. —Um onde eu
tomo algo que você ama e escondo. Se você não vier encontrar, é meu para
manter.
—Quais são as regras?
—As regras são simples —, disse ele. —Eu acho, eu guardo. Eu notarei
que você não fez muito esforço para jogar. Uma pena — ele fez beicinho. —
Nós costumávamos jogar tantas vezes quando você era criança. Você não se
lembra, Elisabeth?
Eu fechei meus olhos. Sim, eu brincara com Der Erlkönig quando eu era
jovem, depois que Käthe tinha ido dormir, antes que Sepperl tivesse idade
suficiente para conversar. Quando eu ainda era eu, inteira, antes que o tempo
e a responsabilidade me reduzissem a uma lasca de mim mesma. Eu correria
para o Bosque dos Elfos para cumprimentar o Lorde do Submundo. Eu estaria
vestida com um vestido da melhor seda e cetim, ele em renda e brocado. Os
músicos tocavam e nós dançávamos, dançando a música que eu ouvia na
minha cabeça. Foi quando comecei a escrever meus rabiscos musicais, quando
comecei a compor.
—Eu lembro. — Eu disse em voz baixa.
Mas eu me lembrava de algo que eu havia imaginado ou algo real? Havia
fingir, e então havia memória. Eu podia ver a pequena Liesl dançando com o
Rei dos Elfos, um Rei dos Elfos que era sempre um pouco mais velho, um
pouco fora de alcance. Um rei dos elfos que realizava todas as suas fantasias
infantis, que lhe dizia que ela era bonita, que lhe disse que era querida, que lhe
disse que era digna de ser amada. Isso era uma lembrança? Ou um sonho?
—Mas nem tudo. — Ele se inclinou para perto. Ele não era meu tamanho
agora; ele era alto e magro. Se ele fosse um homem comum, ele poderia ter sido
chamado de magro. Mas ele não era um homem comum; ele era Der Erlkönig,
possuidor de uma graça sobrenatural. Cada movimento de seu corpo era
suave, fluido, proposital. Ele ficou ao meu lado, pairando sobre o meu ombro,
respirando no meu pescoço. —Você se lembra, Elisabeth, os pequenos jogos de
azar que costumávamos jogar?
Apostas. Constanze disse que os elfos adoravam jogar. Se você pudesse
induzi-los a jogar com você, eles apostariam tudo até perderem.
Lembrei-me dos jogos que o Rei dos Elfos e eu jogávamos, jogos simples
de adivinhação com apostas simples o suficiente. Desejos, favores e esperanças
dispostos na mesa de apostas como cartas.
Adivinhe qual mão segura o anel de ouro.
Lembrei-me de rir e pegar uma mão aleatoriamente.
O que você vai apostar, pequena Liesl? O que você vai desistir se você perder? O
que você vai ganhar se você vencer?
Que resposta eu dei? De repente, fiquei com terrivelmente medo do que
a jovem Liesl estava disposto a dar. O que eu inadvertidamente sacrifiquei.
—Você perdeu o jogo. — O Rei dos Elfos circulou-me, um lobo
perseguindo um cervo. —Você perdeu todos os jogos.
Eu nunca escolhi certo. O prêmio nunca esteve na mão, pensei. Talvez o
jogo tivesse sido contra mim desde o começo.
—Você me prometeu algo que eu precisava desesperadamente —, ele
continuou, puxando suas sílabas em um sotaque arrastado. —Algo que só você
poderia dar. — Seus olhos brilhavam no escuro. —Eu sou uma alma generosa,
Elisabeth, mas nenhum homem espera para sempre.
—E o que eu prometi? — Eu sussurrei.
O Rei dos Elfos riu e o som ondulou pelo meu corpo.
—Uma esposa, Elisabeth. Você me prometeu uma noiva.
A palavra caiu entre nós, uma gota de água em uma tigela, enviando
ondas de medo através de mim. Agora começam os dias de inverno, e o Rei dos Elfos
cavalga para fora, procurando por sua noiva.
—Oh, Deus —, eu sussurrei. —Käthe.
—Sim —, o Rei dos Elfos sibilou. —Eu sou paciente, Elisabeth. Eu esperei
muito tempo. Um longo tempo durante o qual você nunca veio. Um longo
tempo durante o qual você cresceu distante. Muito tempo durante o qual você
me esqueceu.
—Eu nunca te esqueci. — Era verdade. Se eu não mais fingisse, então a
memória de Der Erlkönig permaneceria alojada em minha alma. Eu não
conseguia mais removê-lo da minha vida do que poderia remover meu coração
e viver.
—Não? — Ele levantou a mão para escovar uma onda errante do meu
rosto, mas hesitou. Ele enrolou a mão em um punho e deixou cair de volta para
o lado. —Então você me negou, e isso é uma traição ainda maior do que
esquecer.
Eu virei minha cabeça, incapaz de olhar para ele.
—Primeiro seu pai, depois você e agora seu irmão —, disse ele. —Apenas
Constanze mantém fé comigo agora. Os dias da Caçada Selvagem chegam ao
fim e ninguém mais atende ao seu chamado.
—Eu atendo —, eu disse. —O que você quer de mim?
—Nada. — Sua voz estava quase triste. —É tarde demais agora,
Elisabeth. O jogo foi jogado e você perdeu.
Käthe.
—Onde está minha irmã? — Eu tremi.
O Rei dos Elfos não respondeu, mas eu senti, em vez de ver, o sorriso
afiado em seus lábios.
Havia apenas um lugar onde Käthe poderia estar. Muito abaixo da terra,
no reino de Der Erlkönig e seus elfos.
O Submundo.
—O jogo não acabou —, eu disse. —Você fez a jogada de abertura.
Desta vez, eu me fiz olhá-lo diretamente nos olhos. À luz do luar, eram
duas cores diferentes: uma tão cinzenta quanto um céu de inverno, a outra um
avelã verde, a cor do musgo espreitando através da marga morta. Olhos de
lobo. Os olhos do diabo. Ele podia ver a escuridão. Ele podia ver em mim.
—Eu escolhi a mão errada na primeira vez. — O sal. A audição. A culpa
me agarrou em um torno; Eu escolhi Josef sobre Käthe. Novamente.
Seu sorriso cresceu mais largo. —Muito bom.
—Tudo bem —, eu disse. —Eu vou jogar. — Eu inclinei minha cabeça
para trás. —Eu vou jogar o seu jogo. Se eu encontrar Käthe, você deixará minha
irmã ir.
—Isso é tudo? — Ele disse petulantemente. —Não há muito jogo se não
houver nada de interessante que você esteja disposta a sacrificar.
—As regras eram simples, então você disse. Achado não é roubado. Você
pega, eu perco. Você esconde, eu acho. Quem falha é o perdedor. Digamos
que… melhor de três.
—Muito bem então. — Ele bufou seus ombros. —Mas lembre-se,
Elisabeth, nossos jogos infantis estão atrás de nós agora. — Os olhos do lobo
brilharam. —Quando eu jogo, toco para valer. Se você deixar de trazer sua irmã
de volta ao mundo na próxima lua cheia, ela estará perdida para você para
sempre.
Eu balancei a cabeça.
—Você perdeu a primeira rodada —, disse o Rei dos Elfos. —Você deve
ganhar os próximos dois para ganhar.
Eu dei outro aceno. Das histórias de Constanze, eu sabia como seria. Eu
não consegui proteger minha irmã dos homens elfos. Não posso deixar de
encontrar meu caminho para ela no subsolo.
—Sem truques —, eu disse. —Sem trapaça. Não tire minhas memórias.
Não brinque com o tempo.
O Rei dos Elfos recuou. —Eu não faço tais promessas. Você conhecia as
apostas quando escolheu se envolver comigo.
Eu estremeci.
—No entanto —, disse ele. —Eu sou generoso, afinal. Eu prometo a você
uma coisa e uma coisa só. Seus olhos permanecerão abertos. Mas você não
pode me negar o poder de obscurecer as mentes dos outros, uma vez que
atende aos meus propósitos.
Eu balancei a cabeça novamente.
—Oh, Elisabeth —, disse ele. —Tola menina tola. Com que facilidade
você me dá sua confiança.
—Eu jogo a mão que me é dada.
—Sim, e pelas minhas regras. — As pontas dos dentes dele brilharam. —
Cuidado, Elisabeth. Você pode preferir a linda mentira à feia verdade.
—Eu não tenho medo da fealdade.
Ele me observou e eu me preparei contra o seu escrutínio. —Não —, ele
disse suavemente. —Você não tem. — Ele endireitou os ombros. —Até a
próxima lua cheia. — Ele apontou para a lua no céu, e por um momento, eu
pensei ter visto as mãos de um relógio passarem por seu rosto. —Ou sua irmã
está perdida para sempre.
—A próxima lua cheia. — Repeti.
O Rei dos Elfos se aproximou. Sua mão segurou meu queixo e eu levantei
meus olhos para seu olhar multicolorido. —Eu vou gostar de brincar com você.
— Disse ele em voz baixa. Ele se abaixou e o toque de sua respiração contra
meus lábios estava frio.
—Viel Glück, Elisabeth.
Então ele foi embora.

—Liesl!
A voz era abafada, como se ouvida através de gelo ou água.
—Liesl! Liesl!
Eu tentei abrir meus olhos, mas eles estavam congelados. Depois de
alguns instantes, consegui abrir um, e através do gelo e dos cílios
emaranhados, pude ver uma forma borrada correndo em minha direção.
—Hans? — Eu resmunguei.
—Você está viva! — Ele apertou a mão na minha bochecha, mas eu não
senti nada: sem calor, sem sensação de toque, nada além de leve pressão. —
Por Deus, Liesl, o que aconteceu com você?
Eu não pude responder. Mesmo se pudesse, não queria responder. Hans
me pegou nos braços e me levou de volta à estalagem.
Eu não sentia nada além de frio, nada de vida, de calor, ou dos braços de
Hans ao redor das minhas pernas, embaixo das minhas costas, suas mãos
enroladas em volta do meu peito. Era como se eu estivesse morta. Eu também
poderia estar morta. Eu sacrifiquei minha irmã pelo meu irmão. Novamente.
Eu merecia morrer.
—Käthe. — Eu disse. Mas Hans não me ouviu.
—Temos que entrar e aquecer imediatamente —, disse ele. —Deus, Liesl,
o que você estava pensando? Sua mãe e Josef estavam frenéticos de
preocupação; Josef até ameaçou não se unir ao mestre Antonius até que você
fosse encontrada.
—Käthe. — Eu tentei novamente.
—Seu pai estava fora de si; Eu pensei que ele tivesse enlouquecido!
Nunca mais quero vê-lo bêbado de novo.
Quanto tempo eu tinha ido embora? Não poderia ter passado mais de
uma hora - no máximo duas - que passei no bosque com o Rei dos Elfos.
—Como - quanto tempo... — Minha garganta estava rouca, minha voz
rangeu com o desuso.
—Três dias. — A calma do tom de Hans não disfarçou o medo e pânico
real em sua voz. —Você esteve fora por três dias. A audição de Josef com o
Mestre Antonius foi há três dias.
Três dias? Como isso é possível? Hans deve estar exagerando.
Sem truques. Sem trapaça Não tire minhas memórias. Não brinque com
o tempo. O Rei dos Elfos já havia quebrado suas promessas.
Mas ele não me fez nenhuma. Eu prometo a você uma coisa e uma coisa só.
Seus olhos permanecerão abertos. Meus olhos estavam abertos. Eu me lembrava
de tudo.
—Käthe. — Eu disse novamente, mas Hans me calou com um dedo
contra os meus lábios.
—Não fale agora, Liesl. Estou aqui. Eu cuidarei de você —, disse ele. —
Eu vou cuidar de todos vocês, nunca você terá medo.

De volta à pousada, todos ficaram nervosos. A mãe me abraçou e chorou,


uma exibição de emoção desagradável. Os rastros milenares de lágrimas
brilhantes mancharam as ranhuras nas bochechas de papai, e Josef, querido
Sepperl, não disse nada e apertou minha mão com uma ferocidade de nódoa
branca. Apenas Constanze ficou de lado, seus olhos escuros perfurando os
meus.
Minha irmã foi embora.
Eu era a responsável.
Mamãe mimava-se e me agitava como se eu fosse um bebê, envolvendo-
me em cobertores de lã, exigindo que papai me colocasse em sua poltrona
favorita junto à lareira, trazendo-me sopa e até chá com apenas uma pitada de
rum.
—Oh, Liesl! — Ela disse em lágrimas. —Oh, Liesl!
Sua intensa manifestação de afeição me desconcertou. Mamãe e eu nunca
fomos particularmente próximas; cada uma de nós estava preocupada demais
em manter nossas vidas juntas - mãe, o negócio, eu a família. Achei difícil
expressar meu amor por minha mãe; nós compartilhávamos um entendimento,
mas não compartilhávamos abraços.
Vendo meu desconforto, mamãe enxugou os olhos e assentiu. —É bom
ver você em segurança, Liesl. — Ela era mais uma vez prática, sem sentido,
Frau Vogler, a esposa do hospedeiro. Todas as sugestões e sinais de seu colapso
anterior tinham desaparecido, exceto por seus olhos avermelhados.
—Mamãe estava preocupada que você tivesse fugido de casa. — Josef
sussurrou.
Eu estava incrédula. —Por que eu fugiria de casa?
Josef deu um olhar de soslaio ao pai, que estava encurvado no canto. Ele
parecia anos mais velho, repentinamente abatido e desgastado e triste. Ele
sempre tinha sido alegre, uma aparência trôpega do jovem brilhante, vivaz e
promissor que ele tinha sido. Suas bochechas, avermelhadas por anos de
bebida, davam-lhe um ar infantil, e sua natureza de convívio disfarçava suas
falhas mais graves para todos, menos para aqueles que o conheciam melhor.
—Porque... porque você não tinha mais nada para viver. — Disse Josef.
—O quê? — Eu me esforcei para sentar, mas a miríade de cobertores em
volta de mim me prendeu em um casulo de lã tricotada. —Não seja ridículo,
Sepperl.
A mão de Hans me manteve no meu lugar. —Liesl. — Sua voz era gentil.
—Nós sabemos o quanto você trabalhou para manter essa família unida.
Sabemos o que você fez por Josef, como você trabalhou toda a sua vida para
promover sua carreira. Sabemos que você negligenciou suas próprias
esperanças e sonhos para o futuro dele. Sabemos que seus próprios pais muitas
vezes passaram por você em favor dele.
Uma sensação de formigamento me superou. Hans estava ecoando todos
os meus pensamentos egoístas e indelicados, validando todas as minhas
frustrações. No entanto, não senti alívio, nem triunfo, apenas uma vaga
sensação de medo.
—Isso ainda não explica porque todos vocês pensaram que eu iria fugir.
— Eu disse irritadamente.
Hans e Josef trocaram olhares. Eu desconfiava dessa nova simpatia entre
eles.
—Você não tem estado bem ultimamente, Liesl —, disse Hans. —Você
passou longos períodos de tempo sozinha e na floresta.
—Isso não é tão incomum. — Eu disse.
—Claro que não —, disse Josef. —Apenas... você continua nos dizendo
que está procurando alguém, alguém que precisa desesperadamente da sua
ajuda.
Eu endureci. —Käthe.
Os garotos trocaram outro olhar. — Sim, Liesl. — Disse Hans
cuidadosamente.
O pensamento de minha irmã aguçou todos os meus sentidos e
faculdades mentais. —Käthe! — Eu disse novamente, e desta vez consegui me
desvencilhar do meu ninho de capas e cobertores. —Eu preciso encontrá-la.
—Silêncio —, Hans acalmou. —Não há perigo. Está tudo bem.
Eu balancei a cabeça. —Se eu estiver ausente há três dias, então Käthe
deve estar em um problema ainda maior. Você enviou algum grupo de busca
depois dela? Você teve alguma sorte em encontrá-la?
Josef mordeu o lábio inferior. Seus olhos azuis brilhavam com lágrimas
quando ele pegou minha mão. —Oh, Liesl.
A mão fria do medo apertou meu coração. Eu não gostei do que vi no
rosto do meu irmão. —O que está acontecendo? — Eu perguntei. —O que você
tem para me dizer?
Sobre o ombro do meu irmão, Constanze pairava sobre nós como uma
ave de rapina. Seu rosto estava sombrio, sua expressão presunçosa e grave.
—Oh, Liesl —, Josef disse novamente. —Estou muito feliz por você estar
segura. Mas devo perguntar-lhe: para quem você tem procurado? Nenhum de
nós entende o que você está falando. Quem, minha querida, é Käthe?
Interlúdio
O imaginário ideal

Sem promessas, o Rei dos Elfos havia dito. Seus olhos permanecerão abertos,
mas você não pode me negar o poder de obscurecer as mentes dos outros, pois isso se
ajusta aos meus propósitos.
Enquanto Josef se preparava para a partida com o mestre Antonius e com
François, minha mãe insistiu em que eu ficasse em meu quarto e me
“recuperasse”.
—Você merece um descanso, minha querida —, disse ela. —Você
trabalhou tanto para cuidar de nós; deixe-nos agora cuidar de você.
Eu não estou doente! Tentei dizer, mas não adiantou. Quanto mais eu
procurava por memórias perdidas de todos da minha irmã, mais convencidos
eles eram de que a razão me abandonara.
Não foi minha mente que tinha quebrado.
Ou foi?
Käthe se foi, mas ela estava mais do que desaparecida; ela nunca existiu.
Todos os vestígios dela foram varridos completamente de nossas vidas e nada
permaneceu, nem mesmo uma mecha de seu cabelo dourado. Não havia flores
silvestres secas do prado. Sem fitas. Sem renda. Nada. Ela simplesmente nunca
tinha estado aqui.
Seus olhos permanecerão abertos.
Meus olhos estavam abertos, mas não podiam mais confiar no que viam,
pois não era o que eles se lembravam.
Certa manhã, acordei e encontrei que o klavier dos aposentos de Josef
havia sido transferido para o meu.
—Quem colocou isso aí? —, Perguntei a Hans. —Como você moveu isto
sem minha audição?
Hans franziu a testa. —O klavier sempre esteve no seu quarto, Liesl.
—Não, — eu disse. —Não, não tem. Como poderia? Josef e eu praticamos
em seus aposentos.
—Você e Josef sempre praticaram no baixo piano-forte —, disse Hans.
Seu tom era paciente, mas seus olhos estavam preocupados. —Este é seu
próprio klavier pessoal, Liesl. Viu? — Ele apontou para uma pilha de música
colocada na tampa, com anotações rabiscadas na minha mão.
—Mas eu nunca... — eu peguei as notas. Parecia ser o começo de uma
composição, que eu não me lembrava de ter escrito. Eu bati levemente a
melodia no teclado. Sétima maior, minhas anotações diziam.
A lembrança de um momento roubado antes do teste do meu irmão
voltou para mim. Um pouco para manter sua promessa, ele disse. Sétima maior,
claro, é com isso que você começa.
Mas era uma lembrança verdadeira ou falsa? Eu já tinha começado a
escrever isso antes da nossa conversa? Ou foi esse outro sonho que eu desejei
existir?
Hans colocou as mãos nos meus ombros e me guiou até o banco. Seu
toque era íntimo, mas minha mente recuou. Ele não era meu. Ele nunca foi
meu.
—Aqui, Liesl —, disse ele suavemente. —Toque. Componha. Eu sei o
quanto sua música lhe traz consolo.
Liesl. Eu sempre fui assim? Eu pensei que poderia lembrar as palavras
Fräulein e Elisabeth em seus lábios, uma distância tão vasta que só poderia ser
superada pelo constrangimento.
—Hans-Hansl. — O carinho provou estranho na minha língua.
—Sim? — Seu olhar era terno e errado. Hans nunca tinha olhado para
mim desse jeito, nunca me considerou nada além de uma irmã.
—Nada —, eu disse finalmente. —Nada.

Eu tinha acordado em um novo mundo, uma nova vida. A realidade se


rompeu ao meio: a verdade de um lado está do outro. Mas qual era qual? Eu
lutei para combinar com suas bordas irregulares, mas as peças não se
encaixavam.
Minha “convalescença” me mantinha confinada ao meu quarto, onde eu
não podia fazer mais nada a não ser compor. Minhas tentativas de deixar meu
confinamento, encontrar Josef, encontrar Constanze, correr para o Bosque dos
Elfos, foram todas recebidas com gentilezas, mas com refutações firmes. O Rei
dos Elfos disse que não facilitaria. Eu esperava tarefas desumanas, missões
sobrenaturais, batalhas épicas para barrar meu caminho, mas o que eu não
esperava era uma compaixão humana comum. Descanse, querida, era o seu
repetido refrão. Descanse.
E eu… eu não pude deixar de ser seduzida.
Era fácil, tão incrivelmente fácil, sentar-me no klavier e deixar o mundo
lá fora continuar com sua regularidade distorcida. Tão fácil mexer nas teclas
de marfim e deixar minha mente fugir, para transformar minha confusão e
anseio e desejos instáveis em música. Tão fácil de compor... e esquecer.
Essa era a maneira que a vida deveria ter sido.
Essa era a maneira que a vida sempre foi.
O pedaço de melancolia, a promessa que eu havia começado para Josef,
transformou-se numa pequena bagatela triste. Eu tinha decidido sobre a
designação e o tempo-chave - um tempo menor e comum - mas, por mais que
tentasse, o resto da peça não se encaixaria confortavelmente.
A melodia e os temas foram os mais fáceis de escrever e, portanto, foram
colocados no papel primeiro. Então veio o trabalho de descobrir progressões
de acordes e harmonias subordinadas, para as quais eu confiava pesadamente
no klavier. Eu não era Josef; Eu não conseguia puxá-las da minha cabeça, mas
eu podia anotar qual soava - não, parecia - certo para mim.
Depois de um tempo, deixei de escrever meus pensamentos uma frase de
cada vez e me deixei tocar sem pausa. Eu improvisei, eu experimentei, eu
vaguei. Papa dizia que compositores reais trabalhavam dentro das restrições
impostas a eles, mas eu queria ser livre. Eu moldaria o mundo para encaixar a
música na minha alma.
Eu nunca tinha composto algo sozinha antes; Sepperl geralmente sentava
no banco comigo, corrigindo meus erros de estrutura e teoria. A música de
Bach, Handel e Haydn foi composta da mente; Eu compus do coração. Eu não
era Mozart, infundida com inspiração divina; Eu era Maria Elisabeth Ingeborg
Vogler, mortal e falível.
Uma sombra cortou a luz que entrava embaixo da minha porta.
Eu imediatamente parei de jogar.
—Quem está aí?
Não houve resposta, mas os passos leves e arrastados a levaram embora.
Constanze.
—O que está acontecendo? — Eu repeti.
Os passos vacilaram e depois pararam. Um frio nó de medo formou-se
no meu estômago e eu era uma criança novamente, pega com a mão no açúcar.
Música era uma indulgência, e muito doce me estragaria. Eu tinha outras
tarefas, outras tarefas e outras tarefas a cumprir.
Käthe.
Por um momento, houve total clareza. Eu me levantei do banco e corri
para a porta. Constanze mantinha a fé com Der Erlkönig. Constanze se
lembraria.
Mas…
Pensei em minha avó derramando sal nos peitoris das janelas. Pensei nela
deixando uma lata de leite e uma fatia de bolo em cada colheita. Pensei em suas
esquisitices estranhas e excêntricas, mais rituais do que religião, e pensei nos
resmungos exasperados de mamãe, nos olhares piedosos de Hans, nos olhares
de desprezo dos aldeões. Constanze mantinha a fé com o Rei dos Elfos, e o que
sua fé fez com ela?
Nada.
Olhei de relance para o meu quarto, para o klavier no centro, para a
bandeja de jantar que a mãe pusera numa mesinha ao lado, no saquinho de
ervas secas e doces de Hans.
Hora de compor. Favores do homem mais bonito da aldeia. Nenhuma
vergonha, nenhum julgamento sobre quem eu era e o que eu amava. Era
apenas o começo de todas as coisas que eu sempre desejei, e a possibilidade de
felicidade - verdadeira felicidade - se estendeu diante de mim, uma bifurcação
na estrada.
O que minha falta de fé me ajudou?
Nada.
De repente, a clareza desapareceu.
Estávamos de pé em ambos os lados do limiar, minha avó e eu, cada uma
esperando o outro cruzar.
Uma mentira bonita

Com o passar dos dias, era cada vez mais difícil manter minha
determinação, minhas convicções, minha sanidade. Muitas vezes eu virava
uma esquina esperando ver um lampejo de ouro ou ouvir o eco de uma risada
tilintante. A memória de Käthe nesses corredores estava desaparecendo
rapidamente, deixando nada além de partículas de poeira na luz fraca. Talvez
eu nunca tivesse tido uma irmã. Talvez eu estivesse brava. Talvez minha razão
tivesse de fato me abandonado.
Sepperl, Sepperl, o que devo fazer?
Mas se a razão me abandonou, o mesmo aconteceu com meu amado
irmãozinho. Mais frequentemente do que não, Josef era encontrado com
François, os dois conversando em uma mistura de francês, alemão, italiano e
música. O Mestre Antonius estava ansioso para partir, mas uma tempestade
de gelo fora de época antecipadamente havia parado todas as viagens por mais
alguns dias. Mas o velho virtuoso tinha mais com o que se preocupar do que
algumas estradas intransponíveis; Soldados franceses rastejavam pelo nosso
campo como uma infestação de baratas, e os rumores perturbadores da guerra
iminente pairavam sobre nossas cabeças.
Eu não deveria estar com ciúmes. Eu prometi que não ficaria com ciúmes.
Mas inveja me comia por dentro de qualquer maneira. Eu via como os olhos
de Josef brilhavam sempre que ele via François, como o jovem de pele escura
sorria de volta. Meu irmão estava me deixando para trás em mais de uma
maneira. Como Käthe e Hans, como mamãe e papai, Josef estavam entrando
em um mundo que parecia para sempre barrado para mim.
O futuro brilhava à frente de Josef, uma cidade brilhante no final de uma
longa estrada. Sua vida se estendia à frente dele, excitante e desconhecida,
enquanto a minha começava e terminava aqui, na estalagem. Com Josef fora,
quem iria ouvir minha música? Quem iria me ouvir?
Pensei em Hans e seus doces e castos gestos em minha direção. Imaginei
risadinhas sufocadas, brincadeiras privadas e compartilhadas, improvisação
de baixo contínuo e triplo. Eu sonhava com toques fugazes, beijos desleixados,
respirações sussurradas e murmúrios no escuro da noite quando pensávamos
que ninguém podia ouvir. Desejava o amor, o etéreo e o físico, o sagrado e o
profano, e me perguntava quando eu, como meu irmão, como minha irmã,
atravessaria esse limiar em conhecimento a partir da inocência.
Recuei para o abraço reconfortante do meu klavier mais e mais, à medida
que a data de partida do meu irmão se aproximava. Sem a mão orientadora de
Josef, a cifra ficou selvagem e descontrolada. Suas frases musicais não se
resolviam de acordo com uma progressão lógica e racional; eles iam para onde
meus voos de fantasia os levavam. Eu deixava elas irem onde elas vão. Os
resultados foram ligeiramente dissonantes, estranhos e inquietantes, mas eu
não me importei. Afinal, eu não era criança de beleza; Eu era uma criança do
estranho e do selvagem.
Eu tinha a forma da peça agora, sua ascensão, queda e resolução. Era
bastante simples, especialmente para um virtuoso como Josef. Eu tinha escrito
com o violino em mente, para ser acompanhado pelo piano-forte. Eu queria
ouvir meu irmão tocar, queria ouvir como isso se transformaria em suas mãos.
Alguns dias depois, consegui o meu desejo.
François estava atendendo ao Mestre Antonius, que havia tomado um
“frio leve”, embora parecesse mais um ataque de inveja ciumento - ele não foi
o único a ser abandonado por alguém que ele amava, eu percebi. Encontrei
Josef em um raro momento sozinho no corredor principal, cuidando
amorosamente de seu violino. O crepúsculo estava caindo, e as sombras
esculpiram os planos de seu rosto em relevo acentuado. Meu irmão parecia um
anjo, um espirito, uma criatura que não era bem deste mundo.
—Acha que os kobolds estarão fora esta noite? — Eu perguntei
suavemente.
Ele se assustou. —Liesl! — Ele colocou o pano úmido e enxugou as mãos
na calça. —Eu não vi você lá. — Ele se levantou do seu lugar junto à lareira,
braços abertos para me abraçar.
Eu entrei direto neles. Com uma pontada, percebi que ele era de uma
altura parecia com a minha. Quando isso aconteceu?
—O que está acontecendo? — Ele perguntou, sentindo minha mágoa.
—Nada. — Eu sorri para ele. —É só... você está crescendo, Sepp.
Ele riu. Ele ressoou no fundo do peito, a risada de um homem, um baixo.
Embora Josef ainda mantivesse a doce soprano de um menino, sua voz
percorreu a borda da ruptura. —Nunca é nada com você.
—Não. — Eu admiti. Eu envolvi minhas mãos ao redor dele. —Eu tenho
algo para você. Um presente.
Suas sobrancelhas levantaram com surpresa. —Um presente?
—Sim, — Eu disse. —Venha comigo. E traga seu violino.
Achando que Josef me seguia até o meu quarto. Eu o levei até o klavier,
onde a bagatela descansava contra o suporte de música. Eu tinha ficado
acordada até tarde na noite anterior, desperdiçando preciosa luz de velas para
fazer uma cópia justa.
—O que é isso? — Ele apertou os olhos e se inclinou mais perto.
Eu não disse nada, mas esperei.
—Oh. — Josef fez uma pausa. —Uma peça totalmente nova?
—Não julgue com muita severidade, Sepperl. — Tentei rir da minha
súbita vergonha. —É cheia de erros, tenho certeza.
Josef inclinou a cabeça. —Você quer que eu e o François toquemos para
você?
Eu vacilei. —Eu tinha pensado —, eu disse, inesperadamente picado, —
que iríamos tocar juntos.
Ele teve a graça de corar. —Claro. Perdoe-me, Liesl. — Ele pegou o
violino e o colocou debaixo do queixo. Ele examinou as primeiras linhas e, em
seguida, acenou para mim. Eu estava de repente nervosa. Eu não deveria estar;
este era Josef, afinal.
Eu balancei a cabeça para trás e Josef levemente balançou seu arco para
cima e para baixo, definindo o ritmo. Demos uma medida e começamos.
As primeiras notas foram hesitantes, inseguras. Eu estava nervosa e Josef
estava... Josef estava ilegível. Eu vacilei, meus dedos escorregando no teclado.
Josef continuou a tocar, lendo as notas que escrevi com precisão
mecânica. Você poderia ter definido um relógio pelo seu jogo, exato e
implacável. A dormência começou a se espalhar dos meus dedos, percorrendo
minhas mãos, meus braços, meus ombros, meu pescoço, meus olhos, meus
ouvidos. Eu tinha escrito isso para o Josef que eu conheci e amei, para o
garotinho que nunca teve a oportunidade de fugir para encontrar o Hödekin
dançando na floresta. Para a criança que compartilhou metade da minha alma,
estranha e selvagem, pelo irmão que mantinha fé com Der Erlkönig.
Ele não estava lá.
Era como se meu irmão tivesse sido substituído por um changeling. A
música não se transformou, não transcendeu em suas mãos. As notas eram
turvas, mundanas, terrestres. De repente, foi como se eu pudesse ver as teias
de aranha da ilusão que eu tecera sobre mim mesma, através das quais eu
podia ver outro mundo e outra vida.
Josef terminou a peça, segurando a fermata da última nota com o
comprimento exato.
—Um bom esforço, Liesl. — Ele me deu um sorriso, mas não chegou a
alcançar seus olhos. —Um começo definido.
Eu balancei a cabeça. —Você partirá para Munique amanhã. — Eu disse.
—Sim. — Josef parecia aliviado. —À primeira luz.
—Descanse um pouco, então. — Eu dei um tapinha na bochecha dele.
—E você? — Ele perguntou, inclinando a cabeça em direção à peça sobre
o klavier, a peça que ele acabara de tocar. —Você vai escrever, não vai? Me
mandar mais música?
—Sim. — Eu disse.
Mas nós dois sabíamos que era uma mentira.

A energia estava alta quando as pessoas chegaram para levar Josef,


Mestre Antonius e François a Munique. Convidados e fregueses e amigos da
aldeia acabaram se despedindo. Papai chorou ao abraçar o filho, enquanto a
mãe - com rosto impassível e olhos secos - pousou as mãos sobre a cabeça de
Josef numa bênção tranquila. Eu evitei o olhar de Constanze. Seus olhos
estavam sombrios e nublados, sua boca em uma linha rebelde.
—Glück, Josef. — Hans bateu meu irmão bem-humorado no ombro. —
Não se preocupe com sua família; Eu vou cuidar deles. —Ele chamou minha
atenção e me deu um sorriso tímido. Meu coração acelerou, mas com
nervosismo ou culpa, eu não tinha certeza.
—Danke. — Josef disse distraidamente. Seus olhos já estavam distantes,
já se foram.
—Auf wiedersehen, Sepp. — Eu disse.
Meu irmão pareceu surpreso ao me ver ao lado dele. Eu estava facilmente
perdida nas sombras - simples, monótono, sem importância -, mas Josef
sempre conseguira me encontrar. Lágrimas começaram nos meus olhos.
—Auf wiedersehen, Liesl. — Ele pegou minhas mãos nas dele, e por um
momento, foi como se o mundo nunca tivesse mudado, e ele ainda era meu
amado Sepperl, a outra metade da minha alma. Seus olhos azuis brilhavam
quando ele me envolveu em seus braços. Era um abraço de menino, sem
consciência e sincero, o último que meu irmãozinho me daria. Quando - se -
nós nos vermos um ao outro, ele seria um homem.
François veio para escoltar Josef ao treinador, a Munique, a grandeza, a
aclamação. Nossos olhos se encontraram na cabeça do meu irmão. Nós não
compartilhávamos a mesma língua, mas nós falamos a mesma língua mesmo
assim.
Cuide dele, eu disse.
Eu vou, ele respondeu.
Fiz-me ficar de pé e observei quando a carruagem se afastou,
desaparecendo na estrada, engolida pela névoa, a distância e o tempo. Um por
um, minha família voltou para a vida deles: papai para a cadeira dele junto à
lareira, minha mãe para o seu lugar na cozinha. Hans demorou-se mais tempo,
a mão no meu ombro. Por fim, virei-me para juntar-me ao que restava da
minha família, mas Hans me impediu.
—Hans —, eu disse. —O que é?
Ele me calou. —Venha. Eu tenho algo, algo que eu quero te mostrar.
Franzindo a testa, eu deixei ele me levar pelo riacho em direção ao
depósito de madeira. Uma vez lá, ele me empurrou contra a parede.
—Hans. — Eu lutei contra ele. —O que-
Ele me calou. —Está tudo bem —, disse ele. Esse era o máximo do corpo
de Hans que eu já havia sentido contra o meu: sua mão no meu pulso, seu peito
contra o meu, suas coxas contra meus quadris, o calor de sua pele aquecendo
a minha. —Está tudo bem. — Ele repetiu, e me segurou mais perto. Havia uma
urgência em seu toque, uma necessidade que mexeu meu sangue.
—O que você está fazendo? — Perguntei.
Mas eu sabia. Eu tanto temia quanto desejava.
Sua mão pressionou contra a parte inferior das costas, empurrando
nossos membros inferiores juntos. Sua mão direita liberou meu pulso para
lentamente acariciar minha bochecha. —O que eu queria fazer desde que te
conheci. — Ele murmurou.
E depois ele me beijou.
Fechei meus olhos e esperei, esperei que os fogos dentro de mim se
acendessem. Eu tinha imaginado, sonhado e ansiava por este momento por um
longo tempo: o momento em que Hans me pegaria em seus braços e
pressionaria seus lábios nos meus. No entanto, no preciso momento em que
aconteceu, senti frio. Eu podia sentir seus lábios, sua respiração, e a tentativa
de roçar sua língua contra a minha, mas ele não despertou nenhuma emoção,
exceto uma vaga surpresa e uma curiosidade desapegada.
—Liesl?
Hans se afastou, tentando ler minha expressão. Eu pensei em Käthe, mas
não era a forma do corpo da minha irmã que estava entre nós.
Você pode preferir a linda mentira à feia verdade, o Rei dos Elfos havia dito.
Eu tinha. Toda essa vida era uma mentira bonita e eu me achava forte o
suficiente para resistir. Que tola eu tinha sido, me apaixonar pelos truques do
Senhor do Mal.
—Liesl? — Hans repetiu, hesitante e inseguro. Isso tudo era mentira, mas
que bela e bela mentira era.
Então eu o beijei de volta.
No escuro da noite, de costas para minha irmã, para que ela não notasse,
eu fingi sentir as mãos de Hans em mim, seus dedos procurando por todas as
cavidades e fendas secretas do meu corpo. Eu imaginei seus lábios, língua e
dentes, imaginei o desejo tão forte que ele quase explodiu, combinando a
aspereza em meus membros inquietos com sua própria violência.
A intensidade dos meus beijos o surpreendeu, sua surpresa ressoando
através dele da cabeça aos pés. Ele me liberou.
—Liesl!
—Não era isso que você queria? — Perguntei.
—Sim, é, mas...
—Mas o que?
—Eu não esperava que você fosse tão avançada.
Em algum lugar, no meio da floresta, achei que podia ouvir um eco da
risada do Rei dos Elfos.
—Isso não é o que você queria? — Eu repeti, limpando com raiva a minha
boca.
—É claro —, respondeu Hans, mas ouvi a incerteza em sua voz. O medo,
o desgosto. —Claro que é, Liesl.
Eu o empurrei para longe. A fúria se desenrolou de mim, uma onda
crescente de frustração.
—Liesl, por favor. — Hans agarrou minha manga.
—Deixe-me ir. — Minha voz estava tão morta quanto eu sentia por
dentro.
—Eu sinto muito. Eu apenas pensei que você fosse pura. Casta. Não
como todas as outras garotas, facilmente gastas, facilmente saciadas.
Eu fiquei rígida. Käthe.
—Oh? — Eu perguntei com força. —Que outras garotas, Hans?
Suas sobrancelhas franzidas. —Você sabe —, ele disse vagamente. —As
outras. Mas elas não importam para mim, Liesl. Elas não são o tipo de garotas
com quem você se casa.
Eu dei um tapa nele. Eu nunca havia levantado minha mão contra
ninguém em minha vida, mas bati nele com toda a força que tinha. Minha
palma picou onde atingiu sua bochecha.
—E que tipo de garota eu sou? — Perguntei em voz baixa. —Com que
tipo de garota você se casa, Hans?
Ele gaguejou, mas não formou uma resposta.
—Quando você disse pura, você quis dizer clara. Quando você disse
casta, você quis dizer feia.
Minhas palavras o atingiram com toda a sua horrenda verdade,
expondo-o pelo que ele realmente era. Eu meio que esperava, metade queria
que Hans reagisse, pegasse meu braço e me dissesse que eu estava superando
meus limites. Mas em vez disso ele cambaleou para trás, suas mãos ficando
flácidas, submissas.
Meu lábio se curvou. —Eu queria você uma vez —, eu disse. —Eu pensei
que você fosse um homem digno, Hans. E no fundo, eu acho que você é. Mas
você não é digno de mim. Tudo o que você é, é uma mentira bonita.
Hans estendeu a mão para mim, mas eu mantive minhas mãos para mim
mesma.
—Liesl...
Eu olhei diretamente nos olhos dele. —O que seu pai costumava dizer?
Hans não disse nada. Ele virou a cabeça para o outro lado.
—Qual é o uso da corrida, se estamos no caminho errado?
Uma verdade horrível

Eu corri direto para o quarto de Constanze.


Eu deveria ter ido para a minha avó antes. Foi no momento em que voltei
da floresta, no momento em que soube que Käthe foi roubada. Em vez disso,
deixei minha avó pairar nas bordas da minha consciência como um fantasma,
incapaz ou não disposta a encarar a feia verdade. Culpa subiu pela minha
garganta, vazando dos meus olhos.
A porta de seus aposentos estava fechada. Levantei a mão para bater
quando uma voz irritada chamou: —Bem, entre garota. Você demorou o
suficiente.
Era verdade.
Eu abri a porta. Constanze estaav sentada em sua cadeira perto da janela,
olhando para a floresta além.
—Como você sabia que eu...
—Aqueles de nós tocados pela mão de Der Erlkönig reconhecem a sua
própria. — Ela se virou para mim, seus olhos escuros e afiados. —Eu tenho
esperado por você por semanas.
Semanas. Teria sido realmente assim por muito tempo? Tentei contar os
dias em que vivi nessa falsa realidade, mas eles se misturaram, conectando-se
perfeitamente sem fim.
—Então por que não vem me procurar? — Perguntei.
Constanze encolheu os ombros. —Não é para eu me intrometer em seus
assuntos.
Palavras furiosas bateram contra meus lábios. Eu as engoli, mas algumas
emergiram como uma risada abafada e incrédula.
—E você quer que ele mude o mundo como você conhece? — Perguntei.
—Você deixaria Der Erlkönig vencer?
—Vencer? — Ela bateu no chão com a bengala. —Não há vencedores com
Der Erlkönig. Ou perdedores. Existe apenas sacrifício.
—Käthe não é um sacrifício!
O nome da minha irmã cresceu como um trovão entre nós. Senti as
costuras desta falsa realidade se desfazerem em seu nome, abrindo buracos no
tecido da minha confusão. Käthe. Lembrei-me de seu cabelo ensolarado e sua
risada em forma de sino, seu ciúme de Josef e sua admiração por mim, do jeito
que só uma irmãzinha podia me admirar. Graça, ela dissera. Inteligência e
talento. Isso é muito mais duradouro que a beleza. Pensei nela mil ofensas e
gentilezas impensadas e a dor de sentir saudade da minha irmã, abafada pela
má orientação e mentiras, brilharam em relevo.
Eu enterrei meu rosto em minhas mãos.
Ouvi Constanze se mexer em seu assento, virando-se para mim. Se ela
fosse um tipo diferente de avó, poderia ter me acenado para que pudesse
colocar as mãos retorcidas na minha cabeça, acariciando minha testa enquanto
murmurava palavras reconfortantes.
Mas Constanze não era esse tipo de avó.
—Bem, menina, o que é que você quer de mim? — Ela retrucou. —Diga-
me rapidamente, então você vai me deixar em paz.
Constanze dificilmente chama Käthe ou eu pelos nossos nomes, dados
ou não; sempre éramos ‘menina’ ou ‘você’, como se fôssemos estranhas,
supérfluas ou sem importância.
—Eu quero...— Minha voz estava rouca, quase um sussurro. —Eu quero
que você me diga como ganhar acesso ao submundo.
Ela não disse nada.
—Por favor. — Eu levantei minha cabeça. —Por favor, Constanze.
—Não há nada que você possa fazer —, disse ela, e a finalidade de suas
palavras era pior do que seu desprezo. —Você não está ouvindo? Sua irmã é
do Rei dos Elfos agora. É muito tarde.
Até a próxima lua cheia, ou sua irmã está perdida para sempre.
Quanto tempo se passou nesse sonho febril? A lua cheia havia nascido?
Tentei contar as semanas, mas a passagem do tempo não foi marcada no meu
estado de alerta.
—Não é tarde demais. — Eu rezei para que fosse verdade. —Eu tenho
até a próxima lua cheia.
Desta vez, o silêncio de Constanze foi menos desdenhoso do que
surpreso. —Ele… ele falou com você?
—Sim. — Eu torci minhas mãos. —Nas próprias palavras do Rei dos
Elfos, eu tenho até a próxima lua cheia para encontrar o meu caminho para o
seu reino.
Mas ela não pareceu ouvir uma palavra do que eu disse. —Ele falou...
com você? — Ela repetiu. —Por que você?
Eu fiz uma careta. O ácido já não gravava seus tons com desagrado
mordaz, mas uma vulnerabilidade persistente traçava suas palavras. Neles, eu
ouvi, por que você... e não eu?
—Você já conheceu Der Erlkönig? — Perguntei.
Foi um longo momento antes que ela respondesse. —Sim —, ela disse. —
Você não é a única donzela que teve sonhos tolos de menina sobre Der
Erlkönig, você sabe. Você não é a única que dançou com ele na floresta. Como
você, uma vez sonhei que ele me levaria para ser sua noiva no subsolo. — Ela
desviou o olhar. —Mas ele nunca fez. Talvez — ela disse ironicamente. — Eu
também não fui bonita o suficiente para ele.
A simpatia bateu no meu peito por Constanze. Ao contrário de Käthe, ao
contrário da mãe, Constanze entendia o que era ser negligenciada, ignorada. A
beleza de Käthe e da mãe garantiam que nunca fossem esquecidas; suas
histórias viveriam na narrativa de outra pessoa, como as mulheres bonitas
sempre viviam. As pessoas se lembrariam de seus nomes. Mulheres como
Constanze e eu éramos relegadas às notas de rodapé, ao fundo, sem nome e
sem importância.
—O que aconteceu? — Eu perguntei suavemente.
Ela encolheu os ombros. —Eu cresci.
—Todas as crianças crescem —, eu disse. —E ainda assim, você ainda
acredita.
Constanze voltou meu olhar com um longo e duro olhar fixo. Então ela
apontou para o banquinho ao lado dela com um aceno de cabeça. Eu vim e me
ajoelhei a seus pés, assim como fiz quando era jovem.
—Eu acredito porque devo —, disse ela. —Para que as consequências não
sejam desastrosas.
—Que consequências?
Demorou um bom tempo até Constanze falar.
—Você não sabe —, ela resmungou. —Você nunca poderia saber como
era o mundo quando Der Erlkönig e seus súditos andavam entre nós. Era uma
idade das trevas, uma era antes da razão, da iluminação e de Deus.
Eu resisti ao desejo de perguntar como ela sabia. Constanze era velha,
mas não tão velha assim. Em vez disso, eu me deixei ser jovem novamente em
sua presença, para me acomodar nos ritmos e cadências de sua história,
embalada pela ascensão e queda de seu discurso.
—Era uma era de sangue, violência e guerra —, continuou ela. —uma
época em que o homem e os elfos lutavam - pela terra, pela água, pela carne.
Bela carne, doce e tentadora, a carne de donzelas, cheias de luz e vida. Os elfos
as viam como sustento, os homens as viam de outra forma.
Dentes pontiagudos sobre os lábios finos como navalhas. Estremeci,
lembrando-me de como o suco do pêssego encantado fluíra pela boca e pela
garganta de Käthe como sangue.
—Sangue escorria tão facilmente quanto a chuva, encharcando a terra,
salgando a terra, transformando-a vermelha sob os nossos pés com os restos
mortais, enterrando a colheita sob raiva, pesar e tristeza. Der Erlkönig ouviu
os gritos da terra, sufocado pela morte e pela guerra, e estendeu as mãos. À sua
direita, ele reuniu o homem; à sua esquerda, os elfos, dividindo um do outro.
E assim, Der Erlkönig sempre esteve entre nós e eles, entre o mundo dos vivos
e dos mortos, o comum e o estranho.
—Como um solitário. — Eu murmurei. Pensei no estranho alto e elegante
do mercado, o primeiro disfarce em que o Rei dos Elfos se mostrara para mim,
mais homem do que mito. Mesmo assim, ele ficou sozinho e à parte, e sua
solidão chamou a minha. Minhas bochechas coraram com a memória.
Constanze me deu um olhar penetrante. —Solitário, sim. Mas o rei serve
a coroa ou a coroa serve ao rei?
Nós nos sentamos em silêncio.
—Como então, Constanze —, eu disse finalmente. —eu ganho entrada
para o Submundo?
Por um longo momento, fiquei com medo de que minha avó não me
desse uma resposta direta. Então ela suspirou.
—Der Erlkönig está ligado a um sacrifício antigo —, ela disse. —então
nós o honramos com o nosso próprio.
—Um sacrifício?
Seus olhos se suavizaram. —Uma oferta —, ela emendou. —Quando eu
era menina, costumávamos deixar pão e leite como um dízimo, uma parte do
nosso trabalho suado. Mas estes não são os tempos difíceis que eram quando
eu era jovem. Você deve levar ao Rei dos Elfos uma oferta que lhe custe algo;
afinal, não é esse o significado de sacrifício?
—Eu não tenho nada —, eu disse. —Só pessoas. E eu já sacrifiquei uma
que eu amo para Der Erlkönig, Constanze; Eu não vou arriscar mais.
—Você realmente não tem nada? — Havia algo no tom da voz da minha
avó que gelou meu sangue.
—Nada. — Eu repeti, mas minha voz estava menos certa do que antes.
—Oh, mas eu acho que você tem. — Suas palavras eram suaves, sinistras.
—Algo que você ama mais que sua irmã, mais que Josef, mais que a própria
vida.
Minha mente não compreendia seu significado, mas meu corpo sabia.
Meu corpo era mais inteligente do que eu. Ficou frio e entorpecido com a
quietude.
Minha música.
Eu teria que sacrificar minha música.
Sacrifício

Eu deveria saber que isso aconteceria.


Quando o anoitecer começou a cair do lado de fora, me ajoelhei diante
da cama - a cama que minha irmã e eu tínhamos compartilhado toda a nossa
vida - e pegamos o cofre que eu sabia que estaria escondido lá. Meus dedos
rasparam e procuraram, mas pararam quando roçaram algo suave e polido.
O presente do estranho elegante.
Eu tinha esquecido tudo sobre isso desde que voltamos do mercado
naquele fatídico dia em que Käthe havia tomado aquele pedaço de fruta dos
elfos.
Eu não ofereço este presente para você com a bondade do meu coração, mas com
uma necessidade egoísta de ver o que você pode fazer com ele.
E o que eu fiz com o presente do Rei dos Elfos? Eu tinha tomado e
escondido, como se fosse algo secreto, algo vergonhoso. Talvez minha falta de
fé tenha me custado tudo depois de tudo.
Eu tirei minha caixa de composições debaixo da minha cama e a abri.
Não parecia nada: pedacinhos de papel, páginas tiradas dos livros de
contabilidade não usados do meu pai, as capas de antigos hinários - o triste e
patético tesouro de uma criança desprovida de amor e sem talento.
Fechando o cofre, me levantei e caminhei até o klavier. Sua presença no
quarto era tanto exagero quanto bálsamo, um lembrete de tudo que eu sonhara
e tudo o que nunca ganharia. Passei minhas mãos por sua superfície, sentindo
as horas que tinha o coração partido, mas por uma necessidade egoísta de ver
o que você poderia fazer com isso.
Minha última composição ainda estava aberta no estande de música. Na
parte superior, na minha melhor caligrafia: Für meine Lieben, ein Lied im stil
die Bagatelle, auch Der Erlkönig.
Para os meus entes queridos, uma música no estilo de uma bagatela, ou
o Rei dos Elfos.
Abaixo disso, em um rabisco apressado:
Para Sepperl, ele nunca pode esquecer.
Para Käthe, todo meu amor e meu perdão.
Eu embaralhei as folhas juntas, empilhando-as cuidadosamente, antes de
amarrá-las com um pedaço de fio da minha caixa de costura.
As páginas pareciam simples e desamparadas, assentadas sem adornos
no meu piano. Se eu fosse Käthe, eu as teria vestido com um pouco de fita ou
renda, ou algumas flores silvestres secas do prado de verão. Eu não tinha nada
além de alguns amentilhos que caíam dos amieiros no Bosque dos Elfos.
Mas talvez essa fosse a decoração mais adequada, afinal.
Com minhas tesouras, eu cortei uma mecha de cabelo e amarrei com os
amentilhos na partitura. Minha última composição e minha última. Meu
presente para meus entes queridos, meu adeus. Se eu não pudesse dar a eles
um último abraço, um último beijo, então eu poderia dar a eles isto: minha
mais verdadeira expressão do eu, para salvaguardar em sua guarda. Deixei a
composição na cama.
Depois, reunindo a flauta e o cofre, virei do klavier, do quarto, de casa,
em direção ao Bosque dos Elfos e além.
Constanze estava no pé da escada.
—Você está pronta, Elisabeth?
Foi a primeira vez que minha avó me chamou pelo nome. Tremores
percorreram-me, não de medo, mas de antecipação.
—Liesl —, eu disse. —Me chame de Liesl.
Constanze sacudiu a cabeça. —Elisabeth. Eu gosto do nome Elisabeth. É
um nome para uma mulher adulta, não uma garota.
Em suas palavras, ouvi o eco do Rei dos Elfos. Mas eu escolhi tirar força
deles. Para todas as nossas diferenças, Constanze acreditava em mim. Ela me
entregou um manto e uma lamparina. Para minha surpresa, ela também me
deu uma fatia de Gugelhopf, que ela não tinha feito para mim desde que eu
era criança.
—Uma oferta para Der Erlkönig. — Ela envolveu o bolo em um pedaço
de linho. —De mim. Ele não terá esquecido o gosto do meu Gugelhopf tão
cedo, eu deveria pensar.
Eu sorri. —Nem eu, Constanze.
Nós nos enfrentamos pela última vez. Sem lágrimas, sem despedidas.
Minha avó não aprovava o sentimentalismo. Ela simplesmente me deu um
tapinha no ombro.
—Viel Glück, Elisabeth. — Ela não disse que nos encontraríamos
novamente.
Eu segui Constanze pela porta dos fundos da estalagem. Ela não me
dirigiu no meu caminho, mas isso não importava. Eu sabia exatamente para
onde estava indo.
—Servus, Constanze —, eu disse suavemente. —Vá com Deus. E
obrigada.
Constanze assentiu. Ela não tinha palavras de encorajamento, nenhuma
bênção para minha jornada. Mas o bolo em sua embalagem de linho foi tão
bom quanto uma bênção da minha avó. Eu peguei e saí.

A noite estava clara e o ar respirava o inverno, a morte, o gelo e o sono.


Eu segurava a lamparina no alto, iluminando o caminho à frente.
O Bosque dos Elfos ficava ao longe, a única parte da floresta coberta de
névoa. A névoa formava formas espectrais diante dos meus olhos, sugerindo a
protuberância das costas de um elfo ou a curva da bochecha de uma ninfa, mas
nada - ninguém - se materializou. Eu não teria audiência esta noite.
Muito bem, então, pensei, entrando no próprio Bosque dos Elfos. Era um
círculo de doze amieiros, quase perfeitamente redondos, como se tivessem sido
plantados por um jardineiro tenro há muito tempo. Tinha o aroma de algum
lugar sagrado ou sagrado, alimentado pelas histórias que contávamos um ao
outro. De Frau Perchta. Da caçada selvagem. Das senhoras brancas. De Der
Erlkönig.
Eu abaixei minha lamparina e comecei a pentear o bosque em busca de
uma queda. Eu encontrei muita madeira ao alcance, mas a madeira tinha ido
para a umidade e o inverno que se aproximava. Não acenderia sem cinza. Eu
consegui o melhor que pude, arrumando as varas em uma pequena pirâmide
sobre uma pequena pilha de gravetos. Mas, por mais que tentasse, não
consegui acender o fogo e, como fósforo após fósforo cuspia nos meus dedos
trêmulos, também minhas esperanças.
Eu não poderia jogar por ele assim. Não poderia dar-lhe minha música
com as mãos meio congeladas e os lábios azuis de frio. Eu tinha prometido ao
rei dos elfos um sacrifício, mas ele não ia facilitar as coisas para mim. Volte,
sussurrou a brisa espectral. Desista. Eu alcancei minha bolsa para a flauta.
O instrumento parecia vivo no meu aperto. Era esculpido em algum tipo
de madeira, possivelmente em madeira de amieiro, que era sagrada para o Rei
dos Elfos. A flauta me perturbava; era como segurar a mão de alguém, um
toque que sentia de volta. O instrumento era antigo, construído sobre um
design mais simples, sem as chaves e junções de metal das novas flautas que
eu tinha visto os músicos tocarem na igreja. No entanto, tinha os buracos certos
que permitiam o dedilhado cromático, não como as flautas transversais velhas
e antiga em nossa pousada que pertencera ao nosso avô. Papai me ensinara os
rudimentos da flauta; Eu sabia tocar todas as notas, mas se conseguiria ou não
que soassem como desejava, iria fazer com que fosse ouvida.
Eu molhei meus lábios, trouxe o instrumento para minha boca. Nada
além de um ruído assobio oco emergiu, o som do vento nas árvores. Eu
gentilmente soprei o instrumento em si, tentando aquecer o ar lá dentro, a
madeira da qual ela foi feita. Isso ajudou pouco; minhas mãos tremiam demais
para manter a flauta reta, meus dedos entorpecidos mal sentindo os buracos
abaixo deles.
No silêncio da floresta além, pensei ter ouvido o eco zombeteiro de uma
risada.
Você ainda não me derrotou.
Fogo. Eu precisava de fogo. Eu não poderia continuar assim. A névoa
ficou mais grossa, gotas de umidade se formando no meu cabelo. Elas seriam
gotículas de gelo em pouco tempo.
Eu olhei para a lamparina que Constanze me deu. Tinha um pequeno
poço de óleo na base, junto com um pavio de fogo. Talvez eu pudesse derramar
um pouco sobre a pilha de lenha que fiz, apenas o suficiente para incendiar a
fogueira. Mas eu me preocupava que a umidade pudesse derrotar isso
também, e que pouca luz eu teria ido embora com isso.
Não, eu precisava de algo mais para queimar: algo seco, algo experiente,
algo como... papel.
Eu me lembrei da minha caixa de composições.
Eu queria rir. Eu pensei que eu soubesse o significado de sacrifício. Eu
pensei que eu soubesse o significado do sofrimento. Mas não, eu era uma
idiota. O que significa sacrificar minha música ao Rei dos Elfos? Eu pensei que
algumas músicas seriam suficientes. Mas eu estava errada. Muito errada. Ele
queria mais. Ele queria minha alma.
Mãos tremendo com mais do que frio, eu alcancei minha bolsa e tirei
minha caixa de composições. Não era nada além de um velho cofre que eu
encontrara no sótão - há muito esvaziado de suas moedas, mas cheio de
tesouros, no entanto. A fechadura estava enferrujada, mas o fecho ainda
funcionava, e a caixa ficou fechada até que eu a abri. Eu abri agora.
Minhas composições estavam espalhadas em suas profundezas, folhas
mortas no limo do outono. A música rabiscada apressadamente um papel
absorvente, um pergaminho roubado dos livros de contabilidade do meu pai,
de papel de parede que nossos hóspedes às vezes deixavam para trás. Tudo
papel. Tudo inflamável.
—É isso que você quer, meu Herr? — Perguntei. —Este é o sacrifício que
você pediu?
Nenhuma resposta da floresta, mas um silêncio de espera, como se o ar
prendesse a respiração.
Com um grito eu espalhei minha música sobre a pilha de lenha. Então,
antes que eu pudesse perder a coragem, espirrei o óleo em chamas da minha
lamparina sobre ele.
As páginas pegaram fogo imediatamente. As chamas se acenderam e
morreram. Não, eu não iria queimar o trabalho da minha vida por nada. Chutei
suas cinzas em chamas para o lume e o resto começou a iluminar. Galho após
galho, ramo após ramo, uma pequena fogueira esfumaçada, mas constante,
começou a crescer.
Para você, mein Herr, pensei. Isso é suficiente?
Nada mais que aquele silêncio de espera. Primeiro as páginas, depois a
minha alma. Este último pedaço de mim mesma, ele exigiu tudo. Este era o
significado do sacrifício.

Eu joguei tudo o que eu conhecia, cada estudo, cada cantata e concerto,


cada sonata e música. Eu bordei, embelezei, improvisei, melhorei. Joguei,
joguei e joguei até as chamas se apagarem, até que meus dedos ficaram brancos
de gelo, até que minha garganta ficou rouca de gelo. Eu joguei até a escuridão
rastejar nas bordas da minha visão se tornar a totalidade dela, até que eu não
consegui mais ver o amanhecer se aproximando.
Alguém me pega em seus braços.
—Hans? — Eu pergunto fracamente.
Não houve resposta.
Apenas a sensação de longos dedos correndo ao longo do comprimento
do meu pescoço, suave e gentil como a chuva da primavera. Eles descansavam
contra minhas clavículas. A carícia era leve e de alguma forma me lembrava a
flauta na minha mão.
Então eu não vi e senti mais nada.
Parte 2

O baile dos Elfos

Um Pintarroxo em uma gaiola dourada,


Um Pintarroxo em um ramo, -
No inverno gelado pode-se duvidar
Qual pássaro tem mais sorte agora.
Mas deixe as árvores explodirem em folha,
E ninhos estão no galho,
Qual Pintarroxo é o pássaro mais sortudo,
Oh quem poderia duvidar agora?

Christina Rossetti, Um Pintarroxo em uma gaiola dourada


Fadas de Luz

O som de risadas me acordou.


—Käthe? — Eu murmurei. —Ainda é cedo. — Estava escuro demais para
amanhecer, escuro demais para a minha irmã sonolenta acordada. Cheguei sob
as cobertas por seu calor, mas não havia nada.
Meus olhos se abriram com um estalo. O quarto estava pouco iluminado,
mas eu não estava em casa, não estava na minha cama. Eu estava confortável,
por um lado. O colchão que Käthe e eu compartilhamos era velho, cheio de
caroços e afundamentos, e não importava quantos tijolos quentes embrulhados
em lã nós abraçávamos, não importando quantos cobertores empilhamos sobre
nossas cabeças, nunca era quente o suficiente.
Eu me sentei. O quarto se iluminou. Pequenas luzes cintilantes pairavam
ao meu lado, e eu ofeguei de prazer. Cheguei a tocar uma, mas foi recebido
com um silvo zangado e uma dor aguda e crepitante que durou meio
momento. A luz pulsou irritada antes de retomar seu brilho constante.
—Fadas de luz. — Eu respirei.
Fadas de Luz.
Fey. Elfos de Der Erlkönig.
—Käthe! — Eu gritei, jogando minhas cobertas e espalhando as Fadas de
Luz em um frenesi.
Mas não houve resposta.
Eu estava no subsolo.
Eu tinha feito isso. Eu ganhei essa rodada.
Agora totalmente acordada, vi que estava em algum tipo de quarto, os
tetos, pisos e paredes feitos de terra batida. Mas não havia portas nem janelas,
nem maneira de escapar. O quarto estava tão selado quanto uma tumba. A
cama era esculpida nas raízes de uma árvore muito grande, as raízes curvadas
e dobradas em formas sinuosas, quase como se tivessem sido cultivadas.
Eu fiquei de pé. Um crepitante fogo soltava gritos e chiados em uma bela
lareira de travertino 9. Eu corri minha mão sobre o manto. A pedra branca e
cremosa era atravessada com ouro, as junções sem costura, como se tivessem
sido colocadas de uma laje contínua de pedra. Tal habilidade fina parecia
incongruente neste túmulo de raízes e sujeira.
Eu vaguei por cada centímetro do meu quarto, procurando por uma
janela, um limiar, algum meio de fuga. Ele era bem equipado com pequenos
luxos e confortos, equipados como aposentos particulares de uma graciosa
senhora. Uma cadeira estofada e uma mesa no estilo Louis XXV enfeitavam a
lareira, e um lindo tapete tecido com fios brilhantes cobria o chão de terra
batida. Acima da lareira havia uma grande pintura de uma paisagem de
inverno, e espalhados aqui e ali em mesas laterais e armários eram objetos de
arte delicados e decorativos.
À primeira vista, tudo era elegância harmoniosa e delicadeza feminina.
No entanto, após uma inspeção mais minuciosa, os pequenos seres se
revelaram. Em vez de sorrir como querubins, pequenos seres olhavam para os

9é uma rocha calcária, composta de calcita, aragonita e limonita, com bandas compactas, paralelas
entre si, nas quais se observam pequenas cavidades, onde predominam os tons que passam pelo
branco, verde ou rosa, apresentando, frequentemente, marcas de ramos e folhas. Também é conhecida
pelo nome de tufo calcário.
finis de móveis esculpidos. O tapete sob meus pés mostrava teias de aranha
estilizadas e flores morrendo na videira. Os belos pequenos objetos que
decoravam o meu quarto não eram encantadoras pastoras de porcelana; Eram
ninfas de rosto demoníaco com um bando de elfos corcundas. Os ladrões de
seus pastores foram substituídos pelas foices dos ceifeiros, seus vestidos
rasgados e devastados, revelando seios, quadris e coxas. Em vez de belezas
bonitas, seus lábios estavam torcidos em sorrisos de sátiros. Eu estremeci.
A paisagem de inverno acima do meu manto era a única peça de arte em
meu quarto que não se revelava cheia de feiura oculta. Mostrava uma floresta
envolta em névoa, desconcertantemente familiar. A névoa parecia se mover e
se contorcer nos cantos da minha visão. Eu olhei mais de perto. Com um
sobressalto, percebi que era uma pintura do Bosque dos Elfos. A pintura foi tão
habilmente renderizada que suas pinceladas eram praticamente invisíveis,
mais como uma janela do que uma obra de arte. Meus dedos chegaram a tocá-
la.
Risos irromperam atrás de mim.
Eu me virei. Sentada na minha cama havia duas meninas elfo. Elas me
encaravam, rindo atrás de suas mãos. Com uma torção do estômago, notei que
elas tinham muitas articulações em seus longos dedos. Sua pele tinha o tom
marrom-esverdeado de uma árvore de primavera apenas despertando de seu
sono invernal, e seus olhos não tinham brancos nas pupilas.
—Não, não, não deve tocar. — Uma delas balançou um dedo
inquietantemente longo para mim. —Sua Majestade não ficaria satisfeito.
Eu deixei cair a minha mão para o meu lado. —Sua Majestade? O rei dos
elfos?
—Rei dos Elfos. — A outra garota elfo zombou. Ela era do tamanho de
uma criança, mas proporcionada como um adulto, um pouco encorpada, com
cabelo branco brilhante como uma nuvem de cardo sobre a cabeça. —Rei dos
elfos, feh. Ele não é meu rei.
—Calada, Thistle —, a primeira elfo repreendeu. Ela era mais alta e mais
magra do que sua contraparte, construída como uma bétula delgada. Seus
cabelos eram ramos feridos com teias de aranha. —Você não deve dizer coisas
assim.
—Eu direi o que eu quero, Twig. — Thistle cruzou os braços com uma
expressão de amotinação no rosto.
Thistle e Twig continuaram como se eu não fosse nada mais que outro
acessório no túmulo. Mesmo entre os elfos, eu desaparecia nas sombras. Eu
limpei minha garganta.
—O que vocês estão fazendo aqui? — Minha voz rachou através de sua
conversa como um chicote. —Quem são vocês?
—Nós somos suas assistentes —, disse a chamada Thistle. Ela sorriu, seu
sorriso em fila e fileira de dentes irregulares. —Enviadas para prepará-la para
a festa hoje à noite.
—Festa? — Eu não gostei do jeito que ela disse se preparar, como se eu
fosse uma matança para a festa, um assado para ser amarrado. —Que festa?
—O Baile dos Elfos, é claro —, disse a chamada Twig. —Nós hospedamos
todas as noites durante os dias de inverno, e esta noite promete ser especial.
Hoje à noite, Der Erlkönig apresenta sua noiva ao Submundo.
Käthe.
—Devo falar com Der Erlkönig —, eu disse. —Imediatamente.
Twig e Thistle riram, galhos esfregando uns contra os outros em uma
tempestade repentina. —E então você deve, donzela. Então você deve. Tudo
em bom tempo. Você é sua convidada de honra no baile esta noite, e você se
encontrará com ele então.
—Não. — Tentei impor minha vontade sobre elas; Eu era maior, afinal,
embora não muito. —Eu preciso falar com ele agora.
—Todos vocês mortais são tão impacientes —, disse Thistle. —Eu
suponho que é o que vem com a sensação da mão da morte em seu pescoço em
todos os momentos.
—Leve-me para ele —, eu exigi. —Agora mesmo.
Mas tanto Twig quanto Thistle eram implacáveis, ignorando minhas
palavras e circulando-me com olhos curiosos. Eu queria me afastar de seu
escrutínio, de seus olhos julgadores, da sensação de que elas estavam me
medindo contra alguma marca invisível.
—Não há muito com o que trabalhar. — Observou Thistle.
—Hmmm —, Twig concordou. —Não sabemos o que poderíamos fazer
para melhorar sua aparência.
Eu me arrepiei. Por mais simples que eu fosse, pelo menos eu não era
grotesca, não como essas garotas elfo.
—Vou me dirigir a ele como sou, obrigada —, eu disse bruscamente. —
Minha aparência não precisa melhorar.
Elas me deram um olhar de pena misturado com desprezo. —Não é sua
escolha, mortal —, disse Thistle. —Agrada ao nosso estimado soberano que
você tenha vestido adequadamente esta noite.
—Isso não pode esperar?
Twig e Thistle trocaram olhares, depois riram, outra explosão de galhos
numa tempestade.
—Há rituais e há tradições —, disse Twig. —O Baile dos Elfos é uma
tradição. Há um tempo e um lugar para benefícios e audiências, e o Baile dos
Elfos não é o momento ou lugar apropriado para nenhuma das duas coisas.
Você é a convidada de honra de Der Erlkönig; esta noite é para você. Divirta-
se. Todas as outras noites pertencem a ele. E para nós.
Um arrepio de pressentimento subiu pela minha espinha. —Tudo bem
—, eu disse. —O que vocês precisam que eu faça?
Apesar da minha relutância, uma parte de mim formigava de
antecipação. Uma Baile, um belo vestido. Eu sonhava com essas coisas uma
vez. Eu sonhara em dançar com Der Erlkönig, uma rainha do rei.
Twig e Thistle me deram sorrisos idênticos. Seus dentes eram
pontiagudos e irregulares. —Oh, você verá, donzela. Você verá.

Os músicos elfo iniciaram um minueto quando entrei.


Thistle e Twig me empurraram, cutucaram, puxaram e me persuadiram
a elaborar uma construção de um vestido. Estava um pouco fora da moda atual
do mundo, algo que uma bela dama poderia ter usado cinquenta ou sessenta
anos atrás. O vestido era de um damasco castanho-avermelhado e de bronze,
forrado com um verniz de seda regada com creme e violeta. Era enfeitado com
rosetas habilmente moldadas como amentilhos de amieiro. Por menor que eu
fosse, a cintura do vestido era ainda mais pequena, apertava minhas costelas
inferiores com tanta dor que eu não conseguia respirar fundo. Ainda mais
impressionante era o decote que o corpete foi capaz de me dar. Apesar dos
metros de tecido, ainda me sentia nua.
Meu rosto também estava nu; Eu havia recusado o pó e o rouge que Twig
e Thistle haviam oferecido. Eu não achava que apertar minhas bochechas por
cores era necessário - com o calor, a natureza constritiva do meu vestido, e a
excitação acelerando minha respiração, eu estava corada.
O salão principal era cavernoso - era uma caverna. Uma grande, formada
de pedra, ao contrário do túmulo de terra que era o meu quarto. Pingentes de
pedra escorriam do teto, incrustados com lascas brilhantes. O mesmo crescia
do chão, em cima do qual estavam colocadas mesas e tábuas carregadas de
comida. Centrais foram criadas a partir dos chifres de veados e teias de aranha
e pedras preciosas, e nascentes borbulhantes erguiam-se como fontes em
intervalos, emitindo um leve cheiro mineral sulfúrico.
Uma miríade de Fadas de Luz brilhava contra a escuridão do teto da
caverna, tão fora de alcance que eu quase podia acreditar que estava olhando
para o céu noturno. Galhos nus e folhas secas ainda vibrantes com o brilho do
outono estavam pendurados como lustres no meio das nossas cabeças. Pedaços
de seda e brocado caíam pelas paredes, além de tapeçarias que mostravam
cenas de elfos vorazes e donzelas virginais. Ouro, prata e joias estavam
espalhados como confetes, captando a luz da chama da vela, das Fadas de Luz
e das tochas bruxuleantes, cintilando como neve recém caída. Pedaços de vidro
prateado e espelhos estavam embutidos no chão de pedra e nas paredes da
caverna, refletindo imagens fraturadas: uma lasca de um rosto, membros
quebrados, um milhão de olhos piscando.
Tudo era opulento, sumptuoso e excessivo. Passei despercebida entre os
festeiros, cada um equipado com uma máscara em forma de rosto humano.
Havia algo triste e melancólico sobre esse macabro encontro de elfos,
representando como se fossem seres humanos no mundo acima. Cada máscara
foi modelada a partir do mesmo rosto - os homens incrivelmente bonitos, as
mulheres incrivelmente bonitas. Todos os homens pareciam com Hans; todas
as mulheres pareciam Käthe, seus rostos congelados em sorrisos agradáveis e
gentis.
Os músicos elfos começaram outro minueto, suas mãos torcidas
segurando o oboé, o pífano, o violoncelo e o violino sem jeito. O minueto,
embora adequadamente executado, parecia duro e roto. Nenhum dos
participantes dançava, a música muito sem graça para ser muita inspiração.
Estava tudo errado. A música da mente racional e humana, com suas
regras e estrutura, estava toda errada nas mãos dos elfos. Era sem vida, sem
alegria, constrangida. Não respirava, não voava nem vivia. Se ao menos eu
pudesse pegar suas pilhas de partituras, eu teria mudado o tempo, a chave ou
então acabaria com as notas e o papel por completo e deixaria a música fluir.
Minha pele arrepiou, meus dedos se contraíram. Eu ansiava por juntar-
me aos músicos, mas não conseguia afastar a hesitação da inadequação
dolorosa que se agarrava a mim. Eu não fui ouvida, não fui educada, não fui
publicada. Papai diria que eu estava me superando.
E ainda assim... papai não estava aqui. Mestre Antonius não estava aqui.
Nem mesmo Josef estava aqui. Ninguém me julgaria se eu caminhasse até a
primeira cadeira, pegasse seu violino e começasse a tocar.
Como se sentisse minha intenção, o violinista levantou a cabeça e olhou
para mim. Os músicos elfos não eram mascarados; seus rostos estranhos e
enlouquecidos ficaram feios pela concentração.
—O que, donzela? — O violinista disse. —Acha que você poderia fazer
melhor do que eu?
—Sim. — A certeza da minha resposta me surpreendeu.
Minha resposta certamente surpreendeu os músicos, que imediatamente
pararam de tocar. Puxei o arco e o violino das primeiras mãos da cadeira e
enfiei o instrumento sob o queixo. Os outros ficaram boquiabertos para mim,
mas eu os ignorei. Em vez disso, toquei meu arco nas cordas e comecei um
simples ar campestre.
Um Ländler, imediatamente reconhecível para todos reunidos no salão
de baile dos elfos. Os músicos pegaram a batida e os dançarinos levantaram os
pés. Uma vez que estávamos confortáveis na música, comecei a bordar e
expandir a peça, adicionando uma linha harmônica à melodia. Este era um jogo
que Josef e eu jogávamos quando éramos crianças: pegando músicas que
conhecíamos e adicionando harmonias. As harmonias eram geralmente
simples terços, mas às vezes eram quintas perfeitas. Foi assim que meu
irmãozinho começou a me ensinar os rudimentos da teoria.
Os músicos me olhavam assim que terminamos os Ländler. Como se
esperassem que eu liderasse. Como se eu fosse o Konzertmeister. Eu engoli em
seco. Eu tinha escondido por tanto tempo na sombra do meu irmão que a luz
de sua consideração era quase demais para suportar. Então eu trouxe meu arco
para as cordas e peguei outra música da minha infância, desta vez um simples
cânone. Comecei, então acenei para o flautista, o oboísta e o violoncelista
enquanto tocávamos a melodia como uma rodada. Os músicos elfos ficaram
encantados com a teia de sons, seus rostos esnobes e enlouquecidos ficaram
feios de alegria.
À medida que nos acostumamos, os músicos e eu começamos a
improvisar, pegando os sons e virando-os do avesso, de cabeça para baixo. Um
jogo. Música era só um jogo. De alguma forma, eu tinha esquecido.
Uma semente começou a se desdobrar profundamente dentro de mim.
Há muito tempo, eu havia plantado minha música nos lugares escuros da
minha alma, longe da luz. Havia Josef, o jardineiro do meu coração, mas nem
mesmo seu encorajamento gentil fora suficiente para levar aquela pequena
semente à vida. Eu não podia deixar crescer. Não no mundo em que vivia. Não
no mundo acima. Aquele mundo precisava de Liesl, filha obediente e irmã
protetora. Permitir que essa flor de sementes encorajasse uma erva daninha a
crescer, sufocando as outras vidas que precisavam de meus cuidados.
Mas agora eu estava livre. A música dentro cresceu em uma erva
daninha, uma flor silvestre, um prado, uma floresta. Eu abro minhas raízes,
sentindo a pressa em meus membros. Minha respiração estava irregular,
minha reverência lânguida.
Uma risada brilhante quebrou minha concentração. Meu arco gaguejou
e tropeçou na corda. Imediatamente todos pararam, cabeças virando uma a
uma em direção à entrada do salão de baile. Ali, no alto da grande escadaria
que parecia esculpida e cultivada ao mesmo tempo, estava o Rei dos Elfos.
Com minha irmã Käthe em seu braço.
Olhos abertos

—Liesl!
Minha irmã me encontrou imediatamente. Se estivéssemos no mundo
acima, eu teria ficado maravilhada com a rapidez com que ela me descobriu
neste mar de rostos. Mas no subsolo, eu entendia. Eu era mortal, e ela também,
e aqui entre os elfos, nossas vidas pulsavam com intensidade. Eu senti Käthe
antes de vê-la.
Mas mesmo sem a batida reveladora de nossos corações que nos
marcavam como humanas, eu teria sentido a presença de minha irmã. Sua
beleza era polida como uma gema, cada faceta de sua aparência cintilante
aumentada pelo vestido que ela usava e a aura de encanto sobre ela. Ao
contrário do resto dos presentes, vestidos em tons de terra e tons de joias,
minha irmã usava tons pastéis de verão. Ela usava um vestido azul-celeste que
brilhava com ouro, onde a luz a atingia, e seus próprios cachos de sol estavam
empilhados no alto de sua cabeça, vestidos com rosas cor de rosa pálido e
outras flores da primavera. Seu rosto estava em pó e vermelho, e ela parecia
uma pintura, um retrato, uma boneca de porcelana.
Käthe tinha entrado no braço do Rei dos Elfos, mas ela caiu ao me ver.
Ela desceu os degraus, abrindo caminho entre o mar de idênticos rostos Käthe,
estendendo os braços para me abraçar. Na mão dela, ela carregava uma
máscara moldada na forma do rosto de um elfo.
—Liesl, minha querida! — Minha irmã colocou os braços em volta da
minha cintura.
—Käthe! — Eu a abracei com força, sentindo o baque de seu coração
contra o meu.
—Eu estava com tanto medo que você não viria. — Disse ela.
—Eu sei, me desculpe. — Lágrimas coagularam minha garganta. —Eu
sinto muito por ter demorado tanto. Mas estou aqui agora, minha querida,
nunca tenha medo.
—Maravilhoso! — Käthe exclamou, batendo palmas de prazer. —Agora
devemos dançar.
—O que? — Eu recuei para dar a ela um olhar apropriado. —Não, não.
Nós devemos sair. Nós devemos ir para casa.
Ela franziu o rosto em um beicinho infantil. —Não seja uma estraga
prazeres, Liesl.
Por baixo da maquiagem, a pele de Käthe estava pálida. Nenhuma
quantidade de pó poderia disfarçar as cavidades machucadas sob seus olhos,
nenhuma quantidade de rouge distrairia a falta de sangue de seus lábios.
Apenas seus olhos estavam brilhantes: o brilho da febre. Ou encanto.
Eu acreditava que tinha abandonado a minha irmã aos miseráveis dos
elfos. Eu a havia imaginado em tormento ou agonia, clamando pelo mundo
acima. Eu pensava que iria encontrá-la, e correríamos de volta para casa, de
volta para a estalagem, de volta à segurança.
Meu olhar encontrou o Rei dos Elfos sobre a cabeça da minha irmã. Ele
estava inclinado contra a entrada, os braços cruzados, o sorriso zombeteiro.
Mesmo de onde eu estava, via as pontas de seus dentes pontiagudos brilhando
nas Fadas de Luz.
Você achou que eu faria isso tão fácil? Seu sorriso parecia dizer.
Eu ganhei a segunda rodada. Eu fiz meu caminho para o Submundo. Esta
era a terceira e última rodada do nosso jogo: levar Käthe de volta ao mundo
acima.
Bem, pensei. Eu arrastaria minha irmã de volta à vida, mesmo que tivesse que
arrastá-la pelos cabelos. O Rei dos Elfos tinha seus truques, mas eu tinha minha
teimosia. Nós veríamos quem prevaleceria no final.
—Tudo bem, então —, eu disse a Käthe. —Vamos dançar.
Na sugestão, os músicos elfos tocaram uma música. O violinista
devolveu o instrumento com uma expressão amarga. Os músicos tocaram
outro ar antigo da minha infância, um Zweifacher acelerado. Até Käthe se
mexeu quando ouviu e eu sorri para ela.
—Assim como quando éramos pequenas —, eu disse. —Venha!
Käthe encaixou a máscara de elfo no rosto e nós juntamos nossos braços.
Um-dois-três, um-dois-três, um-dois, um-dois, nossos corpos seguiram as
voltas e pivôs na música. Os outros presentes pegaram o Zweifacher, e logo
toda a caverna estava cheia de dançarinos girando e girando.
Minha irmã e eu rimos quando tropeçamos nos pés uma da outra e
colidimos em outros pares dançantes, sem fôlego e tontas. Ao nos virarmos
para a pista de dança, tentei o melhor que consegui para manobrar Käthe em
direção à saída. Meus olhos continuaram correndo para onde o Rei dos Elfos
estava parado. Só ele não se juntou à multidão, à parte e intocável.
—Você se lembra — falei, respirando com dificuldade. — Quando você,
eu, Sepperl e Hans costumávamos dançar o Zweifacher enquanto papai tocava
seu violino?
—Hmmm? — Käthe parecia distraída, seus olhos vagando para as mesas
cheias de comida. —O que você disse?
—Eu disse, você se lembra quando você, eu, Hans e Sepperl dançávamos
com isso quando éramos jovens?
—Quem é Hans?
Uma risada ficou na minha garganta. —Hans bonito, você costumava
falar dele —, eu disse. —Seu prometido.
—Eu, prometida? — Käthe deu uma risadinha. —Por que eu faria uma
coisa dessas? — Ela olhou para um elfo alto e magro e deu-lhe uma piscadela
coquete.
Alfinetes frios de culpa me picaram. Por que ela faria uma coisa dessas?
—Sim, prometida. — Eu disse.
Ela levantou a sobrancelha. —E quem é Sepperl? — Outro elfo homem
pegou a mão dela e deu um beijo rápido enquanto passávamos.
—Käthe. — O desespero diminuiu meus membros, pesando-os. —
Sepperl é seu irmão. Nosso irmão mais novo.
—Oh. — Disse Käthe com indiferença. Ela soprou um beijo para outro
homem elfo.
Käthe! Parei de dançar e minha irmã tropeçou. Outro pretendende elfo
estava lá para pegá-la antes que ela caísse.
—O quê? — Ela perguntou irritada. Um servidor elfo nos ofereceu um
prato de aperitivos. Käthe sorriu para ele e pegou algumas uvas. Para meu
horror, as “uvas” no prato estavam olhando para os olhos, os besouros de
bombons de chocolate e os deliciosos pêssegos sangrentos que tinham sido a
ruína de minha irmã estavam podres, sua carne rachada parecendo tripas
derramadas nas mãos do elfo.
—Käthe. — Eu agarrei seu pulso, e ela deixou cair a comida em sua mão.
Seus olhos azuis por trás da máscara de elfo foram surpreendidos, e por trás
do feitiço de febre, tive um vislumbre da minha irmã, minha verdadeira irmã.
—Acorde. Acorde desse sonho e volte para mim.
Seu olhar vacilou, e por um momento, carne e vida voltaram ao seu rosto.
Mas seus olhos se tornaram vítreos mais uma vez e sua cor sumiu.
—Oh, sai disso, Liesl —, disse ela alegremente. —Vamos nos divertir. Há
homens para dançar e homens para flertar!
Com isso, um dos pretendentes elfos pairando sobre o ombro dela a
levou embora.
—Käthe! — Eu gritei, mas uma pressão de corpos de repente invadiu na
minha frente. Eu estendi a mão para a minha irmã, mas sempre havia outra
pessoa, outro elfo no meu caminho. Eu empurrei a multidão dançando,
seguindo o lampejo de céu azul através dos foliões. Mas a cada vez que eu
pensava que me aproximava, era outra mulher, outra senhora usando o rosto
de Käthe, aquelas máscaras humanistas macabro realistas nas luzes
bruxuleantes do Baile.
No tumulto de corpos aquecidos, um mar de rostos idênticos olhou de
volta para mim. Mas eles não mais se pareciam com Hans ou Käthe; eles
pareciam o Rei dos Elfos. E eu. Meu rosto refletido de volta para mim, um
milhão de pequenos espelhos. Seu rosto, muitos de seus rostos, rindo e
zombando de mim. Seu rosto, mais humano que os outros, afiado, lânguido e
cruel. Uma beleza que corta como uma lâmina. Uma dúzia de lâminas me
cortou no coração.
—Por que você não está participando da minha generosidade, Elisabeth?
Um hálito frio no meu pescoço. Cheirava levemente ao vento antes de
uma tempestade de neve.
—Há um banquete diante de você, mas você não toca em nada. — O Rei
dos Elfos apareceu. Na luz das fadas inconstante e mercurial, ele era ainda mais
bonito do que era no mundo acima, e ainda mais assustador. —Por quê?
—Eu não estou com fome. — Eu menti. Eu estava faminta. Eu estava
faminta por comida, por música, por gula.
—A comida não te tenta?
Pensei nos “bombons” na mesa. —Não, mein Herr.
—Uma pena. — Seu sorriso era um grunhido. —Bem, eu prometi que
seus olhos permaneceriam abertos, mas meus presentes têm consequências,
minha querida.
—Que consequências?
O Rei dos Elfos encolheu os ombros. —O encanto dos elfos não tem efeito
em você. Você vê as coisas como elas são.
—Como isso é uma consequência?
—Depende de quem você pergunta. — Ele passou a língua levemente
sobre os dentes pontiagudos. —Sua irmã —, ele disse, apontando para Käthe
no meio da multidão. —preferiria encantos à dura feiura da realidade, eu acho.
Minha irmã dançava com não um, mas vários dos homens altos elfos.
Eles a giravam de homem para homem, apertando seus lábios para o interior
de seus pulsos, por seus braços, ao longo de sua clavícula, até sua garganta. Ela
riu e tentou beijar um deles na boca, mas ele virou o rosto.
—Não todos nós? — Pensei nos incontáveis dias passados no meu
klavier, antes de voltar a meus sentidos, antes de vir para o Submundo. —Às
vezes é mais fácil fingir.
—É —, disse o Rei dos Elfos em voz baixa. Suas palavras vibraram por
toda a minha espinha. —Mas não estamos velhos demais para nossos jogos de
faz de conta, Elisabeth?
Havia uma nota melancólica em suas palavras que desmentia sua fria
ordem de compostura. Assustada, me virei para encarar o Rei dos Elfos. Seus
olhos incompatíveis pareciam vulneráveis. Falível. Quase humano. Aqueles
olhos notáveis examinaram os meus e, no espaço de um fôlego, reconheci o
rapaz por quem tocara minha música no Bosque dos Elfos.
Uma risada musical brilhante. Eu me virei para ver a dança de Käthe e
cair nos braços de um dançarino. Ela jogou a cabeça para trás, expondo o
pescoço e o peito aos beijos dele. Eu queria correr para a defesa da minha irmã,
mas congelei ao toque de uma mão no meu ombro.
—Espere. — As pontas dos dedos roçaram a pele do meu pescoço. —
Fique.
—Mas Käthe-
—Sua irmã não sofrerá nenhum dano, eu prometo.
Eu me segurei ainda, não querendo encarar seus olhos novamente. —
Como posso confiar em você para manter sua palavra? — Minha voz não soava
como a minha, rouca e sombria. —Você não é o Senhor do Mal?
—Você me feriu, Elisabeth —, disse ele. —Eu pensei que éramos amigos.
—Você se tornou meu inimigo no momento em que roubou minha irmã.
Demorou muito até que o Rei dos Elfos respondesse.
—Esta noite é para indulgência sem consequência. Esta noite você é
minha convidada, Elisabeth, e sua irmã não sofrerá nenhum dano. Amanhã...
— Disse ele, arqueado e astuto mais uma vez. — Podemos voltar a ser inimigos.
O som da risada da minha irmã voltou para mim, ecoando no salão de
festas cavernoso. —Sua palavra, mein Herr.
—Eu disse que sua irmã não sofrerá nenhum dano —, disse ele. —Não
me pressione mais do que isso. Agora, —ele disse, me virando para encará-lo.
—Vamos dançar, Elisabeth.
Os músicos tocaram outra música, uma que eu não reconheci. O ritmo
era lento e em tom menor, sedutor e sinistro. O Rei dos Elfos me puxou para o
seu abraço.
Ele pressionou a mão na parte inferior das costas, empurrando nossos
quadris juntos. Nossas mãos encontraram palma com palma, dedos
entrelaçados. Ele não estava mascarado e nem eu. Nossos olhos se
encontraram. Apesar da proximidade de nossos corpos, foi o toque de nossos
olhos que me fez corar.
—Mein Herr —, eu hesitei. —Eu não acho...
—Você pensa demais, Elisabeth —, disse ele. —Muito sobre propriedade,
muito sobre dever, muito sobre tudo menos música. Por uma vez, não pense.
— O rei dos elfos sorriu. Era um sorriso perverso, que me fez sentir insegura e
excitada ao mesmo tempo. —Não pense. Sinta.
Nós varremos o chão do salão de baile, nossos pés mantendo o ritmo um
do outro, mesmo quando meu coração mantinha um ritmo frenético. Eu
vacilava sempre que nossas pernas se enredavam nas dobras do meu vestido,
sempre que um passo fazia seu peito roçar no meu, sempre que mais dele me
tocava do que o necessário.
—Respire, Elisabeth. — Ele disse suavemente.
Mas eu não podia. Não eram as estadias que prendiam meus pulmões
em um aperto de ferro; era o Rei dos Elfos. Sua proximidade, sua proximidade
insuportável. Eu queria que Hans me conhecesse intimamente, mas eu estava
familiarizada com ele. Eu podia imaginar seu corpo sob minhas mãos - sólido,
reconfortante, confiável, previsível, assim como o resto dele. Mas eu não
conhecia o Rei dos Elfos, não como homem, não como alguém com carne, mãos
e quadris. Minha alma se emocionou com reconhecimento ao ver seu rosto,
mas a realidade dele me assustou. Ele era um velho amigo no mito e na lenda;
ele era um estranho na respiração e no corpo.
O Rei dos Elfos sentiu meu desconforto. Depois que a dança acabou, ele
deu um passo para trás e me deu uma reverência cortesa, beijando as costas da
minha mão.
—Eu te agradeço por esta dança, minha querida. — Disse ele
formalmente.
Eu balancei a cabeça, insegura da minha voz. Eu tentei puxar minha mão
para fora de seu aperto, mas ele segurou em todos os mais apertados.
—Mas ainda não terminamos. — Ele se inclinou, os lábios se movendo
contra a curva da minha orelha. —O jogo recomeça amanhã.
Com isso, ele me soltou e se derreteu na multidão. Eu fiquei tonta,
querendo segui-lo, querendo me arrastar de volta para o meu quarto e me
esconder. Cada rosto no salão pertencia a ele; Eu encontrei um eco de suas
bochechas, seu queixo, suas sobrancelhas arqueadas nas máscaras dos
participantes.
—Vinho, Fräulein? — Um servo elfo se materializou ao meu lado,
segurando uma bandeja com várias taças. Eu hesitei. Anos vendo papai lutar
com a bebida me deixaram com medo de intoxicação. E, no entanto, o fardo de
ser Liesl, irmã mais velha responsável e filha mais velha, usava em mim. Eu
me perguntei como era o esquecimento.
Uma irmã mais velha responsável. Examinei o salão procurando por
Käthe. Eu a encontrei imediatamente; ela era como uma chama na escuridão
com seus cabelos dourados, seu brilhante vestido de cor pastel. Ela sentou-se
em cima de um enorme trono esculpido na cabeceira do salão de baile, cercada
por um grupo de pretendentes bajuladores. Eles a alimentavam com “uvas” e
“bombons” enquanto ela tomava goles de vinho de uma taça cheia de cristais.
Seu vestido lindo estava em desordem, o cabelo solto de seu elaborado topete.
Ela chutou um deles, rindo e mostrando um pouco da perna. Um dos seus
pretendentes pegou seu pé, e depois passou a mão ao longo de seu delicado
tornozelo, subindo lentamente a perna até a panturrilha, depois ao longo de
sua coxa nua...
—Mestra? — O criado elfo não se moveu. Eu roubei outro olhar para
Käthe, em seguida, olhei para as taças na bandeja. Eu desejei por devassidão,
não? Eu toquei a ponta de uma taça de vinho. Eu queria ser como Käthe, para
desligar minha mente racional apenas por um minuto, uma hora, um dia.
Você pensa demais.
Eu levantei uma taça de vinho da bandeja.
Sua irmã não sofrerá nenhum dano.
—Ooh-ooh! — Käthe disse em uma voz escandalizada.
Eu trouxe a taça aos meus lábios. O vinho era vermelho escuro, mais
escuro que os rubis, mais escuro que o sangue, o vermelho-escuro das amoras.
E o pecado.
Não pense. Sinta.
Eu bebi.

O gosto era inebriante na minha língua. O mundo é brilhante, os sons são


claros e tudo é lindo. Toques, toques em todos os lugares. Uma mão na minha
cintura. Dedos no meu cabelo. Lábios vermelho-vinho que têm gosto de
tentação. Eles deixam manchas no meu pescoço, onde minha pele encontra
minhas roupas, o aumento dos meus seios e o vale entre eles. Uma mão
delicada roça meus tornozelos, uma brisa crescente. Minha saia acima dos
meus joelhos, jogos de blefe. Sim, não. Sim. Não, sim. Dedos andam até o
interior da minha coxa. Não.
A cara dele. Eu envolvo meus braços ao redor dele, mas não é o Rei dos
Elfos, apenas outro usando uma máscara. Eu deixo ele provar minha pele, mas
estou olhando. Eu ainda estou procurando.
Eu giro ao redor do salão, passei de braço em braço, parceiro para
parceiro. Com cada desvio eu olho, eu procuro, eu anseio. Minhas
permanências estão soltas, meus sapatos estão perdidos. Eu não estou
pensando agora. A liberdade é mais forte do que o vinho.
Elisabeth.
Uma respiração na parte de trás do meu pescoço. Estou tonta, eu balanço,
mas estou de pé. Um suspiro e depois um beijo. Eu não posso ver, mas sei que
é ele. O Rei dos Elfos.
Eu me inclino para ele, mas ele me segura na posição vertical. Ele
murmura meu nome no meu pescoço, na minha espinha, seus dedos longos e
elegantes viajando ao longo das curvas dos meus quadris, minha cintura.
Elisabeth.
Não sei como chamá-lo, mas grito seu nome.
Meus dedos alcançam, mas ele se foi.
Os jogos que jogamos

Eu abri meus olhos.


E imediatamente me arrependi.
O quarto se inclinou e girou, a cama balançando para frente e para trás
como um barco no mar. Eu fechei meus olhos e gemi. Eu estava morrendo. Ou
pior.
Atualmente, meu juízo começou a retornar. Eu não estava morrendo; Eu
estava apenas sofrendo os efeitos nocivos do meu lapso no julgamento. Eu
tentei lembrar os eventos da noite anterior - dia? - mas nada retornava.
Memórias obscuras, a sensação lembrada de pele nua contra a pele.
Pele nua. Sentei-me, apertando a cabeça enquanto a dor percorria minhas
têmporas. Para meu horror, eu estava nua sob meus lençóis. Onde eu estava?
A cama era minha cama, o quarto era o meu quarto. O retrato do Bosque
dos Elfos estava pendurado sobre a lareira, a mesma mesa e cadeira de Louis
XXV, as mesmas coisas grotescas. Eu fiz um balanço de mim mesma, passando
a mão trêmula sobre o meu corpo. Além da dor de cabeça, eu estava ilesa.
Intacta. Impossível. Eu não sabia se ficaria aliviada ou desapontada.
Meu lindo vestido de baile estava amarrotado no chão, descartado às
pressas com pouca consideração pela preservação. Havia rugas no tecido, e as
estadas foram rasgadas. Estava além do reparo.
Olhei para o meu antigo vestido e camisola, mas não havia outras roupas
no meu quarto. Apesar da náusea me perturbar, eu estava com muita sede e
fome. Eu empurrei minhas roupas de cama e me levantei.
—Os mortais parecem tão diferentes nus, não parecem?
Eu joguei minhas mãos para cima, tentando cobrir minha nudez o melhor
que pude. Eu não tinha visto Twig e Thistle entrarem no meu quarto; elas
sempre estiveram lá?
—Sim. Rosa. — Disse Twig, concordando com Thistle.
—Como vocês chegaram aqui? — Minha garganta estava rouca e seca, e
rangia como um oboé mal jogado.
Thistle e Twig encolheram os ombros em uníssono. Twig segurava um
jarro de barro e uma xícara, enquanto Thistle tinha um pedaço de pão. —Nós
pensamos que você pode precisar disso.
Elas colocam suas ofertas na mesa de Louis XXV. Twig me serviu uma
xícara de água. Eu olhei a xícara; depois do vinho dos elfos, eu estava
desconfiada de qualquer bebida que os elfos me oferecessem.
—Não é envenenado —, disse Thistle irritada, vendo minha hesitação. —
Sua Majestade nos disse para não, ah, mexer com a sua comida.
Eu não precisava mais insistir. Engoli a água: gelada, deliciosa e saborosa
de nascentes alpinas. Eu me servi mais algumas xícaras. Uma vez que meu
estômago foi resolvido, eu rasguei o pão.
Depois de comer e beber, me senti mais humana. Mais viva. Foi só então
que percebi que ainda estava nua.
—Olha, ela está ficando mais rosada! — Twig apontou meu rubor de
vergonha. Corri de volta para a minha cama e tirei um dos lençóis para
envolver-me.
—Parem de olhar para mim. — Eu rebati.
Twig e Thistle inclinaram a cabeça. Elas estavam vestidas com mais do
que panos e folhas costuradas. Suas roupas pareciam menos sobre modéstia e
mais sobre status - na verdade, os elfos que eu vira no baile tinham uma
aparência mais humana do que essas duas e vestiam roupas muito parecidas
com as nossas.
—O que vocês fizeram com minhas roupas?
Thistle deu de ombros novamente. —Queimamos elas.
—Queimaram elas!
—Ordens de Sua Majestade.
Eu estava furiosa. Ele não tinha o direito de dispor das minhas coisas
assim. Minhas roupas tinham sido meu último elo com o mundo acima.
Quanto mais eu permanecia no subsolo, mais eu me sentia como se estivesse
sendo esfolada e descascada viva, pequenos pedaços de Liesl humanos se
despindo.
—Leve-me para ele —, eu disse. —Eu quero uma audiência com o Rei
dos Elfos. Agora.
As garotas elfo trocaram olhares.
—É isso que você deseja? — Perguntou Twig.
—Sim —, eu disse com firmeza. —Eu desejo que você me leve antes do
Rei dos Elfos.
—Tudo bem. — Sorrisos pontudos idênticos se espalharam por seus
rostos. —Como você deseja, mortal —, disseram elas. —Como quiser.

Eu pisquei.
Eu estava em um quarto totalmente diferente, nua, mas pelo lençol que
me cobria. Este quarto era muito maior do que o meu, com seus tetos de terra
batida sustentados pelas grandes raízes de uma árvore que se estendia, como
os contrafortes de uma catedral. Uma câmara de audiência, pensei.
Apesar do espaço, a câmara era acolhedora: o mobiliário simples, as
decorações sobressalentes. Nenhuma tapeçaria, nenhuma estatuária; a única
coisa que dominava o quarto era a enorme cama no centro, feita de raízes e
pedras.
Então percebi que não estava na câmara de audiência do Rei dos Elfos.
Eu estava no quarto dele.
Thistle e Twig haviam me concedido meu desejo. Elas me levaram diante
do Rei dos Elfos no momento exato em que eu exigi. Eu desejei e agora eu
estava aqui.
Constanze sempre me disse para nunca brincar com os elfos. Nunca diga
que eu desejo, nunca lhes dê uma abertura.
Em pânico, eu corri para uma saída. Eu tinha que sair antes que ele
acordasse, antes que ele me visse.
Um gemido da cama me parou, um som desconcertantemente familiar.
Era o som do papai tentando passar pelo dia. O som da decepção da mãe nos
fracassos do marido. O som de Josef depois de um longo dia de prática. O som
de Käthe durante seus cursos mensais. O som da dor.
Eu deveria ter saído. Eu deveria ter corrido. Este era Der Erlkönig. Este
era o Senhor do Mal, o Governante Submundo. Esta era a criatura que raptou
minha irmã, que me fez sacrificar minha música para seus caprichos
caprichosos. Este era o estranho que me atraiu para o subsolo por causa de suas
apostas e jogos.
Mas pensei no jovem de olhos suaves com quem eu havia dançado no
baile, o homem que se chamara de meu amigo. Eu hesitei.
Bem, pensei. Hoje nós voltamos a ser inimigos.
Eu me aproximei da cama. Tudo o que era visível era um choque de
cabelo desalinhado e pálido, uma pilha de lençóis amarrotados e a curva de
um ombro nu. Eu coloquei as bordas do meu lençol de forma mais segura sobre
mim. Reunindo minha coragem, peguei as roupas de seda enroladas em volta
do Rei dos Elfos e as puxei.
A força do meu puxão arremessou-o para fora da cama. Acordou com
uma saraivada de maldições, a voz rouca pelo vinho e a falta de sono. O rei
dos elfos amaldiçoou o céu, o inferno, Deus e o diabo. Eu me diverti.
Uma cabeça desgrenhada espiou por cima da beira da cama, olhos
turvos, bochechas enrugadas pelo sono. Ele parecia surpreendentemente
jovem. Eu sempre tinha pensado em Der Erlkönig como eterno, nem jovem
nem velho, mas ao vê-lo assim - ele parecia próximo a mim em idade.
O Rei dos Elfos me lançou um olhar antes de perceber quem era em seus
aposentos, sozinha e sem roupa.
—Elisabeth! — Inacreditavelmente, sua voz falhou, como a de um
estudante.
Eu cruzei meus braços. —Bom dia, mein Herr.
Ele correu para as cobertas. Ele enrolou os lençóis nos quadris estreitos,
deixando o peito nu. O Rei dos Elfos era alto e magro, mas bem musculoso. Eu
já tinha visto outros homens de peito nu - bronzeados, de ombros largos, bem
trabalhados -, mas seus corpos seminus não me mexiam como os do Rei dos
Elfos. Havia uma graça em cada linha de seu corpo; a elegância não estava
apenas em seu ar, mas no modo como ele se movia. Mesmo quando ele estava
desajeitado. Mesmo quando ele estava inseguro.
—Eu-eu... — Ele estava agitado. Eu apreciei este pouco de poder sobre
ele, essa habilidade de perturbá-lo tanto quanto ele me perturbava.
—É tudo o que você tem a dizer para mim? — Eu perguntei, lutando para
manter uma cara séria. —Afinal de contas nós compartilhamos?
—O que nós compartilhamos? — Havia pânico definitivo em sua voz
agora. De repente, o jogo não era mais tão divertido; se de fato tivéssemos caído
em sua cama, ele estaria realmente tão horrorizado? Eu não era Käthe, com sua
caminhada convidativa e seu sorriso que prometia indulgência. Apesar da
minha simplicidade, achei que o Rei dos Elfos e eu havíamos compartilhado
uma faísca, mas talvez fosse apenas eu quem estava pronta para incendiar-me.
—Nada, nada. — Eu estava cansando desse jogo.
—Elisabeth. — Os seus olhos de lobo exigiram respostas. —O que eu fiz
pra você?
—Nada —, eu disse. —Você não fez nada. Eu acordei sozinha em minha
própria câmara.
—Onde estão suas roupas?
—Em uma pilha de cinzas, me disseram. Sob suas ordens, devo
acrescentar, mein Herr.
Ele correu uma mão envergonhada através de seus cabelos
emaranhados. —Ah. Sim. Vou mandar os alfaiates para você para tirar suas
medidas. É por isso que você está aqui?
Eu balancei a cabeça. —Eu pedi para ser trazida até você, e as servas que
você enviou para atender a mim são bastante literais. — Alívio rastejou sobre
seu rosto, lentamente escondendo o jovem vulnerável de vista. —Elas me
trouxeram aqui antes que eu pudesse piscar.
Durante o curso da nossa conversa, o Rei dos Elfos vestiu lentamente sua
armadura afetada, peça por peça. Primeiro o sorriso. A sobrancelha levantada.
O brilho nos olhos dele. Então a pose indiferente, como se não fosse nada para
ele ser encontrado nu em seu quarto por uma jovem igualmente nua em um
lençol. Como se ele não tivesse me mostrado mais nudez da alma do que o
breve vislumbre de suas coxas quando ele saiu da cama.
—Bem, então. — Até a voz dele havia retomado o tom seco habitual. —
Peço desculpas por ter me pegado com as calças abaixadas, minha querida. Em
vez disso, literalmente também. Eu não pensei em retomar nosso jogo tão
rapidamente.
—Você não vai me oferecer um assento? — Eu estava determinada a me
conduzir com toda a dignidade que eu poderia reunir, apesar do meu cabelo
despenteado pelo sono e da aparência desgrenhada.
O Rei dos Elfos inclinou a cabeça em um arco cortês e acenou com a mão.
A terra se dividiu sob meus pés, e as raízes de uma árvore jovem irromperam,
crescendo e se torcendo na forma de uma cadeira. Estilo Louis XXV. Então era
de onde os móveis do meu quarto tinham vindo.
Sentei-me, arrumando primorosamente o lençol sobre mim.
—A que devo essa honra, Elisabeth? — O jovem de olhos suaves tinha
desaparecido; ele usava o manto de Der Erlkönig, distante e perigoso. Eu senti
falta daquele jovem de olhos macios. Eu o queria de volta. Ele parecia real, não
como Der Erlkönig, toda ilusão e sombra.
—Onde está minha irmã?
Ele encolheu os ombros. —Adormecida, presumo.
—Você presume?
—Foi uma noite bastante estridente. — Seus lábios se curvaram. —Eu
imagino que Käthe está de volta em sua própria cama. Ou talvez de outra
pessoa. Eu não tenho muita certeza.
O pânico me agarrou. —Você jurou que ela não teria mal algum!
Ele me deu um olhar curioso. Antes, ele tinha apenas olhado para mim,
incapaz de encontrar o meu olhar, mas agora que ele estava de volta em sua
pele malandro, ele realmente parecia. Ele pegou nas minhas bochechas coradas
e cabelo caído, seus olhos traçando a curva do meu pescoço, onde encontrou
meu ombro. Calor subiu pela minha nuca.
—E assim jurei, minha querida. Eu jurei. Sua irmã está perfeitamente
segura. Ela está íntegra, intacta. — Ele colocou uma ligeira ênfase na palavra
intacta. — e saudável. Meus súditos estavam sob ordens para não tocá-la.
Não parecia assim na noite anterior. Lembrei-me de um bando de
bajuladores, beijos ilícitos e toques inadequados.
—Muito bem, então. — Eu não mostraria qualquer sinal de alívio,
qualquer enfraquecimento da minha dignidade. —Eu vou buscá-la e ir
embora.
—Oh ho ho.— O Rei dos Elfos conjurou uma cadeira e uma mesa e se
sentou para me encarar. —Nós não terminamos. Nós apenas jogamos a
segunda rodada.
—Que eu ganhei —, eu lembrei a ele. —Eu estou aqui em seu domínio
agora.
—Sim, você está —, ele disse suavemente. —Você está aqui finalmente.
— Havia uma borda convidativa para suas palavras, uma borda que
acariciava.
—Aqui finalmente —, eu concordei. —Logo vou embora. — Eu abro
minhas mãos na mesa entre nós. —E então a rodada final começa. Quais são as
regras?
O Rei dos Elfos também colocou as mãos sobre a mesa. Seus dedos eram
longos, esguios, lindamente articulados e - vi com alívio - com o número
adequado de articulações. Nossas mãos estavam onde poderíamos vê-las, um
velho gesto para provar que estávamos fazendo apostas honestas. Nossas
pontas dos dedos roçaram. O sussurro de uma lembrança me tocou.
—As regras são simples —, disse ele. —Você encontrou o seu caminho.
Agora encontre o seu caminho.
—Isso é tudo?
Ele sorriu, convencido e satisfeito. —Sim. Se você puder.
—Eu encontrei meu caminho no Submundo; Eu encontrarei meu
caminho de volta ao mundo acima —, eu disse. —'Porque andamos pela fé,
não pela vista'
O Rei dos Elfos levantou uma sobrancelha. —Você está confiante —, ele
perguntou, terminando o verso. —e disposta a se ausentar do corpo?
Eu fiquei assustada. Eu não esperava que um rei dos elfos reconhecesse
as palavras da Escritura.
—Estou disposta —, falei em voz baixa. —a fazer qualquer coisa que seja
exigida de mim.
Um sorriso lento se espalhou por seu rosto. —O que você vai jogar,
Elisabeth?
Eu não tive resposta. Eu lhe dera minha música; Eu dei a ele tudo de
mim. Eu não sabia o que mais me restava.
—Você primeiro —, eu disse em seu lugar. —O que você vai deitar na
mesa?
Ele me observou de perto. —Devemos chamar a contagem um do outro
então?
Engoli. —Se você quiser.
—Então o que você perguntaria de mim?
Ele estava colocando uma grande quantidade de energia aos meus pés.
Ele era Der Erlkönig, magia e mito e mistério. Eu poderia pedir a ele qualquer
coisa que eu desejasse. Eu poderia pedir riquezas. Eu poderia pedir fama. Eu
poderia pedir beleza.
—Minha música—, eu disse finalmente. —Eu não sou gananciosa, mein
Herr. Vou pedir apenas o que foi meu para começar.
Ele me estudou por um longo tempo, tanto tempo que achei que ele iria
me recusar. —Isso é justo. — Disse ele com um aceno de cabeça.
—E você? — Meu couro cabeludo formigou, e uma dor começou na base
da minha espinha, medo ou ansiedade, eu não sabia. —O que você perguntaria
de mim?
Seus olhos seguraram os meus. —Eu pediria o impossível.
Eu lutei para deixar o Rei dos Elfos segurar meu olhar enquanto o calor
manchava minhas bochechas. —Tenha em mente que eu não sou santa —, eu
disse. —e não posso fazer milagres.
Seus lábios se contraíram. —Então eu pediria sua amizade.
Assustada, tirei minhas mãos da mesa.
—Oh, Elisabeth —, disse ele. —Eu pediria que você se lembrasse de mim.
Não como somos agora, mas como éramos então.
Eu fiz uma careta. Lembrei-me das nossas danças no Bosque dos Elfo,
das simples apostas que fizemos quando era pequena. Eu lutei para encontrar
a verdade escondida dentro do meu passado, mas eu não tinha certeza de qual
era a memória e qual era fictícia.
—Você se lembra. — Ele se aproximou em seu assento. Havia algo como
esperança em sua voz, e eu não suportava.
O Rei dos Elfos levantou a mão. A mesa abaixo de nós desapareceu,
engolida pela terra mais uma vez.
Ele colocou um dedo contra a minha têmpora. —Em algum lugar dentro
dessa mente notável, você manteve essas memórias seguras. Muito seguras.
Escondidas.
O Rei dos Elfos era o amigo que eu havia imaginado - lembrava - quando
criança? Ou ele era verdadeiramente o Senhor da Malícia, obscurecendo as
linhas entre fantasia e realidade? Eu estava inquieta e com coceira em minha
mente.
Ele deixou o seu lugar e se ajoelhou diante de mim. Suas mãos
descansaram nos braços da minha cadeira, mas ele teve o cuidado de não me
tocar.
—Tudo o que eu peço, Elisabeth —, o Rei dos Elfos disse. —é que você
se lembre. — Suas palavras eram um baixo, suas notas ressoando em meus
ossos. —Por favor lembre-se.
Eu recuei da saudade em sua voz. —Eu não posso te dar aquilo que não
pode ser dado —, eu disse. —Eu poderia mais facilmente cortar a minha mão
para dar-lhe do que minhas memórias.
Nós nos encaramos. Então o Rei dos Elfos piscou e a tensão que
estremeceu entre nós estalou.
—Bem —, ele disse, puxando a vogal. —Então eu suponho que nós
teremos que nos virar.
Eu balancei a cabeça. —O que você queria de mim?
Seus olhos brilharam. —Sua mão em casamento.
A proposta bruta me atingiu mais do que um golpe. —O que?
O Rei dos Elfos cruzou os braços e recostou-se, a pose despreocupada,
um sorriso curvado para o lado. Ainda assim, seus olhos pareciam tristes.
—Você perguntou, eu respondi —, disse ele. —A resposta é você. O que
eu quero é você - inteira.
Eu engoli em seco. O ar do Submundo estava de repente quente, perto,
sufocante.
—O que de Käthe? — Eu sussurrei.
Por um momento, o Rei dos Elfos pareceu confuso, mas depois riu. —
Ah, bem —, disse ele. —Uma noiva é uma noiva. Você ou sua irmã, não
importa para as velhas leis. — Ele se inclinou para mais perto. —Mas se
qualquer um de nós tivesse a escolha, não seria preferível que fosse você,
Elisabeth?
Eu gostaria. Mas eu me joguei sobre esse pensamento antes que ele
estivesse completamente formado, colocando-o de volta nos compartimentos
do meu coração, fechando-o firmemente. —Uma má escolha que você me deu
—, eu disse. —Minha vida ou minha irmã.
Ele encolheu os ombros. —Todos os mortais morrem no final.
Sua insensibilidade era um lembrete arrepiante de que o Rei dos Elfos
não era meu amigo. Que apesar do homem de olhos suaves que eu desejava,
ele ainda era Der Erlkönig, implacável, indiferente, imortal.
Eu tive o suficiente. —Tudo bem —, eu disse. —As apostas estão
colocadas. Há mais alguma coisa que você precise de mim, mein Herr?
O Rei dos Elfos balançou a cabeça. —Não —, ele disse suavemente. —Só
saiba disso: você tem apenas os dias de inverno para fugir. A barreira entre os
mundos é fina, mas só até o ano começar de novo.
—O que vai acontecer se eu não fizer?
Seu rosto estava sombrio. —Então você estará presa aqui para sempre.
Meu poder é ótimo, Elisabeth, mas não posso mudar as leis antigas. Nem
mesmo para você.
Tomei sua advertência para a verdade. Eu balancei a cabeça e me
levantei.
O Rei dos Elfos inclinou a cabeça para mim. —Pfiat di Gott. Vá com Deus,
Elisabeth.
—Eu não tinha pensado que elfos acreditavam em Deus.
Uma pequena ruga apareceu entre as sobrancelhas. —Eles não —, disse
ele. —Mas eu sim.
A noiva

—Bem?
Eu pisquei. Eu estava de volta a minha câmara, levada para lá antes que
eu pudesse terminar o meu próximo pensamento. Twig e Thistle esperavam
por mim, empoleirados na minha cama.
—Bem, o que? — Eu perguntei.
Uma alegria profana pintou seus rostos. —Ele estava com raiva de você?
Minha mente ainda estava nos aposentos do Rei dos Elfos, mesmo
quando meu corpo estava em meu próprio quarto. Os humanos não deveriam
ser levados de um lado para o outro assim; minha compreensão do tempo e do
espaço era simples, linear, descomplicada.
Eu balancei a cabeça, mais para me recuperar do que para responder. —
Não.
As orelhas das minhas colegas elfos se levantaram com interesse, os
dedos nodosos alcançando minha pele. Eu recuei de seus toques inquisitivos.
—Não —, eu disse em uma voz mais firme. Twig e Thistle se
aproximaram, os dentes afiados cintilando sob as luzes das fadas. —Ele não
estava com raiva de mim.
Suas orelhas caíram com desapontamento. —Ele não estava?
Eu me importava que essas garotas elfo não eram minhas amigas; elas,
como o Rei dos Elfos, eram meus inimigos nesse jogo cansativo.
—Ele não estava —, repeti. —E eu não aprecio seus pequenos truques,
colocando-me nessa posição.
—Tão calma —, comentou Twig, passando uma garra preta brilhante nas
costas da minha mão. Eu puxei minha mão para longe, envolvendo o lençol
mais apertado sobre o meu corpo. —Tão calma apesar da paixão que brilha sob
essa pele frágil e mortal.
—Mmm, — Thistle concordou, seu longo nariz desconcertantemente
perto da curva do meu pescoço, onde meu pulso tremulava irregularmente. —
Eu gosto desta melhor que a outra. Esta poderia nos sustentar por muito
tempo.
A outra. Eles quiseram dizer Käthe? Eu precisava encontrá-la e logo.
—Chega. — Eu empurrei Twig e Thistle para longe. Ambas recuaram
com um grunhido, desapontadas com a minha compostura. Havia algo
desconcertante sobre a sua... ansiedade por mim. Parecia desejo, mas parecia
fome. Eu estremeci, ainda sentindo seus dedos fantasmagóricos rastejando
sobre a minha pele. —Encontrem-me algo para comer, algo para vestir e levem-
me para a minha irmã.
Minhas atendentes trocaram olhares, seus olhos negros em branco.
—Eu gostaria que vocês me encontrassem algo para vestir e eu gostaria
que vocês me encontrassem algo para comer.
Uma expressão azeda cruzou os dois rostos; Eu havia dito as palavras
mágicas. Eu me permiti um sorriso triunfante enquanto as garotas elfos se
desvaneciam, deixando apenas folhas espalhadas para trás.
Depois que saíram, estudei cada centímetro do meu quarto, mas meu
quarto permanecia teimoso e sem portas. Como os elfos viajavam? Eles
simplesmente desejavam a si mesmos e para lá? Eu ri.
Se apenas nossos desejos tivessem poder de fato.
Em poucos instantes minhas atendentes voltaram, Thistle carregando
um vestido, Twig carregando um bolo e um pouco de vinho. O vestido era uma
confecção berrante, mais adequada a um salão público do que à praticidade do
dia-a-dia. O bolo parecia apetitoso, mas eu me lembrei das “guloseimas” do
Baile dos Elfo e não confiei nele.
—Não, — eu disse. —Voltem me encontrem algo mais adequado.
Thistle parecia cabisbaixa. —E o que você considera adequado, mortal?
Eu esfreguei o tecido do vestido entre meus dedos. Seda. Era lindo, mas
os aros, alforges e espartilhos que Thistle tinha trazido pareciam mais
problemas do que valiam, especialmente se eu fosse perambular pelo
Submundo com minha irmã.
—Algo simples —, eu disse. —Nada disso é de seda e cetim escorregadio.
Nada que levaria um bando de servos para me costurar. Algo prático.
—Tão chato. — Thistle fez beicinho.
—Sim. — Eu não a neguei. —E se você não puder me encontrar um
vestido, me traga uma saia e uma blusa e eu farei isso.
Thistle cruzou os braços. —Eu não entendo. As outras mortais amavam
todos os belos vestidos que pudemos encontrar para eles.
—Eu não sou minha irmã. — Fiz uma pausa. —As outras mortais?
—As outras noivas, é claro.
Eu sabia que o Rei dos Elfos havia tomado outras noivas. Constanze era
uma verdadeira fonte de histórias de advertência sobre mulheres que eram
ousadas demais, inteligentes demais, bonitas demais, diferentes demais. Ainda
ciúme me picou com sua picada aguda de agulha; Eu não era nenhuma dessas
coisas, e o Rei dos Elfos me fez acreditar que ele me queria - eu inteira, sozinha.
—O que, ciumenta? — Thistle sorriu.
—Não. — Mas meu rubor traía a mentira.
—Olha como ela está rosa agora! — Twig disse com prazer.
—O que aconteceu com as outras mulheres? — Eu estava determinada a
não deixar meus atendentes tirar o melhor de mim. —O que aconteceu com as
outras noivas?
—Elas falharam. — Thistle disse simplesmente. Ela cuidou de me vestir.
—Falharam? — Eu estava surpresa demais para afastá-la. —O que você
quer dizer com falharam?
—Fique parada. — Thistle rosnou, tentando me amarrar nos espartilhos.
O assunto claramente não era de grande importância para ela, mas o jogo havia
mudado de alguma forma. Eu senti que tinha virado um canto familiar para
encontrar um caminho completamente diferente do que eu esperava. As
histórias de Constanze nunca mencionaram isso.
—O que você quer dizer com falharam? — Eu repeti a pergunta para
Twig.
A garota elfo mais alta ergueu as sobrancelhas espessas. —Elas não
conseguiram escapar —, disse ela. —O que mais queremos dizer?
—Escapar do Submundo, você quer dizer.
Twig encolheu os ombros. —Der Erlkönig, o Submundo, morte. Eles são
um e o mesmo.
—Pare de se contorcer! — Thistle me beliscou com suas pequenas garras
afiadas, e eu gritei. —Se você me deixar vestir você, então você pode ir ver a
sua irmã. Eu posso dizer que ela já está vestida com o que sua comitiva colocou
para ela, e comia de tudo o que eles trouxeram.
Ela estava tentando me culpar? Eu mordi de volta uma risada. Se eu
começasse a rir, eu choraria.
—Tudo bem —, eu disse. —Vou me vestir. Mas não nisso. Encontre-me
outro vestido. —Meu estômago roncou. —E me traga um pedaço de pão e um
pouco de água. Alguma salsicha se vocês puderem encontrá-la. Nenhum
desses doces feitos de fada. Eu não vou ter meus sentidos obscurecidos pela
sua magia.
Twig e Thistle abriram as bocas para protestar. Eu olhei para elas. —Eu
gostaria…
Elas desapareceram sem uma palavra, deixando para trás nada além dos
ecos de um suspiro descontente.

Uma vez que eu estava devidamente vestida e adequadamente


alimentada, me senti muito melhor equipada para enfrentar o que estava por
vir. Depois de questionar tanto Twig quanto Thistle, descobri que o mundo no
Submundo tinha corredores e soleiras, mas não tinha janelas nem portas. Os
elfos não tinham nenhum conceito de privacidade e nunca houve a
necessidade de fechar uma entrada. Meu quarto tinha sido selado para o meu
conforto. Ordens do Rei dos Elfos.
—Você também pode conjurar coisas da terra? — Eu perguntei às minhas
meninas elfo.
Elas assentiram.
—Então me conjurem uma porta. Com um bloqueio nela.
Foi um tempo antes que elas entendessem exatamente o que eu
precisava. Thistle e Twig anotaram minhas descrições e me encaixaram com
uma porta circular, estranha mas satisfatória. A fechadura era um dispositivo
estranho de sua própria invenção, mas passível de manutenção. Nós três
éramos as únicas com uma chave.
Meu quarto abria em um corredor. Como o meu quarto, era uma mistura
de elementos naturais e não naturais: pisos cheios de sujeira e decorações de
ferro forjado. A arte dos elfos era ao mesmo tempo assustadora e bela; imitava
a arte humana com um grau extraordinário de imitação habilidosa, mas os
assuntos não eram elevados. Eles eram inteiramente terrestres. Os castiçais ao
longo da parede não eram esculpidos nas formas de flores e anjos; Eles eram
cultivados a partir de raízes de árvores na forma de um braço segurando sua
tocha. As pinturas na parede não retratam as cenas tradicionais de grandeza e
glória; elas eram principalmente paisagens. Florestas e montanhas, riachos e
riachos, representados com tanta precisão, pareciam janelas para o mundo
acima. Aliviava a sensação de estar presa no subsolo.
Thistle e Twig me conduziram pelo corredor até um grande salão. Como
o salão de baile, esse espaço era uma caverna de pedra com tetos altos e
arqueados e pingentes de gelo de rocha cintilante. Acima, as fadas de luz
dançavam como estrelas no céu noturno. Mas eu não vi nem um único elfo,
nem do gênero Twig nem do Thistle, mais perto da terra do que a humanidade.
—Onde está todo mundo? — Perguntei.
—Trabalhando. — Disse Twig, como se fosse a resposta mais óbvia do
mundo.
—Trabalhando? — Eu não tinha pensado que os elfos trabalhavam; pelo
menos, não da maneira como os humanos trabalhavam no mundo acima. Isso
me fez pensar: de onde vinha a comida dos elfos? Onde estavam as roupas
deles? Seus móveis? Eles tinham fazendeiros elfos? Artesãos Elfos? As histórias
de Constanze nunca me disseram muito sobre o próprio Submundo, apenas o
que acontecia quando seus habitantes invadiam o mundo acima. Sempre
lutando, sempre enganando, sempre roubando, os elfos sempre procuravam
tirar o que não lhes pertencia.
—O que, — Thistle disse amargamente. —Você acha que tudo isso foi
criado por magia? — Ela acenou com os longos dedos sobre o grande salão.
—Bem, sim —, eu admiti. —Você não poderia simplesmente... desejar
que tudo isso existisse?
As garotas elfo riram, suas gargalhadas ecoando pelas paredes como os
pés da barata.
—Mortal, você não sabe nada sobre o poder dos desejos —, disse Thistle.
—O que as leis antigas dão, eles tomam em troca.
Eu pensei nos desejos descuidados que eu tinha jogado ao redor, e um
sussurro de mau presságio me tocou.
—Tudo deve estar em equilíbrio —, explicou Twig. —Desde que nos
separamos do mundo e fomos para o Submundo, recebemos o poder de viajar
como desejávamos. Mas nada vem de graça, e nós construímos este reino com
nossas próprias mãos. Agora, você deve nos dispensar, senhora —, disse ela.
—Temos outros deveres a que devemos comparecer. — Ela apontou acima de
nossas cabeças. —As Fadas de Luz irão guiá-la para sua irmã.
Eu olhei para o teto. Uma chuva de motes brilhantes começou a cair sobre
mim como neve, descansando levemente sobre meus ombros e cabelos. Eu ri;
mágica ou não, era encantador. Cócegas. As fadas de luz giraram sobre mim
antes de se resolverem em um fluxo dourado de luz. Segui o caminho pelo
corredor e em outro corredor.
O quarto de Käthe ficava do outro lado do grande salão. O corredor que
levava ao seu quarto parecia muito com o meu, mas o toque humano deste
lado do Submundo era mais forte. As pinturas penduradas nas paredes eram
semelhantes ao que poderíamos ver na galeria de uma grande propriedade:
retratos e cenas pastorais, todas mostrando o Rei dos Elfos.
No começo, eu estava inclinada a descartá-las como mais uma
demonstração de auto-engrandecimento de Der Erlkönig, mas enquanto eu
andava mais adiante na linha do tempo dos retratos, notei algo curioso. As
modas e a mão artística mudaram ao longo dos séculos - como seria de se
esperar -, mas o mesmo aconteceu com a pessoa nos quadros.
Não notei a mudança de rosto no início, pois cada retrato sucessivo
mostrava parentesco com o antecessor. No entanto, havia diferenças sutis entre
eles tudo o que não se poderia simplesmente atribuir a artistas diferentes.
Todos eles compartilhavam feições semelhantes, cara de elfo, maçãs do rosto
salientes, preternatural e implacável simetria, mas a inclinação da mandíbula,
o conjunto dos olhos, bem como as cores das íris, eram tão distintas como um
floco de neve uma tempestade. Eram todos homens diferentes e, ao mesmo
tempo, eram todos Der Erlkönig.
Olhos castanhos, olhos azuis, olhos verdes, olhos cinzentos, mas nenhum
era o dos olhos de lobo do meu Rei dos Elfos. Eu andei para cima e para baixo
na galeria, estudando cada rosto, procurando o par que eu conhecia.
Por fim, encontrei um retrato no final do corredor, apagado, isolado e
sombreado, como se estivesse se escondendo de vergonha. Era o mais recente
na longa fila, pintado ao estilo dos antigos mestres holandeses: luz e escuridão
em contrastes exagerados, os detalhes nítidos e meticulosamente realistas. Sua
babá era jovem, vestida com trajes acadêmicos de veludo e um chapéu redondo
com uma borla. Apesar da riqueza do material, havia algo de austero nele,
especialmente quando ele segurava uma das mãos em torno de uma cruz de
madeira pendurada em um cordão no pescoço. Por outro lado, ele segurava
um violino ereto no colo, seus dedos longos e bonitos descansando ao longo
do pescoço. Eu apertei os olhos. O pergaminho do instrumento parecia
familiar, mas suas bordas se desvaneceram na sombra, e eu não consegui fazer
nada a não ser a vaga impressão do rosto de uma mulher contorcido em
agonia. Ou êxtase.
Eu estremeci.
Eu não consegui encontrar o olhar da babá até o final. Eu achava que
sabia o que encontraria - dois olhos de cores diferentes, um verde, um cinza -,
mas o que vi me prendeu.
Era um rei elfo mais jovem no retrato, suas bochechas mais cheias e não
tão afiadas, suas feições menos definidas. Um jovem da minha idade. Um
jovem. A diferença de cor naqueles olhos estava em grande relevo no retrato:
a esquerda, o verde brilhante da grama da primavera e a direita, o cinza-
azulado de um céu crepuscular. No entanto, lembrei-me deles sendo o
silenciado verde-avelã do musgo moribundo e o cinza gelado de um lago de
inverno. Desvaneceu-se. Velho.
Logo as fadas de luz puxaram meu cabelo e minhas roupas até que eu
segui em frente. A imagem do eu mais jovem do Rei dos Elfos ficou comigo
enquanto eu me afastava. A expressão em seus olhos fez minha respiração ficar
curta. Desprotegido. Vulnerável. Humano. Eu reconheci aqueles olhos da
minha infância, no jovem de olhos suaves que eu encontrei no quarto do Rei
dos Elfos. Eu vi essa expressão quando meu Rei dos Elfos olhou para mim
agora.
Eu estava abalada, minhas emoções reviradas e desordenadas. Continuei
andando pelo corredor, de repente ansiosa para colocar a maior distância
possível entre o retrato e eu.
Não foi até a galeria do retrato estar muito atrás de mim quando um
pensamento desconcertante veio a mim:
Quando ele se tornou meu Rei dos Elfos?
—Liesl! — Käthe me cumprimentou entusiasticamente quando eu
apareci em seu quarto. Assim como a minha, sua câmara não tinha porta, mas
uma apareceu quando eu desejei.
Sua aparência alterada era chocante. Minha irmã sempre fora cheia e
gorda, as bochechas cheias de melancolia, os braços cheios e saudáveis. Agora
ela era magra, magra e doentia. Ela usava um roupão sobre a camisa, mas
pendia dos ombros, como se o corpo dentro dele não fosse nada. Käthe estava
desaparecendo diante dos meus olhos.
—Venha se sentar perto do fogo e tome chá comigo. — Minha irmã
pediu. Ela parecia em casa no subsolo, parecendo uma anfitriã em seu conjunto
de quartos de terra batida.
—Käthe —, eu disse. —Você está bem?
—Claro que estou bem. — Um jogo de chá já havia sido colocado sobre
a mesa junto à lareira, e ela gesticulou para a cadeira e pediu que eu me
sentasse. Então ela me serviu uma xícara de chá e me ofereceu uma fatia de
bolo. —Como está você minha querida?
Eu aceitei a fatia de bolo. —Eu não sei —, eu admiti. —Eu não sei de jeito
nenhum.
Käthe deu-me um sorriso indulgente e acrescentou outra colherada de
açúcar ao chá. —Coma. — Disse ela, acenando para a fatia intocada de bolo no
meu prato.
Eu estudei minha irmã. Ela parecia de olhos claros e consciente; presente,
de uma forma que ela não estava no Baile dos Elfos.
—Käthe —, eu disse com cuidado. —Você sabe onde estamos?
Ela riu e cortou outro pedaço de bolo. —Claro que sim, você não.
Estamos no meu quarto, desfrutando de um pouco de chá e algum tempo
juntas. Agora me diga. — Ela disse, gesticulando para as paredes de barro, o
que você acha do papel de parede?
—O papel de parede?
—Seda regada importada da Itália, é claro —, ela disse arrogantemente.
—Assim como sempre imaginamos, Liesl.
Meu coração acelerou no meu peito. A cor estava alta nas bochechas da
minha irmã, seus movimentos aumentados e exagerados, como se ela estivesse
interpretando o papel de uma dama graciosa. Como se ela estivesse fingindo.
E se?
—Sim —, eu disse devagar. —Seu quarto é lindo. — Peguei minha xícara
de chá e tomei um gole para esconder minha expressão. —Meus
cumprimentos, minha querida.
Os olhos de Käthe estavam acesos. —Obrigada, querida. Meu marido é
um homem muito generoso, como você sabe.
Minha xícara sacudiu em seu pires. —Seu marido?
Ela fez beicinho. —Você não se lembra? Tivemos o mais belo casamento
na Frauenkirche de Munique, com o arcebispo presidindo. Josef tocou sua
missa de casamento com aplausos estrondosos.
Eu abro meu chá. —Minha... missa de casamento?
Käthe me deu um olhar de pena. —Oh, Liesl, você deve ter tido uma
noite difícil, se você não consegue se lembrar. A missa de casamento que você
escreveu para nós. A mãe cantou o Benedictus tão lindamente que levou todos
a chorar.
—Minha música.
Ela assentiu. —Você é um sucesso em todo o Sacro Império Romano
agora, graças às conexões do meu marido. Ele também teve o bom senso de
contratar Josef na corte e até financia as viagens de nossos irmãos pela Europa.
Ele até tem o Papa como membro do Konzertmeister, embora seja mais uma
cortesia do que uma posição ativa.
—Na... sua corte? — Minha voz foi estrangulada, fina.
—Claro que é a corte dele —, ela disse, como se fosse a coisa mais óbvia
do mundo. —Ele não podia muito bem contratar alguém, poderia?
—Käthe —, eu disse. —Só quem é seu marido?
Ela soltou um bufo e revirou os olhos. —Manók Hercege. Um conde
húngaro? Honestamente, Liesl, talvez você deva se divertir um pouco mais
com frequência, se um pouco de indulgência a colocar de volta assim. — Käthe
traçou seus dedos distraidamente ao longo de sua clavícula, e eu me vi
espelhando o gesto, lembrando-me dos toques no Baile dos Duentes.
Um conde. Um conde rico húngaro. O marido fantástico de Käthe era um
nobre rico e estrangeiro. Este não era o tipo de homem que eu achava que
minha irmã se imaginaria apaixonada.
—O Ho-Manók Hercege é bom para você? — Perguntei.
—Claro. — Käthe sorriu.
—Como ele é?
—Tipo. — Sua voz estava enevoada, distante. —Generoso. Não apenas
para mim, mas para todos nós. Coma, —ela disse novamente, empurrando o
bolo para mim. —Torta de chocolate. É a sua favorito.
Então ficou claro qual era o maior sonho de Käthe: casar-se com ricos.
Não para vestidos extravagantes ou joias caras, mas para sustentar sua família.
Minha garganta se apertou e eu juntei minha irmã em meus braços, segurando-
a perto.
—Liesl —, disse Käthe com surpresa. —Está tudo bem?
—Não —, eu engasguei. —Tudo não está bem. Não está certo em tudo.
Ela me afastou. —Coma um pedaço de bolo —, ela insistiu novamente.
—Depois de todo o trabalho que passei para conseguir para você, você deveria
pelo menos dar uma mordida.
Eu balancei a cabeça e peguei o prato e um garfo. Eu recuei. O que
parecia, à primeira vista, uma torta de chocolate úmida era camada sobre
camada de terra em ruínas, com listras de limo para creme de manteiga. Fingi
me prender por causa de Käthe, mas no momento em que minha irmã desviou
o olhar, lancei o bolo no fogo. O cheiro impossível de pêssegos do verão subiu
com a fumaça.
—Você gostou? — Ela perguntou, ansiosamente procurando uma
resposta no meu rosto. Seus olhos azuis estavam firmes, mas pareciam
excessivamente grandes no rosto pálido. Apesar da cor alta em suas bochechas,
ela parecia mais doente do que nunca. —Meu marido foi até a Boêmia para a
receita.
—Delicioso. — Eu consegui engolir minha bile. —Meus cumprimentos
ao seu marido.
Käthe sorriu, depois se esvaziou. —Ele viaja com tanta frequência, meu
marido —, disse ela. —Eu gostaria de poder ir com ele às vezes. Para ver o
mundo além deste belo palácio. É lindo — continuou ela, um pouco
defensivamente. — mas pode ser sufocante. Quase como uma prisão, em vez
de um palácio.
Eu me endireitei no meu lugar. Essa era a verdadeira Käthe falando,
minha verdadeira irmãzinha sob o feitiço de desejos que a rodeava. A jovem
que queria experimentar o mundo além dos limites da vida rústica que sempre
conhecera.
—Onde estão as terras de Manók Hercege? — Perguntei.
—Hungria, é claro.
—Mas onde na Hungria? — Eu pressionei.
Uma expressão vaga cruzou o rosto dela. —Eu não tenho certeza.
—Onde você foi na sua turnê de casamento? Viena? Roma? Paris?
Londres? Seu marido levou você a todas as maiores cidades da Europa, como
sempre sonhou?
—Eu...— Uma pequena ruga apareceu entre as sobrancelhas, uma ruga
de dor e concentração. —Eu não me lembro.
—Pense. — Eu agarrei as mãos de Käthe. —Onde estamos. Onde não
estamos. Onde devemos estar.
Minha irmã fechou os olhos.
—O mercado, a fruta, a bola, o Rei dos Elfos...
—Liesl. — A voz de Käthe estava tensa, como se viesse de uma distância
incrível. Meu pulso pulsou em meus ouvidos.
—Sim. Eu acho que lembro. O sabor dos pêssegos no inverno. O som da
música. Eu acho... acho...
—Vá em frente. — Eu insisti. Eu estava chegando ao coração do
encantamento. Se eu pudesse me aproximar e cortar completamente.
—Dói —, ela sussurrou. Ela abriu os olhos e olhou para mim. —Às vezes
acho que sei onde estou e tenho medo. Mas é mais fácil nã o estar. É assim que
é estar morta?
Um fio de sangue no lábio; uma hemorragia nasal. Assustada, limpei
com a barra da minha saia.
—Não, querida —, eu disse, segurando as mãos com mais força. —Você
está viva.
O sangue não parava. O pânico percorreu meu coração, minhas mãos,
minha garganta.
—Você está viva, Käthe —, repeti. —Apenas espere um pouco mais.
Um conjunto de sinos começou a tocar, o som brilhante e tilintante da
risada da minha irmã. Imediatamente o comportamento de minha irmã
mudou; Ela ficou animada e agitada, seus lábios sem sangue se esticaram em
um sorriso grotesco.
—Deve ser ele! — Ela disse alegremente. —Meu Manók. — Ela se
levantou da cadeira e ficou no meio do quarto, esperando com os braços
estendidos. Eu me perguntei quem iria aparecer - qual dos seus altos e
elegantes pretendentes do Baile dos Elfos iria entrar e ser o conde húngaro. —
Entre, meu amor!
Eu me virei, meio esperando que uma porta aparecesse e deixasse entrar
esse misterioso marido húngaro. Mas nenhuma porta se materializou. Em vez
disso, com uma brisa que fez as luzes das fadas rodopiarem, o Rei dos Elfos
apareceu.
—Olá, minha querida —, disse ele, pegando a mão de Käthe na sua.
Aqueles olhos de lobo brilharam em mim quando ele encontrou meu olhar
sobre a cabeça da minha irmã. —Você gostou do seu bolo?
As leis antigas

O Rei dos Elfos e eu nos encaramos enquanto minha irmã fazia nossas
apresentações.
—Querido —, disse ela. —Você se lembra da minha irmã, Elisabeth, é
claro?
—Encantado, Fräulein. — Ele levou minha mão aos lábios. Eu resisti ao
desejo de pegá-la e entregá-la de volta com um tapa.
—Liesl. — Käthe se virou para mim. —Meu marido, Manók Hercege.
—Um prazer. — Eu disse com os dentes cerrados.
—Eu acredito que sua irmã não me aprova, minha querida —, o Rei dos
Elfos disse a Käthe. —Ela olha fixamente em minha alma. Eles apunhalam. —
Ele apertou sua mão para seu coração.
—Liesl! — Käthe repreendeu.
—Agora, agora —, o Rei dos Elfos acalmou. —Tenho certeza de que
Elisabeth está cumprindo seu dever, como uma irmã mais velha deve fazer. Já
que ela está condenada a uma vida de solteirona, ela pode julgar todos os seus
superiores, sim?
—Manók! — Käthe bateu com força no pulso. —Seja gentil. Vocês dois.
—Mein Herr —, eu disse com firmeza. —Uma palavra?
O Rei dos Elfos inclinou a cabeça. —Claro. Madame? —Ele se virou para
Käthe, pedindo para ser dispensado de sua presença. Minha irmã concordou
com a cabeça e nos dispensou.
—Manók Hercege? — Foi a primeira coisa que saí da minha boca quando
estávamos sozinhos.
O Rei dos Elfos deu um encolher de ombros elegante. —Eu sei um pouco
húngaro.
—O que isso significa?
Ele sorriu. —O que você acha que significa. Eu não sou tão criativo como
tudo isso, Elisabeth.
Eu fiz uma careta. —Esse é o seu nome? Você tem um nome?
O Rei dos Elfos ficou rígido. —Esse não é o tópico em questão.
Eu levantei minhas sobrancelhas. Mas seu rosto estava fechado como
uma casa em uma tempestade.
—Não —, eu concordei. —O tópico é por que e como você fez minha irmã
acreditar que ela é casada com você.
—Ciumenta? — Ele parecia satisfeito.
—Você a forçou? Coagiu ela de alguma forma? Ou isso é tudo uma
fantasia elaborada que você orquestrou para prendê-la aqui com você para
sempre?
—Coagir é uma palavra tão forte —, disse ele. —Eu gosto de pensar que
sou persuasivo em meus próprios méritos.
—Ela acha que você é uma condessa húngara.
Ele acenou com a mão. —Todos nós temos nossas falhas.
—Você pode jogar seus jogos comigo —, eu disse. —Mas deixe Käthe
sozinha. Ela não está preparada para lidar com você.
—Oh, e você está? — O Rei dos Elfos se inclinou para frente. Eu me
obriguei a ficar quieta. —Diga; Estou intrigado.
—O jogo é entre você e eu —, repeti. —Deixe minha irmã fora disso. Ela
é inocente.
Seus olhos escureceram. —Sua irmã é verdadeiramente inocente?
—Sim.
—Uma menina bem familiarizada com a tentação, uma menina com uma
risada convidativa, um coração inconstante e uma alma aventureira —, disse
ele em voz baixa. —Uma menina dada à auto-indulgência, que procura a fruta
proibida e a comida dela contra a sabedoria de sua irmã mais velha - pode uma
garota ser verdadeiramente chamada de inocente?
Eu fiquei rígido de raiva. —Não cabe a você julgar.
—Mas é para você? — Ele retornou. —Você é responsável pela virtude
da sua irmã?
—Não, — eu disse. —Mas vou proteger seu bom nome.
—Oh, Elisabeth. — O Rei dos Elfos balançou a cabeça. —Quando você
será egoísta? Quando você fará alguma coisa por si mesma?
Eu fiquei em silêncio.
—Você não pode se intrometer nos caprichos da sua irmã. — Toda a
pretensão de charme havia sumido do Rei dos Elfos. —Algum dia ela deve
fazer suas próprias escolhas. Sem você. O que você fará quando não houver
mais ninguém para cuidar? É quando você finalmente vai cuidar de você?
Ele tinha um jeito de me atacar com compaixão. Sua bondade inesperada,
mais que seu charme ou beleza, era sedutora. Eu não gostei da verdade em
suas palavras. E sua pena. Eu não queria sua piedade.
O Rei dos Elfos suspirou. —Käthe faz parte do jogo. As peças foram
postas em movimento e ela é uma delas.
—Você me deu os dias de inverno para escapar do Submundo. — Eu
cruzei meus braços. —E você se casou com minha irmã pelas minhas costas.
Aquele sorriso arrogante retornou ao seu rosto. —Você está com ciúmes.
Bem, bem, bem; isso é um bom presságio para mim.
Quando eu não mordi a isca, ele balançou a cabeça.
—Não, Elisabeth, não me casei com Käthe. As leis antigas são
obrigatórias, e quando eu tomo uma noiva, é para sempre. Ela pode nunca
mais pisar no mundo acima. Essa bela visão é um feitiço que ela mesma criou,
uma linda fantasia para lhe trazer conforto. Eu tenho muito pouco poder, você
sabe.
Eu zombei. —Você é Der Erlkönig. Você tem todo o poder.
O Rei dos Elfos levantou uma sobrancelha. —Se você pensa assim, sabe
menos do que eu lhe dei crédito —, ele disse. —Eu sou apenas um prisioneiro
da minha própria coroa.
A coroa serve ao rei ou o rei serve a coroa?
—Por que uma noiva? — Eu perguntei depois de um momento. —Por
que, por que Käthe?
Por que não eu? Por que ele não veio para mim?
Demorou um tempo antes de ele responder. Ele passou os dedos por uma
das figuras em uma das mesas laterais no corredor. Era uma ninfa de madeira,
de quadris largos, rechonchuda e terrosa. Ele traçou a curva de sua cintura,
descendo as coxas, e recuou a forma de sua perna antes de descansar na
clavícula da ninfa, onde a linha de seu pescoço encontrava seu peito.
—Devo te contar uma história? —, Ele disse finalmente. Ele soltou a
figura da ninfa e olhou para uma das paisagens que ficavam no corredor. —
Uma história como Constanze poderia ter dito a você e seus irmãos quando
você era criança.
Eu segurei minha respiração.
—Era uma vez um grande rei que vivia no subsolo.
Os contos de fadas da minha avó costumavam começar assim. Sempre
achei que as histórias dela fossem de sua própria invenção, mas, ouvindo o
ritmo das palavras do Rei dos Elfos, fiquei imaginando onde Constanze as
aprendera pela primeira vez.
—Este rei era o governante dos mortos e dos vivos —, continuou ele. —
Ele levava o mundo acima para a vida a cada primavera, e trazia de volta à
morte a cada outono.
O Rei dos Elfos olhou para a paisagem enquanto as árvores e as coisas
vivas floresciam e floresciam, ficando verdes e brilhantes antes de murcharem.
—As estações mudaram uma após a outra e com o tempo o rei
envelheceu. Cansado. A primavera chegou mais tarde e mais tarde e mais cedo
e mais cedo, até que um dia não havia primavera. O mundo lá em cima ficou
quieto, morto e parado, e as pessoas sofreram.
O retrato encantado voltou ao inverno e à neve. As estações pararam de
mudar.
—Um dia, uma valente donzela se aventurou no Submundo. — Seus
olhos se voltaram do retrato para mim. —Para implorar ao rei que devolva o
mundo à vida.
—Corajosa? — Eu ri, um riso fino e desafiador. —Não bonita?
Seus lábios se torceram para um lado. —Corajosa ou bonita, não importa.
Deixe Constanze dizer de uma maneira; Eu contarei isso na minha história.
O Rei dos Elfos se aproximou. Eu me forcei a ficar onde estava,
empurrando de volta contra sua presença insistente.
—Ela ofereceu ao rei sua vida em troca da terra. Minha vida para o meu
povo, ela disse. Ela implorou que ele aceitasse sua barganha. Ela conhecia as
velhas leis: vida por vida, sangue pela colheita. Sem ela, o Submundo
murcharia e desapareceria, levando consigo todos os vestígios de verde do
mundo acima.
Ele pairava sobre mim, seus dedos estendidos, alcançando o pulso na
minha garganta. Minha respiração ficou superficial. Eu esperei - queria - que
ele me tocasse, agarrasse minha vida em suas mãos e a peguasse.
Mas ele não fez. Seus dedos se enrolaram e ele recuou.
—Sua vida sustentaria a do rei, a vida do rei sustentaria os habitantes do
Submundo, e suas vidas sustentariam a terra e fariam as coisas crescerem. O
rei aceitou sua barganha e, quando o ano novo se transformou, a primavera
chegou novamente.
À sua maneira, era uma bela história, mais parecida com as parábolas e
fábulas dos bons mártires cristãos que mamãe nos contou do que os contos de
elfos e travessuras de Constanze. Pessoas virtuosas, pessoas persistentes,
pessoas que se sacrificavam pelo bem maior de todos, esses eram os heróis das
histórias da mãe. Como a valente donzela do conto do Rei dos Elfos.
Mas Käthe não era a heroína corajosa das histórias da mãe; ela era a
menina tola e bonita de Constanze. Quem era a corajosa donzela da história do
Rei dos Elfos?
—Mas a história não termina aí, não é? — Perguntei.
—A história não tem fim —, ele disse asperamente. —Isso continua
indefinidamente e para a eternidade.
Os olhos do Rei dos Elfos estavam tristes ou arrependidos. Seus olhos
não eram como os dos outros elfos - aquelas órbitas escuras e negras que
escondiam toda a intenção. Era difícil ler os rostos dos elfos ao meu redor; seus
olhos planos e inescrutáveis, suas feições retorcidas e estranhas ao olho
natural. Mas havia simpatia entre eu e o Rei dos Elfos, uma linguagem de
nossos corpos que eu entendia.
—Então você quer que minha irmã morra —, eu sussurrei. —então o
mundo pode viver.
Ele não disse nada.
—Se —, eu comecei, e então limpei minha garganta. —Se você perder o
jogo, o que acontece? A primavera nunca virá? O mundo acima viverá sob o
inverno eterno?
Seu rosto era grave. —Você está disposta a correr esse risco?
Uma escolha impossível. A vida da minha irmã... ou o destino do mundo.
Eu achava que minhas apostas eram altas, mas agora vi que o Rei dos Elfos era
ainda maior.
—O que vai acontecer com você se eu ganhar? — Eu sussurrei.
Um sorriso cruzou os lábios, mas os cantos estavam virados para baixo,
mais tristes do que satisfeitos. —Você sabe —, disse ele. —Você é a única que
já pediu.
Então ele desapareceu em um redemoinho de vento e folhas mortas.

Eu estava ficando sem tempo.


Sem o nascer do sol ou o pôr-do-sol para marcar o passar dos dias,
contava as horas pelo desbotamento do cabelo de Käthe, o murchar de sua
carne, a crescente palidez de sua pele. As curvas em torno de seus seios e
quadris desaparecendo, e a pele abaixo de seus olhos se reduziu a um
hematoma negro.
Minha irmã estava morrendo.
O Rei dos Elfos pagava tributo frequente a ela em seu papel de conde
húngaro. Observei minha irmã e o Rei dos Elfos gemerem uns aos outros
nessas idas, no jantar, nas comemorações dos elfos que ele insistia em segurar
toda noite. Outra noite de vinho elfo, outra noite perdida para a indulgência.
Cada momento perdido era outra vitória ganha pelo Rei dos Elfos.
Seus olhos pareciam me dizer, sempre que nossos olhares se
encontravam sobre a cabeça da minha irmã. O que era frequentemente. Sentia
o toque de seus olhos em minha pele o tempo todo, uma carícia insistente que
me obrigava a olhar para ele. Embora eu não tenha admitido isso em voz alta,
a visão de Käthe em seu braço me deixava louco de inveja. Ela era um peão no
nosso jogo e eu sabia disso; ela era a isca para o meu temperamento, e eu sabia
disso, mas não conseguia tirar as picadas de ciúmes. Sentia falta do meu
klavier, onde eu podia deixar essas notas de frustração e futilidade explodirem
em uma torrente de música.
Nos meus momentos sozinha, eu vagava pelas passagens labirínticas do
Submundo. Elfos corriam de um lado para o outro, os olhos negros brilhando
para mim dos cantos como carapaças de besouro. A meu pedido, Twig e Thistle
me trouxeram pilhas de papel e uma caneta de chumbo. Eu tentei marcar os
vários caminhos no Submundo, mas os túneis mudavam, torciam e mudavam
toda vez que eu pensava que eu percorria um caminho familiar. Mais
frequentemente, rabiscava pequenas melodias descartáveis e pensamentos
musicais nas margens dos meus mapas.
Käthe também estava determinada a me distrair. Ela tinha visto meus
mapas, mas seus olhos permaneciam nas notas, não nos caminhos. Ela insistiu
que eu me sentasse em sua mesa e compusesse, e me fornecesse lindos papéis
e rabiscos extravagantes, sua fantasia de mim como uma compositora
realmente funcionava: na beleza, no isolamento e no silêncio. Minha irmã, tão
bondosa, tão cega.
—Venha! — Ela disse um dia - noite? - batendo palmas. —Eu tenho um
presente para você! — Ela gesticulou para seus atendentes elfos, que traziam
vestido após vestido.
—O que é tudo isso? — Eu perguntei quando Käthe enxotou seus
assistentes para longe novamente.
—Para a sua estreia, você não sabe. — Ela disse.
—Que estreia?
Ela me deu um eyeroll exasperado. —Honestamente, Liesl, é uma
maravilha que você seja capaz de funcionar algumas vezes. A estreia da sua
mais recente sinfonia, é claro. Manók providenciou um concerto para ser
realizado no salão de recepção.
A força do mundo de fantasia da minha irmã me sobrecarregava às
vezes, tanto que eu não podia mais dizer onde as extremidades de seu sonho
terminavam e as minhas começavam.
Eu deixei Käthe me vestir em qualquer vestido que ela achasse melhor
para mim e deixá-la mexer no meu cabelo. Por um momento, foi como se
fôssemos crianças de novo, o toque de seus dedos gentis no meu couro
cabeludo tão familiar quanto as canções de ninar que Josef e eu costumávamos
tocar um para o outro.
—Pronto, — ela disse uma vez que ela terminou. —Linda.
—Linda? — Eu ri. —Não há necessidade de me lisonjear com mentiras,
Käthe.
—Pare com isso. — Ela bateu no meu ombro. —Só porque você cresceu
em uma cidade atrasada não significa que você tem que se vestir como uma
camponesa o tempo todo, você sabe.
—Se fossem apenas penas que poderiam transformar um pardal em um
pavão.
—Um pardal é lindo à sua maneira —, disse Käthe severamente. —Não
se force a ser um pavão, Liesl. Abrace seu pardal. Olhe. —Ela gesticulou para
o espelho de bronze diante de mim.
Não foi meu reflexo que chamou minha atenção, mas o dela. Todo o
alcance da transformação da minha irmã não ficou claro até que eu vi o rosto
dela no espelho de bronze. Quantas vezes eu assisti Käthe se preparar diante
do espelho em nosso quarto, suas bochechas rechonchudas de maçã e olhos
brilhantes brilhando com saúde? Os ossos de suas bochechas e mandíbula
sobressaíam dolorosamente agora, angulosos e quase masculinos. Seu queixo
era tão afiado quanto um punhal, seu nariz longo, seus lábios finos. Seus olhos
estavam enormes naquele rosto perdido, e com um sobressalto percebi que
estava olhando para mim. Não, minha irmã. Desvanecida por um fio de seu
antigo eu, Käthe e eu parecíamos as mesmas, exceto pela nossa coloração
diferente.
—Viu? — Ela sorriu, um sorriso alegre. —Pronta para enfrentar o mundo
inteiro e amplo.
Käthe não tinha feito muito em termos de tinta facial ou pós; ela
simplesmente tocou meus lábios com rouge e escovou minhas sobrancelhas.
Nas cintilantes fadas de luz do Submundo, minha pele amarelada se
transformava em uma palidez cremosa, os ângulos do meu rosto mais
imponentes que finos. Este era o rosto que eu tinha visto todos os dias da
minha vida crescendo - simples, angular -, mas neste novo ambiente, eu
brilhava com uma luz sobrenatural. Um pardal em seu ninho.
—Eu desejo...— Käthe começou, então franziu a testa.
—O que é? — Eu perguntei.
Ela balançou a cabeça. —Nada. É só ... —Ela mordeu o lábio. —Eu queria,
apenas uma vez, nos aventurarmos além das paredes do palácio. Pa ra ouvir
sua música tocada diante de um público amplo. Para ver obras de arte pelos
grandes mestres. Para sentir o verdadeiro sol, provar os morangos ensolarados
do prado e... oh!
Gotas de sangue caíram para manchar o tapete sob nossos pés. Outra
hemorragia nasal. Eu pulei, correndo para pegar um pano ou um curativo, mas
não havia nada no quarto, a não ser por jardas e metros de tecido caro. Peguei
uma meia descartada - limpa, esperava - e ajudei a limpá-la.
—Eu preciso deitar. — Ela murmurou fracamente.
—Tudo bem. — Eu a ajudei a ir para a cama. Ela se sentia ainda mais
magra e mais frágil em meus braços do que antes.
—Liesl. — A voz de Käthe era um sussurro. —Liesl, eu não… me sinto
tão bem. Eu-
—Cale-se —, eu disse. —Vou chamar os elfos...
Käthe sacudiu a cabeça. —Eu quero a mãe —, ela choramingou. —Eu
quero-
Eu não sabia o que fazer. A mãe estava longe; a vida estava longe e se
afastando cada vez mais das garras da minha irmã. Desespero e raiva me
sufocaram, mas eu as engoli. Käthe olhava para mim com grandes olhos
assustados e eu sorri para ela. O sorriso da mãe. Acalme-se diante da adversidade.
Alisando o cabelo dela enquanto descansava contra os travesseiros, eu
cantarolei uma canção de ninar que mamãe costumava cantar para nós. Minha
voz não continha nada da doçura da nossa mãe, mas Käthe parecia acalmada
mesmo assim. Para minha surpresa, ela se juntou a ela, seu ouvido surdo e não
musical, lutando para encontrar o tom certo junto comigo. Quando menina, ela
se recusava a cantar ou a tocar outros jogos musicais com a família,
dolorosamente consciente de suas inadequações.
—Liesl...
Por trás da voz tensa, eu a ouvi. Minha verdadeira irmã, por trás do
encantamento. Eu vacilei.
Minha irmã pegou minha mão. —Não, não —, disse ela. —Continue
cantando. Continue.
Parei de brincar com o cabelo de Käthe. Eu peguei a canção de ninar mais
uma vez, substituindo as letras por um ooh sem palavras enquanto tentava
descobrir o que fazer a seguir.
Você está aqui, Käthe, meu amor, minha querida?
A pergunta se encaixava desajeitadamente no ritmo e na batida da
canção de ninar, mas parecia ser a melhor maneira de falar com ela sem
quebrar a música.
—Sim, estou aqui —, disse ela, lutando. —Sua música... ajuda a manter o
nevoeiro longe.
Devemos fugir, devemos voar, seu noivo espera para receber seu prêmio.
—Meu noivo? — Seus olhos azuis nublados e eu silenciosamente me
amaldiçoei por deslizar no meu próprio feitiço que eu tentei tecer sobre ela.
Não importa, não se preocupe, venha comigo; vamos, depressa!
—Depressa —, ela repetiu. Seus olhos percorriam o quarto, como se a
tivessem visto pela primeira vez. —Sim, devemos nos apressar.
Você está bem, você está bem? Você está fraca, você está pálida.
—Sim. — Ela assentiu rigidamente. Então, quase como se por força de
vontade, a cor retornou a seu rosto, e seus olhos azuis estavam duros com
determinação. —Eu estou.
Então siga-me, meu doce, siga-me.
Käthe assentiu novamente.
—Estou indo, Liesl —, ela disse fracamente. —Eu vou seguir.
Estranho, doce

Eu não perdi tempo. Assim que tirei Käthe da cama, vesti-me nos dois
vestidos mais práticos que consegui encontrar. Eu não tinha nada comigo, nem
mesmo meu mapa rudimentar e contraditório do Submundo. Mas o tempo
para o planejamento foi passado. Se nos perdessemos ou não, pouco importava
agora; o tempo acabou. Então, como o Flautista de Hamelin, eu me esforcei
para levar minha irmã embora.
Minha voz já estava rouca. Eu não podia cantar para sempre; Eu
precisava de outro jeito de manter minha irmã sob o meu feitiço.
Quando a ideia veio a mim, eu quase deixei minha música cair em uma
risada. Minha flauta. O presente do estranho alto e elegante. Eu tinha jogado
em seu covil; Eu tocaria isso.
Eu desejo, eu desejo, para qualquer um perto
Para me trazer minha flauta, rápido!
Traga para mim aqui.
Em um piscar de olhos, Twig e Thistle apareceram diante de mim. Thistle
parecia irritada com a convocação, mas Twig parecia divertida. A alta e magra
elfo me ofereceu o instrumento com um olhar quase reverente em seu rosto.
Obrigada minha amiga.
Meus agradecimentos a você.
Por favor me ajude a encontrar meu caminho
Fora desta tumba?
Eu não conseguia imaginar como trabalhar, desejar em minha música
improvisada, que ficou mais desabitada e disforme pela medida.
—Não há saída, mortal —, disse Thistle. —É inútil tentar.
Eu balancei a cabeça, ainda cantarolando uma melodia sem palavras.
Virei-me para Käthe, cujo rosto desenhado estava pálido e coberto de suor frio.
—Estou aqui —, ela disse com aquela voz distante e distante. —Ainda
estou aqui.
Twig olhou para mim com aqueles olhos planos, inumanos e ilegíveis.
Eu queria ler bondade neles. —Saiba disso, mortal —, disse ela. —Todos os
caminhos levam ao começo e ao fim do Submundo. É para você descobrir qual
é qual. Mantenha-se fiel; seja rápida. Lembre-se, o que as velhas leis dão, elas
também tomam. Não será fácil para você escapar.
—Ela irá falhar —, desdenhou Thistle. —Nenhum mortal na terra tem o
poder de perturbar o equilíbrio antigo. — Ela mostrou os dentes em um sorriso
macabro. —Boa sorte. Você precisará disso.
Ignorei Thistle e acenei com os meus agradecimentos a Twig. As duas
garotas elfos se desvaneceram.
Fale comigo, querida, eu cantei para Käthe, Fique comigo. Cante!
Então eu coloquei a flauta nos meus lábios.

O Submundo era um labirinto. Eu segui os corredores que levavam para


cima, corredores que se dobravam sobre si mesmos, corredores que
desapareciam na parede. Eu não conseguia segurar a mão de Käthe enquanto
tocava a flauta, mas ela se amarrou às cordas do meu avental. Toda vez que ela
hesitava, eu tocava alguma coisa da nossa infância. Um cânone. Uma música
pulando. Uma pequena bobagem.
—Você nunca vai ganhar, você sabe.
À minha frente, envolto em sombra e luz de tocha, estava o Rei dos Elfos.
Ele usava o capuz e a capa que tinha quando o conheci no mercado, quando
ele era apenas um estranho alto, elegante e misterioso.
Eu parei no meu caminho. Käthe tropeçou em mim.
—O que está acontecendo? — Ela vacilou. —Você está bem?
Eu olhei para o Rei dos Elfos, mas os olhos de Käthe se moveram, cegos
para sua forma esbelta bloqueando nosso caminho. Ele levantou um lado da
boca em um sorriso e levou um dedo enluvado aos lábios. Shhh
Uma brisa pegou no Submundo, amarga e fria, trazendo consigo o aroma
tentador do mundo acima: folhas, marga, gelo e liberdade. Minha irmã
pressionou contra mim e eu podia senti-la tremendo nas minhas costas. O
vento corria ao nosso redor como um pequeno espírito, puxando nossos
cabelos, nossas saias, nossas blusas, brincalhões e travessos.
—Liesl —, disse Käthe. —Estamos chegando perto?
Não ousei abaixar minha flauta para confortar minha irmã. Os olhos do
Rei dos Elfos brilhavam sob o capuz. Eu levantei meu queixo e encontrei seu
olhar diretamente.
Não havia nada do meu jovem de olhos suaves nele agora; esse Rei dos
Elfos era toda sombra e ilusão, Der Erlkönig em sua forma mais elementar.
Malandro. Sedutor. Rei. Procurei em seu rosto qualquer indício do jovem
austero do retrato da galeria, meu Rei dos Elfos. Mas ele não estava lá.
Eu endireitei meus ombros e virei para Käthe, tocando um pequeno
Ländler desenvolto. Era uma das melodias mais alegres que eu conhecia, e eu
a tocava com toda a despreocupação que eu conseguia reunir. A pequena ruga
de preocupação nunca deixou a testa da minha irmã, mas seu rosto relaxou em
um sorriso hesitante. Käthe não era alguém para dissecar os humores e tons de
uma peça musical, mas até minha irmã não musical poderia responder ao que
eu estava dizendo sem palavras.
Tudo está bem. Não se preocupe.
Käthe seguiu meus passos quando nos aproximamos de Der Erlkönig. O
vento ficou mais forte, não mais um espírito brincalhão, mas um espírito
malicioso. Empurrava, puxava, argumentava, ameaçava. Ele mordia meus
dedos e lábios, tornando-os rígidos e insensíveis. O som do seu vento
assobiando subiu mais alto do que a voz fina da minha flauta, abafando minhas
melodias. Käthe se aproximou enquanto eu lutava para brincar com o vento,
mas era uma batalha que estávamos perdendo. Minha irmã se afastava cada
vez mais de mim, minhas cordas de avental deixaram sua mão. Tão perto,
estávamos tão perto...
—Desista, Elisabeth —, Der Erlkönig cantou. —Deixe ir, minha querida.
Deite sua flauta e descanse. Fique comigo.
Eu fechei meus olhos. Eu não conseguia mais sentir o instrumento entre
meus dedos dormentes. Eu estava cansada, sem fôlego e sem ideias.
—Sim —, ele assobiou. —Suavemente, lentamente...
Meus lábios deixaram a flauta, minhas mãos baixaram lentamente para
o meu lado. Mas render nem sempre foi perder. Eu não fui derrotada ainda.
Mamãe ensinara a todos nós a cantar, assim como papai nos ensinara a
todos a tocar. Enquanto nenhum de nós tinha seu dom de música, ela nos
ensinou como controlar nossa respiração, como projetar nossas vozes, como
moldar o ar dentro de nós para produzir um som enorme. Eu respirei fundo,
enchendo meus pulmões até meu estômago com ar. Eu encontrei um
arremesso que eu poderia confortavelmente sustentar: alto o suficiente para
ser estridente, baixo o suficiente para não destruir minhas cordas vocais.
Eu abri minha boca e gritei.
Deixei o som encher minha cabeça, ressoar nos espaços vazios do meu
rosto e empurrei para fora. Der Erlkönig vacilou, chocado com a intensidade
do meu grito. Ele tropeçou para trás, jogando as mãos contra o som.
Eu dei um passo à frente; Der Erlkönig deu um passo atrás. Continuei
seguindo em frente, mas a distância entre nós nunca se fechou. Eu queria
conhecê-lo, confrontá-lo, empurrá-lo para fora do caminho com minhas
próprias mãos, fazê-lo admitir a derrota aos meus pés. Eu estendi a mão para
ele, mas meus dedos passaram pelo tecido de sua capa. Ele era tão
insubstancial quanto um fogo-fátuo. Ele desapareceu em um instante.
Käthe e eu estávamos sozinhas na passagem. O ar ficou quieto e quente,
o silêncio sobre nós sufocante. Comecei a cantarolar, um zumbido desafinado
que era mais resignação do que segurança. Käthe deslizou a mão na minha e
apertou-a confortavelmente, a palma da mão surpreendentemente quente.
Eu olhei para a flauta ao meu lado. Estava fumando um pouco, mas não
de calor. O gelo margeava suas juntas, a madeira congelada de seu corpo quase
dolorosa demais para conter. Eu trouxe de volta para a minha boca, meus
lábios grudados na embocadura de metal com borda de gelo. Um suspiro
atravessou a superfície quando comecei a tocar mais uma vez, minha
respiração formando nuvens diante de mim.
Era meu primeiro encontro com Der Erlkönig naquela noite longa e
interminável, mas não seria o último. De novo e de novo, ele apareceu diante
de mim, me provocando, me enganando. Fiquei firme e inabalável, passando
por suas aparições e por suas ilusões. Era mais fácil, de alguma forma, quando
eu pensava nele como a figura aterrorizante e enigmática do mito das histórias
de Constanze, em vez do Rei dos Elfos com quem eu havia dançado como uma
criança e uma jovem mulher. Não havia nada do meu Rei dos Elfos dentro do
Der Erlkönig.
Cada triunfo contra Der Erlkönig fortalecia minha determinação, mas eu
cresci excessivamente confiante. Eu havia superado seus truques
sobrenaturais; Eu não tinha contado com os psicológicos dele.
Eu tocava a flauta de novo - alternava entre cantar e tocar em um esforço
para preservar minha voz e minha respiração - quando ouvi o violino.
Eu, que crescera com papai, eu que nutrira o talento virtuoso de Josef,
nunca ouvira falar desse tipo. O violinista tocava uma peça que eu não
conhecia. Eu não reconheci o compositor, embora eu achasse que eu podia
ouvir a complexidade contrapontística de Bach, a expressividade elegante de
Vivaldi e o encanto grandioso de Handel dentro da peça. Havia devoção em
cada tensão - devoção, reverência, êxtase - e eu quase chorei da beleza dela. Eu
parei de cantarolar.
O aroma dos pêssegos de verão encheu o corredor.
Até mesmo Käthe parecia comovida, embora não pudesse dizer a
diferença entre um concerto e uma chacona. Minha irmã balançava em seus
pés, fechando os olhos como se tentasse escutar com mais atenção.
A música vinha de algum lugar além do alcance. De mãos dadas, Käthe
e eu seguimos o som até onde parecia mais alto, mais claro, mais tocante. Mas
não havia músico à nossa frente, ninguém para parabenizar pela delicadeza de
seu jeito de tocar. Na verdade, a música parecia vir de trás da parede de terra
da passagem, em outro cômodo, outro mundo. Eu pressionei meus ouvidos na
terra, lutando para chegar mais perto da fonte desse som.
Eu agarrei a terra, cavando, cavando, procurando, alcançando. A música
ficou mais alta quando eu me pressionei na terra, me enterrando mais e mais
no Submundo. A terra em movimento se mexia e se mexia ao meu redor, a
terra caindo para trás em meus ombros enquanto cavava e me aproximava da
música.
Eu não sabia onde eu estava cavando, ou para quem. Eu não sabia se era
para a liberdade, para o mundo acima, para o músico desconhecido, para Josef
ou para o próprio anjo da música. Eu só sabia que não podia morrer sem ter
visto o rosto por trás da magia.
—Sepperl! — Eu chorei. Ou talvez fosse o nome de Deus. Sujeira encheu
minha boca e minhas narinas, mas eu não me importei.
—Liesl!
Através das orelhas cheias de terra, pensei ter ouvido um grito. Meu
nome, talvez. Uma voz que eu conheci uma vez.
—Liesl, por favor.
Mãos nos meus ombros, puxando e puxando e me arrastando para longe.
—Não! — Minha garganta estava entupida de sujeira, e eu engasguei
com ela. A música estava desaparecendo e eu chorei sua perda.
—Você não pode fazer isso. Você não pode me deixar aqui para fazer isso
sozinha.
Algo molhado caiu no meu rosto. Chuva? Como poderia chover no
subsolo?
Mais algumas gotas. Então outra. Elas estavam quentes, tão quentes.
Quase vivas. Como nenhuma chuva que eu já senti. Uma gota deslizou para o
canto da minha boca e eu provei. Sal.
Lágrimas. Elas eram lágrimas.
Käthe estava chorando.
—Liesl, Liesl. — Ela choramingou, agarrando-me ao peito, balançando-
nos para frente e para trás.
—Käthe. — Eu resmunguei, em seguida, tossi, cuspindo pedaços de
sujeira, lama e até folhas. Meus pulmões estavam em carne viva, cada
respiração se desenhando sobre cascalho e carvão. Quando meu juízo voltou,
vi que estava enterrada em meu pescoço na terra solta e nas pedras do chão do
corredor, cavando meu túmulo com minhas próprias mãos.
—Oh, graças a Deus! — Minha irmã trabalhou furiosamente no meu
corpete e ficou, tentando soltar as cordas para me ajudar a respirar. Tossi,
vomitei, tossi e vomitei até a bile ficar clara.
Ao longe, eu ainda podia ouvir os acordes fantasmagóricos daquele
violino angelical, mas minha irmã me segurou firmemente em seu aperto, meu
rosto em suas palmas.
—Fique comigo. — Seus olhos azuis procuraram os meus. —Bem aqui.
Não escute. Não é real. Não é Josef. Não é o papai. É o rei dos elfos. É um
truque.
Não é Josef. Não é o papai. É o rei dos elfos. É um truque. Repeti essas palavras
como um refrão, abafando a doce música que me envolvia e ameaçando roubar
meus sentidos. O cheiro dos pêssegos de verão era mais forte do que nunca, só
que agora sentia o cheiro de putrefação.
Encanto dos elfos, eu percebi.
Käthe limpou a lama e o sangue do meu rosto e ajudou-me a levantar-se,
conduzindo-me pelo corredor comprido e labiríntico.
Querida, doce, não musical Käthe. Cada vez que o feitiço do violino
apertava seu domínio sobre minha inteligência, minha irmã apertava minha
mão com mais força. Doeu, mas eu apreciei a dor; isso me lembrava quem eu
era e o que estava fazendo. Eu era Liesl. Eu era a irmã mais velha de Käthe. Eu
estava resgatando ela do Rei dos Elfos. Eu estava salvando a vida dela. Só
agora era minha irmãzinha salvando a minha.
No momento, o perfume de pêssego desapareceu do ar, meus sentidos
clarearam e ouvi a música com uma mente inteira. A magia se foi. Não havia
anjo da música, nenhuma presença divina, apenas os sons falíveis da
performance mortal. Linda, mas humana.
A curiosidade voltou junto com minha inteligência. Algo - alguém tocava
violino e a música estava mais perto do que nunca.
A luz brilhava através de uma grande fenda na parede do labirinto à
nossa frente. Uma silhueta magra projetava uma sombra contra o piso da
passagem. Der Erlkönig. Eu não me maravilhei, então, que conhecia a forma
de seu corpo, assim como meu próprio reflexo.
Eu assisti a sombra do Rei dos Elfos tocar seu violino, seu braço direito
movendo-se em um movimento suave e praticado. Käthe tentou me afastar,
mas eu não fui com ela. Eu me aproximei da luz e pressionei meu rosto na
fresta. Eu tinha que olhar, tinha que ver. Eu tinha que vê-lo jogar.
As costas do Rei dos Elfos estavam voltadas para mim. Ele não usava
casaco chique nem roupão bordado. Ele estava simplesmente vestido com
calças e uma camisa de cambraia, tão bem que eu podia ver o jogo de músculos
nas costas dele.
Ele tocava com precisão e com considerável habilidade. O rei dos elfos
não era Josef; ele não tinha a clareza de emoção do meu irmão ou a
transcendência do meu irmão. Mas o Rei dos Elfos tinha sua própria voz, cheia
de paixão, saudade e reverência, e era inesperadamente... vibrante. Vivo.
Eu podia ouvir os ligeiros desajeitados, os gaguejos e os arranques, a nota
dissonante acidental que marcava sua atuação como humana, oh tão humana.
Este era um homem - um homem jovem? - tocando uma música que ele gostava
no violino. Tocando até que soasse perfeita para seus ouvidos imperfeitos. Eu
tinha me deparado com algo particular, algo íntimo. Minhas bochechas ficaram
vermelhas.
—Liesl...
A voz da minha irmã cortou o som do Rei dos Elfos tocando como uma
guilhotina, parando a música no meio da frase. Ele olhou por cima do ombro
e nossos olhos se encontraram.
Seu olhar incompatível estava desprotegido, e eu me senti envergonhada
e encorajada. Eu o tinha visto despido em seu quarto de dormir, mas ele estava
ainda mais nu agora. Propriedade me disse que eu deveria desviar o olhar, mas
não pude, presa pela visão de sua alma revelada a mim.
Nós olhamos um para o outro através da fenda na parede, incapaz de
nos mover. O ar entre nós mudou, como um mundo antes de uma tempestade:
silencioso, quieto, esperando, expectante.
Um gemido rompeu a tensão. Käthe. A expressão encapuzada caiu sobre
os olhos do Rei dos Elfos, e ele era distante e intocável, Der Erlkönig mais uma
vez.
—Liesl —, Käthe sussurrou. —Vamos lá. Por favor.
Eu tinha esquecido a existência da minha irmã. Eu tinha esquecido
porque eu estava lá. Eu tinha esquecido tudo, exceto a visão dos olhos do Rei
dos Elfos, cinza e verde e azul e marrom juntos. Käthe puxou minha manga e
eu segui, correndo pelo corredor de mãos dadas com minha irmã. Correndo
antes que Der Erlkönig pudesse nos pegar, correndo antes que ele pudesse nos
prender novamente com palavras doces e encantamentos doces, e correndo
antes que eu pudesse entender completamente a estranha e sincopada batida
do meu coração simpático.
Vitória pirrônica

O céu estava escuro quando finalmente emergimos do Submundo,


cobertos de estrelas sem fim. A lua ainda não havia surgido e eu não sabia
quanto tempo havia passado. Chegamos tarde demais?
Eu olhei ao meu redor. A floresta ao redor não era familiar, iluminada
pelo brilho sobrenatural da luz das estrelas. As árvores cresciam em formas
distorcidas, esculpidas por séculos de vento - ou uma mão conduzida por elfos.
Elas cresceram como se estivessem se esforçando para dançar e vagar livre,
apenas para serem enraizadas rapidamente e presas pela terra abaixo delas.
Pensei nas histórias que Constanze nos contara sobre donzelas transformando-
se em árvores e estremecendo, embora a noite fosse curiosamente leve.
Não, nós não estávamos muito atrasadas. Eu olhei para a grande
extensão aberta acima de mim. O céu acima de mim era a prova, prova que eu
havia vencido. Meus olhos ardiam contra a luz; depois do que pareciam dias
enterrados sob terra, raízes e rochas, a visão de estrelas foi o suficiente para me
levar às lágrimas.
—Oh —, eu murmurei. —Oh, venha e veja!
Eu saí das raízes de um enorme carvalho, através de um buraco de coelho
que não era grande o bastante para o coelho. Käthe e eu vagamos pelos
intermináveis corredores pelo que pareciam dias a fio. Os túneis tinham se
tornado mais estreitos e mais estreitos, os acabamentos mais ásperos e ásperos,
as sutilezas da civilização gradualmente desaparecendo até que nos
arrastamos de joelhos. Eu estava orgulhoso da minha irmã; ela nunca uma vez
reclamou da sujeira em seu vestido, as pedras sob as palmas das mãos, ou as
raízes rasgando seus cabelos. Tive coragem de sua coragem e nunca hesitei,
mesmo quando o desespero se agarrava aos meus tornozelos quando as
passagens começaram a se encolher ao nosso redor.
—Käthe —, eu chamei. —Venha e veja!
Eu me virei para ajudar minha irmã, mas tudo que eu podia ver eram
seus belos olhos azuis nas sombras do carvalho.
—Käthe —, repeti. —Venha.
Ela não se mexeu. Seus olhos dispararam para um ponto atrás de mim.
—Qual é o problema com você? — Eu me ajoelhei diante da árvore e
peguei minha irmã. — Acabou. Nós escapamos do Rei dos Elfos.
—Você já?
Eu me virei. O Rei dos Elfos estava diante de mim em uma clareira,
vestindo calças de couro e uma jaqueta grosseira. Se não fosse pela palidez de
sua pele, ou pelas pontas afiadas de seus dentes cutucando através de seu
sorriso, eu poderia tê-lo confundido um dos pastores locais. Mas ele não era
um pastor de ovelhas. Ele era bonito demais e terrível demais.
—Eu não tenho? — Eu apontei para o céu noturno. —Eu venci você e seu
labirinto esquecido por Deus.
—Ah, mas não estamos, de alguma forma, todos presos em um labirinto
criado por nós mesmos? — Perguntou o Rei dos Elfos.
—Um filósofo, bem como um rei —, eu murmurei. —Quão encantador.
—Você me acha encantador, Elisabeth? — Sua voz era um ronronar de
veludo.
Eu procurei em seu rosto pelo jovem de olhos suaves, uma dica, uma
âncora que eu poderia me agarrar. Mas eu não consegui encontrar nenhuma.
—Não.
O Rei dos Elfos fez beicinho. —Você me feriu. — Ele se aproximou,
trazendo com ele o cheiro de gelo e doce franco. Ele pegou meu queixo em seus
dedos longos e elegantes e levantou meu olhar para o dele. —E você mente.
—Liberte-me .— Eu tremia, mas minha voz era firme.
Ele encolheu os ombros. —Como você deseja. — Ele se afastou, e a
ausência de seu toque foi um frio repentino. —Eu não vejo sua irmã com você.
Suspirei. Käthe, tão valente até agora, de repente se transformou em nada
em sua presença. Ela permanecia escondida nas raízes do grande carvalho, sem
vontade de sair para o céu aberto.
—Então me ajude a libertá-la da árvore. — Eu disse.
Ele levantou a sobrancelha. —Com nenhum por favor? Tsk, tsk, onde
estão suas maneiras, Elisabeth?
—Eu gostaria que você libertasse Käthe da árvore.
O Rei dos Elfos fez uma reverência. —Seu desejo é uma ordem.
O carvalho se separou da raiz às pontas, revelando uma Käthe
aterrorizado em seu coração. Ela estava firmemente enrolada em uma bola,
escondendo o rosto entre os joelhos, os ombros tremendo de medo.
—Käthe, Käthe. — Eu a peguei em meus braços. —Está tudo bem. Está
tudo acabado. Nós podemos ir para casa agora.
—Não tão rápido. — O Rei dos Elfos se adiantou. —Ainda não
terminamos.
Minha irmã se encolheu e enterrou o rosto no meu ombro.
—Sim, estamos —, eu disse. —Nós tivemos uma aposta.
—Nós tínhamos? Lembre-me.
Às vezes era fácil demais esquecer que Der Erlkönig era sem idade,
antigo, mais velho que essas colinas. —Que eu iria encontrar o meu caminho
para fora do Submundo e trazer a minha irmã —, eu disse com os dentes
cerrados. —E eis que aqui estamos, no mundo acima.
—É isso que você acha?
O medo começou a crescer dentro de mim, subindo as águas do pânico,
pingando por gotejamento. —O que você quer dizer?
—Um esforço valente, Elisabeth —, disse o Rei dos Elfos. —Mas você
perdeu.
Em suas palavras, a floresta sobre mim mudou. O que eu havia tomado
por árvores se transformou suavemente em colunas de pedra, folhas em
pedaços de pano esfarrapado, e o céu noturno congelou e quebrou, como um
lago coberto de gelo no inverno. Käthe soltou um soluço baixinho no meu
ombro, e o que eu havia tomado pela batida de seus dentes era, na verdade,
um refrão repetitivo: tarde demais, tarde demais, tarde demais.
—Não —, eu sussurrei. —Ah não.
Nós ainda estávamos no subsolo.
—Sim —, disse ele, a palavra uma carícia suave e sibilante. —Eu ganhei.
Eu agarrei minha irmã mais forte para mim.
—Bem —, o Rei dos Elfos emendou. —Eu vou ganhar, uma vez que a lua
cheia se levantar no ano novo.
Eu endureci. —Não apareceu ainda?
—Ainda não —, ele admitiu. —Você está perto. Muito perto para o
conforto, na verdade. —Ele acenou com a mão. O céu gelado ondulou, e as
estrelas retornaram, fracas e aquosas, como se fossem vistas através de uma
reflexão sobre a superfície de um lago.
—Estamos no limiar —, ele disse. —O mundo acima está além desse véu.
Käthe respirou fundo quando se virou para as estrelas. Elas banharam o
rosto e o cabelo em prata e ela fechou os olhos, como se quisesse fechar a visão
da liberdade, tão perto e tão distante.
—Quanto tempo antes do nascer da lua? — Perguntei.
—Não muito tempo —, disse o Rei dos Elfos. Um sorriso se espalhou pelo
rosto dele. —Não é tempo suficiente para você escapar, pelo menos.
—Você tem que me dar uma chance.
Ele cruzou os braços. —Não.
—Um cavalheiro honraria as regras.
—Ah, mas eu não sou um cavalheiro, Elisabeth. — O Rei dos Elfos era
tudo afetação e sarcasmo lânguido. —Eu sou um rei.
Realização me varreu em uma onda. —Você nunca ia me deixar vencer.
—Não. — Ele mostrou os dentes. —Afinal de contas, não sou o Senhor
do Mal?
O Senhor do Mal. Claro.
—Então, por que jogar este jogo? —, Perguntei. —Por que se preocupar
com tudo isso quando você poderia simplesmente ter tomado o que queria?
Uma expressão insondável apareceu em seus olhos. De repente, ele
parecia terrivelmente velho - velho e cansado. Lembrei-me de que Der
Erlkönig existira nessas montanhas e bosques há mais tempo do que eu, mais
do que o próprio tempo.
—Eu não quero isso. — As palavras eram suaves, tão suaves que eu
poderia tê-las imaginado. —Eu nunca quis isso.
Surpresa cortou através de mim, deixando-me frio e sem fôlego. —Mein
Herr—, eu disse. —Então o que…
O Rei dos Elfos riu. Seu rosto, antes velho e abatido, assumiu uma
expressão pungente. Suas feições afiadas: seu olhar duro e brilhante, as maçãs
do rosto um pouco de sombra.
—O que você achou que a resposta seria, Elisabeth? Eu brinco com você
porque eu posso. Porque isso me dá muito prazer. Porque eu estava entediado.
Um grito inarticulado de raiva me estrangulou. Eu queria destruir
alguma coisa, gastar minha raiva contra a injustiça de tudo. Eu não queria nada
mais do que lutar com o Rei dos Elfos, para rasgá-lo de membro em braço. Eu
apertei minhas mãos em punhos.
—Sim —, ele murmurou. —Continue. Bata em mim. Golpeie-me. O
convite não foi apenas em suas palavras, mas em sua voz. — Ele avançou. —
Use sua raiva contra mim.
Nós olhamos um para o outro, mal a metade da respiração entre nós. Tão
perto, eu pude ver que seu olho cinza estava salpicado de prata e azul, seu
verde anelado com âmbar e ouro. Aqueles olhos zombavam de mim,
convidando e incitando-me a uma paixão. Se eu fosse uma brasa latente, ele
era o braseiro, me incitando em chamas.
Eu recuei. Eu estava com medo. Com medo de tocá-lo por medo de
acender um fogo dentro de mim.
—O que —, eu perguntei com força. —você quer de mim, mein Herr?
—Eu já disse a você o que eu quero —, disse ele. —Você, inteira.
Nós não abandonamos o olhar um do outro. Deixe ir, seus olhos
pareciam dizer. Mas eu não consegui; se eu me rendesse à minha fúria, não
tinha certeza do que mais eu desistiria.
—Por quê? — Minha voz estava rouca.
—Por quê, Elisabeth?
—Por que eu? — Minhas palavras eram quase inaudíveis, mas o Rei dos
Elfos as ouviu. Ele sempre me ouvia.
—Por que você? — Aqueles dentes afiados e pontiagudos brilhavam. —
Quem mais além de você? — Mesmo suas palavras eram afiadas, cada uma
cortando através de mim como uma lâmina. —Você, que sempre foi minha
companheira de brincadeiras?
O riso infantil ecoou em meus ouvidos, mas era mais memória do que
som, a lembrança de uma garotinha e de um garotinho dançando juntos na
floresta. Ele, o rei dos elfos, e ela, a filha de um estalajadeiro. Não, filha de um
músico. Não, ela mesma, uma musicista.
Uma esposa, disse o garotinho. Eu preciso de uma esposa. Você vai se casar
comigo algum dia?
A pequena musicista riu.
Apenas me dê uma chance, Elisabeth.
—Uma chance —, eu sussurrei. —Me dê uma chance de ganhar. A lua
ainda não se levantou.
O Rei dos Elfos não disse nada por um longo momento. —O jogo é
invencível —, disse ele por fim. —Para você ou para mim.
Eu balancei a cabeça. —Eu devo tentar.
—Oh, Elisabeth. — A maneira como ele disse meu nome estendeu a mão
e acariciou uma parte interna de mim. —Quase se pode admirar sua
tenacidade, se não fosse tão tola.
Eu abri minha boca para falar, para defender meu caso, mas ele colocou
seus longos dedos contra meus lábios e me silenciou.
—Muito bem —, disse ele. —Uma última chance. Um último jogo.
Encontre sua irmã e eu deixarei vocês duas irem.
—Isso é tudo?
Sua única resposta foi um sorriso, mais assustador que reconfortante.
—Tudo bem —, eu disse, minha voz tremendo. —Vamos, Käthe, vamos
embora daqui.
Mas ela não veio.
—Käthe?
Eu me virei, mas estava sozinha, minha irmã desapareceu. Novamente.
Encontre sua irmã.
Eu gritei então. A caverna balançou com meus gritos, raiva, auto-aversão,
ódio, desespero. O mundo ao meu redor mudou novamente, e eu estava mais
uma vez naquela estranha e misteriosa floresta, no frio com as estrelas acima.
O céu estava claro e as estrelas observavam de uma distância desapaixonada.
Eu estava no mundo acima.
—Oh não—, eu disse. —Não, não, não, não.
Na mata, apenas os ecos da risada zombeteira de Der Erlkönig
permaneciam.
—Seu bastardo! — Eu me enfureci. —Saia e lute justo!
E lá estava ele, de pé em um bosque distante com Käthe em seus braços,
seu corpo flácido envolto em seus braços como um pano de altar, sua cabeça
caindo para trás, seus braços abertos. Eles formavam uma espécie de pietà10
torcida: o Rei dos Elfos, o enlutado, a minha irmã, a mártir morta.
Corri para frente, mas no instante em que meus dedos tocaram sua saia,
ela e o Rei dos Elfos desapareceram. Onde minha irmã estava, não havia nada
mais do que um pedaço de seda flutuando na brisa, presa nos galhos de uma
bétula.
—Liesl!

10 Pena - Italiano
A voz de Käthe estava abafada. Eu me virei, seguindo desesperadamente
o som de seus gritos. Lá estava ela, presa numa jaula de galhos; mas não, não
era nada além de uma árvore crescendo de uma rede de trepadeiras. Então eu
a vi à mercê de vários elfos, com os braços presos atrás das costas. Eles não
pareciam mais humanos apesar de suas formas bonitas, seus sorrisos lascivos
não mais convidativos, mas ameaçadores.
Eu corri atrás deles, mas não era Käthe em suas garras; era eu. Eu estava
rodeada de elfos altos e elegantes, feitos nos moldes de seu rei - lânguidos,
bonitos, cruéis. Senti o toque de seus lábios contra a minha pele, pequenos
amordaços de amor contra a minha garganta, como se quisessem me devorar.
Mas não, eles não eram elfos, mas ramos de inverno mortos: seus galhos
rasgando minhas roupas e cabelos em tiras.
—Liesl!
Os gritos de Käthe eram fracos, mas de alguma forma mais próximos.
Como se ela estivesse debaixo de mim, enterrada em algum lugar no fundo da
terra. Eu caí de joelhos e agarrei a terra, cavando freneticamente.
—Desista, Elisabeth —, insistiu o Rei dos Elfos. —Desista e se renda para
mim.
Sua voz estava em toda parte e em nenhum lugar ao mesmo tempo. Ele
era o vento, ele era a terra, ele era as árvores, as folhas, o céu e as estrelas. Eu
lutei contra ele e a floresta lutava, confundindo meu senso de tempo, distância
e até mesmo eu.
—Liesl!
Um baque abafado. Limpei as folhas, galhos e pedras e terra antes que
minhas mãos batessem em algo tão duro e liso como vidro.
—Liesl!
Sob minhas mãos estava Käthe, presa atrás de uma camada de gelo. Um
lago congelado? Eu inutilmente bati na superfície, chamando o nome dela. Ela
estava se afogando? Eu gritei com frustração, arranhando, coçando e batendo
até minhas palmas racharem e sangrarem, deixando manchas de sangue sobre
o gelo.
De repente, o gelo desapareceu debaixo de mim, revelando uma Käthe
frenética. Mas para o pânico em seu rosto, ela parecia sã. No entanto, quando
olhei mais de perto, tudo estava errado. Minha cabeça girou; embaixo de mim
não estava o preto profundo de um lago congelado, mas o infinito estrelado de
um céu de inverno. Käthe não estava olhando para mim, mas para baixo, como
se estivesse ajoelhada ao lado da lagoa, em vez de flutuar por dentro. Suas
mãos golpearam o gelo ao ritmo das minhas, mas eu não sabia mais qual era o
caminho. Eu estava presa no subsolo? Ou ela estava?
—Desista, Elisabeth. — O rosto do Rei dos Elfos estava refletido na
superfície lisa do gelo, mas quando me virei, não havia ninguém atrás de mim.
—Solte.
Mas eu não soltaria. Procurei por algo - qualquer coisa - que eu pudesse
usar para esmagar o gelo entre minha irmã e eu. Mas não havia nada.
Nenhuma pedra, nenhum galho.
Então me lembrei da flauta feita por gnomos. Eu tinha empurrado o
instrumento pela cintura da minha saia, uma vez que passamos de corredores
para túneis no Submundo, quando eu não conseguia mais tocá-la por ter
engatinhando em minhas mãos e joelhos. Minhas mãos tatearam a flauta,
desamarrando as cordas que seguravam meu avental, saia e modéstia juntas.
Eu nao me importava. Eu rasguei minhas roupas e liberei o instrumento.
Um lampejo de incerteza cruzou os olhos do Rei dos Elfos, ainda refletido
no gelo abaixo de mim. —Não, Elisabeth...
Mas eu nunca ouviria o que ele estava prestes a dizer. Eu levantei a flauta
acima da minha cabeça com as duas mãos. O vento pegou sua miríade de teclas
e parou, tocando uma doce melodia assobiante, abafando todos os outros sons.
Então eu trouxe a flauta para baixo como um machado com toda a minha
força.
Ressureição

Eu abri meus olhos para uma luz brilhante. Eu me encolhi e levantei a


mão para protegê-los, mas não vi nada. Estava muito frio, mas o ar estava
fresco e trazia consigo o aroma de abertura.
—Estou impressionado.
Eu olhei para as sombras. Eu podia apenas distinguir a figura esguia e
esbelta do Rei dos Elfos na escuridão, mas foram seus olhos que captaram a
luz e brilhavam como os de um lobo.
—Contra todas as probabilidades, você conseguiu me quebrar, Elisabeth.
Minha risada foi tão áspera quanto o cascalho sob minhas mãos. Quando
meus olhos se ajustaram, vi que o Rei dos Elfos e eu estávamos caídos contra o
chão, como dois soldados caídos em batalha. Nós nos deitamos em uma
câmara de barro, iluminada por uma luz brilhante em cima.
A lua cheia.
Sentei-me, estremecendo quando meu corpo - endurecido e espancado -
deu um poderoso protesto. —Käthe. — Eu resmunguei.
O Rei dos Elfos se levantou e acenou com a cabeça. —Além.
Uma pequena e amarrotada forma jazia no chão a poucos metros de mim.
Eu tentei ficar de pé, mas o mundo girou abaixo de mim e eu desmaiei. Eu me
coloquei de joelhos e me arrastei para o lado da minha irmã.
Käthe estava inconsciente, mas sua respiração se misturava levemente no
ar frio ao nosso redor, o pulso de seu coração fraco, mas constante. Eu olhei
para o Rei dos Elfos.
—Ela está viva —, disse ele. —E bem. Bem, talvez um pouco pior para o
desgaste. Mas ela está ilesa e não sofrerá nenhum dano quando acordar no
mundo acima.
Eu acariciei a testa de Käthe. Sua pele estava fria, mas debaixo do meu
toque, sua carne parecia viva, respirando a pele.
—É isso, então? — Eu perguntei. —Eu ganhei?
Ele estava quieto, quieto por tanto tempo que eu temia que ele nunca
falasse novamente. —Sim—, disse ele. Havia mais do que fadiga em sua voz;
havia derrota. —Você ganhou, Elisabeth.
De alguma forma, a declaração não trouxe a sensação de vitória ou
triunfo que eu esperava. Meu corpo estava machucado e ensanguentado, e eu
estava cansada, tão cansada. —Oh. — Foi tudo o que eu disse.
—Oh? — Embora eu não pudesse ver seu rosto claramente nas sombras,
eu sabia que sua sobrancelha estava levantada. —Você que me enfrentou em
todo meu poder, você que parte o tecido do meu mundo em pedaços, você que
quebrou as velhas leis - tudo o que você pode dizer é oh?
De todas as coisas, isso trouxe um sorriso na minha cara. —Posso ir
então?
—Você não precisa da minha permissão, Elisabeth. — Sua voz era suave.
—Você nunca precisou da minha permissão para nada.
Eu virei minha cabeça para longe. —Como eu poderia confiar nisso
depois de tudo que você fez comigo?
Houve um longo silêncio, antes que uma pequena voz irregular voltasse
para mim. —Eu fiz coisas terríveis, sim —, disse ele. —E você suportou o peso
disso. Sim, você estava certa em não confiar em mim. — O espaço entre nós,
vazio de palavras, estava cheio de arrependimentos e memórias dolorosas. —
Eu fui seu amigo uma vez—, disse ele. —Eu tive sua confiança, uma vez. Mas
eu desperdicei isso horrivelmente, não é?
—Sim. — Eu não via razão para mentir. Mas mesmo quando lhe contei a
verdade, uma parte do meu coração protestou contra a dor, tanto a dele como
a minha. Eu caí, minha cabeça contra o ombro da minha irmã. Nossos corpos
subiram e caíram juntos.
—Lá. — O Rei dos Elfos apontou. —Esse é o seu caminho de fuga.
O luar entrava por uma abertura acima de nossas cabeças, a luz da lua e
das estrelas e o ar frio do inverno.
—Você está tão perto do fim, você só precisa dar o menor passo para
encontrar a sua liberdade.
O mais simples passo. Vinte metros acima de nossas cabeças, uma saída
para o mundo acima. Nenhuma grande distância depois do que eu tinha
passado. Mas eu fui gasta, torcida de cada gota de determinação e vontade.
—Bem —, disse o Rei dos Elfos, uma sugestão de impaciência em sua
voz. —O que você está esperando? Deixe-me aqui e vá. Volte para sua família,
sua mãe e pai e sua inimitável avó. Volte com sua irmã, volte para o seu irmão,
volte para aquele amante insuportável e impassível e seja feliz.
Mãe. Papai. Constanze. Hans. De alguma forma, sentar aqui com o Rei
dos Elfos era preferível a enfrentar o mundo acima. Afinal, a que mundo eu
estaria voltando? Pensei naquela falsa realidade que quase me seduzira, um
mundo em que eu não era Liesl, a filha do estalajadeiro, Liesl, a irmã
descartada, Liesl, a menor. Aquele não era o mundo que me esperava.
—Elisabeth —, disse o Rei dos Elfos. —Você deve sair agora. O caminho
está aberto enquanto a lua estiver elevada. Você não tem muito tempo.
— Se você está tão ansioso para que eu vá embora, mein Herr — Falei. —
me conjure uma escada de trepadeiras ou uma escada de raízes de árvores. Eu
não sou tão alta a ponto de chegar ao fim sozinha.
—Você me quebrou, minha querida. Eu mal posso conjurar meu nome,
muito menos uma escada.
—Bem, você me disse que o jogo não podia ser vencido. Eu deveria ter
aceitado sua palavra.
Até a risada dele estava cansada. —Ah, a maldição do vencedor —, disse
ele. —Custou mais para ganhar do que para perder. — Então ele ficou sério. —
Custou a nós dois.
—O que isso vai custar a você? — Eu não tinha a força - ou o coração -
para zombar dele agora, não quando nós dois estávamos quebrados. —O que
vai custar a você, mas uma noiva?
—Oh, Elisabeth. Isso nos custará tudo.
Eu esperei. Eu coloquei minha cabeça contra a carne macia de Käthe,
ouvindo o baque lento de seu coração batendo.
—Como o ano velho morre, o mesmo acontece com o mundo. Sem
sacrifício, nada de bom pode crescer. Sem morte, não pode haver renascimento.
Uma vida pela vida, esse é o custo.
—Você ouviu que foi dito: Olho por olho e dente por dente. — Murmurei.
—Sim —, disse ele. —As leis antigas e as leis de Deus não são tão
diferentes.
—Você poderia —, eu comecei, mas as palavras ficaram presas na minha
garganta. —Você poderia encontrar outra noiva, não poderia?
—Sim —, disse o Rei dos Elfos. Ele parecia quase ferido. —Eu suponho
que eu poderia.
—Você supõe?
Demorou muito até ele responder. —Você gostaria de outra história,
minha querida? Não é tão bonita como a minha última, estou com medo.
—Antes da lua? — Eu olhei através do limiar para o mundo acima.
Ele riu. —Temos tempo suficiente para isso.
Eu balancei a cabeça.
—Era uma vez, um tempo selvagem e violento, humanos, elfos, kobolds
Hödekin e Lorelei viviam lado a lado no mundo acima, alimentando, lutando,
matando. Foi, como eu havia dito, um tempo sombrio, e o homem virou-se
para práticas obscuras para manter as marés sangrentas à distância. Sacrifícios,
você vê. O homem voltou-se contra o irmão, os pais contra as filhas, os filhos
contra as mães, tudo para apaziguar os elfos. Para impedir as mortes
desnecessárias, um homem - um homem estúpido e tolo - fez um acordo com
as antigas leis da terra, oferecendo-se como um sacrifício.
—A última vez, foi uma linda donzela. — Eu disse do meu lugar ao lado
de Käthe.
—Uma brava donzela. — Corrigiu o Rei dos Elfos.
Eu sorri.
—Sua alma era o preço —, continuou ele. —O preço que ele pagou para
separar os elfos e os fey do mundo acima. Sua alma e seu nome. Não mais um
homem mortal, ele se tornou Der Erlkönig. Por sua barganha, o homem tolo
recebia a imortalidade e o poder de manipular os elementos de acordo com
suas necessidades. Ele restaurou a ordem, as estações progrediram da maneira
normal. Mas quanto mais longe da mortalidade ele cresceu, mais caprichoso e
cruel ele se tornou, esquecendo como era viver e amar.
Ele estava certo; não era uma história bonita. O que a imortalidade fazia
com alguém que já foi mortal? O minguava. Eu observei o pouco que eu podia
ver do Rei dos Elfos do meu ponto de vista. Nesta meia-luz, neste meio-espaço
entre o Submundo e o mundo acima, pensei poder ver o homem mortal que
ele poderia ter sido. O jovem austero na galeria de retratos. Aquele jovem de
olhos suaves que tinha sido meu amigo.
—Não é apenas a vida de uma donzela que eu precisava, você sabe —,
disse o Rei dos Elfos em voz baixa. Eu olhei bruscamente para ele; seu tom
mudara. —Era o que uma donzela pode me dar.
—E o que é isso?
Seu sorriso estava torto. —Paixão.
Calor brilhou nas minhas bochechas.
—Não esse tipo de paixão —, ele disse rapidamente. Eu imaginei coisas,
ou as bochechas dele estavam tingidas de rosa? —Bem, sim, isso também.
Paixão de todos os tipos —, disse ele. —Intensidade.
—Elfos não se sentem como os mortais —, ele continuou. —Vocês
humanos vivem e amam tão ferozmente. Nós ansiamos por isso. Nós
precisamos disso. Esse fogo nos sustenta. Isso me sustenta.
—É por isso que você roubou Käthe? — Olhei para minha irmã,
pensando em seu corpo voluptuoso e convidando a rir. —Por causa da paixão
que ela inspirava?
O Rei dos Elfos balançou a cabeça. —O tipo de paixão que ela inspira em
mim é tudo em forma de lampejos e sem calor. Eu preciso de uma brasa,
Elisabeth, não um fogo de artifício. Algo que queima mais, para me manter
aquecido para esta noite e todas as outras noites que virão.
—Então Käthe...
Eu não consegui terminar minha pergunta.
—Käthe —, disse ele em voz baixa. —era um meio para um fim.
A maneira como ele falou da minha irmã me irritou. Um meio, como se
ela fosse barata. Descartável. Inútil.
—Para que fim? — Perguntei.
—Você sabe a resposta, Elisabeth. — Ele disse suavemente.
E eu sabia. Os mercadores elfos, a flauta, desde quando ele concedeu meu
desejo de salvar a vida de Josef - tudo o que ele fez, ele fez por mim.
—Um meio para um fim —, eu sussurrei. —Eu.
Ele não negou isso.
—Por quê?
O Rei dos Elfos ficou em silêncio por um longo tempo. —Quem mais
além de você? — Ele perguntou levemente. —De quem é a vida que você
prefere ser?
Ele estava evitando responder minha pergunta. Nós não nos olhamos. A
escuridão estava completa demais e a luz do mundo acima era muito dura.
Mas eu podia sentir uma resposta entre nós, pulsando como um batimento
cardíaco. Isso fez minha respiração ficar mais rápida.
—Eu —, eu disse, um pouco mais alto. —Por que eu?
—Por que não você? — Ele retornou. —Por que não a garota que tocou
sua música para mim no Bosque dos Elfos quando ela era criança?
Ele tinha dito muito, mas nada que eu quisesse ouvir. Que ele me
desejou. Que ele me escolheu. Que ele... eu queria ouvir a verdade em seus
olhos, disse em voz alta. Eu podia sentir o olhar dele em cada parte do meu
corpo: no meu pescoço, onde meu ombro desaparecia nas mangas rasgadas da
minha blusa, a linha da minha clavícula que levava ao meu decote, o volume
dos meus seios enquanto eu respirava. Eu esperei por isso a minha vida inteira,
percebi. Não é bonito, mas desejável. Procurada. Eu queria que o Rei dos Elfos
me reivindicasse como sua.
—Por que eu? — Eu repeti. —Por que Maria Elisabeth Ingeborg Vogler?
Eu segurei seus olhos com os meus. Ele tinha seu orgulho, mas eu
também. Se eu fosse cumprir a promessa que fiz naquele pequeno menino
dançando na floresta todos esses anos atrás, eu precisava ouvir a validação de
seus próprios lábios.
—Porque —, disse ele. —Porque eu amei a música dentro de você.
Eu fechei meus olhos. Suas palavras eram a faísca da liteira que revestia
meu sangue; Elas tocaram meu coração e calor brilhou por dentro, espalhando-
se através de mim como um incêndio.
—Uma vida por uma vida —, eu disse. —Isso significa... isso significa
que o sacrifício deve morrer?
—O que significa morrer? — Perguntou o Rei dos Elfos. —O que significa
viver?
—Eu disse a você que não acho o filósofo encantador.
Uma risada, uma risada real, assustada e humana. —Não há —, ele disse,
—ninguém como você, Elisabeth.
—Responda a minha pergunta.
O Rei dos Elfos fez uma pausa. —Sim. O sacrifício deve morrer. Ela deve
deixar o mundo dos vivos e entrar no reino de Der Erlkönig, entrar no
Submundo. — Ele ergueu os olhos para mim, aqueles olhos diferentes, tão
surpreendentes, tão lindos. —Ela estará morta para o mundo acima.
Morto para o mundo acima. Pensei em papai, mãe, Constanze, Hans e,
com uma pontada dolorosa, Josef. De muitas maneiras, eu já estava morta.
—Nós dois perdemos. — Eu disse.
Ele me deu um olhar afiado. —O que você quer dizer?
—Você vence, eu perco minha irmã. Eu venço, eu condeno o mundo
acima para o inverno eterno. Não é esse o verdadeiro resultado do nosso jogo,
Mein Herr?
Ele não podia negar isso.
—Então eu proponho que nós chamamos um empate. Então nós dois
conseguimos o que queremos. Eu, a liberdade da minha irmã e você — Engoli
em seco. — me terá. Inteira.
Ele ficou em silêncio por um longo tempo. —Oh, Elisabeth —, disse ele.
—Por quê?
Eu olhei para onde Käthe estava, ainda sem sentido no chão. —Pela
minha irmã. — Eu a puxei para o círculo de luz. —Pelo meu irmão. — Eu olhei
de Käthe para o buraco acima de nós. —Pela a minha família. E o mundo acima.
O Rei dos Elfos se aproximou, devagar e hesitante, como se estivesse com
dor. —Isso não é suficiente, Elisabeth.
—Não é? — Eu perguntei com uma risada sombria. —O mundo não é
suficiente? Eu poderia condenar todos a um eterno inverno, primavera e vida
que nunca voltaria?
Ele pairava na beira do círculo de luz. Eu podia ver a figura de seu corpo
delineada em prata e preto, e a forma esbelta de sua mão um pouco além da
borda do círculo.
—Sempre pensando nos outros —, murmurou o Rei dos Elfos. —Mas isso
ainda não é suficiente. Você nunca fez algum desejo para si mesma, Elisabeth?
O que seria o suficiente? Ele tinha uma resposta que queria ouvir, mas
eu neguei. Jogos e mais jogos. Nós estaríamos sempre dançando um com o
outro, o Rei dos Elfos e eu.
—Tudo bem, então —, eu disse. —Por amor.
Foi um tempo antes de ele falar. —Por amor? — Sua voz era áspera.
—Sim, — eu disse. —Afinal, todos nós fazemos sacrifícios por amor. —
Eu me inclinei e beijei minha irmã na testa. —Nós os fazemos todos os dias. —
Eu levantei meus olhos para onde sua sombra estava além da borda da luz. Os
olhos de dois tons brilhavam para mim e, embora eu não conseguisse ver o
resto do rosto, a esperança neles se movia. —Você me chamou de altruísta —,
eu disse. —Então eu reivindico egoísmo. Porque, pela primeira vez, quero me
amar melhor, em vez de durar.
Ele não disse nada. Ele ficou em silêncio por tanto tempo que temi ter
cometido um erro, mas depois ele abriu a boca para falar.
—Pense bem sobre isso, Elisabeth. — Havia um fervor em sua voz que
eu não conseguia discernir. —Sua escolha, uma vez feita, não pode ser desfeita.
Eu não sou tão generoso a oferecer sua liberdade novamente.
Eu hesitei. Eu poderia lutar com ele. Eu poderia forçar a mão dele, fazer
ele trazer Käthe e eu de volta ao mundo acima. Eu o derrotei antes e poderia
fazê-lo novamente.
Mas eu estava cansada demais para lutar. Além disso, eu não queria
lutar. Eu queria me render, porque a rendição era a maior parte da coragem.
—Eu me ofereço a você. — Eu engoli em seco. —Livre e da minha
vontade.
—Por você mesmo?
—Sim, — eu disse. —Por mim.
A pausa mais longa de todas. —Tudo bem. — Suas palavras eram quase
inaudíveis na grande caverna. —Eu aceito seu sacrifício. — Aos meus pés,
Käthe começou a murmurar e gemer. —Eu levarei sua irmã para o mundo
acima e então — Sua respiração ficou presa. —você concorda em ser minha
rainha?
Eu virei meu rosto para longe.
—Elisabeth. — A maneira como o Rei dos Elfos disse que meu nome fez
meu coração palpitar. —Você quer se casar comigo?
Desta vez, não demorei muito para responder.
—Sim, — Eu disse. —Sim, eu vou.
Parte 3

A rainha elfo

Minha vida é como uma tigela quebrada,


Uma tigela quebrada que não pode segurar
Uma gota de água para minha alma
Ou amistosa no frio penetrante;
Lança no fogo a coisa perecedora;
Derreta e remolde, até que seja
Uma taça real para ele, meu rei.

Christina Rossetti, Uma melhor ressureição


Consagração

O Rei dos Elfos levou Käthe embora sem outra palavra. Ela estava em
meus braços um momento e foi no seguinte, antes que eu pudesse dizer adeus,
antes que eu pudesse dizer que a amava.
Não sei quanto tempo fiquei lá na masmorra. Minha mente estava vazia,
desprovida de qualquer tristeza, pensamentos ou música. Eu deveria ter
sentido pesar. Eu deveria ter sentido medo. Mas, em vez disso, não sentia nada
além de um cansaço imenso, uma exaustão tão profunda que era como a morte.
Horas, ou dias, ou minutos se passaram antes que eu sentisse o leve toque de
uma mão na minha cabeça.
—Elisabeth.
Um jovem olhava para mim, seus olhos desencontrados macios, a
inclinação de sua boca macia. Foi a ternura que me desfez, desfez as cordas que
eu amarrei no meu coração. Saudade, medo, pesar, ressentimento e desejo
vieram à tona. Eu comecei a chorar.
O jovem estendeu a mão para enxugar as lágrimas e, em seu toque, não
havia nada além de bondade. Eu queria ter sua compaixão e envolvê-lo em
mim para o conforto.
Um pedido de desculpas ficou pendurado no espaço entre nós, embora
ele não falasse.
Me desculpe, Elisabeth.
Mas por que ele ficaria triste por mim? Minha dor pertencia a mim e a
mim sozinha, e eu não podia, não queria compartilhar isso com ninguém. Eu
não lamentei a minha vida, pois não tinha sido uma vida digna de ser vivida.
Mas eu lamentei as vidas que não teria: a da minha irmã, do meu irmão, da
minha família. Eu nunca veria Josef aclamado como músico. Eu nunca iria
viajar com Käthe para ver as grandes cidades do mundo. Eu nunca mais
ouviria meu nome em seus lábios.
O Rei dos Elfos reuniu-me em seus braços e deixei que ele me levasse de
volta ao meu quarto. Seu caminho pelo Submundo era curto e direto, mas ele
podia dobrar o tempo e a distância de sua vontade, afinal de contas. Ele me
colocou na minha frente, ainda trancado com aquela engenhoca absurda.
Então, com uma reverência cortês, o Rei dos Elfos desapareceu.
Foi um prazer abrir aquela porta e girar a fechadura, ouvindo a batida e
o ruído sólidos enquanto o mecanismo deslizava para o lugar. Eu fiz isso tantas
vezes para o meu coração; Foi um prazer fazer isso para o mundo.
Eu estava vazia. Um corpo cheio de nada. Qualquer espírito que me
enchesse fugira anos atrás, deixando-me apenas com corpo e fantasma.
Eu acendi uma vela.
Eu havia ouvido acólitos no convento de freiras realizarem uma vigília à
luz de velas na noite anterior à consagração a Cristo, como fizeram as jovens
noivas na noite anterior ao casamento, antes de se consagrarem a seus maridos.
Mas quão longe eu estava da Sua graça, no fundo da terra? Embora eu tivesse
participado da Missa com o resto da minha família aos domingos, nunca senti
a presença de Deus ou de seus anjos. Foi só quando ouvi Josef jogar que
acreditei no Céu.
Eu suportaria esta vigília sozinha, sem orações em meu coração. Para o
que eu poderia rezar? Um casamento frutuoso com muitas crianças? Eu
poderia suportar qualquer coisa monstruosa, meio humana, meio elfo? Ou eu
poderia rezar por algo totalmente mais egoísta, como a vida que eu nunca tive,
uma vida vivida ao máximo?
Então eu rezei por nada. Ajoelhei-me com as mãos entrelaçadas diante
da vela e observei a chama queimando pela noite dentro.

Eu me despeço do mundo acima.


Adeus, mãe, preocupada e permanecendo,
Adeus, papai, o brilho desbotado se escondendo.
Adeus, Constanze, levarei seus contos ao coração,
Adeus, Hans e seu apalpar no escuro.
Adeus, Käthe, me desculpe por ter errado.
Adeus, Josef, que você toque sempre.
Adeus, todos, para vocês eu dou meu amor.
O Casamento

Havia uma luz brilhante no meu quarto quando acordei. Eu não me


lembrava de ter dormido, mas em algum momento durante a minha vigília, eu
tinha me mexido do meu lugar diante da vela e me sentei na lareira do meu
quarto. Eu assisti as chamas piscarem e dançarem diante dos meus olhos e
compus um hino - meu primeiro - cantarolando e trabalhando na melodia até
que eu tivesse acertado. Eu não tinha papel para escrever meus pensamentos,
mas isso não importava. Aquele hino era sagrado para aquela noite e só
naquela noite - ninguém jamais cantaria para Deus ou para mim.
A luz brilhava da lareira, inclinada como o sol da manhã. Eu apertei os
olhos. A pintura do Bosque dos Elfos acima do manto - que, para minha última
lembrança, mostrara uma paisagem escura - agora mostrava a floresta em toda
a sua luz do dia. Parecia que a neve caía e o sol brilhava e brilhava em sua
brancura.
Eu fiz uma careta. A luz estava brilhando através da pintura no meu
quaro, como uma janela para o mundo exterior. Eu fiquei de pé, ossos doendo,
dedos prontos para tocar essa coisa milagrosa.
—Tsc, tsc, o que dissemos sobre tocar?
Twig e Thistle estavam no meu quarto.
—O que eu disse sobre bater?
—Você não —, disse Thistle alegremente. —Você desejou uma porta e
uma fechadura. Você não queria que nós a usássemos.
—Um problema que deve ser corrigido imediatamente.
—Seu desejo é o nosso comando, Sua Alteza. — Twig dobrou seu corpo
impossivelmente longo e esguio em um arco. Os topos dos cabelos de galhos
de árvores raspavam o chão da caverna.
—Meu desejo é o seu comando, independentemente. — Eu disse
suavemente.
Thistle fez uma careta. —Hmph —, disse ela. —Ela não é sua Alteza
ainda. — Seus olhos negros e redondos me levaram, do topo da minha cabeça
desgrenhada, pelas minhas bochechas manchadas de lágrimas, até as pontas
dos meus pés descalços. Era difícil discernir qualquer emoção reconhecível em
um rosto tão estranho, mas pensei ter detectado um indício de desprezo.
—Ela vai ser em breve. — Respondeu Twig. Suas palavras enviaram um
raio de - de alguma forte emoção através de mim. Não era exatamente medo,
mas também não era exatamente prazer.
—Vamos - vamos nos casar em breve? O rei dos elfos e eu?
—Sim. Você deve encontrar Sua Majestade em... —Twig e Thistle
trocaram olhares. —Na capela.
—Na capela?
—Isso é o que ele chama —, Thistle disse indiferente. —Ele mantém seus
rituais humanos estranhos, mas não é como se realmente importasse. O que
importa — continuou ela maliciosamente. — é a consumação.
Eu corei. Claro; no mundo acima, a consumação também selava um
casamento. Então eu fiz uma careta. Rituais humanos pitorescos. Pensei no
jovem austero na galeria de retratos com a cruz e o violino nas mãos.
—Como... como ele - Sua Majestade chegou a ser Der Erlkönig? — Eu
perguntei. Mas não foi a questão que eu segurei no meu coração.
Como aquele jovem austero se tornou meu Rei dos Elfos?
Mas nem Thistle nem Twig responderam às minhas perguntas, expressas
e surdas. Em vez disso, Thistle tirou um fino vestido de seda e mandou que eu
o vestisse.
—Para que?
—Todas as outras rainhas vieram preparadas em seus melhores vestidos
—, ela zombou. —A menos que você queira ir ao seu funeral vestido em trapos
imundos.
—Meu funeral? Eu pensei que fosse o meu casamento.
Thistle encolheu os ombros. —Não há diferença aqui.
Eu peguei o vestido das mãos de Thistle. Era feito de uma seda branca
tão fina que era quase transparente, o corte simples, feito para drapejar ao invés
de caber. Uma mortalha. Thistle também tirou um longo véu, ainda mais
transparente que o vestido e coberto de minúsculos diamantes, e colou-o nos
meus cabelos.
Enquanto isso, Twig produziu uma coroa de flores feita de galhos e
amentos de amieiro. Pensei nas coroas de casamento que eu vira à venda nos
mercados da aldeia e lembrei com uma pontada a coroa de flores secas e fitas
que eu pensara comprar para Käthe naquele dia fatídico que ela tropeçou nos
mercadores dos elfos. Não haveria flores ou fitas para mim, apenas uma coroa
feita de galhos mortos. Não haveria irmã ou mãe para atuar como minhas
assistentes, apenas um par de meninas elfo, uma das quais me odiava e a outra
que tinha pena de mim. E não haveria bênção santificada por Deus, apenas
uma promessa feita no escuro.
Uma vez que eu estava adequadamente vestida, Twig e Thistle me
levaram para o corredor. Thistle marchava à frente, Twig pegou meu véu e
trem, e nós três serpenteamos pelas passagens labirínticas, cada vez mais
fundo no coração do Submundo, onde meu noivo imortal me esperava para
trazê-lo à vida.

Bem abaixo do labirinto havia um lago.


Depois de descer o que parecia ser uma interminável espiral de escadas,
chegamos a sua costa desolada. Sua extensão escura apareceu repentinamente
do nada, suas águas escuras iluminadas por candelabros feitos de armas que
seguravam tochas. Dentes de pedra pingando brilhavam enquanto elas
mordiam o lago, e belas poças de luz azul-verde ondulavam de onde a rocha
encontrava a água. Fadas de Luz dançavam na gruta, e uma barca flutuava no
fundo da escada como se esperasse que eu entrasse.
—Onde isso leva? — Perguntei. Minha voz ecoou nesta caverna
subterrânea, espalhada como luz em um prisma.
—O próprio lago alimenta pequenos rios e riachos aqui —, explicou
Twig. —E depois para nascentes e poços no mundo acima.
—Mas esse não é o seu destino. — Thistle apontou para a barcaça. —Isso
vai levá-la direto para onde o Rei dos Elfos espera por você do outro lado.
—Eu vou atravessar sozinha? — Minhas palavras tremeram.
—Por enquanto, sim. — Disse Thistle.
—Quem vai me guiar?
—Há apenas um lugar para ir —, disse Twig gentilmente. —Em frente.
As Lorelei te levarão até lá.
—As Lorelei?
—Não ouça as músicas delas —, ela avisou. —Elas atraem mortais para
uma sepultura aquática com a doçura de sua música. Nem mesmo estamos
completamente imunes.
—Elas não são da sua espécie, então?
Twig sacudiu a cabeça, as teias de aranha do cabelo tremendo. —As
Lorele já estão aqui há muito tempo antes que os elfos encontrassem as colinas
e montanhas desta terra. Uma vez elas eram tão populosas quanto as folhas
nas árvores, mas mais e mais delas foram empurrados para o subsolo pela
disseminação de vocês humanos.
—Faz muito tempo desde que elas tiveram um mortal no meio delas —
, disse Thistle com um sorriso cheio de dentes. —Eu não gosto muito das suas
chances.
—Cale-se —, advertiu Twig. —O Rei dos Elfos precisa dela. Nós
precisamos dela.
—Hmph. — Foi tudo o que Thistle disse. Ela olhou com expectativa para
a barcaça aos meus pés.
Eu hesitei.
—Assustada? — Ela zombou.
Eu balancei a cabeça. Não eram que as criaturas debaixo da água escura
do lago que me assustavam; era a figura sombria que esperou por mim do
outro lado. Esta longa jornada, a última da minha virgindade, eu deveria ficar
sozinha sem ninguém ao meu lado. A solidão de tudo isso perfurou meu
coração.
Twig e Thistle me ajudaram a entrar na barcaça e gentilmente me
empurraram da amarração. Uma trilha brilhante de luz azul-esverdeada se
agitou em meu rastro, as ondas de movimento despertando a luminescência
brilhante para a vida. A luz multicolorida brincava contra o branco puro do
meu vestido e véu, e a beleza cintilante dessa gruta subterrânea roubou meu
fôlego.
Assim que a barca embarcou em sua amarração, um som alto, fino e doce
cantando subiu no ar ao meu redor. O som de dedos correndo sobre a borda
de um cristal, mas mais claro, mais parecido com um sino. Não havia palavras
para essa música encantadora, nenhuma estrutura, mas a teia de som me
prendeu em seu feitiço assombrado.
Apesar dos avisos, eu me inclinei sobre a borda do meu barco para um
olhar mais atento. Formas escuras se agitaram sob o rastro de luz e, contra meu
melhor julgamento, estendi a mão para tocá-lo. Onde meus dedos
mergulhavam na água, mais ondas brilhantes cresciam, as gotas brilhantes se
agarravam à minha pele quando eu levantei minha mão da superfície. Algo
suave acariciou minha palma enquanto eu deixei minha mão se afastar mais e
mais na água, dedos suaves envolvendo-se em torno do meu pulso.
As formas sob a superfície ficaram mais claras e vi uma jovem olhando
para mim. Seus olhos eram negros como tinta, os cabelos de um verde pálido
de primavera. Sua pele era uma maravilha: pálida e cintilante, com uma
miríade de tons de arco-íris como as escamas de um peixe. Mas foi o rosto dela
que me prendeu: maçãs do rosto largas, uma ponte de nariz achatado e lábios
amuados. Ela era a criatura mais linda que eu já vi.
Ela emergiu da água, uma criatura de luz e sombras. Sua mão levantou
para acariciar minha bochecha e o canto se intensificou com o toque dela. Seus
lábios brilhantes se moviam nas luzes da gruta, e eu me inclinei ainda mais
perto para beber nos sons sussurrantes de sua boca. Eu queria sentir isso
impossivelmente cantando no meu corpo. Fechei meus olhos e respirei dentro
dela.
Um grito dissonante cortou a música.
Assustada, voltei à barcaça, fazendo o barco balançar. A Lorelei assobiou
em aborrecimento e mergulhou de volta debaixo d'água. Levantei meus dedos
para a minha boca, ainda sentindo o toque frio de seus lábios contra os meus.
Elas se debatiam sob o barco, ameaçando me virar. O grito discordante soou
novamente e as águas se aquietaram.
A barcaça tinha parado de se mover agora que a Lorelei me abandonara
e eu estava sozinha no meio de um lago escuro. A gruta ainda tocava com os
ecos daquele grito estridente, quebrando o canto cristalino que a preenchera
momentos antes. Sentei-me na barcaça, tremendo de medo e algo mais - um
tipo de antecipação trêmula provocada pelo quase beijo e quase se afogando
pela linda jovem.
E então, ao longe e impossivelmente longe, estava a voz quente e
granulada de um violino. De repente, reconheci aquele guincho dissonante;
Era o som de um violinista correndo seu arco indiscriminadamente sobre suas
cordas, empunhando seu grito duro como uma foice. Meu coração traiçoeiro
se levantou - Sepperl, venha me resgatar! -, mas minha mente sabia melhor.
Não era meu irmão mais novo. Era o Rei dos Elfos.
Enquanto o violino continuava a tocar, a barcaça começou a se mover por
conta própria, como se também fosse atraída pela música. Eu prendi a
respiração quando o Rei dos Elfos tocou uma procissão, uma imponente
entrada para sua noiva mortal enquanto o barco a levava suavemente sobre a
água escura e vítrea.
Foi uma longa viagem até a margem distante, e quando me aproximei, a
música mudou. Passou de imponente processional para algo mais simples: um
motivo melódico repetitivo, uma pequena melodia animada, algo como os
exercícios de aquecimento que papai e eu e Josef tocávamos quando éramos
mais novos. Eu fiz uma careta. Eu reconhecia este pequeno pedaço. As
pequenas notas galopavam e saltavam sobre mim como crianças ao redor de
um mastro, puxando minha memória.
Era minha. A peça era minha.
Eu havia composto vários ecossaises quando era jovem, depois que
alguns músicos franceses que viajavam tocaram na pousada. Era uma dança
no estilo escocês, eles me disseram, e eu fiquei encantada com sua vivacidade.
As composições eram bastante simples e eu as tinha escrito para o klavier, mas
ouvi-las tocar no violino me trouxe imagens de Josef praticando no quarto dos
fundos. Ele não poderia ter mais de seis anos e eu, dez.
Eu tinha esquecido a existência desta pequena peça, que provavelmente
foi o meu melhor esforço na série. Ela se foi agora, foi com o resto das minhas
composições em uma fogueira. E ainda assim, ainda vivia nas mãos do Rei dos
Elfos.
O ecossaise enfraqueceu em um Lieder, um que eu tinha escrito em um
ajuste romântico quando eu era uma menina de quatorze anos. O calor da
vergonha me arrepiou, e me arrepiei para lembrar da melancólica e
temperamental donzela que estivera, contemplando Hans como a criança
apaixonada que eu era.
O Rei dos Elfos continuou tocando meu repertório quando o barco
alcançou a margem mais distante. Ele tocou a minha infância, através da minha
infância tola, e para a minha feminilidade florescente. Ouvi-lo tocar era ouvir
minha mente tangível. Ele sabia exatamente quando e como empurrar e dar,
para dar forma às minhas reflexões musicais como eu havia imaginado. Ele
tocava minha música como um escultor, moldando e construindo até que
produzisse uma imagem perfeita de mim mesma. Josef tocava como um anjo,
mas o que quer que eu tenha composto para o meu irmão foi escrito em torno
dele: suas forças e defeitos. O Rei dos Elfos me interpretou e me mostrou uma
visão de Liesl que eu não conhecia antes. Ele tocava comigo.
Isso machuca. Ouvir minha música desse jeito, tocava nas mãos de
alguém que me entendia tão completamente - de uma maneira que nem meu
irmão conhecera - doía. Minha música era elegante, transcendente, etérea e eu
não suportava contemplar sua beleza. Eu queria puxá-la de volta para debaixo
da minha pele, escondê-la nas sombras onde ela pertencia, segura onde
ninguém poderia julgá-la por suas falhas.
As últimas notas da minha música desapareceram sobre o lago quando
a barcaça silenciosamente parou na amarra oposta. Acima estava o Rei dos
Elfos, aureolado pelas tochas bruxuleantes atrás dele. A essa distância, ele
parecia proibido, sua estatura alta acentuada pelo longo manto negro que o
envolvia e pela coroa de chifres em sua testa. Eu não conseguia ver o rosto dele,
mas o violino e o arco pendiam soltos ao lado do corpo.
Por um momento, ficamos de pé e nos encaramos em silêncio. A batida
do meu coração excitável bateu mais alto com a visão dele. O jeito desajeitado
e autoconsciente de segurar seu instrumento fez meu sangue pulsar mais forte.
Esse era meu jovem de olhos macios? Mas o Rei dos Elfos colocou seu violino
e se afastou, e ele era tão misterioso e implacável quanto uma estátua mais uma
vez.
Ele andou até o cais para me encontrar, seus passos em silêncio. Ele se
movia como uma sombra, uma sombra que se abaixou para pegar minha mão
e me ajudar na barcaça. Ele me levou da beira do lago, através de uma série de
passagens, e em uma câmara grande e bem iluminada. Nós não trocamos uma
palavra.
Quando meus olhos se ajustaram ao brilho, observei a câmara. Era a
capela. Os tetos eram altos e arqueados - formados pela natureza, não pelo
homem - e lindos vitrais eram colocados em intervalos regulares ao redor da
câmara. As janelas não se abriam para o mundo exterior, mas eram iluminadas
por dentro. Havia um altar na cabeceira da câmara e um modesto crucifixo
pendurado no santuário.
Lágrimas picaram meus olhos. Feita pelos Elfos e pelo Submundo como
esta capela poderia ter sido, ainda era uma igreja. Uma igreja como muitas que
eu tinha visto no mundo acima. Aqui não havia estatuetas estranhas feitas por
elfos. Aqui não havia criaturas fantásticas, nem sátiros maliciosos, nem ninfas
em êxtase. Aqui não havia nada além de Cristo, o Rei dos Elfos e eu.
—Está tudo bem lamentar, Elisabeth. — Sua voz foi gentil quando eu
limpei minhas lágrimas. —Eu fiz, quando cheguei ao submundo.
Eu balancei a cabeça, mas sua simpatia só fez minhas lágrimas fluírem
mais forte.
Não havia padre para nos abençoar, ninguém para conduzir o serviço.
Mas nós estávamos na presença de Deus mesmo assim. Aqui, diante do altar,
o Rei dos Elfos e eu trocáriamos nossos votos.
—Eu... — Eu comecei, então parei. O que eu poderia dizer a Der Erlkönig,
o Senhor do Mal, o Governante Submundo? Que votos eu poderia oferecer que
importasse? Eu já havia feito dele a maior promessa, o maior sacrifício: minha
vida.
Ele viu minha hesitação e segurou minhas mãos. —Eu juro solenemente,
— ele disse. —que aceito seu sacrifício, o presente de sua vida,
desinteressadamente e egoisticamente.
Eu olhei para os nossos dedos entrelaçados. O Rei dos Elfos tinha as mãos
de um violinista: dedos longos e hábeis, as pontas da esquerda calejadas e
ásperas, onde pressionavam contra as cordas. Eram mãos que podiam ser
gentis e cruéis, e eram familiares.
—Você jura, Elisabeth? — Eu olhei para o rosto dele. Aqueles olhos
incompatíveis eram incertos, e eu não vi Der Erlkönig, mas o jovem austero. —
Você jura que você faz esta barganha de... de sua própria vontade?
Mantivemos o olhar um do outro, sem piscar e sem pestanejar. Então fiz
meus votos.
—Eu juro solenemente, — eu disse suavemente. —que eu dou de mim a
você por vontade própria. Corpo e alma.
Aqueles olhos incompatíveis se aguçaram. —Você, inteira?
Eu balancei a cabeça. —Eu mesma, inteira.
O Rei dos Elfos pegou um anel do dedo. Era feito de prata e moldado na
forma de um lobo. Suas patas passavam ao redor do aro, e seus olhos eram
pedras preciosas de duas cores diferentes: uma de um azul gelado e a outra de
um verde prateado.
—Com este anel —, ele disse, pegando minhas mãos. —eu faço de você
minha rainha. Para manter a soberania sobre tudo o que eu domino, e o poder
de dobrar a vontade dos elfos para todos os seus desejos.
Ele deslizou o anel no meu dedo. Era muito grande, mas apertei a mão
em um punho para não perdê-lo. Ele envolveu suas próprias mãos sobre as
minhas.
—Soberania sobre o meu reino, sobre os elfos e sobre mim —, disse ele.
Então ele se ajoelhou. —Eu imploro sua compaixão, minha rainha. Sua
compaixão e sua graça.
Eu liberei uma mão de seu aperto, a mão que levava seu anel. Eu coloquei
sobre a sua testa, e pude senti-lo tremer sob o meu toque.
Logo, ele se levantou e pegou um cálice do altar.
—Vamos beber. — Ele ofereceu o cálice para mim. —Para selar nosso
compromisso.
O vinho era tão escuro quanto amoras ou pecado. Lembrei-me da corrida
inebriante de vinho de elfo, o gosto doce e encorpado na minha língua.
Lembrei-me do eu livre e desajeitado que eu havia me tornado no Baile dos
Elfos, e um calor lento e lânguido começou a me aquecer por dentro. Eu trouxe
o cálice aos meus lábios em um rápido gole, algumas gotas caindo sobre a seda
branca do meu vestido de noiva. Elas pareciam gotas de sangue na neve.
O Rei dos Elfos pegou o cálice de volta e bebeu um pouco, seus olhos
nunca deixando os meus. Havia promessas de noites por vir, e eu jurei para
mim mesma que eu iria segurá-lo em cada uma delas.
Ele colocou o cálice de volta no altar e lentamente limpou o vinho da boca
com as costas da mão. Eu engoli em seco. Então o Rei dos Elfos me ofereceu
seu braço e saímos da capela para o Submundo, como marido e mulher.
Noite de núpcias

Nós emergimos diretamente nos elfos.


No centro da grande caverna que servira de salão de baile havia uma
enorme fogueira, em torno da qual dançavam as formas retorcidas dos elfos.
Um javali gigantesco estava espetado sobre o fogo, e o cheiro de carne assada
era avassalador. Não havia luzes nesta caverna: nenhuma tocha, nenhuma
Fada de Luz, nenhuma vela queimando em seus candelabros inquietantes em
forma de braços humanos. Apenas as chamas da fogueira, seu fogo sangrento
e inconstante crescendo em sombras em vez de lançar luz.
Eu me afastei da cena, mas o Rei dos Elfos segurou minha mão com
firmeza.
—Não tenha medo —, ele murmurou no meu ouvido. —Lembre-se de
minha fama.
Mas eu estava com medo. Eu tinha dançado e festejado no Baile dos Elfos,
mas isso era algo totalmente diferente: selvagem, indomável e feroz. O Baile
dos Elfos, patrocinado pelo Rei dos Elfos, tivera um verniz de comportamento
civilizado sobrepondo-se ao seu abandono orgiástico, mas não havia tais
sutilezas agora. Isto não era indulgência hedonista; isso era selvageria. Eu
podia sentir o cheiro de sangue - recém derramado. Cheirava a cobre, ferro e
carne. Formas retorcidas, contorcendo-se copulavam nos cantos da minha
visão, e eu pensei no pequeno objeto de arte no meu quarto que mostrava a
ninfa e o sátiro. A música soava em cachimbos, cornetas e cítaras - rude, rústica,
sem refinamento. O vinho dos elfos tirou os limites do meu medo, mas o frio
ainda corria pelas minhas veias.
—Venha —, disse o Rei dos Elfos. —Deixe seus súditos prestarem
homenagem à sua nova rainha.
Ele me levou até os degraus da multidão. Corpos e rostos fantásticos me
enchiam de todos os lados, olhando maliciosamente para mim, seus dedos
finos como arbustos em uma sebe, pegando nas bordas do meu vestido, meu
véu, meu cabelo. Um pequeno corcunda elfo saltou ao nosso lado e ofereceu-
me uma garrafa de vinho.
—Ah, a donzela da música —, dizia. —Ela ainda arde. Diga-me, senhora
— Piscou para mim. — Sua Majestade teme incendiá-la?
Eu pisquei, tentando colocar onde eu tinha visto seu rosto antes. O elfo
cantarolou uma melodia familiar e senti o cheiro de pêssegos de verão.
O mercado dos elfos.
Ele gargalhou quando viu o reconhecimento florescer em meu rosto, e
gargalhou ainda mais com o rubor nas bochechas do Rei dos Elfos. —Só uma
respiração, Sua Majestade. Um fôlego e ela explode em chamas.
O Rei dos Elfos pegou o jarro das mãos magras do elfo. Ele jogou a cabeça
para trás e bebeu o vinho, sem se importar com o que escorria de seus lábios e
percorria sua garganta como sangue. Então ele me ofereceu a garrafa e sorriu.
Fiquei surpresa com aquele sorriso. Era tudo bordas afiadas e dentes
pontiagudos. Seus olhos encapelados brilhavam maliciosamente, e ele era o
Senhor das Travessuras mais uma vez. Qual era a máscara e qual era o homem?
Der Erlkönig ou o austero jovem a quem eu havia feito meus votos? Eu olhei
para ele quando peguei a garrafa de suas mãos. Nem sua expressão nem seus
modos mudaram ou suavizaram, mas algo brilhou em seus olhos quando
nossos dedos roçaram.
Os elfos pularam e gritaram quando joguei a cabeça para trás e engoli o
vinho. Queimou minha boca e garganta, manchando meu vestido. O salão
girou e girou, e por um momento achei que poderia vomitar.
Olhos me observaram enquanto eu lutava com os efeitos do vinho,
julgando minha reação. Respirei fundo, joguei meus ombros para trás e sorri.
Se pudesse ser chamado de sorriso. Era mais como um desafio encontrado,
uma careta, a maneira como um cachorro descobre seus dentes em sua última
extremidade. Eu poderia até ter rosnado.
Os elfos gritaram sua aprovação, assobiando apreciativamente. Eles
esfregaram os dedos compridos e finos juntos para fazer um som calado, o som
do vento nas árvores. Eles não aplaudiam como os humanos, e eu reprimi um
tremor de repulsa. O olhar encapotado do Rei dos Elfos descansou em meus
lábios manchados de vinho e gotejando, e eu olhei de volta, encarando pela
primeira vez na minha vida. Ele inclinou a cabeça.
—Vamos nos juntar aos pretendentes, minha rainha. — Ele me estendeu
uma mão pálida e elegante. Sua palma estava fria e seca, mas o toque vivo de
sua pele contra a minha enviou meu coração acelerado.
Sem aviso, o Rei dos Elfos me arrastou para o chão da caverna. Os
músicos elfo não pararam de tocar suas melodias selvagens e nós dançamos.
Sem passos prescritos a seguir, sem conversas contidas e civilizadas a serem
realizadas, deixamos a música nos ultrapassar. Eu dancei com um selvagem
abandono, minhas veias corriam com vinho, caindo na multidão de elfos
enquanto eles me abraçavam, me beijavam e me adoravam. Eu fui passada de
mão em mão, elfo a elfo, cada um querendo roubar um pouco de mim, minha
vida, meu fogo. Eu era a rainha deles, o cordeiro de sacrifício deles colocado
no topo do altar, e eles me homenageavam com seus corpos, seus presentes,
suas oferendas. Ofereceram-me comida, fruta e bebida: carne recém queimada
do espeto, pêssegos maduros e ameixas a rebentar ao tacto e vinho tão rico que
se espalhou da língua para a língua.
Em algum lugar da batalha, perdi a noção do Rei dos Elfos. Eu o queria,
estendi a mão para ele, mas não consegui encontrá-lo.
O pânico tomou conta de mim. Como lobos cheirando sangue ao vento,
os elfos se fecharam em volta de mim, beliscando, agarrando, mordendo como
se eu fosse um cervo na caça. Meu medo os levou a um frenesi. Eu gritei
quando eles rasgaram meu vestido, meu véu, meu cabelo, mas não era minha
modéstia que eu estava preocupada. Eu podia sentir a vida drenando dos meus
membros, eu estava ficando lânguida, líquida, dissolvendo-se em nada
enquanto os elfos se alimentavam de minhas emoções, ficando maiores, mais
poderosas, mais.
—Não —, eu disse debilmente, mas meus protestos não foram ouvidos.
—Não.
Meus súditos não escutaram, perdidos na sede de sangue e na vida de
minha existência mortal no meio deles.
—Pare! — Eu gritei. —Eu gostaria que vocês parassem!
Minha voz soou, ecoando na câmara cavernosa. De uma só vez, todo
movimento se acalmou. Os elfos mantiveram suas posições, congelados pelo
meu comando. Seus rostos ainda se contorciam em expressões de desejo, seus
membros ainda torcidos em gestos de agarrar. Seus olhos negros e chatos
moviam-se e estremeciam, seus peitos desumanos subindo e descendo a cada
respiração, o único movimento em um salão imóvel.
Eu andei através dos elfos, mas não um único agitado, vinculado pelo
meu desejo. Apenas seus olhos traçavam meu caminho enquanto eu
atravessava a caverna. Um derramava um fluxo interminável de vinho em uma
taça que transbordava para o chão, outro tinha afundado seus dentes na
carcaça de um cervo cru e ensanguentado, outro ainda curvava suas costas no
meio de uma dança selvagem.
Curiosa, eu empurrei um deles. A carne cedeu sob meus dedos e não me
ofereceu resistência. Eu belisquei a pele de seu braço, com bastante crueldade,
para ver se conseguia fazer reagir. Nenhum som, nenhum choro, nenhuma
careta, apenas um leve aperto na boca. Então, sem aviso, eu empurrei o elfo
com todas as minhas forças.
A criatura foi adentrando seus colegas elfos, espalhando-os como pinos.
Eu ri. Eu não reconheci o som da minha própria risada - alta, selvagem e cruel.
Eu soei como uma mulher louca. Eu soei como um deles.
Meu riso quebrou o feitiço que os segurava. Os elfos começaram a jogar
boliche um contra o outro, mandando-se um ao outro voando, o estrondo da
louça quebrando e o tilintar dos talheres caindo, pontuados pelo riso alto e
agudo dos elfos. E eu.
Eu examinei meu reino. Caos. Crueldade. Abandono. Eu sempre estive
me segurando. Sempre me contive. Eu queria ser maior, mais brilhante,
melhor; Eu queria ser caprichosa, maliciosa, astuta. Até agora, eu não conhecia
a doçura intoxicante da atenção. No mundo acima, Käthe ou Josef sempre
tinham cativado os olhos e os corações das pessoas - Käthe com sua beleza,
Josef com seu talento. Fui esquecida e ignorada - a irmã simples, sem graça,
prática e sem talento. Mas aqui no subsolo, eu era o sol em torno do qual seu
mundo girava, o eixo em torno do qual seu turbilhão girava. Liesl, a moça, era
monótona e obediente; Elisabeth, a mulher era uma rainha.
Do outro lado do salão, eu espiei meu rei. Ele não fazia parte da multidão,
ao lado, meio esquecido nas sombras. Esta noite - minha noite de núpcias - era
sobre mim. Eu era o centro do mundo dos elfos, sua salvadora, sua rainha. No
entanto, uma parte de mim ansiava que meus adorados súditos
desaparecessem. Desejava ficar sozinha com meu marido. Ser o tema de sua
adoração, o centro de seu mundo. Livre das minhas inibições por atenção,
poder e o vinho dos elfos, pude finalmente admitir o quanto desejava Der
Erlkönig.
Eu sempre o desejara, mesmo quando ele era uma figura sombria das
histórias de Constanze, e ainda mais quando ele era meu amigo do Bosque dos
Elfos. Como eu tinha esquecido? Eu conhecia aquele rosto, aqueles olhos, que
constroem. Eu sabia como seus lábios se tornavam um sorriso de aprovação,
como aqueles olhos se enrugavam em um brilho de prazer. Eu tinha visto
aqueles dedos correrem ao longo de um braço imaginário, visto aqueles braços
segurando um arco invisível enquanto eu compartilhava minha música com
ele. Eu o assistira estudar-me e sabia agora como ele se tornara o mais sublime
intérprete da minha arte. Ele era tão familiar para mim quanto o som da minha
própria voz.
Ao nosso redor um coro de elfos guinchava e gritava seus comentários
rudes e sugestões obscenas. Enquanto minhas bochechas estavam coradas, eu
levantei minha cabeça e encontrei o olhar de Der Erlkönig. Embora minha
risada tenha quebrado o feitiço de desejo dos elfos, o Rei dos Elfos estava
paralisado, impotente contra mim. Minha boca se esticou em um sorriso, e eu
imaginei meus dentes ficando mais afiados e pontudos, o sorriso de uma
predadora.
Fadas de Luz seguiam o caminho que eu cortava através dos meus elfos
e brincalhões, iluminando o rosto do meu marido enquanto eu me aproximava.
Seu rosto estava vazio e sem expressão, seus olhos encapuzados não revelavam
nada. Nenhum tremor o traia, suas mãos soltas e cuidadosas por seus lados.
Ainda notei a tensão em seus braços e ombros, e me perguntei se meu noivo
estava com medo.
Ele estava com medo de mim? De alguma forma, o pensamento me
excitou para maiores alturas. Eu era a rainha dos elfos. Eu poderia forçar ou
coagir qualquer elfo a fazer o meu lance, incluindo meu rei. O poder era mais
inebriante do que o vinho. Eu me levantei, aproximei-me para reivindicar meu
marido como meu.
Eu parei apenas uma mão longe do Rei dos Elfos. Meus pés descalços
roçaram as pontas de suas botas pretas polidas. Ele não se encolheu nem
recuou, mas também não fez nenhum movimento para me encontrar. Eu
levantei meu queixo e estudei seu rosto. Seus olhos estavam... cautelosos?
Animados? Implorando? Eu não conseguia lê-lo, não conseguia analisar suas
feições em uma expressão que eu entendia.
Levantei meus dedos para tocar sua bochecha. Ele estava tremendo, tão
ligeiramente que não consegui ver, mas senti-o sob minha mão.
—Elisabeth —, ele murmurou, e sua voz tremeu também. Aquelas
aljavas percorreram todo o caminho pelo meu braço, pelo meu peito, até uma
parte secreta e profunda de mim. —Elisabeth, eu...
Eu calei-o com um dedo em sua boca. Ele estava tremendo ainda mais
agora. Passei a mão pelos seus lábios até a mandíbula e depois descendo pelo
pescoço dele para descansar em seu peito. Eu podia sentir a vibração de seu
coração sob minha palma; Parecia um passarinho na minha mão.
Eu imploro sua compaixão, minha rainha, sua compaixão e sua graça.
De repente, eu entendi. Ele havia depositado sua confiança - sua fé - em
mim e temia minha misericórdia. Meu coração terno e simpático se contorceu,
batendo no mesmo ritmo do dele.
Então eu agarrei sua capa e puxei-o para perto, esmagando nossos lábios
juntos em um beijo.

O beijo é mais doce que o pecado e mais feroz que a tentação. Eu não sou
gentil, não estou sendo gentil; Eu sou áspera e selvagem. Eu mordo, eu belisco,
eu lambo, eu devoro. Eu quero e quero e quero e quero. Eu não guardo nada
de volta.
Elisabeth, ele exala em mim, e eu sinto meus pulmões, meu corpo, meus
quadris se encherem com a respiração dele. Ele me enche e eu quero ser
preenchida por ele. Eu abro minha boca para deixá-lo entrar, mas suas mãos
se aproximam e envolvem meus braços.
Não, não, não, eu penso. Não me afaste. Acenda meu fogo. Me faça queimar.
Mas o Rei dos Elfos não me afasta. Ele me agarra mais perto. Nossos
lábios se separam e cumprimentam como parceiros em uma dança, reunião,
entrelaçamento, apego. Quando ele se afasta, eu gemo, mas sua boca nunca vai
longe, beijando os cantos dos meus lábios e meu queixo, seu nariz roçando a
pele da minha bochecha.
Eu sou desleixada, sem arte. Eu corro minha língua ao longo da borda
superior dos meus dentes, a borda inferior do lábio. Ele tem gosto de vento de
inverno, mas o calor de nossas bocas o aquece, e então tudo é lânguido, úmido,
quente, como uma noite de verão. Suas mãos, enroladas em meus braços,
soltam e deslizam para baixo. As pontas dos dedos dele traçam uma linha nas
minhas costas, descansando onde a curva se encontra com o meu traseiro.
Oh Deus. Não tenho palavras e estou longe do céu, mas não me importo.
Eu quero mentir com o Diabo e faria isso de novo e de novo, apenas para me
sentir assim. Estou segurando sua capa tão apertada, imagino que a impressão
do bordado ficará nas palmas das mãos durante dias.
Elisabeth, ele murmura novamente. Elisabeth, eu...
Mas eu não deixo ele terminar.
Eu gostaria…
Ele faz uma pausa, enrijecendo.
Eu queria que você me levasse. Me arrebentasse. Agora mesmo.
Agora mesmo.
Picar e Sangrar

O poder de um desejo. No mundo acima, os desejos eram pedaços:


bonitos, mas não substanciais e sempre fora de alcance. Aqui no subsolo, os
fogos de artifício são muito reais. Pequenas criaturas ousadas: astuto,
enganador, mas tangível. Palpável. Meus desejos tinham peso.
Sons desbotados, luzes apagadas. Foi um momento antes de perceber
que não estávamos mais na grande caverna. Arrastada pela poderosa corrente
de nosso beijo, eu não tinha notado quando o Rei dos Elfos e eu não estávamos
mais cercados por elfos intrigantes e maliciosos. Eu não havia notado que
estávamos sozinhos. Eu só percebi que seus lábios não estavam mais nos meus,
e sofri a perda deles como uma criança privada de seus doces: não - mais, por
favor, mais.
Eu choraminguei quando o Rei dos Elfos se retirou, agarrando-se e
agarrando-se a ele. Ele parou meus avanços amorosos com uma mão gentil na
minha boca. Eu aninhei em seus dedos, desejando qualquer pedaço dele que
eu pudesse tocar.
—Elisabeth, Elisabeth —, ele calou. —Elisabeth, espere.
Esperar? Eu esperei minha vida inteira por este momento. Não para
consumação, mas para validação; Eu desejei tanto que quisesse ser encontrado
desejável em troca. O Rei dos Elfos me viu - tudo de mim - e agora eu queria
que ele me conhecesse. Eu afastei a mão dele e pulei para frente; Eu era um
gato, um lobo, uma caçadora. Eu estava fora por sangue e carne.
—Pare. — Sua voz era mais firme agora. Eu o ignorei, puxando sua capa,
sua camisa, suas calças. —Pare, Elisabeth. Por favor.
Fo o seu favor, não os seus protestos, que romperam a minha
determinação.
—Parar? — Minha voz estava rouca e grossa. —Por quê?
—Porque —, ele disse, suas palavras lentas e lentas. —porque você não
sabe o que faz.
Minha mente demorou para analisar suas palavras. Eu não sei o que é.
Então minhas bochechas queimaram. —Oh...
Clareza queimava a névoa de luxúria que embaçava meus sentidos; meu
constrangimento piorou do que qualquer bofetada no rosto. Eu virei de costas
para ele.
—Se eu não sei o que faço —, eu disse, minha voz trêmula. —É apenas
porque eu não sou escolarizada e não sou educada. Intocada. — Eu engoli em
seco. —Eu poderia ser ensinado, mein Herr. Eu aprendo rápido.
—Eu não duvido disso.
Senti sua presença atrás de mim, perto o suficiente para tocar, mas não
perto o suficiente. Eu me encolhi com o quão desesperada eu soei. Eu não
queria estar desesperada. Mas eu estava. Oh, Deus, por favor, me toque, pensei.
Por favor.
Ele se aproximou de mim. Eu não conseguia vê-lo, mas podia imaginá-
lo. Eu podia imaginar aqueles olhos de lobo incompatíveis olhando para mim,
para o meu pescoço, descendo a linha baixa do meu vestido de casamento até
onde minhas omoplatas estavam expostas. Eu podia imaginar seus dedos,
longos e esguios, estendendo a mão para localizá-los, parando pouco antes do
contato real. Eu podia imaginar isso tudo tão claramente, mas o que eu não
conseguia imaginar era a expressão em seu rosto.
—Elisabeth. — Seu tom era firme. —Há tanta coisa que você não sabe.
Você ainda desejaria isso se soubesse?
Uma risada explodiu de mim. Eu não podia mais disfarçar meu desejo
do que minha ânsia. Nem ele poderia. Eu senti a forma dele através das calças,
pressionada contra mim.
—Sim —, eu respirei. —Sim eu iria. Sim eu quero. Eu quero isso.
O Rei dos Elfos segurou meus ombros com força e me puxou contra ele.
Um braço serpenteou em meu pescoço, o outro em volta da minha cintura. Eu
senti cada pedaço dele através do tecido fino do meu vestido de noiva. Ele
tremeu quando me segurou. Eu estava respirando com dificuldade, minha
respiração dificultada pelo seu braço pressionando contra a minha garganta.
Eu arqueei minhas costas e fechei meus olhos. Cobri a mão dele na minha
cintura com a minha e levantei minha outra mão para tocar seu rosto. Abaixo
dos meus dedos, os pedaços de seu cabelo, a curva de uma maçã do rosto, a
força de sua mandíbula. Sua cabeça se curvou, trazendo sua boca para roçar
onde meu pescoço encontrava meu ombro. Um beijo suave, uma leve mordida.
Um beliscão. Eu gemi. Os ecos daquele gemido subiram e desceram por seu
corpo.
Lento, devagar demais. Eu queria que ele me devorasse, me quebrasse
com a urgência de sua luxúria. Se ele não pudesse dar isso para mim, então eu
tomaria isso dele. Eu peguei a mão na minha cintura e movi-a para baixo, mais
perto de onde eu o queria. Seus dedos apertaram a pele do meu osso ilíaco,
erguendo o material do meu vestido, expondo minha perna nua ao ar,
centímetro por centímetro. Lutei contra ele - não para fugir, mas para apressá-
lo. Com lentidão agonizante, seus dedos exploraram meu corpo abaixo da
minha cintura, mergulhando, acariciando. Não o suficiente, pensei. Insuficiente.
Minha mão passou por seus cabelos apertados com impaciência. Ele
soltou um leve silvo de dor. Gemidos de dor, gemidos de prazer - para os meus
ouvidos, todos eles eram cantados na mesma nota. Seus dedos enterrados em
minhas fendas secretas se apertaram em resposta e eu engasguei - ou tentei -
meu grito inarticulado perdido em seu estrangulamento no meu pescoço.
Minha outra mão - a que guiava seu curso pelas minhas coxas, meus
quadris, entre minhas pernas - alcançou atrás de mim para tocá-lo. Eu deslizei
minha mão pelo comprimento de sua dureza, a prova de seu desejo
inconfundível através de suas calças de couro.
Seus quadris resistiram e um longo arrepio percorreu-o. Eu agarrei-o
com mais força, apostando minha reivindicação sobre ele. Meu, pensei. Meu.
Mas ele estava se afastando do meu toque, saindo do meu alcance e longe
de mim. Eu rosnei de frustração, mas de repente ele não estava lá. Eu abri meus
olhos e me virei.
O mundo inclinou-se e, por um momento, não consegui encontrar meu
equilíbrio. O Rei dos Elfos ficava a poucos metros de mim, mas a distância era
infinita. Seus cabelos emplumados eram um ninho de emaranhados, os lábios
inchados, as bochechas coradas. Os olhos de seu lobo brilharam.
—Basta, Elisabeth. — Ele estava com falta de ar. —O suficiente.
Eu massageava minha garganta e fiquei de boca aberta para ele. —Basta?
— Eu murmurei.
—Sim. — Ele assentiu. —Não mais. Não essa noite. Eu terei seus
assistentes a escoltando de volta aos seus aposentos.
—O quê? — A pergunta explodiu de mim antes que eu pudesse me
ajudar. —Por quê?
—Porque —, ele disse novamente. —Eu não quero isso. Agora não.
Assim não.
A humilhação de suas palavras queimou. A frágil seda do meu vestido
de noiva iria pegar fogo pelo contato com a minha pele. Humilhação,
vergonha, luxúria, desejo, tudo queimando. Eu estava queimando. Como ele
poderia me mandar embora? O quarto cheirava a nossa paixão mútua, mofada
e quente, e eu tinha segurado a prova de que ele me queria em minhas mãos.
Uma velha ferida se abriu dentro de mim e todos os meus sentimentos
de inutilidade foram despejados. Eu estava cheia de vergonha. Eu deveria
saber melhor do que colocar meu coração diante dele; Eu expus o meu eu mais
íntimo a alguém em quem confiava uma vez antes, apenas para ridicularizá-lo
por não ser educado, sem instrução, sem nada notável.
Escondi meu rosto do Rei dos Elfos para que ele não me visse chorar.
Sua mão tocou meu ombro e, em seu toque, não senti nada além de gentil
consolo. Isso doeu mais do que tudo.
Eu o joguei fora. —Não me toque —, eu assobiei. —Você não pode me
tocar. Não gosto, não desse jeito.
—Como o quê? — Sua voz era gentil.
—Tipo, como se você não se importasse. — Minha pele estava crua. Tudo
era terno ao toque, meu corpo inteiro ansiando e alcançando sensações e
encontrando nada além de rejeição. Eu alisei meu vestido de casamento sobre
meus quadris. O véu do meu casamento - aquela gaze com lantejoulas de
diamante - tinha caído durante o nosso abraço e ele jazia aos meus pés.
—Elisabeth —, disse ele. —Eu me abstenho porque eu me importo...
—Então por que você não vai me tocar? — Um soluço engatou na minha
garganta e eu me odiava por minha fraqueza. —Por que você não pega o que
é seu?
—Não é meu —, disse ele, muito mais ferozmente do que eu esperava.
—É seu para dar.
—E eu estou dando a você agora! — Eu juntei o véu do casamento caído
para mim, como se eu pudesse esconder a minha humilhação em sua gaze
salpicada.
—E eu não quero você —, ele disse baixinho. —Assim não.
Era tão injusto. Apesar da evidência de sua luxúria lutando contra suas
calças de couro, ele escondia tudo atrás de um manto, atrás de um manto de
sarcasmo e um ar descontente. Eu poderia ter gritado.
Eu me virei. —Você disse que me queria - inteira. — Eu joguei suas
palavras de volta para ele com toda a amargura que eu poderia reunir.
O Rei dos Elfos fechou os olhos, como se ele pudesse fechar minhas
palavras junto com a visão de mim. Meu coração bateu no meu peito - eu
realmente era tão desagradável para os homens que nem mesmo um rei dos
elfos me queria?
—Isso não é você inteira —, disse ele. —Esta é você, desesperada.
Suas palavras eram sal em minhas feridas.
—O que você quer de mim, então? — Eu estava desesperada, mas eu
estava além do ponto de me importar agora. —Por que você se casou comigo,
se não por isso?
Desta vez foi o Rei dos Elfos que tropeçou para trás, como se eu tivesse
batido nele. —Se você pensou que eu queria...
Mas eu não queria ouvir o que ele tinha a dizer.
—Talvez você esteja agora aflito com o remorso do comprador —, eu
disse. —Talvez você devesse ter levado a linda irmã em vez disso.
—Elisabeth —, disse o Rei dos Elfos em aviso. —Pare.
Eu deveria ter parado, mas não queria parar. Minha língua, uma vez solta
pelo vinho elfo, não poderia ser apertada de volta à submissão.
—Bem, mein Her r—, eu disse. —Você se casou com a feia. E, —eu
continuei com um riso alto e estridente. — você fez sua cama. Agora é melhor
você dormir nela. Então venha, meu senhor, —eu disse timidamente, passando
minhas mãos pelas curvas do meu corpo - as que eu tinha. —Venha dormir
com sua nova noiva. Se você puder aguentar isso.
O Rei dos Elfos fez um som de nojo, um som que destruiu a pouca
confiança que me restava. Um nó subiu na minha garganta e eu engoli de volta
com um soluço.
—Vá para a cama, Elisabeth —, disse ele. —Você está bêbada.
Eu estava? Eu já havia bebido vinho e cerveja antes, até mesmo roubado
um pouco de coisas mais fortes que Constanze guardava em seu armário
secreto quando eu era criança, mas nunca me embebedara em indulgência.
Não como papai. Nunca gostei do papai.
O chão estava instável sob meus pés. O quarto girou e eu estava caindo.
O Rei dos Elfos correu para me segurar.
— Twig, Thistle! — Minhas atendentes de elfos apareceram em um
instante. —Levem minha noiva de volta para seus aposentos e tenham certeza
de que ela esteja bem descansada.
—Não. — Eu levantei a mão. Eu me levantei até a minha maior altura e
tentei reunir um pouco de dignidade. —Eu posso ir, mein Herr.
Eu tropecei para longe dele, mas dedos longos se enroscaram no meu
cabelo, forçando minha cabeça para trás e para o abraço do Rei dos Elfos.
—Eu quero você —, ele sussurrou no meu ouvido. —Mas eu quero a
parte de você que você não vai me dar. Isso — E ele passou a mão pela coluna
da minha garganta exposta, meu peito, minha cintura. — Isso é apenas uma
parte de você. Quando eu disse que queria você inteira, eu quis dizer isso.
—Que parte de mim eu não te dei?
Ele sorriu para o meu cabelo.
—Você sabe o que é, Elisabeth. — Ele cantarolou um pouco de melodia.
Minha música.
Eu me soltei de seu aperto e o empurrei para longe. Eu desejei que uma
porta aparecesse. Então eu abri a maçaneta e a fechei, seu som alto e satisfatório
foi a última palavra em nossa conversa.

Minha bravura durou apenas tanto quanto a caminhada para meus


próprios aposentos. Os caminhos no Submundo se rearranjaram, então eu me
encontrei no corredor do lado de fora do meu quarto. Abri a porta e me joguei
para dentro, ansiosa para superar os uivos de raiva e decepção que perseguiam
meus calcanhares.
Eu não conseguia respirar. A queimadura de lágrimas escaldou meus
cílios inferiores, mas nenhuma veio. Eu queria gritar, eu queria rasgar meu
quarto em pedaços. Eu queria destruir alguma coisa. Eu queria destruí-lo.
Eu agarrei o Louis XXV em minha lareira e arremessei contra as paredes
de terra com todas as minhas forças. A mesa e as cadeiras, por mais delicadas
que parecessem, eram mais resistentes do que pareciam e simplesmente se
refletiam. Eu gritei então, e peguei uma das cadeiras por suas pernas antes de
esmagá-la contra o brilhante travertino da lareira. Foram alguns golpes antes
que a cadeira se partisse, enviando fragmentos da pedra branca com ela. Eu
joguei o que sobrou da cadeira arruinada no fogo. A mesa e a outra cadeira
logo se seguiram.
Então os outros objetos no meu quarto. Os candelabros, as mesas de
console, os belos e feios objetos de arte. Peguei a estatueta do sátiro malicioso
e da ninfa orgiástica e joguei-a o mais forte que pude contra a madeira sólida
da minha porta. Feito de porcelana, quebrou-se imediatamente.
Eu gritei e me enfureci e chutei e gritei e chorei e destruí até que minha
raiva e frustração foram gastas. Deitei no chão e escombros do meu quarto,
minha respiração entrando em curtos suspiros.
Meu vestido de noiva me sufocava. Fiz uma fraca tentativa de arrancar a
seda fina de mim, mas não consegui reunir suficiente ódio pela força. Eu estava
vazia. Depois de uma noite turbulenta de esperanças e desapontamentos, o
vazio era abençoadamente reconfortante. Eu escutei o crepitar do fogo,
procurando por padrões no som. Por música. Por estrutura. Por sentido.
Um punhado de anotações chegou a mim, uma pequena elevação, uma
queda apressada. O movimento de uma mão estendendo a mão, apenas para
cair inutilmente ao meu lado. Repetiu repetidamente, cada vez mais rápido,
até que a tempestade de notas saiu de mim e se chocou contra um acorde
estridente. Eu nunca havia escrito algo assim antes. Não era bonito; era
confuso, dissonante, feio e se adequava perfeitamente ao meu humor.
Papel. Eu deveria anotá-lo. Mas eu destruí tudo no meu quarto. Uma
risada me escapou. Tropeçando em cada curva. Como gosta de mim.
Olhei de relance para a extensão quase branca do meu vestido de noiva,
imaculada e não roída, exceto por um pouco de vinho e sujeira aqui e ali.
Peguei uma grande lasca perto de mim e carbonizei a ponta do fogo antes de
esfriar rapidamente com a respiração e os dedos.
Então eu usei as cinzas para escrever.
Uma frase musical incompleta apareceu em meu sono, implorando para
que eu terminasse. Mas eu não conseguia entender sua forma. Eu não sabia
como resolver as questões colocadas. A frase parecia familiar, como uma
melodia meio assobiada da minha infância, mas eu não pude colocar onde eu
a tinha ouvido antes.
Eu me assustei e acordei. O fogo na lareira tinha morrido em brasas e eu
estava com frio e nua no chão sujo de detritos. Meu vestido de noiva pendia
da minha cabeceira, a seda branca coberta de rabiscos cinzentos -
remanescentes da minha obra prima sombria. Eu corri minhas mãos sujas pelo
seu comprimento sedoso. Tão frágil. Tão temporário. Um borrão de meus
dedos sujos poderia apagar horas de trabalho. Eu provoquei meus dedos ao
longo das bordas das minhas anotações, a tentação de destruir até mesmo essa
força crescente dentro de mim. Eu engoli tudo.
O vestido de seda farfalhou suavemente. Havia um rascunho no meu
quarto. Tremendo, levantei-me em busca daquela brisa espectral quando
tropecei em um limiar.
Eu pisquei. Meu quarto estava fechado, fechado e trancado com uma
chave. A porta ainda estava lá, mas ao lado da lareira havia um arco que não
estava lá antes. A brisa veio do espaço além do limiar.
Eu olhei por cima do meu ombro. Evidência da minha fúria e frustração
ainda estava espalhada pelo chão. Este era o meu quarto. Essa era a minha
cama. Esse era o meu vestido de noiva, ainda pendurado na cama. Não
querendo colocar o vestido de volta, eu queria um roupão. Eu encontrei um na
minha cama, amarrotado e enrugado como se tivesse sido jogado em vez de
estar magicamente ali. Eu coloquei e entrei na escuridão.
Fadas de Luz piscaram para a existência no momento em que eu entrei
neste novo cômodo, tremulando lentamente, como se elas lutassem para
acordar. Seu brilho suave iluminava outro conjunto de aposentos, maiores e
mais grandiosos que meu quarto de dormir, ainda que de alguma forma ainda
pequenos e íntimos em escala. Em pé no centro estava um klavier.
Minha respiração ficou presa. O instrumento era bonito, feito de uma
madeira rica e quente que brilhava sob as fadas de luz. Corri minhas mãos
reverentemente sobre as teclas, polidas para um brilho sem brilho. Era uma
oitava completa maior do que os klaviers em nossa estalagem e, quando eu
pressionava uma tecla, um som claro e cheio enchia a sala. Nada da ressonância
minúscula e estridente que atormentava os instrumentos em casa.
Eu bati levemente uma melodia, permitindo-me cair em um devaneio.
Eu estava perdida, mas agora um pedaço de mim tinha sido devolvido para
mim. Então notei a pilha de papel e tinta em uma pequena mesa ao lado do
klavier.
Papel. Papel já alinhado com coisas para escrever, esperando apenas uma
clave, uma chave e uma assinatura. Eu endureci.
Outro truque, pensei. Outra provocação do Rei dos Elfos.
A sala segurava os ecos silenciosos de uma risada zombeteira. Fiquei
tentada a empurrar o tinteiro contra o piano e rasgar o papel em pedaços. Mas
a lembrança de um estranho alto e elegante em um mercado manteve minha
mão. Um estranho alto e elegante que se aproximava de uma garota simples e
caseira porque ouvira a música dentro dela e queria libertá-la.
Meus dedos se contraíram, desejando trabalhar minhas mãos nas teclas,
desejando colocar meus sentimentos no papel. O vestido de noiva estava
pendurado no meu quarto, tão perto, mas tão longe. Eu queria pegar suas
cinzas e transformá-las em tinta.
Mas eu não fiz.
Eu me virei e voltei para o meu quarto, as fadas de luz piscando uma a
uma, apagadas como velas. Eu não sabia que horas eram. A pintura do Bosque
dos Elfos acima da minha lareira mostrava a fina e cinzenta cena de neve
caindo. A hora poderia ser antes do amanhecer. Poderia ser tarde do anoitecer.
Era difícil dizer, a luz achatada pela neve suave caindo em seus galhos escuros.
Eu apertei os olhos. Eu poderia jurar que a neve estava caindo. Movendo-
se. Os flocos de neve estavam caindo, se acomodando na paisagem invernal.
Quer fosse a falta de sono ou os resquícios de lágrimas que obscureciam minha
visão, eu não sabia dizer. Eu me aproximei.
Meus olhos não estavam brincando comigo. A neve estava caindo no
bosque dos elfos no mundo acima. Era como uma janela, uma vista que eu
poderia ter visto do meu quarto na estalagem. Eu fui perfurada com um desejo
repentino de casa. Por Josef. Por Käthe. Mãe e papai. Até mesmo Constanze.
Eu até sentia falta da garota que eu tinha sido: Liesl, a filha obediente, a irmã
mais velha e amorosa, a compositora secreta. Se minha vida tivesse sido
atrofiada, pelo menos eu conhecera o meu lugar. Que lugar eu tinha aqui?
Quem era eu no Submundo? Uma rainha negligenciada, uma esposa não
amada e não desejada. Uma donzela ainda. Eu encontrava rejeição onde quer
que eu fosse, mesmo entre os elfos.
Minha humilhação ainda estava crua e macia dentro de mim, então me
concentrei na pintura encantada. O Bosque dos Elfos acenou, e eu peguei o
retrato, contra os avisos de Twig e Thistle.
Eu fiquei surpresa quando meus dedos encontraram vidro. Eu me
inclinei para frente para examiná-lo, e minha respiração cobriu sua superfície
em névoa, obscurecendo completamente o Bosque dos Elfos no nevoeiro.
Quando a névoa clareou, a cena mudou. Eu tropecei para trás,
tropeçando na mobília quebrada e quebrando bugigangas no meu quarto. Eu
cortei minha mão em algo afiado, mas mal notei a dor. Em vez do Bosque dos
Elfos, um jovem estava sentado à escrivaninha, rabiscando furiosamente.
—Sepperl!
Ele não me ouviu. Claro que ele não me ouviria. Meu irmão mais novo
estava mais alto do que quando o vi pela última vez - mais alto, mais magro.
Vestia-se agora como um cavalheiro, com a sobrecasaca de um brocado azul-
pastel, as calças de cetim fino, rendas finas enchendo a garganta. Ele parecia
próspero e, pensei com uma pontada, como uma pessoa que não reconheceria
de passagem.
A porta atrás dele se abriu, e François entrou. O rosto de Josef se iluminou
e minha respiração ficou presa na garganta. Meu irmão uma vez olhou para
mim desse jeito, como se eu segurasse sua alma em minhas mãos. Mas sua
alma não estava mais sob meus cuidados; Eu fui substituída.
Josef perguntou alguma coisa e François sacudiu a cabeça. Os ombros de
Josef caíram, os dedos amassando o papel na mão. Uma composição? Não, sem
notas. Palavras. Uma letra-
O nevoeiro cobriu o vidro mais uma vez. —Sepperl! — Eu gritei, mas
quando a névoa desapareceu novamente, minha chamada angustiada morreu
na minha garganta.
Uma jovem estava ajoelhada ao lado de uma cama. Por um momento,
pensei ter visto meu próprio reflexo, até que notei o brilho de ouro aparecendo
debaixo de seu lenço de cabeça.
Käthe.
Cansada, ela colocou de lado o avental manchado e se preparou para
dormir. Ela estava prestes a puxar as cobertas e se arrastar embaixo delas
quando parou. Alcançando embaixo do travesseiro, Käthe tirou um maço de
papel.
Com um sobressalto percebi que era o pequeno Lieder, a composição que
eu deixara para trás. Para mim, Lieben, eu escrevi. Para meus entes queridos.
Minha irmã tocou a mecha de cabelo amarrada com barbante na peça.
Seus olhos azuis nadaram com lágrimas e ela abraçou a peça ao peito. Eu não
estava morta para o mundo acima. A névoa se fechou novamente.
O sacrifício que fiz, meu casamento com o Rei dos Elfos, parecia tolo
agora. Minha vida, meu futuro, meus entes queridos - eu joguei tudo fora por
egoísmo. Porque pela primeira vez, apenas uma vez, eu queria ser desejada.
Desejada. O Rei dos Elfos dissera que me queria, e eu pegara esse desejo e
apostara toda a minha vida nisso.
Meu sacrifício valeu a pena? Sentia-me vazia e desolada, mas a tristeza
em meu coração tinha um peso palpável, me levando ao chão. Eu não
conseguia respirar. Eu carregava o fardo do meu amor pela minha família e
isso ameaçava me sufocar.
Aquelas que vieram antes

—Ela está bem?


—Não sei. É difícil dizer com os mortais. Eles murcham e desaparecem
tão rapidamente.
—Ela está imunda.
—Deve ter sido uma boa noite então. — Uma risadinha. —Bem, isso é
um bom presságio para nós.
—Devemos acordá-la?
Eu me mexi ao som de vozes no meu quarto. Twig. Thistle.
—Certo. Camada preguiçosa. Thistle. — Eu reconheci o desprezo em sua
voz através da minha neblina de exaustão e tristeza. Sua antipatia era
confortavelmente confiável, como a de Constanze.
Constanze. A pontada de saudade me despertou, e eu gemi e me sentei.
Thistle saltou para trás com surpresa, a mão pronta para um tapa.
—O que está acontecendo? — Eu murmurei. A pintura acima da minha
lareira mais uma vez mostrava o Bosque dos Elfos. Várias horas devem ter
passado; a neve estava muito mais espessa agora.
—Não posso passar o dia inteiro deitada na cama —, disse Thistle. —Ou
no chão, conforme o caso. Engraçado. —Ela sorriu, mostrando todos os seus
dentes afiados. —Eu pensei que vocês mortais preferiam o conforto de uma
cama, mas aqui está você, dormindo na terra como um elfo adequado.
Revirei os olhos quando Twig me ajudou a ficar de pé. Meu roupão meio
amarrado caiu dos meus ombros quando minhas articulações rangeram e
protestaram contra o abuso. Os ossos humanos certamente não foram feitos
para dormir em pisos de terra.
—Ela foi nativa —, disse Thistle para Twig. —Nem mesmo um segundo
pensamento para essas noções mortais de modéstia!
Amarrei o roupão corretamente sobre mim mesma. —Se vocês vieram
me acordar, pelo menos, teriam a decência de me trazer um bom café da manhã
—, eu reclamei. Twig fez um movimento para ir embora, mas eu balancei a
cabeça. —Não você, Twig. — Eu apontei para Thistle. —Você. Você vai.
Thistle fez uma careta, mas desapareceu em um piscar de olhos. Twig fez
uma profunda reverência, o cabelo cheio de teias de aranha e galhos raspando
o chão.
—Twig —, comecei. —O que é essa pintura acima da minha lareira?
Uma expressão inescrutável cruzou seu rosto. Entre minhas duas
atendentes, Twig parecia a mais compreensiva, mas me lembrei que, apesar de
suas gentilezas para mim, ela não era minha amiga. Mas ela era a coisa mais
próxima que eu tinha de uma confidente no Submundo, e sentia muita falta da
companhia. Sentia muita falta de Käthe.
—Você tocou, não foi? — Perguntou Twig.
Eu balancei a cabeça.
Ela suspirou. —É um espelho, vossa Alteza.
—Um espelho? — Eu olhei de novo, mas tudo que eu via era o Bosque
dos Elfos, coberto de branco. —Então por que…?
—Aquele —, disse Twig, inclinando a cabeça em direção à peça de cima
da lareira. —foi trazido do mundo acima. Como a maioria dos espelhos lá, é
de prata. Prata segue suas próprias leis aqui no Submundo. Ela não mostrará
seu reflexo; ela vai te mostrar o que ela quer que você veja.
Josef. Käthe. Meu coração se contorceu de dor.
—É por isso que avisamos a você para não tocá-lo —, disse ela. —Seus
pensamentos, seus sentimentos, suas perguntas - isso é o que se reflete em
você, não em seu rosto.
—O que o espelho me mostra não é uma visão verdadeira, então? — Eu
precisava desesperadamente que esse espelho mágico fosse real. Então eu
poderia assistir Josef crescer para ser o homem que ele deveria ser. Então eu
poderia ver Käthe florescer na mulher que eu sabia que ela poderia se tornar.
Então, eu não esqueceria o que era viver, mesmo que a própria vida me
esquecesse.
Os lábios de Twig se torceram. —Eu não necessariamente confiaria no
que você vê, Alteza. A prata não mente, mas pode esconder verdades tanto
quanto elas podem revelá-las.
Os fantasmas da minha família sentaram-se ao redor de nós no meu
quarto, se aglomerando nas margens da nossa conversa. Eu tinha que falar em
torno deles.
—Se a prata não me mostrar o meu reflexo —, eu disse. —então o que
será?
—A água parada é melhor, é claro, mas na ausência disso, o jato polido,
o bronze ou o cobre servirão. — Twig pegou uma bacia de cobre redonda do
chão. Ela virou o lado convexo para mim.
Eu parecia pior do que pensava. Manchas de lágrima cortavam sulcos
através das cinzas e sujeira incrustando minhas bochechas, mas não
conseguiam disfarçar as sombras cinzentas sob meus olhos. Meu rosto parecia
afundado, abatido, velho e a bacia de cobre distorcia minha imagem de volta
para mim - nariz comprido e pontudo; queixo atarracado e fraco. Ou talvez eu
realmente fosse tão feia.
Engoli. —Eu pareço uma bagunça certa.
—Isso você parece —, disse Twig alegremente. —Disseram-me que os
mortais gostam de tomar banho, por isso fui instruída a levá-la até as fontes
termais. Venha, —ela disse, gesticulando para mim. —Você nem precisa dizer
eu gostaria.
Eu ri. Era bom rir, mesmo por uma piada fraca; aliviou um pouco da
pressão de tristeza e saudade em meu coração. Era bom rir com alguém de
novo, mesmo que ela não fosse minha irmã. Mesmo que ela não fosse uma
amiga.
Os humanos não foram feitos para isolamento. Nós não fomos feitos para
a solidão. Eu olhei de volta para os fantasmas da minha família sentados
comigo no meu quarto de dormir, invisíveis aos olhos, mas visíveis ao meu
coração. Eu estava morta para o mundo acima, mas não podia deixar de buscar
conforto e companheirismo, como uma flor anseia por sol no escuro.

Depois do banho, Twig e Thistle levaram-me para o fundo do


Submundo, para o centro da cidade dos elfos, para alguns vestidos e roupas
apropriadas. Eu estava curiosa sobre os ateliês dos elfos - Thistle e Twig não
usavam roupas humanas; elas preferiam usar pequenas saias tecidas de folhas
e galhos. O fato de elfos terem costureiras e alfaiates me intrigou.
Os corredores mudaram quando atravessamos as várias passagens.
Onde meu quarto estava situado havia corredores curvos, túneis em vez de
passagens amplas, pinturas e retratos e outros objetos de arte, além de pisos de
terra forrados com tapetes. Os caminhos do lago subterrâneo eram menores,
mais apertados e mais úmidos - menos de terra e mais rochosos.
Ao nos aproximarmos do centro da cidade elfo, os corredores se
ampliaram e se expandiram em avenidas passáveis. O chão se tornou
pavimentado com enormes pedras preciosas, cada uma do tamanho da minha
cabeça. Eles brilhavam sob nossos pés enquanto passávamos, suas superfícies
polidas por milhares - milhões - de pés que os suavizavam ao longo dos
séculos. De cada lado dessas largas avenidas, havia limiares elaboradamente
esculpidos, com “janelas” cortadas nas paredes do segundo e terceiro andares
para observar as ruas abaixo.
Estava errado. A cidade era estranha, forçada e artificial. Não estava
cheia de vida; estava vazia. Esta cidade não havia crescido - ela havia sido feita.
Havia uma simetria nesses prédios que parecia antitética à estética goblínica,
uma mesmice e graça rígidas que eram tão ordenadas quanto uma sinfonia
barroca.
—Alguém mora aqui? — Perguntei.
—Elfos não vivem nas cidades —, disse Thistle. —Não somos como vocês
humanos, querendo viver um em cima do outro. A maioria de nós é solitária e
vivemos em túmulos ligados por família e clã. Aqui —, disse ela, apontando
para as vitrines ao nosso redor. — É onde negociamos.
—Comércio? — Fiquei surpresa. —Elfos fazem negócios um com o
outro?
O olhar azedo estava de volta no rosto de Thistle. —Sim. Obviamente.
Havia sinais acima de cada limiar aberto, símbolos de elfos. Brasões da
família, talvez. Talvez este aqui indicasse o trabalho de ouro, aquele corte de
pedras preciosas. Eu tinha visto algumas obras de arte surpreendentes no
Submundo, obras que eram muito mais habilmente feitas do que aquelas feitas
por mãos humanas. Objetos de lenda feitos por elfos sempre foram um tesouro
sem medida nas histórias de Constanze; guerras haviam sido travadas por sua
posse, impérios haviam caído para adquiri-las.
—Muito esforço para construir uma cidade que nunca será habitada. —,
Murmurei. Meus olhos percorreram os arcos elaboradamente esculpidos, as
fachadas graciosas e as fachadas das lojas - tudo por nada.
—Não foi sempre assim —, disse Twig. —Elfos nunca se reuniram nas
cidades; nós sempre conduzimos nossos negócios ao ar livre, em bosques e
outros lugares sagrados no mundo acima.
—O que mudou?
Twig encolheu os ombros. —Der Erlkönig. Quando ele assumiu o trono,
ele trouxe muitos costumes estranhos com ele.
Eu fiz uma careta. —Meu Rei dos Elfos? — Eu me corrigi. —Este Rei dos
Elfos?
Thistle usava um olhar sombrio. —Der Erlkönig é Der Erlkönig. Só vocês
mortais se importam onde um termina e o outro começa.
—Olhe aqui, chegamos ao vendedor de roupas. — Disse Twig
jovialmente. Ela passou por um limiar escuro em uma grande sala. Eu estava
prestes a admoestar Twig por sua tentativa transparente de me distrair,
quando me distraí de fato.
O desfile de roupas era colocado como uma grande loja, com vestidos
nas “vitrines” e vestidos pendurados em formas de vestido. Um grande
espelho de cobre polido ficava no canto, e as Fadas de Luz iluminavam o
espaço: partículas de poeira flutuantes e brilhantes que davam a tudo um
aspecto suave e difuso. Käthe teria amado isso.
O pensamento de minha irmã era mais agudo do que agulhas e alfinetes,
meu coração uma almofada de tristeza. Pensei nela passando as mãos pelos
sumptuosos pedaços de tecido na confecção de tecidos de nossa aldeia, seus
olhos azul-verão, adoradores de beleza, bebendo nos ricos veludos, nos
elaborados brocados, nas cores vibrantes, nas sedas cintilantes e nos cetins.
Como eu odiava e adorava visitar as lojas com minha irmã. Abominada porque
eu nunca seria tão amável quanto ela, amada porque seu prazer era
contagiante. Eu limpei a umidade dos meus cílios inferiores.
—Ah, carne fresca.
Eu pulei quando outro elfo se materializou aos meus pés. Ele usava uma
fita métrica amarrada no pescoço, com alguns alfinetes na boca. O alfaiate.
Após uma inspeção mais minuciosa, percebi que os alfinetes em sua boca eram
de fato bigodes. Bigodes com ponta de aço.
—Sim, esta é a última de Der Erlkönig. — Thistle me empurrou para
frente.
O alfaiate fungou. —Não há muito para olhar. — Ele olhou para o meu
rosto. —Parece familiar, no entanto.
Eu encolhi sob seu escrutínio.
—Bem —, disse o alfaiate, passando a mão pela loja. —Bem-vinda ao
meu humilde atelier. Temos visto noivas de Der Erlkönig desde tempos
imemoriais, então você veio ao lugar certo se você está precisando de um traje
digno de uma rainha. O que eu posso fazer por você?
Meus olhos vagaram pelos belos vestidos em exibição. Estavam todos
anos fora do prazo - alguns até mais velhos que isso. Eu corri minhas mãos
sobre os vestidos. Embora os tecidos fossem suntuosos, ricos e bonitos, os
vestidos em si tinham sido habilmente consertados. Nada, nem mesmo mãos
de elfos, poderia parar o desgaste do tempo nessas peças lindas. Quanto mais
eu olhava, mais eu percebia que tudo ao meu redor estava desmoronando,
decaindo, morrendo.
Foi só então que entendi que esses vestidos pertenceram a minhas
predecessoras. Minhas rivais. Eu imediatamente anulei o pensamento.
O alfaiate se inclinou para a frente, seus longos dedos multi-articulados
acariciando a forma de vestido mais próxima de mim.
—Ah, sim —, disse ele. —Linda, não é? A cor das tempestades e oceanos,
ou foi o que nos disseram. Esse vestido — continuou ele — pertencia a
Magdalena. Ela era linda - do jeito que os mortais contam, de qualquer forma
- bonita, mas estúpida. Oh ho, nós nos divertimos com essa, nós fizemos, mas
nós a usamos cedo demais. Seu fogo morreu, deixando-nos frios e sombrios.
A forma do vestido por baixo do vestido era alta e bem formada, o peito
e os quadris generosos, a cintura minúscula. O vestido, um roupão à francesa,
era feito de uma profunda seda azul em tons de pedras preciosas e eu podia
imaginar o colorido dramático da mulher que o usara: pele clara, cabelos
escuros e olhos azuis para combinar com o vestido. Uma beleza sem fôlego,
uma joia reluzente, e imaginei o Rei dos Elfos compartilhando sua beleza
repetidas vezes, mordendo os doces pêssegos de suas bochechas até que ela se
foi.
—E este —, Thistle entrou, apontando para outra forma de vestido. —
pertencia a Maria Emmanuel. Certinha, ela era. Recusou-se a cumprir seu
dever com o seu senhor. Ela foi consagrada a outra pessoa - um carpinteiro?
Algo parecido. Não sei o que o rei viu nela, mas ambos possuíam uma estranha
devoção a uma figura pregada em uma cruz de madeira. Ela durou mais
tempo, esta freira pudica, não tendo se entregado ao rei e à terra, e durante seu
governo, nosso reino sofreu. No entanto, ela durou mais tempo, embora ela
também tenha morrido no final, ansiando pelo mundo acima dela que podia
ver, mas não tocar.
Essa forma de vestido era esbelta, o vestido que pendia sobre ela feito de
uma lã cinza austera. Eu podia imaginar a mulher que usava esse vestido - uma
criatura piedosa, velada como uma noiva de Cristo. Nenhuma beleza, mas seus
olhos seriam de um cinza claro e luminoso, brilhando com o fervor de sua
paixão e fé. Não como Magdalena, cuja beleza teria sido carnal e terrena; Maria
Emmanuel teria brilhado com uma luz interior, a beleza de uma santa ou de
um mártir. O Rei dos Elfos era um homem de gostos variados, parecia.
E assim por diante, Thistle e o alfaiate passaram pela ladainha de noivas,
mas seus nomes e histórias passaram rapidamente pela minha mente, suas
vidas se desvaneceram da memória. Esta não era uma loja de roupas; este era
um mausoléu, o vestido formava tudo o que restava de cada noiva anterior.
Reduzido ao tecido que ela usava. Eu me perguntei que vestido seria o meu
vestido, uma vez que o Rei dos Elfos tivesse me usado.
—E a primeira Rainha Elfo? — Perguntei. —Onde está o vestido dela?
Três pares de olhos negros piscaram para mim. Então Thistle e o alfaiate
trocaram olhares.
—Ela não tem um. — Disse Twig.
—Ela não tem? — Eu olhei ao redor da loja, manequins de todas as
formas e tamanhos em pé em uma matriz. —Por que não?
Thistle deu a Twig uma pitada cruel, mas a garota elfo mais alta acenou
para ela.
—Porque —, disse Twig. —ela viveu.
A sala girou em torno de mim, os manequins e elfos se inclinando e
girando em um redemoinho de cores e sombras.
—Ela viveu —, eu repeti. —O que você quer dizer?
Os elfos estavam incrivelmente quietos. A valente donzela deve ter
encontrado uma maneira de escapar do Submundo com sua vida, sem ter
condenado o mundo acima a um inverno eterno. Como isso era possível?
—Qual era o nome dela? — Eu sussurrei.
—O nome dela está perdido para nós. — Disse Twig.
—Esquecido, não perdido —, Thistle interrompeu. —Ferido da nossa
memória. Nós não a honramos.
—Entenda isso, mortal —, disse o alfaiate. —O que as velhas leis dão,
eles levam embora. Não pense que ela se afastou de nós ilesa, intacta ou inteira.
Você está morta, sozinha. Sua vida é nossa.
—Eu pensei que minha vida pertencia ao Rei dos Elfos.
Os elfos explodiram em sua risada estranha. —E para quem —, disse
Thistle. —você acha que a vida dele pertence?
Seus sorrisos eram fileiras de dentes irregulares. Eu estremeci.
—Agora, por que não encontramos um belo vestido para o jantar com
Der Erlkönig? — Perguntou o alfaiate. —Temos alguns lindos tecidos novos
tirados do mundo acima. Ainda quente dos corpos de seus donos agora
esfriando, se eu não sentir falta do meu palpite.
Eu recuei. —O que fez - como foi... — Eu não consegui terminar o horror
que estrangulou minha garganta.
—Ah, os dias de inverno—, disse o alfaiate, lambendo os bigodes de
ponta de aço. Eu imaginei coisas, ou havia manchas de sangue em suas roupas?
—A terra nos pertence enquanto o ano velho morre, mortal. Afaste-se do
Submundo e a terra nos pertence para sempre.
Magdalena, Maria Emmanuel, Bettina, Franziska, Ilke, Hildegard,
Walburga; minhas antecessoras, rivais e irmãs. Cada uma delas se casou com
Der Erlkönig. Cada uma delas havia desistido de sua vida. Elas sabiam o
verdadeiro custo do sacrifício delas? Eu tinha? Há muito tinham se
desvanecido em pó, mas algo de seus espíritos permanecia, as costuras de seus
vestidos surrados seguravam os últimos resquícios de suas almas. Seus
fantasmas me cercavam agora, e eu pude ouvir os sussurros de suas vozes
através do tempo, acenando, implorando, chamando. Junte-se a nós. Junte-se a
nós. Mas uma voz estava ausente. A donzela corajosa e sem nome.
Ela viveu, pensei. Ela saiu do Submundo e viveu.
Saia para brincar

O refeitório era outra caverna, muito parecida com o salão de baile. Seus
tetos altos erguiam-se acima de mim como os arcos de uma catedral, enquanto
pingentes de pedra escorriam baixo, enfiados de Fadas de Luz. Era como ficar
de pé na boca gigante de um monstro, seus dentes ameaçando fechar-se em
mim a qualquer momento, enquanto eu esperava meu senhor e meu marido
me escoltar até o meu lugar.
Eu me esforcei para me acalmar. Era difícil com as minhas costelas,
segurando meus pulmões em seu aperto de ferro. As respirações que tomava
foram restritas, não fazendo nada para retardar meu coração vibrante. Ele
vibrava com nervosismo ou excitação? Eu não tinha certeza.
Thistle, Twig e o alfaiate trouxeram de volta uma série de vestidos para
eu escolher. A maioria era terrivelmente inadequada para mim - as cores eram
muito brilhantes, muito pálidas, as formas todas erradas, o ajuste feito para
alguém mais alto, alguém mais esbelto, alguém simplesmente mais. O
pensamento de usar as eliminações de outra mulher - de outra mulher morta -
fez minha pele arrepiar, e eu recusei todas elas, enlouquecendo os meus
atendentes. O alfaiate finalmente me lançou um roupão velho e ameaçou me
vestir.
Para sua surpresa, aceitei. O alfaiate pegou o roupão e o transformou em
um simples vestido de jantar. Seus dedos longos e finos se estalaram enquanto
ele trabalhava, rasgando as costuras até que ele tivesse material suficiente para
costurar algo usável. A velocidade e destreza de seus dedos me
surpreenderam; Dentro de alguns instantes, ele montou um vestido com uma
saia cheia e um corpete modesto. O vestido era opaco e cinza, a cor da terra, a
cor da lama. Era também, pensei, a cor das penas dos pardais.
—Boa noite, Elisabeth.
O sussurro de um hálito frio no meu pescoço. Eu tremi, dedos gelados
viajando pela minha espinha. Eu enfrentei o Rei dos Elfos e fiz uma reverência.
—Boa noite, mein Herr.
Ele levou minha mão aos lábios, todo cortesia e encanto. Ele era tão
resplandecente quanto um pavão em um lindo casaco verde-musgo feito de
brocado de seda, fios de ouro e cobre entrelaçados em um padrão de folhas de
outono. Suas calças de cetim eram creme, suas meias brancas como neve, os
dedos de seus sapatos pretos pontiagudos erguidos como pés de elfo em
ilustrações que eu havia visto quando criança. Ele estava deslumbrante, tanto
como um rei dos elfos e como um homem. Minha respiração ficou presa na
minha garganta.
—Como vai você, minha querida? — O Rei dos Elfos segurou minhas
duas mãos. As suas estavam enluvadas; as minhas estavam nuas. —O klavier
estava ao seu gosto?
Eu endureci. Pensei no instrumento reluzente no quarto ao lado do meu,
esperando que eu me sentasse e compusesse. A beleza de sua forma e som me
empurrou, pressionando minhas defesas.
—Você está zombando de mim? — Eu perguntei.
O Rei dos Elfos ficou surpreso. —Por que eu iria zombar de você? Você
não gostou do meu presente?
Eu tirei minhas mãos de seu alcance e me afastei. Eu não podia aceitar
este presente dele; sua própria existência me lembrou do espaço oco dentro de
mim que ansiava por ser preenchido.
—Não, por favor —, eu disse. —Não foi um presente; foi um ataque.
Aqueles olhos incompatíveis imediatamente se fecharam, tornando seu
rosto frio e impiedoso. Eu não percebi até que ele desapareceu que eu estava
falando com o jovem de olhos macios. Der Erlkönig apareceu em seu lugar.
—Vamos, minha rainha? — Sua distância era mais fria e mais amarga
que um vento de inverno. Ele ofereceu seu braço e eu o peguei enquanto ele
me guiava para a grande mesa no meio do corredor. Uma vez que eu estava
sentada em uma extremidade, o Rei dos Elfos desapareceu e reapareceu na
outra extremidade em um piscar de olhos.
A mesa grande estava situada ao lado de uma enorme lareira, maior do
que eu era alta, na qual um javali enorme estava cuspido e assado sobre um
fogo crepitante. Das sombras veio uma multidão de servidores, cada um com
um prato que eu nunca tinha visto ou ouvido falar antes. Dois garçons
levantaram o javali da lareira e o colocaram, ainda fumegando e assando, em
um prato do tamanho de um tronco de árvore antiga, cercado por uma
variedade de frutas goblínicas.
—Vamos dar as graças. — Disse o Rei dos Elfos, assim que os servidores
se retiraram.
Meus dedos já estavam enrolados em torno do garfo e faca na minha
frente, e eu envergonhei os devolvi ao meu colo. Meu marido era mais devoto
do que eu. Eu estava curiosa sobre sua fé, mas fiquei em silêncio enquanto
baixava a cabeça. O Rei dos Elfos pediu a bênção do Senhor em nossa refeição
- em latim.
Onde ele aprendeu latim? Meu próprio latim era, na melhor das
hipóteses, rudimentar, meio lembrado das lições da escola dominical que eu
havia abandonado em favor de coabitar com Josef e os elfos na floresta. Pagãos,
nossa mãe nos chamava, sem nenhum cuidado ou conceito para Deus. Mas
Josef e eu não nos importamos; nós éramos do próprio Der Erlkönig e ele não
acreditava em Deus. E ainda assim este Rei dos Elfos sentado diante de mim,
aprendeu em latim e estudava música. Apenas quem era ele?
—Amém. — Ele disse uma vez que ele terminou a bênção.
—Amém. — Eu entoei. Nós começamos a comer. Eu me divertia com a
forma dos meus utensílios: o garfo, formado em uma mão magra e delgada,
com seus dedos muito unidos e garras pontudas servindo como pontas; a faca,
sugerindo uma longa presa escorregando de uma boca sorridente. Os garçons
voltaram, cortando o javali e transferindo a carne - fumegante, vermelha, mal
cozida, ainda pingando um pouco com sangue - em uma grande travessa.
Nós comemos sem falar, como eu escolhi no assado e outros legumes de
raiz de inverno. Eu espiei pratos variados, cremes e outras iguarias, mas todos
viraram meu estômago. Cozinhados com um toque de elfo, pareciam
estranhos, antinaturais, podres: os chocolates enlameados, os doces cobertos
de limo.
—O que, a comida não te agrada, minha rainha?
Eu olhei para cima da minha refeição. O Rei dos Elfos usava uma
expressão azeda, seus lábios apertados. Ele pegou em seu próprio prato, uma
porção escassa mal tocada.
—Não, mein Herr. — Reescrevi minhas palavras. —Suas ofertas não me
tentam.
—Não? — Ele dirigiu seu garfo em seu assado com força crescente. —E
o que seria necessário para agradar a você, minha querida?
Ele estava de mau humor, o lábio inferior em um biquinho que rivalizava
com o de Käthe. Ele era como uma criança que não tinha seu brinquedo
favorito, uma criança mimada acostumada a conseguir o que queria.
Então eu não disse nada, dando de ombros indiferente ao Rei dos Elfos
quando tomei um grande gole de vinho.
—Tão particular, minha rainha —, ele comentou. —Você estará aqui pelo
resto de sua vida; você também pode se divertir.
Eu não tinha resposta para isso, então tomei outro gole de vinho.
A refeição progrediu em silêncio, um silêncio que ficou preso em nossas
gargantas. Nenhum de nós comeu muito, mas os servidores elfos continuaram
a trazer cursos após o curso. Eu tentei o meu melhor para honrar cada prato,
mas o Rei dos Elfos tinha desistido de toda a pretensão de comer. Ele bebia
taça após taça depois de uma taça de vinho, ficando cada vez mais irritável
quando seus empregados não enchiam sua taça com rapidez suficiente. Foi o
máximo que já o vi beber, mas ele parecia completamente sóbrio. Papai já
estaria rindo - ou chorando - a essa altura.
Eu assisti o Rei dos Elfos se mexer debaixo dos meus cílios. Eu sabia que
ele queria quebrar a quietude que ainda não estava entre nós. Seu humor
piorava a cada momento que passava. Ele deslizou as travessas e tigelas na
mesa para frente e para trás, observando a comida cair na superfície e no chão,
forçando os elfos a limparem atrás dele. Eu podia ver as palavras se formando
em sua língua, mas ele fechou os lábios e as engoliu, determinado a não ser
aquele que quebrava primeiro.
Mas ele fez assim mesmo.
—Bem, minha querida. — Disse ele finalmente.
Ele queria preencher os espaços vazios com som, com conversas sem
sentido. Ele era um pouco parecido com Josef daquele jeito; Josef, que sempre
tocava porque não suportava o silêncio. Eu estava contente em moldar o
silêncio nas estruturas que eu queria.
Então eu esperei.
—Que temas cintilantes devemos discutir durante o jantar? —,
Continuou o Rei dos Elfos. —Nós temos o resto de sua vida para nos reacender,
afinal de contas. — Ele tomou outro gole de seu vinho. —Que tal o vinho? Uma
safra muito boa, se eu mesmo disser isso.
Mais uma vez eu não disse nada. Eu metodicamente mordi depois de
morder minha comida, mastigando lenta e cuidadosamente.
—E o tempo? —, Ele continuou. —Sempre imutável aqui no subsolo, mas
inverno no mundo acima, ou assim me disseram. A primavera, dizem, demora
a chegar este ano.
Eu parei com meu garfo a meio caminho da minha boca. Pensei no que o
alfaiate dissera sobre a terra pertencente aos elfos durante os dias de inverno.
A comida virou cinzas na minha língua, desmoronando todo o caminho até a
minha garganta. Tomei outro gole de vinho.
O Rei dos Elfos já teve o suficiente. —Você não vai falar? — Ele exigiu.
Eu me cortei outro pedaço de carne assada. —Você estava fazendo um
bom trabalho sozinho. — Eu disse suavemente.
—Eu não pensei que você seria uma conversadora tão maçante,
Elisabeth. — Ele amuou. —Você sempre esteve disposta a falar comigo antes.
De volta ao bosque dos elfos. Quando éramos jovens.
Teria o Der Erlkönig sido jovem? Ele era eterno e antigo, mas eu parecia
lembrar seu rosto, redondo e musculoso com a juventude. Eu me lembrei de
uma menininha na floresta e um garotinho.
—A conversa fiada de uma menininha não é o mesmo que uma conversa
cintilante, mein Herr. — Larguei meus utensílios. —Mas o que eu te disse?
O Rei dos Elfos sorriu, mas eu não sabia dizer se provocava ou acalmava.
—Muitas coisas. Você queria ser uma compositora famosa. Você queria ter sua
música ouvida em todos os grandes salões de concerto do mundo.
A dor explodiu do meu peito, um relâmpago rápido, mas a queimação
persistiu depois de seu ataque inicial. Era verdade que eu sonhara com essas
coisas uma vez. Antes que Josef roubasse a atenção de nosso pai com seus
presentes. Antes de papai ter deixado bem claro para mim que o mundo não
tinha interesse em ouvir minha música. Porque era estranho. Porque eu era
estranha. Porque eu era mulher.
—Então você conhece o meu coração —, eu disse. —E não há mais a ser
dito.
O rosto do Rei dos Elfos escureceu. —O que há de errado com você,
Elisabeth?
Eu levantei meus olhos para os dele. —Não há nada de errado comigo.
—Há. — Ele se mexeu em seu assento, e embora houvesse uma infinita
variedade de comida e festa entre nós, ele estava muito perto. Uma tempestade
estava se formando por trás daqueles olhos desiguais, e o ar entre nós crepitava
com eletricidade. —Você não é a Elisabeth de que me lembro. Eu pensei que se
você, se você se tornasse minha... — Ele se interrompeu abruptamente. —Isso
—, disse ele, apontando para o espaço entre nós. —não é o que eu estava
esperando.
—As pessoas crescem, mein Herr —, eu disse em breve. —Elas mudam.
Ele me deu um olhar duro. —Evidentemente. — Ele olhou para mim por
mais uma vez antes de se inclinar para trás em sua cadeira e cruzar os braços,
descansando os pés sobre a mesa. —Ah, bem, meu erro. O tempo passa de
maneira diferente no Subterrâneo do que no mundo acima. Meros momentos
para mim, vários anos e uma vida atrás para você, aparentemente. — A
tempestade em seus olhos ficou mais sombria.
Um infeliz assistente de elfos tentou mover um dos pés do Rei dos Elfos
para limpá-lo. —O que você está fazendo? — Ele retrucou.
O elfo lançou-lhe um olhar de besouro e tentou sair do caminho, mas não
antes de o Rei dos Elfos agarrar o coitado pela nuca e dar-lhe um chute
malicioso, enviando-lhe o ouvido do outro lado do salão.
Eu fiquei horrorizado. —Como você pode?
Seus olhos brilhavam perigosamente. —Faria o mesmo comigo se
pudesse. — Disse ele em tom sombrio.
—Você é Der Erlkönig —, eu disse. —Você é o rei deles e tem um poder
incalculável sobre eles. Você é a razão pela qual eles não podem deixar o
Submundo. Tenha um pouco de pena, por que não?
Ele bufou. —Eles são tanto meus carcereiros quanto eu sou deles —, ele
replicou. —Se eu pudesse colocar meu fardo como diretor do Submundo, eu
faria. Se eu pudesse vagar pelo mundo acima como um homem livre, eu iria.
Em vez disso, sou prisioneiro da minha coroa.
Isso me deixou em paz. Ele sempre parecia ir e vir ao meu encontro e
ligar para o Bosque dos Elfos, mas, à sua maneira, estava preso. Como eu.
—O que você faria se fosse um homem livre? — Perguntei.
A pergunta atingiu-o no peito, espalhando-se por sua garganta e rosto
como o rubor da aurora. Com vida e cor em suas feições, ele parecia mais uma
vez o jovem austero na galeria de retratos: jovem, idealista e vulnerável.
—Eu pegaria meu violino e tocaria. — As palavras foram ditas quase
antes que seus lábios pudessem alcançar o que ele estava dizendo. —Eu
andaria pelo mundo e tocaria até que alguém me chamasse pelo nome e me
chamasse para casa.
Seu nome e sua casa. O que meu Rei dos Elfos deixou no mundo mortal?
Foi um tormento maior ver tudo que você conheceu e amou transformar e
desaparecer diante de seus olhos enquanto você permanecia vivo e imutável?
Ou era pior morrer antes que você pudesse testemunhar essa mudança por si
mesmo?
Os olhos do Rei dos Elfos encontraram os meus e, por um breve
momento, eu o vi - verdadeiramente ele - por trás da máscara de Der Erlkönig,
até o garoto que ele tinha sido. Mas ele piscou e o manto caiu sobre ele mais
uma vez.
—E você, Elisabeth? O que você faria, se você fosse livre?
Eu virei minha cabeça, os olhos ardendo. Ele havia retornado minha
pergunta com um voleio particularmente vicioso, e nós dois sabíamos disso.
—Podemos jogar este jogo —, disse ele. —Pergunta por pergunta,
resposta por resposta.
—Você pode manter suas respostas para si mesmo —, eu respondi. —
Não tenho mais perguntas.
—Oh, Elisabeth. — Sua voz estava triste. —O que aconteceu entre nós?
O que aconteceu com você? Você já foi tão apaixonada e aberta comigo, e agora
mal posso ver a amiga que conheci. Por que você não sai e joga, Elisabeth? Por
quê?
Ele tinha todas as perguntas, mas eu não tinha mais respostas. Nós
terminamos nossa refeição sem outra palavra entre nós.
Depois que os elfos limparam os últimos pratos, o Rei dos Elfos me
convidou para se juntar a ele em seu aposento. Um ligeiro arrepio de excitação
começou na base da minha coluna com a perspectiva de estar em seus
aposentos particulares novamente, e eu concordei. Eu gostaria de poder
resolver meus sentimentos por ele, meu senhor e carcereiro, amigo e inimigo.
Parte de mim ansiava por atraí-lo para perto, enquanto outro queria mantê-lo
no braço. O Rei dos Elfos me ofereceu seu braço e saímos do refeitório com
uma brisa.
Quando recuperei o fôlego, estávamos em um espaço lindamente
decorado com duas lareiras, a parede próxima forrada de estantes de livros, a
parede distante forrada com enormes espelhos de prata que mostravam a neve
caindo sobre uma madeira de inverno. Um klavier estava no centro. Um
vestido branco manchado de sujeira pendia de uma prateleira ao lado do
instrumento. Eu fiz uma careta.
—Isso —, eu comecei, mas minha voz guinchou. Eu limpei minha
garganta. —Esta é a sua sala de descanso?
O Rei dos Elfos assentiu. —Claro que sim minha querida. O que você
acha disso?
—Mas é - é o único conectado... — Eu não consegui terminar a frase.
—Aquele conectado ao seu quarto de dormir? — Ele perguntou
secamente. —Mas é claro; nós somos casados, afinal de contas.
Um rubor aqueceu minhas bochechas. —E então seu quarto de dormir...
—Está do outro lado da parede. — Ele apontou para a parede do lado
oposto do meu quarto. Não notei nenhum limiar ligando seus aposentos ao
aposento. O Rei dos Elfos me viu procurando e baixou a voz.
—Não há caminho direto da sua cama para a minha —, ele disse
suavemente. —E eu poderia removê-los ainda mais um do outro, se esse é o
seu desejo.
Minhas bochechas ficaram ainda mais quentes, mas eu balancei a cabeça.
—Não, não —, eu disse. —Está tudo bem. — Endireitei meus ombros e levantei
minha sobrancelha, combinando seu tom seco o melhor que pude. —Afinal,
somos casados.
Uma contração nos cantos dos lábios dele. Ele conjurou duas cadeiras e
um sofá reclinável diante de uma das lareiras. —Relaxe, minha querida.
Eu sentei no sofá reclinado. Dois jovens graciosos saíram das sombras,
um com uma garrafa de conhaque e o outro com dois copos de cristal. Eu fiquei
surpresa com a aparência deles, não só porque eu não os tinha visto no escuro,
mas por causa de sua aparência humana. A maioria dos elfos que eu tinha visto
eram da espécie de Twig e Thistle: mais criatura que humanidade.
Um dos atendentes me presenteou com um copo de conhaque. Eu
suspirei; pelo espaço de uma respiração, pensei que era Josef ao meu lado.
Então eu pisquei. O rosto esperando tão pacientemente ao meu lado não
pertencia ao meu irmão mais novo; a pele estava muito pálida, as maçãs do
rosto muito angulares, as feições completamente bonitas demais. No entanto,
havia algo de Josef no rosto desse jovem, na sensível inclinação de sua boca, no
canto das sobrancelhas. Mas os olhos eram elfos puros: um preto achatado que
não deixava espaço para os brancos sobre as pupilas.
O Rei dos Elfos me lançou um olhar penetrante. —O que é isso, minha
querida? — Ele me viu olhando para seus atendentes. —Oh, Elisabeth —, ele
disse. —certamente você não esqueceu meus changelings?
Ele pousou a mão no jovem mais próximo, acariciando carinhosamente
o rosto do menino. A expressão do atendente não traiu nada, mas quando o
Rei dos Elfos inclinou a cabeça para trás para um beijo, o jovem obedeceu a um
sorriso de dentes afiados. Era um tipo de sorriso lascivo e conhecedor. Então
eu percebi que ele era um dos pretendentes elfos que eu conheci no baile dos
elfos, um com quem eu tinha jogado blefe.
Tomei um gole do conhaque para disfarçar o desconforto. Tinha gosto de
pêssegos de verão, de sol, de vida, e queimou todo o caminho. Eu tossi.
O Rei dos Elfos estudou meu rosto, queimando brilhante e vermelho, e
acenou para os changelings. Eles desapareceram sem uma palavra.
—Então, — eu disse, tentando suavizar o constrangimento entre nós, —
o que devemos fazer para passar o tempo? — Eu não sabia se era a sala ou o
conhaque, mas de repente eu estava quente - muito quente.
O Rei dos Elfos encolheu os ombros. Seus olhos voaram para o klavier,
onde brilhava no brilho do fogo e Fadas de Luz. —Cabe a você —, disse ele. —
Eu estou no comando da minha senhora.
Parecia tudo tão surreal e estranho estar sentada com ele, nesta sala
lindamente decorada com um copo de conhaque na mão. Quando Käthe e eu
fingimos ser mulheres nobres ricas, tínhamos tocado em seus ares e graças,
seus gostos refinados e elegantes. Mas quando confrontada com a realidade
disso, eu estava confusa. Na pousada, nunca houve tempo para lazer. Depois
que o jantar era servido, havia louça para lavar, mesas para limpar e chão para
varrer e esfregar. Sempre tinha sido minha mãe e eu, trabalhando nossas mãos
para o couro, enquanto papai saía com seus amigos, enquanto Constanze
descansava em seu quarto no andar de cima, enquanto Käthe se preparava e
se emburrava, enquanto Josef tocava.
—O que você faria? — Perguntei.
O Rei dos Elfos se serviu de um copo de conhaque, seu cabelo prateado
branco-dourado caindo para cobrir sua expressão. —Eu tocaria alguma
música.
Eu segurei meu copo com as duas mãos, como se pudesse me proteger
do que eu sabia que ele perguntaria em seguida. Ele me pediria para tocar. Ele
pediria para ouvir minha música.
—Tudo bem —, eu disse. Ele ergueu os olhos para encontrar os meus,
um olhar como uma lâmina que cortava profundamente. Mas foi a esperança
e alegria em seu rosto que cortou mais fundo. —Por que você não toca um
pouco o klavier para mim, mein Herr?
A luz em seus olhos diminuiu. —Como quiser, minha rainha.
O Rei dos Elfos pousou seu conhaque e caminhou até o klavier,
sacudindo as pontas do casaco enquanto se sentava no banco. Ele passou os
dedos levemente pelas teclas e começou a tocar.
No começo eu não reconheci sua escolha de música. Gradualmente,
revelou-se como uma simples música de crianças, uma que Käthe e eu
cantávamos enquanto tocávamos na floresta. O Rei dos Elfos elaborou o tema
em algumas variações, e eu escutei educadamente, meu dedo do pé batendo
no chão embaixo de mim.
As variações não eram particularmente inspiradas, nem sua execução no
klavier especialmente limpa. Para um homem de mitos e lendas, o tocar do Rei
dos Elfos era surpreendentemente comum. Mas seu toque nas teclas era leve e
ágil, e ele tinha uma maravilhosa sensação de ritmo, entrando e saindo com a
ascensão e queda da melodia.
Meus dedos se contraíram e uma sensação de engate saiu do meu peito.
Eu queria ir até ele, sugerir uma variação diferente, sentar ao lado dele no
banco e dividir o ato de criação. Eu queria minhas mãos nas dele, queria guiar
aqueles dedos longos e esguios, e queria mudar o teor da música, empurrar
para cá e chegar lá. O Rei dos Elfos sentiu-me a observá-lo, e o mais leve rubor
de rosa matizou suas bochechas. Seus dedos escorregaram do piano.
—Bem —, ele disse uma vez que ele terminou. —Espero que tenha sido
para sua satisfação, minha querida. Eu não tenho o seu dom para a
improvisação, e minhas mãos estão muito mais acostumadas com a sensação
de cordas e um arco sob elas.
—Quem te ensinou a tocar? — Eu estava tremendo, mas não estava com
frio; Eu estava quente. Eu podia sentir o calor subindo das minhas bochechas,
minha garganta, meu peito.
Sua única resposta foi um sorriso enigmático. —E agora é a sua vez,
Elisabeth.
De muito quente a muito frio. Uma onda de medo me encharcou da
cabeça aos pés em um suor nervoso. —Oh não. — Eu balancei a cabeça. —Não.
O aborrecimento começou a endurecer seu rosto. —Venha, Elisabeth. Por
favor. Eu estou pedindo muito bem.
—Não. — Eu disse novamente, um pouco mais firme.
O Rei dos Elfos suspirou e levantou-se de seu assento. —Eu não entendo
—, disse ele. —Por que você está com tanto medo? Você sempre foi tão
destemida, tão descarada em seu próprio caminho quando se trata disso. Você
nunca reteve nada quando tocávamos juntos no Bosque dos Elfos.
Os pequenos tremores no meu corpo haviam se transformado em
tremores de quebrar os ossos. O Rei dos Elfos me estudou, observando minha
pele mudar de pálida para corada para pálida novamente, e caminhou até
mim. Suas mãos pegaram as minhas e eu deixei que ele me levasse do sofá para
o klavier.
—Venha. — Ele me sentou no banco e colocou minhas mãos no piano.
Eu as peguei como se tivesse sido queimada, escondendo-as no meu colo.
—Elisabeth—, disse o Rei dos Elfos. —Somos só nós.
Esse era o problema. Não era só eu. Era eu e o Rei dos Elfos. Eu não podia
tocar por ele. Ele não era Josef, que era a outra metade da minha alma. Ele era
outra pessoa, inteira.
Eu balancei a cabeça.
Ele fez um som frustrado e se afastou. —Aqui —, disse ele, empurrando
um pacote de seda branca para mim. —Por que você não toca no que estava
trabalhando antes? Este-
As palavras morreram em sua garganta enquanto ele espalhava o tecido
diante de seus olhos inquisitivos. Tarde demais, eu vi pelo que era: meu
vestido de casamento com a minha composição de cinzas borradas. Eu pulei
para os meus pés, mas ele era muito rápido, ou eu estava muito devagar,
porque ele leu até o último pedaço de mim naquele vestido.
—Hmmm —, disse ele, examinando as marcas no vestido, a música que
eu havia anotado lá. —Você estava com raiva quando escreveu isso, não foi?
Eu posso ver a raiva, a impotência, em suas anotações. — Então ele olhou para
cima. —Oh, Elisabeth—, ele respirou. —Você escreveu isso em sua noite de
núpcias, não foi?
Eu bati nele com força no rosto. Meu objetivo era certo, e ele cambaleou
para trás, a mão na bochecha.
—Como você se atreve —, eu disse. —Como você ousa?
—Elisabeth, eu...
—Você me faz desistir da minha música, me forçar a sacrificar meu
último pedaço de eu e para você, e você a joga de volta na minha cara? — Eu
perguntei. —Você não tem direito! Não há o direito de olhar para a minha
música assim. — Estendi a mão para pegar o vestido de casamento das mãos
dele, para rasgar o tecido em pedaços, e jogar as peças em uma das lareiras,
mas ele me segurou.
—Eu não quis dizer... quero dizer, eu apenas pensei...
—Você pensou o quê? — Eu voltei. —Que eu ficaria grata? Que você
pode trazer um instrumento como este - tão lindo e tão perfeito - do nada e
esperar que eu esteja bem com isso? Eu não posso - eu não posso... — Mas eu
não sabia o que era que eu não podia fazer.
—Não é isso que você queria? — Cor cortou suas maçãs do rosto. —Não
é isso que você desejou de mim? Sua música? Hora de compor? Liberdade de
suas responsabilidades? — Ele largou o vestido e se aproximou de mim. O Rei
dos Elfos era magro, mas alto, e ele se elevou sobre mim. —Eu te dei tudo o
que você sempre quis. Estou cansado de corresponder às suas expectativas.
—E estou cansada —, eu disse. —De viver de acordo com a sua. —
Estávamos tão perto que podíamos sentir o roçar da respiração um do outro
em nossos lábios.
—O que eu já perguntei de você? — Ele perguntou.
Sobs engasgou minha garganta. —Tudo —, eu murmurei. —Minha irmã.
Minha música. Minha vida. Tudo porque você queria uma garota que deixou
de existir há muito tempo. Mas eu não sou aquela garota, mein Herr. Eu não
tenho sido há muito tempo. Então, o que você quer de mim?
A quietude o superou, a calma em uma tempestade, mas eu era a raiva e
o vento e a fúria. —Eu te disse o que eu queria —, ele disse baixinho. —Você,
inteira.
Eu ri, um som alto e agitado. —Então me leve —, eu disse. —Tire tudo
de mim. É seu direito, mein Herr.
O Rei dos Elfos respirou fundo. A fúria dentro de mim mudou de tom,
de menor para maior. O som de sua respiração me transformou e eu me
aproximei.
—Leve-me —, eu insisti. Eu não estava mais com raiva. —Leve-me.
Eu ansiava e queimava. Havia poucos centímetros entre a nossa carne,
separados apenas pelas camadas mais finas de brocado de seda e linho. Cada
pedaço da minha pele saltava e esperava pelo toque dele; Eu podia sentir o
brilho de seu calor contra a minha pele, o espaço entre tão vivo quanto nós.
Minhas mãos trêmulas pareciam se erguer por conta própria, deslizando os
dedos pelos botões de seu colete, enterrando-se na gravata de renda em sua
garganta.
—Elisabeth. — Sua voz tremeu. —Ainda não.
Eu queria puxar a renda em sua garganta, puxá-lo para mim e esmagar
nossos lábios e nossos corpos juntos. Mas eu não fiz.
—Ainda não? — Perguntei. —Por quê?
Eu podia sentir o quanto ele me queria, queria isso, mas ainda assim ele
se continha. —Porque —, ele sussurrou. —Eu quero saborear isso. — Uma mão
se enroscou no meu cabelo. —Antes de você ir embora cedo demais.
Eu ri amargamente. —Eu não estou indo a lugar nenhum.
O canto dos lábios dele se torceu. —Quanto mais tempo você ficar, mais
cedo você sairá.
Aquele maldito filósofo novamente. —O que isso significa? — Eu
perguntei.
—A vida —, ele disse suavemente, —é mais do que carne. Seu corpo é
uma vela, sua alma é a chama. Quanto mais eu queimo a vela...
Ele não terminou.
—Uma vela não usada nada mais é que cera e pavio —, eu disse. —Eu
prefiro acender a chama, sabendo que vai sair, do que sentar para sempre na
escuridão.
Nós dois ficamos em silêncio. Eu esperei que ele fechasse a distância
entre nós.
Mas ele não fez. Em vez disso, o Rei dos Elfos gentilmente me empurrou
para longe.
—Eu disse quero você, inteira. — Ele pressionou um dedo contra o meu
peito, onde meu coração bateu erraticamente sob o seu toque. —E eu vou ter
você, quando você realmente der tudo de si para mim.
Mais uma vez, aquele lugar oco dentro de mim ecoou de dor.
—Quando você finalmente libertar aquela parte de você que você tão
desesperadamente nega —, ele disse, colocando a mão livre em volta da minha
nuca. —a parte que eu queria desde que te conheci, então eu vou ter você
Elisabeth. — Ele inclinou a cabeça para perto da minha. —Você, inteiro.
Eu podia sentir as mechas de seu cabelo contra os meus lábios. Eu virei
meu rosto para encontrar o seu, boca entreaberta para receber seu beijo.
Mas ele não me beijou. Em vez disso, ele se retirou, deixando-me
desolada e vazia.
—Só então —, disse ele. —Eu não vou me contentar com o segundo
melhor. Eu não vou me contentar com metade do seu coração quando eu quero
sua alma inteira. Só então provarei sua fruta e saborearei até a última gota até
que ela desapareça.
Estremeci com o esforço de conter minhas lágrimas. Seu sorriso estava
torto.
—Sua alma é linda —, ele disse suavemente. Seus olhos percorreram o
vestido de noiva do klavier. —E a prova está aí. Na sua música. Se você não
estivesse com tanto medo de compartilhar comigo, se você não estivesse com
tanto medo daquela parte de você, você teria me tido há muito tempo.
E então o Rei dos Elfos se foi, em um redemoinho de seda, e o leve aroma
de gelo na brisa.

Eu me sento no klavier, minutos ou horas depois, tocando as manchas no


tecido do meu vestido de noiva. As palavras do Rei dos Elfos ecoam na minha
mente - você, inteira; você, inteira - um refrão que não consigo abalar. Não é
meu corpo que ele exige; é minha música. Eu sou mais do que a carne e ossos
que abrigam o meu espírito. Eu quero dar a ele essa parte mais íntima de mim
agora, mais íntima do que qualquer conhecimento carnal que possamos
aprender juntos. Mas eu não sei como. É mais fácil dar-lhe o meu corpo do que
dar-lhe a minha alma.
Eu puxo uma folha de papel para mim e pego a pena. Eu mergulho no
tinteiro, mas não escrevo. Eu vejo as marcas que fiz na noite do nosso
casamento, mas as notas se misturam. Isso tudo é tão secreto, tão sagrado, e
não sei se posso suportar compartilhá-lo com mais alguém. Eu sou meu vestido
de noiva - frágil, efêmero - as manchas de cinza que são minha música vão
desaparecer e desbotar com o tempo. E ainda não consigo me obrigar a
escrever.
Lágrimas, junto com gotas de tinta, mancham o papel diante de mim,
pontilhando as notas como uma medida de oitavas. Em algum lugar distante,
do outro lado da parede oposta, um violino começa a tocar. O Rei dos Elfos.
Eu trago minhas mãos para o klavier e sigo. Sem nossos corpos para atrapalhar,
nossos verdadeiros eus voam e dançam. Sua intrincada complexidade e
mistério; o meu é não convencional e emocional. No entanto, de alguma forma,
nos encaixamos, harmoniosos e complementares, contrapontados sem
dissonância. Eu acho que estou começando a entender.
Eu mergulhei minha pena no tinteiro mais uma vez, e juntei minhas
lágrimas em uma música.
Alteração

Liesl!
Alguém chamava meu nome e eu lutei contra o peso da escuridão me
pressionando para dormir.
Liesl!
A voz era familiar - querida - para mim, mas não conseguia me lembrar
de onde a ouvira antes. Quando eu ouvi isso. Com um grande esforço, eu abri
meus olhos.
Eu estava no bosque dos elfos. Uma forma vermelha brilhante
caminhava em minha direção e eu a reconheci antes mesmo de ver seu rosto.
Quem mais roubaria meu manto vermelho?
—Käthe! — Eu gritei, mas eu estava sem voz.
Minha irmã examinou a floresta, como se tivesse ouvido algum eco de
seu nome. Mas seus olhos não se fixaram em mim, não me acharam em pé na
frente dela.
Käthe! Eu tentei de novo, mas eu estava invisível.
—Liesl. — Käthe andava de um lado para o outro no Bosque dos Elfos.
—Liesl, Liesl, Liesl.
Minha irmã cantava meu nome várias vezes, uma convocação ou um
encantamento. Com as mãos trêmulas, enfiou a mão na bolsa e retirou um
maço de papéis. Meu coração pulou no meu peito. Foi o pedaço de mim que
eu deixei para trás, a composição que eu chamei de Der Erlkönig.
Então Käthe enfiou a mão na bolsa, tirou um pedaço de papel absorvente
e uma caneta de chumbo. Para minha surpresa, o papel estava coberto de
pequenas figuras - mãos, olhos, lábios, vestidos. Eu não sabia que minha irmã
poderia desenhar e desenhar bem.
Descansando o papel no joelho, Käthe começou a rabiscar furiosamente.
Eu me inclinei mais perto para ver o que ela estava desenhando - uma árvore?
- mas Käthe não estava desenhando; ela estava escrevendo.
Caro Josef.
Uma letra. Ela estava escrevendo uma carta frenética, apressada e cheia
de pânico.
Liesl se foi. Liesl se foi. Liesl se foi.
Käthe ignorou tanto a ortografia quanto a caligrafia, apressando-se em
pronunciar suas palavras. Liesl se foi e ninguém lembra seu nome. Eu não
estou ficando brava. Eu não estou. Eu segurei os cabelos de nossa irmã em
minhas mãos, e estou rindo por não confiar isso a você. Toque isso, Josef.
Toque. Toque sua música. Então me escreva de volta, escreva para a mãe. Diga
a todos que Liesl existe. Que Liesl vive.
Ela nem se incomodou em assinar o nome dela. Então, segurando a carta
diante dela como um artefato precioso, Käthe deu um passo hesitante e
trêmulo para além do bosque dos elfos.
Um grito estrangulado e inarticulado atravessou a floresta. Eu pulei para
trás quando Käthe rasgou o papel embolado em suas mãos, violentamente,
com raiva. Ela jogou os pedaços longe e eles se espalharam sobre ela como
pétalas caindo. Pedaços de papel flutuaram em minha direção e eu estendi a
mão para tocar um, com medo de passar por ele como névoa.
O papel estava sólido na minha mão. Eu juntei todos eles e tentei juntá-
los; um pouco de uma mão, a ponta de um dedo, o canto de um sorriso, o brilho
de um olho. Eu procurei por mim, por evidências da minha existência, mas não
havia nada. Apenas espaços em branco e vazios onde meu nome costumava
estar.
O mundo ficou escuro ao meu redor. Cobri meu rosto e chorei.

O som de um violino. Meu coração ficou emocionado, reconhecendo suas


doces tensões, sua extraordinária clareza emocional.
Josef.
Eu tirei minhas mãos do meu rosto. Meu irmão e François estavam diante
de mim, tocando para uma plateia. Quando terminaram juntos - em sincronia,
em uníssono - o público ficou de pé. Eu podia sentir o aplauso mas não ouvi-
lo; Eu pude ver os gritos de Bis! Bis! Gravados em seus lábios, mas o salão
estava tão silencioso quanto uma tumba.
Depois de uma reverência superficial, Josef retirou-se do salão com uma
brusquidão que beirava a grosseria. François disse algo para os ouvintes
confusos e depois correu atrás de Josef. Segui-os até uma câmara adjacente,
pequena, privada e íntima. François fez um gesto furioso para o público do
lado de fora. Os garotos argumentaram, François se agitou e enfureceu, meu
irmão curiosamente lacônico e rabugento. Josef balançou a cabeça e disse algo
que impediu o garoto negro de continuar.
Liesl.
Eu não ouvi meu nome, mas senti isso ressoando nos aposentos do meu
coração. Josef repetiu meu nome e François suavizou-se. Ele foi até Josef e
reuniu meu irmão nos braços. Ele deixou meu irmão chorar, alisando suas
lágrimas como eu poderia ter feito uma vez. Então François começou a beijá-
lo, mas não como eu teria feito; com paixão, com ternura, com astúcia. Desviei
os olhos para lhes dar privacidade e voltei para fora, onde meu irmão havia
deixado o violino, o arco e a partitura aberta no estande.
Lieben, ein Lied im stil die Bagatelle, auch Der Erlkönig.
Meu coração deu um sobressalto estranho, como se alguém tivesse
atingido meu peito e agitado em seu punho. Minha música. Meu irmão estava
tocando minha música, não apenas para si mesmo, mas para o mundo ouvir.
Eu sorri. Sentei-me no klavier e passei meus dedos por suas brilhantes
teclas de marfim. Comecei a tocar uma sonata de Mozart, uma que Josef e eu
praticamos por muito tempo quando éramos pequenos. Pouco a pouco, com
cada nota que eu tocava, o som começou a retornar.
Atrás de mim, eu podia sentir alguém pegando o violino e se juntar a
mim na música. Eu me virei para encará-lo e sorri, meu sorriso de elfo.
Sepperl.
Ele era tão bonito como sempre, meu irmãozinho, seus cachos dourados
brilhando à luz de um sol distante, seus olhos azuis grandes e brilhantes. Seu
rosto já havia perdido grande parte da gordura do bebê, os ângulos das maçãs
do rosto e a mandíbula esculpida e afiada. Nós tocamos juntos, assim como
sempre fizemos, mas havia algo diferente sobre ele tocar.
A música de Sepperl sempre foi cristalina, uma gota de um som, exata e
transcendente. Sua atuação era de outro mundo, uma clareza quase implacável
em sua precisão. Tão... Tão bonito. Tão etéreo. Então do outro mundo. Mas
quando ele se aproximou, o teor de seu tocar mudou. Ficou mais quente, mais
lânguido, mais misterioso, mais... humano. Meus dedos hesitaram no teclado.
A música me empurrou, me cutucou, me levantou. Esta não era a voz de
Josef; era minha. Era a voz que ouvia na minha cabeça quando compunha, a
voz que escutava quando estava zangada, alegre ou triste. Eu olhei para a
névoa; não era Sepperl depois de tudo? A figura tocando violino lembrava meu
irmão, mas quando ele se aproximou me perguntei como poderia ter cometido
esse erro. Cachos dourados davam lugar a uma juba prateada, olhos azuis
contrastando com cinza e verde.
O Rei dos Elfos.
Mas era o Rei dos Elfos? Ou Josef? Eles se pareciam uns com os outros,
embora não parecessem ser nada parecidos, da mesma forma que os homens
da galeria de retratos do Submundo eram indivíduos, mas ao mesmo tempo
eram todos Der Erlkönig. Minhas mãos escorregaram do klavier. O violinista
se aproximou e sorriu, apontou os dentes e os lábios astutos. Seus olhos
desbotaram de azul para cinza e depois desapareceram completamente no
opaco e sólido preto dos olhos de elfo.

Eu acordei com um suspiro. Os restos de uma música se separaram,


desaparecendo junto com o meu sonho. Eu estava tocando com alguém -
Sepperl? Não, outra pessoa. Alguém alto e esbelto, alguém que moldou os sons
dentro de mim de uma maneira totalmente estranha e dolorosamente familiar
de uma só vez. Uma percepção inquietante agitou-se dentro de mim, mas eu
não queria pensar nisso, trazer a revelação para a luz e examiná-la. Eu a afastei,
junto com os restos do sono.
Apesar do fogo ardente que rugia alegremente na minha lareira, eu
estava com frio e cheia com suor. Sentei-me na minha cama, meu corpo
dolorido e trêmulo, como se estivesse me recuperando de um surto de gripe.
Eu estava com sede e fome, mas além disso, eu estava dolorosamente,
desesperadamente com saudades de casa. Eu queria falar com a minha mãe,
fazer com que ela me trouxesse uma caneca de leite quente com ervas, me
envolvesse no toque suave de suas mãos desgastadas pelo trabalho. Mutti,
Mutti, eu queria soluçar. Mutti, eu estou doente.
De volta ao mundo acima, mamãe e Constanze teriam me castigado por
ficar deitada tanto tempo. O sol não descansa, e nem nós, mamãe sempre dizia.
Mesmo nos meus piores dias, os dias em que meus cursos mensais
pressionavam meu útero com um peso de ferro, os dias em que a futilidade da
minha existência ameaçava me sufocar, eu sempre encontrava forças para
enfrentar a próxima hora, a próxima tarefa. Era mais fácil não pensar no longo
caminho à frente, para não me afogar no lodo e na lama da minha vida
mundana.
Agora sem propósito, sem responsabilidade, não sabia como ordenar
minha não-vida. Como organizar minhas horas em algo significativo, algo que
valesse a pena. O pensamento do klavier na sala ao lado me provocou; as notas
manchadas no meu vestido de noiva gritavam para serem gravadas,
lembradas.
Anote, uma voz dentro de mim instigou. Soava como o Rei dos Elfos.
Escreva sua música.
Eu queria. Eu absolutamente queria. Mas uma parte de mim era muito
crua para sequer pensar em olhar as anotações que rabisquei sobre a seda, a
rejeição, a humilhação e a frustração que eu havia colocado ali. A música que
fiz com Sepperl estava segura; meu irmão esteve lá para me guiar através dos
meus erros e corrigir meus erros. A bagatela que eu havia escrito para ele, a
peça que nomeei o homem que inspirou a nós dois, também estava nas mãos
mais educadas e capazes de Josef. Mas isso - o começo desta sonata da noite de
núpcias - era vergonhoso demais.
É ótimo porque é vergonhoso, a voz dentro de mim disse novamente. É ótimo
porque é verdade.
Levantei-me da cama e fui até a sala de estar. Minha fraqueza não passou;
ficou pior quanto mais eu estava acordada. Pensei em pedir que Twig ou
Thistle fizessem com que trouxessem algo para comer ou beber, mas eu queria
ficar sozinha. Eu queria chorar. Eu tinha passado lágrimas de raiva, frustração
e tristeza desde que me tornei a noiva do Rei dos Elfos, mas eu não me permiti
a indulgência de um bom soluço. O lamento indigno, de coração partido e
pesaroso de lágrimas feias. O peso daquele grito não lançado pressionou meus
pulmões e meu coração.
Eu me sentei no klavier. O choro estava lá, subindo pelas bordas da
minha garganta, pelos cantos do nariz e dos olhos, mas não se libertaria. Pensei
em mamãe, papai e Constanze. Pensei em Josef e em Käthe.
Josef faltando era uma facada no meu coração, afiada, penetrante, uma
ferida grave e mortal. Josef estava aprendendo a viver sem uma parte de mim,
como perder um membro ou uma mão. Como alguém vive sem um membro
ou uma mão? Você aprendia a viver em torno dela, a absorver seu vazio como
parte de si mesmo.
Käthe era como ansiar por um dia de verão em uma noite de inverno.
Meu amor pela minha irmã era uma coisa constante, assim como ela tinha sido
uma presença constante na minha vida, minha companheira de cama desde a
infância. Se Josef era uma parte de quem eu era, então Käthe me definia,
moldava minhas fronteiras, preenchia meus espaços negativos. Ela era o sol
para a minha escuridão, a doçura para a minha disposição salgada. Eu sabia
quem eu era porque sabia quem eu não era: minha irmã. Sem a minha irmã
para me definir, eu estava instável. Eu perdi a muleta que me sustentava.
Eu não podia deixá-los sair. Eu não podia deixá-los ir. Os fantasmas da
minha família estavam presos, e eu precisava de alguém para me virar do
avesso, me quebrar, me abrir. Deixe-os sair. Deixe-os sair. Deixe-os sair. Eu não
poderia fazer isso sozinha. Eu precisava desabafar, empurrar essa dor para
outra pessoa, aliviar-me do insuportável peso da dor. Eu precisava de alguém
para tirar minha dor de mim, tirar o veneno da ferida. Eu precisava de alguém
para carregar minha dor por mim. Eu precisava de um amigo.
Eu enterrei minha cabeça em meus braços, as lágrimas pontuando as
teclas pretas e brancas do klavier, um vazamento lento e constante que não fez
nada para aliviar a pressão que crescia dentro de mim.

Meu tempo no Submundo assumiu uma espécie de mecânica própria:


dormir, comer, dormir, passear, dormir, comer, dormir, sentar no klavier,
dormir, passear, dormir. Passei muito do meu tempo na morada dos elfos
dormindo. Parecia um luxo a princípio, depois de anos acordando antes do
amanhecer. Mas com o tempo, nem mesmo o sono poderia passar o tempo com
rapidez suficiente. Eu tive meu primeiro gosto de tédio e eu odiei isto.
Twig e Thistle sugeriram um piquenique nas margens do lago
subterrâneo. Observamos as Lorelei emergirem e desaparecerem sob a
superfície enquanto um grupo de changelings tocava do outro lado.
Desmarcada, a lembrança do rosto de Josef com olhos de elfo voltou para mim.
Eu fiz uma careta.
—Quais são os changelings? — Eu perguntei.
Thistle me deu um olhar penetrante. —Por que você pergunta, mortal?
Eu poderia tê-la castigado por não me abordar direito - eu era Sua Alteza
- mas Thistle, como Constanze, me chamava do jeito que ela queria.
—Estou apenas curioso —, eu disse. —Eles são - eles são crianças? Do rei
dos elfos?
Twig e Thistle riram, suas risadas estridentes e ecoando nas margens do
lago subterrâneo.
—Crianças? — Thistle zombou. —Não. Nenhuma união de mortais e Der
Erlkönig jamais foi proveitosa.
—Na verdade... — Twig começou, mas a outra garota elfo a interrompeu.
—Os changelings não são nada, pobres tolos —, disse Thistle. —Nem
peixe nem galinha, humano nem elfo.
—Como pode ser isso? — Eu assisti os changelings do lado oposto
pulando pedras, enviando ondas luminescentes pela superfície. Na luz
inconstante e cambaleante da gruta, pareciam mais um grupo desordenado de
crianças do que as elegantes criaturas com as quais eu dançara no baile dos
elfos. Havia uma inocência e uma falta de idade sobre eles. Eles poderiam ter
quinze anos. Eles poderiam ter sido quinhentos. —Se eles não são filhos de
humanos e elfos, então o que são eles?
—Eles são —, disse Twig calmamente. —o produto de um desejo.
Silêncio mais alto que um gongo tocou ao longo da gruta. Thistle deu a
Twig um olhar sombrio.
—Um desejo? — Uma imagem voltou para mim, meio lembrada e
principalmente esquecida: o som do meu irmãozinho chorando no quarto no
corredor, um apelo para salvar sua vida.
Um dos changelings, uma jovem mulher graciosa, se aproximou de mim.
—O que dissemos antes, Alteza? — disse Twig. —Tudo o que a lei antiga
dá, eles também tomam.
Eu balancei a cabeça.
—Diga que você é uma menina —, começou Twig. —E a morte sombria
está varrendo o mundo acima, levando consigo todo homem, mulher e criança
que encontra. Você assiste seu pai adoecer e morrer, você assiste sua mãe
inchar e inchar, você vê seu irmãozinho ficar magro e desaparecer em um fio.
Você enterra todos eles, um por um, no chão congelado e imagina onde eles
foram. Ao céu? Ou algum lugar pior? Então você faz um desejo - um desejo,
não uma oração - de nunca mais sofrer o destino deles. Que você pode se
esconder onde nem mesmo a mão da Morte pode encontrar você.
A changeling perto de mim estendeu a mão e eu peguei. Ela era uma
coisinha doentia, com orelhas e dentes pontudos.
—Cuidado —, disse Thistle. —Eles mordem.
Ao meu toque, todo o semblante da changeling se iluminou; a palidez de
sua bochecha não era mais pálida, a magreza dolorosa de seu corpo era esbelta
e lânguida. A expressão comprimida em seu rosto se suavizou em uma de
fome. A changeling respirou fundo, e o mundo ao meu redor ficou um pouco
mais escuro. Eu peguei minha mão de volta. Thistle riu.
—Diga também — continuou Twig. — Você é um homem jovem. Você é
o mais novo de um belo par de irmãos renomados em toda a vila pela sua
beleza. Sua mãe era uma beleza na geração à sua frente, mas o tempo não tem
sido tão gentil com ela. Ela se veste de modas muito mais jovens do que o
apropriado, assa o rosto em pó e vermelho. Sua irmã mais velha é feliz e casada
com um homem maravilhoso, até que um dia, ela é acometida de varíola,
deixando seu rosto marcado e sua beleza marcada para sempre. Então você
olha para o espelho e faz um desejo: permanecer jovem e bonito o tempo todo.
—Que triste. — Eu murmurei. Preso e atormentado por seus próprios
desejos. Eu sabia intimamente como isso era; Eu fui frequentemente
estrangulada pela tirania dos meus desejos.
—Oh, você do coração terno —, Thistle zombou. —Não desperdice sua
pena neles; eles trouxeram sobre si mesmos, como todos os mortais fazem.
—Eles podem andar pelo mundo acima?
—Não. — Disse Twig.
—Então como...— O resto da pergunta morreu na minha garganta,
sufocando no nome do meu irmão.
Thistle bufou, mas Twig me encarou com seus olhos negros em branco.
Eu não conseguia ler nada neles, mas ela ouviu a pergunta não dita na minha
língua. —Os desejos que eles fizeram foram egoístas —, ela disse
simplesmente. —O seu foi altruísta.
Eu não queria me alongar mais nesse pensamento desconfortável. Uma
inquietação me dominou e me levantei. —Vamos lá.
—Ir para onde, Alteza? — Perguntou Twig.
—Em algum lugar —, eu murmurei. —Qualquer lugar.
Eu queria sair da minha pele. Tédio e futilidade me pressionavam, e eu
queria rasgar, rasgar, rasgar, gritar. Mas o grito estava engarrafado dentro de
mim e eu não podia deixar escapar. Eu não podia deixar sair.
—Mmmm .— Eu recuei quando notei o rosto de Thistle pairando sobre
o meu ombro. Ela havia escalado a parede de pedra da gruta e estava pousada
sobre mim, respirando profundamente, como se inalasse o cheiro de um
delicioso perfume. —Tais emoções fortes —, ela ronronou. —Esse fogo. É tão
quente.
—Afaste-se de mim. — Eu a empurrei para longe, e ela caiu na parede de
pedra para o riso estalado de Twig.
A risada de Twig chamou a atenção dos changelings, que deixaram suas
brincadeiras de pular pedras e deslizaram em minha direção, silenciosos e
suaves. Eles tinham a forma e a característica de homens e mulheres jovens,
mas eles se moviam com uma graça sinuosa que não era do mundo acima.
Quando eles se aproximaram, os changelings se iluminaram. Seus rostos
brilhavam com expressões vívidas; seus movimentos tornaram-se mais
animados e menos preternaturais. Eu cheguei para eles. Suas características -
familiares e estrangeiras - me lembraram meus próprios seres humanos. Eu
ansiava por eles. Eu queria estar entre eles como se fossem parentes.
Um dos changelings, um jovem - um jovem - pegou minha mão na dele.
Ele acariciou seu rosto na minha palma. Meu coração se suavizou e eu queria
segurar esse changeling. Ansiava por me consolar com a presença dele, do jeito
que eu teria me voltado para Käthe ou Josef. O changeling até parecia um
pouco com Josef: as mesmas maçãs do rosto salientes e queixo pontudo, o
mesmo rosto em forma de coração.
Ele estalou meus dedos.
—Ai! — Eu chorei. O changeling conseguira tirar sangue.
—Eu não disse que eles mordem? — Thistle riu cruelmente.
Os changelings começaram a rir. Soava como uma risada, dividida em
uma miríade de peças, ecoando uma contra a outra em uma cacofonia de
zombarias zombeteiras. O changeling lambeu meu sangue de suas mãos.
Dedos compridos e finos se enrolaram nos meus tornozelos como
arbustos em uma sebe. Twig. Uma expressão doentia atravessou seu rosto,
metade de fome e metade de pena. Não, pensei. Não, não Twig. Não ela
também.
Elfo e changeling se aproximaram, o cheiro do meu sangue atraindo-os
para mim como mariposas para a chama. A intensidade das minhas emoções,
minha vida mortal, as sustentou. Alimente-os. Abasteceu-os. Eu chutei,
tentando afastá-los, mas eles se agarravam mais do que as rebarbas.
—Parem—, eu disse. —Por favor parem!
Mas eles foram embora, seus olhos negros em branco em uma névoa de
fome. Eu tirei os dedos de Thistle da saia do meu vestido, me peguei do aperto
de Twig, mas elas eram implacáveis. Saltando das sombras vieram outros elfos,
as ondas bruxuleantes do meu medo puxando-os para fora da escuridão.
É isso, pensei. É assim que eu morro. Não lembrado, não cantado,
despedaçado por mãos vorazes.
Uma explosão de raiva retornou força aos meus membros. Além das
margens do pânico e do medo, havia clareza. Havia nitidez. Isso não seria
como eu morreria. Se eu morresse, não seria dessa maneira ignominiosa. Se eu
morresse, escolheria como. Eu não era a Rainha dos Elfos? Meus assuntos
estavam ligados pelo meu desejo, pelos meus desejos.
—O suficiente.
Minha palavra foi meu comando. Eles congelaram, ligados pela minha
vontade e o desejo que eu não precisava falar em voz alta. Não mais. Eu
empurrei todos para longe, e eles tombaram onde estavam. Eu pisei em seus
dedos por maldade, ouvindo os ossos baterem como galhos sob os pés. Eles se
encolheram de dor e eu apreciei a agonia em seus rostos. Eu queria que eles
me temessem, tivessem medo de invadir minha pessoa.
Não eram apenas os elfos. Era todo mundo. O Rei dos Elfos. Mestre
Antonius. Condescendência do papai. A expressão entediada de Hans sempre
que eu o deixava para praticar no klavier. Os olhares incrédulos nos rostos dos
aldeões, quando se lembravam de que eu também tinha talento. Eu até queria
subir acima da sombra de Josef na minha música. Eu queria dobrar o mundo
inteiro - tanto acima quanto abaixo - do que eu precisava. De uma vez. Só uma
vez.
Só uma vez.
Acenda minha chama, mein Herr, pensei. Acenda meu fogo e me veja queimar.
Misericórdia

—Você não vai assistir, minha querida. — Disse o Rei dos Elfos do
klavier.
Eu olhei para cima da minha taça de vinho, o caule do qual eu estava
girando indiferente entre meus dedos pelos últimos minutos. Um livro aberto
estava no meu colo, mas eu não havia lido uma única palavra na última hora.
—Hmmm? — Eu rapidamente virei as páginas. —Eu estou.
O Rei dos Elfos levantou uma sobrancelha. —Eu estiquei o dedo em três
partes e você não disse nada sobre as notas.
Eu tossi para esconder o rubor subindo pelo meu pescoço.
Desde aquela primeira noite desastrosa depois do jantar, nosso tempo
juntos tinha assumido uma rotina confortável e quase reconfortante. Às vezes
passávamos o tempo lendo em voz alta um para o outro. Eu preferia poesia,
mas o Rei dos Elfos - sem surpresa - preferia seus filósofos. Ele lia latim, grego,
italiano, francês e alemão, e também falava uma dúzia de outras línguas. Ele
foi surpreendentemente bem instruído; ele poderia ter sido um estudioso no
mundo acima.
Em outras ocasiões, o Rei dos Elfos tocava algumas peças curtas no
klavier enquanto eu lia junto ao fogo. Essas eram minhas noites favoritas,
quando a música, não as palavras, preenchia o silêncio entre nós. Esta noite
meu marido tocou algumas Scarletatti sonatinen 11 enquanto eu tinha um
volume de poesia italiana. Eu não lia italiano, e só entendia o quanto precisava
saber com que rapidez, com que lentidão ou com que elegância eu deveria
tocar uma peça musical. O livro era para o show; permitindo-me observar o
Rei dos Elfos sob os cílios abaixados sob o pretexto de ler.
Depois daquela primeira noite, ele nunca mais me convidou para tocar
minha música para ele novamente.
No começo, foi um alívio. Mas, à medida que as noites passavam, o alívio
transformou-se em culpa, depois aborrecimento e depois raiva. Ele era tão
enlouquecedor, enfurecedoramente complacente. Ele estava tão certo de que
eu viria a ele por minha própria vontade, que eu quebraria e colocaria minha
música a seus pés como um presente, que ele poderia se dar ao luxo de me ver
do klavier com aquele olhar distante e compassivo em seu rosto.
Mas ele estava errado. Eu já estava quebrada e a música ainda estava
presa lá dentro. Ela arrepiava, fazia cócegas e coçava no meu intestino,
ameaçando arrancar da minha garganta em um grito.
—Está tudo bem, Elisabeth?
Não, tudo não estava bem. Não estava tudo bem desde que me tornei a
noiva de Der Erlkönig, já que ele roubou minha irmã, já que ele me deu aquela
flauta no mercado, desde antes que eu me lembrasse. Não estava tudo bem
desde que eu tranquei minha música, tanto na minha caixa como no meu
coração.
Mas eu não podia dizer isso a ele. —Estou bem. — Eu disse em seu lugar.
Seu olhar se aguçou, as pupilas de seus olhos se dilataram para afogar o
cinza e o verde de preto. O Rei dos Elfos soube interpretar minhas respirações

11 Sonata
antes de fazer pausas, os períodos de minhas medidas de descanso, minhas
cesuras de fala. Ele seguia minhas pistas tão atentamente quanto um músico
em uma orquestra, esperando que o maestro assumisse a liderança. E ele sabia
sempre que eu quebrava o ritmo.
Seus olhos me varreram da cabeça aos pés, demorando-se nos meus
ombros e braços expostos, a extensão da minha clavícula e decote. —Qual é o
problema?
Suponho que não tenha sido particularmente sutil. Pela primeira vez, eu
cuidara da minha aparência; depois do encontro no lago subterrâneo, obriguei
Twig e Thistle a me levarem ao alfaiate para costurar um novo vestido. Para
me costurar alguma armadura. Eu fiz o alfaiate modificar um vestido feito de
um lindo creme e tafetá de seda dourada. Ele foi moldado como uma camisa,
a saia reunida sob o pequeno seio que eu tinha antes de sair atrás de mim em
babados. Toda a construção foi realizada por alças diáfanas em meus ombros,
deixando meus braços nus. Os diamantes eram costurados no corpete -
centenas, milhares, miríades - cintilando como estrelas no céu noturno. Twig e
Thistle colocaram meu cabelo em uma trança sobre a minha cabeça, com mais
pequenos diamantes que brilhavam contra meus cabelos escuros. Pela
primeira vez, eu me via esperando que o Rei dos Elfos me achasse bonita.
Parecia ridículo; Eu era simples e ele era lindo, mas o desejo que pulsava
entre nós era real e não tinha nada a ver com a beleza ou a falta dela. E estava
ali, sempre ali, me sufocando, me estrangulando, até que eu não conseguia
respirar por querer.
Então eu respondi a pergunta do Rei dos Elfos da única maneira que eu
podia. —Você não gosta do meu vestido novo? — Eu soltei.
Isso certamente o surpreendeu. —Eu-uh-o quê?
—Meu vestido —, eu disse. —Não é do seu agrado?
Seus olhos estavam desnorteados e cautelosos. —É lindo, Elisabeth.
—E eu? Eu sou adorável?
O Rei dos Elfos franziu a testa. —Você está de bom humor esta noite,
minha querida.
Ele não me respondeu. De repente, não pude suportar permanecer
sentada. Levantei-me e andei de um lado para o outro antes do fogo. Eu estava
de bom humor - para uma briga.
—Responda-me—, eu disse. —Você me acha adorável?
—Não com o jeito que você está agindo no momento.
Eu ri, um som quase histérico. —Você parece meu pai. É uma pergunta
simples, mein Herr.
—É? — O Rei dos Elfos me deu um olhar penetrante. —Então me diga,
minha querida, o que você gostaria de ouvir? A resposta simples ou a honesta?
Eu tremia, embora fosse de mágoa ou medo, eu não sabia. —A verdade
—, eu disse. —Você é quem me mostrou que a verdade feia é preferível a uma
mentira bonita.
Demorou um tempo antes de ele falar. —Eu acho que você sabe a
resposta, Elisabeth. — Disse ele em voz baixa.
Fechei meus olhos para parar as lágrimas. Apesar de tudo, eu esperava
que fosse diferente. Que o desejo dele pudesse de alguma forma me tornar
adorável, poderia me transformar de um pardal em um pavão.
—Então por quê? — Minha voz tropeçou nas bordas irregulares da
minha tristeza. —Por que você me quer?
—Eu respondi isso antes, Elisabeth, eu...
—Sim, sim, já ouvi tudo isso antes. Você amou a música em mim. Minha
alma é uma coisa linda. Depois que eu te der eu mesma, inteira, você vai... —
Eu dei um mergulho. —Você vai se dar, inteiro.
O Rei dos Elfos não disse nada, apenas me observou com seu olhar
incompatível.
—Mas isso não significa nada para mim, mein Herr. Suas palavras não
significam nada para uma menininha estranha e desagradável.
Houve um arranhão no chão quando o Rei dos Elfos empurrou o banco
para ficar de pé. Seus passos eram leves e quase sem som, um lobo na neve.
No entanto, eu podia sentir ele cruzar o espaço entre nós. Ele colocou a mão na
minha testa.
—A amabilidade do espírito vale mais do que a beleza da carne —, ele
disse gentilmente. —Você sabe disso.
Abri os olhos e bati a mão dele. Eu senti o choque daquele tapa reverberar
através de ambos os nossos corpos, de sua expressão assustada ao ardor da
minha palma.
—Agora isso —, eu disse. —era uma mentira bonita.
Por um momento, achei que o Rei dos Elfos tentaria me consolar,
acalmar-me como um pai aplacaria uma criança irritada. Então uma faísca
iluminou seus olhos, um brilho de malícia. Sua boca torceu e as pontas afiadas
de seus dentes brilhavam à luz do fogo.
—Você quer a verdade feia, Elisabeth? — Ele disse. —Muito bem então,
você deve tê-la. — Ele andou de um lado para o outro na minha frente, uma
criatura selvagem andando de um lado para o outro na gaiola. Um lobo
rondando em seu coração, e queria muito ser livre. —Eu queria você porque
você é estranha, estranha e desagradável. Porque um homem poderia passar
uma idade - e acredite em mim, eu tenho - com uma linha infindável de lindas
noivas, seus nomes e rostos obscurecendo-se diante dele. Porque você,
estranha e desagradável, eu lembraria.
O Rei dos Elfos sorriu para mim com um grunhido. Meu pulso acelerou
em resposta, e dentro de mim, os nós que eu tinha apertado no meu coração
começaram a se soltar. Meu sangue subiu para encontrar o dele e eu me
levantei da minha cadeira, respirando com dificuldade.
Mas ele se virou antes que eu pudesse tocá-lo, antes que sua selvageria
pudesse se misturar com a minha. Eu deixei minha mão cair.
—O que é a vida eterna, mas uma morte prolongada? — Perguntou o Rei
dos Elfos. —Eu vivo no tédio sem fim, morrendo um pouco mais a cada dia,
incapaz de sentir verdadeiramente. — Ele caminhou de volta para o klavier e
passou a mão levemente sobre as teclas.
Eu não tinha resposta. Nós estávamos tão distantes um do outro quanto
poderíamos estar naquele momento; ele em um fim de sempre, eu no outro.
—Sua intensidade, sua ferocidade —, ele disse baixinho. —Eu anseio por
isso, Elisabeth. Muito.
Ele se sentou no banco e apertou uma nota, depois outra e outra. Cada
nota ressoou no meu peito, ecoando naquele lugar vazio e sagrado onde minha
música vivia.
—Eu daria qualquer coisa para sentir novamente. — Sua voz era baixa,
tão baixa que eu mal podia ouvir. —E por um longo tempo, pensei que nunca
faria. Então eu ouvi você tocar sua música para mim no Bosque dos Elfos. Pela
primeira vez em uma eternidade, eu esperava... pensava...
Outro silêncio caiu sobre nós, cheio de segredos e coisas não ditas. Eu
poderia provar as perguntas na parte de trás da minha língua, mas as engoli.
—Sua música —, disse ele finalmente. —Sua música foi a única coisa que
me manteve são, que me manteve humano ao invés de um monstro.
Uma brisa levantou arrepios nos meus braços e nas minhas costas. O Rei
dos Elfos não olhou para mim enquanto continuava a tocar, encordoando notas
como se fossem contas em um colar.
—E isso—, disse ele. —é a verdade feia, minha querida. Eu poderia ter
sua mão em casamento, sua mente, seu corpo, mas o que eu realmente quero,
não posso ter. —Ele virou a cabeça. —Não a menos que eu quebre você.
Não a menos que ele me quebrasse.
Não foi até esse momento que eu entendi.
—Eu não tenho medo de você. — Eu disse baixinho.
—Oh? — O Rei dos Elfos levantou a cabeça. —Eu sou o Senhor do Mal,
o Governante Submundo —, disse ele, com os olhos desiguais brilhando. —Eu
sou loucura e loucura feita carne. Você é apenas uma garota — ele sorriu e as
pontas dos dentes eram afiadas. — E eu sou o lobo na floresta.
Apenas uma garota. Apenas uma donzela. Mas eu não era apenas uma
menina; Eu era a rainha dos elfos. Eu era a Rainha Elfo dele, e eu não tinha
medo do lobo, aquela selvageria indomável que poderia me rasgar de membro
e se banhar no meu sangue.
Eu andei em direção ao klavier e sentei no banco ao lado dele. Os olhos
do Rei dos Elfos brilharam de surpresa, prazer e não um pouco de cautela.
—Eu posso ser apenas uma donzela, mein Herr —, eu sussurrei. —Mas
eu sou uma valente donzela.
Levantei meus dedos trêmulos para o piano e formei um acorde. C maior.
Senti o corpo do Rei dos Elfos se curvar em um longo suspiro.
—Sim, Elisabeth —, ele respirou, levantando a mão para o meu rosto. —
Sim.
Mas eu não toquei. Em vez disso, levei minha mão direita para cobrir a
dele, depois a empurrei para encostar na coluna do meu pescoço.
—Elisabeth, o que...
Ele tentou se afastar, mas eu o tinha em minhas mãos. Eu me inclinei para
ele, desafiando-o, tentando-o, para empurrar contra onde minha vida
tremulava sob seu polegar. Eu podia sentir o lobo tremendo nele, esfolando
suas amarras. Eu queria o lobo; Eu queria sua fome, um desejo voraz que
poderia me obliterar. Eu queria ser destruída. Eu queria ser feita de novo.
—Você é —, eu disse. —o monstro que eu reivindico.
Ele estava tremendo agora. —Você não sabe o que você diz. — O pânico
tocou suas palavras, mesmo com a selvageria tocando em suas feições.
—Oh, mas eu sei.
Uma lembrança subiu à superfície: a pequena Liesl esperava
pacientemente no patamar no alto da escada. Esperando por seu pai voltar de
uma audição com um famoso empresário. Sepperl tinha apenas três anos de
idade, já mostrando uma promessa incrível no violino, e Liesl estava ansiosa
para mostrar ao pai o que ela poderia fazer. Ela havia praticado diligentemente
uma chacona Tomasino no violino de um quarto de tamanho até que ficou
perfeito. Mas quando papai chegou em casa, chegou em casa fedendo a cerveja,
seu violino Stainer desaparecido do estojo. Liesl tocou para ele quando ele
entrou na estalagem, uma peça triunfante de boas-vindas, mas ele afastou o
violino e quebrou-o ao meio sobre a perna. Você nunca vai chegar a nada, ele
disse. Você é metade do talento que seu irmão é.
—Eu poderia te machucar. — Disse o Rei dos Elfos, e senti essa promessa
em suas mãos. Minha alma em seu aperto, minha garganta mostrou a ele em
submissão.
—Eu sei.
Outra lembrança, borbulhando sob a dor do anterior. Josef tocando uma
peça que eu havia escrito, papai entrando no quarto dos fundos para elogiar o
filho por seus esforços. Tão selvagem, tão indomado! Papai dissera. Temos que
publicar isso, meu filho; você tem o potencial de mudar a música como a conhecemos!
Josef se atrevendo, dizendo ao nosso pai que o verdadeiro autor da peça era
eu. O rosto de papai endurecendo. Um esforço decente. Mas você deve ser menos
elevada em seus ideais, Liesl. Você deve crescer e parar de se entregar a esses voos
românticos de fantasia.
—Então, por que, Elisabeth? — O Rei dos Elfos murmurou. —Por quê?
Dez anos atrás. Dez anos atrás, quando eu tinha nove anos e compus
sozinha e em segredo. Eu tinha roubado duas velas que mal podíamos
comprar, e estava acordada até altas horas da madrugada, perdulária com
minha música, meus papéis, minhas chamas. E papai, papai adormecido na
cama com a mãe, uma ocorrência rara que com certeza deixaria a mãe sorrindo
e o pai generoso. O mundo estava dormindo e eu estava sozinha.
Até que Josef me encontrou. Liesl? Ele perguntou com a sua voz
sonolenta de bebê. Liesl, por que você está acordada?
Raiva, raiva e ciúmes, queimando tão rápido quanto um raio. Minha mão
se contraindo, derrubando uma vela, enviando cera em toda parte.
Atingiu Josef na cara.
Seus gritos despertando a casa, papai gritando, mãe chorando, Käthe
tremendo, Constanze se escondendo, e ao meu redor, fogo. Meu trabalho, em
chamas. Uma mão quebrando na minha bochecha, deixando uma marca mais
vermelha do que a queimadura na pele de Josef. A sua desapareceria em nada.
A minha também desapareceria, desapareceria com três anos de trabalho
cuidadoso, tudo em chamas e cinzas.
E sob essa memória, ainda outra. E outra e outra. Assaltos no meu
coração terno eu tinha sofrido até que eu aprendi a colocar minha música em
uma gaiola. Eu tinha me empurrado, o meu verdadeiro eu, de volta para a
fachada de uma boa menina, uma filha obediente. Eu parei de ser eu e me
tornei Liesl, a donzela nas sombras. Eu tinha sido aquela Liesl por tanto tempo,
eu não sabia o meu caminho de volta para a luz.
—Porque —, eu sufoquei. —eu preciso de você para me quebrar, a fim
de me encontrar.
Eu descansei minha mão esquerda contra o klavier. O Rei dos Elfos
respirou fundo.
—Você não sabe o que você pede.
Eu olhei nos olhos dele e apertei uma tecla.
—Eu sei.
A nota pairou no ar entre nós quando suas pupilas se expandiram, depois
se contraíram. Aqueles olhos desencontrados mudaram de assustados para
selvagens e vice-versa, enquanto Der Erlkönig guerreava com sua melhor
natureza.
—Você não sabe.
Eu apertei outra tecla. —Eu sei.
Um longo e estremecido suspiro escapou dele. Suas mãos se moveram
para os meus ombros, apertando e abrindo os dedos, como se ele não soubesse
se deveria me puxar para perto ou me afastar. Apertei ainda outra tecla, depois
outra, e depois outra, chamando o lobo de se esconder.
—Eu quero que você me encontre —, eu sussurrei. —Todo o resto de
mim.
O Rei dos Elfos se afastou. Nossos olhos se encontraram e, naquele
momento, não vi o lobo, mas o jovem austero.
—Elisabeth —, disse ele. —Tenha piedade de mim.
Meus olhos estavam fixos em seu rosto. —Eu não tenho medo de você.
—Não? — O Rei dos Elfos fechou os olhos. —Então você é uma tola.
E quando ele abriu os olhos novamente, o jovem austero se foi.

Nossos lábios se encontraram em um choque de dentes e língua. A sala


de descanso caiu, e nós caímos juntos, o Rei Elfo e eu. Nós pousamos em uma
cama macia de folhas que crepitavam e farfalhavam com cada contração de
nossos membros, cada suspiro de nossos corpos, e o mundo ao nosso redor
está sombrio, misterioso, seguro.
Suas mãos seguram meu rosto, me atraindo como se ele pudesse beber
em minha respiração, meu sangue, minha vida. Ele é certo e seguro; Eu sou
ingênua e desajeitada. Minhas mãos se agarram às suas costas, pressionando-
o perto, querendo sentir cada pedaço dele contra mim como uma segunda pele.
Os diamantes costurados no corpete do meu vestido me picam, e eu coço e
queimo.
Você não sabe o que você diz, ele murmura uma e outra vez na minha boca.
Você não pode saber.
Eu não sei mas quero descobrir. Eu quero que ele me empurre para os
meus limites, para encontrar minhas arestas, então me ligar de volta. Encontre
minhas bordas, imploro, depois as oblitere.
Eu rasgo a renda fina em sua garganta, encontro os botões e costuras de
sua camisa com meus dedos. Sua pele está fria enquanto eu puxo suas roupas,
e a emoção desse toque, esse contato, envia arrepios através de mim. Eu
arranho e arranho meu vestido, querendo descascar meu penteado como uma
cobra se livra de si mesma, deixando para trás apenas a impressão do corpo
que uma vez habitou. Eu quero estar nua e nova, para experimentar o seu
toque novamente.
Pare, ele diz, mas eu não paro. Eu não sei como parar. Temo que se eu
parar, nunca mais vou começar de novo. Então eu continuo indo, tentando
liberar meus braços do meu vestido.
Elisabeth. O Rei dos Elfos prende minhas mãos errantes sob seu
antebraço, o peso de seu corpo pesado contra mim. Mas não é a sensação dele
me pressionar na cama que me deixa sem fôlego; é o olhar dele. Eu vejo o jovem
austero e, de repente, sinto vergonha da minha ânsia, da minha vontade de me
fazer de boba.
Eu viro meu olhar para longe, as bochechas queimando. A mão que
chega para tocar meu rosto é legal, e o Rei dos Elfos é gentil.
Olhe para mim.
Mas eu não posso.
Elisabeth.
Eu olho, e o jovem austero ainda está lá, esperando que eu o siga para a
floresta. Não tenho mais vergonha do meu desejo e inclino a cabeça para beijá-
lo. Ele aquece a minha respiração e eu o sigo enquanto nos tornamos mais
selvagens. Nós paramos para respirar e agora há uma sugestão do diabo em
seu rosto angelical. O lobo saiu para brincar.
E então estamos nos agarrando, ofegando, agarrando. Nós nos
abraçamos, mas não é perto o suficiente, nunca estará perto o suficiente.
Nossas mãos mapeiam as colinas e vales de nossos corpos, explorando,
descobrindo. Os dedos da mão dele correm pela minha coxa e eu suspiro,
enroscando minhas mãos em seu cabelo espesso.
O tempo para. Ele para. Eu paro. Nós olhamos um para o outro, uma
pergunta em seu olhar, uma resposta em minha língua. Mas nós não falamos,
e o momento está congelado dentro do meu coração - essa pergunta e essa
resposta.
—Eu desejo...— Eu digo com voz rouca, mas eu não sei o que é que eu
estou desejando.
—Seu desejo é meu comando. — O Rei dos Elfos diz suavemente.
Eu poderia parar. Nós poderíamos parar. Eu poderia me dobrar de volta
para os pequenos espaços do meu coração, onde minha música e magia estão
escondidas, secretas e seguras.
—Você não...— Suas palavras desaparecem, e o resto de sua sentença não
é falado entre nós. Você não precisa.
Uma escolha. Ele dá uma escolha, e é o presente mais verdadeiro que ele
já me deu.
—Sim. — Minha voz está clara. —Minha resposta é sim.
Ele pressiona contra mim, perdido, e o lado do seu braço pega contra a
minha garganta. Eu tusso, mas o Rei dos Elfos não ouve. Meus suspiros são
estrangulados e lágrimas começam nos meus olhos. Plenitude. Há plenitude.
Isso dói. Eu me machuquei. Eu desejo permanecer na ponta da minha
língua, mas eu engulo de volta. Eu não quero que ele pare. Ele encontrou
minhas arestas. Eu encontrei meus limites. Mas além da fronteira da dor, há
outra coisa.
Liberdade.
Começo a chorar a sério, uma corrida, uma torrente de emoção, de
beleza, de vergonha. Minha mente fica em branco e eu não sou nada além do
meu corpo. Liesl se foi, e eu estou reduzida a minhas partes elementares:
música, magia, imaginação e inspiração. A sensação é assustadora em sua
intensidade, e eu chamo um nome, querendo que o Rei dos Elfos me ancore de
volta a mim mesma.
Sua cabeça se levanta e nossos olhos se encontram. Seus olhos, vítreos,
escuros e opacos, ficam claros quando o lobo se afasta e o jovem austero
retorna. Mas quando ele faz, seu olhar cai sobre as lágrimas que mancham
minhas bochechas, e ele se afasta.
Não, não quero, quero dizer, mas não posso falar. Estou aqui, estou aqui
Estou aqui finalmente.
—Oh não —, diz ele. —Oh não não não. — Ele recua, escondendo o rosto
nas mãos.
O Rei dos Elfos se encolhe no canto da cama, de costas para mim. Quando
meu raciocínio volta um por um, percebo que estamos no quarto do Rei dos
Elfos. Eu rastejo em direção a ele, sem me importar com os restos rasgados do
meu vestido, e envolvo meus braços ao redor dele.
—Eu sou —, ele sussurra. —o monstro que eu avisei contra você.
—Você é —, eu digo com voz rouca. —o monstro que eu reivindico.
—Eu não mereço a sua misericórdia, Elisabeth.
Ficamos ali em silêncio, a ascensão e queda das nossas respirações, nosso
único movimento.
O Rei dos Elfos ri, um som sufocado e quase esperançoso. Ele se vira para
me abraçar. —Oh, Elisabeth —, diz ele. —Você é uma santa.
Mas eu não sou uma santa. Eu abro minha boca para protestar, mas o sal
de suas lágrimas mancha meus lábios, me assustando em silêncio. Eu ouço a
batida do coração do Rei dos Elfos devagar e desaparece no sono e sussurro
para mim mesma a verdade que ele não ouve.
Eu não sou uma santa; Eu sou uma pecadora. Eu quero pecar de novo e
de novo e de novo.
Romance em C maior

Uma luz brilhava sobre mim. Abri os olhos e por um momento me perdi,
sem saber onde estava. Eu protegi minha mão; um espelho - um espelho de
espaldar prateado - estava pendurado acima da cama do rei dos elfos,
mostrando-me uma cena de uma cidade desconhecida.
A cidade era pequena, assentada sob um pico alto que eu não reconheci.
Empoleirada no alto do cume, havia uma abadia, os claustros com vista para a
cidade, um padre olhando para o nariz para as massas penitentes. Meu espelho
me mostrava o Bosque dos Elfos, meu espaço sagrado. Eu me perguntei se esse
era o Rei dos Elfos.
O sol estava alto no céu acima. Meu marido dormia tranquilamente ao
meu lado, sua respiração suave e uniforme. Tínhamos adormecido
descansando um contra o outro, mas durante a noite nos afastamos, fundando
nossos reinos separados em lados opostos de sua cama. Nossas fronteiras
foram delineadas por uma pilha de roupas de cama. Tínhamos nos tocado da
maneira mais íntima possível, mas nenhum de nós podia suportar a
proximidade do outro. Ainda não.
Não havia nada visível do Rei dos Elfos a não ser uma confusão de
cabelos emaranhados e um ombro nu aparecendo debaixo dos cobertores. Eu
estava nua, estava dolorida e entre as minhas coxas estava uma bagunça de
sangue. De repente, eu não queria nada além de estar longe daqui, de volta aos
meus aposentos, limpa e sozinha. A lembrança do que havíamos feito na noite
anterior voltou para mim e uma queimadura agradável se espalhou pelos
meus quadris. Mas com o prazer veio uma lavagem de dor. Eu precisava ficar
sozinha, lembrar meus pensamentos e me centrar.
Lentamente, cuidadosamente, eu deslizei para fora da cama e comecei a
me limpar. O Rei dos Elfos não se mexeu, perdido para o mundo desperto. Ele
dormia alegremente, como um bebê depois de uma longa noite de choro, e me
lembrei da sensação de suas lágrimas contra a minha pele. Eu não pude encará-
lo, não depois que ele derramou aquelas lágrimas e manchou minha alma. Eu
o havia tocado, conhecido, visto até a última gota dele, e foram suas lágrimas
que me trouxeram vergonha.
—Eu gostaria de estar de volta ao aposento. — Eu disse suavemente para
o ar que esperava.
E lá estava eu, ao lado do klavier no aposento. Minhas pernas tremeram,
me fazendo cair de joelhos. Distante, registrei a dor, mas tudo estava abafado,
abafado.
Minha noite de núpcias. Minha verdadeira noite de núpcias.
O mundo foi mudado de alguma forma. Eu fui mudada. O Rei dos Elfos
entrou na sala arrumada da minha vida e subiu seu conteúdo. Eu fui deixada
pegando os pedaços, lutando para encaixá-los novamente em alguma
aparência do que eu tinha conhecido antes. Minha vida foi dividida em duas
metades perfeitas: antes e depois.
Liesl. Elisabeth. Eu tinha sido Liesl até o momento em que nos reunimos
em nossos braços, quando concedeu a misericórdia do Rei dos Elfos, enquanto
ele me absolvia da minha vergonha. Eu havia surgido do outro lado de nosso
encontro com uma mulher diferente: não mais Liesl, mas Elisabeth. Eu testei
as bordas dessa nova identidade, deslizando-a, vendo como ela se encaixava.
O aposento parecia diferente à luz do dia. Os grandes espelhos
pendurados de um lado emprestavam a ilusão de enormes janelas, a luz do sol
vinda do mundo acima, passando por eles. Eu vi uma fortaleza em uma colina
acima de um rio, uma bandeira vermelha e branca brilhante tremulando na
brisa. Salzburgo. A neve ainda se acumulava em trações, mas ao longo do rio
Salzach, a pitada de verde brilhava entre as árvores. O primeiro indício da
primavera. Eu sorri.
Eu sentei no klavier, mãos posicionadas sobre as teclas. Então eu parei.
Um grande peso havia sido tirado de mim, minha alma livre de uma vergonha
corruptiva. Mas a liberdade me assustou e eu não sabia como proceder. Então
toquei alguns acordes, inversões de C, antes de expandi-los em arpejos.
Seguro. Certo.
De inversões e arpejos a escalas. Eu corri através de todas as notas, caindo
no movimento irracional como uma meditação. Como uma oração. Minha
mente começou a se reordenar, a dobrar suas memórias e pensamentos de
volta a suas gavetas, arrumada e limpa. Uma vez que meus dedos estavam
suficientemente flexionados, peguei meu vestido de casamento do cabide ao
lado do instrumento e coloquei-o sobre o klavier. Eu estava pronta para
avançar finalmente.
Não haveria mais sons indiferentes. Não haveria mais rabiscos
descuidados. Eu pegaria minha música, áspera e sem polimento, e
transformaria-a em algo que valesse a pena.
Eu comecei a compor.
Pegando uma pena e mergulhando-a em tinta, marquei a melodia básica
o mais rápido que pude em uma nova folha de papel. Eu também adicionei as
notas que fiz sobre ideias de apoio ao acompanhamento, assinaturas de tempo,
e outros. Uma vez que eu tinha certeza de ter coletado todos os meus
pensamentos do meu vestido de casamento, deixei cair no chão. O vestido
servira ao seu propósito.
Eu não sabia sobre Haydn, Mozart, Gluck, Handel ou qualquer outro
compositor cujos nomes eu havia estudado, cujas peças eu havia interpretado
quando criança, mas a música não fluía da minha mente como ditado de Deus.
Dizia-se que Mozart nunca fizera cópias justas de seu trabalho, que não
existiam documentos obscenos, pois tudo era perfeito de sua mente para a
página.
Não é assim para Maria Elisabeth Ingeborg Vogler. Cada nota, cada frase,
cada acorde era uma agonia de trabalho, para ser revisada de novo e de novo.
Eu confiei no klavier para me dizer qual nota eu queria, para descobrir qual
inversão eu precisava. Eu não era Josef, para ter esse estoque de conheciment o
prontamente acessível; Eu tinha que testar e soar tudo o que ouvi na minha
cabeça.
Eu amava. Este trabalho era meu e só meu.
Tinta salpicava meus dedos e teclas do klavier, mas eu estava
inconsciente de tudo, até mesmo do arranhão da pena contra o papel. Eu ouvia
apenas a música em minha mente. Pela primeira vez não havia nada de Josef,
nada de papai, nada da voz azeda que soava como julgamento, como o medo.
Não havia nada além disso, nada além de música e eu, eu e eu.
Havia outra presença na sala.
Eu estava trabalhando há quase uma hora, mas foi apenas nos últimos
minutos que eu tinha notado outra pessoa na sala de estar comigo. Sua
presença lentamente penetrou em minha consciência, emergindo das
profundezas dos meus pensamentos como um sonho. Eu não consegui
desvendar meu senso de identidade do meu sentido do Rei dos Elfos. Eu
levantei minha cabeça.
O Rei dos Elfos estava no limiar entre o seu quarto de dormir e o
aposento. O caminho entre o seu quarto e o meu estava agora conectado. Ele
estava simplesmente vestido, parecendo menos como um soberano do que
como um pastor. Se ele tivesse um chapéu, ele teria torcido em seus dedos
timidamente. Ele pairava nos espaços intermediários, aguardando minha
permissão para entrar. Eu não conseguia distinguir a expressão em seu rosto.
Ele limpou a garganta. —Você está bem, minha rainha?
Tão distante. Tão formal. Ele sempre me chamava de minha querida,
dizia naquele tom sarcástico dele, ou então era Elisabeth, sempre Elisabeth. Ele
era o único que me chamava assim, e eu queria ser Elisabeth para ele
novamente.
—Eu estou bem, obrigada, mein Herr. — Eu combinei a distância dele
com a minha. O abismo entre nós cresceu para o dobro do seu tamanho. Eu
ansiava por superá-lo, mas não sabia como. Nós estávamos conectados de
maneiras muito mais íntimas que isso. Quanto mais você poderia ter de si
mesmo quando já tinha dado tudo?
Ele desviou o olhar assim que meus olhos encontraram os dele. Um
sentimento esquisito tomou conta de mim quando percebi que havia pego meu
marido em um momento de admiração desprotegida. Admiração. De mim. Eu
senti como se ele tivesse entrado em mim sem roupa. No entanto, ele me viu
sem roupa. Minha mente, arrumada em seus devidos espaços, caiu em
desordem.
—Há quanto tempo você está aí? — Perguntei.
As palavras saíram como uma acusação. O Rei dos Elfos ficou rígido.
—Tempo suficiente —, foi tudo o que ele disse. —Você se importa?
Liesl teria se importado.
—Não, — eu disse. —Eu não me importo. Por favor sente-se.
Ele me deu um aceno grave e a menor lasca de sorriso. Como sempre, as
pontas de seus dentes pontudos espreitavam através daquele sorriso, mas não
era tão ameaçador quanto antes. Ele caminhou até a poltrona e sentou-se,
inclinando-se para trás e fechando os olhos enquanto eu continuava a mexer
na peça.
Essa era uma intimidade de um tipo totalmente diferente. Ele estava
dentro de mim, parte de mim, tanto no espírito quanto na carne. No começo,
pensei que estava apenas dando a ele um vislumbre de minha mente, mas logo
percebi que o Rei dos Elfos já estava na minha cabeça. Ele oferecia uma
sugestão aqui, uma revisão lá, tudo tão habilmente e sutilmente que sua voz se
tornou minha. Com Josef, compor era algo que dava a ele, algo que ele pegava
e moldava no produto acabado. Mas com o Rei dos Elfos, a música era algo
que moldávamos juntos, assim como fazíamos quando eu era criança.
Eu me lembrava agora. Todas as minhas lembranças dele vieram,
arrancadas dos portões da maré pela minha libertação. Varrendo as teias de
vergonha e decepção, nossa amizade brilhava brilhante e nova. Dançamos
juntos no Bosque dos Elfos, cantamos juntos, fizemos música juntos. Depois de
terminar uma peça, eu corria para a floresta para encontrar o Rei dos Elfos.
Para compartilhar minha música com ele. Como eu tive até que meu pai me
disse para crescer.
Eu sinto muito, pensei. Eu sinto muito por ter te traído.
Minhas mãos tremiam no klavier. O Rei dos Elfos abriu os olhos.
—Está tudo bem?
Eu sorri para ele, realmente, sinceramente sorri para ele. Calor me
encheu, uma sensação suave de cócegas. Foi um longo momento antes de
reconhecer a emoção pelo que era: felicidade. Eu estava feliz. Não me lembrava
da última vez em que fui feliz.
—O que? — Ele estava de repente tímido.
—Nada. — Eu disse, mas meu sorriso ficou mais amplo.
—Nunca é nada com você. — Mas ele também sorriu, e sua doçura doeu.
Ele parecia anos mais jovem com aquele sorriso. Ele era inteiramente aquele
jovem de olhos suaves agora, nenhum traço de Der Erlkönig em seu rosto.
—Às vezes —, eu disse, balançando a cabeça. —queria que você não me
conhecesse tão bem.
Ele riu. Não havia mais arestas afiadas para ele. O clima mudou entre
nós, ficando mais pesado, mais pesado. Continuamos trabalhando em silêncio,
mas pensamentos e sentimentos fluíam entre nós sem palavras, o empurrão e
o puxão, o fluxo e refluxo da música nos balançavam gentilmente com seu som.
Nossa conversa chegou ao fim quando terminei de trabalhar com o tema.
—Lindo —, o Rei dos Elfos murmurou. —Transcendente. É maior que o
céu e o mundo acima. Assim como você.
Rosas floresciam em minhas bochechas, e eu desviei minha cabeça para
que ele não visse.
—Você pode mudar o curso da música —, disse ele. —Você poderia
mudar o mundo acima se você...
Ele não terminou a frase. Se eu o que? Publicasse minha música?
Conseguisse superar as barreiras do meu nome, meu sexo, minha morte? Meu
destino final ficava entre nós, um obstáculo invisível, mas intransponível. Eu
não mudaria o curso da música. Eu morreria aqui, sem ser ouvida e lembrada.
Eu provei a injustiça no fundo da minha garganta, amargura e bile.
—Se o mundo acima estivesse pronto para mim, talvez —, eu disse
levemente. —Mas temo que eu seja demais para eles - e não o suficiente.
—Você, minha querida —, disse o Rei dos Elfos. —é mais que suficiente.
O elogio dos lábios de outro teria soado tímido, flertando, até mesmo
arqueando. Um sentimento bonito projetado para lisonjear e depois me deitar.
Eu ouvira esses agrados dos hóspedes em nossa hospedaria, dirigidos até
mesmo a alguém tão claro quanto eu. No entanto, não achei que o Rei dos Elfos
pretendesse bajular; Em seus lábios, as palavras soaram como verdade sem
verniz. Eu era mais que suficiente. Mais que minhas limitações, mais do que
adequadas, simplesmente mais.
—Obrigada. — Se eu fosse Käthe, teria desviado o elogio com uma
piscadela ou uma observação maliciosa. Mas eu não era Käthe; Eu era simples
e franca Liesl. Não, Elisabeth. Plana, sincera, direta e talentosa Elisabeth. Tomei
suas palavras para o presente que eram e, pela primeira vez, aceitei-as sem dor.
Depois de um longo tempo - horas? Minutos? O primeiro movimento do
que eu estava começando a chamar de Sonata da Noite de Núpcias estava
pronto. Apesar da raiva e dor em suas notas, a chave era C maior. A forma do
primeiro movimento estava lá agora, com a maior parte de sua estrutura de
suporte desenvolvida. Toquei no klavier para ouvi-la na íntegra, mas não
consegui transmitir adequadamente a parte principal e o acompanhamento
com apenas duas mãos.
Instintivamente, eu peguei Josef. Mas meu irmão não estava lá.
Uma dor aguda me apunhalou no coração, como se alguém tivesse
pegado uma adaga e a tivesse mergulhado no meu peito. Eu ofeguei e
pressionei minha mão para estancar a ferida. Eu tinha certeza de que minha
mão sairia com sangue. Mas não havia nada lá.
—Elisabeth! — O Rei dos Elfos correu para o meu lado.
Foi um momento antes que eu pudesse recuperar o fôlego suficiente para
falar.
—Estou bem —, eu disse. —Estou bem. — Sacudi as mãos solícitas e dei-
lhe um sorriso vacilante. —Apenas um ajuste. Vai passar.
Seu rosto era ilegível, opaco, tão inescrutável quanto qualquer um de
seus elfos. —Talvez você devesse descansar.
Eu balancei a cabeça. —Não. Ainda não. Eu preciso ouvir isso na sua
totalidade. Como um todo. É só —, eu disse com um sorriso irônico, — eu não
tenho outro par de mãos.
Sua expressão se suavizou. —Talvez eu possa ajudá-la. Com sua música.
Eu olhei para ele. O Rei dos Elfos se virou.
—Não importa —, ele disse apressadamente. —Apenas um pensamento.
Esqueça; Eu não quis ofender você...
—Sim.
Ele parou e levantou a cabeça, olhando diretamente nos meus olhos.
—Sim, você pode —, eu corrigi. —Por favor —, eu disse, quando vi a
incerteza em seu rosto. —Eu gostaria de ouvir esta peça tocada em um violino.
Mantemos os olhares um do outro por mais tempo. Então ele piscou.
—Seu desejo é o meu comando, Elisabeth. — Ele sorriu. —Eu sempre
disse que você tinha poder sobre mim.
Elisabeth. Eu era Elisabeth novamente, e a maneira como ele disse meu
nome enviou um pulsar de saudade através de mim.
—Como quiser, Elisabeth —, ele disse novamente, mais suave agora. —
Como quiser.
Parte 4

O rei elfo

Quando todas as minhas esperanças forem cumpridas,


Quando minha alma vigiar por ele de dia, de noite,
Quando minha luz se acender e meu manto estiver branco,
E tudo parecer perda, exceto a pérola sem preço.
No entanto, desde que Ele me chamará ainda com uma proposta,
Desde que ele se lembrar Quem eu meio que esqueci,
Eu mesma vou correr minha corrida e suportar meu destino.

Christina Rossetti, Venha até mim


A Morte e a Dama

Tudo foi mudado. Desde a noite em que o Rei dos Elfos me abriu e me
deixou nua, o ar entre nós estava carregado de emoção não dita. Eu era uma
mulher refeita por suas mãos; Ele alcançou dentro de mim e a música saiu.
Eu entendia agora como era ser atingida pelo fogo divino. Nossas noites
agora passavam em um sonho febril, onde não fazíamos nada além de fazer
música. Eu já não marcava a passagem do tempo; ontem era hoje era amanhã
e horas que circulavam sobre si mesmas. Eu estava queimando por dentro e
não precisava de alimento mortal para me nutrir. Sono, comida, bebida - todos
eram substitutos ruins para a música que me sustentava. Eu vivia na música e
no Rei dos Elfos. As notas eram minha ambrosia, seus beijos meu néctar.
—De novo —, eu exigi quando terminamos de tocar o primeiro
movimento da Sonata da Noite de Núpcias pela sétima vez. —Novamente!
Nós tínhamos trabalhado na peça por horas, meu marido e eu. Toda vez
que ele tocava, eu ouvia e entendia algo diferente dentro do movimento.
Dentro de mim. Uma peça iniciada em fúria e impotência, transformada em
um inexorável desejo e, no entanto, não uma peça sem alegria.
Eu marcava seu tempo como allegro.
Para ser tocado rapidamente. Rapidamente.
Com alegria.
—Novamente? — Perguntou o Rei dos Elfos. —Você não teve música
suficiente, minha querida?
Ele estava cansado. Eu podia ouvir medo em seu tocar, medo e fadiga.
Eu o havia desgastado. Eu me desgastara. Mas eu não me importava; Eu não
queria parar. A gaiola do meu coração tinha sido aberta e eu estava voando.
Eu estava livre pela primeira vez na minha vida, e minha alma subiu. Eu não
podia brincar, não sabia compor, não conseguia pensar rápido o suficiente;
minha mente ultrapassava meus dedos, e os erros e anotações erradas que se
seguiram me causaram tanto riso quanto lágrimas. Mais, eu queria mais,
precisava de mais. Se o pecado de Lúcifer era orgulho, então o meu era cobiça.
Mais e mais e mais. Não era o suficiente. Nunca seria o suficiente.
—Não, — eu disse. —Nunca.
—Devagar, Elisabeth —, ele riu. —Eu duvido que até mesmo o próprio
Deus poderia acompanhar você.
—Deixe-o tentar. — O sangue fervia em minhas veias. —Eu superarei até
mesmo os anjos dele em uma corrida de pés!
—Querida, querida. — O Rei dos Elfos baixou os braços para deixá-los
descansar. —Deixe acontecer. O primeiro movimento está magnífico.
Eu sorri. Era magnífico. Eu era magnífica. Não, eu era mais que
magnífica; Eu era invencível.
—É —, eu disse. —E poderia ser ainda maior. — Minhas mãos tremiam,
os dedos se contraindo. Eu estava nervosa, excitada, um cão antes da
perseguição. Mais uma vez, só mais uma vez...
O Rei dos Elfos me viu tremendo e franziu a testa. Eu peguei minhas
mãos do teclado e as escondi na minha saia.
—Elisabeth, o suficiente.
—Mas ainda há muito trabalho a fazer —, protestei. —O tema é som, mas
as passagens do meio são - oh!
Uma gota de sangue caiu nas teclas de marfim. Confusa, limpei-a,
quando outra gota caiu na minha mão. Então outra. E outra. O Rei dos Elfos
avançou e apertou um lenço no meu nariz. Vermelho manchou a roupa branca
como a neve, desabrochando no tecido a um ritmo alarmante. De repente, o
mundo se enfraqueceu e o tempo parou. Meus pensamentos, um corcunda de
pés fracos percorrendo a floresta da minha mente, tropeçaram e caíram.
Sangue?
—Descanse. — A palavra era tanto um comando quanto uma carícia. O
Rei dos Elfos bateu palmas, e Twig e Thistle apareceram, uma segurando um
copo de vidro, a outra uma garrafa de um rico licor âmbar. Ele me serviu uma
bebida e me entregou sem outra palavra.
—O que é isso? — Eu perguntei.
—Conhaque.
—Para que?
—Apenas beba.
Eu enruguei meu nariz, mas tomei um gole, sentindo a queimadura da
bebida deslizar pela minha garganta e aquecer meu coração. Ele me observou
com cuidado quando terminei a bebida.
—Pronto —, disse ele. —Sente-se melhor?
Eu pisquei. Para minha surpresa, eu me sentia. Minhas mãos, que
tremiam e se contorciam com anos de frustração reprimida, finalmente
estavam paradas. Eu estendi a mão para tocar meu rosto. Minha hemorragia
nasal havia parado, assim como a torrente de música que havia transbordado
de mim nos últimos dias.
—Agora. — O Rei dos Elfos tirou o copo e sentou ao meu lado no banco.
—Nós tocamos sua música há muito tempo. Deixe-nos passar o tempo de
outras maneiras.
Ele pegou meu rosto em suas mãos e se inclinou para perto, preocupação
naqueles olhos extraordinários. A ternura ali me desfez, e um fogo de um tipo
totalmente diferente floresceu dentro de mim. O Rei dos Elfos gentilmente
acariciou minha bochecha e eu fechei meus olhos para respirá-lo.
—Você tem alguma sugestão, mein Herr?
Seus lábios roçaram meu ouvido. —Eu tenho algumas ideias.
Eu estava mais apertada do que uma corda de violino, muito afiada, e
pedi que seus dedos ásperos e calosos se abaixassem, afrouxando-me,
ajustando-me à chave certa.
—Nós poderíamos colocar a pena e o arco, e tocar um ao outro em vez
disso. — Eu murmurei.
O Rei dos Elfos fez uma pausa e recuou. Abri os olhos para encontrar o
olhar dele, mas em vez de desejo, vi outra coisa: preocupação.
Quanto mais tempo você queima a vela...
De repente, o lenço manchado de sangue parecia um presságio.
Mas eu empurrei o mau presságio para longe. Eu estava feliz. Eu tinha
música na ponta dos meus dedos e um artista disposto à minha disposição. O
Rei dos Elfos era um tocador consumado de violinos e de mulheres, e a
habilidade com a qual ele lidava era extraordinária. Meus braços, meus seios,
meu estômago, minhas coxas; ele podia arrancar uma emoção tão delicada de
mim com apenas o mais suave toque de sua língua, o mais leve toque de seus
lábios. Eu estava nas mãos de um virtuoso.
Então eu beijei-o, beijei-o com ardor e calor, queimando sua preocupação
e minha dúvida. Senti sua preocupação em algo mais agradável sob meus
lábios, e eu passei minhas mãos por seus braços, puxando-o para perto.
Deixei o Rei dos Elfos brincar comigo o resto da noite, a sonata, o lenço
manchado de sangue e a vela esquecida por enquanto. Ele era o arco, eu as
cordas e seus dedos roçavam meu corpo para me fazer cantar.

O Rei dos Elfos se foi quando acordei. Em algum momento durante a


noite ele me colocou na cama, mas não se juntou a mim lá. Onde meu marido
ia em seu horário privado, eu não sabia, mas achei que podia ouvir o som
distante e sonhador de seu violino.
O espelho acima do meu manto mostrava o Bosque dos Elfos banhado
em uma estranha luz fraca, ou amanhecer ou anoitecer, eu não sabia dizer. Os
amieiros estavam em plena floração no mundo acima, despertados para a
primavera antes do resto da floresta. Eu sorri e me levantei da minha cama.
A sala de estar estava vazia.
—Ele não está aqui. — Disse uma gargalhada das sombras. Thistle.
—Eu sei. — O Rei dos Elfos não havia tirado o violino de seu estande na
sala de estar. Ele descansou nas mãos de um sátiro malicioso, seus dedos com
garras escorrendo pelas curvas do instrumento. No entanto, eu ainda podia
ouvir aquelas tênues linhas fantasmagóricas, familiares, mas irreconhecíveis.
—Você ouviu isso?
As orelhas de asas de morcego de Thistle se contraíram. —Ouvi o que?
—A música —, eu disse. Eu corri meus dedos sobre o violino do Rei dos
Elfos. —Eu pensei que era Der Erlkönig.
Nós escutamos. O toque foi fraco demais para eu identificar o que estava
ouvindo, mas as orelhas de Thistle eram mais afiadas do que as minhas. Depois
de um momento, ela balançou a cabeça.
—Eu não ouço nada.
Ela mentiu? Seria como se minha garota elfo me enganasse, mas Thistle
me observava com uma expressão ilegível em seu rosto, nem zombando nem
simpática. Pela primeira vez, pensei que ela estivesse falando a verdade.
Talvez tudo estivesse em minha mente. Eu ouvia música em minha
mente todo o tempo, mas nunca foi assim tão literal. Essa música não estava
dentro de mim; estava além de mim.
Thistle me observou, empoleirada no topo do klavier como um gato, suas
pequenas garras afiadas deixado marcas nas notas espalhadas que eu havia
feito na Sonata da Noite de Núpcias. —O que você quer? — Ela zombou.
Se tivesse sido Twig assistindo, ela teria me trazido um prato de comida,
uma caneca de chá, um roupão novo ou qualquer outro número de pequenos
confortos sem que eu precisasse perguntar. Mas Thistle se irritava com meus
desejos não verbalizados, encontrando maneiras de cumprir minhas ordens à
risca, se não em espírito.
Meu estômago roncou. Pela primeira vez em anos, percebi que estava
com fome. Mais do que fome, eu estava morrendo de fome. Eu balancei em
meus pés, de repente tonta.
—Seria bom —, eu disse suavemente. —se você pudesse me encontrar
algo para comer.
Thistle franziu o cenho. Eu escondi um sorriso; ela odiava mais quando
eu era legal do que quando eu exigia. Ela estalou os dedos de galhos finos e,
no momento, os changelings se materializaram nas sombras, com pratos cheios
de javali assado, fatias de veado, nabos e pão. Notei uma bandeja de morangos
em uma das mãos dos servidores e minha boca ficou cheia de água.
—A comida não é...? — Eu dei a Thistle um olhar questionador.
—Sem encanto —, disse ela. —Não funciona na Rainha dos Elfos de
qualquer maneira.
Eu não precisava de mais encorajamento. Os changelings desapareceram
de novo nas sombras e eu me enrolei, devorando a comida diante de mim sem
pensar nas sutilezas. O suco do assado encheu minha boca, rico e saboroso. Eu
podia saborear a doçura do alecrim, sálvia e tomilho, a fumaça do fogo assado,
o salgado da crosta.
—Você ainda tem um apetite —, observou Thistle. —Surpreendente.
Eu parei no meio da mordida. —O que você quer dizer?
Ela encolheu os ombros. —Todos elas pararam de comer no final.
Eu não disse nada e continuei comendo.
—Você não está curiosa? — Thistle perguntou quando ficou claro que eu
não iria morder sua isca. —Curiosa sobre o seu destino?
Eu arranquei um pedaço de pão. —O que mais há para saber? — Minha
vida foi dada ao Submundo, e eu nunca mais ponharia os pés na terra dos
vivos. Pensei nos dias passados no klavier, nas noites passadas nas mãos do
Rei dos Elfos, e minhas bochechas aqueceram. —Eu estou morta para o mundo
acima.
Quanto mais tempo você queima a vela...
A comida ficou presa na minha garganta, mas eu me forcei a engoli-la.
Thistle trouxe a salva de morangos para mim. —Você sabe o que o seu
contrato implica, mas não o que ele anuncia. — Ela sorriu, seus dentes
irregulares e afiados.
Suspirei. —Fora com isso, Thistle —, eu disse. —Você quer me dizer,
então vá em frente.
Ela colocou a bandeja aos meus pés. —As primeiras frutas do seu
sacrifício —, disse ela, pegando um morango em seus longos dedos. —
Interessante. No início do ano para morangos. Seu favorito?
Pensei na mancha de morango silvestre no prado perto da estalagem.
Nasci no meio do verão, e sempre deu frutos no meu aniversário. Seria uma
corrida para ver quem poderia comer mais: eu, minha irmã ou as criaturas da
floresta. Käthe e eu roubávamos nossas tarefas o máximo que pudéssemos
para encher nossas barrigas, nossas bocas manchadas de vermelho sempre nos
entregando.
—Sim. — Eu amava morangos porque eles provavam mais do que
doçura; eles tinham sabor de tardes de verão e risadas roubadas. —Eles sempre
foram meu presente de aniversário favorito.
Thistle riu. —Primeiro a florescer, primeiro a desaparecer. Aproveite
seus morangos enquanto pode, então; o gosto logo vai desvanecer na sua boca.
—Como assim? — Peguei a bandeja e coloquei no meu colo.
—Sabe o que significa viver, Alteza? — Revirei os olhos. Eu era
atormentada por todos os lados por filósofos. —A vida é mais que a respiração
e mais que o sangue. É... —Thistle comeu seu morango com prazer. — gosto e
toque, visão, som e cheiro.
Eu olhei para a bandeja no meu colo. Cada fruto estava no auge da
maturação, sua cor era de um vermelho vivo perfeito.
—O preço que você pagou não foi dos anos restantes de sua vida, você
sabe. Acha que as leis antigas poderiam ser compradas tão baratas? Não. Não
é apenas seu coração, mas seus olhos, seus ouvidos, seu nariz e sua língua eles
exigem. —Ela lambeu o suco pegajoso de seus dedos. —Pouco a pouco, eles
vão levar sua visão, seu cheiro, seu gosto, seu toque, um banquete lento. Sua
paixão, sua vivacidade, sua capacidade de sentir, tudo seco. E quando você
não é nada além de um tom desbotado de seu antigo eu, então, finalmente,
você vai morrer. Você acha que seu coração pulsante é o maior presente que
você poderia dar? Não, mortal, seu batimento cardíaco é o menor e o último.
A fealdade da verdade de Thistle me deixou sem fôlego. Eu tenho
vontade de vomitar; Eu não conseguia engolir outra mordida.
—Oh sim —, ela continuou, arrancando outra fruta da bandeja. —Um
por um, seus sentidos vão deixar você. Qual deles você pode suportar desistir
primeiro, mortal?
Qual deles? Nenhum deles. Eu poderia desistir do sabor dos morangos?
O perfume de uma noite de verão, a sensação de seda contra a minha pele, o
privilégio de ver o Rei dos Elfos com meus próprios olhos? O gosto de seus
beijos, o toque de suas mãos percorrendo as colinas e vales de minhas curvas,
o som de seu violino? E música, oh, Deus, música, eu poderia suportar a agonia
de sua perda?
—Eu não sei —, eu sussurrei. —Eu não sei.
Thistle roubou outro morango da minha salva. —Então coma, beba e seja
feliz enquanto puder, pois amanhã...— Ela não precisou terminar a frase.
Pela primeira vez em muito tempo, senti o peso, a enormidade do que eu
havia sacrificado. Eu tinha passado tanto tempo no mundo acima de me negar
que eu sabia o quão bem a perda dos meus sentidos iria devastar e me
diminuir. Especialmente agora que entendi a plenitude do que o corpo poderia
oferecer.
—Quanto tempo? —, Perguntei. —Quanto tempo antes, antes que tudo
desapareça?
Thistle encolheu os ombros. —Você tem tanto tempo quanto a memória,
suponho.
—O que isso significa?
Os olhos de Thistle brilharam. —Você sabe o que mantém a roda da vida
girando, mortal?
Fiquei surpresa com essa mudança repentina na conversa. —Não.
Minha garota elfo sorriu, mas era um sorriso malicioso, cheio de
desprezo e ridicularização. —Amor.
Eu dei uma risada incrédula. —O que?
—Eu sei, que noção tola. Mas isso não torna menos poderoso, ou
verdadeiro. —Thistle se inclinou para frente, respirando fundo minha tristeza,
raiva e confusão. —Enquanto o mundo acima se lembrar de você, contanto que
você tenha uma razão para amar, seu gosto, tato, olfato, visão e som
permanecerão para você.
Eu fiz uma careta. Ao longe, eu ainda podia ouvir o violino tocando sua
música não identificável, mas familiar, como um farol, como um chamado.
—Você quer dizer, contanto que alguém se lembre de mim, eu vou viver,
inteira?
Thistle me observou. —Eles amam você?
Pensei em Josef e em Käthe. —Sim.
—E quanto tempo você acha que o amor deles durará, quando todos os
vestígios de você que já existiu se forem, quando suas mentes racionais e
despertas disserem que você não existe, quando seria mais fácil esquecer você
em face da razão? ?
Eu fechei meus olhos. Lembrei-me do estranho meio sonho de uma vida
concedida a mim por Der Erlkönig quando Käthe foi tirada pela primeira vez
de mim. Tinha sido fácil, tão fácil entrar nessa versão da realidade, uma
realidade em que minha irmã não existia. Mas lembrei-me também do erro de
tudo isso, que, apesar de todas as evidências em contrário, o buraco no meu
coração só podia ser explicado por sua ausência. Pensei então em Josef e meu
coração se apertou de medo. Meu irmão mais novo, a outra metade da minha
alma, passava a coisas maiores e melhores. Seria tão fácil esquecer-me no meio
de toda aquela boa companhia. Mas o pedaço de um sonho voltou para mim,
partituras abertas em um suporte. Für meine Lieben, em Lied im stil die Bagatelle,
auch Der Erlkönig.
Eu abri meus olhos. —O amor deles vai durar enquanto eles respirarem.
— Eu disse ferozmente.
Thistle zombou. —Então todos eles dizem.
Nós caímos em silêncio. Eu ainda podia ouvir aquele maldito violino
distante, mas Thistle parecia alheia às suas tensões. Eu peguei um morango da
bandeja e trouxe para os meus lábios, saboreando o cheiro, a sugestão do sol
de verão sob sua doçura vermelha. Eu dei uma mordida, e seu sabor explodiu
sobre a minha língua, inundando-me com memórias. Eu e minha mãe fazendo
geleia de morango enquanto Constanze fazia um bolo. Os lábios de Käthe
rosados com doces contrabandeados. Os dedos de Josef estavam cheios de
açúcar, deixando marcas no pescoço do violino que levaram séculos para
limpar.
E com um sobressalto percebi que reconhecia a música que tocava à
distância. Uma melodia estranha e assombrosa, quase como uma bagatela.
Era minha.
E o violino era de Josef.
Eu deixei de lado os restos da minha refeição e caminhei até o klavier.
Thistle permaneceu comigo, um pequeno homúnculo pairando sobre o meu
ombro, incômodo e persistente. Eu a enxotei, então ela enviou meus papéis
voando por despeito. Eu dei a ela um olhar aguçado, mas ela me olhou de
volta, até que eu murmurei, desejando. Com um pigarro, ela estalou os dedos,
e minhas anotações e papéis imediatamente se organizaram em uma pilha ao
lado do klavier.
Mas em vez de continuar trabalhando na Sonata da Noite de Núpcias,
sentei-me e toquei a peça que eu chamava de Der Erlkönig, acompanhando
meu irmão de outro mundo, outro reino.
Enquanto o mundo acima se lembrar de você.
Minha música. Claro. Todas as coisas nesta terra e abaixo dela
desapareciam, mas a música era imortal. Mesmo se eu estivesse morta para o
mundo acima, uma parte de mim viveria cada vez que minha música fosse
ouvida.
Thistle trouxe a salva de morangos e colocou-a no topo da klavier,
brilhante, vermelha e tentadora. Comi cada um, grata pelas pequenas doçuras
que me restavam.
Possibilidade de sonhar

Quando acordei, estava com Josef.


Eu estava em um quarto desconhecido, lindamente decorado e ricamente
mobiliado. Meu irmão estava sentado em uma escrivaninha de pijama e
chapéu. A hora estava atrasada e as velas queimavam ao lado dele. Seus dedos,
manchados de tinta e sujos, estavam enrolados em uma pena, laboriosamente
arranhando palavras no papel.
—Cara Liesl. — Disse ele.
Uma letra. Josef estava me escrevendo uma carta.
—Seis meses desde que eu saí de casa, e ainda sem palavra. — Ele fez
uma pausa, esperando por sua mão para alcançar suas palavras. —Onde você
está, Liesl? Por que você não escreve?
Sepperl, Sepperl, mein Brüderchen, estou aqui, eu disse. Mas eu estava mais
uma vez sem voz, muda e silenciosa.
Meu irmão levantou a cabeça, como se pudesse sentir minha presença.
Josef! Eu gritei. Sepp! Mas seus olhos ficaram embaçados um momento depois
e ele retornou à sua carta.
—Mãe envia cartas por semana, e Käthe escreve por hora, mas de você e
de você, não há nada.
Eu assisti meu irmão lutar com a pena. Um arco sempre pareceu tão
natural em sua mão; Josef empunhava com tanta delicadeza, seu pulso solto,
seus movimentos fluidos. Mas a pena estava estrangulada na ponta dos dedos,
os movimentos da escrita e da transcrição eram estranhos e erráticos. Eu me
perguntei então se isso não era parte da razão pela qual meu irmão sempre
preferiu que eu tomasse ditado em seus raros ajustes de composição - porque
ele não podia escrever.
Eu cambaleei de volta. Meu irmão não sabia escrever. Ele aprendeu suas
cartas aos pés de minha mãe como o resto de nós, crianças e ele certamente
poderia ler, mas meu pai, obcecado com os ingredientes de outro pequeno
Mozart, levara Josef para longe, fazendo meu irmão praticar o alfabeto musical.
Josef mergulhou a pena no tinteiro e tocou a ponta no papel - cuidadosa,
lenta e deliberada. Suas cartas eram mal formadas e infantis, e eu vi que ele
nem sequer aprendeu a se juntar a elas corretamente em cima e para baixo.
—Eu pondero as razões pelas quais você fica em silêncio, e nenhuma
delas faz sentido. É como se você fosse um fantasma, uma sombra. É como se
você não existisse. Mas como isso pode ser assim? Como você pode ser um
fantasma quando eu mantenho a prova de sua existência em minhas mãos?
Ele olhou para o lado. A peça que eu tinha chamado Der Erlkönig estava
aberta em um portfólio em uma mesa baixa, minha caligrafia austera na luz de
velas bruxuleante.
—Onde quer que você esteja, eu espero que você saiba o momento em
que lancei sua música ao mundo, quando eu toquei sua peça em Der Erlkönig
em público pela primeira vez. Eu gostaria que você tivesse visto os rostos da
plateia. Eles foram transportados — Rabiscou a palavra. — transformados pela
sua música. Eu gostaria que você tivesse ouvido seus gritos de “Bis! Bis!” Não
era para mim a quem eles estavam torcendo, Liesl; era você. Sua música.
Eu estava chorando. Eu não sabia que um fantasma poderia chorar.
—François insiste que nós tentemos publicar. Ele acha que é um trabalho
de gênio. Ele é esperto e confio em seu julgamento.
Josef olhou por cima do ombro, os olhos ficando suaves e macios. Eu
segui o seu olhar. François dormia no sofá da sala, o braço jogado sobre os
olhos.
—Mas não quero prosseguir sem sua permissão. Eu quero saber que isso
é o que você quer.
Sim, eu chorei. Sim!
—François não entende meu atraso. Ele não parece entender que é você
quem detém o poder. Então aguardo sua palavra todos os dias, a cada hora,
prova incontroversa da existência de minha irmã mais velha e talentosa. Minha
parceira de armas, minha conexão com o Submundo.
Eu ansiava por envolver meus braços ao redor dele, meu Sepperl, meu
querido irmãozinho e parceiro de armas. Mas minhas mãos passaram por ele
e meu coração se partiu. Eu nunca mais poderia pisar no mundo acima, nunca
mais abraçar minha família.
—Estamos instalados em Paris agora, por favor, por favor, por favor,
escreva para mim, cuidado com o Mestre Antonius. — Sua mão tremeu,
transformando o nome do Mestre Antonius em um rabisco ilegível. Josef
amaldiçoou em francês.
—Eu não amo Paris, embora eu não imagine que isso te surpreenda. Se
você recebeu minhas outras cartas, saberá o quanto sinto falta da nossa
pequena estalagem e do Bosque dos Elfos, apesar de todas as vistas
impressionantes das grandes cidades da Europa. Eu continuo pensando o
quanto Käthe adoraria - são bailes e dignitários extravagantes e pessoas
vestidas com roupas e enfeites. Estou mal adaptado a esta vida, Liesl. A viagem
tem o seu preço e estou constantemente fraco. Nós mal tivemos tempo de nos
recuperar de nossas viagens antes que fosse outro concerto, outro salão.
Quando Josef escreveu a última palavra, algo dentro dele pareceu
mudar. Um grande suspiro deixou seu corpo, e ele pareceu ficar menor, mais
fraco de alguma forma. Viagem e tempo tiraram a última gordura do bebê do
rosto do meu irmão, afiando as maçãs do rosto, afiando o queixo. Foi só então
que percebi que Josef parecia doente. Drenado.
—Minha saudade afeta minha música. Eu sei, e o mestre Antonius sabe
disso.
Ele pressionou com mais força a ponta da pena ao escrever o nome do
mestre Antonius, muito mais do que o necessário.
—O velho violinista é um grande intérprete e aprendi muito estudando
com ele. Mas ele não é paciente, não como você ou François, e ele...
Josef parou de escrever, lutando com as palavras. Mas eu pude ver o que
ele não podia dizer. O conjunto tenso de seus ombros. A maneira como o lábio
inferior e a mandíbula se projetavam com teimosia. A maneira como ele
continuava olhando para François, como se o garoto negro fosse seu escudo e
seu refúgio. Ele riscou as últimas palavras e continuou.
—Ninguém entende. François faz o seu melhor, mas enquanto ele
entende meu coração, eu nem sempre consigo encontrar as palavras para dizer
a ele o que eu sinto. Ele é tão esperto; ele fala francês, italiano e até um pouco
de inglês. Mas ele acha o alemão difícil e eu sou um tolo com as línguas, de
acordo com o mestre Antonius.
Minhas mãos se apertaram em punhos. Eu deveria saber - eu sabia - na
noite do teste de Josef que o Mestre Antonius não era o mentor de que meu
irmão precisava. Esse homem egoísta e vaidoso nunca levantaria meu irmão;
ele só o colocaria no chão.
—O mundo fora da nossa pequena esfera, longe do Bosque dos Elfos, é
irremediavelmente mundano. Não há mágica, não há encantamento. Eu me
sinto separado da terra do meu nascimento, e posso sentir meu talento
enfraquecer e ficar sem graça. Eu me sinto cego, surdo, mudo. A única vez que
me sinto conectado à terra é quando toco sua música.
Josef fez outra pausa e baixou a pena. Ele olhou pela janela, uma
expressão sonhadora no rosto. Seus dedos esquerdos moviam-se para cima e
para baixo num braço invisível, enquanto a mão direita movia-se em
movimentos suaves e praticados. Achei que ele tivesse acabado de escrever,
mas Josef pegou a pena e recomeçou.
—Sonho frequentemente com a nossa família - Käthe, Constanze, mamãe
e papai. Mas você nunca. Você nunca está. É como se você não existisse às
vezes. Às vezes temo que você seja uma invenção da minha imaginação, mas
a música ao meu lado me diz que você é real. Temo que estou enlouquecendo.
Seus dedos agarraram a borda da escrivaninha com tanta força que os
nós dos dedos ficaram brancos.
—Eu sonho com a nossa família, mas em outros momentos, eu sonho com
um estranho alto e elegante. — Josef olhou para o François sonolento com um
olhar de culpa em seu rosto. —Ele não diz nada, só fica parado, encapuzado e
sombrio. Estou cheio de terror e alívio ao vê-lo. Eu imploro para ele revelar seu
rosto para mim, mas sempre que ele puxa o capuz dele, ele é eu. Eu sou o
estranho alto e elegante.
Se eu tivesse fôlego, teria sido arrancado de mim. Algo terrível estava no
trabalho aqui. Algo antigo. Algo além do meu entendimento.
—Eu gostaria que você viesse, Liesl. Eu gostaria que você viesse e
trouxesse a magia e a música com você. Se você não puder vir, envie a próxima
melhor coisa. Envie-me sua música. Estou tão perdido sem você, sem nossa
conexão com o Submundo.
Eu tentei reunir meu irmão em meus braços, mas como o fantasma que
eu era, eu só passei por ele, nada mais do que uma brisa na câmara. Josef
levantou os olhos novamente, franzindo a testa enquanto a chama da vela
cintilava diante dele.
—Seu irmão sempre amoroso —, ele terminou. —Sepperl.
Ele lixou levemente a tinta ainda úmida e colocou a carta para secar.
Então ele pegou a vela no suporte e caminhou até François. Josef abriu um
cobertor sobre a forma do garoto adormecido e ficou ali por um momento,
observando-o dormir. Ternura, afeto e angústia, tudo em um. Era um olhar de
amor.
Então a cena se partiu em pedaços, quebrando e caindo sobre mim como
cacos de vidro. Um espelho.
Um sonho.

Havia lágrimas no meu rosto quando eu me acordei. Meu coração


disparava e eu estava muito quente e com muito frio, meu traje da noite
encharcado de suor, minha pele úmida e pegajosa. Embora fosse primavera no
mundo acima, no Submundo era sempre frio, como se Der Erlkönig levasse o
inverno eterno com ele aonde quer que fosse.
Um fogo estava alto em minha lareira, liberando um calor reconfortante.
Mas eu não aguentava ficar quieta, não podia suportar outro momento no meu
túmulo, minha prisão e minha casa. Peguei uma saia e blusa do guarda-roupa,
simples e reparável. Geralmente meu armário consistia em vestidos
elaborados, vestidos que eram mais confeccionados do que o necessário.
Sempre que eu abria as portas do guarda-roupa, encontrava algo novo, e esta
noite, meus desejos renderam algo muito parecido com o que eu costumava
usar no mundo acima: simples, prático e quente.
Eu rapidamente me vesti e destranquei minha porta, emergindo nos
corredores do lado de fora. Eu estava com vontade de vaguear hoje à noite, e
não me importava onde meus pés me levariam.
Passei pela cidade dos elfos, brilhando com as luzes piscando, passei pelo
enorme salão de baile onde eu dançara com o Rei dos Elfos pela primeira vez
como marido e mulher. Mas eu passei por todos eles, querendo ir mais fundo.
As avenidas pavimentadas deram lugar a passagens estreitas, rochosas,
afiadas e irregulares. A umidade brilhava ao longo das paredes, o ar ao meu
redor ficando úmido.
De repente, o lago subterrâneo apareceu diante de mim.
Este era o mais longe que eu poderia ir. Meus dedos tocaram a borda da
água, enviando ondas brilhantes de luz pela superfície. A água estava fria,
mais fria que uma nascente alpina, e eu me importava com a forma como essas
águas fluíam para os rios e lagoas do mundo acima.
E então, ao meu redor, o som de canto. Alto e claro, o som de um dedo
correndo ao longo da borda de uma taça de cristal. Toda a gruta tocava com
sua beleza estranha, ressoando no meu peito e nos meus ossos. A Lorelei.
—Linda, não é?
Eu pulei. Um changeling apareceu, tão subitamente como se ele tivesse
atravessado as paredes rochosas que cercavam o lago.
—Sim. — Eu disse com cautela. Eu nunca havia realmente trocado
palavras com um changeling antes. Eles eram os servos silenciosos do Rei dos
Elfos, os pretendentes do Baile dos Elfos, as crianças perdidas e famintas do
mundo acima, os habitantes mais misteriosos e monstruosos do Submundo.
Eu não sabia quase nada sobre eles, exceto que eles tinham sido “o produto de
um desejo”. Pensei na noite em que fiz um desejo, quando Josef era um bebê,
morrendo de escarlatina.
—Elas são perigosos, você sabe, as Lorelei. — O changeling se aproximou
e eu tentei não deixar meu desconforto mostrar. Apesar de tudo, senti pena das
criaturas, com pena de sua meia-vida, sua existência liminar. —Lindas, mas
perigosas.
—Sim —, eu disse novamente. —Eu quase sucumbi ao feitiço delas na
última vez que cruzei.
Os olhos negros e chatos do changeling - olhos elfos naquele rosto
humano - me estudavam. —O que aconteceu?
Dei de ombros. —Der Erlkönig me salvou.
Ele assentiu, como se isso explicasse tudo. —Claro. Ele não gostaria que
você descobrisse o maior segredo delas.
—E o que é isso?
O changeling inclinou a cabeça. —Que elas guardam o portal para o
mundo acima.
Uma sensação de frio me tocou da cabeça aos pés. —Um portal? Existe...
uma porta de entrada para o mundo acima?
Ele assentiu. —Sim. Está do outro lado do lago.
Olhei para o lago, para suas profundezas escuras e sombrias, negras
como obsidiana. Como a morte. No entanto, do outro lado estava a luz. Luz e
vida. Se eu pudesse…
—Não é seguro. — O changeling me observou de perto. —Você não pode
atravessar sem um guardião.
A vergonha iluminou meu rosto e eu desviei meu olhar. Eu não sabia que
meus pensamentos eram tão transparentes.
—Aqui —, ele disse de repente. —Eu tenho um presente para você.
Assustada, abri a mão e ele jogou um pacote de flores silvestres na palma
da minha mão. —Obrigada. — Eu disse em perplexidade. As flores eram nada
mais do que flores de trevo, lindamente amarradas com um pedaço de fita.
O changeling balançou a cabeça. —Não é de mim. Ela deixou para você
no Bosque dos Elfos.
Eu fui ainda. —Quem?
—Uma menina —, disse ele. —Uma mulher de capa vermelha com
cabelo como o sol.
Käthe.
Como... Como... Os elfos só podiam vagar pela terra durante os
incontáveis dias de inverno.
—O bosque é um dos poucos espaços sagrados deixados onde o
Submundo e o mundo acima se sobrepõem, — o changeling disse
indiferentemente. —A menina veio e disse seu nome antes de deixar cair as
flores. Eu as levei quando ela foi embora.
Claro. Agora eu entendia. Eu entendi porque sempre era para o Bosque
dos Elfos que Josef e eu corríamos quando crianças, porque era o único lugar
que eu já vi o Rei dos Elfos, porque eu tinha ido lá para sacrificar minha música
e ganhar acesso ao Submundo.
Era um limiar.
Os lampejos de uma ideia começaram a se formar, frágeis e carregados.
Eu me afastei, com medo de procurar a esperança crescendo em mim. O
changeling se virou para ir embora.
—Espere —, eu disse. —Um momento por favor.
O changeling cruzou as mãos e inclinou a cabeça para o lado. Seu rosto
era humano, mas sua expressão era totalmente parecida com um elfo em sua
inescrutabilidade.
—O que, o que você pode me dizer do meu irmão?
—Seu irmão?
—Sim♥—, eu sufoquei. —Josef.
Seus olhos negros brilharam. —Todos vocês mortais são tão parecidos —
, disse ele. —Rápido para nascer, rápido para morrer. Como as moscas da noite.
—Mas —, eu disse. —Josef não está morto.
Um sorriso lento se espalhou por seus lábios. —Você está tão certa disso?
Eu virei minha cabeça para longe. —O que- — eu comecei, minha
garganta rouca. —O que é Josef?
O changeling não respondeu, mas eu já sabia a resposta. De certa forma,
eu sempre soube a resposta. Meu irmão morreu naquela noite quando o ouvi
chorar, quando a febre devastou seu corpo mortal, deixando apenas um
cadáver. Antes que a escarlatina o levasse, meu irmão tinha sido rosado e
bonito, um bebê gordinho e bem-humorado. Na manhã seguinte à quebra da
febre, a coisa deixada no berço era pálida e magra, uma criatura esquisita e
quieta. Todos nós pensamos que era a febre. Mas eu sabia melhor.
—Como pode um changeling viver no mundo acima? — Eu sussurrei.
Ele encolheu os ombros. —Eles não podem, exceto pelo poder de um...
— Desejo—, eu terminei. Eu queria rir. —Eu sei.
—Não. — A voz do changeling era divertida. —Pelo poder do amor.
O fundo caiu do meu estômago e eu estava caindo. De repente, parecia
que as leis do Submundo estavam mudando, e eu não conseguia entender o
significado delas.
—Amor?
O changeling encolheu os ombros novamente. —Você o ama, não é? Seu
irmão?
Ele era meu irmão? Como eu poderia me perguntar isso? A natureza de
Josef não mudava o fato de que ele era a outra metade da minha alma, meu
amanuense, o jardineiro do meu coração. Claro que ele era meu irmão.
—Sim, — eu disse. —Eu amo-o.
—Então ele ficou para você. Nenhum de nós durou muito tempo no
mundo acima, você sabe. Leve-nos para longe do subsolo e nós murcharemos
e desapareceremos. Você o chamou pelo nome e o amou inteiro. Isso é poder.
Eu me sinto separado da terra do meu nascimento, e posso sentir meu talento
enfraquecer e ficar sem graça. Eu me sinto cego, surdo, mudo.
—Oh, Josef. — Eu pressionei minha mão para o meu coração angustiado.
—Não se preocupe —, disse o changeling. —Ele voltará para nós em
breve. Todos nós voltamos, no final.
Sinfonia não conclusiva

De todas as minhas emoções mortais, a esperança era a pior. Todas as


outras eram fáceis de carregar e fáceis de pôr de lado: a raiva brilhava e depois
se esgotava, a tristeza aos poucos diminuía e a felicidade borbulhava e
desaparecia. Mas a esperança... a esperança era teimosa. Como uma erva
daninha, voltava, mesmo depois de eu ter arrancado tudo de novo e de novo.
Espero que também doa.
Doeu quando, noite após noite, o Rei dos Elfos me colocou na cama com
um beijo casto na minha testa. Doeu quando o trevo da minha irmã floresceu,
depois morreu. Doeu quando eu nunca mais ouvi o violino de Josef do mundo
acima, chamando meu nome em Lá menor.
Também doía quando eu pensava no portal abaixo do lago subterrâneo
e no limite além.
Então eu tentei o meu melhor para sufocar a esperança. Porque o gêmeo
da esperança era o desespero, e o desespero era infinitamente pior. Se a
esperança doesse, então o desespero era a ausência de mágoa. Era a ausência
de sentimento. Era a ausência de carinho.
Eu queria muito me importar.
Mas estava ficando cada vez mais difícil atender a cada dia com um
propósito. Era difícil encontrar excitação, alegria ou antecipação, mesmo
naquilo que me trouxera tanta felicidade antes. O Rei dos Elfos e eu
trabalhamos o primeiro movimento da Sonata da Noite de Núpcias até que
ficou perfeita, até que não restassem erros. Eu ouvira o Allegro mais vezes do
que podia contar e, embora não conseguisse mais encontrar nada que desejasse
consertar, também não encontrei nada do que gostava.
Siga em frente, o Rei dos Elfos me encorajou. Escreva outra coisa. O próximo
movimento, talvez.
Eu tentei. Ou melhor, tentei tentar. Mas eu não conseguia. Eu olhava para
as teclas pretas e brancas do klavier, mas a inspiração não vinha. Eu não sabia
por onde começar ou como proceder. E então percebi que não sabia como
proceder porque não sabia como a história terminava.
Qual era a resolução de uma peça iniciada em fúria, impotência e desejo?
Como terminava? Eu conhecia as regras, como uma sonata deveria ser
estruturada. Três movimentos: rápido, lento e rápido. Uma declaração de
tema, uma desconstrução, uma resolução. Mas não haveria conclusão, não para
mim; apenas um decrescendo lento e estridente.
Esses seriam os anos restantes da minha vida.
Eu pensava que conhecia impotência. Eu pensava que conhecia a
futilidade. Eu estava tão errada.
Contanto que você tenha motivos para amar, Thistle dissera.
Eu tinha muitos motivos para amar. Toquei as flores de trevo desbotadas
na partitura ao meu lado.
Enquanto o mundo acima se lembrar de você.
Eu poderia... poderia enviar algum tipo de mensagem? Eu poderia enviar
uma prova do meu amor, do jeito que Käthe tinha, do jeito que Josef tinha?
O bosque é um dos espaços sagrados deixados onde o Submundo e o mundo acima
se sobrepõem.
E então a esperança se acendeu novamente, mais dolorosa do que antes.

Havia facetas infinitas para o meu Rei dos Elfos - trapaceiro, músico,
filósofo, erudito, cavalheiro - e eu tive grande prazer em descobri-las, uma após
a outra. Cada novo lado revelava outra dimensão, outra profundidade que
aumentava minha compreensão do meu marido.
Mas havia uma faceta dele que eu havia descoberto, e não gostei: mártir.
Foi um tempo antes que eu entendesse sua curiosa reticência, seu
distanciamento cuidadoso. Foi ainda mais tempo antes que eu percebesse, pois
embora meu marido estivesse livre com seu afeto - tocasse meu rosto, minhas
mãos, meu ombro, meus lábios - ele era um avarento em tudo o mais.
Quanto mais tempo você queima a vela...
Havia uma hesitação sempre que ele me tocava agora, uma gentileza
consciente que me enfurecia. A porta tinha sido aberta entre nós e eu queria
que ele entrasse e tratasse meu corpo como se estivesse em casa. Mas havia
uma linha que ele não atravessaria, pois, embora sentisse seu ardor em cada
beijo, cada carícia, ele nunca entrava. Se eu ainda pudesse rir, minha risada
teria sido ouvida mesmo no mundo acima.
Não era minha vergonha que nos parava agora; era culpa dele.
—Você não está participando. — Eu disse uma noite depois do jantar.
—Hmmm?
Tínhamos acabado de tocar uma série de notas em sol menor de um
compositor desconhecido para mim. O Rei dos Elfos tinha todo um repertório
de música, uma biblioteca de libretos e portfólios roubados do mundo acima.
Muitos dos nomes dos compositores se perderam no tempo, mas eu me
perguntei se algo de seus fantasmas não se agitava toda vez que sua música
era tocada. A princípio, pensara que essas composições eram obra do mesmo
homem, pois todas elas estavam escritas na mesma mão, até que o Rei dos Elfos
admitiu ter copiado as anotações.
—Eu fui copista uma vez. — Ele disse. Então ele fechou a boca e não disse
mais uma palavra, embora eu tenha pressionado e incomodado até que sua
paciência se partisse.
Ele ficou imediatamente arrependido depois, o que só me incomodou
mais. No espaço entre sua raiva e seu pedido de desculpas, senti aquela
centelha de fogo entre nós e, por um breve momento, todos os meus sentidos
se iluminaram, tão intensos e potentes como haviam sido no mundo acima.
Mas sua culpa umedeceu meu fogo e minha esperança.
—Você não está participando —, repeti. —Você estava brincando de
rotina; Eu podia ouvir o vazio.
O vazio não estava apenas em seu jogo. Era nos silêncios entre nós. Onde
o silêncio já estivera cheio, cheio de música e comunhão, agora era oco.
O arco do Rei dos Elfos, ainda parado sobre as cordas, tremeu em seu
aperto. A crina de cavalo saltou levemente contra a ponte, produzindo um som
nervoso e inquieto.
—Perdoe-me —, disse ele. —Estou cansado. Eu estive acordado até as
escuras horas da noite nos últimos dias.
Não era mentira, mas parecia uma. Eu podia ver as manchas escuras de
exaustão sob seus olhos, e tinha ouvido falar tanto de Twig quanto de Thistle
que o Rei dos Elfos não dormia, mas passava o tempo vagando pelas passagens
sinuosas do Submundo.
—Então vamos descansar. — Eu disse. Bati palmas, e Twig e Thistle
apareceram, um com uma garrafa de conhaque e um copo, a outra, uma salva
de morangos. Eu derramei para o Rei Elfo e o entreguei a ele.
Ele não perdeu o significado do gesto. —Estou bem, Elisabeth.
Dei de ombros, depois tomei um gole. O licor estava fraco e aguado.
—Bem —, eu disse. —Como vamos passar o tempo, então, mein Herr?
—Estou sob o comando de minha senhora —, disse ele. —Seu desejo é o
meu desejo.
—É? — Eu me levantei do klavier e dei um passo à frente. —Então eu
acho que você sabe exatamente como eu gostaria de passar o tempo.
O Rei dos Elfos levantou seu arco como uma espada e seu violino como
um escudo entre nós. —Não hoje à noite, minha querida.
Não essa noite. Não amanhã à noite. Não há noites no futuro previsível.
Eu teria chorado se tivesse alguma tristeza. Eu teria gritado se a raiva ainda
ardesse dentro de mim. Mas não havia nada, nada além de esperança e
desespero, e o desespero estava ganhando.
—Muito bem. — Voltei para o meu lugar no piano. Eu queria jogar
minhas mãos na derrota, ou envolvê-las em torno de sua garganta e estrangulá-
lo. Eu queria despejar minha frustração em música. Mas eu não sabia como
articular o turbilhão de confusão dentro de mim em palavras, frases, então eu
torci meus dedos no piano. Um som dissonante, um punhado de notas que se
chocaram e gritaram. —Vamos jogar um jogo.
Algo no Rei dos Elfos se afrouxou, embora os olhos de seu lobo ainda
estivessem cautelosos. —Que jogo, minha querida?
—Verdade ou desafio.
Ele ergueu as sobrancelhas. —Brincadeira de criança?
—Os únicos jogos que conheço. Venha, mein Herr, com certeza você se
lembra dos nossos jogos no Bosque dos Elfos.
Um sorriso mostrou as pontas dos dentes. —Eu lembro, Elisabeth. Com
prazer.
—Bom. — A esperança cintilou no meu estômago. —Eu vou começar.
Peguei a bandeja de morangos e me movi do banco para o chão. Eu
coloquei as frutas diante de mim e coloquei minhas pernas sob as minhas saias,
como fiz quando era pequena. O Rei dos Elfos não fez nenhuma observação,
apenas colocou de lado seu instrumento e se juntou a mim no chão. Eu segurei
minhas mãos, palmas para cima. Sem truques. O Rei dos Elfos pegou minhas
mãos sozinho. Sem armadilhas.
—Vamos começar com perguntas simples —, eu disse. —Qual é o seu
nome?
Ele jogou a cabeça para trás e riu. —Oh não, Elisabeth. Essa é uma
pergunta que não posso responder. Escolha outra.
—Não pode? Ou não vai?
Seus olhos estavam duros. —Não posso. Não vou. Ambos. Não importa.
Escolha outra. Ou nomeie seu desafio e eu pagarei.
Eu não esperava que o jogo começasse tão mal, então eu ainda não tinha
reunido ideias para as penalidades para distribuir. Então eu fiz outra pergunta.
—Bem. Qual é a sua cor preferida?
—Verde. E a sua?
Meu olhar caiu sobre a bandeja ao meu lado. —Vermelho. Cheiro
favorito?
—Incenso. Animal favorito?
Meus olhos se demoraram nos dele. —Lobo. Compositor favorito?
—Você.
A resposta foi tão simples, tão sincera que me tirou o fôlego. —Tudo bem
—, eu disse, minha voz instável. —As perguntas ficarão mais difíceis agora.
Vou lhe fazer cinco perguntas e você deve responder com sinceridade ou pagar
a desistência. Então você pode me perguntar cinco.
O Rei dos Elfos acenou com a cabeça.
—Onde você vai quando perambula pelo Submundo à noite?
Um lampejo de dor atravessou seu rosto, mas ele respondeu sem hesitar.
—A capela.
Sua resposta me surpreendeu. —A capela? Por quê?
—Essa é a sua próxima pergunt?
Eu parei. —Sim.
Demorou um tempo antes de ele responder. —Consolo. — Esperei que
ele continuasse. —Isso me dá conforto para oferecer minhas orações ao Senhor,
mesmo que ele nunca as ouça.
—Por que você reza?
Ele me observou debaixo dessas pálpebras encapuzadas, os olhos
ligeiramente estreitados. —Por remissão.
—Para o que você deve se redimir?
Seus olhos brilharam. —Por egoísmo.
Eu considerei pressioná-lo ainda mais, mas eu tinha mais uma pergunta
e não queria desperdiçá-la. —Como você chegou a ser Der Erlkönig?
A cabeça do Rei dos Elfos se levantou e ele puxou as mãos para trás. —
Não se atreva, Elisabeth.
Minhas mãos ainda estavam na minha frente, as palmas das mãos vazias.
—Você prometeu responder com sinceridade.
Suas narinas se alargaram. —Sempre houve Der Erlkönig. Sempre
haverá Der Erlkönig.
—Isso não é resposta.
—É aquela que você deve aceitar. Se você não for, então nomeie o seu
desafio, e eu pagarei.
Eu estudei ele. Lembrei-me da primeira história que ele me contara. O rei
clandestino sabia o custo do sacrifício. Ele vendeu sua alma e seu nome para
os elfos. Sua alma... e seu nome. Mas eu pensei na galeria dos Reis Elfo, uma
linha em evolução de diferentes homens. Meu Rei dos Elfos era Der Erlkönig,
mas Der Erlkönig não era todo Rei Elfo. A quem meu marido deu seu nome?
A quem ele havia dado sua alma?
—Seu nome —, eu sussurrei. —Eu reivindico seu nome como desafio.
Ele endureceu. —Não, Elisabeth. Eu lhe darei tudo menos isso.
—É um nome tão alto preço a pagar?
O Rei dos Elfos olhou para mim e havia mil emoções, mil anos em seus
olhos. Ele tinha a forma e a figura de um jovem, mas ele era antigo.
—É —, ele disse baixinho. —o preço mais alto que eu poderia pagar.
—Por quê?
Ele suspirou e foi o vento nas árvores. —Quem é você, Elisabeth?
—Estou respondendo suas perguntas agora? — Minhas mãos ainda
estavam vazias, vazias de seu nome. —Você não pagou seu desafio.
—Estou pagando da única maneira que posso.
O silêncio entre nós começou a se encher.
—Quem é você, Elisabeth? Responda isso e você entenderá.
Eu fiz uma careta. —Eu sou... — Eu comecei, então parei. O Rei dos Elfos
não me pressionou, mas simplesmente esperou. Sua paciência era infinita; sua
paciência era imortal.
—Eu sou... eu sou filha de estalajadeiro. — Era a resposta que eu teria
dado quando eu era Liesl, mas não a sentia mais como verdadeira.
O Rei dos Elfos balançou a cabeça. —Isso é o que você era.
—Eu sou musicista. Uma compositora.
Um pequeno sorriso inclinou seus lábios, mas ele sacudiu a cabeça
novamente. —Isso é o que você é. Mas quem é você, Elisabeth?
—Eu sou…
Quem era eu? Filha, irmã, esposa, rainha, compositora; esses eram títulos
que eu recebi e reivindiquei, mas eles não eram o meu todo. Eles não eram eu,
inteiros. Eu fechei meus olhos.
—Eu sou —, eu disse lentamente. —uma menina com música em sua
alma. Eu sou uma irmã, uma filha, uma amiga, que protege ferozmente aqueles
queridos para ela. Eu sou uma garota que ama morangos, torta de chocolate,
músicas em tom menor, momentos roubados de tarefas e jogos infantis. Eu sou
mal-humorada, mas disciplinada. Eu sou auto-indulgente, egoísta e altruísta.
Eu sou compaixão e ódio e contradição. Eu sou eu.
Eu abri meus olhos. O Rei dos Elfos olhava para mim com um desejo cru.
Meu pulso pulou, tropeçando nas emoções do meu sangue. Seus olhos estavam
claros como a água e eu podia ver até o coração de onde ele estivera, meu jovem
austero.
—Você é Elisabeth —, disse ele. —Um nome, sim. Mas uma alma
também.
Eu entendi então. Ele não podia me dar seu nome porque ele não era
ninguém; ele era Der Erlkönig. Ele foi esvaziado, seu nome e sua essência
roubados pelas antigas leis. O espaço dentro de onde o jovem austero tinha
sido estava querendo, ansiando por ser preenchido.
—Eu sou Elisabeth —, eu disse. —Mas Elisabeth é apenas um nome. Uma
palavra vazia eu preencho comigo mesma. Mas você teve uma palavra uma
vez; Eu vejo os ecos disso dentro de você.
Eu não pude dizer porque eu queria o nome dele. Não importava; ele era
Der Erlkönig, o Rei dos Elfos, mein Herr. Mas estes eram títulos concedidos a
ele, não aqueles que ele havia reivindicado para si mesmo. Eu queria a parte
dele que não pertencia ao Submundo, mas ao mundo acima. Para o homem
mortal que ele tinha sido. O homem mortal que ele poderia ter sido... comigo.
—Ele se foi —, disse ele. —Perdido. Esquecido.
Nós não falamos por muito tempo. Eu segurei seu silêncio perto de mim.
Seu nome pode ter sido esquecido, mas não foi perdido.
—Bem —, ele disse finalmente. —Você aceita a meu desafio? — O Rei
dos Elfos estendeu as mãos, palmas para cima.
Não, eu não aceitava. Não foi o que eu pedi, mas era o que eu teria.
—Sim, — eu disse. —Sua vez terminou. — Coloquei minhas mãos nas
dele.
—Bom. — Seu sorriso endureceu. —Então eu lhe farei cinco perguntas,
Elisabeth, e você deve responder com sinceridade ou pagar o desafio.
Eu balancei a cabeça.
—Por que você não continuou o trabalho na sonata?
Eu estremeci. A noite de núpcias - nossa sonata para a noite de núpcias.
O primeiro movimento estava terminado, mas eu não havia pegado a pena
para começar a trabalhar no segundo. Nossas noites tinham sido cheias de
música, mas não minhas.
—Eu não sei. — Eu disse.
—Isso não é resposta.
—É a verdade.
O Rei dos Elfos ergueu as sobrancelhas. Ele não aceitou.
—Eu não sei —, repeti. Não era como se eu não tivesse tentado. Eu queria
terminar, eu queria escrever algo totalmente e totalmente em minha própria
voz, algo que o mundo ouviria e conheceria como meu. Mas toda vez que eu
me sentava diante do klavier, toda vez que eu pressionava meus dedos nas
teclas, nada vinha. —Eu... eu não posso continuar. Eu não sei... É como se...
estivesse morta por dentro.
O Rei dos Elfos estreitou os olhos, mas eu não pude lhe dar outra
resposta. Ele me estudou de perto, mas não me pediu para se justificar, e
simplesmente fez a próxima pergunta.
—O que você sente falta sobre o mundo acima?
Eu respirei fundo. O rosto do Rei dos Elfos era cuidadosamente neutro,
e eu não conseguia ler nada de sua intenção. Ele queria ser cruel? Consolando?
Ou ele estava apenas curioso?
—Muitas coisas —, eu disse em uma voz vacilante. —Por que você
pergunta?
—Sua rodada de perguntas terminou, Elisabeth. Responda com
sinceridade ou pague um desafio.
Eu virei minha cabeça. Embora não soubesse dizer por quê, não
conseguia olhar para ele enquanto dava minha resposta.
—Brilho do sol. Neve. O som de galhos batendo contra uma vidraça
durante uma tempestade. De pé diante da lareira no meio do verão, a sensação
de suor escorrendo pelo meu pescoço. E então a doçura inesperada de uma
brisa fresca vinda de uma janela aberta. — Olhei para a bandeja de morangos
no klavier. —Eu sinto falta do gosto afiado e verde da grama de limão, o
fermento da cerveja.
Lágrimas queimavam ao longo dos meus cílios, mas eu não chorei. Não
poderia chorar. Não havia lágrimas em mim e senti o ardor de soluços
fantasmas subindo e descendo pela minha garganta.
—Eu até sinto falta das partes que eu não sabia perder. O pungente
almiscarado de uma estalagem superlotada de viajantes. Pés de couro,
respiração de bebê, lã encharcada. Homens, mulheres, crianças. — Eu ri. —
Pessoas. Sinto falta das pessoas.
O Rei dos Elfos ficou em silêncio. Eu ainda não conseguia olhar para ele,
e nossa única comunhão foi através do encontro de nossas mãos.
—Se você pudesse —, ele disse suavemente; —se fosse possível, você
deixaria o Submundo?
Desta vez, fui eu que tirei minhas mãos para esconder o tremor delas. —
Não.
—Mentirosa. — Eu podia ouvir o grunhido em sua voz.
Eu endireitei meus ombros e me preparei para encontrar seu olhar. Os
lábios do Rei dos Elfos estavam torcidos em um sorriso de desprezo, mas seus
olhos estavam tristes.
—Aqui embaixo —, eu disse. —eu me encontrei. Aqui embaixo, tenho
espaço para estar. É um presente que eu nunca procurei e aprecio isso.
—Não foi um presente. — O Rei dos Elfos pegou a saladeira de morangos
e a presenteou para mim. Eu escolhi o maior e mais vermelho. —É apenas um
prêmio de consolação.
Ele levantou-se.
—Onde você vai?
—O jogo está terminado. Estou cansado.
—Você aceita minha resposta, então?
Ele olhou para o grande morango vermelho na minha mão. —Não.
—Então, qual é seu desafio?
O conjunto de sua boca se apertou. —Termine seus morangos, Elisabeth.
Isso é o que eu reivindico de você.
Um pedido estranho, mas eu fiz o que ele pediu. Eu dei uma mordida. E
senti.
Eu não provava nada.
Eu olhei para o morango na minha mão, sua carne ainda suculenta e
macia, o suco ainda correndo pelos meus dedos. Eu ainda podia sentir seu doce
perfume, um tratamento promissor. Mas sem o seu sabor, a fruta não passava
de carne mole e pele granulada. Meu estômago se virou.
O Rei dos Elfos não disse nada, apenas observou enquanto eu comia
frutas depois de frutas sem gosto, enquanto pagava minha penalidade.
O limiar

—Eu tenho um presente para você.


Era o changeling novamente, aquele com quem eu falara nas margens do
lago subterrâneo. Eu estava lá de novo, me escondendo das minhas atendentes
elfos. Durante minhas horas incontáveis, muitas vezes me sentia apática;
incapaz de compor, incapaz de tocar e incapaz de comer. A carne das minhas
costelas tinha diminuído para revelar uma jaula de ossos, minhas bochechas
afundadas para expor um sorriso de cabeça de morte. A comida tinha perdido
todo o seu sabor, um fato que Thistle nunca deixava de notar ou saborear
sempre que ela me trazia minha bandeja de jantar. Eu comia para irritá-la, mas
era difícil, muito mais difícil quando todo o prazer de comer não havia.
O changeling tinha as mãos em concha ao redor de um objeto,
oferecendo-o para mim como se fosse uma coisa preciosa, um filhote de
passarinho.
—Outro?
Ele assentiu. As palmas das mãos dele abriram como uma flor, e no
coração deles, havia uma massa sangrenta. Eu suspirei.
O changeling inclinou a cabeça, seus olhos negros e chatos me
observando sem expressão. Então percebi que não era uma criatura moribunda
em suas mãos; Era um monte de morangos, machucado, espancado e
sangrando.
—Oh —, eu disse, um pouco sem fôlego. —Obrigada.
—Eles não são de mim —, disse ele. —Eles são da menina do sol.
Käthe. A garota do sol. O primeiro sorriso em uma época tocou meus
lábios, e meu espírito, morto e sem graça, agitou-se dentro de mim.
—Uma oferta no bosque?
O changeling assentiu novamente. —Eu a vi das sombras. Ela falou seu
nome e lhe desejou feliz aniversário.
Aniversário? Eu esqueci. Eu deixara de marcar o passar dos dias,
semanas e horas. O Submundo nunca mudava, nunca se transformou com as
estações, e os anos se estenderam à minha frente, sem graça e em branco. —É
verão?
—Sim. Tudo é quente, exuberante e verde. — A voz do changeling era
tão plana quanto seus olhos inexpressivos, mas achei que podia ouvir uma
nota de saudade. Seu desejo ecoou em mim.
Seria meu vigésimo verão, no mundo acima.
—Eu gostaria de poder ver. — Um desejo inútil. Eu tinha o poder de
dobrar a vontade dos elfos para o meu desejo, mas isso não era um que eles
pudessem cumprir.
O changeling não disse nada, mas empurrou as mãos para frente, as
frutas ainda vermelhas nas palmas das mãos.
Quando íamos colher morango, Käthe e eu costumávamos discutir quais
eram as melhores frutas para coletar. Ela sempre ia para o maior, enquanto eu
sempre escolhia o mais vermelho. Ela costumava dizer que era melhor ter o
maior, porque você tem mais morango para o menor esforço. Eu diria que
maior nem sempre era melhor; as frutas mais vermelhas, as mais vibrantes e
até coloridas, eram sempre as mais doces.
As frutas nas mãos do changeling eram pequenas, mas cada uma era
perfeita em sua intensidade vermelha. Elas brilhavam como joias no escuro e
eu queria poder tê-las. Que eu poderia desejá-las do jeito que eu já tive. Mas o
gosto de morangos, de chocolate, de mostarda em pão fermentado - todos
tinham desaparecido.
Eu peguei uma fruta das mãos do changeling de qualquer maneira.
—Obrigada. — Eu disse, e dei uma mordida.
Doçura estourou na língua. Mais que doce; Eu provei a luz do sol no
prado, verdura cor de limão, calor. Memórias inundaram junto com o gosto,
correndo pela minha garganta como lágrimas.
Eu provei o amor de Käthe.
—Oh —, eu respirei. —Oh!
Devorei o resto, empurrando-os todos na minha boca como uma criança,
tantos quanto eu poderia segurar. Eu deveria ter esperado, eu deveria ter
saboreado, mas eu não me importava. A cor voltou ao meu mundo e senti
minhas veias corarem com vermelho.
O changeling ficou em silêncio enquanto eu comia. Não foi até que eu
terminei que eu peguei o olhar de inveja em seu rosto. Era a primeira expressão
verdadeiramente humana que eu já vi em um changeling e me assustou.
—Eu sinto muito. — Eu limpei o suco dos meus lábios. —Eu não pensei
em oferecer-lhe nenhum.
Ele encolheu os ombros. —De qualquer forma, isso se transformaria em
cinzas na minha boca.
A simpatia passou por mim. Nós não éramos tão diferentes, os
changeling e eu. Nem mortos nem verdadeiramente vivos. Junto com meu
senso de gosto, todas as minhas emoções voltaram para mim com força total.
Minha garganta se fechou com a pena e a tristeza que senti por essa estranha
criatura. Eu cobri as mãos dele com as minhas.
A fome varreu suas feições e, tarde demais, lembrei-me do aviso de
Thistle. Cuidado, eles mordem.
Mas o changeling não se moveu. Em vez disso, ele fechou os olhos e a
dor bateu no meu peito. Ele me lembrava muito de Josef, sua fragilidade
delicada, seu outro mundo etéreo. Esse changeling vivia uma meia-vida e, de
repente, fiquei feliz por meu irmão estar longe de mim, longe do destino do
qual meu amor o salvara.
Fique longe, Sepperl, pensei ferozmente. Fique longe e nunca mais volte.
—Eles dizem que o amor pode libertar você —, o changeling sussurrou.
—Que, se um, apenas uma pessoa te amasse o suficiente, poderia trazê-lo de
volta ao mundo acima. — Ele abriu os olhos, aqueles olhos elfos planos e
inumanos, e me implorou. —Você me amaria?
Suas palavras, esses pequenos presentes. Tudo ficou claro para mim
agora por que esse changeling me procurou. Uma mão invisível amarrotou
meu coração no meu peito. Eu queria reuni-lo em meus braços, para acalmá-lo
do jeito que eu teria acalmado meu irmão mais novo, beijando a dor dos dedos
dele depois que papai o havia feito praticar suas escamas tanto que rasgou os
calos. Mas ele não era meu irmão.
—Eu sinto muito. — Eu disse, tão gentilmente quanto pude.
O changeling não reagiu à minha negação. Eu procurei em seu rosto por
dor, por raiva, mas não vi nada além do efeito desumano e desconhecido dos
outros elfos.
—Vou trazer mais morangos da próxima vez —, foi tudo o que ele disse.
—Existe alguma coisa que você quer que eu dê a menina do sol?
Era como se um trovão ecoasse na gruta. O silêncio e o choque ecoaram
pelo lago como um gongo, ressoando em meus ossos.
—Você... você pode fazer isso?
Ele encolheu os ombros. —Ela não vê ou me ouve em pé lá. Mas se eu
puder lhe trazer seus presentes, talvez você possa deixar algo para ela.
Esperança. Esperança tão abrasadora que me queimou com
determinação.
—Você poderia... você poderia me levar com você?
O changeling me estudou. Eu não conseguia ler nada em seu olhar de
elfo.
—Tudo bem —, disse ele. —Amanhã. Encontre-me aqui amanhã.

Voltei imediatamente ao aposento e reuni as folhas da Sonata da Noite


de Núpcias, o início de uma cópia justa, os papéis sujos e tudo mais. Eu os
juntei às pressas, uma mistura de música e pensamentos semiconscientes,
envolvendo-os com o comprimento da fita que minha irmã amarrara ao redor
das flores de trevo.
—O que você está fazendo? — Perguntou Thistle.
As garotas elfos estavam ao meu lado, embora a sala estivesse vazia
quando eu cheguei. Às vezes eu me perguntava se elas eram acusadas de me
espionar, além de atender a mim. Então me senti culpada pelo pensamento.
Não havia razão para que o Rei dos Elfos tivesse que me espionar, nenhuma
razão para eu esconder minhas ações.
Até agora.
—Nada —, eu disse rapidamente. —Não é da sua conta.
—Existe alguma coisa com a qual possamos ajudá-la, Alteza? —
Perguntou Twig. Das minhas duas garotas elfo, ela era a mais gentil, a mais
inclinada a oferecer deferência em vez de desprezo.
—Não, não —, eu disse. —Estou bem. Agora, as duas, deixem-me em
paz.
Thistle rastejou sobre o klavier e se inclinou para mim. Ela respirou
fundo.
—Hmmm —, disse ela. —Você cheira a esperança. — Seus lábios se
separaram em um sorriso irregular. —Interessante.
Eu bati nela. —Saia, sua pequena homúnculo.
—Esperança e sol —, acrescentou Twig. Eu pulei quando o cabelo
carregado de galhos raspou contra o meu lado. —Como o mundo acima.
Como... como ela.
Eu parei na reunião da minha música. —Como quem?
Twig gritou quando Thistle saltou do klavier e a derrubou no chão.
—Como quem? — Eu repeti.
—Sua idiota furiosa —, Thistle rosnou, puxando punhados de teias de
aranha da cabeça de Twig. —Sua tola idiota e sentimental.
—Chega! — Minhas elfos voaram para longe, a força da minha vontade
fazendo com que elas batessem nos cantos opostos do aposento. —Você —
Apontei para Thistle. — está dispensada. E você — Apontei para Twig — fique
e se explique.
Thistle resistiu ao meu comando enquanto pôde, seu rosto feio
contorcendo-se e contorcendo-se com o esforço enquanto seus dedos, depois
suas pernas e depois seu corpo começava a desaparecer. Sua cabeça foi a última
a desaparecer, sua careta furiosa persistiu muito depois que o resto dela se foi.
Twig rastejou aos meus pés. Pedaços de teia de aranha flutuavam no ar
como partículas de poeira enquanto ela tremia.
—Twig —, eu disse. —Eu não vou te machucar.
—Eu sei, Sua Alteza. — Ela levantou a cabeça. —Mas eu não devo dizer
a você.
—Dizer-me o que?
—Sobre a donzela sem nome.
O tempo cessou. As chamas congelaram na lareira, as teias de aranha e
partículas de pó pareciam estrelas.
—Você quer dizer —, eu disse suavemente. —a primeira Rainha Elfo?
Aquela que viveu.
—Sim sua Majestade.
A donzela corajosa e sem nome. Eu tinha esquecido dela, esquecido que
ela era a primeira e única de nós a fazer seu sacrifício e sobreviver.
—Como? — Eu sussurrei. —Como ela escapou?
—Ela não escapou. — Twig torceu seus dedos finos em punhos
retorcidos. —Ele a deixou ir.
Algo estalou por trás dos meus olhos: dor, explosão, uma epifania. —O
que?
Ela assentiu. —Der Erlkönig amava ela, e ele a deixou ir.
Por um momento, a pontada de ciúme me destruiu. Der Erlkönig amara
a brava donzela. Ele a amara além da quebra das velhas leis e do fim do mundo.
—Como —, eu disse em voz baixa. —isso é possível?
—Eu não sei —, Twig sussurrou. —Mas seus sacrifícios foram feitos em
amor, um amor tão vasto que se estendeu pelo mundo acima e abaixo. O amor
deles era uma ponte, e então eles cruzaram.
Eu fiz uma careta. —Eles?
Ela tremeu ainda mais com a minha pergunta. Seus dedos se apertaram
e abriram, e o esforço de responder - ou não responder - estava causando sua
angústia.
—Twig —, eu disse. —Você está dizendo isso... que a brava donzela e
Der Erlkönig saíram do metrô juntos?
A galeria dos reis dos elfos. A mudança do rosto de Der Erlkönig através
dos tempos. Uma sucessão? Filhos? Herdeiros? Mas Thistle dissera que
nenhuma união entre os mortais ou o Submundo jamais fora frutífera. Sempre
houve Der Erlkönig. Sempre haverá Der Erlkönig.
Twig gemeu e, com horror, vi uma faixa de granito crescer em volta do
peito, uma mancha cinza. Ela moveu os dedos e eles ruíram, como galhos
apanhados em um vendaval. Casca cobriram suas garras, os nós dos dedos, as
palmas das mãos. Minha bondosa garota elfo estava se transformando em
raízes e pedras.
—Pare! — Eu chorei. —O suficiente!
Mas eu não pude impedir sua transformação, e ela endureceu e se
contorceu, transformando-se em uma estátua hedionda de si mesma.
—Eu solto ela! — Eu gritei. —Eu a libero da minha vontade!
Tempo recomeçado Mais uma vez, as chamas dançaram alegremente na
lareira. Minha garota elfo me encarou, todos os traços de casca e pedra saíram
de seu corpo.
—Existe alguma coisa que eu possa ajudá-la, Sua Alteza? — Twig
inclinou a cabeça, mas eu não conseguia ler nada em seus olhos negros e
inexpressivos.
Eu me perguntei se eu tinha imaginado tudo. —Não —, eu disse, minha
voz tremendo. —Você pode ir.
Eu meio que esperava que ela desaparecesse no momento em que a
despedi, mas Twig permaneceu, estudando a Sonata da Noite de Núpcias
dobrada na minha mão.
—Não importa o que você esteja planejando —, ela disse. —não confie
nos changelings.
Eu abri minha boca e depois a fechei.
—Eles não são humanos, apesar de parecerem. Lembre-se do que
dissemos a você.
Eu escondi as páginas da música atrás de mim. —O que você me disse?
—Eles mordem.

Apesar do aviso de Twig, eu estava de volta ao lago subterrâneo no dia


seguinte. O changeling obedientemente me esperava na praia, torcendo os
dedos e arrastando os pés para trás e para a frente com nervosismo. Ele me
lembrou muito de Josef. Não era apenas na inclinação dos olhos ou no ângulo
das maçãs do rosto; era no conjunto de seus ombros, a mordida do lábio
inferior.
—Você está pronta? — Perguntou o changeling.
Eu balancei a cabeça.
—Você tem o seu presente para a menina do sol?
Eu balancei a cabeça novamente e tirei a cópia da Sonata da Noite de
Casamento.
—Bom —, disse o changeling. —Vamos.
Ele me levou até uma amarração escondida, onde um pequeno esquife
nos esperava. Não foi a barcaça que me levou à capela; estávamos em outra
parte do lago. Entramos no barco, e aquele lindo e sobrenatural canto que me
carregou na noite do meu casamento se ergueu ao nosso redor.
As Lorelei.
Elas guardam o portal para o mundo acima, o changeling disse.
O esquife avançou rapidamente sobre as águas negras. Meu
companheiro e eu não dissemos nada como a Lorelei nos carregou, e
atualmente, eu pensei que eu podia ouvir um som fraco rugindo sob sua
música.
—O que é esse som? — Eu perguntei, mas tive a minha resposta em um
momento.
O lago havia se reduzido a uma corrente impetuosa, um rio. Mais rápido
e mais rápido, o rugido crescendo mais alto, a corrida acelerando, as
corredeiras ficando maiores. Agarrei-me à mão do changeling, com medo de
que o pequeno esquife que rodássemos virasse, mas era resistente.
Não sei quanto tempo levamos nas correntes para o mundo acima, mas
finalmente a torrente se reduziu a um gotejamento e nos encontramos nos
aproximando de uma gruta escavada. A luz era diferente aqui. Era um
momento antes de perceber que era por causa da luz do mundo acima.
O changeling saiu do esquife e arrastou-o para a praia antes de me ajudar
a sair dele. Aqui e ali, flechas de brilho empoeirado cortavam a escuridão da
gruta, mostrando uma sala de terra com um teto sustentado por raízes.
—Estamos debaixo do bosque. — Disse o changeling. Ele apontou acima
de nossas cabeças, onde um espaço entre as raízes e as rochas era grande o
suficiente para uma pessoa pequena rastejar.
Ele me ajudou a fazer a subida, embora houvesse muitos apoios para os
pés e para facilitar o caminho. Finalmente, eu emergi.
A luz estava cegando. Eu joguei minhas mãos para sombrear meus olhos,
mas não pude ver nada além de branco infinito. Lágrimas rolaram e eu
pressionei as palmas das minhas mãos nos meus olhos, mas nada conseguia
resfriar sua queimação.
Mas pouco a pouco, pouco a pouco, minha visão começou a voltar.
Quando finalmente consegui suportar a luz, tirei minhas mãos.
O bosque dos elfos. O novo crescimento e a nova vida cobriam ramos
que eu vira pela última vez nus, um verde verdejante cobrindo o chão da
floresta. Eu respirei fundo, e o cheiro inebriante do Bosque dos Elfos no alto
verão encheu minhas narinas, indulgência e possibilidade lânguida.
—Obrigada —, eu disse ao changeling. —Obrigada.
Ele não respondeu, apenas observava enquanto eu circulava o anel de
amieiros, tão amado e tão familiar para mim. Toquei cada galho, folha e tronco,
me reencontrando com velhos amigos. Quando eu alcancei além do anel de
árvores, senti meus dedos roçarem algo.
Eu fiz uma careta. Não havia cerca, nem cortina, nem véu físico, mas
mesmo assim havia uma sensação de transgressão.
—A barreira entre os mundos —, disse o changeling. —Cruze e você está
no mundo acima.
Eu dei ao changeling um olhar afiado. As palavras soavam quase como
uma provocação. Um desafio. Mas o rosto do changeling era tão ilegível
quanto sempre, e ele estava pacientemente no bosque comigo, deixando-me
explorar o limiar.
Aqui e ali encontrei traços de Käthe. Pedaços de fita, um pedaço de papel
com esboços rabiscados e até mesmo o início do que parecia ser um pedaço de
bordado. Eu me abaixei para tocá-los, e eles eram reais e sólidos em minhas
mãos.
—Como é que eu posso tocar e ver e cheirar essas coisas? — Eu perguntei,
maravilhada.
—Estamos em um dos lugares intermediários —, disse o changeling. —
Esses objetos são ambos do mundo acima e do Submundo ao mesmo tempo.
Até que você os toque, eles pertencem totalmente ao mundo acima. Até que a
menina do sol leve seu presente de volta para sua casa, ele permanece no
Submundo.
Eu coloquei minha mão no meu bolso, onde a Sonata da Noite de
Casamento descansava no meu quadril. —E se Käthe não ver meu presente?
O changeling encolheu os ombros. —Então nunca sairá do Submundo.
Eu olhei além do anel de amieiros. Minha casa estava tão perto, mas tão
longe. Se ao menos eu pudesse sair por um momento, correr de volta para casa
e pressionar minha música nas mãos da minha irmã.
O cheiro de pão assado. A pousada. Mãe. Käthe. Eu caí de joelhos. Eu
estava aqui. Eu estava viva. Eu queria rasgar todas as roupas do meu corpo e
correr nua pela floresta. Eu não queria nada - nada - entre a vida e meu corpo.
Todos os meus sentidos cantaram, uma impressionante sinfonia de sensações
e eu comecei a chorar.
Soluços feios e dolorosos rasgaram a floresta. Eu não me importava se
Deus, o Diabo ou o changeling me julgavam. Eu chorei e chorei e chorei, e
mesmo quando a tristeza jorrou em uma torrente de tristeza e saudade e
alegria, uma parte de mim apreciava a dor. Eu não sabia, até que eu tinha saído
para o mundo acima, o quão sufocada, quão enterrada eu estava.
Eu joguei meus braços ao meu lado e fechei meus olhos, como se eu
pudesse abraçar toda a criação, sentindo a intensidade do sol de verão no meu
rosto.
A luz mudou.
Eu abri meus olhos para ver uma nuvem passar sobre o rosto do sol. Mas
não era apenas o véu do sol que mudou a luz ao meu redor. Parecia
subitamente mais fino, mais fraco, mais cinzento. Os ventos quentes de Föhn,
que normalmente queimavam os vales sob os Alpes, beijavam-me as
bochechas com uma respiração fria.
Eu olhei para o changeling em confusão e recuei. Seus lábios foram
puxados para trás em um rosnado feroz, e aqueles olhos negros de elfo
brilharam com malícia.
Calafrios irromperam o ar ao meu redor e a geada começou a cobrir as
bordas dos galhos e folhas, uma delicada renda feita de gelo.
Inverno.
Eu pulei para os meus pés e corri de volta para o Bosque dos Elfos. —Por
que você não me parou? — Eu chorei.
O changeling riu, um som agudo e quebradiço que perfurou meus
ouvidos. —Porque eu não queria.
E então, explodindo sob as raízes dos amieiros, uma miríade de braços e
mãos. Eu gritei e pulei enquanto eles arranhavam a terra, uma série de
changelings surgindo.
—A Rainha dos Elfos nunca mais poderá pisar no mundo —, disse o
changeling. —Mas você quebrou as velhas leis, mortais, e agora estamos livres
para vagar pela terra.
—Você me enganou! — Corri para frente para agarrá-lo, para lutar com
ele no chão e estrangular a vida que ele tanto queria de seu corpo. Mas ele
contornou meu ataque com facilidade, agarrando meus pulsos em um aperto
sobrehumano.
—É claro —, ele zombou. —De todas as suas esposas, você foi a mais fácil
de enganar. Seu coração macio e terno pode ser moldado e torcido como barro.
Tudo o que foi preciso foi um pouco de pena.
Suas feições mudaram. O lábio inferior amoleceu, os ombros caíram, os
cílios abaixados decorosamente. Eu ofeguei quando a sombra do meu irmão
mais novo surgiu.
—Eu nem tive que mudar todo o caminho com você. Eu posso, você sabe.
Todos nós podemos.
Eu pisquei. Eu estava olhando para o rosto de Josef, perfeito em todos os
detalhes, desde a inclinação do nariz até as sardas que levemente espanavam
suas bochechas. Perfeito, salvo por uma pequena coisa: seus olhos
permaneciam como a escuridão inescapável dos olhos de elfos.
—Você é um monstro. — Eu assobiei.
O changeling apenas sorriu.
—Leve-me de volta —, eu disse. —Me leve de volta!
—Não.
—Eu gostaria que você me levasse de volta!
Ele jogou a cabeça para trás e riu. —Seu poder está quebrado, Rainha dos
Elfos —, ele zombou. —Você não pode mais me obrigar.
Eu balancei a cabeça. —Então eu voltarei sem você.
—Tarde demais —, ele cantou. Os outros, seus irmãos e irmãs,
assumiram o coro. Tarde demais, tarde demais, tarde demais. —Depois de cruzar
o limiar, mortal, não há como voltar.
Nuvens rodopiavam no céu, escuras e sinistras. Senti a picada gelada de
um floco de neve pousar na minha bochecha antes que ela se dissipasse. Uma
nevasca estava chegando. Eu havia condenado o mundo acima ao eterno
inverno, tudo por meu desejo egoísta de viver.
Eu desabei no chão da floresta. O peso da minha culpa e horror se abateu
sobre mim, me pressionando para a terra.
Oh, Deus, eu orei. Oh, Deus, me perdoe. Eu sinto muito. Por favor, salve-nos.
Por favor.
Mas Deus não ouviu. A neve estava apressada agora, espanando meus
ombros, minhas costas, minhas mãos. Meu olhar caiu sobre o anel de cabeça
de lobo em volta do meu dedo, seus olhos azuis e verdes brilhando na luz.
Com este anel, faço de você minha rainha. Soberania sobre meu reino, sobre os
elfos e sobre mim.
—Por favor —, eu sussurrei para o lobo. —Por favor. De minha livre
vontade, eu dei a mim mesma, inteira. Me leve de volta, mein Herr. Me leve de
volta.
Eu teria chamado o nome dele se soubesse disso. Mas ele não tinha nome,
apenas um título, e eu não sabia se ele poderia ou poderia me ouvir agora.
Embora o gelo margeasse os galhos de todas as árvores, de repente eu
estava quente e com tanto sono. A tentação de deitar minha cabeça me
dominou. Eu poderia fechar meus olhos e dormir para sempre, nun ca
acordando para o mundo que eu havia destruído.
—Elisabeth!
Eu conhecia essa voz. Eu me esforcei para levantar o meu olhar para
encontrar o dele, mas meus cílios estavam congelados. Eu estava cega.
—Elisabeth!
Braços me cercaram, me levantando do chão da floresta.
—Espere, minha querida, espere. — A voz murmurou no meu ouvido.
—De minha livre vontade —, eu resmunguei. —Eu dei a mim mesma,
inteira.
—Eu sei, minha querida. Eu sei. — Ele me segurava com força e calor -
calor verdadeiro - inundou através de mim. Não o falso calor de congelar até a
morte.
Abri os olhos para ver o Rei dos Elfos olhando para mim.
—Você aceita minha promessa? — Minha garganta estava rouca, mas
minha voz era firme.
—Eu aceito, Elisabeth, eu aceito. — Aqueles olhos incompatíveis estavam
acesos, brilhando com... lágrimas? Eu estendi a mão para afastá-las, mas minha
mão caiu ao meu lado.
E atrás dele, os céus clareavam, ficando azuis e sem nuvens, enquanto as
folhas que o coroavam voltavam ao verde. Meu último pensamento antes que
a inconsciência me reclamasse era que eu não sabia que Der Erlkönig poderia
chorar, e imaginei o que aquilo significava.
Decisão

Acordei gritando. Eu era criança de novo, de volta às escondidas com


Käthe, ouvindo nossos pais discutirem lá embaixo. Por dinheiro, por cima de
Josef, por cima de Constanze. Quando mamãe e papai não estavam se beijando
ou arrulhando um ao outro, estavam gritando.
—Como você pode deixar isso acontecer? — Os sons de destruição
quebraram o quarto. —Eu lhe disse para não deixá-la fora de sua vista!
Mais esmagamento, mais quebra. Abri os olhos para ver o Rei dos Elfos
furioso com Twig e Thistle, que se encolhiam a seus pés. Seus ouvidos foram
empurrados para trás e eles se arrastaram para frente, de mãos e joelhos,
fazendo reverência a seu rei.
—Saiam —, ele rosnou. Um vaso voou da lareira diretamente na cabeça
de Twig. —Saiam!
—Pare! — O vaso parou no ar. O Rei dos Elfos virou-se enquanto minhas
meninas elfo me encaravam de olhos arregalados.
—Deixe-as em paz —, eu disse. —Elas não fizeram nada de errado.
O vaso caiu no chão. —Você! — Seus olhos brilhavam, suas narinas
chamejavam e seu cabelo estava selvagem. Dois pontos brilhantes de vermelho
manchavam suas bochechas, uma cor alta e agitada. —Você - você -
—Vão. — Eu disse as minhas atendentes. Elas não precisaram ser
informadas duas vezes.
O Rei dos Elfos fez um som inarticulado de fúria e chutou uma pequena
mesa lateral. Ela caiu na lareira, enviando cinzas e brasas por toda parte. O Rei
dos Elfos arrastou a mesa lateral agora queimando para fora da lareira e jogou-
a no chão, pisando em pedaços. Ele era como uma criança em uma birra, os
punhos cerrados de raiva, o rosto cerrado de irritação.
Eu sabia que deveria me arrepender. Eu sabia que deveria estar contrita.
Mas eu não pude evitar; Eu ri.
O primeiro riso que me escapou quase me sufocou de surpresa. Eu não
ria a algum tempo e os músculos da felicidade e do humor não estavam
habituados a isso. Mas quanto mais eu ria, melhor me sentia, e me banhava em
minha alegria, uma fonte infinita e borbulhante.
—E o que, minha querida —, o Rei dos Elfos disse em tom ácido. —é tão
engraçado?
—Você —, eu ofeguei entre as respirações. —Você!
Ele estreitou os olhos. —Eu te divirto, Elisabeth?
Eu desmoronei na minha cama, de costas e no estômago espasmos com
um ataque de risos. Então a tempestade diminuiu e meu corpo não estava mais
destruído pelos soluços incontrolavelmente alegres de risos. Mas as
consequências deles passaram por minhas veias e me senti solta, flexível e
lânguida. Minha cabeça pairou sobre a borda do meu colchão, e eu olhei para
o Rei dos Elfos de cabeça para baixo.
—Sim, — eu disse. —Você me diverte.
—Estou feliz que um de nós ache o outro divertido —, ele fumegou. —
Porque eu estou indignado com você.
—Eu sei, e sinto muito —, eu disse. —Mas eu não me arrependo.
A verdade caiu entre nós como uma pedra, surpreendendo a nós dois. O
Rei dos Elfos ficou lívido, com uma cor cinza-acinzentada. Mas eu... eu estava
corada de vida e fervor novamente. Eu não precisava olhar para um espelho
para saber que o rosa havia retornado para minhas bochechas, ou que um
brilho havia retornado aos meus olhos. Eu podia sentir isso no canto do meu
sangue. Eu pus os pés no mundo acima... e retornei.
E o rei dos elfos estava com raiva. Seus ombros estavam arfando, os olhos
brilhando, os lábios apertados. Sentia sua fúria rolando em ondas, aquecendo
o ar entre nós. Ele uma vez disse que não podia mais sentir a intensidade da
emoção, mas eu sabia que a raiva fervia seu sangue, e ele se segurava firme
para contê-la. Minha respiração ficou mais rápida.
—O que, mein Herr —, eu disse. —você achava que eu diria o contrário?
Eu assisti as pupilas desses olhos incompatíveis se contraírem e
dilatarem. Seus dedos se curvaram em garras. O lobo dentro dele estava se
debatendo e tremendo para se soltar.
Venha, pensei. Venha e me pegue.
—Talvez eu tenha sido tolo o suficiente para pensar que as consequências
de suas ações teriam, pelo menos, lhe causado alguma preocupação.
Lembrei-me do céu voltando ao azul sem nuvens, as folhas ficando
verdes. Lembrei-me das lágrimas naqueles olhos pálidos enquanto o mundo
ao nosso redor retornava ao verão.
—Eu já condenei o mundo ao inverno eterno?
Eu podia ver a verdade na boca do Rei dos Elfos. Sua mandíbula apertou
e seus lábios se diluíram com o esforço de segurá-lo de volta.
—Não.
—Eu coloquei os habitantes do Submundo soltos no mundo?
Uma pausa furiosa. —Não.
—Então não houve nenhum dano.
Despreocupada, impertinente, insolente. O arsenal de flerte de uma
coquete, e eu fui imprudente com ela. Ele estava tão perto de quebrar, tão perto
de me agarrar pelos ombros e me punir. Eu queria isso. Eu queria a dor e o
prazer, e a lembrança de que eu ainda estava viva.
—Nenhum dano! — Ele pegou uma estátua da lareira e arremessou-a
contra a parede distante. —E se eu não tivesse ouvido você? E se eu não
pudesse te trazer de volta? E se... — Ele parou, mas ouvi o resto da frase,
pairando no ar entre nós.
E se você não quisesse voltar?
Eu me levantei da cama. A cada passo à frente, o Rei dos Elfos recuava,
mas quando eu estava com as costas contra a parede, ele não podia correr mais
longe de mim. Coloquei minhas mãos em seu peito, um leve toque, e levantei-
me na ponta dos pés para sussurrar em seu ouvido.
—Eu voltei —, eu murmurei. —De minha livre vontade.
Suas mãos saíram e me agarraram nos meus ombros, se fosse para me
empurrar para longe ou me puxar para perto, eu não tinha certeza. Seus dedos
cavaram a carne sobre meus braços.
—Nunca mais faça isso de novo. — Cada palavra era um dardo no meu
coração, deliberada e segura. —Nunca.
Senti tanto sua raiva quanto seu medo em seu aperto. Cada pedaço dele
estava tenso, equilibrado entre querer me colocar no meu lugar e querer me
deixar ir. Seus tremores percorreram todo o meu corpo, como se sua paixão
fosse o dedo que puxava a corda que nos conectava, reverberações e
ressonâncias se acumulando dentro de mim.
Então eu beijei ele.
O Rei dos Elfos ficou surpreso, mas eu peguei sua camisa e o puxei para
mais perto. Agarrei-me a ele como um homem que se afoga e se agarra a uma
tábua de salvação; ele era minha salvação. Ele retornou meu beijo com
desespero, de novo e de novo, cada um mais descuidado e áspero do que o
anterior. Seus braços se apertaram em torno de mim, suas mãos agarrando a
parte de trás do meu vestido, enquanto minhas próprias mãos encontravam a
bainha de sua camisa e as deslizavam contra sua pele nua.
Era como voltar para casa.
—Não —, ele sussurrou contra os meus lábios, feroz e urgente. —Não.
Não. Não.
Não me toque. Não me tente. Nunca tente sair do Submundo novamente. Eu
não entendia o que ele estava protestando, mas isso não importava. Éramos
dois gigantes em rota de colisão, e essa junção já fazia muito tempo.
—Eu não vou, eu não vou, eu não vou. — Eu disse, mas eu não sabia o
que eu estava prometendo. Eu não me importava. Minha carne saltava ao seu
toque, apagando todo pensamento consciente.
Ele emaranhou os dedos no meu cabelo, em seguida, me puxando para
longe de seus lábios. Eu lutei para beijá-lo novamente, mas seu aperto era forte.
Ele agarrou meu queixo com a outra mão, forçando-me a encontrar seu olhar.
Aqueles olhos. Tão pálido, tão surpreendente, tão diferente. Sua
respiração estava quente contra o meu rosto e nós nos encaramos. Fiquei
atordoada ao ver que estava olhando para o rosto do jovem austero, não para
Der Erlkönig, não para o lobo, e de repente entendi o que ele estava
implorando.
Não me deixe.
Um calor se espalhou do meu centro, transformando meus membros em
líquido. Mas quando esse calor chegou ao meu coração, se transformou em dor.
—Nunca. — Eu sussurei.
Na minha palavra, seus olhos se transformaram. Endurecendo-se em
joias, a máscara de Der Erlkönig retornou. Ele baixou a boca para a coluna do
meu pescoço, um leve toque de dentes, sua mão movendo-se para descansar
levemente contra a minha clavícula.
—Bom. — Ele rosnou.
E então, com um movimento rápido, ele rasgou o tecido do meu vestido
do pescoço para baixo.

Somos rudes e reverentes. Nós caímos na minha cama juntos, um


emaranhado de roupas rasgadas e membros expostos, um par de lobos
lutando.
Nossos corpos reagindo de novo, reaprendendo o toque do outro. Eu
seguro o Rei dos Elfos e ele é meu, familiar e novo de uma só vez.
—Não. — diz ele.
Não me deixe.
—Nunca. — Eu respiro.
Nós lutamos para encontrar um ritmo, um consenso, uma progressão,
mas nenhum de nós cede ao outro, ambos querendo tomar e tomar e tomar. Eu
mereço isso, eu mereço isso por anos, ele me privou de seu toque. Ele merece,
ele merece porque eu quase o abandonei, abandonei o Submundo, abandonei
o mundo. Estamos zangados, mas nossa raiva é como brincar, como cães
praticando para a caça.
O Rei dos Elfos sempre foi generoso comigo em nosso leito conjugal, mas
é só agora que eu entendo o quanto. Ele pressiona meus ombros para baixo, as
pernas prendendo meu torso e se inclina sobre mim, seu rosto perto. Sua
expressão é selvagem e feroz, sobrancelhas franzidas, a boca enrolada em um
grunhido. O jovem austero se foi; não haverá ninguém para me guiar pela
floresta agora.
Ele esmaga seus lábios nos meus, nossas línguas dançando, suas mãos
correndo sobre o meu corpo para descansar entre as minhas pernas. Eu o sinto
contra mim e tenso.
O Rei dos Elfos faz uma pausa. —Seu desejo é o meu comando. — Ele
murmura. Ele espera pela minha palavra.
Eu hesito e então aceno. —Sim —, eu sussurro. —Sim.
Eu ainda não estou pronta para a união, mas estou sem fôlego quando
ele se aproxima. Isso é mais do que plenitude, isso é satisfação. Eu levanto
minha cabeça até os céus. O céu está longe, mas as fadas de luz cintilam acima
de mim, estrelas em um firmamento que nunca verá a luz do dia.
E então nós tocamos juntos, nossos tempos combinando, um ritmo
compartilhado que fica mais selvagem e frenético. Eu não sou eu. Eu não sou
a Elisabeth. Eu não sou uma garota humana. Eu sou uma coisa selvagem, uma
criatura da floresta e da tempestade e da noite. Eu corro através de sonhos e
fantasias, através de todas as histórias da minha infância do sombrio e
estranho. Eu sou primordial, sou feita de música e magia e Der Erlkönig.
Eu estou perdida.
Aos poucos, volto a mim mesma, pouco a pouco, parte do corpo pela
parte do corpo, sentido pelo sentido. Primeiro meus pés. Então minhas mãos.
Então meu corpo, coberto com o calor dele. A cor retorna ao mundo, o sabor
do sangue onde eu inadvertidamente mordi meu lábio. Visão, toque, paladar
e cheiro. Eu espero pelo som se juntar a mim, mas enquanto os momentos
passam, eu não ouço nada além do barulho do meu coração.
Pouco a pouco, eles vão levar sua visão, seu cheiro, seu gosto, seu toque; uma
festa lenta.
O medo me agarra.
O Rei dos Elfos me sente em pânico e se abaixa para acariciar meu rosto.
Eu chego para tocar meu nariz e minha mão sai com vermelho. Uma
hemorragia nasal.
Eu sinto o horror que corre para cima e para baixo no comprimento dele
um segundo antes de ele se afastar.
Elisabeth? Eu vejo a boca do Rei dos Elfos formar as sílabas do meu nome,
mas não consigo ouvi-lo.
Elisabeth!
Ele grita algo mais, mas não consigo mais entendê-lo. Palavras se
confundem em um zumbido abafado ininteligível e, com um arrepio, as
palavras de Thistle voltam para mim:
Você acha que seu coração pulsante é o maior presente que você poderia dar?
Não, mortal, seu batimento cardíaco é o menor e o último.
O Rei dos Elfos grita algo de novo, e em um instante, minhas meninas
elfo aparecem.
Não, não isso. Não. Eu voltei do mundo acima. Minha irmã ainda se
lembrava de mim. Meu irmão ainda dizia meu nome. Enquanto Twig e Thistle
se agitam sobre mim, eu seguro o olhar do Rei dos Elfos, procurando por
respostas, sabendo que ele não pode me dar as que eu quero ouvir, porque eu
não consigo ouvir nada.
Justiça

Em algum lugar ao longe, um violino cantava uma canção de pesar,


arrependimento e pedido de desculpas.
—Josef? — Eu murmurei, mexendo em um sonho.
Mas não era meu irmão mais novo. Eu não ouvia a clareza característica
de Josef na música; em vez disso, ouvi uma espécie de pesar de tristeza, as
notas lacradas com anos - séculos, talvez - de perda.
Era o rei dos elfos.
Eu ofeguei e sentei na minha cama. Memórias do que se passou entre nós
retornaram em um lampejo de calor, misturado com o terror arrepiante das
consequências. Estremeci e toquei meus ouvidos, ouvindo, esperando,
temendo.
—Ela está acordada.
Essa foi a voz de Thistle. Eu me virei para ver minhas garotas elfo ao meu
lado, me observando com olhos negros e chatos. Eu pude ouvir novamente.
Alívio me inundou, ameaçando me submergir sob uma onda de lágrimas. Eu
não perdi isso. Ainda não. Eu ainda tinha visão, cheiro, senso e som. Eu tirei
minhas cobertas e me levantei da cama. Eu queria correr para o aposento,
queria pressionar meus dedos no klavier, queria me divertir com a música que
eu achava que tinha perdido.
—Espere, Alteza, espere! — Twig agarrou para mim, mas eu corri para
fora de seu alcance. —Você precisa descansar.
Meus membros ainda estavam trêmulos e eu tremia como se estivesse
me recuperando de um surto de doença, mas não me importei. Música se
agitava e se agitava dentro de mim, empurrando meus poros, meus olhos,
meus dedos, e eu precisava tirá-la, tirá-la ou explodir.
No aposento, vi que Twig e Thistle tinham tirado a Sonata da Noite de
Núpcias do bolso do avental e a colocaram de volta no klavier, mas eu não
estava com disposição para escrever. Tudo era uma bagunça ingovernável e
caótica dentro de mim, menos música do que uma cacofonia de som. Sentei-
me no banco e empurrei, bati e toquei o klavier, despejando no instrumento
meu alívio, raiva, surpresa e alegria. Eu improvisei, eu massacrei, eu lamentei.
Eu cedi à tempestade de emoções dentro de mim até a tempestade passar.
Na calma que se seguiu, um violino respondeu.
Eu sinto muito, Elisabeth.
Eu entendi o pedido de desculpas do Rei dos Elfos tão claramente quanto
se ele tivesse falado as palavras antes de mim. A música sempre foi a
linguagem que compartilhamos, uma linguagem de amor, de riso, de
lamentação. Deixei-o tocar, tocar e tocar até que por fim pus as mãos no teclado
e toquei minha compaixão.
Eu te agradeço, eu te perdoo. Eu te agradeço, eu te perdoo.
Mas o violino cantava sobre a minha absolvição, um ostinato de culpa e
vergonha. Tentei me juntar a ele na música, encontrar um acompanhamento,
um baixo contínuo, mas o Rei dos Elfos continuava mudando o ritmo, a nota,
a fórmula do tempo, a variação e a variação do remorso.
Eu sou um monstro. Eu sou um monstro. Eu sou um monstro.
Continuava e continuava, e eu não consegui falar nada.
—Traga-o —, ordenei a Thistle, que estava distraidamente rasgando uma
pilha de papéis sujos descartados. —Busque Der Erlkönig...
Ela fez uma careta, mas fez o que eu pedi. Mas quando ela voltou, ela
voltou sozinha.
—Onde ele está?
Pela primeira vez, achei ter detectado um tom de timidez em relação à
expressão de Thistle. Ela murmurou uma desculpa.
—Sua Majestade não virá. — Disse Thistle.
Eu sabia que o Rei dos Elfos não estava ligado à minha vontade como as
minhas elfos, mas mandei Twig buscá-lo, na esperança de que o mais gentil
das minhas duas atendentes pudesse convencê-lo. Mas ela também voltou
sozinha.
—O que, o Der Erlkönig está com vergonha de me encarar? — Perguntei.
—Eu preferiria que ele fizesse suas desculpas para minha pessoa do que
através de seu violino.
—Ele está na capela, Vossa Alteza. — Disse Twig.
—Nós não o perturbamos quando ele está em oração. — Acrescentou
Thistle.
Eu olhei para elas, espantada. —O que? Certamente vocês elfos não dão
dois figos para o seu Deus?
Thistle cruzou os braços. —Nós não.
—Não penetramos em espaços sagrados —, disse Twig. —Uma cortesia
que os mortais nunca nos deram. Respeitamos as antigas leis, mas, no mínimo,
respeitamos a fé de Sua Majestade, pois quem somos nós para negar o estranho
e o desconhecido?
Isso me surpreendeu. Em todos os contos de Constanze, os elfos não
tinham honra nem moral, rápidos para mentir, roubar e trapacear para
conseguir o que queriam. Mas quem era eu para questionar as velhas leis?
—Tudo bem então —, eu disse. —Eu privaria sua voz. Me traga o violino
dele.
Minhas meninas elfo trocaram olhares. Seria um comando inútil.
Eu fiz um barulho de desgosto. —Tudo certo. Deixe-me em paz e eu vou
chamá-lo de outra maneira.
Twig e Thistle trocaram outro olhar e se desvaneceram.
Eu esperei.
Esperei que o Rei dos Elfos terminasse, para que a culpa secasse. Esperei
que o violino se calasse para que eu pudesse responder.
Organizei meus trabalhos e comecei a trabalhar no segundo movimento
da Sonata da Noite de Núpcias, o adágio.
Você é o monstro que eu reivindico, mein Herr.
Através dos grandes espelhos que revestem a sala de descanso, observei
o rio atravessar Salzburgo, deixando o clima servir de inspiração. Ouvi os
delicados pizzicatos de um violino, gotículas de gelo se derretendo na
primavera e no verão. Abaixo disso, a murmuração sussurrante de um riacho
que flui. Arpejos no fortepiano. Eu fiz anotações no papel na minha frente. A
nota ainda não havia se resolvido em minha mente, mas achei que poderia ser
menor.
Eu modulei os arpejos para cima e para baixo, não com qualquer
propósito, apenas para tocar com o som até ouvir algo que me surpreendia.
Nada, então comecei a expandir os arpejos. Melhor. Alguma cor cromática.
Havia tensão construindo lá embaixo das notas. Eu gostei. Eu reconheci isso.
Era o peso insuportável do desejo.
Não deixei espaço para o Rei dos Elfos responder.
O primeiro movimento foi sobre raiva e impotência. O tema frustrava, a
melodia alcançava e nunca resolvia seu potencial até o fim. O segundo
movimento seria sobre perda e sobre sonhos fora de alcance. O mundo acima.
Meu corpo. O corpo dele. A pulsação do desejo batendo por baixo de tudo,
casando esses dois movimentos juntos.
Fiz anotações para revisar o allegro com esses novos pensamentos.
Mais suave. Gentil. O ritmo mais lento do adágio se prestava a um ar
mais meditativo e melancólico, mas eu não queria complacência e resignação.
Não, eu queria que a melodia o perturbasse, mesmo que isso o seduzisse e
tentasse. Notas crescentes, uma pausa e resolução. Modulando mais alto. O
mesmo padrão, uma pausa e resolução. Eu pensei nas mãos do Rei dos Elfos,
deslizando sobre a minha pele. Uma pausa carregada, depois um aperto
doloroso. De novo e de novo. Deixando sua marca na minha pessoa. Eu fiz
minhas marcas no papel.
Eu me inclinei nas notas, meu corpo empurrando e puxando com a
música. Fechei meus olhos e imaginei o Rei dos Elfos parado atrás de mim,
suas mãos descansando sobre meus ombros. Décimas sextas notas em escala
cromática. Essas mesmas mãos, dedos espalmados, descendo pela minha
garganta até a clavícula, descendo pelos meus ombros, descendo pelo decote.
Notas cadentes, oitavas mais lentas. Eu soltei um suspiro.
Houve um eco daquele suspiro no quarto.
Deixe o Rei dos Elfos me ouvir agora. Deixe-o ouvir minha frustração e
perdão.
Enquanto tocava, enquanto compus, esperei. Eu esperei pelo toque suave
de uma mão contra o meu cabelo, o sussurro de uma respiração no meu
pescoço. Esperei que a sombra dele caísse através das teclas, para que as
lágrimas caíssem no meu ombro. Esperei, esperei e esperei até que o sol
nascesse, até que a escuridão desapareceu para mostrar que o Rei dos Elfos
nunca estivera lá.

Não funcionou. Eu estava tão certa - tão certa - que minha música, a
música que ele tanto queria de mim, seria suficiente para tirar o Rei dos Elfos
de sua culpa. Mas enquanto os minutos, as horas, os dias passavam, meu
marido mantinha distância. Ele não me tocava, não falava comigo, não olhava
para mim desde o nosso encontro desastroso depois que ele me trouxe de volta
do mundo acima.
Eu sentia falta dele.
Sentia falta das nossas conversas perto do fogo, quando ele lia em voz
alta os escritos de Erasmus, Kepler e Copérnico, quando deixava de lado minha
autoconsciência e executava para ele as obras de poesia ocasional que havia
aprendido. Eu sentia falta dos nossos jogos infantis de Verdade ou Desafio,
seus truques com as mãos e gracejos. Sentia falta de trabalhar com ele em nossa
Sonata da Noite de Núpcias, mas, acima de tudo, sentia falta do sorriso dele,
de seus olhos desiguais e daqueles dedos longos e elegantes que trabalhavam
com música e magia.
Bem, se o Rei dos Elfos não aparecesse comigo, eu o arrastaria para fora
de mim mesmo.
O segundo movimento da Sonata da Noite de Núpcias estava quase
terminado, e não tinha nada da voz do Rei dos Elfos dentro dela. Eu abaixei
minha pena.
—Thistle. — Eu disse ao ar que esperava.
A garota elfo se materializou diante de mim.
—O que você quer agora, Rainha Elfo? — Ela zombou.
—Onde está Der Erlkönig? — Perguntei.
—Na capela. Como é costume dele hoje em dia.
—Me guie até ele.
Thistle levantou uma sobrancelha, ou ela teria, se ela tivesse sobrancelhas
em tudo. —Você é mais corajosa do que eu contava, mortal, para interromper
Sua Majestade durante suas devoções.
Dei de ombros. —Eu acredito no perdão interminável de Deus.
—Não é o perdão do seu Deus que você precisa.
No entanto, Thistle concordou - depois que eu quisesse - de me guiar até
a capela para recuperar o violino do Rei dos Elfos. Thistle me deixou na entrada
e desapareceu assim que a soltei.
A capela estava vazia.
Eu estava furiosa com a minha garota elfo, me repreendendo por me
permitir ser enganada por seus truques. Eu deveria ter perguntado a Twig. Eu
me virei para sair, mas não antes de um violino antes do altar me chamar a
atenção.
O violino do Rei dos Elfos.
Eu caminhei até o corredor para recuperá-lo, para tirar sua voz e sua
culpa. Acima, os vitrais brilhavam com uma luz sobrenatural. Não havia
bancos ou assentos no espaço; afinal, não havia padre para realizar um serviço,
nem paroquianos para participar. Um crucifixo simples de madeira estava
pendurado acima do altar, e na capela-mor repousava o violino do Rei dos
Elfos em uma pequena mesa.
Assim que minhas mãos tocaram sua madeira quente e envelhecida, um
suspiro ecoou ao meu redor.
Eu quase deixei cair o violino de surpresa. Eu me virei, mas não havia
ninguém lá.
—Eu não sei se Tu estás aí, meu Senhor, mas eu estou aqui, vem mais
uma vez, ajoelhado e pedindo perdão. Pedindo orientação. Eu estou tão longe
de Ti e Tua graça no Submundo, mas ainda assim anseio por Tua presença.
A voz veio de um dos nichos do corredor, espaços devocionais onde se
pode acender uma vela para a oração. Entrei na ponta dos pés na direção da
esquerda, da qual emanava a voz.
O Rei dos Elfos estava ajoelhado em uma pequena mesa, a cabeça
inclinada diante de uma pequena imagem dourada de Cristo. Várias velas
queimavam ao lado dele, iluminando o rosto de Nosso Senhor com um suave
brilho dourado.
—Com o passar dos anos, alguém pensaria que o imortal se acostumaria
à morte. Afinal, todo mundo murcha e desaparece. Para alguém como eu, é
apenas um fato da existência. Os mortais se perguntam sobre a passagem do
verão para o outono? Do outono para o inverno? Não, eles confiam que o
mundo voltará e a vida e o calor voltarão. E ainda…
O Rei dos Elfos levantou a cabeça. Eu me pressionei contra a parede de
pedra, escondida da vista.
—E ainda sinto profundamente o frio amargo de cada inverno. O
congelamento da morte nunca diminui sua terrível picada. Eu assisti muitas
das minhas noivas florescerem e desaparecerem, mas...
Sua voz vacilou.
Eu não deveria estar aqui. Eu deveria deixar o Rei dos Elfos em suas
confissões privadas. Eu me virei para ir embora.
—Mas Elisabeth...
Eu parei.
—Elisabeth não é como as flores que vieram antes. Sua beleza é
passageira, transitória. Aprende-se a admirá-la enquanto dura, pois serão
cinzas amanhã. Assim que as pétalas se tornaram castanhas, eu as varrerei para
longe.
Meus ouvidos não foram feitos para ouvir sua alma derramada diante de
Deus. No entanto, não conseguia me mexer. Não queria se mover.
—Eles me chamariam de cruel, suponho. Ela me chamaria de cruel. Mas
ser cruel, frio e distante era a única maneira que eu sabia como sobreviver. —
Ele riu, mas era mais uma zombaria do que uma risada. —Por que um imortal
precisa se preocupar com a sobrevivência? Meu Deus, todo dia é uma luta para
sobreviver.
Sua voz caiu em cadências mais suaves, mais reminiscências do que
súplicas.
—Minha vida, minha própria existência, é uma tortura sem fim. Fiz uma
barganha com o diabo e estou no inferno. É algo que eu nunca entendi, não até
me tornar rei deste lugar maldito. Eu estava com tanto medo de morrer que
aproveitei a chance - qualquer chance - de escapar de sua escuridão profunda.
Que idiota eu era. Que idiota eu sou.
Ele abaixou a cabeça novamente.
—Raiva, angústia, alegria, desejo, não senti adequadamente essas
emoções em muito tempo. Especialmente alegria. De todos eles, a raiva era a
mais fácil de sentir - a amargura e o desespero foram meus companheiros
constantes durante séculos. Mas apesar de tudo, ainda anseio por
profundidade. Por intensidade. Apesar dos anos, não esqueci a centelha e a
queimadura. Anseio por sentir isso de novo, mesmo que o tempo e a
eternidade tenham me acostumado ao frescor.
Eu agarrei seu violino ao meu peito, desejando poder ir até ele, desejando
poder levá-lo em meus braços e dar-lhe conforto.
—Eu desisti de tentar há muito tempo. Cada uma das minhas noivas veio
a mim disposta a morrer; suas vidas no mundo acima já haviam terminado.
Todos elas queriam uma última chance para sentir de novo e eu lhes dei isso.
Eu lhes dei lágrimas, dei-lhes prazer, mas acima de tudo, dei-lhes catarse. Elas
me usaram tanto quanto eu as usei, e uma vez que elas foram embora, eu
odiava todas elas por me deixarem para trás. Deixando-me a suportar sozinho,
até a próxima vir. Mas Elisabeth...
Eu segurei minha respiração.
—Ela nunca foi uma flor de estufa. Ela é uma árvore robusta de carvalho.
Se as folhas dela caírem, ela florescerá novamente na primavera. Ela não estava
pronta para morrer quando ela deu sua vida para mim. Mas ela fez assim
mesmo porque amava e amava profundamente.
Lágrimas escaldavam meus cílios inferiores.
—Eu sei o que você me diria. Eu deveria ter feito a coisa maior - a coisa
divina - e a devolver ao mundo acima. — Um nó na garganta. —Mas eu era
egoísta.
De repente, a transgressão do que eu estava fazendo me superou. Eu
viera privar o Rei dos Elfos de sua voz, apenas para perceber que talvez fosse
eu quem deveria estar ouvindo.
—Eu sei o que significa amar, meu senhor. Foi você quem me ensinou
como. Tu me mostraste através de Tuas palavras e da tua morte, mas eu não
entendia o significado do sacrifício até agora. Amar é ser altruísta. Deixe-me
ser altruísta. Empresta-me força, meu Senhor, pois precisarei disso nas
provações que estão por vir.
O som suave de chorar, os ecos de que eu tentei o meu melhor para
reprimir.
—Em teu nome eu oro, amém.
Esteja, tu, comigo

De volta ao aposento, estudei o violino diante de mim. Era bastante


simples, desprovido de ornamentação, mas feito de uma bela e rica madeira,
manchado de um âmbar escuro. O instrumento era claramente bastante antigo,
a barriga estava tênue e riscada com a idade e o desgaste, embora parecesse
que o braço, a pestana e a voluta haviam sido substituídas mais recentemente.
Pensei na voluta pintada com o retrato do jovem austero na galeria, a mulher
cujo rosto estava contorcido de dor ou prazer. Parecia familiar. Eu me
perguntei o que aconteceu com isso.
Eu levantei o violino do suporte. Era um instrumento, como inúmeros
outros que eu havia aprendido e tocado ao longo dos anos, mas ainda assim
havia uma qualidade de vida viva. A madeira estava quente embaixo da minha
mão e, assim como a flauta que o Rei dos Elfos me deu há tanto tempo, era um
toque que pareceu voltar. Como segurar a mão de alguém. Como segurar a
mão do Rei dos Elfos.
Eu não deveria ter tomado.
Amar é ser altruísta.
Eu não deveria ter ouvido essas palavras. Não tinha sido nem o tempo
nem o lugar. O Rei dos Elfos e eu merecemos encarar um ao outro quando
desistimos de nossas revelações mais íntimas, e eu havia roubado isso de nós.
Arrependimento rolou através de mim.
Mea culpa, mein Herr. Mea maxima culpa.
Eu enfiei o violino debaixo do meu queixo, inalando o leve cheiro de
resina. Traços fracos de um perfume mais terroso e almiscarado estavam
entranhados na madeira. O cheiro de gelo se curvando sobre as bordas do lago,
o coração amadeirado de uma fogueira. O cheiro do Rei dos Elfos.
Eu afinei as cordas primeiro, mas o violino tinha sido tocado
recentemente o suficiente para que fosse necessário pouco ajuste. Eu pratiquei
algumas escalas e exercícios, correndo meus dedos para cima e para baixo nas
cordas, me familiarizando com a sensação disso. Cada violino era diferente de
seu irmão da maneira mais sutil e pequena, mesmo que os ossos fossem os
mesmos. Este violino era mais antigo do que os que tínhamos na estalagem -
qualquer um dos que nos restavam. O ângulo do pescoço ao corpo era
diferente, assim como o comprimento do braço. O som estava mais cheio e
profundo enquanto eu corria o arco sobre suas cordas.
Minhas mãos não tocaram um violino desde o Baile dos Elfos, quando
me juntei aos músicos tocando o minueto, quando eu permiti que aquela
semente de música dentro de mim quebrasse e emergisse. Meu instrumento,
por necessidade e não por escolha, tinha sido o klavier. Primeiro porque eu
precisava acompanhar Josef, e segundo porque o piano era o lugar mais fácil
para visualizar minha música. Mas o violino foi o primeiro instrumento que
aprendi e, portanto, o primeiro instrumento que amei. Embora não tenha
cantado em minhas mãos como no meu irmão, ou mesmo nas do Rei dos Elfos,
eu sabia como manipular suas cordas.
Vibrações corriam ao longo do ventre do violino e ao longo do meu
queixo, onde ele descansava contra o instrumento. Fechei os olhos, sentindo a
ressonância cantar dentro da minha cabeça. Uma vez aquecido, deixei meus
dedos fazerem o que desejavam - o começo de algumas chaconas, frases de
sonatas que eu sempre gostei de tocar, corridas de dezesseis notas e trinados.
Mas fazia anos desde a última vez que toquei com qualquer intenção
séria, anos desde que eu havia praticado. Meus dedos se emaranharam, a
disciplina se afastou deles. Eu não conseguia mais manter meus tempos
consistentes, nem poderia me lembrar de uma peça inteira do começo ao fim.
Mas não havia necessidade de provar virtuosidade para mim mesma, não
mais. Então eu escolhi uma ária simples, uma que a mãe costumava cantar
enquanto ela trabalhava na pousada.
Esteja você comigo.
Eu ouvi ele respirando.
Então vou com alegria, para a morte e para o meu descanso.
Fazia tanto tempo desde que a sua presença passou pela minha mente
que eu soube no instante em que o Rei dos Elfos estava por perto.
Oh, quão feliz seria o meu fim, se forem suas mãos queridas, fecharei finalmente
meus fiéis olhos.
O engate de uma respiração entrecortada. Eu abri meus olhos, mas não
havia ninguém lá. Mas eu senti seus olhos em cima de mim de qualquer
maneira, leves e invisíveis, gentis dedos traçando a linha do meu pescoço e
braço enquanto segurava o violino. Senti seu toque no braço do arco,
segurando gentilmente meu cotovelo enquanto movia-o para frente e para trás
através das cordas em um arco suave e contínuo.
—Esteja, tu, comigo. — Eu disse, ainda brincando. Um convite.
—Eu estou aqui, Elisabeth.
O arco vacilou e eu larguei meus braços. E das sombras apareceu um
jovem austero.
O Rei dos Elfos aparecera diante de mim em muitas formas antes - um
estranho alto e elegante, um pobre pastorzinho, um rei pavão -, mas eu nunca
tinha visto a juventude no retrato até agora. O preto de sua túnica provocava
a palidez de sua pele, tornando sua tez prateada e seu cabelo dourado e branco.
Não havia ornamentos nas mangas ou na gola, a não ser por uma pequena cruz
de madeira em sua garganta, e havia algo do padre em torno dele: simples e
bonito.
—Você chama e eu respondo. — Ele disse.
Eu abaixei o violino e o arco e estendi meus braços. —Você vem e eu te
dou as boas vindas, mein Herr.
Não havia mais nada que precisasse ser dito.
Entramos no abraço um do outro. Ficamos assim por um longo tempo,
permitindo-nos ajustar ao ritmo das respirações um do outro, para reaprender
as formas e curvas do outro.
Eu não sabia até aquele momento como meus braços estavam vazios. Ele
tinha vivido em minha mente por tanto tempo; agora eu queria ter mais do que
apenas a ideia dele. Eu queria segurá-lo.
—Oh, Elisabeth —, ele disse no meu cabelo. —Eu estou com medo.
Ele estava tremendo, tremendo e tremendo como uma folha em uma
tempestade.
—Do que você tem medo? —, Perguntei.
Ele riu, um oscilante incerto. —Você —, disse ele. —Condenação. Meu
coração.
Seu coração. Ele batia embaixo da minha bochecha, rápido e inseguro.
—Eu sei —, eu murmurei em seu peito. —Eu também estou com medo.
Uma confissão, a primeira admissão de fraqueza que eu já tinha dado a
ele. Eu senti a percepção por todo o corpo dele. Eu lhe dera minha mão, minha
música, meu corpo, mas a única coisa que eu não lhe dera era minha confiança.
Eu havia transgredido contra ele na capela. Deixe-o transgredir contra mim
agora.
Ele me beijou.
Não era como os outros que compartilhamos. Sem paixão, sem frenesi, e
entendi que cada vez que nos beijávamos antes não era um presente; era roubo.
Nós havíamos roubado um ao outro, exigindo algo do outro sem pensar em
dar.
—Elisabeth —, disse ele contra meus lábios. —Eu fiz muito mal a você.
—Não. — Eu balancei a cabeça. —Eu quebrei minha promessa. Eu te dei
minha música, mas retive minha confiança.
E isso era verdade. Eu lhe dera tudo, menos a única coisa de que ele
realmente precisava: não minha mão em casamento, nem meu corpo em sua
cama, nem mesmo minha música. Eu deveria ter confiado no Rei dos Elfos
quando eu era uma garotinha tocando sua música para ele na floresta. Eu
deveria ter confiado nele as consequências da minha escolha de me tornar sua
noiva. Eu deveria ter confiado nele quando ele tentou me devolver para mim
mesmo.
—Oh, Elisabeth —, o Rei dos Elfos disse suavemente. Seus olhos estavam
brilhantes, vívidos e intensos. —Sua confiança é uma coisa linda. Deixe-me dar
a minha em troca.
Ele caiu de joelhos.
Confusa, tentei trazê-lo de volta a seus pés, mas ele passou os braços em
volta da minha cintura em resposta.
—Mein Herr, o que...
—Esteja você comigo —, ele murmurou. —Que bom seria o meu fim —
Ergueu os olhos para os meus. —se forem suas mãos queridas em que
recomendo minha alma.
Aqueles olhos incompatíveis estavam claros como um poço, e eu podia
ver até o garoto que ele tinha sido. O garoto que ele poderia ter sido, antes de
ter sido transformado e consumido por um lobo na floresta. Antes ele se tornar
Der Erlkönig. Minhas mãos e membros tremiam e me sentei no banco.
—Elisabeth —, disse ele. —Você se entregou a mim, inteira. Deixe-me
fazer o mesmo. Deixe-me voltar para você.
Ele abaixou a cabeça para dar um beijo suave no meu joelho. E então
comecei a entender.
—Você iria... você teria me levado para o escuro? Na selvageria?
—Sim —, ele sussurrou. Eu senti cada vibração de sua voz, cada
movimento de seus lábios contra a minha perna. —Sim.
Eu hesitei. —Eu... eu não sei o caminho.
Eu senti o Rei dos Elfos sorrir. —Eu confio em você.
Confiar. Eu tinha coragem de fazer isso? Eu poderia suportar seu peso?
Eu era a Rainha dos Elfos, mas também era apenas uma garota. Apenas
Elisabeth.
Mas eu também não era uma valente donzela?
Engoli. —Tudo bem —, eu disse, acariciando seus cabelos e empurrando-
o para longe de seu rosto. —Como quiser.
—Como quiser.
O Rei dos Elfos inclina a cabeça com gratidão, com reverência e
submissão. Eu enrosquei meus dedos na luxuriante espessura do seu cabelo,
tentando levantar a cabeça e encontrar meus olhos. —Olhe para mim. — Eu
sussurro.
Nós mantemos o olhar um do outro por um longo momento. A nudez
em sua expressão me torna terna e nervosa ao mesmo tempo, a confiança em
seu rosto se misturando com uma apreensão de espera. Ele entregou todo o
poder, e é só agora que entendo que ele se rendeu a mim há muito tempo.
Quando eu ofereci minha vida pela minha irmã. Quando eu ofereci minha
música para ele. Quando eu me ofereci, inteira. Ele esteve na minha servidão
por mais tempo do que eu me lembro, e a percepção disso me deixa ofegante.
Eu poderia machucá-lo; Eu não sei se eu poderia suportar machucá-lo.
Seu coração está ao meu alcance. Sempre esteve.
Seu coração e confiança estão em minhas mãos. Eu sei o que quero, mas
o que eu quero traz um rubor à minha pele. Meu coração martela no meu peito,
meu sangue canta em meus ouvidos e minha respiração vem rápida e forte. Eu
me esforço pelo controle, por um semblante implacável.
—Você vai... você vai fazer tudo o que eu peço? — Meu controle sobre a
minha voz está incompleto. Ela treme e arrepia. —Sem protestar, sem
questionar e… sem rir?
Ele balança a cabeça, seu sorriso gentil. —Sim, minha rainha. — Seus
olhos estão firmes no meu rosto. —Seu desejo é uma ordem.
Uma risada nervosa rasteja pela minha garganta, mas eu engulo,
suprimo. A Rainha dos Elfos não pede prazer; ela exige isso. Mas eu não sou
apenas a Rainha dos Elfos. Eu também sou Liesl, Elisabeth, uma menina - não,
mulher - que anseia por nada mais do que pelo homem a seus pés para tocá-
la, para tirar a responsabilidade de suas mãos. Ela não sabe o que fazer com a
confiança dele.
Lentamente, timidamente, desfaço os laços do meu roupão. O Rei dos
Elfos observa cada movimento das minhas mãos com foco intenso. Eu não
posso controlar o rubor que se espalha do meu peito pelo meu corpo, mas
minhas mãos estão firmes e seguras. Seus olhos estão fixos em mim e eu resisto
à vontade de me cobrir.
Ele espera em cada palavra minha, e um pouco de segurança, pouco a
pouco, começa a me encher como um poço.
—Fique em pé. — Eu digo.
Ele concorda.
—Dispa-se.
O Rei dos Elfos ergue as sobrancelhas, surpreso.
—Por favor.
Lentamente, ele levanta a mão para desfazer os botões de sua camisa. Ele
está informalmente vestido - sem colete, sem calças de seda, apenas uma
simples camisa e calças. No entanto, leva séculos para o Rei dos Elfos se revelar
para mim. Eu seguro minha respiração; Eu não tinha percebido o quanto eu
desejava poder vê-lo - todo ele - desobstruído e descoberto. Nenhum
vislumbre furtivo durante as reuniões acidentais em seu quarto de dormir,
nenhum pedaço de carne entre calças desamarradas e blusas desabotoadas,
apenas pele - pele inteira - uma extensão grande e nua.
Ele tira a camisa. O músculo magro cobre seu tronco, e noto uma cicatriz
cortando ao lado esquerdo de seu peito. É pequena, fina, prateada e brilha à
luz suave da lareira da sala de descanso. Ele é magro, muito mais magro do
que os companheiros de trabalho sólidos da minha juventude. A lembrança de
Hans volta para mim: espessa, encorpada e musculosa. Quando menina, eu
achava que seu físico era o auge da masculinidade. O pináculo da força. Mas o
Rei dos Elfos desmente tudo isso, quase feminino em sua elegância e graça.
Mas não há nada delicado sobre ele, não há suavidade em sua barriga e braços.
As sombras brincam sobre ele, esculpindo as formas e contornos de seu corpo
em uma obra de arte.
Seus olhos encontram os meus. O jovem austero olha para mim com uma
pergunta em seu olhar.
—Sim —, eu digo, mas mal sei o que estou lhe dando permissão. —Sim,
você pode.
Ele respira em um longo suspiro. Aqueles olhos, em dois tons e
sobrenatural, estão livres das cargas que carregaram por tanto tempo. O fardo
da imortalidade. O fardo da indiferença sem fim. Ele os abandonou para mim.
Ele sorri.
Eu entendo então que a confiança que ele me deu é poder. Não é só a
Rainha Elfo que tem a capacidade de dobrar a vontade dos que a rodeiam; sou
eu. Elisabeth, inteira. —Venha aqui —, digo finalmente, estendendo a mão. —
Venha e siga-me para a luz.
Ele pega minha mão e eu o guio em direção ao meu quarto de dormir.
Então eu o pego em meus braços e caímos juntos.
Nós mentimos assim por um momento. Eu não sou mais a Rainha Elfo
dele; Eu sou Elisabeth, mortal, humana, quente. Ele não é mais meu Rei dos
Elfos; ele é meu marido, o homem por trás da máscara do mito. Toda a
pretensão desaparece e nos encaramos, nus na mente e carne e alma.
Eu beijo ele. Ele me beija de volta. É uma dança exploratória de lábios e
língua, uma linguagem que estamos aprendendo juntos. Há uma fome dentro
de mim que ainda anseia por ser preenchida, para ser preenchida com ele, mas
por enquanto, eu me alegro com a doçura que é isto: este momento, esta
comunhão.
E nós somos os que conhecemos.
Desta vez, eu não o deixo. Eu estou totalmente no meu corpo quando
meu senso de auto desmorona. Minha mente está limpa. Tábua rasa. Ele
reescreveu quem eu sou até o núcleo. É uma longa revelação onde eu me reúno
novamente.
Mal me dou conta do Rei dos Elfos sussurrando meu nome
repetidamente, um mantra, rosário, uma oração em seus lábios.
—Elisabeth —, diz ele. —Elisabeth, Elisabeth, Elisabeth.
—Sim. — Eu respondo. Eu estou aqui. Eu estou aqui finalmente.
Eu sou o ritmo, ele é a melodia. Eu forneço o baixo contínuo, ele a
improvisação.
—Sim —, eu sussurro em seu ouvido. —Sim.
Quando ele volta para mim, nós nos deitamos lá, nossos peitos subindo
e descendo com nossas respirações, mais devagar e mais lenta, enquanto
nossos batimentos cardíacos se acalmam, e as marés de nosso sangue se
retiram. A lassitude me alcança, uma profunda quietude irradiando de todas
as partes de mim. Ele se mexe e eu estou aninhada na curva de seu ombro,
esfregando meu nariz contra o pelo de seu peito, surpreendentemente suave.
Não dizemos nada e me sinto à deriva para dormir, uma descida
inevitável e inexorável nos sonhos. Mas pouco antes de desaparecer da
consciência, ouço quatro palavras que são a minha ruína.
—Eu te amo, Elisabeth.
Eu o seguro mais apertado para mim, mesmo quando meu coração se
desfaz.
—Por Deus, eu te amo tanto.
O conto das donzelas amigáveis

—Conte-me uma história. — Eu disse.


O Rei dos Elfos e eu nos deitamos nos braços um do outro, aninhados no
coração um do outro. Seus dedos levemente acariciavam a carne do meu braço,
correndo sobre a colina do meu ombro e descendo o vale entre meus seios.
—Hmm?
—Conte-me uma história. — Repeti.
—Que tipo de história?
—Uma história para dormir. E que tenha um final feliz.
Eu senti a risada rolar através dele. —Há uma em particular que você
deseja ouvir?
Eu parei. —Você sabe —, eu disse em voz baixa. —o verdadeiro conto da
valente donzela?
Demorou muito até ele responder. —Sim —, disse ele. —Eu conheço o
verdadeiro conto da valente donzela. Mas eu só conheço isso como um conto
de fadas, a história reunida a partir de fragmentos de memória, ambos
aprendidos e herdados.
—A história não é sua?
Uma batida. —Não.
—A história não pertence a Der Erlkönig?
—A história pertence a Der Erlkönig —, respondeu o Rei dos Elfos, —
mas não a mim.
Mas não a mim. Foi a primeira vez que ele traçou um delineamento tão
claro entre ele e Der Erlkönig. Entre o homem que ele tinha sido e o mito que
ele havia se tornado.
Eu o segurei mais apertado, acariciando contra o seu batimento cardíaco.
Eu fingi que era mortal, que pulsava no tempo com o meu. Seus segundos eram
minhas horas, seus minutos meus anos.
—Era uma vez —, ele começou. —havia um grande rei que vivia no
Submundo.
Eu fechei meus olhos.
—Este rei era o governante dos mortos e dos vivos —, continuou ele. —
Ele trazia ao mundo acima a vida toda primavera, e levava de volta à morte
todo outono.
—À medida que as estações mudavam, uma após a outra, o rei
envelheceu. Cansado. A primavera chegava mais tarde e mais tarde e o outono
mais cedo e mais cedo, até que um dia, não houve primavera. —Sua voz caiu.
—O mundo acima ficou quieto, morto e parado, e as pessoas sofreram.
Lembrei-me da imagem vívida da geada que traçava as bordas do verde
do verão no Bosque dos Elfos e estremeci.
—Então, um dia, uma valente donzela se aventurou no Submundo —,
continuou ele. —Para implorar ao rei que devolvesse o mundo para a
primavera. Ela ofereceu ao rei sua vida em troca da terra. Minha vida para o
meu povo, ela disse.
A queimadura de lágrimas escaldou meus cílios. Quando o Rei dos Elfos
me contou essa história, achei bonito. Um conto nobre de mártires e sacrifícios.
Mas agora que entendi o verdadeiro custo da minha vida, achei doloroso. Eu
não era nobre. Eu era egoísta. Eu queria viver.
—Der Erlkönig sentiu o fogo nela —, disse ele. —E desejou seu calor. Ele
estava com frio há tanto tempo que não se lembrava mais da luz, do calor ou
de tudo que era bom no mundo. Ela era o sol e ele era a terra acordando de um
degelo. Então ele aceitou a mão dela em casamento - uma mão dada como uma
tábua de salvação é para um homem que está se afogando. Ele se agarrou a
essa mão com todas as suas forças e, devagar, com certeza, eles acordaram o
mundo do inverno.
O Rei dos Elfos fez uma pausa, como se reunisse suas próximas palavras.
—O papel do rei é um fardo, você sabe —, disse ele. —A cada ano, a
virada das estações se torna cada vez mais difícil, pois quanto mais longe da
vida e do amor os anos o levam, menos humano você se torna. É preciso amor,
você vê, para trazer o mundo de volta à vida.
—Como assim? — Eu perguntei.
—Você tem que amar a terra e as pessoas que vivem nela. O amor é a
ponte que atravessa o mundo acima e abaixo e mantém a roda da vida girando.
Lembrei-me das palavras de Thistle para mim. Contanto que você tenha um
motivo para amar.
—E então o que aconteceu? — Meus dedos traçaram a cicatriz no coração
do Rei dos Elfos, pensando em sua história.
—E então Der Erlkönig se apaixonou.
Eu esperei pelo resto da história, para o Rei dos Elfos continuar. Mas o
silêncio entre nós se esticou e ficou tenso, até que eu não aguentei mais a tensão
e a quebrei.
—E? — Eu sussurrei.
—Acabou de me ocorrer que não posso, em boa consciência, dar a esta
história um final feliz —, disse ele. —Afinal, eles não acabam. E todos eles
viveram felizes para sempre?
Um final feliz. Talvez fosse apenas uma ilusão, mas o eco da voz de Twig
soou em meu coração. O amor deles era uma ponte, e então eles cruzaram. Não
poderia a valente donzela libertar seu Rei dos Elfos? O amor dela não era forte
o suficiente para abranger os dois mundos? Mein Herr não foi o primeiro;
Certamente ele não seria o último.
—Será que... a brava donzela não amava Der Erlkönig? — Perguntei.
O Rei dos Elfos ficou rígido. —Eu não sei.
Mordi meu lábio e virei meu rosto para longe, incapaz de encontrar seu
olhar. —Eu acho que ela o amava. Ela deve ter amado. Caso contrário, de que
outra forma... como mais você poderia...
Eu não consegui terminar.
—Você gostaria de outra história, Elisabeth? — A voz do Rei dos Elfos
era apertada.
Engoli. —Sim.
—É —, disse ele depois de um momento, —uma história que me
pertence. Mas vou deixar que você decida se o fim é feliz ou não.
Eu balancei a cabeça.
—Era uma vez um jovem.
Eu me virei para lhe dar um olhar penetrante. O Rei dos Elfos apenas
sorriu, mas, triste ou doce, eu não sabia dizer.
—Um jovem austero?
Ele riu baixinho. —É isso que você chama... como você o chama?
Minhas bochechas ficaram vermelhas e eu estava com vergonha de
responder.
—Um jovem austero —, refletiu o rei dos elfos. —Eu suponho que sim.
Austero, pomposo, tolo. Sim, idiota — ele disse decididamente. —Era uma vez
um jovem tolo que percorreu o mundo em busca de sabedoria para torná-lo
menos tolo. Um dia, ele encontrou um rei na floresta, um rei diferente, que
afirmava guardar todos os segredos da vida, do amor e do céu.
Eu segurei minha respiração. Uma história que pertence a mim. Uma
história de como ele veio a ser Der Erlkönig.
—O rei ofereceu seu conhecimento ao jovem tolo - por um preço. O preço,
disse o rei, é a minha coroa, pela qual você deve me dar sua alma e seu nome.
O jovem, sendo tolo, concordou com o preço do rei do Submundo.
Era como se todo o ar tivesse sido retirado dos meus pulmões. O jovem
austero tinha sido enganado - enganado para segurar seu trono. E essa era a
verdade da galeria dos reis dos elfos. Sempre houve Der Erlkönig. Sempre
haverá o Der Erlkönig. Eu não conseguia respirar pela pena que envolvia sua
mão na minha garganta.
—O jovem tolo pensou que não era um grande sacrifício - afinal, um
changeling não tinha alma, e ele nunca teve um nome que fosse
verdadeiramente seu. — A risada do Rei dos Elfos era tão amarga quanto
anódina. —Mas, à medida que os anos passavam, à medida que o peso da
imortalidade se tornava cada vez mais pesado, ele se deu conta de que tolo ele
realmente fora, de ter subjugado o rei com suas próprias palavras. Pois
nenhum poder no mundo acima ou abaixo valia o tormento que ele sentia.
—Oh, mein Herr. — Eu levantei minha mão para empurrar o cabelo para
longe de seu rosto, mas o Rei dos Elfos não terminou sua história.
—Então, um dia, ele encontrou uma donzela na floresta.
—Uma valente donzela? — Eu me aventurei.
—Corajosa —, ele concordou. —E bonita.
Eu zombei. —Este é um conto de fadas de fato.
—Cales-se — Ele tocou um dedo nos meus lábios. —A moça era ao
mesmo tempo corajosa e bonita, bonita de maneiras que ela não via. Não podia
ver, pois toda a sua beleza estava trancada por dentro, magia e música,
esperando para ser libertada.
Eu era corajosa e linda. Era uma mentira bonita e uma verdade feia.
—Eles se tornaram amigos, a bela donzela e o jovem tolo. Eles se
tornaram amigos, e o jovem tolo começou a lembrar de tudo que era bom e
maravilhoso sobre o mundo. Sobre os seres humanos. Música, fé, loucura,
paixão. Mas —, disse o Rei dos Elfos, — à medida que cresciam, a linda donzela
esqueceu o jovem tolo. Ela se esqueceu dele, e o jovem tolo esqueceu por que
ele queria ser humano.
Eu me encolhi.
—Então ele montou uma armadilha, pegou a linda donzela e a manteve
em uma gaiola. Ela tinha uma música e ele queria, então o jovem tolo a fez
cantar de novo e de novo até que ele a soltasse. Mas a bela donzela voltou
obedientemente para sua gaiola, noite após noite, e pela primeira vez na
eternidade, o tolo jovem pensou que poderia ser feliz.
—E ele foi? — Eu perguntei com uma voz rouca.
—Sim—, ele disse, quase inaudível. —Ai sim. Ele nunca foi tão feliz.
Minha garganta se fechou.
—Mas, feliz como o jovem tolo poderia ter sido, a linda donzela não era.
A jaula estava a matando, matando seu espírito. E gradualmente, pouco a
pouco, tudo o que o jovem tolo acalentava sobre a linda donzela começou a
desaparecer. Não havia nada que ele pudesse fazer além de vê-la desaparecer
em um fantasma diante de seus olhos, nada a menos que ele arrancasse seu
próprio coração. Mantê-la, fazer-se feliz e vê-la morrer? Ou libertá-la, partir o
coração dele e vê-la viver?
Ele ficou em silêncio.
—Então, como a história termina?
Ele encontrou meu olhar e, por um breve momento, pensei que aqueles
olhos notáveis se iluminaram e se aprofundaram em cores, assim como o
retrato do jovem austero, assim como os olhos que ele deve ter quando era
humano.
Então eu pisquei e eles estavam como sempre estiveram: pálidos,
desbotados e gelados.
—Você é quem queria um final feliz, minha querida. Então você me diz,
como a história termina?
Lágrimas escorreram do meu rosto e ele as enxugou com os polegares.
—O jovem tolo deixa a linda donzela ir.
—Sim. — Sua voz estava cheia de emoção não derramada. —Ele a deixa
ir.
Eu explodi em soluços, e o Rei dos Elfos me aproximou, me balançando
em seus braços enquanto eu chorava. Eu chorei pela quebra do coração do
jovem tolo. Eu chorei pela felicidade que poderíamos ter tido. Chorei pelo
egoísmo que não consegui superar. Eu chorei por ele, por nós, mas acima de
tudo, por mim mesma. Eu estava indo para casa.
—Você deve sair, Elisabeth. — Ele disse suavemente.
Eu balancei a cabeça, incapaz de falar.
—Escolha viver, Elisabeth. Há um fogo dentro de você; mantenha-o
aceso. Alimente essa chama com música, temporadas e torta de chocolate,
morangos e Gugelhopf da sua avó. Deixe crescer com o seu amor pela sua
família. Deixe que seja um farol para definir o seu coração, para que você possa
permanecer fiel a si mesma. — Ele acariciou minha bochecha. —Faça isso, para
que eu possa lembrar de você assim: feroz e cheia de vida.
Eu balancei a cabeça novamente.
—Você está pronta?
Não. —Amanhã. — Eu disse.
Ele sorriu e depois me beijou. Seus lábios eram gentis e neles provei uma
despedida.
Eu o beijei de volta. O tempo não parava para ninguém, muito menos
para mim, mas naquele momento de nosso beijo, encontrei um pequeno bolso
de eternidade.
As sonatas do mistério

Se eu não dormisse, o amanhã nunca chegaria.


Deixei o Rei dos Elfos dormindo na minha cama e saí correndo. Não para
a sala de descanso, onde a nossa música esperava, mas para a capela. Era o seu
santuário, o seu lugar de refúgio, mas nesta última noite antes da minha
liberdade, queria uma palavra com Deus.
Nem Thistle nem Twig estavam à mão para me guiar, mas agora eu tinha
aprendido que o labirinto do Submundo se desdobrava para a Rainha dos
Elfos, e o caminho do meu quarto para a casa de Deus era direto e estreito.
Eu me perguntei quem havia construído a capela. Bem acima de mim,
vitrais iluminados mostravam várias cenas, não da vida de Cristo ou dos atos
dos Apóstolos, mas de Der Erlkönig e suas noivas. À direita, uma série de
painéis mostrava uma mulher de cabelos dourados, vestida de branco e uma
figura de chifres escuros. As estações progrediram junto com os painéis
quando a moça de branco ficou pálida e magra. A última janela mostrava a
moça morrendo nos braços da figura com chifres, enquanto outra mulher de
azul estava atrás deles.
As janelas do lado esquerdo mostravam um jovem de vermelho,
cavalgando um cavalo branco por uma floresta, enquanto pequenos elfos e
grotescos se moviam a seus pés. Enquanto as janelas continuavam, o jovem
encontrou uma misteriosa figura de chifres na floresta, um nimbo de escuridão
ao seu redor em vez de um halo de luz. Quando o jovem se ajoelhou aos pés
da figura, as sombras envolveram os dois e, no painel seguinte, um homem
cinza e sombrio partia em um cavalo branco, deixando o jovem de vermelho
com uma coroa de chifres na cabeça.
As respostas sempre estiveram aqui. Mas nunca pensei em procurá-las
na casa de Deus.
Ajoelhei-me diante do altar abaixo do crucifixo. Eu era uma crente
indiferente na melhor das hipóteses, uma possível pagã na pior das hipóteses,
tendo acreditado em Deus da maneira que uma criança acredita sem dúvida
que o amanhã virá. Nem a oração nem o catecismo eram particularmente
valorizados em minha casa, mas inclinei a cabeça diante do santuário.
Eu não sabia como pedir coragem ou resolução. Eu não sabia como pedir
para ficar na marcha do tempo, só por um tempo. Eu não estava pronta para
enfrentar o mundo acima. Ainda não.
Não havia espelhos no mundo exterior da capela, mas imaginei o Bosque
dos Elfos na madrugada forrada de escuro, com o mais fraco rubor de azul que
iluminava a escuridão. A hora em que os kobolds Hödekin saem para bricar,
Constanze costumava dizer. Imaginei as cores do céu iluminando-se e
mudando, uma mudança tão leve e gradual que talvez nem estivesse
acontecendo. No mundo acima, essa seria a minha vida, cada segundo de cada
dia passando com tão pouca fanfarra que o pensamento de morrer não era
nada mais do que o pensamento do amanhecer logo abaixo do horizonte.
Eu nunca tinha pensado muito em envelhecer, e a mulher que eu seria
quando era da minha avó. Eu seria como minha avó, enrugada e caranguejada?
Ou alguém mais parecido com a Mãe, cujas linhas finas e cabelos desbotados
eram toques graciosos de sabedoria em vez de idade? Eu toquei meus dedos
na minha bochecha, ainda lisa, ainda jovem. À medida que envelhecia, essas
bochechas afundavam, a pele perdendo sua firmeza, sua forma.
Käthe teria ficado horrorizada com o pensamento, mas a ideia de
envelhecer me dava conforto. Envelhecer era ter vivido uma vida plena. Nem
todos nós tivemos o privilégio de ter uma vida plena. E agora esse privilégio
seria mais uma vez meu.
—Elisabeth.
O Rei dos Elfos estava ao pé do corredor, com o violino na mão.
—Eu não achei que você fosse especialmente devota, minha querida. —
Disse ele, com uma expressão divertida no rosto.
—Eu não sou. — Eu fiquei de pé, espanando a sujeira dos meus joelhos.
—Mas eu vim buscar fortaleza.
Seus olhos eram suaves. —Fortaleza para quê?
—Para enfrentar o amanhã.
O Rei dos Elfos sorriu, cheio de compaixão e simpatia, caminhando pelo
corredor para ficar ao meu lado. —E Ele respondeu?
—Não.
Ele balançou sua cabeça. —Pode ser que Ele já tenha lhe dado a resposta,
mas você não tem o entendimento para ver isso —, ele disse suavemente. Ele
bateu um dedo contra o meu coração. —O Senhor trabalha de maneiras
misteriosas.
—Bem, eu apreciaria se o Senhor fosse um pouco menos misterioso e um
pouco mais direto.
Ele riu. —Assim dizemos todos.
Revirei os olhos antes de meu olhar cair no instrumento em suas mãos.
—Para que é isso?
Em resposta, ele começou a afinar o violino. Plink, plink, plink, plink. Em
vez de sintonizar as cordas em seus intervalos padrão, o Rei dos Elfos os
ajustou a diferentes alturas. Ele soltou as cordas D e A do meio e as cruzou
antes de amarrá-las de volta aos pinos, deixando-o com uma escorda que eu
nunca tinha ouvido falar antes. Plink, plink, plink, plink. G, depois outro G, D e
outro D. Seu ouvido era bom. O Rei dos Elfos passou seu arco por cima de cada
corda com um movimento suave e praticado enquanto ajustava seus passos, e
eu observei com que facilidade suas mãos e dedos moviam-se pelo violino,
familiar como velhos amigos que haviam crescido juntos.
Quando ele terminou, ele se virou para mim. —Adoração —, ele disse
simplesmente. —Eu vim aqui para adorá-lo da única maneira que posso. Com
a única coisa remanescente para mim que ainda é pura, ainda... minha.
Dele. Apesar do que o Rei dos Elfos disse, o jovem austero ainda vivia
dentro dele. Nenhuma mágica, nenhum feitiço, nenhum truque tinha dado ao
meu Rei Elfo seu caminho extraordinário com o violino. O poder não pertencia
a Der Erlkönig; esse presente era dele e só dele.
—Eu posso sair —, eu ofereci. —Se você gostaria de adorar em particular.
— Pensei na noite em que eu havia invadido ele aqui, nesta mesma capela, e
senti vergonha se apoderar de mim como um manto.
Ele segurou meu olhar por um longo momento. —Não, fique —, disse
ele por fim. —Fique e fique comigo.
Eu havia exigido todo o resto dele na noite passada. Seu corpo, sua
luxúria, seu nome, sua confiança. Mas havia cantos de sua alma que não
ousava pedir para revelar; mesmo quando entendia a necessidade de manter
algumas coisas sagradas para você sozinho. Sua piedade era uma delas. A
enormidade do que ele estava me concedendo tirou minha vergonha de mim,
substituindo-a por uma sensação de reverência.
Não havia bancos na capela; Só havia um membro dos fiéis. Por isso,
sentei-me nos degraus do santuário, cruzei as mãos e deixei-me ficar com ele
para aceitar este presente.
O Rei dos Elfos levantou o arco para o violino e fechou os olhos. Eu o
assisti respirar fundo e começar a contagem em sua cabeça.
A peça começou com uma declaração, uma proclamação de alegria. A
frase repetiu-se algumas vezes antes de se juntar a um coro de vozes. O Rei dos
Elfos habilmente transmitiu todas elas através de vários tons de emoção e
nuances, um após o outro, cada um por sua vez. Todos proclamando Aleluia,
aleluia, aleluia! Debaixo dos dedos dele. Então uma pausa, uma respiração,
antes de ele recomeçar; uma sonata imponente, reiterando as boas novas do
primeiro anúncio.
Eu sabia que ele tocava lindamente. Como Josef, o Rei dos Elfos tocava
não apenas com habilidade e precisão, mas com amor. No entanto, eles eram
tão diferentes um do outro quanto a noite e o dia. Meu irmão tocava com
pureza, mas o Rei dos Elfos tocava com devoção. O talento de Josef com o
violino sempre foi de clareza implacável. Nada da terra poderia tocar como
meu irmão; Ele pisava no éter e no ar, as notas transcendentes e oh tão bonitas,
tão lindas.
Mas o tocar do Rei dos Elfos era pesado; as notas continham
profundidade e gravidade. Emoções que meu irmão ainda não tinha
aprendido: tristeza, tragédia, perda. O virtuosismo do Rei dos Elfos foi
conquistado.
A peça chegou ao fim, a última nota desaparecendo no silêncio entre nós.
Eu não percebi que estava prendendo a respiração.
—É lindo —, eu sussurrei, não querendo quebrar o silêncio reverente no
quarto. —Você escreveu isso?
Ele abriu os olhos lentamente, emergindo de um transe. —Hmmm?
—Você escreveu isso? É requintado.
Ele sorriu. —Não. Eu não escrevi. Mas você poderia dizer que me
escreveu, de certa forma.
—Como é a peça?
Uma pausa. —A ressurreição. Uma das Sonatas Misteriosas.
—Onde você aprendeu isso?
Outra pausa. —Na abadia onde fui criado.
Migalhas tão minúsculas de seu passado. Eu engoli cada pedaço como se
fosse minha última refeição. Eu ansiava por ele, pelo jovem austero, por cada
pedaço dele que eu não poderia ter.
—Que abadia?
Sua única resposta foi outro sorriso, com apenas um pequeno indício de
dentes. O Senhor e o Rei dos Elfos trabalhavam de maneiras misteriosas, e eu
preferia que não o fizessem.
—Quem escreveu a peça? — Eu pressionei.
—Estamos em outra rodada de verdade ou desafio? — Ele brincou.
—Só se você quiser.
Ele fez uma pausa antes de dar sua resposta. —Eu não sei quem
originalmente a compôs. — Seus olhos estavam distantes, seus dedos
distraidamente manuseando as cordas do violino. —Eu sempre roubava
trechos e músicas dos claustros sempre que podia, ouvindo cantos e tocando
as notas com um violino imaginário. Eu adaptei a sonata da melhor maneira
possível da memória.
Tentei colocar a sonata a tempo de minhas lições de história
fragmentadas e fragmentadas. Faltava a musicalidade melódica com a qual nos
acostumamos no mundo acima, e soava meio antiquada. Mas faltava-lhe a
estrutura de uma sonata como eu a conhecia, um pouco selvagem, um pouco
fluida. Nós dois tínhamos nos esgueirado nas sombras, o Rei dos Elfos e eu,
espiando coisas que não tínhamos razão.
—Você poderia expandir os temas —, sugeri. —A Escordatura é um
pouco incomum, mas pode ser interessante pegar a melodia e tocá-la
novamente em uma tom menor.
Ele riu e balançou a cabeça. —Você é um gênio, Elisabeth, quem cria. Eu?
Eu sou um mero intérprete.
A dor que me apunhalou foi súbita e feroz. Eu virei minha cabeça para
que o Rei dos Elfos não me visse chorar. Meu irmão mais novo uma vez me
disse exatamente isso, antes de eu vir para o Submundo, antes de entender a
diferença entre gênese e exegese. Eu estava muito cheia de mim, muito cheia
de minhas memórias. Eu estava me afogando na lama dos meus sonhos de
infância e no prazer insuportável do presente.
Senti o conforto de sua presença se estabelecer ao meu lado nos degraus.
O Rei dos Elfos deu um beijo suave no meu ombro, mas não disse nada,
esperando que eu puxasse minhas emoções, esperando que eu me
recompusesse.
—Quem, quem te ensinou a tocar violino? — Eu consegui, limpando
minha garganta da tristeza apresentada lá.
Senti-o sorrir contra o meu ombro enquanto ele murmurava uma
resposta.
—O que?
Ele levantou a cabeça. —O nome dele —, ele disse suavemente. —era o
irmão Mahieu.
Um monge. Um monge sem nenhuma consequência, aquele que havia
passado do mundo sem deixar uma marca. No entanto, o Rei dos Elfos se
lembrava dele. O Rei dos Elfos claramente o amara, e foi em seu amor que o
amado e velho professor continuava vivo. Essa era a imortalidade que os
humanos deveriam ter: ser lembrados por aqueles que nos amavam muito
depois de nossos corpos terem se desintegrado em pó.
Pensei no meu irmão e irmã, aqueles que ainda me amavam e me
lembravam. Eles estavam esperando por mim no mundo acima, e eu senti as
asas de amanhã se estabelecerem sobre mim. Cedo demais. Era cedo demais.
—Como ele era? — Perguntei, minhas costas ainda voltadas para o Rei
dos Elfos. —Ele criou você? Quem foram seus pais? Como você veio para a
abadia? O que-
—Elisabeth.
Eu ainda não o enfrentei. Eu não estava pronta.
—Amanhã chegou.
Eu balancei minha cabeça, mas nós estávamos além do ponto de não
retorno. Eu fiz a minha escolha. Eu escolhi a mim mesma. Eu havia escolhido
o egoísmo.
O Rei dos Elfos sentiu minha hesitação. —Não se arrependa da sua
decisão de viver.
—Eu não —, eu sussurrei. —E eu não vou. — Não era uma mentira, mas
também não era totalmente a verdade.
—Elisabeth.
Eu fiquei tensa.
—Elisabeth, olhe para mim.
Lentamente, com relutância, me virei. Havia uma luz brilhando em seus
olhos, uma luz que lembraria de mim, muito depois de eu ter desaparecido do
Submundo e do mundo acima. E aqueles olhos... aqueles olhos eram pedras
brilhantes. Eles mudavam seu rosto completamente. Sua beleza não parecia
mais tão inquietante ou estranha, tão extraordinariamente impecável. Havia
uma vivacidade em seu rosto e isso o fazia parecer jovem. Vulnerável.
—Quem é você? —Perguntei.
A questão caiu como uma gota de chuva entre nós, sibilando o vidro que
nos envolvia.
—Eu sou Der Erlkönig, o Senhor do Mal e do Rei Submundo.
Eu balancei a cabeça. —Não, é isso que você é. Quem é você?
—Eu sou o Rei dos Elfos, seu imortal amado, seu amante eterno.
Ele era Der Erlkönig, e ele era meu Rei dos Elfos, mas eu queria saber
quem ele era para si mesmo. Seu nome era o último pedaço dele que eu não
poderia ter.
—Não, — eu disse. —Eu sei quem você é.
Os dentes escorregaram de seu sorriso. —Quem sou eu?
—Você é um homem com música em sua alma. Você é caprichoso,
contrário, contraditório. Você se delicia com jogos infantis e se deleita ainda
mais em ganhar. Para um homem de piedade tão intensa, você é
surpreendentemente mesquinho. Você é um cavalheiro, um virtuoso, um
erudito e um mártir, e dessas máscaras, eu gosto menos do mártir de todas.
Você é austero, é pomposo, é pretensioso, é um tolo.
O Rei dos Elfos não respondeu.
—Bem? — Eu perguntei. —Eu tenho o direito disso?
—Sim —, disse ele densamente. —Sim, você tem a minha alma, Elisabeth.
—Então o seu nome, mein Herr.
Ele riu baixinho, mas foi um suspiro de dor, não de alegria. —Não.
—Por quê?
—Então você vai me esquecer —, ele disse simplesmente. —Você não
pode amar um homem sem nome.
Eu balancei a cabeça. —Isso não é verdade.
—Um nome é algo que pertence a um homem mortal. — Havia uma
expressão que eu não conseguia decifrar em seus olhos incompatíveis. —E o
homem que eu era está de volta lá - de volta ao mundo.
Ele me puxou para perto dele. Eu estava aninhada em seu abraço, contra
a cicatriz que cruzava seu coração.
—Encontre-me —, disse ele, com a voz baixa. —Encontre-me lá,
Elisabeth. É só lá, no mundo acima, que você encontrará o último pedaço de
mim.
Ele me soltou. Mas ele não estava apenas me libertando de seu abraço;
ele estava me libertando. Ele estava libertando a garota que uma vez tocou sua
música para ele na floresta, a garota que ele tinha aberto para libertar sua alma,
a garota a quem ele se entregou, inteira.
Com uma respiração ofegante, enfiei a mão no bolso e retirei o anel de
cabeça de lobo, o anel que ele colocara no meu dedo na noite em que nos
casamos.
O Rei dos Elfos balançou a cabeça, fechando meus dedos ao redor do
anel. —Mantenha-o.
—Mas... não é um símbolo do seu poder?
—É. — Ele sorriu tristemente. —Mas é apenas um símbolo, Elisabeth. Do
meu poder, sim, mas também da minha promessa a você. Qualquer outra coisa,
eu lhe dei esse anel a sério, como marido para uma esposa.
Eu envolvi minha mão em torno de seu anel e pressionei contra o meu
coração. —Como... como isso pode ser feito? Como vamos... — Eu engoli. —
Nos separar?
—Nós fizemos nossos votos aqui —, disse o Rei dos Elfos. —E assim
podemos desfazê-los também.
Um cálice de vinho apareceu no altar. Ele pegou o cálice e hesitou.
—Eu não posso… não posso te ajudar. Uma vez que quebremos o nosso
trato, seu poder como a Rainha dos Elfos, a proteção de Der Erlkönig... tudo
terá acabado. Você tem coragem de fazer o caminho sozinha?
Eu não. Mas eu balancei a cabeça do mesmo jeito.
—Os… os outros não facilitarão. Mas eu tenho fé, Elisabeth. Fé em você.
Eu não tinha fé própria, mas o Rei dos Elfos tinha a dele, e era sua fé em
mim que seria a minha coragem. O Senhor trabalha de maneiras misteriosas.
Ele pegou minhas mãos nas suas. —Alegra-te pois viverás —, disse ele
em voz baixa. —e eu me regozijarei contigo.
Eu beijei suas mãos. Seus olhos estavam preocupados, mas seu
semblante estava calmo. Ele estava sendo forte por mim.
—Eu juro solenemente, — ele disse. —que eu devolvo o presente de sua
vida, desinteressadamente e egoisticamente.
Era difícil falar através das minhas lágrimas. —E juro solenemente, — eu
disse, —que aceito minha vida, tirada de suas mãos por livre e espontânea
vontade.
O Rei dos Elfos pegou o cálice do altar e o ofereceu para mim.
—Vamos beber —, disse ele. —E quebrar a nossa maldição.
O retorno

Meu reinado como Rainha Elfo terminou.


Eu soube no momento em que meu poder quebrou, pois as passagens ao
meu redor haviam se rearranjado. A capela e o Rei dos Elfos haviam
desaparecido e eu estava sozinha. Não mais meu caminho pelo Submundo
seria direto e claro. Eu não tinha mapa nem bússola para me guiar, mas sabia
onde tinha que ir. Às margens do lago subterrâneo, para encontrar o esquife
que o changeling havia atracado em sua doca secreta, remar e seguir para o
mundo acima.
O Submundo era muito menos civilizado sem a graça e proteção do meu
poder como rainha. Elfos corriam sob seus pés, seus longos dedos multi-
articulados estalavam sobre pedras, besouros brilhavam no escuro. Seus olhos
redondos brilhavam em mim, o toque atento de mil olhos desumanos nas
minhas costas. O silêncio misterioso, vigilante e expectante tinha uma forma e
textura. Passava por mim como teias de aranha escuras e mofadas, que se
agarravam a mim por mais que eu tentasse afastá-las. O silêncio levantou todos
os pelos ao longo dos meus braços, enviando espinhos de gelo e agulhas na
minha espinha, e a cada passo eu dava, medo e pavor aumentavam cem vezes.
Eles não vão facilitar. Mas eu tenho fé, Elisabeth, fé em você.
Tomei cuidado com o meu passo, mas a malícia do Submundo era
maliciosamente inteligente. Uma fenda de repente se abriu sob meus pés, e eu
tropecei e arrancou meu tornozelo.
Estremecendo de dor, eu pisei na barra da minha saia, caindo de ponta-
cabeça. Eu limpei meu queixo dolorido.
Sangue.
No instante em que uma gota do meu sangue atingiu a terra, uma
tempestade de assobios surgiu. Esta era a oportunidade que os elfos estavam
esperando.
A cacofonia cresceu e inchou, como ondas se aproximando de uma costa
distante. Mãos explodiram debaixo dos meus pés - mãos como galhos
retorcidos e torcidos, crescendo da terra como arbustos ou trepadeiras. Eles
agarraram meus tornozelos, meu cabelo, meu vestido, meus sapatos, qualquer
parte de mim que eles pudessem alcançar.
—Parem! — Eu gritei. —Parem!
Os corredores ecoaram com os sons de suas mãos se soltando, sacudindo
como tiros. Cobri minha cabeça e meus ouvidos quando as mãos explodiram
das paredes e do teto, alcançando, alcançando. Os corredores ecoaram com
meus gritos.
—Parem! Por favor! Eu quero que vocês parem!
Mas meus desejos não tinham mais poder aqui. Mãos rastejantes,
miríades de olhos, dentes pontiagudos, todos chegando para me devorar, me
separando de meus membros. Dedos retorcidos ao redor dos meus pés me
fizeram cair sobre as mãos que esperavam, uma criatura abatida por uma
armadilha. Eu gritei, lutando para quebrar o aperto deles, mas os dedos
nodosos estavam fortes. As mãos me levaram à escuridão, mofadas e com o
cheiro azedo do meu pânico.
Oh, Deus, oh, Deus, pensei. Eu serei enterrada viva.
Enterrada viva; que fim ignominioso. Sacrificar minha vida pela
primavera fora nobre, mas isso? Esta era uma maneira terrível de morrer. Não
com um estrondo, mas um gemido. Pensei nas árvores no Bosque dos Elfos,
seus ramos desconfortavelmente humanos, e me perguntei se esse seria meu
destino, meus membros e a forma imortalizada por madeira morta.
—O que você quer de mim? — Eu gritei.
Você, você, você, suas vozes sibilantes retornaram. Nós queremos você. Você
não pode deixar o Submundo, mortal, não sem pagar o preço.
—Que preço? — Mãos de elfo se arrastaram sobre a minha boca e
pescoço, como se para estrangular os sons vindos de mim. —Diga-me e eu vou
pagar!
As mãos apressadas pararam. Alguns deles se separaram para se unirem,
seus dedos e polegares enrolados formando dois olhos, um nariz, uma boca.
Eu estava olhando para um rosto.
Havia apenas buracos onde os olhos deveriam estar, apenas a escuridão
dentro de sua boca. No entanto, senti uma presença lá, muitos elfos se juntaram
em uma entidade singular. Eu olhei para o abismo e encontrei-o olhando para
trás.
—O que é que você quer? — Eu perguntei.
Demorou um tempo antes que esses dedos pudessem trabalhar juntos
para formar lábios, uma língua, palavras.
Você tem algo que nos pertence, mortal. Miríades de vozes se juntaram
juntas, uma massa dissonante de arremessos.
—O que-
Vive no mundo acima. Mais mãos se juntaram para fazer uma cara mais
completa. Maçãs do rosto altas. Um queixo pontudo. Cachos. As feições eram
familiares. Livre do nosso alcance. Nossa influência.
O medo frio escorreu em minhas veias, lentamente me transformando
em gelo. —Não.
Sim, eles assobiaram. Você sabe de quem falamos.
Eu balancei a cabeça. Eu sabia de quem eles falavam; eles falavam de
Josef. Mas eu não ia dar o meu irmão para os elfos.
O changeling, mortal, eles disseram. Aquele que você libertou com o poder de
um desejo. Nós queremos de volta. Não tem lugar entre vocês humanos; pertence aqui
embaixo. Conosco. Com seus parentes, aqui no Submundo.
—Não.
Sim, eles repetiram.
—Não!
As mãos se apertaram ao meu redor.
Nós queremos isso, eles disseram novamente. É legitimamente nosso. Traga
de volta, mortal. Traga de volta.
Isso. Como se meu irmãozinho fosse um animal. Como se ele não tivesse
um nome, uma vida, uma pessoa. Josef poderia ter sido um changeling, mas
ele não era menos humano do que eu, do que Käthe, do que todos aqueles que
o amavam.
—Não—, eu sufoquei. —Ele não pertence a vocês.
Nem ele pertence a você.
—Não —, eu ofeguei. —Josef pertence a si mesmo.
Essas mãos de elfos apertaram mais e uma escuridão cintilante começou
a preencher os cantos da minha visão. Seu amor é uma gaiola, mortal. Liberte-o.
Eu ri. Estava perdida em meio a tosses sufocantes enquanto mãos
entrelaçadas estrangulavam a vida de mim, mas eu ri mesmo assim. Eu não
podia mais parar de amar Sepperl do que conseguir impedir que o sol nascesse
a cada amanhecer.
Seu amor está matando ele.
Minhas risadas se transformaram em soluços. Lágrimas escorriam dos
meus olhos, escaldante e salgado. Eles sabiam da minha relutância, meu
desespero, mas acima de tudo, meu amor pelo pequeno menino changeling
que ficou no mundo acima porque ele queria tocar música. Josef morreu todos
aqueles anos atrás, mas meu irmão verdadeiro, o irmão do meu coração, ainda
vivia. Minhas lágrimas pingaram nas mãos de elfos, manchando-as com amor.
Um silvo de dor subiu de todos eles, um sussurro coletivo como o suspiro
de galhos no bosque. Dedos multi-articulados se desenrolaram dos meus
pulsos, meus braços, minha cintura, me deixando cair no chão.
Queima! Eles gritaram. Queima!
Uma vez liberada, eu tossi e engoli grandes suspiros de ar à minha volta,
ecos de Isso queima! Queima! Misturado com avisos de seu amor está matando-o
em uma sinfonia de discórdia.
Deitei-me de lado, no chão do corredor sujo, muito depois de as mãos
dos elfos terem desaparecido. Pois embora suas vozes tivessem desaparecido,
as palavras condenatórias permaneciam.
Seu amor está matando ele.

Não sei quanto tempo fiquei ali, esmagada sob o peso da minha dúvida.
Contanto que você tenha um motivo para amar, Thistle dissera. O amor
mantinha a roda da vida girando. O amor criava pontes entre mundos. Se não
houvesse mais nada que eu tivesse aprendido, aprendera que o amor era maior
que as leis antigas.
Mas a incerteza se apoderou de mim em asas silenciosas, sussurrando na
voz do changeling: Nenhum de nós durou muito tempo no mundo acima.
Eu poderia ter ficado lá no pó e na sujeira, exceto pela minha promessa
ao Rei dos Elfos. Há um fogo dentro de você; mantenha-o aceso. Mova-se ou morra.
Se eu não pudesse andar, eu me arrastaria. Se eu não soubesse as respostas
agora, eu as descobriria mais tarde. Enquanto houvesse respiração, havia
tempo. Eu fiquei de pé.
E então, levemente, um violino começou a tocar.
Eu fechei meus olhos. Eu esperava que obstáculos, provas físicas fossem
superadas, mas o Submundo sabia me atacar onde eu era mais vulnerável: meu
coração.
Não Josef. Não o Rei dos Elfos. É um truque, eu cantava para mim
mesma. O mantra me salvou antes, quando Käthe e eu percorremos esses
caminhos para lutar de volta à superfície. Mas as palavras não mais possuíam
o poder que possuíam e, quase contra minha vontade, meus pés seguiram os
sons para uma grande caverna.
Era o salão de baile. O salão de baile que continha o Baile dos Elfos, onde
o Rei dos Elfos e eu dançamos juntos pela primeira vez. Foi também o salão em
que havíamos recebido nossos súditos como marido e mulher. Mas estava
vazio agora, sem enfeites bonitos ou sobrenaturais, sem mesas de banquete
com banquetes sangrentos. No entanto, no centro havia um quarteto de
músicos: um violinista, um tecladista, um violoncelista e um flautista.
O violoncelista e o flautista seguravam seus instrumentos no colo, com
as mãos imóveis. Os outros dois estavam tocando uma peça lenta e lúgubre,
que eu imediatamente reconheci como o adágio da Sonata da Noite de
Núpcias. O violinista usava o rosto de Josef, mas nenhum encanto poderia me
enganar; o changeling poderia imitar os cachos dourados e os traços delicados
do meu irmão, mas ele nunca poderia recriar a habilidade de Josef.
Nas mãos do changeling, minha música era plana e sem inspiração. As
notas batiam e batiam no chão, sem emoção, sem peso, sem significado. Eu
havia colocado muito da minha frustração nesse movimento; o desejo de ir
mais rápido, ir além, apenas para ser recebida com negação a cada passo. Eu
queria que a música desestabilizasse e agitasse; em vez disso, simplesmente
era entediante.
Corri para a frente para pegar minha música na arquibancada, para levá-
la de volta, quando o violoncelista falou.
—Você desperdiça o seu talento nesta bobagem.
Eu me assustei. Papai.
—Eu não ouço nenhum gênio nas notas, nenhuma inspiração em seu
arranjo. Isso tudo deve ser queimado na pilha de lixo. —Ele se virou para mim.
—Ah, Liesl. Você não concorda?
Eu fechei meus olhos. Papai era autocrático e convivial, dependendo de
quantas bebidas havia nele. Eu nunca poderia adivinhar qual versão do meu
pai eu estaria enfrentando, então tomei o cuidado de nunca encará-lo.
—Bem?
Eu tentei me apegar àqueles momentos com o Rei dos Elfos quando nós
dois estávamos perdidos e achados em minha música. Quando nós dois
tínhamos sido transportados por som e arrebatamento, quando nada mais
existia fora do tempo em que tocamos juntos. Mas não consegui segurá-los,
pois papai e minha dúvida arrancaram-nos dos meus dedos.
—Não —, eu sussurrei. —Não, eu não concordo.
Eu podia ouvir o arranhão da cadeira empurrar para trás enquanto o
violoncelista ficava de pé. Um changeling, eu disse a mim mesma. É um
changeling. Não papai. Não pode ser papai.
—Não? — A voz de Papa estava mais perto agora, e o cheiro de cerveja
velha me dominou. —O que eu te disse, Liesl?
Se eu abrisse meus olhos, se olhasse meu pai nos olhos, a ilusão seria
quebrada. Eu veria olhos pretos de elfo em um rosto humano e o conheceria
como um changeling. Mas eu não conseguia abrir meus olhos, não podia
encarar a possibilidade de que isso não fosse verdade.
—Você nunca vai ser nada na vida.
Eu vacilei, esperando o golpe de um arco de violino como uma vara na
minha pele. Ele havia quebrado vários arcos dessa maneira, inclinado contra
nossas costas como punição.
—Você se eleva. Cresça e pare de se entregar a esses voos românticos de
fantasia.
Sua voz parecia vir das rachaduras, dos cantos e recantos através dos
quais o vento do mundo acima assoviava e uivava. Eu tentei me manter firme,
tentei empurrar contra a crueldade que ele exercia como uma foice, mas eu
estava murchando, enrolando, secando por dentro.
—Fica no mundo acima como és, Elisabeth Vogler, e é julgada como o
teu pai te julgou: sem talento, esquecível, sem valor.
Elisabeth.
Papai nunca me chamou de Elisabeth. Dentro da nossa família eu sempre
fui Liesl, ocasionalmente Lisette e às vezes até Bettina. Mas meu pai nunca me
chamou pelo meu nome completo; era um nome reservado para amigos,
conhecidos e o Rei dos Elfos. Era um nome para a mulher que eu afirmava ser,
não a garota que eu tinha sido.
—Então deixe o mundo me julgar como eu sou.
Eu abri meus olhos. O changeling que usava o rosto de papai fizera um
bom trabalho; as bochechas avermelhadas, os olhos encovados, a pele
irregular. Mas seu rosto continha uma malícia que meu pai nunca teve, uma
crueldade intencional que poderia ser exercida com precisão. Papai era um
instrumento contundente, seus golpes indiscriminados pela bebida.
—Fique de lado —, eu disse. —e deixe-me passar.
O changeling sorriu e suas feições mudaram. —Como quiser, mortal. —
Disse ele, dando-me uma reverência. Então ele pegou a Sonata da Noite de
Núpcias do suporte, as folhas de papel escritas em minha própria mão e
começou a separá-las.
—Não! — Eu gritei, mas o flautista veio me segurar, enquanto os outros
se juntaram ao primeiro em rasgar minha música em pedaços. Os changelings
atacaram meu trabalho, pedaços de papel flutuando e caindo no ar como a
neve, pousando no meu cabelo, meus olhos, minha boca, com gosto de
amargura e traição.
Muito perdido. Tanto esforço, tudo para cinzas. Aquelas primeiras obras
que papai havia queimado em retribuição por ter queimado o rosto de Josef.
As peças que eu havia escrito em segredo, todas sacrificadas para ganhar
acesso ao Submundo e salvar minha irmã. E agora isso, meu mais recente e
possivelmente maior, tudo se foi, foi embora.
Eu gritei e solucei, mas foi só depois que as últimas notas caíram no chão
que os changelings me soltaram.
—Não importa —, disse um alegremente. —Tenho certeza de que você
pode recriá-la, se você tem o talento que você reivindica.
Então eles me abandonaram no salão de baile cavernoso vazio, os ecos
de sua risada rancorosa soando em meus ouvidos.

Cheguei às margens do lago subterrâneo.


Eu tinha sido despojada de tudo - minha confiança, minha estima, minha
música -, mas ainda me forçava a seguir em frente. Eles poderiam tirar todo o
resto de mim, mas eu mesma, inteira. Elisabeth era mais do que a mulher que
levava o nome, mais do que as notas que ela produzia, mais do que as pessoas
que a definiam. Eu estava cheia de mim mesma, pois eles não podiam levar
minha alma.
Eu olhei em volta. Cheguei a uma praia desconhecida e não vi nenhuma
barcaça ou esquife para me atravessar. Eu olhei através da grande extensão
negra. Sua superfície vítrea parecia ilusoriamente calma, mas sob aquelas
profundezas de obsidiana, o perigo espreitava.
As Lorelei.
Como se chamada pelos meus pensamentos, formas reluzentes
ondulavam sob a água. Eu endireitei meus ombros. Eu cheguei até aqui. Eu
havia enfrentado os elfos. Eu havia enfrentado os changelings. Eu enfrentaria
a Lorelei. Se eu não conseguisse atravessar, nadaria.
Não havia como passar, mas descer.
Eu dei um passo para o lago e ofeguei quando a água tocou minha pele.
Estava fria; Mais fria que o gelo, mais fria que o inverno, mais fria que o
desespero.
As Lorelei nadaram para mais perto, atraídas pela minha presença como
piques cheirando sangue. Uma por uma, elas emergiram, libertando-se do
preto vítreo em uma chuva de gotas brilhantes.
Elas eram tão lindas. Belas no modo como o Rei dos Elfos era bonito, uma
simetria implacável às suas feições que era ao mesmo tempo sedutora e
aterrorizante. Estavam tão nuas quanto bebês recém-nascidos, mas suas
voluptuosas formas femininas pareciam moldadas por uma mão que não
entendia sua função. Tão perfeitas, nem uma covinha nem um mamilo ou
cabelo para trair qualquer sinal de humanidade. Seus olhos negros e chatos se
concentravam em mim, e elas se moviam para mim com graça sinuosa e fluida.
Eu estava até a minha cintura na água agora. A Lorelei mais próxima
estendeu as mãos, e meus braços levantaram por vontade própria para
encontrar as dela. Ela sorriu, fileira após fileira de dentes espinhosos, e moveu-
se para pressionar aquele sorriso irregular contra a minha pele.
As outros nadavam perto, se espalhando ao meu redor, me cercando, me
prendendo. Suas mãos acariciavam meu rosto, meu cabelo, meus membros,
minha cintura. Eu estava entorpecida, mas sentia seus toques vibrantes
deslizarem para cima entre o vale das minhas coxas, a crista da minha espinha
onde ela encontrava a curva do meu traseiro, a parte de baixo dos meus seios.
Meu corpo, assim como o deles e não. Uma emaranhou os dedos no meu
cabelo, desfazendo as tranças que habitualmente eu usava em uma coroa sobre
a minha cabeça, deixando as madeixas escuras caírem na água. O peso do meu
cabelo me arrastou para baixo como uma âncora.
Eu não sei quando isso aconteceu, mas de repente, não era mais meus pés
me levando mais longe no esquecimento. Eu estava sendo puxada, arrastada,
coagida, presa em uma ressaca que não sentira. Parei, mas a corrente ao meu
redor era irresistível e comecei a lutar.
As Lorelei sibilaram e a serenidade que nos rodeava foi destruída. Elas
agarraram qualquer parte de mim que pudessem alcançar, minha camisa,
minha barriga, meus dedos, meu cabelo. Elas agarraram e arrastaram.
Eu estava submersa na escuridão, quebrada apenas por ondulações
ondulantes de luz enquanto perturbávamos a superfície do lago. Eu lutei e
chutei e arranhei, mas as Lorelei só apertavam mais forte. A superfície
reluzente e brilhante do lago estava ficando cada vez mais distante. Meus
pulmões doendo engataram, gritando por ar que não tinham.
Mas não. Se eu me afogasse, eu levaria o máximo que pudesse comigo.
Eu não iria silenciosamente para a longa escuridão. Eu não tinha chegado tão
longe para desistir. Eu iria com fogo e fanfarra e uma luta.
Eu agarrei a Lorelei cujos braços estavam trancados na minha cintura.
Sua cabeça era a mais próxima da minha e eu envolvi meus dedos em seu
cabelo, empurrando seu rosto com força para o meu. Eu não sabia o que
pretendia - morder, rasgar - mas meus lábios encontraram os dela e eu abri
minha boca até o fim.
Uma respiração passou dela para mim e meus pulmões se apoderaram
do ar. Quente, úmido, mas mesmo assim o ar.
E então não era a Lorelei com os braços sobre mim, era eu me agarrando
a ela. Ela se debateu em meu abraço, mas eu segurei, Menelau contra Proteus,
e eu era o Rei de Esparta. Com cada beijo que eu roubava, eu tirei outro fôlego,
até que finalmente a Lorelei me devolveu à superfície.
Eu quebrei a água com um suspiro sufocante e atravessei sozinha. A
Lorelei havia desaparecido, mas agora eu estava apanhada nas garras de algo
tão aterrorizante: a correnteza impetuosa.
—Socorro! — Eu gritei, mas meu choro foi perdido no chocalho aquoso
e gorgolejante do meu peito. —Socorro!
Mas ninguém veio.
Eu estava cansada, tão cansada que mal conseguia manter a cabeça acima
da água. Mas eu não iria sucumbir ao cansaço. Eu tinha escapado quase me
afogando pelas Lorelei. Eu escaparia disso. A água batia e me batia contra as
rochas escondidas, mas apesar da crescente escuridão em minha cabeça, apesar
da completa exaustão em meu corpo, continuei nadando. Eu continuei
respirando.
Por fim, o rio desacelerou para um rastro suave, um riacho borbulhante
que deu lugar a um lago tranqüilo. A água me empurrou contra uma costa
rochosa, e com um esforço hercúleo, consegui sair do rio, sem me importar com
os cortes, arranhões e hematomas no meu corpo. Eu desmaiei, tossindo e
vomitando, a água correndo pelo nariz e pela boca, ainda cintilando, ainda
brilhando, mas tinginda de vermelho com sangue.
Quando eu tossi o último da água, sentei-me. O mundo cambaleou,
tornando-se preto e cintilante nas bordas.
Fique acordada, eu me ordenei. Fique viva.
Eu dei um passo arrastado para frente, mas se a mente estava disposta, a
carne ainda estava fraca. A escuridão desabou sobre mim.
Amado Imortal

—Elisabeth.
Uma mão gentil me acordou. Eu me mexi e gemi, vomitando os últimos
pedaços de água do lago dos meus pulmões. Na escuridão embaçada, eu podia
distinguir uma figura longa e magra, com um choque de cabelos prateados ao
redor da cabeça como uma juba.
Meus lábios formaram um nome antes de eu lembrar que não sabia.
—Mein-mein Herr?
—Sim —, o Rei dos Elfos disse suavemente. —Eu estou aqui.
—C-como? — Eu resmunguei.
—Você pode não ter tido a proteção de Der Erlkönig enquanto
caminhava pelo Submundo —, disse ele, com um sorriso em sua voz. —Mas
você sempre teve a minha.
Ele estendeu a mão e eu peguei. Lentamente, dolorosamente, eu fiquei
de pé. Eu estava com dor, machucada e machucada em mais do que apenas o
meu corpo.
Acima de nós, a mesma lacuna na terra e na árvore pela qual eu me
arrastei para quebrar as velhas leis da última vez que vim aqui. Eu estava
cansada, tão cansada, mas me forcei a subir a escada de raízes e a balançar na
superfície. O Rei dos Elfos me apoiava, encorajando-me, ajudando-me, até que
por fim caí no chão da floresta do umbral.
O mundo acima era azul, o profundo índigo do amanhecer. O véu
estrelado do céu noturno ainda reinava, mas logo desapareceria, escondido
pelo sol nascente. A escuridão já estava se tornando púrpura e as sombras
começavam a recuar.
Eu me virei para encarar o Rei dos Elfos. Ele usava uma expressão suave
e segurava um portfólio de couro nas mãos. Sem outra palavra, ele deu dois
passos à frente e me deu.
—O que é isso?
Sua única resposta foi um sorriso. Com as mãos trêmulas, desfiz os laços
que o mantinha fechado e o abri para encontrar partituras e dezenas de
músicas. Eu não reconheci a mão, mas reconheci o compositor. Eu. Era minha
música, copiada em sua mão. Toda a minha música, a inacabada Sonata da
Noite de Núpcias, bem como as peças que eu havia sacrificado para ganhar
acesso ao Submundo.
—Elas estão todos lá —, ele disse suavemente. —Todas as suas
composições.
—Mas —, eu sufoquei. —Elas foram destruídas.
—Oh, Elisabeth —, disse ele. —Você realmente acha que elas foram
perdidas? Eu valorizei sua música tanto quanto você. Eu mantive isso seguro.
Lembrei-me de cada pequena coisa que você escreveu; afinal, você não as tocou
por toda a minha vida? —Ele riu. —Eu não disse que eu era um copista uma
vez?
Lágrimas caíram do meu rosto para manchar o papel em minhas mãos.
Fechei o portfólio para me salvar de arruinar seu trabalho de amor.
—Você tocou para mim; agora você deve ir tocá-los para o resto do
mundo. Termine a Sonata da Noite de Núpcias, Elisabeth. Termine para nós.
—Eu vou escrever para você —, eu sussurrei. —Para o meu imortal
amado.
Era perto, tão perto do que eu queria dizer a ele. Eu te amo, eu insisti, mas
meus lábios não obedeciam.
—Toque para mim —, disse ele. —Toque para mim, minha querida, e eu
vou ouvir. Não importa onde você vá. Não importa onde eu esteja. Eu juro. Eu
juro, Elisabeth.
Um nome veio aos meus lábios. Tentei levantar minha mão, segurá-la
contra sua bochecha, dizer-lhe que o amava.
—Eu vou te ver de novo? — Eu sussurrei.
—Não —, disse ele. —Eu acho, acho que é melhor assim.
Mesmo que eu esperasse, sua recusa ainda me atingiu como um golpe.
Mas talvez ele estivesse sendo cruel para ser gentil. Nós nunca mais estaríamos
realmente juntos, nunca mais sentiríamos o toque das mãos uns dos outros em
nossos corpos. Nem mesmo nos limiares do mundo, onde o Submundo
sangrava para o mundo acima. Eu tive tudo dele. Eu provei tudo dele. Para
ver, mas nunca tocar... Eu seria uma mulher no deserto, sempre sedenta por
água que ela pudesse ver mas nunca alcançar.
—Você está pronta? — Ele perguntou.
Não. Mas eu nunca estaria pronta. Este dia e o dia seguinte e o dia
seguinte seriam cheios de incógnitas, cheios de incerteza. E eu encararia cada
um como eu era, Elisabeth, inteira.
—Sim.
Ele me deu um aceno de cabeça, mais um gesto de respeito do que
concordância. Então ele disse. —O mundo inteiro espera por você.
Eu andei até a borda do bosque dos elfos. Coloquei minhas mãos contra
a barreira, invisível, mas tangível. Respirando fundo, me preparei para
empurrar. Passei pela barreira e entrei na floresta.
Por um momento, fiquei ali, além da borda do bosque dos elfos. O ar,
quente e suave, não mudou, não ficou frio. Eu havia cruzado o limiar e não
havia como voltar atrás. E, no entanto, ainda me demorei, sem vontade de ir,
incapaz de ficar.
—Se - se eu pudesse encontrar uma maneira de libertar você, — eu
sussurrei. —você andaria pelo mundo acima comigo?
Minhas costas estavam para o Rei dos Elfos; Eu não podia encará-lo.
Demorou muito até ele responder.
—Oh, Elisabeth —, disse ele. —Eu iria a qualquer lugar com você.
Eu me virei. Seus olhos se aprofundaram na cor e por um momento,
apenas pelo mero vislumbre, pude ver como ele teria sido como um homem
mortal. Se ele tivesse sido autorizado a viver o curso de sua vida, desde a
criança que ele tinha sido para o homem que ele teria se tornado. Um músico -
um violinista. Eu corri de volta para o círculo de amieiros, querendo o círculo
de seus braços em volta de mim. Estendi minhas mãos e seus dedos roçaram
os meus, mas passamos um pelo outro como água, como uma miragem. Cada
um de nós não passava de uma ilusão cintilante, uma chama de vela que não
conseguíamos segurar.
E, no entanto, o Rei dos Elfos ainda estava aqui, no Bosque dos Elfos,
comigo. Ele estava no Submundo enquanto eu estava no mundo acima, mas
nossos corações batiam no mesmo espaço.
—Não olhe para trás. — Disse ele.
Eu balancei a cabeça. Eu te amo, eu queria dizer. Mas eu sabia que essas
palavras me quebrariam.
—Elisabeth.
O Rei dos Elfos estava sorrindo. Não o sorriso pontudo do Lorde de
Travessuras ou Der Erlkönig, mas um sorriso torto. Torcido para um lado, torto
e pateta, ele quebrou meu coração e eu sangrei por dentro.
Ele murmurou uma palavra para mim. Um nome. —Você sempre teve,
Elisabeth —, ele disse suavemente. —Pois é para você que eu dei a minha alma.
A alma dele. Eu segurei minha música - nossa música - em meu coração.
Nós fomos separados para sempre, para nunca mais ficarmos juntos. A dor me
despedaçou, me partiu em pedaços afiados e irregulares. Eu queria o toque da
mão dele, para o meu jovem austero me colocar de volta, cicatrizada mas
inteira.
Mas eu já estava completa. Eu era Elisabeth, inteira, mesmo sendo
Elisabeth sozinha. O conhecimento disso me deu força.
Eu endireitei meus ombros. O Rei dos Elfos e eu seguramos os olhares
um do outro pela última vez. Eu não olharia para trás. Eu não me arrependeria.
Ele sorriu para mim e pressionou os dedos nos lábios em despedida.
Então eu me virei e fui embora, para o mundo acima e para o amanhecer.
Sempre Tua,
Sempre meu,
Sempre nosso.

—LUDWIG VAN BEETHOVEN, As Amadas Cartas Imortais


Para Franz Josef Johannes Gottlieb Vogler, cuidado do Mestre Antonius
Paris
Meu querido Sepperl,
Meu coração, meu amor, minha mão direita, eu não te abandonei. É verdade que
suas cartas não chegaram até mim, mas não é porque você ofendeu ou porque eu deixei
você. Não, mein Brüderchen, suas cartas não me alcançaram porque eu estava
inacessível, porque eu tinha ido embora.
Você empreendeu uma jornada, e eu também: uma jornada muito além e logo
abaixo do Bosque dos Elfos. É um conto cheio de magia e encantamento, como
Constanze nos disse quando éramos crianças, só que é verdade. Só isso é real. As minhas
histórias têm um final feliz? Você deve me dizer, porque não posso decidir.
Agradeço a notícia de sua apresentação de gala da minha pequena bagatela e sua
recepção. Eu oro para que você não revele sua verdadeira autoria ainda, apesar do quão
popular você diz que se tornou. É estranho pensar em Paris sofisticada, encantada com
as obras de uma garotinha esquisita e desagradável, e não posso imaginar o que diriam
quando o compositor de Der Erlkönig se revelasse Maria Elisabeth Vogler, filha de
estalajadeiros.
Eu prefiro não imaginar. Eu prefiro ver por mim mesma.
Käthe fala de nada além de publicação agora, especialmente depois de ver a taxa
que você enviou depois de vender os direitos de impressão para Der Erlkönig. Ela
assumiu o compromisso de se encontrar com Herr Klopstock, o empresário ambulante,
para aprender tudo o que pode sobre o gerenciamento de músicos, mas acho que são os
olhos castanhos de Herr Klopstock que mais intrigam nossa irmã do que os detalhes do
trabalho. Ela sente sua falta. Todos sentimos sua falta.
Quanto ao seu outro pedido... fique, Sepp. Fique em Paris com o Mestre
Antonius, com François. Não há necessidade de voltar para casa, não há necessidade,
pois lhe enviarei uma parte.
Incluídas estão algumas páginas de uma sonata que escrevi, embora o último
movimento ainda esteja inacabado. Eu envio para você com meu amor e uma folha do
Bosque dos Elfos. Diga-me o que você pensa e depois me diga o que o mundo pensa,
pois acho que é o meu melhor, meu mais honesto e mais verdadeiro.

Sempre sua,
Compositora de Der Erlkönig

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