Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Toda a sua vida, Liesl ouviu histórias do belo e perigoso Rei dos Elfos.
Eles raptaram sua mente e espírito e inspiraram suas composições musicais.
Agora com dezoito anos e ajudando a administrar a estalagem de sua família,
Liesl não pode deixar de sentir que seus sonhos musicais e fantasias da infância
estão se esvaindo.
Mas quando sua própria irmã é levada pelo Rei dos Elfos, Liesl não tem
escolha a não ser viajar para o Submundo para salvá-la. Atraída pelo mundo
estranho e cativante que encontra - e pelo homem misterioso que a governa -,
ela logo enfrenta uma decisão impossível. Com o tempo e as velhas leis
trabalhando contra ela, Liesl deve descobrir quem ela realmente é antes que
seu destino seja selado.
Glossário
Era uma vez uma garotinha que tocava sua música para um garotinho
na floresta. Ela era pequena e com cabelo escuro, ele era alto e louro, e os dois
faziam um par de fantasia enquanto dançavam juntos, dançando a música que
a garotinha ouvia em sua cabeça. Sua avó disse a ela para tomar cuidado com
os lobos que rondavam a floresta, mas a menina sabia que o garotinho não era
perigoso, mesmo que ele fosse o rei dos elfos.
Você quer casar comigo, Elisabeth? O garotinho perguntou, e a garotinha
não se perguntou como ele sabia o nome dela.
Oh, ela respondeu, mas eu sou jovem demais para casar.
Então eu vou esperar, o garotinho disse. Vou esperar o tempo que você se
lembrar. E a garotinha riu enquanto dançava com o Rei dos Elfos, o garotinho
que estava sempre um pouco mais velho, um pouco fora de alcance. À medida
que as estações mudavam e os anos passavam, a garotinha envelhecia, mas o
Rei Elfo permanecia o mesmo. Ela lavava a louça, limpava o chão, escovava o
cabelo da irmã, mas ainda corria para a floresta para encontrar seu velho amigo
no bosque. Seus jogos eram diferentes agora, verdades, desafios e ousadia.
Você quer casar comigo, Elisabeth? O garotinho perguntou, e a garotinha
ainda não entendia que sua pergunta não fazia parte de um jogo.
Oh, ela respondeu, mas você ainda não ganhou minha mão.
Então eu vou ganhar, o garotinho disse. Eu vou ganhar até você se render. E
a garotinha riu quando ela jogou contra o Rei dos Elfos, perdendo todas as
mãos e cada rodada. O inverno se transformou em primavera, primavera em
verão, verão em outono, outono de volta inverno, mas cada virada do ano
ficava cada vez mais difícil à medida que a menina crescia enquanto o Rei dos
Elfos permanecia o mesmo. Ela lavava a louça, limpava o chão, escovava o
cabelo de sua irmã, acalmava os medos de seu irmão, escondia a bolsa de seu
pai, contava as moedas e não entrou mais na floresta para ver seu velho amigo.
Você quer casar comigo, Elisabeth? O Rei dos Elfos perguntou. Mas a
menina não respondeu.
Parte 1
O mercado Elfo
1 Uma fina fatia de vitela ou outra carne leve, coberta com pão ralado e frita.
—Você? — Käthe ficou em silêncio por um momento. —Não. As rainhas
estão destinadas à grandeza.
—Grandeza? — Eu meditei. —Uma coisa pobre e simples como eu?
—Você tem algo muito mais duradouro do que beleza. — Disse ela
severamente.
—E o que é isso?
—Graça —, ela disse simplesmente. —Graça e talento.
Eu ri. —Então, qual é o meu destino?
Ela me lançou um olhar de soslaio. —Ser uma compositora de grande
renome.
Um vento frio soprou através de mim, me congelando até a medula. Era
como se minha irmã tivesse chegado ao meu peito e arrancado meu coração,
ainda batendo, com o punho. Eu tinha anotado pequenos trechos de melodia
aqui e ali, rabiscando pequenas cantigas em vez de hinos nos cantos do meu
livro de domingo, com a intenção de reuni-los em sonatas e concertos,
romances e sinfonias algum dia. Minhas esperanças e sonhos, tão esfarrapados
e tenros, haviam sido protegidos pelo sigilo por tanto tempo que não podia
suportar trazê-los à luz.
—Liesl? — Käthe puxou minha manga. —Liesl, você está bem?
—Como — eu disse com voz rouca. —Como você…
Ela se contorceu. —Encontrei sua caixa de composições embaixo da
nossa cama um dia. Eu juro que não quis fazer mal algum — Acrescentou ela
rapidamente. —Mas eu estava procurando por um botão que eu tinha deixado
cair, e...— Sua voz sumiu com o olhar no meu rosto.
Minhas mãos estavam tremendo. Como ela ousa? Como ousa abrir meus
pensamentos mais íntimos e expô-los a seus olhos curiosos?
—Liesl? — Käthe parecia preocupada. —O que há de errado?
Eu não respondi. Eu não podia responder, não quando minha irmã nunca
entenderia como ela havia se rebelado contra mim. Käthe não tinha um
mínimo de habilidade musical, quase um pecado mortal em uma família como
a nossa. Eu me virei e marquei o caminho para o mercado.
—O que eu disse? — Minha irmã correu para me acompanhar. —Eu
pensei que você ficaria satisfeita. Agora que Josef está indo embora, pensei que
papai pudesse... quero dizer, todos sabemos que você tem tanto talento
quanto...
—Pare com isso. — As palavras racharam no ar do outono, quebrando
sob a frieza da minha voz. —Pare com isso, Käthe.
Suas bochechas ficaram vermelhas como se ela tivesse sido esbofeteada.
—Eu não entendo você. — Disse ela.
—O que você não entende?
—Por que você se esconde atrás de Josef.
—O que o Sepperl tem a ver com alguma coisa? — Sepperl era o apelido
de nosso irmão.
Käthe estreitou os olhos. —Para você? Tudo. Aposto que você nunca
escondeu sua música do nosso irmãozinho.
Eu parei. —Ele é diferente.
—Claro que ele é diferente. — Käthe ergueu as mãos em exasperação. —
Precioso Josef, delicado Josef, talentoso Josef. Ele tem música, loucura e magia
em seu sangue, algo que Katharina, pobre, comum, surda, não entende, nunca
poderia entender.
Eu abri minha boca para protestar, depois fechei de novo. —Sepperl
precisa de mim. — Eu disse suavemente. Era verdade. Nosso irmão era frágil,
em mais que ossos e sangue.
—Eu preciso de você. — Ela disse, e sua voz estava quieta. Ferida.
As palavras de Constanze voltaram para mim. —Josef não é o único que
precisa de cuidados.
—Você não precisa de mim. — Eu balancei minha cabeça. —Você tem
Hans agora.
Käthe endureceu. Seus lábios ficaram brancos, suas narinas se alargaram.
—Se é isso que você pensa —, ela disse em voz baixa. —então você é ainda
mais cruel do que eu pensava.
Cruel? O que minha irmã sabia de crueldade? O mundo mostrara-lhe
muito mais favor do que jamais me mostrara. Suas perspectivas eram felizes,
seu futuro certo. Ela casaria com o homem mais elegível da aldeia enquanto eu
me tornasse a irmã indesejada, a descartada. E eu... eu tinha Josef, mas não por
muito tempo. Quando meu irmão mais novo partisse, ele levaria consigo a
última parte de minha infância: nossas aventuras na floresta, nossas histórias
de Kobold Hödekin dançando ao luar, nossos jogos de música e faz de conta.
Quando ele se for, tudo o que restaria para mim era música - música e o Rei
dos Elfos.
—Seja grata pelo que você tem —, retruquei. —Juventude, beleza e,
muito em breve, um marido que te fará feliz.
—Feliz? — Os olhos de Käthe brilharam. —Você honestamente acha que
Hans me fará feliz? Maçante, chato Hans, cuja mente é tão limitada quanto as
fronteiras da aldeia provincial estúpida em que ele cresceu? Hans, seguro e
impassível, que me manteria na estalagem com um rolo de maça na mão e um
bebê no colo?
Eu fiquei chocada. Hans era um velho amigo da família e, embora ele e
Käthe não tivessem sido tão íntimos quando crianças - como Hans e eu
havíamos sido -, até aquele momento eu não sabia o quão pouco minha irmã o
amava. —Käthe —, eu disse. —Por quê-
—Por que eu concordei em me casar com ele? Por que eu não disse nada
antes?
Eu balancei a cabeça.
—Eu disse. — Lágrimas brotaram em seus olhos. —De novo e de novo.
Mas você nunca ouviu. Esta manhã, quando eu disse que ele era chato, você
me disse que ele era um bom homem. — Ela virou o rosto. —Você nunca ouve
uma palavra do que eu digo, Liesl. Você está muito ocupada ouvindo Josef em
vez disso.
Preste atenção ao que você escolhe. Culpa coagulou minha garganta.
—Oh, Käthe —, eu sussurrei. —Você poderia ter dito não.
—Eu poderia? — Ela zombou. —Você ou mamãe me deixariam? Que
escolha eu tive senão aceitar a mão dele?
Sua acusação me destruiu, me fez cúmplice do meu próprio
ressentimento. Eu tinha tanta certeza de que esse era o jeito do mundo que eu
não questionava. O bonito Hans e a linda Käthe - é claro que eles deveriam
ficar juntos.
—Você tem escolhas —, repeti incerta. —Mais do que eu terei.
—Escolhas. — A risada de Käthe foi crua. —Bem, Liesl, você fez sua
escolha sobre Josef há muito tempo. Você não pode me culpar por fazer a
minha sobre Hans.
O resto de nossa caminhada até o mercado continuou sem outra palavra.
Venha comprar, venha comprar
2Erva perene dos Labiates (Aiuga iva), mais precisamente o almiscarado, devido ao cheiro a almíscar
que exala.
seus lábios apertados e finos. Mas ninguém podia negar que Hans era um
homem de boa aparência, muito menos eu.
—Eu? — Minha voz estava rouca, mas firme. —Por quê?
Seus olhos escuros estudaram meu rosto, uma ruga de incerteza
aparecendo entre suas sobrancelhas. —Eu... eu quero fazer as coisas certas
entre nós, Elisabeth.
—Elas não estão?
—Não. — Hans olhou para o recipiente giratório na frente dele antes de
colocar sua vareta mexendo de lado, se aproximando de mim. —Não, elas não
estão. Eu... eu senti sua falta.
De repente, era difícil respirar. Hans parecia muito grande, muito perto
demais.
—Nós éramos bons amigos uma vez, não éramos? — Ele perguntou.
—Éramos.
Eu não conseguia me concentrar através da proximidade dele. Seus
lábios formaram palavras, mas eu não as ouvi, apenas senti o roçar de sua
respiração contra meus próprios lábios. Eu me segurei rígida, querendo
empurrá-lo, sabendo que eu deveria me afastar.
Hans segurou meu pulso. —Liesl...
Assustada, eu olhei para onde seus dedos estavam em volta do meu
braço. Por muito tempo, eu queria tocá-lo, pegar suas mãos e sentir os dedos
entrelaçados aos meus. No entanto, no momento em que Hans me tocou por
vontade própria, pareceu-me irreal. Era como se eu estivesse olhando para a
mão de outra pessoa e para o pulso de outra pessoa.
Ele não era meu. Ele não poderia ser meu.
Poderia ele ser?
—Katharina se foi.
Constanze entrou na cozinha. Hans e eu pulamos separados, mas minha
avó não notou o rubor nas minhas bochechas. —Katharina se foi. — Ela disse
novamente.
—Se foi? — Eu lutei para reunir minha compostura caída e cobrir meu
desejo exposto. —O que você quer dizer? Foi para onde?
—Acabou de sair. — Ela chupou um dente solto.
—Eu enviei Josef para buscá-la.
Ela encolheu os ombros. —Ela não está em nenhum lugar na pousada, e
sua capa vermelha está faltando.
—Eu vou procurá-la. — Hans ofereceu.
—Não, eu vou. — Eu disse apressadamente. Eu precisava colocar minha
mente e meu corpo de volta em seus devidos espaços. Eu precisava me afastar
dele e me encontrar na floresta.
Os olhos escuros da minha avó entediaram-me. —O que você finalmente
escolheu garotinha? — Ela perguntou suavemente. Ela estava debruçada sobre
sua bengala retorcida como uma ave de rapina, seu xale preto pendurado sobre
os ombros como asas de corvo.
A memória da carne sangrenta da fruta dos elfos correndo pelo rosto da
minha irmã e os dedos voltaram para mim. Josef não é o único que precisa cuidar.
Eu quero vomitar.
—Depressa —, insistiu Constanze. —Eu temo que ela Pertença ao Rei dos
Elfos agora.
Eu corri para fora da cozinha e para o grande salão, limpando as mãos
no meu avental. Peguei um xale do cabide, envolvi-o nos ombros e fui procurar
minha irmã.
Não me aventurei muito na mata, pensando que Käthe continuaria perto
de casa. Ao contrário de Josef ou de mim, ela nunca sentira um parentesco
particular com as árvores, pedras e riachos na floresta. Ela não gostava de lama,
nem de sujeira nem de umidade, preferindo ficar no interior, onde estava
quente, onde poderia se enfeitar e ser mimada.
No entanto, minha irmã não estava em nenhum dos lugares habituais
dela. Normalmente, o mais longe que ela se aventurou foi para os estábulos
(não possuíamos cavalos, mas os visitantes ocasionalmente viajavam a cavalo),
e às vezes para o depósito de madeira, onde as gramas ao redor da nossa
pousada terminavam e as bordas selvagens da floresta começavam.
Havia o cheiro fraco e impossível de pêssegos do verão amadurecendo
na brisa.
O aviso de Constanze ecoou em minha mente. Ela é do Rei dos Elfos agora.
Enrolei meu xale sobre mim e corri para a trilha na floresta.
Passando pelo depósito de madeira, passando pelo riacho que corria
atrás de nossa pousada, no fundo do coração selvagem da floresta, havia um
círculo de amieiros que chamamos de Bosque dos Elfos. As árvores cresciam
de modo a sugerir braços torcidos e membros monstruosos congelados em
uma dança eterna, e Constanze gostava de nos dizer que as árvores haviam
sido seres humanos - jovens mulheres impertinentes - que desagradavam Der
Erlkönig. Quando crianças brincávamos aqui, Josef e eu tocávamos,
cantávamos e dançávamos, oferecendo nossa música ao Lorde de Mischief. O
Rei dos Elfos era a silhueta em torno da qual minha música era composta, e o
Bosque dos Elfos era o lugar onde minhas sombras ganhavam vida.
Eu observei uma forma escarlate na floresta à minha frente. Käthe na
minha capa, caminhando para o meu espaço sagrado. Um irracional, pequeno
corte de irritação cortou meu pavor e desconforto. O Bosque dos Elfos era meu
refúgio, meu santuário. Por que ela deve levar tudo o que era meu? Minha irmã
tinha um dom para transformar o extraordinário no ordinário. Ao contrário de
meu irmão e eu - que vivíamos no éter da magia e da música -, Käthe vivia no
mundo do real, do tangível, do mundano. Ao contrário de nós, ela nunca teve
fé.
Névoa enrolada nas bordas da minha visão, obscurecendo a distância
entre os espaços, fazendo parecer o perto distante. O Bosque dos Elfos ficava a
poucos minutos a pé de nossa estalagem, mas o tempo parecia estar me
enganando, e parecia que eu andara andando para sempre e não minutos.
Então lembrei que o tempo - como a memória - era apenas mais um dos
brinquedos do Rei dos Elfos, um brinquedo que ele podia dobrar e esticar à
vontade.
—Käthe! — Eu gritei. Mas minha irmã não me ouviu.
Quando criança, fingi vê-lo, Der Erlkönig, esse misterioso governante
clandestino. Ninguém sabia como ele era e ninguém sabia qual era sua
verdadeira natureza, mas eu sabia. Ele parecia um menino, um jovem, um
homem, qualquer coisa que eu precisasse que ele fosse. Ele era brincalhão,
sério, interessante, confuso, mas ele era meu amigo, sempre meu amigo. Era
fictício, é verdade, mas até mesmo acreditar era uma espécie de crença.
Mas essas eram as fantasias de uma menininha, Constanze me contou. O
Rei dos Elfos não era nenhuma das coisas que eu sabia que ele era. Ele era o
Senhor da Malícia - mercurial, melancólico, sedutor, belo -, mas ele era, acima
de tudo, perigoso.
—Perigoso? — A pequena Liesl perguntou. — Perigoso como?
—Perigoso como um vento de inverno, que congela a medula por dentro, e não
como uma lâmina, que corta a garganta de fora.
Mas eu não deveria me preocupar, pois apenas mulheres bonitas eram
vulneráveis aos encantos do Rei dos Elfos. Elas eram sua fraqueza e ele era
delas; elas o queriam - sinuoso, enlouquecido e indomável - do jeito que elas
queriam segurar a chama ou a névoa da vela. Porque eu não era bonita, nunca
senti o peso das advertências de Constanze sobre o Rei dos Elfos. Como Käthe
não era imaginativa, ela também nunca teve.
E agora eu temia por nós duas.
—Käthe! — Eu gritei novamente.
Eu peguei minhas saias e meu ritmo, correndo atrás da minha irmã. Mas
não importa o quão rápido eu corria, a distância entre nós nunca se fechava.
Käthe continuava andando em seu caminho lento e firme, mas eu nunca
conseguia alcançá-la. Ela estava tão longe de mim como quando eu parti atrás
dela.
Minha irmã entrou no Bosque dos Elfos e fez uma pausa. Ela olhou por
cima do ombro, diretamente para mim, mas ela nunca me viu. Seus olhos
examinaram a floresta, procurando por algo - ou alguém - específico.
De repente ela não estava sozinha. Lá no Bosque dos Elfos, ao lado da
minha irmã, como se ele sempre estivesse lá, estava o estranho alto e elegante
do mercado. Ele usava sua capa e capuz, que escondia seu rosto de mim, mas
Käthe olhou para ele com uma expressão de adoração.
Eu parei no meu caminho. Käthe tinha um sorrisinho estranho no rosto,
um sorriso que eu nunca vira antes, o sorriso fino e fraco de um inválido diante
de um novo dia. Seus lábios pareciam mordidos e sua pele estava pálida. Eu
me senti estranhamente traída, por Käthe ou o alto e elegante estranho, eu não
tinha certeza. Eu não o conhecia, mas ele parecia me conhecer. Ele era apenas
outra coisa que Käthe havia tirado de mim, outra coisa que ela havia roubado.
Não era ele?
Eu estava prestes a marchar direto para o Bosque dos Elfos e arrastar
minha irmã de volta para casa, em segurança, quando o estranho recuou seu
capuz.
Eu suspirei.
Eu poderia dizer que o estranho era lindo, mas descrevê-lo assim era
chamar Mozart de “apenas um músico”. Sua beleza era a de uma tempestade
de gelo, adorável e mortal. Ele não era bonito, não do jeito que Hans era bonito;
as feições do estranho eram longas demais, pontudas demais, estranhas
demais. Havia uma beleza sobre ele que era quase feminina, e uma fealdade
sobre ele que era tão convincente quanto. Compreendi então o que Constanze
quisera dizer quando aquelas jovens condenadas desejavam segurá-lo da
maneira que ansiavam por captar a chama ou a névoa da vela. Sua beleza doía,
mas era a dor que a tornava bonita. No entanto, não era sua beleza estranha e
cruel que me movia, foi o fato de que eu conhecia aquele rosto, aquele cabelo,
aquele olhar. Ele era tão familiar para mim quanto o som da minha própria
música.
Este era o Rei dos Elfos.
Cheguei a essa conclusão sem mais surpresa do que se tivesse encontrado
o padeiro local. O Rei dos Elfos sempre foi meu vizinho, um acessório em
minha vida, tão seguro quanto o campanário da igreja, o comerciante de
tecidos e a pobreza que perseguia os calcanhares de minha família. Eu cresci
com ele do lado de fora da minha janela, assim como eu crescera com Hans, a
leiteira e as damas da praça da aldeia. Claro que eu o reconheci. Se eu não
tivesse visto seu rosto todas as noites em meus sonhos, em minhas fantasias
infantis? No entanto... não tinha sido tudo isso - fingir?
Este era o Rei dos Elfos. Essa era minha irmã em seus braços. Esta era
minha irmã inclinando a cabeça para trás para cumprimentar seus lábios.
Aquele era o Rei dos Elfos se abaixando para receber seus beijos como
oferendas sagradas feitas no altar de sua adoração. Este era o Rei dos Elfos
correndo dedos longos e finos para baixo da linha do pescoço da minha irmã,
seu ombro, suas costas. Essa era minha irmã rindo, seu riso musical alegre, e
esse era o Rei dos Elfos sorrindo em troca, mas olhando para mim, sempre
olhando. Fiquei fascinada; minha irmã ficou encantada.
Encantada. A palavra foi uma pitada de água fria e meus sentidos
voltaram com um solavanco. Este erea o Rei dos Elfos. O sequestrador de
donzelas, o punidor de más ações, o Senhor do Mal e do Submundo. Mas ele
também não era amigo da minha infância, o confidente da minha juventude?
Eu hesitei, dilacerado por desejos conflitantes.
Eu balancei a cabeça. Eu tinha que resgatar minha irmã. Eu tinha que
quebrar o encanto.
—Käthe! — Eu gritei. As árvores ressoaram e uma cacofonia estridente
de corvos assustados pegou meu grito. Ka-kaw! Ka-kaw! Ka-Käthe!
Desta vez o Rei dos Elfos tomou nota. Ele levantou a cabeça e trancamos
olhares sobre a forma estupefada da minha irmã. Seus cabelos claros rodeavam
seu rosto magro como um halo, como uma nuvem de cardo, como a juba
desgrenhada de um lobo, prateada e dourada e sem cor de uma só vez. Eu não
sabia dizer de que cor eram seus olhos de onde eu estava, mas eles eram
igualmente pálidos e gelados. O Rei dos Elfos inclinou a cabeça em um aceno
de duelista e me deu um pequeno sorriso, as pontas dos dentes afiados e
pontiagudos. Eu cerrei meus punhos. Eu conhecia esse sorriso. Eu reconheci e
entendi como um desafio.
Venha resgatá-la, minha querida, dizia o sorriso. Venha e resgate ela... se você
puder.
Virtuoso
—Käthe!
Eu corri para frente quando minha irmã entrou em colapso. O pânico me
galvanizou, transformando meu sangue em aço, e corri para pegá-la antes que
ela caísse. Minha irmã se encostou em mim, seu corpo flácido, seu rosto pálido
apertado e puxado.
—Käthe, você está bem?
Ela piscou devagar, seus olhos azuis vítreos e desfocados. —Liesl?
—Sim. — Eu fiz uma careta. —O que você está fazendo aqui?
Nós nos ajoelhamos no Bosque dos Elfos, que não era o lugar habitual da
minha irmã. Ela me levou a uma alegre perseguição, procurando por ela uma
colina e um vale, quando muito precisava ser feito antes que o Mestre Antonius
acordasse. Eu estava irritada com ela - devia ter ficado irritada com ela -, mas
meus pensamentos eram curiosamente lentos, como se descongelassem depois
de um longo inverno.
—Aqui? — Käthe se esforçou para se sentar. —Onde estamos?
—O Bosque dos Elfos —, eu disse impaciente. —Onde os amieiros
crescem.
—Ah. — Um sorriso sonhador tocou seus lábios. —Eu vim porque ouvi.
—Ouviu o que?
Suas palavras balançaram algo solto em minha mente, meus
pensamentos se espalhando pelo chão como folhas caindo. Mas eram apenas
pequenas impressões - penas, gelo, olhos pálidos - que desapareciam assim
que eu tentava segurá-las, como flocos de neve na mão.
—A música.
—Que música? — Aquela memória meio acordada fez cócegas
novamente, uma coceira que eu não pude arranhar.
Ela virou seu sorriso para mim. —Você, de todas as pessoas, deveria ter
reconhecido isso. Você não consegue ouvir o som da sua própria alma
cantando?
Um sorriso grotesco cruzou o rosto da minha irmã, os lábios sem sangue
esticados sobre uma boca escancarada e sombria. Eu recuei.
—É algo importante?
Eu pisquei e seu sorriso se foi. Havia um pouco de franzir nos lábios de
Käthe, petulante e fazendo beicinho, e ela estava com os olhos arregalados,
bochechas coradas e linda mais uma vez. Mas havia manchas escuras sob os
olhos, a pele pálida.
—Sim —, eu disse irritada. —O fato de estarmos aqui e não lá, na
estalagem. — Ajudei minha irmã a ficar de pé. —O que você estava fazendo
aqui fora?
Käthe riu, mas não soava como a dela. Havia insinuações de floresta
escuras de inverno e gelo quebrando sob aqueles tons brilhantes e marcantes,
e minha pele arrepiou, minha mente coçou.
—Ter palavras com um velho amigo.
—Que velho amigo? — Concentrei-me em colocar Käthe em pé e passei
o braço pelos ombros. Sua pele estava fria e úmida sob o meu toque, e ela
parecia mais um cadáver do que uma garota viva.
—Você —, ela disse novamente. —Como você esqueceu os velhos
tempos, Elisabeth.
Eu congelo. Käthe não fez nenhum movimento para continuar sem mim.
Ela me observava, com a cabeça inclinada para um lado, um meio sorriso nos
lábios, ambos brincalhões e doces.
Minha irmã nunca me chamou de Elisabeth.
—Você sempre falou dele como um amigo, você sabe —, disse ela em voz
baixa. —Um amigo, um companheiro de brincadeiras, um amante. — Sua
expressão mudou, mais aguda, astuta. Seu queixo parecia pontudo, as maçãs
do rosto como uma lâmina. —Você disse que iria se casar com ele algum dia.
Hans. Não, não Hans. Ele estava de volta à estalagem. Um velho amigo
na floresta, uma garota em um bosque, um rei em seu reino...
Essa coceira em minha mente ficou insuportável. Desesperadamente, eu
me agarrei, procurando e procurando por uma memória que não consegui
encontrar. Algo estava faltando. Algo se foi. O que havíamos feito antes disso?
Como chegamos aqui? O pressentimento cresceu dentro de mim,
pressentimento e medo, subindo como águas escuras em uma inundação.
—Käthe —, eu disse, a voz embargada. —O que-
Uma juba de prata e ouro, um par de olhos tão frio como gelo, um desafio
num sorriso. Eu quase a peguei, quase a descobri
Então minha irmã riu. Era a sua própria risada, brilhante e musical. —
Oh, Liesl— , ela disse, —você é muito fácil de provocar.
Escuridão e sombra se foram, a sensação de que um feitiço havia sido
quebrado. —Eu te odeio. — Eu gemi.
Käthe sorriu. Eu pensei ter visto aquele lampejo de lábios sem sangue e
uma boca escura como vinho, mas era seu próprio sorriso doce. —Venha —
disse ela, tomando o meu braço no dela. —Perdemos tempo suficiente. Mestre
Antonius acordará a qualquer momento e tenho certeza de que mamãe se
meteu em um frenesi.
Eu balancei a cabeça e me juntei, deixando minha irmã se apoiar em mim
como uma muleta. Juntas nós mancamos de volta para casa, de volta para a
realidade, de volta para o mundano.
3 Uma unidade monetária da Áustria (até a introdução do euro), igual a um centésimo de um xelim.
Fechei o estojo, peguei o dinheiro e guardei os dois em um lugar seguro.
4Um piano forte é um piano antigo. Em princípio, a palavra "piano forte" pode designar qualquer
piano que data da invenção do instrumento por Bartolomeo Cristofori por volta de 1700 até o início do
século XIX.
—Vou mandar o menino falar por si mesmo, Georg —, disse o Mestre
Antonius. Ele se voltou para Josef. —Bem —, ele disse. —Como você responde?
Meu irmão primeiro olhou para mim, depois para papai. —Eu tenho
estudado desde que eu tinha três anos de idade, senhor.
Mestre Antonius bufou. —Deixe-me adivinhar: teclado, teoria, história e
composição, hein?
—Sim senhor.
—E seu pai também te ensinou em francês e italiano, presumo?
Josef parecia chocado. Além de bávaro e alemão, falamos um pouquinho
de francês, e o pequeno italiano que conhecíamos era o musical italiano.
—Não importa, eu posso ver que ele não fez. — Mestre Antonius acenou
com a mão com desdém. —Então —, disse ele, acenando para o violino na mão
de Josef. —Vamos ver o que você pode fazer.
Não havia como disfarçar o ceticismo e o desprezo na voz do velho
maestro. Ele deve ter ficado imaginando por que Georg Vogler nunca levara
seu filho a nenhuma das capitais para mais instrução, se a habilidade de Josef
fosse realmente de algum valor.
Porque, pensei com desespero, o pai não consegue enxergar mais do que
o fundo da próxima bebida dele.
—Bem? — Mestre Antonius perguntou quando Josef hesitou. —O que
você vai tocar, garoto?
—Uma sonata de Haydn. — Meu irmão disse, gaguejando um pouco.
Meu estômago se apertou em miséria solidária.
—Haydn, eh? Nunca compus nada de valor para o violino. Qual?
—O-o em D major. N-número dois.
—Eu suponho que você vai precisar de acompanhamento. François!
Tanto Josef como eu saltamos quando um jovem esguio se materializou
ao lado do Mestre Antonius, surpreso com a aparição súbita do valete. Mas eu
não sabia o que mais nos surpreendeu - a beleza do jovem, ou sua pele escura.
—Este é meu assistente, François —, disse o Mestre Antonius, ignorando
os suspiros e lacunas das massas reunidas. —Ele infelizmente não é um
violinista, mas ele toca o teclado com maestria.
Minhas sobrancelhas se ergueram ao escárnio nas palavras do velho. O
jovem, impecavelmente vestida com um casaco dourado e marfim, calça de
pele de gamo e peruca, parecia mais um animal de estimação bonito do que
um assistente de músico. Meu estômago começou a afundar de medo; Que tipo
de homem era o mestre Antonius?
Josef pigarreou e me lançou um olhar de pânico. Nós praticamos juntos
e, portanto, esperávamos tocar juntos. Eu dei um passo para frente.
—Se você quiser —, eu disse. —Eu gostaria de acompanhar meu irmão.
O Mestre Antonius me notou pela primeira vez. —Quem é?
—Minha filha Elisabeth também é educada em música —, disse Papa. —
Você deve perdoá-la, maestro; Eu gostava de suas fantasias quando criança.
Eu estremeci. Sim, papai havia me ensinado música - não por meus
próprios méritos, mas como um meio para um fim. Eu era uma reflexão tardia,
uma acompanhante, não uma música por direito próprio.
—Uma verdadeira família de músicos —, comentou o mestre Antonius
com voz seca. —Uma Nannerl normal para o garoto Wolfgang, é? 5
Papai sacudiu a cabeça. —Nós vamos, é claro, se submeter ao jovem
mestre François aqui, se esse é o seu desejo, Antonius.
5 Nannerl era o apelido da irmã igualmente talentosa de Wolfgang Amadeus Mozart, Maria Anna.
Mestre Antonius assentiu. —François, assieds-toi et aide le petit poseur
com música, sonate de Haydn, s'il te plait. Numéro deux, majeur D. 6
François fez uma reverência aguda e caminhou até o piano forte, tirando
os cotovelos enquanto se sentava no banco, dando-nos um lampejo de forro de
seda azul-celeste. Sua postura no meio dos olhares curiosos e nada amigáveis
do público foi incrível. O jovem colocou as mãos sobre o teclado e acenou para
o meu irmão, aguardando sua sugestão.
Josef estava ansioso. A juventude era linda: sua pele lisa e completamente
impecável, seus lábios cheios, seus olhos escuros, seus cílios longos. Nós nunca
vimos uma pessoa negra antes, mas eu não achei que fosse a cor da pele de
François que cativou meu irmão.
Limpei a garganta e Josef se encolheu. Ele imediatamente se ocupou com
seu violino, suas bochechas flamejantes, incapazes de encontrar o olhar de
François. O jovem tinha um leve sorriso tímido no rosto.
Meu irmão conseguiu recuperar a compostura e acenou para François,
definindo o ritmo com seu arco. Os dois começaram a tocar e um silêncio caiu
sobre o salão.
Para o ouvido não treinado, pode ter sido difícil distinguir o de Josef - ou
mesmo o de François - de qualquer outro músico profissional. Eles tocaram
todas as suas notas com precisão e clareza, com um fraseado impecável. Mas
se você conhecesse meu irmão como eu, ou mesmo se você amasse música,
poderia sentir a inteligência, a intenção, por trás de sua performance. Ele
interpretava o que estava escrito em algo quase como a fala, como se ele
pudesse arrancar palavras e frases das notas e frases.
6 Sente-se e ajude o pequeno músico, a sonata de Haydn, por favor. Número dois, D maior.
Mas a maioria dos convidados reunidos não era treinada em música, e
logo depois que os dois começaram a tocar, o baixo burburinho da conversa
surgiu mais uma vez. A maioria retornou à sua comida e bebida, mantendo
suas vozes baixas para um murmúrio respeitoso. Poucos educados
concentraram sua atenção em Josef e François: Mestre Antonius, minha família
e Hans. Mas eu espiei outro em um canto escuro do salão, e meu coração parou.
Era o rei dos elfos.
Ele estava sentado entre nós, descarado e de rosto limpo, discretamente
vestido com calças de couro e um casaco de lã áspero. No entanto, era difícil
perder sua altura incomum, seu físico esbelto, sua estranha coloração, tão
completamente diferente do resto de nós, camponeses encorpados e de cabelos
escuros. O Rei dos Elfos chamou minha atenção. Seu olhar alcançou através de
mim, tocando algum núcleo privado dentro de mim que ninguém mais podia
ver. Seus lábios se torceram para um lado, um sorriso sardônico.
Sua presença arranhou aquela coceira em minha mente, aquela sensação
mesquinha de algo perdido. E então tudo voltou para mim em uma onda de
medo: dedos finos e frutas sangrentas, minha irmã em um manto vermelho em
um bosque de inverno, uma conversa esquecida entre os amieiros. De repente,
éramos apenas nós dois, suspensos em um momento. O tempo, como a
memória, era apenas mais um dos seus brinquedos.
Eu fui rasgada. Eu queria confrontá-lo. Eu queria ignorá-lo. Mas eu
estava com medo de me aproximar do Rei dos Elfos, com medo de reconhecer
sua existência. Confrontá-lo era torná-lo real, e eu queria mantê-lo meu
segredo bonito e indulgente.
— Sim, sim. — Murmurou o Mestre Antonius, assentindo com
aprovação.
O momento estourou e os sons de Josef e François tocando retornaram
para mim, bonitos e puros.
—Muito impressionante. Muito impressionante mesmo.
Minhas esperanças se levantaram. Mestre Antonius exibia uma
expressão presunçosa e autocongratulatória em seu rosto.
—François é um bom espécime, não?
O desgosto passou por mim. Este era o homem em cujas mãos estávamos
confiando a carreira de Josef.
—Impressionante —, continuou o mestre Antonius em um sussurro
conspiratório, em voz baixa, para meu pai. —Eu o peguei como um bebê de
um viajante de Saint-Domingue. Sua mãe era escrava em Hispaniola e seu pai,
um marinheiro sem conta. Não é um fragmento de habilidade musical entre os
dois, e olhe para ele agora! Prova de que se você os tornar jovens, você pode
treinar esses negróides como qualquer outra pessoa.
Eu ia vomitar. De todas as pessoas, o velho virtuoso deveria saber que a
música era um presente de Deus para o homem. Música e uma alma.
Habilidades poderiam ser ensinadas, mas o talento não poderia. Os dedos de
François voaram sobre o teclado com facilidade, e a prova de sua alma estava
em seu jogo, mais humana que o Mestre Antonius.
Eu não aguentava mais assistir. Desabitada, meus olhos foram para o
canto escuro onde eu vira o Rei dos Elfos pela última vez, mas não havia
ninguém lá. Talvez eu o tenha imaginado depois de tudo.
Mais dois movimentos na sonata para ir, mas pude ver que o mestre
Antonius já havia se decidido. Ninguém podia negar a habilidade de Josef, mas
havia algo faltando nas notas, algo especial, algo mais.
Papai cometeu um erro, pensei. Haydn era cerebral demais para meu
irmão; Josef teria sido melhor servido por Vivaldi, como eu sugerira. Vivaldi
era violinista; ele sabia das capacidades do instrumento e escrevia para eles.
Josef sabia disso. Eu sabia disso. Papai também sabia disso uma vez.
O salão principal estava excessivamente quente agora, recheado de
corpos que digeriam confortavelmente seus Kraut, Wurst e Bier.7 Josef e
François continuaram ignorando tudo, menos a alegria da performance um do
outro. Notei como eles respondiam às pistas um do outro: o balanço do corpo
de meu irmão, a inclinação dos ombros de François, eles tocavam como
amantes que conheciam todas as nuances dos suspiros do outro. Lágrimas
começaram nos meus olhos.
Aplausos educados surgiram no salão quando o movimento chegou ao
fim. Josef e François sorriram um para o outro, um brilho de alegria banhando
ambos os rostos. Papai bateu palmas como um demônio, mas o mestre
Antonius escondeu um bocejo aborrecido atrás de sua mão.
—Muito bom, muito bom —, disse o velho virtuoso a Josef. —Você é
muito talentoso, jovem rapaz. Você irá longe com o professor certo.
O rosto do meu irmão caiu. Josef era ingênuo, não cego, e ele sabia
exatamente o que o Mestre Antonius não tinha oferecido junto com seus
parabéns: um aprendizado.
—Sim, senhor. — Seus olhos azuis brilhavam à luz do fogo. —Meus
agradecimentos pela oportunidade de tocar para você.
A visão das lágrimas não derramadas do meu irmão foi a última gota. —
E quem é o professor certo, maestro? — Minha voz cortou a nuance dos
suspiros do outro. Lágrimas começaram nos meus olhos.
—Liesl!
A voz era abafada, como se ouvida através de gelo ou água.
—Liesl! Liesl!
Eu tentei abrir meus olhos, mas eles estavam congelados. Depois de
alguns instantes, consegui abrir um, e através do gelo e dos cílios
emaranhados, pude ver uma forma borrada correndo em minha direção.
—Hans? — Eu resmunguei.
—Você está viva! — Ele apertou a mão na minha bochecha, mas eu não
senti nada: sem calor, sem sensação de toque, nada além de leve pressão. —
Por Deus, Liesl, o que aconteceu com você?
Eu não pude responder. Mesmo se pudesse, não queria responder. Hans
me pegou nos braços e me levou de volta à estalagem.
Eu não sentia nada além de frio, nada de vida, de calor, ou dos braços de
Hans ao redor das minhas pernas, embaixo das minhas costas, suas mãos
enroladas em volta do meu peito. Era como se eu estivesse morta. Eu também
poderia estar morta. Eu sacrifiquei minha irmã pelo meu irmão. Novamente.
Eu merecia morrer.
—Käthe. — Eu disse. Mas Hans não me ouviu.
—Temos que entrar e aquecer imediatamente —, disse ele. —Deus, Liesl,
o que você estava pensando? Sua mãe e Josef estavam frenéticos de
preocupação; Josef até ameaçou não se unir ao mestre Antonius até que você
fosse encontrada.
—Käthe. — Eu tentei novamente.
—Seu pai estava fora de si; Eu pensei que ele tivesse enlouquecido!
Nunca mais quero vê-lo bêbado de novo.
Quanto tempo eu tinha ido embora? Não poderia ter passado mais de
uma hora - no máximo duas - que passei no bosque com o Rei dos Elfos.
—Como - quanto tempo... — Minha garganta estava rouca, minha voz
rangeu com o desuso.
—Três dias. — A calma do tom de Hans não disfarçou o medo e pânico
real em sua voz. —Você esteve fora por três dias. A audição de Josef com o
Mestre Antonius foi há três dias.
Três dias? Como isso é possível? Hans deve estar exagerando.
Sem truques. Sem trapaça Não tire minhas memórias. Não brinque com
o tempo. O Rei dos Elfos já havia quebrado suas promessas.
Mas ele não me fez nenhuma. Eu prometo a você uma coisa e uma coisa só.
Seus olhos permanecerão abertos. Meus olhos estavam abertos. Eu me lembrava
de tudo.
—Käthe. — Eu disse novamente, mas Hans me calou com um dedo
contra os meus lábios.
—Não fale agora, Liesl. Estou aqui. Eu cuidarei de você —, disse ele. —
Eu vou cuidar de todos vocês, nunca você terá medo.
Sem promessas, o Rei dos Elfos havia dito. Seus olhos permanecerão abertos,
mas você não pode me negar o poder de obscurecer as mentes dos outros, pois isso se
ajusta aos meus propósitos.
Enquanto Josef se preparava para a partida com o mestre Antonius e com
François, minha mãe insistiu em que eu ficasse em meu quarto e me
“recuperasse”.
—Você merece um descanso, minha querida —, disse ela. —Você
trabalhou tanto para cuidar de nós; deixe-nos agora cuidar de você.
Eu não estou doente! Tentei dizer, mas não adiantou. Quanto mais eu
procurava por memórias perdidas de todos da minha irmã, mais convencidos
eles eram de que a razão me abandonara.
Não foi minha mente que tinha quebrado.
Ou foi?
Käthe se foi, mas ela estava mais do que desaparecida; ela nunca existiu.
Todos os vestígios dela foram varridos completamente de nossas vidas e nada
permaneceu, nem mesmo uma mecha de seu cabelo dourado. Não havia flores
silvestres secas do prado. Sem fitas. Sem renda. Nada. Ela simplesmente nunca
tinha estado aqui.
Seus olhos permanecerão abertos.
Meus olhos estavam abertos, mas não podiam mais confiar no que viam,
pois não era o que eles se lembravam.
Certa manhã, acordei e encontrei que o klavier dos aposentos de Josef
havia sido transferido para o meu.
—Quem colocou isso aí? —, Perguntei a Hans. —Como você moveu isto
sem minha audição?
Hans franziu a testa. —O klavier sempre esteve no seu quarto, Liesl.
—Não, — eu disse. —Não, não tem. Como poderia? Josef e eu praticamos
em seus aposentos.
—Você e Josef sempre praticaram no baixo piano-forte —, disse Hans.
Seu tom era paciente, mas seus olhos estavam preocupados. —Este é seu
próprio klavier pessoal, Liesl. Viu? — Ele apontou para uma pilha de música
colocada na tampa, com anotações rabiscadas na minha mão.
—Mas eu nunca... — eu peguei as notas. Parecia ser o começo de uma
composição, que eu não me lembrava de ter escrito. Eu bati levemente a
melodia no teclado. Sétima maior, minhas anotações diziam.
A lembrança de um momento roubado antes do teste do meu irmão
voltou para mim. Um pouco para manter sua promessa, ele disse. Sétima maior,
claro, é com isso que você começa.
Mas era uma lembrança verdadeira ou falsa? Eu já tinha começado a
escrever isso antes da nossa conversa? Ou foi esse outro sonho que eu desejei
existir?
Hans colocou as mãos nos meus ombros e me guiou até o banco. Seu
toque era íntimo, mas minha mente recuou. Ele não era meu. Ele nunca foi
meu.
—Aqui, Liesl —, disse ele suavemente. —Toque. Componha. Eu sei o
quanto sua música lhe traz consolo.
Liesl. Eu sempre fui assim? Eu pensei que poderia lembrar as palavras
Fräulein e Elisabeth em seus lábios, uma distância tão vasta que só poderia ser
superada pelo constrangimento.
—Hans-Hansl. — O carinho provou estranho na minha língua.
—Sim? — Seu olhar era terno e errado. Hans nunca tinha olhado para
mim desse jeito, nunca me considerou nada além de uma irmã.
—Nada —, eu disse finalmente. —Nada.
Com o passar dos dias, era cada vez mais difícil manter minha
determinação, minhas convicções, minha sanidade. Muitas vezes eu virava
uma esquina esperando ver um lampejo de ouro ou ouvir o eco de uma risada
tilintante. A memória de Käthe nesses corredores estava desaparecendo
rapidamente, deixando nada além de partículas de poeira na luz fraca. Talvez
eu nunca tivesse tido uma irmã. Talvez eu estivesse brava. Talvez minha razão
tivesse de fato me abandonado.
Sepperl, Sepperl, o que devo fazer?
Mas se a razão me abandonou, o mesmo aconteceu com meu amado
irmãozinho. Mais frequentemente do que não, Josef era encontrado com
François, os dois conversando em uma mistura de francês, alemão, italiano e
música. O Mestre Antonius estava ansioso para partir, mas uma tempestade
de gelo fora de época antecipadamente havia parado todas as viagens por mais
alguns dias. Mas o velho virtuoso tinha mais com o que se preocupar do que
algumas estradas intransponíveis; Soldados franceses rastejavam pelo nosso
campo como uma infestação de baratas, e os rumores perturbadores da guerra
iminente pairavam sobre nossas cabeças.
Eu não deveria estar com ciúmes. Eu prometi que não ficaria com ciúmes.
Mas inveja me comia por dentro de qualquer maneira. Eu via como os olhos
de Josef brilhavam sempre que ele via François, como o jovem de pele escura
sorria de volta. Meu irmão estava me deixando para trás em mais de uma
maneira. Como Käthe e Hans, como mamãe e papai, Josef estavam entrando
em um mundo que parecia para sempre barrado para mim.
O futuro brilhava à frente de Josef, uma cidade brilhante no final de uma
longa estrada. Sua vida se estendia à frente dele, excitante e desconhecida,
enquanto a minha começava e terminava aqui, na estalagem. Com Josef fora,
quem iria ouvir minha música? Quem iria me ouvir?
Pensei em Hans e seus doces e castos gestos em minha direção. Imaginei
risadinhas sufocadas, brincadeiras privadas e compartilhadas, improvisação
de baixo contínuo e triplo. Eu sonhava com toques fugazes, beijos desleixados,
respirações sussurradas e murmúrios no escuro da noite quando pensávamos
que ninguém podia ouvir. Desejava o amor, o etéreo e o físico, o sagrado e o
profano, e me perguntava quando eu, como meu irmão, como minha irmã,
atravessaria esse limiar em conhecimento a partir da inocência.
Recuei para o abraço reconfortante do meu klavier mais e mais, à medida
que a data de partida do meu irmão se aproximava. Sem a mão orientadora de
Josef, a cifra ficou selvagem e descontrolada. Suas frases musicais não se
resolviam de acordo com uma progressão lógica e racional; eles iam para onde
meus voos de fantasia os levavam. Eu deixava elas irem onde elas vão. Os
resultados foram ligeiramente dissonantes, estranhos e inquietantes, mas eu
não me importei. Afinal, eu não era criança de beleza; Eu era uma criança do
estranho e do selvagem.
Eu tinha a forma da peça agora, sua ascensão, queda e resolução. Era
bastante simples, especialmente para um virtuoso como Josef. Eu tinha escrito
com o violino em mente, para ser acompanhado pelo piano-forte. Eu queria
ouvir meu irmão tocar, queria ouvir como isso se transformaria em suas mãos.
Alguns dias depois, consegui o meu desejo.
François estava atendendo ao Mestre Antonius, que havia tomado um
“frio leve”, embora parecesse mais um ataque de inveja ciumento - ele não foi
o único a ser abandonado por alguém que ele amava, eu percebi. Encontrei
Josef em um raro momento sozinho no corredor principal, cuidando
amorosamente de seu violino. O crepúsculo estava caindo, e as sombras
esculpiram os planos de seu rosto em relevo acentuado. Meu irmão parecia um
anjo, um espirito, uma criatura que não era bem deste mundo.
—Acha que os kobolds estarão fora esta noite? — Eu perguntei
suavemente.
Ele se assustou. —Liesl! — Ele colocou o pano úmido e enxugou as mãos
na calça. —Eu não vi você lá. — Ele se levantou do seu lugar junto à lareira,
braços abertos para me abraçar.
Eu entrei direto neles. Com uma pontada, percebi que ele era de uma
altura parecia com a minha. Quando isso aconteceu?
—O que está acontecendo? — Ele perguntou, sentindo minha mágoa.
—Nada. — Eu sorri para ele. —É só... você está crescendo, Sepp.
Ele riu. Ele ressoou no fundo do peito, a risada de um homem, um baixo.
Embora Josef ainda mantivesse a doce soprano de um menino, sua voz
percorreu a borda da ruptura. —Nunca é nada com você.
—Não. — Eu admiti. Eu envolvi minhas mãos ao redor dele. —Eu tenho
algo para você. Um presente.
Suas sobrancelhas levantaram com surpresa. —Um presente?
—Sim, — Eu disse. —Venha comigo. E traga seu violino.
Achando que Josef me seguia até o meu quarto. Eu o levei até o klavier,
onde a bagatela descansava contra o suporte de música. Eu tinha ficado
acordada até tarde na noite anterior, desperdiçando preciosa luz de velas para
fazer uma cópia justa.
—O que é isso? — Ele apertou os olhos e se inclinou mais perto.
Eu não disse nada, mas esperei.
—Oh. — Josef fez uma pausa. —Uma peça totalmente nova?
—Não julgue com muita severidade, Sepperl. — Tentei rir da minha
súbita vergonha. —É cheia de erros, tenho certeza.
Josef inclinou a cabeça. —Você quer que eu e o François toquemos para
você?
Eu vacilei. —Eu tinha pensado —, eu disse, inesperadamente picado, —
que iríamos tocar juntos.
Ele teve a graça de corar. —Claro. Perdoe-me, Liesl. — Ele pegou o
violino e o colocou debaixo do queixo. Ele examinou as primeiras linhas e, em
seguida, acenou para mim. Eu estava de repente nervosa. Eu não deveria estar;
este era Josef, afinal.
Eu balancei a cabeça para trás e Josef levemente balançou seu arco para
cima e para baixo, definindo o ritmo. Demos uma medida e começamos.
As primeiras notas foram hesitantes, inseguras. Eu estava nervosa e Josef
estava... Josef estava ilegível. Eu vacilei, meus dedos escorregando no teclado.
Josef continuou a tocar, lendo as notas que escrevi com precisão
mecânica. Você poderia ter definido um relógio pelo seu jogo, exato e
implacável. A dormência começou a se espalhar dos meus dedos, percorrendo
minhas mãos, meus braços, meus ombros, meu pescoço, meus olhos, meus
ouvidos. Eu tinha escrito isso para o Josef que eu conheci e amei, para o
garotinho que nunca teve a oportunidade de fugir para encontrar o Hödekin
dançando na floresta. Para a criança que compartilhou metade da minha alma,
estranha e selvagem, pelo irmão que mantinha fé com Der Erlkönig.
Ele não estava lá.
Era como se meu irmão tivesse sido substituído por um changeling. A
música não se transformou, não transcendeu em suas mãos. As notas eram
turvas, mundanas, terrestres. De repente, foi como se eu pudesse ver as teias
de aranha da ilusão que eu tecera sobre mim mesma, através das quais eu
podia ver outro mundo e outra vida.
Josef terminou a peça, segurando a fermata da última nota com o
comprimento exato.
—Um bom esforço, Liesl. — Ele me deu um sorriso, mas não chegou a
alcançar seus olhos. —Um começo definido.
Eu balancei a cabeça. —Você partirá para Munique amanhã. — Eu disse.
—Sim. — Josef parecia aliviado. —À primeira luz.
—Descanse um pouco, então. — Eu dei um tapinha na bochecha dele.
—E você? — Ele perguntou, inclinando a cabeça em direção à peça sobre
o klavier, a peça que ele acabara de tocar. —Você vai escrever, não vai? Me
mandar mais música?
—Sim. — Eu disse.
Mas nós dois sabíamos que era uma mentira.
9é uma rocha calcária, composta de calcita, aragonita e limonita, com bandas compactas, paralelas
entre si, nas quais se observam pequenas cavidades, onde predominam os tons que passam pelo
branco, verde ou rosa, apresentando, frequentemente, marcas de ramos e folhas. Também é conhecida
pelo nome de tufo calcário.
finis de móveis esculpidos. O tapete sob meus pés mostrava teias de aranha
estilizadas e flores morrendo na videira. Os belos pequenos objetos que
decoravam o meu quarto não eram encantadoras pastoras de porcelana; Eram
ninfas de rosto demoníaco com um bando de elfos corcundas. Os ladrões de
seus pastores foram substituídos pelas foices dos ceifeiros, seus vestidos
rasgados e devastados, revelando seios, quadris e coxas. Em vez de belezas
bonitas, seus lábios estavam torcidos em sorrisos de sátiros. Eu estremeci.
A paisagem de inverno acima do meu manto era a única peça de arte em
meu quarto que não se revelava cheia de feiura oculta. Mostrava uma floresta
envolta em névoa, desconcertantemente familiar. A névoa parecia se mover e
se contorcer nos cantos da minha visão. Eu olhei mais de perto. Com um
sobressalto, percebi que era uma pintura do Bosque dos Elfos. A pintura foi tão
habilmente renderizada que suas pinceladas eram praticamente invisíveis,
mais como uma janela do que uma obra de arte. Meus dedos chegaram a tocá-
la.
Risos irromperam atrás de mim.
Eu me virei. Sentada na minha cama havia duas meninas elfo. Elas me
encaravam, rindo atrás de suas mãos. Com uma torção do estômago, notei que
elas tinham muitas articulações em seus longos dedos. Sua pele tinha o tom
marrom-esverdeado de uma árvore de primavera apenas despertando de seu
sono invernal, e seus olhos não tinham brancos nas pupilas.
—Não, não, não deve tocar. — Uma delas balançou um dedo
inquietantemente longo para mim. —Sua Majestade não ficaria satisfeito.
Eu deixei cair a minha mão para o meu lado. —Sua Majestade? O rei dos
elfos?
—Rei dos Elfos. — A outra garota elfo zombou. Ela era do tamanho de
uma criança, mas proporcionada como um adulto, um pouco encorpada, com
cabelo branco brilhante como uma nuvem de cardo sobre a cabeça. —Rei dos
elfos, feh. Ele não é meu rei.
—Calada, Thistle —, a primeira elfo repreendeu. Ela era mais alta e mais
magra do que sua contraparte, construída como uma bétula delgada. Seus
cabelos eram ramos feridos com teias de aranha. —Você não deve dizer coisas
assim.
—Eu direi o que eu quero, Twig. — Thistle cruzou os braços com uma
expressão de amotinação no rosto.
Thistle e Twig continuaram como se eu não fosse nada mais que outro
acessório no túmulo. Mesmo entre os elfos, eu desaparecia nas sombras. Eu
limpei minha garganta.
—O que vocês estão fazendo aqui? — Minha voz rachou através de sua
conversa como um chicote. —Quem são vocês?
—Nós somos suas assistentes —, disse a chamada Thistle. Ela sorriu, seu
sorriso em fila e fileira de dentes irregulares. —Enviadas para prepará-la para
a festa hoje à noite.
—Festa? — Eu não gostei do jeito que ela disse se preparar, como se eu
fosse uma matança para a festa, um assado para ser amarrado. —Que festa?
—O Baile dos Elfos, é claro —, disse a chamada Twig. —Nós hospedamos
todas as noites durante os dias de inverno, e esta noite promete ser especial.
Hoje à noite, Der Erlkönig apresenta sua noiva ao Submundo.
Käthe.
—Devo falar com Der Erlkönig —, eu disse. —Imediatamente.
Twig e Thistle riram, galhos esfregando uns contra os outros em uma
tempestade repentina. —E então você deve, donzela. Então você deve. Tudo
em bom tempo. Você é sua convidada de honra no baile esta noite, e você se
encontrará com ele então.
—Não. — Tentei impor minha vontade sobre elas; Eu era maior, afinal,
embora não muito. —Eu preciso falar com ele agora.
—Todos vocês mortais são tão impacientes —, disse Thistle. —Eu
suponho que é o que vem com a sensação da mão da morte em seu pescoço em
todos os momentos.
—Leve-me para ele —, eu exigi. —Agora mesmo.
Mas tanto Twig quanto Thistle eram implacáveis, ignorando minhas
palavras e circulando-me com olhos curiosos. Eu queria me afastar de seu
escrutínio, de seus olhos julgadores, da sensação de que elas estavam me
medindo contra alguma marca invisível.
—Não há muito com o que trabalhar. — Observou Thistle.
—Hmmm —, Twig concordou. —Não sabemos o que poderíamos fazer
para melhorar sua aparência.
Eu me arrepiei. Por mais simples que eu fosse, pelo menos eu não era
grotesca, não como essas garotas elfo.
—Vou me dirigir a ele como sou, obrigada —, eu disse bruscamente. —
Minha aparência não precisa melhorar.
Elas me deram um olhar de pena misturado com desprezo. —Não é sua
escolha, mortal —, disse Thistle. —Agrada ao nosso estimado soberano que
você tenha vestido adequadamente esta noite.
—Isso não pode esperar?
Twig e Thistle trocaram olhares, depois riram, outra explosão de galhos
numa tempestade.
—Há rituais e há tradições —, disse Twig. —O Baile dos Elfos é uma
tradição. Há um tempo e um lugar para benefícios e audiências, e o Baile dos
Elfos não é o momento ou lugar apropriado para nenhuma das duas coisas.
Você é a convidada de honra de Der Erlkönig; esta noite é para você. Divirta-
se. Todas as outras noites pertencem a ele. E para nós.
Um arrepio de pressentimento subiu pela minha espinha. —Tudo bem
—, eu disse. —O que vocês precisam que eu faça?
Apesar da minha relutância, uma parte de mim formigava de
antecipação. Uma Baile, um belo vestido. Eu sonhava com essas coisas uma
vez. Eu sonhara em dançar com Der Erlkönig, uma rainha do rei.
Twig e Thistle me deram sorrisos idênticos. Seus dentes eram
pontiagudos e irregulares. —Oh, você verá, donzela. Você verá.
—Liesl!
Minha irmã me encontrou imediatamente. Se estivéssemos no mundo
acima, eu teria ficado maravilhada com a rapidez com que ela me descobriu
neste mar de rostos. Mas no subsolo, eu entendia. Eu era mortal, e ela também,
e aqui entre os elfos, nossas vidas pulsavam com intensidade. Eu senti Käthe
antes de vê-la.
Mas mesmo sem a batida reveladora de nossos corações que nos
marcavam como humanas, eu teria sentido a presença de minha irmã. Sua
beleza era polida como uma gema, cada faceta de sua aparência cintilante
aumentada pelo vestido que ela usava e a aura de encanto sobre ela. Ao
contrário do resto dos presentes, vestidos em tons de terra e tons de joias,
minha irmã usava tons pastéis de verão. Ela usava um vestido azul-celeste que
brilhava com ouro, onde a luz a atingia, e seus próprios cachos de sol estavam
empilhados no alto de sua cabeça, vestidos com rosas cor de rosa pálido e
outras flores da primavera. Seu rosto estava em pó e vermelho, e ela parecia
uma pintura, um retrato, uma boneca de porcelana.
Käthe tinha entrado no braço do Rei dos Elfos, mas ela caiu ao me ver.
Ela desceu os degraus, abrindo caminho entre o mar de idênticos rostos Käthe,
estendendo os braços para me abraçar. Na mão dela, ela carregava uma
máscara moldada na forma do rosto de um elfo.
—Liesl, minha querida! — Minha irmã colocou os braços em volta da
minha cintura.
—Käthe! — Eu a abracei com força, sentindo o baque de seu coração
contra o meu.
—Eu estava com tanto medo que você não viria. — Disse ela.
—Eu sei, me desculpe. — Lágrimas coagularam minha garganta. —Eu
sinto muito por ter demorado tanto. Mas estou aqui agora, minha querida,
nunca tenha medo.
—Maravilhoso! — Käthe exclamou, batendo palmas de prazer. —Agora
devemos dançar.
—O que? — Eu recuei para dar a ela um olhar apropriado. —Não, não.
Nós devemos sair. Nós devemos ir para casa.
Ela franziu o rosto em um beicinho infantil. —Não seja uma estraga
prazeres, Liesl.
Por baixo da maquiagem, a pele de Käthe estava pálida. Nenhuma
quantidade de pó poderia disfarçar as cavidades machucadas sob seus olhos,
nenhuma quantidade de rouge distrairia a falta de sangue de seus lábios.
Apenas seus olhos estavam brilhantes: o brilho da febre. Ou encanto.
Eu acreditava que tinha abandonado a minha irmã aos miseráveis dos
elfos. Eu a havia imaginado em tormento ou agonia, clamando pelo mundo
acima. Eu pensava que iria encontrá-la, e correríamos de volta para casa, de
volta para a estalagem, de volta à segurança.
Meu olhar encontrou o Rei dos Elfos sobre a cabeça da minha irmã. Ele
estava inclinado contra a entrada, os braços cruzados, o sorriso zombeteiro.
Mesmo de onde eu estava, via as pontas de seus dentes pontiagudos brilhando
nas Fadas de Luz.
Você achou que eu faria isso tão fácil? Seu sorriso parecia dizer.
Eu ganhei a segunda rodada. Eu fiz meu caminho para o Submundo. Esta
era a terceira e última rodada do nosso jogo: levar Käthe de volta ao mundo
acima.
Bem, pensei. Eu arrastaria minha irmã de volta à vida, mesmo que tivesse que
arrastá-la pelos cabelos. O Rei dos Elfos tinha seus truques, mas eu tinha minha
teimosia. Nós veríamos quem prevaleceria no final.
—Tudo bem, então —, eu disse a Käthe. —Vamos dançar.
Na sugestão, os músicos elfos tocaram uma música. O violinista
devolveu o instrumento com uma expressão amarga. Os músicos tocaram
outro ar antigo da minha infância, um Zweifacher acelerado. Até Käthe se
mexeu quando ouviu e eu sorri para ela.
—Assim como quando éramos pequenas —, eu disse. —Venha!
Käthe encaixou a máscara de elfo no rosto e nós juntamos nossos braços.
Um-dois-três, um-dois-três, um-dois, um-dois, nossos corpos seguiram as
voltas e pivôs na música. Os outros presentes pegaram o Zweifacher, e logo
toda a caverna estava cheia de dançarinos girando e girando.
Minha irmã e eu rimos quando tropeçamos nos pés uma da outra e
colidimos em outros pares dançantes, sem fôlego e tontas. Ao nos virarmos
para a pista de dança, tentei o melhor que consegui para manobrar Käthe em
direção à saída. Meus olhos continuaram correndo para onde o Rei dos Elfos
estava parado. Só ele não se juntou à multidão, à parte e intocável.
—Você se lembra — falei, respirando com dificuldade. — Quando você,
eu, Sepperl e Hans costumávamos dançar o Zweifacher enquanto papai tocava
seu violino?
—Hmmm? — Käthe parecia distraída, seus olhos vagando para as mesas
cheias de comida. —O que você disse?
—Eu disse, você se lembra quando você, eu, Hans e Sepperl dançávamos
com isso quando éramos jovens?
—Quem é Hans?
Uma risada ficou na minha garganta. —Hans bonito, você costumava
falar dele —, eu disse. —Seu prometido.
—Eu, prometida? — Käthe deu uma risadinha. —Por que eu faria uma
coisa dessas? — Ela olhou para um elfo alto e magro e deu-lhe uma piscadela
coquete.
Alfinetes frios de culpa me picaram. Por que ela faria uma coisa dessas?
—Sim, prometida. — Eu disse.
Ela levantou a sobrancelha. —E quem é Sepperl? — Outro elfo homem
pegou a mão dela e deu um beijo rápido enquanto passávamos.
—Käthe. — O desespero diminuiu meus membros, pesando-os. —
Sepperl é seu irmão. Nosso irmão mais novo.
—Oh. — Disse Käthe com indiferença. Ela soprou um beijo para outro
homem elfo.
Käthe! Parei de dançar e minha irmã tropeçou. Outro pretendende elfo
estava lá para pegá-la antes que ela caísse.
—O quê? — Ela perguntou irritada. Um servidor elfo nos ofereceu um
prato de aperitivos. Käthe sorriu para ele e pegou algumas uvas. Para meu
horror, as “uvas” no prato estavam olhando para os olhos, os besouros de
bombons de chocolate e os deliciosos pêssegos sangrentos que tinham sido a
ruína de minha irmã estavam podres, sua carne rachada parecendo tripas
derramadas nas mãos do elfo.
—Käthe. — Eu agarrei seu pulso, e ela deixou cair a comida em sua mão.
Seus olhos azuis por trás da máscara de elfo foram surpreendidos, e por trás
do feitiço de febre, tive um vislumbre da minha irmã, minha verdadeira irmã.
—Acorde. Acorde desse sonho e volte para mim.
Seu olhar vacilou, e por um momento, carne e vida voltaram ao seu rosto.
Mas seus olhos se tornaram vítreos mais uma vez e sua cor sumiu.
—Oh, sai disso, Liesl —, disse ela alegremente. —Vamos nos divertir. Há
homens para dançar e homens para flertar!
Com isso, um dos pretendentes elfos pairando sobre o ombro dela a
levou embora.
—Käthe! — Eu gritei, mas uma pressão de corpos de repente invadiu na
minha frente. Eu estendi a mão para a minha irmã, mas sempre havia outra
pessoa, outro elfo no meu caminho. Eu empurrei a multidão dançando,
seguindo o lampejo de céu azul através dos foliões. Mas a cada vez que eu
pensava que me aproximava, era outra mulher, outra senhora usando o rosto
de Käthe, aquelas máscaras humanistas macabro realistas nas luzes
bruxuleantes do Baile.
No tumulto de corpos aquecidos, um mar de rostos idênticos olhou de
volta para mim. Mas eles não mais se pareciam com Hans ou Käthe; eles
pareciam o Rei dos Elfos. E eu. Meu rosto refletido de volta para mim, um
milhão de pequenos espelhos. Seu rosto, muitos de seus rostos, rindo e
zombando de mim. Seu rosto, mais humano que os outros, afiado, lânguido e
cruel. Uma beleza que corta como uma lâmina. Uma dúzia de lâminas me
cortou no coração.
—Por que você não está participando da minha generosidade, Elisabeth?
Um hálito frio no meu pescoço. Cheirava levemente ao vento antes de
uma tempestade de neve.
—Há um banquete diante de você, mas você não toca em nada. — O Rei
dos Elfos apareceu. Na luz das fadas inconstante e mercurial, ele era ainda mais
bonito do que era no mundo acima, e ainda mais assustador. —Por quê?
—Eu não estou com fome. — Eu menti. Eu estava faminta. Eu estava
faminta por comida, por música, por gula.
—A comida não te tenta?
Pensei nos “bombons” na mesa. —Não, mein Herr.
—Uma pena. — Seu sorriso era um grunhido. —Bem, eu prometi que
seus olhos permaneceriam abertos, mas meus presentes têm consequências,
minha querida.
—Que consequências?
O Rei dos Elfos encolheu os ombros. —O encanto dos elfos não tem efeito
em você. Você vê as coisas como elas são.
—Como isso é uma consequência?
—Depende de quem você pergunta. — Ele passou a língua levemente
sobre os dentes pontiagudos. —Sua irmã —, ele disse, apontando para Käthe
no meio da multidão. —preferiria encantos à dura feiura da realidade, eu acho.
Minha irmã dançava com não um, mas vários dos homens altos elfos.
Eles a giravam de homem para homem, apertando seus lábios para o interior
de seus pulsos, por seus braços, ao longo de sua clavícula, até sua garganta. Ela
riu e tentou beijar um deles na boca, mas ele virou o rosto.
—Não todos nós? — Pensei nos incontáveis dias passados no meu
klavier, antes de voltar a meus sentidos, antes de vir para o Submundo. —Às
vezes é mais fácil fingir.
—É —, disse o Rei dos Elfos em voz baixa. Suas palavras vibraram por
toda a minha espinha. —Mas não estamos velhos demais para nossos jogos de
faz de conta, Elisabeth?
Havia uma nota melancólica em suas palavras que desmentia sua fria
ordem de compostura. Assustada, me virei para encarar o Rei dos Elfos. Seus
olhos incompatíveis pareciam vulneráveis. Falível. Quase humano. Aqueles
olhos notáveis examinaram os meus e, no espaço de um fôlego, reconheci o
rapaz por quem tocara minha música no Bosque dos Elfos.
Uma risada musical brilhante. Eu me virei para ver a dança de Käthe e
cair nos braços de um dançarino. Ela jogou a cabeça para trás, expondo o
pescoço e o peito aos beijos dele. Eu queria correr para a defesa da minha irmã,
mas congelei ao toque de uma mão no meu ombro.
—Espere. — As pontas dos dedos roçaram a pele do meu pescoço. —
Fique.
—Mas Käthe-
—Sua irmã não sofrerá nenhum dano, eu prometo.
Eu me segurei ainda, não querendo encarar seus olhos novamente. —
Como posso confiar em você para manter sua palavra? — Minha voz não soava
como a minha, rouca e sombria. —Você não é o Senhor do Mal?
—Você me feriu, Elisabeth —, disse ele. —Eu pensei que éramos amigos.
—Você se tornou meu inimigo no momento em que roubou minha irmã.
Demorou muito até que o Rei dos Elfos respondesse.
—Esta noite é para indulgência sem consequência. Esta noite você é
minha convidada, Elisabeth, e sua irmã não sofrerá nenhum dano. Amanhã...
— Disse ele, arqueado e astuto mais uma vez. — Podemos voltar a ser inimigos.
O som da risada da minha irmã voltou para mim, ecoando no salão de
festas cavernoso. —Sua palavra, mein Herr.
—Eu disse que sua irmã não sofrerá nenhum dano —, disse ele. —Não
me pressione mais do que isso. Agora, —ele disse, me virando para encará-lo.
—Vamos dançar, Elisabeth.
Os músicos tocaram outra música, uma que eu não reconheci. O ritmo
era lento e em tom menor, sedutor e sinistro. O Rei dos Elfos me puxou para o
seu abraço.
Ele pressionou a mão na parte inferior das costas, empurrando nossos
quadris juntos. Nossas mãos encontraram palma com palma, dedos
entrelaçados. Ele não estava mascarado e nem eu. Nossos olhos se
encontraram. Apesar da proximidade de nossos corpos, foi o toque de nossos
olhos que me fez corar.
—Mein Herr —, eu hesitei. —Eu não acho...
—Você pensa demais, Elisabeth —, disse ele. —Muito sobre propriedade,
muito sobre dever, muito sobre tudo menos música. Por uma vez, não pense.
— O rei dos elfos sorriu. Era um sorriso perverso, que me fez sentir insegura e
excitada ao mesmo tempo. —Não pense. Sinta.
Nós varremos o chão do salão de baile, nossos pés mantendo o ritmo um
do outro, mesmo quando meu coração mantinha um ritmo frenético. Eu
vacilava sempre que nossas pernas se enredavam nas dobras do meu vestido,
sempre que um passo fazia seu peito roçar no meu, sempre que mais dele me
tocava do que o necessário.
—Respire, Elisabeth. — Ele disse suavemente.
Mas eu não podia. Não eram as estadias que prendiam meus pulmões
em um aperto de ferro; era o Rei dos Elfos. Sua proximidade, sua proximidade
insuportável. Eu queria que Hans me conhecesse intimamente, mas eu estava
familiarizada com ele. Eu podia imaginar seu corpo sob minhas mãos - sólido,
reconfortante, confiável, previsível, assim como o resto dele. Mas eu não
conhecia o Rei dos Elfos, não como homem, não como alguém com carne, mãos
e quadris. Minha alma se emocionou com reconhecimento ao ver seu rosto,
mas a realidade dele me assustou. Ele era um velho amigo no mito e na lenda;
ele era um estranho na respiração e no corpo.
O Rei dos Elfos sentiu meu desconforto. Depois que a dança acabou, ele
deu um passo para trás e me deu uma reverência cortesa, beijando as costas da
minha mão.
—Eu te agradeço por esta dança, minha querida. — Disse ele
formalmente.
Eu balancei a cabeça, insegura da minha voz. Eu tentei puxar minha mão
para fora de seu aperto, mas ele segurou em todos os mais apertados.
—Mas ainda não terminamos. — Ele se inclinou, os lábios se movendo
contra a curva da minha orelha. —O jogo recomeça amanhã.
Com isso, ele me soltou e se derreteu na multidão. Eu fiquei tonta,
querendo segui-lo, querendo me arrastar de volta para o meu quarto e me
esconder. Cada rosto no salão pertencia a ele; Eu encontrei um eco de suas
bochechas, seu queixo, suas sobrancelhas arqueadas nas máscaras dos
participantes.
—Vinho, Fräulein? — Um servo elfo se materializou ao meu lado,
segurando uma bandeja com várias taças. Eu hesitei. Anos vendo papai lutar
com a bebida me deixaram com medo de intoxicação. E, no entanto, o fardo de
ser Liesl, irmã mais velha responsável e filha mais velha, usava em mim. Eu
me perguntei como era o esquecimento.
Uma irmã mais velha responsável. Examinei o salão procurando por
Käthe. Eu a encontrei imediatamente; ela era como uma chama na escuridão
com seus cabelos dourados, seu brilhante vestido de cor pastel. Ela sentou-se
em cima de um enorme trono esculpido na cabeceira do salão de baile, cercada
por um grupo de pretendentes bajuladores. Eles a alimentavam com “uvas” e
“bombons” enquanto ela tomava goles de vinho de uma taça cheia de cristais.
Seu vestido lindo estava em desordem, o cabelo solto de seu elaborado topete.
Ela chutou um deles, rindo e mostrando um pouco da perna. Um dos seus
pretendentes pegou seu pé, e depois passou a mão ao longo de seu delicado
tornozelo, subindo lentamente a perna até a panturrilha, depois ao longo de
sua coxa nua...
—Mestra? — O criado elfo não se moveu. Eu roubei outro olhar para
Käthe, em seguida, olhei para as taças na bandeja. Eu desejei por devassidão,
não? Eu toquei a ponta de uma taça de vinho. Eu queria ser como Käthe, para
desligar minha mente racional apenas por um minuto, uma hora, um dia.
Você pensa demais.
Eu levantei uma taça de vinho da bandeja.
Sua irmã não sofrerá nenhum dano.
—Ooh-ooh! — Käthe disse em uma voz escandalizada.
Eu trouxe a taça aos meus lábios. O vinho era vermelho escuro, mais
escuro que os rubis, mais escuro que o sangue, o vermelho-escuro das amoras.
E o pecado.
Não pense. Sinta.
Eu bebi.
Eu pisquei.
Eu estava em um quarto totalmente diferente, nua, mas pelo lençol que
me cobria. Este quarto era muito maior do que o meu, com seus tetos de terra
batida sustentados pelas grandes raízes de uma árvore que se estendia, como
os contrafortes de uma catedral. Uma câmara de audiência, pensei.
Apesar do espaço, a câmara era acolhedora: o mobiliário simples, as
decorações sobressalentes. Nenhuma tapeçaria, nenhuma estatuária; a única
coisa que dominava o quarto era a enorme cama no centro, feita de raízes e
pedras.
Então percebi que não estava na câmara de audiência do Rei dos Elfos.
Eu estava no quarto dele.
Thistle e Twig haviam me concedido meu desejo. Elas me levaram diante
do Rei dos Elfos no momento exato em que eu exigi. Eu desejei e agora eu
estava aqui.
Constanze sempre me disse para nunca brincar com os elfos. Nunca diga
que eu desejo, nunca lhes dê uma abertura.
Em pânico, eu corri para uma saída. Eu tinha que sair antes que ele
acordasse, antes que ele me visse.
Um gemido da cama me parou, um som desconcertantemente familiar.
Era o som do papai tentando passar pelo dia. O som da decepção da mãe nos
fracassos do marido. O som de Josef depois de um longo dia de prática. O som
de Käthe durante seus cursos mensais. O som da dor.
Eu deveria ter saído. Eu deveria ter corrido. Este era Der Erlkönig. Este
era o Senhor do Mal, o Governante Submundo. Esta era a criatura que raptou
minha irmã, que me fez sacrificar minha música para seus caprichos
caprichosos. Este era o estranho que me atraiu para o subsolo por causa de suas
apostas e jogos.
Mas pensei no jovem de olhos suaves com quem eu havia dançado no
baile, o homem que se chamara de meu amigo. Eu hesitei.
Bem, pensei. Hoje nós voltamos a ser inimigos.
Eu me aproximei da cama. Tudo o que era visível era um choque de
cabelo desalinhado e pálido, uma pilha de lençóis amarrotados e a curva de
um ombro nu. Eu coloquei as bordas do meu lençol de forma mais segura sobre
mim. Reunindo minha coragem, peguei as roupas de seda enroladas em volta
do Rei dos Elfos e as puxei.
A força do meu puxão arremessou-o para fora da cama. Acordou com
uma saraivada de maldições, a voz rouca pelo vinho e a falta de sono. O rei
dos elfos amaldiçoou o céu, o inferno, Deus e o diabo. Eu me diverti.
Uma cabeça desgrenhada espiou por cima da beira da cama, olhos
turvos, bochechas enrugadas pelo sono. Ele parecia surpreendentemente
jovem. Eu sempre tinha pensado em Der Erlkönig como eterno, nem jovem
nem velho, mas ao vê-lo assim - ele parecia próximo a mim em idade.
O Rei dos Elfos me lançou um olhar antes de perceber quem era em seus
aposentos, sozinha e sem roupa.
—Elisabeth! — Inacreditavelmente, sua voz falhou, como a de um
estudante.
Eu cruzei meus braços. —Bom dia, mein Herr.
Ele correu para as cobertas. Ele enrolou os lençóis nos quadris estreitos,
deixando o peito nu. O Rei dos Elfos era alto e magro, mas bem musculoso. Eu
já tinha visto outros homens de peito nu - bronzeados, de ombros largos, bem
trabalhados -, mas seus corpos seminus não me mexiam como os do Rei dos
Elfos. Havia uma graça em cada linha de seu corpo; a elegância não estava
apenas em seu ar, mas no modo como ele se movia. Mesmo quando ele estava
desajeitado. Mesmo quando ele estava inseguro.
—Eu-eu... — Ele estava agitado. Eu apreciei este pouco de poder sobre
ele, essa habilidade de perturbá-lo tanto quanto ele me perturbava.
—É tudo o que você tem a dizer para mim? — Eu perguntei, lutando para
manter uma cara séria. —Afinal de contas nós compartilhamos?
—O que nós compartilhamos? — Havia pânico definitivo em sua voz
agora. De repente, o jogo não era mais tão divertido; se de fato tivéssemos caído
em sua cama, ele estaria realmente tão horrorizado? Eu não era Käthe, com sua
caminhada convidativa e seu sorriso que prometia indulgência. Apesar da
minha simplicidade, achei que o Rei dos Elfos e eu havíamos compartilhado
uma faísca, mas talvez fosse apenas eu quem estava pronta para incendiar-me.
—Nada, nada. — Eu estava cansando desse jogo.
—Elisabeth. — Os seus olhos de lobo exigiram respostas. —O que eu fiz
pra você?
—Nada —, eu disse. —Você não fez nada. Eu acordei sozinha em minha
própria câmara.
—Onde estão suas roupas?
—Em uma pilha de cinzas, me disseram. Sob suas ordens, devo
acrescentar, mein Herr.
Ele correu uma mão envergonhada através de seus cabelos
emaranhados. —Ah. Sim. Vou mandar os alfaiates para você para tirar suas
medidas. É por isso que você está aqui?
Eu balancei a cabeça. —Eu pedi para ser trazida até você, e as servas que
você enviou para atender a mim são bastante literais. — Alívio rastejou sobre
seu rosto, lentamente escondendo o jovem vulnerável de vista. —Elas me
trouxeram aqui antes que eu pudesse piscar.
Durante o curso da nossa conversa, o Rei dos Elfos vestiu lentamente sua
armadura afetada, peça por peça. Primeiro o sorriso. A sobrancelha levantada.
O brilho nos olhos dele. Então a pose indiferente, como se não fosse nada para
ele ser encontrado nu em seu quarto por uma jovem igualmente nua em um
lençol. Como se ele não tivesse me mostrado mais nudez da alma do que o
breve vislumbre de suas coxas quando ele saiu da cama.
—Bem, então. — Até a voz dele havia retomado o tom seco habitual. —
Peço desculpas por ter me pegado com as calças abaixadas, minha querida. Em
vez disso, literalmente também. Eu não pensei em retomar nosso jogo tão
rapidamente.
—Você não vai me oferecer um assento? — Eu estava determinada a me
conduzir com toda a dignidade que eu poderia reunir, apesar do meu cabelo
despenteado pelo sono e da aparência desgrenhada.
O Rei dos Elfos inclinou a cabeça em um arco cortês e acenou com a mão.
A terra se dividiu sob meus pés, e as raízes de uma árvore jovem irromperam,
crescendo e se torcendo na forma de uma cadeira. Estilo Louis XXV. Então era
de onde os móveis do meu quarto tinham vindo.
Sentei-me, arrumando primorosamente o lençol sobre mim.
—A que devo essa honra, Elisabeth? — O jovem de olhos suaves tinha
desaparecido; ele usava o manto de Der Erlkönig, distante e perigoso. Eu senti
falta daquele jovem de olhos macios. Eu o queria de volta. Ele parecia real, não
como Der Erlkönig, toda ilusão e sombra.
—Onde está minha irmã?
Ele encolheu os ombros. —Adormecida, presumo.
—Você presume?
—Foi uma noite bastante estridente. — Seus lábios se curvaram. —Eu
imagino que Käthe está de volta em sua própria cama. Ou talvez de outra
pessoa. Eu não tenho muita certeza.
O pânico me agarrou. —Você jurou que ela não teria mal algum!
Ele me deu um olhar curioso. Antes, ele tinha apenas olhado para mim,
incapaz de encontrar o meu olhar, mas agora que ele estava de volta em sua
pele malandro, ele realmente parecia. Ele pegou nas minhas bochechas coradas
e cabelo caído, seus olhos traçando a curva do meu pescoço, onde encontrou
meu ombro. Calor subiu pela minha nuca.
—E assim jurei, minha querida. Eu jurei. Sua irmã está perfeitamente
segura. Ela está íntegra, intacta. — Ele colocou uma ligeira ênfase na palavra
intacta. — e saudável. Meus súditos estavam sob ordens para não tocá-la.
Não parecia assim na noite anterior. Lembrei-me de um bando de
bajuladores, beijos ilícitos e toques inadequados.
—Muito bem, então. — Eu não mostraria qualquer sinal de alívio,
qualquer enfraquecimento da minha dignidade. —Eu vou buscá-la e ir
embora.
—Oh ho ho.— O Rei dos Elfos conjurou uma cadeira e uma mesa e se
sentou para me encarar. —Nós não terminamos. Nós apenas jogamos a
segunda rodada.
—Que eu ganhei —, eu lembrei a ele. —Eu estou aqui em seu domínio
agora.
—Sim, você está —, ele disse suavemente. —Você está aqui finalmente.
— Havia uma borda convidativa para suas palavras, uma borda que
acariciava.
—Aqui finalmente —, eu concordei. —Logo vou embora. — Eu abro
minhas mãos na mesa entre nós. —E então a rodada final começa. Quais são as
regras?
O Rei dos Elfos também colocou as mãos sobre a mesa. Seus dedos eram
longos, esguios, lindamente articulados e - vi com alívio - com o número
adequado de articulações. Nossas mãos estavam onde poderíamos vê-las, um
velho gesto para provar que estávamos fazendo apostas honestas. Nossas
pontas dos dedos roçaram. O sussurro de uma lembrança me tocou.
—As regras são simples —, disse ele. —Você encontrou o seu caminho.
Agora encontre o seu caminho.
—Isso é tudo?
Ele sorriu, convencido e satisfeito. —Sim. Se você puder.
—Eu encontrei meu caminho no Submundo; Eu encontrarei meu
caminho de volta ao mundo acima —, eu disse. —'Porque andamos pela fé,
não pela vista'
O Rei dos Elfos levantou uma sobrancelha. —Você está confiante —, ele
perguntou, terminando o verso. —e disposta a se ausentar do corpo?
Eu fiquei assustada. Eu não esperava que um rei dos elfos reconhecesse
as palavras da Escritura.
—Estou disposta —, falei em voz baixa. —a fazer qualquer coisa que seja
exigida de mim.
Um sorriso lento se espalhou por seu rosto. —O que você vai jogar,
Elisabeth?
Eu não tive resposta. Eu lhe dera minha música; Eu dei a ele tudo de
mim. Eu não sabia o que mais me restava.
—Você primeiro —, eu disse em seu lugar. —O que você vai deitar na
mesa?
Ele me observou de perto. —Devemos chamar a contagem um do outro
então?
Engoli. —Se você quiser.
—Então o que você perguntaria de mim?
Ele estava colocando uma grande quantidade de energia aos meus pés.
Ele era Der Erlkönig, magia e mito e mistério. Eu poderia pedir a ele qualquer
coisa que eu desejasse. Eu poderia pedir riquezas. Eu poderia pedir fama. Eu
poderia pedir beleza.
—Minha música—, eu disse finalmente. —Eu não sou gananciosa, mein
Herr. Vou pedir apenas o que foi meu para começar.
Ele me estudou por um longo tempo, tanto tempo que achei que ele iria
me recusar. —Isso é justo. — Disse ele com um aceno de cabeça.
—E você? — Meu couro cabeludo formigou, e uma dor começou na base
da minha espinha, medo ou ansiedade, eu não sabia. —O que você perguntaria
de mim?
Seus olhos seguraram os meus. —Eu pediria o impossível.
Eu lutei para deixar o Rei dos Elfos segurar meu olhar enquanto o calor
manchava minhas bochechas. —Tenha em mente que eu não sou santa —, eu
disse. —e não posso fazer milagres.
Seus lábios se contraíram. —Então eu pediria sua amizade.
Assustada, tirei minhas mãos da mesa.
—Oh, Elisabeth —, disse ele. —Eu pediria que você se lembrasse de mim.
Não como somos agora, mas como éramos então.
Eu fiz uma careta. Lembrei-me das nossas danças no Bosque dos Elfo,
das simples apostas que fizemos quando era pequena. Eu lutei para encontrar
a verdade escondida dentro do meu passado, mas eu não tinha certeza de qual
era a memória e qual era fictícia.
—Você se lembra. — Ele se aproximou em seu assento. Havia algo como
esperança em sua voz, e eu não suportava.
O Rei dos Elfos levantou a mão. A mesa abaixo de nós desapareceu,
engolida pela terra mais uma vez.
Ele colocou um dedo contra a minha têmpora. —Em algum lugar dentro
dessa mente notável, você manteve essas memórias seguras. Muito seguras.
Escondidas.
O Rei dos Elfos era o amigo que eu havia imaginado - lembrava - quando
criança? Ou ele era verdadeiramente o Senhor da Malícia, obscurecendo as
linhas entre fantasia e realidade? Eu estava inquieta e com coceira em minha
mente.
Ele deixou o seu lugar e se ajoelhou diante de mim. Suas mãos
descansaram nos braços da minha cadeira, mas ele teve o cuidado de não me
tocar.
—Tudo o que eu peço, Elisabeth —, o Rei dos Elfos disse. —é que você
se lembre. — Suas palavras eram um baixo, suas notas ressoando em meus
ossos. —Por favor lembre-se.
Eu recuei da saudade em sua voz. —Eu não posso te dar aquilo que não
pode ser dado —, eu disse. —Eu poderia mais facilmente cortar a minha mão
para dar-lhe do que minhas memórias.
Nós nos encaramos. Então o Rei dos Elfos piscou e a tensão que
estremeceu entre nós estalou.
—Bem —, ele disse, puxando a vogal. —Então eu suponho que nós
teremos que nos virar.
Eu balancei a cabeça. —O que você queria de mim?
Seus olhos brilharam. —Sua mão em casamento.
A proposta bruta me atingiu mais do que um golpe. —O que?
O Rei dos Elfos cruzou os braços e recostou-se, a pose despreocupada,
um sorriso curvado para o lado. Ainda assim, seus olhos pareciam tristes.
—Você perguntou, eu respondi —, disse ele. —A resposta é você. O que
eu quero é você - inteira.
Eu engoli em seco. O ar do Submundo estava de repente quente, perto,
sufocante.
—O que de Käthe? — Eu sussurrei.
Por um momento, o Rei dos Elfos pareceu confuso, mas depois riu. —
Ah, bem —, disse ele. —Uma noiva é uma noiva. Você ou sua irmã, não
importa para as velhas leis. — Ele se inclinou para mais perto. —Mas se
qualquer um de nós tivesse a escolha, não seria preferível que fosse você,
Elisabeth?
Eu gostaria. Mas eu me joguei sobre esse pensamento antes que ele
estivesse completamente formado, colocando-o de volta nos compartimentos
do meu coração, fechando-o firmemente. —Uma má escolha que você me deu
—, eu disse. —Minha vida ou minha irmã.
Ele encolheu os ombros. —Todos os mortais morrem no final.
Sua insensibilidade era um lembrete arrepiante de que o Rei dos Elfos
não era meu amigo. Que apesar do homem de olhos suaves que eu desejava,
ele ainda era Der Erlkönig, implacável, indiferente, imortal.
Eu tive o suficiente. —Tudo bem —, eu disse. —As apostas estão
colocadas. Há mais alguma coisa que você precise de mim, mein Herr?
O Rei dos Elfos balançou a cabeça. —Não —, ele disse suavemente. —Só
saiba disso: você tem apenas os dias de inverno para fugir. A barreira entre os
mundos é fina, mas só até o ano começar de novo.
—O que vai acontecer se eu não fizer?
Seu rosto estava sombrio. —Então você estará presa aqui para sempre.
Meu poder é ótimo, Elisabeth, mas não posso mudar as leis antigas. Nem
mesmo para você.
Tomei sua advertência para a verdade. Eu balancei a cabeça e me
levantei.
O Rei dos Elfos inclinou a cabeça para mim. —Pfiat di Gott. Vá com Deus,
Elisabeth.
—Eu não tinha pensado que elfos acreditavam em Deus.
Uma pequena ruga apareceu entre as sobrancelhas. —Eles não —, disse
ele. —Mas eu sim.
A noiva
—Bem?
Eu pisquei. Eu estava de volta a minha câmara, levada para lá antes que
eu pudesse terminar o meu próximo pensamento. Twig e Thistle esperavam
por mim, empoleirados na minha cama.
—Bem, o que? — Eu perguntei.
Uma alegria profana pintou seus rostos. —Ele estava com raiva de você?
Minha mente ainda estava nos aposentos do Rei dos Elfos, mesmo
quando meu corpo estava em meu próprio quarto. Os humanos não deveriam
ser levados de um lado para o outro assim; minha compreensão do tempo e do
espaço era simples, linear, descomplicada.
Eu balancei a cabeça, mais para me recuperar do que para responder. —
Não.
As orelhas das minhas colegas elfos se levantaram com interesse, os
dedos nodosos alcançando minha pele. Eu recuei de seus toques inquisitivos.
—Não —, eu disse em uma voz mais firme. Twig e Thistle se
aproximaram, os dentes afiados cintilando sob as luzes das fadas. —Ele não
estava com raiva de mim.
Suas orelhas caíram com desapontamento. —Ele não estava?
Eu me importava que essas garotas elfo não eram minhas amigas; elas,
como o Rei dos Elfos, eram meus inimigos nesse jogo cansativo.
—Ele não estava —, repeti. —E eu não aprecio seus pequenos truques,
colocando-me nessa posição.
—Tão calma —, comentou Twig, passando uma garra preta brilhante nas
costas da minha mão. Eu puxei minha mão para longe, envolvendo o lençol
mais apertado sobre o meu corpo. —Tão calma apesar da paixão que brilha sob
essa pele frágil e mortal.
—Mmm, — Thistle concordou, seu longo nariz desconcertantemente
perto da curva do meu pescoço, onde meu pulso tremulava irregularmente. —
Eu gosto desta melhor que a outra. Esta poderia nos sustentar por muito
tempo.
A outra. Eles quiseram dizer Käthe? Eu precisava encontrá-la e logo.
—Chega. — Eu empurrei Twig e Thistle para longe. Ambas recuaram
com um grunhido, desapontadas com a minha compostura. Havia algo
desconcertante sobre a sua... ansiedade por mim. Parecia desejo, mas parecia
fome. Eu estremeci, ainda sentindo seus dedos fantasmagóricos rastejando
sobre a minha pele. —Encontrem-me algo para comer, algo para vestir e levem-
me para a minha irmã.
Minhas atendentes trocaram olhares, seus olhos negros em branco.
—Eu gostaria que vocês me encontrassem algo para vestir e eu gostaria
que vocês me encontrassem algo para comer.
Uma expressão azeda cruzou os dois rostos; Eu havia dito as palavras
mágicas. Eu me permiti um sorriso triunfante enquanto as garotas elfos se
desvaneciam, deixando apenas folhas espalhadas para trás.
Depois que saíram, estudei cada centímetro do meu quarto, mas meu
quarto permanecia teimoso e sem portas. Como os elfos viajavam? Eles
simplesmente desejavam a si mesmos e para lá? Eu ri.
Se apenas nossos desejos tivessem poder de fato.
Em poucos instantes minhas atendentes voltaram, Thistle carregando
um vestido, Twig carregando um bolo e um pouco de vinho. O vestido era uma
confecção berrante, mais adequada a um salão público do que à praticidade do
dia-a-dia. O bolo parecia apetitoso, mas eu me lembrei das “guloseimas” do
Baile dos Elfo e não confiei nele.
—Não, — eu disse. —Voltem me encontrem algo mais adequado.
Thistle parecia cabisbaixa. —E o que você considera adequado, mortal?
Eu esfreguei o tecido do vestido entre meus dedos. Seda. Era lindo, mas
os aros, alforges e espartilhos que Thistle tinha trazido pareciam mais
problemas do que valiam, especialmente se eu fosse perambular pelo
Submundo com minha irmã.
—Algo simples —, eu disse. —Nada disso é de seda e cetim escorregadio.
Nada que levaria um bando de servos para me costurar. Algo prático.
—Tão chato. — Thistle fez beicinho.
—Sim. — Eu não a neguei. —E se você não puder me encontrar um
vestido, me traga uma saia e uma blusa e eu farei isso.
Thistle cruzou os braços. —Eu não entendo. As outras mortais amavam
todos os belos vestidos que pudemos encontrar para eles.
—Eu não sou minha irmã. — Fiz uma pausa. —As outras mortais?
—As outras noivas, é claro.
Eu sabia que o Rei dos Elfos havia tomado outras noivas. Constanze era
uma verdadeira fonte de histórias de advertência sobre mulheres que eram
ousadas demais, inteligentes demais, bonitas demais, diferentes demais. Ainda
ciúme me picou com sua picada aguda de agulha; Eu não era nenhuma dessas
coisas, e o Rei dos Elfos me fez acreditar que ele me queria - eu inteira, sozinha.
—O que, ciumenta? — Thistle sorriu.
—Não. — Mas meu rubor traía a mentira.
—Olha como ela está rosa agora! — Twig disse com prazer.
—O que aconteceu com as outras mulheres? — Eu estava determinada a
não deixar meus atendentes tirar o melhor de mim. —O que aconteceu com as
outras noivas?
—Elas falharam. — Thistle disse simplesmente. Ela cuidou de me vestir.
—Falharam? — Eu estava surpresa demais para afastá-la. —O que você
quer dizer com falharam?
—Fique parada. — Thistle rosnou, tentando me amarrar nos espartilhos.
O assunto claramente não era de grande importância para ela, mas o jogo havia
mudado de alguma forma. Eu senti que tinha virado um canto familiar para
encontrar um caminho completamente diferente do que eu esperava. As
histórias de Constanze nunca mencionaram isso.
—O que você quer dizer com falharam? — Eu repeti a pergunta para
Twig.
A garota elfo mais alta ergueu as sobrancelhas espessas. —Elas não
conseguiram escapar —, disse ela. —O que mais queremos dizer?
—Escapar do Submundo, você quer dizer.
Twig encolheu os ombros. —Der Erlkönig, o Submundo, morte. Eles são
um e o mesmo.
—Pare de se contorcer! — Thistle me beliscou com suas pequenas garras
afiadas, e eu gritei. —Se você me deixar vestir você, então você pode ir ver a
sua irmã. Eu posso dizer que ela já está vestida com o que sua comitiva colocou
para ela, e comia de tudo o que eles trouxeram.
Ela estava tentando me culpar? Eu mordi de volta uma risada. Se eu
começasse a rir, eu choraria.
—Tudo bem —, eu disse. —Vou me vestir. Mas não nisso. Encontre-me
outro vestido. —Meu estômago roncou. —E me traga um pedaço de pão e um
pouco de água. Alguma salsicha se vocês puderem encontrá-la. Nenhum
desses doces feitos de fada. Eu não vou ter meus sentidos obscurecidos pela
sua magia.
Twig e Thistle abriram as bocas para protestar. Eu olhei para elas. —Eu
gostaria…
Elas desapareceram sem uma palavra, deixando para trás nada além dos
ecos de um suspiro descontente.
O Rei dos Elfos e eu nos encaramos enquanto minha irmã fazia nossas
apresentações.
—Querido —, disse ela. —Você se lembra da minha irmã, Elisabeth, é
claro?
—Encantado, Fräulein. — Ele levou minha mão aos lábios. Eu resisti ao
desejo de pegá-la e entregá-la de volta com um tapa.
—Liesl. — Käthe se virou para mim. —Meu marido, Manók Hercege.
—Um prazer. — Eu disse com os dentes cerrados.
—Eu acredito que sua irmã não me aprova, minha querida —, o Rei dos
Elfos disse a Käthe. —Ela olha fixamente em minha alma. Eles apunhalam. —
Ele apertou sua mão para seu coração.
—Liesl! — Käthe repreendeu.
—Agora, agora —, o Rei dos Elfos acalmou. —Tenho certeza de que
Elisabeth está cumprindo seu dever, como uma irmã mais velha deve fazer. Já
que ela está condenada a uma vida de solteirona, ela pode julgar todos os seus
superiores, sim?
—Manók! — Käthe bateu com força no pulso. —Seja gentil. Vocês dois.
—Mein Herr —, eu disse com firmeza. —Uma palavra?
O Rei dos Elfos inclinou a cabeça. —Claro. Madame? —Ele se virou para
Käthe, pedindo para ser dispensado de sua presença. Minha irmã concordou
com a cabeça e nos dispensou.
—Manók Hercege? — Foi a primeira coisa que saí da minha boca quando
estávamos sozinhos.
O Rei dos Elfos deu um encolher de ombros elegante. —Eu sei um pouco
húngaro.
—O que isso significa?
Ele sorriu. —O que você acha que significa. Eu não sou tão criativo como
tudo isso, Elisabeth.
Eu fiz uma careta. —Esse é o seu nome? Você tem um nome?
O Rei dos Elfos ficou rígido. —Esse não é o tópico em questão.
Eu levantei minhas sobrancelhas. Mas seu rosto estava fechado como
uma casa em uma tempestade.
—Não —, eu concordei. —O tópico é por que e como você fez minha irmã
acreditar que ela é casada com você.
—Ciumenta? — Ele parecia satisfeito.
—Você a forçou? Coagiu ela de alguma forma? Ou isso é tudo uma
fantasia elaborada que você orquestrou para prendê-la aqui com você para
sempre?
—Coagir é uma palavra tão forte —, disse ele. —Eu gosto de pensar que
sou persuasivo em meus próprios méritos.
—Ela acha que você é uma condessa húngara.
Ele acenou com a mão. —Todos nós temos nossas falhas.
—Você pode jogar seus jogos comigo —, eu disse. —Mas deixe Käthe
sozinha. Ela não está preparada para lidar com você.
—Oh, e você está? — O Rei dos Elfos se inclinou para frente. Eu me
obriguei a ficar quieta. —Diga; Estou intrigado.
—O jogo é entre você e eu —, repeti. —Deixe minha irmã fora disso. Ela
é inocente.
Seus olhos escureceram. —Sua irmã é verdadeiramente inocente?
—Sim.
—Uma menina bem familiarizada com a tentação, uma menina com uma
risada convidativa, um coração inconstante e uma alma aventureira —, disse
ele em voz baixa. —Uma menina dada à auto-indulgência, que procura a fruta
proibida e a comida dela contra a sabedoria de sua irmã mais velha - pode uma
garota ser verdadeiramente chamada de inocente?
Eu fiquei rígido de raiva. —Não cabe a você julgar.
—Mas é para você? — Ele retornou. —Você é responsável pela virtude
da sua irmã?
—Não, — eu disse. —Mas vou proteger seu bom nome.
—Oh, Elisabeth. — O Rei dos Elfos balançou a cabeça. —Quando você
será egoísta? Quando você fará alguma coisa por si mesma?
Eu fiquei em silêncio.
—Você não pode se intrometer nos caprichos da sua irmã. — Toda a
pretensão de charme havia sumido do Rei dos Elfos. —Algum dia ela deve
fazer suas próprias escolhas. Sem você. O que você fará quando não houver
mais ninguém para cuidar? É quando você finalmente vai cuidar de você?
Ele tinha um jeito de me atacar com compaixão. Sua bondade inesperada,
mais que seu charme ou beleza, era sedutora. Eu não gostei da verdade em
suas palavras. E sua pena. Eu não queria sua piedade.
O Rei dos Elfos suspirou. —Käthe faz parte do jogo. As peças foram
postas em movimento e ela é uma delas.
—Você me deu os dias de inverno para escapar do Submundo. — Eu
cruzei meus braços. —E você se casou com minha irmã pelas minhas costas.
Aquele sorriso arrogante retornou ao seu rosto. —Você está com ciúmes.
Bem, bem, bem; isso é um bom presságio para mim.
Quando eu não mordi a isca, ele balançou a cabeça.
—Não, Elisabeth, não me casei com Käthe. As leis antigas são
obrigatórias, e quando eu tomo uma noiva, é para sempre. Ela pode nunca
mais pisar no mundo acima. Essa bela visão é um feitiço que ela mesma criou,
uma linda fantasia para lhe trazer conforto. Eu tenho muito pouco poder, você
sabe.
Eu zombei. —Você é Der Erlkönig. Você tem todo o poder.
O Rei dos Elfos levantou uma sobrancelha. —Se você pensa assim, sabe
menos do que eu lhe dei crédito —, ele disse. —Eu sou apenas um prisioneiro
da minha própria coroa.
A coroa serve ao rei ou o rei serve a coroa?
—Por que uma noiva? — Eu perguntei depois de um momento. —Por
que, por que Käthe?
Por que não eu? Por que ele não veio para mim?
Demorou um tempo antes de ele responder. Ele passou os dedos por uma
das figuras em uma das mesas laterais no corredor. Era uma ninfa de madeira,
de quadris largos, rechonchuda e terrosa. Ele traçou a curva de sua cintura,
descendo as coxas, e recuou a forma de sua perna antes de descansar na
clavícula da ninfa, onde a linha de seu pescoço encontrava seu peito.
—Devo te contar uma história? —, Ele disse finalmente. Ele soltou a
figura da ninfa e olhou para uma das paisagens que ficavam no corredor. —
Uma história como Constanze poderia ter dito a você e seus irmãos quando
você era criança.
Eu segurei minha respiração.
—Era uma vez um grande rei que vivia no subsolo.
Os contos de fadas da minha avó costumavam começar assim. Sempre
achei que as histórias dela fossem de sua própria invenção, mas, ouvindo o
ritmo das palavras do Rei dos Elfos, fiquei imaginando onde Constanze as
aprendera pela primeira vez.
—Este rei era o governante dos mortos e dos vivos —, continuou ele. —
Ele levava o mundo acima para a vida a cada primavera, e trazia de volta à
morte a cada outono.
O Rei dos Elfos olhou para a paisagem enquanto as árvores e as coisas
vivas floresciam e floresciam, ficando verdes e brilhantes antes de murcharem.
—As estações mudaram uma após a outra e com o tempo o rei
envelheceu. Cansado. A primavera chegou mais tarde e mais tarde e mais cedo
e mais cedo, até que um dia não havia primavera. O mundo lá em cima ficou
quieto, morto e parado, e as pessoas sofreram.
O retrato encantado voltou ao inverno e à neve. As estações pararam de
mudar.
—Um dia, uma valente donzela se aventurou no Submundo. — Seus
olhos se voltaram do retrato para mim. —Para implorar ao rei que devolva o
mundo à vida.
—Corajosa? — Eu ri, um riso fino e desafiador. —Não bonita?
Seus lábios se torceram para um lado. —Corajosa ou bonita, não importa.
Deixe Constanze dizer de uma maneira; Eu contarei isso na minha história.
O Rei dos Elfos se aproximou. Eu me forcei a ficar onde estava,
empurrando de volta contra sua presença insistente.
—Ela ofereceu ao rei sua vida em troca da terra. Minha vida para o meu
povo, ela disse. Ela implorou que ele aceitasse sua barganha. Ela conhecia as
velhas leis: vida por vida, sangue pela colheita. Sem ela, o Submundo
murcharia e desapareceria, levando consigo todos os vestígios de verde do
mundo acima.
Ele pairava sobre mim, seus dedos estendidos, alcançando o pulso na
minha garganta. Minha respiração ficou superficial. Eu esperei - queria - que
ele me tocasse, agarrasse minha vida em suas mãos e a peguasse.
Mas ele não fez. Seus dedos se enrolaram e ele recuou.
—Sua vida sustentaria a do rei, a vida do rei sustentaria os habitantes do
Submundo, e suas vidas sustentariam a terra e fariam as coisas crescerem. O
rei aceitou sua barganha e, quando o ano novo se transformou, a primavera
chegou novamente.
À sua maneira, era uma bela história, mais parecida com as parábolas e
fábulas dos bons mártires cristãos que mamãe nos contou do que os contos de
elfos e travessuras de Constanze. Pessoas virtuosas, pessoas persistentes,
pessoas que se sacrificavam pelo bem maior de todos, esses eram os heróis das
histórias da mãe. Como a valente donzela do conto do Rei dos Elfos.
Mas Käthe não era a heroína corajosa das histórias da mãe; ela era a
menina tola e bonita de Constanze. Quem era a corajosa donzela da história do
Rei dos Elfos?
—Mas a história não termina aí, não é? — Perguntei.
—A história não tem fim —, ele disse asperamente. —Isso continua
indefinidamente e para a eternidade.
Os olhos do Rei dos Elfos estavam tristes ou arrependidos. Seus olhos
não eram como os dos outros elfos - aquelas órbitas escuras e negras que
escondiam toda a intenção. Era difícil ler os rostos dos elfos ao meu redor; seus
olhos planos e inescrutáveis, suas feições retorcidas e estranhas ao olho
natural. Mas havia simpatia entre eu e o Rei dos Elfos, uma linguagem de
nossos corpos que eu entendia.
—Então você quer que minha irmã morra —, eu sussurrei. —então o
mundo pode viver.
Ele não disse nada.
—Se —, eu comecei, e então limpei minha garganta. —Se você perder o
jogo, o que acontece? A primavera nunca virá? O mundo acima viverá sob o
inverno eterno?
Seu rosto era grave. —Você está disposta a correr esse risco?
Uma escolha impossível. A vida da minha irmã... ou o destino do mundo.
Eu achava que minhas apostas eram altas, mas agora vi que o Rei dos Elfos era
ainda maior.
—O que vai acontecer com você se eu ganhar? — Eu sussurrei.
Um sorriso cruzou os lábios, mas os cantos estavam virados para baixo,
mais tristes do que satisfeitos. —Você sabe —, disse ele. —Você é a única que
já pediu.
Então ele desapareceu em um redemoinho de vento e folhas mortas.
Eu não perdi tempo. Assim que tirei Käthe da cama, vesti-me nos dois
vestidos mais práticos que consegui encontrar. Eu não tinha nada comigo, nem
mesmo meu mapa rudimentar e contraditório do Submundo. Mas o tempo
para o planejamento foi passado. Se nos perdessemos ou não, pouco importava
agora; o tempo acabou. Então, como o Flautista de Hamelin, eu me esforcei
para levar minha irmã embora.
Minha voz já estava rouca. Eu não podia cantar para sempre; Eu
precisava de outro jeito de manter minha irmã sob o meu feitiço.
Quando a ideia veio a mim, eu quase deixei minha música cair em uma
risada. Minha flauta. O presente do estranho alto e elegante. Eu tinha jogado
em seu covil; Eu tocaria isso.
Eu desejo, eu desejo, para qualquer um perto
Para me trazer minha flauta, rápido!
Traga para mim aqui.
Em um piscar de olhos, Twig e Thistle apareceram diante de mim. Thistle
parecia irritada com a convocação, mas Twig parecia divertida. A alta e magra
elfo me ofereceu o instrumento com um olhar quase reverente em seu rosto.
Obrigada minha amiga.
Meus agradecimentos a você.
Por favor me ajude a encontrar meu caminho
Fora desta tumba?
Eu não conseguia imaginar como trabalhar, desejar em minha música
improvisada, que ficou mais desabitada e disforme pela medida.
—Não há saída, mortal —, disse Thistle. —É inútil tentar.
Eu balancei a cabeça, ainda cantarolando uma melodia sem palavras.
Virei-me para Käthe, cujo rosto desenhado estava pálido e coberto de suor frio.
—Estou aqui —, ela disse com aquela voz distante e distante. —Ainda
estou aqui.
Twig olhou para mim com aqueles olhos planos, inumanos e ilegíveis.
Eu queria ler bondade neles. —Saiba disso, mortal —, disse ela. —Todos os
caminhos levam ao começo e ao fim do Submundo. É para você descobrir qual
é qual. Mantenha-se fiel; seja rápida. Lembre-se, o que as velhas leis dão, elas
também tomam. Não será fácil para você escapar.
—Ela irá falhar —, desdenhou Thistle. —Nenhum mortal na terra tem o
poder de perturbar o equilíbrio antigo. — Ela mostrou os dentes em um sorriso
macabro. —Boa sorte. Você precisará disso.
Ignorei Thistle e acenei com os meus agradecimentos a Twig. As duas
garotas elfos se desvaneceram.
Fale comigo, querida, eu cantei para Käthe, Fique comigo. Cante!
Então eu coloquei a flauta nos meus lábios.
10 Pena - Italiano
A voz de Käthe estava abafada. Eu me virei, seguindo desesperadamente
o som de seus gritos. Lá estava ela, presa numa jaula de galhos; mas não, não
era nada além de uma árvore crescendo de uma rede de trepadeiras. Então eu
a vi à mercê de vários elfos, com os braços presos atrás das costas. Eles não
pareciam mais humanos apesar de suas formas bonitas, seus sorrisos lascivos
não mais convidativos, mas ameaçadores.
Eu corri atrás deles, mas não era Käthe em suas garras; era eu. Eu estava
rodeada de elfos altos e elegantes, feitos nos moldes de seu rei - lânguidos,
bonitos, cruéis. Senti o toque de seus lábios contra a minha pele, pequenos
amordaços de amor contra a minha garganta, como se quisessem me devorar.
Mas não, eles não eram elfos, mas ramos de inverno mortos: seus galhos
rasgando minhas roupas e cabelos em tiras.
—Liesl!
Os gritos de Käthe eram fracos, mas de alguma forma mais próximos.
Como se ela estivesse debaixo de mim, enterrada em algum lugar no fundo da
terra. Eu caí de joelhos e agarrei a terra, cavando freneticamente.
—Desista, Elisabeth —, insistiu o Rei dos Elfos. —Desista e se renda para
mim.
Sua voz estava em toda parte e em nenhum lugar ao mesmo tempo. Ele
era o vento, ele era a terra, ele era as árvores, as folhas, o céu e as estrelas. Eu
lutei contra ele e a floresta lutava, confundindo meu senso de tempo, distância
e até mesmo eu.
—Liesl!
Um baque abafado. Limpei as folhas, galhos e pedras e terra antes que
minhas mãos batessem em algo tão duro e liso como vidro.
—Liesl!
Sob minhas mãos estava Käthe, presa atrás de uma camada de gelo. Um
lago congelado? Eu inutilmente bati na superfície, chamando o nome dela. Ela
estava se afogando? Eu gritei com frustração, arranhando, coçando e batendo
até minhas palmas racharem e sangrarem, deixando manchas de sangue sobre
o gelo.
De repente, o gelo desapareceu debaixo de mim, revelando uma Käthe
frenética. Mas para o pânico em seu rosto, ela parecia sã. No entanto, quando
olhei mais de perto, tudo estava errado. Minha cabeça girou; embaixo de mim
não estava o preto profundo de um lago congelado, mas o infinito estrelado de
um céu de inverno. Käthe não estava olhando para mim, mas para baixo, como
se estivesse ajoelhada ao lado da lagoa, em vez de flutuar por dentro. Suas
mãos golpearam o gelo ao ritmo das minhas, mas eu não sabia mais qual era o
caminho. Eu estava presa no subsolo? Ou ela estava?
—Desista, Elisabeth. — O rosto do Rei dos Elfos estava refletido na
superfície lisa do gelo, mas quando me virei, não havia ninguém atrás de mim.
—Solte.
Mas eu não soltaria. Procurei por algo - qualquer coisa - que eu pudesse
usar para esmagar o gelo entre minha irmã e eu. Mas não havia nada.
Nenhuma pedra, nenhum galho.
Então me lembrei da flauta feita por gnomos. Eu tinha empurrado o
instrumento pela cintura da minha saia, uma vez que passamos de corredores
para túneis no Submundo, quando eu não conseguia mais tocá-la por ter
engatinhando em minhas mãos e joelhos. Minhas mãos tatearam a flauta,
desamarrando as cordas que seguravam meu avental, saia e modéstia juntas.
Eu nao me importava. Eu rasguei minhas roupas e liberei o instrumento.
Um lampejo de incerteza cruzou os olhos do Rei dos Elfos, ainda refletido
no gelo abaixo de mim. —Não, Elisabeth...
Mas eu nunca ouviria o que ele estava prestes a dizer. Eu levantei a flauta
acima da minha cabeça com as duas mãos. O vento pegou sua miríade de teclas
e parou, tocando uma doce melodia assobiante, abafando todos os outros sons.
Então eu trouxe a flauta para baixo como um machado com toda a minha
força.
Ressureição
A rainha elfo
O Rei dos Elfos levou Käthe embora sem outra palavra. Ela estava em
meus braços um momento e foi no seguinte, antes que eu pudesse dizer adeus,
antes que eu pudesse dizer que a amava.
Não sei quanto tempo fiquei lá na masmorra. Minha mente estava vazia,
desprovida de qualquer tristeza, pensamentos ou música. Eu deveria ter
sentido pesar. Eu deveria ter sentido medo. Mas, em vez disso, não sentia nada
além de um cansaço imenso, uma exaustão tão profunda que era como a morte.
Horas, ou dias, ou minutos se passaram antes que eu sentisse o leve toque de
uma mão na minha cabeça.
—Elisabeth.
Um jovem olhava para mim, seus olhos desencontrados macios, a
inclinação de sua boca macia. Foi a ternura que me desfez, desfez as cordas que
eu amarrei no meu coração. Saudade, medo, pesar, ressentimento e desejo
vieram à tona. Eu comecei a chorar.
O jovem estendeu a mão para enxugar as lágrimas e, em seu toque, não
havia nada além de bondade. Eu queria ter sua compaixão e envolvê-lo em
mim para o conforto.
Um pedido de desculpas ficou pendurado no espaço entre nós, embora
ele não falasse.
Me desculpe, Elisabeth.
Mas por que ele ficaria triste por mim? Minha dor pertencia a mim e a
mim sozinha, e eu não podia, não queria compartilhar isso com ninguém. Eu
não lamentei a minha vida, pois não tinha sido uma vida digna de ser vivida.
Mas eu lamentei as vidas que não teria: a da minha irmã, do meu irmão, da
minha família. Eu nunca veria Josef aclamado como músico. Eu nunca iria
viajar com Käthe para ver as grandes cidades do mundo. Eu nunca mais
ouviria meu nome em seus lábios.
O Rei dos Elfos reuniu-me em seus braços e deixei que ele me levasse de
volta ao meu quarto. Seu caminho pelo Submundo era curto e direto, mas ele
podia dobrar o tempo e a distância de sua vontade, afinal de contas. Ele me
colocou na minha frente, ainda trancado com aquela engenhoca absurda.
Então, com uma reverência cortês, o Rei dos Elfos desapareceu.
Foi um prazer abrir aquela porta e girar a fechadura, ouvindo a batida e
o ruído sólidos enquanto o mecanismo deslizava para o lugar. Eu fiz isso tantas
vezes para o meu coração; Foi um prazer fazer isso para o mundo.
Eu estava vazia. Um corpo cheio de nada. Qualquer espírito que me
enchesse fugira anos atrás, deixando-me apenas com corpo e fantasma.
Eu acendi uma vela.
Eu havia ouvido acólitos no convento de freiras realizarem uma vigília à
luz de velas na noite anterior à consagração a Cristo, como fizeram as jovens
noivas na noite anterior ao casamento, antes de se consagrarem a seus maridos.
Mas quão longe eu estava da Sua graça, no fundo da terra? Embora eu tivesse
participado da Missa com o resto da minha família aos domingos, nunca senti
a presença de Deus ou de seus anjos. Foi só quando ouvi Josef jogar que
acreditei no Céu.
Eu suportaria esta vigília sozinha, sem orações em meu coração. Para o
que eu poderia rezar? Um casamento frutuoso com muitas crianças? Eu
poderia suportar qualquer coisa monstruosa, meio humana, meio elfo? Ou eu
poderia rezar por algo totalmente mais egoísta, como a vida que eu nunca tive,
uma vida vivida ao máximo?
Então eu rezei por nada. Ajoelhei-me com as mãos entrelaçadas diante
da vela e observei a chama queimando pela noite dentro.
O beijo é mais doce que o pecado e mais feroz que a tentação. Eu não sou
gentil, não estou sendo gentil; Eu sou áspera e selvagem. Eu mordo, eu belisco,
eu lambo, eu devoro. Eu quero e quero e quero e quero. Eu não guardo nada
de volta.
Elisabeth, ele exala em mim, e eu sinto meus pulmões, meu corpo, meus
quadris se encherem com a respiração dele. Ele me enche e eu quero ser
preenchida por ele. Eu abro minha boca para deixá-lo entrar, mas suas mãos
se aproximam e envolvem meus braços.
Não, não, não, eu penso. Não me afaste. Acenda meu fogo. Me faça queimar.
Mas o Rei dos Elfos não me afasta. Ele me agarra mais perto. Nossos
lábios se separam e cumprimentam como parceiros em uma dança, reunião,
entrelaçamento, apego. Quando ele se afasta, eu gemo, mas sua boca nunca vai
longe, beijando os cantos dos meus lábios e meu queixo, seu nariz roçando a
pele da minha bochecha.
Eu sou desleixada, sem arte. Eu corro minha língua ao longo da borda
superior dos meus dentes, a borda inferior do lábio. Ele tem gosto de vento de
inverno, mas o calor de nossas bocas o aquece, e então tudo é lânguido, úmido,
quente, como uma noite de verão. Suas mãos, enroladas em meus braços,
soltam e deslizam para baixo. As pontas dos dedos dele traçam uma linha nas
minhas costas, descansando onde a curva se encontra com o meu traseiro.
Oh Deus. Não tenho palavras e estou longe do céu, mas não me importo.
Eu quero mentir com o Diabo e faria isso de novo e de novo, apenas para me
sentir assim. Estou segurando sua capa tão apertada, imagino que a impressão
do bordado ficará nas palmas das mãos durante dias.
Elisabeth, ele murmura novamente. Elisabeth, eu...
Mas eu não deixo ele terminar.
Eu gostaria…
Ele faz uma pausa, enrijecendo.
Eu queria que você me levasse. Me arrebentasse. Agora mesmo.
Agora mesmo.
Picar e Sangrar
O refeitório era outra caverna, muito parecida com o salão de baile. Seus
tetos altos erguiam-se acima de mim como os arcos de uma catedral, enquanto
pingentes de pedra escorriam baixo, enfiados de Fadas de Luz. Era como ficar
de pé na boca gigante de um monstro, seus dentes ameaçando fechar-se em
mim a qualquer momento, enquanto eu esperava meu senhor e meu marido
me escoltar até o meu lugar.
Eu me esforcei para me acalmar. Era difícil com as minhas costelas,
segurando meus pulmões em seu aperto de ferro. As respirações que tomava
foram restritas, não fazendo nada para retardar meu coração vibrante. Ele
vibrava com nervosismo ou excitação? Eu não tinha certeza.
Thistle, Twig e o alfaiate trouxeram de volta uma série de vestidos para
eu escolher. A maioria era terrivelmente inadequada para mim - as cores eram
muito brilhantes, muito pálidas, as formas todas erradas, o ajuste feito para
alguém mais alto, alguém mais esbelto, alguém simplesmente mais. O
pensamento de usar as eliminações de outra mulher - de outra mulher morta -
fez minha pele arrepiar, e eu recusei todas elas, enlouquecendo os meus
atendentes. O alfaiate finalmente me lançou um roupão velho e ameaçou me
vestir.
Para sua surpresa, aceitei. O alfaiate pegou o roupão e o transformou em
um simples vestido de jantar. Seus dedos longos e finos se estalaram enquanto
ele trabalhava, rasgando as costuras até que ele tivesse material suficiente para
costurar algo usável. A velocidade e destreza de seus dedos me
surpreenderam; Dentro de alguns instantes, ele montou um vestido com uma
saia cheia e um corpete modesto. O vestido era opaco e cinza, a cor da terra, a
cor da lama. Era também, pensei, a cor das penas dos pardais.
—Boa noite, Elisabeth.
O sussurro de um hálito frio no meu pescoço. Eu tremi, dedos gelados
viajando pela minha espinha. Eu enfrentei o Rei dos Elfos e fiz uma reverência.
—Boa noite, mein Herr.
Ele levou minha mão aos lábios, todo cortesia e encanto. Ele era tão
resplandecente quanto um pavão em um lindo casaco verde-musgo feito de
brocado de seda, fios de ouro e cobre entrelaçados em um padrão de folhas de
outono. Suas calças de cetim eram creme, suas meias brancas como neve, os
dedos de seus sapatos pretos pontiagudos erguidos como pés de elfo em
ilustrações que eu havia visto quando criança. Ele estava deslumbrante, tanto
como um rei dos elfos e como um homem. Minha respiração ficou presa na
minha garganta.
—Como vai você, minha querida? — O Rei dos Elfos segurou minhas
duas mãos. As suas estavam enluvadas; as minhas estavam nuas. —O klavier
estava ao seu gosto?
Eu endureci. Pensei no instrumento reluzente no quarto ao lado do meu,
esperando que eu me sentasse e compusesse. A beleza de sua forma e som me
empurrou, pressionando minhas defesas.
—Você está zombando de mim? — Eu perguntei.
O Rei dos Elfos ficou surpreso. —Por que eu iria zombar de você? Você
não gostou do meu presente?
Eu tirei minhas mãos de seu alcance e me afastei. Eu não podia aceitar
este presente dele; sua própria existência me lembrou do espaço oco dentro de
mim que ansiava por ser preenchido.
—Não, por favor —, eu disse. —Não foi um presente; foi um ataque.
Aqueles olhos incompatíveis imediatamente se fecharam, tornando seu
rosto frio e impiedoso. Eu não percebi até que ele desapareceu que eu estava
falando com o jovem de olhos macios. Der Erlkönig apareceu em seu lugar.
—Vamos, minha rainha? — Sua distância era mais fria e mais amarga
que um vento de inverno. Ele ofereceu seu braço e eu o peguei enquanto ele
me guiava para a grande mesa no meio do corredor. Uma vez que eu estava
sentada em uma extremidade, o Rei dos Elfos desapareceu e reapareceu na
outra extremidade em um piscar de olhos.
A mesa grande estava situada ao lado de uma enorme lareira, maior do
que eu era alta, na qual um javali enorme estava cuspido e assado sobre um
fogo crepitante. Das sombras veio uma multidão de servidores, cada um com
um prato que eu nunca tinha visto ou ouvido falar antes. Dois garçons
levantaram o javali da lareira e o colocaram, ainda fumegando e assando, em
um prato do tamanho de um tronco de árvore antiga, cercado por uma
variedade de frutas goblínicas.
—Vamos dar as graças. — Disse o Rei dos Elfos, assim que os servidores
se retiraram.
Meus dedos já estavam enrolados em torno do garfo e faca na minha
frente, e eu envergonhei os devolvi ao meu colo. Meu marido era mais devoto
do que eu. Eu estava curiosa sobre sua fé, mas fiquei em silêncio enquanto
baixava a cabeça. O Rei dos Elfos pediu a bênção do Senhor em nossa refeição
- em latim.
Onde ele aprendeu latim? Meu próprio latim era, na melhor das
hipóteses, rudimentar, meio lembrado das lições da escola dominical que eu
havia abandonado em favor de coabitar com Josef e os elfos na floresta. Pagãos,
nossa mãe nos chamava, sem nenhum cuidado ou conceito para Deus. Mas
Josef e eu não nos importamos; nós éramos do próprio Der Erlkönig e ele não
acreditava em Deus. E ainda assim este Rei dos Elfos sentado diante de mim,
aprendeu em latim e estudava música. Apenas quem era ele?
—Amém. — Ele disse uma vez que ele terminou a bênção.
—Amém. — Eu entoei. Nós começamos a comer. Eu me divertia com a
forma dos meus utensílios: o garfo, formado em uma mão magra e delgada,
com seus dedos muito unidos e garras pontudas servindo como pontas; a faca,
sugerindo uma longa presa escorregando de uma boca sorridente. Os garçons
voltaram, cortando o javali e transferindo a carne - fumegante, vermelha, mal
cozida, ainda pingando um pouco com sangue - em uma grande travessa.
Nós comemos sem falar, como eu escolhi no assado e outros legumes de
raiz de inverno. Eu espiei pratos variados, cremes e outras iguarias, mas todos
viraram meu estômago. Cozinhados com um toque de elfo, pareciam
estranhos, antinaturais, podres: os chocolates enlameados, os doces cobertos
de limo.
—O que, a comida não te agrada, minha rainha?
Eu olhei para cima da minha refeição. O Rei dos Elfos usava uma
expressão azeda, seus lábios apertados. Ele pegou em seu próprio prato, uma
porção escassa mal tocada.
—Não, mein Herr. — Reescrevi minhas palavras. —Suas ofertas não me
tentam.
—Não? — Ele dirigiu seu garfo em seu assado com força crescente. —E
o que seria necessário para agradar a você, minha querida?
Ele estava de mau humor, o lábio inferior em um biquinho que rivalizava
com o de Käthe. Ele era como uma criança que não tinha seu brinquedo
favorito, uma criança mimada acostumada a conseguir o que queria.
Então eu não disse nada, dando de ombros indiferente ao Rei dos Elfos
quando tomei um grande gole de vinho.
—Tão particular, minha rainha —, ele comentou. —Você estará aqui pelo
resto de sua vida; você também pode se divertir.
Eu não tinha resposta para isso, então tomei outro gole de vinho.
A refeição progrediu em silêncio, um silêncio que ficou preso em nossas
gargantas. Nenhum de nós comeu muito, mas os servidores elfos continuaram
a trazer cursos após o curso. Eu tentei o meu melhor para honrar cada prato,
mas o Rei dos Elfos tinha desistido de toda a pretensão de comer. Ele bebia
taça após taça depois de uma taça de vinho, ficando cada vez mais irritável
quando seus empregados não enchiam sua taça com rapidez suficiente. Foi o
máximo que já o vi beber, mas ele parecia completamente sóbrio. Papai já
estaria rindo - ou chorando - a essa altura.
Eu assisti o Rei dos Elfos se mexer debaixo dos meus cílios. Eu sabia que
ele queria quebrar a quietude que ainda não estava entre nós. Seu humor
piorava a cada momento que passava. Ele deslizou as travessas e tigelas na
mesa para frente e para trás, observando a comida cair na superfície e no chão,
forçando os elfos a limparem atrás dele. Eu podia ver as palavras se formando
em sua língua, mas ele fechou os lábios e as engoliu, determinado a não ser
aquele que quebrava primeiro.
Mas ele fez assim mesmo.
—Bem, minha querida. — Disse ele finalmente.
Ele queria preencher os espaços vazios com som, com conversas sem
sentido. Ele era um pouco parecido com Josef daquele jeito; Josef, que sempre
tocava porque não suportava o silêncio. Eu estava contente em moldar o
silêncio nas estruturas que eu queria.
Então eu esperei.
—Que temas cintilantes devemos discutir durante o jantar? —,
Continuou o Rei dos Elfos. —Nós temos o resto de sua vida para nos reacender,
afinal de contas. — Ele tomou outro gole de seu vinho. —Que tal o vinho? Uma
safra muito boa, se eu mesmo disser isso.
Mais uma vez eu não disse nada. Eu metodicamente mordi depois de
morder minha comida, mastigando lenta e cuidadosamente.
—E o tempo? —, Ele continuou. —Sempre imutável aqui no subsolo, mas
inverno no mundo acima, ou assim me disseram. A primavera, dizem, demora
a chegar este ano.
Eu parei com meu garfo a meio caminho da minha boca. Pensei no que o
alfaiate dissera sobre a terra pertencente aos elfos durante os dias de inverno.
A comida virou cinzas na minha língua, desmoronando todo o caminho até a
minha garganta. Tomei outro gole de vinho.
O Rei dos Elfos já teve o suficiente. —Você não vai falar? — Ele exigiu.
Eu me cortei outro pedaço de carne assada. —Você estava fazendo um
bom trabalho sozinho. — Eu disse suavemente.
—Eu não pensei que você seria uma conversadora tão maçante,
Elisabeth. — Ele amuou. —Você sempre esteve disposta a falar comigo antes.
De volta ao bosque dos elfos. Quando éramos jovens.
Teria o Der Erlkönig sido jovem? Ele era eterno e antigo, mas eu parecia
lembrar seu rosto, redondo e musculoso com a juventude. Eu me lembrei de
uma menininha na floresta e um garotinho.
—A conversa fiada de uma menininha não é o mesmo que uma conversa
cintilante, mein Herr. — Larguei meus utensílios. —Mas o que eu te disse?
O Rei dos Elfos sorriu, mas eu não sabia dizer se provocava ou acalmava.
—Muitas coisas. Você queria ser uma compositora famosa. Você queria ter sua
música ouvida em todos os grandes salões de concerto do mundo.
A dor explodiu do meu peito, um relâmpago rápido, mas a queimação
persistiu depois de seu ataque inicial. Era verdade que eu sonhara com essas
coisas uma vez. Antes que Josef roubasse a atenção de nosso pai com seus
presentes. Antes de papai ter deixado bem claro para mim que o mundo não
tinha interesse em ouvir minha música. Porque era estranho. Porque eu era
estranha. Porque eu era mulher.
—Então você conhece o meu coração —, eu disse. —E não há mais a ser
dito.
O rosto do Rei dos Elfos escureceu. —O que há de errado com você,
Elisabeth?
Eu levantei meus olhos para os dele. —Não há nada de errado comigo.
—Há. — Ele se mexeu em seu assento, e embora houvesse uma infinita
variedade de comida e festa entre nós, ele estava muito perto. Uma tempestade
estava se formando por trás daqueles olhos desiguais, e o ar entre nós crepitava
com eletricidade. —Você não é a Elisabeth de que me lembro. Eu pensei que se
você, se você se tornasse minha... — Ele se interrompeu abruptamente. —Isso
—, disse ele, apontando para o espaço entre nós. —não é o que eu estava
esperando.
—As pessoas crescem, mein Herr —, eu disse em breve. —Elas mudam.
Ele me deu um olhar duro. —Evidentemente. — Ele olhou para mim por
mais uma vez antes de se inclinar para trás em sua cadeira e cruzar os braços,
descansando os pés sobre a mesa. —Ah, bem, meu erro. O tempo passa de
maneira diferente no Subterrâneo do que no mundo acima. Meros momentos
para mim, vários anos e uma vida atrás para você, aparentemente. — A
tempestade em seus olhos ficou mais sombria.
Um infeliz assistente de elfos tentou mover um dos pés do Rei dos Elfos
para limpá-lo. —O que você está fazendo? — Ele retrucou.
O elfo lançou-lhe um olhar de besouro e tentou sair do caminho, mas não
antes de o Rei dos Elfos agarrar o coitado pela nuca e dar-lhe um chute
malicioso, enviando-lhe o ouvido do outro lado do salão.
Eu fiquei horrorizado. —Como você pode?
Seus olhos brilhavam perigosamente. —Faria o mesmo comigo se
pudesse. — Disse ele em tom sombrio.
—Você é Der Erlkönig —, eu disse. —Você é o rei deles e tem um poder
incalculável sobre eles. Você é a razão pela qual eles não podem deixar o
Submundo. Tenha um pouco de pena, por que não?
Ele bufou. —Eles são tanto meus carcereiros quanto eu sou deles —, ele
replicou. —Se eu pudesse colocar meu fardo como diretor do Submundo, eu
faria. Se eu pudesse vagar pelo mundo acima como um homem livre, eu iria.
Em vez disso, sou prisioneiro da minha coroa.
Isso me deixou em paz. Ele sempre parecia ir e vir ao meu encontro e
ligar para o Bosque dos Elfos, mas, à sua maneira, estava preso. Como eu.
—O que você faria se fosse um homem livre? — Perguntei.
A pergunta atingiu-o no peito, espalhando-se por sua garganta e rosto
como o rubor da aurora. Com vida e cor em suas feições, ele parecia mais uma
vez o jovem austero na galeria de retratos: jovem, idealista e vulnerável.
—Eu pegaria meu violino e tocaria. — As palavras foram ditas quase
antes que seus lábios pudessem alcançar o que ele estava dizendo. —Eu
andaria pelo mundo e tocaria até que alguém me chamasse pelo nome e me
chamasse para casa.
Seu nome e sua casa. O que meu Rei dos Elfos deixou no mundo mortal?
Foi um tormento maior ver tudo que você conheceu e amou transformar e
desaparecer diante de seus olhos enquanto você permanecia vivo e imutável?
Ou era pior morrer antes que você pudesse testemunhar essa mudança por si
mesmo?
Os olhos do Rei dos Elfos encontraram os meus e, por um breve
momento, eu o vi - verdadeiramente ele - por trás da máscara de Der Erlkönig,
até o garoto que ele tinha sido. Mas ele piscou e o manto caiu sobre ele mais
uma vez.
—E você, Elisabeth? O que você faria, se você fosse livre?
Eu virei minha cabeça, os olhos ardendo. Ele havia retornado minha
pergunta com um voleio particularmente vicioso, e nós dois sabíamos disso.
—Podemos jogar este jogo —, disse ele. —Pergunta por pergunta,
resposta por resposta.
—Você pode manter suas respostas para si mesmo —, eu respondi. —
Não tenho mais perguntas.
—Oh, Elisabeth. — Sua voz estava triste. —O que aconteceu entre nós?
O que aconteceu com você? Você já foi tão apaixonada e aberta comigo, e agora
mal posso ver a amiga que conheci. Por que você não sai e joga, Elisabeth? Por
quê?
Ele tinha todas as perguntas, mas eu não tinha mais respostas. Nós
terminamos nossa refeição sem outra palavra entre nós.
Depois que os elfos limparam os últimos pratos, o Rei dos Elfos me
convidou para se juntar a ele em seu aposento. Um ligeiro arrepio de excitação
começou na base da minha coluna com a perspectiva de estar em seus
aposentos particulares novamente, e eu concordei. Eu gostaria de poder
resolver meus sentimentos por ele, meu senhor e carcereiro, amigo e inimigo.
Parte de mim ansiava por atraí-lo para perto, enquanto outro queria mantê-lo
no braço. O Rei dos Elfos me ofereceu seu braço e saímos do refeitório com
uma brisa.
Quando recuperei o fôlego, estávamos em um espaço lindamente
decorado com duas lareiras, a parede próxima forrada de estantes de livros, a
parede distante forrada com enormes espelhos de prata que mostravam a neve
caindo sobre uma madeira de inverno. Um klavier estava no centro. Um
vestido branco manchado de sujeira pendia de uma prateleira ao lado do
instrumento. Eu fiz uma careta.
—Isso —, eu comecei, mas minha voz guinchou. Eu limpei minha
garganta. —Esta é a sua sala de descanso?
O Rei dos Elfos assentiu. —Claro que sim minha querida. O que você
acha disso?
—Mas é - é o único conectado... — Eu não consegui terminar a frase.
—Aquele conectado ao seu quarto de dormir? — Ele perguntou
secamente. —Mas é claro; nós somos casados, afinal de contas.
Um rubor aqueceu minhas bochechas. —E então seu quarto de dormir...
—Está do outro lado da parede. — Ele apontou para a parede do lado
oposto do meu quarto. Não notei nenhum limiar ligando seus aposentos ao
aposento. O Rei dos Elfos me viu procurando e baixou a voz.
—Não há caminho direto da sua cama para a minha —, ele disse
suavemente. —E eu poderia removê-los ainda mais um do outro, se esse é o
seu desejo.
Minhas bochechas ficaram ainda mais quentes, mas eu balancei a cabeça.
—Não, não —, eu disse. —Está tudo bem. — Endireitei meus ombros e levantei
minha sobrancelha, combinando seu tom seco o melhor que pude. —Afinal,
somos casados.
Uma contração nos cantos dos lábios dele. Ele conjurou duas cadeiras e
um sofá reclinável diante de uma das lareiras. —Relaxe, minha querida.
Eu sentei no sofá reclinado. Dois jovens graciosos saíram das sombras,
um com uma garrafa de conhaque e o outro com dois copos de cristal. Eu fiquei
surpresa com a aparência deles, não só porque eu não os tinha visto no escuro,
mas por causa de sua aparência humana. A maioria dos elfos que eu tinha visto
eram da espécie de Twig e Thistle: mais criatura que humanidade.
Um dos atendentes me presenteou com um copo de conhaque. Eu
suspirei; pelo espaço de uma respiração, pensei que era Josef ao meu lado.
Então eu pisquei. O rosto esperando tão pacientemente ao meu lado não
pertencia ao meu irmão mais novo; a pele estava muito pálida, as maçãs do
rosto muito angulares, as feições completamente bonitas demais. No entanto,
havia algo de Josef no rosto desse jovem, na sensível inclinação de sua boca, no
canto das sobrancelhas. Mas os olhos eram elfos puros: um preto achatado que
não deixava espaço para os brancos sobre as pupilas.
O Rei dos Elfos me lançou um olhar penetrante. —O que é isso, minha
querida? — Ele me viu olhando para seus atendentes. —Oh, Elisabeth —, ele
disse. —certamente você não esqueceu meus changelings?
Ele pousou a mão no jovem mais próximo, acariciando carinhosamente
o rosto do menino. A expressão do atendente não traiu nada, mas quando o
Rei dos Elfos inclinou a cabeça para trás para um beijo, o jovem obedeceu a um
sorriso de dentes afiados. Era um tipo de sorriso lascivo e conhecedor. Então
eu percebi que ele era um dos pretendentes elfos que eu conheci no baile dos
elfos, um com quem eu tinha jogado blefe.
Tomei um gole do conhaque para disfarçar o desconforto. Tinha gosto de
pêssegos de verão, de sol, de vida, e queimou todo o caminho. Eu tossi.
O Rei dos Elfos estudou meu rosto, queimando brilhante e vermelho, e
acenou para os changelings. Eles desapareceram sem uma palavra.
—Então, — eu disse, tentando suavizar o constrangimento entre nós, —
o que devemos fazer para passar o tempo? — Eu não sabia se era a sala ou o
conhaque, mas de repente eu estava quente - muito quente.
O Rei dos Elfos encolheu os ombros. Seus olhos voaram para o klavier,
onde brilhava no brilho do fogo e Fadas de Luz. —Cabe a você —, disse ele. —
Eu estou no comando da minha senhora.
Parecia tudo tão surreal e estranho estar sentada com ele, nesta sala
lindamente decorada com um copo de conhaque na mão. Quando Käthe e eu
fingimos ser mulheres nobres ricas, tínhamos tocado em seus ares e graças,
seus gostos refinados e elegantes. Mas quando confrontada com a realidade
disso, eu estava confusa. Na pousada, nunca houve tempo para lazer. Depois
que o jantar era servido, havia louça para lavar, mesas para limpar e chão para
varrer e esfregar. Sempre tinha sido minha mãe e eu, trabalhando nossas mãos
para o couro, enquanto papai saía com seus amigos, enquanto Constanze
descansava em seu quarto no andar de cima, enquanto Käthe se preparava e
se emburrava, enquanto Josef tocava.
—O que você faria? — Perguntei.
O Rei dos Elfos se serviu de um copo de conhaque, seu cabelo prateado
branco-dourado caindo para cobrir sua expressão. —Eu tocaria alguma
música.
Eu segurei meu copo com as duas mãos, como se pudesse me proteger
do que eu sabia que ele perguntaria em seguida. Ele me pediria para tocar. Ele
pediria para ouvir minha música.
—Tudo bem —, eu disse. Ele ergueu os olhos para encontrar os meus,
um olhar como uma lâmina que cortava profundamente. Mas foi a esperança
e alegria em seu rosto que cortou mais fundo. —Por que você não toca um
pouco o klavier para mim, mein Herr?
A luz em seus olhos diminuiu. —Como quiser, minha rainha.
O Rei dos Elfos pousou seu conhaque e caminhou até o klavier,
sacudindo as pontas do casaco enquanto se sentava no banco. Ele passou os
dedos levemente pelas teclas e começou a tocar.
No começo eu não reconheci sua escolha de música. Gradualmente,
revelou-se como uma simples música de crianças, uma que Käthe e eu
cantávamos enquanto tocávamos na floresta. O Rei dos Elfos elaborou o tema
em algumas variações, e eu escutei educadamente, meu dedo do pé batendo
no chão embaixo de mim.
As variações não eram particularmente inspiradas, nem sua execução no
klavier especialmente limpa. Para um homem de mitos e lendas, o tocar do Rei
dos Elfos era surpreendentemente comum. Mas seu toque nas teclas era leve e
ágil, e ele tinha uma maravilhosa sensação de ritmo, entrando e saindo com a
ascensão e queda da melodia.
Meus dedos se contraíram e uma sensação de engate saiu do meu peito.
Eu queria ir até ele, sugerir uma variação diferente, sentar ao lado dele no
banco e dividir o ato de criação. Eu queria minhas mãos nas dele, queria guiar
aqueles dedos longos e esguios, e queria mudar o teor da música, empurrar
para cá e chegar lá. O Rei dos Elfos sentiu-me a observá-lo, e o mais leve rubor
de rosa matizou suas bochechas. Seus dedos escorregaram do piano.
—Bem —, ele disse uma vez que ele terminou. —Espero que tenha sido
para sua satisfação, minha querida. Eu não tenho o seu dom para a
improvisação, e minhas mãos estão muito mais acostumadas com a sensação
de cordas e um arco sob elas.
—Quem te ensinou a tocar? — Eu estava tremendo, mas não estava com
frio; Eu estava quente. Eu podia sentir o calor subindo das minhas bochechas,
minha garganta, meu peito.
Sua única resposta foi um sorriso enigmático. —E agora é a sua vez,
Elisabeth.
De muito quente a muito frio. Uma onda de medo me encharcou da
cabeça aos pés em um suor nervoso. —Oh não. — Eu balancei a cabeça. —Não.
O aborrecimento começou a endurecer seu rosto. —Venha, Elisabeth. Por
favor. Eu estou pedindo muito bem.
—Não. — Eu disse novamente, um pouco mais firme.
O Rei dos Elfos suspirou e levantou-se de seu assento. —Eu não entendo
—, disse ele. —Por que você está com tanto medo? Você sempre foi tão
destemida, tão descarada em seu próprio caminho quando se trata disso. Você
nunca reteve nada quando tocávamos juntos no Bosque dos Elfos.
Os pequenos tremores no meu corpo haviam se transformado em
tremores de quebrar os ossos. O Rei dos Elfos me estudou, observando minha
pele mudar de pálida para corada para pálida novamente, e caminhou até
mim. Suas mãos pegaram as minhas e eu deixei que ele me levasse do sofá para
o klavier.
—Venha. — Ele me sentou no banco e colocou minhas mãos no piano.
Eu as peguei como se tivesse sido queimada, escondendo-as no meu colo.
—Elisabeth—, disse o Rei dos Elfos. —Somos só nós.
Esse era o problema. Não era só eu. Era eu e o Rei dos Elfos. Eu não podia
tocar por ele. Ele não era Josef, que era a outra metade da minha alma. Ele era
outra pessoa, inteira.
Eu balancei a cabeça.
Ele fez um som frustrado e se afastou. —Aqui —, disse ele, empurrando
um pacote de seda branca para mim. —Por que você não toca no que estava
trabalhando antes? Este-
As palavras morreram em sua garganta enquanto ele espalhava o tecido
diante de seus olhos inquisitivos. Tarde demais, eu vi pelo que era: meu
vestido de casamento com a minha composição de cinzas borradas. Eu pulei
para os meus pés, mas ele era muito rápido, ou eu estava muito devagar,
porque ele leu até o último pedaço de mim naquele vestido.
—Hmmm —, disse ele, examinando as marcas no vestido, a música que
eu havia anotado lá. —Você estava com raiva quando escreveu isso, não foi?
Eu posso ver a raiva, a impotência, em suas anotações. — Então ele olhou para
cima. —Oh, Elisabeth—, ele respirou. —Você escreveu isso em sua noite de
núpcias, não foi?
Eu bati nele com força no rosto. Meu objetivo era certo, e ele cambaleou
para trás, a mão na bochecha.
—Como você se atreve —, eu disse. —Como você ousa?
—Elisabeth, eu...
—Você me faz desistir da minha música, me forçar a sacrificar meu
último pedaço de eu e para você, e você a joga de volta na minha cara? — Eu
perguntei. —Você não tem direito! Não há o direito de olhar para a minha
música assim. — Estendi a mão para pegar o vestido de casamento das mãos
dele, para rasgar o tecido em pedaços, e jogar as peças em uma das lareiras,
mas ele me segurou.
—Eu não quis dizer... quero dizer, eu apenas pensei...
—Você pensou o quê? — Eu voltei. —Que eu ficaria grata? Que você
pode trazer um instrumento como este - tão lindo e tão perfeito - do nada e
esperar que eu esteja bem com isso? Eu não posso - eu não posso... — Mas eu
não sabia o que era que eu não podia fazer.
—Não é isso que você queria? — Cor cortou suas maçãs do rosto. —Não
é isso que você desejou de mim? Sua música? Hora de compor? Liberdade de
suas responsabilidades? — Ele largou o vestido e se aproximou de mim. O Rei
dos Elfos era magro, mas alto, e ele se elevou sobre mim. —Eu te dei tudo o
que você sempre quis. Estou cansado de corresponder às suas expectativas.
—E estou cansada —, eu disse. —De viver de acordo com a sua. —
Estávamos tão perto que podíamos sentir o roçar da respiração um do outro
em nossos lábios.
—O que eu já perguntei de você? — Ele perguntou.
Sobs engasgou minha garganta. —Tudo —, eu murmurei. —Minha irmã.
Minha música. Minha vida. Tudo porque você queria uma garota que deixou
de existir há muito tempo. Mas eu não sou aquela garota, mein Herr. Eu não
tenho sido há muito tempo. Então, o que você quer de mim?
A quietude o superou, a calma em uma tempestade, mas eu era a raiva e
o vento e a fúria. —Eu te disse o que eu queria —, ele disse baixinho. —Você,
inteira.
Eu ri, um som alto e agitado. —Então me leve —, eu disse. —Tire tudo
de mim. É seu direito, mein Herr.
O Rei dos Elfos respirou fundo. A fúria dentro de mim mudou de tom,
de menor para maior. O som de sua respiração me transformou e eu me
aproximei.
—Leve-me —, eu insisti. Eu não estava mais com raiva. —Leve-me.
Eu ansiava e queimava. Havia poucos centímetros entre a nossa carne,
separados apenas pelas camadas mais finas de brocado de seda e linho. Cada
pedaço da minha pele saltava e esperava pelo toque dele; Eu podia sentir o
brilho de seu calor contra a minha pele, o espaço entre tão vivo quanto nós.
Minhas mãos trêmulas pareciam se erguer por conta própria, deslizando os
dedos pelos botões de seu colete, enterrando-se na gravata de renda em sua
garganta.
—Elisabeth. — Sua voz tremeu. —Ainda não.
Eu queria puxar a renda em sua garganta, puxá-lo para mim e esmagar
nossos lábios e nossos corpos juntos. Mas eu não fiz.
—Ainda não? — Perguntei. —Por quê?
Eu podia sentir o quanto ele me queria, queria isso, mas ainda assim ele
se continha. —Porque —, ele sussurrou. —Eu quero saborear isso. — Uma mão
se enroscou no meu cabelo. —Antes de você ir embora cedo demais.
Eu ri amargamente. —Eu não estou indo a lugar nenhum.
O canto dos lábios dele se torceu. —Quanto mais tempo você ficar, mais
cedo você sairá.
Aquele maldito filósofo novamente. —O que isso significa? — Eu
perguntei.
—A vida —, ele disse suavemente, —é mais do que carne. Seu corpo é
uma vela, sua alma é a chama. Quanto mais eu queimo a vela...
Ele não terminou.
—Uma vela não usada nada mais é que cera e pavio —, eu disse. —Eu
prefiro acender a chama, sabendo que vai sair, do que sentar para sempre na
escuridão.
Nós dois ficamos em silêncio. Eu esperei que ele fechasse a distância
entre nós.
Mas ele não fez. Em vez disso, o Rei dos Elfos gentilmente me empurrou
para longe.
—Eu disse quero você, inteira. — Ele pressionou um dedo contra o meu
peito, onde meu coração bateu erraticamente sob o seu toque. —E eu vou ter
você, quando você realmente der tudo de si para mim.
Mais uma vez, aquele lugar oco dentro de mim ecoou de dor.
—Quando você finalmente libertar aquela parte de você que você tão
desesperadamente nega —, ele disse, colocando a mão livre em volta da minha
nuca. —a parte que eu queria desde que te conheci, então eu vou ter você
Elisabeth. — Ele inclinou a cabeça para perto da minha. —Você, inteiro.
Eu podia sentir as mechas de seu cabelo contra os meus lábios. Eu virei
meu rosto para encontrar o seu, boca entreaberta para receber seu beijo.
Mas ele não me beijou. Em vez disso, ele se retirou, deixando-me
desolada e vazia.
—Só então —, disse ele. —Eu não vou me contentar com o segundo
melhor. Eu não vou me contentar com metade do seu coração quando eu quero
sua alma inteira. Só então provarei sua fruta e saborearei até a última gota até
que ela desapareça.
Estremeci com o esforço de conter minhas lágrimas. Seu sorriso estava
torto.
—Sua alma é linda —, ele disse suavemente. Seus olhos percorreram o
vestido de noiva do klavier. —E a prova está aí. Na sua música. Se você não
estivesse com tanto medo de compartilhar comigo, se você não estivesse com
tanto medo daquela parte de você, você teria me tido há muito tempo.
E então o Rei dos Elfos se foi, em um redemoinho de seda, e o leve aroma
de gelo na brisa.
Liesl!
Alguém chamava meu nome e eu lutei contra o peso da escuridão me
pressionando para dormir.
Liesl!
A voz era familiar - querida - para mim, mas não conseguia me lembrar
de onde a ouvira antes. Quando eu ouvi isso. Com um grande esforço, eu abri
meus olhos.
Eu estava no bosque dos elfos. Uma forma vermelha brilhante
caminhava em minha direção e eu a reconheci antes mesmo de ver seu rosto.
Quem mais roubaria meu manto vermelho?
—Käthe! — Eu gritei, mas eu estava sem voz.
Minha irmã examinou a floresta, como se tivesse ouvido algum eco de
seu nome. Mas seus olhos não se fixaram em mim, não me acharam em pé na
frente dela.
Käthe! Eu tentei de novo, mas eu estava invisível.
—Liesl. — Käthe andava de um lado para o outro no Bosque dos Elfos.
—Liesl, Liesl, Liesl.
Minha irmã cantava meu nome várias vezes, uma convocação ou um
encantamento. Com as mãos trêmulas, enfiou a mão na bolsa e retirou um
maço de papéis. Meu coração pulou no meu peito. Foi o pedaço de mim que
eu deixei para trás, a composição que eu chamei de Der Erlkönig.
Então Käthe enfiou a mão na bolsa, tirou um pedaço de papel absorvente
e uma caneta de chumbo. Para minha surpresa, o papel estava coberto de
pequenas figuras - mãos, olhos, lábios, vestidos. Eu não sabia que minha irmã
poderia desenhar e desenhar bem.
Descansando o papel no joelho, Käthe começou a rabiscar furiosamente.
Eu me inclinei mais perto para ver o que ela estava desenhando - uma árvore?
- mas Käthe não estava desenhando; ela estava escrevendo.
Caro Josef.
Uma letra. Ela estava escrevendo uma carta frenética, apressada e cheia
de pânico.
Liesl se foi. Liesl se foi. Liesl se foi.
Käthe ignorou tanto a ortografia quanto a caligrafia, apressando-se em
pronunciar suas palavras. Liesl se foi e ninguém lembra seu nome. Eu não
estou ficando brava. Eu não estou. Eu segurei os cabelos de nossa irmã em
minhas mãos, e estou rindo por não confiar isso a você. Toque isso, Josef.
Toque. Toque sua música. Então me escreva de volta, escreva para a mãe. Diga
a todos que Liesl existe. Que Liesl vive.
Ela nem se incomodou em assinar o nome dela. Então, segurando a carta
diante dela como um artefato precioso, Käthe deu um passo hesitante e
trêmulo para além do bosque dos elfos.
Um grito estrangulado e inarticulado atravessou a floresta. Eu pulei para
trás quando Käthe rasgou o papel embolado em suas mãos, violentamente,
com raiva. Ela jogou os pedaços longe e eles se espalharam sobre ela como
pétalas caindo. Pedaços de papel flutuaram em minha direção e eu estendi a
mão para tocar um, com medo de passar por ele como névoa.
O papel estava sólido na minha mão. Eu juntei todos eles e tentei juntá-
los; um pouco de uma mão, a ponta de um dedo, o canto de um sorriso, o brilho
de um olho. Eu procurei por mim, por evidências da minha existência, mas não
havia nada. Apenas espaços em branco e vazios onde meu nome costumava
estar.
O mundo ficou escuro ao meu redor. Cobri meu rosto e chorei.
—Você não vai assistir, minha querida. — Disse o Rei dos Elfos do
klavier.
Eu olhei para cima da minha taça de vinho, o caule do qual eu estava
girando indiferente entre meus dedos pelos últimos minutos. Um livro aberto
estava no meu colo, mas eu não havia lido uma única palavra na última hora.
—Hmmm? — Eu rapidamente virei as páginas. —Eu estou.
O Rei dos Elfos levantou uma sobrancelha. —Eu estiquei o dedo em três
partes e você não disse nada sobre as notas.
Eu tossi para esconder o rubor subindo pelo meu pescoço.
Desde aquela primeira noite desastrosa depois do jantar, nosso tempo
juntos tinha assumido uma rotina confortável e quase reconfortante. Às vezes
passávamos o tempo lendo em voz alta um para o outro. Eu preferia poesia,
mas o Rei dos Elfos - sem surpresa - preferia seus filósofos. Ele lia latim, grego,
italiano, francês e alemão, e também falava uma dúzia de outras línguas. Ele
foi surpreendentemente bem instruído; ele poderia ter sido um estudioso no
mundo acima.
Em outras ocasiões, o Rei dos Elfos tocava algumas peças curtas no
klavier enquanto eu lia junto ao fogo. Essas eram minhas noites favoritas,
quando a música, não as palavras, preenchia o silêncio entre nós. Esta noite
meu marido tocou algumas Scarletatti sonatinen 11 enquanto eu tinha um
volume de poesia italiana. Eu não lia italiano, e só entendia o quanto precisava
saber com que rapidez, com que lentidão ou com que elegância eu deveria
tocar uma peça musical. O livro era para o show; permitindo-me observar o
Rei dos Elfos sob os cílios abaixados sob o pretexto de ler.
Depois daquela primeira noite, ele nunca mais me convidou para tocar
minha música para ele novamente.
No começo, foi um alívio. Mas, à medida que as noites passavam, o alívio
transformou-se em culpa, depois aborrecimento e depois raiva. Ele era tão
enlouquecedor, enfurecedoramente complacente. Ele estava tão certo de que
eu viria a ele por minha própria vontade, que eu quebraria e colocaria minha
música a seus pés como um presente, que ele poderia se dar ao luxo de me ver
do klavier com aquele olhar distante e compassivo em seu rosto.
Mas ele estava errado. Eu já estava quebrada e a música ainda estava
presa lá dentro. Ela arrepiava, fazia cócegas e coçava no meu intestino,
ameaçando arrancar da minha garganta em um grito.
—Está tudo bem, Elisabeth?
Não, tudo não estava bem. Não estava tudo bem desde que me tornei a
noiva de Der Erlkönig, já que ele roubou minha irmã, já que ele me deu aquela
flauta no mercado, desde antes que eu me lembrasse. Não estava tudo bem
desde que eu tranquei minha música, tanto na minha caixa como no meu
coração.
Mas eu não podia dizer isso a ele. —Estou bem. — Eu disse em seu lugar.
Seu olhar se aguçou, as pupilas de seus olhos se dilataram para afogar o
cinza e o verde de preto. O Rei dos Elfos soube interpretar minhas respirações
11 Sonata
antes de fazer pausas, os períodos de minhas medidas de descanso, minhas
cesuras de fala. Ele seguia minhas pistas tão atentamente quanto um músico
em uma orquestra, esperando que o maestro assumisse a liderança. E ele sabia
sempre que eu quebrava o ritmo.
Seus olhos me varreram da cabeça aos pés, demorando-se nos meus
ombros e braços expostos, a extensão da minha clavícula e decote. —Qual é o
problema?
Suponho que não tenha sido particularmente sutil. Pela primeira vez, eu
cuidara da minha aparência; depois do encontro no lago subterrâneo, obriguei
Twig e Thistle a me levarem ao alfaiate para costurar um novo vestido. Para
me costurar alguma armadura. Eu fiz o alfaiate modificar um vestido feito de
um lindo creme e tafetá de seda dourada. Ele foi moldado como uma camisa,
a saia reunida sob o pequeno seio que eu tinha antes de sair atrás de mim em
babados. Toda a construção foi realizada por alças diáfanas em meus ombros,
deixando meus braços nus. Os diamantes eram costurados no corpete -
centenas, milhares, miríades - cintilando como estrelas no céu noturno. Twig e
Thistle colocaram meu cabelo em uma trança sobre a minha cabeça, com mais
pequenos diamantes que brilhavam contra meus cabelos escuros. Pela
primeira vez, eu me via esperando que o Rei dos Elfos me achasse bonita.
Parecia ridículo; Eu era simples e ele era lindo, mas o desejo que pulsava
entre nós era real e não tinha nada a ver com a beleza ou a falta dela. E estava
ali, sempre ali, me sufocando, me estrangulando, até que eu não conseguia
respirar por querer.
Então eu respondi a pergunta do Rei dos Elfos da única maneira que eu
podia. —Você não gosta do meu vestido novo? — Eu soltei.
Isso certamente o surpreendeu. —Eu-uh-o quê?
—Meu vestido —, eu disse. —Não é do seu agrado?
Seus olhos estavam desnorteados e cautelosos. —É lindo, Elisabeth.
—E eu? Eu sou adorável?
O Rei dos Elfos franziu a testa. —Você está de bom humor esta noite,
minha querida.
Ele não me respondeu. De repente, não pude suportar permanecer
sentada. Levantei-me e andei de um lado para o outro antes do fogo. Eu estava
de bom humor - para uma briga.
—Responda-me—, eu disse. —Você me acha adorável?
—Não com o jeito que você está agindo no momento.
Eu ri, um som quase histérico. —Você parece meu pai. É uma pergunta
simples, mein Herr.
—É? — O Rei dos Elfos me deu um olhar penetrante. —Então me diga,
minha querida, o que você gostaria de ouvir? A resposta simples ou a honesta?
Eu tremia, embora fosse de mágoa ou medo, eu não sabia. —A verdade
—, eu disse. —Você é quem me mostrou que a verdade feia é preferível a uma
mentira bonita.
Demorou um tempo antes de ele falar. —Eu acho que você sabe a
resposta, Elisabeth. — Disse ele em voz baixa.
Fechei meus olhos para parar as lágrimas. Apesar de tudo, eu esperava
que fosse diferente. Que o desejo dele pudesse de alguma forma me tornar
adorável, poderia me transformar de um pardal em um pavão.
—Então por quê? — Minha voz tropeçou nas bordas irregulares da
minha tristeza. —Por que você me quer?
—Eu respondi isso antes, Elisabeth, eu...
—Sim, sim, já ouvi tudo isso antes. Você amou a música em mim. Minha
alma é uma coisa linda. Depois que eu te der eu mesma, inteira, você vai... —
Eu dei um mergulho. —Você vai se dar, inteiro.
O Rei dos Elfos não disse nada, apenas me observou com seu olhar
incompatível.
—Mas isso não significa nada para mim, mein Herr. Suas palavras não
significam nada para uma menininha estranha e desagradável.
Houve um arranhão no chão quando o Rei dos Elfos empurrou o banco
para ficar de pé. Seus passos eram leves e quase sem som, um lobo na neve.
No entanto, eu podia sentir ele cruzar o espaço entre nós. Ele colocou a mão na
minha testa.
—A amabilidade do espírito vale mais do que a beleza da carne —, ele
disse gentilmente. —Você sabe disso.
Abri os olhos e bati a mão dele. Eu senti o choque daquele tapa reverberar
através de ambos os nossos corpos, de sua expressão assustada ao ardor da
minha palma.
—Agora isso —, eu disse. —era uma mentira bonita.
Por um momento, achei que o Rei dos Elfos tentaria me consolar,
acalmar-me como um pai aplacaria uma criança irritada. Então uma faísca
iluminou seus olhos, um brilho de malícia. Sua boca torceu e as pontas afiadas
de seus dentes brilhavam à luz do fogo.
—Você quer a verdade feia, Elisabeth? — Ele disse. —Muito bem então,
você deve tê-la. — Ele andou de um lado para o outro na minha frente, uma
criatura selvagem andando de um lado para o outro na gaiola. Um lobo
rondando em seu coração, e queria muito ser livre. —Eu queria você porque
você é estranha, estranha e desagradável. Porque um homem poderia passar
uma idade - e acredite em mim, eu tenho - com uma linha infindável de lindas
noivas, seus nomes e rostos obscurecendo-se diante dele. Porque você,
estranha e desagradável, eu lembraria.
O Rei dos Elfos sorriu para mim com um grunhido. Meu pulso acelerou
em resposta, e dentro de mim, os nós que eu tinha apertado no meu coração
começaram a se soltar. Meu sangue subiu para encontrar o dele e eu me
levantei da minha cadeira, respirando com dificuldade.
Mas ele se virou antes que eu pudesse tocá-lo, antes que sua selvageria
pudesse se misturar com a minha. Eu deixei minha mão cair.
—O que é a vida eterna, mas uma morte prolongada? — Perguntou o Rei
dos Elfos. —Eu vivo no tédio sem fim, morrendo um pouco mais a cada dia,
incapaz de sentir verdadeiramente. — Ele caminhou de volta para o klavier e
passou a mão levemente sobre as teclas.
Eu não tinha resposta. Nós estávamos tão distantes um do outro quanto
poderíamos estar naquele momento; ele em um fim de sempre, eu no outro.
—Sua intensidade, sua ferocidade —, ele disse baixinho. —Eu anseio por
isso, Elisabeth. Muito.
Ele se sentou no banco e apertou uma nota, depois outra e outra. Cada
nota ressoou no meu peito, ecoando naquele lugar vazio e sagrado onde minha
música vivia.
—Eu daria qualquer coisa para sentir novamente. — Sua voz era baixa,
tão baixa que eu mal podia ouvir. —E por um longo tempo, pensei que nunca
faria. Então eu ouvi você tocar sua música para mim no Bosque dos Elfos. Pela
primeira vez em uma eternidade, eu esperava... pensava...
Outro silêncio caiu sobre nós, cheio de segredos e coisas não ditas. Eu
poderia provar as perguntas na parte de trás da minha língua, mas as engoli.
—Sua música —, disse ele finalmente. —Sua música foi a única coisa que
me manteve são, que me manteve humano ao invés de um monstro.
Uma brisa levantou arrepios nos meus braços e nas minhas costas. O Rei
dos Elfos não olhou para mim enquanto continuava a tocar, encordoando notas
como se fossem contas em um colar.
—E isso—, disse ele. —é a verdade feia, minha querida. Eu poderia ter
sua mão em casamento, sua mente, seu corpo, mas o que eu realmente quero,
não posso ter. —Ele virou a cabeça. —Não a menos que eu quebre você.
Não a menos que ele me quebrasse.
Não foi até esse momento que eu entendi.
—Eu não tenho medo de você. — Eu disse baixinho.
—Oh? — O Rei dos Elfos levantou a cabeça. —Eu sou o Senhor do Mal,
o Governante Submundo —, disse ele, com os olhos desiguais brilhando. —Eu
sou loucura e loucura feita carne. Você é apenas uma garota — ele sorriu e as
pontas dos dentes eram afiadas. — E eu sou o lobo na floresta.
Apenas uma garota. Apenas uma donzela. Mas eu não era apenas uma
menina; Eu era a rainha dos elfos. Eu era a Rainha Elfo dele, e eu não tinha
medo do lobo, aquela selvageria indomável que poderia me rasgar de membro
e se banhar no meu sangue.
Eu andei em direção ao klavier e sentei no banco ao lado dele. Os olhos
do Rei dos Elfos brilharam de surpresa, prazer e não um pouco de cautela.
—Eu posso ser apenas uma donzela, mein Herr —, eu sussurrei. —Mas
eu sou uma valente donzela.
Levantei meus dedos trêmulos para o piano e formei um acorde. C maior.
Senti o corpo do Rei dos Elfos se curvar em um longo suspiro.
—Sim, Elisabeth —, ele respirou, levantando a mão para o meu rosto. —
Sim.
Mas eu não toquei. Em vez disso, levei minha mão direita para cobrir a
dele, depois a empurrei para encostar na coluna do meu pescoço.
—Elisabeth, o que...
Ele tentou se afastar, mas eu o tinha em minhas mãos. Eu me inclinei para
ele, desafiando-o, tentando-o, para empurrar contra onde minha vida
tremulava sob seu polegar. Eu podia sentir o lobo tremendo nele, esfolando
suas amarras. Eu queria o lobo; Eu queria sua fome, um desejo voraz que
poderia me obliterar. Eu queria ser destruída. Eu queria ser feita de novo.
—Você é —, eu disse. —o monstro que eu reivindico.
Ele estava tremendo agora. —Você não sabe o que você diz. — O pânico
tocou suas palavras, mesmo com a selvageria tocando em suas feições.
—Oh, mas eu sei.
Uma lembrança subiu à superfície: a pequena Liesl esperava
pacientemente no patamar no alto da escada. Esperando por seu pai voltar de
uma audição com um famoso empresário. Sepperl tinha apenas três anos de
idade, já mostrando uma promessa incrível no violino, e Liesl estava ansiosa
para mostrar ao pai o que ela poderia fazer. Ela havia praticado diligentemente
uma chacona Tomasino no violino de um quarto de tamanho até que ficou
perfeito. Mas quando papai chegou em casa, chegou em casa fedendo a cerveja,
seu violino Stainer desaparecido do estojo. Liesl tocou para ele quando ele
entrou na estalagem, uma peça triunfante de boas-vindas, mas ele afastou o
violino e quebrou-o ao meio sobre a perna. Você nunca vai chegar a nada, ele
disse. Você é metade do talento que seu irmão é.
—Eu poderia te machucar. — Disse o Rei dos Elfos, e senti essa promessa
em suas mãos. Minha alma em seu aperto, minha garganta mostrou a ele em
submissão.
—Eu sei.
Outra lembrança, borbulhando sob a dor do anterior. Josef tocando uma
peça que eu havia escrito, papai entrando no quarto dos fundos para elogiar o
filho por seus esforços. Tão selvagem, tão indomado! Papai dissera. Temos que
publicar isso, meu filho; você tem o potencial de mudar a música como a conhecemos!
Josef se atrevendo, dizendo ao nosso pai que o verdadeiro autor da peça era
eu. O rosto de papai endurecendo. Um esforço decente. Mas você deve ser menos
elevada em seus ideais, Liesl. Você deve crescer e parar de se entregar a esses voos
românticos de fantasia.
—Então, por que, Elisabeth? — O Rei dos Elfos murmurou. —Por quê?
Dez anos atrás. Dez anos atrás, quando eu tinha nove anos e compus
sozinha e em segredo. Eu tinha roubado duas velas que mal podíamos
comprar, e estava acordada até altas horas da madrugada, perdulária com
minha música, meus papéis, minhas chamas. E papai, papai adormecido na
cama com a mãe, uma ocorrência rara que com certeza deixaria a mãe sorrindo
e o pai generoso. O mundo estava dormindo e eu estava sozinha.
Até que Josef me encontrou. Liesl? Ele perguntou com a sua voz
sonolenta de bebê. Liesl, por que você está acordada?
Raiva, raiva e ciúmes, queimando tão rápido quanto um raio. Minha mão
se contraindo, derrubando uma vela, enviando cera em toda parte.
Atingiu Josef na cara.
Seus gritos despertando a casa, papai gritando, mãe chorando, Käthe
tremendo, Constanze se escondendo, e ao meu redor, fogo. Meu trabalho, em
chamas. Uma mão quebrando na minha bochecha, deixando uma marca mais
vermelha do que a queimadura na pele de Josef. A sua desapareceria em nada.
A minha também desapareceria, desapareceria com três anos de trabalho
cuidadoso, tudo em chamas e cinzas.
E sob essa memória, ainda outra. E outra e outra. Assaltos no meu
coração terno eu tinha sofrido até que eu aprendi a colocar minha música em
uma gaiola. Eu tinha me empurrado, o meu verdadeiro eu, de volta para a
fachada de uma boa menina, uma filha obediente. Eu parei de ser eu e me
tornei Liesl, a donzela nas sombras. Eu tinha sido aquela Liesl por tanto tempo,
eu não sabia o meu caminho de volta para a luz.
—Porque —, eu sufoquei. —eu preciso de você para me quebrar, a fim
de me encontrar.
Eu descansei minha mão esquerda contra o klavier. O Rei dos Elfos
respirou fundo.
—Você não sabe o que você pede.
Eu olhei nos olhos dele e apertei uma tecla.
—Eu sei.
A nota pairou no ar entre nós quando suas pupilas se expandiram, depois
se contraíram. Aqueles olhos desencontrados mudaram de assustados para
selvagens e vice-versa, enquanto Der Erlkönig guerreava com sua melhor
natureza.
—Você não sabe.
Eu apertei outra tecla. —Eu sei.
Um longo e estremecido suspiro escapou dele. Suas mãos se moveram
para os meus ombros, apertando e abrindo os dedos, como se ele não soubesse
se deveria me puxar para perto ou me afastar. Apertei ainda outra tecla, depois
outra, e depois outra, chamando o lobo de se esconder.
—Eu quero que você me encontre —, eu sussurrei. —Todo o resto de
mim.
O Rei dos Elfos se afastou. Nossos olhos se encontraram e, naquele
momento, não vi o lobo, mas o jovem austero.
—Elisabeth —, disse ele. —Tenha piedade de mim.
Meus olhos estavam fixos em seu rosto. —Eu não tenho medo de você.
—Não? — O Rei dos Elfos fechou os olhos. —Então você é uma tola.
E quando ele abriu os olhos novamente, o jovem austero se foi.
Uma luz brilhava sobre mim. Abri os olhos e por um momento me perdi,
sem saber onde estava. Eu protegi minha mão; um espelho - um espelho de
espaldar prateado - estava pendurado acima da cama do rei dos elfos,
mostrando-me uma cena de uma cidade desconhecida.
A cidade era pequena, assentada sob um pico alto que eu não reconheci.
Empoleirada no alto do cume, havia uma abadia, os claustros com vista para a
cidade, um padre olhando para o nariz para as massas penitentes. Meu espelho
me mostrava o Bosque dos Elfos, meu espaço sagrado. Eu me perguntei se esse
era o Rei dos Elfos.
O sol estava alto no céu acima. Meu marido dormia tranquilamente ao
meu lado, sua respiração suave e uniforme. Tínhamos adormecido
descansando um contra o outro, mas durante a noite nos afastamos, fundando
nossos reinos separados em lados opostos de sua cama. Nossas fronteiras
foram delineadas por uma pilha de roupas de cama. Tínhamos nos tocado da
maneira mais íntima possível, mas nenhum de nós podia suportar a
proximidade do outro. Ainda não.
Não havia nada visível do Rei dos Elfos a não ser uma confusão de
cabelos emaranhados e um ombro nu aparecendo debaixo dos cobertores. Eu
estava nua, estava dolorida e entre as minhas coxas estava uma bagunça de
sangue. De repente, eu não queria nada além de estar longe daqui, de volta aos
meus aposentos, limpa e sozinha. A lembrança do que havíamos feito na noite
anterior voltou para mim e uma queimadura agradável se espalhou pelos
meus quadris. Mas com o prazer veio uma lavagem de dor. Eu precisava ficar
sozinha, lembrar meus pensamentos e me centrar.
Lentamente, cuidadosamente, eu deslizei para fora da cama e comecei a
me limpar. O Rei dos Elfos não se mexeu, perdido para o mundo desperto. Ele
dormia alegremente, como um bebê depois de uma longa noite de choro, e me
lembrei da sensação de suas lágrimas contra a minha pele. Eu não pude encará-
lo, não depois que ele derramou aquelas lágrimas e manchou minha alma. Eu
o havia tocado, conhecido, visto até a última gota dele, e foram suas lágrimas
que me trouxeram vergonha.
—Eu gostaria de estar de volta ao aposento. — Eu disse suavemente para
o ar que esperava.
E lá estava eu, ao lado do klavier no aposento. Minhas pernas tremeram,
me fazendo cair de joelhos. Distante, registrei a dor, mas tudo estava abafado,
abafado.
Minha noite de núpcias. Minha verdadeira noite de núpcias.
O mundo foi mudado de alguma forma. Eu fui mudada. O Rei dos Elfos
entrou na sala arrumada da minha vida e subiu seu conteúdo. Eu fui deixada
pegando os pedaços, lutando para encaixá-los novamente em alguma
aparência do que eu tinha conhecido antes. Minha vida foi dividida em duas
metades perfeitas: antes e depois.
Liesl. Elisabeth. Eu tinha sido Liesl até o momento em que nos reunimos
em nossos braços, quando concedeu a misericórdia do Rei dos Elfos, enquanto
ele me absolvia da minha vergonha. Eu havia surgido do outro lado de nosso
encontro com uma mulher diferente: não mais Liesl, mas Elisabeth. Eu testei
as bordas dessa nova identidade, deslizando-a, vendo como ela se encaixava.
O aposento parecia diferente à luz do dia. Os grandes espelhos
pendurados de um lado emprestavam a ilusão de enormes janelas, a luz do sol
vinda do mundo acima, passando por eles. Eu vi uma fortaleza em uma colina
acima de um rio, uma bandeira vermelha e branca brilhante tremulando na
brisa. Salzburgo. A neve ainda se acumulava em trações, mas ao longo do rio
Salzach, a pitada de verde brilhava entre as árvores. O primeiro indício da
primavera. Eu sorri.
Eu sentei no klavier, mãos posicionadas sobre as teclas. Então eu parei.
Um grande peso havia sido tirado de mim, minha alma livre de uma vergonha
corruptiva. Mas a liberdade me assustou e eu não sabia como proceder. Então
toquei alguns acordes, inversões de C, antes de expandi-los em arpejos.
Seguro. Certo.
De inversões e arpejos a escalas. Eu corri através de todas as notas, caindo
no movimento irracional como uma meditação. Como uma oração. Minha
mente começou a se reordenar, a dobrar suas memórias e pensamentos de
volta a suas gavetas, arrumada e limpa. Uma vez que meus dedos estavam
suficientemente flexionados, peguei meu vestido de casamento do cabide ao
lado do instrumento e coloquei-o sobre o klavier. Eu estava pronta para
avançar finalmente.
Não haveria mais sons indiferentes. Não haveria mais rabiscos
descuidados. Eu pegaria minha música, áspera e sem polimento, e
transformaria-a em algo que valesse a pena.
Eu comecei a compor.
Pegando uma pena e mergulhando-a em tinta, marquei a melodia básica
o mais rápido que pude em uma nova folha de papel. Eu também adicionei as
notas que fiz sobre ideias de apoio ao acompanhamento, assinaturas de tempo,
e outros. Uma vez que eu tinha certeza de ter coletado todos os meus
pensamentos do meu vestido de casamento, deixei cair no chão. O vestido
servira ao seu propósito.
Eu não sabia sobre Haydn, Mozart, Gluck, Handel ou qualquer outro
compositor cujos nomes eu havia estudado, cujas peças eu havia interpretado
quando criança, mas a música não fluía da minha mente como ditado de Deus.
Dizia-se que Mozart nunca fizera cópias justas de seu trabalho, que não
existiam documentos obscenos, pois tudo era perfeito de sua mente para a
página.
Não é assim para Maria Elisabeth Ingeborg Vogler. Cada nota, cada frase,
cada acorde era uma agonia de trabalho, para ser revisada de novo e de novo.
Eu confiei no klavier para me dizer qual nota eu queria, para descobrir qual
inversão eu precisava. Eu não era Josef, para ter esse estoque de conheciment o
prontamente acessível; Eu tinha que testar e soar tudo o que ouvi na minha
cabeça.
Eu amava. Este trabalho era meu e só meu.
Tinta salpicava meus dedos e teclas do klavier, mas eu estava
inconsciente de tudo, até mesmo do arranhão da pena contra o papel. Eu ouvia
apenas a música em minha mente. Pela primeira vez não havia nada de Josef,
nada de papai, nada da voz azeda que soava como julgamento, como o medo.
Não havia nada além disso, nada além de música e eu, eu e eu.
Havia outra presença na sala.
Eu estava trabalhando há quase uma hora, mas foi apenas nos últimos
minutos que eu tinha notado outra pessoa na sala de estar comigo. Sua
presença lentamente penetrou em minha consciência, emergindo das
profundezas dos meus pensamentos como um sonho. Eu não consegui
desvendar meu senso de identidade do meu sentido do Rei dos Elfos. Eu
levantei minha cabeça.
O Rei dos Elfos estava no limiar entre o seu quarto de dormir e o
aposento. O caminho entre o seu quarto e o meu estava agora conectado. Ele
estava simplesmente vestido, parecendo menos como um soberano do que
como um pastor. Se ele tivesse um chapéu, ele teria torcido em seus dedos
timidamente. Ele pairava nos espaços intermediários, aguardando minha
permissão para entrar. Eu não conseguia distinguir a expressão em seu rosto.
Ele limpou a garganta. —Você está bem, minha rainha?
Tão distante. Tão formal. Ele sempre me chamava de minha querida,
dizia naquele tom sarcástico dele, ou então era Elisabeth, sempre Elisabeth. Ele
era o único que me chamava assim, e eu queria ser Elisabeth para ele
novamente.
—Eu estou bem, obrigada, mein Herr. — Eu combinei a distância dele
com a minha. O abismo entre nós cresceu para o dobro do seu tamanho. Eu
ansiava por superá-lo, mas não sabia como. Nós estávamos conectados de
maneiras muito mais íntimas que isso. Quanto mais você poderia ter de si
mesmo quando já tinha dado tudo?
Ele desviou o olhar assim que meus olhos encontraram os dele. Um
sentimento esquisito tomou conta de mim quando percebi que havia pego meu
marido em um momento de admiração desprotegida. Admiração. De mim. Eu
senti como se ele tivesse entrado em mim sem roupa. No entanto, ele me viu
sem roupa. Minha mente, arrumada em seus devidos espaços, caiu em
desordem.
—Há quanto tempo você está aí? — Perguntei.
As palavras saíram como uma acusação. O Rei dos Elfos ficou rígido.
—Tempo suficiente —, foi tudo o que ele disse. —Você se importa?
Liesl teria se importado.
—Não, — eu disse. —Eu não me importo. Por favor sente-se.
Ele me deu um aceno grave e a menor lasca de sorriso. Como sempre, as
pontas de seus dentes pontudos espreitavam através daquele sorriso, mas não
era tão ameaçador quanto antes. Ele caminhou até a poltrona e sentou-se,
inclinando-se para trás e fechando os olhos enquanto eu continuava a mexer
na peça.
Essa era uma intimidade de um tipo totalmente diferente. Ele estava
dentro de mim, parte de mim, tanto no espírito quanto na carne. No começo,
pensei que estava apenas dando a ele um vislumbre de minha mente, mas logo
percebi que o Rei dos Elfos já estava na minha cabeça. Ele oferecia uma
sugestão aqui, uma revisão lá, tudo tão habilmente e sutilmente que sua voz se
tornou minha. Com Josef, compor era algo que dava a ele, algo que ele pegava
e moldava no produto acabado. Mas com o Rei dos Elfos, a música era algo
que moldávamos juntos, assim como fazíamos quando eu era criança.
Eu me lembrava agora. Todas as minhas lembranças dele vieram,
arrancadas dos portões da maré pela minha libertação. Varrendo as teias de
vergonha e decepção, nossa amizade brilhava brilhante e nova. Dançamos
juntos no Bosque dos Elfos, cantamos juntos, fizemos música juntos. Depois de
terminar uma peça, eu corria para a floresta para encontrar o Rei dos Elfos.
Para compartilhar minha música com ele. Como eu tive até que meu pai me
disse para crescer.
Eu sinto muito, pensei. Eu sinto muito por ter te traído.
Minhas mãos tremiam no klavier. O Rei dos Elfos abriu os olhos.
—Está tudo bem?
Eu sorri para ele, realmente, sinceramente sorri para ele. Calor me
encheu, uma sensação suave de cócegas. Foi um longo momento antes de
reconhecer a emoção pelo que era: felicidade. Eu estava feliz. Não me lembrava
da última vez em que fui feliz.
—O que? — Ele estava de repente tímido.
—Nada. — Eu disse, mas meu sorriso ficou mais amplo.
—Nunca é nada com você. — Mas ele também sorriu, e sua doçura doeu.
Ele parecia anos mais jovem com aquele sorriso. Ele era inteiramente aquele
jovem de olhos suaves agora, nenhum traço de Der Erlkönig em seu rosto.
—Às vezes —, eu disse, balançando a cabeça. —queria que você não me
conhecesse tão bem.
Ele riu. Não havia mais arestas afiadas para ele. O clima mudou entre
nós, ficando mais pesado, mais pesado. Continuamos trabalhando em silêncio,
mas pensamentos e sentimentos fluíam entre nós sem palavras, o empurrão e
o puxão, o fluxo e refluxo da música nos balançavam gentilmente com seu som.
Nossa conversa chegou ao fim quando terminei de trabalhar com o tema.
—Lindo —, o Rei dos Elfos murmurou. —Transcendente. É maior que o
céu e o mundo acima. Assim como você.
Rosas floresciam em minhas bochechas, e eu desviei minha cabeça para
que ele não visse.
—Você pode mudar o curso da música —, disse ele. —Você poderia
mudar o mundo acima se você...
Ele não terminou a frase. Se eu o que? Publicasse minha música?
Conseguisse superar as barreiras do meu nome, meu sexo, minha morte? Meu
destino final ficava entre nós, um obstáculo invisível, mas intransponível. Eu
não mudaria o curso da música. Eu morreria aqui, sem ser ouvida e lembrada.
Eu provei a injustiça no fundo da minha garganta, amargura e bile.
—Se o mundo acima estivesse pronto para mim, talvez —, eu disse
levemente. —Mas temo que eu seja demais para eles - e não o suficiente.
—Você, minha querida —, disse o Rei dos Elfos. —é mais que suficiente.
O elogio dos lábios de outro teria soado tímido, flertando, até mesmo
arqueando. Um sentimento bonito projetado para lisonjear e depois me deitar.
Eu ouvira esses agrados dos hóspedes em nossa hospedaria, dirigidos até
mesmo a alguém tão claro quanto eu. No entanto, não achei que o Rei dos Elfos
pretendesse bajular; Em seus lábios, as palavras soaram como verdade sem
verniz. Eu era mais que suficiente. Mais que minhas limitações, mais do que
adequadas, simplesmente mais.
—Obrigada. — Se eu fosse Käthe, teria desviado o elogio com uma
piscadela ou uma observação maliciosa. Mas eu não era Käthe; Eu era simples
e franca Liesl. Não, Elisabeth. Plana, sincera, direta e talentosa Elisabeth. Tomei
suas palavras para o presente que eram e, pela primeira vez, aceitei-as sem dor.
Depois de um longo tempo - horas? Minutos? O primeiro movimento do
que eu estava começando a chamar de Sonata da Noite de Núpcias estava
pronto. Apesar da raiva e dor em suas notas, a chave era C maior. A forma do
primeiro movimento estava lá agora, com a maior parte de sua estrutura de
suporte desenvolvida. Toquei no klavier para ouvi-la na íntegra, mas não
consegui transmitir adequadamente a parte principal e o acompanhamento
com apenas duas mãos.
Instintivamente, eu peguei Josef. Mas meu irmão não estava lá.
Uma dor aguda me apunhalou no coração, como se alguém tivesse
pegado uma adaga e a tivesse mergulhado no meu peito. Eu ofeguei e
pressionei minha mão para estancar a ferida. Eu tinha certeza de que minha
mão sairia com sangue. Mas não havia nada lá.
—Elisabeth! — O Rei dos Elfos correu para o meu lado.
Foi um momento antes que eu pudesse recuperar o fôlego suficiente para
falar.
—Estou bem —, eu disse. —Estou bem. — Sacudi as mãos solícitas e dei-
lhe um sorriso vacilante. —Apenas um ajuste. Vai passar.
Seu rosto era ilegível, opaco, tão inescrutável quanto qualquer um de
seus elfos. —Talvez você devesse descansar.
Eu balancei a cabeça. —Não. Ainda não. Eu preciso ouvir isso na sua
totalidade. Como um todo. É só —, eu disse com um sorriso irônico, — eu não
tenho outro par de mãos.
Sua expressão se suavizou. —Talvez eu possa ajudá-la. Com sua música.
Eu olhei para ele. O Rei dos Elfos se virou.
—Não importa —, ele disse apressadamente. —Apenas um pensamento.
Esqueça; Eu não quis ofender você...
—Sim.
Ele parou e levantou a cabeça, olhando diretamente nos meus olhos.
—Sim, você pode —, eu corrigi. —Por favor —, eu disse, quando vi a
incerteza em seu rosto. —Eu gostaria de ouvir esta peça tocada em um violino.
Mantemos os olhares um do outro por mais tempo. Então ele piscou.
—Seu desejo é o meu comando, Elisabeth. — Ele sorriu. —Eu sempre
disse que você tinha poder sobre mim.
Elisabeth. Eu era Elisabeth novamente, e a maneira como ele disse meu
nome enviou um pulsar de saudade através de mim.
—Como quiser, Elisabeth —, ele disse novamente, mais suave agora. —
Como quiser.
Parte 4
O rei elfo
Tudo foi mudado. Desde a noite em que o Rei dos Elfos me abriu e me
deixou nua, o ar entre nós estava carregado de emoção não dita. Eu era uma
mulher refeita por suas mãos; Ele alcançou dentro de mim e a música saiu.
Eu entendia agora como era ser atingida pelo fogo divino. Nossas noites
agora passavam em um sonho febril, onde não fazíamos nada além de fazer
música. Eu já não marcava a passagem do tempo; ontem era hoje era amanhã
e horas que circulavam sobre si mesmas. Eu estava queimando por dentro e
não precisava de alimento mortal para me nutrir. Sono, comida, bebida - todos
eram substitutos ruins para a música que me sustentava. Eu vivia na música e
no Rei dos Elfos. As notas eram minha ambrosia, seus beijos meu néctar.
—De novo —, eu exigi quando terminamos de tocar o primeiro
movimento da Sonata da Noite de Núpcias pela sétima vez. —Novamente!
Nós tínhamos trabalhado na peça por horas, meu marido e eu. Toda vez
que ele tocava, eu ouvia e entendia algo diferente dentro do movimento.
Dentro de mim. Uma peça iniciada em fúria e impotência, transformada em
um inexorável desejo e, no entanto, não uma peça sem alegria.
Eu marcava seu tempo como allegro.
Para ser tocado rapidamente. Rapidamente.
Com alegria.
—Novamente? — Perguntou o Rei dos Elfos. —Você não teve música
suficiente, minha querida?
Ele estava cansado. Eu podia ouvir medo em seu tocar, medo e fadiga.
Eu o havia desgastado. Eu me desgastara. Mas eu não me importava; Eu não
queria parar. A gaiola do meu coração tinha sido aberta e eu estava voando.
Eu estava livre pela primeira vez na minha vida, e minha alma subiu. Eu não
podia brincar, não sabia compor, não conseguia pensar rápido o suficiente;
minha mente ultrapassava meus dedos, e os erros e anotações erradas que se
seguiram me causaram tanto riso quanto lágrimas. Mais, eu queria mais,
precisava de mais. Se o pecado de Lúcifer era orgulho, então o meu era cobiça.
Mais e mais e mais. Não era o suficiente. Nunca seria o suficiente.
—Não, — eu disse. —Nunca.
—Devagar, Elisabeth —, ele riu. —Eu duvido que até mesmo o próprio
Deus poderia acompanhar você.
—Deixe-o tentar. — O sangue fervia em minhas veias. —Eu superarei até
mesmo os anjos dele em uma corrida de pés!
—Querida, querida. — O Rei dos Elfos baixou os braços para deixá-los
descansar. —Deixe acontecer. O primeiro movimento está magnífico.
Eu sorri. Era magnífico. Eu era magnífica. Não, eu era mais que
magnífica; Eu era invencível.
—É —, eu disse. —E poderia ser ainda maior. — Minhas mãos tremiam,
os dedos se contraindo. Eu estava nervosa, excitada, um cão antes da
perseguição. Mais uma vez, só mais uma vez...
O Rei dos Elfos me viu tremendo e franziu a testa. Eu peguei minhas
mãos do teclado e as escondi na minha saia.
—Elisabeth, o suficiente.
—Mas ainda há muito trabalho a fazer —, protestei. —O tema é som, mas
as passagens do meio são - oh!
Uma gota de sangue caiu nas teclas de marfim. Confusa, limpei-a,
quando outra gota caiu na minha mão. Então outra. E outra. O Rei dos Elfos
avançou e apertou um lenço no meu nariz. Vermelho manchou a roupa branca
como a neve, desabrochando no tecido a um ritmo alarmante. De repente, o
mundo se enfraqueceu e o tempo parou. Meus pensamentos, um corcunda de
pés fracos percorrendo a floresta da minha mente, tropeçaram e caíram.
Sangue?
—Descanse. — A palavra era tanto um comando quanto uma carícia. O
Rei dos Elfos bateu palmas, e Twig e Thistle apareceram, uma segurando um
copo de vidro, a outra uma garrafa de um rico licor âmbar. Ele me serviu uma
bebida e me entregou sem outra palavra.
—O que é isso? — Eu perguntei.
—Conhaque.
—Para que?
—Apenas beba.
Eu enruguei meu nariz, mas tomei um gole, sentindo a queimadura da
bebida deslizar pela minha garganta e aquecer meu coração. Ele me observou
com cuidado quando terminei a bebida.
—Pronto —, disse ele. —Sente-se melhor?
Eu pisquei. Para minha surpresa, eu me sentia. Minhas mãos, que
tremiam e se contorciam com anos de frustração reprimida, finalmente
estavam paradas. Eu estendi a mão para tocar meu rosto. Minha hemorragia
nasal havia parado, assim como a torrente de música que havia transbordado
de mim nos últimos dias.
—Agora. — O Rei dos Elfos tirou o copo e sentou ao meu lado no banco.
—Nós tocamos sua música há muito tempo. Deixe-nos passar o tempo de
outras maneiras.
Ele pegou meu rosto em suas mãos e se inclinou para perto, preocupação
naqueles olhos extraordinários. A ternura ali me desfez, e um fogo de um tipo
totalmente diferente floresceu dentro de mim. O Rei dos Elfos gentilmente
acariciou minha bochecha e eu fechei meus olhos para respirá-lo.
—Você tem alguma sugestão, mein Herr?
Seus lábios roçaram meu ouvido. —Eu tenho algumas ideias.
Eu estava mais apertada do que uma corda de violino, muito afiada, e
pedi que seus dedos ásperos e calosos se abaixassem, afrouxando-me,
ajustando-me à chave certa.
—Nós poderíamos colocar a pena e o arco, e tocar um ao outro em vez
disso. — Eu murmurei.
O Rei dos Elfos fez uma pausa e recuou. Abri os olhos para encontrar o
olhar dele, mas em vez de desejo, vi outra coisa: preocupação.
Quanto mais tempo você queima a vela...
De repente, o lenço manchado de sangue parecia um presságio.
Mas eu empurrei o mau presságio para longe. Eu estava feliz. Eu tinha
música na ponta dos meus dedos e um artista disposto à minha disposição. O
Rei dos Elfos era um tocador consumado de violinos e de mulheres, e a
habilidade com a qual ele lidava era extraordinária. Meus braços, meus seios,
meu estômago, minhas coxas; ele podia arrancar uma emoção tão delicada de
mim com apenas o mais suave toque de sua língua, o mais leve toque de seus
lábios. Eu estava nas mãos de um virtuoso.
Então eu beijei-o, beijei-o com ardor e calor, queimando sua preocupação
e minha dúvida. Senti sua preocupação em algo mais agradável sob meus
lábios, e eu passei minhas mãos por seus braços, puxando-o para perto.
Deixei o Rei dos Elfos brincar comigo o resto da noite, a sonata, o lenço
manchado de sangue e a vela esquecida por enquanto. Ele era o arco, eu as
cordas e seus dedos roçavam meu corpo para me fazer cantar.
Havia facetas infinitas para o meu Rei dos Elfos - trapaceiro, músico,
filósofo, erudito, cavalheiro - e eu tive grande prazer em descobri-las, uma após
a outra. Cada novo lado revelava outra dimensão, outra profundidade que
aumentava minha compreensão do meu marido.
Mas havia uma faceta dele que eu havia descoberto, e não gostei: mártir.
Foi um tempo antes que eu entendesse sua curiosa reticência, seu
distanciamento cuidadoso. Foi ainda mais tempo antes que eu percebesse, pois
embora meu marido estivesse livre com seu afeto - tocasse meu rosto, minhas
mãos, meu ombro, meus lábios - ele era um avarento em tudo o mais.
Quanto mais tempo você queima a vela...
Havia uma hesitação sempre que ele me tocava agora, uma gentileza
consciente que me enfurecia. A porta tinha sido aberta entre nós e eu queria
que ele entrasse e tratasse meu corpo como se estivesse em casa. Mas havia
uma linha que ele não atravessaria, pois, embora sentisse seu ardor em cada
beijo, cada carícia, ele nunca entrava. Se eu ainda pudesse rir, minha risada
teria sido ouvida mesmo no mundo acima.
Não era minha vergonha que nos parava agora; era culpa dele.
—Você não está participando. — Eu disse uma noite depois do jantar.
—Hmmm?
Tínhamos acabado de tocar uma série de notas em sol menor de um
compositor desconhecido para mim. O Rei dos Elfos tinha todo um repertório
de música, uma biblioteca de libretos e portfólios roubados do mundo acima.
Muitos dos nomes dos compositores se perderam no tempo, mas eu me
perguntei se algo de seus fantasmas não se agitava toda vez que sua música
era tocada. A princípio, pensara que essas composições eram obra do mesmo
homem, pois todas elas estavam escritas na mesma mão, até que o Rei dos Elfos
admitiu ter copiado as anotações.
—Eu fui copista uma vez. — Ele disse. Então ele fechou a boca e não disse
mais uma palavra, embora eu tenha pressionado e incomodado até que sua
paciência se partisse.
Ele ficou imediatamente arrependido depois, o que só me incomodou
mais. No espaço entre sua raiva e seu pedido de desculpas, senti aquela
centelha de fogo entre nós e, por um breve momento, todos os meus sentidos
se iluminaram, tão intensos e potentes como haviam sido no mundo acima.
Mas sua culpa umedeceu meu fogo e minha esperança.
—Você não está participando —, repeti. —Você estava brincando de
rotina; Eu podia ouvir o vazio.
O vazio não estava apenas em seu jogo. Era nos silêncios entre nós. Onde
o silêncio já estivera cheio, cheio de música e comunhão, agora era oco.
O arco do Rei dos Elfos, ainda parado sobre as cordas, tremeu em seu
aperto. A crina de cavalo saltou levemente contra a ponte, produzindo um som
nervoso e inquieto.
—Perdoe-me —, disse ele. —Estou cansado. Eu estive acordado até as
escuras horas da noite nos últimos dias.
Não era mentira, mas parecia uma. Eu podia ver as manchas escuras de
exaustão sob seus olhos, e tinha ouvido falar tanto de Twig quanto de Thistle
que o Rei dos Elfos não dormia, mas passava o tempo vagando pelas passagens
sinuosas do Submundo.
—Então vamos descansar. — Eu disse. Bati palmas, e Twig e Thistle
apareceram, um com uma garrafa de conhaque e um copo, a outra, uma salva
de morangos. Eu derramei para o Rei Elfo e o entreguei a ele.
Ele não perdeu o significado do gesto. —Estou bem, Elisabeth.
Dei de ombros, depois tomei um gole. O licor estava fraco e aguado.
—Bem —, eu disse. —Como vamos passar o tempo, então, mein Herr?
—Estou sob o comando de minha senhora —, disse ele. —Seu desejo é o
meu desejo.
—É? — Eu me levantei do klavier e dei um passo à frente. —Então eu
acho que você sabe exatamente como eu gostaria de passar o tempo.
O Rei dos Elfos levantou seu arco como uma espada e seu violino como
um escudo entre nós. —Não hoje à noite, minha querida.
Não essa noite. Não amanhã à noite. Não há noites no futuro previsível.
Eu teria chorado se tivesse alguma tristeza. Eu teria gritado se a raiva ainda
ardesse dentro de mim. Mas não havia nada, nada além de esperança e
desespero, e o desespero estava ganhando.
—Muito bem. — Voltei para o meu lugar no piano. Eu queria jogar
minhas mãos na derrota, ou envolvê-las em torno de sua garganta e estrangulá-
lo. Eu queria despejar minha frustração em música. Mas eu não sabia como
articular o turbilhão de confusão dentro de mim em palavras, frases, então eu
torci meus dedos no piano. Um som dissonante, um punhado de notas que se
chocaram e gritaram. —Vamos jogar um jogo.
Algo no Rei dos Elfos se afrouxou, embora os olhos de seu lobo ainda
estivessem cautelosos. —Que jogo, minha querida?
—Verdade ou desafio.
Ele ergueu as sobrancelhas. —Brincadeira de criança?
—Os únicos jogos que conheço. Venha, mein Herr, com certeza você se
lembra dos nossos jogos no Bosque dos Elfos.
Um sorriso mostrou as pontas dos dentes. —Eu lembro, Elisabeth. Com
prazer.
—Bom. — A esperança cintilou no meu estômago. —Eu vou começar.
Peguei a bandeja de morangos e me movi do banco para o chão. Eu
coloquei as frutas diante de mim e coloquei minhas pernas sob as minhas saias,
como fiz quando era pequena. O Rei dos Elfos não fez nenhuma observação,
apenas colocou de lado seu instrumento e se juntou a mim no chão. Eu segurei
minhas mãos, palmas para cima. Sem truques. O Rei dos Elfos pegou minhas
mãos sozinho. Sem armadilhas.
—Vamos começar com perguntas simples —, eu disse. —Qual é o seu
nome?
Ele jogou a cabeça para trás e riu. —Oh não, Elisabeth. Essa é uma
pergunta que não posso responder. Escolha outra.
—Não pode? Ou não vai?
Seus olhos estavam duros. —Não posso. Não vou. Ambos. Não importa.
Escolha outra. Ou nomeie seu desafio e eu pagarei.
Eu não esperava que o jogo começasse tão mal, então eu ainda não tinha
reunido ideias para as penalidades para distribuir. Então eu fiz outra pergunta.
—Bem. Qual é a sua cor preferida?
—Verde. E a sua?
Meu olhar caiu sobre a bandeja ao meu lado. —Vermelho. Cheiro
favorito?
—Incenso. Animal favorito?
Meus olhos se demoraram nos dele. —Lobo. Compositor favorito?
—Você.
A resposta foi tão simples, tão sincera que me tirou o fôlego. —Tudo bem
—, eu disse, minha voz instável. —As perguntas ficarão mais difíceis agora.
Vou lhe fazer cinco perguntas e você deve responder com sinceridade ou pagar
a desistência. Então você pode me perguntar cinco.
O Rei dos Elfos acenou com a cabeça.
—Onde você vai quando perambula pelo Submundo à noite?
Um lampejo de dor atravessou seu rosto, mas ele respondeu sem hesitar.
—A capela.
Sua resposta me surpreendeu. —A capela? Por quê?
—Essa é a sua próxima pergunt?
Eu parei. —Sim.
Demorou um tempo antes de ele responder. —Consolo. — Esperei que
ele continuasse. —Isso me dá conforto para oferecer minhas orações ao Senhor,
mesmo que ele nunca as ouça.
—Por que você reza?
Ele me observou debaixo dessas pálpebras encapuzadas, os olhos
ligeiramente estreitados. —Por remissão.
—Para o que você deve se redimir?
Seus olhos brilharam. —Por egoísmo.
Eu considerei pressioná-lo ainda mais, mas eu tinha mais uma pergunta
e não queria desperdiçá-la. —Como você chegou a ser Der Erlkönig?
A cabeça do Rei dos Elfos se levantou e ele puxou as mãos para trás. —
Não se atreva, Elisabeth.
Minhas mãos ainda estavam na minha frente, as palmas das mãos vazias.
—Você prometeu responder com sinceridade.
Suas narinas se alargaram. —Sempre houve Der Erlkönig. Sempre
haverá Der Erlkönig.
—Isso não é resposta.
—É aquela que você deve aceitar. Se você não for, então nomeie o seu
desafio, e eu pagarei.
Eu estudei ele. Lembrei-me da primeira história que ele me contara. O rei
clandestino sabia o custo do sacrifício. Ele vendeu sua alma e seu nome para
os elfos. Sua alma... e seu nome. Mas eu pensei na galeria dos Reis Elfo, uma
linha em evolução de diferentes homens. Meu Rei dos Elfos era Der Erlkönig,
mas Der Erlkönig não era todo Rei Elfo. A quem meu marido deu seu nome?
A quem ele havia dado sua alma?
—Seu nome —, eu sussurrei. —Eu reivindico seu nome como desafio.
Ele endureceu. —Não, Elisabeth. Eu lhe darei tudo menos isso.
—É um nome tão alto preço a pagar?
O Rei dos Elfos olhou para mim e havia mil emoções, mil anos em seus
olhos. Ele tinha a forma e a figura de um jovem, mas ele era antigo.
—É —, ele disse baixinho. —o preço mais alto que eu poderia pagar.
—Por quê?
Ele suspirou e foi o vento nas árvores. —Quem é você, Elisabeth?
—Estou respondendo suas perguntas agora? — Minhas mãos ainda
estavam vazias, vazias de seu nome. —Você não pagou seu desafio.
—Estou pagando da única maneira que posso.
O silêncio entre nós começou a se encher.
—Quem é você, Elisabeth? Responda isso e você entenderá.
Eu fiz uma careta. —Eu sou... — Eu comecei, então parei. O Rei dos Elfos
não me pressionou, mas simplesmente esperou. Sua paciência era infinita; sua
paciência era imortal.
—Eu sou... eu sou filha de estalajadeiro. — Era a resposta que eu teria
dado quando eu era Liesl, mas não a sentia mais como verdadeira.
O Rei dos Elfos balançou a cabeça. —Isso é o que você era.
—Eu sou musicista. Uma compositora.
Um pequeno sorriso inclinou seus lábios, mas ele sacudiu a cabeça
novamente. —Isso é o que você é. Mas quem é você, Elisabeth?
—Eu sou…
Quem era eu? Filha, irmã, esposa, rainha, compositora; esses eram títulos
que eu recebi e reivindiquei, mas eles não eram o meu todo. Eles não eram eu,
inteiros. Eu fechei meus olhos.
—Eu sou —, eu disse lentamente. —uma menina com música em sua
alma. Eu sou uma irmã, uma filha, uma amiga, que protege ferozmente aqueles
queridos para ela. Eu sou uma garota que ama morangos, torta de chocolate,
músicas em tom menor, momentos roubados de tarefas e jogos infantis. Eu sou
mal-humorada, mas disciplinada. Eu sou auto-indulgente, egoísta e altruísta.
Eu sou compaixão e ódio e contradição. Eu sou eu.
Eu abri meus olhos. O Rei dos Elfos olhava para mim com um desejo cru.
Meu pulso pulou, tropeçando nas emoções do meu sangue. Seus olhos estavam
claros como a água e eu podia ver até o coração de onde ele estivera, meu jovem
austero.
—Você é Elisabeth —, disse ele. —Um nome, sim. Mas uma alma
também.
Eu entendi então. Ele não podia me dar seu nome porque ele não era
ninguém; ele era Der Erlkönig. Ele foi esvaziado, seu nome e sua essência
roubados pelas antigas leis. O espaço dentro de onde o jovem austero tinha
sido estava querendo, ansiando por ser preenchido.
—Eu sou Elisabeth —, eu disse. —Mas Elisabeth é apenas um nome. Uma
palavra vazia eu preencho comigo mesma. Mas você teve uma palavra uma
vez; Eu vejo os ecos disso dentro de você.
Eu não pude dizer porque eu queria o nome dele. Não importava; ele era
Der Erlkönig, o Rei dos Elfos, mein Herr. Mas estes eram títulos concedidos a
ele, não aqueles que ele havia reivindicado para si mesmo. Eu queria a parte
dele que não pertencia ao Submundo, mas ao mundo acima. Para o homem
mortal que ele tinha sido. O homem mortal que ele poderia ter sido... comigo.
—Ele se foi —, disse ele. —Perdido. Esquecido.
Nós não falamos por muito tempo. Eu segurei seu silêncio perto de mim.
Seu nome pode ter sido esquecido, mas não foi perdido.
—Bem —, ele disse finalmente. —Você aceita a meu desafio? — O Rei
dos Elfos estendeu as mãos, palmas para cima.
Não, eu não aceitava. Não foi o que eu pedi, mas era o que eu teria.
—Sim, — eu disse. —Sua vez terminou. — Coloquei minhas mãos nas
dele.
—Bom. — Seu sorriso endureceu. —Então eu lhe farei cinco perguntas,
Elisabeth, e você deve responder com sinceridade ou pagar o desafio.
Eu balancei a cabeça.
—Por que você não continuou o trabalho na sonata?
Eu estremeci. A noite de núpcias - nossa sonata para a noite de núpcias.
O primeiro movimento estava terminado, mas eu não havia pegado a pena
para começar a trabalhar no segundo. Nossas noites tinham sido cheias de
música, mas não minhas.
—Eu não sei. — Eu disse.
—Isso não é resposta.
—É a verdade.
O Rei dos Elfos ergueu as sobrancelhas. Ele não aceitou.
—Eu não sei —, repeti. Não era como se eu não tivesse tentado. Eu queria
terminar, eu queria escrever algo totalmente e totalmente em minha própria
voz, algo que o mundo ouviria e conheceria como meu. Mas toda vez que eu
me sentava diante do klavier, toda vez que eu pressionava meus dedos nas
teclas, nada vinha. —Eu... eu não posso continuar. Eu não sei... É como se...
estivesse morta por dentro.
O Rei dos Elfos estreitou os olhos, mas eu não pude lhe dar outra
resposta. Ele me estudou de perto, mas não me pediu para se justificar, e
simplesmente fez a próxima pergunta.
—O que você sente falta sobre o mundo acima?
Eu respirei fundo. O rosto do Rei dos Elfos era cuidadosamente neutro,
e eu não conseguia ler nada de sua intenção. Ele queria ser cruel? Consolando?
Ou ele estava apenas curioso?
—Muitas coisas —, eu disse em uma voz vacilante. —Por que você
pergunta?
—Sua rodada de perguntas terminou, Elisabeth. Responda com
sinceridade ou pague um desafio.
Eu virei minha cabeça. Embora não soubesse dizer por quê, não
conseguia olhar para ele enquanto dava minha resposta.
—Brilho do sol. Neve. O som de galhos batendo contra uma vidraça
durante uma tempestade. De pé diante da lareira no meio do verão, a sensação
de suor escorrendo pelo meu pescoço. E então a doçura inesperada de uma
brisa fresca vinda de uma janela aberta. — Olhei para a bandeja de morangos
no klavier. —Eu sinto falta do gosto afiado e verde da grama de limão, o
fermento da cerveja.
Lágrimas queimavam ao longo dos meus cílios, mas eu não chorei. Não
poderia chorar. Não havia lágrimas em mim e senti o ardor de soluços
fantasmas subindo e descendo pela minha garganta.
—Eu até sinto falta das partes que eu não sabia perder. O pungente
almiscarado de uma estalagem superlotada de viajantes. Pés de couro,
respiração de bebê, lã encharcada. Homens, mulheres, crianças. — Eu ri. —
Pessoas. Sinto falta das pessoas.
O Rei dos Elfos ficou em silêncio. Eu ainda não conseguia olhar para ele,
e nossa única comunhão foi através do encontro de nossas mãos.
—Se você pudesse —, ele disse suavemente; —se fosse possível, você
deixaria o Submundo?
Desta vez, fui eu que tirei minhas mãos para esconder o tremor delas. —
Não.
—Mentirosa. — Eu podia ouvir o grunhido em sua voz.
Eu endireitei meus ombros e me preparei para encontrar seu olhar. Os
lábios do Rei dos Elfos estavam torcidos em um sorriso de desprezo, mas seus
olhos estavam tristes.
—Aqui embaixo —, eu disse. —eu me encontrei. Aqui embaixo, tenho
espaço para estar. É um presente que eu nunca procurei e aprecio isso.
—Não foi um presente. — O Rei dos Elfos pegou a saladeira de morangos
e a presenteou para mim. Eu escolhi o maior e mais vermelho. —É apenas um
prêmio de consolação.
Ele levantou-se.
—Onde você vai?
—O jogo está terminado. Estou cansado.
—Você aceita minha resposta, então?
Ele olhou para o grande morango vermelho na minha mão. —Não.
—Então, qual é seu desafio?
O conjunto de sua boca se apertou. —Termine seus morangos, Elisabeth.
Isso é o que eu reivindico de você.
Um pedido estranho, mas eu fiz o que ele pediu. Eu dei uma mordida. E
senti.
Eu não provava nada.
Eu olhei para o morango na minha mão, sua carne ainda suculenta e
macia, o suco ainda correndo pelos meus dedos. Eu ainda podia sentir seu doce
perfume, um tratamento promissor. Mas sem o seu sabor, a fruta não passava
de carne mole e pele granulada. Meu estômago se virou.
O Rei dos Elfos não disse nada, apenas observou enquanto eu comia
frutas depois de frutas sem gosto, enquanto pagava minha penalidade.
O limiar
Não funcionou. Eu estava tão certa - tão certa - que minha música, a
música que ele tanto queria de mim, seria suficiente para tirar o Rei dos Elfos
de sua culpa. Mas enquanto os minutos, as horas, os dias passavam, meu
marido mantinha distância. Ele não me tocava, não falava comigo, não olhava
para mim desde o nosso encontro desastroso depois que ele me trouxe de volta
do mundo acima.
Eu sentia falta dele.
Sentia falta das nossas conversas perto do fogo, quando ele lia em voz
alta os escritos de Erasmus, Kepler e Copérnico, quando deixava de lado minha
autoconsciência e executava para ele as obras de poesia ocasional que havia
aprendido. Eu sentia falta dos nossos jogos infantis de Verdade ou Desafio,
seus truques com as mãos e gracejos. Sentia falta de trabalhar com ele em nossa
Sonata da Noite de Núpcias, mas, acima de tudo, sentia falta do sorriso dele,
de seus olhos desiguais e daqueles dedos longos e elegantes que trabalhavam
com música e magia.
Bem, se o Rei dos Elfos não aparecesse comigo, eu o arrastaria para fora
de mim mesmo.
O segundo movimento da Sonata da Noite de Núpcias estava quase
terminado, e não tinha nada da voz do Rei dos Elfos dentro dela. Eu abaixei
minha pena.
—Thistle. — Eu disse ao ar que esperava.
A garota elfo se materializou diante de mim.
—O que você quer agora, Rainha Elfo? — Ela zombou.
—Onde está Der Erlkönig? — Perguntei.
—Na capela. Como é costume dele hoje em dia.
—Me guie até ele.
Thistle levantou uma sobrancelha, ou ela teria, se ela tivesse sobrancelhas
em tudo. —Você é mais corajosa do que eu contava, mortal, para interromper
Sua Majestade durante suas devoções.
Dei de ombros. —Eu acredito no perdão interminável de Deus.
—Não é o perdão do seu Deus que você precisa.
No entanto, Thistle concordou - depois que eu quisesse - de me guiar até
a capela para recuperar o violino do Rei dos Elfos. Thistle me deixou na entrada
e desapareceu assim que a soltei.
A capela estava vazia.
Eu estava furiosa com a minha garota elfo, me repreendendo por me
permitir ser enganada por seus truques. Eu deveria ter perguntado a Twig. Eu
me virei para sair, mas não antes de um violino antes do altar me chamar a
atenção.
O violino do Rei dos Elfos.
Eu caminhei até o corredor para recuperá-lo, para tirar sua voz e sua
culpa. Acima, os vitrais brilhavam com uma luz sobrenatural. Não havia
bancos ou assentos no espaço; afinal, não havia padre para realizar um serviço,
nem paroquianos para participar. Um crucifixo simples de madeira estava
pendurado acima do altar, e na capela-mor repousava o violino do Rei dos
Elfos em uma pequena mesa.
Assim que minhas mãos tocaram sua madeira quente e envelhecida, um
suspiro ecoou ao meu redor.
Eu quase deixei cair o violino de surpresa. Eu me virei, mas não havia
ninguém lá.
—Eu não sei se Tu estás aí, meu Senhor, mas eu estou aqui, vem mais
uma vez, ajoelhado e pedindo perdão. Pedindo orientação. Eu estou tão longe
de Ti e Tua graça no Submundo, mas ainda assim anseio por Tua presença.
A voz veio de um dos nichos do corredor, espaços devocionais onde se
pode acender uma vela para a oração. Entrei na ponta dos pés na direção da
esquerda, da qual emanava a voz.
O Rei dos Elfos estava ajoelhado em uma pequena mesa, a cabeça
inclinada diante de uma pequena imagem dourada de Cristo. Várias velas
queimavam ao lado dele, iluminando o rosto de Nosso Senhor com um suave
brilho dourado.
—Com o passar dos anos, alguém pensaria que o imortal se acostumaria
à morte. Afinal, todo mundo murcha e desaparece. Para alguém como eu, é
apenas um fato da existência. Os mortais se perguntam sobre a passagem do
verão para o outono? Do outono para o inverno? Não, eles confiam que o
mundo voltará e a vida e o calor voltarão. E ainda…
O Rei dos Elfos levantou a cabeça. Eu me pressionei contra a parede de
pedra, escondida da vista.
—E ainda sinto profundamente o frio amargo de cada inverno. O
congelamento da morte nunca diminui sua terrível picada. Eu assisti muitas
das minhas noivas florescerem e desaparecerem, mas...
Sua voz vacilou.
Eu não deveria estar aqui. Eu deveria deixar o Rei dos Elfos em suas
confissões privadas. Eu me virei para ir embora.
—Mas Elisabeth...
Eu parei.
—Elisabeth não é como as flores que vieram antes. Sua beleza é
passageira, transitória. Aprende-se a admirá-la enquanto dura, pois serão
cinzas amanhã. Assim que as pétalas se tornaram castanhas, eu as varrerei para
longe.
Meus ouvidos não foram feitos para ouvir sua alma derramada diante de
Deus. No entanto, não conseguia me mexer. Não queria se mover.
—Eles me chamariam de cruel, suponho. Ela me chamaria de cruel. Mas
ser cruel, frio e distante era a única maneira que eu sabia como sobreviver. —
Ele riu, mas era mais uma zombaria do que uma risada. —Por que um imortal
precisa se preocupar com a sobrevivência? Meu Deus, todo dia é uma luta para
sobreviver.
Sua voz caiu em cadências mais suaves, mais reminiscências do que
súplicas.
—Minha vida, minha própria existência, é uma tortura sem fim. Fiz uma
barganha com o diabo e estou no inferno. É algo que eu nunca entendi, não até
me tornar rei deste lugar maldito. Eu estava com tanto medo de morrer que
aproveitei a chance - qualquer chance - de escapar de sua escuridão profunda.
Que idiota eu era. Que idiota eu sou.
Ele abaixou a cabeça novamente.
—Raiva, angústia, alegria, desejo, não senti adequadamente essas
emoções em muito tempo. Especialmente alegria. De todos eles, a raiva era a
mais fácil de sentir - a amargura e o desespero foram meus companheiros
constantes durante séculos. Mas apesar de tudo, ainda anseio por
profundidade. Por intensidade. Apesar dos anos, não esqueci a centelha e a
queimadura. Anseio por sentir isso de novo, mesmo que o tempo e a
eternidade tenham me acostumado ao frescor.
Eu agarrei seu violino ao meu peito, desejando poder ir até ele, desejando
poder levá-lo em meus braços e dar-lhe conforto.
—Eu desisti de tentar há muito tempo. Cada uma das minhas noivas veio
a mim disposta a morrer; suas vidas no mundo acima já haviam terminado.
Todos elas queriam uma última chance para sentir de novo e eu lhes dei isso.
Eu lhes dei lágrimas, dei-lhes prazer, mas acima de tudo, dei-lhes catarse. Elas
me usaram tanto quanto eu as usei, e uma vez que elas foram embora, eu
odiava todas elas por me deixarem para trás. Deixando-me a suportar sozinho,
até a próxima vir. Mas Elisabeth...
Eu segurei minha respiração.
—Ela nunca foi uma flor de estufa. Ela é uma árvore robusta de carvalho.
Se as folhas dela caírem, ela florescerá novamente na primavera. Ela não estava
pronta para morrer quando ela deu sua vida para mim. Mas ela fez assim
mesmo porque amava e amava profundamente.
Lágrimas escaldavam meus cílios inferiores.
—Eu sei o que você me diria. Eu deveria ter feito a coisa maior - a coisa
divina - e a devolver ao mundo acima. — Um nó na garganta. —Mas eu era
egoísta.
De repente, a transgressão do que eu estava fazendo me superou. Eu
viera privar o Rei dos Elfos de sua voz, apenas para perceber que talvez fosse
eu quem deveria estar ouvindo.
—Eu sei o que significa amar, meu senhor. Foi você quem me ensinou
como. Tu me mostraste através de Tuas palavras e da tua morte, mas eu não
entendia o significado do sacrifício até agora. Amar é ser altruísta. Deixe-me
ser altruísta. Empresta-me força, meu Senhor, pois precisarei disso nas
provações que estão por vir.
O som suave de chorar, os ecos de que eu tentei o meu melhor para
reprimir.
—Em teu nome eu oro, amém.
Esteja, tu, comigo
Não sei quanto tempo fiquei ali, esmagada sob o peso da minha dúvida.
Contanto que você tenha um motivo para amar, Thistle dissera. O amor
mantinha a roda da vida girando. O amor criava pontes entre mundos. Se não
houvesse mais nada que eu tivesse aprendido, aprendera que o amor era maior
que as leis antigas.
Mas a incerteza se apoderou de mim em asas silenciosas, sussurrando na
voz do changeling: Nenhum de nós durou muito tempo no mundo acima.
Eu poderia ter ficado lá no pó e na sujeira, exceto pela minha promessa
ao Rei dos Elfos. Há um fogo dentro de você; mantenha-o aceso. Mova-se ou morra.
Se eu não pudesse andar, eu me arrastaria. Se eu não soubesse as respostas
agora, eu as descobriria mais tarde. Enquanto houvesse respiração, havia
tempo. Eu fiquei de pé.
E então, levemente, um violino começou a tocar.
Eu fechei meus olhos. Eu esperava que obstáculos, provas físicas fossem
superadas, mas o Submundo sabia me atacar onde eu era mais vulnerável: meu
coração.
Não Josef. Não o Rei dos Elfos. É um truque, eu cantava para mim
mesma. O mantra me salvou antes, quando Käthe e eu percorremos esses
caminhos para lutar de volta à superfície. Mas as palavras não mais possuíam
o poder que possuíam e, quase contra minha vontade, meus pés seguiram os
sons para uma grande caverna.
Era o salão de baile. O salão de baile que continha o Baile dos Elfos, onde
o Rei dos Elfos e eu dançamos juntos pela primeira vez. Foi também o salão em
que havíamos recebido nossos súditos como marido e mulher. Mas estava
vazio agora, sem enfeites bonitos ou sobrenaturais, sem mesas de banquete
com banquetes sangrentos. No entanto, no centro havia um quarteto de
músicos: um violinista, um tecladista, um violoncelista e um flautista.
O violoncelista e o flautista seguravam seus instrumentos no colo, com
as mãos imóveis. Os outros dois estavam tocando uma peça lenta e lúgubre,
que eu imediatamente reconheci como o adágio da Sonata da Noite de
Núpcias. O violinista usava o rosto de Josef, mas nenhum encanto poderia me
enganar; o changeling poderia imitar os cachos dourados e os traços delicados
do meu irmão, mas ele nunca poderia recriar a habilidade de Josef.
Nas mãos do changeling, minha música era plana e sem inspiração. As
notas batiam e batiam no chão, sem emoção, sem peso, sem significado. Eu
havia colocado muito da minha frustração nesse movimento; o desejo de ir
mais rápido, ir além, apenas para ser recebida com negação a cada passo. Eu
queria que a música desestabilizasse e agitasse; em vez disso, simplesmente
era entediante.
Corri para a frente para pegar minha música na arquibancada, para levá-
la de volta, quando o violoncelista falou.
—Você desperdiça o seu talento nesta bobagem.
Eu me assustei. Papai.
—Eu não ouço nenhum gênio nas notas, nenhuma inspiração em seu
arranjo. Isso tudo deve ser queimado na pilha de lixo. —Ele se virou para mim.
—Ah, Liesl. Você não concorda?
Eu fechei meus olhos. Papai era autocrático e convivial, dependendo de
quantas bebidas havia nele. Eu nunca poderia adivinhar qual versão do meu
pai eu estaria enfrentando, então tomei o cuidado de nunca encará-lo.
—Bem?
Eu tentei me apegar àqueles momentos com o Rei dos Elfos quando nós
dois estávamos perdidos e achados em minha música. Quando nós dois
tínhamos sido transportados por som e arrebatamento, quando nada mais
existia fora do tempo em que tocamos juntos. Mas não consegui segurá-los,
pois papai e minha dúvida arrancaram-nos dos meus dedos.
—Não —, eu sussurrei. —Não, eu não concordo.
Eu podia ouvir o arranhão da cadeira empurrar para trás enquanto o
violoncelista ficava de pé. Um changeling, eu disse a mim mesma. É um
changeling. Não papai. Não pode ser papai.
—Não? — A voz de Papa estava mais perto agora, e o cheiro de cerveja
velha me dominou. —O que eu te disse, Liesl?
Se eu abrisse meus olhos, se olhasse meu pai nos olhos, a ilusão seria
quebrada. Eu veria olhos pretos de elfo em um rosto humano e o conheceria
como um changeling. Mas eu não conseguia abrir meus olhos, não podia
encarar a possibilidade de que isso não fosse verdade.
—Você nunca vai ser nada na vida.
Eu vacilei, esperando o golpe de um arco de violino como uma vara na
minha pele. Ele havia quebrado vários arcos dessa maneira, inclinado contra
nossas costas como punição.
—Você se eleva. Cresça e pare de se entregar a esses voos românticos de
fantasia.
Sua voz parecia vir das rachaduras, dos cantos e recantos através dos
quais o vento do mundo acima assoviava e uivava. Eu tentei me manter firme,
tentei empurrar contra a crueldade que ele exercia como uma foice, mas eu
estava murchando, enrolando, secando por dentro.
—Fica no mundo acima como és, Elisabeth Vogler, e é julgada como o
teu pai te julgou: sem talento, esquecível, sem valor.
Elisabeth.
Papai nunca me chamou de Elisabeth. Dentro da nossa família eu sempre
fui Liesl, ocasionalmente Lisette e às vezes até Bettina. Mas meu pai nunca me
chamou pelo meu nome completo; era um nome reservado para amigos,
conhecidos e o Rei dos Elfos. Era um nome para a mulher que eu afirmava ser,
não a garota que eu tinha sido.
—Então deixe o mundo me julgar como eu sou.
Eu abri meus olhos. O changeling que usava o rosto de papai fizera um
bom trabalho; as bochechas avermelhadas, os olhos encovados, a pele
irregular. Mas seu rosto continha uma malícia que meu pai nunca teve, uma
crueldade intencional que poderia ser exercida com precisão. Papai era um
instrumento contundente, seus golpes indiscriminados pela bebida.
—Fique de lado —, eu disse. —e deixe-me passar.
O changeling sorriu e suas feições mudaram. —Como quiser, mortal. —
Disse ele, dando-me uma reverência. Então ele pegou a Sonata da Noite de
Núpcias do suporte, as folhas de papel escritas em minha própria mão e
começou a separá-las.
—Não! — Eu gritei, mas o flautista veio me segurar, enquanto os outros
se juntaram ao primeiro em rasgar minha música em pedaços. Os changelings
atacaram meu trabalho, pedaços de papel flutuando e caindo no ar como a
neve, pousando no meu cabelo, meus olhos, minha boca, com gosto de
amargura e traição.
Muito perdido. Tanto esforço, tudo para cinzas. Aquelas primeiras obras
que papai havia queimado em retribuição por ter queimado o rosto de Josef.
As peças que eu havia escrito em segredo, todas sacrificadas para ganhar
acesso ao Submundo e salvar minha irmã. E agora isso, meu mais recente e
possivelmente maior, tudo se foi, foi embora.
Eu gritei e solucei, mas foi só depois que as últimas notas caíram no chão
que os changelings me soltaram.
—Não importa —, disse um alegremente. —Tenho certeza de que você
pode recriá-la, se você tem o talento que você reivindica.
Então eles me abandonaram no salão de baile cavernoso vazio, os ecos
de sua risada rancorosa soando em meus ouvidos.
—Elisabeth.
Uma mão gentil me acordou. Eu me mexi e gemi, vomitando os últimos
pedaços de água do lago dos meus pulmões. Na escuridão embaçada, eu podia
distinguir uma figura longa e magra, com um choque de cabelos prateados ao
redor da cabeça como uma juba.
Meus lábios formaram um nome antes de eu lembrar que não sabia.
—Mein-mein Herr?
—Sim —, o Rei dos Elfos disse suavemente. —Eu estou aqui.
—C-como? — Eu resmunguei.
—Você pode não ter tido a proteção de Der Erlkönig enquanto
caminhava pelo Submundo —, disse ele, com um sorriso em sua voz. —Mas
você sempre teve a minha.
Ele estendeu a mão e eu peguei. Lentamente, dolorosamente, eu fiquei
de pé. Eu estava com dor, machucada e machucada em mais do que apenas o
meu corpo.
Acima de nós, a mesma lacuna na terra e na árvore pela qual eu me
arrastei para quebrar as velhas leis da última vez que vim aqui. Eu estava
cansada, tão cansada, mas me forcei a subir a escada de raízes e a balançar na
superfície. O Rei dos Elfos me apoiava, encorajando-me, ajudando-me, até que
por fim caí no chão da floresta do umbral.
O mundo acima era azul, o profundo índigo do amanhecer. O véu
estrelado do céu noturno ainda reinava, mas logo desapareceria, escondido
pelo sol nascente. A escuridão já estava se tornando púrpura e as sombras
começavam a recuar.
Eu me virei para encarar o Rei dos Elfos. Ele usava uma expressão suave
e segurava um portfólio de couro nas mãos. Sem outra palavra, ele deu dois
passos à frente e me deu.
—O que é isso?
Sua única resposta foi um sorriso. Com as mãos trêmulas, desfiz os laços
que o mantinha fechado e o abri para encontrar partituras e dezenas de
músicas. Eu não reconheci a mão, mas reconheci o compositor. Eu. Era minha
música, copiada em sua mão. Toda a minha música, a inacabada Sonata da
Noite de Núpcias, bem como as peças que eu havia sacrificado para ganhar
acesso ao Submundo.
—Elas estão todos lá —, ele disse suavemente. —Todas as suas
composições.
—Mas —, eu sufoquei. —Elas foram destruídas.
—Oh, Elisabeth —, disse ele. —Você realmente acha que elas foram
perdidas? Eu valorizei sua música tanto quanto você. Eu mantive isso seguro.
Lembrei-me de cada pequena coisa que você escreveu; afinal, você não as tocou
por toda a minha vida? —Ele riu. —Eu não disse que eu era um copista uma
vez?
Lágrimas caíram do meu rosto para manchar o papel em minhas mãos.
Fechei o portfólio para me salvar de arruinar seu trabalho de amor.
—Você tocou para mim; agora você deve ir tocá-los para o resto do
mundo. Termine a Sonata da Noite de Núpcias, Elisabeth. Termine para nós.
—Eu vou escrever para você —, eu sussurrei. —Para o meu imortal
amado.
Era perto, tão perto do que eu queria dizer a ele. Eu te amo, eu insisti, mas
meus lábios não obedeciam.
—Toque para mim —, disse ele. —Toque para mim, minha querida, e eu
vou ouvir. Não importa onde você vá. Não importa onde eu esteja. Eu juro. Eu
juro, Elisabeth.
Um nome veio aos meus lábios. Tentei levantar minha mão, segurá-la
contra sua bochecha, dizer-lhe que o amava.
—Eu vou te ver de novo? — Eu sussurrei.
—Não —, disse ele. —Eu acho, acho que é melhor assim.
Mesmo que eu esperasse, sua recusa ainda me atingiu como um golpe.
Mas talvez ele estivesse sendo cruel para ser gentil. Nós nunca mais estaríamos
realmente juntos, nunca mais sentiríamos o toque das mãos uns dos outros em
nossos corpos. Nem mesmo nos limiares do mundo, onde o Submundo
sangrava para o mundo acima. Eu tive tudo dele. Eu provei tudo dele. Para
ver, mas nunca tocar... Eu seria uma mulher no deserto, sempre sedenta por
água que ela pudesse ver mas nunca alcançar.
—Você está pronta? — Ele perguntou.
Não. Mas eu nunca estaria pronta. Este dia e o dia seguinte e o dia
seguinte seriam cheios de incógnitas, cheios de incerteza. E eu encararia cada
um como eu era, Elisabeth, inteira.
—Sim.
Ele me deu um aceno de cabeça, mais um gesto de respeito do que
concordância. Então ele disse. —O mundo inteiro espera por você.
Eu andei até a borda do bosque dos elfos. Coloquei minhas mãos contra
a barreira, invisível, mas tangível. Respirando fundo, me preparei para
empurrar. Passei pela barreira e entrei na floresta.
Por um momento, fiquei ali, além da borda do bosque dos elfos. O ar,
quente e suave, não mudou, não ficou frio. Eu havia cruzado o limiar e não
havia como voltar atrás. E, no entanto, ainda me demorei, sem vontade de ir,
incapaz de ficar.
—Se - se eu pudesse encontrar uma maneira de libertar você, — eu
sussurrei. —você andaria pelo mundo acima comigo?
Minhas costas estavam para o Rei dos Elfos; Eu não podia encará-lo.
Demorou muito até ele responder.
—Oh, Elisabeth —, disse ele. —Eu iria a qualquer lugar com você.
Eu me virei. Seus olhos se aprofundaram na cor e por um momento,
apenas pelo mero vislumbre, pude ver como ele teria sido como um homem
mortal. Se ele tivesse sido autorizado a viver o curso de sua vida, desde a
criança que ele tinha sido para o homem que ele teria se tornado. Um músico -
um violinista. Eu corri de volta para o círculo de amieiros, querendo o círculo
de seus braços em volta de mim. Estendi minhas mãos e seus dedos roçaram
os meus, mas passamos um pelo outro como água, como uma miragem. Cada
um de nós não passava de uma ilusão cintilante, uma chama de vela que não
conseguíamos segurar.
E, no entanto, o Rei dos Elfos ainda estava aqui, no Bosque dos Elfos,
comigo. Ele estava no Submundo enquanto eu estava no mundo acima, mas
nossos corações batiam no mesmo espaço.
—Não olhe para trás. — Disse ele.
Eu balancei a cabeça. Eu te amo, eu queria dizer. Mas eu sabia que essas
palavras me quebrariam.
—Elisabeth.
O Rei dos Elfos estava sorrindo. Não o sorriso pontudo do Lorde de
Travessuras ou Der Erlkönig, mas um sorriso torto. Torcido para um lado, torto
e pateta, ele quebrou meu coração e eu sangrei por dentro.
Ele murmurou uma palavra para mim. Um nome. —Você sempre teve,
Elisabeth —, ele disse suavemente. —Pois é para você que eu dei a minha alma.
A alma dele. Eu segurei minha música - nossa música - em meu coração.
Nós fomos separados para sempre, para nunca mais ficarmos juntos. A dor me
despedaçou, me partiu em pedaços afiados e irregulares. Eu queria o toque da
mão dele, para o meu jovem austero me colocar de volta, cicatrizada mas
inteira.
Mas eu já estava completa. Eu era Elisabeth, inteira, mesmo sendo
Elisabeth sozinha. O conhecimento disso me deu força.
Eu endireitei meus ombros. O Rei dos Elfos e eu seguramos os olhares
um do outro pela última vez. Eu não olharia para trás. Eu não me arrependeria.
Ele sorriu para mim e pressionou os dedos nos lábios em despedida.
Então eu me virei e fui embora, para o mundo acima e para o amanhecer.
Sempre Tua,
Sempre meu,
Sempre nosso.
Sempre sua,
Compositora de Der Erlkönig