Você está na página 1de 372

ARIDA

Ilha da magia da alma


Representada pela sáfira

VALUKA
Ilha da magia elementar
Representada pelo rubi

MORNUTE
Ilha da magia do encantamento
Representada pelo bêrilo rosa

CURMANA
Ilha da magia da mente
Representada pela ônix

KEROST
Ilha da magia do tempo
Representada pela ametista

SUNTOSU
Ilha da magia da restauração
Representada pela esmeralda
ZUDOH
Ilha da magia da maldição
Representada pela opala
CAPÍTULO UM

Este dia foi feito para velejar.


A salmoura do oceano cobre a minha língua e eu saboreio seus
grãos. O calor do final do verão venceu o mar; ele mal balança
enquanto estou contra a borda do estibordo.
A água azul-turquesa se estende a distância, cheia de peixes
cirurgião-patela e cardumes de guaiúba que flutuam para longe do
nosso navio e se escondem sob finas camadas de espuma do mar.
Através da neblina da manhã, há um contorno de montanhas
cobertas por nuvens que moldam a ilha mais ao norte do reino,
Mornute. É uma das seis ilhas que ainda não vi, mas que um dia
governarei.
— Para onde estamos indo? — Pergunto. — Para os vulcões de
Valuka? Ou as selvas de Suntosu? — O clima é suave o suficiente
para que minhas palavras sejam levadas à proa onde meu pai está,
com vista para a água.
Anos no mar enrugaram sua pele bronzeada, fazendo com que
ele parecesse ter mais de quarenta anos. As rugas também o fazem
parecer severo, o que eu gosto. O Alto Animancer de Arida, o Rei de
Visidia, deve sempre parecer severo.
— O mar é um animal perigoso, Amora — diz ele. — E você é
preciosa demais para perder. Mas prove sua força para o nosso
povo hoje à noite e saberei que você é capaz de enfrentá-lo. Por
enquanto, concentre-se em conquistar o trono. — Seus profundos
olhos castanhos piscam para mim e ele sorri. — E em anunciar seu
noivado.
Minha garganta aperta. Ferrick é um homem bom o suficiente,
se alguém sonha em se estabelecer com um conhecido da infância.
Mas prefiro meus pretendentes diários e seus presentes.
Amabons, ginnadas e vestidos dos melhores tecidos, tudo para
conquistar a princesa impressionável que eles pensam que sou. Os
meninos do reino acham que podem comprar meu amor e título, e
eu deixo que eles acreditem. Nada se compara as bugigangas
luxuosas de pretendentes famintos, e não estou interessada em
acabar com a sua generosidade.
— Você está pronta? — As palavras do meu pai são baixas,
mas firmes; algo em seus olhos muda. Ele não está falando do meu
compromisso iminente.
Instintivamente, minha mão vai para a mochila de couro apoiada
no meu quadril. O conteúdo faz barulho quando toco suas bordas
rígidas.
— Estou — digo, embora as palavras sejam ousadas em
comparação ao que realmente sinto. Porque, mesmo sendo a única
filha do rei, meu povo não me entregará a coroa e deixar que eu
reine pelo direito de nascença. Aqui, no reino de Visidia, devo
primeiro provar o meu valor a eles se quiser ganhar o título de
herdeira. E devo fazê-lo dando uma demonstração adequada da
magia aridiana; a magia compartilhada apenas através do sangue
da família Montara.
Hoje à noite, só tenho uma chance de mostrar que estou apta
para reivindicar o título de Animancer – um mestre de almas. Mas
meu povo não irá se contentar com um bom desempenho. Eles
exigem excelência, e eu os darei exatamente isso. No final da noite,
provarei a todos que nunca haverá alguém mais adequado ao trono.
As vastas montanhas de penhascos verdes e exuberantes se
estendem diante de nós enquanto o mar puxa nosso navio em
direção às docas de Arida, minha ilha natal. As falésias estão
densamente cobertas pela flora bioluminescente, que, embora linda
à luz do dia, rouba a respiração de uma pessoa quando elas
espalham suas brilhantes pétalas roxas e rosas sob a lua.
É magnífico, mas um grosso nó de amargura contrai meu peito
enquanto nos aproximamos. Tento ignorá-lo, mas afunda no meu
intestino como uma âncora.
Eu amo Arida, mas deuses, o que eu não daria para virar este
navio e continuar navegando.
Nossas velas incham quando o vento nos leva em direção ao
porto, e meu pai se prepara para atracar. Pode-se esperar que eu
dirija o reino um dia, mas meu pai ainda se recusa a me ensinar
algo tão simples quanto navegar no Duquesa. Como sou uma das
duas herdeiras em potencial de Montara, ele me diz que viajar é
muito perigoso. Apesar de ter passado muitos anos implorando e
argumentando que eu deveria navegar e ver meu reino, ele
dificilmente me deixa tocar o leme.
Mas isso significa que é hora de se esforçar mais. Hoje é meu
aniversário, afinal.
Afasto minhas preocupações com as gaivotas que circundam o
mastro principal e me junto a ele. Os lábios do meu pai franzem
enquanto eu sorrio; ele sabe exatamente o que eu quero.
— Por favor? — Descanso minha mão macia ao lado da mão
áspera no leme, desejando o brilho beijado pelo sol e calos ásperos
do mar que ele usa com orgulho – os sinais reveladores de um
viajante.
Não resta muito tempo antes de atracarmos. As águas estão
ficando rasas, batendo furiosamente contra o navio enquanto nos
aproximamos de Arida. Uma pequena multidão de servos e
soldados reais nos espera na areia vermelha, prontos para nos levar
e preparar-nos para esta noite.
— Não. — Papai endireita os ombros para me bloquear.
Eu o rodeio para reivindicar seu olhar. — Sim. Só desta vez?
O suspiro que ele dá faz seu peito largo tremer. Deve sentir o
quanto eu quero isso, porque pela primeira vez na minha vida se
afasta e me oferece o leme. Minha mão livre agarra a madeira lisa,
sem perder um segundo, e reprimo um arrepio com a sensação
entre as palmas das mãos.
Natural. Como se minhas mãos fossem feitas para isso.
— Você deve ir devagar — diz meu pai, mas não estou
prestando atenção. O navio sente cada pedaço da besta, capaz de
assumir a promessa de aventura do mar e conquistar qualquer coisa
em seu caminho. É forte, destemido, mas sinto sua relutância em
me ouvir. Este navio é como meu povo; exige um capitão merecedor
e não aceita menos.
Raspo minha unha delicadamente contra a madeira e torço o
leme, apenas dois centímetros. O navio estremece em resposta,
considerando-me. Meu pai fica perto, as mãos tremendo e prontas
para assumir o controle, caso algo dê errado. Eu não vou deixar.
Sou Amora Montara, Princesa de Visidia e herdeira do trono do
Alto Animancer. Não há navio que eu não possa navegar. Não há
nada que eu não possa dominar.
O vento muda com uma rajada de ar, perturbando as velas e
empurrando a embarcação dois centímetros ou mais para a
esquerda. Não é uma grande mudança, mas o navio está me
desafiando e não sou de perder. Ajusto meu aperto no leme para
corrigi-lo.
Não preciso olhar para cima para saber que estamos entrando
em águas rasas. Posso sentir isso no comportamento do navio, na
maneira como sua constante calmaria se transforma em algo rígido
e feroz.
— Aperte mais a sua mão esquerda. — A voz de meu pai está
distante, mas eu faço o que ele diz. O navio range em resposta.
Eu sou Amora Montara. Cravo minha unha no Duquesa
novamente quando o navio estremece. O poder de Arida está dentro
de mim. Você vai obedecer.
Duquesa geme quando atingimos a areia, e o impacto sacode
meu peito. Perco o equilíbrio e luto para conseguir uma melhor
firmeza, mas o leme está escorregadio da névoa do oceano, e meu
rosto bate nele. Madeira irregular arranha minha bochecha, fazendo
o navio rir enquanto se acomoda na areia. Eu me afasto, passando
um dedo pela minha pele. Ele sai pingando sangue.
O navio venceu e sabe disso. Não me lembro da última vez que
algo me fez sangrar.
— Amora! — A voz do meu pai estala de horror. A raiva incha
na minha barriga enquanto encaro as mãos que me traíram.
Navio maldito. Tudo o que precisava fazer era ouvir.
— Pela lâmina de Cato, você está sangrando.
Esta noite, devo ser perfeita. Não há espaço para ferimentos
feios que sinalizem fraqueza.
— É apenas um arranhão. — Eu o afasto. — Mira será capaz de
cobrir.
A culpa atravessa nas rugas entre as sobrancelhas comprimidas
do meu pai. A visão disso faz a raiva rasgar minhas veias como
veneno. Não é culpa dele que eu esteja sangrando. Não é culpa
dele que eu não possa comandar nem um navio que não quer me
ouvir.
Pego o seu braço antes que ele possa dizer mais alguma coisa.
Descemos a ponte do Duquesa, para onde Mira espera na areia
da cor de sangue fresco, entre vários homens e mulheres rígidos
que vestem blazers leves com detalhes em ouro rosa. Ela usa
calças pretas largas e uma blusa combinando que ondula em seu
corpo pequeno, presa por pequenas alças de pérolas que brilham
sob seus cabelos - um fluxo espesso de ondas tão escuras e
elegantes quanto as penas de um corvo. A guarnição sólida de ouro
rosa ao longo de sua roupa combina com o emblema real que ela
usa com orgulho no peito; é o mesmo que os outros usam – o
esqueleto de uma enguia enrolada em uma coroa de osso de baleia.
Embora ela seja um pouco mais velha do que eu, o rosto afiado
de Mira está prematuramente enrugado pela ansiedade constante.
Nos seus cinco anos como minha dama de companhia, ela
aproveitou todos os momentos possíveis para me irritar, tão
protetora quanto meus pais. Quando vê minha bochecha, ela
engasga e me puxa para frente.
— Hoje entre todos os dias. — Ela tira um lenço do bolso e
esfrega na minha bochecha. A desaprovação feroz persiste nas
palpébras de seus olhos azuis apertados, e enquanto espero o
veredito, ela franze a testa. — A ferida está fresca, então podemos
escondê-la se agirmos rapidamente. Venha, vamos prepará-la.
Olho de volta para o meu pai, procurando o seu sorriso de
encorajamento. Mas ele fica franzido quando os oficiais o atraem,
sussurrando segredos não destinados a sucessores não
comprovados. Dou um passo em direção a ele, silenciosamente
implorando para que se vire e busque meu conselho ou me convide
para a discussão, mas Mira agarra minha mão.
— Você sabe que não lhe dirão nada. — Embora sua voz seja
suave, as palavras parecem garras. — Não até depois da sua
apresentação.
Afasto a mão de Mira, deixando o navio roubar minha atenção.
Sua madeira range de tanto rir quando se assenta na areia,
zombando de mim.
O som afunda nos meus ossos e me pergunto: se não posso
nem governar um navio, como estou pronta para governar um reino
inteiro?
CAPÍTULO DOIS

Ikaeans encantaram a luz das tochas, cobrindo o caminho lotado


embaixo da minha varanda em tons deslumbrantes de rosa, azuis e
roxos.
Centenas de visidianos escalam os penhascos íngremes da
praia até onde a celebração começa na parte inferior do palácio,
alguns deles usando caminhos pavimentados, enquanto os mais
aventureiros tecem dentro e fora dos eucaliptos arco-íris e sobem a
costa, engasgando com zombarias e respirações rápidas,
competindo uns com os outros. Um grupo de soldados de
Curmanan espera na costa para ajudar aqueles que não podem ou
preferem não fazer a escalada. Eles levantam crianças e famílias no
ar e sobem os penhascos do norte até onde a celebração aguarda.
Eles são hábeis o suficiente com sua magia de levitação, que vem
tão facilmente quanto suas respirações.
A batida constante dos tambores é mais intensa do que era
antes; cada uma delas enche meus ossos enquanto o oco som de
percussão enche meu peito. O ar pulsa com energia e risos, quente
com o cheiro de carne de porco ricamente temperada e ameixas
assadas.
Cada pessoa – jovem e velha – está fora hoje à noite. Quando
chegar a hora da minha apresentação, não haverá como me
esconder dos olhos de Visidia.
— Não é magnífico? — Yuriel pergunta. — É melhor do que o
teatro por aí, com todas aquelas modas e magias. Deveríamos
reunir o reino dessa maneira com mais frequência. — Meu primo se
senta no canto da minha cama de dossel, encostado contra um
edredom de penas de ganso enquanto apanha uma bandeja cheia
de sobremesas luxuosas. Sentado lá, ele parece quase um cisne,
cuidadoso para manter qualquer coisa que se pareça com chocolate
longe das penas de pavão rosa tingidas que compõem seu traje
excêntrico, mas bebendo profundamente de um copo de cristal de
vinho tinto de ameixa mesmo assim. Fico distraída com o brilho
surpreendente de seus olhos cor de lavanda e a bela maquiagem
rosa fluorescente que sai deles.
— Quando eu governar, reunirei o reino para muitas
celebrações. — Afasto-me da varanda e fecho as cortinas de veludo
atrás de mim. Dizer isso em voz alta aquece meu sangue, fazendo
minha pele formigar com antecipação por esta noite.
Em apenas algumas horas, tudo o que passei dezoito anos
trabalhando serão finalmente meus.
Meu título como herdeira de Visidia. A oportunidade de navegar
e ver meu reino. O direito de não apenas aprender seus segredos,
mas de comandá-lo.
— Fico feliz em ver que você está confiante — diz Yuriel entre
mordidas pegajosas de caramelo gelado. — Vou cobrá-la por isso.
Embora Yuriel e eu somos ambos Montaras, nossas
semelhanças terminam no sangue em nossas veias. Com um pai
que é pálido como a neve em pó, a pele do meu primo é várias
tonalidades mais claras que o meu próprio marrom cobre. E
enquanto meu cabelo é uma massa de cachos escuros, o dele,
como todas as coisas em Ikae, sua cidade natal, é extravagante. É o
tom mais forte de branco, puro mesmo nas raízes. Onde eu sou alta
e curvada com músculos, ele é macio e delicado - um garoto
propaganda de Ikae.
Mas nossa maior diferença é que, apesar de sua linhagem real,
Yuriel não pode aprender magia da alma. Ele desistiu de tentar
quando tinha cinco anos e acidentalmente usou magia de
encantamento para tornar o cabelo de tia Kalea verde fluorescente.
Embora ele fosse jovem demais para ser responsabilizado por
essa escolha, agora é um dever que tia Kalea e eu assumimos
sozinhas. Se eu não for considerada uma herdeira apta, meu povo
passará para ela; a única Montara remanescente que ainda
consegue reivindicar uma mágica.
Mas isso não vai acontecer. Ninguém na minha família jamais
falhou em sua apresentação, e dediquei muito da minha vida para
não ser a primeira.
— Amora? — Mira aparece na sala conectada. Suas íris são
brancas e vidradas; o olhar de um Curmanan usando a fala da
mente. — Seus pais estão prontos para você. — Ela pisca o azul de
volta em seus olhos. — Quando estiver pronta, Casem irá
acompanhá-la até eles.
Yuriel balança as sobrancelhas quando me viro para dar uma
olhada final em mim. O arranhão na minha bochecha é quase
imperceptível sob camadas de cremes e pós. Meu vestido de crepe
é feito para chamar a atenção – azul royal com um top apertado e
estruturado, bordado com finas espirais douradas que acentuam
minhas curvas e iluminam o calor da minha pele de cobre. É
apertado em todas as áreas que posso apreciar, e com meus
cachos castanhos escuros presos frouxamente na nuca, o efeito
criado é feroz.
Mira me oferece uma capa que parece ter sido encharcada de
safiras derretidas e polvilhada pela luz das estrelas. Ela a prende no
meu vestido, logo abaixo dos ombros, e minha respiração fica presa.
Brilha como o sol refletindo na água escura e mancha pontas dos
meus dedos com brilho enquanto as escovo pelo tecido macio.
— Você realmente se superou — digo a ela, pegando o sorriso
orgulhoso que tenta esconder.
— Ferrick é um homem de sorte — diz ela. — Você está bonita.
Minha felicidade se despedaça. Com o tempo que levou para
me encaixar nesse vestido, eu certamente deveria estar linda. E me
senti assim antes de Mira mencionar Ferrick.
— Obrigada — eu digo rapidamente, tentando apagar os
pensamentos do meu futuro noivo. — Estou pronta para ver meus
pais.
— Boa sorte! — Yuriel aplaude enquanto se serve outro copo de
vinho. Eu o deixo para trás no meu quarto; minhas botas estalando
contra o chão de mármore enquanto sigo Mira pela porta. Meu
guarda, Casem, espera com a cabeça encostada na parede.
Como um Valukan, Casem é capaz de manipular o ar ao seu
redor. Mas Casem prefere o armamento à magia, e raramente
pratica suas habilidades. Ele veste com orgulho o uniforme que
todos os guardas reais e soldados visidianos usam,
independentemente de qual ilha eles vieram: um blazer azul royal
marcante e uma capa de safira cintilante, com costuras prateadas
ao longo da revestimento. O emblema real da enguia esquelética
brilha intensamente em sua capa quando ele mergulha em um arco
ao nos avistar, embora seus pálidos olhos azuis permaneçam em
Mira por mais tempo do que em mim. Ele é como um favo de mel
ambulante, com sua pele bronzeada e cabelo loiro claro, e eu juro
que ele se derrete toda vez que olha para ela.
Talvez um dia eles tenham coragem de se beijar e acabar com
seu desejo constante.
— Vocês dois planejam curtir a celebração? — Eu pergunto
enquanto caminhamos, agradecida por ter alguém sóbrio para
conversar. — Ou meu pai os colocou em serviço?
O silêncio momentâneo deles é a resposta suficiente.
— Duvido que seja necessário. — Casem olha por cima do
ombro, sorrindo para nós. — Mas cuidar de você hoje à noite é um
privilégio. Embora, eu admito... o porco assado cheira como se
fosse cozido pelos deuses. Eu não me oporia se você conseguisse
guardar comida extra...
— Casem! — Mira engasga, mas o guarda ri e eu sorrio.
— Vou dizer à equipe da cozinha para deixar algo de lado —
asseguro-lhe quando subimos as escadas, meu coração disparando
enquanto nos aproximamos da sala do trono.
As colossais portas duplas olham para mim, uma presença
iminente que arrepia meus ossos. Faço uma pausa diante delas,
respirando fundo enquanto tomo um momento para me estabilizar.
Após dezoito anos de espera, isso está finalmente acontecendo.
Ornamentalmente esculpido com o mapa da terra que
comandamos, todo o reino de Visidia se desdobra através das
placas douradas, retratadas por uma coleção de ilhas incrustadas
de jóias cintilantes. Ilha da magia da alma e a capital do nosso reino,
Arida é representada por uma safira brilhante que fica
orgulhosamente no meio do mapa.
Minha pele esquenta enquanto eu passo meu dedo em minha
ilha natal, seguindo diretamente acima até a casa de Yuriel -
Mornute, marcado por rosa berila. Uma ilha luxuosa e rica, cheia de
habitantes elegantes que usam sua magia de encantamento para ter
cabelos roxos em um dia e rosa no seguinte. Mornute é conhecida
não apenas por sua mágica, mas também por suas exuberantes
vinhas nas montanhas. A ilha do encantamento produz e exporta a
maior parte do álcool de Visidia. Embora a cerveja seja deliciosa, o
vinho é de longe o meu favorito.
À esquerda fica a ilha natal de minha mãe e Casem, Valuka.
Marcado por um rubi, é onde a magia elementar é praticada.
Enquanto minha mãe escolheu que sua afinidade seja a água,
aqueles com magia Valuka podem escolher entre manejar terra,
fogo, água ou ar.
Abaixo de Valuka, há uma ilha mais ilusória para mim – Kerost,
a ilha da magia do tempo, retratada com uma ametista. Embora seja
impossível manipular o próprio tempo, aqueles com essa mágica
são capazes de mudar a maneira como os corpos interagem com o
tempo, diminuindo a velocidade ou acelerando a si mesmos. Temos
soldados e funcionários aqui no palácio que vêm de todas as ilhas,
mas já faz muito tempo desde que vi a mágica do tempo em ação.
Meu pai me contou histórias sobre quão cansativa essa magia pode
ser para seus usuários, e é por isso que é a mágica menos
praticada de Visidia.
À extrema direita de Arida, fica uma espessa pedra de
esmeralda que marca o centro de Suntosu, a ilha da magia da
restauração. Os curandeiros habilidosos costumam trabalhar para o
reino, onde são enviados para enfermarias por toda Visidia,
encarregados de cuidar dos doentes e feridos. Mas Suntosu
também é a casa de Ferrick, meu noivo, e por esse motivo eu
percorro rapidamente pela ilha, não querendo pensar em ter que
anunciar nosso noivado. Em vez disso, trago meu dedo para cima,
até o ônix que marca Curmana, o local de nascimento de muitos de
nossos funcionários reais, incluindo Mira. Penso nos Curmanans
que assisti mais cedo, ajudando outros a subir os penhascos.
Mas nem todos são hábeis em levitação; alguns, como Mira,
são talentosos falantes da mente, capazes de se comunicar
diretamente na mente de outra pessoa sem precisar usar os lábios.
Meu pai contratou vários deles para trabalhar com os conselheiros
de cada ilha, e a mágica deles é como nos comunicamos tão
rapidamente. Também é um ótimo recurso para as últimas fofocas
do reino.
Quando vou puxar minha mão, meu polegar passa por um
pequeno buraco no mapa, no extremo sul de Arida, e me inclino
para examinar o buraco que antes continha uma linda opala branca.
Zudoh. Uma ilha especializada em magia amaldiçoada, banida
do reino quando eu era criança. Não sei muito sobre a magia deles
– apenas que era usada para proteção. Eles poderiam criar
barreiras e encantos que, quando tocados, levariam as pessoas a
ver coisas estranhas. A ilha era conhecida principalmente por sua
infraestrutura avançada e madeira de engenharia única que se
prestava à produção de nossas casas e de nossos navios. Como a
ilha mais ao sul, seu clima é o mais frio de todos. Diz-se que os
invernos em Zudoh são rigorosos e cheios de neve e nevascas.
Não me lembro muito do banimento deles, aconteceu quando
eu tinha apenas sete anos de idade. É um assunto delicado de
conversas em todo o reino, frequentemente mencionado em
sussurros atrás de portas fechadas. Até mesmo meu pai não gosta
de discutir isso. Sempre que eu pressionava por detalhes, ele era
rápido em dar as costas e dizer que Zudoh não concordava com a
maneira como os Montaras governam, e que eles nunca o farão.
Além disso, tudo o que sei sobre o banimento de Zudoh foi obtido
mantendo um ouvido na rede de fofocas do reino.
Ouvi dizer que os conselheiros de Zudoh se voltaram contra
meu pai durante uma de suas visitas à ilha, e houve uma briga que
o deixou gravemente ferido. Lembro-me vagamente de um breve
período em que meu pai parou de me treinar e eu não tinha
permissão para vê-lo. Naquela época, assumi que ele estava
ocupado; apenas anos depois eu liguei os pontos.
É irritante, esperam que um dia eu governe este reino, mas
ainda assim me tratam como uma criança por manterem tantas
informações em segredo "até que eu esteja pronta".
É por isso que estou ansiosa para hoje à noite, mais do que
qualquer coisa. No momento em que minha apresentação terminar e
eu for oficialmente reconhecida como herdeira do trono, exigirei
saber tudo o que há para saber sobre o meu reino. Não vou mais
me perguntar. Meu pai não será mais capaz de me manter
escondida em Arida, me dizendo para continuar praticando minha
magia. Ele terá que me tratar com o respeito que a futura rainha
merece. Eu posso ser uma das poucas herdeiras possíveis, mas eu
não sou a coisa frágil e quebrável que ele acredita que eu seja.
— Amora? — A voz de Mira me chama de volta.
Dois guardas do palácio ladeiam meus lados, cada um com a
mão apoiada nas maçanetas grossas da porta, esperando.
Eu respiro. — Abram.
As portas trazem uma onda de ar quando se separam, deixando
alguns fios soltos de cachos livres de suas bobinas em meu
pescoço e nos meus olhos. Meu peito fica apertado quando minha
respiração acelera. Olho de relance para Casem e Mira, que estão
de joelhos, com a cabeça baixa, e entro.
As portas se fecham atrás de mim.
Não há necessidade de luz na sala do trono. Tochas e o brilho
das estrelas esgueiram-se pela parede traseira aberta e inundam o
espaço cavernoso. Como em qualquer outro lugar dentro do palácio,
o chão é de mármore branco, embora aqui esteja parcialmente
coberto por um grosso tapete de safira, enfeitado com detalhes
dourados. Na extremidade, três tronos feitos de pérolas e ossos de
baleia estão no topo de seis degraus de mármore preto.
Em breve haverá quatro cadeiras. Uma vez casada, Ferrick
sentará ao meu lado toda vez que eu reunir o conselho.
Minhas mãos suam, mas não há tempo para me demorar na
quarta cadeira invisível. Meus pais estão diante dos dois tronos da
frente; a varanda panorâmica exposta com vista para Arida se
espalha atrás deles. A luz da tocha encantada ilumina seus perfis e
transforma seus sorrisos brilhantes em luas radiantes em miniatura.
— Amora. — Meu pai fala primeiro. — Você está linda. — Há
uma mesa atrás dele, embora eu não possa ver o que está nela.
A realidade do que está prestes a acontecer transforma minhas
pernas em pedra. Trêmula, forço-as a avançar, passo a passo.
Pilares de mármore se erguem ao meu lado - há mais quatro entre
meus pais e eu. Eu conto cada um enquanto me movo.
Um.
Mais uma hora até eu provar a Visidia que devo ser a herdeira
deles.
Dois.
Mais duas horas até eu ficar noiva de um homem que nunca
vou amar.
Três.
Mais três horas até eu dar o comando de preparar um navio
para zarpar amanhã, e exigir saber todos os segredos sobre esse
reino que já foram escondidos de mim.
Quatro.
Finalmente o nervoso vem, cavando em mim. Me fazendo suar.
No final da escada, eu me curvo e meu pai ri.
— Venha, Amora — diz ele. — Venha se sentar.
Engulo um nó na garganta e subo os degraus rapidamente
enquanto começo a andar em direção à minha cadeira – a de trás.
Minha mãe agarra meus ombros e me vira.
— Essa não — ela sussurra, apontando-me para a maior
cadeira – a que pertence ao Alto Animancer.
Meu coração é um monstro que se enfurece contra a minha
caixa torácica quando meu pai segura meu braço e me guia para
seu assento.
A sala parece enorme vista daqui. Não há estrelas deste ângulo,
nem janelas para a ilha. Somos apenas eu e um espaço vazio que
parece grande demais.
— Um dia, quando os deuses levarem minha alma ou a ilha não
me achar mais apto a governar, é aqui que você ficará sentada.
Você governará este reino, como os deuses a criaram para fazer. —
A voz de meu pai é distante; meus batimentos cardíacos
estrondosos latejam nos meus ouvidos, mais alto que suas palavras.
— Eu conheço sua magia, seu controle e sua força. Nos últimos
dezoito anos, observei crescer dentro de você todos os dias e não
podia estar mais orgulhoso. O poder de Arida é forte dentro do seu
sangue, e ainda assim você o conquistou. Agora é hora de provar
isso ao nosso povo. Mostre a eles que quando meu tempo acabar,
eles poderão depositar sua confiança em você. — Ele se aproxima,
desenhando duas dragonas elegantemente cruéis da mesa.
As peças ornamentais dos ombros são assustadoramente altas,
incrustadas com grossas pedras preciosas para representar as
várias ilhas de Visidia, e formam picos irregulares e perigosos que
certamente cortarão minha própria bochecha se eu me virar muito
rápido.
O desejo aumenta, quase me sufocando. Eu nunca percebi o
quão leves meus ombros eram até este momento.
— Amora, você jura aceitar essa posição que os deuses lhe
ofereceram, usando sua magia com honestidade e julgamentos
justos? — Ele pergunta enquanto prende a primeira.
— Eu juro. — Agarro os braços da cadeira para me firmar.
— Você jura defender as leis da magia da alma, sabendo que
toda vez que a exerce, deve ser com um propósito? — Meu pai
prende a segunda dragona.
— Eu juro.
Ele recua um passo para me olhar. — E, o mais importante,
você jura sua dedicação em proteger o povo de Visidia, mantendo
essa mágica durante toda a sua vida? Mesmo sabendo das
consequências?
Olho para ele com firmeza, com o queixo erguido. — Eu juro.
Seus olhos brilham quando a luz da tocha os pega. — Então
seu treinamento termina aqui e você pode ser Animancer ao nascer
do sol. Você tem minha benção.
As pedras roçam meu pescoço e orelhas, forçando arrepios na
minha pele. Quando tremo, mamãe pressiona a mão no meu braço,
sua presença me estabilizando.
— Feliz aniversário, meu amor. Estamos orgulhosos de você. —
Sua linda pele marrom brilha tão radiante quanto as falésias à beira-
mar ao nascer do sol, a quente sombra âmbar quase uma
combinação perfeita da minha. Seus cachos ruivos escovados são
volumosos embaixo da sua elegante coroa – uma série de conchas
e corais brilhantes, com várias estrelas do mar secas tecidas e
incrustadas com delicadas pedras preciosas de safira. Combina com
seu vestido azul royal, solto e aparentemente discreto, mas tecido
com detalhes ricos. Uma linha vermelha rubi reveste sua capa e a
marca como alguém originalmente de Valuka, e um punhado de
minúsculos diamantes são espalhados por seu corpete. Suas jóias
são o que realmente cintilam – brincos gordos de pérola e diamante,
rubis e safiras brilhantes que adornam a gola do vestido enquanto
ela se espalha pelo pescoço e anéis finos que fazem seus dedos
cintilarem enquanto ela se move.
Algo em sua outra mão capta a luz e brilha. Quando me percebe
olhando, ela sorri e abre a palma da mão.
— Isso pertencia à sua avó — diz ela, balançando um colar na
ponta dos dedos. A corrente é de ouro maciço. Ela serpenteia em
torno de uma safira pesada que paira no meio, com gotas de
diamantes penduradas sob ela. É uma das coisas mais bonitas que
já vi. — Ela me confiou quando você era criança. Essas jóias são
dignas da futura rainha de Visidia.
Antes que eu saiba o que está acontecendo, o colar está preso
no meu pescoço. Minha mãe beija minha têmpora, mas meus pais
ainda não terminaram.
Quando meu pai tira uma coroa de trás do trono, toda a
respiração do meu corpo escapa.
O capacete gigante foi construído a partir de ossos de baleia e
banhada em marfim. Dezesseis pilares ósseos saltam da base e
sobressaem pelo menos um pé e meio no ar. São afiados como
pingentes de gelo, prontos para empalar, e são suavizados apenas
pelas indulgentes flores brancas e azuis que mamãe enfia atrás da
minha orelha e tece nos ossos.
Se há uma coisa que tenho certeza sobre esta noite, é que
estou destinada a usar essa coroa.
Quando eu me apresentar hoje, não haverá dúvida de que serei
a futura Animancer de Visidia, depois que o tempo do pai tiver
passado. Quando meu povo me vir hoje à noite, eles saberão, assim
como eu.
Levanto-me e abraço minha mãe primeiro, depois meu pai.
Ambos me seguram com força, mas tomam cuidado para não bater
na coroa ou cortar suas bochechas nas minhas dragonas afiadas.
— Faça uma ótima apresentação lá fora. — Minha mãe ajusta
as flores no meu cabelo, dando-me uma última olhada antes de
sorrir em aprovação.
— Mostre ao nosso povo que o poder dos Montaras é forte —
diz o pai.
— Eu farei mais do que isso. — Eu traço meu dedo ao longo da
minha coroa, minha respiração mais fácil e meus músculos
relaxando a cada segundo que passa. — Vou mostrar a eles que eu
sou forte.
Com o peso confortável da bolsa nos quadris, estou pronta.
Meu pai abraça meu ombro gentilmente, apenas uma vez, e
oferece a mão para a mãe.
Está na hora.
CAPÍTULO TRÊS

Todas as cabeças se viram enquanto Casem me acompanha do


palácio até o meio da celebração. Vinhas pesadas, emaranhadas
com flores cor-de-rosa brilhantes estão penduradas ao lado do
penhasco, roçando meus ombros e tentando serpentear em volta da
minha coroa enquanto escalamos a encosta da montanha, onde
realizarei minha cerimônia ainda esta noite.
Casem me leva através de um mar de pessoas que se separam
quando passamos, sem me deixar ficar em qualquer lugar por muito
tempo. Enquanto caminhamos, ele respira profundamente e geme.
— Pelo sangue de Cato, desejo que meus aniversários cheirem tão
bem.
Dezenas de vendedores estão empoleirados no caminho da
montanha, oferecendo tudo o que poderia imaginar e muito mais -
carne de porco assada, bolos de mel úmidos, pudim de banana e
doces ricos de Ikae, peixe cru e fatias de manga com cobertura de
açúcar, frango, frutas, tudo. Existem até mesmo alguns que vendem
coroas de brinquedo ou sabres incrustados com pedras de safira
ousadas.
Duas mulheres aridianas se posicionam perto dos barris de
vinho, rindo ruidosamente enquanto um guarda real tenta conduzi-
las para longe e então para as barracas de comida. Uma delas
afasta as mãos do guarda com outra risada quase contagiosa. Atrás
deles, tochas rosa e azuis iluminam a noite, brilhando com a magia
do encantamento de Mornute. Elas iluminam as figuras de artistas e
civis que dançam e cantam ao ritmo da bateria, alegres e
despreocupados. Risos revestidos de vinho borbulham no ar e se
sobrepõem à música. Na praia abaixo, outros ainda estão chegando
em seus navios, pegando comida e cumprimentando-se
alegremente antes de começarem a subir.
— É a princesa! — O sussurro agudo de uma garota Valukan
chama minha atenção. Ela olha para minha coroa com uma
mandíbula frouxa, e aqueles que a cercam não são diferentes.
Observam meus adornos antes de se lembrarem e se curvarem.
Diante deles, mantenho meu pescoço alto, apesar do peso da
minha coroa, e meus ombros para trás, mesmo quando as dragonas
lutam contra mim. Embora parte de mim queira afastar suas
formalidades, a verdade é que eu as desejo. Ver meu povo
mergulhado em respeitosos laços, endireita ainda mais os meus
ombros enquanto meu peito se enche de orgulho.
Durante toda a minha vida treinei para proteger essas pessoas,
e agora elas finalmente verão o quão capaz eu sou.
Enquanto atravesso a multidão, a maioria dos visidianos se
afasta nervosamente, olhando a coroa e as dragonas com
reverência, enquanto outros correm para me cumprimentar com os
apertos de mão oferecidos. Embora reconheço os rostos de alguns,
centenas de estrangeiros se reuniram em minha casa para ver sua
princesa garantir seu título de Animancer de Arida. Eles vestem as
cores de suas ilhas de origem, criando um mar de vários tons e
modas.
Como Yuriel, os cidadãos de Mornute estão enfeitados de penas
– a atual tendência da moda. Uma mulher encantou seu vestido
para parecer uma única pena de cisne, com um fino brilho que
ondula na cintura até que se desdobra em torno dela. O homem ao
seu lado tem uma maquiagem azul vibrante que sai do fundo de
seus olhos. Ele usa uma capa de pêssego com ombreiras de penas
que brotam do pescoço. A cada poucos passos que dá, a capa
brilha com a imagem passageira de um flamingo voando sobre ela.
Os filhos de Valuka estão vestidos de maneira mais simples,
usando xales soltos e lindas saias ou calças de linho – roupas leves
que liberam seus movimentos. Eles brincam em torno de uma das
tochas, roubando sua chama e jogando-a para frente e para trás.
Uma garotinha loira perde o controle da chama e queima a ponta do
xale de rubi. Sua mãe vê o que está acontecendo e golpeia a mão
da menina. Ela afasta as crianças da chama e a acende com um
aceno de sua palma.
Mágica em uma quantidade que nunca vi antes está
acontecendo ao meu redor, e eu desejo isso. Uma mulher com uma
pele marrom-violeta e um rosto macio emoldurado por cachos
parecidos com nuvens veste uma capa de esmeralda de Suntosan,
enquanto usa sua mágica para curar a criança Valuka ferida pelo
fogo. Atrás dela, um homem de Curmanan de túnica preta flutua
dois copos de vinho ao seu lado e carrega pratos cheios de comida
para sua família.
No meio dessas pessoas, crianças e seus pais se reúnem para
assistir a um show de marionetes, uma das dezenas de
apresentações de rua que acontecem hoje à noite.
— Venha um! — Uma voz vibra dramaticamente por trás do
tenda.
— Venham todos! — Uma multidão de crianças responde
automaticamente, observando com um olhar esbugalhado.
Somente após a resposta deles o narrador continua. — Venham
se reunir para ouvir a história dos grandes Montaras –
conquistadores de magia, protetores do reino!
Os pais puxam as crianças para o colo, e me pergunto se elas
acham essa exibição tão maravilhosamente exagerada quanto eu.
Pego a manga de Casem quando as cortinas de veludo escuro
da tenda se abrem para o início de um show e o puxo de volta para
as sombras para assistir.
— Sério? — Ele pergunta, suspirando enquanto o silencio.
— Era uma vez — o narrador sussurra — um monstro cruel que
tentou destruir Arida com sua magia. — As luzes piscam na tenda
quando um dos artistas levanta a mão – está coberta por um boneco
feito de uma forma grosseira para se parecer com um monstro. —
Este animal era cruel e procurava corromper aqueles com múltiplas
magias. Naquela época, ninguém sabia dos perigos disso. Eles
estavam exaurindo seus corpos, levando a mortes lentas e
dolorosas à medida que o excesso de magia os consumia.
— A mágica tem um jeito de tornar uma pessoa gananciosa —
continua ele. — Quanto mais alguém tem, mais eles tendem a
querer. A fera atacou essa ganância oferecendo a outros a chance
de aprender sua magia – a magia mais poderosa que o mundo já
viu, ela havia afirmado. As pessoas aproveitaram a oportunidade,
nunca esperando o que o monstro realmente queria delas: suas
almas!
Suspiros soam da platéia e, ao meu lado, Casem abafa uma
risada. Eu cutuco seu cotovelo, parando-o antes que alguém
perceba.
Para Casem e os espectadores, essa é simplesmente outro
conto antigo de nossa história com a qual crescemos. Para mim,
este é o meu sangue. Minha descendência.
—… a mágica era uma coisa perigosa, perversa — continua o
narrador. — Hoje, chamamos isso de magia da alma. Ligou-se à
alma após a alma gananciosa daqueles que possuíam múltiplas
magias, matando-as! E mesmo com metade da população de Arida
destruída, a fera não estava contente. À medida que sua fome
aumentava, ela procurava espalhar sua praga. — A besta persegue
uma série de bonecos gritando pelo pequeno palco antes de engoli-
los. Casem pressiona os lábios com força, forçando um sorriso. Eu
deixei que tivesse esse.
— Quando toda a esperança parecia perdida — continua a
história — uma pessoa se posicionou contra o monstro – Cato
Montara! — Um boneco de aparência real do meu grande ancestral
pula no palco, animando crianças e adultos. Muitos deles levantam
réplicas falsas da faca esfoladora de Cato e aplaudem.
— Cato ainda não havia estabelecido a monarquia; era apenas
um homem humilde e sem magia que procurava proteger as
pessoas que amava. Ele fez um acordo com a besta – se pudesse
convencer todos a se contentarem em praticar apenas uma mágica
para sempre, então a besta teria que dar a Cato sua mágica e
deixar Arida em paz. O animal riu na cara dele e concordou, pois
acreditava que as pessoas eram gananciosas demais para tais
termos. Não esperava que Cato pudesse convencer os outros a
parar de praticar todas, exceto uma de suas magias – e mesmo
assim ele o fez.
— Cato então venceu a fera com nada além de uma única faca
de esfolar, e por causa de seu acordo, sua magia estava
eternamente ligada à linhagem de Montara! — As crianças ofegam
admiradas, olhando suas facas de brinquedo.
A voz do narrador aumenta dramaticamente. — Mas se
voltássemos em nossos caminhos, a fera poderia um dia voltar.
Então, para proteger nosso povo de ser tentado por várias mágicas
novamente, Cato decidiu que as pessoas escolhem apenas um tipo
de magia para praticar e vão morar na ilha que agora representaria
essa mágica. Ele ficou em Arida, com aqueles que escolheu como
conselheiros de cada ilha, e criou o reino. O rei Cato fez de Visidia o
que é agora, mas — o narrador abaixa a voz em advertência — não
somos os únicos responsáveis por manter a fera afastada. Os
Montaras nos protegem, mantendo-o trancado em seu sangue. Se
alguma vez se libertar dos Montaras, buscará vingança em todos a
Visidia. Destruirá cada uma de nossas almas.
As crianças começam a mudar de preocupação, e a voz do
narrador volta novamente, perfeitamente sincronizada. — Mas não
temas; contanto que não violemos nosso voto de praticar apenas
uma mágica, e tenhamos um Animancer que seja forte o suficiente
para manter o poder da besta e dominar sua mágica, Visidia
permanecerá para sempre em segurança.
Orgulho aquece minha pele se arrepiando. É um show incrível,
projetado perfeitamente para introduzir a apresentação que estou
prestes a dar. Estou tão entretida que pulo quando um garotinho
grita da platéia: — Se a mágica é tão perigosa, por que os Montaras
ainda a praticam? — Ele ganha um shhh forte de uma mulher que,
suponho, é a mãe dele. Outros oferecem alguns risos silenciosos.
O narrador está preparado para a pergunta. Sua voz é tímida e
suave como melaço. — Não é tão simples. Magia é uma coisa
estranha, meu garoto; não é algo que apenas desaparece quando
negligenciado. E a magia aridiana é particularmente perigosa, pois a
besta que a deu aos Montaras está constantemente lutando pelo
controle da alma de seu usuário. A magia deve ser usada e
exaurida, caso contrário, ela apodrecerá e crescerá até que a besta
se torne forte o suficiente para assumir o controle.
— Quando o rei Cato a trancou dentro da linhagem de Montara
— continua o narrador — ele fez a missão de sua família dominar e
conter a besta, aqueles que recebem o título de Animancer – um
mestre de almas. Essa é a razão pela qual nos reunimos aqui esta
noite, para assistir a princesa Amora concretizar sua posição como
herdeira de Visidia, provando ser capaz de se tornar Animancer.
Que ela um dia governe, assim como seu pai, o rei Audric.
Nervosimo enche meu peito. Pego o braço de Casem para
puxá-lo para longe antes que alguém nos note, mas um bufo da
multidão me interrompe.
— Certo, porque outro governante preguiçoso é realmente o
que precisamos.
Meu aperto no braço de Casem afrouxa.
Um soprano frívolo responde com uma risada. — Preguiçoso?
Por favor, você está balbuciando como um torcedor sem noção do
Kaven. As ilhas estão prosperando.”
— Talvez a sua ilha esteja prosperando. Mas quase ninguém
está visitando Valuka desde que as fontes termais secaram. Sem
mencionar Kerost, que mal consegue se manter flutuando.
Vários guardas do palácio estão por perto, com os olhos
brilhando de curiosidade. Eles não fazem nenhum movimento para
parar a calúnia.
Da minha posição atrás deles, aqueles que assistem à
performance não me notam até eu dar um passo à frente para me
apresentar: — Desculpe-me? — O silêncio prende as conversas,
uma a uma, os rostos se voltam para mim horrorizados. Os guardas
se endireitam de uma vez. — A que governante preguiçoso você
está se referindo?
Eles olham para a minha coroa. Nas dragonas. Mas seus olhos
estão perdendo a mesma admiração que notei anteriormente. O
medo ocupa seu lugar.
— Nós devemos ir. — Casem segura meu braço e me afasta da
platéia. Eu deixo.
— Do que aquela mulher estava falando? — Meu sangue
queima, aquecendo meus ouvidos e pescoço com aborrecimento.
Quem é o Kaven? O que eles queriam dizer com Kerost mal
conseguir flutuar?
Casem me acena com um toque de sua mão. — Eu não me
importaria com isso. Claramente ela não tem ideia do que está
falando.
— Mas é como se eles tivessem medo de mim. E os guardas do
palácio simplesmente ficaram parados lá!
A testa dele enruga. — Amora, você está usando uma coroa de
ossos e facas para ombreiras. Não interprete o respeito deles como
medo. E o que você esperaria que os guardas fizessem? Até os
tolos podem falar livremente.
Mas as palavras não me acalmam; há algo mais. — Eu deveria
falar com meu pai.
Os lábios de Casem pressionam em uma linha fina. — Você
deveria estar relaxando. Se você ficar muito agitada antes da
cerimônia, ficará com toda sua magia irritada...
— Isso não é um debate — eu respondo. — Eu preciso falar
com ele. Não me faça lutar com você, Casem.
Os olhos de Casem caem na minha bolsa, depois na adaga ao
meu lado. Treinei com Casem e seu pai, o mestre em armas de
nossos soldados, desde criança. Mamãe e papai insistiram que eu
aprendesse a me proteger, então Casem é meu parceiro de treino
há anos. Mas ele prefere o arco, e posso contar com uma mão as
vezes que ele me derrotou com uma espada.
— Tudo bem — ele bufa, suavizando com um longo suspiro. —
Mas o rei não vai ficar feliz.

Encontramos meu pai perto do topo da montanha, em uma área


isolada perto da orla do jardim, com conselheiros de toda a Visidia
reunidos em volta dele. Apesar das bebidas que vários deles
tomam, são tudo menos joviais. Quando passo pelos guardas, vejo
seus corpos tensos e suas expressões sérias.
O pai de Casem, Olin Liley, está entre eles em um paletó de
safira impecável com detalhes dourados. O conselheiro aridiano da
realeza se endireita quando o filho se aproxima, estreitando os olhos
naquilo que só posso adivinhar que seja um aviso.
Casem estava certo - o pai não parece feliz. Mas há um jovem
diante dele que parece ainda mais irritado.
O conselheiro é mais jovem que os outros, com vinte e poucos
anos, no máximo. Suas roupas são caras – uma calça fina de um
cáqui macio, uma camisa de linho sem rugas e botas de couro que
quase atingem seu joelho. Seu paletó é de um tom brilhante de um
rubi e, quando as abotoaduras captam a luz, vejo que estão
gravadas com o emblema real. O acabamento que reveste
finamente o casaco é de um ouro brilhante – é um representante
real de Valuka, então.
— Precisamos descobrir uma maneira de impedir isso,—
argumenta ele, com o rosto enrugado como se estivesse
completamente exasperado. — Por favor, apenas me escute, certo?
Todos podem acreditar no que querem sobre Kerost, mas Kaven
não vai parar até que ele...
— Kaven não passa de conversa. — A dura dispersão de meu
pai faz com que os valukanos se arrepiem. Mas antes que ele possa
dizer mais alguma coisa, Olin coloca a mão no ombro dele.
— Temos companhia, Vossa Majestade. — Ele acena para mim
e as sobrancelhas do meu pai levantam de surpresa quando se vira.
— Quem é Kaven? — Eu exijo. Os conselheiros voltam a
atenção quando eu passo em frente. Seu foco se volta para meu
pai, cuja expressão feroz é amplificada dez vezes sob a coroa. Não
é tão alta quanto a minha, mas é incrível – um esqueleto revestido
de marfim de uma enguia Valuna. É uma criatura do fundo do mar
das lendas; uma fera de um metro e meio de comprimento com
fileiras de dentes afiados como um punhal – cada um do tamanho
do meu dedo indicador – que, segundo os boatos, nossos ancestrais
lutaram quase um século atrás. Sua boca é tão grande que o rosto
do pai fica dentro dela. O maxilar superior se curva em volta da
cabeça e a metade inferior fica embaixo do queixo do pai, como se o
comesse. A espinha incrustada de jóias da enguia se estende por
suas costas e se curva para cima no cóccix dele.
Eu me pergunto se pareço tão aterrorizante na minha coroa
quanto ele na dele.
— Você não deveria estar aqui, Alteza — responde Olin. —
Deveria estar nos jardins, se preparando para a sua apresentação.
— Sua atenção se volta para Casem, que murcha atrás de mim.
— E eu estarei, assim que alguém me diga o que está
acontecendo. — Olho ao redor e para o conselheiro Valukano que
agora está de pé atrás de papai. Ele disse algo sobre Kerost, e
quando olho os representantes ao seu redor, há uma cor em
particular que não vejo: ametista.
— Onde estão os Kers? — Meu peito aperta quando a
expressão plácida do pai desliza. Quanto mais olho em volta, mais
surpreendente é a ausência deles. Não é apenas um representante
do Kerost que está desaparecido. Em toda a emoção da noite, eu
não tinha notado que uma ilha inteira do meu povo estava
desaparecida. — Eles estão bem?
— Eles estão bem — diz o pai, ao mesmo tempo em que o
conselheiro de Valukan diz: — Estão se revoltando contra Visidia.
Meu pai geme, virando por cima do ombro para encarar o
Valukan. O jovem olha de volta para ele, enquanto os conselheiros
ao redor se mexem desconfortavelmente.
— Estou tentando ajudá-lo — pressiona o consultor. — O
mínimo que você pode fazer é me ouvir...
— Vocês todos estão dispensados. — A raiva na voz estridente
do pai faz o conselheiro recuar. Ele abre a boca como se quisesse
protestar, mas fechou-a quando seus olhos castanhos encontraram
os meus. Tento não olhar de volta quando meu pai diz: — Gostaria
de um momento a sós com minha filha.
Olin e os outros se curvam antes de empurrar o ombro do
garoto Valukano para fazê-lo se mover. — Bem! Mas não diga que
eu não avisei! — Ele rosna algumas palavras bem escolhidas,
enquanto o resto dos conselheiros se desculpa por sua ignorância e
afasta os valukanos.
Eventualmente, apenas Casem permanece, embora ele se
afaste para um ponto a alguns metros de distância, fora do alcance
imediato da audição.
— Estranho que eu não o tenha conhecido antes — digo a meu
pai. — Eu poderia jurar que conhecia todos os conselheiros.
Ele resmunga. — Lorde Bargas estava aparentemente doente
demais para fazer a viagem e enviou seu filho em seu lugar. Menino
encantador aquele. Invadiu aqui e exigiu uma reunião como se ele
fosse o rei.
Embora eu não queira, a clara irritação do pai pelo valukano me
faz rir. Isso alivia a tensão em seus ombros e limpa um pouco o ar
entre nós.
— Eu não sabia que lorde Bargas tinha um filho — digo, embora
o conselheiro certamente parecesse o filho do representante
principal de Valuka – pele marrom suave, mandíbula quadrada forte
e um nariz quase irritantemente reto. Ele também tinha um porte
semelhante ao barão. Um pouco atarracado, com ombros e braços
largos e musculosos nos quais o resto do corpo não tinha crescido,
o olhar arrogante de alguém com riqueza para exibir. — O que ele
quis dizer quando disse que os Kers estavam se revoltando?
— Ninguém está se revoltando. Os Kers estão apenas tentando
fazer uma declaração; não é nada com que você precise se
preocupar.
— Então me diga o que eles estão protestando — eu
argumento, incitando um tique na mandíbula do pai. — Certamente
é alguma coisa, se estão tentando fazer uma declaração.
— Pela lâmina de Cato, você é tão teimosa quanto seu velho. —
Ele dá um passo à frente e é impossível determinar se é a raiva que
ilumina seus olhos. Eu me firmo, preparada para discutir, mas ele
coloca a mão na minha cabeça, pouco antes da minha coroa, e o
fogo dentro de mim se esvai.
— Eles querem algo que eu não posso lhes dar. — A voz do pai
diminui do poderoso barítono que ele usou com os conselheiros
para a voz suave e quieta que ele usa em casa. — Kerost sempre
foi atormentado por tempestades cruéis. É por isso que
empregamos grupos de valukans com afinidade com a água para
morar lá, para ajudar a acalmar as marés e impedir que as
tempestades destruam a ilha. Mas os Kers não gostam de ser
dependentes. Algumas temporadas atrás, comecei a receber relatos
dos Kers subornando os Valukans para treinamento. Eles queriam
que os valukans lhes mostrassem como controlar a água.
Suas palavras arrancam o ar dos meus pulmões. — Eles
queriam aprender várias magias? Mas isso é suicídio!
Papai grunhe, tirando a mão da minha cabeça. — Se um
número suficiente de pessoas praticasse várias magias, nosso
domínio sobre a fera cairia. As almas seriam arruinadas, e a fera
correria desenfreada. Por isso tive que remover os valukans de
Kerost, para acabar com a tentação. Infelizmente, eles foram vítimas
de uma forte tempestade no início da temporada passada. E sem a
ajuda dos valukans, destruiu parte da ilha deles.
É como se mil sanguessugas sugassem o sangue das minhas
veias, me deixando fria e enjoada.
— E os Suntosans? — Eu pressiono. — Você pelo menos
manteve curandeiros lá para ajudá-los?
— Eu tive que removê-los da situação também — diz ele, e fico
feliz em ver que há pelo menos uma pitada de vergonha
avermelhando suas bochechas. — Era para ser apenas até que
concordassem em parar de tentar aprender várias magias. Mas
então a tempestade aconteceu, e o momento foi... infeliz.
Como ele pôde esconder isso de mim? Não apenas ele, mas
Mira também. Sendo alguém tão antenada a todas as notícias do
reino, certamente ela saberia.
Eu devo ser o governante deste reino e pretendo ser grandiosa.
Mas como posso proteger Visidia se nem sei o que está
acontecendo aqui?
— Eu precisava garantir que você não perdesse o foco — diz
meu pai, como se estivesse lendo meus pensamentos. — Lembre-
se, Amora, até você ou Yuriel ter filhos, é apenas um dos dois
possíveis herdeiros que restam para o trono. No momento, a coisa
mais importante que pode fazer por esse reino é se sair bem hoje à
noite e reivindicar esse título.
Fecho os olhos com força quando a frustração cresce dentro de
mim, tentando reprimi-lo o suficiente para ver a situação claramente.
Eu sei que hoje à noite é importante. E faz sentido que os Kers
estejam com raiva. Mas se o pai deixasse que pratiquem múltiplas
magias, o acordo de Cato com a besta seria anulado e o reino
cairia.
No entanto, sem a ajuda dos valukans, as casas dos Kers estão
sendo destruídas. Também não podemos deixar isso acontecer.
— Precisamos de outra maneira de ajudá-los — eu digo. —
Podemos fortalecer sua compreensão dos perigos potenciais da
prática de múltiplas magias, mas também devemos fornecer
materiais mais fortes para seus prédios e ajudá-los a reparar. Não
vamos tirar sua única fonte de proteção.
Ele coloca a mão no meu ombro. — E eu não pretendo. Mas,
como rei de Visidia, tenho que proteger todo o nosso povo. Ao
manter os Valukans lá, houve uma sentença de morte em nosso
reino. Mas confie que estamos tentando, Amora. Confie que eu vou
consertar isso.
É claro que quero confiar que o pai fará as coisas certas, mas o
que não entendo é por que ele ainda não está em Kerost, ajudando-
os a se reconstruir. Se a tempestade foi na última temporada, por
que ainda estamos tentando descobrir isso?
— Onde Kaven se encaixa nisso? — Minha cabeça fica mais
grossa a cada segundo. Como eu tenho sido tão ignorante? Como
todos conseguiram esconder isso de mim?
Claramente desejando que a discussão terminasse, o suspiro
do meu pai é longo e irritado. — Ele é um homem que não concorda
com algumas das decisões que tomei — responde categoricamente.
— Mas ninguém pode concordar com tudo que faço, pode? Ele não
é uma ameaça para nós. Agora acalme seus pensamentos. Tudo
ficará bem por mais uma noite.
Pensando no rosto zangado do Valukan, não tenho certeza se
acredito na sua fácil demissão. Quero discutir com o pai e dizer que
mereço saber mais, mas quando abro a boca, tia Kalea vem subindo
a colina com um sorriso. Minha tia não espera permissão para se
aproximar, nem sequer para pra pensar por um momento que ela
pode estar interrompendo algo importante. Despreocupadamente,
apenas evitando minhas dragonas, ela joga os braços em volta de
mim com uma risada calorosa.
— Oh, minha linda garota! Que visão você é! Enquanto se
afasta, ela bate no pai levemente no ombro. — Como um idiota
como você conseguiu criar uma mulher tão radiante, Audric? Ela
está deslumbrante!
Meu pai ri. — Ela recebe todo o seu charme de Keira. Receio
que tudo o que ela receba de mim seja teimosia.
— E seu senso de aventura — acrescento, o que o deixa quieto,
seus olhos suavizando. É um momento estranho e lento, onde ele
passa os olhos por mim e depois para a coroa, como se me visse
nela pela primeira vez. Quando ele sorri de novo, está quente de
orgulho e isso aquece meu sangue.
— E meu senso de aventura. — Ele se vira para a irmã e dá um
tapinha no ombro dela. — Se você me der licença, devo encontrar
minha esposa antes da cerimônia, mas traga Jordi e Yuriel e nós
celebraremos com um pouco de vinho depois. Tenho três barris
reservados apenas para nós. Ele sorri, parecendo o irmão mais
velho e bobo que eu só o vejo quando minha tia está por perto.
— E Amora — adiciona calmamente. Me viro, quase recuando
quando ele inclina a cabeça para mim. — Eu te amo. Vai se lembrar
disso depois desta noite, não vai? Quando você for oficialmente
herdeira e partir para todas essas suas grandes aventuras.
— Não fique todo sentimental comigo agora — digo a ele,
tentando esconder meu constrangimento. — Eu também te amo.
Seu sorriso é suave quando ele se inclina para beijar minha
testa. Os dentes da coroa de enguia roçam minha bochecha.
E então ele se foi, deixando minha tia em seu lugar.
Ela está adorável em seu vestido azul suave. É um vestido de
festa – uma mistura de safira de Arida e tons suaves de Mornute.
Diz que ela entende que suas raízes estão com Arida, mas que não
é mais sua casa. É uma mulher pequena, com pele parecida com a
do pai, profundamente bronzeada e escovada com ouro por tanto
tempo passado ao sol. É gorda e jovem, com apenas as rugas
suaves ao redor dos olhos sugerindo sua idade.
— Estou tão feliz por ter te encontrado antes da apresentação
— diz tia Kalea. — Como você está se sentindo?
Desde que me lembro, as mãos da tia Kalea sempre foram as
mais macias e quentes que já conheci. Ela as coloca em volta dos
meus braços, me segurando perto para que possa me inspecionar
com olhos derretidos. São os mesmos olhos que os do pai, mas
significativamente menos severos. E embora ela consiga mascarar
sua expressão, a preocupação repousa na tensão de suas
respirações entre o nó de suas palavras. Se ela quiser manter sua
vida luxuosa em Mornute, não pode me dar ao luxo de cometer
erros esta noite. E também não posso me permitir.
Se eu não conseguir demonstrar controle sobre minha magia e
provar que domei a fera dentro de mim, ficarei presa até que tia
Kalea prove que pode se tornar a sucessora do trono. Dado que a
lei determina que um Montara sem magia da alma totalmente
controlada não possa permanecer livre, não posso ignorar a
possibilidade de que eu possa até mesmo ser executada se for
considerada um risco muito alto. Nossa mágica é perigosa demais
para não ser totalmente controlada.
— Como se eu estivesse treinando minha vida inteira para isso
— digo. Tia Kalea procura nos meus olhos por outro longo
momento, e há um flash de preocupação antes que ela me puxe
para um abraço firme.
— Pode fazer isso — ela sussurra, seus cachos grossos
fazendo cócegas no meu pescoço. — Ninguém está mais pronto
para isso do que você.
Embora eu saiba que ela está certa, a ansiedade que me
atormenta desde o show de marionetes está aumentando. Me forço
a sorrir para ela, tentando apagá-la.
Somente depois que tia Kalea recua, Casem hesita um passo à
frente. — Não pretendo apressar você — diz ele — mas é hora de
Amora ir.
— Claro. — Tia Kalea assente, colocando um cacho marrom
suave atrás da orelha. Tento não encarar as linhas de preocupação
enrugadas entre as sobrancelhas dela, ou pensar em como o nosso
futuro depende de eu ter um desempenho adequado.
Ela beija minha bochecha antes de se afastar. Mas antes que
solte minha mão, seus olhos capturam os meus, e eu não estou
preparada para o que vejo dentro deles. Seus olhos não são mais
os castanhos ricos que combinam com os do pai – eles piscam um
rosa brilhante e penetrante, lá por um momento e voltam a castanho
no seguinte.
— Faça o seu melhor. — O sorriso da tia Kalea treme. — Por
favor. Pelo reino.
A ansiedade não se extingue; surge até que são como mãos em
volta da minha garganta. O barulho que faço quando suas mãos
escorregam das minhas dificilmente é humano. O chão debaixo de
mim é como o mar, balançando enquanto suas palavras afundam.
Tia Kalea aprendeu a magia de encantamento.
Não sou mais uma das duas possíveis herdeiras; Eu sou a
única herdeira possível. Se eu falhar, não sobrará ninguém para
proteger Visidia da vingança da fera dentro da linhagem de Montara.
Tia Kalea me mostrar isso era um aviso – se ela fosse forçada a
aceitar a magia da alma de Aridian, essa seria sua segunda mágica.
O vínculo com a besta será cortado.
— Você deveria esperar. — Minhas palavras são tão trêmulas
quanto minhas mãos. — Como pôde fazer isso?
— Foi um acidente. — Seus olhos estão molhados quando ela
volta para mim, mas eu me recuso a olhar para eles por mais um
segundo. Pego o braço de Casem. Os olhos dele se estreitam com
a incerteza, não a tendo visto usar magia de encantamento.
— Leve-me para os jardins — digo a ele, precisando me afastar
dela enquanto a mágica dentro de mim se mexe. — Agora. —
Casem obedece sem hesitar.
É apenas uma curta caminhada até a entrada dos jardins, e
minha cabeça ainda está girando com mil pensamentos quando
chegamos. Eu tenho que me esforçar ao máximo para ignorá-los e
me concentrar na tarefa em questão, assim como todo mundo me
disse para fazer. Não posso me distrair com a traição dela.
Esta noite, devo ser perfeita.
Um local de adoração, os jardins ficam no topo do pico mais alto
de toda a Arida, a cerca de três quilômetros ao norte do palácio. A
entrada é através de uma caverna coberta por trepadeiras pesadas
e hera espessa que Casem puxa para trás, para que eu possa
entrar sem prender meus adornos.
— Você tem cinco minutos antes que os outros cheguem — diz
enquanto eu mergulho para dentro da caverna, recebida pela flora
bioluminescente que reveste as paredes e ajuda a guiar meu
caminho para os jardins.
No momento em que entro, a visão rouba minha respiração,
como sempre.
Estes jardins são lindos durante o dia, mas sua verdadeira
magnificência brilha sob as estrelas.
Um campo de flores indomadas se estende diante de mim,
algumas altas o suficiente para roçarem na minha bolsa, enquanto
outras gotejam das árvores em perfeita espiral. Grande parte da
flora é bioluminosa, pétalas e bulbos brilhando em tons de verde,
rosa, azul e roxo.
Passo minhas mãos no bulbo de uma flor mais alta que o meu
quadril, e ela balança para trás como se estivesse surpresa, suas
pétalas se abrindo ao meu toque. Eles brilham quando se abrem,
acordando.
Atrás delas, nos fundos do jardim, repousa uma pequena
cachoeira que brilha tão intensamente quanto as flores, criando um
cenário de tirar o fôlego que muitos viajam de todo o reino para ver.
Na base da cachoeira, há uma laje de pedra plana com uma
fogueira esculpida no centro, que foi erguida como palco para minha
apresentação. Sento-me na beira de um lado enquanto as vozes
começam a se agitar atrás de mim. Pelo canto do olho, vejo meus
pais entrando nos jardins, mas não me viro para eles, no caso de tia
Kalea também estar lá.
Pressiono a mão no peito e respiro fundo para firmar meu
coração. Isso não ajuda muito, então corro o dedo pela borda da
bolsa e inclino a cabeça, rezando para que os deuses me firmem. É
um sentimento familiar, que me tranquiliza, mesmo quando a
antecipação belisca minha pele e vibra ao meu redor. Mais e mais
pessoas entram nos jardins, aquecendo o ar com suas conversas e
criando um espaço tão cheio de cores e estilos diferentes que é
vertiginoso de se olhar. Eu me levanto, me recusando a deixar
alguém ver o quão profundamente meus nervos correm.
Não consigo pensar em Ferrick, em algum lugar dessa multidão
com um anel que eu receberei no momento em que essa
apresentação terminar.
Não consigo pensar em Kaven, tentando iniciar uma rebelião
dentro do meu reino. Ou de Kerost, quebrado e sofrendo com as
tempestades.
E me recuso a pensar na tia Kalea, que será a morte de Visidia,
caso eu falhe esta noite.
Mas não vou deixar isso acontecer.
Tiro a sacola do quadril e preparo os dentes e ossos que
esperam lá dentro.
CAPÍTULO QUATRO

Passei semanas preparando o conteúdo da minha mochila,


garantindo que todos os dentes e pequenos ossos estejam prontos
para serem feridos com o cabelo do prisioneiro em que devo utilizar
a minha mágica.
Porque, embora isso possa ser uma demonstração de mágica,
também é uma execução.
Ouço o barulho das correntes antes de ver os prisioneiros que
estão envoltos nelas. São dez – sete homens e três mulheres – e
todos marcados no pescoço com dois X ousados, a marca de
alguém julgado e condenado por assassinato. Hoje à noite, alguns
estão com marcas falsas.
Os guardas os arrastam através da multidão de espectadores
para a base da laje de pedra em que estou. Então eles se afastam,
deixando os prisioneiros embaixo de mim com medo e raiva em
seus olhos.
Minha mágica funciona de duas maneiras – a leitura etérea da
alma e a capacidade física de acabar com uma alma através da
morte. Estes prisioneiros estão aqui para testar o primeiro lado da
minha magia; devo determinar quem executar encontrando a alma
irremediável entre o grupo.
Nunca na minha vida uma execução foi pública. Papai e eu as
realizamos anualmente, tarde da noite e nas profundezas de uma
prisão subterrânea, levando apenas as almas dos prisioneiros mais
imperdoáveis de Visidia para satisfazer e reprimir nossa mágica.
Para que uma pessoa fosse selecionada para esta demonstração,
sua alma teria que estar além da redenção.
A primeira da fila é uma mulher mais velha, cujos olhos escuros
travam nos meus com força. Encontro minha magia esperando na
minha barriga e puxo pequenos pedaços dela, acordando a besta.
Seu calor lambe minha pele, me convidando para ir mais
profundamente, conectando-me à alma dessa mulher.
A magia espalha calor por minhas veias e por minhas têmporas,
e eu me afundo no poder, saboreando-o. Minha visão embaça antes
de se afiar rapidamente, revelando um jardim inteiro de almas diante
de mim. São das cores das nuvens – algumas como uma
tempestade ameaçadora e outras como um dia mais claro – e
dançam com os movimentos finos da fumaça. Pressiono minhas
unhas nas palmas das mãos para me concentrar, e encontro a alma
da mulher diante de mim.
É como uma estrela do mar morta – desbotada, acinzentada e
áspera, mas ainda assim algo que já foi bonito. Ela é mais velha, e
com a idade tem havido dor e dificuldades, o suficiente para
confundir e quebrar sua alma.
Essa mulher é uma farsa. Alguém que está aqui apenas para
me testar.
Eu passo por ela e vou para o próximo prisioneiro, avaliando
sua alma enevoada. Está nublada pela ganância e pela ira,
manchada com os sinais de assassinato. Mas ele sente remorso
pelos erros que cometeu. Ele sente culpa, o que significa que não é
quem procuro.
Movendo-se rápida, mas cuidadosamente pela linha, a magia
queima meu núcleo enquanto procuro alma após alma.
Eu sei que é ele no momento em que o encontro. Na superfície,
seu olhar é frio, mas, quanto mais eu cavo, mais sua alma
apodrece. É irregular e roxa como um hematoma, descascando nas
bordas e a caminho de desaparecer completamente. Sua maldade
me arrepia até os ossos.
A alma deste homem mostra a mancha de alguém que cometeu
os crimes mais sórdidos que se possa imaginar, pior ainda que o
assassinato. Um espaço branco brilha por trás das bordas
descascadas, me dizendo que não há volta para ele. Ele não sente
remorso por suas escolhas, nem simpatia por suas vítimas.
— É ele.
Dois guardas avançam para levantar o homem sobre a laje de
pedra, enquanto os outros prisioneiros são puxados para trás.
Alguns suspiram de alívio.
Sob meus cílios, espio meu pai. Ele assente um pouco, e eu
relaxo, sabendo que já consegui a primeira metade dessa
apresentação. Escolhi o prisioneiro certo, e agora é hora de provar o
domínio do lado físico da minha magia.
— Qual é o seu nome? — Tiro minha adaga da bainha na minha
coxa e a uso para cortar um punhado de cabelo do homem.
Sua resposta vem com uma voz tão rouca que ele precisa tossir
para sair. — Aran.
— Aran — repito — olhei para sua alma e vi não apenas sua
corrupção, mas também o prazer que você sente pelo caos e pela
dor que causou. Você não tem remorso pelos crimes que o
trouxeram até aqui, sua alma foi longe demais para ser consertada.
Arrepios rolam pela minha espinha quando ele inclina a cabeça
para trás e sorri. Tento não imaginar quem ele matou, ou se sua
família está assistindo da multidão. Como futura governante deste
reino, não posso ter pena dessa família, e eles sabem disso. Aran
certamente não teve pena das famílias de suas vítimas.
O silêncio aumenta à medida que eu estabilizo minha respiração
nervosa, golpeio uma pederneira e deixo as chamas da fogueira
queimarem entre nós. — Você tem alguma última palavra?
Aran cospe aos meus pés, mas não recuo. Em vez disso, enrolo
os cabelos cortados em torno de um dos dentes da minha pilha e
deslizo minha unha por ela. Sua mandíbula se contrai quando ele
instintivamente passa a língua por cima dos dentes, e eu sei que a
mágica está funcionando quando vejo o momento em que o medo
se instala em seus ossos.
— Tudo bem, então. — Eu seguro o dente acima do fogo. —
Vamos começar.
Jogo o dente nas chamas e o homem convulsiona
violentamente, cuspindo uma poça de sangue. No meio desse
sangue, há um dente, que me agacho para pegar, meu corpo
pulsando enquanto a magia arde dentro de mim. Me afundo no
poder.
O lado físico da minha magia é baseado em trocas
equivalentes. Se quero machucar os ossos de alguém, preciso
oferecer um osso primeiro – qualquer osso, e algo mais que seja
ligado à alma em que eu quero usar minha magia. Hoje à noite, eu
uso o cabelo de Aran. Para tudo que é tirado, um pagamento igual
deve ser dado, e é por isso que a pessoa não morre até que eu
utilize o seu sangue.
Eu poderia acabar com ele lentamente, se quisesse. Poderia
quebrar osso após osso, ou drenar seu sangue até que ele não
passasse de um saco de carne.
Mas não sinto prazer nessas mortes. É meu dever como
Montara usar minha magia, ou a fera dentro de mim ficará mais forte
e tentará assumir o controle. E assim, papai e eu escolhemos um
prisioneiro por ano cada – o pior dos piores – para ajudar a conter
nossa mágica.
Faço a morte deles o mais rápida e indolor possível; mas, para
fazer isso, preciso de muito do sangue deles, que é onde entram os
dentes. Embora eu pudesse usar qualquer coisa para obter o
sangue – um braço, uma perna, um olho – fazer com que alguém
perdesse alguns dentes é o mais maneira humana que conheço
para obter a quantidade que preciso.
Enquanto trabalho, sei, sem dúvida, que ninguém será capaz de
questionar minha habilidade. Tenho o controle total da besta e da
magia que corre minhas veias. O sangue de Aran flui
constantemente de sua boca enquanto arremesso outro dente ao
fogo, e seus olhos se arregalam de medo.
Confiante, olho de soslaio para o rosto do meu povo e fico de
pé, querendo que eles me vejam. Que vejam a herdeira do trono; a
sua princesa, que passou a vida inteira dominando essa mágica não
por si mesma, mas por eles.
Mas, com o meu foco na multidão, vejo que não me observam
com o orgulho ou a reverência que espero. Horror assola seus
rostos.
Eu avisto um homem cobrindo os olhos de sua filha, o rosto
torcido em choque. A réplica da faca de Cato treme em suas mãos.
Então vejo tia Kalea, seus lábios enrolados de nojo por uma
magia que ela nunca quis. Em minha mente, vejo seus olhos
cintilando de cores e tenho que acalmar minhas mãos trêmulas
antes que alguém possa perceber.
Estou fazendo tudo o que devo para cumprir meu dever, e ainda
assim não há respeito ou amor aos olhos de Visidia. Só medo e
repulsa.
Minhas mãos hesitam sobre o fogo quando a confiança que eu
construí como armadura ao meu redor se despedaça. Tudo o que fiz
foi por eles. E mesmo assim... meu próprio povo me teme.
Meu peito aperta quando a realização me oprime fortemente.
Assisto cada gota de sangue espirrar dos lábios de Aran para o
chão. Ouço as respirações agudas ao meu redor e sinto o peso do
terror do meu povo pressionando-me, tão pesado que não consigo
respirar. O pânico sobe do meu estômago até a garganta, subindo,
se instalando e arranhando.
Minha atenção sai da minha magia quando absorvo a reação do
meu povo, e a mágica dentro de mim se esvai. É isso que a besta
estava esperando; meu controle escapa e ela salta.
A magia afunda suas presas em mim mais profundamente do
que nunca. O calor outrora reconfortante agora queima as pontas
dos meus dedos e se espalha pelo meu corpo como fogo, me
despedaçando. É como se algo atrapalhasse a minha respiração,
quase incapaz de encontrar ar o suficiente para encher meus
pulmões. Enfio minhas mãos trêmulas contra os lados e tento me
concentrar nas centenas de rostos medrosos que olham para mim.
Mas não posso fazer isso. A magia me consome.
Um poder cru e urgente percorre cada fenda do meu ser
enquanto esfrego o meu polegar coberto de sangue no dente do
prisioneiro, sentindo o peso de sua força vital pulsar sob as pontas
dos meus dedos. Jogo-o nas chamas, depois pego um osso da
minha mochila e faço o mesmo. Aran grita quando um osso do seu
dedo se torce e quebra. Mas não me encolho, encontro outro osso e
um punhado de dentes. Atiro-os no fogo e abro caminho para dentro
e através do corpo do prisioneiro, rasgando-o polegada por
polegada.
Mais suspiros soam da platéia, junto com gritos indiscerníveis
de protestos, enquanto Aran engasga com os dentes que caem de
sua boca. Mas o barulho dificilmente me atinge através da névoa.
Eu não sinto o calor do fogo contra minhas bochechas, ou o cheiro
da chama que queima meus cabelos enquanto pego esses dentes,
sangue e tudo para reabastecer minha mochila.
— Sua alma é perversa — me ouço dizendo a Aran enquanto
ele cava as unhas no chão e respira fundo. — Você não merece
uma morte rápida.
A besta sussurra sem piedade na minha cabeça, dizendo-me
para livrar a ilha desse homem contaminado, e depois encontrar
outros. Limpe sua alma da terra e destrua o resto dos prisioneiros
também. E então, por que parar nos prisioneiros? Toda alma é má
de alguma maneira, então por que não levá-las todas?
Sem fôlego, sou atraída para a pilha de ossos ao meu lado.
Gotas de suor frio descem pelo meu pescoço enquanto eu pego um,
enrolo com seu cabelo, e mergulho-o em seu sangue. O fogo
chicoteia diante de mim, fervendo de fome. Eu ofereço o osso, e ele
se parte e racha quando as chamas o devoram.
O grito de Aran raspa contra a sua garganta desgastada quando
cada osso em seu dedo se quebra, um de cada vez. Mesmo com o
barulho da cachoeira atrás de nós, seus soluços atravessam os
jardins.
— Misericórdia. — Ele cospe sangue com cada palavra
distorcida. — Por favor, pelos deuses, misericórdia.
— Os deuses não ouvem os pedidos dos ímpios — ouço-me
dizer. — E eu também não.
Em algum lugar distante, vozes gritam, mas não me importo
com o que dizem. Deixei que minha magia o atravessasse, jogando
osso após osso no fogo até Aran não ser mais do que um monte de
membros mutilados na laje de pedra. Seu corpo contorcido está
quebrado, os membros impossivelmente torcidos. Ele é argila
deformada que moldei à minha vontade e pintei com sangue.
Eu me preparo para outro ataque quando uma mão agarra meu
ombro. Me viro, rosnando para os olhos castanhos derretidos que
olham de volta para mim. Demoro um momento até perceber que
eles pertencem a meu pai. Seus olhos estão molhados, e minha
pele coça de desconforto.
— Amora. — É um apelo desesperado que se instala em meus
ossos e apaga a magia ardente. Cambaleio quando minha visão
pisca, a névoa desaparecendo. — Por favor, você tem que parar.
A multidão em nossa volta se agita, gritando sons distorcidos
que fazem parecer que meu cérebro está sendo comprimido. Me
concentro apenas no pai, usando-o como uma âncora para me
arrastar de volta à realidade. A magia interna assobia seu protesto,
mostrando as presas enquanto luta para manter o controle. Eu a
enfio dentro de seu porão, sufocando enquanto empurro a volta.
Meu pai me abraça com força, os dedos fortes cravando na
minha pele cada vez mais até minha visão clarear e eu engasgar
com o cheiro de sangue. Começo a tremer enquanto observo as
manchas nas palmas das minhas mãos e dedos, a fumaça
queimando meus pulmões. As pedras abaixo de mim balançam
quando a realização aparece: perdi o controle da minha magia.
A tontura faz meu peso me trair e eu caio de joelhos.
Soltei a besta, e ele roubou meus sentidos até me reivindicar
completamente.
Aran está diante de mim, morto. Ele não parece mais humano,
toda carne desfiada e membros mutilados. Eu aperto minhas mãos
na terra enquanto tento reconhecê-lo, mas é inútil. Quando usada
corretamente, minha mágica é destinada a dar a alguém uma morte
rápida. Mas não havia nada de rápido nisso; Aran foi torturado e
mutilado.
E fui eu quem fez isso.
Pressiono minha testa contra a sujeira, os olhos ardendo
quando me inclino diante de seu corpo. — Eu sinto muito. Pelos
deuses, sinto muito.
Mas minhas desculpas não importam. Ao ouvir as palavras que
o povo de Visidia grita, sei que nem os deuses podem me ajudar
agora.
— É a besta!
— Ela destruirá tudo!
— Ela é quem deveria ser executada! Vai matar todos nós!
Vejo o rosto da minha mãe na frente da multidão. Seu corpo fica
rígido enquanto tia Kalea está com o queixo caído de horror. Yuriel
está entre eles, apertando sua mão no braço da mãe com força. Seu
rosto outrora corado com vinho está agora em pânico. Papai está
diante de mim, de costas para a multidão, para que apenas eu
possa ver o terror em seus olhos ou a fúria da sua respiração.
Quando suas mãos começam a tremer, ele as pressiona firmemente
ao lado do corpo. Minhas próprias mãos estão cobertas de sangue,
e eu não sou a única olhando para elas.
— Não posso protegê-la disso — sussurra meu pai com
urgência, quase como se as palavras desesperadas fossem para si
mesmo. Então ele diz mais alto, em um sussurro áspero que quebra
sua voz. — Pelos deuses, Amora, eu não posso te proteger disso!
Não tenho tempo para me recompor antes que braços me
puxem por trás. Dois guardas deslizam as mãos debaixo dos meus
braços, evitando por pouco cortar seus rostos nos ossos
pontiagudos da minha coroa e nas dragonas irregulares enquanto
me prendem com força.
— Sinto muito. — O peito do meu pai se agita. — Vou dar o meu
melhor para consertar isso.
O mundo está girando. Girando. Girando. Uma frieza cruel se
espalha profundamente em meus ossos. Começa no meu estômago
e se espalha pelas pernas, depois pelos meus braços. Pontos
pretos atormentam minha visão e ameaçam me dominar quando os
tremores secundários de muita magia fazem seu movimento.
Se não fosse pelos braços ao meu redor, eu não seria capaz de
ficar de pé. Controlar a fera em meu interior e mantê-la domada
consome tudo o que há em mim.
Tento manter meus olhos em meu pai, firmando minha visão o
suficiente para vê-lo virar o rosto e fechar os olhos com decepção. É
um olhar que atravessa meu peito e me machuca.
Centenas de visidianos olham para mim sem piedade, e eu
fecho meus olhos contra seus gritos, desejando que a magia me
consumisse completamente.
Mal me permiti ouvir meu pai enquanto ele fala, suas palavras
como mil facas.
— Levem-na para a prisão.
CAPÍTULO CINCO

Eu estabilizo minha visão trêmula nas barras da cela, usando-as


como um foco para me escorar.
Abraçando meus joelhos com força, tento conservar meu calor
contra o frio intenso que rasga minha pele. Embora já tenha estado
nessas prisões muitas vezes antes, nunca foi dessa forma – sem as
minhas armas e esquecida em uma cela.
Eu tinha cinco anos quando meu pai me levou às prisões, numa
noite de outono. Estava com os olhos turvos e meio acordada
enquanto viajávamos pelo ziguezague, observados apenas pelas
estrelas enquanto o resto de Arida dormia. Foi assim até que a luz
da lua piscou atrás de nós, meus olhos foram forçados a se ajustar
à pouca luz da tocha da prisão e ele me disse que era hora de
reivindicar minha magia.
Eu estava empolgada. Mas, também houve um arrepio nos
meus ossos que floresceu mais profundamente nas prisões que
viajamos. A sensação de estar prestes a realizar algo significativo,
sem entender realmente o que isso significava.
Séculos atrás, os Valukans ajudaram a construir a prisão na
base da montanha, esvaziando-a para formar três longos túneis,
cada um deles formando uma prisão única.
O primeiro túnel é para pequenos crimes e sentenças curtas. A
segurança neste setor é mínima, com guardas do palácio
posicionados do lado de fora da entrada.
O segundo é reservado para crimes mais ofensivos, como
agressão ou mesmo assassinato em alguns casos. A segurança lá é
mais forte; todos os guardas são portadores de magia e altamente
treinados vindos das várias ilhas.
A terceira prisão é para os criminosos mais perigosos e é
reservada apenas para aqueles com almas que o pai ou eu
consideramos as mais perigosas. É uma prisão para quem não
matou apenas uma vez, mas mataria cem vezes mais. Aqueles que
agrediram suas vítimas da maneira mais desprezível e não sentem
remorso. Sua segurança é uma das melhores do reino; não há
celas, mas salas fechadas protegidas por guardas que eu nunca iria
querer enfrentar em uma luta.
Papai e eu viajamos pelas profundezas do terceiro túnel. Os
nervos agarravam meu pescoço, fazendo meus cabelos se
arrepiarem enquanto as paredes ao nosso redor se tornavam mais
apertadas e escuras. A cada passo à frente, o cheiro metálico de
sangue ficava mais denso no ar.
Nós não paramos até chegarmos à sala selada mais distante,
parando apenas para que um guarda pudesse usar três chaves para
nos deixar entrar.
Não me lembro muito do que aconteceu depois, mas lembro do
rosto da prisioneira e das correntes que a prendiam. Ela era uma
mulher pouco mais velha do que eu sou agora, com cabelos loiros e
olhos azuis em pânico. Recordo-me de que não conseguia parar de
encará-los, imaginando o que ela fez para merecer esse destino
quando meu pai pressionou uma adaga em minhas mãos – a
mesma que eu uso agora.
— É assim que deve ser, Amora. — Papai guiou minha mão
trêmula para o braço da mulher e me ajudou a pressionar minha
lâmina em sua pele.
A mulher chorou o tempo todo, mas no momento em que seu
sangue revestiu o aço, a besta dentro de mim ganhou vida e eu não
precisava mais da ajuda do meu pai. As sombras das paredes da
prisão e os gritos que caíam nelas pareciam tão avassaladores
quando eu afundei no poder da besta e a deixei se apossar de mim.
Que se deleitasse com o sangue da prisioneira até que ela caísse
na terra, sem vida. Só então, quando a besta ficou satisfeita,
recuperei o juízo.
Mas era tarde demais para voltar.
Meu pai me segurou apertado como a besta se agarrou à minha
alma. Ela nunca mais foi embora.
Demorou apenas uma temporada para reprimir a besta e se
recuperar fisicamente, mas anos para os pesadelos pararem. Desde
então, eu tenho que visitar a prisão anualmente para exercer minha
magia e manter a besta afastada.
Nunca gostei de execuções, ou de ter que assistir uma alma
desaparecer até a morte por minhas mãos. Mas percebi que alguém
precisa fazer isso para manter Visidia segura, e os deuses me
escolheram.
Mas não sou fã desses túneis abafados e chuto as pesadas
barras de ferro da minha cela para expressar isso. Assobio quando
elas não fazem nada além de enviar um choque de dor ao meu
tornozelo e dobrar minha testa aos meus joelhos. Os guardas
precisam se apressar e trazer comida para que eu possa me
estabilizar.
Como minha mágica é inútil sem minha mochila ou um fogo,
eles me prenderam na primeira prisão – um pequeno luxo e talvez
um sinal fugaz de respeito, pois essa prisão é a mais limpa e melhor
cuidada Mas a falta de ventilação no subsolo faz com que o local
cheire a uma mistura de mosto e excremento humano que não
ajuda a náusea que luta para me derrotar.
— Parece que temos uma nova captura — um prisioneiro na
minha frente provoca, olhando através do assombroso brilho
vermelho da luz da tocha para espiar dentro da minha cela. Na
escuridão, ele é um dos poucos que posso ver. — Nunca pensei que
a veria trancada, princesa. Que tal você nos dar um pequeno show?
— O homem faz sons estalados com os lábios enquanto outro se
junta a ele, aventurando-se em detalhes elaborados sobre todas as
maneiras pelas quais ela gostaria de me cortar e alimentar meu
corpo com a Lusca, uma fera do mar de histórias de terror,
destinadas a assustar crianças desobedientes.
— Tente e veja o que acontece — eu rosno. Minhas mãos
formigam procurando a mochila ou a adaga que foram tiradas de
mim, desejando que eu tivesse uma maneira adequada de calá-los.
Porque, embora eu não os deixe ver, suas palavras me comem
viva.
Eu nunca teria pensado que iria acabar deste lado de uma cela
também. Mas essa é a lei de Visidia: se um Montara não puder
controlar a magia de suas almas e for considerado perigoso demais,
eles serão mantidos presos até que um julgamento possa
determinar seu destino – outra chance na melhor das hipóteses,
uma execução na pior. Como os possíveis herdeiros de Visidia são
tão baixos em número, duvido que me mantenham aqui. Sou valiosa
demais para isso. Ainda assim, não é algo que eu queira arriscar.
Eu preciso sair daqui. Comer algo. Recuperar a minha força.
Encontrar uma maneira de corrigir as coisas.
Mas, em vez disso, estou presa nesta maldita cela, deixando
meu destino ser determinado por se o pai é capaz de convencer
nosso povo a acreditar que ainda sou digna de sua confiança e
destinada a ser a próxima Alta Animancer. Para ser sua futura
rainha.
Ele tem que convencê-los; não há outra opção. Como tia Kalea
praticava secretamente magia de encantamento, o reino inteiro
correria perigo se tentasse aprender uma segunda mágica.
Não quero nada além de proteger Visidia e mostrar para as
pessoas que eu serei uma líder digna. No entanto, no momento para
que treinei a vida inteira, não consegui provar isso.
Não posso ficar com raiva por eles terem me trancado atrás das
grades, embora o peso disso me sufoque. Meu povo estava certo
em me despir dos meus pertences; eles estão certos em ter medo
de mim. A morte de Aran pode ter sido a justiça visidiana, mas como
eu o matei não foi nada menos que monstruoso.
Quando meu pai me mandou para esta cela, não foi por
escolha. Ele teve que aderir à lei. Mas isso não significa que dói
menos.
Seguro minha cabeça em minhas mãos, fechando meus olhos
para afastar a imagem do corpo de Aran.
O guincho agudo das portas da prisão ecoa pelos túneis,
perfurando meu crânio com tanta força que tenho que lutar contra
uma onda de náusea. Apesar da minha visão de nadadora, forço
meus olhos abertos para ver se é meu pai aqui para me dizer que
tudo ficará bem; para me dizer que, apesar do mal que causei, meu
povo decidiu me dar outra chance.
— Amora?
Meu estômago dói. Reconheço a voz antes mesmo de Ferrick
chegar a minha cela, cada passo lento e hesitante.
Banhado pelo brilho fraco da luz das tochas, ele se parece com
uma raposa assustada com sua pele clara, cabelos ruivos e maçãs
do rosto afiadas, cavadas pelas sombras do fogo. Seu nariz está
torcido e os olhos verdes arregalados e ansiosos, como se
esperasse que um prisioneiro rompesse as grades e o atacasse a
qualquer momento. Quando noto as três bandejas de comida que
ele equilibra em suas mãos e antebraços, eu gemo e me arrasto
para mais perto das barras da cela, enquanto ele cuidadosamente
se ajoelha e coloca as bandejas no chão.
Ele trouxe tudo – ameixas cozidas no vapor, pãezinhos
recheados com pedaços gordos de camarão apimentado, curry de
coco e pudim de arroz doce, três espetos de enguia de água doce,
bolosde leite caramelizados e várias porções enormes de ginnada.
Outra bandeja contém quatro tigelas do ensopado de assinatura de
Valuka – caça selvagem defumada em brasas vulcânicas, com
batatas e cebolas que derretem na boca como açúcar.
— Isso não era o que eu tinha em mente quando descobri que
íamos jantar juntos hoje à noite. — Ferrick se senta no chão de
terra, ficando tenso com as vaias e assovios de outros prisioneiros,
e empurrando as bandejas em direção à minha cela . — Você está
bem? O que posso fazer para ajudar?
— Onde está meu pai? — Eu pergunto, deslizando minha mão
pelas barras para comer uma porção de ginnada. — Ele já deveria
estar aqui. — Tento empurrar o cheiro da prisão para longe
enquanto coloco a comida na minha boca. No momento em que a
massa açucarada de amêndoa derrete na minha língua, minha visão
vertiginosa começa a se estabilizar. Eu gemo contente antes de
notar que a testa de Ferrick está comprimida e seus olhos estão
cerrados.
— Ele está... fazendo o controle de danos. Vou tentar ajudar,
mas queria trazer um pouco de comida para você primeiro. Esses
guardas só lhe trariam pão. — Ele zomba, a amargura penetrando
em seu tom. — Sabia que você precisaria mais do que isso.
E preciso. A maior parte da magia é alimentada por uma fonte
de vida, o que significa que os corpos atingem um ponto em que
ficam cansados demais para praticar magia. Mas a magia aridiana é
única, pois está ligada à alma; quando eu a uso, é dela que a fonte
da minha energia é extraída. E, se eu uso demais, não corro o risco
de esgotar-me como aqueles com outras mágicas – corro risco de
morte.
Ferrick pode entender isso até certo ponto. Sua magia Suntosan
também se baseia na energia de seu próprio corpo. Pode não estar
perigosamente ligada a ele da maneira como a minha está, mas nós
dois precisamos de comida como combustível. Vou comer cada
pedaço do que ele me trouxe, pelo menos.
— Obrigada — digo a ele entre bocados de ensopado, já na
minha segunda tigela.
Ferrick assente com a cabeça antes de hesitar ao passar a mão
pelas barras da cela, tomando cuidado para não tocar em sua
sujeira. Eu vacilo quando ele pressiona a mão na minha bochecha,
sem saber o que está fazendo até que sua pele se aqueça contra a
minha e sinto a pontada aguda de sua magia de restauração; a
magia Suntosan que ele usa para curar a si mesmo e aos outros. Eu
assobio e me afasto de surpresa. Mas quando levanto minha mão à
minha bochecha, o arranhão desta manhã se foi.
Ferrick sorri e se levanta. — Tenho que ir, mas voltarei. Vou ver
se consigo encontrar o seu...
As portas da prisão se abrem novamente. Me levanto
automaticamente, graças à explosão de energia que a comida me
deu, esperando papai, mas ao invés disso, encontro o conselheiro
de Valuka caminhando em nossa direção.
Ferrick tenta ser discreto com a maneira sutil de inflar o peito
como um baiacu inchado. — Quem é você? Quem lhe deu
permissão para estar aqui em baixo?
O Valukan fica parado ao ver Ferrick. Eu o analiso à procura de
armas, observando a espada larga embainhada ao seu lado. Mas
ele não a toca. Se endireita, segurando o queixo alto.
— Meu nome é Bastian Bargas. Sou filho do Barão Bargas e
estou agindo como representante de Valuka durante a noite. Preciso
falar com a princesa.
As mãos de Ferrick se contraem ao seu lado. — O barão Bargas
é amigo do meu pai — diz ele lentamente. — Eu falei com ele várias
vezes, e ele nunca mencionou ter um filho.”
A hesitação momentânea de Bastian se dissipa. Seu sorriso se
transforma em uma coisa confiante e maravilhosa, enquanto ele tira
uma folha de papel dobrada do bolso do casaco e a exibe para nós.
O selo da nobreza Valukan está gravado em cera no canto da
página – é semelhante ao emblema real, mas em vez de uma
enguia esquelética enrolada em uma coroa de osso, há duas
enguias, e elas se enrolam em torno de um vulcão fumegante.
Somente a família Bargas usa esse selo.
— Sim? — Bastian pergunta. — Bem, quando você ganhar a
reputação que tenho, verá que seu pai muitas vezes esquece de te
mencionar na conversa.
Ferrick pega a carta de suas mãos, lendo-a com uma expressão
comprimida. — E por que o barão não pôde vir, exatamente? — Ele
passa o dedo sobre o emblema de cera como se fosse testá-lo.
Imperturbável, Bastian diz: — Você leu a carta; receio que ele
tenha sido infectado por um inseto no estômago. Digamos apenas
que meu pai não quis arriscar a parecer um idiota dos dois lados.
Ele arranca a carta de Ferrick, dobra-a com cuidado e a coloca de
volta no bolso do casaco com um tapinha. — Agora, se você não se
importa?
Ferrick cruza os braços sobre o peito. Ele é mais magro que
Bastian, fino onde o Valukan é amplo. E com apenas um florete ao
seu lado, Ferrick nunca venceria a luta que ele parece pronto para
iniciar. — Perdão, mas receio que não posso deixar isso acontecer.
Eu suspiro, não quero vê-lo perder. — Você não tem nenhum
posto aqui, Ferrick. Afaste-se. — Quando ele se vira para mim em
protesto, o encaro com um olhar perigoso. — Posso estar atrás das
grades, mas ainda tomo as decisões. Afaste-se.
As sombras no rosto de Ferrick escurecem quando ele olha
entre o Valukan e eu. — Preciso encontrar o rei, de qualquer
maneira. Mas voltarei em breve. — Ele não me poupou de outro
olhar antes de passar por Bastian, fazendo as sobrancelhas do
Valukan saltarem curiosamente.
— Estava interrompendo alguma coisa? — Bastian reflete.
Tento não revirar os olhos ao seu comportamento fácil. — Por
que você está aqui?
Sua diversão diminui quando ele passa as mãos por baixo do
casaco, para algo preso em seu quadril. Afasto-me das barras das
celas, antecipando uma arma. Não tenho como me proteger aqui; a
cela é muito rasa para se esconder e oferece apenas um único saco
de dormir e uma bacia de metal vazia como proteção.
As pontas dos meus dedos coçam para usar magia, mas não
tenho como evocá-la. Todo mundo empunha sua magia de maneira
um pouco diferente, e, para que a minha funcione, preciso de fogo.
A luz da tocha, no entanto, está muito longe para ser alcançada.
Estou indefesa.
Mas quando Bastian puxa a mão de volta, não é uma arma que
ele segura. É um grande anel de chaves de cobre gastas.
Medo aperta meu estômago. — Como você conseguiu isso?
Bastian enfia a chave na fechadura. — Isso importa? Ouça-me,
princesa, eles vão executá-la se você ficar aqui.
A convicção em suas palavras faz meu coração bater na minha
garganta.
— Eles não iriam — eu digo. — Pelo menos não até que haja
um julgamento. — Vão querer garantir que Kalea seja capaz de
controlar a magia da alma primeiro. Querem ter certeza de que têm
outra opção.
Quando os olhos de Bastian pegam os meus na luz da tocha, as
peças que me seguram começam a se dissolver. Pressiono a mão
na garganta, úmida e pegajosa de suor, apesar da baixa
temperatura do ar. Porque não é raiva no olhar de Bastian, nem
aborrecimento. Embora sua boca seja uma linha dura, seus olhos se
suavizaram com simpatia. Eles me abraçam forte, esfriando meus
ossos.
— Claro, eles farão um julgamento, mas as coisas não estão
parecendo boas para você. Realmente quer correr esse risco? —
Suas palavras são um sussurro, suave, gentil e baixinho. — Estão
planejando que sua tia se mude para cá no final do verão, aceite
sua mágica e comece a treinar. Seu pai está tentando influenciá-los,
mas as pessoas pensam que você é um grande risco; eles querem
mantê-la trancada.
Por mais que eu não queira admitir, por mais que eu queira
acreditar que meus pais são bem amados e influentes o suficiente
para impedir isso, e que Visidia não gostaria de se livrar de um
herdeiro em potencial quando há tão poucos de nós – no fundo eu
esperava.
Não devo esperar que as pessoas ignorem o que eu fiz. Mutilei
um homem diante dos olhos deles, e sorri ao fazê-lo.
Bastian segura um barra com força. — Você pode estar tão
morta quanto eu se ficar aqui. Mas, se vier comigo agora, eu posso
ajudá-la. Podemos nos ajudar.
Odeio não ter uma arma. Adoraria que ele dissesse isso de
novo quando eu pudesse pressionar uma lâmina na garganta por
causa da blasfêmia. — Você quer que eu abandone Visidia? —
Pergunto ao mesmo tempo que outro prisioneiro à nossa frente
grita: — Que tal eu ir com você, bonitão?
Bastian revira os olhos e se inclina para mais perto da cela,
baixando a voz para que ninguém mais possa escutar. — Me
escute. Não quero que você abandone Visidia. Ele puxa o casaco
para trás para revelar minha adaga e mochila enfiadas no cinto. —
Quero que você a salve.
Antes que eu possa protestar ou exigir saber como ele colocou
as mãos nelas, ele joga as duas na minha cela. Não hesito em
pegá-las, sentindo-me inteira no momento em que meus dedos
roçam o couro polido e deslizam ao redor do punho desgastado da
minha lâmina.
— Eu não estou aqui para lutar com você. — Bastian abre a
porta da cela e eu preparo minha adaga para atacar, se necessário.
Mas ele não se aproxima.
— Como assim, você quer que eu salve Visidia? — Minha voz
está mais fraca do que gostaria, meus pensamentos se espalhando
de um milhão de maneiras diferentes.
Ferrick poderia voltar a qualquer momento com os guardas do
palácio ou até mesmo com soldados visidianos. Minha cela pode ser
trancada mais uma vez, com Bastian jogado no meu lado. E depois,
o quê? Fechada nesta cela, quais são minhas opções?
Preciso encontrar uma maneira de ganhar o perdão de Visidia.
De me provar ao meu povo. O tempo todo, tia Kalea era o plano
reserva de Visidia. Mas agora sou tudo o que eles têm.
Posso esperar e esperar que meu pai seja capaz de mudar isso,
ou posso encontrar uma maneira de ganhar minha segunda chance.
— Ouça, estas são chaves roubadas. — Bastian faz um gesto
para a porta da cela com um suspiro exasperado enquanto me
demoro. — E digamos que os guardas estejam tirando uma soneca
agora, cortesia de algumas das melhores ervas de Curmana.
Coloquei-os em uma cela, para que ficassem perfeitamente
confortáveis, mas eles não vão ficar dormindo por muito tempo e
imagino que haverá alguns gritos quando acordarem. Vou explicar
tudo quando estivermos no meu navio, mas juro que se você não
vier comigo agora mesmo, a Visidia que conhecemos desaparecerá
no final do inverno.
O mundo gira, mas desta vez não é de náusea. Seguro as
barras para me manter firme, pensando.
Este homem tem um navio.
Navios são bons. Um navio me tirará de Arida e me dará tempo
suficiente para provar ao meu povo que vale a pena poupar minha
cabeça. Que eu posso liderá-los. Isso me dará a chance de salvar
não apenas tia Kalea, mas também toda a Visidia.
E se o que Bastian diz também é verdade, se Visidia realmente
está em perigo, que escolha tenho senão ajudar? Provar a mim
mesma. Mudar o meu destino.
É como se houvesse uma corrente atrás de mim, me
empurrando em direção ao Valukan, cujos olhos agora têm a
mesma seriedade de quando ele tentou falar com o pai antes. Ele
estava tentando nos avisar de algo então. De Kaven.
Bastian tem respostas. Ele tem um navio e está me oferecendo
uma chance de redenção, que não posso arriscar em deixar para o
destino.
Este homem, quaisquer que sejam seus verdadeiros motivos, é
a melhor chance que tenho.
Não adivinho o que meu intestino me diz. Ignorando o quão
loucamente meu sangue pulsa, retiro minha coroa e as flores que
minha mãe teceu pelos meus cabelos, depois desfiz minhas
dragonas e as deixo cair na terra como troféus descartados. Eu
puxo meu cabelo de seu penteado solto no meu pescoço, deixando
os cachos grossos caírem pelos meus ombros. Embora eu não
quisesse nada além de exibir esses adornos mais cedo, sinto-me
leve como o ar agora que eles se foram.
— Você viu o que eu fiz com Aran — eu o aviso, apertando a
ponta da minha mochila, confortada pelo estalo de ossos dentro. —
Um movimento errado e farei o mesmo com você.
Quando ele não discute, eu deslizo em volta dele e corro para a
saída. Agora que eles vêem o brilho da minha lâmina e ouvem o
barulho de ossos e dentes enquanto eu ando, os prisioneiros já não
zombam.
Saio pelo túnel com Bastian a reboque, certa de que sei o
caminho melhor do que ele. Por estar no primeiro túnel, não
precisamos ir muito longe para chegar à entrada. No entanto, o
nervosismo pinica minha pele enquanto corremos, nossos passos
ecoando nas paredes. Cada um deles soa como o tiro de um
canhão, muito alto e chocante. A escuridão se espalha ao nosso
redor, mais estranha do que nunca sem as fofocas dos guardas.
Quando Bastian aponta para uma cela, olho de soslaio, tentando
distinguir formas nas sombras. Eventualmente, minha visão se
ajusta e vejo o contorno distinto de três grandes figuras afundadas
nela.
— Ervas Curmanan? — Eu lanço um olhar para ele, que sorri.
— Sim. Potente quando inalada, mas não tão duradoura quanto
quando ingerida. — No momento em que ele diz isso, um dos
guardas começa a se mexer, murmurando palavras confusas em
voz baixa. Pego a mão de Bastian e o puxo, arrastando-o pelas
escadas até a saída.
No momento em que o ar fresco bate na minha pele, sou
forçada a fechar os olhos, surpresa com o brilho repentino do luar e
a flora luminescente que ilumina nosso caminho.
Como as prisões são construídas na base das montanhas,
estamos longe da celebração que acontece na cidade. As únicas
vozes ainda estão distantes, embora isso não me conforte. Se há
uma coisa que eu sei sobre Ferrick, é que ele é inteligente.
Provavelmente notou a falta de segurança da prisão e já está
voltando com reforços; precisamos nos apressar para as docas.
— Qual é a sua afinidade? — Eu espio por cima do penhasco –
são cerca de quinze metros até as docas, e como conheço cada
passo desta ilha, estou confiante de que posso chegar lá
rapidamente, mas não creio que Bastian acompanhe.
— Terra? — Bastian diz, embora pareça mais uma pergunta do
que uma resposta.
— Perfeito. Apresse-se e construa algumas escadas no
penhasco. Nós as derrubaremos assim que chegarmos a areia.
Mas, em vez de se firmar em uma posição adequada ou fazer
qualquer movimento para usar sua magia, Bastian recua um passo.
— Acho que é melhor andarmos. Nós não queremos causar uma
comoção.
Quando ele aperta os lábios, eu praticamente posso sentir sua
ansiedade. Me viro totalmente para ele quando o entendimento
aparece e olho para as suas mãos – são calejadas e um pouco
arenosas, mas, por outro lado, imaculadas. Nenhuma sujeira sob
suas unhas bem cuidadas. E sua postura está toda errada; é mais
leve do que qualquer Valukan com afinidade com a terra que eu já
conheci.
Pego minha lâmina, e, antes que ele tenha tempo de reagir,
pressiono-a firmemente contra sua garganta.
— Você não é um Bargas. — Eu uso minha mão livre para
agarrá-lo pelos cabelos, mantendo-o firme. — Você não tem
afinidade, não é?
Bastian pisca para minha lâmina enquanto ele suspira. — Bem,
isso certamente não é muito educado da sua parte. Fui eu quem te
devolveu. — Puxo a lâmina para mais perto. — Ai! Tudo bem, não,
não sou Valukan! Sou marinheiro. Agora abaixe essa coisa e eu vou
explicar...
Aperto o cabelo dele e o puxo em direção à beira do penhasco,
deixando a adaga roçar sua pele. Bastian agarra meus braços para
se firmar, sua respiração acelerando. Um empurrão, e ele está
morto.
— Diga-me o que você fez ao barão — eu pressiono. — Você
tem o selo dele!
Os olhos de Bastian piscam para o canto, fazendo uma careta
para a queda atrás dele. Quando ele hesita em responder, eu o
abaixo ainda mais, até que seus joelhos começam a tremer.
— Ele está bem! Estrelas! Eu prometo, ele está bem. Eu entrei a
bordo de seu navio antes que ele deixasse Valuka e joguei uma
bolsa de ervas para dormir nos barris de vinho e água. O que usei
nesses guardas foi o último de meu suprimento; é por isso que eles
já estão acordando. Mas o barão e sua tripulação ingeriram o
suficiente para que, se eu tivesse que adivinhar, eles estejam a meio
caminho de Arida, dormindo no meio do mar.
Eu cerro os dentes. — Eu sou esperta demais para confiar em
um homem que roubou não apenas suas roupas, mas também seu
nome. Você não passa de um pirata ladrão.
Bastian joga as mãos para cima em defesa. — Como eu disse,
prefiro o termo “marinheiro”. E realmente, tudo isso é um grande
mal-entendido. Então, se você largar essa coisa...
As vozes outrora distantes se aproximam, e hesito em
pressionar a lâmina ainda mais. Se eu vou sair, precisa ser agora.
Encontro minha magia esperando e tento envolvê-la
timidamente – apenas o suficiente para aquecer minha pele – e me
concentro em ler a alma de Bastian. Com a minha magia ainda
enfraquecida com a performance, falta uma peça que não consigo
ler. Eu vejo apenas um véu enevoado de cinza claro, e o espírito de
aventura permanece em sua alma. É o suficiente para me dizer que
ele não é uma ameaça, mas não deixo transparecer que sei disso
ainda.
— Se você não é Valukan, então de onde você é?
Embora seu rosto fique escuro, ele relaxa o corpo e levanta o
queixo. — Essa é a razão pela qual eu menti. — Suas palavras são
calmas, mas confiantes, me desafiando a contrariá-lo. — Sou de
Zudoh e meu povo precisa da sua ajuda.
As palavras fazem minha lâmina afrouxar. Eu a retiro de sua
garganta e dou um passo rápido para trás.
— Diga-me por que eu deveria ajudar uma ilha banida. — Tento
esconder o medo da minha voz quando pergunto. Se Bastian
percebe, então não deixa transparecer.
— Porque não se trata apenas de Zudoh. Kaven quer destruir
todo o reino. E se você não vier comigo agora, ele terá sucesso.
Esse nome de novo. Kaven.
É como fogo na garganta e chumbo no estômago; um nome
que, no fundo do meu intestino, eu sei que de alguma forma, está
errado. Bastian tem as respostas que o pai não vai me dar.
Respostas que eu precisarei para governar corretamente Visidia.
Bastian pode não estar me dizendo toda a verdade, mas ele não
está mentindo sobre isso. E, por enquanto, com as vozes dos
guardas se aproximando e o futuro de Visidia em jogo, basta.
Eu guardo minha adaga e aceno com a cabeça para o
ziguezague que abre nosso caminho pelo penhasco. — Fique por
perto e me leve até o seu navio.
CAPÍTULO SEIS

Quando chegamos à areia, sem fôlego e pingando suor, não há um


único navio na baía que seja tripulado. Eu procuro a equipe de
Bastian, mas provavelmente todos tiveram permissão para ver
minha apresentação e aproveitar as festividades de Arida; se
Bastian planeja nos levar para longe, não conseguiremos sem eles.
No entanto, ele não para de se mover. Uma escada de corda oscila
do lado de um bergantim e ele a agarra, subindo com facilidade.
É um navio que me tira o fôlego, menor que o do meu pai, mas
longe de ser simples. Enquanto nossos navios são feitos de
carvalho, este é de um magnífico tom de branco que eu nunca vi
antes – feito de álamo ou madeira de bétula, talvez – e ornamentado
com ricos acabamentos dourados. Mais antigo, cheira a charme e
aventura.
Na proa, uma figura brilhante de uma serpente marinha olha
para mim, com a língua bifurcada como se estivesse assobiando.
Metade do rosto e bigodes está coberta de cracas esculpidas, o que
faz parecer que acabou de emergir das profundezas do mar. A visão
acelera meu coração e torna minha garganta engrossar de desejo. É
o navio mais lindo que eu já vi, e embora parte de mim saiba que
isso está longe do que eu deveria estar sentindo no meio de uma
fuga de casa, não posso ignorar a onda de excitação que aquece
meu sangue enquanto eu agarro a escada desgastada e me levanto
atrás de Bastian.
No momento em que jogo minhas pernas para o lado do navio,
ele já está com as mangas arregaçadas, no meio da elevação das
âncoras.
— Bem-vinda a bordo da Keel Haul! — Ele resmunga. — Seja
útil e me ajude a resolver isso.
— O que adianta se não temos uma tripulação para velejar
conosco?
Bastian revira os olhos. — Receio que não aceitemos
pessimismo a bordo deste navio, Princesa. Venha ajudar!
Limpo o suor da minha testa e me aproximo dele, desejando
que meu vestido não fosse tão pesado ou quase tão apertado
quando eu o ajudo a levantar as âncoras, surpresa com a facilidade
com que ela se move com apenas nós dois. Mas estou meio
distraída enquanto ajudo, fechando os olhos para aprimorar minha
magia e ver que outras almas ela pode sentir.
Mesmo abaixo do convés, Bastian é a única alma que posso
sentir. Solto as âncoras de uma vez, ignorando o suspiro
exasperado do pirata.
— Quem é este nós? — Eu exijo. — Somos os únicos neste
navio, e não há como navegar sozinhos.
— Agora, o que eu disse sobre o pessimismo? — Repreende
Bastian. — Se você não confia em mim, sinta-se à vontade para
pular da prancha e nadar de volta ao seu reino agora.
— Bem, eu realmente não precisaria nadar agora, precisaria?
Considerando que não podemos velejar.
Os lábios de Bastian se curvam quando ele termina de mover as
âncoras. — Ah, Tem certeza disso?
Eu sigo seu dedo quando ele aponta atrás de mim e estou tonta
novamente. Juro que estou aqui há não mais de dois minutos, mas
as margens de Arida estão a pelo menos trinta metros de distância.
Quando volto para Bastian, ele se senta no convés e dá um tapinha
no espaço à sua frente.
— Antes de entrarmos em detalhes — ele diz — preciso que
você me diga uma coisa: realmente não tinha ideia do que estava
acontecendo com os Kers? Nem sequer suspeitava?
— Claro que não! — Bato minha mão no convés, e ele franze a
testa olhando ofendido para o local em que bati. — Como você ousa
sugerir...
— Por que eu não insinuaria isso? — Argumenta Bastian. — A
maioria do reino sabe.
As palavras são garras para minha alma, rasgando seu
revestimento em pedaços. Se Bastian está dizendo a verdade,
então quanto meu pai conseguiu esconder de mim?
— Sim, bem, eu não fazia ideia. Se soubesse que eles estavam
sofrendo, não teria ficado em silêncio. Teria encontrado uma
maneira de ajudar. — As palavras não parecem suficientes. São
calmas e dolorosas, mas são tudo o que tenho para oferecer. — Eu
juro.
Não posso ter certeza de que Bastian sequer pisca quando ele
olha para mim. Seu rosto é tão severo e avaliador, como se
estivesse esperando que eu me encolhesse sob a pressão. Quando
não o faço, ele se recosta nas palmas das mãos, as linhas duras de
seu rosto eventualmente se suavizando com a crença.
— O rei é um tolo por não levar Kaven a sério. — Ele cospe o
título do meu pai. — Os Kers pararam de implorar por apoio que ele
se recusa a fornecer. Eles se voltaram para Kaven, um zudiano que
já teve o suficiente da mesma coisa. Ele tem levantado uma rebelião
de indivíduos afins, todos que acreditam que aprender várias
magias é uma necessidade para a sobrevivência de Visidia. O
problema com Kaven é que ele não sabe quando parar. Ao criar um
nome para si mesmo e formar essa rebelião, ele destruiu Zudoh,
apoiando apenas aqueles que tomaram partido enquanto deixavam
outros apodrecendo. Agora ele está alinhado com Kerost, onde está
fazendo a mesma coisa. — A voz de Bastian se aperta de raiva. —
Vim aqui para avisar seu pai que Kaven está expandindo seu
alcance para as outras ilhas, embora não devesse ter perdido meu
tempo. Eu sabia que ele nunca ouviria.
Descrença e preocupação entram em guerra dentro do meu
crânio. Não tivemos nada a ver com Zudoh desde que eu era
criança – então por que agora?
— O que essa rebelião quer exatamente? — Eu tenho que fazer
esforço para encontrar minha voz. É rouca do ar salgado, coçando
minha garganta a cada palavra.
Bastian não hesita em sua resposta, embora meu mundo
congele quando ele diz: — Eles querem o fim das Montaras.
Querem abolir a monarquia e praticar quantas mágicas quiserem.
Magia da alma incluída.
Eu quase rio quando o medo cresce dentro de mim. Não há
como saber se a umidade da minha pele se deve ao oceano ou ao
meu próprio suor. — Estão nos pedindo para deixá-los destruir
Visidia!
Bastian se inclina para frente e diz: — Sim, então não vamos
deixá-los ganhar. Kaven é o cérebro por trás dessa rebelião. Se o
derrubarmos, o resto vai desmoronar. Ele não tem o apoio
necessário para travar uma verdadeira guerra. No momento, os
Kers estão divididos. Apenas metade deles apoia Kaven, enquanto
os outros estão focados em reconstruir sua ilha por conta própria. E
os zudianos... — Ele leva um momento para considerar suas
próximas palavras, o rosto escurecendo. — A maioria deles quer
que Kaven se vá também. Mas temos que procurá-lo antes que as
outras ilhas se juntem à sua causa.
— E você espera que façamos isso sozinhos? — Eu o
pressiono. — Duas pessoas, contra uma rebelião? — Mil perguntas
aparecem minha mente. Quais são as táticas de Kaven? Quanto
tempo nós temos? Quais são os números? Mas este navio está se
movendo rápido e há pouco tempo para fazer minha escolha – voltar
e esperar que o pai consiga convencer Visidia a me dar outra
chance, ou colocar o destino em minhas próprias mãos e ganhar
minha chance.
— Não estou querendo começar uma guerra — ele me corrige.
— Estou querendo acabar com um homem, o que colocará um fim
em tudo isso. Disse que queria uma chance de ajudar seu reino,
então aqui está. Você aceita?
Meu peito aperta. Não com derrota, mas com propósito. A
salmoura do oceano é um perfume que me firma enquanto
pressiono meus punhos contra o meu colo para que Bastian não
possa saber o quão profundamente suas palavras ressoam.
— E qual o seu papel nisso tudo? — Pergunto, porque quero
recolher todas as informações que puder antes de dizer que tomei
minha decisão. — Devo acreditar que um pirata não tem segundas
intenções e está fazendo isso pelo bem do reino?
O oceano bate no navio, mas Bastian não se encolhe. Ele me
observa com a atenção de um felino particularmente inteligente. —
Quero minha casa de volta. E enquanto Kaven estiver lá, nunca a
terei. Esse é o meu único motivo, e com meu navio e sua magia,
acredito que faremos um belo par. Então, que tal você e eu
atacarmos um...
— Pela honra de Arida, não vou aceitar isso! — A voz vem de
trás.
Viro a cabeça e vejo Ferrick, encharcado e pingando água no
convés. Sua pele assumiu uma tonalidade esverdeada. Ele balança
um pouco, mal conseguindo içar uma florete à sua frente.
— Você sequestrou a princesa Amora — diz Ferrick — e estou
preparado para sacrificar minha vida para salvá-la. Eu o desafio
para um duelo!
Parece que ele está prestes a vomitar.
— Ferrick — eu gemo. — O que você está fazendo aqui? Isso
não é necessário.
Mas Bastian já está de pé. — Código de conduta, princesa - se
você não quiser parar em lugares clandestinos, certifique-se de
subir a escada quando terminar de escalá-la. — Ele suspira e
atravessa o convés, olhando por cima do traje esmeralda mal
ajustado de Ferrick com uma careta que eu entendo perfeitamente.
— Estou supondo que você é um Suntosan?
Ferrick endireita os ombros e tenta se orgulhar, apesar do enjoo
que colore a sua pele. — Sabia que havia algo de errado em você.
Graças aos deuses, confiei no meu instinto e voltei; vi o que você
fez com os guardas, pirata. Deixe Amora ir.
Bastian tira uma espada da bainha com cinto e bate na a lâmina
de Ferrick, como se estivesse a cumprimentando. — Ferrick, não é?
Suponho que já faz bastante tempo desde que tive um duelo
adequado. — Há estrelas nos olhos de Bastian e diversão
transbordando em suas palavras.
Ferrick empurra com seu florete, mas Bastian o evita sem olhar.
O barulho de aço ricocheteia no convés antes que o oceano
devore o som. O mar está menos suave do que nesta manhã. Está
zangado com o navio perturbando-o, balançando-o ferozmente
enquanto nos aventuramos fora das águas rasas.
Bastian empunha sua espada como se fosse uma extensão de
seu próprio corpo, inigualável por um Ferrick balançando e enjoado.
Ele se move sem esforço, pisando com a oscilação das ondas. Não
tenho dúvida de que ele é um pirata experiente. Sua língua e
inteligência são tão afiadas quanto a lâmina em sua mão. Ele faz
isso há muitos anos, mas nunca ouvi nenhuma história de um pirata
que navegou nos mares sem uma tripulação.
— Já perdeu um braço em um duelo, companheiro? — Bastian
pergunta enquanto desvia sem esforço do próximo ataque de
Ferrick. Não há tempo para considerar suas palavras antes que ele
pule para frente e derrube sua espada no oponente. O som do grito
surpreso de Ferrick enche o céu. Seu florete cai no chão e sua mão
direita cai ao lado dele.
CAPÍTULO SETE

— Pelos deuses! — Ferrick observa a sua mão com mais irritação


do que dor, e Bastian olha para o sangue que agora cobre o convés
de seu navio da mesma maneira. — Isso era mesmo necessário?
Tirando um lenço do bolso do casaco, Bastian limpa
meticulosamente o sangue da espada. Uma vez embainhada, ele dá
um passo à frente para examinar a mão decepada de Ferrick,
cortada logo abaixo do cotovelo.
Seu sangue já está congelando. Pele nova cresce ao redor da
ferida, formando um pequeno pedaço de carne e músculo. Quando
Bastian cutuca, Ferrick recua.
— Em nome das estrelas — Meu futuro noivo rosna. Sem armas
e com um braço inútil, ele ainda está tentando fingir resistência.
Embora eu esteja acostumada com a magia dele, é sempre
alarmante ver como sente pouca dor.
Olho de boca aberta para o braço, vergonha pelo Suntosan
afundando em meu intestino. Para ser justa, foi ele quem desafiou
Bastian, mas ninguém deveria perder tão decididamente.
— Foi um golpe baixo — eu digo.
— Relaxe, princesa. Sabia que não iria machucá-lo. Ele raspou
as mãos subindo a Keel Haul; vi as feridas se curando. — O olhar
que Bastian me mostra não passa de um breve revirar os olhos, não
querendo ceder de seu prazer absoluto. Para o desgosto de Ferrick,
o pirata fecha o espaço entre eles mais uma vez e cutuca os
ligamentos em desenvolvimento. — O quão maravilhoso você é,
Suntosan! Sempre ouvi que a magia da restauração é
impressionante, mas pessoas que podem se regenerar e curar
outras pessoas? Tinha que ver com meus próprios olhos.
— Fico feliz em ajudar com suas fantasias — Ferrick bufa
amargamente. — Nunca deveria ter esperado uma luta justa de
espadas de um pirata. — Ele diz a palavra como se houvesse
veneno em sua língua, mas mesmo no brilho fraco do luar, o rubor
nas suas bochechas pálidas é evidente. Sei que deveria me sentir
mal por ele, mas a cada segundo que sou forçada a passar com
Ferrick, sabendo que estaremos sempre ligados, minha frustração
cresce.
É uma pena que nossas mágicas sejam tão adequadas. Se eu
precisar de um dente, posso pegar um de Ferrick. Se eu precisar de
um braço, ele tem de sobra. Ele é uma raça rara de Suntosan;
enquanto a maioria só tem a capacidade de se regenerar ou curar
os outros, ele domina as duas habilidades. Com Ferrick ao meu
lado, eu seria a animancer mais forte que Arida já viu.
— Chega de brigas. Espadas para baixo, rapazes. — Ambos se
viram para mim.
— Não se envolva com ele, Amora. — O rosto de Ferrick está
comprimido e bravo quando olha para o próprio braço. — Maldito
pirata, leve-nos de volta a Arida neste instante.
Bastian o ignora, se aproximando de mim, e percebo pela
primeira vez o quão alto ele é. Confiante também, mas um tolo.
Quando ele dá outro passo à frente, desembainho minha adaga e
pressiono contra o seu peito. O sorriso de Bastian desaparece ao
mesmo tempo, e ele aperta os lábios com ofensa.
— Realmente? Mais uma vez? — Ele levanta as mãos no ar. Ao
meu lado, Ferrick exala um suspiro aliviado.
Aperto a lâmina contra sua pele, o suficiente para o aço morder.
— Você já me deu informações suficientes; posso descobrir o resto
sozinha. Me dê uma razão pela qual não devo jogá-lo ao mar e fazer
a viagem eu mesma.
Para minha surpresa, Bastian ri. Embora ele pare quando a
adaga afunda mais em seu peito. — Então, este é o agradecimento
que recebo por ajudá-la? Estrelas, eu não imaginaria que você seria
tão charmosa. Jogue-me ao mar, se quiser, mas como deve ter
notado, não tenho exatamente muitos na equipe para comandar. Me
jogue fora e perderá seu navio. Além disso, você não é uma capitã.
Nem saberia como navegar.
— Zudoh está direto para o sul — argumento, mas Bastian
apenas pisca e sorri.
— Com certeza está. Mas receio que seja um pouco mais
complicado que isso, amor.
Pressiono a lâmina para frente até sentir seus músculos
flexionarem embaixo dela. — E por quê isso?
Embora ele tente manter seu sorriso fácil, seu queixo fica tenso.
— Se é isso que recebo por compartilhar informações livremente,
acho que você terá que me manter a bordo para descobrir.
Eu embainho minha adaga, nunca pretendendo realmente
esfaqueá-lo. É apenas uma boa forma de garantir que ele saiba
quem está no comando.
— Amora, acho que nós deveríamos reconsiderar essa
estratégia...
Corto Ferrick rapidamente. — Não há nós aqui. Eu não quero
conselheiros.
Bastian escova seu peito como se eu tivesse sujado seu casaco
com a minha lâmina. — Então, suponho que você ainda esteja
dentro? — O mar tenta roubar seu sussurro, mas eu o agarro
firmemente. O calor substitui a frieza do meu corpo como uma
tensão estranha e enigmática que eletrifica minha pele e preenche o
espaço entre nós ao considerar essas palavras. Os cabelos ao
longo dos meus braços se arrepiam.
E, enquanto meu coração bate, sei que não há como dizer não.
Vi a zombaria do meu pai sobre a ameaça de Kaven mais cedo e
ouvi os sussurros. Eu mesma vi os olhos cambaleantes de Kalea e
sei que ela nunca será capaz de assumir a coroa.
Se Visidia estiver realmente em perigo, não deixarei seu futuro
ao acaso. Nem deixarei meu próprio destino à persuasão do meu
pai. Vou pegá-lo com minhas próprias mãos e usar isso como uma
oportunidade.
Respiro fundo e levanto o queixo em direção a Bastian. — Estou
dentro — digo a ele, para grande protesto de Ferrick.
— Mas eles estão forçando Kalea a se mudar para Arida até o
final do verão — argumenta Ferrick. — Daria o trono para ela tão
facilmente?
— Claro que não. Sei o que estou fazendo. — Faço minha voz
firme o suficiente para que os dois garotos congelem com a dureza
dela. Minha tia conhece os riscos tão bem quanto eu; vai ganhar o
máximo de tempo possível e vou usá-lo para parar Kaven e ganhar
outra chance de me tornar animancer do meu povo.
— Você disse que eles queriam trazer Kalea aqui até o final do
verão? Então é quando voltaremos. E em nossa jornada, você vai
explicar este navio, pirata. Este navio maravilhoso. — Meu olhar
circula ao redor do convés. Como é velejar tão facilmente sem
tripulação? — E você vai me ensinar a navegar.
Só então Bastian mostra frustração. Ele puxa o lábio inferior até
a metade e o morde, roendo como se estivesse passando seus
pensamentos.
— Você tem que entender, um homem vê seu navio como vê
um filho. Deixar alguém navegar é… complicado.
Entre ele e meu pai, ambos se recusando a me ensinar, estou
cansada de desculpas. — Se você quer minha ajuda para voltar
para casa, vai me ensinar a navegar na Keel Haul.”
Ele se anima um pouco, como se estivesse satisfeito por eu me
lembrar do nome, então morde o canto do lábio como se quisesse
esconder qualquer expressão verdadeira que ele sentisse. — Tudo
bem, mas só depois que você tiver um sentimento por ela. Conheça-
a, leve-a para jantar. Descobri que as mulheres não gostam quando
você tenta controlá-las. — Ele dá um tapinha no navio e ele geme
sob a mão, as velas cheias nos impulsionando cada vez mais para o
mar.
Mordo meu sorriso, não querendo que Bastian veja. Algo me diz
que ele já conhece e entende minha emoção. Sua casa é a água, e
enquanto amo minha ilha e meu papel nela, parte de mim inveja sua
liberdade. Ele não tem ninguém além de si mesmo para cuidar;
como deve ser isso?
— Justo. — Concordo. — Embora tenhamos mais uma coisa
para discutir.
Ele já sabe. Bastian vira-se para Ferrick, que recua um passo
defensivo e apronta seu florete. Seu braço direito se contrai e se
estica um pouco mais. Tento não encarar a carne em formação,
infinitamente confusa com a estranha magia.
— Não vou embora — diz com firmeza. — Enquanto Amora
permanecer com você, ficarei para acompanhá-la. Como noivo dela,
é meu dever protegê-la.
Os lábios de Bastian se contraem quando ele levanta uma
sobrancelha. — Noivo, hein? Perdoe minha ignorância, não tenho
ideia de como não percebi a química jorrando entre os dois.
O peito de Ferrick treme quando ele respira fundo e encara
Bastian.
O pirata permanece perfeitamente à vontade. —
Independentemente disso, você é outra boca para alimentar e não
faz parte do negócio. Diga-me por que não devo te largar agora e
deixá-lo nadar de volta para Arida. — Cada uma das palavras de
Bastian se articula como uma pergunta, descaradamente curiosa. E
ainda há algo sobre a presença dele que me enerva. Ele tem a
mesma centelha de vida – o mesmo conhecimento do mundo – que
meu pai tem. É porque ele é um viajante. O ciúme me acompanha,
espalhando suas raízes.
— Você sabe porque eu deveria ficar. — Ferrick endireita a
coluna e tenta não olhar para a mão decepada. O pirata a fita de
qualquer maneira, e me inclino para pegar o membro, fazendo uma
careta pela forma como ele fica mole nas minhas palmas. Seus
dedos farão uma boa adição à minha mochila assim que eu os
quebrar; qualquer outra coisa pode ser fornecida aos peixes.
A maioria do corpo de Ferrick é indolor e descartável; não há
como negar o poder que eu poderia exercer com isso. Mas ele está
se passando por idiota; é um curandeiro incrivelmente habilidoso. E
se quisermos combater um homem que tem seguidores que me
querem morta, ter um curandeiro por perto pode não ser a pior idéia.
Mas se ele se juntar a nós, tenho condições a esclarecer.
— Fique comigo e me ajude — digo a ele. — Mas se você
ignorar meus comandos e agir por conta própria, se tentar qualquer
coisa pelas minhas costas, considere-se jogado ao mar. Isso é
maior do que você ou eu, Ferrick.
A garganta de Ferrick balança quando ele engole. Ele
compartilha um olhar com o pirata presunçoso. Bastian aponta
alegremente para a prancha da Keel Haul e caminha com os dedos
no ar enquanto assobia uma música que imita a queda.
As bochechas de Ferrick ficam vermelhas quando ele abaixa a
cabeça em reverência. — Como desejar, princesa.
Um nó torcido no meu peito se desenrola quando uma tensão
que eu não sabia que existia é retirada do meu corpo. Isso está
acontecendo, então.
— Então está resolvido? — Bastian se desenrola de onde se
apoiava no mastro principal. — Temos um acordo?
Ferrick e eu trocamos um olhar, embora seja principalmente eu
silenciosamente desafiando-o a discordar. Eventualmente, ele
assente, e com um sorriso, estendo minha mão para Bastian. Ele
aceita com prazer.
— Bem-vinda à tripulação. — Suas palavras encharcam minha
pele com calor. Mergulho-as em mim como uma esponja e alimento
a minha alma faminta e ansiosa.
Sou Amora Montara, princesa de Visidia, e serei a futura Alta
Animancer.
Eu sou a escolha certa. A única escolha. E protegerei meu
reino.
CAPÍTULO OITO

Bastian nos leva ao casco do navio, e, embora eu já soubesse que


não havia outras almas a bordo, ainda estou nervosa ao ver por mim
mesma que realmente não há tripulação. É pequeno, mas Keel Haul
ainda é um navio, e nunca conheci um navio que navegasse sem
tripulação.
O que ele quis dizer quando disse que, sem ele, o navio iria
parar de navegar? De alguma forma, por mais mágico que seja,
Bastian tem um barco que pode navegar inteiramente por seu único
comando. Eu sei que ele não vai me dizer como, mas, durante
nossa jornada juntos, pretendo descobrir.
Pelo menos a falta de uma equipe significa que Ferrick e eu
temos nossas próprias cabines. São quartos minúsculos com
apenas uma rede pendurada no teto, mas não me importo; cercada
pelo mar, mal consigo pensar em dormir.
— Você tem algo para eu vestir na cama? — Pergunto a
Bastian, que franze a testa de sua posição na porta.
— Não estou acostumado a trazer princesas a bordo da Keel
Haul. — Ele quase não se desculpa. — Você não pode continuar
com a roupa que está usando agora?
Levanto uma sobrancelha. — Esta é uma roupa cerimonial em
que acabei de matar um homem. Então não, não vou usar isso para
dormir, obrigada. E tudo o que tenho por baixo desse vestido é a
pele que prefiro manter coberta, considerando que estou no navio
de um pirata.
Enquanto a pele pálida de Ferrick escurece, a expressão de
Bastian se contorce em horror fingido.
—Keel Haul pode ser feroz, mas ela ainda é uma dama. Eu
nunca ousaria atormentar a sensibilidade dela ao fazer você desfilar
nua. — Bastian diz a palavra como se estivesse irritando sua língua,
mas a diversão distorce a corrente de seu tom. — Vou encontrar
algo adequado para você agora e pode pegar algo mais apropriado
quando chegarmos a Ikae. É uma cidade portuária na costa de
Mornute.
— Sei onde fica. — Tento ignorar como meu estômago palpita
com a mesma expectativa ansiosa que sinto quando os chefs do
palácio fazem ginnada fresca. É claro que eu não estive lá, mas sei
tudo sobre a cidade de Yuriel e tia Kalea. Lar das melhores jóias e
da moda, é uma cidade turística que eu sempre quis visitar. Minha
tia me traz vestidos de lá todos os anos, e eles rapidamente se
tornam meus favoritos. Os itens que produzem são exuberantes e
maravilhosos, embora não seja uma cidade conhecida por ser
acessível.
Dou uma olhada em Bastian: seu casaco escarlate é impecável
e do tecido mais grosso que se pode encontrar em Arida. É de uma
qualidade ainda melhor do que eu pensava inicialmente, com
pequenas lascas de fios dourados costurados nos punhos. Ele teria
que pagar um alfaiate real para conseguir um casaco com detalhes
dourados e o emblema real gravado nas abotoaduras – isso, ou ele
o roubou. Mas suas calças bege também são costuradas com
perfeição, e mesmo que ele viva em um navio, sua barba é
meticulosamente aparada e estilizada. Não é à toa que conseguiu
se passar por conselheiro – sua estética é louvável. Especialmente
comparado a Ferrick, cujo blazer esmeralda, junto com a camisa,
são muito folgados e as calças muito apertadas. Faz da sua forma a
de um triângulo invertido. Ele está vestido como se tivesse tirado
suas roupas direto de um naufrágio.
Mas, por mais que adorasse desfilar pelas lojas Ikae com
Bastian, o ar do final do verão já esfria com a ameaça da mudança
de estação. Temos apenas até lá antes da tia Kalea se mudar para
Arida e aceitar a magia da alma.
— Não devemos perder tempo — digo. — Vamos navegar
diretamente para Zudoh.
Encostado na parede, Bastian levanta uma mão, movendo-a
enquanto fala. — Confie em mim, princesa, eu adoraria fazer isso.
Mas lembra quando eu disse que chegar a Zudoh não seria tão
fácil? Eles ergueram uma barreira ao redor de sua ilha quando
foram banidos. Precisamos de uma maneira de contorná-la.
Ao meu lado, Ferrick faz uma careta. — E vamos descobrir isso
em uma cidade conhecida pela moda?
— Você ficaria surpreso. — A luz nos olhos de Bastian nunca
parece fraca, e seu sorriso torto é brilhante demais para um pirata.
— Toda cidade tem seus cantos escondidos. Apenas precisa saber
onde procurar. Agora, se me der licença por um momento, voltarei
em breve.
No instante em que ele se foi, sinto a presença de Ferrick tão
pesada quanto uma âncora. — Você realmente confia nele? — Ele
pergunta.
Quase bufo. — Claro que não. Ele é um pirata. — Me movo ao
seu redor para sair da minha cabine, procurando no corredor por
algum lugar para me limpar, mas ele me segue.
— Então, por que tudo isso? — Ferrick pressiona, sua voz um
sussurro urgente. — Tem que haver outra maneira. Podemos
navegar de volta para Arida e contar ao seu pai...
— Posso não confiar no pirata, mas nunca disse que não
acreditava nele. — Vi Bastian tentando avisar os outros sobre o que
estava acontecendo, mesmo sendo inútil. Meu pai pensa que está
protegendo Visidia; se eu quiser me apossar do meu destino e
proteger esse reino, tenho que agir contra ele indo a Zudoh e
encontrando Kaven.
Voltar a Arida agora, depois de sair da prisão, seria uma
sentença de morte. E não apenas para mim. Se eu conseguir,
ninguém mais saberá da traição da tia Kalea.
Sou forçada a desviar do caminho apertado da cabeça do navio
para alcançar a única bacia de lavagem. Embora o navio
desgastado pelo tempo ranja a cada passo, Bastian passou algum
tempo arrumando-o. A madeira branca brilha com laca fresca, e os
quartos são bem organizados e limpos, como se o pirata estivesse
esperando convidados a qualquer momento.
Abaixo meu rosto em direção à bacia e esfrego minha pele. A
água fica turva de rouge e cremes enquanto lavo as lembranças da
noite anterior. Ferrick continua parado lá, com um rosto azedo e
preocupação nos olhos o tempo todo. Finalmente, quando eu não
aguento mais o seu olhar insistente, ele diz: — Tanto para o nosso
noivado, hein?
Mudo o meu foco para a bacia. — Agora não é a hora.
— Bem, quando é a hora certa? Estou tentando falar com você
sobre isso há semanas.
— Não há nada para falar...
— Existe, sim! — As palavras são tão exasperadas que me
pegam de surpresa. Minha boca se fecha quando vejo que o seu
rosto ficou pálido e rosado, as bochechas corando. Respirando
fundo, ele diz com mais calma: — Existe. Nenhum de nós pediu
isso, mas sabe o que sinto por você há anos, Amora. Sei que nunca
fui mais do que um pensamento passageiro para você, mas
realmente acredito que você é a herdeira certa de Visidia, e ajudarei
a tornar isso uma realidade da maneira que puder. Então, quando
estivermos em casa... quero que saiba que planejo ser bom para
você. Não tive a chance de dizer isso antes, mas realmente quero
que saiba disso.
A forma concentrada que ele olha para mim seria suficiente para
fazer a maioria das pessoas recuar, mas eu não. Não posso dizer
que o amo, ou agir como se estivesse satisfeita com suas palavras,
porque ele sabe como penso – nunca haverá nada entre nós.
— Por enquanto, preciso que se concentre na tarefa em mãos.
— Sei que não é o que ele quer ouvir, mas é tudo o que posso
oferecer. — Precisamos proteger Visidia.
Seus lábios se apertam e ele mergulha a cabeça em um
pequeno aceno.
Fico grata quando os passos de Bastian enchem o cômodo,
poupando-nos de mais constrangimento. Ele traz peças de roupa
penduradas nos braços, tomando cuidado para não amassar o
tecido.
— Estas não me servem mais — ele interrompe — mas eu tive
que manter de qualquer maneira, porque... quero dizer, olhe para
essas roupas. — Bastian as coloca em meus braços. O linho da
camisa é suave contra a minha pele.
— A costura é fenomenal. — Eu levanto um casaco de rubi de
seus braços para admirar.
Bastian faz um barulho de apreciação no fundo da garganta. ―
Não é? Custou duas pérolas negras e uma bolsa cheia de vidro
marinho, então espero que sirva com perfeição.
— Não há como um pirata pagar por isso — resmunga Ferrick.
O queixo de Bastian se levanta com desafio. — O salário de um
pirata é do tamanho que ele quiser. Mas se quer saber, cortejei uma
garota muito adorável por isso. A filha do melhor alfaiate de
Mornute. — Ele revira os ombros com orgulho inicial antes da
realização. — Falando nisso, teremos que evitar essa loja.
— Você é horrível. — Pressiono a roupa contra o meu peito.
Mais cedo, eu achava minha roupa e adornos adoráveis. Agora, me
sufocam com lembranças de serem consumidos por minha magia.
Nada seria melhor do que rasgá-los, mudar para algo leve e rastejar
para a rede.
Eu passo pelos dois rapazes e vou em direção a minha cabine.
— Estamos prontos para navegar para Ikae? — Pergunto, sem
olhar para trás.
— Sim — diz Bastian. — Com a velocidade da Keel Haul,
estaremos lá antes do pôr do sol de amanhã.
Eu aceno. — E, me diga novamente, como parar lá vai nos
ajudar a encontrar Kaven?
Inclinando a cabeça contra a parede, os braços de Bastian se
dobram sobre o peito largo. Um sorriso preguiçoso se espalha por
seus lábios quando ele diz: — Sabe, princesa, uma coisa
maravilhosa sobre eu ser dono deste navio e você precisar dele
emprestado, é que sou eu quem dá as ordens – algo que você não
deve ser acostumada, eu sei, muito horrível. Mas vamos parar em
Ikae para obter informações, e isso é tudo que precisa saber.
Com a mão na porta da minha cabine, atiro ao garoto um olhar
sujo. — Tudo bem, guarde seus segredos. Mas lembre-se de que,
se você tentar qualquer coisa, te apunhalarei sem pensar duas
vezes.
— Está flertando comigo? É um pouco difícil de dizer,
considerando o quanto você é aterrorizante.
Me afasto dele enquanto meu pescoço e bochechas esquentam,
para não deixá-lo me ver perturbada. — Você é insuportável.
Quando encontrarmos Kaven, saiba que pretendo jogá-lo ao mar e
tornar este navio meu.
— Bem, ninguém pode dizer que você não é honesta. — Não o
vejo rir quando entro na cabine, mas ouço. — Descanse bem,
princesa.
Eu bato a porta da cabine com um bufo. Que idiota horrível e
arrogante. O dia em que conseguir comandar este navio como meu
e chutá-lo para o mar será realmente fantástico.
Deixando de lado todos os pensamentos sobre Bastian, começo
a arrancar minhas roupas. Tiro o colar e o coloco dentro da capa,
junto com o adorável vestido de safira em um canto para mantê-los
seguros, meu pescoço e ombros frios em sua nudez enquanto o
peso dos meus adornos desaparece. O pedaço da mão decepada
de Ferrick chama minha atenção, mas vou lidar com isso amanhã.
Por enquanto, visto a camisa de linho e a calça de algodão
solta. Enrolo minha mochila ainda mais apertada em volta da minha
cintura para segurá-las enquanto subo na rede.
Estando tão baixo, as ondas soam mais ferozes do que quando
batem contra Keel Haul. O navio balança suavemente contra o
oceano, e a pausa rítmica deixa meus olhos pesados. Contra o
rangido baixo da madeira, os gemidos do vento e o bater das ondas,
encontro o sono facilmente.
Estou mais à vontade neste navio do que deveria.
CAPÍTULO NOVE

Nunca dormi tão bem como na minha primeira noite no oceano. Não
sonhei com minha execução, como temia, nem com a magia
aridiana ou com os olhos que mudavam de cor da tia Kalea. Pela
primeira vez em mais tempo do que me lembro, não sonhei com
minha magia ou com Visidia.
Na verdade, nem sonhei. Dormi a noite toda, apesar da rede.
Minha cabine é escura e sem janelas. Quando pressiono minha
mão contra a madeira, a frieza belisca minha pele. Não há como
saber a hora, mas estou bem descansada e minha mente já dispara.
Esta pequena cabine não é mais reconfortante, mas claustrofóbica.
Eu desejo o ar salgado em meus pulmões.
Aperto a bolsa para que ela segure minhas calças, na qual a
barra está para dentro das minhas botas, e jogo o casaco escarlate
de Bastian sobre mim antes de subir as rangidas escadas de
madeira até o convés. Meu sangue palpita de excitação que eu mal
entendo – deveria estar focada em chegar a Zudoh e encontrar
Kaven antes do final do verão. Não me distrair com a alegria de
acordar a bordo de um navio à vela. O ar gelado inunda meus
pulmões no momento em que saio. Está coberto por um fino véu de
névoa que envolve minha pele e agradavelmente acaricia meu
rosto, me cumprimentando como um amigo esquecido. O odor de
salmoura e algas marinhas é o mais espesso que já conheci. Isso
me diz que estamos mais longe da baía de Arida do que jamais me
aventurei, e quando minha pele se arrepia com o pensamento, não
é por preocupação.
É emoção. Talvez animação, que seria melhor experimentada
em diferentes circunstâncias, mas ainda assim. Ansiava por isso há
anos.
Vou até o proa, me inclino sobre a borda e respiro fundo até
meus pulmões quase estourarem. As gaivotas acima de mim gritam
quando mergulham na água, pegando peixes frenéticos em seus
bicos e engolindo-os antes de subir de volta ao céu e voltar ao
bando. O dia mal atravessou o céu nebuloso e as gotas de água
que caem na minha bochecha ainda estão frias.
Ainda assim, um calor relaxado enche meu peito e me afundo
em seu conforto.
— Bom dia, princesa. — Bastian está atrás de mim, com um
pedaço de pão na palma da mão. Ele parte ao meio e me entrega
um pedaço. — Também tem um pouco de carne seca, embora eu
tenha medo de que a comida em Keel Haul não seja tão requintada
quanto a de Arida. — O navio geme contra as marés, e Bastian dá
um tapinha gentilmente na borda. — Desculpa, amor. Você sabe
que é verdade.
Nunca vi Bastian à luz do dia, e fico surpresa ao descobrir que
ele se parece mais com um viajante experiente do que meu pai.
Enquanto o sol se banha em sua pele, lançando ouro sobre a sua
coloração marrom quente, seus olhos tem um brilho que só pode
advir de se encharcar sob a luz das estrelas. Eles são uma avelã
impressionante com manchas brilhantes de amarelo, e há um
punhado de sardas espalhadas abaixo eles. Ele não é como
qualquer pessoa que eu já tenha visto antes – moldado pelo mundo,
criado por viagens e aventura. Há histórias nesses olhos, mas não
me apaixono por elas tão facilmente.
Eu pego o pão oferecido.
— Bom dia, pirata. — Mordo o pão, surpresa ao descobrir que
ainda está macio. Como se estivesse lendo minha expressão,
Bastian fica triste. Lentamente, fazendo uma apresentação, ele tira
algo do bolso do peito. Está embrulhado em um lenço estampado e
estou curiosa demais para me divertir com isso. Com a palma da
mão esticada, ele usa a outra mão para desenrolar lentamente o
que está dentro.
É ginnada, e eu estou salivando.
— Você roubou isso de Arida — digo, apenas colocando como
uma meia pergunta.
— Não considero isso um roubo. — Ele faz um movimento para
embrulhar a sobremesa, mas para com uma risada quando me nota
olhando. — Penso nisso como diligentemente reabastecer Keel Haul
antes que uma princesa faminta e seu noivo-boca-extra-para-
alimentar se juntem a mim. Você tem sorte. Caso contrário,
estaríamos comendo pão e vinho obsoletos até encontrarmos um
lugar para conseguir algo melhor. — Ele passa a mão pelos cabelos
castanhos escuros e percebo que estão salpicados de pedaços de
areia nos quais o sol se agarrava e descorava.
— Quer dizer um lugar para roubar? — Pergunto com um
sorriso.
Bastian bufa. — Apenas pegue. Eu vi o jeito que você olhava
essas coisas ontem à noite.
— Estava me observando a noite toda, então? — Bastian revira
os olhos quando eu pergunto.
— Você se subestima. Na sua coroa, era difícil te perder de
vista.
A língua desse pirata é solta demais para o próprio bem; Não
me incomodo em tentar superá-lo com uma resposta. Em vez disso,
pego a ginnada da mão dele e dou uma mordida, gemendo quando
a amêndoa açucarada e a crosta amanteigada derretem na minha
boca.
— Estou feliz por ter estocado mais algumas. — Bastian ri
enquanto enfio o resto da ginnada na minha boca. — Não é sempre
que você acaba em um festival gigante com comida de graça. É
melhor tirar proveito de circunstâncias tão boas.
Outra gaivota grita antes de mergulhar para a refeição. Eu
assisto, terminando a minha enquanto Bastian se inclina contra a
borda do navio e olha para o mar. Ele pode ter sido bonito sob o
brilho das estrelas, mas no sol é glorioso e confortável. Deve
conhecer cada centímetro da Keel Haul.
— Keel Haul é um navio mágico — eu digo. — Não é?
Seus ombros enrijecem enquanto ele mantém o foco nas
gaivotas. Duas delas lutam acima da água por um peixe, suas asas
batendo furiosamente contra as ondas enquanto seus guinchos
enchem o ar.
— Suponho que você possa dizer isso — ele admite. — Não é o
tipo de navio que exige uma tripulação.
Magia, então. Mas não do tipo que eu tenha visto antes. Até os
Curmanianos mais talentosos têm que viajar em grupos para dirigir
navios pesados, e isso não é nada como a magia de maldição
protetora que me ensinaram que os zudianos praticavam.
Eu o observo pelo canto do olho, esperando que explique mais,
mas ele não o faz. Ele pega um pequeno pedaço de pão e o joga no
mar. Um peixe maior do que qualquer outro que eu já vi flutua na
superfície e o chupa antes que as gaivotas possam roubá-lo.
Eu dou outra mordida no pão. — Bem, se não vai me contar
sobre isso, pelo menos dirá o quanto você está familiarizado com
Kaven? Se Zudoh barricou como disse, ou como você saiu da ilha?
A tensão dá um nó nos seus ombros. Ele joga outro pedaço de
pão na água antes de terminar. — Parti há séculos, antes da
barricada. Eu conhecia Kaven naquela época, quando essa
bagunça estava começando. Ele roubou minha magia de mim, e
pretendo recuperá-la.
O nevoeiro deve finalmente ter atravessado meu casaco e meus
ossos. Um calafrio toca interior.
— O que você quer dizer com ele roubou sua magia? — Me
envolvo em meus braços, as palavras quase pegando. A magia faz
parte do ser de uma pessoa; todo mundo tem. Você pode aprendê-
la, estudá-la, crescer com ela, mas não pode fazê-la desaparecer
uma vez que é sua. Mesmo se você nunca usá-la, ainda estará para
sempre com você. — Nunca houve um relato de alguém capaz de
fazer isso. É impossível.
— Também nunca houve relatos de um navio mágico. No
entanto, aqui estamos. — Bastian balança o braço atrás dele para
gesticular em torno de Keel Haul. — O mundo não funciona apenas
com seus olhos, princesa. Há verdade em mais do que você pode
ver.
Eu me acomodo na minha posição debruçada sobre Keel Haul.
O sol está começando a romper a espessa camada de nuvens.
Seus raios esquentam minhas mãos quando as fecho em punhos.
Depois de ver parte de sua alma limpa na noite passada, meu
instinto diz que Bastian está dizendo a verdade – pelo menos, por
que ele mentiria sobre algo tão pessoal? – e, se eu aprendi alguma
coisa nos meus dezoito anos, é seguir o meu instinto. Se Bastian
está dizendo a verdade, e se a magia pode realmente ser roubada,
então Kaven é uma ameaça maior do que eu poderia ter imaginado.
Por que eu não sabia disso? Por que ninguém sabe?
— Como Kaven te roubou? — Pergunto. — E, se você não tem
magia, como está navegando aqui?
Bastian balança a cabeça. — Lembre-se de que eu acabei de
assistir você matar um homem. — Suas palavras são mais objetivas
do que frias. — E você ameaçou me esfaquear – várias vezes, devo
acrescentar – e roubar meu navio. Então me perdoe se desconfio
tanto de você quanto de mim.
— Ele é realmente tão perigoso? — Eu pergunto baixinho.
Uma sombra cruza o seu rosto. — Conhece mais alguém com o
poder de roubar a magia de outra pessoa?
Balanço a cabeça. Não consigo nem imaginar como seria
alguém roubar minha magia – seria muito invasivo. Como se
estivessem roubando parte da minha alma. Mas eu relaxo sabendo
que não apenas minha mágica está ligada à minha alma, mas
também minha própria linhagem. Duvido que algo assim possa ser
roubado.
Bastian levanta o olhar para se concentrar em Ferrick quando
ele se aproxima, vestido da mesma maneira que na noite passada.
Seu braço voltou a crescer um pouco desde ontem, embora ainda
esteja com uma parte faltando, do antebraço para baixo.
— Bom dia, noivo — Bastian grita, mudando rapidamente de
assunto. — Há pão e carne seca no depósito, se você estiver com
fome.
Com a menção de comida, Ferrick pressiona a mão no
estômago e geme. Ele parece ainda pior do que na noite passada.
Sua pele verde rivaliza com a cor do seu blazer. Com um dos lenços
de Bastian enfiado na mão, ele enxuga o suor da testa.
— Não, obrigado. — A voz de Ferrick é comprimida. — Como
alguém pode viver em um navio? Eu nunca vou entender. Senti
como se estivesse flutuando no mar a noite inteira.
— Isso porque você estava — eu digo.
Bastian ri e se move para dar um tapinha no ombro de Ferrick,
todo charme e sorrisos mais uma vez. — Não é bem um marinheiro,
não é, companheiro? Não se preocupe, algumas pessoas levam
dias no mar até que se adaptem. Fique por aqui e terá as pernas do
mar em pouco tempo. Mas, enquanto isso, se você vai vomitar, tente
evitar fazê-lo no meu navio.
Ferrick balança. Ele parece pronto para destruir Keel Haul.
— Como você está, Amora? — Pergunta, olhando o pão nas
minhas mãos. Quando dou uma última mordida, Ferrick parece
ainda mais enjoado.
— Isso não me incomoda — é tudo o que digo, por que como
devo dizer a verdade? Como admito que estar nesse navio parece
tão natural quanto respirar? Que quando eu acordei esta manhã,
não era na possibilidade da minha execução em que pensei
primeiro. Foi a emoção de viajar. De velejar.
Não é como imaginava, mas estou vivendo um sonho que tive
desde a primeira vez que vi o oceano.
— Você está familiarizada — diz Bastian. — Até acordou com o
sol.
Eu aceito o elogio dele com um sorriso. Embora ainda exista
certa curiosidade entre nós, deixo passar por enquanto. Talvez
algumas lembranças sejam dolorosas demais para serem
compartilhadas. — Isso significa que você começará a me ensinar a
velejar?
— Boa tentativa, mas estar familiarizada com o mar não
significa que você está com a Keel Haul. Seu entusiasmo é
encantador, mas ainda não. — A diversão na voz dele é como um
bolo de mel, quente e doce. — Além disso, você provavelmente
deveria fazer algo sobre esse pequeno presente amputado no seu
quarto. Antes que comece a apodrecer, por favor.
Ferrick se senta e segura a cabeça entre os joelhos. Ele não
está doente o suficiente para não bufar.
— Vai ser sangrento — digo a Bastian, que torce o nariz. O deck
de Keel Haul está impecável, o que significa que ele deve ter
passado horas esfregando a bagunça que fez na noite anterior.
— Mergulhe no oceano e depois vamos para baixo. Tenho
alguns sacos de estopa em que você pode trabalhar.
Concordo com a cabeça, instintivamente colocando a mão na
minha mochila. Depois de tudo que usei para a execução, está
quase vazia. Vou me sentir melhor quando estiver pesada
novamente.
— Você está bem com essas roupas ficando manchadas? — Eu
pergunto.
Bastian leva um longo momento para considerar a minha
pergunta. Eventualmente, e provavelmente apenas porque eles não
se encaixam mais nele, ele cede. — Apenas... tire o casaco,
primeiro. — Ele se vira para Ferrick. — E você se sentirá melhor se
permanecer no convés. Tente descer o mínimo possível. Levante a
cabeça e olhe o horizonte. Parece bom, companheiro? Olhos no
horizonte.
Ferrick lentamente levanta a cabeça e, em vez de abaixá-la
entre os joelhos, ele coloca o queixo em cima de um, força os olhos
para o horizonte e geme.
Bastian considera isso como uma dispensa. Ele se vira para
mim. — Que tal me mostrar o que planeja fazer com esse braço?
Meus dedos tremem ao meu lado enquanto hesito, pensando
nos rostos horrorizados da noite passada. Dos gritos aterrorizados
do meu povo.
Embora minha magia visasse impressioná-los, meu
desempenho apenas solidificou o medo do meu povo.
Durante anos, fiz essa parte do meu trabalho em particular,
treinando para o dia em que seria capaz de reivindicar meu título
como herdeira do trono de Visidia. Mas agora não há alegria em
mostrar minha magia. Meus nervos se contorcem quando penso em
Bastian assistindo.
Ele vai achar minha magia muito bagunçada? Muito brutal? Ou
entenderá que o que faço é necessário para a sobrevivência de
Visidia?
Ele me segue até minha cabine, onde tiro a mão do chão antes
de voltar ao o convés para separá-la. Meu nariz se torce com o odor
rançoso de carne estragada tingida de doçura, como se alguém
tentasse mascarar o cheiro da morte com um perfume horrível. A
pele ficou azulada durante a noite. É desprezível, mas Bastian não
pode parar de olhar enquanto eu puxo minha adaga.
Mãos não são incomuns para eu trabalhar. Elas são pequenas o
suficiente e fáceis de extrair. Desloco a lâmina através da artéria
radial e o sangue grosso e gelatinoso congela sob a pele azul. Não
querendo pegar Keel Haul, eu tomo cuidado quando seguro sobre a
borda e retiro o sangue oxidado com minha adaga. Manchas
vermelhas pintam a água da cor de um hematoma escuro.
Quando finalmente chegamos ao convés, Bastian pega dois
sacos de estopa do armazenamento.
— Me ajude a entender algo sobre sua magia — ele começa
enquanto as espalha no chão de madeira. — Por que, mesmo se
você estiver usando os ossos de Ferrick ou – deuses proíbam –
toda a mão dele, sua magia não o machuca? Por que isso
machucaria outra pessoa?
— Boa pergunta. — Me agacho acima da estopa, depois me
ajoelho para manter o equilíbrio. Muito abaixo do convés, as ondas
são ferozes e chocantes. — Eu poderia machucar Ferrick, mas
escolho a quem vinculo minha magia, e vincular exige um esforço
consciente. Primeiro tenho que estar perto deles e ser capaz de
olhar para a sua alma enquanto o faço. Usar os ossos de Ferrick
como base para minha magia, e não como pasta, é uma escolha. —
Tento não pensar em quanta confiança Ferrick tem em mim para me
deixar manter essa mão decepada dele enquanto a coloco sobre a
estopa e abro a palma da mão. O sangue é mínimo quando eu
estico a pele para longe da fina camada de gordura, depois corto
meu caminho através dos músculos abaixo.
Embora eu tenha drenado o máximo de sangue possível, isso
não impede que minhas mãos se tornem uma bagunça de tecido.
Bastian engasga, interrompendo seu próprio vômito.
Eu congelo com o som.
— Isso é muito... interessante — ele começa a dizer, embora
suas palavras sejam tensas. Com as sobrancelhas franzidas,
levanto os olhos bem a tempo de vê-lo dar uma olhada no membro
dissecado e desmaiar no chão.
Meu corpo inflama com vergonha. Ela vem em um calor que
enche minha barriga, e uma onda de nervosismo que torna meus
movimentos mais nítidos. Mais rápido. Movo-me para cobrir a mão,
mas o navio treme quando Keel Haul atinge um feroz pedaço de
água. Ele lança um som fantasmagórico, cheio de madeira lascada
e rangendo, e eu sou jogada de volta no chão. Agarro-me a um
pesado barril de vinho para me firmar, esperando até Keel Haul se
estabilizar, depois digo silenciosamente um agradecimento a
Ferrick, que deve ter assumido o comando enquanto provavelmente
vomitava o seu cérebro.
Perto de mim, as pontas dos dedos de Bastian se contraem.
— Se você tem um estômago fraco, não deveria ter pedido para
assistir! — As palavras saem mais amargas do que pretendo ao
pensar em cada par de olhos que me olharam com horror e nojo.
Esse trabalho pode ser confuso, mas isso é necessário para
usar minha magia, e é tudo o temos. Ontem à noite, cometi um erro
e me deixei impressionar – por Kaven, tia Kalea e pelos rostos
aterrorizados de centenas de visidianos. Mas eu não sou uma serva
da minha magia. Eu a comando, e quero que outros vejam isso.
Quando Bastian pisca com clareza em sua visão, ele mantém
sua atenção longe do membro dissecado. Cubro com a estopa.
Por um lado, entendo a reação dele. Na primeira vez em que
papai me mostrou como dissecar algo, começamos com um pé
cheio de tendões desarrumados e pegajosos que grudam nos dedos
e são quase impossíveis de contornar. Fiquei chateada por ter
manchado o vestido que usara naquele dia, mas ter magia não
significa apenas aprender a viver com ela, mas também aceitá-la
como parte de você. Quando comecei a praticar magia da alma, a
morte parecia uma coisa trágica e doentia. Mas como protetora de
Visidia, esse foi um obstáculo que fui forçada a atravessar há muito
tempo. Se Bastian quiser me usar e minha magia, ele deve entender
o que está usando.
— Eu nunca vi você como do tipo que desmaia. — Não posso
conter a amargura que sai em minhas palavras.
Ele esfrega o pescoço. — Desculpe. — Embora suas palavras
sejam cortadas com aborrecimento, elas são genuínas. — É tão...
— Impressionante. — Eu tento ignorar como a reação dele dói.
Minha magia é estranha. Mas por que as pessoas não conseguem
ver que também é incrível? — Assumi essa mágica para servir
Visidia e proteger meu povo. Impressionante é a palavra que você
procura.
Suas sobrancelhas estão franzidas como se ele estivesse
contemplando alguma coisa, e eu não gosto da aparência.
— Talvez você deva ir verificar Ferrick. — Não é
necessariamente uma sugestão, mas Bastian a considera como
uma. Olho-o cautelosamente enquanto ele esfrega as mãos no
rosto.
— Não, não. Eu sinto muito. Não é o sangue que me incomoda.
Eu nunca fui tão minucioso com o corpo de alguém antes. Se
começar a me sentir mal de novo, vou embora. Eu prometo. Mas
isso é algo que quero ver. Você está certa, é... impressionante.
Pressiono meus lábios enquanto puxo lentamente a estopa para
revelar a mão. Bastian luta para manter o rosto congelado e os
ombros firmes. Ele mal respira, os nós dos dedos pressionados em
seu colo para se firmar, mas está claro que ele quer ficar.
E porque quero que alguém entenda minha magia, eu deixo.
CAPÍTULO DEZ

Terminamos de lavar e secar os ossos várias horas depois, assim


que as montanhas de Ikae começam a pairar sobre nós. Minha boca
seca enquanto encaro sua extravagância, segurando a borda do
navio para me equilibrar.
Nos terraços, parece que dezenas de degraus gigantes foram
esculpidos na encosta branca da montanha, cada um deles cheio de
lagos de água rosa e cercados por casas deslumbrantes, tudo em
uma variedade de cores e estilos. Algumas casas são encantadas,
de modo que a fumaça púrpura sai das chaminés altas e entra no
sol poente, enquanto outras parecem feitas de vidro do mar
cintilante. Fileiras e fileiras de vinhedos se estendem até os picos
das montanhas, onde a luz do sol brilha mais. A principal fonte de
renda de Mornute sempre foi a exportação de álcool. Só de pensar
em todo o vinho que eles estão fabricando ali, fico com água na
boca.
A baía azul é rodeada com uma espuma verde suave, e quando
olho rapidamente para Keel Haul e entro na água, ainda vejo o
recife de coral que fica embaixo. Os barulhos estrondosos que
enchem o ar faz com que os peixes se escondam, mas a baía em si
está cheia de vida.
Eu ouço o povo de Ikae antes de ver o navio ancorado no qual
eles se amontoam, aplaudindo enquanto acenam suaves bandeiras
rosa no ar.
— Duas peças de ouro em Romer! — Alguém grita, reunido com
um punhado de aplausos.
— Três peças de ouro e uma pérola no Keanu!
Inclino-me sobre a borda da Keel Haul para ver melhor, e sou
hipnotizada pelas figuras frívolas que desfilam ao redor do navio.
Estava usando penas há apenas um dia e, no entanto, elas não
parecem mais o estilo atual. Apesar da umidade feroz, as mulheres
usam vestidos pastéis pesados de escamas de peixe que refletem a
luz do sol e ardem meus olhos.
Os homens são igualmente extravagantes. A maioria usa calças
luminosas e tops simples em tons pastel com ombreiras gigantes.
Outros prenderam as escamas diretamente na pele do pescoço e
sob os olhos, e adornaram as calças com bolhas ou tecido que imita
as ondas do oceano.
Na prancha, dois homens ficam lado a lado apenas com suas
roupas de baixo. Seus corpos manchados de óleo são magros e
preenchidos com músculos.
— O que é isso? — Pergunto a Bastian. O pirata se inclina ao
meu lado depois de torcer o leme e nos guiar para o lado direito da
baía, fora do caminho de outro navio.
— Cannon Rushing — ele responde. — Também conhecido
como o esporte mais ridículo conhecido pelo homem. Ahoy! — Ele
grita a última palavra alto o suficiente para chamar a atenção
daqueles em um navio vizinho. Várias pessoas acenam em
reconhecimento.
— Aqui é um bom local? — Bastian grita.
Somos recebidos com uma mistura de copos em formato de
flauta e buzinas antes que as pessoas no outro navio retornem ao
que quer que estejam fazendo.
Uma senhora com uma linda pele de obsidiana e cabelos lilás
passa pelo convés, segurando uma bolsa brilhante de escama de
peixe. Ela a estende para qualquer pessoa que grite um preço, e
eles jogam seu dinheiro sem hesitar.
— Eu nunca vi nada assim.
Bastian bufa. — E você não verá em nenhum outro lugar.
Os homens na prancha se abaixam. Eles se agarram a ela
quando uma mulher banhada pelo sol atrás deles levanta uma
bandeira rosa no ar. Ela a segura ali, provocando, e então a joga
com uma risada aguda.
O oceano treme e pulo de volta para a borda da Keel Haul. O
navio vizinho cospe uma bala de canhão, que passa pela baía
limpa. Meus ouvidos queimam, mas não consigo desviar o olhar. Me
jogo contra a borda e vejo os dois homens da prancha mergulharem
na água clara.
Eles já haviam nadado uma longa distância quando
ressurgiram, jogando os braços para frente e correndo em direção à
bala afundada.
Eles estão competindo.
— Você só pode estar brincando.
Um deles mergulha na direção da bala de canhão e volta em
pouco tempo. O outro ainda está atrás, agitando os braços e
tentando alcançá-lo. Enquanto isso, os tripulantes do navio
aplaudem e agitam suas bandeiras, bebendo em frascos e em
copos em formato de flauta.
— Eles estão desperdiçando pólvora — diz Ferrick.
— Eles estão desperdiçando dinheiro — eu o corrijo,
pressionando as pontas dos dedos contra a madeira de Keel Haul.
Um dos homens aparece com a bala de canhão e os espectadores
ficam loucos. Gritam para que ele se apresse para que possam
passar para o próximo grupo.
— Claro que sim — responde Bastian. — O que mais você faria
com um suprimento ilimitado de ouro, além de gastar tudo em jogos
que os simplórios nunca poderiam pagar?
Sei que ele está sendo sarcástico, mas lembro muito bem do
que ouvi sobre o sofrimento de Kerost. Posso pensar em algumas
maneiras para eles gastarem o seu dinheiro e tempo extra.
Retiro meu foco da multidão aplaudindo quando Bastian atraca
o navio.
A diferença entre Arida e Mornute não para nos jogos que
jogamos. Os edifícios aqui são luxuosos e encantados – uma
fachada branca brilhante e janelas de vidro imaculadas em uma loja,
pináculos lilás que chegam impossivelmente perto do céu no teto da
próxima. Tudo foi feito para chamar atenção, incluindo a areia rosa
pêssego do outro lado da costa.
A baía está cheia de navios mercantes e uma ocasional
caravela em viagem. Com cada vez mais navios se aproximando,
espero que a madeira branca e a pequena estrutura de Keel
Haulnão se destaquem ferozmente. Mas esse certamente é um
navio difícil de perder.
É estranho ter uma superfície firme debaixo dos meus pés.
Poucos minutos depois do desembarque, já sinto falta do
movimento das ondas, embora Ferrick não pudesse estar mais feliz.
Depois de passar os primeiros minutos esvaziando o estômago em
uma pilha de pedras, ele bate a mão no chão e grita de alegria.
— Quase tinha esquecido como é ter um corpo que fica em um
só lugar — ele suspira.
— Não fique muito confortável. Assim que obtivermos nossas
informações, sairemos daqui. — Bastian se move ao nosso redor
para assumir a liderança.
As docas se conectam diretamente ao coração da cidade, e a
madeira dá lugar a ruas elegantes que parecem ser feitas de vitrais.
A luz do sol os faz piscar em tons pastel deslumbrantes. Eles são
quase bonitos demais para pisar, mas eu percebo que não passam
de outro encantamento quando eles seguram meu peso facilmente.
TA cidade ao nosso redor ruge com vida, com o perfume de
doces assados e cheia de fofocas.
— CAMARÃO!
Quase tropeço quando um homem passa, gritando em plenos
pulmões.
— Duas pérolas para cada camarão, quatro por um pargo!
CAMARÃO AQUI!
— Quatro pérolas por um pargo? — Eu repito. — Não há como
alguém pagar isso a ele.
Assim que as palavras saem da minha boca, duas mulheres se
aproximam do comerciante com seus filhos gêmeos atrás. Os
meninos são agitados, se abraçando e esquivando um do outro em
uma mistura de risadas e zombarias. Eles chamam nossa atenção e
a luz nos olhos de Bastian fica sombria. Ele observa os meninos
com o queixo fixo e uma expressão indiscernível. Quando observa
os rostos das mães, ele enfia as mãos profundamente nos bolsos do
casaco e vira na direção oposta. Elas são todas sorrisos enquanto
pegam uma peça de ouro e várias pérolas de uma pequena bolsa
esmeralda e as colocam na mão do comerciante. O casal Suntosan
nem pensa em negociar enquanto sai com dois pargos e um pouco
de camarão.
— Espero que seja o melhor camarão que elas já tenham
experimentado — digo.
Bastian apenas grunhe e nos conduz pela rua. Não há como
acompanhar tudo o que está acontecendo ao nosso redor. Estou
impressionada com os gritos persistentes e o aceno de
comerciantes que vendem de tudo, desde vestidos de chiffon até
suco de lichia. Eles lotam as ruas com seus perfumes afiados e
produtos assados, enquanto turistas e Ikaeans com bolsos pesados
apreciam suas mercadorias.
Ao contrário de Arida, este lugar não possui beleza natural. É
excêntrico e movimentado, e eu amo cada centímetro daqui.
Embora não se possa negar o quão frívola a cidade é com sua
riqueza.
— É tão diferente — diz Ferrick, olhando o azulejo amarelo
cintilante de uma chapelaria.
— Você nunca viajou também? — Bastian pergunta.
Ferrick balança a cabeça. — Somente para Suntosu. Meu pai é
um curandeiro influente, de confiança dos Montaras. Ele foi
favorecido pela rainha – até ajudou no parto de Amora. Chegou um
ponto em que estávamos visitando com tanta frequência que meu
pai decidiu nos mudar para Arida quando eu tinha sete anos. Ele
voltou para Suntosu quando se aposentou no ano passado, e o
visito em férias ocasionais. Mas velejar não é exatamente o meu
hobby favorito.
— Bem, todas as ilhas são muito diferentes — observa Bastian.
— Mornute tem a maior taxa de turismo. É fácil chegar da maioria
das ilhas e bonita o suficiente para querer visitar. É um lugar feito
para os ricos.
O brilho de uma pedra preciosa azul-marinho chama minha
atenção, tentando-me por trás do vidro de uma joalheria.
Eu quero explorar cada uma das lojas, mas as luzes atrás das
janelas de vidro se apagam quando o mercado começa lentamente
a fechar. Homens e mulheres se agasalham em casacos bordados e
brilhantes, capas de escamas de peixe enquanto a brisa noturna
chega da costa.
Mais abaixo na rua, na beira da calçada, as vozes ficam mais
altas quando as tabernas começam a se encher.
Bastian segue meu olhar.
— Gostaria de uma bebida? — pergunta, e, no começo, não sei
dizer se está falando sério. Então arrepios percorrem meu braço e
pescoço quando ele pressiona uma mão gentil na parte de baixo
das minhas costas e nos conduz em direção a uma taberna. Pela
janela, vejo que está totalmente ocupada por homens bonitos, de
ternos perfeitamente ajustados e maquiagem vibrante, e por
mulheres impressionantes em vestidos cintilantes de escamas e
acessórios excêntricos de cabeças de peixe em tons pastel. Uma
mulher ainda tem o que parece ser uma estrela do mar de verdade
presa no lado esquerdo do rosto.
Eu deveria dizer a Bastian que não. Que precisamos nos
apressar e continuar, como ele disse anteriormente. Mas, em vez
disso, minhas palavras me traem e acho que meus pés já estão me
movendo para frente. — Você tem certeza que temos tempo?
— Confie em mim, é exatamente aqui que precisamos estar. —
Seus dedos se enrolam na maçaneta da porta enquanto seu sorriso
perverso se alarga. — Precisamos ficar quietos até que a vida
noturna acabe e, além disso, há alguém que preciso ver aqui.
Mordo meu sorriso quando a porta se abre. No interior, o ar é
selvagem com fofocas e música.
Uma lareira com chamas verdes fica no canto de trás da
taberna, irradiando o calor da queima de espinheiro. Isso me atrai
para a frente, para a conversa feliz e o riso desinibido. Eu relaxo
apesar da multidão, convencida pela suave canção de ninar de um
acordeão dançando no ar. Dou uma olhada dupla quando percebo
que ele descansa sozinho em um banquinho, tocando inteiramente
por vontade própria. Não há músico à vista, mas os clientes jogam
liberalmente moedas de ouro e pérolas coloridas em um copo de
estanho diante do banquinho.
Bastian caça uma mesa perto da parte de trás e faz um gesto
para nos sentarmos. Enquanto Ferrick se move devagar, tentando
manter a mão dobrada sob a capa de rubi emprestada, caminho
rapidamente pela multidão e sento-me. Com os Curmanans capazes
de espalhar notícias tão rapidamente, as pessoas sem dúvida
estarão me procurando. Mas eles podem compartilhar apenas
palavras, não imagens, e nem todo mundo conhece meu rosto.
No meio da multidão, o barulho aumenta no ar denso do vinho.
Embora os clientes desta taberna estejam vestidos de forma
extravagante, ninguém se incomoda em zombar de Ferrick e eu.
Muitas pessoas precisam passar por aqui para que os Ikaeans não
se preocupem com nossas escolhas de moda fora da tendência.
Os clientes tomam suas bebidas enquanto caem em suas
cadeiras, se deliciando com pequenos bolos e rindo de piadas e
conversas tolas. Tudo o que eles querem é se divertir. Ninguém
desconfia de nós.
Bastian sorri para uma mulher com uma bandeja nas mãos,
vestida com mais simplicidade do que as outras em um liso vestido
lilás suave. Ela assente e diz que estará conosco em breve.
Quando Ferrick se senta, ele imediatamente aponta para as
duas saídas. — Essa não é uma boa ideia. Amora é da realeza. Ela
não deveria estar sujeita a algo tão imundo quanto uma taberna. E
se alguém a reconhecer?
— Por que você não tenta dizer a palavra R um pouco mais alto,
se está tão preocupado que alguém que a reconheça? — Bastian
rosna.
— Essa taberna “imunda” tem algumas das pessoas mais
extravagantes que já vi. — Lanço um olhar para Ferrick e ele não
discorda. Ainda assim, seu rosto se contorce em uma máscara de
aborrecimento, as sobrancelhas afundando na testa criando linhas
profundas. Ele se enrugará prematuramente se continuar assim.
— E não ficaremos aqui por muito tempo — acrescenta Bastian.
— Por enquanto, tente se misturar.
A garçonete chega à nossa mesa. O rosto e o peito brilham com
um fino véu de suor, e as bochechas pálidas estão vermelhas por
sua agitação. Mesmo assim, ela é educada quando se aproxima.
— O que eu posso trazer para vocês? — Ela olha cada um de
nós, provavelmente observando nossas roupas estranhas. Seus
olhos descansam em mim por mais tempo do que nos outros e algo
em meu intestino afunda.
Ela não pode me reconhecer. Ainda não. Não quando acabei de
sair de Arida.
A mulher não se encolhe. A mão que colocou no quadril saliente
me diz que estou sendo paranóica e deveria parar de desperdiçar
meu tempo. Ela provavelmente está pensando nas outras centenas
de coisas que tem que fazer depois de pegar nosso pedido.
— Vamos pegar alguns desses bolos, dois copos de cerveja…
— A voz de Bastian se retrai quando ele me olha.
— Hidromel — eu respondo.
— E um copo de hidromel — ele ecoa com uma pitada de
surpresa. — Nós também vamos pegar as capturas mais frescas de
barracuda, se você as tiver.
Meu estômago se revira com a idéia de peixe com hidromel e
bolos, mas há algo nos olhos de Bastian que me diz que ele não
está pedindo uma refeição.
— Nós não servimos isso aqui — diz a mulher com desdém,
embora seus olhos escureçam ao avaliar Bastian. Ele inclina a
cabeça para trás para lhe dar um de seus sorrisos, como se isso a
encantasse. Mas a mulher apenas olha, impressionada.
— Bem, onde posso encontrar algumas? — Ele estende a mão
sobre a mesa. Entre dois dedos, há um lampejo de uma pequena
moeda de ouro.
A mulher coloca a mão na mesa e Bastian joga a moeda tão
rapidamente que, se eu tivesse piscado, teria perdido.
— Ouvi dizer que pode encontrá-las perto de Maribel, às vezes.
É a loja com as bolhas cor de rosa. Confie em mim, saberá quando
a vir. — Ela deixa cair a moeda no seu top. — É mais fácil pegar
barracudas tarde da noite, mas elas desaparecem rapidamente.
Você vai querer uma antes do nascer do sol.
— Obrigado pela dica — diz Bastian. — Com certeza farei isso.
A mulher sorri enquanto se afasta da mesa. — Voltarei com as
bebidas.
Somente quando ela está fora do alcance das nossas vozes,
Ferrick se inclina para frente. — Isso foi algo... ilícito? — Horror
silencioso amarra suas palavras.
Nunca ninguém revirou os olhos com tanto talento dramático
quanto Bastian faz agora. — Se você não se animar, companheiro,
outros sentirão o seu medo. Você fede a ele. E, por favor, tire esse
maldito capuz? Você só está chamando mais atenção para si
mesmo.
Ferrick cerra a única mão em punho no colo. — Vocês dois não
estão preocupados? Tecnicamente, Amora, todo mundo te
considera uma fugitiva. Com tantos oradores da mente de
Curmanan quanto sua família possui, certamente as outras ilhas já
estarão em alerta agora.
Uma bebida cai sobre a mesa. Todos nós ficamos sem falar
enquanto a mulher descarrega as outras duas, e então um prato
com pequenos bolos que dá água na boca ao mesmo tempo. Eles
parecem incríveis – minúsculos e decorados com fondant rosa e
lilás, ou com pequenas flores de açúcar polvilhadas com glitter. A
mulher sai sem outra palavra, carregando sua bandeja pela metade
para outra mesa, e eu coloco um bolo na minha boca
imediatamente.
Bastian pega a cerveja e dá um longo gole antes de suspirar no
líquido dourado. — Você não tem nenhum senso de aventura? —
Ele olha Ferrick por cima da caneca. — Nenhum? Tudo estava
escondido na ponta do dedo mindinho que cortei?
Ferrick cora. Ponho uma mão em seu braço bom enquanto
alcanço meu hidromel com a outra. É de um tom ouro brilhante e
nítido. Quando levanto o nariz, quase me jogo para trás. A doçura
mal mascara a intensidade do álcool.
— Ferrick tem o direito de se preocupar — digo. — Você disse
que estávamos aqui para obter informações; descobrir uma maneira
de chegar a Zudoh. Então, por que todos esses enigmas?
Bastian passa o dedo pela borda da cerveja antes de tomar
outro gole. — Estamos aqui para encontrar um caminho para chegar
a Zudoh. Tenho amigos que podem nos dar as informações de que
precisamos, mas digamos que eles são muito procurados, e não
muito fãs de permanecer no mesmo lugar por muito tempo. Os
enigmas são para o benefício deles, não o seu. — Ele leva a cerveja
nos lábios novamente, mas desta vez seus olhos piscam para me
olhar da borda. — Estou do seu lado, princesa. Não tenho mágica,
lembra? Estou perfeitamente ciente de que você poderia me matar
em um segundo, se quisesse, e gosto de estar vivo. Tudo o que
quero é que Kaven se vá.
— Você mencionou isso — digo. — Mas o que não entendo é o
porquê de um líder de uma rebelião contra Visidia roubaria sua
magia. Como você está envolvido em tudo isso?
Bastian coloca sua caneca na mesa, mas mantém uma mão em
concha em torno dela. Seus lábios são uma linha tensa. — Se está
insinuando que sou parte da rebelião...
Ferrick fica tenso ao meu lado, mas balanço minha cabeça. —
Se a rebelião quer acabar com a monarquia, eles também me
querem morta. Você teria tentado me matar na noite passada ou na
prisão quando eu estava sem armas. E nunca teria me dito que era
Zudiano.
Ferrick parece tão doente quanto em Keel Haul. É claro que ele
está processando as notícias mentalmente enquanto sua testa se
mexe. — Nunca conheci um zudiano antes.
— E nunca conheci alguém que pudesse regenerar um membro
cortado — medita Bastian. — Infelizmente, nós dois existimos.
Inclino-me para pegar outro pequeno bolo, aliviando a tensão.
— Pensei que os zudianos odiavam os visidianos. Meu pai me disse
que eles discordavam da maneira como os Montaras governavam.
Bastian balança a cabeça. — Zudoh foi banido por causa de
Kaven. Porque ele queria que o trono queimasse ainda naquela
época. A maioria do meu povo não tem nada a ver com isso; eles só
têm medo do que Kaven fará se eles se curvarem à coroa.
— Mais medo do que o meu pai fará com eles se não o fizerem?
— Pergunto, e uma sombra passa pelo rosto de Bastian.
— O rei Audric é uma vaga ameaça; alguém de quem apenas
ouvimos falar, mas que raramente vemos. Kaven é quem detém o
poder sobre Zudoh. Sua magia é tão forte quanto perigosa; ele não
se concentra em usá-lo de forma protetora, como todos nós. Em vez
disso, ele a empunha como uma arma. Eu escapei de Zudoh
quando tive a chance, mas não foi antes de ele roubar minha magia
e assumir o controle da minha casa. Kaven é o único que as
pessoas veem, então é a ele que elas temem. Não o seu pai. Os
dois nem podem ser comparados.
O bolo tem gosto de metal quando eu o engulo, irregular e
doloroso.
— Então... Zudoh não odeia Visidia? — Ferrick se recosta na
cadeira, os braços cruzados sobre o peito.
Bastian se inclina para trás também e leva a cerveja aos lábios.
— Se o fazem, é só porque Visidia não interveio para parar Kaven
mais cedo. Sem ele, Zudoh estaria prosperando. Mas ele é o motivo
pelo qual fomos cortados do comércio.
Eles têm todo o direito à sua raiva. A magia de uma pessoa faz
parte do seu ser. Se meu pai realmente soubesse que havia um
homem por aí que de alguma forma aprendeu a roubá-la, ele não o
teria parado? Por que ele ignoraria isso?
— Vamos acabar com ele rapidamente — afirmo, tomando um
longo gole do meu hidromel. — Antes que seu alcance se estenda
ainda mais no meu reino.
Bastian fica quieto por um momento e depois levanta sua
bebida na minha. — Eu vou beber a isso. — Ele acena com
expectativa para a cerveja a frente de Ferrick, também.
Ferrick suspira e cede. Nunca o vi beber, mas ele toma metade
da caneca em dois goles antes de colocá-la de volta na mesa. —
Não estou bem com isso — ressalta — mas farei o que puder para
ajudar.
— Bom. — Bastian tira uma pérola rosa do bolso e a joga no
copo do acordeão. O instrumento mergulha como se estivesse
curvando-se, sem perder uma nota. — Então bebam, todos. Temos
pelo menos mais uma hora para desperdiçar e então será hora de
pegar algumas barracudas.
CAPÍTULO ONZE

Quando saímos da taverna, eu havia tomado meu hidromel e


comido cinco pequenos bolos. Bastian não havia demonstrado
hesitação em pedir mais para mim, embora não estivesse claro se
ele realmente pudesse pagar a minha refeição, assim como os seis
litros de cerveja que ele e Ferrick consumiram.
Bastian pediu licença para ir ao banheiro minutos atrás e, ao
voltar, noto uma pequena bolsa de couro recém-amarrada ao seu
cinto. Moedas tinem enquanto ele caminha.
— Hora de ir. — Ele coloca três moedas de prata sobre a mesa.
Embora finja estar confortável, sua pele brilha com suor e seus
dedos se contraem, muito nervosos. Esse dinheiro não pertence a
ele.
A risada de Ferrick enche a sala. É um som barulhento e
bêbado que atinge o teto e faz com que várias pessoas olhem na
nossa direção. Ele sempre corou facilmente, mas agora seu rosto
está tão vermelho que rivaliza com seus cabelos cor de fogo. Seus
brilhantes olhos verdes estão ensanguentados e cheios de lágrimas
de diversão, embora nenhuma piada tenha sido contada.
— Mais uma! — Ele tenta puxar o pirata de volta para sua
cadeira, mas Bastian afasta a mão. Ferrick olha para ela com uma
carranca profunda.
— Mais uma e eu vou ter que arrastar você daqui. — Os olhos
de Bastian quase se contraem na parte de trás de seu crânio. — E
não queremos ficar mais tempo do que o aceitável. — Ele olha para
a bolsa.
Ferrick dá uma olhada e engasga. — Você roubou isso? —
pergunta, alto demais.
Se olhares pudessem matar, Ferrick já estaria morto. A sala se
acalma, e tenho certeza de que Bastian sente a atenção dos outros
clientes, assim como eu.
Minha pele se arrepia com a presença de olhos que nos
encaram e a curiosidade cravada neles. Os ombros de Bastian
tremem enquanto ele se esforça para manter a compostura,
colocando uma mão firme no braço de Ferrick.
— Precisamos ir. — Tanto a intensidade da voz de Bastian
quanto a pontada de atenção dos clientes tornam isso óbvio. Limpo
minha garganta e pego minhas coisas antes de deixar a mesa.
A dor que desperta da idéia de partir me surpreende. Gostaria
que houvesse tempo suficiente para me afundar em um barril de
hidromel e encher meu corpo com mais cem pequenos bolos
luxuosos. Conversar com Ikaeans sobre coisas tolas, como moda e
tendências.
Eu cerro os punhos com força e lembro-me de que um dia vou
ter essa oportunidade. Mas somente se continuarmos com a
missão.
O ar da taverna ficou quente devido às respirações e aos corpos
enquanto todos nos olhavam. Mantenho minha cabeça baixa, não
dando a eles a chance de vislumbrar meu rosto. Ferrick segue
relutantemente, tropeçando a cada poucos passos. Seu rosto
corado faz uma carranca para Bastian, como se estivesse
desafiando o pirata. A testa de Bastian arqueia, mas ele não diz
nada enquanto andamos através da multidão e saímos da taverna.
A brisa fresca e a névoa do oceano rapidamente nos
cumprimentam. Afundam no meu calor restante, fazendo-me desejar
ter um casaco mais pesado.
As ruas são um sussurro do que eram horas antes, e agora está
claro porque Bastian queria que esperássemos. No final da noite,
todos estão em casa ou em uma das tavernas, curtindo a vida
noturna de Ikae. As lojas nas ruas estão escuras e vazias; ninguém
está por perto para ver-nos esgueirando por dentro. Bastian nos
leva até a parte de trás da Maribel, que sabemos que é a loja que
procuramos no momento em que a vemos.
Parece ter sido feita por milhares de bolhas cor de rosa que
brilham, estouram e se formam novamente à medida que nos
aproximamos. Elas criam uma pequena sinfonia silenciosa que me
lembra o pop pop pop do vinho espumante.
Embora pareça frágil, a loja é robusta enquanto Bastian tenta
lidar com a maçaneta. Ela cede facilmente sob seu aperto.
As pontas dos meus dedos coçam de desejo quando a porta se
abre para uma loja ampla, com roupas lindas que revestem todas as
paredes. Já não mais formados por bolhas, o piso e as paredes
agora são de um mármore rico.
— Você precisará de suprimentos para a jornada — diz Bastian
— então pegue o que precisar enquanto procuro.
— Procurar? — Eu respondo. — O quê?
— Você já viu uma barracuda? Se vir um símbolo com uma,
avise-me. — Bastian se agacha no limiar. Se inclina contra ele,
como se estivesse usando a moldura como apoio, enquanto respira,
trêmulo. Se não o conhecesse, acharia que o pirata estava nervoso.
Lentamente, ele se afasta, deslocando-se entre as roupas.
Eu o deixo em paz, meu coração batendo forte na garganta,
pesado de desejo.
O interior da loja é de tirar o fôlego. Cada peça de roupa que se
possa imaginar se alinha na parede, desde casacos de escamas de
peixe a vestidos chiques e justos. Em Arida, todas as minhas roupas
eram feitas ou importadas. Ser capaz de entrar em uma loja e
escolher algo é algo inédito.
Estou mais apaixonada por este lugar a cada segundo que
passa.
Em algum lugar ao meu lado, Ferrick soluça. — Você quer que
eu roube? — pergunta horrorizado, seu rosto corado tremendo. —
Eu deveria... eu deveria chamar as autoridades, seu pirata!
Tiro um casaco do cabide e o jogo nos braços de Ferrick. Ele se
encolhe, e cerca de três segundos depois, tropeça, surpreso.
— Não estamos roubando — digo a ele docemente, colocando
outra camisa em seus braços. Ele torce o nariz com desagrado. —
Comprei esta loja para você como presente de noivado. Quero que
pegue o que quiser.
Seu rosto suaviza, os olhos brilhando com prazer bêbado. —
Você é tão maravilhosa. Isso é — ele soluça — tão legal da sua
parte.
— Sim, Ferrick, é incrivelmente agradável. — Pressiono uma
mão gentil em seu ombro e o guio para frente. — Agora escolha
algumas roupas.
Por um momento, ele simplesmente fica ali, olhando para o local
onde eu pressionei seu ombro com um pequeno sorriso. Reviro os
olhos e volto ao trabalho.
Uma camisa azul marinho de linho chama minha atenção. Pego-
a e a coloco no braço, deixando-me fingir por um momento que
estou fazendo compras com meus amigos. Que viemos até aqui não
para acabar com uma rebelião, mas simplesmente para viajar e ser
feliz.
Minha noite na taverna com Ferrick e Bastian me estragou. Lá,
era quase fácil acreditar que nada disso estava acontecendo. Que
minha demonstração de magia foi excelente, e finalmente me provei
forte o suficiente para terminar meu treinamento e navegar pelo
reino.
Mas a taverna era uma linda mentira.
Me concentro na tarefa. Não preciso de vestidos, mas roupas
folgadas o suficiente para me mover; apenas não tão frouxas a
ponto de ter que usar as cordas de Keel Haul para prendê-las.
Desde que as roupas sempre foram feitas para mim, as calças
são um mistério. Eu as seguro na minha cintura e uso minha
imaginação para determinar se elas servem. Pego alguns pares,
todos em uma variedade de cores pastel Ikaeanas, por cima do
braço, por uma boa causa. Os casacos serão os próximos. Pego um
escarlate que é semelhante ao que estou usando emprestado de
Bastian quando meu coração fica frio.
No cabide ao lado, há um casaco iridescente como opala.
Zudoh.
Afasto minha mão como se ele fosse veneno e ouço uma forte
respiração atrás de mim. O olhar de Bastian sobre o casaco é duro.
Embora Kaven possa estar interferindo, Zudoh foi banido do
reino por anos. Então, por que esta loja tem roupas zudianas?
Isso apenas confirma que Bastian está dizendo a verdade – o
alcance de Kaven está se espalhando. Temos que agir mais rápido.
Quando eu volto a olhar para o pirata, sua expressão escurece.
Mas ele não parece surpreso. — Vamos indo — é tudo o que diz
antes de chegar atrás do casaco para verificar a parede.
Ferrick tropeça pela sala, rindo baixinho para si mesmo
enquanto agarra o que quer que veja, sem se importar com o que
vai servir. Suspiro e adiciono algumas coisas para ele na minha
pilha. Meus braços ficam fracos com o peso de todo o tecido, mas
ainda pego duas capas grossas – uma para mim e outra para
Ferrick – e um chapéu de abas largas porque gosto da aparência.
Embora eu já tenha um par de botas, pego outro, para garantir.
Estou confiante de que não posso segurar mais nada, por
menor que seja, quando meus olhos avistam um colar brilhante de
morganita. Vou dar um passo em direção a ele quando o chão
sacode com o que parece ser uma dúzia de passos batendo.
— Calma! — Bastian exige de algum lugar atrás de mim. Ele se
agacha quando sombras de várias figuras passam pela janela. Me
encosto contra a parede e olho de soslaio para ver as cores que
eles usam – capas em um intenso azul safira. Acabamentos
prateados e um emblema real reluzente captam a luz das lâmpadas
de óleo quando passam.
Soldados visidianos.
— Ninguém sai desta ilha. Revistem os navios! — um deles
grita, acenando para o resto do grupo enquanto quatro soldados
permanecem nas docas.
Eu tento me encolher ainda mais, mas só consigo até certo
ponto. — Saberão que estamos aqui no momento em que
procurarem na Keel Haul. — Penso nas jóias do vestido safira que
ficam na minha cabine. Certamente mais ninguém em Visidia seria
dono de tais itens. Os olhos de Bastian se estreitam, deslizando
brevemente sobre minha mochila. Troco a roupa nos meus braços
para cobri-la. — Não vamos lutar contra meus próprios soldados.
— Então, temos que nos esconder. — Bastian olha de relance
para a parede dos fundos e me pergunto o que ele está procurando
lá atrás. Mas não há tempo para perguntar, pois Ferrick, muito
bêbado e confuso, começa a andar em direção a um capacete de
exibição. Bastian agarra seu pé com um silvo e Ferrick suspira.
Embora os nervos me obriguem a fechar os olhos, me forço a
assistir para que possa me preparar para correr.
Alguém dá um passo em direção ao vidro. Seu rosto afiado é
iluminado pelo brilho da lâmpada enquanto ele espia dentro da loja.
É Casem. Engulo um suspiro quando ele chama minha atenção.
Meu rosto se contrai e, se não o conhecesse, pensaria que ele
estava com mais medo do que surpresa.
Quando ele começa a abrir a boca, balanço minha cabeça
rapidamente, desejando que fique quieto. Nem Bastian nem Ferrick
podem vê-lo, e quero que continue assim.
Não diga nada, Casem. Uma palavra e estarei morta.
— Por favor. — Eu digo, e algo na expressão de Casem se
quebra. Ele passa a língua pelos lábios e, novamente, balanço a
cabeça. Sua hesitação é perceptível pela maneira preocupante em
que suas mãos se contraem no vidro.
— Alguém aí? — Outro soldado chama de fora. Respiro fundo e
fecho os olhos, aguardando o meu destino.
Este é o fim da minha jornada, e não consegui nada. Visidia
ficará sem um animancer. Tia Kalea assumirá meu lugar e, com
suas magias duplas, o reino cairá.
— Não — responde Casem. Meus olhos se abrem quando ele
se afasta, me dando uma última olhada antes de virar a cabeça. —
Está vazio.
— Apresse-se, então! — Grita uma voz que não reconheço. —
Precisamos encontrar a princesa urgentemente, antes que alguém o
faça.
Começo a sorrir, mas Casem se vira para seguir os outros
soldados na rua enquanto eles vasculham todas as lojas e tavernas.
Ele não olha para trás.
Quando não conseguimos mais ouvir o som de suas botas
contra o paralelepípedo, Bastian solta o ar, aliviado. Ele empurra
para trás uma prateleira de calças e na parede há um pequeno
símbolo, quase invisível – ossos cruzados de dois esqueletos de
peixe.
— Encontrei! Todo mundo, por aqui!
Arrasto as roupas de volta para os braços e, pelo canto do olho,
vejo o colar mais uma vez. Nada o protege. Ele simplesmente fica
lá, brilhando e acenando para mim com sua glória espetacular, e me
vejo completamente apaixonada por ele. A maioria das jóias que
tenho em casa são safiras. Nunca vi nada nesse tom suave e bonito
de rosa.
Não consigo evitar quando estendo a mão.
Mas devo estar bêbada, porque quando envolvo meus dedos
em torno da pedra, o mundo muda. Não consigo sentir onde estão
meus pés ou movê-los. Estão pesados como chumbo e se recusam
a ceder, me segurando de pé. As roupas caem das minhas mãos
quando milhares de formigas correm pelos meus braços e se
aninham nos meus cabelos e orelhas.
Quero gritar, mas não ouso abrir minha boca porque elas estão
nos meus lábios também, ameaçando entrar. O colar permanece
enrolado na ponta dos meus dedos e eu o aperto mais, meu corpo
agarrado.
— Princesa?
Não consigo fechar os olhos. Sombras enchem os cantos
quando as formigas se esticam e se transformam em grossos
besouros roxos cujas asas zumbem com raiva contra o meu
pescoço. Quero dar um tapa nelas, mas minhas mãos estão muito
pesadas. Foram picadas? Devoradas?
— Estrelas! — Bastian corre para a frente. Seu rosto está em
pânico enquanto grossas gotas de suor escorrem por seu pescoço,
embora sua respiração fique muito pesada para que seja apenas
nervosismo. Eu o encaro, esperando que ele possa ver o pânico nos
meus olhos.
Em todas as nossas conversas, Yuriel nunca mencionou algo
assim. Magia de encantamento deveria ser divertida – uma gota de
brilho na realidade. Mas quando os besouros rastejam pelo meu
nariz e caem nos meus pulmões entupidos, meu peito se contrai
com tanta força que mal consigo respirar.
Quando Ferrick tenta puxar o colar, Bastian o empurra para
longe. — Não toque!
— O que há de errado? — Ferrick pergunta rapidamente,
sóbrio. — O que está acontecendo com ela?
Bastian o ignora, a mandíbula cerrada enquanto olha o colar.
Ele segura meus ombros. Os besouros rastejam por suas mãos,
mas ele não parece notar. — Ouça-me, princesa. Tudo o que está
vendo está na sua cabeça; essa mágica é desencadeada pelo
toque. Tudo o que precisa fazer é largar o colar e ele irá parar.
— Apenas tire isso dela! — Ferrick argumenta, arrancando um
vestido do cabide em uma tentativa bêbada de envolvê-lo em sua
mão. Mas Bastian coloca um braço para impedi-lo.
— Não. Deixe-a sentir isso — ele diz. — Ela precisa ver como é
combater esse tipo de mágica.
Tento abrir meus dedos, mas os insetos zumbem com raiva e se
transformam novamente em aranhas de cem tipos diferentes –
rastejando, enterrando em minha carne, trabalhando nos meus
lábios para tentar entrar na minha boca antes de desistir e usar
meus ouvidos.
Meus joelhos dobram, mas permaneço no lugar. Eu não quero
sentir isso. Quero que ele se apresse e tire esse maldito colar das
minhas mãos.
— Amora. — Bastian abaixa a cabeça na minha para que
nossas testas se toquem e ele seja tudo o que posso ver. — Foco.
Você é mais forte que essa mágica. Abra suas mãos e largue esse
colar.
Minhas respirações são irregulares pelas aranhas dentro de
mim, mas mudo meu foco inteiramente para essas respirações e
fecho os olhos. Não tenho idéia de quanto tempo leva para que as
visões de aranhas desapareçam, mas eventualmente caio no
conforto da escuridão atrás das minhas pálpebras.
Dentro de mim, as aranhas somem.
— Bom. — A voz de Bastian soa como um sonho distante que
luto desesperadamente para alcançar. — Agora largue...
Minhas mãos ainda podem parecer chumbo, mas posso pelo
menos focar nelas agora que meus olhos estão fechados. Elas
tremem e sacudem enquanto eu as movo, mas lentamente tiro meus
dedos do colar, um de cada vez.
Ele cai no chão depois do que parecem horas, e
instantaneamente sou inundada de calor. Evito um suspiro quando a
sensação do meu corpo retorna. O peso do chumbo desapareceu, e
estou leve e flutuante mais uma vez, balançando em meus pés
enquanto me ajusto. Os insetos se foram e meus pulmões estão
limpos.
— Você está bem? — Ferrick coloca uma mão nas minhas
costas na tentativa de me equilibrar, embora seja ele quem balança.
— Eu não imaginava que a magia de encantamento fosse
assim. — Estou sem fôlego enquanto me sacudo, ainda convencida
de que algo está dentro do meu ouvido.
— Não é. — A voz de Bastian é baixa quando ele olha o colar
caído. — Mas a magia de Zudoh pode ser. Parabéns, princesa.
Acredito que teve sua primeira experiência com a magia da
maldição.
Meu peito se contrai. Primeiro o casaco, e agora isso?
— A influência de Kaven pode estar se espalhando mais rápido
do que pensávamos. — Sua voz é fria, embora não seja a mim que
a sua frustração seja direcionada. — É incrível que você tenha
conseguido escapar da maldição tão rapidamente. Pensei que teria
que tentar arrancar essa coisa das suas mãos.
— Isso foi rápido? — Grito. — Pelos deuses, pensei que seria
sufocada por mil aranhas.
Eu pulo quando, lá fora, alguém começa a gritar. A voz parece
distante, mas está claro que já demos um sinal de que estamos
aqui. Com os guardas do palácio e os soldados reais de Visidia na
ilha, precisamos nos apressar e sair daqui.
Com a ponta da bota, Bastian puxa o colar para o lado. —
Vamos seguir em frente.
Ferrick assente e o segue até a parede dos fundos. Olho por
cima do ombro, garantindo que eles não prestem atenção enquanto
envolvo minha mão em uma das minhas camisas para esconder
minha pele exposta. Pego o colar de volta e o coloco com
segurança nas botas roubadas.
A chance de estudar a magia de Zudoh me foi dada, e não
pretendo deixar passar.
Sigo os meninos até a parede dos fundos da loja. A parede não
parece diferente das outras, exceto pelas pequenas marcas de
ossos cruzados. Bastian bate nelas uma vez, então duas vezes, e
de repente a parede se divide no meio e se abre como uma porta.
CAPÍTULO DOZE

Ferrick e eu tropeçamos em choque quando um homem


assustadoramente alto bate nos cabides e espreita por trás deles.
Ele veste um terno rico de lavanda que parece tirado das
constelações. Uma estrela cadente voa sobre suas pernas e se
desintegra em seu colete, brilhando no céu que pisca a cada passo.
— Boa noite! — Diz agradavelmente, como se não houvesse
nada de estranho em ficar no meio do que era uma parede sólida a
apenas alguns segundos antes. Então ele olha de soslaio para
Bastian, e seus lábios se curvam em um sorriso. — Bem agora!
Achava que não te veríamos tão cedo. — Ele estica um braço longo
para forçar a parede a abrir mais, como se estivesse abrindo uma
porta. Nos dois lados dele, as calças estão dobradas nos cabides.
— Bem-vindos! Entrem.
A parede continua a se esticar até revelar uma sala de uma
dúzia de cores, luzes encantadas girando atrás dela. Quando o
homem se afasta, essas cores refletem em sua pele úmida e fria em
tons de rosa, laranja e vermelho vibrante e nítido.
Meu corpo fica tenso com incerteza, mas não há como negar o
eco dos soldados em algum lugar próximo. Eu me forço a seguir
atrás de Bastian quando ele pisa nas luzes estranhas, e com um
olhar nervoso, Ferrick faz o mesmo.
A parede se fecha atrás de nós.
O ar está nublado com fumaça de charuto e risadas estridentes
que de alguma forma não conseguia ouvir a apenas um momento
atrás. Meus olhos se arregalam enquanto observo o interior
encantado. O piso de mármore brilha em um tom turquesa
iridescente que escurece e se estende como o oceano antes de
mudar para um violeta profundo. Quanto mais nos aventuramos,
mais alta é a música do piano e das buzinas.
Além do homem de terno estrelado, as únicas pessoas nesse
lugar estranho são mulheres que não vestem o estilo típico Ikaean
ao qual me acostumei. Enquanto as cores permanecem tons de
pastéis suaves, os vestidos são mais curtos. Mais apertados e
simples. Duas mulheres com cabelos cor de rosa cortados até o
queixo e vestidos de cetim combinando chutam os pés e dançam no
ritmo rápido da música, bebendo em taças altas com líquidos
efervescentes ou em taças profundas com vinho. Outras passam o
tempo fumando charutos que soltam uma doce fumaça violeta e
conversando, enquanto outras ainda lotam os assentos traseiros,
sentando-se com os corpos pressionados muito perto para ter
apenas uma conversa amigável. Algumas delas usam ternos
atraentes feitos sob medida para se encaixar perfeitamente em seus
corpos, algo que eu ainda não vi nenhuma mulher em Ikae usar.
Do outro lado, atrás do piano, uma parede de vidro tem vista
para a baía de Ikae. E embora possamos ver as pessoas que
passam, ninguém parece nos ver.
— Isso é impossível — sussurro, sem fôlego. — Como não
vimos esse lugar antes?
— Porque não estava lá antes. — O homem de terno estrela ri.
— Foi coberto por um encantamento. Quando você encontra a
entrada para o nosso clube é quando levantamos o véu. E nunca
usamos a mesma entrada duas vezes. Agora, deixe-me ajudá-la
com isso. — Ele descansa a mão em cima da minha pilha de roupas
e as calças no topo levantam no ar. Engasgo enquanto as outras
peças a seguem, dobrando-se nas calças e encolhendo.
Encolhendo, encolhendo e encolhendo, até que toda a pilha não
seja maior que o meu mindinho. Ele tira uma pequena fita azul-
petróleo do bolso e rapidamente a amarra nas calças em miniatura
antes de entregá-las para mim.
Eu prontamente as coloco na minha mochila. Ao meu lado,
Ferrick esfrega os olhos em descrença.
— Apenas desamarre quando você quiser — diz o homem,
apenas sorrindo para a expressão estranha que certamente estou
fazendo. — Qual é o seu nome, querida?
— Não estamos aqui para conversar, Liam — interrompe
Bastian. — Estamos aqui para falar com Shanty sobre uma tarefa.
— Shanty, hein? — Liam coloca a mão no topo da pilha de
roupas de Ferrick e repete o encantamento. — Deixe-me adivinhar,
isso tem algo a ver com todos aqueles guardas correndo lá fora.
Suponho que eles devam estar procurando a princesa Amora, não
é? Ouvi dizer que a cerimônia dela vai entrar para a história; é uma
pena que eu tenha perdido. — Seus olhos prateados encaram os
meus, e o sorriso em seus lábios brilhantes se estende.
A magia aperta meu intestino quando instintivamente ponho a
mão na adaga sob a minha capa.
Liam balança a cabeça suavemente. — Não há necessidade
disso. Não fazemos julgamentos aqui no Barracuda Lounge. Este é
um lugar de... oportunidades.
— Barracuda Lounge? — Minha pele se arrepia quando penso
na conversa de Bastian com a mulher na taverna. — O que é esse
lugar, exatamente? — Liam não é mais o único prestando atenção
em nós. Atrás dele, dezenas de mulheres nos examinam com
grande interesse.
— É aqui que você vem quando precisa do tipo de ajuda ou
informação que não encontra em nenhum outro lugar. — É uma
garota que responde - uma linda loira com curvas generosas. Ela
usa um vestido de cetim vermelho justo que se agarra ao corpo e
deixa pouco para a imaginação. Seus olhos são da mesma cor,
assim como seus lábios, que franzem amargamente quando ela
olha para Bastian.
— Você me deve dinheiro — ela rosna de uma vez, com os
braços cruzados. — Se acha que ajudarei de novo, é mais tolo do
que eu pensava.
O rosto de Liam nunca vacila no sorriso. — Sua ajuda é
precisamente o que ele pediu, Shanty.
A garota revira os olhos. — Claro que é. Então pague, pirata.
Sabe que não trabalhamos de graça.
Embora eu esteja ciente da bolsa recém-roubada de moedas
escondida sob sua capa, o rosto de Bastian se contorce em uma
careta convincente. — Sabe que pagaria se eu pudesse. Mas tenho
tentado um trabalho mais honesto ultimamente. Só pegando o que
preciso, sabe? Receio que manter minhas mãos limpas não produza
muitas moedas.
Shanty acena com a mão com desdém e se vira para ir embora.
— Então não estou interessada no que você tem a dizer. Saia do
meu clube.
— Espere um segundo... — Bastian estende a mão para agarrar
o pulso de Shanty, e de repente há uma dúzia de barracudas atrás
dela com armas prontas – facas, chicotes com pontas e outras
ferramentas bastante criativas que nunca vi antes. Engulo em seco
e coloco minha mão na minha bolsa enquanto seus lábios se torcem
com desdém cruel que forçam Bastian a liberar rapidamente seu
aperto.
Não há dúvida de que o Barracuda Lounge recebeu o nome
adequado. Ninguém se senta ao piano ou segura o saxofone
oscilante, mas de alguma forma o ritmo ostentoso sabe acalmar
quando a tensão aumenta.
Shanty volta seu foco para mim, os olhos vagando pelo meu
corpo de uma maneira que força o calor nas minhas bochechas. —
A princesa pode ficar, claro. Minhas barracudas e eu garantiremos
que ela permaneça segura.
Embora suspeitasse que Liam já tivesse adivinhado quem sou,
hesito quando Shanty anuncia com confiança o meu título, como se
ela me reconhecesse desde o momento em que entrei neste lugar
estranho.
— Como você sabia? — Eu pergunto, ganhando um
arqueamento de sua sobrancelha.
— Por favor. — Ela bufa, os cabelos loiros mudando para ondas
rosa bebê que ela joga por cima do ombro. — Você pode estar
presa em sua ilha, mas isso não significa que o resto de nós esteja.
É meu negócio conhecer rostos.
Há algo na maneira como ela diz que força arrepios na minha
espinha.
— O pirata e eu temos algo para resolver — digo a ela depois
de lamber meus lábios secos, me contorcendo sob seu escrutínio.
— Receio estar presa com ele por enquanto.
Shanty lança um suspiro dramático em direção a Bastian. —
Tudo bem. Vamos acabar com isso, então. Diga-me por que deveria
ajudar alguém que já tem uma dívida comigo.
— Porque você estará oferecendo sua assistência a futura Alta
Animancer de Visidia — digo por ele, ignorando a maneira como
meu estômago se aperta novamente. Cólicas. Ponho a mão nele,
tentando acalmar meus nervos. — E tenho que pensar que é uma
boa pessoa para ter ao seu lado.
— Engraçado, ouvi dizer que sua performance não ocorreu
como o esperado. — Ela arqueia uma sobrancelha.
— No final da estação, isso não vai importar. — Coloco cada
grama de convicção que consigo reunir em minhas palavras. —
Tenho um plano para conquistar meu título.
— Mas precisamos da sua ajuda — finaliza Bastian.
Isso chama a sua atenção. Ela faz uma pausa, inclinando a
cabeça enquanto um sorriso pensativo percorre seu rosto. — Está
me dizendo que o futuro do trono de Visidia depende de mim? — ela
lambe os lábios. — Em que situação que vocês se meteram. Mas,
sabe, é interessante. Recebi uma contraproposta para esse mesmo
problema algumas semanas atrás.
Meu corpo entorpece quando Bastian vem para o meu lado. —
O que você está dizendo?
— Minhas barracudas e eu temos uma grande recompensa
pelas nossas cabeças, você sabe. E nos foi oferecida uma proposta
interessante para ajudar a cuidar disso... se ajudarmos a erradicar a
monarquia de Visidia.
Minha magia vibra para a vida, aquecendo meu núcleo e
esticando em meus antebraços. Quero afundar em sua proteção,
mas hesito.
Ouvi dizer que seu desempenho não foi exatamente como
esperado.
A lembrança do corpo ensanguentado e mutilado de Aran passa
pelo meu cérebro. Em vez de pegar minha bolsa, aperto mais o
punho da minha adaga.
Não posso arriscar soltar minha magia em uma multidão tão
grande. Não até eu ter certeza de que terei que lutar.
Não até eu saber que vou ter que matar.
Bastian me espelha, movendo-se para a espada. Mas uma
garota de cabelos azuis macios pressiona uma adaga na sua
garganta antes que ele possa tirar a lâmina.
— Estrelas — ele rosna. — Vocês mulheres realmente amam
essas coisas.
Ferrick joga as mãos no ar quando uma das barracudas aponta
uma faca longa e fina para ele. Embora ele possa se regenerar,
mesmo os suntosans mais poderosos não conseguem curar uma
ferida fatal.
Endureci, esperando por uma faca na minha própria garganta.
Mas, surpreendentemente, as barracudas me deixam em paz.
Shanty olha Bastian e arqueia uma fina sobrancelha rosa. E
então ela ri, um som suave, mas sombrio. — Oh, relaxe, pirata.
Nunca aceitaria um acordo com Zudoh. Mesmo Kerost, eles não têm
os números para assumir Visidia. Conheço uma batalha perdida
quando a vejo.
— Pode ser uma batalha perdida agora, mas a influência de
Kaven está se espalhando. — Eu não embainho a minha lâmina
quando a atenção de Shanty se volta para mim. Ela inclina a
cabeça, como um gato. — As lojas daqui possuem roupas zudianas.
Também encontrei um colar possuído por magia de maldição
zudiana...
— Ah, aposto que foi divertido — ela brinca.
Olho de lado para Bastian, que engole em seco contra a lâmina
na sua garganta, e depois digo: — Se Kaven conquistar outra ilha,
não há como dizer o quanto as coisas podem ficar ruins para
Visidia. Preciso pôr um fim à sua rebelião antes que ela se espalhe
ainda mais.
Ela acena com a cabeça de um lado para o outro, como se
estivesse considerando o que foi dito. — Sim, mas não vejo onde
me encaixo nesse problema. Como já disse, há um preço pela
minha cabeça. Por que eu deveria ajudar o reino que o colocou lá?
— Porque eu posso me livrar dele — digo com firmeza,
observando o interesse aumentar nos olhos de Shanty. — E porque
se Kaven ganhar o controle, não há como dizer o que pode
acontecer com esse salão, especialmente porque você se recusou a
ajudá-lo. Kaven pode roubar magia.
Embora um sorriso anteriormente estivesse se curvando em
seus lábios, ele se endireitou imediatamente. — Ele pode agora?
Bem, isso é um problema. — Ela balança as mãos e os barracudas
abaixam as armas. — Gostaria de ajudá-la, princesa, mas vamos
confirmar uma coisa: está me dizendo que, se eu fornecer meus
serviços, você tirará recompensa por mim e por todas as minhas
barracudas?
— Considere feito. — Embora não possa saber o que colocou
essa recompensa por suas cabeças, em primeiro lugar, não é tão
importante quanto proteger Visidia. Sem mencionar que, se a
rebelião já tentou se juntar as barracudas uma vez, não há como
negar que ela pode tentar novamente.
E algo no meu instinto me diz que Shanty não é alguém que eu
queira transformar em inimiga.
A expressão de Ferrick se retrai. — Isso não parece um bom
plano... — Suas palavras são cortadas quando o cutuco
rapidamente com meu cotovelo.
— Muito bem, então. Com o que posso ajudá-lo? — Um brilho
perverso cruza os olhos de rubi de Shanty. A música recua e, mais
uma vez, o clube está cheio de fumaça e tagarelice enquanto todos
se afastam para retomar o que estavam fazendo.
— Precisamos de um caminho para Zudoh — diz Bastian,
limpando ternamente a garganta.
Sua atenção se volta para ele e ela assente, acenando para
duas cabines de couro no canto mais distante do clube. Sentada no
lado oposto, ela balança uma perna sobre a outra e se inclina para
trás confortavelmente. Não se importa com a fenda generosa de seu
vestido, ou com a maneira como expõe uma coxa lisa e redonda.
— A água ao redor de Zudoh foi amaldiçoada — ela anuncia
facilmente. — A menos que você seja autorizado, é quase
impossível chegar lá sem acionar a maldição. Navios totalmente
tripulados já afundaram nessas águas. Ouvi muitas histórias sobre
marinheiros curiosos que tentaram ir para lá, mas nunca
conseguiram voltar. Se a maldição em si não o mata por se
aproximar demais, dizem que o cheiro de mil peixes mortos e
podres pode ajudar.
Bastian move a mandíbula, as engrenagens na cabeça
mexendo visivelmente. — Certamente há uma maneira de contornar
a maldição?
— Ao redor? — Ela ri. É um som suave, quente e convidativo,
mas com uma ponta que envia arrepios pelo meu pescoço. — Não.
Mas pode haver uma maneira de navegar através dela. Você só
precisa de ajuda.
— Sua? — Ele pergunta. — Amora tem jóias. Nós podemos
pagar...
— E você tem uma bolsa cheia de moedas roubadas! — Eu
argumento, lançando-lhe um olhar. Ele pelo menos tem a decência
de parecer levemente envergonhado e vira o rosto.
Os olhos de Shanty vagam curiosamente por Bastian,
provavelmente procurando pela bolsa bem escondida. — Nunca
sonharia em pisar naquele seu navio. E não é da minha ajuda que
você precisa, de qualquer forma. Se quiser chegar a Zudoh,
precisará encontrar uma sereia.
Meu sangue corre quente. — Absolutamente não. As leis anti-
caça furtiva foram postas em prática por uma razão; a sua
população está morrendo.
Shanty levanta o queixo com orgulho. — Ah, mas há uma falha
nessa lei. Só é considerado caça furtiva se você as perturbar
enquanto ainda estão no mar. A lei não diz nada sobre uma sereia
em terra.
Meu sangue ferve. — Então quer que sequestremos uma
sereia? Como exatamente ela nos ajudará? As sereias não são um
alvo fácil. Há rumores de que possuem uma magia poderosa que
vem na forma de músicas. Uma que pode controlar as marés à
vontade ou convocar criaturas das profundezas do mar, e outra
destinada a seduzir qualquer pessoa suscetível ao encanto de uma
mulher na água e atraí-los para a morte. Em troca de sua proteção,
elas não podem mais usar sua magia de sirene contra nós. Mas isso
não significa que elas não vão.
— As sereias podem sentir magia — explica ela. —
Especialmente aquelas que tornam as coisas diferentes do que
normalmente são – como a magia de maldição de Zudoh e a magia
de encantamento de Mornute. Uma sereia seria capaz de sentir a
maldição bloqueando Zudoh e mostrar como navegar por um
caminho.
— E como vamos encontrar uma? — Eu pressiono meus lábios
e me sento.
— Há rumores de que há uma em algum lugar em Kerost. —
Shanty inspeciona as unhas enquanto fala, observando a cor mudar
de um vermelho perigoso para uma ameixa profunda. — Se não
conseguir identificar uma pelo rosto, poderá ver pelas cicatrizes.
Depois que trocam as barbatanas pelas pernas, diz-se que as
sereias têm cicatrizes gigantes escorrendo pelos lados das coxas –
cicatrizes no pescoço também, onde deveriam estar as guelras.
Há um momento em que eu quase considero a ideia — porque,
se é isso que é necessário para salvar meu reino, posso realmente
dizer não? Mas afasto a tentação. Não tem como eu sequestrar uma
sereia.
— Ou ela vem conosco por vontade própria, ou de modo algum
— digo a eles, não deixando espaço para refutação. — Se for
preciso, encontraremos outra maneira de chegar a Kaven.
— Ninguém disse que precisamos sequestrá-la — diz Bastian.
— Vamos nos concentrar em encontrar uma, e depois decidiremos o
que fazer.
Ferrick franze a testa profundamente enquanto inclina a cabeça
para trás contra o couro. Mas ele não discute. Parece que só quer
ter tempo suficiente para dormir com sua cerveja.
— Parece que estão todos prontos para a aventura. — Os olhos
de Shanty se arregalam como um gato que viu sua presa. — Mas
primeiro, deixe-me cuidar dos seus rostos. Teremos que passar por
esses guardas para voltar ao seu navio.
Ela fecha o espaço entre nós e minha pele vibra com o
tamborilar da magia desconhecida enquanto ela passa um polegar
suave sobre minhas bochechas e sobrancelhas, virando meu rosto
de todas as formas para me examinar. Faz o mesmo com Ferrick,
cujo pescoço se retrai tanto que ele formou dois queixos, ambos
igualmente horrorizados.
— Meu rosto — diz ele entre caretas — é meu.
— Sim, amor, e ainda será seu. — As pontas dos dedos dela
estão quentes contra a minha pele. — O encantamento que posso
oferecer é apenas temporário, mas lhe dará tempo de sobra para
voltar àquele navio.
O máximo que eu já experimentei da magia de Ikae foi quando
Yuriel fez minhas unhas de cores diferentes quando éramos
crianças, e não tenho lembrança de quanto tempo durou. A
curiosidade aquece meu estômago nervoso.
— Vai doer?
Shanty é rápido em sacudir a cabeça. — É apenas um glamour.
Você não sentirá nada.
— Então faça o que for necessário.
Ferrick resmunga como se eu tivesse nos amaldiçoado a um
destino miserável, mas ele vai superar isso.
Quando ela pressiona os dedos contra minhas têmporas desta
vez, é como se minha pele estivesse derretendo. Suspiro, me
afastando por instinto, mas o aperto de Shanty é firme e expectante.
O encantamento não dói necessariamente. É um sentimento
estranho e estrangeiro. Alarmante no começo, como se minha pele
fosse a cera de uma vela acesa. Mas então, ao aceitar as mudanças
que acontecem, o calor se espalha agradavelmente por todo o meu
corpo. É como se estivesse sendo mimada.
Uma das barracudas deve sentir minha curiosidade, pois ela me
traz um espelho de mão ornamentado. Tento não me perguntar
quantas vezes elas devem fazer isso para que tenham um por perto
e o mantenham. Observo com admiração meus cachos castanhos
escuros se iluminarem em um tom suave de lavanda e ficarem cada
vez mais curtos, até que meus cabelos parem acima das orelhas. A
preocupação se apodera da minha garganta e a toco em pânico,
esperando que ele se vá. No entanto, meus dedos roçam meus
cachos, como sempre fazem.
— Como eu havia falado — diz Shanty, divertida em suas
palavras — é apenas um glamour. Tente não tocar seu cabelo; para
as outras pessoas, vai parecer que está acariciando o ar.
Os dedos de Shanty percorrem minha mandíbula em seguida.
Respiro fundo quando ela amplia e afia a estrutura dos meus ossos.
Ela passa vários minutos alterando a cor dos meus olhos e depois
engrossa minhas sobrancelhas em dois arcos perfeitos em tons de
rosa. Eu tenho que resistir a arranhar a barba por fazer que brilha
em minhas bochechas, tentando me lembrar de que minha pele
ainda será suave ao toque.
— Use um casaco para se cobrir — ela diz simplesmente,
acenando para o meu peito. — Ninguém deve reconhecer você
assim.
Mal consigo acenar com a cabeça, incapaz de puxar minhas
mãos das minhas bochechas. — Não imaginava que a magia de
encantamento pudesse fazer isso.
Os lábios de Shanty se esticam em um sorriso presunçoso
enquanto ela se move para Ferrick, cortando suas ondas vermelhas
e fortalecendo sua mandíbula. — A maioria das pessoas só pode
fazer truques de salão; coisas simples, como mudar o cabelo ou a
cor dos olhos ou alterar o tecido de suas roupas. Sou uma dos
poucos metamorfos. — Ela amplia os olhos de Ferrick e os suaviza
em um azul pastel para combinar com seu novo cabelo. — Mas
estou treinando para ser uma metamorfa completa. Quando estou
tentando fazer o papel de outra pessoa, não sei dizer quantas vezes
isso atrapalhou o disfarce. — Ela aponta para o próprio peito e
passa a mão pela cintura grossa e pela generosa curva de seus
quadris para dar ênfase. — Mas sim, a magia de encantamento
pode fazer mais do que a maioria das pessoas dá crédito, ou do que
a maioria leva tempo para descobrir. Todas as barracudas
encontraram maneiras de expandir o uso de nossa magia
supostamente frívola, mas poucas lidam com rostos.
Embora deva me tranquilizar ao saber que Shanty é uma dos
poucos que podem realizar essa mágica, meus olhos vagam,
contando as mulheres no salão. Existem pelo menos vinte
barracudas, todas com magia de encantamento estranhamente
única.
— Não posso fazer duas pessoas parecerem perfeitamente
idênticas — murmura Shanty, como se sentisse meu mal-estar. — E
não posso alterar a altura como Liam pode, nem replicar
perfeitamente os traços faciais de outra pessoa. É mais sobre
trabalhar com os recursos que alguém já possui e ajustá-los. Como
um jogo temporário de vestir-se. A magia de encantamento não é
diferente de qualquer outra – todo mundo a usa de maneira um
pouco diferente e fica mais confortável usando-a de certas
maneiras.
Shanty sorri enquanto se afasta de Ferrick com um toque
dramático, mostrando orgulhosamente seu trabalho. Ele parece
diferente o suficiente para não ser reconhecido à primeira vista, mas
quando fico perto, olhando de soslaio para a preocupação perpétua
em seus olhos e o fino arco de seu nariz, ainda é muito ele mesmo.
A magia de Shanty não é um milagre de forma alguma, mas se
eu parecer tão alterada quanto Ferrick, estamos diferentes o
suficiente para fugir disso.
— O que em nome dos deuses você fez na minha cara? — Ele
engasga ao tocá-la, sobrancelhas azul-pastel franzindo. — Nunca
poderei confiar em outro rosto enquanto viver.
Mesmo bêbado, ele está certo; se os metamorfos existem,
então quantas pessoas eu deixei passar, pensando que eram
alguém diferente? Mesmo que Shanty seja um dos poucos, a
existência dessa mágica está longe de ser tranquilizadora.
— Vocês dois parecem bastante bonitos. — Diversão brilha nos
olhos de Bastian, mas há algo de errado neles. Eles estão
cansados, e sua pele ficou pálida, coberta por um fino véu de suor.
Eu o afasto e sou imediatamente levada por Shanty. Ela diz
alguma coisa para uma das outras barracudas, que desaparecem
por um momento antes de voltar com um punhado de roupas
ikaeanas – calças brancas, um vestido e colete rosa suave e um
casaco mais pesado do que o tempo exige para mascarar a forma
do meu corpo. Eu as troco rapidamente, e meu interior se agita
quando examino minha mandíbula alargada e a barba por fazer no
espelho de corpo inteiro, decidindo que não há como alguém me
reconhecer.
Meu rosto não é meu.
Ferrick colocou uma roupa semelhante à minha, e quando
Shanty nos examina pela última vez, ela sorri com orgulho do seu
trabalho.
— Não se esqueça de cumprir a sua parte do acordo — ela
ronrona, os dentes brilhando com um orgulho incrível. — Caso
contrário, terei que fazer uma pequena visita ao reino. E ninguém
vai me ver chegando.
Minha respiração vacila, mas forço meus nervos. — Eu não
sonharia com isso.
Shanty assente em aprovação e acena para Liam se juntar a
ela. Ele está lá em segundos, os olhos prateados deslizando sobre
Ferrick e eu com uma diversão satisfeita. Sua expressão nunca
muda; é como se ele soubesse de algo que ninguém mais sabe.
— Por favor, garanta que nossos convidados sejam escoltados
para fora — diz ela, e o homem assente rapidamente antes de
esticar um braço em volta dos ombros de Bastian, conduzindo-o de
volta do jeito que viemos – para uma parede preta vazia com uma
pequena maçaneta.
Ele torce a maçaneta e abre a porta. — Por favor, volte
novamente se precisar de nossa assistência. — As palavras podem
ser leves e amigáveis, mas ele não nos dá tempo para responder
antes de nos dirigir para ruas de vitral, de alguma forma em uma
área completamente diferente da cidade onde nós entramos. Seu
rosto brilha mais uma vez de rosa a vermelho quando as luzes
piscam contra sua pele, meio visíveis nas sombras da fenda da
parede. Sem aviso, ele a fecha.
Assisto Liam abrir a porta e, deste lado, a parede de pedra é
lisa. Não há alça ou botão, apenas uma pedra com uma pequena
gravura de ossos esqueléticos de peixes, que dá para um beco
aleatório em que fomos jogados.
Por um longo momento, nós três olhamos para a laje de pedra
sólida, tentando processar tudo o que aconteceu e o lugar estranho
de onde emergimos.
Eventualmente, Ferrick solta uma risada silenciosa e incrédula.
— Não sei dizer se estou bêbado ou se essa mágica é a mais
estranha que já vi.
— Ambos — respondo, e ele não discorda.
Meu sangue pulsa quando olho, encantada que tal lugar possa
existir. Gentilmente, corro meu dedo sobre a pedra cinza clara, mas
ela não parece diferente das outras.
Essa é a mágica do povo de Visidia, mas usada de maneiras
estranhas que nunca vi antes. Maneiras que eu nunca saberia que
existiam se não fosse por vê-la com meus próprios olhos.
Que lugar estranho e maravilhoso.
— Ainda não estamos pensando claramente — diz Bastian,
chamando minha atenção de volta para a situação em questão.
Tenho uma rebelião para parar; não há como alguns soldados
ou uma execução iminente me impedirem disso.
— Você tem uma ideia em mente? — Pergunto.
A mandíbula de Bastian se torce um pouco, o brilho do suor em
sua pele ainda mais pesado do que dentro do salão quente. — Tudo
o que precisamos fazer é entrar no navio. — Suas palavras são
lentas, a respiração é tão trabalhosa que parece que ele está
cansado o bastante para nós três. Ele não queria que soubéssemos
o quanto o álcool o afetou; só espero que a brisa fresca do mar faça
algum bem a ele.
— E então o quê? — Ferrick pergunta. Embora pareça estar
sóbrio, ele usa o olhar habitual de alguém que sofre de dor de
cabeça depois de beber demais.
— E então aproveitamos o fato de Keel Haulser mágico e mais
rápido do que qualquer outra coisa na água. — Bastian sorri com
força, e por hábito eu corro o dedo sobre a boca da minha mochila.
Embora não planeje usar minha mágica nos soldados, encontro
conforto na ação.
Endireito meus ombros e respiro fundo para me firmar. —
Vamos indo.
CAPÍTULO TREZE

Ao contrário de Arida, cujas noites são iluminadas com tochas e a


luz das estrelas, as noites em Ikae possuem uma névoa
multicolorida. O brilho das lâmpadas de óleo encantadas cobre as
ruas mais movimentadas, mas os becos são esquecidos.
Tropeçamos neles semi-cegos, seguindo os ecos de soldados
berrando que exploram as docas.
A maioria deles vasculha a cidade. Nós já evitamos
cuidadosamente vários pequenos grupos, mas desta vez não há
como fugir deles. Felizmente, apenas alguns são afixados nas
docas, enquanto outros vasculham os navios ancorados lá. Ainda
não parecem ter chegado a Keel Haul.
Passo a mão pela a minha mandíbula, esperando que os ossos
afiados e a barba ainda estejam lá para me disfarçar.
— Aja naturalmente — digo a Ferrick, mordendo o interior da
minha bochecha enquanto seus ombros ficam tensos e seu rosto se
junta com a tentativa.
Perfeitamente natural, de fato.
Saímos para as ruas, e Bastian imediatamente começa a falar
de forma violenta sobre o empolgante jogo desta manhã de Cannon
Rushing. Quase dou uma risada em resposta, mas interrompo o
barulho tão rapidamente quanto ele começa.
Posso parecer diferente para os outros, mas minha voz continua
a mesma. Ganhamos a atenção imediata de dois soldados que
flanqueiam a entrada das docas e fico tensa com o reconhecimento
– é um guarda experiente chamado Antoni e uma soldada mais
nova, Karin. Não me lembro de nenhuma das suas magias, e como
usam os mesmos uniformes de safira dos guardas do palácio em
vez da cor que representa sua ilha natal, é impossível saber o que
eles praticam. Mantenho meus olhos longe deles, não querendo
descobrir.
— Pare aí! — Antoni grita, sua voz baixa e gutural. — As docas
estão fechadas essa noite.
Bastian vacila, fingindo ser pego de surpresa. — Fechadas? —
Ele ecoa, como se estivesse testando o sabor da palavra. Então ele
franze a testa, decidindo que não gosta. — Por que ninguém
mencionou isso antes? Quanto tempo você pretende mantê-las
paradas? — Sua voz começa a subir, soando meio perturbada e
meio ridiculamente insultada. É realmente bastante impressionante.
As sobrancelhas do guarda enrugam. — Parada de emergência.
Receio que você tenha que sair.
Ao meu lado, Ferrick é duro como pedra. Faço uma oração
silenciosa para que ele mantenha a boca fechada.
— Você não entende! — Argumenta Bastian — Meu irmão vai
se casar de manhã e nossas roupas estão nesse navio. — Ele
aponta para Keel Haul e respira fundo, com raiva. — Ele está se
casando com a baronesa de Mornute, e se eu não garantir que o
noivo dela tenha a roupa dele...
— Assim como o anel da noiva — acrescento, tentando manter
minha voz em um barítono baixo.
— A roupa e o anel, sim. Se não os tiver, ela ficará com a minha
cabeça.
O guarda franze a testa com irritação. Provavelmente não
querendo lidar com a quantidade de protestos que ele sente que
estamos dispostos a oferecer, ele olha para Karin, que suspira
conscientemente.
— Vou acompanhá-lo — resmunga a mulher. — Mas sejam
rápidos.
— É claro — digo, e Ferrick concorda com o que eu acho que
seja uma tentativa de agradecer entusiasticamente. O soldado lança
um olhar estranho, mas apenas revira os olhos. Ela assume que não
somos nada além de um trio de jovens bobos.
Ela não tem conhecimento das armas em nossos quadris ou
das mentiras que são os nossos rostos.
Nós viajamos rapidamente pelas docas, a presença de Keel
Haul tão perto que sinto a vitória nas batidas ansiosas do meu
coração.
Mas é de curta duração; Casem e seu grupo voltaram de
revistar a cidade.
— Alguém afirma tê-la visto — anuncia um soldado de seu
grupo. — Ela estava com dois homens; podemos presumir que a
princesa e o noivo fugiram e estão procurando um refúgio com
alguém.
Mantenho minha cabeça baixa e minhas pernas se movendo.
Ferrick é o primeiro a subir a escada até Keel Haul, tentando
desesperadamente esconder que uma mão parcialmente perdida é
o que está o atrasando. Bastian o segue rapidamente, e estou a
poucos passos de distância.
Silenciosamente rezo para que não olhem para mim. Mas hoje à
noite, os deuses devem estar rindo do meu pobre pedido.
— O que você pensa que está fazendo? — Reconheço a voz
como a de Casem.
Karin hesita quando Casem fecha a lacuna entre nós. Os nervos
devoram meu estômago cru, apertando-o com tanta força que eu
faço uma careta.
— Não se preocupe, senhor — diz Karin. — Não há tripulação a
bordo do navio. Eu estou os escoltando para buscar suas roupas
para o casamento da baronesa amanhã.
Os olhos de Casem se estreitam bruscamente. — A baronesa
ainda está em Arida no aniversário da princesa Amora — diz ele, e
quase tropeço em meus próprios pés.
Karin gira para me encarar. Mas quando ela o faz, seus olhos
não chegam ao meu rosto. Eles hesitam nas minhas calças brancas,
percebendo primeiro o que não sinto até que seja tarde demais.
Sangue.
Espalhou-se para manchar a virilha e a parte superior das coxas
da minha calça, e entendo agora que não era preocupação que
estava apertando meu estômago durante a última hora.
Casem segue o foco de Karin, e suas bochechas ficam
vermelhas. — Minhas desculpas, senhor. Se suas roupas estão a
bordo do navio, permita que Karin a acompanhe até... — Suas
palavras param quando ele olha para as minhas calças e a
hesitação franze as sobrancelhas como se tivesse visto algo fora.
Quando olho para baixo para ver o que chamou sua atenção, meu
corpo inteiro fica entorpecido.
Minha bolsa.
Quando Casem lança sua atenção para o meu rosto, seus olhos
brilham com reconhecimento imediato. — Amora?
Eu não acho, ou espero para descobrir se essa mulher tem
mágica. Pego Karin pelos ombros e uso toda a força e adrenalina
para empurrá-la para fora da doca e entrar na água.
— Hora de ir! — Bastian se puxa pelas cordas de Keel Haul. —
Depressa e agarrem-se!
As docas inflamam com vida e fúria. Bastian é um escalador
muito mais rápido do que eu; seus anos de experiência valeram a
pena. Embora eu consiga agarrar a escada, Casem faz o mesmo.
— Amora! — Ele agarra meu tornozelo esquerdo. Eu torço e
chuto o pé dele, pronta para exigir que ele me solte. Mas quando
olho para baixo, não é determinação em seus olhos. É pânico.
— Me empurre na água — ele sussurra bruscamente. — Diga-
me para onde você está indo e depois me chute.
— Por que eu deveria...
— Então direi a eles que você está indo para Valuka! Eu vou te
agarrar, mas você precisa me empurrar para a água.
E ele faz exatamente isso. Casem se estica para agarrar minha
perna mais uma vez, mas seu aperto parece mais forte do que
realmente é. Eu rosno e torço com facilidade, batendo minha bota
no rosto dele. Ele grita e perde o controle, escorregando da corda e
entrando na água abaixo. Mas sinto uma onda de sua magia
Valukan antes que ele caia, discretamente empurrando mais alto e
acelerando minha escalada. Estremeço e lhe envio um
agradecimento silencioso por sua ajuda.
Acima de mim, Bastian e Ferrick se inclinam sobre o parapeito
para me puxar para cima. Um soldado forma uma bola de fogo nas
mãos, preparando-se para jogá-la nas cordas. Mas vários outros
soldados investem e entram no seu caminho enquanto mergulham
para a escada que Bastian rapidamente sobe a borda.
Eles não correm para o navio, provavelmente pensando que
não temos tripulação nem meios de fuga. Mas esse é o maior erro
deles.
No momento em que estou no convés, as velas incham com o
ar fresco da noite, permitindo que a brisa forte o arranque das
docas. Bastian corre para enrolar nas âncoras e o sigo, ignorando o
sangue pegajoso que reveste minhas coxas enquanto o ajudo.
— Voltem para o navio! — Casem grita por baixo, sufocando e
cuspindo água. — A princesa está fugindo para Valuka!
Mesmo se eles tivessem um Valukan com uma afinidade por ar
ou água a bordo, duvido que chegariam a tempo. Keel Haul sai das
docas e mergulha no mar aberto, mais rápido do que qualquer navio
visidiano que eu já conheci.
Arrisco um olhar para trás quando os soldados voam para o
navio, mas já são manchas a distância.
Caio no convés enquanto minha adrenalina diminui, tentando
acalmar minha respiração. — Precisamos ter mais cuidado no
futuro.
Ferrick geme. — Deveríamos encontrar outro navio. Agora que
viram este, não há chance de não enviarem todos à procura do
único navio branco navegando pelo reino.
As estrelas piscam e escurecem nos olhos de Bastian. Tornam-
se coisas perigosas, afiadas como a espada que ele embainhou no
cinto. — Não podemos abandonar Keel Haul. — Seu queixo afiado
se projeta em direção às ondas silenciosas. — Além disso, sair
deste navio significaria que não apenas teríamos que encontrar
outro navio, mas também uma tripulação. Quem sabe quanto tempo
isso pode levar? Como Amora disse, teremos que ter mais cuidado
daqui em diante. — Embora Ferrick franza a testa, a lógica é o
suficiente para ele não protestar.
A névoa rola no convés, trazendo o frio com ela. Sinto falta da
capa que espera, mágica e miniatura dentro da minha mochila.
— A que distância fica Kerost? — Eu pergunto, só então
percebendo o quanto os meninos estão se esforçando para não
olhar para mim. Não acho que seja o frio que cora as bochechas de
Ferrick.
— Você não quer mudar de roupa? — Ele pergunta sem jeito,
limpando a garganta.
Olho para a bagunça da minha calça branca, encharcada de
água salgada e manchada de sangue. É inesperado, já que meu
sangramento geralmente é irregular, acontecendo talvez uma vez
por temporada. Toda vez que chega, parece que o meu colo é um
altar de sacrifício de um pequeno animal. A situação é ridícula o
suficiente para me fazer rir, o que faz com que Bastian e Ferrick
façam uma careta desconfortável.
— Você deveria comer alguma coisa com ferro hoje à noite —
oferece Bastian, tentando me olhar nos olhos para que ele possa
fingir conforto. — Ouvi dizer que isso é bom para quem está...
indisposto.
Ferrick assente com veemência. — Ouvi dizer que o salmão
ajuda nisso. Talvez atum funcionasse da mesma maneira? Posso
pegar alguns para você, se quiser. — Sua mandíbula fica em uma
linha determinada, e rio ainda mais.
— Vocês dois estão agindo como se nunca tivessem conhecido
alguém que sangra antes. — Eu me levanto e puxo as roupas em
miniatura da minha mochila, acenando para elas. — Venha, então.
Se você quer que eu me troque tanto, ajude-me a organizar. Você
acha que pode aguentar um pouco de sangue, Bastian? — Lanço
um sorriso triste enquanto desabotoo a fita que Liam prendeu nas
roupas, deixando-as voar e derramar em seu colo. — Não gostaria
que você desmaiasse novamente.
CAPÍTULO CATORZE

Recuso-me a aceitar o atum sem casca que me é oferecido quando


me junto aos meninos no convés, na manhã seguinte. Bastian me
olha enquanto me deleito com ginnada dura e bolos de mel velhos.
— Não se preocupe — digo a ele. — Já cuidei do sangue.
O nariz de Bastian enruga quando eu sorrio para ele entre
mordidas.
O braço decepado de Ferrick cresceu totalmente, e, embora seu
glamour tenha acabado, seu cabelo ruivo ainda tem um pequeno
tom de azul. Ele se senta à minha frente com as pernas dobradas
contra o peito, olhando para o horizonte como Bastian o ensinou.
Ele está se adaptando tão lentamente que duvido que ele encontre
suas “pernas do mar”.
Tenho pena dele. Mornute e Kerost estão em lados opostos no
reino; é pelo menos uma viagem de cinco dias para um navio médio.
Podemos chegar lá em quatro com a velocidade de Keel Haul, mas
como estamos indo para o extremo sudoeste de Visidia, o mar
estará mais frio. E isso significa que as marés também serão mais
difíceis.
— Devemos ter cuidado — diz Bastian, enquanto corta o atum.
— Já faz um tempo desde que estive em Kerost, então não posso
dizer qual é o estado atual ou quanto da população foi recrutada por
Kaven. Acho que é melhor ficarmos calados enquanto estivermos lá.
— Meu estômago ronca quando ele dá uma mordida no peixe
carnudo, mas como os meninos só o pegaram porque acham que
meu sangramento me deixa fraca, me recuso a comê-lo.
— Eu não deveria ter que me esconder do meu povo — digo a
ele entre mordidas furiosas de outro bolo de mel. — Deveria poder
falar com eles como sou.
Bastian engole outra mordida do peixe cru antes de balançar a
cabeça. — Bem, isso soa como um plano adorável, supondo que
você esteja procurando solidificar sua execução e perder
completamente a possibilidade de derrotar Kaven.— Ele corta mais
alguns pedaços e os desliza para Ferrick, que geme e desvia o olhar
enquanto sua pele fica mais verde. — Um passo de cada vez,
princesa. Agora, precisamos de uma sereia para que possamos nos
apressar e chegar até Kaven. Então você pode ajudar Kerost.
Portanto, vista uma capa e calça pesadas e mantenha a cabeça
baixa para que ninguém a reconheça. Dependendo de quão longe o
alcance de Kaven se espalhou, poderíamos estar seriamente em
menor número.
Toda vez que Bastian menciona Kaven, ele cospe o nome.
Posso praticamente sentir a raiva que ele luta para reprimir, e não
deixo de me perguntar de novo: como a magia de Bastian foi
roubada? O que ele estava fazendo com Kaven?
Quero pressioná-lo com a questão, mas por enquanto é melhor
manter minha guarda e continuar a deixá-lo liderar. Afinal, ele
conhece esta ilha muito melhor do que Ferrick ou eu, e precisamos
dele se quisermos chegar a Kaven.
— Vou usar uma capa — digo a ele eventualmente.
Apaziguado, Bastian assente. — Agora, algum de vocês tem
perguntas? — Ele se senta ereto, a postura estranhamente perfeita.
É muito educado e todos os dias suas roupas estão
requintadamente costuradas e maravilhosas em geral. Ainda assim,
não há como negar que ele é um pirata. A maneira fácil como
Bastian se move em torno da Keel Haul só pode vir de anos de
prática, assim como a maneira como seus olhos percorrem o
oceano, sempre vendo e sabendo algo que ninguém mais pode.
Estou convencida de que Bastian é o homem mais estranho que
já conheci. Minha curiosidade por ele cresce todos os dias.
— Quando posso aprender a navegar na Keel Haul?
Bastian morde o interior de sua bochecha. — Você tem alguma
dúvida sobre Kerost? — Especifica com o arco de uma sobrancelha
bem cuidada. Só posso imaginar quanto tempo ele deve passar
diante de um espelho, se arrumando.
Balanço a cabeça. — Manter minha cabeça baixa, não deixar
ninguém me ver e esfaquear quem tentar me machucar. Entendi.
— Nunca disse para esfaquear ninguém...
— Bastian. — Pressiono minhas mãos no convés e me inclino
em direção a ele. — Estou brincando. Eu me viro sozinha. Mas
temos vários dias até chegarmos a Kerost. Este é o momento
perfeito para me ensinar a navegar.
Ele não se move, apenas olha para mim, sem expressão. —
Você sabe que Keel Haul é parcialmente navegado através da
magia. Ela não exige muitas manobras.
— Mas você saberia como navegá-la, mesmo que sua mágica
se rompa, não é? Eu pressiono, não vou deixá-lo desistir do nosso
acordo.
Seu nariz torce com desagrado, mas ele cede. — Tudo bem,
mas não vamos navegar ainda. Primeiro, vamos familiarizá-la com o
navio. Você pode subir o cordame.
Meu sangue é como ondas oceânicas fortes, enquanto libera
sua excitação em meus ouvidos.
— Você está bem aqui? — Pergunto a Ferrick, que murmura
alguma coisa coisa. incoerente e acena para mim para seguir
Bastian em direção ao cordame de Keel Haul. Embora as cordas
balancem com a brisa, elas parecem estáveis. Se não perder o
equilíbrio, ficarei bem.
— Já escalou antes? — Bastian olha de soslaio para luz do sol.
Os ventos carregam o frio afiado da água, mas o céu está brilhante
e meu corpo está quente pelos raios da manhã. Não há um dia
melhor para estar no mar, e certamente não há um dia melhor para
praticar o dimensionamento do cordame de um navio.
Eu limpo minhas mãos na minha calça. — Nunca. Meu pai
preferiria morrer a permitir isso. Ele acha que os navios são
perigosos demais para mim. — Bufo, lembrando os dezoito anos de
trabalho que tive até que ele me deixasse tocar o leme.
Só de pensar nele, minha garganta fica cheia de emoção. Se
ele pudesse me ver agora.
— Não há nada para pegá-la se cair — diz Bastian. — Você
deve ficar bem, apenas tenha cuidado. É a sua primeira vez, então
vá devagar. Não há ninguém para impressionar.
Examino o espaço acima, procurando por possíveis
contratempos. Mas Keel Haul mantém-se estável e o cordame
continua imóvel ao meu toque. Está praticamente me convidando.
Aperto meus pés em minhas botas, garantindo um ajuste
confortável enquanto passo meus dedos pelas cordas. Mal levanto
um pé antes de olhar para baixo. Meu coração acelerado é um
trapaceiro, me dizendo que já estou no alto do cordame. Na
realidade, seria necessário apenas um passo para descer.
Ferrick observa cautelosamente do convés, os olhos estreitados
e ansiosos.
— Você tem certeza que quer fazer isso? — As palavras de
Bastian se iluminam com diversão quando ele se puxa para o
cordame ao meu lado, exibindo um sorriso bobo. Isso me faz querer
empurrá-lo para fora das cordas, tanto quanto faz meu estômago
vibrar de uma maneira que prefiro não pensar. Um pirata não tem o
direito de parecer tão bonito.
Olho pra cima mais uma vez, a pele quente de nervosismo, e
me esforço para me agarrar a outro sulco na corda. Eu tento me
convencer que meu corpo foi construído para isso. Que os músculos
magros dos meus braços e que dobram minhas coxas – construídos
por anos passados com Casem e meu pai e treinando com lâminas
– foram feitos para este momento. Eles não vão me deixar cair.
O cordame oscila embaixo de mim quando o puxo em direção
ao meu peito e passo para o próximo passo, um de cada vez.
Bastian está ao meu lado, lento e paciente enquanto subo
cautelosamente em Keel Haul. Estamos no meio do caminho
quando meu pé erra o alvo e vacilo, enfiando as mãos na corda e
ofegando enquanto fico lá.
Bastian posiciona o seu corpo protetoramente ao redor do meu
em um segundo. Seu peito quente pressiona contra as minhas
costas, me firmando, então ele lentamente coloca o pé embaixo do
meu e o guia de volta à posição. Meu rosto fica quente quando a
mão dele pousa no meu quadril, certificando-me de que recuperei o
meu equilíbrio.
— Relaxe. — Suas palavras são um mero sussurro; elas
zumbem agradavelmente contra o meu pescoço enquanto o vento
bate em cachos finos nos meus olhos. — Estamos subindo o manto
de barlavento, o clima é ameno e você tem um pirata bonito e
experiente para cuidar de você. Você pode fazer isso.
Meus olhos se fecham quando reúno coragem para continuar
subindo.
Passo a passo, sem olhar para baixo ou mais para cima do que
eu preciso, continuamos nossa subida.
Minhas mãos estão cortadas por causa cordas esfarrapadas.
Forçar um punho em torno delas dói, mas mentalmente cada passo
se torna mais fácil que o anterior. Mal percebo quando Bastian para.
Seus olhos pousam nos meus, brilhando perversamente contra a luz
do sol. Ele passa um braço pelas cordas e se vira de frente para o
mar. Ele enrola o outro braço da mesma forma, protegendo-se para
não cair, e pisca.
— Você quer ver Visidia, não é? Dê uma olhada no seu reino.
Gotas de suor revestem a minha testa. Não consigo mexer
meus membros.
As palavras de Bastian são gentis quando ele fala novamente.
— Vale a pena. Confie em mim. Apenas enrole o braço direito na
corda e gire.
É mais fácil falar do que fazer. Meu coração bate tão forte que
tenho medo de quebrar minhas costelas. Só há uma maneira de
resolver isso.
Não olho enquanto passo o braço pela corda e Bastian me
observa. Ele segura meu peso com facilidade e, embora eu saiba
que não vai me deixar cair, leva outro momento até que eu possa
liberar minha mão livre, confiar no navio e girar meu corpo.
Quando abro os olhos, não tenho certeza se já vi algo tão
bonito.
— Amora! Você está bem? — Ferrick chama de baixo.
Rio.
Estou bem.
Perfeitamente bem.
O oceano abaixo brilha como se polvilhado com milhões de
cacos de cristal. Bastian e eu estamos lado a lado com as gaivotas,
tão perto que poderia alcançá-las e arrebatar um peixe de um de
seus bicos. Elas gritam para nós, nos dando boas-vindas ou
ofendidas por nossa presença. Uma risada me sacode quando
Bastian grita de volta para eles.
Pelo sangue de Cato, então assim que é a liberdade. Nunca
percebi o quão bom seria.
Eu me viro para o pirata. Seus olhos são espelhos do oceano
cintilante enquanto ele olha fixamente para o horizonte. Seu peito
está parado e sua respiração fácil, relaxada.
Entendo por que ele fez do oceano sua casa. É maravilhoso e
desinibido. Emaranhada no cordame do navio e com vista para o
mar como sua figura de proa, uma pequena parte de mim não pode
deixar de imaginar como deve ser viver assim. Ir para onde quiser,
dia após dia.
— Olhe — o pirata sussurra. Não entendo sua quietude até ver
para onde ele acena.
Golfinhos. Há um grupo inteiro deles abaixo da superfície,
pintando a água tão rosa quanto a sua pele. Um aparece, depois
outro, enquanto meu coração incha. É como se estivéssemos no
topo do mundo.
— Lindo. — O rosto de Bastian ficou macio e gentil. Ele não se
parece em nada com um dos piratas perigosos e saqueadores que
eu ouvi nas histórias. — É lindo, não é?
— É a coisa mais incrível que já vi — admito. — Você é sortudo.
Vê coisas assim todos os dias.
Seu sorriso suaviza e seu olhar fica distante, como se estivesse
vendo algo a um oceano de distância. Golfinhos mergulham e pulam
na água. Eles se encolhem alegremente, reunindo-se ao redor de
Keel Haul como se fosse seu brinquedo.
Bastian se inclina para trás. Ele transformou as cordas em parte
de seu corpo, confiando nelas enquanto se reclina. — Há quanto
tempo você quer viajar? — Ele pergunta calmamente. Quando me
viro para questioná-lo, ele apenas ri. — Eu posso ver nos seus
olhos. Um reino é pequeno demais para você, princesa. Você deve
ser governante de todo o mar. Nem todo mundo se adapta à vida na
água tão rapidamente quanto você. Quero dizer... — Ele acena com
a cabeça para Ferrick, que está sentado no convés, apertando os
olhos para nós.
Não posso negar. — Desde criança. Quando tinha dez anos,
queria navegar para Valuka para caçar a serpente de fogo que
dizem viver nos vulcões de lá. Tentei formar minha própria equipe,
mas ninguém me deu um segundo olhar.
— Também não sei como me sentiria se uma criança fosse meu
capitão — diz Bastian rindo.
Balanço a cabeça para ele. — Nunca foi por causa da minha
idade. Meus pais só conseguiram ter um filho, que seria um dos dois
únicos herdeiros do trono. Meu pai sempre foi protetor. Ele ordenou
que eu ficasse em Arida, e ninguém estava disposto a ir contra ele.
Tentei fugir algumas vezes depois disso, mas sempre fui pega.
Agora eles fazem uma varredura completa de todos os navios antes
de deixarem as docas. — Embora eu ria baixinho desse último fato,
é mais para cobrir o desconforto das lembranças. Elas não são
minhas favoritas.
— Meu pai sempre teve mil contos de suas aventuras —
continuo. — Havia histórias sobre como ele escalou as montanhas
de Valuka nas costas de um kelpie selvagem e sobre a noite em que
bebeu muito vinho em Curmana antes de pescar em alto mar e
acabar em uma cabeça de uma hidra.
Apesar do quanto as lembranças me fazem sofrer, relembrar
essas histórias também me faz sorrir. Quando era criança, adorava
ouvi-las todas as noites antes de dormir. Mas à medida que
envelheci, isso deixou de ser suficiente. Não queria mais ouvi-las;
queria vivê-las.
Sempre quis viajar por Visidia com meu pai. Juntos, sonhei que
um dia poderíamos enfrentar os Lusca, ou possivelmente até nos
juntarmos para encontrar a serpente de fogo.
Mas agora, me pergunto se esses sonhos podem ser a nossa
realidade.
— Ele nunca te trouxe? — Pergunta Bastian. — Nem uma vez?
As palavras provocam um estranho desconforto em mim. A
expressão no rosto de Bastian é suficiente para eu saber que ele
está procurando mais uma resposta do que o que está pedindo.
— Nunca. Sempre havia uma desculpa atrás da outra.
— E nunca parou para pensar que talvez houvesse mais do que
isso? — Ele levanta o queixo bruscamente. — Que ele poderia estar
escondendo alguma coisa? Entendo que não vou deixar você ir
sozinha, mas me parece estranho que ele nem a leve com ele.
Viro-me para o oeste, em direção a Kerost, e penso no colar
enterrado sob uma meia de proteção na minha bota – magia de um
reino supostamente banido, que de alguma maneira havia chegado
a Mornute. A ameaça de um zudiano chamado Kaven, que está
formando uma rebelião contra Visidia por um objetivo que poderia
terminar na ruína do reino – a capacidade de aprender várias
magias. O mesmo objetivo que quase destruiu o reino no passado, e
que tenho lutado tanto para combater.
Apenas alguns dias atrás, eu deveria reivindicar meu título como
herdeira do trono, e, no entanto, não sabia disso. Deve haver mais
do que não estou vendo. Meu pai não esconderia algo tão
importante de mim… esconderia?
Fecho os olhos contra o mar, deixando o vento me pressionar
contra o cordame. É um longo momento de silêncio antes de minha
pele coçar, e abro um olho para ver Bastian me fitando. Seus olhos
estão estreitados, os lábios virados para baixo em uma carranca
que combina com as linhas da testa.
— Por que não fugir? — Ele pergunta, tão baixo que quase
acredito que estou ouvindo coisas. — Um erro e seu pessoal se
voltou contra você. Seus pais se voltaram contra você. Então, por
que protegê-los? Claramente adora velejar, por que não encontrar
uma tripulação e se salvar?
O pensamento nem me ocorreu.
— Desde o momento em que tive idade suficiente para
reconhecer quem eu era, sabia que um dia lideraria Visidia. — Olho
para as águas do meu reino, sentindo a verdade dessas palavras
em meus ossos. — Sei que ainda tenho muito a aprender, mas amo
meu reino mais do que jamais amarei qualquer outra coisa, inclusive
a mim mesma. Quero tornar Visidia o mais forte possível e garantir
que meu povo esteja seguro e feliz. Meu sangue e meu coração
pertencem a Visidia e sempre pertencerão.
Se passa um longo momento até Bastian se torcer nas cordas,
girando o corpo de volta. Seu sorriso não é o arrogante que ele
costuma usar. É macio. Gentil. Um pouco triste.
— Vamos continuar, então — diz ele. — Tenho mais para lhe
ensinar.
Meu estômago palpita quando aperto as cordas com uma mão e
igualo seus movimentos. Desta vez é mais fácil. Keel Haul se rende
a mim enquanto sigo Bastian com uma facilidade que nunca soube
que conseguiria ter.
Não tenho mais medo.
CAPÍTULO QUINZE

Os restos de prédios de madeira esfarrapada estremecem com o


vento forte, ameaçando desmoronar se a brisa errada bater.
O ar é forte e pesado da chuva que ameaça no céu cinzento de
Kerost. Puxo uma capa de rubi ao meu redor como uma armadura,
disfarçada sob um capuz, que me cobre completamente e esconde
minhas curvas enquanto afasto meu cabelo por segurança.
Os ombros de Bastian se contraem quando abrimos caminho
pela costa sombria. Pedras úmidas agarram minhas botas, lutando
para puxá-las para baixo enquanto luto com meus passos. Tenho
que ser cuidadosa. Debaixo de minhas meias, enterrado na ponta
da bota esquerda, o colar encantado que roubei de Mornute espera
ser usado, se eu precisar. Enrolo meus dedos dos pés ao redor da
corrente, garantindo que ela esteja lá.
Ao contrário de Mornute, as ruas do oeste de Kerost não são
agitadas. Não há comerciantes; ninguém ri nas ruas desoladas.
Há apenas o som de martelos.
Um pequeno grupo está disperso através de paralelepípedos
irregulares, cinzas e pretos. Eles nos ameaçam com olhares
perigosos, limpando o suor da testa e do peito antes de voltar ao
trabalho.
Homens, mulheres e crianças se inclinam sobre edifícios e
estruturas destruídas, alguns deles martelando em tábuas de
madeira, enquanto outros distribuem os suprimentos ao seu redor.
Seus rostos estão gastos e seus lábios pressionados em linhas
planas. Eles trabalham em silêncio e rapidamente. Impossivelmente
rápido, um turbilhão de mãos e martelos voadores.
É a magia do tempo; Eu nunca imaginei que vê-lo usado por
tantos pareceria tão estranho. Embora eles não tenham o poder de
alterar o próprio tempo, podem acelerar ou desacelerar seus
movimentos, influenciando a maneira como os corpos interagem
nele. Aqueles próximos de mim distorcem o tempo para acelerar
seus movimentos, as mãos se movendo em um borrão que é quase
impossível de seguir, pois trabalham mais rápido do que qualquer
humano pode suportar.
Só posso imaginar o quanto isso é desgastante para seus
corpos.
Esta não é a solução simples que esperava. A ilha está à beira
do colapso. Toda a Visidia deveria estar aqui ajudando, não
desperdiçando seu dinheiro em esportes aquáticos tolos ou em
festas de aniversário de luxo. Valukans com uma afinidade com a
terra devem estar aqui repavimentando e limpando os edifícios
destruídos. Deveriam erguer novos edifícios, enquanto Curmanans,
com levitação, limpariam os escombros. Estrelas, poderíamos até
conseguir os de Mornute para ajudá-los a reprojetar o lugar assim
que a reconstrução for concluída. No entanto, não há ninguém aqui
além dos Kers. Os assessores de Valuka que conseguem manipular
a água nunca deveriam ter sido retirados deste lugar – está em
ruínas.
Meu pai poderia ter dado uma ordem para limpar a ilha em
poucos dias. Então, por que não o fez? Os Kers parecem ter
suprimentos para a reconstrução, mas isso é realmente tudo o que
ele ofereceu?
— Esta é uma temporada completa após a tempestade. —
Bastian anda pelas ruas com confiança fingida. — Chegou à ilha no
início da primavera. — Ele também usa uma capa, assim como a
maioria dos moradores. As nossas não são nada glamourosas, mas
como as deles estão a cinzas, rasgadas e desbotadas pela fuligem
e pelo uso excessivo, parecemos não ser daqui.
Mantenho minha capa de rubi apertada contra mim e diminuo o
espaço entre mim e os Kers trabalhando duro.
Bastian assobia. — O que você está fazendo? Duvido que
encontremos uma sereia aqui. Precisamos seguir em frente.
Eu o ignoro e me agacho entre uma criança de oito anos e uma
mulher velha demais para ser mãe dele, e estendo a mão para
pegar o martelo. — Você deveria fazer uma pausa. Deixe-me ajudar.
A criança me olha com as bochechas cheias de manchas sujas,
examinando primeiro meu rosto, depois minhas roupas novas. Meu
intestino afunda com a maneira como ele as olha com desejo.
É a mulher que gesticula para que ele entregue o martelo, as
mãos entrando e saindo de visão. Seu rosto também pisca,
movendo-se tão rapidamente que é como se estivesse entrando e
saindo do tempo.
— Não é todo dia que vemos um novo rosto nessas bandas. —
Sua voz é como cascalho deslizante, áspera e irritante. — Duas
tempestades e, de repente, as pessoas não acreditam mais que
você vale o tempo delas.
Inclinando-se, o capuz da minha capa paira sobre mim,
obscurecendo minha visão. Em algum lugar atrás de mim, Bastian
geme quando o puxo.
— Você conseguiu esses suprimentos do rei Audric? —
Pergunto.
Suas mãos diminuem a velocidade à medida que o tempo se
ajusta ao seu redor, voltando ao que posso acompanhar. Seus olhos
são de um verde amargo que se erguem para me inspecionar antes
que ela solte uma risada dura. — Nós não temos rei. Blarthe nos dá
esses suprimentos.
O martelo na minha mão é tão pesado que mal tenho o bom
senso de levantá-lo. Meu peito está apertado, mas não olho para os
outros, mesmo quando eles aparecem atrás de mim.
— Eles não são de Kaven, então? — Ferrick mantém a voz
baixa enquanto observa todos os trabalhadores. Muitos deles são
crianças.
O queixo da mulher mexe como se ela estivesse apertando algo
entre os dentes. — Melhor não falar esse nome por aqui. Você
nunca sabe quem pode estar ouvindo.
— E Blarthe? — Bastian pressiona. Ele se agacha ao lado da
mulher, cujo rosto é severo enquanto enfia um martelo com força em
seu peito. Ela resmunga, e o jovem ri baixinho. Suas mãos
abrandaram e o suor reveste a testa descascada e queimada pelo
sol.
— Por que suas mãos estão vazias? — A mulher bufa. — Elas
parecem muito capazes para mim. Talvez, se você usá-las, eu me
sinta mais inclinada a responder suas perguntas.
Bastian faz uma careta, mas cai de joelhos de qualquer forma, e
Ferrick finalmente o segue.
Essa mulher e essa criança não são os únicos interessados em
nós. Conquistamos a atenção de todos os que trabalham para
restaurar esse prédio – uma pequena loja, pelo jeito. Aperto o
martelo, a raiva entre as sobrancelhas e o aperto dos lábios, todo o
incentivo de que preciso. Contra o conselho de Bastian, tirei minha
capa e enfiei meus joelhos no chão em busca de apoio.
Eu posso não ter a velocidade dos Kers, mas a determinação
irritada contrai minha garganta e pesa nas minhas mãos toda vez
que bato nas pranchas de madeira, uma e outra vez, até que minha
pele esteja escorregadia de suor e minha respiração saia cortada.
Cada golpe do martelo ecoa minha vergonha e raiva. Isso é pior
do que qualquer coisa que imaginei. Como meu pai pôde deixar isso
acontecer? Nosso povo deveria estar aqui, não dançando sob a luz
das tochas e tambores, nem trocando pérolas por bugigangas muito
caras, como parte de nosso reino. Como ele não pôde sequer enviar
suprimentos?
Embora o garoto não reclame, seu rosto está cheio de dor
enquanto martela. Suas mãos estão cheias de cortes, a carne
vermelha levantada com raiva. Vejo Ferrick observando-o trabalhar.
— Ei — Ferrick diz gentilmente, chamando a atenção do garoto.
— Qual é o seu nome?
O garoto hesita, virando-se para pedir permissão à mulher que
parece estar olhando para ele. Quando ela não diz nada, ele se
volta para Ferrick e diz: — Meu nome é Armin.
— Essas mãos poderiam fazer uma pausa, Armin. — Ferrick se
move para que ele fique mais perto do garoto, agachando-se diante
dele. — Por que você não me deixa curá-las para você? Só vai
demorar um minuto.
Mais uma vez, Armin olha na direção da mulher. Seu pequeno
aceno de cabeça é suficiente para ele largar o martelo e enfiar as
mãos no peito de Ferrick com um sorriso.
Armin torce o nariz enquanto Ferrick trabalha, fazendo uma
careta através dos sentimentos estranhos que vêm com a cura –
sempre uma rápida onda de dor e depois um calor quase
inquietante.
Ferrick tenta não deixar transparecer o quão cansativo é seu
trabalho, mas está na tensão entre as sobrancelhas e a linha tensa
dos lábios. Está na rigidez de suas mãos, que lançam um leve brilho
laranja na pele do garoto enquanto ele cura as mãos de Armin.
— Isso é incrível! — O garoto olha para suas mãos com
admiração enquanto Ferrick cai para trás e enxuga o suor da testa.
Parecem as mãos de uma criança – macias e não mais cortadas ou
descascando.
As pessoas começam a lançar olhares sobre Ferrick e Armin por
cima dos ombros enquanto trabalham, seus interesses despertados.
— Fico feliz que esteja melhor. — Ferrick sorri enquanto se vira
para a mulher ao lado de Armin. Ele estende a mão. — Eu também
posso ajudar a sua — ele oferece, mas ela afasta a mão dele com
um bufo.
— Estou com dor por um motivo — ela resmunga. — E sempre
quero lembrar qual é. Ajude-os, em vez disso. — Ela aponta para
trás de Ferrick, para um pequeno grupo de pessoas que se
reuniram.
— Tenho esse problema no meu ombro — diz um ao mesmo
tempo em que outro pergunta se ele pode obter algum alívio para o
pescoço dolorido.
A boca de Ferrick se retrai quando ele olha para os rostos
esperançosos. Mas ele não hesita. Ordena a todos para formarem
uma fila e dá um tapinha no chão à sua frente. O primeiro Ker senta-
se e oferece a Ferrick o tornozelo esquerdo, e o curandeiro
imediatamente começa a trabalhar.
Minha atenção é desviada apenas quando a mulher ao nosso
lado pressiona a mão nas minhas costas e meu corpo cambaleia.
Não percebo a rapidez com que comecei a me mover até minhas
mãos ficarem borradas. Embora o resto do mundo seja o mesmo,
sou mais rápida do que nunca, acelerei tão ferozmente que minhas
respirações saem ofegantes quando tento me ajustar. A parede em
que trabalho sobe rapidamente, prego após prego, painel após
painel, mas com tão poucos de nós, ainda leva muito tempo.
Bastian trabalha silenciosamente ao meu lado, martelando,
levantando e grunhindo, com movimentos quase rápidos demais
para entender. Não tenho ideia de quanto tempo estamos levando,
mas nenhum de nós tenta impedir o outro. Trabalhamos com um
entendimento sem palavras de que, por enquanto, isso é o mínimo
que podemos fazer.
Depois que todo mundo está curado e a loja em que estamos
martelando fica pronta, a mulher tira o suor da testa e se inclina para
trás para dar uma série de respirações longas e cansadas. Eu tento
não olhar para ela, tão enrugada e envelhecida apesar da sua
idade. Ela pressiona a mão nos meus ombros novamente, e é como
se toda a minha energia tivesse sido esgotada.
Suspiro, engasgando com a respiração que tenta escapar, e
largo meu martelo na terra enquanto a velocidade das minhas mãos
diminui. Enquanto trabalhava, não havia notado esse cansaço que
agora me alcança de uma vez, quase me derrubando. Minhas mãos
estão duras e calejadas, como se tivesse passado uma semana
inteira trabalhando. Pressiono minhas mãos no chão, tentando me
equilibrar enquanto o tempo volta para mim.
Essa mágica é uma coisa estranha e perigosa.
— Você tem a mesma dureza no rosto que seu pai. — A voz
dela é fria como a brisa quando fala.
Eu levanto minha cabeça para olhá-la enquanto os fios de seu
cabelo vermelho empalidecem em um branco forte. Sua voz é baixa
o suficiente para que, a princípio, eu creia estar ouvindo coisas. Ela
mantém sua atenção à frente e em seu trabalho.
— Exceto que seus olhos são diferentes. O charme dele está no
sorriso, brilhante o suficiente para fazer você acreditar nele. Mas
você? — Aqueles olhos verdes e amargos se voltam para mim por
um breve momento antes que suas mãos recomecem a martelar. —
Você brilha. Como se algo estivesse errado e fosse a única que
pudesse consertar.
Minha língua está seca e minha mente entorpecida. Não tenho
certeza se as palavras dela são elogios ou mais condenações, mas
a mulher não esclarece. Simplesmente encontra outra prancha de
madeira e volta ao trabalho, enquanto outros colocam tijolos ao
redor da estrutura. Trêmula, pego meu martelo e faço o mesmo,
mais devagar desta vez. A mulher me observa pelo canto do olho.
— Kaven apareceu depois da tempestade — diz ela depois de
um momento, gelando meu sangue com tanta força que meu pulso
agarra antes de seu próximo ataque. Depois que seu pai levou os
valukanos que estavam nos ajudando a domar a maré. Nós
precisávamos da ajuda; queríamos segurança e conforto para
nossas famílias. Kaven usou isso. Nos ofereceu uma chance de
ajudá-lo a acabar com o rei, para que pudéssemos aprender a
proteger a nós mesmos e a nossa casa com a magia Valukan.
Muitos aceitaram sua oferta, pois não tinham melhor escolha. Mas
você não encontrará essas pessoas aqui. Kaven os instalou em
Enuda, no extremo sul da ilha, e ninguém que foi conseguiu voltar.
— Ela vira o rosto, a voz baixa. Não precisa dizer o que pensa em
voz alta; todos sabemos o perigo de múltiplas magias. Como elas te
consomem lentamente, e então de uma só vez.
— Blarthe foi atrás de Kaven para atacar os retardatários,
trazendo três navios abastecidos com comida e suprimentos —
continua ela depois de um momento. — Ele está no comando agora.
Minhas mãos tremem tanto que tenho que apertá-las com força
para segurar o martelo e trabalhar novamente. — Por que não
aceitou a oferta dele? — Pergunto, porque é a última esperança que
tenho. Se todas essas pessoas recusaram Kaven porque ainda
acreditam em Visidia – e na monarquia dos Montara – então há
tempo para mudar isso.
A mulher range os dentes como se eu tivesse lhe dado um tapa.
— Ninguém vai me levar para longe de casa. — Cada palavra é
feroz como um ataque de canhão. — Blarthe não é santo. Alguns
podem dizer que ele é uma opção ainda pior. Mas para aqueles de
nós que querem continuar vivendo no lugar que chamamos de lar,
ele é nossa única opção. Então, obrigada por sua ajuda — sussurra
eventualmente, embora as palavras sejam tudo menos elogios. Elas
mordem. — Mas se você realmente quiser ajudar, da próxima vez
que vier aqui, é melhor estar com uma frota inteira. E é melhor que
seja logo.
Abaixo minha cabeça e levanto o capuz da minha capa para
que ninguém possa ver o quão profundamente suas palavras
ardem, ou a vergonha no meu rosto.
Atrás de mim, a multidão de Ferrick se dispersou. Sua pele está
pálida e o suor umedece sua camisa. Mas ainda assim, ele coloca a
mão no meu ombro, oferecendo-se silenciosamente para curar
minhas mãos.
Como a mulher, eu o afasto.
— Deixe-me sentir — digo a ele. — Quero lembrar a razão
dessa dor também.
A partir de então, nada além de martelos soa até o amanhecer.

Não há muitos adeus quando continuamos nossa jornada horas


depois. Saímos apenas com consciências carregadas de culpa,
mãos e ombros latejantes e instruções sobre onde encontrar um
homem chamado Blarthe – como é a pessoa que dirige esta cidade,
ele tem a melhor chance de saber onde podemos encontrar uma
sereia.
Nos esquivamos de carvalhos tortos e podres enquanto
viajamos por ruas de paralelepípedos rachados, nossos passos
dolorosamente lentos enquanto todo aquele trabalho cobra seu
preço. Até a grama aqui é triste. Está morrendo na maioria dos
lugares, marrom e pronta para quebrar.
Aqui, as pessoas que encontramos são poucas e distantes.
Aqueles que vemos passam por nós, arrastando suprimentos de
construção pelas ruas sinuosas, onde outros se afastam em alta
velocidade. Pelo que posso ver, grande parte da paisagem de
Kerost é plana. Não há montanhas tanto quanto existem colinas
com grama amarelada e alagada. Mais Kers escalam aquelas
colinas, construindo casas nos picos mais altos – mas não são altas
o suficiente para se esconder das marés famintas.
Esta ilha é frágil, sugando a vida. Seus pulsos de sobrevivência
atingem meu núcleo como um batimento cardíaco.
Este não é o reino que imaginei governar, e estou
profundamente consciente de que a escolha de meu pai é a razão
disso. Nenhum pássaro vagueia pelo céu e o ar está ausente até de
insetos. A terra é cinzenta e coberta de pedras viradas para cima e
fuligem escura. Minhas mãos palpitam novamente, confirmando que
Kerost precisa de mais do que um punhado de pessoas com magia
do tempo para ajudar a restaurar a ilha. Eles precisam do apoio de
nosso reino.
Demos outra série de voltas antes de chegar a um pequeno
aglomerado de edifícios, todos construídos com pedras cinzentas de
seixo. Alguns são lascados e perfurados com furos vazios.
As vozes são filtradas por trás de uma porta de pedra, sob uma
placa enganosamente elegante que diz VICE. Imediatamente ajusto
minha capa, minha pele formigando com sensações que não
consigo explicar. Há algo de errado nesse lugar.
Ferrick aperta os olhos para a placa. — Mesmo que ele saiba
onde poderíamos encontrar uma sereia, como pretende que ele lhe
conte?
Bastian dá um tapinha na lateral da capa e na bolsa que roubou
em Mornute, pesada de moedas. — Todo mundo tem um preço.
Há uma alça improvisada embutida na laje de pedra. Bastian
não espera mais um momento para usá-la.
Quase sou empurrada por um odor pungente quando o ar
quente nos cumprimenta. Ferrick engasga com ele, mas
rapidamente para quando Bastian lhe dá uma cotovelada no lado.
O cheiro é uma mistura de vômito, corpos oleosos e o que
parece ser ferro. Mas sei o que é. Estou familiarizada o suficiente
com o cheiro para saber que é sangue. No entanto, os brilhantes
painéis de madeira escura estão impecáveis.
Olho o suficiente para ver que a loja em si não corresponde
exatamente ao seu cheiro nauseante. As paredes são pintadas de
um belo tom ametista com voltas grossas de prata e ouro que
saltam do candelabro de cristal no teto e afinam enquanto se
aproximam do chão. Há um bar no canto construído em marfim –
elegante, polido e impossivelmente diferente de tudo o que está do
lado de fora.
Dezenas de Kers estão sentados em bancos pesados, uma
roleta gigante entre eles. Uma pequena bola gira em torno do meio,
flutuando sobre uma série de quadrados e números enquanto a roda
gira e gira.
— Quer tentar jogar a roleta? — Pergunta a Ferrick uma mulher
de cabelos negros, os olhos brilhando com malícia. — Na semana
passada, um amigo meu ganhou cinco anos. O que diz, bonitão?
Venha experimentar.
A tonalidade do rosto de Ferrick adquire um tom vermelho
profundo. Ao lado dele, Bastian zomba.
— Não temos interesse nos seus jogos fraudulentos — diz ele.
A mulher faz beicinho nos lábios rosados, mas presto pouca
atenção.
É como se eu tivesse sido atingida. Meus joelhos tremem
enquanto respiro fundo, olhando o punhado de Kers que estão
sentados ao redor da roleta, jogando fora não dinheiro, mas anos de
suas vidas. Eles estão negociando tempo – uma prática rara e
proibida, na qual apenas os Kers mais qualificados são capazes de
transferir o tempo de uma pessoa para outra.
E não sentem vergonha por suas ações. Eles fazem isso
abertamente, sem tentar esconder seus crimes.
Kerost realmente foi abandonada.
Alguém bate no meu ombro, forçando-me a morder palavras
amargas quando tropeço. Mas o homem que bateu em mim não
olha para trás. Ele passa bêbado pela roda e vai em direção à parte
traseira da loja estranha, onde outra linha está se formando.
Tudo sobre este lugar parece errado. Quanto mais tempo fico
aqui, mais o cheiro de ferro desaparece sob o doce aroma de
baunilha quente e as especiarias pesadas de canela e noz-
moscada. O aroma paira ao meu redor, tentando me acalmar e
mascarar o cheiro de sangue.
Mulheres em uma variedade de sedas estão alinhadas nos
fundos. Algumas mantêm suas mandíbulas erguidas com
determinação, enquanto outras parecem tímidas e envergonhadas.
Todos os olhos, no entanto, são frios e letais enquanto cortam a
multidão.
Um jovem está diante delas. Seu cabelo é loiro como areia, e a
suavidade de sua pele branca e leitosa combina com o sorriso
envolvente que lança para a multidão. Nós o pegamos no meio de
um discurso que ele fala fluentemente, e sem dúvida, é bem
praticado.
— Vamos esquecer todas as essas lutas, então? Vale a pena,
afinal! Uma noite, depois de todo o nosso trabalho duro, para
finalmente ser tratado como um homem deveria!
Há grunhidos de aprovação da multidão, cheios de homens que
avidamente olham para as mulheres diante deles. Minha raiva
aumenta; me seguro para manter minha boca fechada.
Presumo que esse homem deva ser Blarthe, mesmo parecendo
jovem demais para administrar este lugar. Ele aparenta estar no final
dos seus vinte ou trinta, embora seja difícil dizer quando sua pele é
poupada até das mais leves rugas. Ele é brilhante enquanto os
outros homens mal estão de pé, a exaustão pesando sobre eles.
Duvido muito que ele tenha feito esse “trabalho duro”.
Ele acena para a primeira mulher, uma Ker com pele pálida e
macia com ondas de cabelos ruivos. Embora Blarthe abra a boca
para falar, ela o interrompe.
— Eu quero cinco semanas — diz ela arrogantemente,
ganhando olhares de várias das meninas atrás dela.
O sorriso de Blarthe treme de raiva, mas ele se recupera antes
que rompa seu rosto plácido. — Ela quis dizer duas semanas — ele
oferece em vez disso, os dentes brilhando.
Alguém na pequena multidão levanta a mão e a garota desce
para tomá-la com um sorriso. O homem que comprou uma noite
com ela acena enquanto ele e a mulher desaparecem em uma sala
privada nos fundos.
Um Ker deslumbrante, com pele castanho-avermelhada e
cabelos sedosos dá um passo adiante, sorrindo para a multidão
faminta que outra garota atrai.
O padrão continua, garota após garota. Eu procuro em seus
rostos qualquer sinal de desconforto, mas quanto maior a
quantidade de tempo que eles ganham, mais seus olhos brilham.
Somente quando o leilão está concluído que a multidão se
dispersa. Blarthe sorri enquanto dá tapinhas nas costas de vários
homens, conduzindo-os para as roletas ou para as mesas cheias de
cartões de jogo dos clientes. Sua risada calorosa não combina com
o seu rosto jovem.
Outros se alinham perto da entrada à nossa frente, com o rosto
cansado e as mãos estendidas. Quando alcançam a frente da linha,
picam o dedo com um alfinete e pressionam o polegar sangrando
contra uma folha de papel.
— Uma semana — diz uma jovem quando termina de oferecer
sangue. A trabalhadora encarregada da área concorda com a
cabeça, faz uma anotação e entrega várias pilhas de madeira e um
balde de pregos e suprimentos.
Quando a garota volta pela porta, seu rosto está pálido e os
olhos vazios.
Somente quando Blarthe caminha atrás da barra de marfim
polida que afasto minha atenção e crio coragem. Damos um passo à
frente, ocupando três lugares perto do fim.
Blarthe é rápido em nos olhar e empurra para nós três canecas
de cerveja. Um pouco do líquido âmbar e sua espuma se derrama
sobre a borda e cai na minha capa.
Eu mordo minha língua. Será quase impossível tirar o cheiro do
tecido.
— Não é sempre que vejo novos rostos — ele reflete. — De
onde vocês estão vindo? — As palavras são ditas muito alto. Muito
claramente.
— Somos valukans — respondo, sem perder o ritmo. —
Estamos a caminho de Enuda, apenas de passagem. — Olho a
cerveja na minha frente. Será suspeito se eu não a beber, mas o
cheiro que sai da caneca é peculiar. Isso me lembra uma maçã
podre – estranhamente doce com uma corrente suja. Pego a caneca
em uma mão e lentamente a levanto para pressionar meus lábios no
copo. Finjo um pequeno gole.
Quando meu rosto se levanta, os olhos de Blarthe estão sobre
mim. Há uma cicatriz na sobrancelha esquerda e outra no lado do
lábio, mas fora isso, sua pele é impecável. No entanto, seus olhos
verdes afiados estão envelhecidos demais para o resto de sua
aparência desconfortavelmente jovem.
Magia pulsa dentro de mim, alertando o perigo. Quero me
agarrar ao pulsante e voraz zumbido no meu sangue e mantê-lo
perto. Meus dedos roçam na minha mochila, buscando seu conforto,
mas encontrando apenas nervos.
Há muitas pessoas aqui. Tantas que, se algo desse errado com
minha magia novamente, haveria um banho de sangue.
Nunca antes minha magia foi uma fonte de ansiedade. Mas por
enquanto tenho que recuar, o nervosismo fazendo a minha pele
formigar. Só me permito alcançar a parte inofensiva da minha magia
– a leitura da alma.
Esta é a primeira habilidade que aprendi e, de longe, a mais
fácil. É gentil e pacífica onde o resto da magia da alma é cruel, e
não hesito em envolvê-la como uma segunda capa e esperar os
meus olhos e os de Blarthe se encontrarem.
Sua alma é como uma alga. Viscosa e pegajosa, como se
estivesse constantemente tentando prender os outros. Está
apodrecida e descascando nas bordas, semelhante a de Aran, o
prisioneiro que executei em Arida. Embora seu rosto seja suave e
convidativo, entendo em segundos o quão perigoso e cruel ele é.
A besta me atormenta, querendo me fazer considerar a ideia de
devorar essa alma.
Aborrecimento se agita no meu peito. Na execução, perdi o foco
e paguei o preço. Mas a jornada que estou fazendo é para me
provar como a governante que Visidia merece. E a rainha não deve
temer sua própria magia – ela deve saboreá-la.
Então é exatamente isso que eu faço. Os erros que cometi no
passado não me deixam fraca; em vez disso, vou usá-los para ficar
mais forte. Cansei de ter medo do meu próprio poder.
Me envolvo com toda a força da minha magia. Brilha como fogo
dentro do meu peito, queimando as pontas dos dedos e aliviando a
tensão nos meus ombros. Relaxo, porque desta vez não vou perder
o controle.
Ao meu lado, os meninos estão tensos, mas o foco de Blarthe
acaba diminuindo quando ele limpa uma caneca de cristal com um
pano de ametista de pelúcia. Somente quando ele relaxa, toda a
Vice parece respirar. Vários homens do bar estavam atentos a todas
as suas palavras, provavelmente mais do que apenas clientes.
Atrás de nós, a bola de uma roleta para silenciosamente. Uma
mulher jogando lamenta pela sua perda.
— Por que você veio aqui? — Embora Blarthe mantenha a voz
baixa, sua intensidade me corta como uma faca.
Bastian se inclina para frente, os dedos dançando ao longo da
caneca, mas ele se recusa a beber o que está dentro. Há uma
espada embaixo da capa, uma adaga e uma mochila cheia de
dentes e ossos embaixo da minha. Se precisarmos usá-los, a última
coisa de que precisamos é a cerveja atrapalhando os nossos juízo.
— Estamos à procura de uma sereia — diz Bastian, sem perder
tempo.
Um sorriso torto corta os lábios de Blarthe. Ele ri, muito
sombriamente para o seu corpo. — Todo homem está procurando
uma sereia, companheiro. Eu não o culpo.
Enquanto Ferrick cora, o comentário não é suficiente para
dissuadir Bastian. — Três peças de ouro para cada informação que
tiver. — Bastian guia a curiosidade de Blarthe em direção a sua
mão, onde coloca uma única moeda de ouro entre dois dedos. Ele a
enrola na palma da mão, mas o rosto do lojista permanece
impassível.
— Você me procura, precisando da minha ajuda, e ainda acha
prudente me insultar? — Pergunta, olhos severos nos cortando. Eu
recuo, os nervos se deleitando com meus ossos. — Não faço
negócios com algo tão simples como moedas, garoto.
— Não estou pedindo que a entregue para mim. Só quero
informações. — Bastian rola a moeda entre os dedos e a manga da
blusa.
— Se eu lhe dissesse onde tem uma sereia encalhada, seria tão
bom quanto entregá-la a você — diz Blarthe. — E não há moedas
suficientes no mundo para fazer disso um negócio que valha a pena.
Ferrick começa a se empurrar do bar. — Talvez devêssemos
procurar em outro lugar — sugere, com uma mordida nervosa em
suas palavras.
Bastian o ignora, enrijecendo sua mandíbula. — Quanto você
quer?
— Já lhe disse, não negoceio com moedas. — Blarthe pousa a
caneca e a sala se fecha em silêncio enquanto vários os clientes se
apegam às suas palavras. — Troco tempo. Seis anos para obter
informações sobre sereias.
Eu me inclino para trás, percebendo que aqueles que jogam
roleta agora pararam. Nas mesas de cartas, todas as cabeças se
voltam para nós. É claro que esses não são clientes comuns; eles
se apegam às palavras de Blarthe, esperando por seu comando.
— Ok, agora eu realmente acho que devemos ir — Ferrick pede
em voz baixa. Desta vez, eu concordo.
Gotas de suor brilham na testa de Bastian, mas ele ainda não
pegou sua espada. Sinto novamente o cheiro metálico de sangue
sob as especiarias falsas e suaves e rezo para que não seja o
cheiro do nosso futuro.
As roletas param de girar e ficam em silêncio.
— Acho que não tenho tempo para negociar — diz Bastian,
mantendo a voz firme. — E parece que desperdicei o seu.
Blarthe bufa. É um som profundo e gutural que é estranho em
seus lábios rosados. Os lábios de um homem que roubou sua
juventude. Então seu rosto cheio de cicatrizes se contorce, e
antecipo o primeiro sinal de perigo.
— Talvez você não tenha tempo — diz ele — mas a princesa
tem.
Desembainho a minha adaga. Magia brilha dentro de mim,
quente e pronta.
— Estrelas, princesa — Bastian resmunga baixinho. — Todo
mundo neste maldito reino conhece o seu rosto”
Vários clientes se levantam quando Blarthe engasga com uma
risada gutural. Debaixo do balcão, ele retira dois pôsteres
amassados, um com o rosto ilustrado de Ferrick e o outro com o
meu. Está escrito em letras grossas na parte superior de cada um:
PROCURA-SE VIVO. E apesar de Ferrick engolir em seco, meus
lábios se apertam quando olho para a minha imagem – meus traços
estão muito finos e meu nariz muito afiado. E certamente não faço
uma careta tão profunda quanto a representação me encarando.
— O Alto Animancer de Arida enviou uma frota inteira hoje de
manhã — Blarthe diz. — Eles vasculharam toda a cidade,
procurando por uma pequena princesa perdida e seu noivo. Disse
que eles eram fugitivos. Provavelmente estão em Enuda agora. —
Ele faz um gesto para os vários homens que nos cercam. Não
precisando mais ser ficar escondida, jogo o capuz da capa para trás
para olhar diretamente nos olhos do homem cuja alma minha magia
anseia.
— Quanto é que isto diz que eles estão oferecendo por
informações sobre a princesa? — Blarthe espia o cartaz. — Ah sim.
Vinte moedas de ouro, apenas pela informação. — Sua atenção se
volta para os homens que agora o cercam. — Dê um tempo e o
preço triplicará. E tenho certeza de que podemos encontrar uma
maneira de a princesa ganhar seu sustento nesse meio tempo.
Cuspo aos pés de Blarthe.
— Corra, Amora. — A mão de Ferrick está nas minhas costas.
— Vamos segurá-los.
Mas não vou fugir. Bastian está examinando a sala,
provavelmente em busca de uma maneira inteligente de sair dessa
bagunça, e a crescente camada de suor em seu rosto e pescoço me
diz que ele chegou à mesma conclusão que eu. Nós vamos ter que
lutar.
E se há uma coisa que aprendi nos meus anos de treinamento
com Casem e seu pai, é nunca deixar seu oponente atacar primeiro.
Aperto mais o punho da minha adaga e me jogo no balcão.
O silêncio quieto de lâminas desembainhadas às pressas soa
nos meus ouvidos, após o choque de metal quando Bastian desvia
de um golpe rapidamente. A maioria dos clientes foge ao primeiro
sinal de violência, deixando apenas um punhado de homens dentro.
— Quem me trouxer a garota pode considerar sua dívida paga!
— O grito de Blarthe vai para as paredes e enche a sala.
Enfio minha lâmina em seu ombro e ele rosna. Ele consegue
prender um punhado do meu cabelo e me arrastar para baixo; se eu
não fosse tão vaidosa, poderia considerá-lo morto. Em vez disso,
cavo minhas unhas em seu antebraço forte o suficiente para tirar
sangue. Solto uma mão, pegando a minha adaga e em seguida a
puxando do ombro dele, o mais suja possível. O sangue passa pela
camisa dele e minha lâmina banha-se nela.
— Puta maldita! — Blarthe ataca meu rosto, e mal evito o golpe.
Ele se levanta para chutar meu estômago com tanta força que bato
no balcão de pedra, a respiração roubada dos meus pulmões. Por
um momento, vejo estrelas. A magia é o que me atrai de volta à
realidade, embalando-me com doces promessas.
É como se sussurrasse para mim: podemos sair daqui. Tudo o
que precisamos fazer é matá-lo. Você não está com fome, Amora?
E deuses, estou faminta.
Ferrick está do outro lado do balcão. Ele se inclina e me oferece
sua mão esquerda. Como não tenho tempo de vasculhar minha
mochila para encontrar os ossos de que preciso, limpo a lâmina nas
costas da mão, poupando o sangue de Blarthe, e rapidamente a
estendo e corto dois dedos de Ferrick. Ele mal estremece quando
rosno para ele ajudar Bastian, que está no meio de uma briga com
três homens ao mesmo tempo.
Há um pequeno incêndio na parte de trás da loja, e agora tenho
todos os suprimentos de que preciso.
Embalo minha lâmina e mergulho sobre a bancada. Blarthe
pega meu pé no último segundo e me puxa de volta. Meu rosto bate
na pedra e minha boca se enche de sangue. Não posso engasgar
ou cuspir; não posso misturar meu sangue com o de Blarthe. Então,
em vez disso, o engulo.
Ciente dos dedos decepados de Ferrick, seguro a borda oposta
do balcão e me puxo para frente para chutar o rosto de Blarthe. Meu
calcanhar pega seu nariz e caio no chão, levantando poeira ao meu
redor.
— O que quer que esteja fazendo, se importa de fazê-lo um
pouco mais rápido? — Bastian levanta a espada a sua frente a
tempo de empurrar outra pessoa para trás. Um homem está
sangrando e sufocando ao lado dele, enquanto Ferrick está em cima
de uma roleta caída, lidando com mais dois. Ele maneja seu florete
com habilidade, embora não seja nada comparado às espadas
afiadas e punhais que os outros usam com intenção assassina.
Um de nós morrerá se eu não agir rapidamente.
Sou mais rápida do que Blarthe, que luta para se colocar sobre
o balcão. A magia sacode meus ossos e pulsa pelas minhas veias.
Ela enche cada centímetro de mim com sombras que sussurram
promessas doces, dizendo que posso fazer o que desejo.
Envolvo os sussurros em volta de mim e passo os dedos ao
longo das gotas de sangue de Blarthe na minha mão. Não é sangue
suficiente para matá-lo, mas o suficiente para prender sua alma ao
dedo que lanço nas chamas.
A meio caminho de mim, Blarthe tropeça e ruge de dor. Ele
torce e agarra a mão esquerda. Um de seus dedos caiu, o preço da
troca equivalente da minha mágica. Está no chão sujo, com uma
pilha de cartas espalhadas ao redor. O sangue que derrama do
membro cortado alivia a tensão da minha magia. Agora isso é o
suficiente para matá-lo.
— Chame seus homens! — Tiro um dente da minha bolsa e me
agacho para acená-lo sobre as chamas famintas. Elas queimam
meus dedos, ansiosas por algo para devorar. — Caso contrário,
destruirei esse seu lindo sorriso.
Imagino a estranha sensação que ele está sentindo – um
formigamento, queimação na boca. Com o seu sangue pingando no
chão, posso fazer o que quiser com ele. Se eu pudesse ir até ele.
O que ele não sabe é que preciso de mais sangue para matá-lo,
mas não vou deixar transparecer. Mantenho o controle nesta luta e
sorrio quando o medo brilha no olhar de Blarthe.
— Chame seus homens — repito, enrolando cada palavra.
Desta vez ele escuta. O barulho de choque de aço silencia após
outro forte golpe.
Há muitos corpos para Vice ficar silenciosa – alguém engasga
no canto, cuspindo maços grossos de sangue vermelho. Um homem
acabou de encurralar Bastian contra uma mesa quebrada e se
inclina para ele com uma lâmina. Ele parece o mais irritado com a
parada repentina.
Bastian empurra o homem para longe com um grunhido.
— Sou Amora Montara, princesa de Visidia e futura Alta
Animancer — ignoro um silvo alto de um dos homens. — Você
machucou a mim e aos meus homens. Por lei, eu posso matar todos
vocês. Se acha que sou incapaz, eu te desafio. Tente. — Aperto o
dente com força. Blarthe estremece.
Mantenho minha expressão neutra enquanto olho para os
homens, um por um, memorizando seus rostos. O clima na sala
muda enquanto observam o sangue pingando da mão de Blarthe e
se transformando em poças grossas no chão. Para eles, sou a
guardiã da sua condenação. E embora eu não queira machucar
esses homens – a maioria dos quais tenho certeza de que não tem
escolha a não ser trabalhar com Blarthe – preciso que eles
acreditem nisso.
Nem Bastian nem Ferrick mudaram para uma posição mais
segura. Como o resto dos homens, eles estão surpresos. Bastian
pelo menos consegue parecer bem impressionado.
— Estamos procurando uma sereia — digo à multidão. — E não
vamos sair daqui até encontrarmos uma.
CAPÍTULO DEZESSEIS

A única sereia na cidade é uma jovem chamada Vataea e, quando


pressionados, os homens admitem que Blarthe a aprisionou. Vice
funciona como a casa de Blarthe, e ele esconde Vataea em uma das
salas dos fundos, apenas para ser trazida nas ocasiões "especiais".
Cerro os dentes com firmeza, não querendo imaginar quais
seriam essas ocasiões.
Mando Ferrick para buscá-la. Não há como abandonar minha
posição junto à lareira, e Bastian é melhor em ajudar com uma
espada se os homens atacarem.
— Ele está demorando muito. — Bastian se move para ficar ao
meu lado, mergulhando sua lâmina na poça de sangue de Blarthe
que cobre as cartas de baralho espalhadas. Ele então estende sua
espada para mim, tornando o sangue prontamente disponível.
O rosto de Blarthe está vermelho de raiva, mas ele coloca os
pés no chão e fica parado. O suor não é apenas um brilho na cara
dele; pinga em contas e azeda o ar já úmido da loja. Um movimento
errado e ele sabe que vou jogar esse dente no fogo. Farei isso
repetidas vezes, até que não consiga sequer pensar em ficar de pé.
Ferrick realmente está demorando. Enviei-o a quase quinze
minutos atrás.
A loja está estranhamente silenciosa, tanto que eu considero
enviar Bastian para checá-lo, até que o ar muda. Os homens da loja
viram as cabeças em direção ao corredor dos fundos quando
passos se aproximam. Sigo os olhos deles, e quando vejo Ferrick, é
como se eu não conseguisse sequer olhar para ele. A mulher que
está ao seu lado exige toda a minha atenção.
Ela é jovem na aparência, fisicamente perto da minha idade,
embora algo em seus olhos dourados indique que é muito mais
velha. Sua pele aveludada é levemente bronzeada e escovada com
um brilho dourado, sem manchas, nem uma sardinha. Seu cabelo
preto desliza até os quadris como uma seda perfeita, e enquanto ela
é magra e de aparência delicada, há uma ferocidade em sua
mandíbula tensa quando ela se aproxima. Ela ergue o queixo em
desafio, e afasta o corpo de Ferrick enquanto ele tenta levá-la.
Essa pobre garota está vestida com trapos sujos que mal
escondem seu corpo. Eles deixam a vista a pele macia do
estômago, e terminam logo abaixo dos quadris. Eu olho para as
suas coxas lisas. Como Shanty prometeu, elas são marcadas com
grossas cicatrizes cor de carne que vão desde as coxas até os pés
descalços.
A sereia é de tirar o fôlego. Se Bastian não estava olhando
antes, ele certamente está agora. Até as bochechas de Ferrick
estão coradas de rosa enquanto caminha ao lado dela, a testa
franzida como se estivesse tentando não olhar.
— O que você quer comigo? — A voz dela é assustadoramente
poderosa, embora haja mel suficiente em suas palavras para me
dizer que nem todos os mitos são falsos. Cinco palavras, mas ela as
empunha como uma arma; Dizem que uma sereia pode cantar uma
canção doce para atrair marinheiros para o mar, e outra para
convocar o oceano e todas as suas criaturas. Essa garota pode não
parecer, mas é perigosa. Sinto isso nos meus ossos.
— Se você me tocar novamente — diz ela — vou arrancar suas
mãos do seu corpo e cortar sua garganta apenas com os dentes.
Bastian começa a falar, mas eu o paro. Imagino que Vataea
tenha lidado com homens suficientes para uma vida.
— Queremos tirá-la daqui — digo.
Seus olhos de aço – anteriormente colados a Blarthe –
chicoteiam em minha direção. Há sombras pesadas e cansadas
embaixo deles. Ela é inteligente o suficiente para montar o quebra-
cabeça, provavelmente por causa de sua pele suada e do sangue
em volta dos lábios. Embora sorria levemente, suas palavras são
frias. — E vão me levar para onde? Para outra ilha, apenas para eu
ser presa e usada de novo?
— Não pretendemos sequestrá-la. — Certifico-me de encará-la,
embora a maneira como ela me observa seja como um desafio
constante. Meus lábios secam, inquietos. — Nós precisamos da sua
ajuda.
A cabeça de Vataea cai para trás e ela ri. É um som delicioso,
mais doce que bolo de mel. Ele envia um calor através do meu
corpo que se espalha pelas minhas bochechas e se instala na
minha barriga.
— Minha ajuda? — Ela ecoa. — Nunca ouvi ninguém falar
assim antes.
Abro a boca, mas Bastian anda para frente. — Precisamos da
sua magia. Eu tenho um navio. Em troca de sua ajuda, tiraremos
você daqui e a libertaremos assim que ela não for mais necessária.
— Então você quer me pegar e usar meus poderes? —
Novamente, ela sorri, magra e letal. — Como isso o torna diferente
de Blarthe?
Ela não tem motivos para confiar em nós, e não a culpo. O que
quer que Vataea tenha passado a deixou fria e severa. E, no
entanto, vejo o menor brilho de esperança iluminar seu rosto. Ela
deseja que essa seja uma opção melhor e que possa ficar mais
longe possível do Kerost.
Sua pergunta faz Bastian vacilar, mas quero que Vataea confie
em nós. — Será bem recompensada pelo seu tempo. Empreste-nos
sua mágica _ e nada mais – por não mais que meia temporada.
Depois disso, lhe deixaremos onde desejar, e estará livre para fazer
o que quiser. Como princesa de Visidia, te dou minha palavra.
Ela se inclina para trás, me avaliando. — Você é filha do Alto
Animancer?
— Sou.
Blarthe responde antes dela. — A sereia pertence a mim. —
Sua voz uma vez nítida fica rouca, espessa de raiva e bile. — Se
você a quer, compre-a.
Alcanço minha bolsa para recuperar um punhado de ossos e
deslizá-los pelo sangue que fica na ponta da espada de Bastian.
Sorrio de volta para Blarthe. — E você pertence a mim. Considere-
se sortudo se o único pagamento que receber for uma vida
poupada.
A pele úmida de Blarthe fica mais vermelha a cada momento, os
punhos cerrados ao seu lado enquanto ele olha entre mim e a
sereia. As rugas começam a murchar a pele lisa da testa enquanto
os homens ao redor olham, sem dúvida se perguntando se haverá
outra briga.
Bastian apronta sua espada enquanto me inclino para mais
perto do fogo, segurando dois dedos ensanguentados.
Blarthe desvia o olhar, os ombros caídos pela derrota.
O sorriso de Vataea só poderia ser maior se Blarthe estivesse
no chão lutando por seu último suspiro – ou talvez se toda a cidade
estivesse queimando. Não tenho ideia do que ela passou, mas
minha imaginação me diz que ela tem todo o direito de querer que
esse homem morra. Faço um sinal para Ferrick trazê-la para mais
perto e ela vem de bom grado.
Ela é mais alta do que eu, um centímetro ou dois, e posso
praticamente sentir o desafio vindo dela quando se aproxima.
De perto, Vataea é ainda mais linda. Minha garganta fecha e
minhas mãos suam quando ela me avalia.
— O que você diz? — Tenho que sufocar as palavras. — Nós
temos um acordo?
Estendo minha mão para a frente e a sereia a pega. Sua pele é
lisa, as mãos tão macias que fazem a minha parecer
sobrecarregada.
— Seu pai foi bom para o meu povo. Ele os protegeu quando
não pude — ela diz. — Vou concordar com esses termos. Meia
temporada. — Suas palavras são uma música que eu poderia ouvir
o dia inteiro, mas me forço a limpar a garganta e voltar a atenção
para a situação diante de mim. Conseguimos o que queríamos,
então é hora de sair da ilha e voltar para Keel Haul. De preferência
sem morrer.
Eu me viro para os homens de Blarthe. — Andem pelo corredor
e esperem até dizermos que podem sair.
No momento em que me afastar do fogo, perderemos nossa
vantagem. Por causa disso, peço a Bastian que vá buscar um pano
no bar e que molhe o material com uma garrafa de rum. Enrolo-o em
um atiçador que se inclina contra a lareira, atiro-o as chamas e vejo
minha tocha acender. Se eles vierem atrás de mim, tenho o fogo
que preciso para não morrer sem lutar.
Eu me viro para Vataea e os outros. — Vocês três, vão em
direção à porta e mantenham-na segura, ela não tem uma arma. —
Aponto para a saída. Os dois garotos me encaram como se eu fosse
a terceira cabeça de uma hidra.
— Bastian pode levá-la, e fico com você. Vamos juntos —
argumenta Ferrick.
Ele tem boas intenções, mas o encaro com um olhar perigoso,
até que ele cede e se dirige para a porta. Lentamente, segurando a
tocha improvisada na minha frente, ando atrás deles.
Os homens atrás de mim se mexem contra as paredes,
inquietos. Eles sussurram seus planos, e eu tento não ouvir, porque
a última coisa que preciso é de medo que me deixe mais lenta.
Tomo um gole do rum, mas não engulo.
— Tragam-me de volta a sereia e devolverei todos os anos que
vocês já perderam — diz Blarthe aos homens, alto demais para
ignorar. — Não deixem que eles escapem!
No momento em que estou na porta, Blarthe e os outros
atacam. Respiro fundo e cuspo o rum no fogo da minha tocha, me
sentindo como um dragão. Ao redor dele, os outros homens
tropeçam para trás e se dispersam.
Posso não matar Blarthe hoje à noite, mas isso não significa
que ele não sofra por seus crimes até que eu volte para ele.
Quando sua pele queima e gritos aflitos enchem a noite, largo a
tocha e corro.
CAPÍTULO DEZESSETE

A dor apunhala minhas panturrilhas enquanto meus pés batem


contra a calçada rachada. Quando minhas botas raspam em uma
pedra perdida e torço o tornozelo, ignoro a dor lancinante, recupero
o equilíbrio e me empurro a toda velocidade depois dos outros três.
Vataea é surpreendentemente ágil em seus pés. Ela e Ferrick
lideram o caminho através dos becos sinuosos e da lama. Bastian
está alguns passos atrás de mim. Fica olhando por cima do ombro
para mim, depois me ultrapassa. Sua careta é suficiente para me
dizer que preciso correr mais rápido.
Bastian estende a mão e me inclino para pegá-la. Ele me puxa
para o seu lado com um grunhido. A dor no meu tornozelo aumenta
mais. Cada passo parece mil agulhas espetando minha carne, mas
os machucados nas costas de Vataea e os trapos que ela veste me
garantem que não há outra opção a não ser correr.
Bastian deve sentir que algo está errado porque seu aperto na
minha mão fica mais forte. — Não se preocupe, não deixarei que
toquem em você.
Acredito nele. Há algo em sua voz que enche as palavras com
verdade. Algo na maneira como seu toque envia ondas de choque
através do meu corpo. Enrolo meus dedos com força em sua mão e
continuo correndo.
Algo passa pelo ar e corta a minha orelha. Suspiro, a dor quente
e abrasadora. Três homens se aproximam atrás de nós.
Um deles zomba, jogando outra pedra em minha direção. Eu me
abaixo bem a tempo, mas o próximo acerta Bastian no ombro. Seus
músculos se contraem e ele resmunga, mas não há nada que
possamos fazer. Se nos virarmos e lutarmos, mais homens se
juntarão a esses três em minutos.
O chão amolece sob meus pés quando chegamos à costa
molhada de seixos, cada passo mais escorregadio e mais doloroso
que o anterior. O cheiro de salmoura e algas marinhas preenche o
ar úmido.
Ferrick já está ajudando Vataea a entrar em um bote. Ela olha
para nós com uma careta e grita algo indecifrável para Ferrick,
apontando para os laços que prendem nosso barco à terra. Ele os
desfaz, mas fica com um pé nas pedras e o outro no barco,
segurando-o no lugar.
Bastian me empurra para frente e quase caio de cara em cima
de Ferrick, que me puxa para o bote. Ele dá um chute firme na água
antes de se encaixar ao meu lado.
Bastian ainda está correndo. Uma pedra atinge o nosso barco,
enquanto outra bate na sua cabeça. Ele balança, e os homens atrás
dele sacam suas espadas.
— Bastian, corra! — Grito. Ele se joga para frente da melhor
forma que pode. O oceano está de joelhos quando ele chega ao
bote e se arrasta para o espaço apertado. O bote balança,
ameaçando nos derrubar, mas silenciosamente imploro ao oceano
por sua ajuda.
Ferrick e eu somos rápidos em pegar os dois remos, mas os
homens nos seguiram na água. Ainda há tempo suficiente para eles
agarrarem o bote e nos puxarem de volta.
Eu me viro para Vataea, que rosna para os homens que se
aproximam. Sua respiração é rápida e feroz.
— Faça alguma coisa! — Rosno, batendo o remo na água. Uso
toda a força que resta em mim para nos impulsionar para frente,
longe dos homens que se aproximam. Ferrick faz o mesmo, mas a
água é tão rasa que é difícil obter qualquer progresso. Os homens
avançam, tentando agarrar a borda do bote. — Você tem uma
música que pode controlar o mar, não é? Nos dê uma onda ou algo
assim!
Ela se concentra em mim, embora seus olhos deslizem para a
água. Eles se enchem de desejo enquanto ela respira firme.
Ela vai nos deixar.
Quero pegar o colar amaldiçoado em minha bota para usar em
um de nossos perseguidores, mas não posso me afastar do remo
por tempo suficiente para agarrá-lo. É inútil nessa luta.
Um homem magro com uma cicatriz no olho mergulha para
frente e agarra-se à beira do bote. Ele tem um aperto firme, mas
bato o remo em sua mão com toda a minha força. O homem a puxa
com um assobio.
— Por favor — imploro a Vataea entre dentes. — Este reino
precisa de nós muito mais do que você imagina. Por favor, nos
ajude.
Ela endireita os ombros e franze as sobrancelhas, nunca se
afastando do oceano. Meu coração cai quando ela se joga do bote.
No momento em que ela atinge a água, o mar brilha em um tom
de ouro iridescente. Os homens nos seguindo amaldiçoam. Todos
menos um se jogam do nosso barco e correm para a praia.
Pego um lampejo de uma cauda sob a água verde escura
quando o ouro desaparece. Sua cauda é de um ouro rosa
surpreendente; as pontas brilham como jóias, como uma bugiganga
brilhante que me deixa tentada a alcançar a água e roubar. Se não
fosse pela necessidade de me defender do perseguidor restante, eu
poderia ter seguido essa cauda.
— Ela está indo embora? — Ferrick pergunta ofegante. — Eu
pensei que tínhamos um acordo!
Enquanto afasto os homens e sua tempestade de pedras e
mãos famintas, ele ainda está remando com toda a sua força. A
água é menos rasa a cada segundo. Parece que estamos prestes a
escapar livres e salvos quando o homem magro se joga em nós
novamente. Bato na mão dele mais uma vez, mas ele apenas
resmunga.
Ele pega minha capa, agarrando-a e tentando nos derrubar na
água. Pego a adaga ao meu lado, mas Bastian já sacou sua lâmina.
Ferrick, doentio e verde, rema através das ondas e faz o possível
para nos firmar.
— Afaste-se deste barco agora e pouparemos sua vida — diz
Bastian. Suas palavras se arrastam, e me pergunto o quão forte
essa pedra atingiu sua cabeça.
— Dê-me a princesa e pouparei a sua — responde o homem.
Seus olhos brilham de emoção enquanto tenta passar por Bastian.
Ele realmente acha que nos encurralou, e pode estar certo. Os
olhares de Bastian e os meus continuam se cruzando. O homem me
alcança de novo e arranho sua pele com as minhas unhas, tentando
desequilibrá-lo. Precisamos tirá-lo do barco. Precisamos...
Alguém está cantando. É uma língua que não entendo e uma
voz diferente de qualquer outra que ouvi.
Esqueça o mel, isso é de uma doçura incomparável. Todo
mundo fica parado, a atenção voltada para a sereia que está a
poucos metros de distância. Ela nos observa com olhos dourados
que repousam sobre o mar. A água se agarra aos seus cabelos lisos
e negros, que flutuam ao seu redor como uma auréola escura. Seus
lábios estão abaixo da superfície, mas ainda assim sua preciosa
música nos chama.
Os olhos de Vataea piscam brevemente para o meu lado. Um
sinal. Eu me forço a me afastar e olhar para Ferrick e Bastian. Seus
rostos estão frouxos. Eles olham sem piscar para a sereia, perdidos
no transe de sua música. Ferrick tenta se levantar, mas o empurro
de volta para o pequeno banco de madeira do bote. Quando Bastian
se move para ficar de pé também, suspiro e caio em seu colo
enquanto coloco meus pés sobre as coxas de Ferrick, prendendo-o
no lugar.
O feitiço da sereia está funcionando muito bem. É tudo o que
posso fazer para impedi-los de persegui-la.
Ela levanta os lábios da água. Eu tento não olhar para o quão
suave e cheios eles são quando ela os separa, cantando outro
verso.
O bote balança quando o homem magro se afasta do barco e
nada em direção à sereia. Bastian e Ferrick tentam fazer o mesmo,
mas eu movo minhas botas no banco e enrijeço minhas pernas para
manter Ferrick no chão. Quanto a Bastian, eu aperto suas
bochechas em minhas mãos, tentando fazê-lo olhar para mim. Ele
luta, mas não deixo que ele se afaste. Sua respiração está quente
nos meus lábios. Isso me pega de surpresa, amolecendo meu corpo
o suficiente para Bastian me derrubar enquanto ele se levanta. Eu
me levanto, balançando o bote, e me jogo de volta em cima dele e
de Ferrick.
— Beije-os — a sereia sussurra, suas palavras me envolvendo.
O homem magricela já a alcançou. Ela sorri enquanto segura seus
ombros, o corpo pressionado perto dele. — Essa música é para
quem pode ser seduzido pelo charme de uma mulher. Portanto, um
beijo de uma mulher é a maneira mais rápida de quebrar o feitiço.
Aqui, eu vou lhe mostrar. — Ela puxa o homem extasiado para
frente e pressiona os lábios nos dele. Os dedos dele cavam seus
ombros nus, puxando-a contra seu corpo. Leva apenas um segundo
até que seus olhos se abram.
Já é tarde demais.
Ele tenta gritar, mas os dedos da sereia afundam em sua pele
enquanto ela arrasta seu corpo sob a água.
Eu ouvi histórias sobre o que as sereias fazem com aqueles que
elas atraem. Alguns dizem que devoram seus corações para evitar o
envelhecimento. Outros dizem que arrastam marinheiros para sua
casa debaixo da água e os aprisionam. E há quem diga que uma
sereia não precisa de um motivo para afogar alguém. Vão te dizer
que as sereias fazem isso por diversão.
Quando Vataea desaparece, fico com dois homens que estão
prestes a se atirar atrás da sereia, se eu não fizer algo rapidamente.
Suspiro, encarando os lábios de Ferrick. Eu sempre soube que
teria que beijá-los um dia, mas a hora chegou muito cedo.
Ferrick não se mexe enquanto me inclino e pressiono meus
lábios nos dele. Ele tem gosto da cerveja azeda que bebeu no Vice,
lábios macios e mais cheios do que eu acreditava. Suas mãos
tremem ao meu lado e se fixam nos meus quadris, tentando me
puxar para perto. Ele puxa meu lábio inferior entre os dentes e o
morde suavemente. É algo que normalmente provoca um calor na
minha barriga, mas não sinto nada. Quando recuo, ele suspira,
corando da testa até o pescoço. Ele olha para mim, mas a
expressão é tão surpresa que não tenho certeza se ele entende o
que está acontecendo. Volto minha atenção para o pirata em que
estou sentada.
A pele de Bastian é suave enquanto seguro seu rosto na minha
palma, tentando chamar sua atenção para mim mais uma vez. Está
olhando a água com uma fome animalesca que deixa os nervos
rastejando pela minha pele. Tento ignorar por que isso me deixa tão
ansiosa quando me inclino e pressiono meus lábios nos dele.
Bastian é mais rápido em responder do que Ferrick. Sua mão
desliza da minha coxa para a minha cintura e depois para o meu
ombro. Ele a aperta com força, me esmagando contra ele. Meu
corpo inteiro incha de calor e me pego beijando-o de volta com a
mesma urgência. A outra mão de Bastian repousa nas minhas
costas e debaixo da camisa, acariciando minha pele. Sua língua
roça a minha, me provando, e calafrios pulsam pelo meu corpo
como eletricidade.
É assim que um beijo deve me fazer sentir.
Tenho que me forçar a me afastar, respirando fundo.
Os olhos de Bastian estão abertos, me encarando. Seu peito se
move em respirações rápidas e pesadas. Quando ele percebe onde
estão suas mãos, limpa a garganta e as puxa de volta para os lados.
— Sinto muito — ele sussurra sem fôlego. Estou prestes a dizer que
está tudo bem quando seus olhos se movem em direção à água
mais uma vez. — Eu pensei que você fosse...
— Vataea — termino por ele. As palavras me atingiram como
uma onda. — Você pensou que eu fosse a sereia.
Ele abaixa a cabeça e abre a boca para falar, mas não deixo.
Saio do seu colo e agarro o remo, grata por uma desculpa para
desviar o olhar. Pintando um sorriso nos meus lábios, começo a
remar. — Ela me disse que era a maneira mais rápida de quebrar o
feitiço. A única coisa pela qual você deve se desculpar é ser tão
suscetível ao charme de uma mulher. O mesmo vale para você,
Ferrick.
Eu me viro para Ferrick, cujo rosto afiado se desvia de mim
enquanto ele rema. Seus ombros estão caídos como se uma âncora
o estivesse puxando para o mar. Meu sorriso vacila
— Vocês dois estavam prestes a se afogar perseguindo uma
sereia — digo a eles, mais afiada e defensiva do que pretendia ser.
— Eu tive que beijar vocês dois, Ferrick.
Ele fecha as mãos em punhos e as enfia contra os lados do
corpo. — Nós dois. Certo.
Sou poupada de ter que dizer mais pela mudança de água do
meu lado do bote. Inclino-me para encontrar a sereia, que me olha
com grandes e encantadores olhos dourados. Sangue vermelho
mancha seus lábios.
— Funcionou? — Pergunta.
Quase rio, mas o som trava na minha garganta. — Funcionou.
— Boa. Então me ajude. — Ela estica a mão e meu corpo fica
tenso quando tento não olhar. Em algum lugar no oceano, ela
perdeu os trapos. Entrego meu remo a Bastian e faço com que ele e
Ferrick se afastem antes de puxar Vataea para o bote e oferecer a
ela minha capa. As escamas da cauda se afastaram e se separaram
em duas pernas nuas e cicatrizes.
— Isso — diz ela — foi a coisa mais divertida que fiz em anos.
CAPÍTULO DEZOITO

Eu nunca estive tão feliz em ver Keel Haul. Me arrasto a bordo e


caio no convés. Sou um peixe sufocante, molhado e trêmulo
enquanto luto para recuperar o fôlego. Cada músculo do meu corpo
dói ou palpita. Meu tornozelo está vermelho e inchado enquanto
meus bíceps e mãos queimam. Ignorei a dor abrasadora em meus
braços para ajudar a remar o bote, mas agora que estou a salvo e a
bordo, sinto tudo.
Ferrick agacha-se rapidamente ao meu lado, suas mãos
quentes envolvendo meu tornozelo. Sinto a lesão queimar, apenas
por um segundo, para depois desaparecer, deixando minha pele
quente e formigando.
— Obrigada — digo a ele, mas ele se afasta sem me olhar nos
olhos.
Embora Bastian cambaleie enquanto caminha, ele se apressa
em levantar a âncora de Keel Haul e fazer o navio se mover. —
Enquanto estou feliz por estarmos vivos, tenho certeza de que
poderia ter sido muito mais suave. — Ele tira o casaco, fazendo uma
careta para o sangue respingado com o qual foi manchado. Parte é
dele, embora Ferrick não faça nenhum movimento para curá-lo. Sua
voz ainda é um pouco grossa, mas Bastian parece estar se
estabilizando.
Aperto minha mandíbula e me viro para olhar a sereia, ainda
enrolada firmemente na minha capa. Os olhos dela dançam de
alegria enquanto se lançam ao redor do navio. Ela chega em
direção a uma borda e sorri para a madeira sob as pontas dos
dedos.
Bastian segue meu olhar, e sua expressão fica indecifrável.
Limpa a garganta e a sereia se vira para ele. O sorriso dela é
inabalável.
— Bem-vinda a bordo da Keel Haul — diz ele. — Você se
importaria de compartilhar um pouco sobre si mesma? De onde
você é? Por que não mudou as marés para que pudéssemos fugir
de Kerost sem ter que matar um homem?
— Afaste-se — rosno, me arrastando para sentar. — Há uma
diferença entre assassinar por diversão e proteger a si ou aos
outros, e você não pode falar com ela assim. Só saímos vivos
daquela praia por causa dela.
Os lábios de Bastian se apertam em uma careta. É claro que
ainda está bravo enquanto levanta as mangas e puxa as velas para
libertar-se das amarras, deixando o vento as inchar. Contudo,
espero que ele saiba que está errado. Não quero ser vista como
uma assassina sem alma, e duvido que Vataea também, apesar de
suas palavras quando saiu da água. A sereia envolve minha capa
em volta de si mesma com mais força, não se encolhendo enquanto
olha para Bastian.
— As sereias devem ter um arsenal musical — argumenta
Bastian. — Ela poderia ter feito o oceano nos proteger ou alterado
as marés para nos mover mais rapidamente. Ou, não sei,
convocado uma baleia gigante para derrubar todo mundo! A questão
é que poderíamos ter escapado há muito tempo.
— Talvez você devesse ter usado sua magia — bufo. — Oh,
espere, você não tem nenhuma.
Vataea deixa de olhar apenas quando Ferrick sai da cabine e
oferece-lhe uma pequena braçada de roupas. Ele está tão quieto
que eu não tinha notado que foi embora.
Vataea pega a pilha com um aceno agradecido e veste um par
de calças grandes sob a capa. Faço uma anotação mental para
juntar algumas das minhas roupas para ela também. Ela é mais alta
e magra que eu, mas as roupas se encaixam melhor nela.
— O mar é um animal instável — anuncia Vataea enquanto
abotoa as calças. — Qualquer um pode encantar um homem que
não pensa com a cabeça. Invocar o mar, no entanto, é uma
habilidade que poucos conseguem dominar. Além disso, eu estava
com fome.
Quase bufei de novo, mas agora não é a hora. Bastian bate com
o punho contra a borda de Keel Haul e o navio geme em protesto.
Só então ele parece parcialmente se desculpar.
— Ótimo — ele rosna. — Viemos até aqui por uma sereia,
apenas para conseguir uma com defeito. Não temos tempo para
isso.
Os olhos de Vataea se estreitam em fendas perigosas, mas não
é ela quem age primeiro. Ferrick é quem dá um passo à frente,
empurrando a palma da mão no ombro de Bastian. O pirata pisca
para onde Ferrick o acertou. Leva um momento para que sua raiva
se manifeste em um sorriso de escárnio.
— Qual é o seu problema?
— Qual é o seu problema? — Ferrick rosna. — Da última vez
em que verifiquei, você não consegue fazer nada sozinho. É um
pirata inútil que precisa de magia emprestada, porque, de alguma
forma, foi estúpido o suficiente para perder a sua.
A mão de Bastian voa para o punho de sua espada. — Diga
isso novamente.
Ferrick ri. É um som sombrio, não natural para ele. — Somos
inúteis sem essas garotas. A magia de Vataea nos salvou. Não pode
chamá-la de defeituosa depois que ela ficou prisioneira, os deuses
sabem por quanto tempo. Peça desculpas.
Vataea olha para Ferrick como se o visse pela primeira vez.
Entendo, porque o mesmo acontece comigo. Eu nunca o vi tão
irritado.
Bastian não tem uma resposta imediata. Os músculos tensos de
seus braços flexionam quando ele afrouxa o punho, mas não o
solta. Ele não vai sacar sua lâmina; Posso dizer pela maneira como
se controla. Na VICE, ele estava como uma cobra enrolada, pronto
para saltar sem um aviso prévio. Agora, seu corpo é estranho,
procurando algo para fazer. Ele abre a boca para falar, fecha-a,
junta as sobrancelhas e tenta novamente.
— Me desculpe por ter te chamado de defeituosa. — As
palavras estão apertadas em sua garganta. — Não quis dizer isso.
Só estou estressado; não podemos nos dar ao luxo de cometer um
erro agora. Precisamos de alguém que possa sentir a magia
zudiana. Se tentarmos continuar apenas para descobrir que você é
incapaz de fazer o trabalho que precisamos, nós três estaremos
mortos.
— Minha conexão com o mar pode ser fraca, mas isso não me
deixa fraca — diz Vataea. Na maioria das vezes, seus traços são
relaxados e despreocupados, mas penso no sangue em seus lábios
e me pergunto por quanto tempo essa garota pode guardar rancor.
— Sou capaz de sentir suas maldições tolas, pirata. Na verdade,
consigo sentir uma agora. — Ela levanta o queixo e Bastian
praticamente murcha sob o olhar. Seus punhos apertam-se ao lado
do corpo.
— Existe uma maldição por perto? — Pergunto. Vataea dirige
sua atenção pra mim com um sorriso cruel.
— Sim, mas isso não vai nos afetar. — Ela se vira para Bastian.
— Eu poderia ter fugido, sabe. Eu poderia ter mantido minha cauda
e continuar nadando. Mas fiz um acordo com você, e as sereias são
honrosas. Pagamos nossas dívidas e mantemos nossos negócios. A
menos que você não queira mais minha ajuda?
Bastian puxa o lábio inferior e morde-o com um suspiro.
— Ferrick está certo — ele admite. — Não tenho mágica, mas
vocês três têm. Foi tolice da minha parte sugerir que você estava de
alguma forma fraca quando é a pessoa que mais precisamos. Não
tenho intenção de desistir de nosso acordo, Vataea.
Absorvo o pedido de desculpas por um momento. Vataea
precisa de muito menos tempo. Seus lábios se curvam em um
sorriso tímido.
— Então eu vou ficar. Embora tenha certeza, não é por você. —
Somente quando seus olhos capturam os de Ferrick, eles brilham.
Ela coloca a mão no peito dele. — Você não parece tão ruim. Talvez
você seja poupado.
— O que quer dizer com isso? — Ferrick pergunta, com um tom
de preocupação em sua voz.
— Tenho uma coleção de homens que pretendo retribuir por
quão generosos eles foram comigo. — O sorriso de Vataea brilha
maliciosamente. — Desmembramento para quem já tentou me
tocar. A língua esfolada daqueles com bocas perversas. E os
corações comidos de qualquer homem que já me disse para sorrir.
Ferrick fica mortalmente imóvel. O único barulho no navio é o
das velas esvoaçantes e o bater das ondas que ficam mais fortes à
medida que mudamos nossa direção para o sudeste. Depois do que
parece um momento incrivelmente longo e embaraçoso, Ferrick
gentilmente segura a mão de Vataea e a afasta. — Estou lisonjeado,
mas receio que já estou noivo. Ou assim pensei.
As palavras me ferem como uma faca enferrujada. Isso não é
justo; nunca pedi para ficar noiva de Ferrick.
— Foi apenas um beijo — digo. — Vocês se afogariam se eu
não fizesse algo. Essa foi a única maneira de tirá-los do transe.
— Foi o caminho mais rápido — Vataea me corrige.
— Apenas um beijo. — O rosto de Ferrick se torce quando ele
zomba. — Certo. Foi apenas um beijo. Estamos noivos, Amora!
Também não pedi isso. Mas, pelos deuses, o mínimo que você pode
fazer é tentar agir como se eu não te causasse repulsa fisicamente.
Dou um passo para trás.
— Eu costumava achar que você era boa demais para mim —
sussurra Ferrick, balançando a cabeça. — Mas você é a pessoa
mais ingênua e materialista que já conheci. Pensa que é tão
inteligente. Nascida para ser a maior animancer que já existiu, ou o
que quer que seja. Mas talvez você não seja o que o reino precisa, e
talvez nunca seja. Supere-se.
Meu peito se contrai, embora eu não tenha idéia se é de raiva
ou mágoa. Quem ele pensa que é? Ele não sabe a verdade – que
sou a única. Que, se eu não convencer meu povo a me dar outra
chance, Visidia deixará de existir.
Tia Kalea não pode aceitar a magia da alma. Isso a matará. E
depois o quê? Quem mais está lá para enfrentar a magia Montara e
manter a besta dentro de nós à distância? Meu pai não viverá para
sempre e alguém precisa estar pronto para tomar o seu lugar.
— Fizemos o que tinha que ser feito, fim da história. — Bastian
se coloca entre Ferrick e eu. — Se quer fazer uma festa de piedade,
faça em outro lugar. Temos coisas mais importantes para cuidar.
— Não, você tem coisas mais importantes para cuidar. —
Ferrick diminui o espaço entre ele e o pirata. — A única razão pela
qual vim aqui é ajudar Amora, minha noiva. Mas se quiser assumir
essa tarefa, então seja meu...
A tensão no meu peito se rompe. Passo na frente de Ferrick e o
empurro para longe de Bastian.
— Chega — eu digo. Minhas palavras são ferozes, mas
controladas. Já tive o suficiente. — Pense o que quiser de mim,
Ferrick. Está com raiva porque acha que eu devo algo a você, mas
não devo. Já tive muitas pessoas controlando minha vida para
adicionar alguém novo à lista.
Não paro quando sua coluna se endireita e seu queixo afunda,
as sobrancelhas franzindo em um olhar. Em vez disso, continuo. —
Quando nossos pais organizaram nosso casamento, não foi por
minha escolha. Você é possessivo! Age como eu se fosse sua, mas
só estamos ligados por política e magia. E não se esqueça que eu
sou melhor que você, então não ouse falar comigo como se eu
fosse uma criança tola. Acredite, sei que Visidia merece o melhor, e
estou dando tudo de mim para eles. — Enfio minha mão em seu
peito novamente, e Ferrick tropeça para trás.
— Nunca vou te amar. — As palavras são duras, mas ele
precisa ouvi-las. — Não assim. Não da maneira que você deseja.
Pare de agir como se fosse algo que vai mudar, ou como se eu lhe
devesse uma chance. Não te devo nada.
Não preciso de palavras para entender o que está nos olhos de
Ferrick. Raiva, mágoa, traição. Está tudo lá.
— Você realmente acha que quero passar o resto da minha vida
com alguém que nunca me amaria? — Pergunta calmamente. —
Nunca pedi isso; mereço a felicidade tanto quanto você. Mas é isso
o que está acontecendo, e ao contrário de você, pelo menos estou
tentando aproveitar ao máximo.
A vibração das velas quase para, me traindo com seu silêncio.
Eu me forço a desviar o olhar e tentar afastar a culpa que
afunda seus dentes em mim, devorando meu orgulho.
Ferrick passa por mim, indo direto para as cabines.
Corro na direção oposta com murmúrios de palavrões,
apertando a borda do estibordo. Bastian me segue, observando
silenciosamente enquanto tento acalmar minha raiva.
Não importa o quanto eu tente afastar as palavras de Ferrick,
elas afundam no meu intestino. Talvez você não seja o que o reino
precisa. Mas o que ele sabe, afinal? Quando chegarmos a Zudoh,
vou parar Kaven e encontrar uma maneira de introduzir a ilha de
volta ao reino, e alistar todas as outras para ajudar Kerost. Nossa
economia prosperará. Mais navios serão produzidos com madeira
zudiana. Mais casas. O comércio entre eles e a ilha vizinha mais
próxima aumentará significativamente a economia de Kerost.
Fui trazida para esta jornada por um motivo, e as palavras de
Ferrick não me impedirão de acreditar nisso.
Mesmo assim, sabendo o que devo fazer, não consigo deixar de
pensar nas histórias sussurradas à noite sobre Zudoh, ou na
maneira como em que qualquer ambiente fica em silêncio apenas
por mencionar a ilha.
— Quanto tempo faz desde a última vez em que esteve em
Zudoh, Bastian? — pergunto, minha voz apertando.
— Moro em Keel Haul desde que tinha dez anos. — Ele
interrompe suas palavras bruscamente e salta em pé impaciente.
— E você nunca pensou em voltar antes?
Seus olhos estão no mar, os nós dos dedos brancos enquanto
ele agarra a borda da Keel Haul. Embora haja uma leve brisa, o
navio se move lentamente na água parada, provavelmente tão
hesitante em avançar com esta missão quanto o resto de nós.
Depois de um longo momento de silêncio, ele se afasta da borda e
passa por nós, parando apenas quando está nas escadas que
levam aos seus aposentos.
— Foi um longo dia, e estamos todos cansados — ele murmura,
a voz dificilmente mais alta que o vento. Quero discutir, mas o olhar
em seu rosto me impede. Reconheço a dor que ele sente; é o
suficiente para secar minha garganta em silêncio. — Tente ter uma
boa noite. — Bastian desce os degraus e deixa Vataea e eu no
convés. Quando não faço nenhum movimento para segui-lo, Vataea
se vira para mim, a cabeça inclinada.
— Você disse que sentiu uma maldição quando entrou a bordo
deste navio — sussurro. — A que exatamente você estava se
referindo?
— Senti três, na verdade, se quiser contar a que está na sua
bota. — Ela sorri, os dentes perolados. Só percebo o quão afiados
são quando captam o brilho da lua. — Mas não há nada com que se
preocupar agora. — Ela pega minha mão e gentilmente me puxa em
direção às cabines. — Agora, você vai me mostrar onde eu vou
dormir, não vai?
Ela não parece notar como meu corpo está entorpecido ou quão
rápido minhas respirações vêm.
A magia de Bastian de alguma forma foi amaldiçoada; isso é um
fato. Depois, há o colar amaldiçoado que enfiei na minha bota.
Mas, quando caminho pelas cabines atrás de Vataea, não
consigo deixar de me perguntar: qual é a terceira maldição?
CAPÍTULO DEZENOVE

A minha cabeça bate no travesseiro, mas toda vez que fecho os


olhos, não consigo deixar de pensar que Keel Haul está muito
quieta.
Ela avança com a mesma ansiedade que come nos meus
nervos. E se ela tem medo do nosso destino, então talvez eu deva
temer também. Pode haver pessoas me procurando em todas as
ilhas, mas Zudoh foi banida de Visidia por onze anos, deixada para
murchar e apodrecer em seu próprio tempo. Ninguém jamais
pensará em procurar uma princesa perdida. Se algo acontecer
comigo, meu povo nunca saberá meu destino.
Ela avança com a mesma ansiedade que come nos meus
nervos. E se ela tem medo do nosso destino, então talvez eu deva
temer também. Pode haver pessoas me procurando em todas as
ilhas, mas Zudoh foi banida de Visidia por onze anos, deixada para
murchar e apodrecer em seu próprio tempo. Ninguém jamais
pensará em procurar uma princesa perdida. Se algo acontecer
comigo, meu povo nunca saberá meu destino.
O que meu pai poderia estar escondendo?
Estou cansada de procurar respostas. Ansiedade pinica a minha
pele, e a cabine é subitamente pequena e sufocante. Deuses,
preciso de ar.
Eu me afasto da rede e coloco minhas botas e capa antes de
subir as escadas para o convés. O ar não está mais quente com o
calor do verão; há uma pontada fria. É aquela que afunda no meu
núcleo e causa arrepios na espinha.
Uma que promete que o verão não vai durar muito mais tempo,
e me lembra tia Kalea e seus olhos encantados. O destino de Visidia
depende desses próximos dias.
Não podemos parar agora.
O céu está denso com a luz das estrelas. Ele cobre o mar e
lança um brilho prateado ao longo do convés de Keel Haul, pintando
o navio de forma brilhante. A vela principal atua como sua própria
lua, cheia e luminosa, enquanto empurra o mar negro para a frente.
Há um farfalhar silencioso de roupas balançando ao vento, e me
viro para descobrir que não estou sozinha. Vataea está sentada de
pernas cruzadas perto da figura de serpente de Keel Haul,
balançando perigosamente perto da água. Ela se demora quando
me aproximo, mas sei que está ciente da minha presença, porque
não vacila quando me sento atrás dela, mais perto do parapeito.
— Se importa se eu me juntar a você?
Vataea balança a cabeça. — Por favor, venha. Faz muito tempo
que não tenho outra mulher para conversar.
Cruzo as pernas também, desejando ter a ousadia de me
aproximar dela. Ela tem uma visão perfeita da água, mas uma onda
forte e ela estará no mar.
— Senti falta do oceano — oferece Vataea sem aviso prévio. Ela
se inclina para frente e dá um longo suspiro de ar salgado. — É bom
estar de volta.
Não tenho certeza do que devo fazer. Estou acostumada a dar
comandos, não apoio. Sei como é ter coisas me envenenando por
dentro e sinto a necessidade de compartilhá-las com alguém, mas
geralmente só reclamei com Mira ou mantive os meus problemas
para mim. É estranho estar deste lado das coisas. Hesitante, ponho
a mão no ombro de Vataea e o aperto delicadamente, apenas uma
vez, como meu pai faz. É tudo o que sei oferecer.
— Quanto tempo você ficou em Kerost?
A risada de Vataea é tão suave quanto a quietude do navio
exige, mas é arrepiante. — Cerca de duas temporadas. E antes
disso, um ano em Curmana. Blarthe é um viajante; ele vai aonde
quer que tenha mais a ganhar. Por quase dois anos, me manteve
com ele, longe da água. Me usou como uma maneira de atrair
clientes para qualquer loja temporária que ele abriu. Um homem
chegou a tentar pagar uma noite comigo uma vez – cinquenta anos.
Mas quando arranquei seus olhos e mordi sua bochecha, Blarthe
começou a me manter escondida. Eu era o troféu dele depois disso
– algo para mostrar quando ele precisava atrair clientes. Um prêmio
que ele sentiu que ganhou ao me capturar.
Meu peito aperta. Dois anos é muito tempo para ficar preso em
qualquer lugar – e muito menos com aquele homem monstruoso.
Não posso começar a imaginar as coisas que ela deve ter sofrido.
Me pergunto como seria a alma de alguém depois desse tipo de
experiência.
A leitura da alma é a parte inocente da minha magia, sem
esforço e sempre ansiosa para ser usada sem repercussão. E
apesar de eu dar uma espiada que passará despercebida por ela, a
ideia de olhar para a alma de Vataea me enche o estômago. Ela
acabou de escapar de Blarthe; o mínimo que posso fazer é lhe dar a
privacidade que duvido que teve por algum tempo.
— Pretende voltar para o mar, então? — pergunto, incapaz de
imaginar querer ir para outro lugar que não seja o meu lar, se
estivesse na posição dela. Ainda assim, Vataea balança a cabeça.
— Não tenho intenção de voltar para lá tão cedo — responde
ela. — Durante séculos, minha espécie foi caçada e agora não
restou quase nenhuma de nós. Não importa o que possamos querer
para nós mesmas, há uma pressão para repovoar. — Sua testa
franze um pouco enquanto ela diz isso, como se recordasse algo.
— Entendo a necessidade de crianças — ela admite. —
Precisamos garantir que as sereias continuem existindo nos
próximos séculos. Mas essa não é a vida que quero para mim. O
que quero é ver como é viver na terra. As sereias são capazes de
ter pernas, então por que não usá-las? — Embora Vataea se
contorça de brincadeira, o pequeno sorriso nos lábios é triste.
— Depois que seu pai aprovou leis para ajudar a proteger minha
espécie, houve um esforço para muitas de nós conceber um filho
antes de voltarmos para a água — continua ela. — Mas quando saí,
não tinha planos imediatos de voltar. Eu queria ver como são os
humanos há séculos. Quero passar um tempo em suas ilhas,
experimentando sua comida e vendo tudo o que a terra tem a
oferecer. Gostaria de sentir o sol na minha pele por mais tempo do
que alguns minutos de cada vez. Explorar meu novo corpo. Gosto
de estar com mulheres, mas também me perguntei como seria estar
com um homem. — Ela passa a mão na coxa, como se ainda
estivesse fascinada pela pele de lá, e depois suspira. —
Infelizmente, não durei mais de uma semana antes de ser
capturada, então ainda há muito por aí para ver. Gostaria de
experimentar tudo.
O espírito de Vataea é aventureiro. Ela quer explorar o mundo.
Para ver tudo o que tem para lhe oferecer. Se há algo que entendo,
é esse desejo que nós compartilhamos.
A vergonha pesa meus ombros, embora ela mereça mais do
que eu me afastando de sua verdade. Meu reino estava tão
danificado que Vataea não pôde viajar por mais de uma semana
antes de ser levada? Mesmo apesar das leis que meu pai
estabeleceu?
— Sinto muito que você tenha passado por isso — digo a ela. —
Você deveria estar livre para viajar para onde quiser sem se
preocupar. Se desejar ver mais do reino, Bastian e eu a levaremos
para onde quiser, quando tudo estiver terminado. Eu poderia até
escoltá-la para Arida, se você quisesse. É lindo lá – cachoeiras,
areia vermelha e quase todas as plantas brilham à noite. Os jardins
são um dos lugares mais bonitos que você já viu... — Minhas
palavras cessam quando minha mente começa a ficar em Arida e
tudo o que está acontecendo em casa.
Sempre quis velejar e amo ainda mais do que pensei que iria.
Mas deuses, sinto falta da minha família.
Meus pais estão preocupados comigo? Como Yuriel está
lidando com tudo? O que meu povo pensa de mim agora – não sou
apenas um monstro para eles, mas também uma traidora por fugir?
Vataea se recosta nas mãos, exibindo um sorriso suave. —
Você não é a primeira a me falar de sua beleza. Contanto que
prometa que eu tenha muitas vantagens reais, suponho que não me
importaria de viajar para Arida. Deve ser bom o lugar, se você sente
tanta falta. Terá que prometer que vai me mostrar.
— Ficaria feliz — digo a ela, tentando ignorar o peso de suas
palavras enquanto elas lutam para enterrar em minha pele. Por toda
a minha vida eu quis sair de Arida. E por mais que ame o oceano,
não posso deixar de sentir falta dos meus pais. Minha casa, e
deuses, até minha cama.
— Arida é um lugar incrível — admito, engolindo meu desejo. —
Mas ainda não posso voltar para lá. Kaven não é a única ameaça a
Visidia. Se eu não conseguir descobrir uma maneira de recuperar a
confiança de meu povo, Visidia estará em perigo.
— Então você fez um acordo com um pirata em troca de ajuda?
— Ela bufa. — Ele pode ser encantador, mas você não me parece
alguém tão facilmente atraída.
— Ele era a melhor opção que tinha — argumento em voz baixa
— Realmente acha que Bastian é encantador?
— Claro que ele é! — A risada de Vataea me pega
desprevenida. Eu me afundo no som, que aquece o meu peito. Não
me lembro da última vez que consegui sentar e conversar com outra
garota. Crescendo em Arida, meus amigos mais próximos eram
Casem e Mira. Enquanto me preocupo profundamente com os dois,
o fato de que ambos vivem na ilha e são empregados por minha
família não passou despercebido.
Nunca soube o quanto eu queria isso – o quanto estava
sentindo falta disso – até agora.
— Você também deve achar que ele é charmoso — brinca
Vataea. — Caso contrário, teria afogado o pobre garoto.
Não tenho controle sobre o rosto estranho que faço para ela. —
Do que você está falando?
— Acha que o encantamento de uma sereia pode realmente ser
quebrado tão facilmente? — Vataea se inclina para mim, rindo. — O
beijo só funciona se o encantado tiver sentimentos românticos pela
pessoa que o beija. Imaginei que você salvaria um deles se tivesse
sorte. — Você é muito mais sortuda do que eu pensava.
Enterro o meu rosto nas minhas mãos. Depois do nosso beijo,
Bastian disse que estava pensando em Vataea, não em mim. Mas
eu quebrei seu encantamento da mesma forma.
O pirata é um mentiroso sujo.
— Foi uma aposta — eu digo. — Você esperava que um deles a
seguisse.
Embora Vataea aperte os lábios, a expressão que ela usa é
presunçosa. Estava certa em pensar que ela é perigosa.
— Eu o levaria de volta ao barco assim que terminasse — ela
diz timidamente. — Ou tentaria. Chame isso de risco calculado. —
Ela é tão confiante em suas ações quanto eu tenho sorte.
É tão fácil gostar de Vataea, mas se as lendas são verdadeiras,
ela é a mais perigosa neste navio. Vou ter que lembrar disso na
próxima vez que decidir seguir cegamente as suas instruções.
— Quero que saiba que realmente te aprecio por nos ajudar —
digo a ela, porque vejo o seu desejo enquanto olha para o mar, cru e
palpável. Vataea não precisa de um navio para viajar; ela poderia
nadar para qualquer uma das ilhas na metade do tempo que Keel
Haul levaria. No entanto, aqui está ela, concordando em ajudar as
mesmas pessoas que destruíram sua casa e família. — Pagarei o
quanto precisar para suas viagens, é claro, mas saiba que teríamos
ajudado a libertá-la de Blarthe, independentemente da sua decisão
de nos ajudar.
Um sorriso fino cruza seus lábios. — Minha espécie é caçada
desde muito antes de eu nascer. Minha mãe foi morta por caçadores
furtivos e muitas de minhas irmãs sofreram um destino semelhante,
roubado por nossas escamas ou por nossos corpos. Este não é um
problema novo, mas seu pai foi o primeiro a nos reconhecer como
membros de Visidia. Ele nos protegeu quando ninguém mais
parecia se importar. — Ela passa os dedos por uma das cracas da
figura de proa, o peito arfando com um suspiro. — Não é pelo
dinheiro; você é filha dele e precisa da ajuda que só eu posso
fornecer. Sei como é isso. Uma sereia se lembra daqueles com
quem possui uma dívida e sempre retribui.
Meu peito aquece, desconsiderando o ar frio na minha pele.
Fico feliz em saber que, pelo menos, meu pai se saiu bem com
essas pessoas. Que há pelo menos uma pessoa que ainda ama seu
rei.
— Dito isto — Vataea continua, seus lábios se esticando em um
sorriso perverso — Certamente vou ficar com o dinheiro. Afinal,
tenho lugares para ir e muita comida para experimentar.
Rio, prestes a perguntar mais sobre sua casa e o lugar que ela
mais quer visitar quando um barulho estridente atravessa o silêncio
e algo na água faz com que o navio se empurre violentamente para
o lado. Agarro o corrimão para me equilibrar, mas Vataea não tem
nada além da figura de proa a que se agarrar. Ela engasga,
tentando cravar as unhas nas cracas ásperas enquanto o navio
balança novamente. Keel Haul geme por seus mastros enquanto
luta contra um mar que estava perfeitamente calmo apenas
segundos antes.
Um olhar no horizonte mostra que as águas são mansas em
todos os lugares, exceto embaixo da Keel Haul. O barulho fica mais
alto; é como a base de uma cachoeira, cruel e violenta. Mas não há
cachoeira à vista.
— Espere! — Grito quando Vataea agarra-se ao navio com a
maior força possível, lutando para não escorregar. Me estico até
meus braços doerem, mas há muito espaço entre nós. Não consigo
agarrá-la sem arriscar uma queda.
Mas vejo a fonte do barulho. Diretamente abaixo, um
redemoinho corrói Keel Haul, mastigando a madeira com fome e
tentando devorá-la inteira. Ele sacode o navio enquanto Keel Haul
tenta se libertar, deixando Vataea ainda mais desequilibrada. A água
espirra no convés e seus dedos brilham com a umidade, mais
escorregadia a cada segundo.
Uma porta bate atrás de mim e vejo Ferrick saindo correndo, de
olhos arregalados e procurando. Quando ele me vê no arco, corre
para a frente, provavelmente pronto para me arrastar para longe até
ver Vataea lutando para se segurar.
— Volte! — Ele me empurra para lado e inclina seu corpo mais
longo sobre a borda, mas não adianta. O aperto de Vataea afrouxa
quando Keel Haul balança e se debate na água. Chamo ela
novamente, mas seus dedos roçam nos meus enquanto sua cabeça
bate contra a figura de proa. Sinto seu toque fantasma na minha
pele quando seu corpo bate nas ondas com um toque que soa tão
terrível quanto os gritos atrás de nós.
Tropeço para trás, tremendo, para encontrar Bastian congelado
atrás de mim. Há outro grito – mais como um lamento distorcido – e
sigo seu olhar aterrorizado.
Sinto que meu coração vai parar. Se parar agora, não precisarei
saber o que acontece a seguir.
Pensei que Zudoh seria a parte mais assustadora das minhas
viagens, mas estava errada.
A Lusca é muito, muito pior.
CAPÍTULO VINTE

A besta que surge na água é da cor da tinta e do luar. As estrelas


pegam suas escamas, tornando-as prateadas enquanto rugem. Eu
me dobro, cobrindo meus ouvidos com o grito do que soa como
metal chocando contra metal. Mesmo no pior dos meus pesadelos,
nunca seria capaz de imaginar um som tão miserável.
A Lusca. As lendas deste animal viajaram de boca a boca,
instruídas a assustar crianças desobedientes. Mas ninguém jamais
foi capaz de provar sua existência.
Provavelmente porque ninguém sobreviveu para contar a
história.
A criatura tem oito tentáculos pintados com ganchos afiados e
irregulares. Seu corpo é o de uma sanguessuga, gigante e redonda,
com uma boca permanentemente aberta da qual lamenta. Várias
fileiras de dentes manchados de sangue enchem a boca, com
pedaços de peixe e lulas pendurados neles. Imagino que nossos
corpos estarão lá em breve.
— Onde estão os outros? — Bastian engasga. A pergunta trava
em sua garganta.
— Vataea caiu na água. — Minha voz treme quando me lembro
do horrível estalo de sua cabeça batendo na figura de proa. Mas,
dadas as brânquias, não é ela que se afoga. — Precisamos tirá-la
de lá antes que a Lusca a veja! Ferrick e eu tentamos... — faço um
movimento em direção a Ferrick, mas ele não está mais na minha
visão. Meu batimento cardíaco triplica quando giro, mas ele se foi.
Somente quando me inclino sobre o arco é que vejo seus cabelos
ruivos no mar abaixo, enquanto ele luta para sair do redemoinho
encolhendo.
— Seu idiota — grito para a água.
Bastian pressiona a mão no peito enquanto observa a fera. Está
instável, o corpo balançando quando Keel Haul faz um empurrão
final para sair da água que a prende. Somente quando ela se
estabiliza, Bastian respira aliviado e puxa a espada. Parece inútil
contra esta besta gigante. Risível.
— Você quer lutar contra isso?
— O que mais devemos fazer? — Ele grita. — Keel Haul é um
navio rápido, mas não há como fugir dessa... coisa.
— A Lusca — digo. Sinto nos meus ossos que essa é a criatura
das lendas.
O rosto de Bastian endurece, mas ele não discorda. Todo
mundo conhece as histórias.
— Ferrick pulou? — Ele pergunta.
Concordo, meu peito apertando quando ouço as palavras em
voz alta. Ferrick é um tolo altruísta por pular atrás de Vataea, e ele é
um tolo egoísta se acha que pode morrer quando nossas últimas
palavras foram tão cruéis.
Mas não vou deixá-lo morrer. Não essa noite.
— Se não pudermos fugir, precisamos ancorar para que eles
possam voltar a subir. — O navio balança com muita força,
sacudindo-se como se estivesse preso no olho de uma tempestade.
Precisamos estabilizá-lo.
— Vá, então — diz Bastian. — Vou manter a fera distraída.
Sem um segundo olhar, corro para a sonda. Não há tempo para
soltar as duas âncoras do pavilhão, e elas levarão muito tempo para
serem transportadas se precisarmos de uma fuga rápida. Em vez
disso, desaperto a tampa e deixo a âncora principal cair. Jogo a
escada para eles subirem, mas nem Ferrick nem Vataea estão à
vista.
A Lusca grita até que todos os pêlos do meu corpo se arrepiem.
Dez olhos vermelhos como os das aranhas nos olham em volta de
sua boca grande. Poderia facilmente engolir dez botes de uma só
vez, mas, felizmente Keel Haul é grande o suficiente para não ser
engolida. O monstro vê Bastian enquanto a espada do pirata reflete
o brilho da lua. Ele a segura a sua frente, como se a lâmina fina
pudesse fazer qualquer coisa contra um monstro marinho.
A Lusca bate com um de seus tentáculos em forma de gancho.
Bastian desvia mergulhando, levantando a espada bem a tempo de
revidar. Ele faz um um corte sólido antes que o monstro retire seu
enorme tentáculo. O som sacode o navio e me obriga a tapar meus
ouvidos novamente. Eles queimam como se estivessem prestes a
sangrar.
Quando a Lusca recua, seu tentáculo bate no elmo de Keel Haul
e arranha a madeira. Também deve atingir Bastian, porque ele
tropeça para trás como se tivesse sido atingido. Ele passa a mão
esquerda pelo estômago e luta para respirar.
Corro para o lado dele e coloco meus braços em seus ombros
para firmá-lo. — Você está bem? — Seu peito sobe e desce quando
ele recupera o fôlego.
— Estou bem — resmunga. — Encontre Ferrick e Vataea.
Coloque-os de volta no na...
A Lusca não está mais olhando para nós. Um de cada vez, ele
pisca os olhos vermelhos e redondos para a esquerda, e corro até o
arco para ver o que foi visto.
A Lusca não está mais olhando para nós. Um de cada vez, ele
pisca os olhos vermelhos e redondos para a esquerda, e corro até o
arco para ver o que foi visto. Não há como esconder os cabelos
ruivos de Ferrick na água prateada. Ele é uma chama no meio do
mar, e a cauda de ouro rosa de Vataea não está ajudando.
A cabeça da sereia está abaixada, flácida. Ferrick a coloca por
cima do ombro esquerdo. Pode não haver mais um redemoinho,
mas as ondas batem furiosamente contra Keel Haul, fortes o
suficiente para influenciar o navio pesado. Eles atrasam Ferrick. Sua
cabeça entra e sai da água enquanto ele luta para nadar para a
frente, arrastando Vataea com ele.
— Eu soltei a escada! — Grito. — Depressa!
Mas a Lusca já os viu. Sua garganta se abre e seus dentes se
contorcem com entusiasmo, cada um como uma lula morta com
uma ponta pontiaguda que pinga veneno preto.
Quando bate seus tentáculos em direção a Ferrick, grito por
Bastian. — Precisamos fazer alguma coisa! — Embora não tenha
idéia do que poderia ser.
Ferrick abraça Vataea e se esconde debaixo da água antes dos
tentáculos atacarem. A Lusca ruge e recua para outro golpe.
Bastian corre em direção à borda do navio mais próxima da
Lusca. Ele levanta a espada acima da cabeça e a balança no ar,
tentando chamar a atenção da fera.
Funciona. Todos os dez olhos são atraídos para a espada
brilhante antes de afundar no homem que a segura. Bastian está
com o rosto de pedra e pronto para voltar.
— Garanto-lhe que tenho um gosto melhor do que os guppies
da água. Há uma pontada em sua voz. — Venha e experimente.
O monstro avança e Bastian o apunhala novamente. Os
tentáculos são grossos; eles prendem a lâmina, mas são espessos
demais para cortar. Seu sangue escuro derrama-se do tentáculo e
mancha as bochechas e as mãos de Bastian. Ele levanta a espada
de volta com um grunhido, insatisfeito por não ter feito nada..
Mas ele fez algo. Ele me deu uma ideia.
Preciso do sangue da Lusca. Ou, melhor ainda, do seu
tentáculo.
— O que você está fazendo? — Bastian grita quando me jogo
do arco e corro em direção a Lusca. — Vai se matar!
— Distraia a fera! — Agarro o cordame e me levanto pelas
cordas escorregadias, começando a subir em direção ao mastro. A
atenção da Lusca ainda está fixada em Bastian. Ela levanta três
tentáculos no ar e os bate em Keel Haul.
Bastian está voando, sua cabeça batendo contra o navio. Keel
Haul ruge quando a Lusca afunda seus tentáculos no navio,
arrastando-o para frente.
Envolvo meu pulso na corda e me balanço para encarar a fera.
Desamarro minha adaga e a seguro enquanto a nave se inclina e o
cordame paira sobre a Lusca.
Essa criatura é extraordinária; algo das lendas. Se quiser
vencer, também terei que ser extraordinária.
Preparo minha adaga, envio uma oração rápida aos deuses e
me jogo do cordame. Bato na pele grossa do monstro com um tapa
que retira o ar dos meus pulmões. Bastian grita algo atrás de mim,
mas não consigo mais entender suas palavras.
O animal é escorregadio, com a pele como a de uma baleia. Há
entalhes e ranhuras nas costas, de onde outras criaturas
arrancaram pedaços de sua pele, e cravo meu calcanhar em uma
dessas ranhuras para me firmar. A Lusca ruge.
Nenhum de seus dez olhos pode se mover para cima. Eles
estão fixos em um círculo em volta da boca, incapazes de me ver.
Mesmo assim, atira um de seus tentáculos em mim e ruge quando,
em vez disso, ataca suas próprias costas.
Cravo mais meu calcanhar nas costas da besta e caio de quatro
quando ela se debate. Minhas unhas lutam para se firmar em
qualquer ranhura que encontrarem, e luto para tirar a minha bota
esquerda. Pelo canto do olho, pego um flash vermelho. Ferrick está
dando a volta no navio, em direção às cordas.
Bastian se vira para ajudá-lo, mas a Lusca lança dois de seus
tentáculos viscosos no ar. Eles martelam em Keel Haul, seus
ganchos rasgando a madeira. Quando olho através da névoa, vejo
Bastian agarrar seu peito. Seu estrangulamento sufocado enche o
ar.
Quando a Lusca levanta outro tentáculo, enfio a adaga nas suas
costas e finalmente chuto o pé da bota. Me levanto, mas sem o
atrito das minhas solas, a pele da Lusca é ainda mais lisa e
escorregadia à medida em que se agita.
Cravo meus dedos do pé no que posso, desesperada pelo que
está dentro dessa bota.
Debaixo de minhas meias e presa sob uma fina camada de
lona, está o colar amaldiçoado que roubei de Mornute. Tomei
cuidado para evitar que ele tocasse minha pele, poupando-o pelo
tempo em que pudesse ser útil.
Um toque da minha pele contra o colar e estaremos mortos.
Mas se eu puder colocar isso na Lusca...
Um de seus tentáculos finalmente me encontra. Isso me deixa
sem equilíbrio; começo a escorregar pelas costas, mas deixo minha
lâmina na carne de lado e me agarro ao punho. Os lamentos da
Lusca são ensurdecedores.
Bastian se inclina sobre o lado oposto do navio, ajudando
Ferrick e Vataea a subir a escada. Ele está de costas para a Lusca,
confiando em mim para lidar com esse animal sozinho. Não posso
decepcionar esses três.
Levanto minha bota livre e mordo a boca dela, apertando o
couro entre os dentes para que eu possa usar as duas mãos para
me arrastar de volta para as costas da Lusca, agradecida por seu
tamanho enorme apenas desta vez. Fico de quatro e aperto o punho
da minha adaga até recuperar o equilíbrio contra a pele viscosa da
Lusca. A besta luta contra meus movimentos, os tentáculos se
debatendo. Uma de suas farpas enganchadas encontra as minhas
costas e perfura minha pele. grito com a queimação abrasadora
enquanto milhares de pontos pretos lutam para roubar minha visão.
Mas não deixo que ela me derrote. Tiro minha lâmina da carne
da besta enquanto ela apronta outro tentáculo. Me levantando,
coloco a bota de volta nas mãos e tento me preparar sem tremer.
Meu peito está apertado; toda respiração enche meus pulmões
de fogo.
Veneno. Os tentáculos farpados do Lusca vazam veneno.
Minhas mãos não são mais minhas. Elas estão fantasmagóricas
e estranhas. As vejo se mover enquanto seguro minha bota, mas o
veneno que se espalha faz parecer que pertencem a outra pessoa.
A água chove sobre mim e, através da minha névoa, lentamente
olho para cima. O Lusca tem todos os tentáculos levantados,
curvados e prontos para derrubar por conta própria. Em mim.
Minhas mãos estão instáveis, mas seguro minha bota com força
e, embora o mundo fique embaçado e escuro ao meu redor, afasto a
névoa da minha visão e espero. Há apenas uma chance de acertar.
Espero até a Lusca rugir, confiante o suficiente para se jogar
com toda a força.
Espero até que um tentáculo atinja minhas costas novamente, e
até outro quase bater na minha cara, indo para a matança. No
momento antes de atingir, trago a dor e jogo minhas mãos para
cima, capturando seu tentáculo na minha bota.
A Lusca não tem tempo para recuar. No momento em que ela
toca ao colar, o animal congela. Seus tentáculos formam uma
caverna acima da minha cabeça, e tropeço para trás quando a água
chove em meu rosto pelos membros levantados e imóveis.
Os calafrios rasgam através de mim com tanta força que quase
me deixam de joelhos. Agarro qualquer força restante que tenho,
forçando um pé na frente do outro. Passo a passo excruciante,
atravesso ainda as costas da fera e em direção à ponta de um dos
tentáculos.
O colar congelou completamente a fera. A Lusca não pode gritar
quando corto seu tentáculo, mas gosto de saber que pode sentir
cada centímetro da minha lâmina. Sua carne é grossa e requer
muito mais energia para cortá-la do que eu tenho para oferecer.
Mas não tenho outra escolha. Cravo as unhas de uma mão no
tentáculo para segurar meu corpo enquanto deslizo através de sua
carne. Minhas respirações vêm em suspiros apertados quando o
veneno começa a fazer efeito em mim; Não tenho muito mais
tempo. Corto o resto do tentáculo e seu sangue mancha as minhas
mãos enquanto o seguro.
Há poder no sangue da Lusca. Poder pulsante, feroz e
maravilhoso. É forte de uma maneira mítica que nunca conheci.
Parei a Lusca, mas não posso simplesmente deixá-la aqui para
alguém descobrir ou algo para remover o colar antes que ela morra
de fome. Preciso colocar esse tentáculo de volta no navio e acendê-
lo em chamas. Preciso matá-la com a minha magia.
Preciso voltar para Keel Haul.
Preciso...
O equilíbrio é uma coisa distante que não consigo mais manter.
Meu pé desliza na parte de trás da besta congelada e seguro o
tentáculo cortado como se pudesse, de alguma forma, me resgatar.
Dez olhos vermelhos me observam sem piscar enquanto eu tropeço
e caio de costas.
Meu corpo se recusa a ouvir enquanto tento pegar minha
adaga, querendo usar o corpo da Lusca para reduzir o impacto
novamente. Mas meus braços não relaxam em volta do tentáculo.
Fecho os olhos enquanto o oceano me engole inteira. A água
inunda meus pulmões, e engasgo com a única coisa que mais amo.
O mar. As águas do meu reino. Elas serão a minha morte.
CAPÍTULO VINTE E UM

Acordo em uma sala inundada de calor. A luz da lua sai detrás das
cortinas de veludo abertas e uma lâmpada de óleo esmaecida
queima sobre a mesa de mogno ao meu lado.
Um colchão macio atrai meu corpo, me embalando de volta ao
sono. Não me importei em dormir em uma rede, mas agora que me
lembro do que estava perdendo, quero me envolver entre os
cobertores luxuosos e nunca mais sair. A exaustão me leva a dormir
por uma semana.
Mapas e atlas cobrem o chão e as paredes. Na penumbra,
percebo uma parede onde as roupas ficam penduradas, imaculadas
e ordenadas por tipo e cor. Casacos de um lado, camisas de linho
do outro. Mais sapatos masculinos do que eu já vi em um só lugar
formam uma linha no chão.
Bastian está sentado em uma cadeira, debruçado sobre a mesa.
Ele veste apenas uma camisa de linho preta fina e uma calça larga,
da forma mais casual do que já vi. A definição de seus braços e
ombros chama minha atenção quando ele examina algo que está
sobre a mesa. Está de costas para mim, mais amplo e musculoso
do que imaginava. Com a rapidez com que ele pode escalar o
cordame e arrastar as âncoras de Keel Haul, esperava que ele fosse
forte.
O que eu não esperava é o quanto eu aprecio a aparência da
camisa preta contra sua quente pele marrom. Também não espero o
pensamento de como suas costas e ombros podem se sentir
debaixo das minhas mãos, poderosas e firmes.
Bastian se afasta da mesa com um suspiro. O tentáculo da
Lusca repousa diante dele. Lembro-me de querer trazê-lo para o
navio comigo, mas nunca cheguei tão longe. Como eu e o tentáculo
chegamos aqui?
Ele se assusta quando se vira e me pega olhando. — Você está
acordada. — Ele procura meu rosto com cuidado. — Como está se
sentindo? Sinto muito pelas suas roupas. Vataea te trocou; Ferrick
precisava ver quão profunda é a sua ferida.
Sei que a Lusca me atingiu, mas não me lembro da ferida ser
profunda, nem de sangue. Tudo o que me lembro são flashes de
tentáculos, água e, eventualmente, completa dormência.
Olho para mim mesma pela primeira vez, finalmente percebendo
a rigidez do meu corpo enquanto tento me mover.
— Cuidado! — Bastian se move para a beira da cama. —
Ferrick foi capaz de te estabilizar, mas tivemos que drenar muito do
seu sangue para tirar o veneno. Mesmo um curandeiro Suntosan
não pode devolver sangue perdido. — Seu corpo está tenso quando
a pele entre as sobrancelhas se enruga em linhas que o
envelhecem dez anos. Olhando para eles, minha cabeça gira. Tento
falar, mas as palavras queimam.
Flashes de água escura e manchada de sangue escorrem por
trás dos meus olhos quando me lembro da lembrança de me afogar.
De vomitar no mar enquanto lutava para ressurgir. Minha garganta
queima como se eu tivesse engolido litros de rum puro. Leva um
tempo até que eu seja capaz de falar mesmo com a dor.
— O quão ruim foi? — grito. — Há quanto tempo estou
inconsciente?
Bastian alisa um cacho solto do meu pescoço e o coloca de
volta no lugar. Seu toque é suave, como se muita pressão pudesse
me quebrar. — Dois dias. — Ele levanta a mão em protesto quando
começo a me sentar. — Relaxe. Neste extremo sul, as águas
começam a ficar rochosas pelo frio. Mesmo com a velocidade de
Keel Haul, a viagem a Zudoh levará três. Precisa descansar. — Ele
diz a última parte com um suspiro longo e prolongado. — Você deve
ter um desejo de morte, sabia? Pulando na água com um monstro
marinho? Quase foi morta.
— Mas não morri. — Tento sorrir, mas meus lábios estão
rachados de sal marinho e faço uma careta quando eles se abrem.
Mesmo com os ossos cansados e mal conseguindo me mover, a
adrenalina que flui através de mim é inegável. Ferve no meu sangue
e acelera meu coração de uma maneira que nunca conheci.
Foi assim que o pai se sentiu depois de suas aventuras? Depois
de domar um kelpie e perseguir o leviatã?
Até agora, ninguém foi capaz de documentar a prova da
existência da Lusca.
Chega de sair da cama, meu pai me disse uma vez. A Lusca vai
te pegar se você o fizer! Vai agarrar seus tornozelos e te devorar
inteira! Sua refeição favorita são os ossos de crianças
desobedientes, sabe...
Em algumas histórias, havia rumores de que o monstro tinha a
cabeça de um tubarão. Em outros, tinha três cabeças e tentáculos
venenosos. Na minha paranóia noturna, era um animal enorme, com
tentáculos longos e viscosos feitos para arrancar tornozelos e
dentes longos como punhal para morder os ossos das crianças. Mas
comparado à coisa real, minha Lusca imaginada era um filhote de
cachorro.
Mal posso esperar para dizer ao pai que não apenas enfrentei a
fera, mas que a superei. Eu só queria que ele estivesse lá para ver.
— Como voltei para o navio? — Tento molhar meus lábios
rachados, mas minha boca está muito seca.
— Eu pulei atrás de você. — Bastian diz isso de maneira
simples, como se a resposta fosse óbvia. — Demorei um pouco
para descobrir como você conseguiu, mas paralisar a Lusca foi
genial, admito; embora não devesse se arriscar assim.
Inclino minha cabeça no travesseiro, fechando os olhos em
protesto contra a tontura. — É o que tinha que ser feito.
Por um momento há apenas silêncio. Sem palavras. Sem
passos. Talvez nem mesmo qualquer respiração além da minha.
Quando Bastian fala novamente, suas palavras podem ser calmas,
mas são afiadas como uma lâmina: — Você realmente fará qualquer
coisa pelo seu povo, não é?
Quero abrir os olhos e lembrá-lo de que já dei minha resposta,
mas quando o faço, Bastian não parece convencido ou com raiva.
Seu rosto está sombreado pela lâmpada de óleo, o queixo forte em
seu perfil. Ele balança a cabeça apenas um pouco, como se para si
mesmo. — Você é uma Montara; seu pai baniu minha ilha do reino.
Destruiu minha casa. Tentei não ser hipócrita, porque, quem sou eu
para julgar alguém pela família? Mas ainda assim, eu queria te
odiar. — Seus punhos cerram e se abrem ao lado do corpo, os olhos
apertados no chão como se ele estivesse lutando com algum tipo de
guerra interna.
— E você me odeia? — Pergunto.
Ele balança a cabeça. — Não, Amora. Não consegui te odiar
desde o momento em que conversamos pela primeira vez.
Mal posso dizer se a sensação de tontura é por causa dos meus
ferimentos ou por causa das palavras de Bastian. Minha pele está
quente, mas não consigo olhar para ele. Devagar, com cuidado,
estendo minha mão para pegar a dele. Ele fica tenso no começo,
mas seus ombros relaxam lentamente enquanto aceno para ele se
sentar na beira da cama.
O calor se espalha pelo meu peito enquanto deixo uma pequena
parte da minha magia passar por mim, usando-a para procurar sua
alma e confirmar a suspeita que dá um nó no meu estômago.
Na primeira noite em que conheci Bastian, pensei que minha
magia estava cansada demais para ver a totalidade de sua alma.
Mas, olhando para ele agora, ainda está o enevoado cinza claro que
era antes, com as bordas desbotando na fumaça fina que se recusa
a me mostrar o resto. Vejo apenas metade dele.
— Vi você durante a luta, Bastian — digo. — Ouvi você gritar.
Ele hesita, mas não se afasta.
— Na primeira vez que a Lusca atacou, não vi você ser atingido
— pressiono. — Atingiu Keel Haul, e você reagiu. Como se você
estivesse sofrendo.
Seus olhos captam a luz da lua e, por um momento, são
prateados e banhados pelas estrelas. Ele apoia seu peso em um
braço. — Onde quer chegar?
As palavras são um desafio do qual não posso me afastar.
Embora ele esteja tenso, quase parece que Bastian quer que eu
saiba. Posso sentir isso na maneira como sua mão se fecha na
minha, seu polegar roçando meu pulso, praticamente me implorando
para dizer a resposta em voz alta e libertá-lo de seu segredo.
Gostaria de saber há quanto tempo ele está segurando isso.
— Você disse antes que Keel Haul era um navio mágico. —
Levanto meu queixo, prendendo sua atenção. — E Vataea disse que
sentiu a maldição no momento em que subiu a bordo da Keel Haul.
Agora que vi essa magia em ação, acho que posso entender o que
é uma dessas maldições. Toda vez que você era atingido pelo
Lusca, o navio reagia. Toda vez que o navio foi atingido, você sentiu
a dor. Você e Keel Haul estão conectados por magia, não é?
Sua mão forma um punho nos lençóis. Ele flexiona a mandíbula
e olha pela janela, para o mar escuro. — E se estivermos? Mudaria
a forma que você pensa sobre mim?
— Não. Eu gostaria de entender.
Ele range os dentes, hesitante, mas as palavras vêm
rapidamente. Como se ele quisesse desesperadamente
compartilhá-las. — É magia zudiana, como você adivinhou.
— Como? — Pergunto. — A magia da maldição permanece
contida, não é? Quando soltei o colar, a maldição seguiu, não eu.
Não fui amaldiçoada permanentemente.
Seu suspiro me diz que é mais complicado que isso. — Zudoh
costumava ser a ilha mais popular do reino. Era frequentemente
visitada por turistas curiosos e pessoas que buscavam poções e
feitiços amaldiçoados para trazer de volta para suas próprias ilhas.
Cerca de treze anos atrás, isso começou a mudar.
— Parte de Zudoh queria se separar do reino — continua ele. —
Eles queriam expandir seu alcance, seu poder e fazer mais do que
bugigangas para turistas ricos. Eles viram uma forma de sua mágica
crescer. Mas para conseguir isso, precisavam de uma maneira de
criar maldições que poderiam durar para sempre; vinculando-as à
alma de uma pessoa.
— Eles aprenderam a magia da alma? — Minhas mãos estão
suadas enquanto dou uma respiração afiada. O rei Cato a restringiu
à linhagem de Montara, para proteger nosso povo da fera que ele
lutou séculos atrás. — Mas não é para ser aprendida por outros. É o
fardo dos Montaras carregá-la.
— E isso só pode ser um fardo dos Montaras — diz ele. — É por
isso que Kaven teve que criar algo novo. É essencialmente uma
magia da alma amaldiçoada. Você não pode destruir a alma de
alguém como você pode com a magia aridiana, mas pode
amaldiçoar uma.
A temperatura do cômodo cai dez graus. Mesmo com o calor da
mão de Bastian contra a minha pele, estremeço. — Como eles
ainda estão vivos? — Mágicas múltiplas quebram o corpo e a alma
de uma pessoa até que elas acabem por cessar completamente.
Proteger as pessoas disso é como minha magia passou a existir.
— Eu não sei — ele admite — mas é a verdade. Quem pratica
essa magia pode roubar e amaldiçoar metade de uma alma.
Como uma pessoa amaldiçoada continuaria a existir, com
metade dela desaparecida? Chamaria Bastian de mentiroso se não
tivesse visto sua alma. — Como funciona?
O rosto de Bastian escurece. — Primeiro eles usam a magia da
alma para acessar a alma de alguém. E então, usando o sangue da
vítima, eles podem amaldiçoar parte de sua alma em qualquer
coisa. Veja meu relacionamento com Keel Haul por exemplo. Kaven
me amaldiçoou a este navio; é por isso que sou forçado a
permanecer nele e por isso fico mais doente quanto mais tempo fico
longe dele. Uma pessoa não pode viver confortavelmente com
apenas metade de sua alma.
Penso em sua pele pegajosa e respirações agudas durante
nosso tempo em Ikae. Só ficamos fora do navio por algumas horas.
— O que aconteceria se Keel Haul fosse destruído? Você morreria?
Bastian balança a cabeça. — Eu sobreviveria, mas não seria
uma vida digna de ser vivida. Eu me tornaria uma concha de
pessoa, vazia e vazia. Não desejaria nada além da minha alma
quebrada.
Minha cabeça gira enquanto tento processar isso. — E o que
aconteceria com Keel Haul se você morresse?
— Por mais que eu a ame, é apenas um navio. Keel Haul
mantém parte da minha alma, e não o contrário. Se eu morrer, ela
voltará a ser uma embarcação normal, não mais ligada a ninguém.
Sinto o que ela sente, pois minha alma está dentro dela. Não
funciona ao contrário; nada dela está dentro de mim. Posso usar
nossa conexão para ajudá-la a navegar, mas essa é a extensão do
meu poder sobre a Keel Haul.
Minha pele esfria de suor. — Todos em Zudoh podem fazer
isso? — Porque se podem, como ele espera vencer essa luta? Uma
gota de sangue, e nossa almas seriam destruídas.
Bastian balança a cabeça, a voz assumindo um tom defensivo.
— Na última vez em que ouvi, apenas alguns praticaram essa
magia. Começou como um pequeno grupo, trazido à vida pelo filho
do principal embaixador da ilha, Kaven.
— O que você precisa entender é que nossa magia não deve
ser assim — continua ele. — É para ser protetora. Para colocar
enfermarias em sua casa para que você possa dormir à noite ou
dissuadir as crianças de tocarem em coisas que possam ser
perigoso demais para elas. Coisas assim. Mas Kaven se afastou
desse estilo de magia de maldição e formou algo sombrio e novo, e
se você não estiver com ele, estará contra ele. — Quando Bastian
fala de sua ilha natal, suas palavras são apaixonadas. No entanto, o
suor frio lambe minha garganta, meu corpo enjoado. Kaven não é
um simples oponente. Ele é portador de uma magia inédita, o que o
torna perigoso.
— Por que minha família não faria nada sobre isso? —
Pergunto. — Meu pai não aceitaria uma magia tão distorcida.
— Seu pai foi quem declarou o banimento de Zudoh do reino,
quando sua intenção de aprender magia da alma ficou clara. Ele
levou os curandeiros Suntosan da nossa ilha e nos impediu de
negociar. Provavelmente pensou que eles nunca conseguiriam
aprender – que essa bagunça se resolveria e eles voltariam
implorando para fazer parte do reino novamente. Mas ele estava
errado. Essa mágica dividiu Zudoh, e a ilha está em crise. Os
Montaras são a razão pela qual meu povo está lutando. — Seu
aperto relaxa nos lençóis enquanto ele se afasta.
O navio agita com o mesmo desconforto que me arranha,
balançando inquieto até contra as menores ondas. Não é o navio
mágico e confiante com o qual estou acostumada.
— Há quanto tempo a sua alma está amaldiçoada ao Keel
Haul?
Bastian tenta sorrir, mas murcha quando o peso da verdade o
atinge. — Desde criança. Zudoh é uma ilha pequena, então não
havia como me esconder de Kaven. Eu era jovem quando ele tentou
me recrutar, prometendo às crianças que ele nos ensinaria magia
como se fosse um brinquedo novo e brilhante. Meus pais não
deixaram que ele me convencesse, então ele os matou e me levou
embora, como fazia com todas as crianças em que conseguia pôr as
mãos, para estudar a magia amaldiçoada da alma. Nunca a aprendi,
no entanto.
Tremo. Nunca imaginei esse nível de maldade. Assassinato e
crianças roubadas? Alma mágicas amaldiçoadas? Foi a isso que
meu pai deu as costas?
Por quê? Todo esse tempo presa em Arida, praticando nossa
magia – foi porque ele tem medo de começar uma guerra?
— Antes de ser morto, meu pai estava me ensinando a velejar,
e depois de um ano sendo forçado a estudar sob Kaven dia e noite,
sabia que seu navio era a única maneira de escapar. Durante uma
semana, peguei comida e suprimentos a bordo e, uma noite, quando
pensei que todos estavam dormindo, alguns amigos e eu
escapamos. Só que Kaven devia estar escondido lá, esperando. Ele
matou os outros e, para mostrar a todos do que era capaz, ele
amaldiçoava e roubava a magia de quem o desobedecesse. No
momento em que toquei o leme, minha alma se partiu em dois e se
ligou a Keel Haul. Mas ele cometeu um erro e não pensou em me
amaldiçoar a um navio. Escapei antes que ele pudesse me parar.
Energia e raiva fervem de seu corpo. Estendo a mão para
colocá-la em seu ombro, e Bastian endurece.
— Certamente há uma maneira de quebrar a maldição?
Seus dentes se apertam, afiando o queixo. — Como eu disse,
para amaldiçoar permanentemente a alma de alguém, é necessário
o seu sangue. E quanto mais Kaven toma, mais forte ele se torna.
Mas essa mágica tem uma fraqueza: para manter o controle de sua
magia, seu criador deve sempre manter um pouco de sangue da
pessoa amaldiçoada. Bastian se inclina para frente. — Kaven é um
homem vaidoso e orgulhoso. Ele coleciona pulseiras de couro
manchadas com o sangue daqueles que ele amaldiçoou. Ele usa
seus favoritos como um troféu e mantém as outras próximos a ele
em Zudoh. Para garantir que seus encantos permaneçam intactos,
ele trata essas pulseiras como você trata sua mochila, raramente
deixando Zudoh para que ele nunca precise se afastar muito delas.
Mas se pudermos destruí-las, todas as maldições que ele já fez
serão quebradas e ele ficará enfraquecido.
— Você acha que o seu sangue está em uma das pulseiras? —
Pergunto. — Um dos troféus dele?
Bastian bufa. — Sei que está.
Não consigo decifrar a expressão que Bastian faz quando a
lâmpada de óleo pisca e escurece, lutando pela vida. Ela lança a
cama um brilho nebuloso de laranja queimado. Sombras dançam na
cavidade de suas maçãs do rosto e curvam-se ao longo do pescoço
até a camisa.
Anos de viagem no mar, movendo-se livremente de uma ilha
para outra sem restrições, deveriam tê-lo enchido de sabedoria e
vida. Sempre tive inveja de quem viaja. Ciúme de aventuras e
experiências que eu só conseguia imaginar.
Mas tenho familiares e amigos que provavelmente estão
preocupados e aguardam meu retorno. Bastian, eu sinto, não tem
isso. Sua família se foi e sua alma foi amaldiçoada a uma vida de
solidão. As estrelas em seus olhos não são criadas apenas por
aventura. Foram formadas por anos de solidão. De olhar para um
céu cheio de sonhos e nunca conseguir alcançá-lo.
Ele parece tão, tão solitário.
— Por que não me disse isso antes? — Meu sangue está
quente, e minha pele pegajosa. — Isso é muito pior do que apenas
derrotar uma rebelião, Bastian. Não sei se consigo lidar com isso
sozinha.
Seu rosto e ombros caem de vergonha. — Nunca quis voltar
para Zudoh. Eu pretendia viver o resto da minha vida assim, preso a
este maldito navio e o mais longe possível de Kaven. — Vivi com
medo dele por anos – sabendo que minha ilha estava com
problemas, mas com muito medo de fazer algo a respeito. Mas
quanto mais tentava evitar pensar nas pessoas que ainda deveriam
estar sofrendo, mais isso começava a me comer vivo. Não
conseguia me concentrar. Não conseguia dormir. Então ouvi dizer
que Arida estava comemorando o aniversário da princesa deles.
Não é o Bastian com quem estou familiarizada. Essa pessoa é
bruta. Raivosa e cruel.
— Estava visitando Valuka quando soube que sua apresentação
estava chegando — diz Bastian. — Magia aridiana é o que Kaven
sempre quis, e soube então que era a única coisa forte o suficiente
para detê-lo. Imaginei que poderia pelo menos tentar convencer seu
pai dos perigos que ele estava ignorando. Eu queria que ele
soubesse que Kaven era uma ameaça real, embora fosse ingênuo
da minha parte pensar que ele faria qualquer coisa depois de tantos
anos de ignorância. Mas então eu vi você. — Seus dedos pairam
sobre meus nós, hesitantes. Leva um longo momento antes que ele
possa pressioná-los contra a minha pele, abrangendo minha mão
completamente. Penso em afastá-los, mas não consigo encontrar
poder para isso.
— Juro que foi como se o céu se abrisse e mostrasse a minha
chance. Lá estava você, confrontando seu pai sobre a mesma
pessoa que eu vim para avisá-lo. Quando você precisava de uma
maneira de escapar de Arida e se redimir, eu realmente acreditava
que os deuses me levaram até você por uma razão.
Minha cabeça nada quando uma onda de náusea se instala.
Seja do veneno ou dos segredos sendo derramados um após o
outro, não tenho certeza.
— Por favor, entenda que passei anos fugindo — ele sussurra.
— Estou cansado. A cada momento que estou longe de Keel Haul,
fico mais doente. Quero minha liberdade de volta. — Ele usa um
sorriso fantasma antes de balançar a cabeça. — Mas o povo de
Zudoh também está preso, e eu os negligenciei por muito tempo.
Você me perguntou o porquê de eu não ter voltado antes, e é
porque eu era um covarde. Quando escapei, poderia ter tentado
encontrar uma maneira de ajudá-los, e não o fiz. Agora, Kaven está
tentando destruir o resto do reino, assim como ele destruiu minha
casa. Estou pronto para acabar com isso, antes que ele machuque
mais alguém. E realmente acredito, depois de tudo, que devemos
fazer isso juntos.
Ele sente como se tivesse um dever para com o povo de sua
ilha; não há nada que eu entenda mais. Sua mão é áspera, mas
quente enquanto intensifico o meu aperto.
— Chega de segredos. — Eu seguro o escrutínio de Bastian até
que ele relaxe com uma forte expiração, percebendo que estou
falando sério. — Entendo suas razões, mas isso muda as coisas,
Bastian. Não pode haver mais segredos.
Leva um momento antes que ele responda, suas palavras
quietas. — Sem mais segredos. Juro por minha honra como pirata.
— Pensei que você preferisse o termo marinheiro? — Tento
provocar, mas as palavras são fracas quando minha visão
vertiginosa força minha cabeça de volta ao travesseiro. Minha luta
com a Lusca está me alcançando.
Bastian ri baixinho. É irritante o quanto eu gosto desse som.
— Não vamos nos preocupar com a semântica. — Ele aperta
minha mão uma vez, depois se levanta e diminui a lâmpada de óleo
até que ela mal pisque. — Tente descansar um pouco. Temos mais
um dia antes de chegarmos a Zudoh. Precisamos estar prontos.
E preciso me preparar.
Sob a penumbra, concentro-me no tentáculo cortado da Lusca e
no grosso gancho farpado que se enrola na ponta. Estremeço com a
lembrança da rapidez com que seu veneno me devorou. Como isso
roubou minha visão e me fez vítima da ira do mar.
Que arma brilhante esse gancho poderia virar.
CAPÍTULO VINTE E DOIS

O quarto está vazio quando acordo na manhã seguinte. Eu me ajeito


em meus pés trêmulos, estico meus ossos rígidos, pego um dos
casacos de Bastian e visto minha camisa fina de linho. No momento
em que abro a porta, Ferrick está lá esperando. Ele pula e fico
surpresa ao ver que sua coloração é normal e seus movimentos são
rápidos. Ele finalmente se adaptou para viajar na Keel Haul.
— Amora! — Ele quase me derruba quando joga os braços em
volta de mim. — Pelos deuses, sinto muito. Como está se sentindo?
Você já estava na água quando percebi o que estava fazendo. A
Lusca, Amora! Consegue acreditar? Enfrentamos a Lusca. — Seus
olhos estão arregalados e tremendo com uma estranha mistura de
alívio e emoção.
Na última vez em que Ferrick e eu conversamos, a conversa
não correu exatamente bem. Mas quando ele mergulhou na água
depois de Vataea, o pânico me enchia toda vez que eu não via seus
cabelos ruivos balançando na água.
Envolvo meus braços em volta da cintura de Ferrick e me puxo
para seu peito, abraçando-o o mais forte que posso – ainda fraca
pela perda de sangue, não é muito. Ao contrário de Bastian, cujo
toque era terno e cuidadoso, Ferrick quase me esmaga contra seu
corpo. Sua respiração quente suspira alívio no meu pescoço
enquanto a tensão em seu corpo suaviza.
Quando recuo, Ferrick me olha com um sorriso gentil.
Nunca amarei Ferrick da maneira que ele quer, mas ele é um
dos homens mais carinhosos que já conheci. Nada do que ele fez
desde que se juntou a mim nessa jornada foi para si mesmo, e é
hora de reconhecer isso. Não posso odiá-lo por uma decisão que
meus pais tomaram.
— Estou feliz que esteja seguro — digo. — E sinto muito por
antes; você não merecia tanta crueldade. — Deuses, não me lembro
da última vez que pedi desculpas por qualquer coisa. Mas Ferrick
estava certo; ele não pediu mais do que eu por esse casamento. —
Foi incrivelmente corajoso da sua parte pular atrás de Vataea. Como
ela está?
Ferrick engole, recuperando a compostura. — Ela bateu a
cabeça quando caiu e foi nocauteada quando bateu na água. Mas
está bem agora, sem ferimentos. E também estou bem. Um pouco
cansado, mas vou viver. — Ele sorri com os olhos, estreitando-os.
Aperto os seus ombros. — Obrigada, Ferrick. Sei que meus
ferimentos foram profundos. E sei que deve ter sido exaustivo curá-
los, especialmente depois de proteger Vataea e acabar com a
Lusca.
As sobrancelhas de Ferrick pressionam contra os olhos e ele
desvia o olhar. — Sobre a Lusca... cortamos mais alguns tentáculos
por segurança, mas é uma fera lendária, e Bastian e eu não
estávamos certos em matá-la. O colar cairá logo. Espero que volte
ao mar e que nunca mais a vejamos.
Pressiono meus lábios. A decisão deles parece nobre, mas não
é o que eu teria feito. A Lusca é uma lenda, sim, mas também é
uma ameaça. Se não tivesse perdido o controle de mim mesma,
teria garantido sua morte.
Mas com uma derrota tão grande, duvido que o animal ataque
outro navio tão cedo.
Somente quando entro totalmente no convés vejo o quão
sombrio o céu está. Estamos a leste de Kerost, indo para o ponto
mais ao sul de toda Visidia e entrando em uma névoa grossa e
gelada que afunda na minha pele. As águas no horizonte são
sombrias – verdes ao invés do azul cristalino a que estou
acostumada. Elas agitam com raiva. Keel Haul recuperou sua
confiança enquanto mergulha, mas isso não impede que a maré
bata contra ela, pedindo que o navio volte.
Nenhum golfinho cerca nosso navio. Não há gaivotas para
encher o céu, porque, apesar das histórias que ouvi sobre as
infinitas cardumes de peixes raros nessas águas, o mar aqui parece
escuro e doente. Temo que se mergulhar minha mão na água,
minha carne se dissolverá nas marés verdes escuras.
Não há vida aqui. Tudo está quieto e silencioso.
Avisto Bastian no cordame. Ele está bem perto das velas,
consertando um pedaço que foi destruído pela Lusca. Quando ele
me pega olhando, abaixa a cabeça, como se estivesse esperando
que eu fizesse uma pergunta que não tenho. Eu me afasto
rapidamente.
— Olha quem finalmente acordou! — Vataea emerge da cabine
e acena para mim, uma ruga de alegria em seus olhos. Está vestida
com minhas roupas novas e, embora se encaixem bem nela, quase
parecem erradas em seu corpo. Ela parece estrangulada pelo
tecido.
A culpa cresce dentro de mim. Deveria ter me esforçado mais
para impedir que ela caísse de Keel Haul. Eu deveria tê-la salvo.
— Ouvi dizer que você era a estrela do show — diz Vataea.
Esqueci o quão suave e acolhedora é a sua voz, tão bonita quanto a
música. Ela dá um passo à frente e pressiona um beijo na minha
bochecha.
Minha garganta fica entorpecida e luto para lembrar como
respirar. Pensei que a respiração deveria ser um instinto natural,
mas aparentemente esse não é o caso quando você é beijada por
uma sereia.
Ao meu lado, a pele clara de Ferrick o traiu mais uma vez. Ele
cora um vermelho ardente.
— Ferrick foi o único que realmente salvou você — digo,
observando a expressão brincalhona da sereia se transformar em
surpresa. Ela se vira para ele. Ninguém disse a ela.
O rubor de Ferrick aumenta.
— Isso é verdade? — Vataea pergunta.
Ferrick levanta as mãos e tenta descartar a pergunta com um
aceno de seus braços. — Não é grande coisa — ele gagueja. — Só
queria ter certeza de que você estava bem desde... desde que você
faz parte da tripulação agora. — Ele limpa a garganta apenas para
engasgar quando Vataea fica sobre os dedos dos pés e beija sua
bochecha também.
Parece que Ferrick precisa de atenção médica no momento em
que ela se afasta. Quando ele lança um olhar culpado em minha
direção, apenas sorrio.
Quando Bastian se junta a nós, sua pele está suada pelo
trabalho de uma manhã inteira e seu cabelo escuro é selvagem,
bagunçado pelo vento. Rapidamente desvio o olhar, minhas
bochechas esquentando.
— Fico feliz em ver que todos estão de bom humor — diz ele,
passando por cima de Ferrick — mas é hora de discutirmos sobre
Zudoh.
— O que resta para discutir? — Vataea inspeciona suas unhas.
— Nós já fizemos nosso plano. Entre, mate o homem, saia.
A mandíbula de Bastian se contrai. — Nunca conversamos
sobre o que vai acontecer quando chegarmos. Há partes da ilha que
são perigosas. Sua magia de sereia só funciona se estiver na água,
certo? Você nem sempre terá água por perto para protegê-la.
Ela espia pelas unhas e seus olhos se estreitam em fendas
perigosas.
— Quero falar sobre armas — diz Bastian antes que Vataea
possa cortar sua língua. — Tenho minha espada e Amora está com
sua adaga. Ferrick, você ainda tem seu florete, certo?
Ferrick assente.
— Bom — continua Bastian. — Então tudo o que resta para
cuidar é encontrar uma arma para você, Vataea. Já usou uma
antes?
— Uns pedaços de coral aqui e ali.
Pela maneira como ele faz uma careta, é claro que não era isso
que Bastian tinha em mente. Antes que ele possa dizer qualquer
coisa, tiro minha adaga do meu cinto e a ofereço a Vataea. Ela olha
para a adaga e depois para mim.
— Pegue. — Pressiono em sua palma, hesitante. — Só pegue
emprestada, até sairmos de Zudoh.
Bastian estica seus pulmões com um suspiro dramático. —
Como isso resolve nosso problema? Agora é você quem não tem
arma, Amora.
— Tenho uma idéia — digo simplesmente. — Leve-me de volta
para seus aposentos e vou te mostrar.
Ele levanta uma sobrancelha. — Ora, ora, princesa. Não há
necessidade de ser tão íntima. Se quiser me acompanhar até os
aposentos do capitão, basta dizer.
Ferrick se afasta com um aceno de cabeça.
Ignoro, cutucando o ombro de Bastian e revirando os olhos. —
Apenas me acompanhe.
Desta vez, enquanto Bastian ri, não suprimo o arrepio que
passa pelo meu corpo e se instala no meu núcleo. Ele se curva na
cintura e estende um braço para frente.
— Vá na frente.

Quando mostro a Bastian o que pretendo fazer com o gancho


envenenado da Lusca, ele afirma ter conhecimento sobre a
construção de armas. Mas enquanto ele paira sobre mim,
deleitando-se com minha curiosidade e sem uma palavra ou
conselho útil, percebo que é uma mentira. Ele está aqui apenas para
o show.
Em circunstâncias normais, prefiro trabalhar sozinha. Há algo
ricamente satisfatório em se entregar a um ato de criação. É como
magia. Exige seu foco e requer um pequeno pedaço de sua alma
para ser completado.
No entanto, é a segunda vez que Bastian me leva a permitir que
ele me veja trabalhar, e a única razão pela qual o deixei ficar é
porque gosto da maneira como sua presença faz minha pele
formigar com antecipação e consciência. Isso, e eu aprecio os
barulhos satisfeitos que ele faz no fundo da garganta sempre que
faço algo particularmente inteligente.
Até que possa encontrar os suprimentos para fazer um cabo
adequado, a arma que criei é grosseira. O gancho gigante é grande
e afiado, semelhante a uma lâmina. Passei as últimas cinco ou seis
horas meticulosamente moldando-o em uma adaga com atlas
espalhados e no canto da cama de Bastian – qualquer coisa pesada
o suficiente para trabalhar o gancho grosso. Agora é firme,
pontiagudo e curvo na ponta com uma borda afiada em forma de
gancho. Seu perigo está em suas bordas irregulares e o veneno que
espreita dentro dela. Não há como testá-lo, mas o veneno deve
afetar qualquer pessoa cujo sangue extraia.
Por enquanto, prendo a corda firmemente ao redor do fundo
como um punho. Não parece a arma mais forte do mundo, e seu
alcance é limitado, mas eu a usei contra coisas suficientes para
saber que é durável e poderosa.
Imagino que vá cortar peles como gelatina.
— Você certamente tem uma mente criativa, admito isso. —
Bastian se inclina ao meu redor para olhar a mesa. Está perto o
suficiente para que seu peito pressione minhas costas enquanto
respira, e o calor dessas respirações faz cócegas em minha
bochecha. — Onde você aprendeu tanto sobre armas, afinal?
— Eu tinha um guarda em Arida chamado Casem — digo
enquanto passo meu dedo pela minha nova arma, tomando cuidado
para não cortar minha pele. — Seu pai era um mestre em armas,
encarregado de instruir nossos soldados. Ele também é um dos
amigos mais próximos do meu pai; Casem e eu treinamos com ele
quando éramos crianças, e às vezes ele nos trazia para a forja para
que pudéssemos assistir as armas sendo feitas.
— E você acha que essa lâmina realmente vai funcionar?
Assinto. A ferida que a Lusca fez em mim foi pequena, mas
profunda, e ainda assim foi o suficiente para me deixar inconsciente.
Se atacar alguém com isso, não pretendo fazer uma pequena ferida.
Pretendo matar.
— É claro que sim. — Eu a seguro contra a janela, sob qualquer
luz que conseguiu esgueirar-se através da névoa espessa do lado
de fora. É um rico tom da marinha, com manchas iridescentes de
turquesa e prata flutuando dentro do material. Do ângulo certo,
parece que há coisas se movendo de dentro da arma, como
sanguessugas microscópicas à espera de sangue.
Não duvido dessa possibilidade. Esta arma faz parte da Lusca,
afinal.
— Fiz uma arma lendária. Tenho certeza de que irá funcionar
melhor do que posso imaginar. — Coloquei-a ao lado da bainha
sobre a mesa. Terei que ter muito mais cuidado com esta arma do
que minha adaga normal.
— Se é uma arma lendária — diz Bastian — merece um nome
lendário.
É como se ele estivesse me provocando com o quão perto ele
está. Meu batimento cardíaco dispara quando Bastian se aproxima.
Ele está certo, mas nunca nomeei uma lâmina antes. A arma
que peguei é verdadeiramente única. Uma coisa mágica. — Você
tem uma sugestão?
Bastian ri, balançando a cabeça. — Não funciona assim,
princesa. Quem cria a arma é quem a nomeia. Mas imagino que
mereça algo perigoso.
— Vou pensar nisso. — Pressiono meus lábios, tentando ignorar
como ele tem um braço em volta da minha cadeira enquanto ele se
move ao meu lado, mantendo nosso espaço apertado. Há uma sala
inteira ao nosso redor, e ainda assim ele está quase pressionado
contra mim.
Ele cheira a mar e luz do sol. A aventura. Seu cheiro se apega à
camisa e fica em seu cabelo. Eu me pego querendo deixar meus
dedos passearem por ele, sacudir os pequenos grãos de areia
presos lá.
Há uma fração de segundo em que o ar muda. Me viro para
pegá-lo olhando para mim e, quando acho que ele pode se virar,
não o faz. Seu aperto na cadeira fica mais forte, e penso na maneira
como essas mãos se moviam enquanto seguravam meus quadris
firmemente contra ele. A maneira como seus lábios pressionaram
contra os meus quando nos beijamos, e como eu não queria que
isso acabasse.
Talvez ele e eu realmente queremos a mesma coisa.
Passo a língua pelos lábios, provando as palavras nervosas
antes de falar. — Você se lembra quando eu o libertei do transe de
Vataea?
Ele puxa a cabeça para trás. Não sei dizer se ele está confuso
ou relembrando — Claro.
Suas palavras têm gosto de desafio. Mordo a isca. — Bem, ela
me disse algo engraçado sobre isso.
Sua mão direita está sobre a mesa. Trilho meus dedos em
direção a ela, lentamente, passando gentilmente pelas costas da
palma da mão. Ele puxa o lábio inferior, mas, do contrário, não se
mexe. — O que ela te disse?
— Ela me disse — digo suavemente — que é impossível tirar
alguém do transe, a menos que esse alguém tenha sentimentos por
você.
— Sentimentos? — Ele ecoa, deslocando a mão direita para
que seus dedos se entrelacem nos meus. — Quer dizer assim?
Ele me beija, posicionado seu corpo firmemente em torno do
meu. Seus lábios não são macios. Eles são ásperos e implorantes,
continuando de onde paramos. Ele tem gosto de sal. Eu o saboreio,
enrolando meus braços ao redor do seu pescoço, pelos cabelos, por
cima dos ombros. Ele se move para que possa envolver o braço em
volta das minhas costas e me puxa da cadeira com um grunhido
silencioso. Segundos depois, estou contra a parede, a mão dele
enrolada nos meus cabelos e os lábios roçando meu pescoço. Meu
corpo está tão quente que tenho medo de derreter aqui, pressionada
contra o peito de Bastian.
Pego sua mandíbula e a trago de volta aos meus lábios,
saboreando o sal, a luz do sol, tudo isso. Tudo dele. Já beijei muitos
garotos antes, mas nenhum deles foi assim. Nenhum deles me fez
temer que meu coração pudesse romper minha caixa torácica e
queimar por bater tanto.
Não quero que ele se afaste. Quero me enterrar no calor do seu
corpo e explorar esse sentimento.
Ele termina cedo demais. Quando ele se afasta, não estou
apenas sem fôlego – estou faminta. Eu quero mais.
Há uma fome correspondente em seus olhos enquanto eles
percorrem meu corpo, seu peito subindo e descendo rapidamente
de respirações trêmulas. O desejo pulsa dentro de seu olhar quando
seus olhos alcançam os meus, mas ele se força a voltar e coloca um
sorriso em seu rosto.
— Essa é uma resposta honesta o suficiente para você? — Sua
voz está cheia de uma rouquidão que só faz minha fome crescer.
— Não tenho certeza. — Pego sua mão, puxando-o de volta
para mim. — Pode me mostrar outra vez?
Dessa vez, não paramos.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS

O gosto de sal permanece nos meus lábios, mesmo quando Bastian


e eu finalmente voltamos para o convés. A lembrança de suas mãos
na minha cintura e de seus dedos se enrolando contra mim ainda
queimam minha pele.
Sinto como se tivesse escapado de algo quando saí, surpresa
quando me deparo com o ar gelado.
Eu me envolvo em meus braços me encolhendo dentro do
casaco.
— Estamos perto — diz Bastian, examinando o horizonte. Seus
músculos estão tensos.
Ferrick e Vataea ficam à vontade no convés. Eles têm uma
pequena pilha de comida entre seus corpos muito próximos, e há
uma faísca confiante nos olhos da sereia. Não parece que Bastian e
eu fomos os únicos a ficar um pouco mais amigáveis.
Ferrick limpa a garganta e se levanta enquanto Bastian e eu nos
aproximamos, como se para se distanciar de Vataea. — Então,
como faremos isso?
— Precisamos ser discretos — responde Bastian
imediatamente. — Nós não queremos alertá-los. Vou ancorar Keel
Haul o mais longe possível da ilha e pegaremos o bote. Espero que
o nevoeiro possa nos manter cobertos. Vataea?
— Sim, capitão? — Ela pergunta, a voz brincalhona.
— Você terá que ir à nossa frente, para nos mostrar um
caminho seguro. Se puder, mantenha-se no extremo sul da ilha;
estaremos mais seguros lá.
No extremo sul, a água certamente é fria demais para um ser
humano, mas Vataea não hesita. Percebe-se a falta que ela sentiu
do oceano pela rapidez com que se move para a borda e se joga no
oceano. Imagino que deve doer, mas quando olho para o mar, a
cintilante ponta de ouro rosa de sua cauda desaparece sob a
superfície. Tudo o que resta é uma pequena poça de ouro
iridescente que se mistura com a água turva e eventualmente
desaparece.
Atrás de mim, Bastian limpa a garganta. — Sabe, eu gosto de
ser chamado de “capitão”. Acho que deveria torná-lo meu título
obrigatório. Por exemplo, como chamamos Amora de “princesa”.
As sobrancelhas de Ferrick arqueiam quando um sorriso
perplexo aparece em seus lábios. — Boa sorte com isso. — Ele
aperta Bastian no ombro enquanto passa, movendo-se para se
juntar a mim na borda do estibordo. Seus olhos percorriam a água
escura, procurando qualquer sinal de Vataea. Mas ela não está à
vista. Ele bate um ritmo obsessivo na madeira. Seus dedos ficam
imóveis quando a água se move.
Vataea aparece como se do nada, quase engasgando no meio
do mar.
— Esta água é nojenta! — Ela rosna, olhando para o mar com
desgosto. — Há apenas peixes e algas mortos, e essas escamas de
peixe não saem dos meus lábios!
— Consegue sentir a maldição? — Bastian pressiona, o que faz
Vataea bufar com aborrecimento.
— Ainda está à frente. Mas quanto mais avanço, pior está
ficando. — Seus lábios azedam em uma careta. — Você me deve
por isso, pirata. — De má vontade, ela mergulha de volta às marés
verde-escuras. É difícil acompanhá-la, mas de vez em quando ela
levanta a cauda da água e gentilmente dá um tapa, criando um
caminho para a Keel Haul.
O navio não se move mais hesitante. É ágil e ansioso, alterando
rapidamente seu curso em direção ao sul. Há pouco vento no ar
estagnado, mas continua a avançar o mais rápido possível.
Bastian se move para ficar no ponto mais alto do navio. Ele
agarra a borda com tanta força que os músculos de seu braço
incham e contraem. É ele quem está impulsionando o navio para a
frente. Há uma prontidão em sua mandíbula e um aperto
determinado.
Ele parece um homem ansioso para conquistar o mundo.
Vataea nos leva a uma pequena caverna formada por pedras
irregulares e desgastadas pelo tempo. A área está envolta pela
mesma névoa espessa que dificulta a visão a mais de trezentos pés
diante de nós. Deve esconder Keel Haul perfeitamente.
Dou um passo em direção ao leme enquanto estamos prontos
para ancorar. É suave contra minhas mãos.
Estar aqui me lembra a última vez que naveguei na Duquesa
com o pai, e a memória me enche de saudade.
Sinto falta dele. Sinto falta do meu pai, da minha mãe e de toda
a Arida. Eu me pergunto o que aconteceu depois que saí. Imagino
Yuriel já lamentando sua perda, enquanto tia Kalea faz as malas
para ir para Arida. Imagino meus pais gritando para os soldados
visidianos se apressarem e me encontrarem. A testa do meu pai
ficaria enrugada, é assim quando ele está preocupado. Minha mãe
ficaria afundada na cadeira, cutucando a pele das unhas enquanto
ele andava ao seu redor.
Os pensamentos trazem uma onda inesperada de raiva. Antes
de vê-los novamente, tenho que corrigir os erros do meu pai.
Não posso falhar em Zudoh.
A preocupação assola meus pulmões, contraindo cada
respiração até que eu esteja de volta ao mar com a Lusca,
sufocando na água. Pressiono minha mão na minha nova lâmina,
depois na minha bolsa e me preparo.
Uma mão gentil repousa no meu ombro. A princípio, minha
memória me engana, me fazendo a acreditar que é meu pai. Mas
quando me viro, Bastian está em seu lugar.
Ele se aproxima, colocando minhas mãos nas dele e
reposicionando-as no leme.
— O que você está fazendo? — Pergunto, passando minhas
unhas sobre a madeira lisa. Quero que pareça mais áspera.
Desgastada. Ele está fazendo isso só para se exibir.
Mas, mesmo assim, o desejo aquece minhas mãos e espalha
calor de boas-vindas em meu peito. A temperatura em queda livre
agora não passa de um aborrecimento.
— Você vai nos levar para dentro dessa caverna. — Ele aponta
à frente. As rochas parecem maiores do que antes – ameaçadoras e
cruéis, com pontas irregulares ameaçando rasgar a madeira de um
navio mal dirigido.
— Talvez devêssemos tentar em uma área mais aberta —
Começo a me afastar, mas Bastian me bloqueia.
— Confio em você. — Suas palavras fazem minha pele queimar
com pequenos espinhos de calor. — Você sabe o que esse navio
significa para mim, e eu confio em você para navegar nele. Talvez
deva confiar em si mesma também. — Ele é desafiador. Confiante.
— Vou deixar Keel Haul fora do meu controle, só por enquanto. Se
algo der errado, voltarei. Não há navio melhor para você praticar a
vela, princesa.
Ele tira as mãos das minhas e recua, colocando distância
suficiente entre nós para que não pareça que ele está pairando.
Levanto meus olhos para o horizonte. As rochas parecem
impossivelmente próximas e estranhamente distantes. Minha
respiração fica presa na garganta, mas quando olho para Bastian,
ele está sorrindo. Até Ferrick está assistindo, um pequeno sorriso
em seus lábios.
— Aperte mais, mas nunca duvide do seu instinto — sussurra
Bastian, acenando com a cabeça para eu me virar. — A chave para
ser um bom capitão é sempre confiar em si mesmo.
Estico meus pulmões, respirando enquanto aperto mais o leme.
O giro para a esquerda, levemente, e Keel Haul obedece. Não está
puxando para o outro lado, ou lutando contra mim. O navio não ri
dos meus comandos. Ele procura um líder e ouve, respeitoso.
Pressiono as pontas dos dedos contra a madeira, caindo no
momento. O mundo está preto na minha periferia. Tudo o que vejo é
a caverna em forma de crista, o perigo iminente e Keel Haul.
O mundo se move mais rápido. Giro meu punho no leme para
redirecionar o navio. Ele obedece com um gemido satisfatório; as
velas capturam o sussurro de uma brisa e se dobram ao meu
capricho. Meu coração dispara quando nos aproximamos e,
baixinho, repito um fluxo constante de orações que duram até o
navio chocalhar, diminuindo a velocidade enquanto navegamos pelo
meio do desfiladeiro da caverna.
Sem fôlego, eu giro para Bastian, cujo sorriso ridículo espelha o
meu. Ele já parou o navio, mas se mantém firme ao ancorar.
Minhas mãos tremem contra o leme enquanto olho para a
caverna. O orgulho fez um lar para si no meu peito inchado. Ele
pega minha respiração e deixa meu coração já rápido. As pedras
não parecem mais irregulares; são suavizadas pelo mar. Talvez eu
tenha sido enganada por um truque da luz? Ou estava tão
preocupada que imaginei que a ameaça era maior do que era?
— Então, o que você acha de velejar? — Bastian pergunta
presunçosamente.
Dou um tapa leve no seu ombro, depois caio para abraçá-lo
com força, rindo porque não consigo encontrar minha respiração e
as palavras não me satisfazem. Nada do que digo fará justiça ao
prazer avassalador dentro de mim. Não há palavras para a
satisfação do sal do mar no meu rosto e da salmoura nos meus
pulmões.
Bastian sabe. Ele não precisa de palavras, porque conhece bem
o sentimento. Reconheço isso em seu sorriso torto.
Compartilhamos uma experiência que poucas pessoas
entenderão e isso marcou nossas almas. O mar é uma fera mais
assustadora do que a Lusca.
Mas não precisamos governá-lo. Precisamos apenas que ele
confie em nós. Trabalhe conosco. Seja nosso parceiro.
Finalmente fui aceita.
Mas o momento não dura muito.
— Não chegue mais perto! — Vataea sai da água com um
suspiro, agarrando as pedras da caverna para se firmar. Seu corpo
inteiro treme, os olhos vidrados como se estivessem doentes. Corro
para a borda, pronta para jogar a escada para ela.
— O que aconteceu? — Ferrick pergunta enquanto corre para o
meu lado. — O que há de errado?
Vataea leva um momento para recuperar o fôlego e, embora ela
consiga se equilibrar, o tremor nunca para. — Isso não é uma
maldição. Além desta caverna, há uma praga. — Ela se agarra às
rochas como se fossem a única coisa que possa salvá-la. Olho de
volta para Bastian, cuja mandíbula aperta quando ele olha para a
água.
Nosso momento de excitação já é uma memória distante.
— Podemos navegar por ela? — Pergunto, recebendo um bufo
agudo de Vataea em resposta.
— Sem chance. Isso é mais forte do que qualquer coisa que já
senti antes.
O vento e a emoção que me encheram apenas momentos atrás
são rapidamente jogados para longe. Não temos tempo para dar
meia-volta e reavaliar nossas opções. É agora ou nunca.
Zudoh é uma mancha à distância enquanto afundo no parapeito,
com a mente cambaleando. Não há como desistir agora. Não
quando chegamos tão longe. O ar aqui está frio, agarrando-se ao
início do outono. A qualquer momento, tia Kalea será convidada a
aceitar a magia da alma. Se ela admitir a verdade, será executada
pela traição de aprender magia de encantamento. Mas se ela mentir
para se proteger, ela morrerá por magias duplas, e a besta soltará
sua vingança sobre todos em Visidia. Tenho que voltar para Arida
antes que uma dessas coisas aconteça.
Vataea conseguiu se estabilizar e, com a boca firme em uma
linha firme de determinação, ela afunda totalmente de volta na água.
Me endireito quando ela desaparece, e os meninos ficam tensos
como se estivessem preocupados que ela desaparecesse
completamente.
Mas a conheço bem. Não me preocupo quando ela se vai por
um minuto inteiro, ou cinco.
Há um lampejo de sua nadadeira momentos antes de ela voltar
para as rochas da caverna, com os olhos fechados. Ferozes.
— Não podemos atravessar a barreira. — Ela afunda as unhas
nas pedras como garras. Quando olha para nós, seu sorriso é
brilhante e afiado. — Mas podemos ir por baixo.
CAPÍTULO VINTE E QUATRO

— Você tem certeza que isso vai funcionar? — Permaneço no final


da corda de Keel Haul, esperando para cair na água com os outros.
Escondemos o navio atrás da crista da caverna, envolta pela
espessa camada de neblina cinza que parece tão ameaçadora
quanto nossa situação.
Ferrick tem uma profunda carranca de inquietação. — E pensar
que é realmente assim que estou vivendo minha vida. — Ele
suspira, passando a mão molhada pelas ondas e achatando os
cabelos até o couro cabeludo.
— A maioria dos homens morreria por essa oportunidade. —
Vataea levanta um queixo desafiador no ar.
O bufo de Ferrick se mistura com uma risada aguda e nervosa.
— A maioria dos homens morrem por esta oportunidade.
Os lábios de Vataea franzem pensativamente, mas minha
respiração fica lenta quando ela não discorda. Ela rejeita nossas
preocupações com um floreio de sua mão. — Funcionará se nos
apressarmos. As sereias têm trazido humanos para a água há
séculos.
— Sim, para matá-los — murmura Bastian, embora Vataea finge
não ouvir.
Embora permitir que Vataea use magia em nós seja mais do que
um pouco desconcertante, estamos sem opções.
Eu empurro as cordas, quente com adrenalina que congela
rapidamente quando afundo na água fria como gelo. Quase
engasgo com isso quando luto contra o desejo de não voltar para o
navio, ofegando. Bastian e Ferrick estendem a mão para ajudar a
me arrastar para mais perto deles, enquanto se agarram às rochas
escorregadias da caverna para se manterem à tona.
Se a superfície já está tão fria, então pelo sangue de Cato, só
posso imaginar como será mergulhar.
— Qual a profundidade que temos que ir? — Pergunto entre os
dentes batendo, apertando a parte interna da minha bochecha para
firmá-los.
— Bem fundo — Vataea admite. — A fronteira da maldição está
próxima e é profunda. Precisamos garantir uma distância segura o
suficiente, por isso fique perto de mim. Deveria haver uma brecha
na maldição no início da costa, onde provavelmente foi lançada.
Mas não teremos muito tempo para alcançá-la.
Bastian faz uma careta, sem dúvida pensando a mesma coisa
que eu – mesmo nadando o mais rápido que pudermos, não há
garantia de que chegaremos à costa a tempo.
— Não há realmente outra opção? Não há outra magia do mar
que você possa tentar? — pergunto, e Vataea apenas balança a
cabeça.
— Nada que eu seja forte o suficiente para usar atualmente. Se
a qualquer momento eu sentir uma pausa, levo você e lhe darei
mais ar. Mas, caso contrário, teremos que seguir em frente.
Ferrick torce o nariz. — E o que acontece se tivermos que
emergir antes de chegarmos à costa?
Ferrick torce o nariz. — E o que acontece se tivermos que
emergir antes de chegarmos à costa?
Memórias da minha experiência anterior com magia
amaldiçoada trazem uma nova rodada de arrepios. Os insetos que
pulavam em cima de mim não pareciam imaginados. Se Bastian não
estivesse lá para me convencer disso, não tenho ideia de quanto
tempo eu ficaria lá, com os membros dormentes e a mente
paralisada pelo medo.
As palavras de Bastian são apenas uma maneira gentil de dizer
que, se isso acontecer conosco no meio do oceano, nos
afogaremos.
— Então é isso. — Forço meu corpo a se firmar para que eu
possa parecer pelo menos moderadamente confiante com o nosso
plano. — Não há razão para ficar aqui debatendo. Deveríamos
continuar andando.
— Deveríamos — Vataea ecoa. — Tudo o que você precisa
fazer é lembrar de prender a respiração para afundar. Quando
estivermos em um nível seguro, comece a respirar normalmente e
se estabilizará. Todo mundo está pronto? — Ela vai segurar meu
ombro, mas Ferrick se move entre nós.
— Vou primeiro — diz ele, não deixando espaço para desafios.
— Só para ter certeza de que é seguro.
Embora Vataea revire os olhos, ela não hesita. Ela segura
Ferrick com força no ombro e pressiona os lábios nos dele. Ela
respira enquanto eles se beijam, mergulhando cada vez mais na
água, ela arrastando-o para baixo da superfície.
Meu estômago aperta quando Vataea ressurge sozinha.
— Se ele voltar, teremos que começar de novo — diz ela.
Vislumbro um flash vermelho abaixo da superfície. A água está
muito escura para ver Ferrick completamente, mas suspiro e bato na
sua mão quando ele cutuca meu quadril para provar que está lá.
— Funciona — xingo, afastando Ferrick. Bastian exala um
suspiro silencioso de alívio.
— Boa. Ele começará a afundar em breve — diz ela. — O
tempo está contra nós, precisamos nos apressar.
Bastian tenta parecer calmo quando olha para mim, mas está
lutando contra dentes trêmulos e preocupações que dobram os
cantos dos olhos.
— Acho que vou te ver do outro lado — diz ele, respirando. — E
se não... bem, foi um prazer velejar com todos vocês, e Vataea,
tente manter o Keel Haul mais limpo que a sua cabine. — Ele se
oferece à sereia, os nervos tensos na mandíbula. Ela me olha por
cima do ombro, hesitando por um momento, mas concordo com a
cabeça.
Mesmo assim, estou alarmada com a pontada aguda que me
sacode quando seus lábios pressionam os de Bastian. É uma coisa
cruel, me surpreendendo tão ferozmente que me afasto. O ciúme
que me come é muito mais forte do que eu esperava. O beijo deles
não é de prazer; é necessidade. Eu sei disso.
Mas deuses, nunca imaginei o quanto odiaria isso.
Felizmente, Vataea é rápida. Quando ela reaparece diante de
mim, segura meus dois ombros e me afasta da segurança da
caverna. Inspiro com a frieza de seus dedos no meu pescoço.
— Relaxe — ela pede, afrouxando o aperto. — Quanto mais
relaxada sua respiração, mais tempo você vai durar lá em baixo.
Concordo com a cabeça, e ela não me dá nem mais um
segundo para me preparar antes que seus lábios estejam nos meus.
Eles estão encharcados e com um pouco de areia e sal, mas de
alguma forma ainda incrivelmente macios. Estou tonta quando ela
os mantém pressionados contra os meus, submergindo-nos sob a
água antes que eu possa recuperar meus sentidos.
Meu corpo não está mais frio; ela o inunda de calor, como se ela
tivesse de alguma forma respirado vida dentro de mim.
Prendo a respiração, mantendo os olhos fechados enquanto
afundamos cada vez mais na água. Somente quando as mãos dela
levantam dos meus ombros eu respiro, me firmando. E apesar de
doer um pouco, abro os olhos para descobrir que a água turva é
muito mais clara do que deveria ser. Alarmante. Vataea não apenas
nos deu fôlego – ela nos deu um vislumbre de como é viver em seu
mundo.
É diferente de tudo que eu já vi antes. Muito abaixo de mim,
enguias verdes fluorescentes se escondem entre rochas irregulares,
esperando para atacar. Pequenos cardumes de peixes estranhos
nadam ao longe, viajando a leste de nós. Algo monstruoso em
tamanho espreita nas sombras nas profundezas mais escuras do
mar, e sei no meu íntimo que não devo me aventurar em lugar
nenhum perto dele. A Lusca não é o único monstro nessas águas.
Embora as cores dessas criaturas sejam mais nítidas e seus
contornos mais claros, não as vejo apenas – eu as sinto, como se
eu fosse o próprio oceano.
Eu me viro para Vataea, que estende a mão para mim. Um
sorriso conhecedor brilha em seus lábios, como se ela entendesse
exatamente a admiração que estou sentindo. Tenho que me
perguntar se é isso que ela sentiu quando pisou na terra pela
primeira vez – uma sensação de outro mundo. Um entendimento
repentino de que há muito mais por aí do que jamais poderíamos ter
percebido.
Pego a sua mão enquanto ela me puxa, sabendo que não há
tempo para distrações, mas desejando que tivéssemos todo o
tempo do mundo para simplesmente explorar.
Vataea é três vezes mais rápida que o resto de nós. Nado o
mais rápido que posso, seguindo atrás dela, mas pelo sulco das
sobrancelhas e pelo nervosismo da sua nadadeira, fica claro que
não estamos nos movendo tão rápido quanto ela gostaria. Com
cada batida de sua nadadeira contra a água, ela corre pelo menos
quatro pés à frente, enquanto o resto de nós luta com cada pé.
Embora sempre tenha me considerado uma boa nadadora,
passear por Arida tem pouca comparação com o mergulho em alto
mar. Enquanto Vataea ostenta apenas as barbatanas, o resto de nós
está completamente vestido e armado, e somos mais lentos por
isso.
Não tenho ideia do quão longe estamos, mas as batidas nos
meus ouvidos e crânio me dizem que provavelmente é melhor não
pensar nisso.
Surpreendentemente, Ferrick é o mais rápido de nós três.
Mesmo com o peso das roupas extras que ele amarrou no cinto
para Vataea, fica claro que ele está desacelerando seus
movimentos na tentativa de ficar mais perto de mim. E embora eu
achasse que Bastian era mais rápido do que ele, ele claramente
passa mais tempo no topo do oceano do que dentro dele. Ele está
lutando tão claramente quanto eu, o bíceps esticados enquanto se
força a nadar mais rápido.
Embora a exaustão já esteja chegando, eu faço o mesmo,
tentando usar minhas pernas mais que meus braços. Mas quando
uma sombra passa e a água fria escorre pelas minhas costas, me
jogo contra Bastian e agarro minha nova arma. Ele agarra minha
cintura de surpresa, me firmando, e nós dois olhamos para cima.
Acima de nós, uma multidão de raios zapa gigantescos aparece.
E se eu já não estivesse prendendo a respiração, certamente a teria
perdido ao vê-los.
Eles se movem com uma graça impossível de replicar, suas
barbatanas como asas delicadas que se espalham pela água,
fazendo seus corpos deslizarem. Cada um tem pelo menos o triplo
do meu tamanho, maciço e bonito, com corpos delineados em um
azul vibrante que brilha ao nadar. Faz com que pareçam ter
eletricidade fluindo através deles, embora na realidade eles sejam
uma das criaturas mais pacíficas do mar.
À nossa frente, Vataea espera, com as sobrancelhas franzidas.
Precisamos nos mover mais rápido, mas Bastian e eu não seremos
rápidos o suficiente. Pelo menos não como estamos agora.
Agarro o pulso de Bastian, puxando-o para cima. Sua testa se
dobra, a cabeça balançando em protesto, mas não há tempo para
discutir. Eu o puxo novamente, desta vez até que ele segue de má
vontade.
Não importa o quanto eu chute, meus dois pés nunca terão a
força de uma cauda. Se vamos passar por isso, precisaremos de
umas emprestadas.
Os raios zapa não têm medo quando me aproximo. Em vez
disso, alguns deles nadam um pouco mais perto, inclinando-se e
circulando-nos curiosamente. Pressiono minhas mãos gentilmente
contra as costas de um, achatando meus dedos contra sua pele
emborrachada.
Ainda assim, ele não se afasta, sem medo.
Quando Bastian percebe o que estou fazendo, seus olhos
brilham de surpresa. Ele diminui a velocidade para se mover para o
que está atrás de mim, abaixando-se sobre o raio zapa até que
possa segurá-lo suavemente. Seus corpos são escorregadios, então
leva um momento para encontrar uma maneira de se agarrar com
segurança.
Eu me afundo no meu raio zapa, alisando meus dedos contra
sua pele.
Ainda abaixo de nós, os lábios de Vataea se curvam em um
sorriso. Ela empurra Ferrick, incentivando-o a se juntar a nós antes
de nadar à frente dos raios zapa. Ela se vira para encará-los, com
os olhos dourados quando separa os lábios.
A música que ela canta desta vez é leve e suave. Os raios zapa
agitam suas barbatanas lentamente em resposta a ela. Ela aponta
para a direita, movendo-se lentamente a princípio, e eles a seguem.
Eles podem não ser o animal mais rápido do mar, mas, como
estamos sobrecarregados por roupas e armas pesadas, eles são
mais rápidos do que jamais poderíamos ser. E pela lâmina de Cato,
são gloriosos.
É isso que perdi ao ficar todos esses anos em Arida.
Não parece que estamos nadando; nós estamos voando.
Deslizando pela água como se fosse leve como ar. Todo o lugar que
percorremos traz uma nova onda de cores. A sensação de novas
criaturas em algum lugar próximo. Uma corrida de aventura a que
me apego.
Vataea lidera as criaturas, navegando nas águas com uma
delicadeza que não posso deixar de invejar. Por maiores que sejam
essas criaturas e, viajando com o dobro da velocidade que eu
conseguia, percorremos a distância rapidamente. Está claro que
estamos nos aproximando de Zudoh quando a água escurece e
maços de algas me atingem no rosto e tentam enrolar meus pulsos
e tornozelos. Nós atingimos o que parece uma parede de peixes
mortos – alguns flutuam, enquanto outros ainda estão afundados na
água, com a pele de seus corpos descascando. Só então Vataea
para de cantar. Os raios zapa param, todos se afastando como uma
dança sincronizada. Me afasto das costas do raio e acaricio uma
mão ao longo da parte inferior lisa como um agradecimento
silencioso. Uma de suas enormes barbatanas roça minha bochecha
e então elas se vão, indo para o leste em direção a Suntosu.
Meus olhos ardem nessa água imunda e mal consigo ver os
outros. Sinto uma das mãos deles se aproximar da minha, grande e
calejada – Bastian.
O chumbo afunda no meu estômago, deixando meu corpo mais
frio e com a necessidade de respirar mais forte. Aperto a mão de
Bastian com força, sabendo que se já estou sentindo a necessidade
de respirar, deve ser ainda mais forte para ele.
Nosso tempo está quase acabando.
Bastian me empurra para frente, libertando nossas mãos. É
impossível dizer o quão perto estamos; o medo contrai minha
garganta e torna cada movimento frenético. Desesperado.
Nado o mais rápido que posso, chutando até minhas pernas
doerem. Empurrando meus braços com tanta força até que eles
agem puramente por instinto, completamente entorpecidos. Minha
garganta queima quando meus sentidos ficam embotados, a água
escurecendo na minha visão. As algas lambem meus calcanhares e
contraem meus membros, lutando para desacelerá-los.
Não faço ideia se Bastian ainda está atrás de mim, ou onde
Ferrick e Vataea estão, mas não paro. Continuo, porque agora meus
pulmões estão gritando por ar enquanto luto para a superfície. Mas
assim que a areia raspa meus joelhos e o fim está à vista, Vataea
agarra minha mão. Ela me arrasta de volta, a boca aberta e os olhos
arregalados de pânico.
Ferrick está atrás dela, seus próprios olhos flutuando enquanto
sua respiração diminui. Bastian segura minha mão e tenta libertá-la
de Vataea, mas ela balança a cabeça ferozmente e aponta acima de
nós para a costa.
Meu coração afunda quando a compreensão toma conta de mim
– não há quebra na barreira. Eles a anexaram à costa; o que não
esperávamos, pois significa que os zudianos também devem sofrer
com essa maldição. Eles não devem nem conseguir acessar seu
próprio mar.
Se emergimos agora, mesmo na costa, estaremos presos em
uma maldição.
Vataea vira a cabeça, procurando com olhos dourados
aterrorizados. Trêmula, ela levanta as mãos e separa os lábios com
o que a princípio soa como uma música, mas rapidamente escurece
em algo afiado e cruel. Ela está cantando quando uma fina gota de
água roda na palma da mão enquanto tenta invocar o mar. Mas ele
não escuta.
Quando os lábios de Ferrick se separam, o ar sai em bolhas da
sua boca, o medo afunda seus dentes em mim e rasga toda a
esperança. Minha garganta aperta.
Aperta.
Aperta.
O oceano tentou me reivindicar uma vez e eu escapei. Desta
vez, não terei a mesma sorte. Manchas de escuridão afundam na
minha visão enquanto a água inunda meu nariz e minha garganta.
Abro a boca por instinto, engasgando.
A última coisa que vejo é o horror no rosto de Vataea e a água
rodando em suas mãos. Seu canto fica mais alto, até parecer que
ela está gritando com o próprio mar, mas a água engole e confunde
o som enquanto tento me concentrar nele.
Tem água nos meus olhos. No meu nariz. Na minha garganta e
pulmões.
Então simplesmente... Se foi.
Sufoco com o ar que me rodeia, desesperada, e não sou a
única. Engasgando-me com a água, fecho os olhos e vejo Ferrick e
Bastian fazendo o mesmo. Eles pressionam seus peitos e gargantas
cruas, apertando e piscando os olhos vermelhos.
Quero me acomodar na areia para secar meu corpo gelado,
mas ainda estamos na água, uma bolha de ar formada ao nosso
redor. Tiro as algas emaranhadas nos meus cabelos e em volta dos
meus braços enquanto Vataea nos empurra para frente, cantando
palavras afiadas como punhal em voz baixa.
O sangue flui livremente de seu nariz, mas ela não para de
empurrar até que a areia esteja embaixo de nós e estejamos
rompendo a superfície, protegidos pela estranha bolsa de oceano
que ela formou ao nosso redor.
Nós caímos na areia quando a barreira se rompe. Caio sobre
meus joelhos primeiro e uma sacudida aguda sobe pela minha
espinha. Mordo um grito, afundando meus punhos na areia. Vataea
está na minha frente, sua cauda foi trocada pelas pernas. Ferrick
desembaraça a túnica ensopada e o cinto e a joga para ela.
Ferrick faz orações em voz baixa enquanto Bastian se seca na
areia.
— Pensei que sua magia do mar estivesse enferrujada — o
pirata grita entre respirações irregulares, seu corpo tremendo.
— Está. — As palmas de Vataea estão trêmulas quando ela
limpa o sangue seco do nariz e o examina com uma careta.
Sinto uma onda de gratidão por Vataea. Teria sido muito mais
fácil para ela nos deixar na água. Sem a sua ajuda, certamente
estaríamos mortos. Mas depois da luta com a Lusca, algo entre nós
quatro mudou. Confio neles e sinto que todos estão começando a
confiar um no outro também.
É como se estivéssemos nos tornando uma equipe de verdade.
— Quando chegarmos a Arida — digo a ela quando caio de
costas, sugando o ar como se eu nunca o tivesse novamente. —
Darei um banquete em sua homenagem. Você pode ter todo o ouro
e toda a comida que quiser. Obrigada.
Grunhidos de concordância ecoam minhas palavras, e dou uma
espiada em Vataea, que mergulha o rosto na direção do céu
cinzento e solta um suspiro de alívio. A menor sugestão de um
sorriso genuíno brinca em seus lábios.
Mais uma vez, não posso deixar de agradecer por ela estar do
nosso lado.
CAPÍTULO VINTE E CINCO

Enquanto as ruas de Ikae são vitrais e Kerost é feito de cimento e


paralelepípedos, Zudoh nos cumprimenta com altos picos cinzentos
e cavernas de calcário que se estendem pela praia e nas
profundezas da terra. Felizmente, esta área parece estar deserta há
muito tempo, então ninguém está por perto para ver nossa chegada.
Não há sequer um pássaro no céu para cantar uma saudação.
Eu me envolvo firmemente em meus braços enquanto viajamos
ao longo da costa, tendo feito uma pausa longa o suficiente para
recuperar o fôlego. O ar gelado morde minha pele, ainda úmido de
roupas encharcadas e cabelos molhados, e eu tremo. Vários metros
à frente, aparece um edifício gigante com vidro que reflete à luz do
sol que lentamente começa a espiar através da névoa cinzenta.
Olho para o meu reflexo. O prédio é maior do que qualquer outro
que já vi antes – elegante e branco, com painéis estranhos no topo
do telhado.
Deve ter sido lindo uma vez, mas agora os raios brancos estão
cobertos por uma película cinza claro e marcas de queimaduras.
Muitas das janelas estão quebradas, revelando nada além de
escuridão por dentro. No telhado, quase todos os painéis estão
retorcidos e prontos para cair, enquanto a porta da frente
carbonizada se inclina nas dobradiças congeladas.
— Que lugar é esse? — Pergunto, minha respiração embaçada
no ar. Pelo sangue de Cato, está frio como o final do inverno aqui.
Bastian olha primeiro para o prédio, depois para a areia sem fim
que nos rodeia. Suas sobrancelhas afundam, vincando a testa em
uma série de linhas grossas e preocupadas.
— Era uma oficina — diz ele, embora sua voz não seja mais do
que um sussurro, quebrando nas bordas. — Fizemos remédios e
feitiços de proteção e projetamos novos materiais, como a madeira
de nossas árvores… — Ele se move como se quisesse apontar,
mas suas palavras foram cortadas rapidamente. Quase não existem
árvores, e as que existem estão carbonizadas.
Bastian vira a cabeça para o outro lado, em direção a docas
sem navios. Pranchas de madeira que não foram queimadas estão
podres, muitas delas caindo na água. A cada brisa que passa, a
madeira geme com o desespero que Bastian ecoa.
— Não é assim que deveria ser.
A areia de Zudoh não é branca ou marrom, mas cinza. Quanto
mais perto da água, mais escura fica. A água formou um grosso
anel de alcatrão perto da maré baixa, à medida que algas podres se
agarram à costa. É verde e dura como sangue seco, e faço uma
careta sabendo que é por isso que nadamos e é o que se apega aos
meus cachos e minhas roupas, deslizando-os para baixo.
Tento não olhar para a pilha de ossos espalhados pelo chão,
grande demais para pertencer a qualquer animal que eu possa
imaginar. Não há vestígios de pele ou músculos; os ossos foram
limpos por larvas e necrófagos. Pequenos pedaços de corda
desgastados e lascas de madeira pontilham os ossos.
— Como era antes? — Pergunto, mantendo minha voz baixa.
Está quieto aqui, mas isso não significa que é seguro.
— Era lindo — diz ele. — Areia branca brilhante. Tão
movimentada quanto Ikae. As pessoas estavam felizes. Havia
árvores por toda parte, mesmo aqui na areia.
Olho para o chão cinza e percebo que não é só na areia que
estamos pisando. Há cinzas também.
Essa parte de Zudoh foi queimada até virar cinzas.
Bastian se agacha na areia. Ele pega um punhado, examina e
fecha a mão. Não o sigo, porque entendo o que está sentindo. Ele
nasceu aqui e, embora tenha se afastado por muitos anos, Zudoh
ainda é sua casa. Se algo acontecesse com Arida enquanto eu
estivesse fora, nunca me perdoaria.
Até o oceano é silencioso, nada mais que um sussurro
lambendo meu ouvido. Pela primeira vez, isso não me deixa à
vontade. Isso arrepia meus ossos e levanta os cabelos ao longo da
parte de trás do meu pescoço, me atormentando com paranóia.
Onde estão as pessoas? Os animais? A vida?
— Quase não havia peixes vivos na água — diz Vataea. Eu
tremo, lembrando da sensação de escamas viscosas e peixes em
decomposição pelos quais nadamos. Provavelmente é por isso que
a Lusca atacou. As lendas sempre diziam que gostava de passear
pelas águas frias perto de Zudoh, mas se não há peixe para comer
aqui...
— Então temos que começar a procurar em outro lugar. —
Bastian suspira. — Não há como meu povo viver assim para
sempre. Temos que consertar isso.
— E nós vamos — digo, sem precisar tocar a terra para
conhecer suas lutas. — Você disse que havia árvores aqui antes?
— Centenas delas — diz Bastian. — E todas simplesmente...
queimaram.
— Nem todas elas. — Ferrick dá um passo à frente e aponta
para o lado sul da ilha. Sigo o seu foco, piscando algumas vezes
para garantir que não estou vendo coisas. Cerca de um quilômetro
adiante, um bosque de bétulas brancas surpreendentes se estende
por toda a ilha como uma parede.
— É perigoso — diz Vataea. — Sinto mais maldições zudianas.
— Então esse é o caminho para Kaven. — Bastian se endireita,
determinação endurecendo seu olhar. — Devemos ir.
Algo dentro daquele bosque faz com que a mágica dentro de
mim se agite, curiosa. Ela me incentiva a avançar, me embalando
em direção às árvores. Mas Vataea não se move. Ela vira o rosto
inexpressivo em direção a montanhas de pedra calcária em frente a
nós, onde uma caverna escorregadia do mar é formada na beira da
praia.
Ela acena com a cabeça para o lado, silenciosamente
desejando que eu a siga quando começa a ir em direção a ela. Seus
olhos são afiados como punhais enquanto ela examina o espaço,
mas não passam de algumas pedras aninhadas na beira de uma
montanha.
Olho para trás. Embora o sol finalmente tenha aparecido, já é
fim de tarde. Não temos idéia de onde Kaven está ou quanto tempo
a jornada por Zudoh levará, e a última coisa que precisamos é ter
que viajar por um território desconhecido à noite. Especialmente
quando estamos molhados, com frio e com um pirata que fica mais
doente à medida que passa mais tempo longe do navio.
— Devemos continuar. — Gentilmente, pego o braço de Vataea.
Ela hesita por apenas um momento, ainda olhando para a
caverna, mas acaba cedendo. No momento em que vamos nos virar
e ir embora, um estranho som de guincho atravessa o ar atrás de
nós. Eu me viro com arma na mão, mas não há nada além de
cascalho e pedras gigantes olhando para nós.
— Tem alguém aqui? — Pergunto, tentando espreitar por trás
das pedras e entrar na montanha.
Depois do Barracuda Lounge, nada mais me surpreenderia.
Zudoh responde com um silêncio perturbador, como se
prendesse o fôlego e esperasse que partíssemos. O desconforto me
envolve, inundando meus braços com arrepios.
Quando o som não volta, hesito em voltar para a floresta. Com
certeza não deve ser mais que um pássaro estranho. Mas mantenho
minha adaga pronta da mesma forma.
Quando damos um passo para longe da área, o grito soa
novamente. Não é realmente um grito, mas palavras estranhas e
incompreensíveis.
— Não entre! — Alguém consegue gritar, embora as palavras
sejam imediatamente abafadas mais uma vez.
— Cale a boca, seu cérebro de pássaro! — A voz por trás do
rosnado é definitivamente feminina.
As vozes chamam minha atenção para o canto da caverna,
onde finos pilares de calcário irregular formam a parede dos fundos.
Escondido no canto oposto atrás deles, quase imperceptível entre
uma formação de pedras e estalagmites, o rosto de uma garota
espreita ao redor da pedra. É visível por apenas um segundo antes
de uma mão pálida abaixar a cabeça.
— Eu já te vi — digo, apesar de apenas me encontrar com o
silêncio mais uma vez.
Ao meu lado, Vataea revira os olhos. Ela não perde tempo em
diminuir o espaço entre nós e as crianças, rastejando sobre pedras
úmidas e espalhando-as sobre o estômago para espiar entre as
estalagmites.
— Onde é a sua vila? — Ela exige.
Agora descoberta, a garota escondida atrás das pedras se
levanta para encarar Vataea cara a cara. Embora jovem,
provavelmente por volta dos treze anos, seu rosto pálido e sardento
está endurecido e seus olhos cruéis.
— Por que você quer saber? — Suas palavras são cuspidas,
afiadas e implacáveis. — Para poder queimá-la?
O rosto de Vataea se contorce quando ela se torce nas pedras.
De alguma forma, ela consegue parecer elegante enquanto faz isso.
— O fogo não é exatamente o meu método preferido de destruir
aldeias. Mas se quiserem ouvir uma canção...
As mãos da garota estão fechadas em punhos trêmulos. Ao
lado dela, um garoto ainda menor se levanta. Seu cabelo é tão claro
que é quase branco, e é bonito contra sua pele oliva. Ele encolhe os
ombros um pouco enquanto olha a garota ao seu lado, hesitando
antes de falar.
— Não acho que eles estejam aqui para nos machucar, Raya...
A garota balança a cabeça e seus lábios se contraem em um
sorriso de escárnio, mas ele não recua.
— Há apenas quatro deles — ele pressiona. — Se quisessem
nos machucar, teriam trazido uma frota. E definitivamente não são
de Kaven.
Os lábios de Raya se apertam como se quisessem pesar a
verdade de sua afirmação. Embora faça pouco para acalmá-la, seus
punhos relaxam e a hostilidade em sua voz diminui. Seus olhos
piscam de Vataea, depois para mim, avaliando.
— Quem é você? — ela pergunta — e por que está aqui?
A ilha não está mais tranquila. Passos levantam areia atrás de
mim quando Bastian e Ferrick avançam, cautela nos olhos, as mãos
cerradas em volta das armas, prontas.
As crianças dão um pequeno passo para trás quando se
aproximam, e Raya empurra o menino atrás dela. Os dois olham
para Bastian com olhos muito grandes, como se ele os tivesse
ameaçado. O rosto de Bastian se contorce. Ele dá um passo rápido
para trás e solta a mão da lâmina.
— Não estamos aqui para lutar com você — digo a ela. — Sou
Amora Montara, a princesa de Visidia.
Embora a pele da menina empalideça, ela não faz nenhum
movimento para relaxar ou revelar seus pensamentos. O jovem, no
entanto, não tem essa hesitação. Ele cobre a boca com um suspiro
e cutuca a garota ao lado. Ela afasta a mão dele, ignorando-o.
— Você não disse por que está aqui. — Raya mal respira
enquanto luta para segurar seu peito orgulhoso e fingir calma. Mas
seus olhos não piscam e seu peito treme.
Devolvo minha arma à bainha e fecho o espaço para que
apenas as pedras estejam entre nós.
— Viemos ajudar — digo a ela. — A parar Kaven.
O garoto tira as mãos da boca e começa a se virar.
— Ari — Raya rosna em protesto, ainda olhando para Bastian
com um profundo escrutínio. Ari tira a mão do ombro dele e se
agacha.
— Não é seguro para você aqui — diz ele. — Nem para
conversar. Os olhos de Kaven estão por toda parte; ele
provavelmente já sabe que está aqui. Você não deveria ter
conseguido passar pela barreira. — O garoto acena para a frente,
como se esperasse que escalássemos ainda mais pedras e
entrássemos entre os estalagmites para segui-lo até a pequena
fenda do espaço que ele compartilha com Raya.
— Não toque nesta. — Ele acena com a cabeça precisamente
para a pedra na qual pressiona as mãos pequenas. — Zale
amaldiçoou para garantir que ninguém seja capaz de encontrar a
entrada. Se você não sabe onde tocar, ficará preso na maldição até
esquecer o que estava fazendo.
Ele desliza os dedos em uma pequena fenda e empurra a pedra
para o lado, revelando um pequeno buraco para o qual ele nos
acena.
— Vamos levá-lo ao nosso acampamento — diz ele, quieto e
urgente. — Você pode falar com Zale.
Ferrick me lança um olhar, esperando que eu recuse. Os dedos
de Bastian dançam em sua coxa, tocando batidas tensas e
ansiosas. Mas não partilho nenhuma das suas hesitações. Embora
seja verdade que poderíamos estar entrando em uma armadilha,
confio no tom urgente nas palavras do garoto e no jeito que Raya
faz uma careta enquanto ela espera que eu dê um passo à frente,
não gostando do que está acontecendo, mas aceitando que precisa
ser feito.
Sua cautela zangada é suficiente para conquistar minha
confiança. Subo nas pedras e me ajoelho, rastejando pela
escuridão.

O ar está úmido e estagnado, quase sufocando no espaço apertado.


Meus pulmões estão pesados e o frio do chão morde minhas mãos
e joelhos enquanto rastejo para frente. Os outros estão diretamente
atrás de mim.
— Todos estão bem? — Pergunto.
Bastian responde com uma risada ofegante. — Não poderia
estar melhor. Eu tenho uma bela vista.
Embora ele não possa ver, meus olhos praticamente rolam
direto para fora do meu crânio para compensar o calor que aquece
minhas bochechas. Se esse espaço fosse maior, teria me virado e
dado um soco no ombro dele.
— Aproveite enquanto pode, pirata.
Felizmente, não demoram mais do que alguns minutos para as
paredes se estenderem ao nosso redor e o mundo brilhar à medida
que subimos às profundezas de uma caverna, capazes de ficar em
pé. As estalactites balançam precariamente no teto.
Abaixo da superfície, luminosas águas-vivas saem sobre a
água. Eles brilham através da maré escura, uma luz verde que
ilumina as paredes de pedra.
— Que lugar é esse? — Fico sem fôlego enquanto olho para as
pequenas criaturas. Aos meus pés, uma pequena salamandra com
longas brânquias saindo do pescoço foge de seu esconderijo e
mergulha para longe de nós, em direção ao canto oposto da
caverna.
Dou uma olhada cuidadosa em Bastian, cujo peito sobe e desce
trêmulo. Seus lábios estão pressionados enquanto ele examina a
caverna, os olhos molhados. A costa de Zudoh é um deserto
desolado e queimado, mas esta caverna é a imagem de uma beleza
imperturbável. É um pequeno vislumbre da ilha. Imagino que ele se
lembre de sua casa.
— É lindo — digo a ele.
Seus olhos piscam brevemente em minha direção, a garganta
balançando quando ele assente.
— Pensei que conhecia cada centímetro desta ilha — ele
sussurra, a voz roubada pela caverna. — Mas graças aos deuses eu
estava errado.
Aperto a mão no ombro dele, apenas uma vez, certa de que
vemos o mesmo sinal – Zudoh pode estar sofrendo, mas esta ilha
ainda não se foi. Se um lugar como esse ainda existe, então há
esperança.
Mas mesmo com essa esperança, os ombros de Bastian caem
um pouco mais a cada passo que ele dá. Enquanto os outros
avançam, ponho a mão em seu ombro. — Isso é o que você queria,
não é? Finalmente estamos aqui.
Ele encontra meus olhos por não mais que um segundo fugaz e
oferece um pequeno e tenso aceno de cabeça. — Faz apenas um
tempo. Não sei se alguém vai me reconhecer. Ou se ainda há
alguém para eu reconhecer. Eu era tão jovem.
— Tudo o que podemos nos preocupar agora é aproveitar ao
máximo nosso tempo aqui. — Sorrio, esperando Bastian refletir
sobre isso, mas seu queixo está tenso e seus ombros rígidos.
— Amora, há algo que você deveria...
— Por aqui! — Ari grita enquanto corre à nossa frente, fazendo
eu e Bastian nos encolhermos de surpresa. — Me viro para o pirata
para deixá-lo terminar, mas ele fecha a boca e acena para a frente.
— Devemos continuar andando. — E antes que eu possa detê-
lo, ele se vira para alcançar os outros.
Quero pressionar, mas decido dar o tempo que ele precisa para
processar o que quer que queira me dizer. De volta para casa pela
primeira vez em anos, não consigo imaginar as emoções que ele
está passando.
— Nossa vila foi destruída — diz Ari enquanto os alcanço,
tentando ignorar o modo como Bastian propositadamente evita olhar
para mim. — Mas alguns de nós foram capazes de iniciar um
começar acampamento. É segredo, e não devemos sair, mas...
— Mas Ari e eu escapamos às vezes, para explorar — diz Raya
quando sua voz desaparece timidamente. Ela acena com a cabeça
para o lado de Ari, e ele levanta o casaco para revelar um pequeno
telescópio prateado. — Vimos o seu navio. Zudoh é o único lugar
com madeira assim. Se pertencesse a Kaven, queríamos ser
capazes de avisar nossas famílias. Mas então nós assistimos você
ancorar seu navio tão longe; a última coisa que esperávamos era
que os visidianos aparecessem na praia.
Ela aperta os olhos com raiva; sempre que olha para mim, é
como se estivesse examinando minha alma e não gostando do que
encontra. Seu rosto não é macio, mas tenso com uma mandíbula
afiada. Embora seja jovem, o mundo a endureceu.
Isso nunca deveria ter acontecido com ela.
— Zale é a responsável? — pergunto, mantendo a voz baixa.
Este lugar parece quase sagrado, um refúgio de paz destinado a
permanecer tranquilo.
Os lábios de Ari se torcem, a testa amassando uma dúzia de
rugas enquanto ele considera isso. Finalmente, ele suspira. — Aqui
está ela. Mas o outro lado pertence a Kaven. Como eu disse, não
devemos ir para lá.
Pelo canto do olho, vejo as mãos de Bastian fechando em
punhos. Estão tremendo.
— Você precisa dizer a Zale que vai nos ajudar — diz Ari com
urgência. Depressa! Ela ficará tão animada, vamos lá!
Ele segue adiante, para onde a luz do sol indica a saída da
caverna. Tudo o que consigo enxergar é um vislumbre da água que
entra nos bancos de grama verde esmeralda e, quando olho de
soslaio, uma névoa de figuras mutáveis.
— Não baixem a guarda — oferece Ferrick, embora eu não
sinta perigo. Meus nervos estão calmos, mas verifico se minha bolsa
está bem presa no meu quadril.
Uma dúzia de rostos se aproxima de mim quando saímos da
caverna. Ao contrário de mim, eles não hesitam em pegar suas
armas.
CAPÍTULO VINTE E SEIS

É preciso tudo em mim para não pegar minha nova adaga. O suor
lambe minha testa quando olho para dezenas de rostos assustados,
mas determinados.
Os aldeões diante de mim seguram armas com as quais não
estou familiarizada – machados duplos ligados por uma corrente
preta, bastões brancos e elegantes e até alguns tubos estranhos de
fumar que parecem algo que não deve ser inalado.
Ari e Raya ficam na minha frente.
Ao ver as crianças, os olhos de uma mulher brilham com
preocupação zangada.
— No que estavam pensando ao trazer pessoas para cá? — Ela
rosna. Os cantos dos seus olhos se enrugam quando ela nos olha, o
foco permanecendo nas armas do nosso quadril. Ela não parece
preocupada com o que vê.
Embora a mulher pareça talvez apenas uma década mais velha
que eu, sua pele está pálida e murcha. Ela usa seu cabelo preto
preso em uma longa trança que se enrola sobre o ombro e caem em
tranças pesadas abaixo do peito. Seus olhos âmbar encapuzados
se estreitam enquanto nos examina.
Os machados que segura não tremem sob o seu aperto firme.
— Eles vão nos ajudar — Ari diz, acenando para que os outros
larguem suas armas. Eles o ignoram.
— Não estamos aqui para machucar ninguém — digo enquanto
Vataea, Bastian e Ferrick se espalham ao meu redor. Todo mundo
aqui sussurra quando fala, por isso tomo cuidado para seguir o
exemplo deles, não querendo incomodá-los ainda mais. — Como
suas armas, as nossas são para nossa proteção. Só as usaremos
se forçados, embora sinceramente espero que não chegue a isso.
Os olhos da mulher se estreitam ainda mais e ela olha para
Ferrick e Vataea. Os dois estão de pé, com as mãos levantadas,
numa demonstração de trégua. Ela olha para Bastian em seguida,
os olhos brilhando de surpresa. Ela se encolhe, e Bastian reflete o
movimento, ombros encolhendo como se ele pretendesse se
encolher em si mesmo.
— Reconheço você — ela sussurra. — Não? Pelos deuses,
você se parece com...
— Eu morava aqui — diz Bastian, cortando-a rapidamente. —
Mas foi há muito tempo. — Novamente, suas mãos tremem em seu
colo enquanto ele inclina a cabeça para mim em um pequeno aceno
rápido para tirar o foco de si mesmo. — Estamos todos aqui para
tentar ajudar. Esta é a princesa de Visidia, Amora Montara. Ela não
tinha ideia de que condição Zudoh estava até agora.
Descrença pinta suas feições. — Como a princesa não saberia
sobre Zudoh?
— Me pergunto a mesma coisa — digo a ela. — Meus pais
conseguiram manter o destino de Zudoh escondido de todos, não
apenas de mim. Se você largar suas armas, conto tudo. Queremos
ajudar. — Tenho o cuidado de não parecer mandona, sabendo que
irritar alguém com uma arma apontada para o meu rosto pode não
ser a jogada mais sábia. — Estamos aqui para discutir a
restauração de Zudoh no reino.
— Nós os encontramos na praia — Raya oferece calmamente,
ignorando o olhar da mulher de cabelos escuros. — Eles estavam
prestes a ir para a floresta.
— Como exatamente você entrou em Zudoh em primeiro lugar?
— Zale desafia. — Ninguém entra a menos que Kaven convide.
Aponto para o meu cabelo, liso com algas e lama do mar. — Se
fôssemos convidados, garanto que pareceríamos um pouco mais
apresentáveis. Por favor, olhe para o meu cabelo. Minha roupa.
Nadamos através de uma parede de peixes mortos para chegar
aqui.
Zale hesita por um momento, embora a tensão em seus ombros
diminua um pouco enquanto ela me observa pegar um olho de peixe
no meu cabelo emaranhado. Seu nariz torce, e ela acena para
aqueles atrás dela relaxarem.
À medida que as armas baixam, Ferrick exala uma respiração
tão pesada com alívio que parece relaxar a mulher pelo menos
marginalmente. Ela estende a mão para mim.
Pego rapidamente. Suas mãos estão gastas e ásperas,
deixando-me imediatamente ciente de como as minhas são macias
em comparação.
— Pode me chamar de Zale — ela diz enquanto acena para
mim, levando-nos em direção ao acampamento. Embora Ari tente
ficar vários passos atrás, os olhos de Zale o encontram, queimando-
o com tanta força que o garoto estremece.
— Não me importo se você encontrar os deuses vagando
perdidos naquela praia — ela repreende. — Não se atreva a trazer
mais alguém para cá novamente.
Ari olha para mim e dou a ele um encolher de ombros como
desculpas.
O acampamento é maior do que eu esperava e decididamente
mais próspero. Deste lado da caverna, é como se a Zudoh que
vimos ao chegar fosse uma mentira cruel.
Aqui, Zudoh é areia branca e brilhante, grama verde saudável e
fileiras e fileiras de árvores altas. Elas são semelhantes à cor de
bétula, mas significativamente mais espessas, com raízes maciças
que tecem dentro e fora da terra como vermes estofados. Em todas
as direções, uma cadeia de montanhas rochosas se estende
infinitamente no céu, protegendo o acampamento. É um esconderijo
inteligente.
Suas casas são feitas da mesma madeira branca das árvores,
pequenas mas resistentes. Como o prédio na costa, painéis
metálicos estranhos cobrem seus telhados, embora estes sejam
significativamente menores e menos elegantes.
— Eles nos ajudam a aproveitar a energia do sol, para manter
nossas casas aquecidas — explica Zale quando me pega olhando.
— Armazenam calor durante o dia e o liberam à noite.
Passamos por um grupo de zudianos sentados ao redor de uma
estranha formação de rochas – uma mais alta nas costas, pedras
menores no meio e nada na frente. Entre as pedras há um tipo de
túnel, e no meio um fogo intenso.
Mas sua fumaça não se eleva no ar. Em vez disso, ela é filtrada
através das rochas e entra no túnel, levando à caverna, onde mais
algumas pessoas estão reunidas. Eles seguram cantis no colo,
enchem-nas de água e depois os trazem de volta ao fogo, onde
alguém espera com uma variedade de recipientes. A água entra nos
recipientes escuros e emerge clara.
Eles trabalham rotineiramente – buscar a água, filtrar a água
através de recipientes estranhos, ferver, encher cantis e depois
colocando de lado para esfriar.
Percebendo o quanto considero nossa água da nascente como
certa, tento não olhar enquanto passamos, hipnotizada pela
eficiência com que elas funcionam.
— Isso faz com que seja seguro para beber? — pergunto, e
Zale assente com um sorriso curvando nos lábios.
— Nenhuma pessoa ficou doente por causa da água — diz ela
com um ar de orgulho. — E, mesmo se ficassem, não seria um
problema.
Sigo seu dedo enquanto ela aponta para um dos edifícios pelos
quais passamos. É maior que os outros, e pela porta aberta vejo
duas crianças sentadas em cadeiras – um garoto que parece que
está prestes a vomitar e uma garota que com um joelho arranhado.
Dois zudianos estão diante deles, vestidos com longas túnicas que
antes deveriam ter sido uma opala brilhante, mas que desde então
se sujaram em um cinza escuro. Um coloca uma mão no joelho da
garota e a outra no estômago do garoto. No brilho nebuloso de
laranja em torno de suas mãos, eu quase engasgo. Ferrick ecoa o
som.
— Isso é mágica de restauração — diz Ferrick. — Eles estão
usando magia Suntosan.
Mais do que isso; eles estão usando várias magias.
Tropeço quando a bile chega à minha garganta, fazendo o
acampamento girar. Praticar múltiplas magias é a ameaça contra a
qual os Montaras passaram a vida protegendo o reino.
Não me preocupo em conter minha surpresa, e Zale estava
esperando por isso.
— Lembre-se de que não vivemos sob as leis de Visidia — diz
ela calmamente, sua voz um sussurro feroz. — Seu pai levou os
curandeiros para longe da nossa ilha quando nos baniu. Ele deixou
nosso povo sofrer. O que mais deveríamos fazer?
— Mas não se trata apenas de Visidia! — Minha garganta está
tão seca que as palavras são quase dolorosas. — Ter muita magia é
mortal. Usar múltiplas magias é...
— Necessário — ela termina para mim. — Olhe em volta; nós
parecemos doentes? Temos praticado várias magias há anos, desde
que fomos banidos. Apesar da reivindicação do reino, nada
aconteceu com aqueles que escolheram usar mais de um tipo de
magia. Se quiséssemos sobreviver, isso era necessário.
Rasgo a pele ao redor das unhas enquanto minha visão salta de
um rosto para o outro, absorvendo toda a magia que não percebi
antes.
As mãos que manipulam a água e constroem estruturas na
terra. Aquecem as chamas e curam os doentes.
Não há como isso acabar bem; essa tem sido nossa lei há
séculos. Se o perigo de múltiplas magias era uma mentira, então
como os Montaras poderiam ter a magia de nossa alma? Como o rei
Cato estabeleceria Visidia pela primeira vez?
Não quero acreditar, mas quando a jovem pula da cadeira com
um joelho curado e a cor do garoto retorna à sua pele, não há como
negar o que Zale diz.
Eles podem usar várias magias. E seus sorrisos certamente não
parecem corrompidos quando eles mandam as crianças a caminho.
Não estão sofrendo ou lutando com seus corpos carregando muita
magia. Suas almas não estão desaparecendo.
Eles estão bem.
Dezenas de olhos se fixam em nós enquanto atravessamos o
lugar, a maioria curiosa, mas outra parte protetora. Eles tentam
chamar a atenção de Zale, e ela os dispensa com um leve
movimento de cabeça.
— Vou ficar bem — Diz a eles, e uma pequena chama pisca na
palma da mão quando diz isso, mostrando que ela está disposta a
lutar com uma magia que nem deveria ter.
Tento não pensar mais nas múltiplas mágicas, porque se o fizer,
ficarei doente. Em vez disso, concentro-me no acampamento.
Embora não haja ausência de pessoas aqui, certamente há uma
ausência de ruído. Mesmo quando grupos de zudianos escalam
livremente um penhasco com buracos nos pés e nas mãos
esculpidos pela magia valukana, seus movimentos e conversas não
são mais altos que uma canção de ninar suavemente cantada. Nem
as crianças gritam enquanto correm pelo acampamento,
perseguindo uma à outra.
— Estão atravessando a montanha em busca de comida — diz
Zale antes que alguém possa perguntar, parecendo se orgulhar de
nossos rostos admirados. — Amaldiçoamos a terra para desviar a
atenção dos outros – é a única área segura que temos, mas é difícil
de acessar. — Algo permanece em suas palavras e os olhos
apertados, mas ela não é dita.
— Por que todo mundo está sussurrando? — As sobrancelhas
finas de Vataea se afundam em sua testa. Fico feliz por não ser a
única irritada com isso.
Os olhos afiados de Zale voam para ela. — Porque se Kaven
encontrar nosso acampamento, estaremos acabados.
Os dedos de Vataea pressionam seus lados, as unhas
arranhando desconfortavelmente suas calças. — Como você
sobreviveu aqui por tanto tempo? Se não há peixes na água,
certamente o seu suprimento de comida não pode estar indo bem —
Ela pergunta enquanto Zale acena para frente e para o que eu
suponho que deve ser a casa dela. Não há muito no lugar – apenas
uma pequena mesa, uma cama pendurada feita de cordas e
algumas bugigangas – mas esconde a picada de ar frio do lado de
fora e acalma meus nervos. Ela faz um gesto para nos sentarmos
no chão, macios e acolchoados com bétula branca alisada. Vataea
afunda nas mãos, mas Bastian está rígido. Seu foco é apertado.
— Tem sido difícil. Temos um lago que está começando a secar,
por isso tentamos projetar novas colheitas do outro lado da
montanha — diz Zale enquanto se abaixa para se juntar a nós no
chão. — Mas a terra não está se adaptando. Admito que tenha sido
uma luta, mas se nos aventurarmos mais longe, corremos o risco de
ser capturados. Ela olha em direção à porta, ombros caídos. —
Minha mãe era uma das melhores cientistas de Zudoh. Estudou
plantas e tentou encontrar maneiras de aumentá-las ou até mesmo
crescer mais rapidamente. Foi ela quem fundou este campo e fez a
maioria de seus experimentos aqui.
— Kaven a matou anos atrás, quando ela estava tentando levar
outras pessoas para o nosso acampamento — ela continua após
uma pausa. — Mas as árvores que ela projetou estão em
abundância aqui. Sua madeira é leve e maleável, e as árvores
voltam ao tamanho normal poucos meses após serem cortadas. Seu
sonho era usá-las para criar navios mais novos e mais rápidos. E
estamos tentando fazer o mesmo.
Pensando em Keel Haul, dou uma espiada em Bastian, mas ele
mantém sua atenção firmemente focada à frente. Apesar da
frescura do ar, o suor escorre pela pele.
— Tentando? — Pergunto, arrancando meu foco de suas mãos
trêmulas e devolvendo-o a Zale. Há uma tensão em sua mandíbula
quando seus olhos me encaram.
— O rei queimou nossos navios — diz ela com uma voz que é
puro cascalho. Corta direto através de mim liso como aço, pegando
meu fôlego na garganta. — Durante anos ele nos impediu de viajar;
apenas recentemente Zudoh produziu madeira suficiente para
fabricar navios novamente, e foi assim que Kaven conseguiu crescer
seu exército nos últimos anos. Mas tem sido mais lento para nós,
uma vez que temos tão poucas pessoas para ajudar a construir. —
Suas palavras soam pesadas com dor e exaustão.
Penso em tudo que sabia sobre Zudoh. Que eles foram banidos.
Que eles se voltaram contra meu pai em uma briga e que ele foi
ferido.
Mas eles não foram apenas banidos. Eles foram presos, seus
navios queimados quando foram deixados aqui com Kaven. Tudo
isso – todo o sofrimento e medo que está acontecendo no solo de
Zudoh – é por causa dele.
Nada que eu disser será suficiente, mas ainda assim digo a ela
que sinto muito através de uma garganta espessa de algodão.
Parte de mim quer acreditar que, se essa é a verdade, meu pai
certamente deve ter tido um bom motivo. Mas que possível razão
existe para justificar o fechamento de uma ilha?
— Vamos terminar um em outra temporada ou duas — continua
Zale. — Faz anos que estamos construindo, pois não há muitos de
nós para trabalhar nisso, entre todas as outras tarefas. Mas está
quase terminando.
— Não parece tão satisfeita com isso como eu esperaria — diz
Vataea.
— Ficaria satisfeita se tivesse que escolher entre sua família e
liberdade? — Embora Zale nunca me pareceu nada além de
poderosa, noto pela primeira vez quão pequenas são suas mãos
quando ela as fecha com os punhos no colo. — Construímos o
navio sobre a montanha, para que possamos levá-lo à água quando
estivermos abastecidos e prontos para tentar quebrar a barreira.
Embora tenhamos criado ferramentas para tornar a escalada
possível, receio que nem todo o nosso pessoal esteja apto para
essa jornada. Se quisermos sair, teremos que deixar alguns para
trás.
— Que tal usar magia Curmanan? — Pressiono, embora mesmo
sugerir que eles usem outra mágica pareça errado nos meus lábios.
Zale sorri tristemente. — Nosso acampamento é pequeno.
Alguns tentaram praticá-la, mas a levitação é uma habilidade de alto
nível. Nenhum de nós conseguiu dominá-la e não temos tempo para
continuar tentando. Levaria anos que não temos. Até pensamos em
usar a magia da terra Valukan para construir um caminho através da
montanha, mas levaria muito tempo para fazê-lo lentamente e seria
alto demais para fazê-lo rapidamente. Depois de atravessarmos a
montanha, precisamos ser rápidos em tentar coletivamente quebrar
a maldição de Kaven. Ele notará o momento em que tudo acabar,
para que não tenhamos tempo para ficar. Escalada é a nossa única
opção.
Meu aceno de cabeça é lento quando as palavras penetram.
Não posso deixar isso acontecer.
— Por que ele tem tanta influência nessa ilha? — Pergunta
Ferrick. Minhas mãos estão escorregadias de suor. Limpo as calças,
tentando relaxar o suficiente para me concentrar nas respostas de
Zale.
— Kaven acredita que todos devem aprender a mágica que
quiserem — diz Zale. — E ele acha que a magia de Montara – a
magia da sua alma – deve ser algo que praticamos amplamente.
Mas o que ele se recusa a acreditar é que alguns estão
perfeitamente satisfeitos em apenas ter a sua única magia. Que
nem todos nós queremos passar nossas vidas dominando todas as
formas de magia por aí.
— Qual a quantidade de seguidores dele? — Bastian pergunta
tão baixo que suas palavras são quase inaudíveis.
Zale estreita os olhos e o inspeciona novamente. Suas
bochechas se enchem como se ela estivesse mordendo o interior
delas, avaliando-o como um quebra-cabeça.
Bastian tenta não olhá-la diretamente nos olhos.
— Não é tão grande quanto poderia ser, já que ele está
tentando forçar pessoas a aprender uma mágica que muitos não
conseguem lidar — ela responde, cessando seu exame. — Mas
provavelmente metade de Zudoh e Kerost o seguem. Não acho que
ele tenha muita influência nas outras ilhas; talvez pequenos
números, se for o caso. Não é praticar várias magias que deixa as
pessoas doentes. É só quando eles tentam aprender a magia
aridiana.
Ferrick parece vagamente doente. — O que você quer dizer
com magia aridiana? Não há como alguém aprendê-la. — Ele se
vira para mim para ver se eu compartilho sua surpresa, e me
encolho. — Você sabia sobre isso?
— Também não queria acreditar — ofereço em voz baixa. —
Não até o ver.
Compreensivelmente, essa resposta não o agrada. Ele se
recosta nas mãos, balançando a cabeça enquanto Zale explica. Ao
seu lado, Vataea ouve atentamente.
— Está longe de ser a magia aridiana adequada — esclarece
Zale. — Mas de alguma forma o Kaven criou uma versão que não
está certa. Ele costumava sequestrar pessoas e forçá-las a
aprender. Agora que tem seguidores, ele compartilha com eles. Mas
muitos que tentam aprender essa mágica sofrem e morrem
imediatamente. Aqueles que sobrevivem ficam deformados.
Corrompidos, como ele. Essa magia é provavelmente o que o fez
tão horrível em primeiro lugar.
Mesmo que eu já soubesse disso, ouvir novamente me faz
tremer. Bastian abaixa a cabeça, enquanto Ferrick mastiga
ansiosamente seu lábio inferior. A testa de Vataea se enruga
enquanto ela observa Zale, esperando a mulher dizer mais.
— Todos devem ser capazes de praticar a magia que desejarem
— diz Zale, sem medo. — Não discordo de Kaven nisso. Mas onde
o rei mantém a magia longe de nós, Kaven a força em nós. Ele
destruiu Zudoh e agora está de olho nas outras ilhas. Logo ele
estará batendo nas portas do palácio. — Os olhos dela se estreitam
enquanto ela espera minha reação, mas não sinto raiva dela.
Apenas confusão.
Durante toda a minha vida, a proibição de múltiplas magias tem
sido a lei mais primária de Visidia. Papai sempre dizia que era para
nos proteger, e acreditei sem questionar. É por isso que aceitei
minha magia. Por isso pressionei minha lâmina no braço do primeiro
prisioneiro e por que tirei tantas vidas desde então.
Coloco minha cabeça nas palmas das mãos. Foi tudo uma
mentira?
— Se prometermos cuidar de Kaven e restaurar esta ilha, você
consideraria voltar a Visidia?
O rosto dela se inclina, os olhos transbordando. Ela não hesita
quando assente e diz: — Absolutamente — como se aquela palavra
fosse a única verdade que ela conhecia. Como se fosse a oração
que ela sussurra todas as noites. — Nós nos importamos pouco
com reis ou política; tudo o que queremos é a chance de viver
confortavelmente novamente, seja nesta ilha ou em outra. Existir
sem nos preocupar se alguém vai sequestrar nossos filhos ou nos
forçar a aprender uma magia com a qual não queremos nada. —
Seus lábios se curvam e o calor queima ferozmente dentro do meu
peito, acendendo meu coração acelerado.
— Você não deixará ninguém para trás. — Levanto rapidamente
e Bastian e Vataea seguem o exemplo sem questionar. Ferrick, no
entanto, é mais lento para subir. Seus olhos olham para Zale, com
expressão tensa. — Onde encontramos Kaven?
Zale endurece, os ombros se afastando quando sua coluna se
endireita. Ela nos olha, os lábios pressionados em uma linha fina.
Seus olhos permanecem mais em Bastian do que qualquer um de
nós, e por um momento me preocupo que ela recusará nossa ajuda.
Que ela vai chamar os outros para ajudar a nos eliminar. Mas então
ela também se levanta e diz: — Ele está na floresta. Mas as noites
de Zudoh são frias e perigosas. Vão congelar nessas roupas. Nossa
ala de cura está vazia; vocês deveriam ficar lá a noite. Podemos não
ter muito a oferecer, mas se vão nos ajudar, deixe-nos ajudá-los.
Embora Ferrick pareça cauteloso e Bastian não consiga olhar
Zale nos olhos, minhas roupas ainda estão encharcadas e meu
cabelo liso com algas que não secam. Ficar perdidos no escuro ou
congelar na floresta não nos levará a lugar algum.
Assim, eu aceito a oferta de Zale, e ela nos guia em direção à
porta enquanto se levanta.
Do lado de fora da cabana, algumas dúzias de zudianos
esperam por nós, sem se preocupar em esconder a curiosidade.
Embora seus olhos nunca se desviem de nós quando voltamos para
o pequeno prédio onde assistimos as crianças serem curadas, elas
inclinam a cabeça levemente quando passamos, oferecendo
agradecimentos hesitantes.
É apenas uma pequena quantidade de confiança, mas é a
confiança do meu povo, no entanto. O orgulho aquece minhas
bochechas e acelera meus passos. Inclino minha cabeça para eles
antes de Vataea e eu sermos escoltados para um prédio, e Ferrick e
Bastian, outro.
Pode não parecer muito para os outros, mas usarei a confiança
deles como armadura e o destino do meu reino como força.
Amanhã, Kaven não será mais uma ameaça, e eu restaurarei
este reino.
CAPÍTULO VINTE E SETE

Eu esperava que um banho me fizesse sentir mais limpa. Mas


quando meus cabelos molhados pingam nas mãos que seguro
diante de mim, tudo o que posso ver é o sangue que as manchou
para sempre.
Pratico magia da alma desde criança; as noites na prisão com
meu pai formam algumas das minhas primeiras lembranças.
Naquela época, acreditava no que ele me disse: fazemos o que
fazemos para proteger o reino. O bem-estar geral de Visidia é mais
importante do que eliminar uma única alma corrompida.
Mais uma vez, penso na primeira vez que ajudei com uma
execução. Faz anos desde que pensei sobre isso, mas tem pesado
na minha mente desde o meu desempenho fracassado. Quando
fecho os olhos, vejo meu eu de cinco anos parado na cela da prisão
ao lado de meu pai. Lembro-me do sangue da mulher derramando
sobre meus dedos enquanto eu pressionava uma lâmina em seu
braço, e a maneira como a magia se apoderou de mim naquele
momento – um animal sombrio que se agarrou imediatamente à
minha alma. Sofri por semanas depois disso enquanto lutava contra
a magia, forçando-a a se ligar à minha alma sem ultrapassá-la.
Pensei que o que estava fazendo era certo. Sofri com a dor para
que meu reino não precisasse.
Mas era mentira. Tudo o que meu pai me contou sobre essa
mágica e nossos deveres era uma mentira. E acreditei porque
confiava nele mais do que tudo. Ele não era apenas meu pai; era a
minha inspiração. O tipo de governante que eu aspirava a ser,
amado e respeitado por nosso povo.
Mas minha visão do mundo era distorcida e limitada, ajudando
com as mentiras que ele me alimentou com uma colher de prata.
Meu peito arfa com respirações bruscas enquanto lágrimas
rolam livremente pelas minhas bochechas. Não me incomodo em
tentar segurá-las.
Fora deste muro estão os zudianos que praticam mais do que
sua própria magia. Suas almas estão inteiras. Seus corpos não
estão exaustos. Eles estão perfeitamente bem.
Limpo uma lágrima e ela rola pelos meus dedos, mas não a vejo
pelo que é. Em vez disso, vejo o sangue da primeira mulher que já
executei, arrastando no meu dedo como uma serpente.
Se não foi para proteger Visidia, para que foi a morte dela?
Ao som da minha porta se abrindo, rapidamente limpo meus
olhos e seco minhas mãos nas calças. Embora eu espere uma
Vataea recém-banhada, é Bastian quem cambaleia, com um frasco
na mão. Ele dá uma olhada em mim e seu rosto cai. — Você está
chorando? — Ele pergunta com uma voz levemente arrastada.
Afasto minha cabeça para que ele não possa ver meus olhos
vermelhos e pressiono minhas mãos trêmulas na minha cama. —
Deuses, o que você está fazendo? Saia! Este não é o momento de
estar brincando.
— Não estou brincando. — Quando aponto para o frasco em
suas mãos, seu rosto quase derrete por causa da profundidade de
sua carranca. — Isso? Isso é coragem. Aqui, trouxe um pouco para
você.
Embora eu vire para gritar com ele novamente, minha boca fica
seca quando percebo pela primeira vez que seus olhos vermelhos
refletem os meus. Eu sei que não é do álcool.
Lentamente, pego o frasco oferecido e tiro a tampa, saudada
pela doçura aguda do rum.
— Onde você encontrou isso? — Pergunto, minha boca
queimando enquanto tomo um gole e passo de volta para Bastian.
— Eu sou um pirata — ele responde, embora as bordas das
palavras sejam amargas. Ele quase as cospe. — Todo pirata tem
um frasco.
Ele toma uma bebida e então é a minha vez novamente. Desta
vez, sou mais liberal com meus goles.
— Se você veio aqui esperando continuar o que começamos em
Keel Haul, escolheu a noite errada.
O nariz de Bastian enruga. — Não vim aqui para brincar. Há
algo… — As palavras dele foram cortadas com um forte assobio de
ar. Ele pressiona a mão na testa, apertando os olhos contra a dor. O
suor lambe as bochechas e o espaço acima dos lábios quando ele
se encolhe, tentando roubar respirações profundas entre os dentes.
Jogo o frasco na cama para agarrar seus ombros, firmando-o.
— Bastian? Ei, respire! O que está acontecendo?
Ele fica tenso sob o meu aperto e permanece assim por um
longo momento até que sua respiração se estabilize e seus
músculos comecem a relaxar. Quando ele levanta a cabeça
novamente, há lágrimas nos seus olhos e um estalo na voz. — O
que está acontecendo é que eu não deveria estar aqui. Nunca
deveria ter voltado.
Eu o ajudo a se endireitar, sem palavras, enquanto ofereço o
frasco. Ele o abaixa e tira outro do bolso interno do casaco.
— Coragem — ele diz novamente — e um remédio por me
afastar muito da minha maldição.
Embora tenha pena dele pela dor que deve sentir, não o deixo
tomar um gole do segundo frasco. Pressiono-o quando ele o leva
aos lábios. — Precisamos de você bem amanhã. — Mantenho
minha voz severa. — Eu sei, desculpe, você está com dor, eu sei.
Mas tem que lutar contra isso, apenas por esta noite.
Em vez de argumentar, seu rosto racha e ele coloca o frasco
nas minhas mãos com uma respiração trêmula. Por um longo
momento, ele fica em silêncio, olhando diretamente para a porta
como se estivesse tentando queimar com os olhos. Mas então seus
ombros se dobram.
— Viu o jeito que Zale olhou para mim? — Ele praticamente
engasga as palavras, enfiando o rosto nas palmas das mãos e
respirando profundamente nelas. — Estrelas, ela olhou para mim
como se eu fosse ele. Como se eu tivesse feito isso com eles. É
assim que todos vão olhar para mim, Amora. E eu mereço isso. Eu
mereço a dor. Eu mereço toda essa maldição. Olhe para mim! Entrei
em seu quarto e você estava chorando e nem perguntei o que
estava errado. — Olhando para as suas mãos, ele suspira e
acrescenta baixinho — Odeio ver você sofrer.
Quero desesperadamente abrir o segundo frasco e tomar outro
gole. Quero senti-lo queimar todo o caminho, entorpecendo minha
dor. Mas é como eu disse a Bastian – mais um dia. Temos que ficar
bem por mais um dia. — Estou chorando porque percebi a verdade
— digo em voz baixa, deixando as palavras soarem com toda a
força da convicção que sinto. — Sou tão ruim quanto Kaven. Já tirei
tantas vidas quanto ele, se não mais.
— Não diga isso. — O rosnado de Bastian é tão cruel que
recuo. — Kaven tirou vidas sem motivo. Ele prendeu Zale e seu
povo aqui neste pequeno pedaço de terra e os forçou a encontrar
uma maneira de sobreviver. Ele os forçou a usar uma magia que
não querem, apenas para ganhar poder. Você tirou vidas, Amora,
mas nunca foi assim.
Meu foco vaga pelas minhas mãos, firmemente cerradas e
descansando na minha coxa. — Não importa. Ainda os matei. Ainda
fiz essa escolha.
— Você pensou que estava protegendo Visidia. — Bastian pega
uma das minhas mãos e a move lentamente para o seu colo. — Não
é sua culpa que ele tenha mentido.
Mas não quero acreditar nessas palavras. Porque é como Zale
disse: sou a princesa de Visidia. Como eu não sabia a verdade?
— E não é sua culpa ter sido amaldiçoado — digo, mas Bastian
não está disposto a aceitar a bondade como eu.
Mais uma vez, ele passa as mãos pelo rosto. Enrosca os dedos
pelos cabelos. Ele muda e suspira até que as distrações não
funcionem mais. — Há algo que preciso lhe contar.
Eu espero. Seu peito para de tremer quando ele olha
diretamente para mim, suas palavras firmes e determinadas. Não
estou preparada para as próximas palavras que ele fala.
— Não fui sincero com você, e sinto muito por isso. Sinto muito
não ter contado isso antes, mas não sabia como. — Ele faz uma
pausa para passar a língua pelos lábios e pressiona a mão livre na
coxa, como se se preparasse para as palavras que quer dizer.. —
Você precisa saber que Kaven não é apenas um homem na ilha que
eu conhecia. Você sempre quis saber mais sobre ele, mas eu nunca
consegui falar sobre ele.
— É porque ele é meu irmão, Amora. — Suas palavras vacilam.
— É porque, por mais que eu saiba que tenho que enfrentá-lo, estou
aterrorizado. Ele era minha responsabilidade. Meu sangue. Deveria
tê-lo parado anos atrás, mas, em vez disso, corri.
A tensão no meu peito é sufocante. Tiro minha mão do ombro
dele. — Você sabia a verdade sobre a prática de múltiplas magias?
Sabia que era tudo mentira?
Ele balança a cabeça ferozmente. — Juro que não. Kaven é
quase dez anos mais velho que eu; eu era criança quando ele
começou a ensinar a todos a amaldiçoar almas. Ele disse que várias
magias não eram perigosas, mas me recusei a aprender. Pensei…
pensei que ele estava mentindo. Muitas pessoas morreram quando
tentaram aprender. Mas agora percebo que isso só aconteceu
quando eles tentaram aprender a magia aridiana.
Pressiono minha cabeça nas palmas das mãos. — Por que não
me contou antes? Já teve a chance de esclarecer tudo, quando me
contou a verdade sobre Keel Haul.
Ele praticamente murcha em seu próprio corpo. — Eu sou um
pirata — diz ele calmamente, como se as palavras fossem uma
maldição perigosa. — Toda a minha vida tive que desempenhar
esse papel apenas para sobreviver, e quanto mais eu jogava, mais
as linhas ficavam confusas sobre quem eu realmente era. Nunca
tive outra pessoa na minha vida que me importei com a forma como
me importo com você, e acho... que ainda estou me acostumando
com isso. Se te dissesse a verdade, pensei que poderia me odiar.
Veja o que Kaven fez. — Ele gesticula pela sala. Ao redor do
acampamento, como se bastasse a resposta.
— Essas pessoas têm medo até de falar no volume normal —
diz ele. — As crianças não podem gritar e brincar livremente. Eles
têm pavor de serem mortos pelo meu irmão. Eu não podia arriscar
você descobrir, porque...
— Porque precisava de mim — termino por ele, puxando minha
mão da dele. — Você estava me usando.
Ele desvia o olhar, mas não nega. — Só no começo. Precisava
de você por causa sua magia, sim, mas estava lhe dizendo a
verdade sobre Keel Haul, Amora. Eu queria que você ficasse. Não
tenho mais ninguém com quem me importe na vida, não mesmo.
Mas me vi querendo você nela. Não queria arriscar perdê-la
contando sobre Kaven. Olhando para trás, sei que isso era egoísta
da minha parte, e me desculpe. — Ele passa os dedos pelos
cabelos. — Queria lhe dizer a verdade agora, para que você ainda
tivesse tempo de fazer uma escolha.
— Que escolha? — Eu ecoo, incapaz de esconder minha
mágoa na maneira como minhas palavras mordem.
— Se quiser sair, entenderei. — Ele aperta as mãos com força.
— Posso lutar contra Kaven sozinho, como deveria ter feito anos
atrás.
Eu me irrito, porque quem ele pensa que é? Não importa quais
mentiras passei minha vida acreditando, sempre houve uma única
verdade que nunca questionei – fui feita para proteger Visidia.
Penso no olhar de Zale quando jurei ajudá-la. Lembro-me do
calor no meu peito enquanto os zudianos inclinavam a cabeça para
me agradecer.
E agora percebo que não importa se minha magia era uma
mentira, porque ainda posso cumprir o que acreditava ser seu
propósito. Com tudo que estiver ao meu alcance, protegerei e
restaurarei Visidia.
— Eu nunca desistiria dessa luta — digo a Bastian, derramando
nas palavras cada pingo de convicção que sinto. — Mas ele é seu
irmão. Veio aqui com a intenção de matá-lo ou não? Porque se ele
se recusar a renunciar, não haverá tempo para hesitar.
— O homem que enfrentaremos amanhã não é mais meu irmão.
— Os olhos de Bastian se enchem de tristeza. — Ele arruinou a vida
de muitos. Posso enfrentá-lo; está tentando matar todo mundo com
quem me preocupo.
Essas palavras quebram algo em mim, porque quando olho
para Bastian agora, afundado, quebrado e mal conseguindo se
sustentar, o entendo melhor do que nunca. Gentilmente, agarro seu
queixo, inclinando-o para que nossos olhos se encontrem. Sua nuca
é áspera contra os meus dedos. — Acredite em mim quando digo
que entendo e que também tenho medo. Veja como Visidia murchou
sob o reinado de meu pai. Sei como é se envergonhar com o que
sua família fez, mas você não é seu irmão, assim como eu não sou
meu pai. Entende isso? — Quando digo as palavras em voz alta, é
como se um peso caísse dos meus ombros.
Não é tarde demais para nós; não somos os erros da nossa
família. Temos a oportunidade de mudar Visidia para melhor.
— Mas você não sabia — sussurra Bastian. — O rei manteve
você trancada em Arida. Passei anos conhecendo os planos de
Kaven e não fiz nada a respeito.
— Mas estamos aqui agora. Você está aqui agora. Essas
pessoas lá fora? Aponto para a porta, mas nunca deixo minha
atenção vacilar dele. — Estão contando conosco. Não ouse dizer
que você não deveria estar aqui; é exatamente onde precisamos
estar.
— Deveria ter lhe contado a verdade antes. — Quando ele
fecha os olhos, eu solto seu queixo.
— Deveria. — Meu interior arde de calor enquanto tento
processar tudo. Bastian deveria ter me dito; prometemos um ao
outro que não haveria mais segredos. Mas posso entender por que
ele escondeu esse. Vendo o estado de Zudoh, posso entender seu
desespero e medo. Nessa situação, eu teria agido de maneira
diferente? Mesmo agora, olhando a verdade, ainda quero acreditar
que meu pai nunca seria capaz de ficar sentado à toa e deixar isso
acontecer em nosso reino. Que todos aqueles anos em que ele me
manteve trancada em Arida realmente deveriam me proteger, e não
esconder seus erros. Quero acreditar que ele faria melhor que isso;
que ele virá a qualquer momento para salvar Visidia e provar que foi
tudo um grande mal-entendido. Bastian, provavelmente, queria o
mesmo. Essas pessoas que nós dois temos que enfrentar são as
pessoas capazes de nos machucar mais – elas são o nosso sangue.
Quando Bastian correu, não tenho dúvida de que ele tinha toda a
esperança de que seu irmão parasse. Que, finalmente, eles
chegaram a um entendimento pacífico.
Mas mesmo nossos ídolos, mesmo aqueles que queremos amar
e confiar mais do que tudo, podem nos decepcionar. É hora de
aceitar e enfrentar a realidade que eles nos deixaram.
— Eu te perdoo — digo a Bastian, deixando as palavras ficarem
na minha língua por um momento para realmente garantir que as
quero dizer. — Mas só se você lutar comigo amanhã. Ficarei ao seu
lado quando você enfrentar Kaven, e você ao meu lado quando
enfrentarmos o rei. O medo faz parte da vida; tudo o que importa é o
que fazemos com isso. Então pense nas pessoas que estão
contando conosco. Temos a chance de consertar isso.
Posso dizer que ele está processando mentalmente a gravidade
dessas palavras enquanto seus lábios se pressionam e sua cabeça
afunda. Silenciosamente, ele diz — Ficarei do seu lado.
— Então amanhã de manhã vamos marchar por aqueles
bosques e encontrar Kaven. Somos mais que nosso sangue. Fazer
o que podemos agora é tudo o que importa. — As palavras me dão
coragem a que me apego com força, usando-a para limpar o
desespero em que estava me afogando a meros momentos antes.
— Não mereço o seu perdão — diz ele. — Não mereço
ninguém.
— Sim, você merece. — A dor em seus olhos é a mesma que
eu sinto. — Se eu não posso perdoá-lo por um erro, como posso
esperar que Visidia perdoe os Montaras por uma vida inteira de
mentiras? Aceite o perdão e saiba que, a partir de agora, estamos
realmente nisso juntos. Entendo a escolha que você fez, Bastian.
Entendo isso melhor do que ninguém.
Pressiono meus lábios nos dele e, a princípio, o beijo é terno.
Mas quando as lágrimas começam a molhar suas bochechas, essa
ternura dá lugar a algo cru e apaixonado. Algo quase desesperado.
Quando Bastian enrosca os dedos na parte de trás dos meus
cachos, seu toque é elétrico. Estremeço cada vez que seu polegar
acaricia a parte de trás do meu pescoço.
Caindo de volta na cama, eu o agarro pela camisa e posiciono
seu corpo em cima do meu. Seus lábios são doces como rum
enquanto os experimento, assentindo com permissão quando seus
dedos hesitam na borda da minha túnica. Quando seus olhos
castanhos encontram os meus, meu corpo inflama.
As mãos de Bastian são quentes e ásperas quando deslizam
sob minha túnica, percorrendo a pele do meu estômago. Explorando
as curvas dos meus quadris.
Meus olhos se fecham quando seus lábios encontram meu
pescoço. Ele alterna entre salpicar beijos e mordidas suaves. O
puxo para mais perto, uma mão enrolada em suas costas e a outra
enrolada em suas ondas castanhas.
Eu quero isso.
Eu o quero.
Há um calor na minha barriga que me empurra para frente,
guiando meus dedos nos botões de sua camisa. Ele não reclama
enquanto me atrapalho em abri-los. No momento em que ela sai, ele
desliza para baixo, de modo que seus lábios estão no osso do meu
quadril e tenho que segurar a cama para me firmar enquanto eles
andam mais e mais, até que ele esteja beijando a pele das minhas
coxas.
Seus dedos deslizam por baixo da tira da minha calça e fico
tensa, sem perceber que mal tenho respirado esse tempo todo.
Bastian faz uma pausa imediatamente, seus olhos quentes
piscando nos meus quando ele se aproxima e dá um beijo carinhoso
nos meus lábios. É o sabor do rum neles que me leva de volta à
realidade. Afasto-me rapidamente, respirando pesadamente. Meu
corpo está muito consciente dele; cada centímetro que ele tocou
queima de desejo.
— Você está bem? — Bastian pergunta com urgência,
colocando um cacho solto atrás da minha orelha. — Não
precisamos fazer nada, Amora. Nós podemos parar.
— Não quero parar. — Pego sua mão na minha e a puxo para
meus lábios, beijando sua palma e seus dedos. — Mas precisamos.
Você está bêbado, Bastian.
— Foram apenas algumas bebidas — ele protesta, afastando do
meu aperto para beijar meu pescoço mais uma vez. — Estou bem.
Apesar do quanto eu queira, pressiono minhas mãos no peito
dele e o empurro. — Nós teremos outras chances — digo
calmamente. — Espero que muitas outras. Mas hoje à noite não é
uma delas.
Ele abre a boca como se quisesse dizer algo, mas a fecha com
um suspiro silencioso. Gentilmente, ele se afasta de mim, sentado
de joelhos na beira da cama. Meu corpo dói com o peso da falta
dele. Me sinto muito leve. Muito fria.
Lentamente, coloco minha mão em sua coxa. Ele a pega com
um sorriso.
— Eu não poderia fazer nada disso sem você, você sabe. — Ele
aperta minha mão suavemente. — Quero que saiba que sou
incrivelmente grato por você, e a vejo de manhã.
— Você é um pirata, Bastian Bargas. — Sorrio quando seus
lábios estalam com o nome. — Teria encontrado uma maneira.
Ele solta os dedos e me puxa para um abraço gentil. Dura
apenas um momento antes que se afaste. Ele não olha para mim
até sua mão estar na porta. — É Altair, a propósito. Bastian Altair. —
E então ele ri, um som suave e silencioso. — Estrelas, não digo
esse nome há anos. Isso é... bom.
Na minha cama, sorrio quando a porta se fecha atrás dele.
CAPÍTULO VINTE E OITO

Apenas Zale nos vê quando nos esgueiramos cedo na manhã


seguinte, e avançamos profundamente na floresta enquanto o sol
nasce. Durante a última hora, esses bosques tentaram apenas nos
devorar.
As bétulas brancas são umedecidas pela névoa da manhã que
chega da costa. Quanto mais mergulhamos, mais elas aparecem.
Raízes crescidas me agarram, machucam e cortam meus
tornozelos, tentando me puxar para a terra. Abaixo de nós, o chão
está coberto de fuligem que cobre minhas botas de preto.
Minha arma não pode nos ajudar aqui. Seu veneno é poderoso
demais para ser desperdiçado em árvores impertinentes. Uma brisa
se move através dos galhos e eles farfalham, como se rindo de mim.
— Estou tentando te ajudar — rosno para a ilha, tropeçando em
espinhos mortos e galhos quebrados. As árvores aqui são as
mesmas bétulas branca como as do acampamento de Zale, mas
são mais finas. Mais fracas e normais.
Vataea se arrasta cuidadosamente atrás de mim, imitando meus
movimentos para evitar ferimentos, enquanto Ferrick faz uma careta
e grunhe ao meu lado, batendo em galhos afiados.
— Ferrick, Amora, esperem...
Tropeço em fuligem quando me viro para a voz de Vataea, mal
conseguindo me segurar em um tronco.
A minha frente, uma pequena raposa negra enfia a cabeça por
trás de uma das árvores. É o primeiro sinal de vida que vi deste lado
da ilha desde que chegamos à floresta, provavelmente uma hora
atrás. Hesito, vendo a criatura lentamente sair de trás da árvore fina,
seus curiosos olhos dourados nunca vacilando nos meus. Sombras
se espalham ao redor de seus pés e envolvem a fera. Dou um
passo para trás quando os vejo, com a respiração presa na
garganta.
— Bastian? — Pergunto, ousando desviar o olhar por tempo
suficiente para verificar sobre meus ombros. — Vataea?
Mas ninguém está lá.
Eu tropeço para trás quando o espaço ao meu redor se estende
ainda mais na escuridão, me arrastando com ele. As árvores estão a
pelo menos uma milha de distância agora. Figuras tecem dentro e
fora deles, chamando meu nome.
Mas as vozes são um eco distorcido que alerta os cabelos do
meu pescoço e força minhas respirações a suspirar.
— Amoraaa... — eles chamam, tanto um sussurro quanto um
grito. — Amoraaa.
Eu me viro para ficar de joelhos e tentar arrastar meu corpo
trêmulo de volta para uma posição. Mas no momento que estou de
pé novamente, eu gostaria que a terra tivesse me engolido inteira,
assim como fez com as árvores.
A raposa paira sobre mim, enorme nas patas traseiras. Seu
rosto é afiado e pontudo, orelhas pretas saindo do capuz de uma
capa de safira. Seus olhos dourados percorrem meu corpo e,
quando pousam no meu rosto novamente, uma fileira irregular de
dentes brilha para mim.
— Você está perdida? — A raposa pergunta, seu hálito fétido
aquece minhas bochechas. — Por que eu não ajudo você a
encontrar o seu caminho?
Ela pula no ar e, embora cada parte de mim saiba que devo me
mover, eu apenas observo a raposa torcer seu corpo. Sua boca se
estica. Estica. Estica.
E me engole inteira.
A escuridão se transforma em uma luz branca ofuscante
enquanto eu me levanto, ofegando desesperadamente por ar.
Não estou cercada por árvores; não há nada além da bela areia
vermelha de Arida e uma figura me esperando na praia.
Embora esteja de costas para mim, reconheço o pai pela coroa
– o crânio de uma enguia Valuna lendária, com fileiras de dentes
afiados se estendendo acima da testa e ao redor da mandíbula,
enquanto uma espinha de ossos incrustados de jóias desliza pelas
costas.
— Pai? — Eu tento dizer, mas as palavras queimam minha
garganta enquanto a areia a enche, me sufocando. Isso sai do meu
nariz. Meus olhos. Caio de joelhos, implorando silenciosamente que
meu pai se virasse para mim.
“Olhe para mim. Por favor. Você tem que me ajudar.”
Minha visão fica turva. Eu agarro minha língua, pensando que
talvez eu possa cavar a areia sozinha. Mas eu não posso controlar
minha mão. Pisca na minha visão, primeiro ao meu lado, depois na
minha garganta. Na minha língua novamente.
Tento gritar e, embora nenhum som saia, meu pai se vira para
mim lentamente.
Só que meu pai não tem olhos dourados ou fileiras de dentes
ensangüentados.
A raposa usa sua coroa. A capa dele. E ele sorri para mim, os
olhos brilhando enquanto se aproxima, crescendo duas vezes seu
tamanho a cada passo.
Ele congela apenas quando algo atinge meu rosto. A raposa
vira a cabeça para o lado e rosna.
Não vejo nada que possa ter me atingido, mas estou dando um
passo para trás. A raposa choraminga e encolhe até a metade do
tamanho.
Amora!
A areia não queima mais meus olhos. Ele escorre da minha
garganta e posso respirar novamente.
A raposa lança seus olhos gigantes para mim. "Eu não posso
ajudá-lo a menos que você me permita", sussurra, tentando rastejar
para mais perto. Mas finalmente encontro minhas pernas novamente
e me chuto contra a areia.
Foco, Amora! Você precisa se concentrar!
Fecho os olhos com força e vejo Bastian e Ferrick em cima de
mim.
Quando abro os olhos novamente, é a raposa, o calor da boca
aberta no meu rosto.
Foco!
Eu enfio meus punhos na areia, respiro fundo e fecho os olhos
quando a raposa se lança para mim novamente.
O mundo gira e se deforma de novo quando milhares de bétulas
brotam ao meu redor. Eu respiro desesperadamente, o corpo
tremendo enquanto tento encontrar meu foco. As árvores se
estendem impossivelmente altas, cobrindo o céu com seus galhos
finos, mas abundantes. São tudo o que vejo, mas mãos gentis
alisam minha testa.
— Ela está bem? — Reconheço a voz desesperada como a de
Ferrick. Ele está em algum lugar ao meu lado.
— Ela ficará — responde Bastian, mais perto. — Estrelas,
princesa. É quase como se você gostasse de ser amaldiçoada.
Eu engulo, o batimento cardíaco diminuindo graças aos dedos
suaves que pentearam suavemente meus cabelos. Quando eu
consigo me concentrar e inclinar minha cabeça para trás, Vataea
franze a testa para mim.
— Desculpe — diz ela. — Este lugar está cheio de truques.
Parei Ferrick, mas não consegui chegar em você a tempo. — Ela
me ajuda a ficar de pé, tanto Bastian quanto Ferrick na minha frente
com as mãos estendidas, prontas para ajudar.
— Eu odeio esses bosques — eu rosno, e embora minhas
palavras sejam amargas, elas parecem deixar todos à vontade. As
linhas de preocupação na testa de Ferrick se suavizam e, embora
Bastian goteje de suor, ele parece ficar um pouco mais firme.
— Pegou você também? — Eu pergunto enquanto ele limpa o
suor da testa. — Parece que você está prestes a cair.
— Não, só estou cansado. — Ele não precisa explicar que é por
causa de quão longe estamos de Keel Haul. Bastian tira a camisa
do peito, abanando-se. E mesmo agora, quando o perigo sopra em
nossos pescoços, o calor se agita dentro de mim e eu luto para tirar
meus olhos dele, lembrando-me da sensação de sua pele sob as
pontas dos meus dedos na noite passada. — O que você viu?
Penso na raposa que pairava sobre mim na coroa e na capa do
pai, e tremo. — Uma raposa — é tudo o que digo, não querendo
lembrar os detalhes.
A tensão na mandíbula de Bastian diminui quando ele assente.
— Raposas são trapaceiras. Parece uma maldição avançada, feita
para tirar proveito dos maiores medos da vítima. Honestamente,
estou surpreso que você tenha escapado da maldição. Ainda mais
tão rapidamente... — Sua voz diminui quando ele me olha de lado.
Ao contrário dele, estou menos preocupada com o modo como
saí da maldição do que com o que a maldição me mostrou: Pai, um
monstro disfarçado. Eu engulo em seco.
À medida que avançamos mais fundo na floresta, um punhado
de casas se espalha diante de nós, pequenas cabanas cercadas por
árvores mortas. Embora o local pareça desolado, a fumaça sobe de
uma fogueira que fica entre as cabines. O próprio fogo foi apagado,
mas os carvões ainda queimam quentes.
Está claro que essa terra já foi linda; fica na base de uma
montanha, com o rugido de uma cachoeira próxima, oferecendo um
ambiente tranquilo. Os edifícios são semelhantes aos da praia
principal – brancos e elegantes, com grandes janelas de vidro.
Metade deles foi queimada, enquanto os outros estão em ruínas
com janelas quebradas e descascando e apodrecendo madeira.
Dou um passo em direção a um deles, e há um flash de movimento
no meu campo de visão.
— Algum de vocês viu isso? — Eu pergunto, abaixando minha
voz.
Embora ninguém responda, eles não me questionam. Quando
Bastian desloca o olhar pelo terreno, começo a duvidar de mim
mesma, pensando que talvez ainda esteja alucinando da minha
maldição quando outro flash de movimento atravessa as árvores.
Bastian se encolhe; desta vez, ele viu. Ele agarra minha camisa
e me puxa contra ele quando algo quente e afiado passa zunindo
por minha orelha. Ele assobia quando passa, batendo em uma das
casas atrás de nós e se prendendo na madeira.
É uma faca. Seiva grossa e pegajosa escorre pela madeira.
Veneno.
Vataea prepara sua adaga de aço com dedos hábeis, e eu
espelho a ação puxando minha nova lâmina, Rukan. Um nome
inspirado nas águas-vivas cujo veneno é considerado causador da
pior dor que uma pessoa poderia experimentar.
Afasto todas as distrações quando cinco figuras emergem,
algumas pulando dos telhados, enquanto outras nos cercam pelos
lados. Seus olhos brilham com o cálculo, corpos enrolados em
músculos. Eles empunham armas fortes – facas, espadas e uma
adaga que parece ser feita de osso.
Eu seguro minha lâmina venenosa com força, pronta.
Uma das garotas, uma loira ágil que carrega a adaga de osso,
passa os olhos famintos por mim.
Eu levanto minha lâmina para ela em aviso, e seus olhos se
voltam para examinar seu estranho tom azul. Se eu fosse ela, ficaria
nervosa ao ver uma arma tão estranha. Se for inteligente, ela se
afastará.
Mas ela não se afasta.
Olho para Ferrick enquanto o grupo nos rodeia. Ele e Vataea
ficam de costas um para o outro, ele com sua espada e ela com a
adaga.
— Estamos aqui para conversar com Kaven — diz Vataea. —
Deixe-nos passar. — Suas palavras são recebidas com desprezo
imediato enquanto os que nos rodeiam riem. Vataea está fora de
seu elemento com uma lâmina como arma em vez de sua voz.
— Deixar você passar? — Um dos homens ri. Ele tem quase
vinte anos e, no entanto, sua voz está pesada com uma voz rouca.
— Depois do que o rei de Visidia fez em nossa ilha? Acho que não.
— Queremos ajudar a reconectar Zudoh ao reino — eu digo,
nunca desviando o olhar da garota que segura sua lâmina diante de
mim. — Mas para fazer isso, você tem que trabalhar conosco.
A garota diante de mim torce as mãos. Eu envolvo minha magia
ao meu redor e imediatamente vejo a vingança que sua alma anseia
por todo o seu ser. Sentindo o perigo, ela se enrola e se prepara
para saltar.
— Nós não queremos a sua ajuda — ela rosna decididamente.
Ao seu redor, os outros mantêm seus queixos altos de acordo.
— Largue suas armas e ande. Vamos ver se Kaven tem tempo
para conversar. — Ela está mentindo. Sinto o momento exato em
que a garota decide me matar porque sua alma fica vermelha e
lamacenta – a cor do sangue congelado. Os cantos dela se
quebram, ameaçando descascar.
Na minha mente, vejo o sangue da minha primeira morte
deslizando pelas pontas dos dedos. Lembro-me do monstro dentro
de mim ganhando vida pela primeira vez. E por um momento,
hesito.
Talvez eu fosse um monstro para matá-la. Talvez eu fosse um
monstro para matar todos eles.
Mas tudo o que fiz, fiz com o objetivo de proteger o Visidia. E
não vou mais me desculpar por isso.
Talvez um monstro seja exatamente o que esse reino precisa.
Essa garota tomou sua decisão, e não vou esperar e deixá-la
atacar primeiro.
Agarrando Rukan com força, eu salto para a frente e mergulho a
lâmina profundamente em seu estômago. Seus olhos se arregalam
e ela balança, o sangue incha fora dela e pintando sua camisa de
vermelho. É uma ferida fatal, com veneno ou não. Seus olhos
verdes ficam vidrados. O sangue escorre dos lábios até o queixo
antes que ela cambaleie e engasgue. Ela cai um momento depois,
espatifando-se no chão.
Os outros quatro assistem, atordoados. Eu pego sua adaga de
osso e limpo na minha calça. Não era assim que eu queria, mas os
rostos dos zudianos de antes ficam na frente da minha mente.
Prometi protegê-los e pretendo cumprir.
Um dos meninos mais novos corre até minha vítima e cai de
joelhos. Seu corpo desmorona, como se todo o seu espírito tivesse
sido arrancado dele. O sangue cobre suas mãos bronzeadas
quando ele as pressiona contra o peito dela, tentando parar o
sangramento.
Eu gostaria que não tivesse que ser assim, mas eles deixaram
claro que nunca estarão do nosso lado. Reprimo minha simpatia; se
derrotá-los me deixa um passo mais perto da restauração do
equilíbrio em Visidia, então eles provocaram uma luta que não tenho
intenção de perder.
Ele bate as mãos contra ela, tremendo. Mas é inútil; ela já está
morta.
— Amora — Bastian rosna baixinho, tentando se afastar. —
Precisamos sair.
Impossível. Os outros dois meninos e a mulher restante
preparam suas lâminas e atacam.
Com uma arma em cada uma das minhas mãos e a morte delas
na minha mochila, estou pronta.
Eu bato em Rukan novamente, encontrando resistência na
ponta da minha adaga, quando ela se prende e pega na pele. Uma
voz masculina grita, rouca e irritada. Ele tropeça na minha visão
periférica, segurando seu braço. Eu deveria me concentrar nos
outros, mas estou presa olhando fixamente minúsculas linhas azuis
se cruzando e tecendo seu caminho através da pele do homem.
O veneno está funcionando.
Anos de esgrima estão servindo bem a Ferrick, enquanto ele
levanta sua florete para evitar o golpe que se aproxima. Embora a
espada de seu oponente seja mais pesada e mais ameaçadora,
Ferrick está em vantagem com sua velocidade. Ele puxa a espada e
enfia a lâmina com força no peito do oponente. O homem recua,
segurando o sangue que suja sua camisa. Não é uma ferida mortal,
mas é suficiente para doer.
Meu próprio oponente é cheio de linhas e ângulos, afiados de
raiva. A mão da espada treme enquanto a outra sangra na terra. Ele
não conhece nada melhor. Minha magia praticamente grita para ser
usada, e não vou ignorá-la ou reprimi-la por mais tempo. Uma gota
desse sangue jorrando é tudo que eu preciso.
Os carvões na fogueira próxima estão esfriando, mas com sorte
ainda estão quentes o suficiente para queimar.
Surpreendo meu oponente quando me agacho rapidamente e
varro a adaga de osso em sua poça crescente de sangue. Seus
movimentos são lentos e desequilibrados; se ele quer sobreviver,
ele precisa se apressar e envolver o braço. No entanto, ele não se
move. Seus olhos mergulham na lâmina dos ossos, depois para o
chão onde jaz a garota morta a que pertencia. Ele se lança para
mim com um rosnado.
Eu bato com força no chão. Meu ombro bate em uma pedra
irregular e uma dor aguda me domina. Eu odeio gritar, mas a dor me
pega de surpresa.
— Amora! Levante-se! — Vataea grita, depois suspira. Seu
oponente a atinge na bochecha com o punho de sua arma. Vataea
não grita, mas rosna. Estou presa no chão embaixo desse homem,
mas ela não pode me ajudar. Ninguém pode.
— Você a matou! — A respiração do homem é azeda e ele
cheira a sangue. Sua pele fica mais pálida a cada segundo.
Enquanto ele se esforça para se sentar e manter os olhos abertos,
seu aperto não vacila mais sobre a adaga. Ele a levanta sobre a
cabeça e aponta a ponta para o meu peito.
Ele tem o dobro do meu tamanho e é pesado demais para
derrubar, mas perder não é uma opção.
É ele ou eu, e eu me recuso a morrer nesta ilha.
Eu levanto meus quadris com todo o poder que tenho, tentando
deixá-lo ainda mais desequilibrado. Ele se inclina para a esquerda e
eu uso o ímpeto para avançar e apunhalar minhas duas lâminas em
suas coxas.
Ele não grita. Em vez disso, ele engasga com um soluço e o
som me confunde. A lâmina cai de suas mãos enquanto eu arranho
meu caminho para uma posição.
Minha magia vibra e se esvai quando o som de sua dor penetra
nas minhas memórias. Estará lá mais tarde, tenho certeza,
esperando por mim quando fecho meus olhos hoje à noite. Mas se
há uma coisa que aprendi com meu desempenho em Arida, é que
não posso me deixar distrair enquanto estiver usando minha
mágica.
O veneno e a perda de sangue tornaram meu atacante inútil, e
Ferrick, Bastian e Vataea estão segurando os outros. Eu corro
primeiro para Bastian. O ombro e o peito estão cortados, mas
nenhuma ferida é profunda. Ele pressiona algo na minha palma
quando passo, é quase um punhado inteiro de cabelos. Fecho o
punho em torno dela, acolhendo a magia que vibra para a vida, me
aquecendo.
O homem que luta com Bastian me observa cautelosamente
enquanto eu caminho para a fogueira. Bastian usa sua distração
para derrubá-lo no chão e se jogar em cima.
— Última chance de se salvar. Onde está Kaven? — Bastian
pressiona a ponta da lâmina contra o pescoço grosso do garoto.
Ele cospe um maço de sangue para o lado. — Você realmente
acha que isso vai me assustar?
Bastian pressiona sua lâmina mais fundo. — Provavelmente
não, mas ela deveria. — Ele aponta para mim. Fico a vários metros
de distância, na beira da fogueira.
O homem de pescoço grosso olha para mim, depois para os
cabelos em minhas mãos. Realização arregala os olhos. — Não
pode ser. Não tem jeito.
— Oh, há uma maneira. — Abro minha bolsa e tiro vários dentes
de dentro. Envolvo o cabelo em volta dele e seguro o embrulho
diretamente sobre as brasas ainda quentes. Gotas de suor cobrem
as sobrancelhas do garoto.
Os outros desaceleraram, provavelmente querendo descobrir do
que se trata a explosão desse garoto.
Ferrick aproveita a oportunidade e apunhala seu florete na
perna de seu oponente, derrubando-o no chão enquanto Vataea
apressa a garota e envolve as mãos pelos cabelos escuros de seu
oponente. Ela abaixa a adaga, cortando metade do cabelo de um
lado. Rapidamente, Vataea se aproxima de mim e a oferece com um
sorriso malicioso. Pego o cabelo, mas ainda não o uso.
— Eu sou Amora Montara —, digo a eles quando os carvões
começam a queimar as costas da minha mão. — Eu sou de Arida.
Eu sou a princesa do reino de Visidia, a futura Alto Animancer. E se
você optar por ficar no meu caminho ou não, eu restaurarei esta ilha
para o reino.
Não penso na garota morta no chão ou na maneira como o
garoto gritou quando dei o golpe final. Eu não penso em nada. Estou
no controle total quando abro a palma da mão e deixo o cabelo do
homem e um punhado de dentes caírem nas brasas trêmulas.
O homem embaixo de Bastian joga a cabeça para trás e uiva de
dor. Ele se dobra e agarra o rosto, arranhando a boca em um
esforço para arrancar os dentes abrasadores. Os carvões ainda
queimam, mas como o fogo não está aceso, eles queimam
lentamente, em vez de queimarem tudo de uma vez.
—Isso é magia da alma — digo enquanto o homem sob Bastian
treme e engasga violentamente. Sua boca sangra com o desespero
que ele a agarra. É sangue mais do que suficiente para eu acabar
com sua vida, mas ele está muito distraído com os dentes que
queimam lentamente suas gengivas para ainda ser uma ameaça.
Agora, só resta um oponente – a garota cujo cabelo eu seguro.
Ela observa o homem gritando diante dela com olhos redondos e
medrosos.
— Este é um gosto muito, muito pequeno, das coisas que posso
fazer — eu a aviso. — Eu posso derreter seus ossos, destruir seus
dedos – um por um – apodrecer seus dentes, seus olhos, sua
língua. Eu sou um monstro, e se você ficar no meu caminho, eu vou
destruí-lo. — Quero dizer cada palavra que passa pelos meus
lábios, e essa garota sabe disso.
— Só vou perguntar uma vez — eu digo. — Onde está Kaven?
Ela abre a boca para falar, mas nunca tem a chance de dar uma
resposta. Há um farfalhar nas árvores e o estalar silencioso de
galhos sob as botas.
O aperto de Bastian em sua espada aumenta. Seus ombros
enrijecem quando a figura surge, e a respiração foge dos meus
pulmões. Em algum lugar ao lado, Vataea e Ferrick respiram fundo,
surpresos.
Está claro para todos nós quem é esse homem, porque ele se
parece com uma versão mais velha de seu irmão. Mas onde Bastian
carrega o beijo do sol em sua pele, Kaven foi criado e alimentado
pela luz da lua.
Ele é exatamente o que eu esperava, e, de alguma forma,
completamente diferente. Enquanto ele se parece com Bastian no
rosto, ele é mais alto e flexível onde Bastian é largo. Ele não parece
um aventureiro ou tem os mesmos músculos enrolados que dão a
Bastian sua força em uma luta de espadas. Seu queixo é elevado e
orgulhoso; se eu não o conhecesse, diria que ele quase parece um
nobre. Tudo nele parece intimidador.
Fios grisalhos viajam de suas raízes e polvilham seus cabelos
negros e escuros, e suas maçãs do rosto batem em seu rosto
magro, afiado o suficiente para cortar vidro. Mas não é até seus
olhos encontrarem os meus que eu curvo, a intimidação se
instalando em meus ossos pela frieza de seu olhar. Eu posso
praticamente ver o cálculo por trás de seus olhos cinza-aço, e
entendo imediatamente que Kaven não depende de lâminas para
vencer suas batalhas. Sua mente é sua arma.
Ele penteia os dedos longos e ossudos pelos cabelos e no pulso
há dezenas de grossas pulseiras de couro, manchadas de manchas
marrons. Lembro-me da história de Bastian – é ali que ele guarda o
sangue daqueles a quem amaldiçoou, como um troféu. É onde ele
mantém não apenas seu poder, mas também a maldição de Bastian.
A chance de quebrar a conexão de Bastian com Keel Haul e
restaurar sua mágica está bem ao seu alcance. Provocando-nos.
Minhas pontas dos dedos ficam dormentes quando uma onda
de frieza me atravessa.
— Quatro intrusos — diz Kaven, com uma voz
surpreendentemente calma — e você não podia cuidar deles?
A presença frígida de Kaven é suficiente para o homem sob
Bastian parar de gritar, e para a garota de cabelos escuros cair de
joelhos em um arco, apesar do perigo iminente. Em sua distração,
Bastian aproveita a oportunidade para enfiar o punho da espada na
parte de trás da cabeça dela. A garota engasga com um suspiro
quando tropeça para frente, com os olhos revirando quando
desmaia.
Bastian não perde tempo. Ele se abaixa ao meu redor, com o
peito arfando enquanto arqueia a lâmina e a leva à pele da garganta
de Kaven. A raiva está em sua mandíbula. Os ombros dele. As
respirações dele. Bastian alcança o cinto de Kaven e desarma a
adaga embainhada lá, jogando-a na terra.
Se ele está incomodado com a lâmina na garganta, Kaven não
mostra. Seu sorriso é lento e zombador. — Bem-vindo ao lar, irmão.
Eu nunca imagineii que você mostraria seu rosto aqui de novo,
especialmente com a princesa a reboque. — A voz de Kaven é
predatória, mas Bastian não vacila.
— Irmão? — Ferrick ecoa baixinho, com raiva nos olhos. —
Você nunca me disse que Kaven era seu...
— Acabei de descobrir — eu sussurro para ele. — E agora não
é a hora. Não era meu segredo compartilhar.
Bastian cutuca a garganta de Kaven em aviso. Nenhum de nós
se move para atacar, dando a Bastian esse momento com seu irmão
para ver o que pode acontecer.
— Zudoh não é minha casa há muito tempo. Você se certificou
disso. — Há um tremor na voz de Bastian. — Veja o que você fez na
nossa ilha. Para o nosso povo. Isso precisa parar; quebre minha
maldição e desista, ou eu vou acabar com você aqui.
Kaven levanta o queixo mais alto, e a lâmina de Bastian corta
mais fundo. Todo movimento que ele faz parece preciso e calculado,
como se sua mente estivesse constantemente trabalhando três
passos à frente de suas palavras. — Você quer sua magia de volta?
Depois de todos esses anos, você nem saberia o que fazer com
isso. Isso te comeria vivo.
— Talvez sim — diz Bastian enquanto olha para as dezenas de
grossas tiras de couro tecidas em torno dos pulsos de Kaven com
fome. — Mas é hora de recuperar o que me pertence.
O canto direito dos lábios de Kaven se contorce levemente para
cima. Eu vi Bastian fazer a mesma expressão e, embora seja
encantador para ele, faz Kaven parecer perigoso. — E como você
pretende fazer isso
— Zudoh retornará a Visidia. — Eu mantenho minha mandíbula
alta, mais feroz do que sinto. — Dê a Bastian a magia dele, quebre
a maldição e abandone sua posição como líder de Zudoh. Esta ilha
está morrendo. Se você não nos deixar entrar agora, será tarde
demais.
Kaven zomba. É um som suave, mas envia arrepios perigosos
na minha espinha. — Eu sou mais animancer do que você jamais
será. Vocês Montaras afirmam ser donos de almas, e ainda assim
nem entendem sua própria mágica. Você não se pergunta por que
isso desafia você constantemente? Por que ele tenta consumir
você?
— Eu sei o porquê — eu bufo. — Eu sei tudo sobre o animal
que o rei Cato venceu.
As próximas palavras de Kaven são ditas casualmente. Tão
confiantes e seguros de si que me congelam. — Você tem certeza?
— Ele pergunta, estreitando os olhos enquanto procura meu rosto.
Lentamente, para não assustar Bastian a usar sua lâmina, Kaven
aponta para trás e em direção a uma cachoeira imponente que mal
consigo ver à distância. — Tudo o que você precisa saber sobre sua
família, a verdade por trás de sua magia, o conhecimento do que
eles fizeram nesta ilha e em Visidia, está lá.
Bastian balança a cabeça em aviso, mas a magia dentro de mim
pulsa de fome enquanto Kaven gesticula.
— Foi para isso que você veio, não é? — Ele pressiona. —
Respostas? Deixe-me mostrar a verdade; não há necessidade de
me tornar seu vilão. Traga suas armas, se quiser; somente nós
cinco iremos. O resto de vocês... — Ele olha para os outros, a
maioria deles sangrando no chão ou já mortos, e respira fundo. O
sangue sai de sua garganta, onde a lâmina de Bastian ainda treme.
— Você não tem utilidade para mim.
Sua alma é uma massa rodopiante de sombras e roxos
profundos e descascados. As peças começaram a lascar e
desaparecer, e eu sei que não confio nele nem mesmo
remotamente. Mas ele está certo sobre uma coisa: estou cansada
de procurar respostas. Parti nesta jornada para provar ao meu povo
que sou o futuro governante de que eles precisam. Mas se eu não
souber a verdade de Visidia e sua mágica, isso nunca será possível.
Aproximo-me de Bastian e agarro seu antebraço. — Largue sua
arma — digo a ele. — Eu preciso ver isso por mim mesma.
Quando ele hesita, eu puxo seu braço para trás novamente até
que ele abaixa a arma para o lado. — Não faça isso, Amora — ele
grita quando Kaven limpa o pescoço e se afasta a uma distância
segura. — Você está caminhando direto para a barriga da besta.
— Tudo bem — digo a ele, pensando no sombrio enrolado
dentro de mim, esperando para atacar. — Eu sei como lidar com
bestas.
Kaven sorri para o irmão. — Siga-me, então.
Com tanta terra queimada, não demora muito para
atravessarmos o terreno plano e arborizado. O ar frio pica a minha
pele, e Bastian estremece. Embora sua doença esteja piorando, ele
fica ao meu lado quando nos aproximamos da cachoeira,
movimentos rígidos e tensos. Sua mão nunca se afasta do punho da
espada.
Há uma pequena caverna escondida atrás da água barulhenta,
escondida para quem não a procura especificamente.
Ferrick hesita enquanto aperta os olhos. As pedras mal se
abrem; não há como dizer quão pequeno o espaço pode ser, ou o
que pode nos esperar lá dentro.
— Podemos ter opiniões opostas, mas não sou um homem
inflexível — diz Kaven. — Se você deseja as respostas, basta
entrar. E talvez, quando surgir, você entenderá o que eu quero para
este reino. Mas só há espaço para um, princesa. Você terá que
confiar que os outros estarão seguros aqui fora.
Eu praticamente bufei. Seguro não é algo que eu associei a
esse homem.
— Como saberemos que não é uma armadilha? — Pergunta
Bastian. — Que ninguém está esperando por ela lá dentro?
Kaven acena com a mão para mim, arqueando uma
sobrancelha conhecedora.
— Eu não sinto nenhuma outra alma — respondo sua pergunta
sem palavras com um movimento da minha cabeça. — Somos
apenas nós.
Mas é verdade? A magia dentro de mim está completamente
desperta, contorcendo-se e ansiosa, me levando em direção à
caverna com uma força que eu nunca soube possuir. Dentro dela há
algo que minha mágica quer mais do que qualquer outra coisa.
— Cuidado — diz Vataea. — Há algo escuro dentro dessa
caverna. — Ela acaricia o punho de sua adaga e olha para Kaven o
tempo todo. Ele arqueia uma sobrancelha fina, mas ela se recusa a
desviar o olhar. Kaven está sozinho; contra nós quatro, eliminá-lo
deve ser fácil. No entanto, ele não parece preocupado. Ele fica de
braços cruzados e sua postura vagarosa.
— Você vai ficar bem? — Pergunto a Bastian, lendo a
ansiedade enrugada nas rugas na testa.
— Eu vou ficar bem — diz ele ferozmente. — É com você que
estou preocupado.
— Eu vou ficar bem. — Respiro fundo e levanto o queixo.
Embora os outros não pareçam convencidos, afastei minha atenção
deles e segui em frente. — Se acontecer alguma coisa, grite por
mim.
A risada de Kaven não passa de um silencioso suspiro de ar. —
Nada vai acontecer até você voltar, você tem a minha palavra.
Na borda da caverna, viro meu ombro para roubar mais uma
olhada em todos eles. — Como eu disse, grite por mim.
CAPÍTULO VINTE E NOVE

A escuridão da caverna é ofuscante. Um cheiro de mofo penetra no


ar, espesso o suficiente para me fazer engasgar quando entro.
Embora a entrada não seja grande o suficiente para acomodar
uma pessoa, ela se amplia ainda mais enquanto me aventuro,
expandindo-se para um espaço circular grande o suficiente para
esticar os braços. O único som é o tamborilar suave das gotas de
água que caem no chão, e a única luz é de estranhos insetos azuis
translúcidos que se escondem nos cantos distantes do teto irregular
da caverna. Um nevoeiro de luz emite de cada um, iluminando o
espaço traseiro o suficiente para eu ter um vislumbre.
Lajes de madeira murcha cobrem uma pequena porção do
chão. Cobertores de pele são jogados em montões ao lado,
brilhando com as novas gotas de água. Quando me aproximo,
percebo que é de onde vem o cheiro de mofo e torço o nariz. Mas
eu não me afasto.
Em vez disso, me agacho para inspecionar os itens estranhos
espalhados na madeira apodrecida. Pedaços de metal afiados e
facas improvisadas são revestidos com grossas camadas de sujeira.
Estreito meus olhos em uma faca em particular, enferrujada pelo
sangue e pelo tempo, e a mágica bestial dentro de mim pulsa de
desejo. Tento ignorar a magia que roe a ponta dos meus dedos, me
atraindo cada vez mais. Sei o que é sem dúvida.
Esta lâmina é uma das lendas e tradições. Um que salvou
Visidia; aquela que a criou.
Jurei por esta lâmina e pelo seu dono uma e outra vez – a faca
de esfolar de Cato.
Esqueço como respirar. Como ficar de pé. Caio de joelhos e
coloco minha mão em cima dela.

— Eu não posso fazer isso! — O homem se estala.


Nunca vi o primeiro rei, nem mesmo em retratos.
O rei Cato governou séculos atrás, e embora tudo o que
tenhamos que lembrar dele sejam as histórias que foram contadas
desde que ele estabeleceu a monarquia, sei que sem dúvida é ele a
minha frente.
Sua pele é uma azeitona clara e sua constituição muito mais
magra do que a grande figura que eu imaginava. Ele senta de
pernas cruzadas na minha frente, apenas meu corpo não é meu.
Esse corpo tem uma pele com várias tonalidades mais claras que a
minha, semelhante à de Cato, e seu corpo é pequeno. Me conheço
como Amora, mas também sou essa jovem, vivendo seus
pensamentos e memórias. Tenho uma abundância de cachos
escuros entrançados em uma trança elegante, embora alguns deles
tenham escapado, enrolados atrás das minhas orelhas ou
abraçando minha testa e bochechas.
Eu me deixei afundar cada vez mais fundo na mente dessa
mulher, até que seus pensamentos sejam meus.
— Você deve relaxar — digo a ele. As palavras que escapam
dos meus lábios são calmantes, embora eu não tenha controle
sobre elas. — Maldição mágica não é tão difícil quanto você pensa,
prometo. Apenas me dê sua mão.
Cato concorda com a cabeça, mas linhas de preocupação se
encaixam profundamente entre suas sobrancelhas.
Coloco a mão dele no meu colo. — Pense no que você quer que
os outros vejam. Pense profundamente, como se fosse uma
lembrança. — Pressiono uma agulha no dedo dele. Uma pequena
gota de sangue borbulha na superfície, e viro a mão de Cato para
pressionar o dedo contra uma pedra colocada diante de nós no chão
de pedra. Esfrego o sangue nele.
Os olhos de Cato se fecham quando ele se concentra, apenas
afastando a mão depois de um momento hesitante.
— Como você se sentiu? — Eu pergunto, e os lábios de Cato se
torcem em uma pequena carranca.
— Não funcionou. — Ele olha cautelosamente a pedra. —
Funcionou?
Toco a pedra, esperando para ver se uma maldição me envolve.
Quando nada acontece, encho meu rosto com calor e mantenho um
pequeno sorriso nos lábios, enquanto meus ombros caem, sabendo
que isso o perturbará.
Não preciso dizer nada para Cato entender. Ele geme, os dedos
correndo pelos cabelos castanhos e sobre o rosto enquanto ele se
levanta.
— Não é nada para ficar chateado! — Eu insisto. — Muitas
pessoas exercem apenas uma mágica, não se frustre. — Mas a
verdade é que suas frustrações são algo que eu nunca vou
entender.
Quando eu era jovem, descobri que tinha a capacidade de ver
almas, uma mágica que ninguém mais havia descoberto. E aprendi
que também tinha uma afinidade com outras mágicas, como a
magia amaldiçoada e a capacidade de curar.
Por semanas tenho tentado ensinar magia amaldiçoada a Cato,
mas a única mágica que ele foi capaz de aprender é a que ensinei a
ele quando éramos crianças – magia da alma. Naquela época,
mantivemos a magia entre nós dois, um vínculo compartilhado entre
melhores amigos. Ele adorava a idéia de uma mágica que só nós
dois praticássemos, e me implorou para nunca ensinar mais
ninguém. Mas nos últimos meses, nossa mágica deixou de ser
suficiente para ele. Agora ele anseia mais.
Tento colocar minhas mãos no topo do braço de Cato, mas ele a
afasta com um grunhido.
— Diz alguém com muita magia — zomba Cato. — Se uma
mulher pode dominar mais de uma mágica, não faz sentido eu não
poder também.
Recuo como se fosse atingida, confusão torcendo meu rosto.
— Você diz mulher como se fosse uma palavra suja — digo a
ele bruscamente. — Lembre-se de que fui eu quem lhe ensinou
magia da alma, Cato. Fui eu quem a descobriu.
Cato olha para mim e seus ombros caem. Ele dá um passo à
frente, coloca meu rosto em suas mãos e beija minha testa. Minha
pele esquenta com a suavidade de seus lábios e relaxo nele.
— Sinto muito, Sira. — Sua voz suaviza vários tons quando ele
coloca a testa na minha. — Você sabe que eu não quis dizer isso.
Só quero que as coisas sejam melhores para nós.
— Estamos bem dessa forma. Não precisamos de muita magia
para ter uma vida boa — sussurro gentilmente.
Embora eu queira dizer mais, seu queixo fica tenso. — Magia é
poder, Sira. É respeito. Como posso te dar uma vida boa sem ela?
Coloco minhas mãos na bochecha de Cato, acariciando
gentilmente meu polegar sobre sua barba por fazer. — Você se
preocupa demais, meu amor. — Ofereço-lhe um beijo gentil antes
de se afastar em direção a uma porta, sabendo que ele precisa de
um tempo sozinho para lidar com sua frustração. — Estamos bem
agora e juntos apenas cresceremos. Não adianta pensar nas coisas
sobre as quais não temos controle.
Fui sincera, mas Cato não sabe que ainda posso ouvi-lo quando
saio.
— Sem controle — ele resmunga baixinho. — Veremos sobre
isso.

As margens estão inundadas de pessoas, algumas pescando e


outras subindo em árvores gigantes, rindo o tempo todo. Meu
coração pula na minha garganta quando um jovem garoto sobe em
uma das árvores mais altas apenas para mergulhar direto. Mas
antes que ele esteja em qualquer lugar perto do chão, ele sopra
uma rajada de ar na areia e o ar parece engrossar embaixo dele
como uma almofada. Ele corre para encontrá-lo, fazendo-o recuar
mais alguns metros. Mas quando ele volta, ele retarda seu corpo
com a magia do tempo. Ele ri, sacudindo o ar, movendo-se tão
lentamente que é como se ele flutuasse.
Sua pele brilha com suor quando o sol bate nele. Quando ele
finalmente aterrissa no chão, ele luta pela árvore mais uma vez.
Abaixo dele, uma pequena criança loira tenta copiá-lo, respirando ar
a seus pés. Ela não fica mais alta que um pé no chão.
Ando pelas belas pedras e conchas em torno de finas peças de
couro enquanto as crianças brincam. Pico meu dedo com uma
agulha, aliso o sangue no couro enquanto coloco uma maldição e o
deixo secar. Estou fazendo colares amaldiçoados para as meninas
locais, para mantê-las a salvo de qualquer pessoa com más
intenções. Enquanto me debruço sobre o meu trabalho, três
crianças se reúnem ao meu redor, um garoto ruivo e duas meninas
gêmeas com pele castanha e cachos bem enrolados – as meninas
de Lani e o filho de Markus. Eles se deram olhos de cores vivas –
rosa, roxo e dourado – e riram enquanto cobriam meu cabelo com
um lindo tom de lilás. Não me importo de deixá-los se divertir, rindo
enquanto brincam sobre que tom tentar em seguida. Um dos pais
deles pode mudar a cor para mim mais tarde.
Na grama à minha frente, Cato descasca um peixe cujas
escamas ainda brilham do mar. Ele está de mau humor hoje, então
tento não prestar muita atenção nele. Enquanto ele continuamente
direciona seu foco para mim, seus movimentos se tornando
progressivamente mais irritados até que eu esteja muito distraída
para fazer qualquer coisa além dar a ele minha atenção.
Quando o faço, ele brilha. — Está tentando me fazer sentir mal
comigo mesmo?
Vacilo, assim como as crianças atrás de mim. Gentilmente,
pressiono um dos ombros da garota e os empurro com a promessa
de brincar com eles mais tarde.
— Claro que não. — Olho para ele com firmeza. — Por que
acha isso?
Cato enxuga o suor que se acumula em seu pescoço. — Porque
você pode vender seus amuletos e proteções amaldiçoados,
enquanto tudo o que tenho é a capacidade de pescar. Eu já sei que
você é capaz de fornecer mais do que eu posso, então por que você
insiste em esfregar na minha cara?
Pressiono meus lábios e expiro um suspiro suave. — Não é uma
competição. Eles são apenas pequenos feitiços de proteção. Você é
quem está nos alimentando e seus peixes também ganham mais
dinheiro. Quase ninguém está interessado nos meus feitiços
amaldiçoados.
Meu estômago revira ao ver os colares e pulseiras semi-
acabados na minha frente. As conchas que cobrem o chão são
lindas, apenas esperando para serem amaldiçoadas. Eu tinha
planejado fazer dezenas deles, mas agora mal consigo olhar para
eles, sabendo o quanto o aborrecem.
Cato não diz nada. Ele apenas olha por um momento antes de
retornar ao seu trabalho. Continuo com minhas maldições,
passando um dedo sobre o couro enquanto contemplo minhas
palavras.
— Aconteceu alguma coisa? — faço minha voz terna, do jeito
que ele gosta. — Eu fiz alguma coisa? Não pretendo bisbilhotar,
mas você parece estar nervoso ultimamente, e quando vi um
vislumbre de sua alma...
Cato congela. A cabeça dele vira pra mim, seus olhos verdes
como adagas cruéis. Eu recuo.
— Concordamos em nunca ler a alma um ao outro. — Cada
palavra é enunciada, vazando veneno vicioso.
Uma mulher pálida, queimada pelo sol, usando magia para fazer
uma rede flutuar e para manter as águas paradas, vira-se para olhar
para Cato. Não a reconheço, embora reconheça um dos homens
que percebe o que está acontecendo e dá um passo à frente.
— Está tudo bem aqui, Sira? — Sua voz é um calmante, cheia
de preocupação paterna. As rugas se enrugam em torno dos
quentes olhos âmbar que se fundem em sua pele marrom escura
quando Basil avalia a situação, e minha pele esquenta de vergonha.
— Está tudo bem, Basil — resmunga Cato. — Você não tem
bebês para curar?
Cerro minhas mãos em punhos, odiando que ele fale com
alguém com quem me importo tão cruelmente.
Basil ignora o comentário sarcástico, olhando para mim com
expectativa.
— Está tudo bem — murmuro rapidamente, porque não quero
arriscar que Cato fique mais chateado. — Cato ficou um pouco
estressado.
Basil não parece convencido, mas assente da mesma forma. —
Fico feliz em ouvir isso. Que tal deixá-lo resolver um pouco desse
estresse, então? Se você ainda está pensando em tentar sua
mágica de cura, Sira, pode vir sentar-se conosco por um dia.
Os lábios de Cato se torcem, mas ele não desvia o olhar do
peixe. Recolho minhas coisas com um aceno rápido. — Duvido que
seja bom, mas acho que vale a pena tentar.
Essas palavras são apenas para o benefício de Cato, então ele
não se sente pior com sua incapacidade de aprender outras magias.
Mas a verdade é que as palavras de Basil acendem um forte desejo
dentro de mim.
Durante toda a minha vida, magias de todas as variedades me
chamaram, abrindo-se para a minha exploração. Embora eu tenha
sido capaz de ensinar mágica de alma a Cato, ele não faz ideia da
extensão da magia que conheço ou das outras que pretendo
aprender.
E porque o amo, nunca direi a ele.
Basil sorri e me guia para frente, pelo caminho que leva à
cidade principal de Arida.
— Sabe que não precisa suportar esse homem — ele sussurra
depois de um longo tempo de silêncio, mantendo a voz baixa. —
Você merece o melhor.
— Estou bem — asseguro a ele, como se repetir isso várias
vezes, de alguma forma, tornasse realidade. — De verdade. Cato
está passando por um momento difícil. Desde que começamos a
conversar sobre casamento, tudo em que ele parece pensar é em
como construir um futuro melhor para nós. Ele sente que as
pessoas o respeitarão se tiver mais magia. Ele ainda acha que a
sua magia da alma é muito fraca. Estou preocupada que talvez o
tenha pressionado demais.
Basil aperta o lábio inferior, surpreso. — Não há vergonha em
poder ler a alma. Você foi a primeira a descobrir essa mágica, Sira.
Deveria estar orgulhosa disso.
Inclino a cabeça em um pequeno aceno. — Estou, prometo.
Cato ficou obcecado em aprender algo novo, mas nada está
funcionando. Isso o arruinou, fazendo-o se afastar de mim. Estou
preocupada com ele há semanas, então na outra noite dei uma
olhada em sua alma...
Basil acena. — Você viu alguma coisa?
Enrolo meus braços firmemente em torno de mim, desejando
não ter que me lembrar das imagens. Um fino véu de suor reveste
minha pele enquanto calafrios percorrem minha espinha.
— Está apodrecendo — digo, mal conseguindo sequer um
sussurro. As palavras afundam meu estômago, fazendo-o queimar.
— E está piorando a cada dia. Pedaços estão caindo, como se
estivesse desaparecendo. Nunca vi nada parecido.
Basil estica a mão macia e enrugada para agarrar a minha.
— Cuidado — ele avisa. — Temo que nada de bom venha dele.

Tarde da noite, acordo e vejo que Cato não está dormindo perto de
mim e a porta do nosso quarto de hóspedes ficou entreaberta. Estou
tentando silenciosamente aumentar a distância antes de se agachar
para espiar dentro.
O espaço diante de mim é escuro, livre até da menor lâmpada a
óleo ou de uma janela aberta para permitir o brilho da lua.
Enquanto meus olhos se ajustam, vejo a figura de ombros
largos de Cato sentada no chão. Ele está de costas para mim, e
quando silenciosamente abro a porta mais uma fração, a pequena
criatura à sua frente fica clara – um coelho.
Ele sacode ferozmente dentro de sua gaiola, encolhendo-se no
canto quando Cato chega lá dentro. Na mão está a mesma pequena
lâmina que ele usava antes para descascar peixes, e os guinchos
do coelho são ensurdecedores quando Cato a joga na perna da
criatura, tirando sangue. Ele arranca um fio de pêlo da criatura.
Cubro minha boca, seja para impedir-me de gritar ou vomitar,
não tenho certeza.
Cato cobre o pêlo de coelho arrancado com o sangue da faca,
segura-o entre os dedos e depois o mergulha em uma pequena
tigela de água ao lado dele.
Nunca antes ouvi um som como o coelho faz. O engasgar
borbulhante de uma criatura lutando para respirar, tentando
descobrir por que está se afogando quando nada além de ar o
envolve. Faz um grito desesperado, quase infantil, que faz minhas
mãos tremerem.
Abro a porta e chuto a tigela de água do outro lado da sala, e
Cato se levanta de surpresa. O coelho respira desesperadamente,
tossindo e tremendo enquanto corro para a gaiola e a coloco em
meus braços.
— Os deuses não nos dão essas criaturas para que possamos
torturá-las! — Minhas respirações são agudas e rápidas, e não
consigo parar de tremer. — O que você estava pensando? — Dou
um passo para trás em direção à porta, medo e raiva brigando no
meu peito.
Cato sorri. É uma das expressões mais alegres que eu já vi, e
parece errada em seu rosto. Até agora, eu não tinha notado quanta
vida lhe foi drenada; sua pele é pálida e opaca e seu corpo murcha,
deixando seu rosto tenso e afiado. Quantas noites ele estava se
esgueirando para este quarto, trancando-se no escuro?
— É magia — diz Cato, quase tonto. Dou mais alguns passos
em direção à porta. O pobre coelho ainda está tremendo dentro de
sua gaiola.
— Que magia? — Embora o instinto me faça querer correr, o
amor por esse homem que conheço desde criança me prende no
lugar.
Tenho que pelo menos ouvir a sua explicação.
— Magia da alma — Cato sussurra. — Minha magia. Decidi que
se não pudesse aprender mais mágicas, teria que mudar o que já
tinha.
Eu desenho a magia da minha alma ao meu redor, confortada
pelo calor. Sua leveza. Dá-me as boas-vindas, inundando-me de
calor quando a alma de Cato se abre para mim, revelando uma
brancura gritante. A visão rouba meu fôlego, pois quase não resta
cor; quase nenhum vestígio de que uma alma estivesse lá.
— O que aconteceu com você? — Minha voz falha. Aperto a
gaiola mais perto do meu peito, como se de alguma forma me
mantivesse de pé.
Quando Cato fecha o espaço entre nós, faço de tudo para
impedir que minhas pernas dobrem. — Fiz isso por nós — diz ele.
— Para você, para que você não tenha que se envergonhar de mim.
Para que possamos ter uma vida melhor juntos.
Balanço a cabeça, alguns cachos soltos se soltando da minha
trança grossa. — Nunca fiquei envergonhada, nem um pouco. Cato,
sua alma...
— Confie em mim. — Sua voz é aguda e surpreendentemente
séria. Ele tenta estender a mão, como se quisesse pegar a minha,
mas o coelho grita de horror quando ele se aproxima. Eu recuo,
contraindo a garganta.
— O que você fez com a sua magia da alma?
Cato responde a pergunta com um floreio de suas mãos. —
Essa mágica sempre esteve dentro de nós; Estou simplesmente
escolhendo olhar para isso de uma maneira diferente. Sira, você
disse antes que me ama. Se você não estava mentindo sobre isso,
deveria confiar em mim. Confie que vou arranjar um novo modo de
vida para nós.
Tento ignorar meu medo. Este é Cato, afinal. Cato, que estava
com o rosto vermelho e tímido quando compartilhamos nosso
primeiro beijo nas margens de Arida, anos atrás. O garoto que
escapei para visitar enquanto crescia, apenas para que pudéssemos
nos abraçar e fofocar sob o luar. Ele era o mesmo homem com
quem eu dividia minha cama todas as noites e que me acordava
com uma chuva de beijos todas as manhãs.
Mas ele não é mais essa pessoa e não é há algum tempo.
— Confio em você — digo, embora seja a maior mentira que já
contei.
— Bom. — Cato estica a mão para acariciar o polegar na minha
bochecha, e tento não me encolher sob o seu toque. — Por
enquanto, você e eu somos os únicos que precisam saber sobre
isso.

Basil é o quarto a morrer esta semana.


Se não fosse pelo sangue que cobria seus lábios e queixo, ele
ficaria calmo aqui na areia; quase como se estivesse dormindo.
Quase como se acordasse a qualquer segundo e me provocasse
por encará-lo.
Atrás de mim, Cato faz um show do cadáver do meu amigo,
desfilando e dizendo a quem quiser ouvir: — É o que acontece com
aqueles com múltiplas magias; os deuses estão nos punindo por
nossa ganância!
Doze morreram até agora e, como a ilha tem medo, as pessoas
aceitam suas palavras.
Mas eu sei a verdade. Os deuses não são os responsáveis por
essas mortes – Cato é.
Lembro-me da noite em que o confrontei. Como eram seus
olhos e percebi que não havia mais uma pequena faísca do garoto
que eu amei deixada neste homem perverso e insensível.
— Morto porque sua magia o atacou? Você realmente espera
que eu acredite nisso? — Eu gritei.
Sua resposta foi agarrar meu rosto em suas mãos e enfiar os
dedos na minha pele. Meus olhos se juntaram com dor quando suas
unhas arranharam em mim, mas não o suficiente para deixar uma
marca. Nunca o suficiente para deixar uma marca.
— Você vai ficar de boca fechada — ele disse. — Ou juro que
destruirei toda alma em Arida.
Esse foi o dia em que o primeiro corpo foi encontrado, uma
semana depois que eu o peguei com o coelho. Eu desejo com tudo
em mim que eu tenha feito mais para detê-lo, mas por mais que eu
procure, não consigo encontrar nenhuma luta dentro de mim. Ele
levou tudo.
— Temos que parar com isso! — Não faço ideia de quem fala,
porque não me viro para olhar. Fico olhando para Basil, esperando
ele abrir os olhos. Esperando ele respirar. Nem ouço Cato se
aproximar, embora eu tire a minha mão dele quando ele tenta pegá-
la.
— Tenho uma idéia. — Ele pega minha mão novamente, dedos
beliscando com força em minha pele para que eu não possa me
afastar. — Sira pode tirar sua magia!
— Do que você está falando, pelo sangue dos deuses? — Não
me importo que minhas palavras sejam duras. — Não, não posso.
Embora o rosto de Cato não se torça de surpresa, ele azeda.
Ele educadamente se desculpa dos outros, enfiando as unhas nas
minhas mãos, forçando-me a segui-lo até estarmos longe o
suficiente dos outros para que ele possa falar livremente.
— Você sempre quis ajudar as pessoas. — Ele diz isso como
uma acusação. — Agora você tem essa chance. Aqueles com
múltiplas magias precisam se libertar do perigo. Pode aprender
todas as magias, exceto uma, Sira.
— Eu não vou.
Ele passa os braços em volta de mim como em um abraço,
embora uma mão dobre meus braços em um ângulo doloroso. O
outro segura minha boca em seu peito, de modo que abafa o som
quando eu choro.
— Você pegará a magia deles. — Seu rosnado vem com um
sorriso. Se alguém se virasse para nós, poderia pensar que ele
estava sendo gentil. — Eu não ligo qual, deixe eles escolherem.
Mas você vai pegar, ou os deuses te ajudarão, farei você assistir
enquanto destruo todas as almas aqui. Agora coloque um sorriso no
rosto, meu amor, e mantenha sua boca fechada.
Com lágrimas nos olhos, eu escuto. O que mais eu posso fazer?

— Tenha cuidado com isso — digo à menina assustada na minha


frente, assim como disse a cada uma delas antes dela — pois esse
encanto sempre guardará parte de sua alma. Quebre isso e você
viverá, mas nunca mais será a mesma.
Mas eu também não sou a mesma.
Por semanas eu obedeço a Cato, usando uma mistura de magia
da alma e magia da maldição para roubar a magia dos outros. Isso
me dá nojo; eu faço isso mergulhando em suas almas e arrancando
metade delas. Então eu amaldiçoo essa metade em um encanto
para eles usarem.
Quando termino, a mãe da garota me puxa para um abraço
apertado que incendeia meu corpo. — Que os deuses te abençoem,
Sira — diz ela, como se eu tivesse salvo sua filha roubando sua
magia de restauração. Rígida, mal consigo concordar. Mas ela está
aliviada demais para perceber, e juntos eles saem correndo pela
porta.
Quando fecha atrás deles, coloco outra pulseira no meu pulso.
Aquela garota foi a última delas. Agora, todo mundo tem apenas
uma única mágica; toda a ilha foi purgada.
Dia após dia, o número de pulseiras de couro em meus pulsos
aumentou – marcadas com o sangue daqueles cujos encantos eu
controlo. O poder sobre tantas almas transformou minha mágica
suave em uma fera fervente e faminta.
Parte de mim quer arrancar as pulseiras da minha pele e
escondê-las da minha vista, mas não posso arriscar que Cato as
encontre. Não vou arriscar que ele ganhe o controle dessas
pessoas, ou o poder que vem com o sangue delas.
Meu coração ficou mais calejado com toda magia que roubei,
enojado com os elogios daqueles que me agradecem por ser
altruísta o suficiente para cuidar deles primeiro, em vez de se
preocupar com minhas múltiplas mágicas. Eles me amam por fazer
isso e elogiam Cato por ter essa idéia e salvá-los de sua morte. Ele
é um rei aos olhos deles, guiando-os para a segurança. E porque a
ilha ainda está em ruínas – porque nosso povo ainda tem medo e
procura orientação sobre como viver com apenas um tipo de mágica
– eles tornam seu título real. E eles me fazem sua rainha.
Estrelas, se eles soubessem. Se eles pudessem dizer o porquê
de eu ter parado de ser capaz de olhar nos seus olhos. Se eles
pudessem sentir a culpa que me atormenta, deixando meus cabelos
grisalhos e secando minha pele.
Se eles soubessem que eu me odeio tanto quanto odeio Cato.
Ele me encontra mais tarde na praia, olhando o oceano e
silenciosamente implorando para me reivindicar.
— É a sua vez — diz ele categoricamente. — É hora de se livrar
de tudo, menos da magia da alma.
Meus olhos piscam para encontrar os dele, gelados e afiados;
sempre soube que esse momento chegaria.
— E se eu recusar?
— Então, vou te matar — diz ele. — Embora eu espero que não
chegue a isso. Nós fomos feitos para isso, Sira. Você deveria estar
atrás de mim enquanto eu governo.
Suas palavras são tão ridículas que eu rio. É um feroz, amargo
som que parece natural demais em meus lábios. Arranho as tiras de
couro em volta do meu pulso.
— Você não pode matar alguém que já está morto — digo
enquanto seus olhos ficam frios. Ele pega minha mão e pressiona a
alça de sua faca de esfolar na minha palma. Deslizo meu polegar
sobre seu aço frio, assentado pela lâmina.
— Eu fiz isso por você — ele rosna — para que pudéssemos ter
uma vida melhor. Você deveria apreciar o trabalho que levou para
eu chegar aqui. Eu não apenas nos trouxe um lar, mas também um
reino.
Quase ri novamente da palavra reino. Borbulha no meu peito,
ameaçando explodir, mas eu o engulo como chumbo. Não há
racionalização com um homem que anseia por nada além de poder.
— Você vai desistir de sua mágica — ele exige. — Agora.
Se eu arrancar metade da minha alma e amaldiçoá-la, não
tenho dúvida de que ele usará esse encanto para garantir que eu
nunca possa quebrar minha maldição ou a de qualquer outra
pessoa.
Mas Cato me controlou por tempo suficiente.
— Por que não posso continuar amaldiçoando a magia? —
Pergunto a ele sem rodeios, abrindo a faca de esfolar.
— Porque então você teria que morar em uma ilha diferente. —
Embora ele solte essa notícia casualmente, as palavras trituram em
mim. — Estamos expandindo o reino. Vou manter um pequeno
grupo aqui em Arida; vinte conselheiros para cada uma das magias,
para ajudar a construir meu reino. Os outros se espalharão para a
ilha que usa a magia que escolheram. Como os dois únicos com
magia da alma, você e eu vamos reinar.
Meu sangue ferve com tanta força que não consigo recuperar o
fôlego. — E as famílias? Se uma criança pratica uma magia
diferente da do pai, você realmente as separaria?
Ele mantém sua mandíbula erguida. — A família pode
permanecer unida. Mas se eles praticarem outra mágica que não a
da ilha em que vivem, teremos que aprisioná-los.
— Você já tirou muito dessas pessoas — eu digo. — tem tanto
medo de ser visto como fraco, que também vai tirar o poder de
escolha deles?
— Não se trata de ser fraco — Ele praticamente cospe as
palavras para mim. — É sobre ser justo. Nunca mais alguém sentirá
que não é bom o suficiente. Não haverá competição. Todos
trabalharão juntos, aprendendo a mesma mágica de sua ilha.
Minhas mãos tremem. — E a magia da alma? Não é justo
manter isso para nós mesmos. Essa mágica é poderosa, Cato.
Nunca compartilhei com outras pessoas porque estava sempre
tentando fazer você se sentir importante. Você queria que fosse
nossa própria prática especial, e concordei para que você sentisse
que tem algo que ninguém mais tem. Mas se está tão preocupado
com a justiça, não deveríamos estar compartilhando essa mágica
com quem quer aprender? Podemos fazer disso a mágica de Arida.
Sombras enchem suas maçãs do rosto e afiam seu rosto. — A
magia da alma é muito poderosa. Nas mãos erradas, seria perigoso.
Além de nós dois, ninguém mais pode conhecer essa mágica.
A resposta que desperta dentro de mim é uma perplexidade
aguda. Eu jogo minha cabeça para trás com um sorriso malicioso.
Perigoso, diz ele, como se não fosse ele quem destruiu a vida de
centenas e destruiu sua casa pacífica. É justo, ele diz, como se isso
já tivesse sido motivo de preocupação. Como se ele nunca
estivesse com ciúmes de mim e de todos os outros com mais magia
do que ele. Como se ele não amasse que todo mundo agora o
elogie e o faça rei.
Eu me levanto, mas não estou mais com resignação. Eu arrasto
a faca de esfolar pela palma da mão e fecho o punho em volta dela,
revestindo-a com meu sangue.
Vou separar minha magia, tudo bem. Mas não será para que ele
possa me controlar. Eu terminei com Cato. Esse homem nada mais
é do que um covarde tentando justificar sua necessidade de se
sentir importante. Para se sentir poderoso. E é hora de alguém
colocar esse homenzinho em seu lugar.
Eu rasgo em minha própria alma, rasgada e machucada e
desfiada. É tão simples, tão fácil quanto respirar. Mas não é uma
maldição mágica que eu arranco dela; é magia da alma.
Cato estica a mão com expectativa, mas em vez de lhe dar a
faca amaldiçoada, enfio-a profundamente na palma da mão.
Ele retrocede, seu rosto tão surpreso que fica claro que ele
nunca esperava que eu pudesse fazer algo para prejudicá-lo. Mas
como ele não é mais o garoto que eu conhecia, não sou mais
aquela garota.
O sangue que cobre minha palma se mistura com o dele, e dou
um tapa na sua testa.
Mal sei o que estou fazendo. Meu corpo está três passos à
frente da minha mente, agindo no impulso de raiva que se contorce
dentro de mim. Agindo com a força e o calor dos encantos em volta
do meu pulso.
— Você vai esquecer o meu nome — rosno, prendendo-o no
chão. Cato cede e tenta me afastar, mas de alguma forma eu
consigo mantê-lo no chão. Meu corpo convulsiona. Com raiva,
talvez. Ou talvez com medo. — Você esquecerá meu rosto e que
alguém já amou você. Que essa mágica seja a besta que você é;
que amaldiçoe sua linhagem por toda a eternidade, rei todo-
poderoso. — Eu cuspi a palavra. — No momento em que você ferir
outra criatura, que essa mágica te coma de dentro para fora. Que
ele passe a existência tentando realizar nada além da erradicação
da sua alma. Se você baixar a guarda por um momento, que te
consuma inteiramente. Cato Montara, espero que isso destrua você.
Bato a cabeça de Cato no chão e seus olhos brilham. No
momento em que minha mente e meu corpo se encontram, eu
praticamente caio nele, tremendo tão ferozmente que nem consigo
me levantar. Minhas respirações são ofegantes e desesperadas,
pingentes de gelo subindo pela minha espinha e pelas veias. Eles
consomem tudo, mas só posso rir.
Nunca achei possível amaldiçoar uma pessoa diretamente, mas
com esse poder vicioso que recolhi das faixas amaldiçoadas em
volta dos pulsos, fiz exatamente isso.
Eu rio quando os olhos de Cato ficam brancos, seu corpo em
convulsão quando a maldição rasga nele, instalando-se em seu
sangue.
Ele nada mais é do que um menino zangado que arruinou
inúmeras vidas com seu próprio ciúme. E agora, finalmente, vou
fazê-lo pagar por isso.
Quando ele balança a cabeça para mim, seus olhos estão
arregalados de medo, mas apenas sorrio quando meu coração
desmorona.
Acontece que amaldiçoar a vida de outra pessoa exige um
pagamento substancial que eu não esperava, mas não me importo
de dar minha vida em troca.
— O povo de Arida vai esquecer o que eu fiz com eles. —
Tremendo, manchei meu sangue sobre a grama e depois na terra,
tentando enterrá-lo o mais profundamente possível no solo. —
Todos nesta ilha esquecerão o que perderam.
É a última gentileza que sei oferecer. Engasgando, engasgando,
incapaz de encontrar ar, enrolo a faca com força na palma da mão e
faço minha maldição final.
Dou minhas memórias. Encho a faca com a história do ano
passado e a jogo na costa para que as ondas se enterrem. Quero
que meus amigos vivam em paz; quero que eles esqueçam a dor de
tudo o que perderam.
Mas talvez um dia, quando o reino estiver pronto, eles
encontrarão esta faca e aprenderão a verdade de quem realmente
era o rei Cato. Talvez um dia eles saibam o que eu fiz.
Uma onda roça minhas pontas dos dedos, a água empurrando a
faca cada vez mais fundo na areia até que a lâmina seja devorada
inteira.
Todo o ar foge dos meus pulmões enquanto meu corpo para,
afundando em algo tão pesado e completamente sem peso ao
mesmo tempo.
Arida desaparece da minha visão, e respiro fundo uma última
vez.

Eu recuo, e a faca de esfolar de Cato cai no chão.


Sinto um nó na garganta que engulo amargamente enquanto
encaro minhas mãos trêmulas – não mais as de Sira, mas as
minhas. Na minha mente, mais uma vez vejo o sangue do meu
primeiro prisioneiro deslizando pelos meus dedos.
Como Sira, entendi a magia da maldição perfeitamente – você
decide o que quer que as pessoas vejam e amaldiçoa um objeto
com essa imagem ou história, conectando-a ao seu sangue. Há uma
chance de alguém ter inventado tudo isso, mas essa maldição não
se parecia em nada com a raposa; era real demais. Cada respiração
que Sira respirava era minha; senti toda emoção. Cada grama de
dor e medo. Foi uma maldição em um nível que nunca será
rivalizado.
E isso me mostrou que a mágica que há dentro de mim não é
para ser cruel.
A magia da alma de Sira nunca foi uma besta que esperou para
consumi-la no momento em que baixou a guarda. Era gentil e
convidativa. Confortável.
A maldição dela sobre Cato é o que faz a mágica da minha alma
se comportar dessa maneira. E a magia da alma amaldiçoada que
ela usava para se livrar da magia de todos – aquela que ela odiava
por possuir – é exatamente o tipo de mágica que Kaven usa agora.
Tudo em que cresci acreditando – sobre meu sangue, minha
magia, minha linhagem – nada disso era real. Não é assim que deve
ser.
Durante todo esse tempo, meu pai sabia da verdade?
Não sei quanto tempo fico sentada na caverna, absorvendo a
verdade. Só me levanto porque sei que preciso, e minha cabeça gira
com o preço desse conhecimento quando faço o meu caminho de
volta.
Bastian é o primeiro que vejo, sua espada desembainhada. Ele
pode não apontá-la para Kaven – cuja expressão é incomodada e
inexpressiva – mas o veneno esconde a dor em seus olhos, e sei
que ele não hesitará em usá-lo se for necessário. Vataea espelha
sua postura protetora, enquanto Ferrick se agacha na beira da
caverna, esperando impacientemente.
Quando Ferrick me vê, seus ombros caem em visível alívio e ele
dá um passo à frente para me agarrar em um abraço rápido. —
Pelos deuses, você esteve lá por uma eternidade.
Embora eu queira afundar no calor de um corpo familiar e
relaxar até a névoa do meu cérebro clarear, me forço a me afastar
dele.
— Estou bem — digo trêmula, voltando minha atenção para
Kaven.
Ele assiste com olhos aguçados, sobrancelhas franzidas. —
Você acredita no que viu?
Aceno para deixar Kaven saber a verdade. — Acredito.
Ele não sorri ou se vangloria como pensei que iria. Ele apenas
diz — Meu avô encontrou a faca enterrada na areia de Arida anos
atrás. Trouxe de volta para Zudoh com ele, mas era covarde demais
para fazer qualquer coisa com ela. Meu pai a herdou no leito de
morte do meu avô; o rei Audric acabara de assumir o trono, e meu
avô queria que seu filho compartilhasse a verdade com o rei e o
reino. Mas meu pai era fraco e covarde, como ele. Encontrei a faca
em seu escritório anos atrás.
Bastian praticamente ruge. — Não fale sobre nosso pai, Kaven.
Você o matou!
— Ele era um covarde — cospe Kaven. — Queria manter isso
em segredo do mundo.
— Manteve isso em segredo para que Visidia não acabasse
como está agora. — Bastian segura sua espada com força enquanto
Kaven cruza os braços sobre o peito, uma profunda crueldade em
seus olhos.
— O que o rei Cato fez foi errado — digo enquanto me movo
entre eles. — Mas este não é o caminho para corrigir os erros dele,
ou do meu pai. — Cavo minhas unhas nas palmas das mãos até
que minhas mãos fiquem firmes. Se um dos irmãos agir, não posso
ficar pensando na maldição de Sira. Preciso estar pronta para lutar.
— O rei sabe a verdade há anos, princesa — diz Kaven, e as
palavras são cortantes como punhais entre minhas costelas. —
Mostrei a lâmina, disposto a me comprometer se ele dissesse a
verdade a todos. Mas o rei é outro covarde, assim como Cato e meu
pai. Em seu medo, ele destruiu metade da nossa população, na
tentativa de impedir-nos de fazer perguntas erradas ou de formar
idéias erradas. Eu suponho que você viu as cinzas na nossa areia.
É das árvores que seu pai havia queimado pelos soldados de
Valuka. Os ossos na praia? Eles foram vítimas de uma guerra
iniciada por ele. Tudo para nos silenciar.
Penso nas cinzas na praia. Os ossos. O anel de algas tão
espesso que parecia alcatrão. Tudo isso foi causado pelo meu pai.
Se ele realmente sabia sobre a nossa magia, então o homem
que eu achava que conhecia tão bem acabou sendo um estranho
perfeito. Meu pai era um covarde por deixar tantas pessoas aqui
para sofrer em Zudoh, só para não ter que encarar a verdade da
nossa história.
Minhas mãos se fecham em punhos quando as pressiono contra
os meus lados.
Ninguém em casa parece saber a verdade sobre Cato. As
histórias sobre ele são sempre tão orgulhosas – ele é considerado
um poderoso animancer que foi capaz de estabelecer um reino e
reviver nossa população enquanto estávamos à beira da destruição.
Cada ilha representava apenas uma mágica, para ajudar o reino a
repovoar sem tentação ou ganância.
Mas, na realidade, ele não era nada menos que um assassino
de coração frio que procurava enfraquecer os outros para sua
própria glória. E se há verdade nas palavras de Kaven, meu pai está
seguindo seus passos.
Ele não me manteve em Arida para me proteger. Ele me
manteve lá para que eu nunca descobrisse a verdade: ele destruiu
Zudoh para impedir que se levantassem. E ele não queria que eu
descobrisse.
Meu peito está tão apertado que mal consigo respirar. Cada
revelação é um golpe que luta para me derrubar, mas, por enquanto,
devo permanecer em pé. Não é hora de baixar minha guarda.
— O que te faz pensar que é diferente de Cato? — Pergunto a
Kaven. — Você está destruindo vidas pelo bem de suas próprias
crenças, assim como ele fez.
Kaven apenas balança a cabeça. — Quero consertar o dano
que ele criou e liderar este reino em um novo caminho. — Cada
palavra que ele fala se torna mais nítida que a anterior, mais forte.
— Se algumas vidas devem ser sacrificadas por isso, que assim
seja. A magia aridiana não precisa ser uma arma cruel. Você viu os
motivos pelos quais isso ocorre. Posso te ajudar. Podemos
consertar a sua mágica e restaurar esse reino para o que deveria
ser.
Bastian se ergue ao meu lado.
— Com você como rei de Visidia, suponho. — Mantenho meus
olhos firmes nos de Kaven, cujas palavras causam um nó no meu
peito. Restaurar Visidia é o que sempre quis, mas Kaven não busca
restauração, ele busca vingança. Minha família pode ser
responsável por destruir originalmente este reino, mas isso de
nenhuma maneira faz dele sua salvação.
— Sim, se é assim que quiserem me chamar. — Ele diz isso
simplesmente. — Os guiarei para um futuro melhor. E começa com
o sangue Montara – começa com seu pai. Se você se importa com o
futuro de Visidia como afirma, me ajudará.
— Você está certo que a maldição precisa ser quebrada —
admito. — Mas vou encontrar outro caminho. Enquanto houver ar
nos meus pulmões, Kaven, você nunca governará Visidia.
— Deve repensar sua posição enquanto ainda tem a chance. —
A voz de Kaven aumenta quando ele dá um passo mais perto. — Os
Montaras não devem governar. Cato era um mentiroso e trapaceiro
que separava o reino para seu próprio proveito, e seu pai é um
covarde que queimou nossos navios e nos exilou aqui. Você pode
ser melhor que eles, princesa. Desça, fique ao meu lado e podemos
restaurar a magia da alma para o que deveria ser.
Eu aperto meus calcanhares na terra, com medo de meus
joelhos cederem com todo o tumulto dentro de mim. Porque, por um
lado, nada do que Kaven diz está errado. Os Montaras nunca foram
os líderes corajosos que eu acreditava que eram. Eles nunca foram
feitos para governar.
Mas isso não significa que eu tenha que ser como eles. E tenho
certeza que as estrelas não ficarão ao lado de Kaven enquanto ele
realiza sua vingança.
— Como você faria isso? — Pergunto, mantendo minha voz
suave. Fazendo-o vacilar. Porque Kaven está com fome de sangue,
e se ele acha que posso ajudá-lo, então me dirá o que preciso
saber.
— Sua maldição está no seu sangue — diz ele, e há um furor
em seus olhos. — A faca foi revestida com ela. E quando seu pai
nos visitou onze anos atrás, o esfaqueei e misturei seu sangue com
a água da nascente para que os zudianos tivessem traços dessa
mágica dentro deles. Eles precisam apenas aceitá-la e praticá-la. É
para isso que os tenho treinado. Se a maldição não estiver contida
em apenas uma pessoa – se toda a Visidia a tiver – é possível que
possamos quebrá-la. A maldição se tornaria grande demais para se
sustentar. E uma vez quebrada, podemos restaurar a magia da alma
para o que deveria ser.
Penso na magia de Sira – tão aberta e livre – e desejo esse
sentimento novamente. Nunca soube que a magia poderia ser
assim.
— Mas não temos maldição suficiente dentro de nós — continua
Kaven. — Precisamos de mais. Se tivéssemos mais sangue do seu
pai, poderíamos...
— Não. — Já ouvi o suficiente de seu plano. — Deve haver uma
maneira que não envolva ferir minha família ou espalhar a maldição
para mais pessoas.
O rosto de Kaven cai, endurecendo em algo monstruoso. —
Não há. — O tom achatado de sua voz envia arrepios na minha
espinha. — O que é uma vida em troca de ajudar todo o seu reino a
obter a magia que eles merecem?
As palavras são um golpe no meu peito. São palavras em que
acreditei em toda a minha vida – uma vida não significa mais do que
a segurança do meu reino. Era o que sempre dizia a mim mesma
quando estava no fundo das prisões de Arida, tirando a vida que
achava que precisava.
E mesmo agora, sabendo o quão errada eu estava, não diria
que a afirmação de Kaven é falsa. Uma vida não vale a vida do
reino, mas deve haver outro caminho.
Penso em Bastian, um garoto amaldiçoado aos dez anos de
idade depois de assistir seus pais serem mortos. Em Zale, lutando
por seu povo com tudo o que ela tem. Dos inúmeros outros que
Kaven matou em sua busca pela magia da alma.
Meu reino merece magia, assim como eu mereço que a minha
se sinta como na maldição de Sira. Mas os métodos de Kaven não
serão como conseguimos isso. Vou encontrar o meu próprio
caminho.
— O futuro de Visidia não é seu para decidir — rosno. —
Nenhum mal acontecerá a Visidia ou minha família.
A mão de Ferrick está no meu ombro em um segundo, me
acalmando. — Sabemos o que ele quer — ele sussurra. —
Sabemos que ele ainda está construindo um exército. Se sairmos
agora, temos tempo para contar aos seus pais e elaborar um plano.
Kaven não perde suas palavras. — Realmente deveria ter
aceitado minha oferta, princesa. — Cada palavra bate como o golpe
de uma lâmina. — Porque temo que seja aí que esteja errada. Não
estou construindo um exército; eu já tenho um. E você está sem
tempo.
CAPÍTULO TRINTA

Olho além de Ferrick e Vataea, lutando para firmar minhas mãos


trêmulas enquanto dezenas de figuras emergem da floresta.
Somente quando eles se aproximam, vejo que alguns usam coletes
e botas de ametista profunda – Kerost. Outros usam magníficos
blazers de safira e as capas correspondentes que eu reconheceria
em qualquer lugar. Os emblemas de prata de suas capas brilham
através do nevoeiro, piscando e zombando de mim.
Meus próprios soldados reais.
Dou um passo para trás com as pernas trêmulas, não querendo
acreditar no que estou vendo. — O que está acontecendo? —
Pergunto, embora no fundo eu já saiba. Não reconheço nenhum dos
Kers, mas entre rostos familiares estão o meu próprio povo.
Como o de Casem.
Seus olhos se arregalam quando ele vê Ferrick e eu. Ele está
na beira da floresta, ao lado de Olin, seu pai – o homem que nos
ensinou como manejar uma lâmina e a nos proteger. O homem que
fica ao lado do meu pai diariamente, atuando como o principal
conselheiro de Arida.
Embora Olin nunca tenha sido um homem caloroso, seus olhos
de cristal nunca foram tão frígidos, nem um quarto tão perigosos
quanto agora. E nunca antes ele zombou de mim com tanto ódio
cru.
— Zudoh não é a única ilha que está cansada do reinado de seu
pai. — Kaven passa pelos soldados para ficar diante de mim, com o
queixo orgulhoso. — Seu pai trouxe apenas os soldados nos quais
ele mais confiava quando veio destruir a ilha – seus principais
conselheiros. Mas o que ele calculou mal é que nem todos
concordavam com ele. Ele não pensou em considerar que alguns
podem gostar da ideia de nossa mágica estar aberta a todos,
especialmente depois de verem o poder de nossas múltiplas
mágicas em batalha, e como o rei poderia derrubar vinte pessoas ao
mesmo tempo, apenas com fios de seus cabelos ou gotas de
sangue. Como eu, eles querem poder praticar a magia da alma.
Ele acena para Olin, e meu coração cai. — Você realmente
achou que todos ficariam satisfeitos com a monarquia mantendo
essa mágica inteiramente para si? Roubando a liberdade das
pessoas e dizendo a elas em que ilha elas devem viver apenas por
causa da magia que elas escolhem praticar? Está na hora das
coisas mudarem. O dia em que minha ilha ardeu foi o dia em que
outros perceberam isso também.
Tento captar o olhar de Casem, lembrando-me da última noite
em que estivemos juntos em Arida e de quão passivos os guardas
do palácio eram durante o show de marionetes. Como eles deixam
as pessoas desrespeitarem abertamente seu rei. Senti que algo
estava errado, mas Casem afastou a minha preocupação. Ele faz
parte disso o tempo todo.
Por que, então, em Ikae, ele me protegeu?
O suor goteja na minha têmpora quando dou um passo para
trás, o espinheiro de raízes mortas e folhas esmagando sob meus
pés. Certamente não são todos os soldados aridianos que se
voltaram contra nós – apenas cerca de mais ou menos quinze –
mas não tenho dúvida de que, se estão aqui, outros que se sentem
da mesma maneira estão esperando em casa.
Kaven dá um passo à frente. — Os Montaras nos restringem.
Sua pequena fuga foi a desculpa que precisávamos para afastar
todos e consolidar nosso exército. Por isso, devo agradecer. Seu
Alto Animancer nunca verá isso chegando. Alguém pressiona uma
adaga na palma da mão e ele enrola os dedos longos ao redor do
punho.
Meus punhais parecem mais pesados que o normal quando eu
os levanto. Eles pesam minhas mãos trêmulas.
Quando Kaven se aproxima, faço o meu melhor para apertá-los
e mantê-los prontos. Minhas mãos não param de suar.
Visidia merece mais do que aquilo que conseguiu, e
definitivamente merece mais do que esse homem. Ele está tão
longe quanto Cato, mas não vou cometer o mesmo erro que Sira
com a espera. Ainda mantenho meus pulsos trêmulos e dou uma
investida.
A floresta entra em caos.
Bastian tece rapidamente ao redor das bétulas, usando-as como
escudos para desviar de seus oponentes e como ferramentas para
superá-los. Ele finge ir para a esquerda antes de acertar a direita,
evitando o golpe de um oponente. Seu contra-ataque o manda de
cara para o espinheiro, sangrando.
Eu me forço a não olhar para o rosto. Para não ver se é alguém
que conheço.
— Não deixe que eles consigam seu sangue! — Grito,
envolvendo toda a força da minha magia ao meu redor, deixando-
me afundar na escuridão. Sua ferocidade. — Não sabemos qual
deles pode praticar a magia de Kaven.
Ferrick permanece bem atrás de mim, usando sua velocidade
para derrotar seus atacantes e garantir que eu só tenha que lidar
com Kaven. Vataea não está à vista; não faço ideia de quando ela
escapou, mas espero que esteja em algum lugar seguro nessa
floresta.
Kaven luta com apenas uma adaga, mas ele é habilidoso e
rápido quando avança. Ele desvia dos meus golpes e ataca na
minha cintura. Mal me esquivo a tempo.
Kaven usa a mesma técnica que Sira usou para amaldiçoar toda
Arida; não posso deixá-lo roubar nem uma gota do meu sangue.
Corto o ar com a minha adaga. Kaven se abaixa para evitá-la,
contra atacando com um rápido chute no estômago que me faz voar
pelas costas de Ferrick. Ele cai, mas é o primeiro a se endireitar, e
me puxa pelos braços.
— Deixe-me ajudar — diz ele com urgência. Mas sem fogo, não
há nada que eu possa fazer com os membros oferecidos.
Empurro Ferrick e invisto contra Kaven novamente, assim que
ele está prestes a derrubar sua adaga. Se move como um soldado,
cada movimento é preciso e calculado. Ele se esquiva do meu
golpe, se agacha ao meu redor e agarra meu cabelo enquanto
Ferrick se lança contra ele. Tento me libertar, mal percebendo os
gritos e o cheiro de fumaça e fogo assolando o ar.
Kaven amaldiçoa e me joga no chão. Ele golpeia sua túnica; o
tecido pegou fogo.
Vataea está atrás dele, segurando vários galhos em chamas
como tochas. Ela alimenta as chamas no espinheiro desidratado
abaixo de nós, que as absorve com fome e acende a floresta.
Olho para ela através do véu de fumaça começando a se
formar, e ela sorri.
Eu me forço a levantar e Ferrick está pronto. Ele mal se encolhe
quando eu lanço a adaga de osso e corro para pegar uma espada
caída do chão, usando-a para fazer um corte limpo no braço
esquerdo, no cotovelo.
Kaven é surpreendido e muda seu foco para Ferrick. Movimento
errado. Pego o braço cortado em uma mão e empurro minha lâmina
profundamente no estômago de Kaven com a outra.
Meu mundo fica frio no instante em que o sangue encharca sua
camisa e mancha minhas mãos. Quanto mais o sangue dele escorre
pela minha pele, mais a queimadura fria se espalha, como um
monstro devorando minha carne.
— A magia aridiana não é a mais forte, princesinha — Kaven
sibila por entre os dentes. — A minha é. Deixe-me te mostrar.
A dor me congela. Kaven amaldiçoou seu próprio sangue como
um meio de proteção, e fico perdida com a magia que ele formou ao
meu redor. É uma cheia de sombras viciosas que assola os cantos
da minha visão e rosna para mim, arrancando dentes parecidos com
punhais. Não posso fazer nada além de gritar quando o aço frio de
sua lâmina desliza sob a minha pele. É como mil arraias
apunhalando suas farpas através de mim, uma a uma, enquanto
Kaven rasga meu braço. Grito, meu aperto no punhal afrouxando.
É apenas uma maldição, lembro a mim mesma enquanto as
sombras se enrolam nos meus tornozelos, me arrastando para a
terra.
Deixo minha mente vazia, permitindo as sombras fazerem o que
quiserem. Porque não importa o quanto elas rosnem ou se
contraiam ao meu redor, elas não são reais – Kaven é.
Quero que meu corpo se concentre no que está fazendo fora
dessa maldição. Para envolver meus dedos ao redor da adaga, e
empurrá-la.
Embora não veja minha arma, sinto o peso invisível dela em
minhas mãos. As sombras se erguem, se esticando como se
formando uma boca aberta, se preparando para me devorar. Mas
olho através delas.
Bastian disse que o surpreendeu com a rapidez com que eu
conseguia escapar de uma maldição, e agora sei porque – passei
minha vida inteira lutando contra a maldição de Sira na linhagem de
Montara. Comparado à sua magia, isso não é nada.
Eu levo Rukan para frente com tudo em mim.
Há um grito. Desta vez, não é meu.
À medida que as sombras da maldição desaparecem, um
mundo que cheira a fumaça e ferro toma seu lugar. Meus dedos
giram em torno do punho de Rukan e arranco minha arma do
estômago de Kaven.
Meu ombro está dormente, quente com meu próprio sangue de
onde Kaven me cortou. Com muita adrenalina, a dor ainda não está
totalmente definida.
Kaven aperta seu estômago enquanto o sangue encharca sua
camisa. — Como? — É tudo o que ele pode perguntar.
— Você não é tão forte quanto pensa. — Meu corpo treme
quando deslizo a ponta da lâmina sobre o braço cortado de Ferrick,
cobrindo-o com o sangue de Kaven. Então eu o coloco no fogo
quando a fumaça sobe, nos cobrindo.
Kaven enfia as mãos profundamente no espinheiro e grita. O
sangue vaza de uma linha invisível em sua pele quando começa a
rasgar ao redor do cotovelo. A pele abaixo dela borbulha, chiando
para combinar com o que está acontecendo com Ferrick nas
chamas.
Seu braço começa a derreter, ossos e tudo, e as pulseiras de
couro em seu pulso queimam com ele.
Em algum lugar atrás de mim, ouço o suspiro silencioso de
Bastian enquanto os braceletes ensanguentados queimam, mas não
paro. Ataco, totalmente decidida a dar o golpe final, quando algo
corta o ar ao meu lado.
Eu giro a tempo de evitar o golpe de um soldado aridiano, e sua
espada cai na terra. Atrás dele, pelo menos outros cinco estão se
aproximando, com as armas levantadas.
Há muitos deles para ganharmos. E não apenas eles, mas
Kaven também. Embora machucado, ele ainda luta.
Há algo em sua mão que não consigo ver, e, com um horror
crescente, vejo como ele desliza sobre sua lâmina.
Sua lâmina que pinga com o meu sangue.
Meu interior se torce quando sua maldição se apodera de mim.
Meu corpo queima como uma ferida fresca embebida em álcool,
cada respiração cheia de fogo.
Tento pegar a adaga na mão de Kaven para detê-lo, mas
Bastian agarra meu pulso.
— Sinto muito — ele murmura. Seus olhos brilham afiados e
prateados quando ele me puxa para ele. — É tarde demais. Eu sinto
muito.
— Não os deixe sair! — O grito de Kaven soa como um eco em
algum lugar distante. Aperto meu peito quando um frio vicioso
floresce dentro de mim, embaçando minha visão.
Bastian segura a minha mão e me obriga a correr. A dor branca
brota através do meu braço, quase me trazendo ao chão. Ferrick
pula atrás de Vataea, que usa sua tocha improvisada para acender
o espinheiro debaixo de nós. Vários soldados tropeçam para trás
enquanto as chamas rugem para a vida, movendo-se rapidamente
para encontrar um caminho diferente. Mas alguns dos Kers
conseguem acelerar a tempo de atravessar as chamas.
Um homem de ametista se lança para nós, com movimentos tão
rápidos que embaçam. Ele bate com a lâmina no ombro de Ferrick,
e o curandeiro recua com um grunhido. O homem arqueia sua arma
se preparando para outro ataque, mas algo afiado e prateado brilha
nas árvores e o acerta nos olhos antes que ele consiga balançar. O
homem recua e minha cabeça gira.
Casem, um arco nas mãos trêmulas. Olho para ele e seus lábios
tremem, o rosto pingando de suor.
— Amora — ele sussurra — eu sinto muito. Eu só queria te
encontrar. Eu pensei que era... quero dizer, meu pai insistiu que eu
viesse, mas eu não tinha ideia disso... Pelos deuses, sinto muito,
eu...
— Não há tempo! — Ferrick agarra Casem pela gola do blazer,
seu ombro já se unindo. Ele o empurra em nossa direção, e Casem
tropeça, tentando acompanhar.
— Fale mais tarde — diz Bastian — Corra agora.
Mal consigo seguir esse comando. Bastian é a única razão pela
qual eu ainda estou de pé, carregando a maior parte do meu peso
enquanto ele me arrasta pela floresta. Cada passo empurra meu
ombro, fazendo com que a dor se transforme em algo tão
exponencial que não posso mais tolerá-la. Minha visão fica
embaçada e tento decifrar o que está acontecendo ao nosso redor;
tudo o que consigo distinguir são cem cores distorcidas e contornos
borrados. Há gritos, e acho que é Vataea quem gira com um
rosnado.
Em algum momento, minha visão desaparece completamente.
Não tenho idéia de quanto tempo se passou antes de ver Vataea
novamente. Desta vez, ela está coberta de sangue e nossa
paisagem ao redor mudou. Os passos estão mais difíceis.
Areia.
Mais sangue. Há quanto tempo estamos correndo?
Acho que caí em algum momento porque sinto o gosto de areia
e sal, mas estou perdida para o que está acontecendo dentro do
meu corpo. Meu olhar oscila entre a vida real e o branco ofuscante,
e quando tento convocar minhas pernas, nem sinto que elas estão
lá. Eles prendem quando alguém continua me puxando para frente,
arrastando meu corpo flácido pela areia.
— Vataea! — Não sei quem grita o nome dela. — Agora seria
um ótimo momento para mostrar mais da sua magia do mar!
Ouço o estalo silencioso de um arco. Areia molhada desliza em
volta das minhas botas, mas não a vejo ou sinto tanto quanto ouço.
Mistura-se com os sons ilegíveis de vozes e aço batendo enquanto
todos lutam. Todo mundo, exceto eu.
Mas meus olhos não vão se concentrar o suficiente para eu
poder ajudar. Meu corpo está quente e paralisado, um peso morto
para quem me carrega.
Não é Vataea. Eu pego o rosto dela em um borrão passageiro;
ela está sangrando pelo nariz enquanto eleva a maré por cima da
cabeça, cantando uma canção cruel. Parece que o oceano se estica
ao nosso redor, a água se separando. Mas não consigo me
concentrar. Não consigo assistir. Tudo o que vejo são flashes de
sangue. Areia. Uma parede de peixes mortos ao nosso redor.
— Vai ficar tudo bem. — Só sei que a voz pertence a Bastian
quando suas mãos calejadas cobrem o lado do meu rosto. Ele esfria
minha pele febril instantaneamente.
— Kaven caiu — ele sussurra. — Vataea está cuidando de nós.
Estrelas, eu gostaria que você pudesse vê-la lá fora, Amora. Ela
estava incrível. Mas vamos sair daqui, ok? Você vai ficar bem.
Mas suas palavras são uma bela mentira, pois quando fecho
meus olhos contra sua palma fria e molhada, a magia disforme já
não espera para me cumprimentar na escuridão.
Minha magia se foi.
CAPÍTULO TRINTA E UM

Eu não sou nada.


Eu me afundo nos lençóis da cama de Bastian e rezo para que
eles me devorem. Cinco dias. Faz cinco dias desde que saímos de
Zudoh. Cinco dias que estive aqui embaixo, quebrada e sangrando,
me escondendo do sol.
Eu não sou nada.
Minha armadura, minha magia, minha alma, todas roubadas de
mim.
Estupidamente, considero pela centésima vez o que Kaven
poderia ter amaldiçoado. Nunca vi um encanto, como os que Sira
usava. Também não me sinto doente, como Bastian fica quando
passa muito tempo longe da Keel Haul.
Minha magia poderia ser amaldiçoada até Kaven me apunhalar
com a lâmina? Em caso afirmativo, levaria um tempo para a doença
inicial se manifestar? Ou está em algum lugar ao meu redor, como
em Keel Haul?
Arrasto minhas unhas ao longo da parede traseira da cabine,
mas não sinto nada. Se eu fosse amaldiçoada ao navio, não sentiria
algo?
Deuses, eu fui tola por deixar Kaven ter meu sangue.
A raiva branca e quente ferve dentro de mim e penetra nos
meus poros até que eu não aguento mais. Eu agarro as feridas
curativas ao longo da palma da minha mão até que elas se juntem
com sangue fresco, cansadas desse jogo de adivinhação cruel.
Eu não sou nada. Nada. Nada. Nada.
Minha mágica nem era real. É uma abominação da magia da
alma de Sira. Não é uma coisa bestial como fui levada a acreditar,
mas uma maldição destinada a destruir os Montaras. Nos
atormentar por gerações.
Minha magia nunca foi feita para ser do jeito que é. No entanto,
estou com dor agora que foi roubada de mim, vazia sem a minha
magia.
Talvez não fosse certa, mas era minha. E com tudo em mim,
acreditava que estava usando para proteger meu povo e me tornar a
melhor governante que poderia ser. A dor me consome na forma do
berro que dou no travesseiro mais próximo. Quando me afasto, o
sangue escarlate estragou a superfície branca imaculada do
travesseiro. Pressiono a palma da mão contra o tecido e bato no
sangue ainda mais.
Minha mágica tem que estar em algum lugar próximo. Mas,
onde?
— Amora?
Eu tremo. A luz do sol atravessa a fresta da porta e cobre o
chão como um tapete. Olho para ele, meus olhos ardendo.
— Saia. — A última vez que vi os outros foi para contar a
verdade da maldição de Montara. Lembro-me do horror em seus
rostos. A pena deles. Até pensar nisso agora é mais do que posso
suportar.
A porta se fecha, mas alguém continua me observando. Com
um rosnado pronto em meus lábios, me viro, pronta para deixá-los
sentir a extensão da minha raiva. Mas quando vejo a mochila que
Bastian segura em suas mãos, não consigo mantê-la. Um soluço
ameaça sacudir meu núcleo, mas o afasto atrás das barreiras do
meu coração vazio.
— Afaste isso de mim. — Quero pegar a mochila das mãos dele
e jogá-la contra a parede repetidamente até que todos os ossos e
dentes dentro sejam quebrados. Em vez disso, passo os braços em
volta da cintura e mergulho a cabeça.
Essa não é a minha magia que ele está segurando. É apenas
um triste lembrete do meu fracasso.
Ferrick fica ao lado de Bastian. Sua sombra agarra a luz fraca
da lâmpada de óleo e muda de pé em uma dança desconfortável.
A sombra de Bastian é menos ansiosa. É firme e confiante,
enquanto caminha para o meu lado. Uma mão firme pousa em cima
do meu ombro.
— Precisamos conversar. — Suas palavras não abrem espaço
para discussão. Ele força meu queixo até que eu fique olhando para
ele, precisando que ele saia.
Falhei com os zudianos com que fiz uma promessa.
Não pude ajudar os Kers. Até meus soldados se voltaram contra
mim.
Visidia merece mais do que eu, então por que ele não pode me
deixar em paz?
— Percebeu o quão lentamente Keel Haul navega? — Bastian
pergunta calmamente.
Minhas mãos palpitam de dor quando o ignoro. Cerro os punhos
e os coloco embaixo de mim, a cabeça girando.
Os olhos castanhos de Bastian afiam quando ele fecha o
espaço entre nós e se senta no canto da cama. Hoje há menos
amarelo neles, as estrelas escureceram. Ferrick permanece atrás
dele, como se não tivesse certeza de que pode fazer o mesmo.
— É porque minha maldição foi quebrada, Amora. — As
palavras dificilmente são um sussurro quando Bastian tenta se
inclinar para pegar meu olhar. Quando as palavras ficam presas na
minha garganta, o deixo respirar. — Quando queimou aqueles
encantos dele, você me libertou. Keel Haul é um navio normal
novamente. E minha magia está de volta também. — As palavras
me congelam, agarrando meu coração. Por um momento, há
esperança, mas chia profundamente.
— Não está funcionando exatamente — admite Bastian. — Mas
sei que está lá. Posso senti-la, como um fogo dentro de mim. Ainda
não consigo alcançá-la; Eu esqueci como. Mas minha magia está de
volta, e prometo que vamos recuperar a sua também.
Eu afio meu olhar em punhais que penetram nele. — Não entre
aqui, lançando falsas esperanças quando Visidia estiver em perigo.
Eu falhei, e agora meu reino pagará o preço. Deixei essas pessoas
mortas em Zudoh.
— Não é uma falsa esperança. — A voz pertence a Ferrick, que
finalmente se move para ficar ao meu lado. — Deveríamos dar
tempo para Bastian reaprender sua mágica. Kaven ficou
gravemente ferido; ele precisará de um tempo para se recuperar
antes de viajar. Podemos avisar o rei, e se Bastian aprender a usar
magia contra seu irmão, ainda poderemos vencer essa luta.
Jogo minha cabeça para trás e uma risada cruel me escapa. —
Por que seria assim tão fácil? Por que alguém que não tem magia
desde criança pode enfrentar alguém que a domina? Cuja magia
amaldiçoada vai além de qualquer coisa que já vimos?
— Kaven não estará em ótima forma depois dessa luta —
argumenta Bastian. — Podemos usar isso em nosso proveito,
dominá-lo ou...
— Não importa em que forma ele está! — A dureza das minhas
palavras faz com que os dois garotos se tensionem de surpresa. —
Ele não vai nos dar tempo para nos preparar. Atacará no segundo
que puder. Bastian começa a dizer algo, mas Ferrick agarra seu
ombro.
— Não adianta falar com ela assim. — Há um julgamento frio
em suas palavras que agarra minha pele e me desaba. Mesmo
embrulhada nos lençóis e enrolada no calor de uma cama,
estremeço.
— Não tenho idéia de quem você é agora. — O olhar de Ferrick
me prende. — Não sei quem é essa coisa assustadora e vazia, mas
você é melhor que isso. Você foi amaldiçoada, não morta. Fez uma
promessa em Zudoh, e essas pessoas estão confiando em você
para não desistir. Ainda podemos fazer isso.
Quando viro minha cabeça, Ferrick passa por Bastian e agarra
minhas mãos, ignorando o sangue nelas. Ele abaixa a cabeça até
me encarar, com o rosto duro e impassível.
— Você é Amora Montara — diz ele, despertando algo dentro
de mim. Uma pequena faísca ainda esperando por sua chama. —
Agora é hora de parar de se esconder aqui e começar a agir como a
soberana que você é. Diga-me o que quer que façamos.
Pego a chama, mas ela apaga no momento em que estou ao
meu alcance. Eu arranco minhas mãos dele.
— Sem a minha magia, sou inútil. — As palavras me arranham.
— Eu não tenho nada. Eu não sou nada.
Esses garotos querem que eu permaneça alta e orgulhosa com
a crença de que venceremos. Mas eles não vêem o quanto já falhei.
Como fugi de casa para salvar meu povo da mentira de praticar
várias magias, mas estou voltando apenas com a destruição deles.
Não tenho nada a oferecer e não há como salvar Visidia.
Deveria ter ficado em casa e aceitado minha morte. Talvez então,
Kaven nunca tivesse tido a chance de montar uma frota.
— Não posso ser a garota que vocês dois querem que eu seja.
— Eu me levanto da cama, as mãos ardendo com uma dor aguda
quando roçam nos lençóis. — Não mais.
Vou para as escadas, longe da pressão de suas fantasias,
porque não posso aguentar.
Mais um olhar deles é tudo o que preciso para eu desmoronar.
CAPÍTULO TRINTA E DOIS

Não encontro consolo na brisa do outono que serpenteia ao meu


redor, espirrando sal nos meus poros. O fim do verão finalmente
chegou.
Limpo minhas mãos, mas o ar salgado encontra novamente as
minhas palmas. É um lembrete agudo da escuridão que não consigo
arrancar do meu caminho. O mar pode estar ajudando, mas quando
fecho meus olhos e respiro, ainda há um vazio onde minha magia
deve estar enrolada, esperando para saltar.
Uma presença se agita atrás de mim e, embora eu saiba que
estou segura em Keel Haul, instintivamente pego a mochila e a
adaga que mantenho na minha cintura. Mas minhas mãos estão
vazias e o vazio na minha barriga infla. Respiro fundo e coloco as
mãos em punho em meus lados.
Casem está ao meu lado. Ele mantém a cabeça baixa e os
ombros caídos para a frente, como se já estivesse sendo
repreendido. Mais de duas semanas se passaram desde que
estivemos em Arida, mas é como se, em vez de lhe proporcionar
vida, o sol absorveu tudo do seu corpo. Seu corpo outrora grande
diminuiu e secou com a exaustão que carrega nos ombros caídos.
Ele exibe a dor nos seus frios olhos azuis.
— Sinto muito — diz ele sem avisar. Ele agarra a borda de Keel
Haul para se sustentar, os nós dos dedos ficando brancos devido à
pressão de seu aperto. — Quando meu pai sugeriu que eu fosse
com ele, estava fazendo isso porque queria encontrá-la e garantir
que você estivesse segura. — Ele olha para mim, mas mantenho
meu foco no mar, assistindo as ondas turquesa se quebrarem contra
o navio e se transformarem em uma espuma macia e branca à
medida que se afastam. Casem aproxima as mãos na borda e raspa
as cutículas do polegar direito, preocupando-se com a pele.
— Que bem isso teria feito? — bufo. — Eu poderia ter sido
executada se ficasse.
O rosto de Casem se torce. — Você não sabia? Amora, eles iam
lhe dar outra chance. Todos nós defendemos seu caso, incluindo
sua tia; ela disse a todos que não estava em condições de ser
Animancer. Eles estavam planejando trazer outro prisioneiro para
você tentar novamente. Mas nenhum de nós conseguiu encontrá-la.
Espero que suas palavras me rasguem. Para despedaçar e
destruir qualquer luz que me restasse. O que é mais uma faca
quando você já foi esfaqueado por uma dúzia?
Em vez disso, as palavras me fazem parar quando a realização
me atinge – meu povo me daria outra chance.
O peso desse conhecimento queima em meu peito. Enfio meus
dedos na borda do navio, me firmando.
Nem todos eles me queriam morta ou me consideravam
perigosa demais. Eles me dariam outra chance.
— Eu não tinha idéia de qual era o verdadeiro plano de meu pai
quando saí para procurá-la, juro — continua Casem quando não
digo nada. — Descobri a caminho de Ikae. Se soubesse antes,
nunca teria ido com eles. Teria dito ao rei. Eu me importo muito com
você fazer algo tão cruel. E não só com você, mas com Mira. Eu
nunca iria querer colocá-la em perigo. Você sabe disso, Amora. Só...
preciso que você acredite em mim.
Lembro-me do rosto de Casem atrás da janela em Ikae, e do
pânico em sua expressão quando ele me perseguiu nas docas.
Então, penso nos soldados que o acompanham naquela noite.
Posso entender os Kers que se juntaram a Kaven. Mas, meus
próprios soldados? O pai do meu amigo e guarda, que me ajudou a
treinar por anos?
O fato de que essas pessoas me querem morta dói mais do que
eles possam imaginar.
— Acredito que você não tinha ideia — digo, lembrando o quão
apressadamente ele tentou afastar os outros de mim e mandá-los
para o caminho errado. — Mas, por que fez isso? Poderia ter
partido. — Poderia ter encontrado uma maneira de me avisar ou
detê-los.
— Eles me matariam. — Ele abaixa a cabeça como um filhote
repreendido. — Acho que nem meu pai hesitaria. Eu sabia que ele
sempre invejava o poder de seu pai no fundo, mas acho que nunca
percebi a extensão disso. Ele me apresentou a verdade depois que
você fugiu de Arida, querendo que me juntasse a ele. Imaginei que,
se o fizesse, pelo menos me daria a chance de aprender o plano e o
ataque deles na hora certa. Ou esperar uma abertura para escapar.
Eu sabia que era um risco, mas pelos deuses, nunca pensei que
fosse acabar assim.
A idéia da magia da alma deles me faz ranger os dentes. Ser
capaz de amaldiçoar a alma de alguém pela eternidade é um
castigo muito mais cruel do que acabar com a vida ou causar dor
temporária.
Kaven deve ser parado, mas como? Sem minha magia, sou
inútil contra ele.
— Quantos enfrentamos? — Pergunto. — O quão forte é a
magia deles?
— Estamos enfrentando quase metade de Kerost e Zudoh —
ele responde honestamente. — E quanto à sua magia, eles são
fortes... mas há boas notícias que acho que você gostaria de ouvir.
Eu me afasto do pequeno sorriso esperançoso em seus lábios.
— A maldição no sangue dos Montara não é para os outros —
diz ele. — Quando as pessoas tentam aprender, isso lentamente
destrói suas almas, distorcendo-as. Muitos que desencadeiam a
magia da alma são incapazes de usá-la e são destruídos no
processo. Embora existam alguns raros que conseguiram aprender,
como Kaven, ele parou de forçar seus seguidores anos atrás,
porque continuava falhando e seus números estavam diminuindo.
As pessoas apenas tentam aprender por opção, e há apenas
algumas que conseguiram.
Pressiono meus lábios e, pelo canto do olho, vejo Bastian
descendo o cordame. A visão dele atinge meu coração ferozmente
como uma faca.
Ele se move para o leme do navio e o aperta firmemente com
uma mão, dirigindo. Olhando para uma bússola, ele ajusta o leme,
mais uma vez, evitando propositadamente o meu olhar.
Vataea se inclina sobre a borda atrás dele, cantando sobre as
ondas como se tentasse trabalhar sua magia nelas. Seus lábios
estão franzidos e as sobrancelhas suadas franzem de
aborrecimento. De vez em quando ela consegue levantar uma onda
um pouco mais alto do que o normal, mas não é nada parecido com
a mágica que fez antes de Zudoh.
Ferrick está entre eles, tentando fazer o que for necessário, e
desvio meu foco deles enquanto um nó de amargura se enrola
dentro de mim. Todo mundo está tentando, exceto eu.
— O pirata ainda está se adaptando à quebra de sua maldição
— diz Casem. — E nossa equipe não está tão forte, especialmente
você e Vataea, que ficaram inconscientes por alguns dias. Venho
tentando usar minha magia para manipular o ar e inchar as velas,
mas este navio é muito pesado para eu mover. Todos nós pensamos
que Vataea seria capaz de nos ajudar a navegar mais rápido
quando ela acordasse, mas nos salvar em Zudoh exigiu muito dela.
Ela era... incrível. — Meus olhos vagam para ela por um momento e,
com admiração, lembro-me de vagos flashes do mar se abrindo ao
nosso redor. De estar cercada por muros de peixes e algas mortas,
mas nunca tocada por elas. Sei que devo agradecê-la por nos
salvar, mas há um núcleo de amargura que deseja que ela tenha me
deixado para trás para afundar.
— Finalmente estamos no caminho certo. Demorou um pouco
para chegar a algum lugar. — Casem aponta para a água vibrante e
para o cardume de peixes amarelos e azuis que nos cercam. Com a
água tão clara e brilhante, devemos estar em algum lugar entre
Mornute e Arida. Estaremos em casa antes do anoitecer.
Uma onda de alívio me preenche, mas a sufoco rapidamente.
Casem percebe, franzindo a testa profundamente.
— Amora?
Balanço a cabeça. — Não tenho o direito de voltar para casa.
— Isso é exatamente o que eu pensava depois que deixei
Zudoh. — As palavras me deixam fria. Não tenho idéia de quando
Bastian apareceu atrás de mim, mas está lá agora, com o queixo
erguido e os olhos duros.
— Durante anos me recusei a voltar a Zudoh porque tinha medo
de enfrentar todo mundo — diz ele. — Me senti responsável pela
destruição da minha casa. Pelo assassinato de meus pais e de
tantos outros, tudo por causa do meu irmão. Isso me comeu vivo.
Me escondi porque estava com medo, e se você virar as costas para
Visidia agora, estará fazendo a mesma coisa.
As palavras de Bastian são como agulhas quando as engulo,
porque cada uma delas é verdadeira.
Lentamente, hesitante, ele se aproxima. Não recuo, e minhas
mãos inflamam quando ele as pega nas dele. É como se eu
pudesse respirar novamente. — Você me ajudou a enfrentar meus
medos e me ensinou a não correr. Então não ouse dizer que nós
não deveríamos estar aqui, Amora. É exatamente aqui que
precisamos estar. Há pessoas contando conosco. Podemos fazer
isso. — São quase as mesmas palavras que eu disse a ele e
atacam com força.
Vejo o rosto zangado de Raya, mais velho e mais sábio do que
deveria ser nessa idade. Vejo as mãos calejadas pelo tempo e as
rugas exauridas daqueles em Kerost. Vejo Sira, que me mostrou
como meu reino deveria ser.
Finalmente, vejo as pessoas em Zudoh que baixaram a cabeça
para mim e, pela primeira vez, me ofereceram sua confiança.
Se não nos apressarmos em avisar meu povo, pode ser o fim do
meu reino. E certamente será o fim desses zudianos.
O fósforo em minha alma pega a chama, considerando-a. Ele
não arde, mas acende – apenas uma vez – com a promessa de que
talvez um dia possa queimar novamente. Quando procuro o calor
desta vez, está distante, mas está lá. Tenho que me apegar a isso.
A perda da minha magia é um vazio com o qual nunca ficarei
bem. Mas não posso me esconder do meu destino. Minha vida é
Visidia, como sempre foi e sempre será.
Ferrick e Vataea ficam perto, ouvindo. Volto minha atenção para
Ferrick, que oferece um sorriso pequeno, mas vacilante. Meus
lábios não parecem bem espelhando o movimento, então aceno em
silêncio em agradecimento por seu apoio. Então olho para o pirata,
cuja mandíbula é uma linha dura enquanto ele olha para mim.
Quando envolvo meus dedos em sua mão e aperto uma vez, seus
ombros caem e seu corpo relaxa. Ele coloca a testa no topo da
minha cabeça, as palavras abafadas nos meus cachos. — Nós
vamos fazer isso juntos.
Pressiono minha cabeça contra seu peito, mantendo meus
olhos bem fechados para que nenhuma lágrima possa escapar. Mas
não são mais apenas os seus braços em volta de mim. Os de
Ferrick também. Depois Vataea. Casem. Todos eles me abraçam
com força, e é inútil lutar contra as lágrimas.
Bastian me perguntou uma vez por que não encontrei uma
equipe e me salvei. Mas o que ele não percebeu foi que eu já
encontrei – essa é minha equipe. — Nós vamos fazer isso juntos.
Todos nós.
Os outros se afastam, e fico olhando nos olhos castanhos de
Bastian. Ele é quente e cheira a salmoura, e por um momento
gostaria de nunca ter que me mexer. Que pudéssemos ficar assim
para sempre, fingindo que meu reino não está prestes a entrar em
guerra. Porque quando ele me toca, é como se fosse eu de novo,
mesmo que apenas por um momento.
Mas não há tempo para fantasias, e não tenho certeza de que
minha alma aguentaria outra quebra. Afasto-me, ajeito os ombros e
me forço a me tornar Amora Montara, a princesa de Visidia mais
uma vez.
— Precisamos nos apressar — digo a eles. — Kaven
provavelmente já está a caminho.
As velas de Keel Haul incham satisfatoriamente quando somos
puxados pelo vento, mas mesmo a brisa pesada do oceano não
pode nos levar tão rapidamente quanto eu gostaria.
Com a cabeça ainda baixa e os ombros caídos, Casem
desajeitadamente limpa a garganta. — Isso significa…
— Pelas estrelas, Casem, sim. Eu te perdoo. — Reviro os olhos,
deixando-os vagarem até Vataea. — Mas tenho uma pergunta para
você.
Ela arqueia uma sobrancelha, o rosto pálido e afundado. Está
claro que qualquer magia que ela usou para dividir o mar em Zudoh
causou algo nela.
— Por que você não me disse que uma das maldições que
sentiu em Keel Haul era minha?
Vataea abre os lábios e responde com facilidade. — Parecia
antiga. Não achei que você devesse se preocupar com algo além do
seu controle.
Suspiro. Ela estava tentando ser gentil, então. — Bem, e essa
nova? Certamente tenho que estar amaldiçoada por algo próximo,
porque não me sinto doente. Você consegue sentir?
Ela balança a cabeça, apertando os punhos ao lado do corpo,
como se estivesse com raiva disso. — Eu tentei. As sereias não
podem ver a magia da maldição, nós a sentimos; é uma habilidade
que minha espécie desenvolveu séculos atrás, para nos proteger
dos primeiros caçadores furtivos. Faz minhas brânquias ficarem
espinhosas. — Ela aponta para as cicatrizes no pescoço. — A sua
está tornando tudo espinhoso. Eu não sei se é porque é recente,
mas parece que sua maldição está me cercando. Como se
estivesse no ar ao nosso redor.
Levanto meu queixo, apontando para o mastro de Keel Haul.
Kaven estava tão longe deste navio, e ainda assim... Poderia ser a
Keel Haul que minha alma está apegada, afinal? Se Vataea sente a
maldição ao seu redor, essa é a única coisa que faz sentido.
— Vamos descobrir — oferece Bastian, chamando minha
atenção para a frente novamente. — Lembre-se, Kaven tem que
manter seu sangue para que a maldição exista. Quando o
enfrentarmos novamente, descobriremos onde ele o guardou e o
destruiremos. Você terá sua magia de volta.
Aceno e espero que o calor familiar da minha magia aqueça
minha pele e concordo com este plano. Mas isso nunca acontece.
— Navegue direto para Arida, então — digo a Bastian. —
Velocidade máxima para a frente. Temos magia para treinar.
E todo o reino de Visidia para proteger.
CAPÍTULO TRINTA E TRÊS

O mar treme quando trovões explodem do céu.


Arida é uma mancha a pouca distância, encoberta pela chuva e
por uma névoa cinzenta que brota da água e se ilumina em tufos
leitosos à medida que levanta.
Estou na beira do arco, Bastian ao meu lado enquanto o vento
forte rosna minhas roupas e chicoteia meus cachos encharcados.
Sua mão repousa sobre a minha; o único calor a ser encontrado. O
ar afiado afundou em meus ossos e entorpeceu meu núcleo.
Bastian toma cuidado para não tocar os cortes na minha palma
enquanto ele enrola os dedos em volta da minha mão. Ele a aperta,
apenas uma vez. Um pulso suave para me lembrar que ele está lá.
Permito que meus dedos façam o mesmo, envolvendo os dele
para que eu possa extrair um pouco de sua força. Eu procuro
novamente a vibração familiar da magia em meu corpo, mas por
dentro permaneço oco. Não há nem uma faísca.
— Tenha cuidado. — O pirata tem que se aproximar para eu
ouvir suas palavras. Mesmo contra a chuva, o calor de sua
respiração pica meu ouvido. — Eu sei que não posso impedi-la de
lutar, mas faça o que fizer, tenha cuidado. Gosto muito de ter você
na minha equipe.
Recuo com a sensação de metal frio em minhas mãos. Minha
adaga.
— Acho que você está pronta para ter isso, novamente. — Seu
sorriso é pequeno, forçado. — Odiei ter que tirá-la de você — Ele
cuidadosamente me entrega Rukan, também. Me deleito com os
minúsculos impulsos de magia que agitam a arma e aquecem minha
mão.
Ainda posso ser forte. Com Rukan, eu ainda posso lutar.
— Obrigada. — Minha voz é mais fraca do que eu quero, e
tremendo de emoção, me forço a engolir.
— Claro, princesa — brinca Bastian. — Não é realmente minha
escolha de arma, de qualquer maneira.
— Não, Bastian. — Embainho a lâmina e seguro suas mãos nas
minhas, apertando-as. — Obrigada. Por nos avisar sobre Kaven.
Por se levantar contra seu próprio irmão. Por me tirar de Zudoh. Por
você e Ferrick, me lembrando que ainda tenho um dever. Por tudo
isso.
As duas mãos dele se aproximam das minhas. Ele as leva até
os lábios e beija as pontas dos meus dedos.
— Obrigado a você — diz ele, com os olhos quentes como suas
mãos. — Por acreditar em mim. E saiba, Amora, que não importa o
que aconteça hoje... não quero que seja onde nossa jornada
termina.
— Nem eu. — E estou surpresa ao perceber que estou falando
sério.
Ele solta minhas mãos para segurar meu rosto e puxa meus
lábios nos dele.
Toda a nossa aventura. Todos os meus sonhos de proteger meu
reino e família. Tudo isso levou a esse momento.
Estou mais perto do meu antigo eu quando estou com Bastian.
Nunca um homem teve tanto domínio sobre mim, e nunca quis isso.
Mas não posso negar que somente quando estou com ele me sinto
calma. É a única vez que me sinto pronta para enfrentar os desafios
que temos pela frente.
Eu o puxo com força, procurando consolo em seus lábios. Nas
mãos que roçam meu rosto e me aquecem das folhas de chuva e da
mordida dura do ar. Eu o seguro o mais perto e o mais firmemente
que posso, e uma parte de mim que não quer nada além de viver
neste momento para sempre. Para não ter que mostrar ao reino e
ao meu povo que falhei com eles, perdendo minha magia.
Mas há muitas vidas em jogo para eu ser egoísta.
Parece que passam horas antes de nos afastarmos, e uma
mancha à distância chama minha atenção.
À nossa frente, Arida é um esboço nebuloso. Quanto mais nos
aproximamos, mais escura fica minha casa e, quando olho de
soslaio, percebo o porquê.
A mancha escura da minha ilha não é formada por nuvens. É
formada pelas velas profundas de ametista de navios que encobrem
as docas de Arida e pela fumaça dos canhões. O fogo devora as
encostas, abrindo caminho entre matas de plantas e árvores.
Destruindo minha linda casa.
Kaven já está aqui. Não temos uma tripulação e, com a
maldição quebrada de Bastian, éramos muito lentos.
— Não! — Meu coração dispara e eu me afasto de Bastian.
Aperto os punhos com força, tentando não tropeçar nas minhas
pernas instáveis. Ele agarra minha cintura para me firmar.
Atrás das velas, na costa, há figuras que mal consigo ver. Elas
se movem de uma maneira que quase parece que estão dançando
até tropeçar no chão ou no oceano faminto.
Bastian coloca a mão no meu ombro, mas me afasto de seu
aperto.
— VATAEA! — Grito seu nome como se estivesse cantando
para um deus, e nossos olhos se encontram brevemente antes que
ela jogue a cabeça na água, sabendo o que deve ser feito. Ela se
joga sobre o navio sem hesitar e bate nas ondas com um tapa em
uma explosão de luz dourada. Sua cauda bate na água uma vez e
depois ela se foi.
— Afogue-os! — Eu grito enquanto ela corre em direção à
costa. — Pergunte por quem eles lutam e afogue quem estiver
contra nós!
Zudoh declarou guerra, e a sobrevivência de Visidia é tudo o
que importa. Não importa o que eu tenha que fazer para garantir
isso, meu reino deve permanecer de pé.
O trovão e a chuva são ferozmente altos, o que significa que
Vataea terá que se aproximar dos atacantes para encantar e atraí-
los. Não preciso me preocupar com os afetados neste navio.
— Amora! Acalme-se, respire.
Aperto as armas com tanta força ao meu lado que minhas mãos
ameaçam se abrir de volta. Eu ignoro a voz, não me importando em
decifrar a qual dos três garotos ela pertence. Um breve relance do
perfil de Casem na minha visão periférica me diz que ele está aqui,
mas não vejo ninguém. Tudo o que vejo é um mundo coberto pelo
sangue escarlate que estou prestes a derramar.
— Vá para o leme — rosno para Bastian. — Leve-nos para as
docas.
Ele não questiona. Se move rapidamente, e eu dou um passo à
frente para apertar os olhos diante da cena que se desenrola diante
de mim.
Vataea conseguiu. As figuras na praia se tornam mais distintas à
medida que as aproximamos. Eles se acalmaram de seus
movimentos irregulares e caminharam em direção à água, deixando
o mar agitado engolir seus corpos enquanto tentavam abrir caminho
para Vataea e o anel de ouro brilhante ao seu redor. Não ouço a
música dela, mas sei que funciona quando vejo homens e mulheres
mergulhando a cabeça na água em que ela mergulha.
Eles nunca ressurgem.
Minhas respirações trêmulas ficam um pouco mais fáceis. Ela
está limpando a costa para nós, dando-nos tempo para nos mover.
Keel Haul se aproxima de Arida. Depois que passamos pelo
recife, é como se a ilha nos chupasse desesperadamente. O navio
sofre um espasmo e eu agarro a borda firmemente enquanto
batemos nas docas, espalhando pedaços de madeira quebradas no
mar.
Casem corre para ancorar o navio enquanto eu corro para a
escada. Seguro minha adaga de aço na boca e uso a mão livre para
me jogar para baixo, ignorando a queimação aguda da corda que
queima nas minhas mãos já feridas.
Não há tempo para lesões triviais. Olho por cima do ombro e
vejo Ferrick e Bastian apressadamente usando uma lâmina para
cortar tiras de tecido de suas camisas e enfiá-las nos ouvidos para
evitar ouvir a música de Vataea. Casem está alguns passos atrás
deles, mas não espero que ele os alcance.
— Ferrick, ajude os feridos! — grito, esperando que ele possa
entender o que estou tentando lhe dizer.
Areia chuta aos meus pés e roe meus tornozelos enquanto
corro pela costa clara em direção ao grupo de aridianos que estão
lutando contra a invasão. Não olho para ver se Ferrick escuta.
Corpos jazem espalhados pelo chão em poças de sangue das
quais a areia absorve e se alimenta. Uma guarda do palácio que
não reconheço se arrasta em direção ao mar de bruços. Suas
pernas foram cortadas e estão sangrando rapidamente, mas a
música de Vataea a mantém firme como uma atração.
Apenas alguns homens e mulheres são deixados de pé.
Pressiono a palma da mão no coração para aliviar o alívio quando
vejo a tia Kalea entre elas, viva e segurando uma espada na mão
ensanguentada. A outra está fechada.
Há uma garota carregando uma espada desembainhada e
pronta para atacar. Os olhos da garota se foram, consumidos pelas
sombras, e o sangue escorre em riachos pela bochecha. Ela é cega
de raiva e magia, e tia Kalea parece doente. Ela balança a espada,
enferrujada por anos de treinamento esquecido. Quando a menina
ataca, Kalea mal consegue evitar toda a força da lâmina. Tropeça
para trás, segurando o braço ferido com uma careta. A mão dela
ainda está fechada, carregando algo que não consigo ver.
A garota levanta a espada novamente e meu coração se aperta.
Corro o mais rápido que posso, mas não é suficiente. Não vou
alcançá-la a tempo – não posso protegê-la.
Pouco antes da espada cair, tia Kalea joga sua arma e cai na
areia. Ela torce para fora do alcance, sentindo falta da lâmina por
pouco e inclina a cabeça para trás. Com as mãos trêmulas, ela
coloca um pequeno osso na boca. Está coberto de sangue.
Eu gostaria de detê-la, mas é tarde demais. Ela engole o osso,
e tropeço para trás como se tivesse levado um forte golpe no
estômago.
A espada de seu oponente cai no chão e a garota cai na areia,
gritando. O ácido no estômago da minha tia roe o osso, destruindo-o
centímetro por centímetro. A pele da garota se descasca e derrete
enquanto ela se arranha, tentando parar a dor e bater na pele podre
em volta ao corpo.
Isso nunca vai funcionar. A morte da garota será lenta e
dolorosa.
Tia Kalea sempre se ligou à magia da alma. Toda essa jornada,
e eu não poderia poupar nem uma pessoa de uma vida que nunca
quis ter.
Ela engasga com isso enquanto se grava em sua alma,
agarrando desesperadamente sua garganta. O seu estômago. Ela
cambaleia como se estivesse prestes a vomitar, seu corpo inteiro
tremendo incontrolavelmente.
Quando aceitei a magia da alma, foi algo cruel e monstruoso
que exigiu muito trabalho e a ajuda do pai para domar. Fiquei doente
por semanas com a maldição, assim como tia Kalea.
Que essa mágica seja exatamente a besta que você é...
O grupo de aridianos atrás dela se move com pânico quando os
olhos da tia Kalea rolam para a parte de trás do crânio. Quando eles
me veem, é através do sangue que escorre em seus olhos. Alguns
deles precisam de atenção médica imediatamente. Fico feliz em ver
Ferrick cuidando de alguns deles à distância, mas precisamos de
mais curandeiros Suntosan aqui o mais rápido possível.
— Traga-a para dentro! — Minha voz falha quando eu grito com
as mulheres, cheia de mil desculpas que eu gostaria de dizer. Mas
já perdi muito tempo. — Todos vocês encontrem uma arma e vão
para um lugar seguro!
Há um homem no meu caminho que não reconheço. Um
soldado inimigo vestido de branco, cuja lança de ferro reflete as
chamas que devoram minha casa e brilham num vermelho violento.
Uma pequena coleção de pulseiras de couro manchada de sangue
está no pulso dele, e minha raiva arde em brasa.
Este homem tem a mesma magia que Kaven. Ele é um dos
poucos que aprendeu a magia da alma amaldiçoada, e não vou
deixar que ele tenha o sangue de mais ninguém.
Eu não vacilo. Continuo minha tarefa, deixando tia Kalea para
os outros. Quando o homem tenta bloquear o meu caminho, a dor e
a raiva que estão se formando dentro de mim se intensificam. Eu me
escondo sob o ataque de sua lança e apunhalo minha adaga
profundamente em seu abdômen, torcendo-a. A lança cai de sua
mão e recuo apenas para rasgar Rukan em sua garganta e ver o
sangue cair como vinho fresco. Ele gargareja, sufocando enquanto
pressiono a arma para frente.
Mais atacantes bloqueiam nosso caminho, mas as flechas de
Casem voam atrás de mim. Eles cortam o ar rápido demais para
acompanhar, apressados por sua magia aérea Valukan, e ele os
derruba antes que eles se tornem uma ameaça. Bastian me cobre
por trás enquanto rasgo Rukan pelo pescoço de outra mulher que se
lança para nós. Eu ouço a cabeça dela bater na areia, seguida pelo
seu corpo, mas não olho para trás.
— Continue! — Bastian grita. — Nós cobrimos você!
Deixo Ferrick para trás com os feridos, nunca planejando parar.
Um Valukan com afinidade com a terra fica na beira ao lado do
do penhasco, enviando pedregulhos gigantes em espiral dos
penhascos quando dois Kers invasores o atacavam. Quando ele me
vê, seus olhos brilham com reconhecimento e ele aperta os pés na
terra, agachando-se. Ele faz um movimento de varredura com os
braços, e a montanha treme e racha, dividindo-se no meio quando
uma escada improvisada toma forma. É um caminho direto para o
palácio, a apenas 800 metros.
— Vá! — Ele grita, grunhindo com um dos ataques dos Kers,
movendo-se rápido demais para evitar. O Valukan puxa a terra ao
seu redor como uma barreira, se protegendo. Antes que os Kers
possam segui-lo, o Valukan rasga sua mão pelo ar e o início da
escada cai atrás de nós.
Os Kers se voltam para ele, zangados, mas não posso ajudá-lo
a lutar. Temos que continuar subindo.
Longe da costa, Casem e Bastian retiram o tecido das orelhas e
jogam os pedaços no chão. A chuva atingiu a encosta do penhasco
e, com pressa, tropeço e bato com o joelho no chão. A dor
lancinante apunhala minha coxa e minha espinha até começar a ver
pontos brancos.
Alguém me agarra debaixo dos braços e me puxa de volta.
Minha perna tenta ceder, mas esqueço a dor e me forço a avançar.
O palácio está à vista.
Só mais um pouco...
A dor atravessa o meu ombro e eu choro. Me viro para ver uma
faca cravada na minha pele. Pinga com um líquido preto escorrendo
que se espalha pelo meu braço e forma uma teia de finas linhas
pretas por cima do meu ombro. Meu atacante é um zudiano que nos
expulsou do lado do palácio e está puxando outra faca de seu cinto.
— Casem! — Bastian grita quando aperto meu braço
entorpecido no meu peito. A próxima coisa que ouço é o barulho
familiar de um corpo caindo quando Casem atira no agressor. Seus
tiros nunca erram.
Bastian está do meu lado em segundos. Ele pega a adaga de
osso que tirei da mulher que matei em Zudoh e, sem aviso prévio, a
enfia no meu ombro. Eu grito, agarrando sua camisa encharcada e
fechando meus punhos nela.
Eu quero amaldiçoá-lo. Chamá-lo dos nomes mais cruéis. Mas
quando ele corta meu ombro e tira sangue do meu braço, a
sensação volta para as pontas dos meus dedos. Lentamente, mas é
alguma coisa.
— Você vai ficar bem — ele me diz, a voz rouca enquanto rasga
a capa e arranca uma tira de tecido molhado, amarrando-a
firmemente no meu braço. Faço uma careta contra a dor, lágrimas
ameaçando picar meus olhos.
Mas temos que seguir em frente. Com um joelho dolorido e um
braço entorpecido, atingida e sem mágica. Mas não temos outra
escolha.
Apoiada por Bastian, atravesso as portas da minha casa.
CAPÍTULO TRINTA E QUATRO

O palácio está vazio. Provavelmente evacuado, já que a maioria dos


guardas que lutam a favor ou contra Arida estão perto da costa.
Pisos de mármore escorregadio guincham contra nossos passos
molhados e enlameados, nos dizendo que não pertencemos a este
lugar. Nos avisando para sair enquanto ainda temos a chance.
Eu seguro Rukan perto e deslizo para fora do aperto de Bastian.
Meu corpo é fantasmagórico, os membros formigando com a lenta
ameaça de aumentar a dormência. Minhas pernas tremem, e a cada
passo a agonia apunhala minha coxa de onde quebrei meu joelho.
Mas ainda assim, eu vou andar.
Ainda vou lutar.
O barulho de nossos passos ecoa contra as paredes
excessivamente brilhantes do palácio, preenchendo o vazio denso e
sem som. Uma pressão no meu peito me puxa para frente e em
direção à sala do trono, onde, de alguma forma, sei que meu pai
espera.
Estou molhada da chuva e cheia de sangue seco enquanto
forço cada passo. Me agarro à grade de pérolas, rangendo os
dentes contra a dor. Atrás de mim, Casem e Bastian ficam quietos,
seguindo o ritmo terrível que eu estabeleci. Estou no meio do
caminho quando um grito estridente sacode as paredes. Atrás de
mim, Casem respira fundo.
— Mira — é tudo o que ele sussurra antes de passar por mim e
subir a escada a toda velocidade. Amaldiçoo meu joelho quebradiço
e sigo. O suor mergulha no meu rosto e cobre meu pescoço com o
esforço.
Recuo quando uma mulher Curmanan, vestida de preto, sai pela
porta, seguida por um soldado real Valukan. Eles giram para encarar
os três perseguidores, dois zudianos de capa branca e um Ker
empunhando tempo em profunda ametista.
No fundo de minha mente, lembro-me de algo que meu pai
disse há muito tempo: aqueles que praticam magia do tempo são
alguns dos melhores soldados. Eles terão sua espada
profundamente no intestino do inimigo antes que alguém possa
piscar.
Eu sei que preciso ajudar, para distrair o Ker da melhor maneira
possível, mas Bastian agarra meu pulso quando tento dar um passo
à frente.
Ele me puxa de volta no momento em que o Ker toca os ombros
de um de seus parceiros zudianos, um homem cujos movimentos
aceleram dramaticamente. Mal consigo acompanhar os golpes da
lâmina do zudiano, mas felizmente o Curmanan está preparado para
eles.
Ela se abaixa e recua, usando levitação para arrancar a espada
do oponente das suas mãos. O zudiano se lança em um rápido
contra-ataque, tão rápido que seu corpo é um borrão graças à ajuda
da magia de seu companheiro. Mas o Curmanan inverteu a espada
no ar, de modo que a ponta preta manchada aponta para o zudiano.
Ela empurra as mãos para a frente e, como o homem está se
movendo rápido demais para se conter, ele cai com um grito. Uma
espada perfura seu peito, o espasmódico quando linhas grossas de
veneno lambem sua pele e a pintam de cinza.
Enquanto isso, o homem Valukan passa as mãos por uma das
tochas que iluminam o salão, agora empunhando sua chama em
suas mãos. Quando os atacantes restantes atacam, os Valukan
jogam o fogo no peito de seus oponentes.
— Eles cuidam disso — diz Bastian. — Vamos seguir em frente.
Contornamos a luta e seguimos para a sala de lavagem, onde
vários Valukans com afinidade pela água estão prontos ao lado das
bacias. Minha respiração para quando vejo que mamãe está entre
eles.
Raramente a vi usar ofensivamente sua magia Valukan; ela
nunca teve um motivo para isso. No entanto, quando os valukanos
nos veem se aproximar, a água chicoteia a minha mãe como uma
arma feroz e faminta. Recuo nas marés cruéis, amaldiçoando a dor
no joelho. Somente quando ela vê meu rosto respira fundo, a água
batendo de volta na bacia.
— Amora! — Ela corre para a frente e joga os braços em volta
de mim com força. Eu cerro meus dentes contra a dor que seu toque
provoca, e enterro meu rosto em seus cachos grossos enquanto ela
me arrasta para dentro dela. — Você está bem. — Seu corpo treme
com os soluços que ela está segurando, tentando se manter forte
pelos outros. — Pelos deuses, você está bem.
Aperto-a com força, dando um suspiro de alívio em seu
pescoço. Ela cheira a sangue e salmoura, e seu toque é tão
desesperado quanto o meu. Tenho que me forçar a me afastar; ela
não quer me deixar ir, e eu gostaria de não precisar.
— Você precisa chegar a uma sala segura — digo a ela
enquanto recuo. — Leve o máximo que puder, mas não tente lutar a
menos que precise. Você precisa se esconder...
— Princesa? — Uma voz diz fracamente.
Meus joelhos quase desmoronam quando me viro para ver Mira,
que está deitada em uma das bacias com uma mão com os nós dos
dedos brancos agarrando o canto dela. Um curandeiro Suntosan em
uma túnica esmeralda está de joelhos ao lado dela, as mãos
cobertas de sangue enquanto as pressiona contra o estômago dela.
Sei que Ferrick está ocupado ajudando aqueles que lutaram na
praia, mas imediatamente desejo que ele a ajude. Mal posso
respirar quando olho para ela.
Ela foi esfaqueada, assim como vários outros criados que estão
ao lado dela. Um deles não se mexe.
Casem está de joelhos ao lado de Mira, segurando a cabeça
dela nas mãos dele. Sua pele fica suada, e o Suntosan que a cura
usa uma expressão sombria de lábios apertados e sobrancelhas
preocupadas.
— A sala do trono — Mira sussurra debilmente. Seus olhos
estão vidrados quando ela tenta me olhar, e isso quase me mata.
Ela toca a mão do curador e aponta trêmula para mim. — O joelho
dela.
— Toque meu joelho e você vai se arrepender — rosno quando
o curandeiro faz um movimento em minha direção. Mira abre a boca
para protestar, mas eu encaro o curador com um olhar firme e aceno
de volta para Mira. — Cure-a. Agora.
A luz nos olhos de Mira está diminuindo, e não vou deixá-la
morrer. Meus ferimentos são ruins, mas não ameaçam a minha vida.
Ainda posso me mover. Eu ainda posso lutar.
Quando me viro para ela, os lábios da minha mãe se apertam.
Seus olhos estão molhados, e a emoção deles a trai. Ela não quer
que eu vá, mas nós duas sabemos que não há escolha. Ela sabe
disso tanto quanto eu ainda tenho minha mágica.
— Eles têm o seu pai — diz ela, suas palavras apertadas. —
Vá, Amora. Rápido. Vou levar o máximo possível de pessoas para a
segurança.
Concordo com a cabeça, mas não importa a rapidez com que
preciso ir, luto para desviar os olhos do fino véu de suor que está
sobre a pele de Mira e se acumula na pequena fenda abaixo de sua
clavícula. O medo que une as sobrancelhas da minha mãe e suas
mãos trêmulas quase me destrói.
Quanto o meu povo teve que sofrer, porque eu não pude parar
esse ataque em Zudoh?
Quando eu encarar Kaven novamente, não cometerei o mesmo
erro.
Eu me viro para que o curandeiro possa se concentrar em Mira,
e beijo a bochecha da minha mãe.
— Proteja-os — digo a ela. — E fique segura, não importa o que
aconteça. Volto em breve.
Não aguento mais. Arrasto Bastian atrás de mim e pego uma
tocha do suporte na parede, deixando Mira com Casem e minha
mãe.
Subimos a escada até o nível mais alto, ofegante e exausta,
mas nunca parando. Não até chegarmos às portas ornamentadas
de ouro que levam à sala do trono e ouvirmos o estrondo de uma
explosão atrás dela. O chão treme com o impacto e agarro o ombro
de Bastian para me estabilizar. Meu ombro dói com o movimento,
mas o enterro em algum lugar profundamente abaixo da minha
adrenalina para ser tratado mais tarde.
Magia. A única coisa que poderia causar uma explosão tão
grande é magia.
A garganta de Bastian se aperta quando ele engole. Seu olhar
desliza para mim, fazendo uma pergunta não dita: Você está
pronta?
Concordo e abrimos as portas.
O ar quente nos acolhe como a morte. Minha tocha é
desnecessária; o quarto está banhado em fogo. Agradeço aos
deuses pela chuva lá fora, pois é provavelmente a única razão pela
qual Arida ainda está de pé.
Chamas lambem as paredes e se alimentam do luxuoso tapete
de safira, escavando-o e consumindo-o inteiro. Minha garganta dói,
lutando para encontrar oxigênio que foi roubado pelo fogo voraz. A
parede traseira sem janelas é a única razão pela qual ainda
podemos respirar.
Papai está posicionado no canto, e o alívio toma conta de mim
quando vejo que ainda está vivo. Seu peito largo arqueja com
suspiros e um lado do rosto está manchado de vermelho pelo
sangue que derrama de um corte profundo na testa. Suas mãos
trêmulas envolvem um punhado de ossos, e quando ele me vê na
entrada, seu peito cede. A cabeça dele balança furiosamente.
— SAIAM — Ele grita, a voz desesperada.
Eu me recuso. Segurando os dois punhais em ambas as mãos,
entro.
A camisa de Kaven está grudada no peito ensangüentado, me
dizendo que meu pai lutou bem. Seus olhos escuros estão cheios de
prata afiada como aço quando ele se vira para mim. No lugar do
braço, ele tem ataduras apertadas no cotovelo.
— Você veio ver o rei encarar seus pecados? — A pergunta
serpenteia através da minha pele e me faz estremecer. — Pobre
Montara, tão focado em ser mais forte que todos os outros. Sempre
tão preocupado em ser derrubado. Durante séculos, você se
colocou à frente do seu povo, destruindo nossas casas e
acumulando magia. Isso acaba hoje à noite.
Kaven segura sua espada pela lâmina. Ele corta a palma da
mão e o sangue reveste o metal rapidamente. Mas é meu pai que
grita quando as palmas das mãos se abrem, sangrando. Eu estou
congelada, entorpecida.
Como Bastian estava ligado em Keel Haul, Kaven amaldiçoou
meu pai para ficar ancorado a ele.
É para proteção; sem as faixas amaldiçoadas que destruí, seu
poder foi enfraquecido. Ao vincular meu pai a ele, Kaven garante
que nunca tocarei nele; matá-lo significaria destruir a alma do pai.
A dor no grito do meu pai se espalha através de mim, mas me
forço a me concentrar. A magia de Kaven pode ser forte, mas não é
ilimitada. Convoco minhas forças e brando meus punhais,
diminuindo o espaço entre e nós. Olho no pulso dele a procura de
um bracelete, sua conexão com a minha maldição e a do meu pai,
mas sua pele está nua.
Bastian muda para o meu lado, tenso quando olha para o irmão.
Ele agarra seu pomo com força. — Vamos fazer isso — ele
sussurra, mais para si mesmo do que para mim. — Vamos acabar
com isso.
— Não vamos fazer nada até que rompamos a conexão dele
com meu pai — digo a ele. — Eu preciso que você a pare.
Ele assente quando Kaven se vira para nós e cospe sangue no
chão. — Olá novamente, irmãozinho. — Seus dentes brilham em
vermelho. — Como a nova maldição está te tratando?
Bastian vacila, a testa enrugada. Mas quando Kaven sorri,
Bastian sacode e aponta sua espada à frente dele.
— Ainda há tempo para recuar, Kaven — diz Bastian, seu
aperto firme e a espada inabalável. — Ninguém mais tem que
morrer.
Seu irmão balança a cabeça, metade do rosto sombreado pelas
chamas. — Fui longe demais para deixar isso acabar aqui. Visidia
merece mais do que uma monarquia de mentirosos e ladrões. Você
é quem ainda tem tempo para recuar; podemos acabar com os
Montaras juntos e compartilhar essa magia com todos. Não há mais
leis. Não há mais divisão.
Minhas mãos tremem enquanto aperto Rukan com força,
embora eu saiba que não posso usar a lâmina. Não enquanto Kaven
ainda usa meu pai como escudo.
Bastian dá um passo à minha frente, colocando-se entre mim e
seu irmão. — Tire seu pai daqui.
Os lábios de Kaven se achatam quando seus olhos prateados
se estreitam. — Essa é sua decisão, então? Depois de tudo que os
Montaras fizeram conosco, você escolheu protegê-la?
— Ela é mais do que seu sangue — rosna Bastian. — E eu sou
mais que o meu. Você é a razão pela qual nossos pais estão
mortos, Kaven. Você é a razão da nossa casa ser destruída. Passei
anos sonhando que as coisas poderiam voltar ao normal um dia e
que você poderia perceber seus erros e pôr um fim nesse caos. Mas
você matou esse sonho e o enterrou profundamente como aqueles
cujo sangue você derramou. Está na hora de terminarmos isso.
Bastian ataca.
CAPÍTULO TRINTA E CINCO

O choque de aço ruge pelo ar.


Quanto mais as chamas se acumulam, mais minha visão fica
embaçada e minha garganta aperta. O fogo lambe meus pés,
beliscando minhas botas de couro. Afasto as chamas e corro para
meu pai, que engasga com a fumaça espessa.
Se queremos continuar vivos, precisamos sair daqui.
A mochila do meu pai caiu ao seu lado, espalhando ossos pelo
chão. Ele claramente tentou usar sua mágica contra Kaven, e não
preciso perguntar para entender o resultado. É como Bastian e Keel
Haul, machucam o navio e Bastian sente também, mas se
machucam Bastian o navio continua como se nada tivesse
acontecido. Assim como o navio, Kaven é imune aos efeitos da
maldição enquanto meu pai sofre.
Ele não é forte o suficiente para aguentar a dor quando tenta
atacar Kaven. É provável que ele esteja se segurando, porque tudo
o que Kaven sente, meu pai sente. Onde Kaven sangra, meu pai
sangra. Parte da alma dele vive dentro de Kaven.
Eu me agacho ao lado dele e tento envolver meus braços em
volta do seu corpo, usando toda minha força para ajudá-lo a se
endireitar.
— Vá! — grito, empurrando-o em direção à porta. — Vá!
Precisamos levá-lo a um lugar seguro.
Cada respiração dele soa como um chiado apertado. Tento
empurrá-lo para longe, mas meu pai segura a minha mão. Seus
olhos são castanhos fundidos, medrosos e sérios. Eles se enchem
de lágrimas quando ele pisca na fumaça e olha para mim.
— Eu falhei com você — ele começa, embora suas palavras
sejam cortadas por uma tosse cruel que sacode seu corpo inteiro.
— Mais tarde — digo a ele. — Não temos tempo. — Meu peito
treme com o esforço de tentar arrastar meu pai para longe; ele é um
peso morto.
— Você está certa — é tudo o que ele sussurra. Estou pronta
para gritar. Pronta para espetar minha adaga na parte de trás da sua
perna e forçá-lo a sair. Mas no momento em que nossos olhos se
encontram, minha visão fica branca quando meu pai bate a palma
da mão diretamente no meu peito.
Eu recuo, meus pulmões esvaziando.
De alguma forma, nós dois não estamos mais na sala do trono,
mas parados sozinhos em um vazio cinza-branco manchado. Não
há incêndios neste espaço estranho e interminável. Não cheira a
aço, nem a corpos sangrando. A única pessoa que consigo ver é
meu pai, que está alto diante de mim.
Espio minhas palmas. O sangue que as manchava
desapareceu, assim como meus ferimentos. Nunca vi uma magia
assim. — O que você...
— Como você disse, não temos muito tempo. — Meu pai
estende a mão e dou um passo em sua direção, deixando sua mão
calejada segurar meu queixo. Seus ricos olhos castanhos
vasculham minha alma, as sobrancelhas franzidas enquanto ele
procura algo que não encontrará.
— Kaven me disse o que fez — sussurra ele — mas nunca
acreditei que isso pudesse ser verdade.
Eu me afasto e sua mão cai ao seu lado, imóvel. Toda a raiva
que enterrei se manifesta agora, fervendo dentro de mim até que eu
não possa mais contê-la.
— Nós poderíamos tê-lo parado. — As palavras saem de mim,
atadas de raiva. — Você sabia a verdade de nossa magia anos
atrás e não fez nada. Por quê? Poderíamos ter evitado tudo isso.
Esse lugar estranho agita minha pele e fortalece a raiva dentro
de mim. A fumaça cinza se enrola em um plano branco, como se
estivesse sufocando. É sem ar, imóvel e sufocante.
A tristeza segura meu pai pelos ombros. Luto para olhar para a
sua dor. É muito crua. Muito esmagadora.
— Foi por isso que falhei com você. Nunca quis que você me
visse como um rei medroso. — De alguma forma, sua voz é calma.
— Mas é exatamente isso que tenho sido. Por mais forte que seja a
nossa mágica, não somos páreo para o reino como um todo, e
seríamos ainda menos se a mágica de Arida fosse dividida. Tentei
acalmar Zudoh e mantê-los afastados sem Visidia perceber o que
estava fazendo.
Parte de mim quer tapar meus ouvidos ou cobrir sua boca para
que ele não possa dizer outra palavra. Porque, por toda a minha
vida, eu queria deixar meu pai orgulhoso. Eu queria ser como ele.
O rei de Visidia. O Alto Animancer.
Meu pai.
Mas ele não é o homem que eu pensava que era. O homem
diante de mim é um covarde, não um rei.
— Meu pai costumava me dizer que, um dia, alguém tentaria
pegar nosso poder — continua ele. — Ele me ensinou a me provar
um Animancer, exatamente como você deveria fazer na noite do seu
aniversário, e depois nunca mais chamar muita atenção para a
minha magia; praticar minhas habilidades, mas apenas demonstrá-
las aos prisioneiros executados tarde da noite quando Arida dorme.
Ele me ensinou a ser forte, mas a governar de longe, assim como
seu pai antes dele. Se eu não interferisse demais em Visidia, as
ilhas poderiam cuidar de si mesmas. Eu deveria apenas acelerar as
coisas e chamar a atenção quando houvesse algo que eu poderia
facilmente fazer para promover minha glória.
Como proteger as sereias.
— E Kerost? — Pergunto. — Estive lá, pai. Vi o estrago feito. Se
você soubesse, como poderia não ajudá-los? — Um momento atrás,
eu estava quente de raiva, mas meu corpo estava completamente
entorpecido neste lugar. O eco de nossas vozes é o único som que
preenche o abismo, e lentamente começo a entender para onde
meu pai me levou.
Isso é magia da alma muito além de qualquer coisa que eu
possa fazer. De alguma forma, ele domesticou sua magia o
suficiente para me trazer aqui, para o espaço pessoal de sua própria
alma.
Olho ao redor do abismo, para as nuvens brancas que procuram
destruir sua alma e não deixam nada além de vazio em seu rastro, e
me pergunto se é assim que minha alma se parece. Em pedaços e
descascando, mas ainda fingindo estar inteira.
— Eles queriam aprender magia Valukan, Amora. Se
permitíssemos, outros começariam a praticar a magia que
quisessem. — A voz dele treme nas dobradiças, como se ele
estivesse lutando para manter o controle de suas palavras. Como se
ele estivesse lutando para manter a crença nelas. — As pessoas
ficariam mais fortes que nós. Nós abriríamos espaço para a
anarquia.
— Poderíamos aprender outras magias também — argumento.
— Se nossa família sempre se preocupou em não ser forte o
suficiente para governar, então talvez estejamos no caminho certo.
— Eu trituro meus pés no sólido nada abaixo de mim, odiando o que
ele admite. Odiando que, apesar de tudo, ainda esperava que ele
tivesse uma razão honrosa para o que havia feito. Que ele ainda
poderia ser quem eu acreditava que era.
— Você me disse que guardamos a magia de Arida para nós
mesmos porque ela era perigosa. — Cada palavra sai da minha
garganta, crua e dolorosa. — Disse que deveríamos impedir que
outros estudassem múltiplas magias porque corromperia suas
almas, não porque temos medo de que nosso próprio povo seja
forte. Quanto da minha vida foi uma mentira, pai? Diga-me a
verdade, você sabia todo esse tempo como a magia aridiana
realmente se tornou realidade? Você sabia sobre Cato?
Finalmente, ele olha para mim, mas não é com a dureza que eu
esperava. Os lábios do meu pai se erguem em um sorriso, embora
as extremidades deles murchem com uma tristeza que ele não
consegue esconder.
— Eu sabia — ele admite. Duas palavras, e é como se ele
tivesse me atingido no rosto. — Já te disse, tenho sido um
governante medroso, evitando problemas até que eles batessem na
minha porta. É por isso que mantive você em Arida por todos esses
anos. Nunca quis que você visse o que eu tinha feito.
— Você sempre foi obediente — continua ele — e inteligente
como um chicote. Sabia que se a levasse para viajar, não demoraria
muito até que você descobrisse meus segredos. E estava certo. —
Todos os traços de um sorriso se foram. Papai fecha o espaço entre
nós e pega um dos meus cachos caídos, colocando-o atrás da
minha orelha. — A única coisa boa que fiz por Visidia foi dá-la a
você, minha filha destemida e implacável. Eu dei a eles uma
poderosa animancer; uma princesa que governará este reino com a
bravura que nunca pude encontrar.
— Não. — Balanço minha cabeça. — Kaven me amaldiçoou.
Estou sem magia. Visidia merece alguém que possa cuidar deles.
Que os manterá seguros. Eles merecem alguém melhor do que
qualquer um de nós.
Ele ri. É um som suave que rasga o abismo e desvanece nos
cantos. As margens do nosso mundo construído começam a
desaparecer. O calor formiga minha pele.
— Minha garota brilhante, sem magia ou não, você está aqui.
Você luta por este reino. Você sangra por este reino. — Papai toca
minhas mãos e as puxo de volta com um estremecimento. Mais uma
vez, o sangue estraga minhas palmas com cicatrizes. — Eles
merecem alguém melhor do que eu, você está certa. Mas você?
Você foi feita para governar Visidia, como fui feito para lhe dar um
reino.
— Não quero isso. — As palavras saem de mim como se
estivessem rasgando minha própria alma. Não sei se são mentira ou
verdade, mas queimam profundamente no meu peito. — Nosso
sangue destruiu Visidia! Como vou governar um reino que
construímos destruindo outros? Minha voz vacila. — Não posso te
perdoar por isso.
Os ombros do meu pai murcham, embora seu sorriso gentil se
mantenha firme. — Não fui um rei justo, mas agora é hora de ser
um. — Inclinando meu queixo, meu pai pressiona um beijo na minha
testa. O toque queima na minha pele como se estivesse me
marcando. — Sei que você cuidará deste reino, e sei que será
corajosa. Amo você, minha filha, mais do que você jamais saberá, e
lamento que esse fardo chegue até você tão cedo. Mas há apenas
uma maneira de ajudá-la a vencer essa luta. Está na hora de
finalmente fazer algo certo.
— Diga a sua mãe que sinto muito — ele sussurra. — E cuide
dela, por favor.
Vacilo, tentando processar as palavras, mesmo quando meu pai
se afasta de mim. Mas não há tempo. Nosso mundo improvisado se
confunde, e o fogo reivindica minha visão periférica quando sou
empurrada de volta para a ardente sala do trono, onde Bastian e
Kaven duelam na neblina esfumaçada.
Meus olhos estão afogados em suor e fumaça enquanto vejo o
meu pai levantar a espada do chão. Ele a torce para pressionar a
ponta da lâmina contra o estômago. Horror congela meus membros.
— Pai? — É como se eu estivesse de volta à praia de Arida,
implorando para que ele se virasse e olhasse para mim. Mas ele
fecha os olhos, uma única lágrima escorrendo pelo rosto. — Espere,
por favor!
O Alto Animancer de Arida, o rei de Visidia, mergulha a espada
profundamente em seu estômago. Eu mal o pego a tempo de ajudar
seu corpo a cair no chão. Seus ombros se erguem sob as pontas
dos meus dedos, apenas uma vez, e sinto o momento em que a
respiração deixa seu corpo e sua alma desaparece para os deuses.
Ele fez isso para quebrar sua conexão com Kaven. Para que eu
pudesse matá-lo sem me preocupar em machucá-lo ou destruir sua
alma.
Ele fez isso por minha causa.
Em algum lugar atrás de mim, o grito de Bastian corta o ar. Mas
não consigo olhar para ele.
Tudo o que vejo é o sangue do meu pai se acumulando sobre o
mármore, surpreendendo as chamas hesitantes ao seu redor. Tudo
o que vejo é como seu corpo se afunda mais profundamente em sua
lâmina e suas mãos caem frouxas ao lado do corpo. O fogo chega
até ele, queimando sua capa e atormentando sua pele.
Mesmo em meio às chamas, estou com fria como gelo.
Meu peito se contrai com respirações que não dou. O sangue
do meu pai desliza em volta das minhas botas. Caio de joelhos ao
lado dele, encarando até minha visão ficar tão vermelha quanto o
seu sangue.
Não faz sentido olhar para o seu peito – que não se move. Ou
seus olhos – que olham sem piscar para o espaço à sua frente. Ele
se foi.
Está morto.
E me deixou a responsabilidade de um reino inteiro, e não
posso falhar com ele.
Rukan está pesada na minha mão, pulsando com a fome que
tenho toda a intenção de alimentar.
Um monstro está diante de mim com um sorriso cruel e olhos
que brilham prateados como lua cheia enquanto olham para o
sangue do pai. Não percebe que eu também sou um monstro.
— Eu venci. — As palavras de Kaven são tão firmes quanto
uma oração. Ele pressiona as palmas das mãos contra o sangue,
olhando como se fosse um presente dos próprios deuses. Ele leva
as mãos aos lábios e cobre a língua da forma como mais deseja.
Na distração de Kaven, um Bastian sem fôlego tira um osso e o
cobre silenciosamente no sangue de seu irmão. Ele deve planejar
amaldiçoar Kaven, mas quando ele levanta o osso para tentar, ele
tropeça de volta com a mão na garganta, depois no estômago. Ele
está engasgando, tentando algo que não consigo ver. O sangue
reveste os lábios e desce pelo queixo, embora eu não veja feridas.
Outro não. Ele não pode me deixar também.
Kaven se vira para ele, surpreso, e sorri.
— O que você fez com ele? — Rosno, preparando minha adaga
quando Bastian cai de joelhos e deixa o osso bater ao seu lado.
Quando ele cai, eu tropeço, minha garganta se contraindo enquanto
procura ar. Meu corpo agarra e treme quando o sangue quente
desliza pelo meu queixo também. Não faço ideia de como ou
quando chegou lá.
Kaven não diz nada. Ele continua olhando para o sangue do
meu pai, e sua admiração arrebata minha respiração até que eu
esteja quase sufocando. É preciso todo o meu poder para me forçar
a me estabilizar, o peito tremendo enquanto avanço para ele. Tudo o
que vejo é vermelho.
Vermelho. Vermelho. Vermelho.
Vermelho como o sangue que em volta de meu pai.
Vermelho como o sangue de Bastian, que cai no chão e
engasga.
Vermelho como o sangue que sempre manchará minha alma.
Vermelho como a camada de sangue que tecerei sobre o
cadáver de Kaven.
Empurrei Rukan em sua perna e enterrei-a em sua pele com um
toque. Kaven nem grita. Ele me puxa pelos cabelos, mas solto
minha adaga e corto os fios até que seu aperto caia com o cabelo
que não é mais meu.
— Diga-me o que fez com ele! — Eu grito desta vez, meus
movimentos erráticos e minha visão girando. Acho que o golpeio de
novo porque há sangue em minhas mãos. Nas minhas, nas dele,
nas do meu pai. Todos sangram da mesma maneira. Não há mais
como acompanhar a quem o sangue pertence.
Bastian bate a mão no chão e chia por ar que não consegue
encontrar. Minha visão fica embaçada e o rosto de Kaven brilha.
— A maldição — ele sussurra. — No momento em que você
machucar outra criatura, que essa magia te coma de dentro para
fora.
Minha garganta aperta com reconhecimento. Essas são as
palavras de Sira, as que ela usou para amaldiçoar Cato.
— Do que você está falando? — Os olhos de Bastian estão
rolando na parte de trás de sua cabeça, e mal consigo me
concentrar.
Porque eu sei a resposta. Minhas têmporas latejam quando
meus próprios olhos se contraem, ameaçando rolar na parte de trás
do meu crânio.
— Bastian acabou de desencadear a maldição de Montara. —
Os dedos de Kaven dançam ao longo do punho de sua espada com
crosta de sangue. Ele mantém o queixo orgulhoso, como se
estivesse emocionado com o sangue que banhamos. Pela
destruição caótica que causou.
Minha visão pulsa em preto. Não posso mais acompanhar todas
as minhas feridas ou a quantidade de sangue que escorre de mim.
Penso em Zudoh, no pequeno objeto que Kaven me amaldiçoou,
quase impossível de ver.
Cabelo de Bastian.
Então penso em Keel Haul, onde me senti vazia até Bastian
segurar as minhas mãos. Como uma concha. Ele era a única coisa
que me fazia sentir um pouco como eu sou.
Tinha razão em acreditar que nenhum homem poderia ter um
poder tão forte sobre mim. Não é o próprio Bastian que me faz sentir
inteira de novo. É porque ele é o pedaço que falta de mim. Minha
magia e metade da minha alma estão amaldiçoadas dentro dele.
Não há como negar a verdade nas palavras de Kaven. Como Keel
Haul controlava Bastian, Bastian agora detém isso sobre mim. Onde
Keel Haul guardava sua magia, ele agora guarda a minha.
Meus pés balançam embaixo de mim, e meu batimento cardíaco
mais lento me lembra de depois que lutei contra a Lusca.
Uma mancha de algo laranja brilhante pisca na frente da sala,
perto da porta. Dança através das chamas, um truque dos meus
olhos turvos. A fumaça que enche a sala de nuvens grossas está
cobrando seu preço. Luto para segurar Rukan nas minhas palmas
trêmulas quando meu joelho machucado me desequilibra. Isso me
trai, me deixando de joelhos.
— É hora de o equilíbrio ser restaurado em Visidia. — Kaven
passa por cima de mim e levanta a espada acima da minha cabeça.
— Vou levar essas pessoas para um futuro melhor.
A dor é o fogo que me alimenta enquanto preparo os dois
punhais; atacaremos ao mesmo tempo. Se eu morrer, o arrastarei
até a morte ao meu lado.
Kaven balança, o empurro para cima e despejo tudo o que resta
dentro de mim nas duas lâminas que rasgam o peito de Kaven.
Espero que sua lâmina caia sobre mim, mas ela cai no chão e
sangue chove no meu rosto.
Sangue de Kaven. O brilho prateado de seus olhos pisca
quando ele cai. Sua mão se foi, espalhada no chão.
Ferrick fica onde o corpo de Kaven caiu, a espada de um
guarda em suas mãos. Seu peito treme quando nossos olhos se
encontram, e ele joga a espada ao lado dele. Ele se ajoelha quando
eu caio e pega minha cabeça antes que ela bata no mármore.
Linhas azuis geladas atravessam a pele de Kaven enquanto o
veneno de Rukan o atravessa. O momento em que seu peito para
de se mover e ele fica de cara no chão é quando sorrio.
Então fecho meus olhos também.
EPÍLOGO

Às vezes penso em como teria sido melhor se eu nunca tivesse


acordado. Penso em como teria sido se Ferrick tivesse me deixado
no chão ao lado do corpo do meu pai e se os curandeiros de
Suntosan não estivessem em nossa ilha naquela noite. Eu nunca
teria que lidar com os corpos. Centenas deles, zudianos, kers e
soldados reais. Não teria que lidar com os aridianos aprisionados
que antes pensava que eram a minha família, como o pai de
Casem, ou ver famílias confusas e desfeitas.
Eu não teria que responder tantas perguntas com mentiras.
Você derrotou Kaven com sua magia? Você desapareceu para
proteger o reino? O Alto Animancer sabia do ataque? Você sabia?
Não teria que existir como apenas metade de mim mesma, e
confiar em um único homem para sustentar minha existência.
Às vezes acho que teria sido mais fácil assim, se Visidia tivesse
me deixado morrer.
Mas toda vez que penso nisso, lembro-me do rosto da minha
mãe quando abria os olhos. Estava quente como o sol com lágrimas
que caíam de seus olhos como estrelas. Lembro-me da maneira
como Vataea me abraçou ferozmente, e como Ferrick chorou no
meu cabelo enquanto eu o segurava e chorava também. Lembro-me
da maneira como Yuriel sussurrou seus agradecimentos a mim
como uma oração, e como Casem se curvou aos meus pés. Mira
não saiu do seu lado desde que ele se levantou.
Também me lembro de Bastian, tremendo, sangrando e
assustado, mas suspirando alívio em minha pele enquanto ele me
segurava. Lembro-me da promessa não dita quando ele pegou
minha mão e do jeito que ele se recusou a deixar ir.
Viro a cabeça, observando o suave aumento e queda do peito
de Bastian enquanto nos deitamos nos jardins, o lugar onde tudo
isso começou.
Este homem tem um pedaço da minha alma. Eu me perguntei
se esse poderia ser o caso algum dia, mas agora essa decisão foi
tomada por mim, e a ideia disso aperta o meu estômago. Como
posso ter certeza de que isso é real?
Tento não pensar no domínio que Bastian tem sobre mim,
porque esse domínio não existirá por muito tempo. Recuso-me a
permitir que uma maldição determine com quem devo passar
minhas horas ou quem devo manter por perto. Embora eu me
importe com Bastian, não quero que seja por causa de uma
maldição. Quero que seja porque eu o escolho.
Ele treme enquanto o observo, os tremores atravessando seu
peito de vez em quando. Ele está praticamente estável agora, seu
corpo ainda está fraco e lutando para processar tanto o repentino
despertar de sua magia de maldição, quanto a maldição de Montara.
A cabeça de Bastian se vira, os olhos castanhos se abrindo
lentamente para a luz dourada do início do outono. Quando ele me
vê assistindo, lança um sorriso preguiçoso e se levanta.
Cuidadosamente, ele estende a mão para pegar a minha. Isso é a
única coisa que me faz sentir inteira novamente, e eu odeio.
Vou quebrar a maldição sobre os Montaras, recuperar minha
alma e, finalmente, restaurar a magia apropriada da alma – a versão
de Sira – para o reino. Mas há outra coisa que devo fazer primeiro.
— Você está pronta? — Ele pergunta.
Os nervos roem meus ossos enquanto olho em direção à
cachoeira, imaginando tudo o que me espera por trás disso. Bastian
aperta meu ombro.
— Você nasceu para isso. — Ele dá um passo à frente e
pressiona um beijo na minha testa, onde o beijo final do meu pai
ainda queima.
Meus olhos ardem. Se ao menos tivéssemos sido mais rápidos
em voltar para Arida. Se ao menos eu tivesse terminado as coisas
em Zudoh. Meu pai ao menos ainda estaria vivo.
Se ao menos.
Se ao menos.
Fecho os olhos e passo os dedos sobre o colar de safira que
fica pesado em volta do meu pescoço.
Hoje, eu não visto apenas a cor de Arida. Uso um vestido sem
mangas de branco sólido para representar a reintrodução de Zudoh
no reino, adornada por duas tornozeleiras de pérolas amarradas.
Eles se chocam magnificamente com Rukan, embainhada de um
lado do meu quadril e com minha adaga de aço do outro.
— Estou pronta. — Pego a mão de Bastian e ele entrelaça
nossos dedos enquanto nos dirigimos para os jardins principais.
A multidão diante de nós é uma onda variável de preto, rosa e
vermelho, verde e azul – e até branco – que para a medida que nos
aproximamos. Mas não há ametista. Os únicos Kers aqui são
aqueles empregados como soldados reais e guardas do palácio;
ainda temos muito a fazer para recuperar a confiança de Kerost.
Raya e Zale são alguns dos primeiros que noto entre a multidão.
Olhá-los, com o estômago cheio e os olhos brilhando, diminui um
pouco a dor deste dia. Embora haja muito menos zudianos aqui do
que deveria, é um começo.
Não muda que a multidão tenha metade do tamanho que era
para a execução, nem que eu só estou aqui porque meu pai está
morto. Nada nunca vai mudar isso.
Meu estômago se contrai, lembrando-me que, enquanto Kaven
se foi, o reino está mais frágil do que nunca. E provavelmente
permaneça assim por algum tempo, porque hoje, no meu primeiro
ato como rainha, restabelecerei o direito de praticar várias magias.
Está na hora de todos terem liberdade.
Embora eu preveja que muitos vão gostar dessa mudança, seu
sucesso dependerá do fato de o pessoal da Visidia acreditar em
mim quando eu lhes disser que a fera não é mais uma preocupação.
A restauração de Visidia depende totalmente da confiança do
meu povo em mim. E por esse motivo, eles não podem saber da
maldição sobre o sangue de Montara.
Ninguém pode saber que eu perdi minha magia, ou que Bastian
a segura. Ninguém pode saber da traição de tia Kalea, ou que a
magia da alma dentro de nós está corrompida por causa de Cato.
Tampouco podem saber dos seguidores de Kaven que estão sendo
mantidos nas prisões bem abaixo, ou da estranha mistura de magia
de maldição e magia de alma que alguns deles possuem.
Pelo menos não agora.
Não serei como meu pai ou o resto dos Montaras. Meu povo
aprenderá a verdade um dia em breve, depois que eu quebrar a
maldição de Montara e disponibilizar a magia da alma para eles.
Mas até lá, eles precisam de alguém para levá-los a esse novo
futuro. Eles precisam de uma governante que possam respeitar
enquanto a base de nossa cultura muda, mesmo que considerem
esse governante uma fraude.
Não mereço sentar-me neste trono, como poderia, depois de
todo o dano que os Montaras causaram neste reino? Mas alguém
tem que reparar Visidia, e sou a única que sabe como.
O olhar da minha mãe é suave quando me aproximo. Ela inclina
a cabeça para mim e, embora não seja habitual, eu curvo a minha.
Um trono de marfim queimado e osso de baleia carbonizado
espera por mim na mesma laje de pedra onde minha apresentação
ocorreu meia temporada atrás. Embora tenha sido sugerido que o
refizessem, exigi que o trono chamuscado fosse mantido. É um
lembrete não apenas ao meu povo, que analisará e saberá
exatamente o que eu fiz por eles, mas também a mim.
Este trono matou o pai. E pode um dia tentar fazer o mesmo
comigo.
Tia Kalea fica no canto esquerdo do trono, com a cabeça baixa.
Quando seus olhos se levantam para encontrar os meus, meu peito
se contrai, forçando a respiração dos meus pulmões.
Agora vejo meu pai nela mais do que nunca. Eu o vejo em seus
olhos fundidos e mandíbula firme. Na pele oliva beijada pelo sol e
nas rugas finas nos cantos dos olhos cansados, que são ofuscados
pelo cansaço do luto que todos sentimos. Tia Kalea pode nunca se
sentir confortável com a magia enrolada em sua alma, mas
lentamente está se adaptando.
Tentei de tudo para garantir que a vida dela permanecesse em
Ikae, mas no final, não importava. Posso tê-la poupado de ter que
sentar no trono, mas a magia da alma reivindicou parte dela. Sua
única esperança é que eu seja capaz de encontrar uma maneira de
quebrar a maldição de Sira.
Passo por Ferrick quando minha mãe me guia para o trono,
onde ele está alto ao meu lado direito. Ele vestiu sua roupa pessoal,
novamente, um blazer verde-esmeralda com punhos de safira e
detalhes dourados. O sorriso de Ferrick é amplo e seu peito se
orgulha enquanto espera para aceitar sua nova posição não como
meu noivo, mas como meu principal consultor.
Os rostos do meu povo se erguem quando inspecionam não seu
novo herdeiro, mas sua nova rainha. Eu aperto meus dedos nos
braços do trono enquanto minha mãe me oferece uma coroa. A
enguia esquelética com dentes irregulares fica acima das minhas
sobrancelhas, e uma espinha de osso e joias se curva nas minhas
costas – a coroa do Alto Animancer.
A coroa do meu pai.
A minha coroa.
Ela a coloca na minha cabeça com as mãos trêmulas enquanto
coloca uma capa que brilha como uma opala sobre meus ombros, e
o tempo todo eu mordo o interior da minha bochecha, desejando
não tremer sob o peso de tudo isso.
— Curvem-se — Minha mãe se vira para se dirigir ao nosso
povo. — Curvem-se à sua rainha, que salvou este reino daqueles
que tentaram destruí-lo. Curvem-se ao seu Alto Animancer, que
ofereceu a própria vida para salvar a sua e que vive para contar a
história.
Enfio meus dedos na capa, puxando-a para mais perto
enquanto ergo meu queixo.
Se há uma verdade que eu sei, é que farei as coisas certas para
o meu reino. Esse é o meu destino, e farei o que for necessário para
ver isso.
— Curvem-se — diz a minha mãe com uma voz que explode na
multidão muito pequena. — Curvem-se ao alto Animancer Amora,
sua nova rainha de Visidia!
E todo mundo o faz.

Você também pode gostar