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VALUKA
Ilha da magia elementar
Representada pelo rubi
MORNUTE
Ilha da magia do encantamento
Representada pelo bêrilo rosa
CURMANA
Ilha da magia da mente
Representada pela ônix
KEROST
Ilha da magia do tempo
Representada pela ametista
SUNTOSU
Ilha da magia da restauração
Representada pela esmeralda
ZUDOH
Ilha da magia da maldição
Representada pela opala
CAPÍTULO UM
Nunca dormi tão bem como na minha primeira noite no oceano. Não
sonhei com minha execução, como temia, nem com a magia
aridiana ou com os olhos que mudavam de cor da tia Kalea. Pela
primeira vez em mais tempo do que me lembro, não sonhei com
minha magia ou com Visidia.
Na verdade, nem sonhei. Dormi a noite toda, apesar da rede.
Minha cabine é escura e sem janelas. Quando pressiono minha
mão contra a madeira, a frieza belisca minha pele. Não há como
saber a hora, mas estou bem descansada e minha mente já dispara.
Esta pequena cabine não é mais reconfortante, mas claustrofóbica.
Eu desejo o ar salgado em meus pulmões.
Aperto a bolsa para que ela segure minhas calças, na qual a
barra está para dentro das minhas botas, e jogo o casaco escarlate
de Bastian sobre mim antes de subir as rangidas escadas de
madeira até o convés. Meu sangue palpita de excitação que eu mal
entendo – deveria estar focada em chegar a Zudoh e encontrar
Kaven antes do final do verão. Não me distrair com a alegria de
acordar a bordo de um navio à vela. O ar gelado inunda meus
pulmões no momento em que saio. Está coberto por um fino véu de
névoa que envolve minha pele e agradavelmente acaricia meu
rosto, me cumprimentando como um amigo esquecido. O odor de
salmoura e algas marinhas é o mais espesso que já conheci. Isso
me diz que estamos mais longe da baía de Arida do que jamais me
aventurei, e quando minha pele se arrepia com o pensamento, não
é por preocupação.
É emoção. Talvez animação, que seria melhor experimentada
em diferentes circunstâncias, mas ainda assim. Ansiava por isso há
anos.
Vou até o proa, me inclino sobre a borda e respiro fundo até
meus pulmões quase estourarem. As gaivotas acima de mim gritam
quando mergulham na água, pegando peixes frenéticos em seus
bicos e engolindo-os antes de subir de volta ao céu e voltar ao
bando. O dia mal atravessou o céu nebuloso e as gotas de água
que caem na minha bochecha ainda estão frias.
Ainda assim, um calor relaxado enche meu peito e me afundo
em seu conforto.
— Bom dia, princesa. — Bastian está atrás de mim, com um
pedaço de pão na palma da mão. Ele parte ao meio e me entrega
um pedaço. — Também tem um pouco de carne seca, embora eu
tenha medo de que a comida em Keel Haul não seja tão requintada
quanto a de Arida. — O navio geme contra as marés, e Bastian dá
um tapinha gentilmente na borda. — Desculpa, amor. Você sabe
que é verdade.
Nunca vi Bastian à luz do dia, e fico surpresa ao descobrir que
ele se parece mais com um viajante experiente do que meu pai.
Enquanto o sol se banha em sua pele, lançando ouro sobre a sua
coloração marrom quente, seus olhos tem um brilho que só pode
advir de se encharcar sob a luz das estrelas. Eles são uma avelã
impressionante com manchas brilhantes de amarelo, e há um
punhado de sardas espalhadas abaixo eles. Ele não é como
qualquer pessoa que eu já tenha visto antes – moldado pelo mundo,
criado por viagens e aventura. Há histórias nesses olhos, mas não
me apaixono por elas tão facilmente.
Eu pego o pão oferecido.
— Bom dia, pirata. — Mordo o pão, surpresa ao descobrir que
ainda está macio. Como se estivesse lendo minha expressão,
Bastian fica triste. Lentamente, fazendo uma apresentação, ele tira
algo do bolso do peito. Está embrulhado em um lenço estampado e
estou curiosa demais para me divertir com isso. Com a palma da
mão esticada, ele usa a outra mão para desenrolar lentamente o
que está dentro.
É ginnada, e eu estou salivando.
— Você roubou isso de Arida — digo, apenas colocando como
uma meia pergunta.
— Não considero isso um roubo. — Ele faz um movimento para
embrulhar a sobremesa, mas para com uma risada quando me nota
olhando. — Penso nisso como diligentemente reabastecer Keel Haul
antes que uma princesa faminta e seu noivo-boca-extra-para-
alimentar se juntem a mim. Você tem sorte. Caso contrário,
estaríamos comendo pão e vinho obsoletos até encontrarmos um
lugar para conseguir algo melhor. — Ele passa a mão pelos cabelos
castanhos escuros e percebo que estão salpicados de pedaços de
areia nos quais o sol se agarrava e descorava.
— Quer dizer um lugar para roubar? — Pergunto com um
sorriso.
Bastian bufa. — Apenas pegue. Eu vi o jeito que você olhava
essas coisas ontem à noite.
— Estava me observando a noite toda, então? — Bastian revira
os olhos quando eu pergunto.
— Você se subestima. Na sua coroa, era difícil te perder de
vista.
A língua desse pirata é solta demais para o próprio bem; Não
me incomodo em tentar superá-lo com uma resposta. Em vez disso,
pego a ginnada da mão dele e dou uma mordida, gemendo quando
a amêndoa açucarada e a crosta amanteigada derretem na minha
boca.
— Estou feliz por ter estocado mais algumas. — Bastian ri
enquanto enfio o resto da ginnada na minha boca. — Não é sempre
que você acaba em um festival gigante com comida de graça. É
melhor tirar proveito de circunstâncias tão boas.
Outra gaivota grita antes de mergulhar para a refeição. Eu
assisto, terminando a minha enquanto Bastian se inclina contra a
borda do navio e olha para o mar. Ele pode ter sido bonito sob o
brilho das estrelas, mas no sol é glorioso e confortável. Deve
conhecer cada centímetro da Keel Haul.
— Keel Haul é um navio mágico — eu digo. — Não é?
Seus ombros enrijecem enquanto ele mantém o foco nas
gaivotas. Duas delas lutam acima da água por um peixe, suas asas
batendo furiosamente contra as ondas enquanto seus guinchos
enchem o ar.
— Suponho que você possa dizer isso — ele admite. — Não é o
tipo de navio que exige uma tripulação.
Magia, então. Mas não do tipo que eu tenha visto antes. Até os
Curmanianos mais talentosos têm que viajar em grupos para dirigir
navios pesados, e isso não é nada como a magia de maldição
protetora que me ensinaram que os zudianos praticavam.
Eu o observo pelo canto do olho, esperando que explique mais,
mas ele não o faz. Ele pega um pequeno pedaço de pão e o joga no
mar. Um peixe maior do que qualquer outro que eu já vi flutua na
superfície e o chupa antes que as gaivotas possam roubá-lo.
Eu dou outra mordida no pão. — Bem, se não vai me contar
sobre isso, pelo menos dirá o quanto você está familiarizado com
Kaven? Se Zudoh barricou como disse, ou como você saiu da ilha?
A tensão dá um nó nos seus ombros. Ele joga outro pedaço de
pão na água antes de terminar. — Parti há séculos, antes da
barricada. Eu conhecia Kaven naquela época, quando essa
bagunça estava começando. Ele roubou minha magia de mim, e
pretendo recuperá-la.
O nevoeiro deve finalmente ter atravessado meu casaco e meus
ossos. Um calafrio toca interior.
— O que você quer dizer com ele roubou sua magia? — Me
envolvo em meus braços, as palavras quase pegando. A magia faz
parte do ser de uma pessoa; todo mundo tem. Você pode aprendê-
la, estudá-la, crescer com ela, mas não pode fazê-la desaparecer
uma vez que é sua. Mesmo se você nunca usá-la, ainda estará para
sempre com você. — Nunca houve um relato de alguém capaz de
fazer isso. É impossível.
— Também nunca houve relatos de um navio mágico. No
entanto, aqui estamos. — Bastian balança o braço atrás dele para
gesticular em torno de Keel Haul. — O mundo não funciona apenas
com seus olhos, princesa. Há verdade em mais do que você pode
ver.
Eu me acomodo na minha posição debruçada sobre Keel Haul.
O sol está começando a romper a espessa camada de nuvens.
Seus raios esquentam minhas mãos quando as fecho em punhos.
Depois de ver parte de sua alma limpa na noite passada, meu
instinto diz que Bastian está dizendo a verdade – pelo menos, por
que ele mentiria sobre algo tão pessoal? – e, se eu aprendi alguma
coisa nos meus dezoito anos, é seguir o meu instinto. Se Bastian
está dizendo a verdade, e se a magia pode realmente ser roubada,
então Kaven é uma ameaça maior do que eu poderia ter imaginado.
Por que eu não sabia disso? Por que ninguém sabe?
— Como Kaven te roubou? — Pergunto. — E, se você não tem
magia, como está navegando aqui?
Bastian balança a cabeça. — Lembre-se de que eu acabei de
assistir você matar um homem. — Suas palavras são mais objetivas
do que frias. — E você ameaçou me esfaquear – várias vezes, devo
acrescentar – e roubar meu navio. Então me perdoe se desconfio
tanto de você quanto de mim.
— Ele é realmente tão perigoso? — Eu pergunto baixinho.
Uma sombra cruza o seu rosto. — Conhece mais alguém com o
poder de roubar a magia de outra pessoa?
Balanço a cabeça. Não consigo nem imaginar como seria
alguém roubar minha magia – seria muito invasivo. Como se
estivessem roubando parte da minha alma. Mas eu relaxo sabendo
que não apenas minha mágica está ligada à minha alma, mas
também minha própria linhagem. Duvido que algo assim possa ser
roubado.
Bastian levanta o olhar para se concentrar em Ferrick quando
ele se aproxima, vestido da mesma maneira que na noite passada.
Seu braço voltou a crescer um pouco desde ontem, embora ainda
esteja com uma parte faltando, do antebraço para baixo.
— Bom dia, noivo — Bastian grita, mudando rapidamente de
assunto. — Há pão e carne seca no depósito, se você estiver com
fome.
Com a menção de comida, Ferrick pressiona a mão no
estômago e geme. Ele parece ainda pior do que na noite passada.
Sua pele verde rivaliza com a cor do seu blazer. Com um dos lenços
de Bastian enfiado na mão, ele enxuga o suor da testa.
— Não, obrigado. — A voz de Ferrick é comprimida. — Como
alguém pode viver em um navio? Eu nunca vou entender. Senti
como se estivesse flutuando no mar a noite inteira.
— Isso porque você estava — eu digo.
Bastian ri e se move para dar um tapinha no ombro de Ferrick,
todo charme e sorrisos mais uma vez. — Não é bem um marinheiro,
não é, companheiro? Não se preocupe, algumas pessoas levam
dias no mar até que se adaptem. Fique por aqui e terá as pernas do
mar em pouco tempo. Mas, enquanto isso, se você vai vomitar, tente
evitar fazê-lo no meu navio.
Ferrick balança. Ele parece pronto para destruir Keel Haul.
— Como você está, Amora? — Pergunta, olhando o pão nas
minhas mãos. Quando dou uma última mordida, Ferrick parece
ainda mais enjoado.
— Isso não me incomoda — é tudo o que digo, por que como
devo dizer a verdade? Como admito que estar nesse navio parece
tão natural quanto respirar? Que quando eu acordei esta manhã,
não era na possibilidade da minha execução em que pensei
primeiro. Foi a emoção de viajar. De velejar.
Não é como imaginava, mas estou vivendo um sonho que tive
desde a primeira vez que vi o oceano.
— Você está familiarizada — diz Bastian. — Até acordou com o
sol.
Eu aceito o elogio dele com um sorriso. Embora ainda exista
certa curiosidade entre nós, deixo passar por enquanto. Talvez
algumas lembranças sejam dolorosas demais para serem
compartilhadas. — Isso significa que você começará a me ensinar a
velejar?
— Boa tentativa, mas estar familiarizada com o mar não
significa que você está com a Keel Haul. Seu entusiasmo é
encantador, mas ainda não. — A diversão na voz dele é como um
bolo de mel, quente e doce. — Além disso, você provavelmente
deveria fazer algo sobre esse pequeno presente amputado no seu
quarto. Antes que comece a apodrecer, por favor.
Ferrick se senta e segura a cabeça entre os joelhos. Ele não
está doente o suficiente para não bufar.
— Vai ser sangrento — digo a Bastian, que torce o nariz. O deck
de Keel Haul está impecável, o que significa que ele deve ter
passado horas esfregando a bagunça que fez na noite anterior.
— Mergulhe no oceano e depois vamos para baixo. Tenho
alguns sacos de estopa em que você pode trabalhar.
Concordo com a cabeça, instintivamente colocando a mão na
minha mochila. Depois de tudo que usei para a execução, está
quase vazia. Vou me sentir melhor quando estiver pesada
novamente.
— Você está bem com essas roupas ficando manchadas? — Eu
pergunto.
Bastian leva um longo momento para considerar a minha
pergunta. Eventualmente, e provavelmente apenas porque eles não
se encaixam mais nele, ele cede. — Apenas... tire o casaco,
primeiro. — Ele se vira para Ferrick. — E você se sentirá melhor se
permanecer no convés. Tente descer o mínimo possível. Levante a
cabeça e olhe o horizonte. Parece bom, companheiro? Olhos no
horizonte.
Ferrick lentamente levanta a cabeça e, em vez de abaixá-la
entre os joelhos, ele coloca o queixo em cima de um, força os olhos
para o horizonte e geme.
Bastian considera isso como uma dispensa. Ele se vira para
mim. — Que tal me mostrar o que planeja fazer com esse braço?
Meus dedos tremem ao meu lado enquanto hesito, pensando
nos rostos horrorizados da noite passada. Dos gritos aterrorizados
do meu povo.
Embora minha magia visasse impressioná-los, meu
desempenho apenas solidificou o medo do meu povo.
Durante anos, fiz essa parte do meu trabalho em particular,
treinando para o dia em que seria capaz de reivindicar meu título
como herdeira do trono de Visidia. Mas agora não há alegria em
mostrar minha magia. Meus nervos se contorcem quando penso em
Bastian assistindo.
Ele vai achar minha magia muito bagunçada? Muito brutal? Ou
entenderá que o que faço é necessário para a sobrevivência de
Visidia?
Ele me segue até minha cabine, onde tiro a mão do chão antes
de voltar ao o convés para separá-la. Meu nariz se torce com o odor
rançoso de carne estragada tingida de doçura, como se alguém
tentasse mascarar o cheiro da morte com um perfume horrível. A
pele ficou azulada durante a noite. É desprezível, mas Bastian não
pode parar de olhar enquanto eu puxo minha adaga.
Mãos não são incomuns para eu trabalhar. Elas são pequenas o
suficiente e fáceis de extrair. Desloco a lâmina através da artéria
radial e o sangue grosso e gelatinoso congela sob a pele azul. Não
querendo pegar Keel Haul, eu tomo cuidado quando seguro sobre a
borda e retiro o sangue oxidado com minha adaga. Manchas
vermelhas pintam a água da cor de um hematoma escuro.
Quando finalmente chegamos ao convés, Bastian pega dois
sacos de estopa do armazenamento.
— Me ajude a entender algo sobre sua magia — ele começa
enquanto as espalha no chão de madeira. — Por que, mesmo se
você estiver usando os ossos de Ferrick ou – deuses proíbam –
toda a mão dele, sua magia não o machuca? Por que isso
machucaria outra pessoa?
— Boa pergunta. — Me agacho acima da estopa, depois me
ajoelho para manter o equilíbrio. Muito abaixo do convés, as ondas
são ferozes e chocantes. — Eu poderia machucar Ferrick, mas
escolho a quem vinculo minha magia, e vincular exige um esforço
consciente. Primeiro tenho que estar perto deles e ser capaz de
olhar para a sua alma enquanto o faço. Usar os ossos de Ferrick
como base para minha magia, e não como pasta, é uma escolha. —
Tento não pensar em quanta confiança Ferrick tem em mim para me
deixar manter essa mão decepada dele enquanto a coloco sobre a
estopa e abro a palma da mão. O sangue é mínimo quando eu
estico a pele para longe da fina camada de gordura, depois corto
meu caminho através dos músculos abaixo.
Embora eu tenha drenado o máximo de sangue possível, isso
não impede que minhas mãos se tornem uma bagunça de tecido.
Bastian engasga, interrompendo seu próprio vômito.
Eu congelo com o som.
— Isso é muito... interessante — ele começa a dizer, embora
suas palavras sejam tensas. Com as sobrancelhas franzidas,
levanto os olhos bem a tempo de vê-lo dar uma olhada no membro
dissecado e desmaiar no chão.
Meu corpo inflama com vergonha. Ela vem em um calor que
enche minha barriga, e uma onda de nervosismo que torna meus
movimentos mais nítidos. Mais rápido. Movo-me para cobrir a mão,
mas o navio treme quando Keel Haul atinge um feroz pedaço de
água. Ele lança um som fantasmagórico, cheio de madeira lascada
e rangendo, e eu sou jogada de volta no chão. Agarro-me a um
pesado barril de vinho para me firmar, esperando até Keel Haul se
estabilizar, depois digo silenciosamente um agradecimento a
Ferrick, que deve ter assumido o comando enquanto provavelmente
vomitava o seu cérebro.
Perto de mim, as pontas dos dedos de Bastian se contraem.
— Se você tem um estômago fraco, não deveria ter pedido para
assistir! — As palavras saem mais amargas do que pretendo ao
pensar em cada par de olhos que me olharam com horror e nojo.
Esse trabalho pode ser confuso, mas isso é necessário para
usar minha magia, e é tudo o temos. Ontem à noite, cometi um erro
e me deixei impressionar – por Kaven, tia Kalea e pelos rostos
aterrorizados de centenas de visidianos. Mas eu não sou uma serva
da minha magia. Eu a comando, e quero que outros vejam isso.
Quando Bastian pisca com clareza em sua visão, ele mantém
sua atenção longe do membro dissecado. Cubro com a estopa.
Por um lado, entendo a reação dele. Na primeira vez em que
papai me mostrou como dissecar algo, começamos com um pé
cheio de tendões desarrumados e pegajosos que grudam nos dedos
e são quase impossíveis de contornar. Fiquei chateada por ter
manchado o vestido que usara naquele dia, mas ter magia não
significa apenas aprender a viver com ela, mas também aceitá-la
como parte de você. Quando comecei a praticar magia da alma, a
morte parecia uma coisa trágica e doentia. Mas como protetora de
Visidia, esse foi um obstáculo que fui forçada a atravessar há muito
tempo. Se Bastian quiser me usar e minha magia, ele deve entender
o que está usando.
— Eu nunca vi você como do tipo que desmaia. — Não posso
conter a amargura que sai em minhas palavras.
Ele esfrega o pescoço. — Desculpe. — Embora suas palavras
sejam cortadas com aborrecimento, elas são genuínas. — É tão...
— Impressionante. — Eu tento ignorar como a reação dele dói.
Minha magia é estranha. Mas por que as pessoas não conseguem
ver que também é incrível? — Assumi essa mágica para servir
Visidia e proteger meu povo. Impressionante é a palavra que você
procura.
Suas sobrancelhas estão franzidas como se ele estivesse
contemplando alguma coisa, e eu não gosto da aparência.
— Talvez você deva ir verificar Ferrick. — Não é
necessariamente uma sugestão, mas Bastian a considera como
uma. Olho-o cautelosamente enquanto ele esfrega as mãos no
rosto.
— Não, não. Eu sinto muito. Não é o sangue que me incomoda.
Eu nunca fui tão minucioso com o corpo de alguém antes. Se
começar a me sentir mal de novo, vou embora. Eu prometo. Mas
isso é algo que quero ver. Você está certa, é... impressionante.
Pressiono meus lábios enquanto puxo lentamente a estopa para
revelar a mão. Bastian luta para manter o rosto congelado e os
ombros firmes. Ele mal respira, os nós dos dedos pressionados em
seu colo para se firmar, mas está claro que ele quer ficar.
E porque quero que alguém entenda minha magia, eu deixo.
CAPÍTULO DEZ
Acordo em uma sala inundada de calor. A luz da lua sai detrás das
cortinas de veludo abertas e uma lâmpada de óleo esmaecida
queima sobre a mesa de mogno ao meu lado.
Um colchão macio atrai meu corpo, me embalando de volta ao
sono. Não me importei em dormir em uma rede, mas agora que me
lembro do que estava perdendo, quero me envolver entre os
cobertores luxuosos e nunca mais sair. A exaustão me leva a dormir
por uma semana.
Mapas e atlas cobrem o chão e as paredes. Na penumbra,
percebo uma parede onde as roupas ficam penduradas, imaculadas
e ordenadas por tipo e cor. Casacos de um lado, camisas de linho
do outro. Mais sapatos masculinos do que eu já vi em um só lugar
formam uma linha no chão.
Bastian está sentado em uma cadeira, debruçado sobre a mesa.
Ele veste apenas uma camisa de linho preta fina e uma calça larga,
da forma mais casual do que já vi. A definição de seus braços e
ombros chama minha atenção quando ele examina algo que está
sobre a mesa. Está de costas para mim, mais amplo e musculoso
do que imaginava. Com a rapidez com que ele pode escalar o
cordame e arrastar as âncoras de Keel Haul, esperava que ele fosse
forte.
O que eu não esperava é o quanto eu aprecio a aparência da
camisa preta contra sua quente pele marrom. Também não espero o
pensamento de como suas costas e ombros podem se sentir
debaixo das minhas mãos, poderosas e firmes.
Bastian se afasta da mesa com um suspiro. O tentáculo da
Lusca repousa diante dele. Lembro-me de querer trazê-lo para o
navio comigo, mas nunca cheguei tão longe. Como eu e o tentáculo
chegamos aqui?
Ele se assusta quando se vira e me pega olhando. — Você está
acordada. — Ele procura meu rosto com cuidado. — Como está se
sentindo? Sinto muito pelas suas roupas. Vataea te trocou; Ferrick
precisava ver quão profunda é a sua ferida.
Sei que a Lusca me atingiu, mas não me lembro da ferida ser
profunda, nem de sangue. Tudo o que me lembro são flashes de
tentáculos, água e, eventualmente, completa dormência.
Olho para mim mesma pela primeira vez, finalmente percebendo
a rigidez do meu corpo enquanto tento me mover.
— Cuidado! — Bastian se move para a beira da cama. —
Ferrick foi capaz de te estabilizar, mas tivemos que drenar muito do
seu sangue para tirar o veneno. Mesmo um curandeiro Suntosan
não pode devolver sangue perdido. — Seu corpo está tenso quando
a pele entre as sobrancelhas se enruga em linhas que o
envelhecem dez anos. Olhando para eles, minha cabeça gira. Tento
falar, mas as palavras queimam.
Flashes de água escura e manchada de sangue escorrem por
trás dos meus olhos quando me lembro da lembrança de me afogar.
De vomitar no mar enquanto lutava para ressurgir. Minha garganta
queima como se eu tivesse engolido litros de rum puro. Leva um
tempo até que eu seja capaz de falar mesmo com a dor.
— O quão ruim foi? — grito. — Há quanto tempo estou
inconsciente?
Bastian alisa um cacho solto do meu pescoço e o coloca de
volta no lugar. Seu toque é suave, como se muita pressão pudesse
me quebrar. — Dois dias. — Ele levanta a mão em protesto quando
começo a me sentar. — Relaxe. Neste extremo sul, as águas
começam a ficar rochosas pelo frio. Mesmo com a velocidade de
Keel Haul, a viagem a Zudoh levará três. Precisa descansar. — Ele
diz a última parte com um suspiro longo e prolongado. — Você deve
ter um desejo de morte, sabia? Pulando na água com um monstro
marinho? Quase foi morta.
— Mas não morri. — Tento sorrir, mas meus lábios estão
rachados de sal marinho e faço uma careta quando eles se abrem.
Mesmo com os ossos cansados e mal conseguindo me mover, a
adrenalina que flui através de mim é inegável. Ferve no meu sangue
e acelera meu coração de uma maneira que nunca conheci.
Foi assim que o pai se sentiu depois de suas aventuras? Depois
de domar um kelpie e perseguir o leviatã?
Até agora, ninguém foi capaz de documentar a prova da
existência da Lusca.
Chega de sair da cama, meu pai me disse uma vez. A Lusca vai
te pegar se você o fizer! Vai agarrar seus tornozelos e te devorar
inteira! Sua refeição favorita são os ossos de crianças
desobedientes, sabe...
Em algumas histórias, havia rumores de que o monstro tinha a
cabeça de um tubarão. Em outros, tinha três cabeças e tentáculos
venenosos. Na minha paranóia noturna, era um animal enorme, com
tentáculos longos e viscosos feitos para arrancar tornozelos e
dentes longos como punhal para morder os ossos das crianças. Mas
comparado à coisa real, minha Lusca imaginada era um filhote de
cachorro.
Mal posso esperar para dizer ao pai que não apenas enfrentei a
fera, mas que a superei. Eu só queria que ele estivesse lá para ver.
— Como voltei para o navio? — Tento molhar meus lábios
rachados, mas minha boca está muito seca.
— Eu pulei atrás de você. — Bastian diz isso de maneira
simples, como se a resposta fosse óbvia. — Demorei um pouco
para descobrir como você conseguiu, mas paralisar a Lusca foi
genial, admito; embora não devesse se arriscar assim.
Inclino minha cabeça no travesseiro, fechando os olhos em
protesto contra a tontura. — É o que tinha que ser feito.
Por um momento há apenas silêncio. Sem palavras. Sem
passos. Talvez nem mesmo qualquer respiração além da minha.
Quando Bastian fala novamente, suas palavras podem ser calmas,
mas são afiadas como uma lâmina: — Você realmente fará qualquer
coisa pelo seu povo, não é?
Quero abrir os olhos e lembrá-lo de que já dei minha resposta,
mas quando o faço, Bastian não parece convencido ou com raiva.
Seu rosto está sombreado pela lâmpada de óleo, o queixo forte em
seu perfil. Ele balança a cabeça apenas um pouco, como se para si
mesmo. — Você é uma Montara; seu pai baniu minha ilha do reino.
Destruiu minha casa. Tentei não ser hipócrita, porque, quem sou eu
para julgar alguém pela família? Mas ainda assim, eu queria te
odiar. — Seus punhos cerram e se abrem ao lado do corpo, os olhos
apertados no chão como se ele estivesse lutando com algum tipo de
guerra interna.
— E você me odeia? — Pergunto.
Ele balança a cabeça. — Não, Amora. Não consegui te odiar
desde o momento em que conversamos pela primeira vez.
Mal posso dizer se a sensação de tontura é por causa dos meus
ferimentos ou por causa das palavras de Bastian. Minha pele está
quente, mas não consigo olhar para ele. Devagar, com cuidado,
estendo minha mão para pegar a dele. Ele fica tenso no começo,
mas seus ombros relaxam lentamente enquanto aceno para ele se
sentar na beira da cama.
O calor se espalha pelo meu peito enquanto deixo uma pequena
parte da minha magia passar por mim, usando-a para procurar sua
alma e confirmar a suspeita que dá um nó no meu estômago.
Na primeira noite em que conheci Bastian, pensei que minha
magia estava cansada demais para ver a totalidade de sua alma.
Mas, olhando para ele agora, ainda está o enevoado cinza claro que
era antes, com as bordas desbotando na fumaça fina que se recusa
a me mostrar o resto. Vejo apenas metade dele.
— Vi você durante a luta, Bastian — digo. — Ouvi você gritar.
Ele hesita, mas não se afasta.
— Na primeira vez que a Lusca atacou, não vi você ser atingido
— pressiono. — Atingiu Keel Haul, e você reagiu. Como se você
estivesse sofrendo.
Seus olhos captam a luz da lua e, por um momento, são
prateados e banhados pelas estrelas. Ele apoia seu peso em um
braço. — Onde quer chegar?
As palavras são um desafio do qual não posso me afastar.
Embora ele esteja tenso, quase parece que Bastian quer que eu
saiba. Posso sentir isso na maneira como sua mão se fecha na
minha, seu polegar roçando meu pulso, praticamente me implorando
para dizer a resposta em voz alta e libertá-lo de seu segredo.
Gostaria de saber há quanto tempo ele está segurando isso.
— Você disse antes que Keel Haul era um navio mágico. —
Levanto meu queixo, prendendo sua atenção. — E Vataea disse que
sentiu a maldição no momento em que subiu a bordo da Keel Haul.
Agora que vi essa magia em ação, acho que posso entender o que
é uma dessas maldições. Toda vez que você era atingido pelo
Lusca, o navio reagia. Toda vez que o navio foi atingido, você sentiu
a dor. Você e Keel Haul estão conectados por magia, não é?
Sua mão forma um punho nos lençóis. Ele flexiona a mandíbula
e olha pela janela, para o mar escuro. — E se estivermos? Mudaria
a forma que você pensa sobre mim?
— Não. Eu gostaria de entender.
Ele range os dentes, hesitante, mas as palavras vêm
rapidamente. Como se ele quisesse desesperadamente
compartilhá-las. — É magia zudiana, como você adivinhou.
— Como? — Pergunto. — A magia da maldição permanece
contida, não é? Quando soltei o colar, a maldição seguiu, não eu.
Não fui amaldiçoada permanentemente.
Seu suspiro me diz que é mais complicado que isso. — Zudoh
costumava ser a ilha mais popular do reino. Era frequentemente
visitada por turistas curiosos e pessoas que buscavam poções e
feitiços amaldiçoados para trazer de volta para suas próprias ilhas.
Cerca de treze anos atrás, isso começou a mudar.
— Parte de Zudoh queria se separar do reino — continua ele. —
Eles queriam expandir seu alcance, seu poder e fazer mais do que
bugigangas para turistas ricos. Eles viram uma forma de sua mágica
crescer. Mas para conseguir isso, precisavam de uma maneira de
criar maldições que poderiam durar para sempre; vinculando-as à
alma de uma pessoa.
— Eles aprenderam a magia da alma? — Minhas mãos estão
suadas enquanto dou uma respiração afiada. O rei Cato a restringiu
à linhagem de Montara, para proteger nosso povo da fera que ele
lutou séculos atrás. — Mas não é para ser aprendida por outros. É o
fardo dos Montaras carregá-la.
— E isso só pode ser um fardo dos Montaras — diz ele. — É por
isso que Kaven teve que criar algo novo. É essencialmente uma
magia da alma amaldiçoada. Você não pode destruir a alma de
alguém como você pode com a magia aridiana, mas pode
amaldiçoar uma.
A temperatura do cômodo cai dez graus. Mesmo com o calor da
mão de Bastian contra a minha pele, estremeço. — Como eles
ainda estão vivos? — Mágicas múltiplas quebram o corpo e a alma
de uma pessoa até que elas acabem por cessar completamente.
Proteger as pessoas disso é como minha magia passou a existir.
— Eu não sei — ele admite — mas é a verdade. Quem pratica
essa magia pode roubar e amaldiçoar metade de uma alma.
Como uma pessoa amaldiçoada continuaria a existir, com
metade dela desaparecida? Chamaria Bastian de mentiroso se não
tivesse visto sua alma. — Como funciona?
O rosto de Bastian escurece. — Primeiro eles usam a magia da
alma para acessar a alma de alguém. E então, usando o sangue da
vítima, eles podem amaldiçoar parte de sua alma em qualquer
coisa. Veja meu relacionamento com Keel Haul por exemplo. Kaven
me amaldiçoou a este navio; é por isso que sou forçado a
permanecer nele e por isso fico mais doente quanto mais tempo fico
longe dele. Uma pessoa não pode viver confortavelmente com
apenas metade de sua alma.
Penso em sua pele pegajosa e respirações agudas durante
nosso tempo em Ikae. Só ficamos fora do navio por algumas horas.
— O que aconteceria se Keel Haul fosse destruído? Você morreria?
Bastian balança a cabeça. — Eu sobreviveria, mas não seria
uma vida digna de ser vivida. Eu me tornaria uma concha de
pessoa, vazia e vazia. Não desejaria nada além da minha alma
quebrada.
Minha cabeça gira enquanto tento processar isso. — E o que
aconteceria com Keel Haul se você morresse?
— Por mais que eu a ame, é apenas um navio. Keel Haul
mantém parte da minha alma, e não o contrário. Se eu morrer, ela
voltará a ser uma embarcação normal, não mais ligada a ninguém.
Sinto o que ela sente, pois minha alma está dentro dela. Não
funciona ao contrário; nada dela está dentro de mim. Posso usar
nossa conexão para ajudá-la a navegar, mas essa é a extensão do
meu poder sobre a Keel Haul.
Minha pele esfria de suor. — Todos em Zudoh podem fazer
isso? — Porque se podem, como ele espera vencer essa luta? Uma
gota de sangue, e nossa almas seriam destruídas.
Bastian balança a cabeça, a voz assumindo um tom defensivo.
— Na última vez em que ouvi, apenas alguns praticaram essa
magia. Começou como um pequeno grupo, trazido à vida pelo filho
do principal embaixador da ilha, Kaven.
— O que você precisa entender é que nossa magia não deve
ser assim — continua ele. — É para ser protetora. Para colocar
enfermarias em sua casa para que você possa dormir à noite ou
dissuadir as crianças de tocarem em coisas que possam ser
perigoso demais para elas. Coisas assim. Mas Kaven se afastou
desse estilo de magia de maldição e formou algo sombrio e novo, e
se você não estiver com ele, estará contra ele. — Quando Bastian
fala de sua ilha natal, suas palavras são apaixonadas. No entanto, o
suor frio lambe minha garganta, meu corpo enjoado. Kaven não é
um simples oponente. Ele é portador de uma magia inédita, o que o
torna perigoso.
— Por que minha família não faria nada sobre isso? —
Pergunto. — Meu pai não aceitaria uma magia tão distorcida.
— Seu pai foi quem declarou o banimento de Zudoh do reino,
quando sua intenção de aprender magia da alma ficou clara. Ele
levou os curandeiros Suntosan da nossa ilha e nos impediu de
negociar. Provavelmente pensou que eles nunca conseguiriam
aprender – que essa bagunça se resolveria e eles voltariam
implorando para fazer parte do reino novamente. Mas ele estava
errado. Essa mágica dividiu Zudoh, e a ilha está em crise. Os
Montaras são a razão pela qual meu povo está lutando. — Seu
aperto relaxa nos lençóis enquanto ele se afasta.
O navio agita com o mesmo desconforto que me arranha,
balançando inquieto até contra as menores ondas. Não é o navio
mágico e confiante com o qual estou acostumada.
— Há quanto tempo a sua alma está amaldiçoada ao Keel
Haul?
Bastian tenta sorrir, mas murcha quando o peso da verdade o
atinge. — Desde criança. Zudoh é uma ilha pequena, então não
havia como me esconder de Kaven. Eu era jovem quando ele tentou
me recrutar, prometendo às crianças que ele nos ensinaria magia
como se fosse um brinquedo novo e brilhante. Meus pais não
deixaram que ele me convencesse, então ele os matou e me levou
embora, como fazia com todas as crianças em que conseguia pôr as
mãos, para estudar a magia amaldiçoada da alma. Nunca a aprendi,
no entanto.
Tremo. Nunca imaginei esse nível de maldade. Assassinato e
crianças roubadas? Alma mágicas amaldiçoadas? Foi a isso que
meu pai deu as costas?
Por quê? Todo esse tempo presa em Arida, praticando nossa
magia – foi porque ele tem medo de começar uma guerra?
— Antes de ser morto, meu pai estava me ensinando a velejar,
e depois de um ano sendo forçado a estudar sob Kaven dia e noite,
sabia que seu navio era a única maneira de escapar. Durante uma
semana, peguei comida e suprimentos a bordo e, uma noite, quando
pensei que todos estavam dormindo, alguns amigos e eu
escapamos. Só que Kaven devia estar escondido lá, esperando. Ele
matou os outros e, para mostrar a todos do que era capaz, ele
amaldiçoava e roubava a magia de quem o desobedecesse. No
momento em que toquei o leme, minha alma se partiu em dois e se
ligou a Keel Haul. Mas ele cometeu um erro e não pensou em me
amaldiçoar a um navio. Escapei antes que ele pudesse me parar.
Energia e raiva fervem de seu corpo. Estendo a mão para
colocá-la em seu ombro, e Bastian endurece.
— Certamente há uma maneira de quebrar a maldição?
Seus dentes se apertam, afiando o queixo. — Como eu disse,
para amaldiçoar permanentemente a alma de alguém, é necessário
o seu sangue. E quanto mais Kaven toma, mais forte ele se torna.
Mas essa mágica tem uma fraqueza: para manter o controle de sua
magia, seu criador deve sempre manter um pouco de sangue da
pessoa amaldiçoada. Bastian se inclina para frente. — Kaven é um
homem vaidoso e orgulhoso. Ele coleciona pulseiras de couro
manchadas com o sangue daqueles que ele amaldiçoou. Ele usa
seus favoritos como um troféu e mantém as outras próximos a ele
em Zudoh. Para garantir que seus encantos permaneçam intactos,
ele trata essas pulseiras como você trata sua mochila, raramente
deixando Zudoh para que ele nunca precise se afastar muito delas.
Mas se pudermos destruí-las, todas as maldições que ele já fez
serão quebradas e ele ficará enfraquecido.
— Você acha que o seu sangue está em uma das pulseiras? —
Pergunto. — Um dos troféus dele?
Bastian bufa. — Sei que está.
Não consigo decifrar a expressão que Bastian faz quando a
lâmpada de óleo pisca e escurece, lutando pela vida. Ela lança a
cama um brilho nebuloso de laranja queimado. Sombras dançam na
cavidade de suas maçãs do rosto e curvam-se ao longo do pescoço
até a camisa.
Anos de viagem no mar, movendo-se livremente de uma ilha
para outra sem restrições, deveriam tê-lo enchido de sabedoria e
vida. Sempre tive inveja de quem viaja. Ciúme de aventuras e
experiências que eu só conseguia imaginar.
Mas tenho familiares e amigos que provavelmente estão
preocupados e aguardam meu retorno. Bastian, eu sinto, não tem
isso. Sua família se foi e sua alma foi amaldiçoada a uma vida de
solidão. As estrelas em seus olhos não são criadas apenas por
aventura. Foram formadas por anos de solidão. De olhar para um
céu cheio de sonhos e nunca conseguir alcançá-lo.
Ele parece tão, tão solitário.
— Por que não me disse isso antes? — Meu sangue está
quente, e minha pele pegajosa. — Isso é muito pior do que apenas
derrotar uma rebelião, Bastian. Não sei se consigo lidar com isso
sozinha.
Seu rosto e ombros caem de vergonha. — Nunca quis voltar
para Zudoh. Eu pretendia viver o resto da minha vida assim, preso a
este maldito navio e o mais longe possível de Kaven. — Vivi com
medo dele por anos – sabendo que minha ilha estava com
problemas, mas com muito medo de fazer algo a respeito. Mas
quanto mais tentava evitar pensar nas pessoas que ainda deveriam
estar sofrendo, mais isso começava a me comer vivo. Não
conseguia me concentrar. Não conseguia dormir. Então ouvi dizer
que Arida estava comemorando o aniversário da princesa deles.
Não é o Bastian com quem estou familiarizada. Essa pessoa é
bruta. Raivosa e cruel.
— Estava visitando Valuka quando soube que sua apresentação
estava chegando — diz Bastian. — Magia aridiana é o que Kaven
sempre quis, e soube então que era a única coisa forte o suficiente
para detê-lo. Imaginei que poderia pelo menos tentar convencer seu
pai dos perigos que ele estava ignorando. Eu queria que ele
soubesse que Kaven era uma ameaça real, embora fosse ingênuo
da minha parte pensar que ele faria qualquer coisa depois de tantos
anos de ignorância. Mas então eu vi você. — Seus dedos pairam
sobre meus nós, hesitantes. Leva um longo momento antes que ele
possa pressioná-los contra a minha pele, abrangendo minha mão
completamente. Penso em afastá-los, mas não consigo encontrar
poder para isso.
— Juro que foi como se o céu se abrisse e mostrasse a minha
chance. Lá estava você, confrontando seu pai sobre a mesma
pessoa que eu vim para avisá-lo. Quando você precisava de uma
maneira de escapar de Arida e se redimir, eu realmente acreditava
que os deuses me levaram até você por uma razão.
Minha cabeça nada quando uma onda de náusea se instala.
Seja do veneno ou dos segredos sendo derramados um após o
outro, não tenho certeza.
— Por favor, entenda que passei anos fugindo — ele sussurra.
— Estou cansado. A cada momento que estou longe de Keel Haul,
fico mais doente. Quero minha liberdade de volta. — Ele usa um
sorriso fantasma antes de balançar a cabeça. — Mas o povo de
Zudoh também está preso, e eu os negligenciei por muito tempo.
Você me perguntou o porquê de eu não ter voltado antes, e é
porque eu era um covarde. Quando escapei, poderia ter tentado
encontrar uma maneira de ajudá-los, e não o fiz. Agora, Kaven está
tentando destruir o resto do reino, assim como ele destruiu minha
casa. Estou pronto para acabar com isso, antes que ele machuque
mais alguém. E realmente acredito, depois de tudo, que devemos
fazer isso juntos.
Ele sente como se tivesse um dever para com o povo de sua
ilha; não há nada que eu entenda mais. Sua mão é áspera, mas
quente enquanto intensifico o meu aperto.
— Chega de segredos. — Eu seguro o escrutínio de Bastian até
que ele relaxe com uma forte expiração, percebendo que estou
falando sério. — Entendo suas razões, mas isso muda as coisas,
Bastian. Não pode haver mais segredos.
Leva um momento antes que ele responda, suas palavras
quietas. — Sem mais segredos. Juro por minha honra como pirata.
— Pensei que você preferisse o termo marinheiro? — Tento
provocar, mas as palavras são fracas quando minha visão
vertiginosa força minha cabeça de volta ao travesseiro. Minha luta
com a Lusca está me alcançando.
Bastian ri baixinho. É irritante o quanto eu gosto desse som.
— Não vamos nos preocupar com a semântica. — Ele aperta
minha mão uma vez, depois se levanta e diminui a lâmpada de óleo
até que ela mal pisque. — Tente descansar um pouco. Temos mais
um dia antes de chegarmos a Zudoh. Precisamos estar prontos.
E preciso me preparar.
Sob a penumbra, concentro-me no tentáculo cortado da Lusca e
no grosso gancho farpado que se enrola na ponta. Estremeço com a
lembrança da rapidez com que seu veneno me devorou. Como isso
roubou minha visão e me fez vítima da ira do mar.
Que arma brilhante esse gancho poderia virar.
CAPÍTULO VINTE E DOIS
É preciso tudo em mim para não pegar minha nova adaga. O suor
lambe minha testa quando olho para dezenas de rostos assustados,
mas determinados.
Os aldeões diante de mim seguram armas com as quais não
estou familiarizada – machados duplos ligados por uma corrente
preta, bastões brancos e elegantes e até alguns tubos estranhos de
fumar que parecem algo que não deve ser inalado.
Ari e Raya ficam na minha frente.
Ao ver as crianças, os olhos de uma mulher brilham com
preocupação zangada.
— No que estavam pensando ao trazer pessoas para cá? — Ela
rosna. Os cantos dos seus olhos se enrugam quando ela nos olha, o
foco permanecendo nas armas do nosso quadril. Ela não parece
preocupada com o que vê.
Embora a mulher pareça talvez apenas uma década mais velha
que eu, sua pele está pálida e murcha. Ela usa seu cabelo preto
preso em uma longa trança que se enrola sobre o ombro e caem em
tranças pesadas abaixo do peito. Seus olhos âmbar encapuzados
se estreitam enquanto nos examina.
Os machados que segura não tremem sob o seu aperto firme.
— Eles vão nos ajudar — Ari diz, acenando para que os outros
larguem suas armas. Eles o ignoram.
— Não estamos aqui para machucar ninguém — digo enquanto
Vataea, Bastian e Ferrick se espalham ao meu redor. Todo mundo
aqui sussurra quando fala, por isso tomo cuidado para seguir o
exemplo deles, não querendo incomodá-los ainda mais. — Como
suas armas, as nossas são para nossa proteção. Só as usaremos
se forçados, embora sinceramente espero que não chegue a isso.
Os olhos da mulher se estreitam ainda mais e ela olha para
Ferrick e Vataea. Os dois estão de pé, com as mãos levantadas,
numa demonstração de trégua. Ela olha para Bastian em seguida,
os olhos brilhando de surpresa. Ela se encolhe, e Bastian reflete o
movimento, ombros encolhendo como se ele pretendesse se
encolher em si mesmo.
— Reconheço você — ela sussurra. — Não? Pelos deuses,
você se parece com...
— Eu morava aqui — diz Bastian, cortando-a rapidamente. —
Mas foi há muito tempo. — Novamente, suas mãos tremem em seu
colo enquanto ele inclina a cabeça para mim em um pequeno aceno
rápido para tirar o foco de si mesmo. — Estamos todos aqui para
tentar ajudar. Esta é a princesa de Visidia, Amora Montara. Ela não
tinha ideia de que condição Zudoh estava até agora.
Descrença pinta suas feições. — Como a princesa não saberia
sobre Zudoh?
— Me pergunto a mesma coisa — digo a ela. — Meus pais
conseguiram manter o destino de Zudoh escondido de todos, não
apenas de mim. Se você largar suas armas, conto tudo. Queremos
ajudar. — Tenho o cuidado de não parecer mandona, sabendo que
irritar alguém com uma arma apontada para o meu rosto pode não
ser a jogada mais sábia. — Estamos aqui para discutir a
restauração de Zudoh no reino.
— Nós os encontramos na praia — Raya oferece calmamente,
ignorando o olhar da mulher de cabelos escuros. — Eles estavam
prestes a ir para a floresta.
— Como exatamente você entrou em Zudoh em primeiro lugar?
— Zale desafia. — Ninguém entra a menos que Kaven convide.
Aponto para o meu cabelo, liso com algas e lama do mar. — Se
fôssemos convidados, garanto que pareceríamos um pouco mais
apresentáveis. Por favor, olhe para o meu cabelo. Minha roupa.
Nadamos através de uma parede de peixes mortos para chegar
aqui.
Zale hesita por um momento, embora a tensão em seus ombros
diminua um pouco enquanto ela me observa pegar um olho de peixe
no meu cabelo emaranhado. Seu nariz torce, e ela acena para
aqueles atrás dela relaxarem.
À medida que as armas baixam, Ferrick exala uma respiração
tão pesada com alívio que parece relaxar a mulher pelo menos
marginalmente. Ela estende a mão para mim.
Pego rapidamente. Suas mãos estão gastas e ásperas,
deixando-me imediatamente ciente de como as minhas são macias
em comparação.
— Pode me chamar de Zale — ela diz enquanto acena para
mim, levando-nos em direção ao acampamento. Embora Ari tente
ficar vários passos atrás, os olhos de Zale o encontram, queimando-
o com tanta força que o garoto estremece.
— Não me importo se você encontrar os deuses vagando
perdidos naquela praia — ela repreende. — Não se atreva a trazer
mais alguém para cá novamente.
Ari olha para mim e dou a ele um encolher de ombros como
desculpas.
O acampamento é maior do que eu esperava e decididamente
mais próspero. Deste lado da caverna, é como se a Zudoh que
vimos ao chegar fosse uma mentira cruel.
Aqui, Zudoh é areia branca e brilhante, grama verde saudável e
fileiras e fileiras de árvores altas. Elas são semelhantes à cor de
bétula, mas significativamente mais espessas, com raízes maciças
que tecem dentro e fora da terra como vermes estofados. Em todas
as direções, uma cadeia de montanhas rochosas se estende
infinitamente no céu, protegendo o acampamento. É um esconderijo
inteligente.
Suas casas são feitas da mesma madeira branca das árvores,
pequenas mas resistentes. Como o prédio na costa, painéis
metálicos estranhos cobrem seus telhados, embora estes sejam
significativamente menores e menos elegantes.
— Eles nos ajudam a aproveitar a energia do sol, para manter
nossas casas aquecidas — explica Zale quando me pega olhando.
— Armazenam calor durante o dia e o liberam à noite.
Passamos por um grupo de zudianos sentados ao redor de uma
estranha formação de rochas – uma mais alta nas costas, pedras
menores no meio e nada na frente. Entre as pedras há um tipo de
túnel, e no meio um fogo intenso.
Mas sua fumaça não se eleva no ar. Em vez disso, ela é filtrada
através das rochas e entra no túnel, levando à caverna, onde mais
algumas pessoas estão reunidas. Eles seguram cantis no colo,
enchem-nas de água e depois os trazem de volta ao fogo, onde
alguém espera com uma variedade de recipientes. A água entra nos
recipientes escuros e emerge clara.
Eles trabalham rotineiramente – buscar a água, filtrar a água
através de recipientes estranhos, ferver, encher cantis e depois
colocando de lado para esfriar.
Percebendo o quanto considero nossa água da nascente como
certa, tento não olhar enquanto passamos, hipnotizada pela
eficiência com que elas funcionam.
— Isso faz com que seja seguro para beber? — pergunto, e
Zale assente com um sorriso curvando nos lábios.
— Nenhuma pessoa ficou doente por causa da água — diz ela
com um ar de orgulho. — E, mesmo se ficassem, não seria um
problema.
Sigo seu dedo enquanto ela aponta para um dos edifícios pelos
quais passamos. É maior que os outros, e pela porta aberta vejo
duas crianças sentadas em cadeiras – um garoto que parece que
está prestes a vomitar e uma garota que com um joelho arranhado.
Dois zudianos estão diante deles, vestidos com longas túnicas que
antes deveriam ter sido uma opala brilhante, mas que desde então
se sujaram em um cinza escuro. Um coloca uma mão no joelho da
garota e a outra no estômago do garoto. No brilho nebuloso de
laranja em torno de suas mãos, eu quase engasgo. Ferrick ecoa o
som.
— Isso é mágica de restauração — diz Ferrick. — Eles estão
usando magia Suntosan.
Mais do que isso; eles estão usando várias magias.
Tropeço quando a bile chega à minha garganta, fazendo o
acampamento girar. Praticar múltiplas magias é a ameaça contra a
qual os Montaras passaram a vida protegendo o reino.
Não me preocupo em conter minha surpresa, e Zale estava
esperando por isso.
— Lembre-se de que não vivemos sob as leis de Visidia — diz
ela calmamente, sua voz um sussurro feroz. — Seu pai levou os
curandeiros para longe da nossa ilha quando nos baniu. Ele deixou
nosso povo sofrer. O que mais deveríamos fazer?
— Mas não se trata apenas de Visidia! — Minha garganta está
tão seca que as palavras são quase dolorosas. — Ter muita magia é
mortal. Usar múltiplas magias é...
— Necessário — ela termina para mim. — Olhe em volta; nós
parecemos doentes? Temos praticado várias magias há anos, desde
que fomos banidos. Apesar da reivindicação do reino, nada
aconteceu com aqueles que escolheram usar mais de um tipo de
magia. Se quiséssemos sobreviver, isso era necessário.
Rasgo a pele ao redor das unhas enquanto minha visão salta de
um rosto para o outro, absorvendo toda a magia que não percebi
antes.
As mãos que manipulam a água e constroem estruturas na
terra. Aquecem as chamas e curam os doentes.
Não há como isso acabar bem; essa tem sido nossa lei há
séculos. Se o perigo de múltiplas magias era uma mentira, então
como os Montaras poderiam ter a magia de nossa alma? Como o rei
Cato estabeleceria Visidia pela primeira vez?
Não quero acreditar, mas quando a jovem pula da cadeira com
um joelho curado e a cor do garoto retorna à sua pele, não há como
negar o que Zale diz.
Eles podem usar várias magias. E seus sorrisos certamente não
parecem corrompidos quando eles mandam as crianças a caminho.
Não estão sofrendo ou lutando com seus corpos carregando muita
magia. Suas almas não estão desaparecendo.
Eles estão bem.
Dezenas de olhos se fixam em nós enquanto atravessamos o
lugar, a maioria curiosa, mas outra parte protetora. Eles tentam
chamar a atenção de Zale, e ela os dispensa com um leve
movimento de cabeça.
— Vou ficar bem — Diz a eles, e uma pequena chama pisca na
palma da mão quando diz isso, mostrando que ela está disposta a
lutar com uma magia que nem deveria ter.
Tento não pensar mais nas múltiplas mágicas, porque se o fizer,
ficarei doente. Em vez disso, concentro-me no acampamento.
Embora não haja ausência de pessoas aqui, certamente há uma
ausência de ruído. Mesmo quando grupos de zudianos escalam
livremente um penhasco com buracos nos pés e nas mãos
esculpidos pela magia valukana, seus movimentos e conversas não
são mais altos que uma canção de ninar suavemente cantada. Nem
as crianças gritam enquanto correm pelo acampamento,
perseguindo uma à outra.
— Estão atravessando a montanha em busca de comida — diz
Zale antes que alguém possa perguntar, parecendo se orgulhar de
nossos rostos admirados. — Amaldiçoamos a terra para desviar a
atenção dos outros – é a única área segura que temos, mas é difícil
de acessar. — Algo permanece em suas palavras e os olhos
apertados, mas ela não é dita.
— Por que todo mundo está sussurrando? — As sobrancelhas
finas de Vataea se afundam em sua testa. Fico feliz por não ser a
única irritada com isso.
Os olhos afiados de Zale voam para ela. — Porque se Kaven
encontrar nosso acampamento, estaremos acabados.
Os dedos de Vataea pressionam seus lados, as unhas
arranhando desconfortavelmente suas calças. — Como você
sobreviveu aqui por tanto tempo? Se não há peixes na água,
certamente o seu suprimento de comida não pode estar indo bem —
Ela pergunta enquanto Zale acena para frente e para o que eu
suponho que deve ser a casa dela. Não há muito no lugar – apenas
uma pequena mesa, uma cama pendurada feita de cordas e
algumas bugigangas – mas esconde a picada de ar frio do lado de
fora e acalma meus nervos. Ela faz um gesto para nos sentarmos
no chão, macios e acolchoados com bétula branca alisada. Vataea
afunda nas mãos, mas Bastian está rígido. Seu foco é apertado.
— Tem sido difícil. Temos um lago que está começando a secar,
por isso tentamos projetar novas colheitas do outro lado da
montanha — diz Zale enquanto se abaixa para se juntar a nós no
chão. — Mas a terra não está se adaptando. Admito que tenha sido
uma luta, mas se nos aventurarmos mais longe, corremos o risco de
ser capturados. Ela olha em direção à porta, ombros caídos. —
Minha mãe era uma das melhores cientistas de Zudoh. Estudou
plantas e tentou encontrar maneiras de aumentá-las ou até mesmo
crescer mais rapidamente. Foi ela quem fundou este campo e fez a
maioria de seus experimentos aqui.
— Kaven a matou anos atrás, quando ela estava tentando levar
outras pessoas para o nosso acampamento — ela continua após
uma pausa. — Mas as árvores que ela projetou estão em
abundância aqui. Sua madeira é leve e maleável, e as árvores
voltam ao tamanho normal poucos meses após serem cortadas. Seu
sonho era usá-las para criar navios mais novos e mais rápidos. E
estamos tentando fazer o mesmo.
Pensando em Keel Haul, dou uma espiada em Bastian, mas ele
mantém sua atenção firmemente focada à frente. Apesar da
frescura do ar, o suor escorre pela pele.
— Tentando? — Pergunto, arrancando meu foco de suas mãos
trêmulas e devolvendo-o a Zale. Há uma tensão em sua mandíbula
quando seus olhos me encaram.
— O rei queimou nossos navios — diz ela com uma voz que é
puro cascalho. Corta direto através de mim liso como aço, pegando
meu fôlego na garganta. — Durante anos ele nos impediu de viajar;
apenas recentemente Zudoh produziu madeira suficiente para
fabricar navios novamente, e foi assim que Kaven conseguiu crescer
seu exército nos últimos anos. Mas tem sido mais lento para nós,
uma vez que temos tão poucas pessoas para ajudar a construir. —
Suas palavras soam pesadas com dor e exaustão.
Penso em tudo que sabia sobre Zudoh. Que eles foram banidos.
Que eles se voltaram contra meu pai em uma briga e que ele foi
ferido.
Mas eles não foram apenas banidos. Eles foram presos, seus
navios queimados quando foram deixados aqui com Kaven. Tudo
isso – todo o sofrimento e medo que está acontecendo no solo de
Zudoh – é por causa dele.
Nada que eu disser será suficiente, mas ainda assim digo a ela
que sinto muito através de uma garganta espessa de algodão.
Parte de mim quer acreditar que, se essa é a verdade, meu pai
certamente deve ter tido um bom motivo. Mas que possível razão
existe para justificar o fechamento de uma ilha?
— Vamos terminar um em outra temporada ou duas — continua
Zale. — Faz anos que estamos construindo, pois não há muitos de
nós para trabalhar nisso, entre todas as outras tarefas. Mas está
quase terminando.
— Não parece tão satisfeita com isso como eu esperaria — diz
Vataea.
— Ficaria satisfeita se tivesse que escolher entre sua família e
liberdade? — Embora Zale nunca me pareceu nada além de
poderosa, noto pela primeira vez quão pequenas são suas mãos
quando ela as fecha com os punhos no colo. — Construímos o
navio sobre a montanha, para que possamos levá-lo à água quando
estivermos abastecidos e prontos para tentar quebrar a barreira.
Embora tenhamos criado ferramentas para tornar a escalada
possível, receio que nem todo o nosso pessoal esteja apto para
essa jornada. Se quisermos sair, teremos que deixar alguns para
trás.
— Que tal usar magia Curmanan? — Pressiono, embora mesmo
sugerir que eles usem outra mágica pareça errado nos meus lábios.
Zale sorri tristemente. — Nosso acampamento é pequeno.
Alguns tentaram praticá-la, mas a levitação é uma habilidade de alto
nível. Nenhum de nós conseguiu dominá-la e não temos tempo para
continuar tentando. Levaria anos que não temos. Até pensamos em
usar a magia da terra Valukan para construir um caminho através da
montanha, mas levaria muito tempo para fazê-lo lentamente e seria
alto demais para fazê-lo rapidamente. Depois de atravessarmos a
montanha, precisamos ser rápidos em tentar coletivamente quebrar
a maldição de Kaven. Ele notará o momento em que tudo acabar,
para que não tenhamos tempo para ficar. Escalada é a nossa única
opção.
Meu aceno de cabeça é lento quando as palavras penetram.
Não posso deixar isso acontecer.
— Por que ele tem tanta influência nessa ilha? — Pergunta
Ferrick. Minhas mãos estão escorregadias de suor. Limpo as calças,
tentando relaxar o suficiente para me concentrar nas respostas de
Zale.
— Kaven acredita que todos devem aprender a mágica que
quiserem — diz Zale. — E ele acha que a magia de Montara – a
magia da sua alma – deve ser algo que praticamos amplamente.
Mas o que ele se recusa a acreditar é que alguns estão
perfeitamente satisfeitos em apenas ter a sua única magia. Que
nem todos nós queremos passar nossas vidas dominando todas as
formas de magia por aí.
— Qual a quantidade de seguidores dele? — Bastian pergunta
tão baixo que suas palavras são quase inaudíveis.
Zale estreita os olhos e o inspeciona novamente. Suas
bochechas se enchem como se ela estivesse mordendo o interior
delas, avaliando-o como um quebra-cabeça.
Bastian tenta não olhá-la diretamente nos olhos.
— Não é tão grande quanto poderia ser, já que ele está
tentando forçar pessoas a aprender uma mágica que muitos não
conseguem lidar — ela responde, cessando seu exame. — Mas
provavelmente metade de Zudoh e Kerost o seguem. Não acho que
ele tenha muita influência nas outras ilhas; talvez pequenos
números, se for o caso. Não é praticar várias magias que deixa as
pessoas doentes. É só quando eles tentam aprender a magia
aridiana.
Ferrick parece vagamente doente. — O que você quer dizer
com magia aridiana? Não há como alguém aprendê-la. — Ele se
vira para mim para ver se eu compartilho sua surpresa, e me
encolho. — Você sabia sobre isso?
— Também não queria acreditar — ofereço em voz baixa. —
Não até o ver.
Compreensivelmente, essa resposta não o agrada. Ele se
recosta nas mãos, balançando a cabeça enquanto Zale explica. Ao
seu lado, Vataea ouve atentamente.
— Está longe de ser a magia aridiana adequada — esclarece
Zale. — Mas de alguma forma o Kaven criou uma versão que não
está certa. Ele costumava sequestrar pessoas e forçá-las a
aprender. Agora que tem seguidores, ele compartilha com eles. Mas
muitos que tentam aprender essa mágica sofrem e morrem
imediatamente. Aqueles que sobrevivem ficam deformados.
Corrompidos, como ele. Essa magia é provavelmente o que o fez
tão horrível em primeiro lugar.
Mesmo que eu já soubesse disso, ouvir novamente me faz
tremer. Bastian abaixa a cabeça, enquanto Ferrick mastiga
ansiosamente seu lábio inferior. A testa de Vataea se enruga
enquanto ela observa Zale, esperando a mulher dizer mais.
— Todos devem ser capazes de praticar a magia que desejarem
— diz Zale, sem medo. — Não discordo de Kaven nisso. Mas onde
o rei mantém a magia longe de nós, Kaven a força em nós. Ele
destruiu Zudoh e agora está de olho nas outras ilhas. Logo ele
estará batendo nas portas do palácio. — Os olhos dela se estreitam
enquanto ela espera minha reação, mas não sinto raiva dela.
Apenas confusão.
Durante toda a minha vida, a proibição de múltiplas magias tem
sido a lei mais primária de Visidia. Papai sempre dizia que era para
nos proteger, e acreditei sem questionar. É por isso que aceitei
minha magia. Por isso pressionei minha lâmina no braço do primeiro
prisioneiro e por que tirei tantas vidas desde então.
Coloco minha cabeça nas palmas das mãos. Foi tudo uma
mentira?
— Se prometermos cuidar de Kaven e restaurar esta ilha, você
consideraria voltar a Visidia?
O rosto dela se inclina, os olhos transbordando. Ela não hesita
quando assente e diz: — Absolutamente — como se aquela palavra
fosse a única verdade que ela conhecia. Como se fosse a oração
que ela sussurra todas as noites. — Nós nos importamos pouco
com reis ou política; tudo o que queremos é a chance de viver
confortavelmente novamente, seja nesta ilha ou em outra. Existir
sem nos preocupar se alguém vai sequestrar nossos filhos ou nos
forçar a aprender uma magia com a qual não queremos nada. —
Seus lábios se curvam e o calor queima ferozmente dentro do meu
peito, acendendo meu coração acelerado.
— Você não deixará ninguém para trás. — Levanto rapidamente
e Bastian e Vataea seguem o exemplo sem questionar. Ferrick, no
entanto, é mais lento para subir. Seus olhos olham para Zale, com
expressão tensa. — Onde encontramos Kaven?
Zale endurece, os ombros se afastando quando sua coluna se
endireita. Ela nos olha, os lábios pressionados em uma linha fina.
Seus olhos permanecem mais em Bastian do que qualquer um de
nós, e por um momento me preocupo que ela recusará nossa ajuda.
Que ela vai chamar os outros para ajudar a nos eliminar. Mas então
ela também se levanta e diz: — Ele está na floresta. Mas as noites
de Zudoh são frias e perigosas. Vão congelar nessas roupas. Nossa
ala de cura está vazia; vocês deveriam ficar lá a noite. Podemos não
ter muito a oferecer, mas se vão nos ajudar, deixe-nos ajudá-los.
Embora Ferrick pareça cauteloso e Bastian não consiga olhar
Zale nos olhos, minhas roupas ainda estão encharcadas e meu
cabelo liso com algas que não secam. Ficar perdidos no escuro ou
congelar na floresta não nos levará a lugar algum.
Assim, eu aceito a oferta de Zale, e ela nos guia em direção à
porta enquanto se levanta.
Do lado de fora da cabana, algumas dúzias de zudianos
esperam por nós, sem se preocupar em esconder a curiosidade.
Embora seus olhos nunca se desviem de nós quando voltamos para
o pequeno prédio onde assistimos as crianças serem curadas, elas
inclinam a cabeça levemente quando passamos, oferecendo
agradecimentos hesitantes.
É apenas uma pequena quantidade de confiança, mas é a
confiança do meu povo, no entanto. O orgulho aquece minhas
bochechas e acelera meus passos. Inclino minha cabeça para eles
antes de Vataea e eu sermos escoltados para um prédio, e Ferrick e
Bastian, outro.
Pode não parecer muito para os outros, mas usarei a confiança
deles como armadura e o destino do meu reino como força.
Amanhã, Kaven não será mais uma ameaça, e eu restaurarei
este reino.
CAPÍTULO VINTE E SETE
Tarde da noite, acordo e vejo que Cato não está dormindo perto de
mim e a porta do nosso quarto de hóspedes ficou entreaberta. Estou
tentando silenciosamente aumentar a distância antes de se agachar
para espiar dentro.
O espaço diante de mim é escuro, livre até da menor lâmpada a
óleo ou de uma janela aberta para permitir o brilho da lua.
Enquanto meus olhos se ajustam, vejo a figura de ombros
largos de Cato sentada no chão. Ele está de costas para mim, e
quando silenciosamente abro a porta mais uma fração, a pequena
criatura à sua frente fica clara – um coelho.
Ele sacode ferozmente dentro de sua gaiola, encolhendo-se no
canto quando Cato chega lá dentro. Na mão está a mesma pequena
lâmina que ele usava antes para descascar peixes, e os guinchos
do coelho são ensurdecedores quando Cato a joga na perna da
criatura, tirando sangue. Ele arranca um fio de pêlo da criatura.
Cubro minha boca, seja para impedir-me de gritar ou vomitar,
não tenho certeza.
Cato cobre o pêlo de coelho arrancado com o sangue da faca,
segura-o entre os dedos e depois o mergulha em uma pequena
tigela de água ao lado dele.
Nunca antes ouvi um som como o coelho faz. O engasgar
borbulhante de uma criatura lutando para respirar, tentando
descobrir por que está se afogando quando nada além de ar o
envolve. Faz um grito desesperado, quase infantil, que faz minhas
mãos tremerem.
Abro a porta e chuto a tigela de água do outro lado da sala, e
Cato se levanta de surpresa. O coelho respira desesperadamente,
tossindo e tremendo enquanto corro para a gaiola e a coloco em
meus braços.
— Os deuses não nos dão essas criaturas para que possamos
torturá-las! — Minhas respirações são agudas e rápidas, e não
consigo parar de tremer. — O que você estava pensando? — Dou
um passo para trás em direção à porta, medo e raiva brigando no
meu peito.
Cato sorri. É uma das expressões mais alegres que eu já vi, e
parece errada em seu rosto. Até agora, eu não tinha notado quanta
vida lhe foi drenada; sua pele é pálida e opaca e seu corpo murcha,
deixando seu rosto tenso e afiado. Quantas noites ele estava se
esgueirando para este quarto, trancando-se no escuro?
— É magia — diz Cato, quase tonto. Dou mais alguns passos
em direção à porta. O pobre coelho ainda está tremendo dentro de
sua gaiola.
— Que magia? — Embora o instinto me faça querer correr, o
amor por esse homem que conheço desde criança me prende no
lugar.
Tenho que pelo menos ouvir a sua explicação.
— Magia da alma — Cato sussurra. — Minha magia. Decidi que
se não pudesse aprender mais mágicas, teria que mudar o que já
tinha.
Eu desenho a magia da minha alma ao meu redor, confortada
pelo calor. Sua leveza. Dá-me as boas-vindas, inundando-me de
calor quando a alma de Cato se abre para mim, revelando uma
brancura gritante. A visão rouba meu fôlego, pois quase não resta
cor; quase nenhum vestígio de que uma alma estivesse lá.
— O que aconteceu com você? — Minha voz falha. Aperto a
gaiola mais perto do meu peito, como se de alguma forma me
mantivesse de pé.
Quando Cato fecha o espaço entre nós, faço de tudo para
impedir que minhas pernas dobrem. — Fiz isso por nós — diz ele.
— Para você, para que você não tenha que se envergonhar de mim.
Para que possamos ter uma vida melhor juntos.
Balanço a cabeça, alguns cachos soltos se soltando da minha
trança grossa. — Nunca fiquei envergonhada, nem um pouco. Cato,
sua alma...
— Confie em mim. — Sua voz é aguda e surpreendentemente
séria. Ele tenta estender a mão, como se quisesse pegar a minha,
mas o coelho grita de horror quando ele se aproxima. Eu recuo,
contraindo a garganta.
— O que você fez com a sua magia da alma?
Cato responde a pergunta com um floreio de suas mãos. —
Essa mágica sempre esteve dentro de nós; Estou simplesmente
escolhendo olhar para isso de uma maneira diferente. Sira, você
disse antes que me ama. Se você não estava mentindo sobre isso,
deveria confiar em mim. Confie que vou arranjar um novo modo de
vida para nós.
Tento ignorar meu medo. Este é Cato, afinal. Cato, que estava
com o rosto vermelho e tímido quando compartilhamos nosso
primeiro beijo nas margens de Arida, anos atrás. O garoto que
escapei para visitar enquanto crescia, apenas para que pudéssemos
nos abraçar e fofocar sob o luar. Ele era o mesmo homem com
quem eu dividia minha cama todas as noites e que me acordava
com uma chuva de beijos todas as manhãs.
Mas ele não é mais essa pessoa e não é há algum tempo.
— Confio em você — digo, embora seja a maior mentira que já
contei.
— Bom. — Cato estica a mão para acariciar o polegar na minha
bochecha, e tento não me encolher sob o seu toque. — Por
enquanto, você e eu somos os únicos que precisam saber sobre
isso.