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Luna
10 horas antes.
Eu não poderia dizer que acordei, pois não me lembro de ter dormido. Em
algum lugar entre a minha breve apresentação de violino e meu encontro
com Blaze, eu me perdi. Lembro que Zoey e Dax debateram quem deveria
ficar com a última batata recheada, e que eu não era muito mais do que um
zumbi durante o jantar.
Estava atônita, e não era para menos. Não era todos os dias que um ex-
quase-talvez-namorado aparecia na minha terra natal sem reconhecer meu
rosto. Era difícil não pensar nos momentos que dividimos em um lugar
onde eu não era uma princesa e a vida era simples demais. Impossível não
cogitar se ele se lembrava de mim, ou se toda minha existência em outra
dimensão fora apenas um sonho deliciosamente insano. A cada passo que
eu acreditava dar adiante em direção a um futuro tranquilo, de paz e
liberdade para Montecorp – e para mim, se não fosse egoísmo desejar isso
–, eu tinha a impressão de que dava três para trás.
Eu disse que estava cansada, e me retirei para o quarto. Usei a
câmara de banho sozinha e me deitei na cama usando apenas a túnica verde
com que Peribelle me presenteara no tempo que passei em seu império
encantado. Mesmo tendo passado semanas ali entrando em contato com
minha magia, eu ainda buscava entender as diferentes fontes que existia
pelo mundo, em especial qual mágica a fazia as roupas de Ellioras continuar
com um delicioso aroma de erva doce mesmo após horas caminhando na
estrada. A Imperatriz pensava nos mínimos detalhes, e eu imaginava como
seria reinar por tanto tempo a ponto de lapidar cada ponto do seu território.
Um sorriso amargo se repuxou no silêncio da noite. Eu não precisava
mais me preocupar com isso. O destino de Montecorp seria a mesma
prosperidade de Ellioras. Teríamos unicórnios andando livremente ao redor
do sagrado Carvalho de Prata, a magia correria pela terra e pelos rios, e
todos seriam felizes. De uma vez por todas. Peribelle seria uma boa
imperatriz para o meu povo, repeti para mim mesma. Ela se mostrou uma
governante mais capaz do que as últimas gerações de Montecorp, sem
dúvidas.
Tentei barganhar que esperasse minha diminuta vida humana para que
eu a nomeasse herdeira do trono. Em seus milênios isso não faria
diferença...mas ela sabia que, com a magia correndo pelo meu território, eu
poderia viver alguns séculos. Sabia que eu poderia ter herdeiros e, em um
estalar de dedos, mudar de ideia. Então nosso acordo foi claro: assim que eu
retornasse ao meu reino, após devolver a Gema de Fogo, eu passaria minha
coroa para ela.
Seria o melhor para Montecorp, para o meu povo, e para mim, pois eu
poderia viver livre, viajando e tocando violino até meus dedos sangrarem.
Era o melhor para todos. E ainda assim, eu não conseguia sorrir.
Me virei na cama. O colchão era duro e o lençol, áspero quando
comparado ao palácio da Imperatriz. Mas nem que eu repousasse em
nuvens seria capaz de descansar naquela noite. Uma melodia familiar
ruminava minha mente, mas não lhe dei atenção no momento. Ouvi passos
rangendo no corredor, um suave e outro firme. Fechei os olhos como se
estivesse dormindo, e em pouco tempo senti alguém se deitar ao meu lado.
Vento, sol e histórias. Zoey.
Dax se acomodou em um colchão no chão, tal como o perfeito
cavalheiro que era. Um lorde, mesmo que detestasse o título. Pensei no
calor que dividimos na noite passada. Um suspiro de alívio, uma declaração
de intimidade, um laço entre amigos que podiam ser mais que isso – se
quisessem. Eu não sabia o que eu queria. Grande novidade.
Em algum momento dentre tais pensamentos, eu pisquei e olhei a
pequena janela de madeira. Zoey tinha roubado toda a manta que nos cobria
e o quarto estava gelado. Toquei a pedra vermelha, seu calor familiar estava
ali. Reconfortante. Paciente.
O vidro estava embaçado com o orvalho e me levantei em sua direção.
Tracei o dedo indicador deixando um rastro de nitidez, as gotas frias me
avisando que a manhã estava chegando. O jeito da natureza chorar por ter
perdido as estrelas de vista.
Eu precisava encontrar um caminho seguro até Cinaéd. Descobrir onde
estava o misterioso herdeiro perdido de Bólius e lhe entregar a semente de
fogo.
– O que pode dar errado? – murmurei para a pedra em meu pescoço.
– O que disse? – perguntou Dax ao longe com a voz sonolenta.
– Ela disse “o que pode dar errado” – respondeu Zoey de forma
enrolada, se virando de bruços, enfiando seus cachos dourados e selvagens
embaixo do travesseiro.
– Do que você está falando, Luna? Nem amanheceu ainda, já disse que
detesto acordar cedo.
Vesti as calças e as botas e caminhei em direção a porta do quarto
tentando não fazer barulho.
– Durmam mais um pouco. Eu volto para acordar vocês em poucas
horas.
Corri até Molly e levantei a garota no meu colo. Seu corpo era macio e
quente contra o meu, e uma sensação quase familiar me tomou. Me senti
um canalha por me permitir sentir algo assim com ela desacordada em meus
braços, mas eu estava salvando sua vida. Não estava fazendo nada de
errado, ou tentava me convencer disso.
Precisávamos ficar em silêncio a fim de sair logo da estrada, mas
vozes abafadas vinham de um amontoado de plantas. Plantas que não
deveriam estar aqui. Seriam os companheiros de viagem dela que a
assistiam na taberna?
– Afastem-se, vou soltar vocês! – disse Molly, com urgência.
Ela cortou as vinhas e galhos habilmente, como se o fizesse com
frequência. Uma garota de cabelos dourados e pele castanha que tinha o
olhar doce, assustado. Um rapaz de cabelos pretos e olhos amendoados que
parecia desesperado. Ele foi o primeiro a falar.
– Luna!
Luna. Era esse o nome dela, não sei como pude ter me esquecido. A
fitei em meus braços, ela parecia estar imersa em um sono profundo. Seus
lábios cheios estavam entreabertos em um claro sinal de exaustão. Ela era
linda. Tive a súbita intenção de protegê-la, mas ela não me conhecia. Eu
estaria a assustando se tentasse agir assim. Então por que eu não queria
soltá-la?
– Ela está bem, só desmaiou – declarei. A menina de cabelos
cacheados correu na minha direção, seus olhos em prantos. Eu precisava
acalmá-la antes que começasse a fazer algum som que chamasse atenção. –
Ei, qual seu nome?
– Zoey – ela balbuciou. – Ele é Dax.
Ótimo, agora precisava ganhar alguma confiança, o que seria
incrivelmente difícil após uma situação traumática como essa.
– Oi, Zoey. Pode me chamar de Blaze e essa é minha amiga, Molly. A
Luna vai ficar bem. Só precisamos sair daqui antes que o merda do Krotos
se solte dali. – Apontei com a cabeça para a jaula improvisada que Luna
criara. – Só um inconsequente andaria pela Estrada das Cinzas.
– Mas nós precisamos chegar até Cinaéd – revelou Zoey com a voz
doce, afastando os cabelos volumosos do rosto.
Achei que os absurdos haviam cessado pelo dia, e claramente tinha me
enganado. Zoey e Dax me encaravam como se eu tivesse posse de algo que
pertencia a eles, e fitei Molly, deixando nas entrelinhas “Fale pra eles não
fazer nada idiota. Não pra mim.” Ela abaixou a cabeça em um riso
cúmplice.
– Algum de vocês tem algum senso de autopreservação? – Exclamei,
tentando não levantar a voz, o ímpeto de gritar pairando no peito. – Eu
conheço um lugar seguro, vou levar vocês até lá, ok? – Aquela era uma
promessa que eu pretendia cumprir.
– E por que confiaríamos em você? – perguntou o rapaz, claramente
impaciente. Sua arrogância foi demais para meus nervos. Molly deu um
passo, ficando mais próxima de mim e de Dax, e tocou no meu braço como
um lembrete para manter a calma.
– Porque eu tenho bom senso o bastante para afirmar que essa estrada
– Levantei um dedo que segurava o braço de Luna, apontando para a
estrada –, é a trilha para os suicidas. Você parecia inteligente, mas tudo
bem. Não confie nas duas pessoas que salvaram a vida de vocês, faça como
quiser. – Contorci meu rosto em impaciência, a respiração curta saindo de
mim. Ele não parecia entender do que Krotos era capaz e eu não estava com
humor para explicar.
– Luna nos salvou, não você – Dax afirmou.
– Ninguém vai resolver nada assim – resmungou Zoey para Molly,
passando as mãos pelo rosto, aflita.
– Garotos, acalmem-se – interveio minha amiga com seu usual sorriso
fácil. Ela falava como se estivéssemos esperando bebidas em uma taberna.
– Podemos debater o melhor caminho para Cinaéd quando estivermos de
barriga cheia e longe daquele assassino, que tal?
Zoey deixou escapar uma risada. Dax revirou os olhos, e eu me virei,
em direção ao atalho que tinha usado para chegar até aqui. A Estrada das
Cinzas e a Via do Fogo pareciam ser lineares, mas as passagens e
entremeios de Cinaéd até Ellioras eram incontáveis. Cada aventureiro
esculpia sua própria trilha.
– Esperem – pediu Zoey quando dei o segundo passo. Ela buscou em
um de seus bolsos uma pequena escultura de madeira entalhada. Um apito,
percebi.
– Zoey, você não é uma boa ideia fazer barulho aqui! – retruquei tarde
demais. Ela já estava assoprando e, para minha surpresa, não ouvi nada. Era
um instrumento desconhecido para mim.
– Espere só um pouco. Por favor – ela suplicou imbuída de certeza,
desviando o olhar entre nós três, e Molly assentiu.
Em poucos instantes, ouvi o galopar de três animais. Um deles, escuro
como a noite, vinha imediatamente na minha direção.
Dax buscou em seu bolso algumas frutinhas vermelhas, as amassou em
um pote de madeira. O aroma cítrico chegou em mim, mesmo à distância.
Ele se aproximou do rosto de Luna, que permanecia apoiado no meu
peito, e traçou seus lábios com o polegar como se os conhecesse. Olhei para
o céu sem estrelas sobre nós, para o vulcão impiedoso no horizonte,
ignorando a pontada de inveja do gesto simples. Eu não precisava assistir
isso, sentia como se estivesse invadindo uma história.
– Vamos lá, mais um episódio para sua coleção especial de
cataclismas, Luna. – Nenhuma nota de sua arrogância saiu dele, mesmo
sabendo que ela estava desacordada. A intimidade na frase me fez querer
partir dali, mas eu segurei firme.
Ele forçou o sumo contra sua garganta e Luna piscou algumas vezes ao
recobrar a consciência. A cor voltou ao seu rosto como mágica e seus olhos
encontraram os meus com a expressão confusa. Claro, como uma garota se
sentiria em desmaiar e acordar nos braços de um completo estranho?
– Blaze, o que você está fazendo aqui? – ela murmurou com a voz
rouca.
– Ajudando Dax a te acordar – respondi, um sorriso ameaçando surgir
em meu rosto.
Ela parecia assustada, mas não se desvencilhou do meu toque
imediatamente. Devia estar muito fraca ainda, olhando os arredores escuros
como um gato assustado.
– Eu te ajudo a cavalgar, Luna. Noite está aqui, ela... – disse Zoey.
– Precisamos partir logo – interrompeu Molly –, algo me diz que ele já
vai conseguir se soltar.
Grunhidos e galhos partidos podiam ser ouvidos, mas não podíamos
ver o quanto Luna o prendeu.
Zoey subiu no belo cavalo preto com adornos prateados. O símbolo da
lua crescente estava na sua testa, eu não precisava ser um lorde para saber
que era uma joia. O animal era dócil, e ajudei Luna a subir no seu dorso
junto da amiga. Ela se manteve calada.
– Dax, deixe o meu cavalo com eles. Precisamos ser ágeis. Eu consigo
conduzir nós duas sem problemas.
– Você sendo prática e ágil? O universo acordou do avesso hoje – ele
resmungou enquanto entregava a rédea do animal nas minhas mãos com
algo que podia jurar ser descontentamento.
Segurei na mão de Molly, e logo estávamos cavalgando guiando o
caminho que nos distanciava da Estrada das Cinzas. Eu olhava para trás
para me certificar que Zoey e Luna continuavam me seguindo. Ela tinha
seus olhos fechados no ombro da amiga, que conduzia sem esforço. Por um
instante, aquela garota tinha parecido tão imbatível e agora ela parecia tão
frágil.
Não sei por que ela queria visitar o Reino de Fogo, mas nenhum
motivo seria bom o suficiente para entrar nesse território esquecido pelos
deuses.
Estava decidido. Eu faria todo o possível para não deixar que ela
colocasse os pés em Cinaéd.
Capítulo 6
Eleanor
Não sei aonde estamos indo, mas há alguns dias sinto meu coração insistir
em um pulsar reluzente nessas terras. Desde que o unicórnio me tocou, senti
que algo dentro de mim implora para despertar. Por uma chance, embora
não saiba qual. Alguma coisa que quero descobrir.
– Pode ficar de olhos fechados, Luna. Parece que Noite sabe o
caminho melhor que eu – sussurrei para a rainha, ainda muito fraca em
meus braços.
Realmente acreditei que ela estava mais forte e, ao olhar para Dax,
soube que sua surpresa era a mesma que a minha. Luna ainda precisava
encontrar sua força, seu ponto de equilíbrio. Eu a admirava por tentar. A
admirava por tudo, na verdade.
E, mesmo em uma circunstância infeliz, era grata por estar aqui. Não
mais ouvindo e contando histórias mas, pela primeira vez, sendo parte de
uma. Conseguia ver claramente os bardos entoando através dos séculos
sobre a incrível jornada que trouxe o equilíbrio da magia de volta à terra,
quando a Rainha da Lua e seus fiéis companheiros atravessaram o mundo
para fazer justiça.
A música estava praticamente pronta, só precisava de alguns poucos
ajustes para ser um sucesso. E eu sabia disso por quê? Não, sei, mas eu
sabia. E é mais importante saber do que saber porque se sabe. Disso, eu
sabia bem.
Encontrei em Ellioras uma parte da minha história, apesar de não a ter
revelado. Tinha certeza de que se tivesse compartilhado tudo que descobri
sobre minhas origens, Luna não teria aceitado a minha companhia e
ordenaria que continuasse no território de Peribelle. Ela já ficava relutante
com a nossa presença, pois não queria nos colocar em risco... Se soubesse o
quanto eu ainda tinha para descobrir, teria implorado que eu ficasse lá. Para
alguém que alegava que não queria a Coroa, ela sabia ser extremamente
teimosa.
Mas não era necessário tanta pressa. Eu poderia voltar à Ellioras
depois. Teríamos todo o tempo do mundo, depois que encontrássemos o
herdeiro perdido. Até lá, tínhamos o mundo todo e muito, muito pouco
tempo.
Sorri para mim mesma, girando os pés do alto da sela a fim de evitar a
dormência. Noite estava um pouco rabugenta, reclamando por estar
acostumada a ser a primeira égua na fila, liderando o caminho para os
demais. Igualzinho sua dona.
Eu não precisava olhar para trás para saber que Dax estava com um
péssimo humor. Sua luz estava oscilante, inconstante, visivelmente
incomodada. Para ser franca, todos nós estávamos. Ranzinzas, famintos,
exaustos e preocupados. Mas, por Argrinis, eu seria agradecida pela sorte de
Blaze e Molly estarem por perto hoje até o dia em que todas as estrelas
caíssem.
Teria sido o nosso fim, eu sabia disso. Dax era inteligente demais para
pensar o contrário, mas algo ainda o atormentava. Não sei se era sua
desconfiança usual ou seu mau humor natural. Para alguém tão ligado em
energias, ele parecia não reparar em uma das mais poderosas de todas: a
canalizada pelas pessoas.
Dax parecia conseguir entender e manipular a energia do
conhecimento, dos segredos ocultos dos elementos. Era como se conhecesse
as palavras de ordem que tornavam o impossível em viável.
Luna, por outro lado, trançava a energia dos elementos com a ponta de
seus dedos. Ela era aliada da natureza, como se fosse parte dela. Como se
fosse o coração da própria lua pulsando na terra.
Disso eu tinha certeza, pois sua aura mudava de cor cada vez que ela
interagia com sua magia. A princípio, acreditei que estava me distraindo
com as diferentes nuances iluminadas que via em Ellioras e por todo nosso
caminho até aqui. Eu sabia que a magia – as cores – estavam despertando
desde que Luna voltou ao reino. Era algo novo e fascinante, então eu as
recebi como amigas de infância. Ou como eu imaginava que seria alguém
assim. Acho que Luna e Dax eram as primeiras pessoas com quem eu
realmente tinha um laço como os vistos nas histórias.
Jamais havia percebido que o espectro da luz podia irradiar de outra
pessoa, mas a cada dia, a impressão era mais forte. Eu seria tola se
continuasse acreditando que a luz que via em volta de cada indivíduo era
apenas uma coincidência causada pelos meus olhos.
Meu coração ressoou em curiosidade e fascínio, pois jamais ouvira
sobre uma habilidade como essa. Achei que algumas pessoas tinham o olho
mais certeiro para avaliar caráter e que outras tinham uma intuição mais
apurada.
Foi na biblioteca de Ellioras que encontrei a minha história, não escrita
pela língua do vento, mas sim em uma caligrafia tão bela que os livros
pareciam bordados em tinta e papel. Os Empáticos, como eram chamados,
não eram vistos há quinhentos anos em parte alguma do mundo. Se
tornaram um conto, depois uma lenda, e agora não passavam de páginas
ocultas em livros escondidos. Sua capacidade de ler as pessoas era rara:
acontecia quando um espírito benévolo tocava um feérico, concedendo a ele
o dom da visão.
Era preciso ter a magia inata fluindo no sangue, caso contrário a
benção não funcionaria muito mais do que como uma intuição apurada.
Cheguei a ler registros de como cada cor da aura representava o que ela
estava sentindo. Diziam que um Empático seria capaz de deduzir os
pensamentos alheios apenas observando como sua aura respondia a algumas
perguntas simples.
Uma habilidade forte demais, seja para feéricos ou humanos. É claro
que em algum momento, ela seria usado para algo nefasto. Luna podia ter
feito amizade com Peribelle, mas a verdade é que o poder da Imperatriz
estava ligado ao fato de ela nunca ter sido uma santa. Os unicórnios
podiam ter se afastado de Montecorp há 100 anos, mas séculos antes disso,
os espíritos do bem se afastaram de Ellioras, como se tivessem desistido da
nossa dimensão e não se encaixassem mais aqui.
A noite sem estrelas – literalmente, não a égua meiga que nos
carregava – desafiava nossa visão, mas eu sabia onde Blaze e Molly
estavam. Mesmo ali, eles reluziam.
Não que eu soubesse decifrar o que significava o roxo que emanava
dele, ou o dourado que a envolvia. Não encontrei registros dos significados
das cores.
Tampouco perguntei a algum dos súditos de Peribelle se sabiam algo
sobre os Empáticos. Estava bem claro que eles eram seres de sangue
feérico, e todos os feéricos eram subservientes à Peribelle e Violeta. Eu não
podia – não queria – ser forçada a trocar de corte. Lunara era a única rainha
que eu estava disposta a seguir.
Se eu tinha esse poder agora, só podia ser graças a minha avó. Eu sabia
que ela havia fugido de Ellioras há alguns séculos, possivelmente na mesma
época que os espíritos deixaram o império. Todas as peças se encaixavam,
mas eu não tinha tempo para me distanciar e entender que figura se
formava.
Mas em algum momento, um espírito me tocou. Um pálido azul
celeste me envolveu como uma segunda pele que eu não sabia identificar a
origem. Era como se ela sempre tivesse estado ali, mas agora era visível. E
a magia adormecida em meu sangue começou a implorar para explorar o
mundo, e como eu poderia culpá-la? A cada noite solitária no estábulo eu
rezava para a mesma coisa. Mal podia acreditar que estava realmente
andando na corda-bamba das fronteiras dos territórios que antes eram
apenas histórias sem começo nem fim. E agora nós erámos o meio.
Eu, que nasci em um mundo sem esperança, testemunhei do telhado
dos estábulos o primeiro pôr-do-sol brilhante da minha vida. Não imaginava
que pudesse existir uma hora dourada, tampouco que seria do mesmo tom
do meu cabelo. Foi no dia em que preparei Noite às pressas e vi Luna
galopar furiosa. Mais tarde ouvi os boatos de que a rainha tinha feito um
discurso na praça sobre como tudo iria melhorar.
Lá do topo, fitei finalmente as estrelas que reluziam apenas na minha
imaginação por dezessete anos. Elas eram exatamente como havia sonhado.
Eu sabia que algo estava mudando, mesmo sem ninguém ao meu lado para
concordar comigo.
Eu mal conhecia as tais cores, vivendo em um mundo opaco com uma
promessa de glória... E agora podia vê-las transbordar de suas almas como
se fizessem parte do seu rosto.
Eu queria tanto saber o que elas significavam.
E, quem sabe, aprender a decifrar alguns pensamentos.
Talvez, atrair alguns espíritos benévolos de volta para nossa dimensão.
Amarelo e roxo pararam de se mover na minha frente.
– Podemos passar a noite aqui – comentou Molly com a voz firme e
alegre, descendo do cavalo, seguida de Blaze.
Dax rapidamente saltou ao meu lado, ajudando Luna a descer. Ela
estava acordada, mas em silêncio. Sua luz natural estava fraca, como um
raio de sol que se esconde atrás das nuvens. Meu peito apertou ao ver o
quanto ela estava exausta, mesmo com suas frutinhas mágicas. Elas não
eram milagrosas.
Os olhos verdes de Molly cruzaram os meus e não desviei até que ela
chegou ao meu lado, estendendo a mão para mim. Quando olhei para baixo
soltando as rédeas da Noite – a égua da rainha, não o céu, embora a ideia de
segurar as rédeas do céu noturno e viajar por ele fosse fascinante –, uma
curiosa luz verde-água começou a irradiar no momento em que nossas mãos
se tocaram.
E eu sorri porque... bom, porque era a minha cor favorita.
Capítulo 8
Luna
Não sei bem como Zoey e Molly fizeram panquecas no meio do nada,
e por um segundo me perguntei se elas também podiam conjurar
ingredientes naturais. Teria insistido no questionamento, mas preferi me
contentar com o sabor, que beirava o divino. Quem eu estava enganado?
Essa refeição devia ter saído do livro de receitas de Argrinis. As duas
trocavam sorrisos como se fosse um segredo, embora minha amiga fosse
mais doce e discreta, e Molly mostrasse os dentes como se tivesse recebido
a melhor notícia de sua vida.
Nenhum sinal de que quase havíamos perdido nossas vidas há menos
de um dia, julgando pelo olhar delas. Era o exato oposto do que via no
rosto de Blaze, à minha frente, que mantinha a expressão fechada, fitando
por cima dos meus ombros como se enxergasse algo que ninguém mais
pudesse ver. Como se aguardasse um ataque surpresa. Nada da postura
despreocupada do homem que conheci na taverna. Em suas mãos, ele
segurava o que parecia ser uma pequena faca e um tronco de madeira no
qual esculpia algo que não sabia dizer o que era.
Dax, ao meu lado, permanecia com o rosto entre a raiva e indiferença.
Havia uma linha tênue no que dizia respeito a esses dois sentimentos, uma
ponte frágil que eu nem sempre conseguia atravessar para resgatá-lo de si
mesmo.
– Eu disse que as frutinhas ficariam perfeitas nas panquecas – Zoey
comentou, entre uma mordida e outra, cortando o silêncio desconfortável
com sua voz doce. Decidi que engajar em um assunto como “guloseimas”
seria mais gostoso para começar o dia do que falar sobre a criatura que me
feriu, ou sobre para onde iríamos depois de comer.
Há muito, muito tempo, eu adoçava meus dias ruins com um
brigadeiro de laranja, ou de coco. Eu precisaria de um brigadeiro do
tamanho de uma montanha ao voltar para Montecorp.
– Tem algum segredo para cozinhar divinamente no meio da estrada? –
perguntei forçando um sorriso, mas genuinamente curiosa.
– Qualquer viajante preparado consegue, Luna, minha cara –Molly
disse sem um pingo de pretensão, apenas pura franqueza. Ela enrolava uma
segunda panqueca, como se fizesse isso todos os dias. Pelo jeito, era
exatamente isso que acontecia.
– Talvez os viajantes da sua terra sejam melhores cozinheiros do que
os da minha, pois nunca vi nada assim. – Fitei Molly e Blaze, que se
sentavam lado a lado. Um era o oposto do outro, a julgar a expressão de
seus rostos, apesar de terem movimentos parecidos. – De onde vocês são?
– De todo lugar – respondeu Molly, orgulhosa. Seus olhos verdes
brilhavam e seu cabelo preto estava em uma trança perfeita sobre a capa
marrom como sua pele.
– E além disso – concordou Blaze, com os olhos azuis agora cravados
nos meus, como se me desafiasse a perguntar mais. Ignorei.
Zoey pegou mais uma frutinha, e Dax estava lutando para não revirar
os olhos ao seu lado. A fogueira no centro era pequena, e a chama estava
quase se apagando. Eu poderia canalizar a pedra de fogo para nos aquecer
um pouco mais, porém usar o poder dela não parecia certo.
– A gente aprende uma coisa ou outra indo daqui à ali, certo? –
completou Molly, em uma frase que podia dizer tudo e nada ao mesmo
tempo.
Soltei o ar em uma risada. Como eu explicaria que o meu “daqui” e
“ali” eram, na verdade, uma dimensão e outra? Ou um reino de onde estava
fugindo, e outro onde era infiltrada?
Molly exalava uma energia como se fosse a anfitriã de lugar nenhum.
Era alegre, ainda que um pouco intrometida. Algo nela me incomodava,
mas não sabia precisar o que. Blaze e eu dividíamos um passado de mentira,
do qual só eu recordava. Mas mesmo com toda hospitalidade, eles não eram
meus aliados. Ainda não. Eu não poderia revelar sobre ser uma rainha,
sobre minha missão, ou... quase nada.
As meias verdades deveriam servir então. Eu poderia aprender algo
sobre como o mundo estava configurado agora.
– De fato, a gente aprende algumas coisas por aí. – Pisquei para Molly.
– E quem sabe, vocês podem me ensinar um pouco mais sobre Cinaéd. –
Seria arriscado blefar, mas não cheguei até aqui apenas tomando decisões
seguras. – Vocês sabem se o herdeiro de Bólius tem conhecimento sobre
Krotos? Se é aliado ou rival desse bandido?
– Nem aliado, nem rival. – Molly deu de ombros ao responder, e eu
franzi a testa.
– Bólius não tem mais nenhum herdeiro vivo, graças a Niasar. Ele se
autointitulou o “Herdeiro do Dragão”, graças a sua aparência que mistura o
pior do humano com o pior de um lagarto. Pode ser um desgraçado, mas
seu discurso foi bom o bastante para que unisse os destroços de Cinaéd e
transformasse o palácio no coração do vulcão em sua base principal.
“Quando a guerra terminou, o desaparecimento do dragão deixou um
vácuo no poder, e o mais forte e perspicaz o tomou para si. Niasar já era o
general do exército, e tinha domínio das forças bélicas de Cinaéd. Ele
clamou o trono para si, e declarou que o seu povo que vivia no centro da
montanha viesse para a superfície. Ele não teve sucesso conquistando
nenhum outro território até então, mas não duvido que esteja nos seus
planos.
“Há duas décadas ele vem comandando seus lacaios, como Krotos, a
aumentar sua coleção de cabeças de fogo. Pessoas que tem nuances
avermelhadas no cabelo, assim como eu e você, Luna – ele explicou
apontando para o próprio cabelo, os cachos vermelhos despenteados e
escuros. Blaze balançava a cabeça como se tentasse negar para si mesmo o
que falava. – Era o único traço comum conhecido entre todos os herdeiros
de Bólius, mas hoje é só uma desculpa para continuarem usando de sua
crueldade. Assassinam crianças se tiverem a oportunidade, mesmo que a
porra do dragão não tenha sido visto há vinte anos. Por isso que você quase
morreu. – Havia mais dor em sua voz do que Blaze transparecia. – Por isso
que tomar o caminho da Estrada das Cinzas foi uma decisão completamente
estúpida.”
Seus olhos azuis cravaram nos meus enquanto cuspia as últimas
palavras, como se aguardasse uma explicação. Ele terminava de lapidar a
madeira em suas mãos, cravando pequenos buracos no cilindro fino.
– Era a única decisão possível, já que os mapas indicavam que a Via
do Fogo era ainda mais hostil – justifiquei, sabendo que não era uma boa
resposta.
– Ambos os caminhos são estúpidos – Blaze desdenhou, voltando a
fitar o nada no horizonte de árvores. Percebi que ele girava em seus dedos
uma flauta de madeira recém esculpida. – Cinaéd é uma terra esquecida
desde a maldita guerra e os malignos usurpadores do trono. Não há nada ali
além de chamas, desgraças e morte. O mínimo que você deveria ter feito era
procurar uma forma segura de atravessar esse lugar. – Ele passou a mão
pelos cabelos e me encarou. – Por que alguém como você teria algo para
fazer em um lugar como aquele?
– Porque alguém como ela – Dax interrompeu –, não precisa dar
explicações para alguém como você.
Blaze parecia ter nascido na beira da estrada, graças a suas roupas com
beiradas puídas e o aspecto de quem já tinha enfrentado algumas brigas de
taverna com a mesma camisa. Dax contrastava com sua elegância nas
vestes e a arrogância própria de quem tinha crescido em um castelo.
Me levantei e parei entre os dois, de frente para Dax, o encarando
profundamente irritada. Eu sabia qual era o meu lugar, independente do que
qualquer um dos dois pensasse de mim.
– Dax, alguém como eu não precisa que outra pessoa fale por mim ou
que me defenda.
– Ah, claro, Vossa Majestade. – Ele fez uma reverência debochada. –
Você só precisa de alguém que possa salvá-la.
Dax andou com raiva em direção as árvores mais densas da floresta, e
Zoey se apressou atrás dele, lambendo os dedos que ainda tinham o caldo
das minhas frutas encantadas.
– “Vossa Majestade”? – Molly olhou confusa entre o espaço vazio
onde Dax estava e eu.
– É uma brincadeira nossa – despistei. – O título também lhe cai bem,
Blaze, já que gosta de questionar os outros de forma autoritária.
– O que você poderia saber sobre “alguém como eu”? – Ele revirou os
olhos de um lado para o outro, com um meio sorriso despontando dos
lábios. Apoiei os braços nos joelhos, e me inclinei na sua direção.
– Sei que alguém como você parece conhecer um caminho seguro até
Cinaéd.
Era um desafio desesperado, mas normalmente minha inconsequência
compensava.
Blaze deu um passo na minha direção e, pelos deuses, eu queria recuar,
mas me mantive no lugar.
– Talvez eu saiba. Mas minha pergunta não soou como eu gostaria. –
Blaze respirou fundo, gesticulando como se pudesse colher as palavras
certas. – O que uma garota que exala magia como você precisa fazer em um
lugar que vai fazer de tudo para tentar te matar assim que você pisar lá?
– Não seria a primeira vez que eu estou nessa situação – falei sem
pensar.
– Pode ser a primeira vez que você a evita, que tal?
– Não aja como se você pudesse solucionar meus problemas. Você não
me conhece.
– E você me conhece para ter certeza de que não posso te ajudar?
Sim.
Não. Mesmo na outra dimensão, eu não sabia quase nada sobre Blaze.
Sobre sua família, amigos, carreira... nada. Mas eu conhecia seu coração.
Ou ao menos, achava que sim. Isso era o bastante para dizer que se conhece
alguém, certo?
– Você pode me ajudar garantindo para mim e para meus amigos uma
passagem segura para o Reino de Fogo. – Me levantei do tronco de árvore e
andei para perto da fogueira quase apagada, jogando algumas pedrinhas
para perto da lenha queimada. Incerta de como me mover e de como me
expressar. – Fiz um voto à Alma Antiga, não é algo que posso me dar ao
luxo de deixar de lado. Há alguém em Cinaéd que eu preciso encontrar.
Pela expressão de Molly e Blaze, eles já haviam ouvido falar sobre
Madame Sienna, e seus nomes multifacetados que cruzavam as histórias
através das estações, das mudanças das línguas e das eras. A matrona do
panteão divino, a responsável pelo tecido da realidade, a única capaz de
trançar as dimensões como se fosse uma tapeçaria.
– Não há aliados para você lá, Luna – Molly interveio.
– Não busco aliados – suspirei, olhando para o céu cinzento acima de
nós, já conhecendo as lágrimas que subiam pela minha garganta. – Busco
alguém que possivelmente foi morto a mando de Niasar, pelo que me
contaram. Mas se há uma única chance de encontrar um herdeiro do dragão,
eu preciso tentar. Sou estúpida a ponto de atravessar uma estrada perigosa,
mas não quebraria um pacto com uma entidade ancestral.
“Não só pela minha alma, que já foi fragmentada mais vezes do que eu
poderia suportar..., mas pelos reinos que governam esse mundo. E pelo
futuro de paz que ainda acredito que possa existir. O nosso continente não
precisa ser assim, com as fronteiras fechadas e sem nenhuma união. –
Gesticulei as mãos sem jeito, pensando em formas de persuadi-los. – Posso
recompensar vocês, se é tesouro o que buscam.
“Blaze, você não precisa ir comigo. Mas te peço que não fique no meu
caminho. Te devo a minha vida e a de meus amigos por ontem, mas
podemos nos separar aqui.”
Molly deixou escapar uma palavra suja e sussurrou algo para Blaze
que não chegou até meus ouvidos. Pegou alguns cantis de água apoiados no
chão e caminhou em direção ao som de um rio. Um vento frio ainda fluía
entre nós, contrastando com o calor da manhã. Dei alguns passos para trás,
engolindo o choro ao enrolar a ponta do meu cabelo com os dedos,
pensando no que dizer em seguida. Ou se havia dito demais.
– Luna, você acha que nos encontramos por acaso? – A voz de Blaze
era baixa, mas ressoou por mim.
Não.
– Claro que sim.
Ele riu, como se não estivesse me contando alguma coisa.
– Eu vou te ajudar a encontrar o herdeiro de Bólius, se ele ainda
existir. Mas vamos por um caminho diferente das estradas conhecidas nos
mapas.
– Qual caminho? – perguntei, não sabendo ainda se deveria me alegrar
com tamanha sorte.
– Você vai ver chegando lá. É uma surpresa. – E, após olhar em volta
do pequeno acampamento, se certificando que estávamos sozinhos, levou a
flauta aos lábios e soprou uma melodia desconhecida e hipnótica, como a
memória fresca de um sonho ao despertar.
Capítulo 9
Blaze
Há algumas horas não sabia para onde estava indo, mas confiava
cegamente em Blaze, apesar de ele ter cortado minhas tentativas de
perguntar qual caminho seguiríamos. Apesar de sermos cinco pessoas,
decidimos dividir os três cavalos, para o grupo manter o ritmo. Noite seguia
comigo mais do que uma montaria, era como uma parte selvagem do meu
coração, como se pudesse ler em seu olhar profundamente escuro alguns de
seus pensamentos. Gostaria de me comunicar com ela, perguntar se ela
preferia torrões de açúcar ou maçãs, apesar de comer os dois com o mesmo
entusiasmo.
Após desmontar o café da manhã, Zoey avaliou os animais e declarou
que o cavalo que levara Molly e Blaze na noite anterior estava cansado e
deveria carregar apenas uma pessoa hoje. Blaze já havia ganhado a
confiança e intimidade do animal, então seguiu sozinho, liderando. Zoey e
Molly seguiram juntas por serem mais leves. E como Noite ainda estava
perfeitamente disposta, seguiu comigo na frente e Dax logo atrás de mim.
Eu não conseguia cavalgar muito bem, graças a dor em meu braço. Na
necessidade de algum movimento brusco, certamente me faltaria a força ou
a agilidade necessária.
O alquimista estava calado – emburrado, para ser totalmente franca – e
seu silêncio me irritava tanto quanto suas reclamações. Especialmente
quando éramos obrigados a ficar tão... próximos. Eu sentia sua perna roçar
na minha, e seus braços seguiam apoiados na minha cintura, mesmo
enquanto eu guiava as rédeas da Noite. Quem me dera guiar as rédeas da
situação. Eu entendia porque Dax desconfiava de Blaze, mas se soubesse
como o conheci, poderia piorar sua antipatia por ele. E nesse momento,
precisávamos de mais aliados.
O silêncio pulsante há horas, ardia. Estávamos perto fisicamente,
dividindo a mesma sela, mas talvez ele estivesse me evitando.
Após tudo que tínhamos dividido, eu não deveria ficar escandalizada
com algo tão simples quanto a sua mão apoiada na minha coxa ao cavalgar.
Não era nada que ele nunca tivesse tocado antes. Ainda assim, a
naturalidade da situação era demasiadamente íntima. Se eu não estivesse
irritada, certamente recostaria a cabeça no seu peito, como fizemos tantas
vezes na paz de Ellioras. Ele diria algo inusitado, e eu responderia com algo
absurdo. Eu abriria um sorriso, e ele fingiria que não. E nem precisava. Ele
sorria com os olhos, apesar de manter o rosto fechado.
Mas agora, tudo o que eu queria era explicar porque confiava
cegamente em Blaze. Porque minha necessidade de cumprir minha missão
era prioridade para que enfim pudéssemos libertar Montecorp – e em
seguida, a mim. Eu entregaria minha coroa à Peribelle, e enfim estaria livre.
Ou perdida. Não saberia a diferença mesmo que assistisse uma apresentação
de slides sobre o assunto. Não que slides existissem aqui. Suspirei. Como
eu explicaria toda a bagunça que era a minha história para alguém? Talvez
um livro conseguisse retratar uma fração do que é o caos deslumbrante que
sinto.
A floresta à nossa volta não era densa, mas própria para montanha.
Como se nascesse a fim de fincar suas raízes em rochas, e não em terra
macia. Desde que a magia despertou em mim, e principalmente desde
quando aprendi a me comunicar com ela, comecei a reparar intensamente
na energia que exalava da natureza à nossa volta. Havia um perpétuo pulsar,
um chamado invisível e silencioso como o intervalo das batidas do meu
coração.
As palavras de sabedoria dos meus ancestrais começavam a fazer
sentido no meu coração, mas ainda permanecia como um enigma na minha
mente: deixe que suas raízes cresçam e sua liberdade surgirá como asas.
Eu, que jamais conheci a liberdade, sonhava acordada pensando em como
seria voar. Se seria melhor deixar a ideia imaculada na minha imaginação,
ou deturpá-la na tentativa de fazê-la real.
Percebi que a cada quilômetro nos aproximamos mais e mais das
montanhas, como se estivéssemos ao mesmo tempo subindo e mergulhando
direto para o centro da terra. Lembro que essa era uma das histórias
favoritas do meu pai – Luiz –, sobre um grupo de aventureiros que
descobriram toda uma civilização perto do núcleo do planeta. A ideia me
pareceu absurda na época, e hoje me parece quase normal.
Ainda não havia tido coragem de olhar o estado do meu violino após a
armadilha de Krotos. Meu ombro ainda pulsava com o eco da dor do nosso
encontro e, mesmo após dormir e comer minhas frutinhas, a musculatura
doía. Eu conseguia repor minha magia, mas não meu vigor físico. Como
não conseguiria tocar, preferi não encarar o estrago no meu instrumento.
Vê-lo partido, iria me ferir. Eu preferia ter meu próprio “violino de
Schroedinger”, quebrado e intacto ao mesmo tempo.
Um dia eu poderia viver tocando até soar como a trilha sonora de uma
chuva de estrelas cadentes.
Um dia.
– Você está calada demais.
Senti a voz de Dax ressoar pelo meu corpo me tirando de um transe
involuntário. Seu tom tinha um toque de deboche e um toque de
preocupação. Aparentemente ele preferia me provocar a não falar comigo.
– Eu não sei o que dizer. – Era verdade.
– Não vou discutir com você sobre confiar em completos estranhos,
Luna.
– O que mudou nessas últimas horas?
– O fato de eu ter percebido que você não vai mudar de ideia.
– Só isso? – indaguei, me virando para encarar seu rosto. Uma mecha
curta de seu cabelo caia na frente do seu olho cor de mel e a ternura ali me
fez estremecer. Seria mais fácil continuar irritada se ele não fosse tão
bonito.
– Eu aceito sua essência cataclísmica, já falei mais de uma vez que a
acho fascinante. Se estamos indo em direção a uma armadilha, ao menos
um de nós está atento a isso.
– Dax, eu não queria lembrar que Sir Caleb foi a pessoa em que eu
mais confiei em toda minha vida, e a que me traiu em todas as
oportunidades. Acreditar em Blaze e Molly me parece uma ideia tão boa
quanto qualquer outra.
Dax ficou calado por um instante. Eu nunca iria culpá-lo pelos erros do
pai, mas não podia deixar o assunto intocado como se não existisse. Eu
deveria contar como conhecia Blaze, mas não sabia qual a melhor forma.
Até poucos dias antes, eu achava que ele não existia.
– Me parece uma ideia incrível – ele nem tentou disfarçar a ironia no
seu tom –, especialmente quando Cinaéd fica à nordeste, e estamos andando
para o sul.
Olhei em volta buscando a posição do sol. Eu sabia que era um pouco
depois de meio dia, mas sem uma bússola não seria capaz de discernir o
leste do oeste, ainda mais com as montanhas cada vez mais impetuosas a
nossa volta.
– O que isso quer dizer, sr. Sabe Tudo?
– Eu não sei tudo, minha estimada rainha. Esse é o seu papel,
aparentemente. – Dax deixou uma parte satisfeita de seus dentes
aparecerem e desceu até meu ouvido para sussurrar. – Mas há sinais ao
nosso redor que são claros, como a posição das sombras das árvores, a
silhueta das montanhas e a direção do vento. Tudo à nossa volta é apenas
uma página de um livro esperando ser escrito. A magia pode ter te
escolhido Luna, mas ela é um recurso que pode ser acessado.
Seu hálito era doce e quente contra minha nuca e um arrepio desceu
pela minha espinha, contrastando com o frio anormal que nos envolvia. Dax
buscou uma pedra cinza, translúcida e brilhante no seu bolso e a colocou na
minha frente.
– Iter – ele disse com uma precisão que poderia rasgar sua garganta.
As pequenas reentrâncias do cristal reluziram e, vindo da luz prateada, um
mapa do nosso mundo conhecido apareceu diante dos meus olhos.
Dax manuseou o instrumento e cada detalhe estava ali. O Carvalho de
Prata, o palácio de Montecorp, a densa Floresta do Oblívio, uma cadeia
montanhosa gelada e o vulcão de Cinaéd.
– É um mapa? – Eu já tinha feito perguntas idiotas, mas essa
definitivamente era a vencedora.
– É um armazenador de mapas. Ao menos do que é conhecido pelos
livros. Essa pedra é feita da rocha prima, extraída do centro da terra. Nós
conseguimos ativar a sua memória e registrar informações geológicas nela.
Mas só podemos inserir o que já sabemos, ela não possui consciência
própria, senão a teríamos usado dentro da floresta.
– Foi assim que você me encontrou no Carvalho de Prata no festival da
Lua Azul?
– Não. – Uma sombra passou pelo seu rosto. – Eu apenas te segui.
– Ainda não acredito que você criou um GPS. – Minha voz estava
incrédula, e os olhos assustadoramente arregalados.
– Supondo que um GPS seja um armazenador de mapas, sim, minha
rainha. E esse ponto esbranquiçado – ele apontou para uma parte da cadeia
montanhosa – somos nós.
Meu sorriso logo desapareceu diante do que via.
Isso fazia sentido. Não estávamos indo em direção a terra do fogo, mas
em direção às Montanhas Profundas. Uma região não explorada, livre de
estradas, reinos ou distritos.
Eu podia ser uma rainha, mas não sabia nada sobre meu próprio
mundo. Ou sobre as maravilhas que se escondiam ali. E aparentemente não
sabia em quem podia confiar.
– Isso quer dizer que...
Ele passou o polegar sobre a pedra – imagino que para desativá-la – e
assumiu as rédeas da Noite sobre minhas mãos.
– Que estamos nos distanciando cada vez mais de Montecorp e de
Cinaéd, então não sei onde nossos novos companheiros de viagem
realmente pretendem nos levar. – Dax olhou por cima da minha cabeça
como se analisasse os movimentos dos cavalos a nossa frente. – Talvez o
herdeiro do dragão não esteja no Reino de Fogo e eles saibam de algo que
não estão compartilhando conosco. Talvez nós estejamos indo ao encontro
de Krotos, Niasar, ou sei lá qual fora da lei possa existir nessas terras
exiladas. Eu só tenho uma certeza.
Odiava quando ele estava certo. Detestava o receio de estar enganada.
Especialmente porque me sentia uma completa incompetente ao arriscar a
vida de todos em uma emboscada, mas como isso já havia acontecido, eu
torcia para que não se repetisse.
Eu estava angustiada, enrolando as pontas do meu cabelo como se isso
pudesse resolver algum dos meus problemas. Revirei os olhos, indignada
por sentir que estava mais longe do que nunca após ter tido a doce ilusão de
que estava prestes a completar minha jornada e voltar para casa. A gente
imagina um caminho, mas a vida improvisa. Faz planos que não te conta.
Pede licença poética e reescreve tudo aquilo que você imaginou.
Com sorte, para algo ainda mais fantástico, como um urso polar
usando um guarda-chuva pequeno e cor de rosa para se proteger de uma
chuva de limonada. Mas a sorte não sorria para mim com frequência.
– O que Dax? – finalmente perguntei. – O que você tem certeza?
– Você fica desnecessariamente linda quando está irritada.
– Desnecessariamente? – a voz saiu de mim aguda e indignada. – O
que isso quer dizer?
– Se você não sabe, eu não vou te falar.
Mordisquei o lábio inferior, incrédula. Em um momento eu queria
chorar de raiva e frustração e, no outro, queria gargalhar. Não percebi que
acabei inclinando no seu peito, respirando fundo para me acalmar – ou para
sentir seu perfume de carvalho e mistérios.
– Você quer ser mais um segredo para minha coleção interminável de
mistérios?
– Presuma que eu sempre quero, Luna. – Seu olhar estava cravado no
meu como um diamante em uma joia preciosa.
E podia ser o balanço suave da cavalgada, o frio que parecia atravessar
as camadas de tecido que eu vestia ou os olhos amendoados de Dax
estudando meus lábios como se calculasse todos os meus movimentos
possíveis, mas virei para frente, fitando a paisagem a nossa volta me
sentindo uma completa idiota.
E talvez não adiantasse esperar por um momento perfeito, pois a vida
nos dava muito poucos e o melhor caminho seria aceitar uma história
repleta de imperfeições, mas desejei que ele pudesse ler minha mente.
– Por que você me desafia o tempo todo? – As palavras saíram como
um suspiro. Um pedido.
– Porque você é incrível quando concordam com você...mas quando
você é provocada? – Ele deixou uma risada espontânea escapar como se
precisasse dela para respirar, e meu coração perdeu uma batida. – Você é
inacreditável.
E eu queria contar para ele sobre como conheci Blaze. Queria que
entendesse o motivo para confiar em alguém que estava mentindo para nós,
mas a parada brusca que Noite fez quebrou o momento.
Ouvi o galope adiante e ao olhar para frente vi Blaze voltando pela
trilha estreita para falar conosco. Eu não fazia ideia de que ele se distanciara
de Zoey e Molly, mas pelo olhar apreensivo em seu rosto fechado, eu sabia
que não era porque havia encontrado um oásis com piscinas termais.
– O que você viu? – perguntou Molly. A natural alegria da sua voz não
estava em lugar algum a vista.
– Temos companhia – Blaze respondeu secamente.
– Quem? – Dax cortou, claramente tenso. Possivelmente, por mais de
um motivo agora.
– Ainda não posso afirmar, mas há sinais nessa trilha. – Ele se virou
para sua velha amiga. – Preciso de você para avaliar os rastros que
encontrei, Molly.
– Então vamos juntos – Dax declarou, saltando da Noite. Ele me
ajudou a descer da égua, e assim que me colocou no chão passou o polegar
no meu rosto. – Não desafie ninguém para um duelo até eu voltar.
– Não posso prometer – tentei brincar, mas, pela expressão em seus
rostos, continuei preocupada.
Capítulo 11
Luna
Luna, não!
Ela não me deu tempo o bastante para que explicasse por que defendi
Dax, e assim que a vi cavalgando pelo ar, um misto de admiração e
arrependimento me tomou. Eu não deveria tê-la deixado fugir sozinha. Não
enquanto seu coração estava partido. O espectro em volta da rainha de
Montecorp ficara cinza, tal qual os dias desolados em que o reino viveu sem
ela. Volpe estava sentada entre minhas pernas, suas orelhas abaixadas.
A montanha parecia subir até acima das nuvens, e já havia perdido
Lunara de vista quando voltei a ouvir vozes ao meu lado.
– E, por um momento, achei que vocês estavam juntos – Blaze
murmurou, jogando o cabelo cacheado para trás com as mãos –, mas, pelo
que entendi, você fez um feitiço para assassiná-la... – Seu tom era irônico,
mas eu sabia que tinha fúria ali. Sua aura reverberava entre o vinho e
vermelho intenso.
– Você não a conhece, não finja que se importa. Nada do que ouviu é
da sua conta – Dax bravejou, apontando o dedo no rosto de Blaze. Azul
marinho e vinho revezavam em sua silhueta, como o ódio e arrependimento
valsando uma canção doentia.
Blaze fitou o fundo dos olhos do meu amigo, e vi o ruivo do seu
cabelo o envolvendo por completo de forma etérea. Roxo subia como
fumaça entre eles. Blaze desceu o dedo de Dax enquanto falava com um
sorriso debochado:
– Conheço o suficiente para saber que jamais seria capaz de fazer mal
algum a ela. Então eu não dou a mínima para o que você pensa, Dax. Tudo
isso agora é estritamente da minha conta, e se você não gostar, chore
durante seu sono.
Era ódio o que vi nos olhos de Dax, e essa vibração que vi crescer ao
seu redor, como se expandisse, desesperada por libertação. Fechei minhas
mãos por impulso, e dei um passo para a direita, mais perto de Molly, que
analisava alguns destroços da ponte caídos no chão. Agachei ao seu lado,
suplicando com os olhos, aquele não era o lugar nem o momento para um
conflito entre nós. Não quando a minha rainha estava sozinha no topo de
uma montanha, enquanto um ser espectral estava a caminho para matá-la.
Luna... Eu a amava, mas se isolar em uma situação assim foi uma das
coisas mais idiotas que ela já fez. Tinha saudades de quando ela desafiava a
realeza para um duelo. Eu quase sorri ao pensar em um duelo entre ela e
Dax. Quase.
– Molly, eu acalmo Dax e você o Blaze. Ok? – sussurrei em seu
ouvido, enquanto o vento insistia em zunir.
– Vamos logo, antes que eles se beijem. – Molly bateu a poeira das
mãos e me encarou com seus olhos surrealmente verdes, analisando as
linhas de tensão no meu rosto. – Fica tranquila, lindinha. Blaze só parte
para ação quando deixa a ironia de lado... Ela ainda é sua arma favorita.
– Você tem certeza que tá tentando me acalmar? – perguntei, um pouco
mais preocupada.
– Não, estou tentando fazer você sorrir. Parece que o sol apaga quando
você fica séria.
Um sorriso, que era mais uma fungada, escapou de mim, e franzi a
testa olhando para o dia cada vez mais cinzento e nublado.
– Acho que o sol está apagado há uns dias.
– Preciso discordar, Zoey – Molly declarou, dando de ombros ao se
levantar. – Blaze, tive uma ideia para sairmos daqui e resgatar a princesinha
da torre em que ela mesma se enfiou – ela gritou, andando na direção deles
como se discutisse sobre o ponto de ebulição da água. Ou alguma outra
coisa complexa e irrelevante.
Tentei me levantar em um pulo, mas acabei caindo sentada no chão. A
raposa chegou seu focinho perto dos meus cachos dourados, que pairavam
em frente aos meus olhos, e sem planejar o que dizer ao meu amigo, apenas
berrei contra a crescente ventania:
– Dax! Preciso que você veja isso! – Ver o que, Zoey? Por Argrinis, eu
não sabia mentir. Precisava de alguma verdade forte o suficiente para tirar
seu foco da raiva que o consumia.
Busquei ao meu redor qualquer coisa plausível e minimamente
interessante. Nada parecia relevante o bastante. Eu teria que improvisar.
Mentir era diferente de improvisar, certo? Talvez eu fosse boa no
improviso. Descobriria em alguns instantes.
– O chão está tremendo! – exclamei, movida por puro de desespero. O
chão não estava tremendo, estava estático como uma rocha.
Ou não.
Meu corpo notou antes da minha mente que, de fato, alguma coisa não
estava sólida sob nossos pés. Algo que poderia ser confundindo com um
estômago roncando, mas rochas não tinham estômago.
Em parte, era um alívio. Não gostaria de ser devorada por um gigante
de pedra.
Zoey, isso não era uma boa notícia. Terremotos não eram uma boa
notícia. Principalmente quando Luna estava no topo da montanha,
completamente sozinha.
– O que tá acontecendo nessa mer... – Dax praguejou ao estender a
mão para me ajudar a levantar.
– A sombra que você conjurou para matar a Luna faz esse tipo de
coisa? – perguntei, esbaforida.
– Porra, Zoey, eu não tentei matá-la! – Dax soltou minha mão, irado.
Azul marinho intenso fluía por ele.
– Responde a pergunta, só isso – o apressei.
– Não – ele soltou em um suspiro. – Seja lá o que está acontecendo, é
outra coisa. Parece que tem um exército vindo na nossa direção – o
alquimista complementou.
– Não precisa de um exército para ressoar pela cadeia das montanhas.
A própria geologia do lugar amplifica os sons e os passos de quem pretende
chamar atenção e intimidar sua presa – Molly revelou.
– Estão atrás de Volpe? – interroguei. O que essa raposa pode ter feito?
– A presa é outra criatura de “pelo vermelho”, Zoey – Blaze interferiu.
– No caso, eu e nossa amiga lá em cima.
Krotos estava nos seguindo? Eu mal consegui vê-lo graças a proteção
que Luna colocou sobre nós. Mas vi suas cores vibrando como o sol do
meio-dia. Verde pantanoso e amaldiçoado emanava dele. Procurei pelos
meus arredores, mas só via as montanhas cinzentas, as árvores ressecadas e
alguns poucos arbustos que insistiam em tentar colorir a paisagem
esquecida pelos deuses.
Eu precisava olhar além.
Portanto, fechei os olhos. E o vento estava ali. Inquieto, persistente e
mensageiro.
Podia ver a aura dos meus companheiros de viagem, o dourado
iluminado de Volpe e de Raio e Trovão. Virei de costas, em direção ao
caminho do qual viemos – não porque o enxergava, mas porque, de alguma
forma, nosso rastro estava ali. Como se deixássemos um eco de energia por
onde andávamos. Me perguntei se era isso que Krotos usava como rastro
para nos alcançar.
E diante das curvas das montanhas e do tronco fosco das árvores, eu
sabia que ele e sua laia se aproximavam, ainda que estivessem distantes.
Sabia que o chão tremia de tal forma que ameaçava partir,
transformando a montanha em um vale.
Sabia que tínhamos pouco tempo, e que estávamos em desvantagem
numérica.
Mas por algum motivo estúpido, eu também sabia que podia ter
esperança. Não iríamos morrer ali, não agora. Não quando havia tanto para
esclarecer e realizar. Não quando eu tinha acabado de fazer amizade com
uma raposa.
Minhas prioridades não eram as melhores do mundo, mas meu coração
parecia estar no lugar certo – só apontando para a direção errada.
Procurar por Krotos era mirar na perdição. Virei para meus amigos,
complexos e desarranjados, e soube que estávamos assim pois faltava nosso
elo. No topo da montanha, ela reluzia como a própria lua cheia, sua aura
prateada irradiando em meus olhos fechados como se brilhasse no céu a
noite.
O vento soprou mais forte, ainda que tenha entendido sua mensagem
de forma tardia. Não deveríamos ir para longe da montanha que ameaçava
se partir, mas em direção a ela.
A cadeia montanhosa esculpida pelo tempo, pela chuva e pelo vento.
Mas a fenda e o caminho que se abriam diante dos meus olhos eram obras
dela.
– Venham comigo! – Corri em direção à passagem no centro da
montanha, que surgia como se tivéssemos permissão para passar. – Molly,
pegue Raio e Trovão – bradei. – Volpe, você vem comigo, anda!
A raposa passou debaixo das minhas pernas e correu para o infinito
escuro diante de meus olhos.
– Vão ficar aí só olhando? – gritei para Blaze e Dax, que tinham suas
espadas em mãos.
– Não sei se gosto muito da sua versão irreverente, Zoey. – Dax
comentou enquanto corria em direção a passagem.
– Não vou roubar o posto de “petulante” do grupo, fica tranquilo. –
Pisquei para ele.
– Onde você aprendeu essa palavra? – ele provocou.
– Você não é o único que se interessa por semântica – declarei. –
Blaze, anda logo!
Blaze jogou o conteúdo de um cantil no chão, perto da passagem onde
estávamos para o interior da montanha. O cheiro de licor subiu pelas
minhas narinas, suave graças ao vento. Em um estalar de dedos, o chão
estava pegando fogo.
– Isso deve atrasá-los – ele declarou, caminhando para o interior
estreito da montanha como se fosse seu dono.
– Um incêndio na floresta é a melhor forma de resolver alguma coisa?
– perguntei, irritada com toda a vida selvagem que poderia ser perdida ali.
– Uma coisa que aprendi por experiência própria é que eles pertencem
ao antigo reino de fogo, mas temem o elemento. Acham que medo é poder,
mas não o encaram de verdade. – Blaze declarou, passando à frente no
grupo.
Não vi ao certo quem acendeu uma tocha e uma escadaria improvisada
apareceu ali. Era escuro, mas o teto alto trazia algum acalento. Volpe me
tranquilizou ao dizer que dificilmente alguma criatura seria prejudicada
pelo fogo e que nada nem muito vivo, nem muito morto, passava por ali.
A presença de Molly logo atrás de mim era reconfortante. Já
estávamos andando há vários minutos, quando finalmente percebi a luz
prateada, junto ao som galopante.
Luna estava montada em Noite, seus olhos pareciam inchados, como
se tivesse passado a noite toda chorando – ou se esforçando além da conta,
o que era a opção mais óbvia. Até porque não anoitecera, por mais que
estivesse consideravelmente escuro.
– Vamos precisar chegar seja-lá-aonde-for por aqui. Acho que você vai
precisar me contar o caminho afinal, Blaze.
– Luna, a gente precisa conver... – Dax começou.
– Não, não precisamos. – A rainha respirou fundo. – Ok, precisamos.
Mas eu não quero, e não sei se vou querer por um bom tempo.
Ela insistia que não havia nascido para reinar, mas seu tom e sua
postura diziam o contrário. Não conseguiria pensar em alguém mais
decidido.
– Vamos descansar aqui e continuaremos amanhã pela manhã... – Luna
ponderou, claramente exausta, descendo da égua que se mesclava com a
paisagem (ou a falta dela) ao redor. – Ou quem acordar primeiro, acorda os
outros e vamos, tanto faz. E alguém faça uma fogueira, não quero que
ninguém vire um picolé.
– O que é um picolé? – perguntou Molly.
– Deixa pra lá – a rainha suspirou balançando a cabeça. Ela caminhou
até Noite, acarinhou seu focinho e a bolsa onde guardava seu violino. Sua
aura prateada parecia cinzenta. Melancólica.
O silêncio da montanha parecia maior agora, sem o vento para
preencher as lacunas das conversas não ditas.
Capítulo 15
Blaze
Há dois dias nenhuma palavra era pronunciada por mim. Estou imerso em
demasia nos pensamentos que moldam minha atual realidade.
– Eu diria que se você continuar sem falar nada, vai sufocar na própria
mente. – A voz baixa de Zoey insistia mais uma vez.
Era a terceira vez hoje. Fitei seus olhos castanhos contra a pouca luz
no subterrâneo. Luna e Blaze estavam mais à frente, murmurando algo que
eu não compreendia, provavelmente sobre o caminho que ela abria perante
nós. Possivelmente sobre algum assunto que me deixaria profundamente
irado.
Zoey, impaciente, pegou a minha mão. Um gesto que percebi que ela
ponderara nas últimas intervenções, e eu desviei do toque.
– Deixa eu tentar uma coisa! – ela pediu, e algo no seu tom curioso e
preocupado me fez ceder.
Éramos os últimos da fila, e paramos subitamente enquanto ela
analisava nossas mãos se tocando. Eu conhecia aquele olhar. Sabia que
havia algo que ela não estava me contando.
– O que você está vendo? – sussurrei, meu desejo por conhecimento
sempre ganhando o melhor de mim.
– Ora, ora! Ele tem voz, afinal. Achei que Volpe tinha comido sua
língua.
Franzi a testa, e logo olhei para a raposa ao seu lado. Ela permanecia
junto à Zoey, e o grupo adiante seguia a caminhada com os cavalos sem se
importar se os acompanhávamos. Mas, de fato, não havia como nos
perdermos em linha reta.
– Você tem alguma intenção de me explicar o que está fazendo? –
indaguei, já sabendo a dinâmica da nossa relação: ela me provoca, e eu fico
irritado. Ela fala algo que fura toda lógica, mas que ainda assim faz sentido,
e eu lembro que Zoey é boa demais para esse mundo.
– Tenho alguma intenção, mas só se você se sentir disposto a se abrir. –
Zoey apertou minha mão com força, desviando o olhar para o meu rosto. –
Fala comigo, Dax.
– Eu jurava que você ia ficar do lado da sua rainha.
– Nossa rainha – ela enfatizou como se fosse importante. – Mas não...
Não acredito em lados. Eu só entendo vocês dois. Então você pode pular
para a parte na qual começa a desabafar, e eu vou para a parte que paro de
tagarelar e começo a te ouvir?
– Achei que você era a contadora de histórias do grupo – brinquei.
– Hoje é a sua vez. – Ela sorriu. – Me fala a verdade, Dax.
– Zoey, eu... Eu reviso cada um dos momentos em que obedeci às
ordens de meu pai, tentando em vão encontrar uma brecha do que eu
poderia ter feito de diferente.
“Tudo. A resposta é simples demais, e isso me incomoda.
“Eu deveria tê-lo enfrentado na primeira vez que ouvi minha mãe
suplicar pela sua integridade nas mãos dele. Não importava se tinha apenas
5 anos, Eleanor se levantou da cama imediatamente ao ouvir o estalo
abafado que rompeu o silêncio da noite. Não alto o bastante para atrair
atenção de algum soldado, mas o suficiente para despertar duas crianças
com o sono leve.
“Estávamos de mãos dadas, e os cabelos finos embaraçados da minha
irmã se prenderam nos meus dedos. Eu lhe disse para esperar, que nossa
mãe ficaria bem. Ouvi a voz baixa e grave de meu pai nítida como se
discursasse para um palanque:
‘Anna, aceite de uma vez, a rainha se foi. A glória de Montecorp
estava em suas mãos, mas agora, está na nossa. Nossa família poderá ter
tudo que sempre sonhamos, mas é primordial que você me obedeça como
seu marido e como membro do conselho real. Não coloque tudo a perder,
meu amor.’
“Sei que deveria ter ficado aliviado ao ouvir a voz fraca da minha mãe
responder ‘Sim, Caleb.’, mas foi revolta o que subiu pelas minhas veias.
Eleanor havia soltado minha mão, e espiava pela fresta, se esforçando para
abrir um pouco mais a gigantesca porta de madeira. Ela queria sair para ver
o que estava acontecendo pessoalmente. Buscar alguma certeza de que
estava tudo bem mesmo quando tudo apontava o contrário.
“A segurei com força, temendo que a ira do meu pai chegasse até
minha irmã, minha outra parte. Naquela época, éramos inseparáveis, como
nuvem e chuva. Calor e fogo. Raio e eletricidade. Éramos compostos da
mesma matéria, apesar de termos apresentações diferentes. E esse foi o
primeiro erro que cometi: quando não me juntei a ela e permiti que o
domínio autoritário de Sir Caleb Van Doren se instalasse na nossa casa. Foi
também a primeira vez que Eleanor me encarou com decepção. Ela não me
disse nada, mas eu sentia. Pelo que diziam, a magia abandonara Montecorp
, mas há algo entre gêmeos que transita dimensões. E é por isso que tenho
certeza de que foi naquela noite que começamos a nos separar.
“Um dia, meu pai ordenou que eu assumisse o laboratório, finalmente,
e encarregou Amon de treinar Eleanor para conter a derradeira queda do
reino. Dessa vez, ela nem tentou pedir minha ajuda. Ela sabia que eu não
enfrentaria meu pai e não a ajudaria a tomar um outro destino. Mas com as
fronteiras fechadas, e sendo filhos do cavaleiro da guarda real, que chance
teríamos contra o homem que mandava em Montecorp?
“Minha irmã não entendeu. Eu reprimi qualquer pensamento lógico,
não queria concordar com ela. Eleanor estava certa, nós estávamos
perdidos. E era tudo minha culpa. Eu queria que ela e minha mãe
estivessem a salvo, mas perdi todas as chances que tive de salvá-las.”
– Você era uma criança, o que poderia ter feito? – Zoey me abraçou
por um instante, e foi como se parte da dor se dissolvesse. Ela olhou por
cima dos ombros, e vi a extensão escura que se abrira entre nós e o restante
do grupo. – Vamos andando, não podemos ficar muito para trás.
– O ponto é que eu tentei salvar Luna. Quando percebi que havia uma
chance de a Sombra ter sido conjurada tendo ela como alvo, eu a procurei
por toda parte. Imaginei que o feitiço se dissiparia à meia-noite, que não
teria efeito no Templo de Prata. – Um riso frustrado escapou de mim. –
Nem preciso dizer que errei, mais uma vez.
– Você errou tentando fazer o certo.
– Não, errei tentando consertar o errado. E é por isso que sei que ela
nunca vai me perdoar.
– Se você acha que a Luna não é capaz de perdoar, não a conhece tão
bem.
O que Zoey havia dito era verdade. Eu não a conhecia. Não da forma
que gostaria, mesmo após dividir uma noite com ela tão próxima de mim. O
eco da sua viagem interdimensional estava marcado em sua pele como um
sinete, e o sabor do desconhecido me atraia mais do que qualquer outra
sensação que eu já tinha experimentado.
Eu nunca poderia conhecer todas as suas versões, ou saber de tudo que
ela era capaz. Isso me fascinava e me assustava. A rainha de Montecorp,
que eu cresci acreditando ser a glória do nosso reino, era muito mais do
que eu poderia suportar ou compreender. E por isso, eu a queria. Para tentar
ser parte de sua história, mesmo sabendo que, se tudo tivesse dado certo
para ela, nós jamais teríamos nos conhecido. Que talvez eu nem tivesse
nascido.
– Ela é capaz de tudo, Zoey – suspirei, o mais baixo que pude.
– E você, Dax? É capaz de esperar o tempo que ela precisa para te
ouvir? – Era sinceridade, e não julgamento nas palavras da minha amiga.
Zoey soltou minha mão, e só assim percebi que o seu toque me
reconfortava de uma forma que não sabia que precisava.
– Por ela? – Inclinei a cabeça para o lado, e quis sorrir ao vê-la
desfazendo sua longa trança rosada. A tocha que Blaze carregava iluminava
parcialmente o rosto de Luna, e fiquei aliviado ao ver que ela estava menos
abatida, como se estivesse aprendendo a suportar mais do próprio poder.
Como se não fosse mais um vaso de cristal tentando suportar chumbo, e
estivesse se tornando resistente como aço. Eu quis ter a impressão de que
ela nos ouvia, de que ela se importava com tudo que havia acabado de
dizer. Eu sabia que isso não era possível, mas o querer não conhece as
possibilidades. Ainda assim... – Eu esperaria todo o tempo do mundo, Zoey.
Aliás, você me deve uma explicação.
– Do que? – ela perguntou com os olhos arregalados e confusos.
– Vamos pular para a parte onde você se lembra que foi sobre todo o
lance de “mãos dadas” mais cedo?
– Ah! – Zoey exclamou um pouco alto demais, fazendo Volpe se agitar
entre suas pernas. Ela ajustou o tom de voz, antes que atraísse a atenção dos
outros. – Desde que visitamos Ellioras, eu vejo uma... luz. Uma cor, uma
vibração que emana dos seres vivos. No início imaginei que era porque a
magia voltou, mas depois de uns dias observando, é como se cada cor
tivesse um significado, entende? – ela murmurou, claramente segurando a
empolgação diante do fascínio que andava na corda bamba entre o
desconhecido e o conhecimento. Eu a compreendia totalmente.
– Você já começou a fazer anotações sobre isso?
– Eu poderia dizer que sim, mas não. – Ela abriu um sorriso orgulhoso
e bobo. – Mas percebi que quando as pessoas estão próximas, as cores se...
hum... misturam?
– Não faço ideia, nunca ouvi nada assim.
– Acho que “misturar” é uma boa explicação. Como se fossem tintas.
Mas ao invés de tintas, são emoções. Intenções. Vibrações.
– Você está me dizendo que pode transferir energia psíquica de um ser
vivo para outro? – Era inacreditável, mas depois de tudo que havia visto,
seria um tolo se curvasse os olhos diante de evidências.
– Não sei se é... “psíca”?
– Psí-qui-ca.
Ela acenou com a cabeça, satisfeita e continuou:
– Psíquica ou emocional. Eu estou dizendo que tenho ancestrais em
Ellioras, e que acho parte de uma magia primária, que já se perdeu do
mundo, ainda corre nas minhas veias. Como um resquício.
– Como uma faísca, Zoey. Você não deveria ter vindo conosco, deveria
ter ficado lá e estudado mais sobre seu poder.
– Estudar? – Ela jogou os cachos para trás do rosto. – Aprender
tentando e errando é mais divertido.
– Você está falando isso só para me irrit...
– Eu só estou falando isso para te irritar. – Ela me interrompeu, e nós
dois sorrimos. – Luna pode precisar de mim. Ellioras não vai a lugar
nenhum, tenho tempo para pesquisar e fazer anotações em qualquer outro
momento. Mas o agora só acontece agora. É a única verdade imutável.
– Não posso discordar de você.
– Primeira vez que ouço isso – ela declarou, estalando para Volpe que
tinha ficado um pouco para trás.
– Não se acostume – eu disse.
– Não pretendo.
– Você acha que vamos demorar muito ainda?
– Dax, eu vejo a energia das pessoas, não o futuro.
– Eu sou uma má influência para você, está ficando audaciosa demais
– declarei, e ela mostrou a língua em um gesto infantil. Me lembrou de
quando Eleanor e eu tínhamos momentos assim, com discussões sem
consequências.
Continuei caminhando atrás, mesmo quando Zoey se aproximou de
Molly, e a ausência que sentia da minha irmã começou a apertar no meu
peito. Não éramos mais tão próximos, mas eu jamais havia ficado tanto
tempo longe dela sem saber se ela estava bem. Sem vê-la para ter certeza de
que permanecia intocada. Eu temia o que meu pai estaria fazendo em
Montecorp, e que tipo de planos teria, agora que a rainha partira novamente.
Eu e Eleanor éramos como nuvem e chuva, e eu sabia que uma
tempestade acontecia.
Capítulo 17
Eleanor
A casa da matriarca, pelo pouco que pude observar, era dividida entre
uma ala de convivência – pela qual entramos –, e outra superior, com os
quartos interligado por escadas. Quartos para uma civilização inteira.
Quartos o bastante para você não querer perder um brinco, com o risco de
nunca mais vê-lo de novo (se bem que isso acontece mesmo em casas
pequenas, mas o ponto é que aquele lugar que parecia existir fora do espaço
de tão enorme.)
E, ainda assim, Molly insistiu que eu ficasse nos seus antigos
aposentos, alegando que o próximo quarto disponível era longe demais e
que eu não a encontraria.
– Volpe consegue encontrar você farejando, eu não vou me perder.
– Você vai se distrair, é diferente – ela alegou.
– Se distrair é uma outra forma de se encontrar – cantarolei.
– Não quando você não encontra a pessoa que está te esperando. –
Molly cutucou meu braço, brincando.
Precisei concordar com ela ao atravessar os corredores e fiquei
deslumbrada quando ela abriu uma porta verde, revelando o interior dos
seus aposentos. Por Argrinis, ele parecia ter sido feito para alguém da
realeza. Quase um contraste com sua figura viajante e despreocupada. As
paredes verde-água traziam frescor ao ambiente, onde parecia ser de dia,
mesmo sabendo que a noite havia caído. Uma cama grande estava no
centro, com um número insano de almofadas.
– A má notícia é que só temos um banheiro. Mas você pode ir
primeiro, já estou acostumada com a “estrada” colada em mim.
Eu assenti, um pouco sem graça, com medo de esbarrar em alguma
coisa mesmo com tudo a passos de distância de mim. A banheira,
felizmente, tinha o funcionamento parecido com o de Ellioras, então não
tive problemas para me situar. Apenas para desembaraçar o cabelo. Tinha
um nó para cada dia da semana, e para cada hora do dia. Quando finalmente
estava limpa, envolvi uma toalha no corpo e usei um óleo de flores cremoso
para enrolar meus cabelos, mecha por mecha. Desisti em algum momento,
quando ainda faltava a metade de baixo, mas certamente estaria bem melhor
do que nos últimos dias.
Meus cachos pesavam úmidos, alcançando meu quadril. Quando secos,
pendiam um pouco abaixo dos meus ombros. Eu não sabia o quanto
precisava de um banho até finalmente me sentir limpa.
Estava satisfeita com o meu cheiro e com minha aparência mas,
quando andei até as roupas para me vestir, percebi que não havia a menor
possibilidade de usá-las. Corri para minha bolsa de viagem, mas tudo ali
dentro tinha cheiro de algo usado e guardado por eras. Prendi a toalha o
mais apertado que pude e abri uma fresta da porta.
– Molly? – Minha voz saiu desafinada.
– Zoey? Tá tudo bem? – Ouvi seus passos se levantando com alguma
pressa na minha direção.
– Tá sim. Eu só... não tenho o que vestir.
– Ah. – Seus passos pararam. – Eu procuro algo no meu armário. Você
tem alguma... preferência?
– Qualquer coisa que esteja limpa. Tudo o que tenho está um
verdadeiro desastre!
Senti um silêncio do outro lado. Será que Molly achou que eu a estava
chamando de “desastre”, já que ela ainda não havia se lavado? Mordisquei
o lábio, sentindo algumas gotas d’água ainda grudarem na pele. Alguns
instantes depois, uma batida na porta.
– Pode abrir? Minhas mãos estão lotadas. – Podia ouvir o sorriso em
sua voz.
Puxei a maçaneta na minha direção, e fiz o melhor para não corar. Os
olhos verdes de Molly estavam fixos nos meus, quase como se lutassem
para não desviar o contato propositalmente. Ela devia estar desconfortável
com essa situação, por precisar mentir para Amelia. Precisei quebrar o
contato para ajudá-la com as roupas, que escorregavam pelos seus braços.
– Acho que você exagerou na quantidade – brinquei, pendurando em
meu braço alguns vestidos, calças, túnicas, espartilhos e lenços. Não
percebi o quão próximas estávamos.
– Eu procurei algo que ficaria bonito em você, e a resposta foi tudo.
Não me culpe.
Soltei uma risada e abaixei para pegar um dos lenços que tinha caído.
Molly abaixou para me ajudar, e todas as roupas caíram no chão também.
Tentei juntá-las em uma pilha, e logo nós duas estávamos de braços dados,
com uma quantidade considerável de tecido a nossa frente.
– Acho que posso olhar com calma aqui no quarto e você já fica na
câmara de banho, que tal? – sugeri, um pouco sem graça por estar apenas de
toalha.
– Claro, Zoey. Você pediu por tudo limpo e sem desastres. Me incluo
nessa. – Ela deu um meio sorriso sem graça.
– Molly, eu não quis dizer que você estava... está...
– Zoey, tá tudo bem. Eu também tenho um nariz. – Ela apontou para o
próprio rosto. – Você tem cheiro de jasmim, merece uma namorada falsa
que não pareça extrato de troll. Te vejo do outro lado?
Assenti, já de pé, fazendo o possível para equilibrar as roupas e manter
a toalha, que parecia cada vez mais frouxa, presa em mim. E assim que
ouvia Molly fechar a porta, a toalha finalmente cedeu e caiu no chão.
Dentre as muitas opções de roupas, acabei escolhendo um par de
calças cor de vinho que eram justas, quentes e confortáveis. Combinei com
uma túnica da mesma cor, que prendia no meu pescoço em um botão
dourado. Ela tinha mangas compridas, com os ombros abertos e era justa
até meu quadril, e longa até meu tornozelo, com fendas laterais. Encontrei
um lenço dourado que reluzia como ouro na bagunça que fiz na cama, e o
prendi na cabeça, tomando cuidado para não amassar meus cachos.
A essa altura, Luna e Dax já deveriam estar aqui. E, tudo dando certo,
nossa missão estaria próxima de terminar. Olhei em volta, admirando o
quarto de Molly. Ela tinha tudo e, ainda assim, explorar o mundo parecia
uma ideia melhor do que viver em um palácio encantado. Era ousado, mas
eu amava isso. Entendia, de alguma forma.
Pulei para trás quando ouvi a porta destrancar, e vi Molly sair do
banheiro com o cabelo longo e preto ainda pingando no chão. Olhei para o
chão, um pouco tímida.
– Eu não sei onde guardar as peças que não usei – comentei. Silêncio
não era comum entre nós, mas havia algo diferente. Estar ali, sentada na
cama dela, usando suas roupas, sentindo seu cheiro de peônias e água doce.
– Vou pegar alguma delas agora, depois eu guardo. Não se preocupe –
ela disse, desembaraçando o cabelo com os dedos. Era estranhamente
reconfortante vê-la mexendo nele.
Permaneci em silêncio, a observando, talvez fixamente demais. Só
percebi isso quando ela completou.
– Zoey, tá tudo bem?
– Molly, precisamos falar sobre o elefante no quarto.
Ela olhou em volta, procurando algo de cima a baixo.
– Querida, Volpe é uma raposa, lembra?
– Ela voltou? – exclamei, e me deparei com Volpe deitada em um
tapete próximo da porta.
– Há uns cinco minutos. – Molly se sentou ao meu lado,
despreocupada se seu cabelo ainda pingava pelo chão, no colchão, nas
roupas espalhadas... – Eu sei que esse lugar é diferente, mas vai ficar tudo
bem...
– Por que você me apresentou como sua namorada? – vomitei a
pergunta, já não sabendo se fiz certo em perguntar.
– Ah... – Ela endireitou a postura, segurando a toalha junto ao corpo. –
Amelia tinha esse sonho em me “ver com alguém de coração puro”, achava
que isso faria de mim uma pessoa mais responsável. Mais apegada. Eu
sabia que a amoleceria, que a deixaria contente. – Molly suspirou. – Mas foi
errado te colocar nessa situação, eu posso desmentir agora mesmo se for te
deixar mais confortável.
– O que a gente precisaria fazer? – Engoli em seco, tentando não
reparar que ela estava só de toalha perto de mim. Tentando não reparar que
nossas pernas estavam se encostando.
– Não sei se você reparou, mas sou um pouco expansiva.
Provavelmente eu te elogiaria publicamente, o que não seria nada difícil.
– Você realmente elogia bastante as pessoas – ponderei.
– Claro... por isso. E acho que poderíamos andar de mãos dadas. Não é
como se fossem pedir um beijo nosso em praça pública – ela zombou. Eu
senti minha postura ficar mais rígida. – Mas, repito, posso acabar com isso
agora mesmo, se preferir.
Molly se levantou da cama, e eu segurei seu pulso. Seu cabelo preto
caia em fios soltos sobre o rosto, seus olhos intensamente verdes estavam
cravados nos meus como esmeraldas, quando entrelacei seus dedos
alongados nos meus, percebi que sua pele marrom era quase do mesmo tom
da minha.
Ela não sabia que eu via a luz verde, oscilando para o azul, o rosa, o
vermelho e o lilás entre nós duas.
– Não – interrompi. – Pelo que me disse, Amelia estar feliz vai nos
ajudar. Não seria bom irritá-la agora.
Molly assentiu.
– Se eu for longe demais, ou se você não se sentir confortável com
alguma coisa, promete que me fala imediatamente? – ela sussurrou,
ajustando sua mão na minha dando um passo para frente.
Eu assenti. Queria brincar com ela, dizer que já estava ficando mais
responsável, mas pareceu errado quebrar o silêncio. Eu só queria observar
as cores mudando na minha frente. Queria saber o que isso significava.
Volpe parou aos meus pés e Molly se afastou, buscando algo para
vestir. Fiquei sentada no chão, acarinhando a raposa até minha "namorada"
terminar de se vestir, uma vez que ela murmurou que eu não precisava sair
do quarto.
Ela usava calças pretas até a cintura, que marcavam sua silhueta esguia
e uma túnica curta de mangas compridas na mesma cor. Seus cabelos
estavam soltos, já formando ondas largas enquanto secavam.
– Você está... – Não terminei a frase.
– Limpa? – ela brincou.
– Também. – Linda, era o que eu queria dizer. Mas ela não fez nenhum
comentário sobre como eu estava, então pareceu invasivo falar algo do
gênero. Eu podia guardar para quando estivéssemos em público. – Vamos
encontrar os outros agora?
E, quando ela abriu a porta, nós saímos do quarto de mãos dadas.
– Se quiser, pode se distrair que eu te guio – Molly sussurrou no meu
ouvido, e um arrepio correu por mim ao ver o meio sorriso em seu rosto.
Capítulo 21
Dax
Impossível.
É o que qualquer um diria, se não pudesse sentir a mesma aura do
desconhecido que me encantava. De fato, era improvável que uma vila
pacata no centro das montanhas pudesse guardar tal maravilha. A magia
ressoava ali diferente, em um pulso constante, quase hipnótico. Algo
semelhante ao que sentia quando estava perto de Luna.
Volpe nos levou até a porta estreita e fomos recebidos por uma mulher
de temperamento obstinado, que murmurou algo para Blaze que não pude
discernir. Ela logo nos encaminhou até aposentos de banho individuais,
através de corredores e escadas que poderiam ser infinitos – se eu
acreditasse em tais conceitos. Agradecido pelo banho quente, percebi o
quanto meu estômago roncava diante da possibilidade de finalmente comer
uma refeição de verdade.
Vesti as roupas que encontrei na primeira gaveta de uma cômoda de
mogno: uma túnica preta simples, um par de calças e botas. Meu casaco
estava imundo, eu percebia agora enquanto um tecido limpo roçava contra
minha pele. Não era como o algodão de Ellioras, que era suave como a
pluma de um anjo, mas o traje estruturado era próprio para o clima oscilante
da região: frio ao ar livre e ameno no interior.
Transferi meus pertences mais valiosos para os bolsos fundos da calça,
mas nem de perto era tão versátil como o meu casaco. Ainda assim, eu não
o vestiria até que estivesse propriamente higienizado.
Sem saber exatamente qual o local que deveria ir em seguida, e sem ter
ideia de onde estariam Luna ou Zoey, refiz o caminho que me trouxe até o
quarto. Eu poderia tentar bater nas portas pelo caminho até encontrá-las,
mas sabia que a probabilidade era muito baixa. A não ser que eu quisesse
atrapalhar as pessoas que viviam ali, o que parecia uma péssima forma de
agradecer a hospitalidade.
Sendo assim, desci a escadaria passando por outros dois andares
semelhantes ao que eu estava, e encontrei próximo da pequena porta de
entrada algo que era parecido o bastante com uma taverna onde as refeições
eram servidas, e algum entretenimento evidenciado.
Algumas pessoas chegavam perto das mesas, conversando
despreocupadamente, e o lugar estava tomado pelo ruído de talheres e vozes
casuais. Alguns olhares demoravam um pouco mais na minha direção, e os
respondi com um aceno de cabeça educado.
Honestamente, sei que fui guiado pelo aroma inebriante de guisado
que fluía de uma pequena abertura em uma parede de madeira. Me alegrei
ao ver o rosto conhecido de Zoey, acenando incessantemente na minha
direção, com um pedaço de pão levantado. Ela era sorridente, mas havia
algo diferente no seu semblante. Eu precisaria observar mais para descobrir
o quê. Naquele momento, só conseguia focar no pequeno caldeirão no
centro da mesa redonda, e que havia um lugar ao seu lado com um prato
vazio.
– Você me achou – ela disse, empurrando a cesta de pães na minha
direção.
– Achei a nossa janta, você só estava oportunamente ao lado dela –
corrigi, forçando uma expressão séria no rosto.
– Você se deve achar bastante engraçado.
– Não quando estou faminto. – Peguei o prato fundo, e servi duas
conchas cheias do ensopado. Comi algumas colheres transbordantes, não
me importando com o sabor. A fome não conhecia tais luxos.
– Olha só quem finalmente chegou, meu amor! – A voz de Molly
cortou minha atenção, e levantei os olhos para ela rapidamente, ainda
focado na comida. – Falei que eles eram inteligentes o bastante para nos
encontrar.
– Dax é inteligente demais para o próprio bem – Zoey comentou,
beijando a mão de Molly em um gesto nada natural. Algo ali não encaixava.
– E você é linda demais para a minha própria sanidade – Molly
brincou, os olhos cravados nos de Zoey. Por baixo dos cachos, percebi que
ela corou. Agora a fome não doía tanto, e estudei o lugar à nossa volta. Era
hora de ter algumas explicações.
– E vocês, podem me explicar o que está acontecendo aqui antes que
eu abra mão da minha sanidade? – pedi, colocando mais uma concha cheia
no prato e mergulhando o pão no ensopado de cenouras e batatas. Era isso
que estava comendo, por sinal.
– Molly e eu estamos fingindo ser namoradas – Zoey sussurrou no
meu ouvido baixinho como um coelho.
– O que? – exclamei. – Eu me referi a esse lugar gigantesco, e por quê
tudo aqui tem uma atmosfera mágica incompreensível. – Larguei a colher
no prato, fazendo um estalo contra a cerâmica. – Como isso aconteceu?
– Molly precisou fazer isso para amolecer o coração da matriarca da
Vila do Sol – Zoey murmurou, apontando discretamente na direção dela.
– Zoey, eu não poderia me importar menos com isso no momento. –
Era verdade. Todo mundo parecia contente o bastante para que isso não
fosse uma preocupação. Minha necessidade de conhecimento falava mais
alto. – Eu gostaria de saber como esse lugar funciona. Estamos dentro da
montanha?
– Aconselho que você seja mais gentil na forma que fala com minha
namorada – Molly alertou com um tom divertido. – As coisas não são
incompreensíveis só porque você não entende, Dax, meu caro.
– A magia de Cinaéd funciona de forma diferente de Montecorp –
completou Zoey com naturalidade.
– Eu não falaria essa palavra se fosse você, meu amor. – Molly olhou
fixamente nos seus olhos castanhos.
“Desculpa”, Zoey desenhou com os lábios, e recebeu uma piscada em
resposta da sua namorada.
– Do que estamos falando? – Eu podia vê-la antes de me virar. Sua voz
denunciava algum cansaço, mas algo em seu tom envolvente me despertou.
Senti minha coluna enrijecer. Luna estava diante de mim, andando em volta
da mesa até encontrar um lugar ao meu lado no banco estofado que nos
circundava. Seu perfume de lavanda e baunilha era familiar: me fazia
desejar por memórias antigas que envolviam tanto o nosso reino quanto o
toque daquela que o governava.
Ela usava um vestido branco simples de mangas compridas que
deixava seu colo e seus ombros a mostra. A corrente prateada mantinha a
pedra de fogo escondida contra sua pele. Uma fita dourada adornava as
extremidades nas mangas, mas era a sua postura que deixava claro para
qualquer idiota que aquela garota maravilhosa pertencia à realeza. Mesmo
que ela não olhasse diretamente para mim, Luna não se distanciou. Apenas
se serviu de um pouco de ensopado – o que não parecia ser suficiente diante
do gasto de energia que ela certamente tivera nos últimos dias.
– Você deveria se alimentar melhor – falei, encarando seus olhos
escuros à meia luz.
– Não se preocupe, eu só preciso de energia o bastante até a sombra
me encontrar e findar meu espírito – ela ironizou.
– Luna, não é...
– Não é o que? Sua culpa? Inevitável? Eu entendi algo errado, Dax? –
Luna olhou no fundo dos meus olhos, quase suplicando com os seus por
uma resposta. Ela deixou a colher no prato e passou a mão pelos cabelos
rosados ainda úmidos. Tirou algumas mechas quase secas do seu rosto e se
voltou para Zoey. – Do que estávamos falando?
Eu queria dizer que poderia corrigir isso. Queria dizer que ela podia
confiar em mim. Que jamais planejei lhe fazer mal algum, mas qual
argumento teria?
Uma ideia insana passou pela minha mente, mas será que...
– O clima pesou um pouco, lindinha – Molly sussurrou para Zoey que
franzia a testa ao dar mais atenção do que deveria para o pão que cortava.
– Talvez você possa nos contar como funciona esse lugar – minha
amiga pediu, suplicando para mudar de assunto.
– Eu prefiro a sua forma de contar histórias, mas farei o melhor, doce
de coco.
– Doce de coco? – Zoey torceu o nariz.
– Você não gosta? – Molly replicou.
– Detesto coco.
– O que você prefere?
– Que tal focar em explicar a origem bizarra desse lugar gigantesco
por dentro? Parece que estou em algum episódio de Doctor Who – Luna
comentou com um sorriso triste.
– Doctor quem? – perguntou Molly.
– Exatamente. – Luna abriu ainda mais o sorriso. Já conhecia aquele
olhar, que trazia memórias que jamais poderia compreender, e me enchia de
fascínio. Antes, eu poderia perguntar sobre o que falava, e sabia que ela se
divertiria revirando tudo que sabia sobre essa dimensão que guardou uma
de suas vidas. As pessoas que conheceu ali, eu sabia que era um território
doloroso demais para ela explorar. Mas agora... não era como se eu pudesse
pedir para que se abrisse comigo. Mas eu queria. Por Argrinis, como eu
desejava que ela olhasse na minha direção com algo que não fosse a mais
profunda decepção.
Como eu desejava que ela me olhasse da mesma forma que olhava
para...
– Devo ficar ofendido por ninguém ter me esperado para jantar? –
Blaze se sentou ao lado de Molly, já se servindo de um prato cheio. Seu
traje vermelho tinha o modelo parecido com o meu, mas ele usava algumas
correntes douradas em volta do pescoço.
– Sinta-se lisonjeado que ninguém faz questão de ficar com fome por
pura cortesia. – Molly lhe deu um abraço lateral, e ele retribuiu com um
beijo na sua cabeça.
– Melhor assim. – Ele olhou para Zoey, para mim e Luna, apontando
com a colher. – Gostaram daqui? – perguntou casualmente, demorando seu
olhar na rainha ao meu lado. Segurei o copo de água com mais força. – Belo
vestido.
– Obrigada, é emprestado – ela respondeu e gesticulou para os
arredores, voltando seu olhar para Molly. – Ela estava para nos explicar a
origem da magnitude da Vila do Sol.
– Ela estava nos enrolando, para ser sincera – Zoey completou.
Blaze deu um tapinha nas costas de Molly e murmurou: “deixa
comigo” como se fosse o dono do lugar. Apoiou os cotovelos na mesa e
começou a juntar algumas migalhas de pão na superfície de madeira,
formando um desenho amorfo com elas.
Eu detestava o fato de ele saber algo que eu não sabia. Detestava a
forma que ele encarava Luna, como se buscasse alguma resposta para o
mistério que ela era. O mistério que era meu para decifrar.
– A Vila do Sol foi construída por pessoas que dominavam a magia do
dragão. Pessoas que a herdaram, e que sabiam como manipulá-la. – As
luzes vermelhas a nossa volta pareciam tamborilar diante da sua voz. –
Bólius não pertencia a essa dimensão, até aí isso é uma notícia velha. Mas
isso não quer dizer que ele não soubesse como manipular o tempo e o
espaço conforme a sua vontade. Vocês estão, basicamente, dentro de um
portal.
– Um portal? – Não queria ter soado tão espantado, ainda mais falando
com Blaze.
– Dax, presta atenção, eu te admiro. – Blaze debochou. – Mas para
ficar simples de entender, é só isso.
– Só isso? Você não tem noção do conhecimento que está
menosprezando. – Bati a mão na mesa, irado. O descaso com a ciência fazia
a adrenalina correr de forma primária pela minha corrente sanguínea.
– Não sou um mestre, não é meu trabalho explicar nada.
– É por frases assim que Amelia se indispõe com você – Molly
comentou, colocando a mão sobre a de Blaze. – O que ele está tentando
dizer, é que vocês são bem-vindos, enquanto estiverem sob o meu convite.
A Vila foi construída abrigando pessoas que não tinham para onde ir, seja
por terem perdido o seu lar, ou por desejarem um novo começo em outras
terras.
– Molly, eu não poderia ser mais grata. – Luna respirou fundo. –
Começando amanhã, farei o possível para localizar o herdeiro perdido e
partirei imediatamente da Vila do Sol. Não vou abusar da hospitalidade. –
Ela se virou para mim. Realmente me olhou, indecifrável. – Quantos dias eu
tenho até aquela... coisa me encontrar? O quão rápido ela pode viajar?
Engoli em seco. Eu não sabia. Tecnicamente, estávamos fora do tempo
e do espaço aqui, então talvez... talvez houvesse uma chance para retratar o
mal que fiz a ela.
– Não posso dar certeza, mas acredito que esteja segura aqui, nesse
portal. Lá fora, você teria alguns dias, uma semana, talvez. – Ponderei cada
palavra, como se estivesse escolhendo as últimas que jamais diria.
– Ótimo, já sei que não haverá uma viagem de volta. – Ela soltou um
riso de escárnio. – Ao menos, consigo reparar uma dívida histórica. É mais
do que muitos podem dizer que fizeram em vida.
Zoey a envolveu com o braço, acarinhando seu cabelo, e Luna se
aninhou por um instante, antes de recompor a postura e se levantar.
– Volpe pode me ajudar a encontrar o quarto? Estou cansada demais
para lembrar em qual andar estava, e os corredores aqui parecem um
labirinto – Luna comentou com naturalidade, como se não estivesse com o
coração partido. Zoey assentiu.
– Então quer dizer que você é a violinista que Zoey tanto falou sobre?
– A matriarca surgiu diante de nós, com um meio sorriso tão curioso quanto
desconfiado. – É uma alegria receber uma nova trupe de artistas na Vila do
Sol. Sei que estão cansados da viagem, mas adoraria esperar uma
apresentação amanhã. Tenho certeza de que estarão mais revigorados até
então.
Luna arregalou os olhos confusos na direção de Zoey, que implorou
com o olhar algo que só poderia dizer “por favor, concorde!”
– Amelia, deixe que o sangue volte a correr pelas veias dela. A garota
está exausta – Molly interveio, sabendo que estávamos todos perdidos em
alguma informação importante.
– Me sinto ótima, Molly. – Luna tocou na mão dela. Ninguém falava
pela rainha, ela já devia saber disso. – E agradeço a hospitalidade. Será um
prazer, Amelia. Vou me recolher agora para estar em plena forma amanhã. –
Ela abriu um sorriso doce e inocente, nada parecido com sua essência
cataclísmica e, injustamente, belo.
Ela já se distanciava, levando consigo as palavras que eu havia sido
covarde demais para pronunciar mais cedo. Blaze se levantou logo depois, e
seguiu seus passos com alguma distância.
Eu posso consertar isso. Deveria ter dito. Gritado! Mas não queria ser
um mentiroso novamente. Um traidor. Então decidi que ela poderia
descobrir uma forma de encontrar o herdeiro. Eu encontraria uma maneira
de salvá-la. Não só porque ela precisava. Não só porque era minha culpa.
Mas porque eu não deixaria a mulher que amava ter sua vida tirada dela.
Mesmo que fosse para que ela vivesse ao lado de outra pessoa.
Capítulo 22
Eleanor
Não seria difícil era extremamente complicado. Tinha visto Dax uma
dezena de vezes usando feitiços de localização para achar o coelho de
algodão que minha mãe tinha costurado para mim em segredo. Eu o
escondia em lugares diferentes toda vez que ouvia alguém se aproximando
e frequentemente o perdia. Meu irmão sempre seguia uma sequência de
anotações em seu livro que não faziam o menor sentido e logo eu tinha Sr.
Botões novamente.
Eu poderia reconhecer aquele livro e tentar fazer o mesmo para saber
onde Dax estava. Para saber se ele estava bem, são e salvo. Algo no meu
peito estava inquieto e, quando mentalizava seu rosto em meus
pensamentos, eu sentia uma agulha fina atravessando meu peito, deixando o
rastro da linha em um incômodo agudo.
Poucas vezes eu tinha ido até o seu laboratório, que ficava em uma
parte remota do palácio. Não queria levantar comentários intrusos e
curiosos, então busquei na cozinha um manto bege que era usado por alguns
criados. Eu não estava invisível, mas era a segunda melhor opção para
permanecer uma incógnita.
Era como se o palácio tivesse uma ala construída em segredo, pois as
curvas estreitas e escuras não seguiam o mesmo padrão das outras alas. Não
era um lugar de fácil acesso, mas logo eu estava diante da porta de metal e
obsidiana. Ela estava trancada mas, como as demais fechaduras de
Montecorp, respondia ao sangue da família do seu senhorio.
O meu sangue.
Hesitei, com medo de algum feitiço de proteção repelir minha
presença. Em poucos instantes, a esperança poderia se tornar cinzas. Ou
renascer. Ao colocar a mão na maçaneta, quase pulei ao ouvir um clic.
Estava destrancada.
Caminhei timidamente, com medo de pisar em falso. Sentia que estava
invadindo um mundo que não me pertencia, e que ainda assim, era tão
familiar. A mesa central estava lotada de livros abertos com inscrições em
uma linguagem repleta de arestas. Eu não entendia uma palavra nem nunca
entenderia. Potes de vidro apoiados em estruturas rebuscadas de ferro
tinham líquidos coloridos em tons mortos de verde, amarelo e vermelho.
Alguns rótulos aleatórios chamaram minha atenção, mas não soube fazer
nenhuma associação: sombra; fio de cabelo real; cinzas de fogo ancestral.
Nada disso fazia sentido, mas não era para entender o trabalho
alquímico do meu irmão que eu estava ali. Eu só precisava de um livro de
capa vermelha, com um círculo dourado e um ponto no centro. Sabia que
aquilo representava o sol, pois era uma das poucas coisas que Dax havia me
explicado sobre suas artes que eu tinha guardado. Subi as escadas do
mezanino, cercada por centenas de exemplares. Tantos, que achava que a
biblioteca de Amon estava incompleta. Eu jamais encontraria o que estava
procurando.
Parecia um livro como qualquer outro, mas eu sabia que meu irmão
anotava nos cantos das páginas suas descobertas e formas de me fazer
sorrir. Pequenos fogos de artificio que ele conjurava no nosso quarto nas
noites de tempestade, quando eu tinha medo dos trovões. Usava as correntes
de ar para fazer as orelhas de Sr. Botões dançarem ao som de alguma
música cantada pela nossa mãe. Aumentava a chama das lamparinas para
brincarmos com sombras de animais nas paredes.
Dax era fechado mas, do jeito dele, fez o que podia para se certificar
que eu estava bem enquanto crescíamos. Até o momento em que ganhamos
nossos próprios aposentos, como um presente por estarmos crescendo. Foi o
pior dia da minha vida. Passei a vê-lo somente em algumas refeições e
eventos na corte. Nossa agenda de estudos e tarefas nos esgotava, e meu
mundo de canções escondidas e estrelas particulares, findou.
Não muito depois disso, o olhar de Dimas começou a se demorar por
meu corpo durante minhas visitas ao Conselho. Corei na primeira vez que
nossos olhares se cruzaram, uma vez que eu passei meses o evitando.
Estava tão desesperada por atenção e algum senso de diversão, que aceitei
seu convite para tomar uma taça de vinho em seus aposentos, a fim de
receber sua orientação para destacar meu trabalho e logo me tornar membro
do Conselho Real. Foi ali que ele deu o meu primeiro beijo, e jurou
continuar me beijando para sempre. Eu acreditei. Achei que estava,
finalmente, completa. Idiota, idiota, idiota.
Eu havia me perdido tantos anos atrás.
E agora estava cercada por livros que não entendia, buscando um fio
de esperança para encontrar meu irmão, assumir a Coroa e, quem sabe,
finalmente, ser a prioridade na vida de alguém.
Eleanor, você precisa prestar atenção.
Cansada de tanto andar para um lado e para o outro, enxergando sem
ver, fechei os olhos. A sensação inquieta de que Dax não estava bem
deveria servir para alguma coisa. A magia havia voltado, quem sabe eu
tinha alguma em mim também. Quem sabe Argrinis me ajudaria dessa vez.
Vi na minha mente, clara como uma das poucas memórias boas que ainda
tinha: Dax aos sete anos de idade, seu sorriso um pouco banguela, seu
cabelo preto liso e comprido, preso em um nó simples com um laço
marrom. Seus olhos tinham o mesmo tom âmbar dos meus, mas eram
repuxados. Em suas mãos ainda gorduchas, o livro vermelho ganhava
algumas anotações, enquanto eu segurava um botão do Sr. Botões. Segundo
ele, eu precisava de um totem. Algo com um resquício de energia suficiente
para ser rastreado.
Soltei o ar devagar, e logo a linha atravessada no meu coração agia
como a condução de uma valsa lenta e etérea. Abri os olhos, mas minha
visão estava embaçada. Exceto por um ponto. Era tudo que eu precisava ver,
tudo que precisava seguir, e andei até ele, desviando de pilhas de livros
enquanto uma silhueta vermelha chamava minha atenção.
Em minhas mãos, o livro antigo tinha as páginas entreabertas, velhas e
amareladas, contudo não precisei folhear muito para encontrar o que
procurava. O feitiço de localização era complicado, porém repleto de
anotações feitas com a letra infantil do meu irmão, incluindo todas as
nuances, pronúncias e entonações necessárias para que fosse
apropriadamente conjurado.
Um sorriso se abriu em meus lábios, e beijei a página do livro. Alguma
coisa finalmente parecia estar certa! Recitei as palavras, usando o próprio
tomo em minhas mãos como um totem da energia de Dax. Perante meus
olhos, as páginas do livro pareciam um espelho d’água e, distante, coberto
por uma neblina, estava ele. O olhar distante, triste. Senti sua dor como se
fosse minha, uma dose intensa de arrependimento que tomava seu âmago.
Dax estava perdido em algum lugar. Mas por quê?
Forcei os olhos, desesperada para falar com ele, lhe fazer perguntas,
descobrir alguma coisa sobre seu paradeiro. Mas ele não poderia me ouvir,
tampouco saber que estava sendo observado. Ele parecia estar cercado por
montanhas nevadas em algum lugar. Montecorp era um reino tropical, e
busquei meu conhecimento sobre os territórios além das fronteiras, além da
casa Prian-Sostine, além da Floresta do Oblívio e de Cinaéd. Já tinha
ouvido lendas sobre civilizações submersas do outro lado do mundo, mas
nada disso comportava um inverno eterno. A não ser pelas Montanhas
Profundas. O que ele estaria fazendo ali?
Dax, o que está acontecendo? Com quem você está?
Eu gritava com a maldita visão. Precisava de mais detalhes, não de
mais dúvidas.
Dax, me mostre!
O ar deixou meus pulmões e, por um instante, a minha mente não me
pertencia. Nem a dele. Éramos um só. Antes que pudesse enxergar algo, a
pressão no meu peito fez meus próprios sentimentos parecerem plumas ao
vento. Havia uma âncora de pesar e arrependimento em Dax, como se ele
estivesse prendendo o ar embaixo d’água por tempo demais. Eu sufocava
junto à ele, em cada instante da conexão. Tentei estabilizar meus sentidos,
respirar pelo meu próprio peito, para enfim ver pelos olhos dele. Escutei os
sons que o circundavam e, dentre todos que estavam ao seu redor, eu só
reconheci uma pessoa. A rainha.
Dias atrás, isso teria me deixado feliz. Saber que ela estava viva e que
o trono não era uma perspectiva verídica. Mas agora, sentindo toda dor que
meu irmão sentia direcionado à essa mulher...sabendo que ela era a culpada
pela agonia que Dax experimentava, fiquei feliz que assumiria o Trono no
qual ela jamais se sentou. Um ruído fez minha concentração cessar, e a
visão se dissipou. Assustada, me encolhi, segurando o livro junto ao meu
peito como um tesouro.
Eu teria deixado a porta aberta?
Não acredito que teria cometido tal erro embora fosse do meu feitio
sempre estragar alguma coisa.
A voz que ouvi, era familiar.
– E como você tem tanta certeza de que a rainha está morta? É
insensato ser coroado rei de um território que possui um líder.
– Lunara Alexandria jamais foi líder desse reino. – A voz de meu pai.
Coloquei a mão na boca para evitar respirar e ser descoberta, tive medo do
meu coração bater alto demais e me denunciar. Não queria ser punida
novamente. – Não é insensatez, você apenas se tornará um usurpador. Não
será o primeiro nem o último da história.
– E você será o pai da nova rainha, nada mal.
Meu pai soltou um riso.
– O acordo de governo é entre nós dois, Lorde Ian. Eleanor será o
rosto para que o povo aceite essa transição de sobrenomes. Só isso.
– Ela é mais do que um rosto, Sir. Caleb.
– Sim, ela é brilhante... – Meu coração não deveria ter aquecido com
isso. Mas era um elogio. Do meu pai. Ele via valor em mim. – Mas é uma
mulher. E batalhas são assuntos para homens, você sabe. Niasar lhe tirou
Kim, quando ele virá me tirar Anna? Estamos do mesmo lado, eu e você.
– Ainda assim, como garante que Lunara está morta? Se ela retornar
após o meu casamento com Lady Eleanor, teremos um conflito civil. Não
quero que a vida do nosso povo seja perdida.
– Meu desejo também é que tenhamos um território unificado, com um
exército imbatível. – Meu pai se aproximou da bancada, analisou alguns
vidros suspensos e virou uma página ou outra que não pude enxergar de
onde estava. – Em alguns dias, Lunara morrerá, e a dinastia dos Montecorp
terá acabado, junto ao seu legado de fracassos.
Meu pai era o assassino da rainha. O pensamento perturbador me
deixou dividida. Minha raiva por ela, era por causa do meu amor por Dax, e
a dor que sabia que vinha dela. Mas assassinato? Parecia radical demais.
Uma coisa era assumir a Coroa por causa de uma fatalidade, e outra era ser
cúmplice em um crime.
Porém, meu pai estava certo. As décadas de guerra e os conflitos
internos no reino eram culpa dos Montecorp. Os anos em que assumi
responsabilidades demais, o motivo pelo qual minha infância foi cercada de
medo, era graças à ausência dela. E quem poderia saber se isso não
aconteceu pelos próprios motivos egoístas. Talvez fosse a hora de uma nova
linhagem, alguém que realmente tivesse vivido com o povo. Eu não tinha
como me comunicar com Dax, não poderia avisar do risco que a rainha
corria. Não havia nada que eu pudesse fazer nada que eu quisesse fazer para
impedir sua sina, além de honrar minhas novas responsabilidades.
Ouvi o tilintar de taças.
– Ao reino – ofereceu meu pai. Ele me considerava brilhante.
– Ao reino – respondeu meu futuro rei.
– Ao reino. – Minha boca fez o desenho das palavras, sem som.
– Junte-se a nós, Eleanor – bradou meu pai.
Meu coração deu uma cambalhota, e eu tremi de medo. Prendi o livro
de meu irmão nas minhas costas, embaixo do vestido e desci as escadas; a
cada passo eu estava apavorada, meu rosto não estava marcado, mas eu
sentia o eco do tapa que recebera dias antes.
Lorde Ian fez um aceno com a cabeça, e meu pai torceu o rosto ao ver
meu manto.
– Tire esses trapos, Eleanor. Não é assim que a futura rainha deve agir.
Eu obedeci, e aceitei a taça que ele estendeu para mim. Brindamos
novamente, o vidro cortando o silêncio que sufocava minhas expectativas.
Ao menos, estando ao lado de Ian, eu sabia que não seria agredida. Estava
segura por alguns minutos.
– Fico alegre em ver que a razão venceu a batalha contra sua
insensatez, minha querida filha. Feche a porta ao sair, na próxima vez.
Meu pai terminou um longo gole sem esboçar nenhuma reação contra
o líquido forte, apoiou a taça no balcão e partiu. Logo eu estava a sós com
Lorde Ian.
– Pensou na proposta que te fiz?
– De sermos amigos? – perguntei, bebericando o licor.
Ele assentiu.
– Eu aceito um aliado. Quero ser sua rainha, e te quero ao meu lado
como rei. Mas não aceitarei nenhuma intervenção de Sir Caleb Van Doren.
Quero o poder nas nossas mãos. – Minha voz meiga, era firme. Era a
primeira vez que estava no controle. Com a mão livre, corri os dedos pelo
seu braço em movimentos suaves para cima e para baixo, o encarando com
firmeza.
– Você vai trair seu pai? – Suas sobrancelhas se levantaram em
surpresa, mas um sorriso satisfeito despontou do seu rosto.
– Meu pai sempre foi meu inimigo. Mas ele tem razão, eu sou
brilhante. Então vou deixar que me dê o reino em uma bandeja de prata,
para depois lhe mostrar como é não ter controle sobre nada. – Bebi mais um
gole do licor forte e me aproximei de Ian, intensificando a pressão do meu
toque. – Tenho alguma experiência no assunto.
– Não imaginei que você tinha um lado cruel.
– Obstinado. Jamais agi com más intenções. – Dei mais um passo,
agora colando meu corpo no dele. Conhecia a forma como seus olhos
correram pelo meu corpo. A mesma de Dimas, quando eu era nova demais
para entender que ele só estava me usando.
– Eu gosto da ideia de lhe ter como aliada... – Ele apoiou a sua taça na
bancada e enlaçou uma mão na minha cintura e outra na minha nuca – e
como minha rainha, Eleanor. Mas não lhe prometo amor.
– Eu não quero amor, Ian. – Não o seu.
– O que você quer, minha bela aliada?
Eu tinha sido usada tantas vezes, agora era a minha vez de aproveitar
tudo que tinha aprendido no infortúnio que era minha vida.
– Quero poder.
– E como posso lhe dar isso nesse momento? – Ian tinha seus olhos
escuros cravados nos meus. Terminei as últimas gotas na taça, e deslizei as
alças do meu vestido para baixo dos ombros, deixando que fluísse pela
minha cintura.
– Podemos começar a ensaiar como será construir a nossa dinastia.
Sua resposta veio com os lábios colados nos meus e, em meio à todo o
prazer egoísta que eu sugava de seu corpo, me senti livre. Mas eu jamais
estaria.
Capítulo 23
Luna
Meus olhos estavam vermelhos após a noite em claro. Não pude dormir
enquanto minha cabeça fervilhava, buscando a possibilidade de uma
salvação entre as lacunas de dúvidas. Revirei minhas anotações, pois tinha
certeza de que estava deixando algo passar. Nas vezes que conjurei a
Sombra a pedido de meu pai, a conectava junto ao alvo usando um
elemento energético pessoal – um fio de cabelo, saliva, sangue, um objeto
de extremo apreço –, construindo um magnetismo entre os dois.
O feitiço era poderoso, pois nada cessava a conexão além de atingir
sua vítima. Naquela maldita noite, eu acreditei que ela não era o alvo e me
descuidei desse detalhe vital. Contudo, se houvesse alguma forma de
mascarar a energia de Luna, uma maneira de torná-la indetectável para este
servo da escuridão, ela poderia andar a salvo enquanto o espírito nefasto
seguisse a vagar o mundo pela eternidade com seu propósito maldito
inacabado.
O quarto era frio, mas suor escorria pela minha testa enquanto eu
rabiscava ideias de como fazer isso. Como protegê-la. Como merecer sua
confiança novamente e recomeçar do jeito certo. Sem verdades omitidas,
sem confissões guardadas.
O bloco no qual anotava tudo que pensava, era particularmente minha
invenção favorita. As folhas eram finas o bastante para que tivesse milhares
de páginas sem que ficasse com uma grossura maior que dois dedos, mas
mantinham a resistência normal contra o grafite.
Todos os meus anos de ideias, resultados de experimentos, objetos
inventados e aperfeiçoados, estavam ali: instruções de como manusear a
rocha prima, truques de luz que usava com Eleanor na infância, a dinâmica
dos rios na Floresta do Oblívio, notas sobre o comportamento do unicórnio,
propriedades sobre as plantas de Ellioras e, mais recentemente,
pensamentos sobre as novas habilidades de Zoey.
Ela era capaz de enxergar energia, o que fazia dela a pessoa perfeita
para me ajudar nos testes que precisaria fazer quando eventualmente
encontrasse uma resposta. Reli minhas anotações, buscando nas minhas
próprias entrelinhas a informação que sabia que estava à minha disposição,
mas que estava perdendo de vista. Eu poderia criar um escudo energético,
parecido com a tecnologia do portal em que estávamos. Talvez, se falasse
com a matriarca, poderia desenvolver uma armadura que Luna pudesse usar
para se movimentar livremente. Exceto que qualquer momento em que ela a
tirasse, estaria em risco novamente.
Arranquei a folha, descartando a ideia e voltei a cogitar as
possibilidades. A sombra flertava com a magia oriunda das profundezas, e a
magia de Lunara era associada à lua, então quem sabe um mecanismo de
luz pudesse criar uma aura para afastá-la? Deixei a ideia no papel,
sublinhando as palavras “luz” e “aura”.
Eu estava perto. Não o bastante para cantar vitória, mas o suficiente
para não querer desistir, mesmo com os olhos ardendo e os dedos calejando
tamanha a fricção contra a madeira do lápis.
Andei em círculos pelo quarto, afastando meu cabelo do rosto,
buscando uma resposta na janela sem horizonte. Deveria ter algo adiante,
não deveria? Normalmente, estaria fascinado por essa possibilidade, mas
agora entender o funcionamento de um portal dessa magnitude era a última
das minhas prioridades.
Não me reconhecia mais. Minha própria identidade, mascarada por
uma sucessão de infortúnios, sofrera uma metamorfose, e talvez eu
estivesse longe demais da crisálida para perceber quem deveria ter me
tornado. Eu repelia minhas ações, minhas escolhas, a minha própria
história.
Eu não era mais o reflexo do grande mago que almejei ser: Uma fonte
de conhecimento e inovações. Um questionador do mundo, um desbravador
de dimensões. Era somente alguém que havia quebrado qualquer esperança
de futuro da pessoa mais fascinante que havia conhecido.
Me encarei no espelho, a figura cansada e desalinhada que devolvia o
olhar refletia como eu me sentia. Arregalei os olhos, caminhando
visceralmente em direção ao objeto. Toquei sua superfície, constatando o
óbvio: jamais poderia atravessá-lo.
Passei os dedos pelo cabelo, anotei mais algumas palavras cruciais no
caderno e o coloquei no bolso antes de sair correndo pela porta, em direção
ao quarto de Zoey. O sol ainda não tinha nascido, mas não podia esperar por
ele.
Eu tinha um plano.
Capítulo 25
Luna
Bati na porta em que tinha visto Zoey e Molly entrarem na noite anterior,
quando subi a infinidade de escadas após o jantar. Algo em mim encontrou
conforto ao ouvir as patas de Volpe do outro lado. Elas certamente não
demorariam para abrir. Ou foi assim que imaginei. Revi meus pensamentos
uma centena de vezes, registrando cada detalhe importante nas minhas
anotações. A respiração corria pelo meu corpo incerta e imprecisa, ainda
descontrolada diante da euforia que acompanhava o estalo de uma nova
ideia.
Eu não sabia como executaria o meu plano, mas tinha um ponto de
partida. A linha de chegada era a longevidade de Luna. Não precisava dizer
que essa seria minha maior invenção. Insisti com o nó dos dedos contra a
superfície de madeira, mas em dado momento já estava apoiado de costas
contra a porta, impaciente com a demora. Corri os dedos pelos cabelos, os
afastando do rosto enquanto unia na folha do caderno teorias e elementos
que precisaria testar.
Em algum momento, a maçaneta girou fazendo a porta abrir
bruscamente e cambaleei para trás, entrando no quarto. A figura
descabelada de Molly me recebeu, esfregando os olhos verdes como se
quisesse mudá-los de lugar no rosto. Ela se espreguiçou e disse entre
bocejos:
– Tá muito cedo para sair de camas macias, Dax.
– É por um bom motivo – afirmei, andando em direção à cama onde
Zoey dormia, totalmente enrolada. – Zoey! – chamei. Ela abriu um dos
olhos, e se sentou na cama com dificuldade, ainda envolta por camadas e
camadas de cobertor.
– Muito cedo pra largar o travesseiro – ela murmurou com a voz
embebida em sono.
– Levanta logo! – Puxei o cobertor dela pelos pés.
– Ei, cuidado com a minha namorada – Molly advertiu, sentando-se na
cama. Era grande o bastante para caber umas cinco pessoas, percebi.
– Ela é minha amiga antes de ser seja-lá-o-que-vocês-inventaram –
rebati, e me voltei para Zoey. – Eu preciso de você.
– O que aconteceu? – Sua cara amassada tinha uma faísca de
curiosidade.
– Eu descobri uma forma de proteger a Luna da Sombra – declarei,
sem acreditar ainda na veracidade das minhas palavras. Mas era a verdade,
eu sabia como consertar o que tinha feito.
– Por que você não disse isso antes? – Molly deu um tapa nas minhas
costas. Para alguém sonolento ela tinha bastante força.
– Como foi isso, Dax? – Zoey fez o melhor para se desenrolar do
restante do cobertor, e começou a andar em círculos pelo quarto. – Foi tipo
aquelas ideias que vem em um sonho como uma iluminação mágica?
– Foi tipo uma que veio de uma noite em claro, iluminado pelo
desespero.
Ela me encarou, demorando a atenção nas minhas olheiras, olhos
vermelhos e cabelo desalinhado. Apertei meus olhos, e ajustei o cabelo para
trás como pude. Não era importante agora.
– Você não quer descansar um pouco antes?
– A Sombra não vai descansar, então eu também não devo. Não posso.
– Achei que Luna estava segura aqui – Molly refletiu.
– É uma ideia, mas não posso afirmar com certeza. O mais prudente é
agir como se estivesse correndo contra o tempo. E, pra isso, preciso de
vocês duas.
– É só dizer, que se é por você e por Luna, está feito – Zoey afirmou.
Assenti, tranquilo em sentir a respiração se acalmando, o controle
voltando para minhas mãos. Eu poderia fazer isso.
– Preciso de alguns espelhos. E uma sala onde possa trabalhar.
Não pude evitar que um sorriso se formasse em meus lábios, e a forma
que Zoey e Molly se entreolharam me mostrou que eu tinha comigo as
aliadas certas.
☾
Algumas horas depois, Molly tinha recolhido uma dúzia de espelhos e
Zoey havia me ajudado a limpar a mesa do quarto. Segundo elas, os
aposentos de Molly eram o lugar ideal para executar qualquer ideia que eu
pudesse ter, sem levantar suspeitas dos outros habitantes da Vila do Sol.
Aprendi que estávamos na casa da matriarca e, por mais que muitas famílias
ainda vivessem aqui, outras residências e estabelecimentos tinham sido
construídos da mesma forma – provavelmente os que vi ao redor da praça, e
outros mais.
Eu havia desenhado alguns esboços do aparato que protegeria Luna, se
minhas suspeitas estivessem corretas – e, por Argrinis, eu precisava dessa
confirmação. Pela primeira vez, eu não estava movido pela excitação da
descoberta ou pela glória de uma nova invenção, mas por um propósito
maior. E, quem sabe, se eu pudesse salvar a vida de Luna, também poderia
começar a consertar outras coisas na minha vida. Poderia libertar a mente
de minha mãe, reatar os laços com a minha irmã; ainda haveria tempo.
Enquanto isso, tempo era o recurso que me faltava. Mesmo aqui, nesse
portal suspenso, eu não deveria contar com a sorte. Com um pouco mais de
calma, cheguei a analisar a vista das janelas com as mãos no bolso,
contemplando a mais pura luz – quase cegante. Ainda assim, encantadora.
Na biblioteca de Amon, sempre era dia e noite. O portal em Montecorp era
o domínio do guardião das palavras. Jamais imaginei que esse
conhecimento poderia ser moldado de acordo com a vontade humana. É
isso que acontece quando você normaliza o que conhece, quando para de
surpreender com algo só porque o cotidiano o disfarçou de rotina. Você
esquece que ali pode haver algo de fantástico, e não se penaliza por deixar
as maravilhas escoarem pelos dedos, pois não se culpa. Você não percebe.
O mundo acontece, e uma pessoa é capaz de viver toda sua existência a
parte dele se não se entende como uma parte fundamental de tudo.
– Dax, você precisa piscar. – A voz meiga de Zoey interrompeu meus
pensamentos, desviando minha atenção para ela. Minha amiga usava uma
roupa diferente da última noite, percebi que ela e Molly trocaram os trajes
entre si. – Se você não quer dormir direito, pelo menos pisca.
– Não acho que piscar seja a solução dos meus problemas.
– Você não vai saber se não tentar.
Fechei os olhos, esfregando com o indicador e polegar e me surpreendi
com o ressecamento dos glóbulos oculares.
– Já temos tudo que preciso? – desconversei.
– Um milhão de espelhos de tamanho pequeno, uma bancada livre, um
monte de potinhos com líquidos coloridos, e alguns cristais. – Ela enumerou
com os dedos, contente. – Você vai lembrar a Sombra o quanto a Luna é
linda e o quanto ela é feia, e ganhar a proteção dela com bons argumentos?
Senti meu rosto ficar quente.
– Não acho que ela precise de alguém para lembrá-la disso, Zoey. –
Mas eu alegremente passaria boa parte dos meus dias mostrando o quanto
ela me fascina, se tivesse a chance. Depois de tudo que aconteceu, já sabia
que não era mais uma possibilidade. Eu poderia ainda admirá-la. – Eu vou
moldar um... escudo, digamos assim.
– Isso não parece prático, mas deve ser eficiente – acrescentou Molly.
– É um escudo energético – expliquei, caminhando até a bancada. – A
Sombra é atraída pela energia vital, como magnetismo por fricção. –
Provoquei atrito entre as mangas da minha túnica, e levei até a minha
cabeça para mostrar os fios se arrepiando. Molly levantou uma sobrancelha,
e Zoey levou a mão até o próprio cabelo, afastando algum arrepio
imaginário. Não precisava, seus cachos estavam perfeitos. – Com isso
aqui... – Levantei um espelho em cada mão. – Eu consigo refletir a sua aura,
espelhando em outras direções. Isso vai fazer com que a Sombra sempre
esteja no lugar errado. – Repuxei o lábio para cima. – Ou seja, distante dela.
Zoey e Molly estavam estupefatas. Olhos castanhos e verdes se
encararam, trocando confidências invisíveis para mim. Zoey levou a mão à
boca, suprimindo um sorriso. Logo ela estava saltitando. Volpe estava
saltitando. Molly me aplaudia, impressionada. Uma mistura de euforia e
desespero correu por mim, e sabia que era o momento perfeito para
começar a fazer os experimentos.
– Eu pretendia levar Zoey pela Vila do Sol hoje, mas prefiro ver isso
acontecer. – Molly rodou os pulsos e o pescoço, como se preparasse para
uma jornada.
– Eu não vou a lugar nenhum até terminarmos esse tal escudo – Zoey
cantarolou, andando até a bancada e se ajoelhou para olhar os itens mais de
perto, tão parecido com a forma curiosa que Eleanor observava meus livros.
Volpe apoiou as patas na superfície, como se parte dela entendesse e
quisesse ajudar.
– Mãos à obra?
Capítulo 27
Luna
Zhaar Fahir. Zhaar Fahir. Zhaar Fahir. Repeti tal nome vezes o bastante
para que não vacilasse quando finalmente o encontrasse. Segundo os
registros que encontrei, havia outros herdeiros do dragão espalhados pelo
mundo, mas nada me garantia que já não tivessem sido mortos
recentemente por ordens de Niasar – ou há décadas, por ordens de
Montecorp.
O sobrenome Fahir, destinado a linhagem real de Cinaéd aparecia
algumas vezes nos registros, em nomes de monumentos que não fazia ideia
se ainda estavam de pé, citado junto a textos que supus serem poemas,
preces ou cantigas. Todo um legado majestoso, que jamais conheceu seu
ápice e, agora... poderiam decidir o que fazer. Zhaar Fahir poderia ter o
poder da gema de fogo e escolher se iria reconquistar Cinaéd ou se usaria
sua magia para alimentar ainda mais a Vila do Sol.
Porém a verdade era que, se eu tinha alguma expectativa de manter
minha cabeça presa ao pescoço caso minha identidade como rainha de
Montecorp fosse revelada, eu precisaria causar uma boa – excelente –
impressão.
Blaze me acompanhou até a porta do meu quarto, e me despedi com
um aceno rápido antes de entrar e fechar a porta. Não falamos nada sobre o
abraço longo demais, apesar da minha mente continuar revisitando aquele
momento. O relógio na parede não possuía números, apenas desenhos
entalhados com a intensidade do brilho do sol e da lua, indicando o dia e a
noite. Nada preciso, como se pontualidade não pudesse ser verdadeiramente
medida.
Meus pertences estavam sob o baú ao pé da cama. O quarto era
pequeno e aconchegante. A cama era macia, a temperatura era agradável, e
tinha água fresca e doce fluindo da torneira. Algumas rosas cresceram nos
vasos próximos à janela e a brisa morna perfumou o ar à minha volta. Comi
algumas frutinhas, como já tinha se tornado um hábito e uma necessidade, e
peguei o violino de sua capa.
A cravelha precisava de ajuste, e o espelho estava indubitavelmente
partido em dois, as cordas penduradas nele como um penhasco. Tentei
encaixar suas partes da melhor forma possível, frustrada com a perda do
instrumento que Violeta, Imperatriz consorte de Ellioras, fizera para mim.
Alisei o símbolo na voluta, a lua crescente perfeitamente alinhada no
centro do triângulo, e sabia que havia algo diante dos meus olhos que eu
não estava percebendo. É do ser humano a capacidade inata de interpretar
errado as coisas óbvias. Enquanto eu pensava em conseguir algum tipo de
cola, ou de pegar algum outro instrumento emprestado, decidi ceder a
minha loucura – provavelmente porque já tinha entendido que são nesses
momentos de insensatez, que a vida dá certo.
Sem jeito, atrapalhada e irrevogavelmente estúpida, apoiei o violino no
meu queixo, pressionando com força para compensar o equilíbrio do peso.
Arrastei o colar para fora do vestido, e o calor da pedra encontrou a palma
da minha mão assim como observara Blaze brincar com sua própria chama
horas antes. Tateei o topo do baú de madeira até encontrar o arco e fiz o que
qualquer violinista faria: toquei o meu instrumento.
As cordas frouxas não produziam som, apenas desconforto, mas
insisti. Pressionei a gema de fogo contra a madeira, sem me importar se
minha pele começava a arder com alguns cortes superficiais. E assim como
meus dedos insistiam em procurar pelas notas inexistentes, minha mente
sabia qual melodia eu buscava. A única que me acompanhava através de
todas as dimensões era uma canção sobre a lua prateada aguardar seus
filhos que, mesmo no meio da noite, buscavam uma forma de voltar para
casa. Peregrinos na escuridão, guiados pela luz da esperança que viam
refletidos no céu. E assim, eu também voltava para casa, percebi. Não para
o adorável e pequeno apartamento no qual crescera ou para o gigantesco
palácio que governava uma nação.
Mas para essa música.
Clair de Lune.
Sempre que eu estava perdida, ainda podia voltar para ela – o único
caminho que eu sabia trilhar com os olhos fechados. Com as pontas dos
dedos.
Calor irrompeu de mim enquanto a música preenchia o quarto, até me
dar conta de que isso não era possível. Eu estava ouvindo a canção. Abri os
olhos apenas para fechá-los novamente, pois a luz que irradiava era forte
demais. Senti o fio de uma lágrima correr pelo meu rosto, o líquido quente
relaxando meu queixo enquanto encontrava uma posição mais confortável
para tocar. A melodia encontrou seu fim e eu sorri, sabendo que ela
aguardaria por mim novamente. Que nos reencontraríamos.
E, quem sabe, pensei, tudo no universo não passasse de um grande
reencontro: desorganizado, improvisado, e absolutamente mágico.
De alguma forma, a magia da terra e do fogo foram capazes de reparar
o dano causado a madeira.
– Obrigada por isso – sussurrei, ao beijar com cuidado a superfície da
pedra. – Agora é hora de te deixar em casa – lamentei.
Eu vim tão longe, renunciei a tanto, para finalmente deixá-la partir.
Você pode até pensar que se acostuma com despedidas, mas isso nunca
acontece. Mesmo que seja o certo a se fazer.
– Vou sentir falta de você – confessei, analisando uma última vez seus
ângulos translúcidos e imperfeitos. – Obrigada pela companhia. Quem sabe
a gente também se reencontra.
E podia ser pela luz excessiva que atravessou minhas pálpebras, mas
pude jurar que ela brilhou em resposta.
Meu cabelo grudava nas minhas costas, suado depois do esforço no palco,
enquanto refazia o curativo de Dax. As ataduras tinham ficado frouxas
durante a apresentação, então cruzei as tiras negras de tecido
cuidadosamente sobre os cortes: alguns profundos com um rastro de
sangue, e outros arranhões superficiais que deveriam estar ardendo
intensamente.
– Acho que em dois dias estará cicatrizado e você poderá voltar com
os experimentos – sugeri, colocando cada palavra como se enfeitasse
biscoitos delicados de manteiga.
– Eu continuo amanhã pela manhã, Zoey – Dax resmungou. –
Certamente vou me cortar de novo, assim poupo meu corpo de se recuperar
duas vezes.
– Você quase não consegue abrir e fechar suas mãos – declarei, com o
olhar fixo nos dele.
– Eu digo o que consigo ou não consigo fazer, podemos combinar
isso?
– Você tá falando igual a Luna e vai acabar se matando se continuar
assim.
– É eu, ou ela.
Tristeza passou como um pingo de mel por seus olhos pequeninos
quando percebi Dax correndo o caminho imaginário que Luna fez ao
desaparecer do ambiente com Molly. Seja lá o que elas estivessem
conversando, eu esperava que fossem boas notícias.
– Nenhum de vocês vai morrer, para de besteira.
– Você não pode afirmar o que você não sabe.
– Mas posso afirmar aquilo que quero muito, muito mesmo que
aconteça. Aí acontece.
– Não é assim que o mundo funciona – ele reclamou, testando alguns
movimentos com os dedos e com os pulsos.
– Poderia ser. – Dei de ombros, certa de que havia alguma lógica no
meu argumento, mas ela não era necessária agora.
– Zoey, eu estou exausto. Não dormi nada, e queria tentar descansar
um pouco. – Pela sua voz, o cansaço não vinha só do corpo, mas também
do espírito. Sua aura estava instável, mais como uma sombra do que como
um brilho. Ainda assim, seu lábio repuxou para cima na tentativa de um
sorriso, e Dax puxou um dos meus cachinhos, que balançou como uma
mola. – Obrigado por... tudo. Tudo que você fez hoje. Receba os aplausos
por mim, você e Volpe foram adoráveis.
– Você não vai conversar com Luna hoje?
– Não fui eu quem ela chamou para conversar após o show, nem eu
quem ela procurou o dia todo.
– Mas ela precisa saber de tudo que você está fazendo.
– Eu não vou contar nada até ter algo concreto. Chega de meias
verdades.
– Tentar não é uma mentira.
– Também não é um fato. Promete pra mim que não falará nada sobre
isso... – Dax apontou para sua mão – pra ela.
Eu assenti, e antes que pudesse perguntar o que ele queria comer, vi
meu amigo desaparecer andando entre as mesas, fazendo reverências
discretas para as pessoas que o cumprimentavam. Volpe estava inquieta aos
meus pés quando tive uma ideia. Me ajoelhei para ajustar seu laçarote
vermelho e falei com a raposa:.
– Vai com ele. Durma com Dax essa noite, acho que, mesmo estando
cansado, ele não vai conseguir pregar os olhos preocupado desse jeito. –
Afaguei a sua pelagem vermelha e macia, e beijei sua testa antes que ela
partisse na direção dele.
Estalei os dedos sem saber para onde ir, e o som animado da canção de
mais um artista começou a preencher o salão com a vibração de suas cordas
e dos aplausos de boas-vindas. Não sabia se seguia Molly ou se
cumprimentava despretensiosamente pessoas desconhecidas, então fiz o que
qualquer pessoa perdida em um lugar novo e estranho faria: Sentei em um
degrau baixo, escondida pelas cortinas na saída do palco. Ouvi a música
memorizando o refrão e cantei junto, baixinho.
– Tem cadeiras livres, sabia? – a voz grave interrompeu meus
pensamentos, e mirei nas botas gastas, na calça marrom e elegante até
chegar no rosto de Blaze.
– Nunca te falaram que o chão é muito mais confortável?
– Você está certíssima – ele concordou, sentando-se ao meu lado. –
Trouxe isso pra você e pra Luna. Ela está em algum lugar por aqui? – ele
indagou olhando em volta.
Blaze estendeu uma flor do azul mais intenso que vira na vida,
reluzente como se tivesse uma aura própria. Suas pétalas eram largas e
compridas, afiladas na ponta, com alguns fios dourados surgindo de seu
miolo.
– Ela é belíssima, obrigada. – Levei a flor ao meu nariz, inspirando
fundo seu aroma doce e fresco. – Luna e Molly estão em algum lugar
trocando segredos, não sei se posso interromper.
– A melhor forma de descobrir se você pode interromper é
interrompendo.
– Não parece muito educado.
– Mas é eficiente. – Blaze abriu um sorriso travesso, e eu retribui.
– Elas não devem demorar – refleti, levando a flor até o cabelo. Blaze
observou o movimento como se esperasse um grand finale. – Eu coloquei
um abacaxi na minha cabeça pra você me encarar assim?
– Quase isso. Lírios do céu são poderosos restauradores de energia
física. Achei que era um bom presente após uma apresentação.
– Ah... eu não conhecia – comentei, levando uma pétala até os lábios.
Isso explicava a sua energia tão diferente das outras plantas. Mas a flor era
tão bela que eu estava com dó de comer.
– Elas são adocicadas, você vai achar parecido com hortelã. Prove –
ele insistiu, arrancando a pétala de uma das flores que estava na sua mão e
mastigando. – Viu, uma delícia.
Então eu provei. Era o mais distante de uma hortelã que poderia
imaginar: doce, levemente azeda, mas a textura aveludada fazia dela uma
iguaria surpreendentemente gostosa, então me apressei a devorar as pétalas
e ia mordiscar os fios dourados quando Blaze me interrompeu.
– Só as pétalas, Zoey. Esses fios têm o efeito oposto e podem te fazer
dormir por horas sem que ninguém consiga te acordar.
– Essa plantinha é um pouco perigosa, não acha? – indaguei de olhos
arregalados. Ele podia ter dito isso antes.
– Tudo que é poderoso é perigoso se não for usado do jeito certo. Eu
trouxe uma para Dax também, mas não o vi em lugar nenhum.
– Ele não é muito de multidões – desviei o assunto, sem jeito. – Eu
posso levar pra ele.
Blaze assentiu e me ofereceu a outra flor. Desprendi o cabo e a guardei
no meu bolso.
– O cabo da flor faz alguma coisa?
– Faz cócegas – ele brincou, apontando a parte pontuda verde na
direção da minha barriga, e eu me levantei arrancando o cabo dele, fugindo.
Meu ponto fraco era cosquinhas. Bati em algo macio com as costas, e o
aroma de aventura e alecrim me envolveu. – Aí está você!
– Oi, lindinha – Molly disse com um sorriso largo, e eu retribui com
um gesto tímido. – Oi, Blaze. – Ela piscou para o amigo, e algo nas
entrelinhas dizia “mais tarde eu te mato”.
– Feche os olhos, Luna – Blaze pediu de pé, em frente a rainha,
segurando o lírio atrás das costas.
– Pra que? – Luna perguntou, franzindo a testa desconfiada.
– Confiança é uma força que vai e volta – ele declarou, sem oferecer
maiores explicações, e Luna obedeceu respirando fundo. – Abra a boca –
ele falou, já rindo.
– O que? – Ela arregalou os olhos, indignada.
– Confie nele, Luna – afirmei, e a rainha hesitou antes de voltar a
fechar os olhos atendendo ao estranho pedido.
Blaze arrancou uma das pétalas azuis e colocou nos seus lábios. Ela
levou a mão até o rosto, surpresa com o gesto. A melodia do bandolim atrás
de nós agora estava mais lenta, contemplativa. Certamente a apresentação
estava perto de terminar e precisaríamos sair desse espaço.
– O que é essa coisa deliciosa? – Luna perguntou, e Blaze começou a
explicar, caminhando em direção ao salão quando Molly estendeu a mão
para que eu me levantasse, entrelaçando nossos dedos.
– Quero te apresentar a alguém importante. Vamos?
Me levantei em um pulo, ajeitando a capa laranja que havia entortado e
caminhei pelo salão ao seu lado. Estávamos na ala onde aconteciam as
apresentações, no mesmo ambiente em que tivemos nossa ceia no dia
anterior, porém o palco ficava a metros de distância, oferecendo
tranquilidade para aqueles que buscavam uma refeição pacífica, longe da
agitação dos números artísticos.
As mesas redondas estavam lotadas com pessoas que supus não serem
da mesma família, por serem tão distintas entre si, nos mais diferentes tons
de pele, formato de nariz e escolha de penteados. Contudo, suas auras
vibravam em tons de azul claro e verde intenso. Havia harmonia entre eles,
e encontrei em cada sorriso, um cumprimento pela apresentação. Alguns
perguntaram de Volpe, e brinquei dizendo que a estrela do show estava no
seu sono de beleza. Um rapaz de cabelo vermelho e curto me olhava
fixamente, e mandou um beijo na minha direção. Isso jamais tinha
acontecido comigo.
– Ei, ela tá comigo, Finn! – Molly gritou, envolvendo minha cintura.
– Quando você for embora de novo, deixa ela aqui – ele gritou de
volta, visivelmente alcoolizado.
– Como se eu fosse me interessar por você – falei, não com tanta força
quanto deveria, e sussurrei para Molly: – Quem estamos procurando? Esse
mané?
– Vamos andando, lindinha. Não quero precisar fazer o tipo namorada
ciumenta e atrair o tipo errado de atenção pra nós duas.
– Você ficou com ciúmes? – perguntei parando de andar fitando seus
intensos olhos verdes, meu coração encontrando um novo sentido para a
palavra “cambalhotas”, mas não foi Molly quem falou em seguida.
– Zoey, querida, como foi delicioso observar você em ação com sua
raposa! Bravo, há tempos não via algo tão divertido. – Amelia vestia um
traje amarelo e brilhante que prendia em seu pescoço, deixando as costas
nuas. Braceletes dourados adornavam seus pulsos, e um sorriso satisfeito
estava nos lábios da matriarca.
– O prazer de retribuir a gentileza da Vila do Sol em receber a nossa
trupe é todo meu. Me diverti muito no palco também. – Era verdade. Poder
estar com Dax e Luna em harmonia, me lembrava os momentos tranquilos
que tivemos em Ellioras.
– Fico feliz que Molly teve seu coração roubado por alguém tão
adorável como você, eu já achava que ela jamais se importaria de verdade
com nada.
– Molly não gosta quando falam dela como se ela não estivesse
presente – minha namorada de mentira respondeu, e prendi uma risada na
garganta.
– Não é só você que sabe fazer graça – Amelia disse de forma
elegante, cruzando os belos braços junto ao corpo. Sua aura expandia ao
nosso redor, se misturando com a de Molly. A matriarca sentia saudades de
tê-la por perto, eu podia ver.
– Amelia, já que estamos em um momento de festividades, eu gostaria
de pedir a benção do honorável Fahir para a nossa relação. Gostaria de
apresentá-lo à Zoey, mas não o vi em nenhuma parte hoje.
O rosto da matriarca se fechou, e sua aura retraiu. Do amarelo
vibrante, passou para um tom fosco e sem vida.
Os seus olhos disseram antes que proferisse a palavra, e Amelia nos
direcionou até um canto menos movimentado, distante das mesas.
– O nosso Fahir, Molly, repousa agora junto à chama eterna da vida,
onde nada pode perecer, apenas brilhar – a matriarca declarou com firmeza,
monotônica.
– O que? – As palavras morreram nos lábios de Molly, e ela soltou
minha mão se jogando em um abraço apertado, retribuído por Amelia. Por
alguns segundos elas permaneceram entrelaçadas, suas energias
tremeluziam uma na outra, as ondas de suas auras oscilando inconstantes e
confusas, até se acalmarem como o céu que se despede de uma nuvem de
chuva. A última apresentação do dia começou a tocar distante de nós, o som
de flauta em uma melodia doce e sonhadora.
– Energia nunca se perde, lembra? – Amelia murmurou, se afastando
para olhar nos olhos da garota que havia criado.
– Só se transforma – Molly repetiu, como se fosse um verso ensaiado.
– Quando isso aconteceu?
– Quando você não estava aqui. A vida segue seu curso, mesmo
quando você não a assiste.
– Eu não quero assistir, quero vivenciar. Fazer algo com um propósito,
impactar vidas, estar presente nas histórias que acontecem pelo mundo –
Molly rebateu.
– E lá vamos nós de novo... – Amelia fez menção de iniciar um sermão
exagerado, mas disse entre os dentes o mais baixo e assertiva que pode: –
Nossa paz é uma cortina de fumaça. Niasar expande seu território e sua
tirania dia após dia, a única coisa que nos protege são essas montanhas
inóspitas. Você ainda é jovem demais para entender que tipo de cicatriz essa
perseguição deixa no nosso povo. Mas qualquer um que seja velho o
suficiente para ter visto a guerra com os próprios olhos sabe que ninguém
está seguro de verdade. Nós não temos mais o poderoso Bólius para nos
proteger, Molly.
– Ele não morreu tentando nos defender? Ele não falhou? – Molly
perguntou, sem nenhum deboche na sua fala.
– Ele desapareceu. Jamais encontraram seu corpo, ou sequer um
vestígio de suas escamas. Por isso ainda há esperança de que ele tenha sido
banido para outro plano. Que ele tenha voltado para a sua dimensão de
origem, após séculos conosco.
– E não podemos trazê-lo de volta? – perguntei, incerta se deveria estar
ouvindo algo tão particular sobre Cinaéd.
– Poderíamos, se tivéssemos acesso aos pergaminhos que estão
guardados no Pico da Luz. Niasar era um dos principais generais, tomou
posse e controle de todo local assim que Bólius desapareceu. Zahar Fahir já
estava construindo a Vila do Sol há anos quando isso aconteceu, por isso
conseguimos preservar nossa cultura e nossos ensinamentos.
“Abraçamos alguns outros que fugiam da zona de guerra e
construímos tudo o que você, Molly, conheceu enquanto crescia. Mas
Bólius era possessivo com seus pertences, absoluto em suas decisões, e
negou ao filho a permissão para levar consigo tais tomos. E é por isso que
devemos ser cautelosos e zelar pelas vidas que estão aqui.
“Por isso que não concordo com suas partidas. Os jovens são
inconsequentes demais para serem cautelosos. E os mais velhos... estão
começando a se despedir do mundo.” – Amelia concluiu, com pesar.
– Você precisa ter fé que criou a mim e a toda Vila para ter coragem de
mudar as coisas, se preciso.
– Não me falta fé, Molly. Me falta inocência para acreditar em um
mundo ideal. Isso aqui... – A matriarca girou os pulsos evidenciando o lugar
a nossa volta, admirando seus detalhes com seus braceletes reluzindo contra
a luz. – É o mais próximo que vamos conhecer. Zoey, você é uma viajante,
já viu um lugar como esse?
– Não conheço o mundo inteiro, mas já vi alguns lugares em que se
vive em paz.
– E de onde vocês vieram mesmo, minha querida? – ela indagou, me
olhando com curiosidade analítica. Havia muito nessa pergunta inofensiva,
e evitei tremer com medo de ser descoberta.
– Minhas raízes vêm de Ellioras, mas minhas asas vêm da minha
coragem de voar – respondi com toda a verdade em meu coração. Eu rezava
para que ela jamais identificasse a analogia ao lema de Montecorp.
– Ellioras é um território neutro entre os conflitos, não é à toa que
prosperam como abelha e mel – Amelia ponderou, levando a mão ao
queixo. – Por isso que você tem habilidades advindas do mundo natural.
– E, mais uma vez, obrigada pela oportunidade de fazer uma pequena
apresentação.
– Guarde a modéstia para o público, eles adoram isso – ela declarou,
pomposa. – Agora onde está a maravilhosa violinista? Tenho uma proposta
especial para ela.
Capítulo 31
Blaze
Quando Zoey chamou meu nome, despertei com algo incômodo prensado
contra o meu rosto e percebi que havia dormido sobre as anotações na
bancada no quarto de Molly. Após um banho rápido nos meus aposentos, eu
me deitei na cama na tentativa de clarear os pensamentos, de encontrar na
paz do descanso, uma solução. Mas tudo que estava na minha mente era o
pulsar do relógio em uma contagem regressiva maldita que ia contra a vida
dela. Mesmo com o quarto em absoluto silêncio, e a cálida iluminação que
vinha da janela, de alguma forma imitando a noite fora do portal, minha
mente gritava.
Se eu ia ficar acordado, poderia perfeitamente estar debruçado sobre os
experimentos, testando novas possibilidades. Exceto que eu já havia
esgotado minhas ideias com os materiais que tinha em mão. A verdade, é
que eu não estava no meu laboratório, não tinha a biblioteca ou a variedade
de componentes que precisaria.
Meus olhos ardiam, e por um momento esqueci que não podia levar
minhas mãos ao rosto sem sentir uma fisgada aguda e intensa de dor. Mas
não precisava me preocupar com isso, os cortes cicatrizariam.
Zoey murmurou algo sobre deitar na cama e, desnorteado e com ajuda
de Molly, segui suas palavras. Ela tirou algo que enxerguei como um vulto
azulado, e retirou do centro um fio dourado. Ela o colocou na minha boca, e
ele derreteu como se minúsculos fogos de artificio explodissem em mim.
Eu não saberia dizer o que tinha ali, mas acordei cercado de almofadas
macias no quarto de Molly algumas horas depois. As duas dormiam
abraçadas na outra extremidade da larga cama.
Eu sorri, porque apesar de Zoey ser a pessoa mais doce e sonhadora
que eu já havia conhecido, parecia diferente, como se tivesse desabrochado.
Vê-la dormir me fazia pensar em Eleanor quando ela ainda era tão nova, e
ainda éramos como um só. Queria que minha irmã tivesse esse mesmo
aspecto curioso e aberto para o mundo, ao invés da forma que ela se fechou
– e parou de acreditar – que as coisas poderiam ser diferentes.
Ignorando os cortes que me lembravam do fracasso do dia anterior, me
levantei da cama com um pouco de dificuldade e caminhei até à câmara de
banho. Lavei o rosto, esquecendo das ataduras que agora estavam
encharcadas. Eu precisava salvar Luna, e assim que tivesse certeza de que
ela ficaria bem, iria resgatar minha irmã. Já estava fora há tempo demais, e
temia como ela estaria com a dominância do meu pai sobre Montecorp.
Mesmo de longe, mesmo sem nos falarmos com tanta frequência a
necessidade de saber se ela estava bem cortava meu peito mais do que os
retalhos nas palmas das minhas mãos. Porque, lá no fundo, eu sabia que ela
não estava.
Joguei fora o curativo já manchado com sangue, e soltei uma maldição
ao ver que a toalha branca e macia de Molly agora estava com largas
marcas vermelhas. Tentei lavá-las, mas o sabão ardia intensamente. O dia
havia começado brilhantemente.
Ignorei as tentativas de fazer algo certo, e voltei para a bancada a fim
de errar até esgotar todas as ataduras da Vila do Sol. A estação de trabalho
parecia uma zona de guerra, com estilhaços de vidro espalhados como uma
tempestade de neve maldita. Todos eles refletiam o meu fracasso mas, por
alguma razão, eu me sentia revigorado. Estava pensando de forma mais
clara hoje, o que não encaixava com o caos das últimas 48 horas.
Me afastei da bancada e caminhei discretamente até a cama, incerto e
desconfortável de como acordar Zoey, porém sabia que ela, entre todas as
pessoas, entenderia. Ajoelhei e cutuquei o seu braço, chamando seu nome
baixinho algumas vezes enquanto Molly a abraçava, inerte como uma
pedra. Precisei sacudi-la um pouco para que finalmente Zoey olhasse para
mim totalmente confusa, e se jogasse para o chão assustada, deixando a
cama para Molly.
Minha amiga se levantou, afastando os cachos do rosto, e perguntou:
– Tá tudo bem, Dax? – A frase foi concluída em um longo bocejo.
– Sim, eu dormi maravilhosamente bem.
– Que bom! – Ela sorriu, sonolenta, sentando-se de pernas cruzadas no
tapete fofo. Volpe tinha conquistado seu lugar, e agora Molly abraçava a
raposa.
– Eu mal conseguia fechar os olhos ontem, mas tenho a vaga
lembrança de você ter me dado alguma coisa.
– Ah...
Zoey se levantou, ainda cambaleante e andou até as roupas que tinha
usado na apresentação do dia anterior. Sob a capa laranja, havia uma flor
azul diferente de tudo que havia visto.
– É alguma obra da Luna? – Meu peito pulou uma batida, pensando
que ela poderia ter ficado preocupada comigo a ponto de usar sua magia
para me fazer descansar. Mas mal nos falávamos há dias, apesar da última
noite no palco ter parecido uma chance para recomeçarmos.
Zoey apenas balançou a cabeça de um lado para o outro.
– Blaze entregou pra mim... Bom, na verdade, para nós três – ela
comentou, coçando o olho.
– Claro, o grande herói entra novamente em ação. Maldita hora em que
paramos naquela taverna.
– Dax, ele só tem tentado ajudar.
– Eu sei, isso só faz dele mais insuportável – desabafei. Queria
explodir, queria dizer que ele não tinha direito de olhar para Luna do jeito
que a engolia com os olhos. Não tinha o direito de ser o cara legal que fazia
tudo certo, enquanto eu só fazia tudo errado. Passei a mão no cabelo, o
jogando para trás apenas para respirar fundo prendendo a dor quando os
fios encaixaram nos cortes. – E o que essa flor faz?
– É um lírio do céu, pelo que me lembro. Ele disse que as pétalas
ajudam a regenerar energia, então levou para nós três como presente depois
da apresentação – ela concluiu, entregando a flor para mim.
– Eu lembro de ter dormido após ter comigo algo que parecia ouro
explosivo.
Zoey riu, e o som fez Molly se sentar na cama e começar a falar, ainda
de olhos fechados. Volpe permanecia no mais aconchegante dos sonhos.
– O miolo do lírio é um calmante poderoso. Em doses maiores, pode
fazer alguém dormir por dias a fio. Amelia sempre usava em pequenas
quantidades para aliviar as aflições do coração e da mente. Eu pedi que
Zoey te desse um pouco para que pudesse descansar e não passasse a noite
na minha mesa.
– Fascinante – murmurei. – E qual a origem dessa planta? Em qual
época ela nasce? É próximo ao verão, ou ela desabrocha o ano inteiro? Já
tentaram fazer algum tipo de infusão com ambas as partes para tentar
encontrar um equilíbrio?
– Bom dia pra você também, Dax – Molly gritou me interrompendo
com os olhos arregalados e vermelhos. Seus cabelos pretos estavam
totalmente bagunçados, e Zoey se sentou ao seu lado começando a
desembaraçá-los. – São muitas perguntas pra quem acabou de acordar,
calma.
– Eu só sei que o cabo não presta pra nada, só pra fazer cócegas –
Zoey comentou. Molly se reclinou em direção ao seu toque, fechando os
olhos. Minha amiga deu um pulo para o lado quando sua falsa namorada a
cutucou na barriga.
– Não precisamos do cabo pra isso – Molly brincou, e Zoey correu
para a câmara, fechando a porta. – Essa flor foi um presente das montanhas,
até onde eu sei. Mas suas propriedades não têm sido tão exploradas, pois
em grandes dosagens ela já se mostrou fatal – concluiu.
Tomei meu caderno para anotar o que acabara de aprender sobre a
planta, fazendo esboços do lírio. Zoey voltou ao quarto, e ela conversava
com Molly, algo que não prestei atenção. Permaneci focado no que
aprendera com os fracassos de ontem, em como nenhum elemento parecia
concluir a fusão entre as propriedades refletivas de um espelho com a aura
energética de uma pessoa.
Molly havia buscado alguns livros que contavam com algumas
informações sobre os portais, a Vila do Sol e Cinaéd. Qualquer coisa que
pudesse guiar minha pesquisa naquele momento, algo que eu pudesse ter
deixado passar. Um triângulo equilátero estava presente ao final de cada
página – o símbolo do fogo, percebi.
Vi registros sobre um idioma mágico conhecido somente pelos filhos
do fogo, alguns esboços sobre a relação dos solstícios de inverno e a
instabilidade dos vulcões, mapas antigos e possivelmente desatualizados
sobre Cinaéd. Mesmo assim, busquei a Rocha Prima a fim de registrar o
relevo e construções conhecidas do Reino de Fogo. Tais informações eram
desconhecidas em Montecorp, e poderiam ser úteis em algum momento.
Logo estava sozinho no quarto com o argumento que elas buscariam
comida pois tinham certeza de que eu não deixaria o quarto hoje. Estavam
certas. Eu só tinha acesso a uma flor, e precisava fazer valer suas
propriedades.
Primeiramente, busquei a fusão das pétalas com o espelho na intenção
de amplificar a energia a ponto de ela ser refletida a milhas de distância de
Luna, deixando a Sombra perdida para sempre. Derreti os fragmentos de
espelho em um pequeno caldeirão, e uni a pasta azul cremosa que tinha
feito com a pétala. Mais uma vez, a teoria me provava que, na prática, os
experimentos são falhos, e tudo que restou nas minhas mãos foram mais
cacos e uma mistura heterogênea detestável.
Tentei imbuir nos espelhos o miolo, tentando minimizar a essência
energética de Luna, a tornando invisível para Sombra. O fracasso foi a
única coisa que me saudou em mais essa tentativa.
Rasguei uma das folhas do caderno revendo minhas anotações,
tentando encontrar algum estabilizador, alguma coisa que pudesse fundir a
magia da flor com a propriedade natural do espelho, e já chorava de ódio e
arrependimento quando Molly abriu a porta do quarto com uma cesta em
mãos.
– Dax, suas mãos estão sangrando. Por que você não pediu para fazer
as ataduras de novo? – Zoey se apressou e abriu a pequena gaveta na
cômoda onde tinha alguns tecidos, agulha e linha.
Não havia notado que as mãos voltaram a sangrar com os cortes novos
– e antigos – que abriram.
– Eu não consigo, Zoey – falei, sentindo a lágrima arder os olhos, um
nó na garganta me sufocava, e a abracei. – Eu não sei o que fazer pra salvar
a vida dela.
Zoey largou as ataduras no chão e me abraçou forte, e sabia que estava
chorando também. Eu caí sentado no chão, desolado na derrota que eu
mesmo criei. Ela se ajoelhou na minha frente, e limpando minhas lágrimas,
disse:
– Se tem alguém que pode resolver isso, é você, Dax.
– Eu achava isso, mas agora não consigo mais acreditar. Luna jamais
vai voltar à Montecorp, jamais vai pisar em Ellioras, jamais verá os palcos
do mundo, e é tudo minha culpa.
– Dax, me conta o que você fez.
– Eu acreditava que o lírio poderia funcionar para criar uma proteção,
mas eu falhei.
– Você não falhou.
– Você fala como se acreditasse nisso. – Tentei manter a compostura e
me levantei apoiando a mão na bancada, ignorando os novos cacos que eu
tocava. Zoey observava a bancada e os caldeirões arruinados como se
procurasse alguma coisa.
– Dax, você já testou as pétalas e o miolo da flor, certo?
– Nenhum deles teve algum sucesso – confessei, tal como um pecado.
– Vendo agora com atenção, o lírio tem uma aura própria, mas com
cores totalmente diferentes. – Zoey pegou um vestígio da pétala ainda presa
ao cabo e um outro dourado no canto da mesa. – Você não enxerga, mas eu
vejo o roxo e o amarelo claro tal qual a luz do dia nas minhas mãos. Como
pode uma mesma planta ter propriedades tão opostas?
– Por que elas são complementares? – falei diretamente, sem pensar.
– E o que as une? – ela perguntou já sabendo a resposta, seus olhos
castanhos reluzindo.
– O caule. – Era como saltar de um penhasco para provar do chão mas,
por ela, era uma queda que eu estava disposto a sofrer.
Precisei de mais algumas horas até preparar outra infusão, a ansiedade
tinha sabor de milênios enquanto o caldeirão fundia as propriedades, e pela
primeira tentativa, sem partir. O espelho derretido reluzia como o próprio
sol, e com ele moldei os dois braceletes necessários, seguindo o pulso delas
como modelo.
Meus olhos ardiam devido à exposição à luz, ao calor, ao foco
intensivo após tantas horas, mas não me dei ao luxo de piscar. A tarde já
caía quando finalmente prendi o fecho nos pulsos de Molly e perguntei para
Zoey, a esperança quebrando em minha voz:
– Funcionou?
Capítulo 33
Luna
Meu rosto estava enfiado em uma almofada que tinha três vezes o
tamanho da minha cabeça enquanto sentia meu corpo derreter sobre o
colchão. O veludo era macio, mas a textura era densa demais para ser
confortável e afundar apropriadamente. Pela primeira vez em muitos dias,
eu conseguia relaxar a musculatura o suficiente para me permitir não
pensar, e parecia que as horas de estresse e dedicação agora cobravam seu
preço – que eu pagaria de bom grado.
Minhas mãos e pulsos ardiam, cada corte e cada bolha eram um
universo próprio de ardência e incômodo. Zoey havia prendido as ataduras
com esmero, e eu quase não conseguia mover os dedos, logo, não poderia
subir ao palco durante a celebração do Litha. Um certo alívio, pois a única
coisa que permitiu que eu fingisse alguma alegria na taverna fora o
pensamento de que isso garantia nossa segurança no portal.
E agora, finalmente, ela estava segura. Eu consegui, pensei. O sorriso
de satisfação permanecia congelado desde o momento em que Zoey tinha
confirmado a eficácia da minha invenção – a energia vital de Molly fora
dissipada pelos braceletes, ela não deixaria mais um rastro energético.
Minha querida Luna estava livre para fazer tudo o que desejasse, e eu...
também.
Havia esquecido o quanto era fascinante poder usar meu conhecimento
para desvendar as entrelinhas dos livros a fim de buscar inovações. Foi
assim que os grandes alquimistas de Montecorp fizeram grandes avanços há
um século, como o advento das fechaduras conectadas ao sangue da família,
a rede de iluminação química que trazia luz nas noites em que Argrinis não
estava presente. Uma linha fina entre magia e inteligência se interligavam e
trançavam, juntas, uma nova imagem. Pela primeira vez em muito, muito
tempo, eu me sentia realizado com algo que partiu de mim.
Eu fui iniciado em tais tomos de magia no mesmo período em que
Eleanor se destacou em jogos de lógica e aritmética. No início, estávamos
animados com o que poderíamos aprender, nossa mãe nos dizia que seriam
habilidades valorosas para o reino, uma forma de “assegurar nosso lugar”.
Hoje, duvido que as intenções tenham sido tão puras quanto simplesmente o
zelo pela nossa educação.
Se meu conhecimento estava sendo usado para executar os planos
sujos de meu pai, o nobre e inquestionável Sir Caleb Van Doren, o que será
que ele tinha guardado para minha irmã gêmea? Uma parte de mim sentia
que ela estava perdida, como se minha mente esticasse involuntariamente
para ouvi-la, insistindo em procurá-la; como se ela estivesse em desespero.
A cada dia longe de Montecorp, eu tinha mais dúvidas sobre Eleanor e
minha mãe estarem a salvo.
Uma batida na porta me puxou da corrente de pensamentos sem forma,
e senti uma fisgada de dor ao apoiar no colchão para me levantar.
Provavelmente Zoey e Molly estariam me aguardando com alguma refeição
sem sentido que elas tanto insistiam que eu fizesse. Certamente, eu devia ter
apagado no intervalo em que elas saíram.
O cabelo caia no meu rosto, e o afastei com o dorso do braço, de
qualquer jeito. Respirei fundo quando a maçaneta encostou na palma da
mão, e abri em um só puxão. Luna me encarava com os olhos arregalados e
marejados. Mechas rosadas flutuavam em volta do seu rosto, soltas de sua
longa trança.
– Aconteceu alguma coisa? – perguntei imediatamente. Ela estava
bem? Estava ferida? Minha invenção teria tido algum efeito colateral por
não passar pelo período necessário de observação? Os pensamentos
aceleraram impiedosos, buscando preencher uma lacuna que se alastrava a
cada instante.
Eu teria falhado de novo?
E todas as perguntas perderam o sentido quando ela envolveu seus
braços delicados em volta do meu pescoço. Ignorando a dor nas mãos, eu a
apertei contra mim como se ela pudesse escapar se a soltasse, apreciando
seu aroma de lavanda e baunilha que agora eu sabia o quanto me lembrava
de casa.
– Ainda está brava comigo? – brinquei, sussurrando contra seu
pescoço, torcendo para não macular a felicidade que sentia com ela por
perto.
– Uhum. – Ela balançou a cabeça contra meu ombro.
– Não parece – respondi, e Luna deu um passo para trás, suas mãos
apoiadas no meu rosto. Quase me inclinei no seu toque, mas me mantive
firme.
– E como eu pareço? – ela perguntou com a voz um pouco rouca.
– Linda. – Seus lábios se repuxaram para cima. Ao ver seus olhos
reluzindo com o eco das lágrimas, sua respiração ofegante... eu precisaria
de uma palavra mais forte. – E livre.
– Entendi certo o que isso significa? – Luna apontou para seus pulsos
com o olhar. O bracelete era uma joia mágica e rudimentar, talvez simples
demais para uma rainha, mas tinham servido com perfeição. Olhando com
atenção, percebi que algo estava diferente nela, como se sua vibração
interdimensional que tanto me fascinava não estivesse em nenhum lugar à
vista. Eu não possuía as habilidades de Zoey, mas percebia diferentes
energias que pairavam no mundo.
– Você é inteligente, Luna. Não teria me perdoado sem um bom
motivo – as palavras saíram mais amargas do que eu tinha planejado.
– Eu já tinha escolhido te perdoar. – Seu polegar subia e descia pelo
meu rosto em um carinho quase irreal. – Só queria que o gesto viesse de
coração... eu precisei de tempo, mesmo sabendo que não tinha. Sinto muito
pela forma que te tratei, e se te feri também.
– Você não tem nada com que se desculpar. Eu vivo, e continuarei a
viver por você, minha rainha.
– Não estamos em Montecorp, eu não preciso ser sua rainha aqui.
– Você sempre vai reinar sobre tudo que sinto e tudo que penso, Luna.
– Dei um passo na sua direção, diminuindo a distância entre nós, sentido o
calor do seu corpo que era tão familiar e confortável. Ela desceu suas mãos
do meu pescoço para o meu peito, e senti meu corpo arrepiar.
– Doeu porque você foi um dos únicos que sabe sobre tudo que eu
vivi. Eu esperava a mesma sinceridade vinda de ti. – Luna respirou fundo e
pousou a mão sobre meu coração. Não tenho certeza se ele estava batendo.
– E se a gente começasse tudo do zero?
– Você acha que isso é possível? – perguntei, a esperança incerta se
quebrando.
– Eu, acima de todo mundo, acho que isso é perfeitamente possível. –
Ela sorriu tão docemente que eu poderia me desfazer ali. – E não acho que
consiga viver em um mundo em que você não está ao meu lado como meu
amigo.
– E se eu quiser ser mais do que seu amigo?
– O que você quer dizer com isso? – Ela levantou a sobrancelha.
– Já disse, você é inteligente, Luna. Você sabe o que eu quero.
Seus lábios se prenderam em uma linha fina, preocupada. Eu não
deveria ter falado nada. Deveria ter aceitado sua amizade e me regozijado
com sua liberdade, mas sabia que me flagelaria até o fim dos meus dias se
jamais tentasse.
– Eu não posso te dar o que você quer, Dax. Na verdade, nunca pude. –
A voz de Luna morria a cada palavra, e senti que o que quer que ainda batia
no meu peito, também. – Mas posso lhe dar isso.
Na ponta dos pés, a rainha de Montecorp levou seus lábios mornos e
afetuosos até os meus, que se tocaram por um breve momento, não em
luxúria, mas em um gesto de amizade.
– Obrigada – ela suspirou junto ao meu pescoço. Senti seu abraço me
envolver mais uma vez, mas não retribui com a mesma intensidade.
Acariciei suavemente seus cabelos úmidos e inspirei seu perfume,
memorizando cada nota. E a soltei, não porque não a queria. Não porque
não desejava possuí-la ali mesmo e lembrar exatamente porque seu beijo
era viciante e dar a aquele quarto algumas boas memórias.
Mas porque, acima de tudo, havia cumprido minha palavra.
Eu a amava, e ela estava livre.
Capítulo 35
Luna
Era uma loucura. De alguma forma, a energia não só das pessoas, mas
também dos arranjos de flores, das pedras, e até do ar estava diferente.
Cores se entrelaçavam como tubos de tintas espalhados em uma paleta
usada por muitas horas por um pintor inspirado. Eu sentia que cada canto
havia sido habitado pelas estrelas, que vibravam esperando pela chuva de
meteoros que cairia em poucas horas. Em Montecorp, Litha era sobre a luz,
e as celebrações começavam de manhã, tendo seu encerramento quando a
lua pairava no céu, mas aqui... era sobre o dia conquistar a noite, irradiando
o mundo com fogo. A antítese do porquê o Reino de Prata e o Reino e Fogo
tinham comemorações opostas e complementares, me intrigava.
As tendas, as bandeiras triangulares e as lanternas que ajudei a trazer
para o centro da área externa da Vila eram bonitas à tarde, mas de noite,
tudo brilhava. Uma camada reluzente e dourada cobria cada detalhe, como
se tivesse uma chama própria. Detalhes geométricos com triângulos
equiláteros, círculos perfeitos e linhas retas formavam mandalas que
adornavam o detalhe de cada copo, prato e tecido bordado. Eu podia estar
exagerando, mas sentia que a vida e dedicação das pessoas dali haviam
transferido parte da sua aura para os objetos, apenas por uma noite.
Até o chão de pedra da praça parecia irradiar luz entre os
paralelepípedos, nos fazendo caminhar sobre minúsculos rios de ouro
líquido. Do largo palco de madeira que foi revitalizado contra a montanha,
o som de música e festa preenchia o festival, alguns casais e amigos
dançavam mais perto dos músicos, e outros, em volta da grande fogueira.
Por toda parte, ruídos de risadas, conversas e provocações amigáveis
pairavam, misturado ao refrão sutilmente desafinado, próprio de quem está
alegre demais para tomar cuidado com a entonação. Naturalmente, eu seria
uma dessas pessoas, porém tinha perdido as palavras.
– Você também vê isso? – perguntei sem me virar para Molly,
segurando mais firme sua mão, ainda hipnotizada por tudo que via. Ellioras
tinha luminescência e magia, mas não assim. Não compartilhada pela
energia vital de quem vivia e cultivava aquele lugar. No império tudo era
naturalmente mágico, mas aqui, a magia vinha puramente das pessoas.
– Eu disse que de noite tudo ficava diferente, lindinha. – Ela apontou
para uma tenda mais distante. – Blaze está pegando minha bebida favorita,
vamos lá antes que ele acabe com tudo.
A segui, desviando das pessoas que trilhavam alegres seus caminhos
comendo maçãs do amor, confeitos caramelizados e provando bebidas
temáticas enfeitadas com flores e frutas. Pude jurar que um dos copos tinha
um líquido azul e profundo, o que me fez pensar diretamente no lírio do
céu. Vi uma ou outra garota também com pinturas do sol no rosto com
alguns triângulos, lembrando as marcas de Amelia. Mais um símbolo do
fogo para ser homenageado. Eu estava em um vulcão em erupção de vida,
música e memórias em formação. Já havia imaginado que o mundo podia
ser assim, mas estar aqui… tinha mais sabor de sonho do que o próprio
sonho em si.
– Muito obrigada por ter guardado pra gente, Blaze – Molly gritou,
tirando o copo da mão de Blaze antes que ele pudesse levá-lo à boca.
– Não, não. – Ele colocou a mão na frente da boca dela, não deixando
que bebesse. – Seja gentil, o primeiro copo vai pra sua namorada. E você,
minha cara, vai para o final da fila comigo. – Blaze piscou para mim.
Ele estava com um casaco longo, vermelho escuro como sangue vivo,
com botões de ônix. Seu cabelo estava mais cacheado e comprido do que
antes, e ele parecia ter se barbeado para o evento.
– Argh, você está certo. Mas não se vanglorie, eu odeio isso.
– Não odeia – ele retrucou com os lábios repuxado para cima em um
gesto charmoso.
Molly revirou os olhos, e estendeu o copo para mim.
– É todo seu, lindinha.
– Eu não faço questão, pode tomar – comentei, sem saber como me
enfiar na discussão.
– Litha é sobre compartilhar. Se eu tenho uma acompanhante, o
primeiro gole, a primeira mordida, primeiro qualquer coisa, tem que ser
dela.
– Por isso que eu venho nesses eventos sozinho – Blaze comentou.
– Primeiro: eu sempre vim contigo; segundo: você só está sozinho
porque a garota que roubou toda sua noção e senso de foco está de braços
dados com outra pessoa – Molly alfinetou enumerando com os dedos das
mãos.
Luna acenou ao longe, seguida por Dax. Eles apontavam e
comentavam algo entre si que parecia algum tipo de piada interna, e meu
amigo finalmente parecia bem. Sua energia vibrava um tom intenso de lilás
como se uma parte dele estivesse se curando. Já a rainha, era um mistério.
Ela agora estava invisível para a Sombra, e para mim também. Mas pela sua
respiração descompassada, acredito que estava apreensiva com a
apresentação.
– Sua namorada tem um senso de humor mórbido, Zoey – Blaze
comentou, depois de piscar e sussurrar alguma coisa para a atendente da
tenda e ganhar outro drink sem entrar na fila.
– Acho que é por isso que vocês são amigos – retruquei, provando um
gole da bebida. O sabor de limão e cravo era forte e azedo demais para
mim, então segurei na mão de Molly antes que ela se distanciasse e devolvi
o copo. – É seu, meu bem.
Ela bebeu um longo gole, feliz como se aguardasse por isso há muito
tempo. Nos afastamos alguns passos tentando não esbarrar nas outras
pessoas. A residência de Amelia era espaçosa, mas não tinha percebido
quantos habitantes viviam na Vila do Sol – em outros portais – até a noite
do festival, quando todos estavam nas ruas. A vasta praça da noite passada,
agora parecia apertada – de um jeito bom, como um abraço.
Paramos embaixo de uma corrente de bandeiras coloridas presas de um
lado a outro da praça, o aroma de caramelo, frutas cítricas e pimenta fluindo
pelo ar como faíscas reluzentes. Luna chegou até nós, de perto vi as flores
brancas no seu cabelo rosado, uma homenagem silenciosa a Montecorp, e
cumprimentou cada um os envolvendo ternamente, parando entre Molly e
Blaze.
– Eu não faço a menor ideia do que visitar primeiro – a rainha
comentou olhando em volta, seu olhar não parava em um ponto fixo,
correndo por cada detalhe com uma empolgação infantil.
– Uma das mentiras mais lindas que contam no Litha – Molly
começou, entre goles –, é que as estrelas brilham só para você.
– Isso não precisa ser uma mentira. – A empurrei com o ombro, e ela
soltou um riso baixo.
– A mentira não é algo ruim, lindinha. Frequentemente, é só o reflexo
de um desejo. – Molly desviou seus olhos verdes como uma floresta de
mim para o copo em suas mãos.
– Você mesma levantou a hipótese de algo parecido, Zoey – Dax
comentou com uma postura que parecia elegante, mas que eu já havia
entendido que era sua forma de me cutucar.
– Mas, respondendo nossa violinista, você pode escrever alguma coisa
que você quer muito em uma lanterna, e torcer para que alguma estrela
atenda seu pedido. É só isso... Uma tradição legal para forasteiros, se
recebêssemos um número razoável de vez em quando. – Molly apontou
para uma tenda maior, onde a luz irradiava fortemente em tons de dourado,
laranja e vermelho. Pessoas acendiam lanternas flutuantes com um estalar
de dedos e olhavam encantados a sua suavidade ao subir pelos céus.
– Eu adoraria! – Luna ficou na ponta dos pés para olhar o palco, o som
do alaúde e a voz do cantor irradiava empolgação enquanto ele começava
uma nova música. – Mas acho que minha apresentação já está chegando,
não posso ficar na fila. Depois dela, eu vou.
– Você pode comer algum confeito, as filas são bem menores. Eu te
levo. – Molly entrelaçou o braço no de Luna e as duas sumiram na
multidão. Quando percebi, Blaze também não estava mais por perto.
Dax se aproximou de mim e caminhamos sem rumo pelo festival, eu
lhe apontando os detalhes que mais admirava: uma tenda vermelha
pequenina com biscoitos redondos cobertos com glacê e aroma de canela, o
carrinho que Volpe tinha puxado e agora estava repleto de flores silvestres,
e um poste de luz que parecia feito de estrelas da base ao topo. O calor do
fogo sempre estava ali, contrastando com o frio persistente das montanhas.
– Como fizeram a gente acreditar que esse lugar era mau? – sussurrei.
– O que importa é que agora sabemos a verdade, e podemos fazer a
diferença quando chegarmos em casa.
– Você pode, Dax. Tem influência pra isso, já eu... posso persuadir os
cavalos e pássaros do reino a acreditarem em mim.
Ele subitamente parou de andar e se virou, olhando em volta.
– Você já teve a sensação de que estava vivendo algo pela última vez?
– Dax indagou, sem olhar para um lugar específico.
Um arrepio correu meu coração. Um medo insano se instalou, mas
todas as cores à minha volta pareciam estar em paz.
– O que quer dizer? – Mesmo assim, não queria ouvir a resposta.
– Eu só acho que não tem como voltarmos para nossas antigas vidas,
Zoey. Não há um caminho de volta para o “normal” depois de tudo que
vivemos. Eu só... não queria que acabasse. Por mais que parte de mim
precise, ainda não estou pronto para voltar para o nosso reino.
– Ei, o que a gente construiu não acaba. E a gente nunca tá preparado
de verdade pra nada de importante, não é? – Peguei na sua mão com
delicadeza e o abracei. – Eu não estava preparada para encontrar em você,
um irmão. Sabe disso, não é?
Senti sua respiração pausar antes que ele me envolvesse de volta e
respondesse com pesar:
– Você também é. – Dax engoliu em seco. – E irmãos não se
abandonam.
Capítulo 38
Molly
Adrenalina invadia meu sangue, e meu corpo era uma estrela cadente
inquieta e ligeira até alcançar o chão. Sozinha na torre, tive dificuldade em
fechar a porta pesada e precisei dos dois braços para girar a manivela.
Quando cheguei ao chão, toda a parte superior do meu corpo parecia
manteiga derretida. O violino e a partitura da minha música haviam ficado
para trás.
Corri em direção ao festival, atravessando as ruelas desertas com
dificuldade; meu vestido era largo demais para proporcionar agilidade, e as
pedras estavam escorregadias graças a umidade das montanhas. Caí
algumas vezes até finalmente vislumbrar a chama intensa da fogueira
central, e encontrei forças para acelerar.
A música fluía serena, indiferente à ameaça iminente. Eu havia visto
uma formação, mas possivelmente mais guerreiros se aproximavam. Eu não
sabia quanto tempo tinha até a Vila do Sol encontrar sua destruição,
tampouco por onde chegariam, e precisava de uma boa ideia rápido para
salvar suas vidas.
Casais, famílias e amigos andavam sem rumo, cantando, conversando
e dividindo guloseimas. Alguns ainda observavam a chuva de meteoros.
Parei em meio à multidão, aflita, sem reconhecer ninguém familiar. Não
sabia onde estavam Zoey, Molly e Dax, mas não tinha tempo para procurá-
los individualmente. Meu pulmão parecia que iria rasgar, mas me apressei
até o grande palco, esbarrando em todos no meu caminho, sem fôlego para
pedir desculpas.
A saia do meu vestido se prendeu no gancho de uma das tendas, e eu
soltei uma maldição. Segurei a grossa camada superior de tecido que
rasgara, conseguindo um pouco mais de mobilidade, mas não o suficiente.
Tropecei nos degraus de madeira que rangeram conforme eu subia no palco,
e odiei interromper a apresentação de uma jovem que tocava harpa – sua
melodia celestial jamais chegaria ao fim.
Ao cessar da música, o olhar de toda Vila parou em mim, e vergonha
aqueceu meu sangue mais forte que qualquer chama.
– A Vila está em perigo – murmurei para a musicista, que me encarou
furiosa. – Você precisa voltar para casa e trancar as portas.
– Você precisa sair do meu palco... – ela começou irritada.
– A Vila do Sol está sob ataque, eu vi a formação dos exércitos lá fora!
– gritei, torcendo para que todos me escutassem. – Vocês precisam se
proteger. – Minha garganta arranhou bruscamente na última frase.
– A que se deve esse caos, Luna? – A voz irada de Amelia surgiu ao
fundo, a matriarca subia no palco com o rosto cravado em linhas firmes e
impiedosas.
– Eu os vi, Amelia – lamentei. – Os exércitos estão próximos demais,
vocês precisam voltar para casa.
– As montanhas nos protegem de todos os males, você está inflamando
a discórdia em meio ao festival com qual propósito? – Ela me puxou pelo
braço, em direção à lateral, e me debati contra ela.
Abaixo do palco, ninguém parecia tomar iniciativa sem a orientação da
matriarca, e a harpa continuou a fluir com toques mais dissonantes, uma vez
que frustrei a concentração da jovem que a tocava.
Isso era loucura. Ninguém me daria ouvidos a menos que algo
realmente acontecesse diante dos seus olhos – quando seria tarde demais.
Me apressei até os estábulos e busquei a espada que estava presa em Noite,
prendi algumas facas por dentro da minha bota e no vestido. Aproveitei
para cortar a camada vermelha e grossa que impedia que me movesse com
liberdade. Dei à minha égua um cubo de açúcar e implorei que ficasse a
salvo. Fiz o mesmo com Raio e Trovão, e pedi para que levassem Zoey e
Dax em segurança para Ellioras, e depois para Montecorp. Podia confiar em
Zoey para entender a mensagem.
Eu estava vestida em farrapos e sem aliados, mas pronta para a batalha
novamente. Não deixaria o povo de Cinaéd sucumbir diante dos meus olhos
mais uma vez. A gema de fogo já havia sido devolvida, e o vazio no meu
peito ia muito além da falta do seu calor reconfortante. Blaze – Bólius –
havia partido, logo agora que ele era tão necessário, e eu estava tão sozinha.
Saí do estábulo ajustando a espada em minhas costas, o cinto de couro
cortava minha pele com seu peso transpassado. Zoey e Molly estavam
diante de mim, tinham corrido ao meu encontro após meu discurso
desesperado. Seus lábios e bochechas estavam vermelhos, cabelos soltos e
bagunçados, olhos arregalados e atentos.
– Molly, você precisa fazer alguma coisa para que todos se tranquem
no portal. Não é seguro ficar aqui fora – implorei.
– Ninguém vai acreditar em mim, Luna. Precisamos de um outro
plano. Algo que lhes faça ver que o perigo é real.
– Então só tem uma coisa que posso fazer. – Olhei para Zoey
esperando que ela entendesse e me apoiasse.
– Você não pode se entregar, vai ser hostilizada e vai acabar morta de
um jeito ou de outro – minha amiga suplicou.
– E tem alguma outra ideia? – pedi. Eu daria qualquer coisa para não
estar vivendo esse momento, mas o meu querer pouco interferia no que
estava em curso através do destino. Mais uma batalha em Cinaéd, e nenhum
sentimento de propósito ou vitória me acompanhava naquele momento.
Zoey tinha os olhos marejados, e balançava a cabeça incrédula.
– Você não pode fazer isso. Por favor, Luna. – A voz dela quebrou.
– O que ela quer fazer? – Dax surgiu, ofegante. Ele cruzou os braços,
desesperado, buscando uma resposta urgente entre Zoey e eu.
Lhe dei um forte abraço e sussurrei em seu ouvido:
– Blaze é o verdadeiro dono da gema de fogo. Acredito que foi ele
quem seu pai derrotou no final da guerra, mas ele jamais assassinou o
dragão. Apenas o transformou em humano, e o baniu, o ligando até mim em
alguma piada de mal gosto. E agora eu preciso que você cuide de Zoey
enquanto eu convenço a Vila do Sol de que há uma ameaça iminente. – Me
distanciei e encontrei seu rosto atônito, em negação. Falei em voz alta para
Zoey e Molly me ouvirem. – Quando souberem que vocês são de
Montecorp, pode haver uma revolta e não conseguirem abrigo. Molly, eu
preciso que você os leve para longe daqui em segurança. Existe alguma
passagem segura o bastante para isso?
Era a única forma. Era o certo a se fazer, eu repeti para mim mesma.
Ainda que a cada instante tudo o que eu ouvia no meu coração era errado,
errado, errado.
– Se o exército de Niasar descobriu a passagem principal, eu posso
tirar a gente daqui por um outro caminho, que eu mesma trilhei anos atrás –
Molly explicou enquanto prendia o cabelo no alto.
– Vão com ela – pedi, em uma frágil prece para os meus amigos. – Eu
encontro vocês em Ellioras para partirmos juntos para casa.
Seus rostos me diziam que eles não iriam ceder, mas era uma missão
suicida tentar ficar ao meu lado quando o exército de Niasar e o povo da
Vila do Sol estavam prestes a ficar contra mim.
– E se você não conseguir? – Os olhos de Dax estavam marejados e
lágrimas corriam pela sua bela face, agora tão cansada, tão desesperançosa.
– Ei, já viu algum plano meu não dando certo? – Tentei fazê-lo sorrir,
mas as lágrimas já cortavam meu rosto mais ardentes do que qualquer
ferida. A mentira doía, mas a verdade era simplesmente impossível de
encarar. Então com o que restava em mim como rainha, comandei: – Você
sabe o que fazer então, Dax. Coloco nosso reino em suas mãos.
– Eu prometi que ficaria ao seu lado até o fim do mundo, Luna – ele
suplicou, mas eu não podia arriscar sua vida. Dax tinha me dado apoio,
liberdade, amor. Não aceitaria menos do que isso para ele.
– E eu prometo estar lá contigo quando esse dia chegar.
É difícil falar desse livro sem pensar tudo que vivi para concluir essa
edição. Era de Sombras e Lembranças foi o meu primeiro romance, a
primeira narrativa longa que criei, de brincadeira. Mas chegando nesse
volume que você acaba de ler (e depois de ter publicado outros livros no
decorrer, A Falsificadora de Mapas e Se essa rua fosse minha), eu percebi
que a parada ficou séria.
O que começou como um experimento, se tornou toda uma realidade
que passou a ser tão real quanto a minha própria vida. O dia que segurei
ESL nas mãos pela primeira vez, também foi o último dia que vi meu pai
com vida. A última coisa que ele me disse, era que o livro estava perfeito.
Ele sempre acreditou nas minhas histórias, então fiz meu melhor para
continuar escrevendo, mesmo de luto. Então, primeiramente, agradeço ao
meu pai.
Em seguida, agradeço minha mãe, que foi um pilar incansável para que
eu continuasse minha jornada como autora independente, e sempre foi a
primeira a me incentivar quando eu me sentia insegura.
Agradeço profundamente à Cecília Mendes, por ser uma amiga
perfeita e uma leitora beta maravilhosa. Ao Gimmy, que inspirou 100% a
voz de Blaze, e que me ajudou tanto a pensar no funcionamento de Cinaéd
(aguardem o terceiro livro, a coisa vai pegar fogo!). E gratidão imensa às
minhas parceiras de divulgação, por todo carinho e empenho surreal que
tem com essa história.
Por fim, agradeço aqueles que se distraem um pouco do mundo real na
minha fantasia. Eu espero de coração que vocês se reconectem com seus
desejos, que lhes dê uma chance.
Books By This Author
A Falsificadora de Mapas
Essa é a história de como uma pirata enganou a Deusa do Caos.
Mas isso, é segredo nosso.
Pryia, uma bela pirata misteriosa, está presa há três anos em Porto Magnus,
juntando dinheiro ao vender mapas falsificados para escapar desse lugar
esquecido no mapa, visitado apenas pela escória da pirataria.
Ela jura vingança ao maldito capitão Leonardo North, que desgraçou sua
vida após roubar seu bem mais precioso. Quem dera que fosse seu coração.
Jim, um pirata excêntrico surge a sua procura, sabendo muito mais do que
revela, e oferece uma aliança para que possam juntos, destruir Leonardo.
Volume único.
Classificação: +16
Classificação + 12
Mas se foi apenas um sonho, como o colar ainda está no seu pescoço?