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Capítulo 1

Luna

– O que pode dar errado? – Dax resmungou, deixando a ira


transparecer. – Ainda não acredito que você disse isso, Luna. Você
praticamente desafiou o universo a fazer tudo dar errado.
– Eu não sabia que a lei de Murphy funcionava nessa dimensão –
ironizei, esquecendo que Murphy não existira aqui, e me preparando para
possíveis perguntas. Eu tentava me acomodar o melhor possível na rede de
correntes que nos suspendia e nos esmagava uns contra os outros no alto de
uma árvore seca. O cotovelo de Zoey bateu no meu nariz assim que tentei
levantar meu corpo. Estávamos dolorosamente entrelaçados há algumas
horas.
– Eu quero saber quem é essa lady Murphy? – Dax indagou.
– Se ele não quiser, eu quero – interveio Zoey.
Respirei fundo. Não consegui. O peso de Dax estava sobre mim. Olhei
em volta para a floresta cinzenta que nos cercava: árvores com galhos que
pareciam desconhecer qualquer coisa parecida com folhas, fotossíntese ou a
própria primavera. O ar estava pesado e o próprio céu parecia ter
abandonado a existência da luz natural do sol, ou das possíveis estrelas que
fossem aparecer. A noite já estava caindo e cada segundo a mais naquela
maldita armadilha significava um segundo a menos de vida.
Éramos algum tipo de presa e seríamos reclamados em breve.
Provavelmente quando nosso corpo já estivesse sofrendo com a dormência
dos membros, com a sede e a fome.
– Não é uma lady… A l-e-i, lei de Murphy diz que se algo tiver que
dar errado, dará. Da pior forma possível, no pior momento possível –
expliquei, tentando não mostrar o quanto estava desconfortável com o metal
grosso dos elos marcando minha pele.
– Parece ótimo.
– Eu discordo, Dax – bufou Zoey.
– Ignora ele – complementei, torcendo o pescoço para baixo e
assentindo para Zoey, que retribuiu o gesto com dificuldade.
– Se você tivesse aprendido a entender ironias, talvez não estaríamos
nessa situação – disse Dax, se esforçando para coçar o nariz.
– Aparentemente o universo entende ironias, pois foi a Luna que
acionou a “lei mágica do azar” – riu Zoey. Dax a acompanhou.
– Ei, Zoey! Você concorda com ele? – fingi indignação.
– Luna, você não devia ter dito em voz alta “o que pode dar errado?” –
Zoey murmurou.
– Tudo bem, foi uma fala minha idiota.
– Ainda mais quando toda hora alguém diferente quer te matar –
completou Dax.
– É, tem isso... – Soltei um longo suspiro que durou alguns instantes
em um silêncio inquieto.
– Você ainda vai ser minha sentença de morte – ele resmungou.
– Queria só lembrar que eu nunca pedi para que você me seguisse, Dax
– rebati, implicando.
– Tarde demais. Não vou voltar atrás na decisão de ir até o fim do
mundo com você.
Mesmo esmagada, suas palavras mexeram com meu coração. Dax
largou tudo por mim, e largaria de novo e de novo. Até estarmos livres.
– Sinceramente, eu esperava que o fim do mundo fosse mais...
pomposo – analisou Zoey, olhando em volta.
Meu olhar seguiu o dela. O topo de uma árvore retorcida, seca e triste
era o lugar mais improvável para ficarmos presos. Noite havia fugido com
os outros cavalos quando a armadilha fora disparada. Eu só esperava que
ela ficasse bem... Certamente estaria menos em perigo do que nós três.
– Se a gente sair dessa, prometo que faremos alguma coisa mais
divertida. – Eu já sentia saudades do palácio de Ellioras, do som do riacho
acompanhado da brisa fresca das flores que sempre pareciam desabrochar. –
Mas pensando bem, perto de ser morta, qualquer coisa se parece com férias.
– Sabe que a gente não vai deixar ninguém te fazer mal, né? – Zoey
tentou me animar. Eu tentei sorrir.
– Obrigada, Zoey. Também não gosto da ideia de ter minha cabeça a
prêmio.
– Ou da ideia de espalhar o caos por aí, desaparecer do próprio reino
de tempos em tempos e enfrentar criaturas mágicas ancestrais na missão de
salvar o mundo.
Eu não precisava me contorcer na direção de Dax para saber que ele
repuxava os lábios para cima, tentando fisgar meus nervos. Ele conseguia
toda vez.
– Obrigada por enumerar, Dax – bufei, me mexendo ainda mais para
encontrar em meus bolsos alguma coisa que pudesse usar para partir as
correntes. Já tinha tentado antes, e mal podia alcançar meus pertences. O
esforço era em vão.
– Nem todo mundo sabe apreciar sua essência naturalmente
cataclísmica como eu – ele disse.
– Como nós. – Zoey tocou no meu ombro.
– Não é que eu não ame conversar com vocês, mas... – Gesticulei com
dificuldade à nossa volta. – Ideias de como podemos sair daqui? Seja lá o
que nos capturou, não deve demorar a chegar. Provavelmente está só
esperando a gente ficar mais fraco.
– Você não tem como usar sua magia? – perguntou Dax.
– Ah, é verdade! Estou pendurada há horas com um cotovelo no meu
rosto porque esqueci que posso resolver tudo com mágica.
– Você podia ter só respondido que “não.”
Revirei os olhos buscando me acalmar, arrependida de ter sido
grosseira. Não era obrigação deles saber as limitações do meu poder.
– Me desculpa. Mas eu não posso fazer magia sem tocar em nada.
Preciso tocar em alguma superfície para me conectar com a terra, mas o
chão está longe e não alcanço nenhum galho dessa árvore miserável. – Fitei
os galhos pretos retorcidos contra o céu anil. – Consegui tirar a gente de
Ellioras, mas não consigo sair dessa armadilha. – Suspirei.
Por que parecia que eu sempre estava falhando? Eu tive a breve ilusão
que estava no caminho certo para encontrar o herdeiro perdido de Cinaéd, e
tropecei na primeira pedra no caminho. Tantos dias subindo até o topo da
montanha, fascinada com a conexão que despertava nas minhas veias. Eu
sentia o poder da terra, da lua, do céu fluir junto ao ar que respirava. Meu
erro foi achar que eu estava me tornando invencível. Sem a terra sob meus
pés e sem a coroa na minha cabeça, eu não era ninguém. Eu só sabia quem
era quando tocava.
Pela Deusa de Prata, meu violino! Será que ele quebrara nessa maldita
armadilha? Inquietação subiu pelo meu sangue, junto à necessidade de nos
livrar das correntes odiosas ao nosso redor. A jornada já estava difícil, não
era para isso também estar acontecendo.
O silêncio, que entre nós três costumava ser tão confortável, agora
tinha sabor de ferro e desesperança. Estávamos com fome, disso eu tinha
certeza. Com sede, e doloridos. Apertei meus lábios rachados e olhei para o
céu em busca de alguma estrela. Alguma luz. Qualquer coisa que pudesse
me distrair. Não encontrei nenhuma.
No silêncio estagnado da noite recém-chegada, ouvi galhos e folhas
sendo partidos. Passos se intensificavam ao longe, persistentes.
Determinados.
Meu peito gelou e afundou ao ver uma figura de sombras crescer na
escuridão do nosso limitado horizonte. Em um instinto primitivo, comecei a
me preparar para correr, lutar, fugir. Adrenalina descarregava pelo meu
sangue, desesperada por ação – mas não podia me mexer, e agora me sentia
presa de dentro para fora. Eu precisava fazer alguma coisa – qualquer coisa
– para sair dali e levar Dax e Zoey ilesos comigo. Mesmo que todas as
chances fossem contrárias.
– Shhh. Temos companhia – sussurrei como se minha vida dependesse
disso. Provavelmente dependia. – Finjam que estão dormindo.
– Isso vai nos deixar vulneráveis – retrucou Dax.
– Ninguém mata o que está morto, Dax.
– Mata sim – interveio minha amiga, repleta de certeza.
– Obrigado, Zoey.
– São ordens da rainha – enfatizei, gritando baixo, se é que isso era
possível. Coloquei a gema de fogo para dentro da túnica verde e fechei os
olhos.
Os passos firmes ficavam mais altos.
E a armadilha onde estávamos presos há algumas horas já não era a
coisa mais assustadora que precisávamos lidar.
Capítulo 2
Luna

10 horas antes.

Eu não poderia dizer que acordei, pois não me lembro de ter dormido. Em
algum lugar entre a minha breve apresentação de violino e meu encontro
com Blaze, eu me perdi. Lembro que Zoey e Dax debateram quem deveria
ficar com a última batata recheada, e que eu não era muito mais do que um
zumbi durante o jantar.
Estava atônita, e não era para menos. Não era todos os dias que um ex-
quase-talvez-namorado aparecia na minha terra natal sem reconhecer meu
rosto. Era difícil não pensar nos momentos que dividimos em um lugar
onde eu não era uma princesa e a vida era simples demais. Impossível não
cogitar se ele se lembrava de mim, ou se toda minha existência em outra
dimensão fora apenas um sonho deliciosamente insano. A cada passo que
eu acreditava dar adiante em direção a um futuro tranquilo, de paz e
liberdade para Montecorp – e para mim, se não fosse egoísmo desejar isso
–, eu tinha a impressão de que dava três para trás.
Eu disse que estava cansada, e me retirei para o quarto. Usei a
câmara de banho sozinha e me deitei na cama usando apenas a túnica verde
com que Peribelle me presenteara no tempo que passei em seu império
encantado. Mesmo tendo passado semanas ali entrando em contato com
minha magia, eu ainda buscava entender as diferentes fontes que existia
pelo mundo, em especial qual mágica a fazia as roupas de Ellioras continuar
com um delicioso aroma de erva doce mesmo após horas caminhando na
estrada. A Imperatriz pensava nos mínimos detalhes, e eu imaginava como
seria reinar por tanto tempo a ponto de lapidar cada ponto do seu território.
Um sorriso amargo se repuxou no silêncio da noite. Eu não precisava
mais me preocupar com isso. O destino de Montecorp seria a mesma
prosperidade de Ellioras. Teríamos unicórnios andando livremente ao redor
do sagrado Carvalho de Prata, a magia correria pela terra e pelos rios, e
todos seriam felizes. De uma vez por todas. Peribelle seria uma boa
imperatriz para o meu povo, repeti para mim mesma. Ela se mostrou uma
governante mais capaz do que as últimas gerações de Montecorp, sem
dúvidas.
Tentei barganhar que esperasse minha diminuta vida humana para que
eu a nomeasse herdeira do trono. Em seus milênios isso não faria
diferença...mas ela sabia que, com a magia correndo pelo meu território, eu
poderia viver alguns séculos. Sabia que eu poderia ter herdeiros e, em um
estalar de dedos, mudar de ideia. Então nosso acordo foi claro: assim que eu
retornasse ao meu reino, após devolver a Gema de Fogo, eu passaria minha
coroa para ela.
Seria o melhor para Montecorp, para o meu povo, e para mim, pois eu
poderia viver livre, viajando e tocando violino até meus dedos sangrarem.
Era o melhor para todos. E ainda assim, eu não conseguia sorrir.
Me virei na cama. O colchão era duro e o lençol, áspero quando
comparado ao palácio da Imperatriz. Mas nem que eu repousasse em
nuvens seria capaz de descansar naquela noite. Uma melodia familiar
ruminava minha mente, mas não lhe dei atenção no momento. Ouvi passos
rangendo no corredor, um suave e outro firme. Fechei os olhos como se
estivesse dormindo, e em pouco tempo senti alguém se deitar ao meu lado.
Vento, sol e histórias. Zoey.
Dax se acomodou em um colchão no chão, tal como o perfeito
cavalheiro que era. Um lorde, mesmo que detestasse o título. Pensei no
calor que dividimos na noite passada. Um suspiro de alívio, uma declaração
de intimidade, um laço entre amigos que podiam ser mais que isso – se
quisessem. Eu não sabia o que eu queria. Grande novidade.
Em algum momento dentre tais pensamentos, eu pisquei e olhei a
pequena janela de madeira. Zoey tinha roubado toda a manta que nos cobria
e o quarto estava gelado. Toquei a pedra vermelha, seu calor familiar estava
ali. Reconfortante. Paciente.
O vidro estava embaçado com o orvalho e me levantei em sua direção.
Tracei o dedo indicador deixando um rastro de nitidez, as gotas frias me
avisando que a manhã estava chegando. O jeito da natureza chorar por ter
perdido as estrelas de vista.
Eu precisava encontrar um caminho seguro até Cinaéd. Descobrir onde
estava o misterioso herdeiro perdido de Bólius e lhe entregar a semente de
fogo.
– O que pode dar errado? – murmurei para a pedra em meu pescoço.
– O que disse? – perguntou Dax ao longe com a voz sonolenta.
– Ela disse “o que pode dar errado” – respondeu Zoey de forma
enrolada, se virando de bruços, enfiando seus cachos dourados e selvagens
embaixo do travesseiro.
– Do que você está falando, Luna? Nem amanheceu ainda, já disse que
detesto acordar cedo.
Vesti as calças e as botas e caminhei em direção a porta do quarto
tentando não fazer barulho.
– Durmam mais um pouco. Eu volto para acordar vocês em poucas
horas.

Eu já acariciava o focinho de Noite, oferecendo a ela alguns torrões de


açúcar, quando Zoey apareceu ao meu lado com o rosto amassado de sono,
lutando para não bocejar. Suas roupas estavam impecáveis, cortesia de
Ellioras. Os olhos de Dax pareciam mais repuxados e ele parecia mais
ranzinza. Não mudou tanto.
– Como me acharam aqui? – perguntei. – Eu disse que voltaria para
acordar vocês, ainda está muito cedo.
– É que “manhã” rima com “café da manhã”! – Zoey cantarolou com
uma sonolenta animação.
– Não rima, não – retrucou Dax, desinteressado.
– Dax, é a mesma palavra. É impossível não rimar!
– É exatamente por isso que não rima, cabeça de vento.
– Melhor não discutir semântica com ele, Zoey... – aconselhei.
– Enfim, a gente não ia deixar você sozinha em um lugar estranho e
possivelmente perigoso – acrescentou Zoey, dando um passo na minha
direção. Sua forma delicada de dizer que estava ignorando Dax.
– Eu iria, mas ela tirou minha coberta para me acordar. – Dax
discretamente repuxou os lábios para cima.
– Ela tirou a minha também. – Eu ri.
– Então? – Zoey continuou, enquanto acariciava o dorso da minha
égua. – Café da manhã? Aproveitar que temos uma cozinha com comidas
quentes e fresquinhas antes de partir em direção ao lugar onde minhas
histórias não alcançam? Alguém?
– Você leu algo sobre Cinaéd em Ellioras? – perguntei agitando os
grãos de açúcar das mãos.
– É justamente sobre isso que quero falar com você. Mas antes,
podemos comer alguma coisa? Pelo amor de Argrinis.
– Pede o que quiser e coloca na minha conta – disse Dax, saindo do
estábulo em direção a entrada da taverna.
– Ele ganharia mais argumentos se terminasse as frases oferecendo
comida de graça pra gente. – Sua voz era alegre como se um raio de sol
fosse capaz de falar. Tudo fazia sentido, mesmo suas ideias surreais.
Dito isso, Zoey me puxou pela mão e buscamos uma mesa antes de
seguir viagem. Ela sabiamente tinha conseguido alguns mapas na biblioteca
de Ellioras. Havia uma estrada principal – a Via do Fogo – que tinha a fama
de ser repleta de bandidos e trapaceiros. Lembro de atravessá-la na época da
guerra, uma estrada larga, feita para caravanas e carruagens. E no meu
caso... para exércitos. A mera lembrança contorceu meu coração. O cheiro
da glória banhada em sangue, o silêncio cortado apenas pelos passos dos
cavalos, os ecos de gritos desesperados na minha memória. Não gostaria de
retornar. A energia daquele lugar era fúnebre mas, na verdade, eu tinha
vergonha de pisar ali. De ver que essa foi a herança que os Montecorp
permitiram a todo um povo. Eu fiz isso pelas crianças de Montecorp mas,
com toda certeza, Cinaéd amava suas crianças também. Se não seu
governante, suas famílias.
O caminho sinuoso que prometia ser menos conturbado e com maiores
chances de passarmos despercebidos era a “Estrada das Cinzas”. Eu não
tinha memórias dali, o que acalmou os golpes que meu coração dava no
meu peito. Eu pensei em chegar longe na minha jornada, mas agora estava
prestes a encarar o que desabrochou depois que Bólius se foi. Não mais um
reino de fogo mas, assim como a estrada, um reino de cinzas.
– Nem mesmo os bandidos usam esse caminho, pois ele ainda possui
cicatrizes da guerra. – Zoey disse, alheia aos meus pensamentos. – As
árvores nessa outra estrada foram tão massacradas, que se esqueceram
como florescer. É uma paisagem desagradável e áspera, mas pode ser mais
segura para nós – disse ela, entre mordidas de um pão com queijo.
– Estamos preparados para ir até o fim do mundo? – perguntei,
fingindo uma animação debochada.
– Não viemos até aqui para chegar só até aqui, não é? – disse Dax.
Ele me fitou com seu olhar desafiador, o âmbar de seus olhos
dançando pelo meu rosto. Sempre analisando, sempre prestando atenção.
Eu me sentia exposta como se ele pudesse enxergar através de tudo o que eu
sentia, e eu amava isso pois com ele não precisava ser ninguém além de
mim mesma. Levantei a sobrancelha em uma resposta silenciosa, um
diálogo que acontecia apenas entre nós, enquanto Zoey, distraída, observava
a janela sem paisagem.
A tensão entre mim e Dax estava pendurada ali, mas sabíamos que
seria assim. Um sentimento que era um mistério. Uma relação com sabor de
segredo.
Contudo, por mais que eu quisesse negar, meu coração estava dividido
depois de encontrar com Blaze – com ainda mais perguntas.
Eu já tinha vivido duas vidas. Tive dois pais, duas mães, duas
realidades.
Teria que agora também lidar com dois amores?
Ah, se eu soubesse o que me aguardava...
Capítulo 3
Luna

Meus olhos pareciam estar fechados para qualquer um que me visse de


longe, mas eu conseguia enxergar com eles entreabertos. O céu oferecia
alguma parca claridade, apesar do sol ter nos deixado há vários minutos.
Por isso, é seguro dizer que foi o pânico que me fez suar frio ao observar a
criatura que se aproximava.
Sua pele era vermelha como lava, com escamas brutas e escuras ao
longo de todo seu corpo musculoso. Sua cabeça de lagarto não conhecia
piedade, e seus olhos mostarda possuíam uma fina linha preta no meio deles
como pupila. Ele usava apenas calças pretas e algumas talas bege nos
pulsos. O traje de um guerreiro que acredita que nunca será ferido em uma
batalha. Uma capa cinza escura pendia em seu pescoço, presa por um
medalhão, mas não conseguia identificar o símbolo à distância. Já estava
escuro demais e nosso tempo estava acabando. Ele trazia duas lanças presas
às suas costas, com pontas que pareciam ser cegas e assimétricas. Eu não
gostaria de descobrir se eram ou não afiadas, pois, certamente, a espada em
sua mão era. Aquele era o único objeto que parecia refletir alguma luz.
Nós precisávamos sair dali. Mesmo em vantagem numérica, nós três
contra um guerreiro treinado pouco poderíamos fazer. Eu precisava chegar
na terra. Podia protegê-los assim que alcançasse o chão. Torci para alguma
coisa começar a dar certo hoje, e para que ele nos soltasse.
A criatura se aproximou, farejando o ar. Não sei como ele convivia
com o próprio cheiro de carne podre e poeira. O soldado vermelho se
aproximou da corda que prendia nossa rede, e apertei meus olhos
instintivamente, com medo que descobrisse que estávamos conscientes. Eu
percebia a dificuldade de Dax e Zoey em respirar discretamente, mas
agradeci por eles estarem fazendo um ótimo papel fingindo que estavam de
mortos. Eles confiaram em mim novamente e eu não iria decepcioná-los.
De olhos fechados, não podia precisar em qual direção seus passos
rumavam. Ali, tudo era possível. Ele poderia estar escalando a árvore para
nos decapitar, poderia mirar a lança em nossos corpos expostos, ou sei lá
que outro tipo de ritual sórdido.
Não, eu não atravessei uma dimensão, sobrevivi a um golpe e o ataque
de uma Sombra para terminar minha história como jantar de lagartixa.
Mesmo que seja uma que veio do inferno.
Por que meus antepassados entraram em guerra com o Reino de Fogo?
Por que os conflitos não podiam ser em uma casa de doces, como em João e
Maria, onde todo mundo come jujubas no final? Por que não existiam ainda
jujubas em Montecorp?
Ok, talvez eu estivesse passando tempo demais com Zoey... Ainda
bem, seu jeito de ver o mundo era tão mais leve que o meu. Eu quase quis
sorrir. Quase. Mas quando ouvi o aço riscar o ar, já era tarde. Subitamente,
estávamos caindo, o que roubou um grito meu, de Zoey e Dax. Nossa farsa
havia chegado ao fim.
O impacto firme chocou meus ossos e sons abafados saíram dos lábios
de Dax e Zoey. Isso doeu mais do que a queda. Ouvi meu ombro estalar e
protegi o rosto com as mãos ao atingir o chão. Antes que a dor pudesse se
manifestar, cravei os dedos naquela terra seca e esquecida. Como se,
clamando com a urgência da minha vida, eu tivesse feito com que
lembrasse de seu propósito, uma teia de cipós nos envolveu em uma tenda
de escuridão e proteção. Por enquanto.
Dax e Zoey estavam machucados, mas respiravam com algum alívio.
Agora sim eu poderia protegê-los. Todos os dias exercitando minha magia
em Ellioras me trouxeram até aqui. Meu treinamento precisava se mostrar
eficiente e rápido. Aqui não existiam segundas chances, barganhas ou uma
oportunidade de usar meu charme e esperteza para me livrar da situação. Eu
não poderia me dar ao luxo de desmaiar ao me exaurir. Por eles, eu
permaneceria de pé. Eu voaria.
De certa forma, eram essas as boas-vindas que eu esperava de Cinaéd.
Eu conhecia o amargor da realidade da guerra: um lugar onde havia honra,
mas nenhuma piedade, onde a conquista vinha com a perda, e o desespero
era motivo para calma.
– Cuidem um do outro. E abaixem-se. – Foi tudo que disse antes de
piscar um olho e colocar mais uma camada de proteção em volta deles.
Raízes retorcidas e fortes, como um caixote de madeira.
A energia fluiu pelo meu corpo como velhos amigos que se abraçam
após anos sem se ver e percebem que o sentimento continua o mesmo.
Ainda ajoelhada, levantei o queixo para encontrar a lâmina do soldado que
atravessava minha cabana, fazendo com que ela perdesse sua estrutura. A
espada do nosso captor era, como imaginei, extremamente afiada. E eu
podia odiar esse instrumento mas, para defender Dax e Zoey, eu passaria a
amá-lo.
Assim que ele rasgou os cipós que me protegiam dele, olhei
diretamente nos seus olhos amarelos. Vi o retrato da ganância, algo que eu
reconheceria em qualquer lugar do mundo. Analisei rapidamente meu
oponente buscando seus pontos fracos. Não encontrei, mas o que vi, fez
meus joelhos vacilarem. Abaixo da sua capa, preso em suas costas, havia
duas cabeças. Não sabia se ele era um colecionador ou um caçador com um
fetiche, mas não ficaria aqui para descobrir.
A noite nos envolvia como um manto claustrofóbico, não havia
nenhum sinal da lua ou das estrelas. A única luz no horizonte vinha da lava
pulsante do vulcão delineado no horizonte como uma sombra majestosa. O
legado de um Deus que viveu entre nós, e cujo poder pulsava agora em
volta do meu pescoço.
Senti a gema pesar, como se assimilasse o meu plano.
O soldado não esperava que eu sorrisse satisfeita na sua direção
quando eu cravei as mãos na terra e me conectei com as raízes das árvores
mortas à nossa volta. Vi a frustração nos seus olhos sem sentimento quando
soube que eu não seria uma presa fácil.
Agradeci à adrenalina no meu sangue por me fazer esquecer das dores
e do possível deslocamento do meu ombro. Depois eu me preocuparia com
isso. As raízes secas prenderam seus pulsos fazendo sua espada cair no
chão, tilintando contra as pedras. Um urro sibilante saiu de sua boca, um
som que eu sabia que habitaria meus pesadelos.
Peguei a arma no chão, e posicionei meus pés para lutar com uma
familiaridade desconfortável. Eu era uma guerreira com uma espada em
mãos, um violino quebrado nas costas e uma coroa perdida. Patético. Mais
uma vez, em Cinaéd prestes a derramar sangue de um nativo. Eu estava
revivendo a mesma história, em uma versão distorcida. Só esperava que
dessa vez eu pudesse encontrar um final feliz.
Corri na sua direção com um grito saindo de minha garganta, um gesto
mais para me encorajar do que para assustá-lo. Eu era pequena perto dele e
tinha a estrutura frágil em comparação ao seu porte forte. Ele soltou seus
braços das raízes como se rasgasse papel de seda. As duas lanças estavam
em suas mãos e a ganância em seus olhos se transformou em ódio.
– Vou arrancar sua cabeça com minhas mãos – ele grunhiu com o
sotaque carregado na língua comum. Sua boca não era feita para o meu
idioma. Parecia narrado pelo guardião do inferno.
– Tá chateadinho por que roubei seu brinquedo? – provoquei. Dax
estava certo, eu atraía pessoas que queriam me matar. Por que não dar um
motivo a elas? – Desculpa, lagartixa, eu não acho que você tenha elegância
para usar uma arma dessas.
Parte verdade, parte mentira. A espada tinha o balanço perfeito. Era
leve, com a lâmina arredondada na ponta. Esse assassino deveria ter uma
patente alta.
– O nome é Krotos. Saiba disso quando suplicar pela sua vida!
Seu braço musculoso não mirou por mim, mas arremessou as duas
lanças na direção da proteção que criei para meus amigos. Fiz a energia da
terra fluir pelos meus pés, e em com um gesto amplo e circular com a mão
vazia, uma barreira de espinhos surgiu, impedindo que as lanças
encontrassem seu destino. Não tive tempo de comemorar. Ele era ágil
demais, e eu estava destreinada.
Dor começou a irradiar pelo meu ombro quando levantei a espada. Eu
o arranhei, mas sua carapaça era dura e não mais do que uma linha fina
apareceu no seu peito. Não poderia acabar assim. Em uma estrada no meio
do nada, tão perto de cumprir a missão. Seu punho atingiu meu rosto e ele
segurou meu pescoço com as garras afiadas, como tinha prometido. Ele iria
arrancar minha cabeça como alguém que tira a rolha de uma garrafa de
vinho, eu senti isso. Segurei no seu pulso, chamando mais uma vez a terra e
o céu. Mas não foram eles que ouviram meu chamado quando o poderoso
soldado me levantou do chão, quebrando a conexão e a esperança.
Capítulo 4
Blaze

Reconheceria a voz dele em qualquer lugar. O grito de Krotos era um


chamado de morte e eu não suportava a ideia de que ele estava prestes a
matar mais um inocente, apenas por ter os cabelos rubros – a marca errônea
que ele e seu exercido associavam ao sangue do dragão, apenas pela
similaridade na tonalidade. Uma informação falsa, repleta de ódio e
ignorância. Uma desculpa para matar e manter os soldados ocupados agora
que não havia batalhas em vista.
Cinaéd estava sob o comando doentio de Niasar, um antigo general dos
tempos da guerra, que foi recrutado por Bólius do centro da terra para que
lutassem em seu nome. Contudo, o líder do crime dificilmente era aquele
que sujava as mãos de sangue. Para isso, ele podia contar com lacaios
enviados do abismo, capazes de qualquer atrocidade por ouro e uma
insígnia de prestígio.
Ele tinha me caçado, e eu estava à sua espreita. Provavelmente me
bateu até estripar de mim qualquer memória que valesse a pena manter, pois
a primeira lembrança que tenho é a necessidade da fuga. Parti do submundo
onde estava aprisionado com a ajuda de algum Deus itinerante, enquanto
sentia as brasas arderem em minhas mãos, jurei que me vingaria
Meu caminho cruzou com o de Molly, que me acolheu e cuidou dos
meus ferimentos. Entorpecida pela dor e a queda brusca de energia, ela me
convenceu que não havia paz na justiça feita com as próprias mãos e que
uma vida como um refugiado em um território distante seria melhor. Que
era inútil tentar combater a barbárie instalada há vinte anos em Cinaéd, a
menos que eu quisesse lavar as marcas do passado com meu próprio sangue.
Honestamente, a ideia não era tão ruim, mas aceitei a proposta da minha
então nova amiga, exausto pelo fracasso das últimas semanas. Eu estava
buscando pelo rastro de Krotos desde que partimos da Vila do Sol com uma
promessa vazia de voltar logo. Mas eu sentia que havia algo além que eu
procurava. Que me chamava. Que me prendia.
Quando andávamos pela Estrada das Cinzas, o chamado foi claro.
Molly podia discordar da honra que vinha com a vingança, mas eu não me
importava em manchar minha reputação inexistente se fosse para destruí-lo.
A oportunidade era irresistível.
Assim que ouvi seu grito, Molly me olhou, suplicantes.
– Não faça nada idiota. – Foi o que ela pediu antes de eu correr na
direção do som gutural ao longe, com total intenção de fazer algo idiota.
Minhas pernas queimavam com o esforço para manter a velocidade,
cada segundo contava para um inocente nas garras de Krotos. Ele era o
melhor caçador de recompensas da região e usava as cabeças como um
aviso e um prêmio. “Todos os herdeiros de Bólius deveriam ser eliminados”
para assegurar o domínio de Niasar. E como a única descrição que possuíam
dos seus filhos eram os cabelos com o toque de fogo, uma nuance
avermelhada que surgia em cabelos claros ou escuros, qualquer um com
essa característica era morto. Não importava se fosse uma criança com um
ano de idade, nem o fato de que o maldito dragão não existia há décadas.
Eles não correriam o risco.
Isso me lembrava da última noite, naquela taverna feita para os
desesperados, quando a melodia alegre de um violino chamou minha
atenção. Sentia que há eras não ouvia música como aquela, tocada com a
precisão não de quem conhece as notas... Mas como se sentisse qual
precisava ressoar em seguida. Natural como um passo após o outro.
Tive o impulso de buscar a flauta em meu bolso para acompanhar a
canção, mas me mantive ali, assistindo e contemplando. Se não estivesse
acordado, podia jurar que aquela garota tinha saído de algum sonho. Algo
nela exalava mistério e leveza. Nunca a vira por ali e, graças à Molly, já
conhecia bem os músicos da região. Ela usara um capuz preto e me lembrei
de ter visto algo rosado perto de seu rosto. Como fui tão estúpido a ponto de
não reparar nos seus cabelos? Estava hipnotizado pelo momento, aquela
música me distraindo e convencendo que havia um lugar bom e pacífico no
mundo. Falhei em alertá-la dos perigos da estrada e agora ela podia estar
em apuros.
Meu peito apertou com essa ideia. Eu não queria que fosse ela quem
Krotos havia capturado, mas a possibilidade de revê-la me fez acelerar a
corrida.
Eu não quis sorrir, não tinha o direito de me alegrar ao encontrá-la
nessas circunstâncias, mas vê-la confirmou o chamado insano. Ela estava
totalmente sozinha, cercada de plantas vivas demais para a Estrada das
Cinzas. Seus cabelos eram cor de rosa, mas avermelhados o bastante para
que sua cabeça valesse um prêmio. E para Krotos, qualquer oportunidade
para matar era uma chance a ser aproveitada. Que bom, tínhamos isso em
comum. Um misto de alívio e desespero correu pelo meu corpo quando vi
que ela ainda estava viva. Havia uma chance. Saquei as duas espadas presas
nas minhas costas e corri em direção ao soldado vermelho.
As lâminas foram para os seus tornozelos mas, mesmo com o elemento
surpresa, ele era resistente à dor. Sua própria pele funcionava como uma
carapaça natural e escamosa. Passei por debaixo dele, desviando de sua
cauda, e a garota caiu. Ela gemia de dor e se contorcia no chão em busca de
estabilidade. Gritei na direção do meu maldito adversário, levando as
lâminas até seu pescoço, mas errei ambos os golpes. Sua esquiva era boa
demais, desenhada para sobreviver. Em Cinaéd, só os mais fortes e mais
ágeis permaneciam. O sabor familiar do fracasso me visitava, e o engoli.
Raízes retorcidas surgiram do chão, envolvendo Krotos em uma jaula
de madeira tortuosa. Uma vingança da própria floresta morta? Desviei do
olhar enfurecido do soldado, e olhei para ela. A garota parecia que iria
desmaiar, ajoelhada no chão com os cabelos soltos arrastando no solo
arenoso. Ela manteve os olhos fixos no lacaio de Niasar enquanto mais e
mais galhos e rochas surgiam ao seu redor. Observei fascinado, sem saber
qual ação tomar em seguida. Jamais havia visto magia assim.
E o poder vinha dela. Dessa garota misteriosa e poderosa, que tinha
habilidades tão além da música. Ao vê-la tão fraca, quis destruir o mundo
por ela, começando por quem a atacava. Eu teria plena satisfação em lhe
servir a cabeça de Krotos em uma bandeja de ouro. Não o deixaria escapar
dessa vez. O pensamento egoísta se dissipou assim que Molly finalmente
me alcançou, correndo na direção dela.
Seu corpo parecia sem vida nos braços da minha amiga e Molly me
encarou desesperada com o olhar que dizia “A gente precisa fugir, não lutar,
seu cabeça dura. Se eu morrer por causa da sua vingança, eu te mato”. Eu
a adorava, mas ela não entendia que certas ameaças precisam ser
erradicadas. Certas pragas, contidas.
Eu tinha que escolher, Krotos estava contido em clara desvantagem.
Poderia incendiá-lo, mas a resistência ao fogo causaria pouco dano e
destruiria a prisão temporária que a garota tinha criado habilmente . Molly
jamais seria capaz de levantá-la sozinha e entre a oportunidade de aniquilar
Krotos e a de vê-la de perto, a minha decisão era clara.
Capítulo 5
Blaze

Corri até Molly e levantei a garota no meu colo. Seu corpo era macio e
quente contra o meu, e uma sensação quase familiar me tomou. Me senti
um canalha por me permitir sentir algo assim com ela desacordada em meus
braços, mas eu estava salvando sua vida. Não estava fazendo nada de
errado, ou tentava me convencer disso.
Precisávamos ficar em silêncio a fim de sair logo da estrada, mas
vozes abafadas vinham de um amontoado de plantas. Plantas que não
deveriam estar aqui. Seriam os companheiros de viagem dela que a
assistiam na taberna?
– Afastem-se, vou soltar vocês! – disse Molly, com urgência.
Ela cortou as vinhas e galhos habilmente, como se o fizesse com
frequência. Uma garota de cabelos dourados e pele castanha que tinha o
olhar doce, assustado. Um rapaz de cabelos pretos e olhos amendoados que
parecia desesperado. Ele foi o primeiro a falar.
– Luna!
Luna. Era esse o nome dela, não sei como pude ter me esquecido. A
fitei em meus braços, ela parecia estar imersa em um sono profundo. Seus
lábios cheios estavam entreabertos em um claro sinal de exaustão. Ela era
linda. Tive a súbita intenção de protegê-la, mas ela não me conhecia. Eu
estaria a assustando se tentasse agir assim. Então por que eu não queria
soltá-la?
– Ela está bem, só desmaiou – declarei. A menina de cabelos
cacheados correu na minha direção, seus olhos em prantos. Eu precisava
acalmá-la antes que começasse a fazer algum som que chamasse atenção. –
Ei, qual seu nome?
– Zoey – ela balbuciou. – Ele é Dax.
Ótimo, agora precisava ganhar alguma confiança, o que seria
incrivelmente difícil após uma situação traumática como essa.
– Oi, Zoey. Pode me chamar de Blaze e essa é minha amiga, Molly. A
Luna vai ficar bem. Só precisamos sair daqui antes que o merda do Krotos
se solte dali. – Apontei com a cabeça para a jaula improvisada que Luna
criara. – Só um inconsequente andaria pela Estrada das Cinzas.
– Mas nós precisamos chegar até Cinaéd – revelou Zoey com a voz
doce, afastando os cabelos volumosos do rosto.
Achei que os absurdos haviam cessado pelo dia, e claramente tinha me
enganado. Zoey e Dax me encaravam como se eu tivesse posse de algo que
pertencia a eles, e fitei Molly, deixando nas entrelinhas “Fale pra eles não
fazer nada idiota. Não pra mim.” Ela abaixou a cabeça em um riso
cúmplice.
– Algum de vocês tem algum senso de autopreservação? – Exclamei,
tentando não levantar a voz, o ímpeto de gritar pairando no peito. – Eu
conheço um lugar seguro, vou levar vocês até lá, ok? – Aquela era uma
promessa que eu pretendia cumprir.
– E por que confiaríamos em você? – perguntou o rapaz, claramente
impaciente. Sua arrogância foi demais para meus nervos. Molly deu um
passo, ficando mais próxima de mim e de Dax, e tocou no meu braço como
um lembrete para manter a calma.
– Porque eu tenho bom senso o bastante para afirmar que essa estrada
– Levantei um dedo que segurava o braço de Luna, apontando para a
estrada –, é a trilha para os suicidas. Você parecia inteligente, mas tudo
bem. Não confie nas duas pessoas que salvaram a vida de vocês, faça como
quiser. – Contorci meu rosto em impaciência, a respiração curta saindo de
mim. Ele não parecia entender do que Krotos era capaz e eu não estava com
humor para explicar.
– Luna nos salvou, não você – Dax afirmou.
– Ninguém vai resolver nada assim – resmungou Zoey para Molly,
passando as mãos pelo rosto, aflita.
– Garotos, acalmem-se – interveio minha amiga com seu usual sorriso
fácil. Ela falava como se estivéssemos esperando bebidas em uma taberna.
– Podemos debater o melhor caminho para Cinaéd quando estivermos de
barriga cheia e longe daquele assassino, que tal?
Zoey deixou escapar uma risada. Dax revirou os olhos, e eu me virei,
em direção ao atalho que tinha usado para chegar até aqui. A Estrada das
Cinzas e a Via do Fogo pareciam ser lineares, mas as passagens e
entremeios de Cinaéd até Ellioras eram incontáveis. Cada aventureiro
esculpia sua própria trilha.
– Esperem – pediu Zoey quando dei o segundo passo. Ela buscou em
um de seus bolsos uma pequena escultura de madeira entalhada. Um apito,
percebi.
– Zoey, você não é uma boa ideia fazer barulho aqui! – retruquei tarde
demais. Ela já estava assoprando e, para minha surpresa, não ouvi nada. Era
um instrumento desconhecido para mim.
– Espere só um pouco. Por favor – ela suplicou imbuída de certeza,
desviando o olhar entre nós três, e Molly assentiu.
Em poucos instantes, ouvi o galopar de três animais. Um deles, escuro
como a noite, vinha imediatamente na minha direção.
Dax buscou em seu bolso algumas frutinhas vermelhas, as amassou em
um pote de madeira. O aroma cítrico chegou em mim, mesmo à distância.
Ele se aproximou do rosto de Luna, que permanecia apoiado no meu
peito, e traçou seus lábios com o polegar como se os conhecesse. Olhei para
o céu sem estrelas sobre nós, para o vulcão impiedoso no horizonte,
ignorando a pontada de inveja do gesto simples. Eu não precisava assistir
isso, sentia como se estivesse invadindo uma história.
– Vamos lá, mais um episódio para sua coleção especial de
cataclismas, Luna. – Nenhuma nota de sua arrogância saiu dele, mesmo
sabendo que ela estava desacordada. A intimidade na frase me fez querer
partir dali, mas eu segurei firme.
Ele forçou o sumo contra sua garganta e Luna piscou algumas vezes ao
recobrar a consciência. A cor voltou ao seu rosto como mágica e seus olhos
encontraram os meus com a expressão confusa. Claro, como uma garota se
sentiria em desmaiar e acordar nos braços de um completo estranho?
– Blaze, o que você está fazendo aqui? – ela murmurou com a voz
rouca.
– Ajudando Dax a te acordar – respondi, um sorriso ameaçando surgir
em meu rosto.
Ela parecia assustada, mas não se desvencilhou do meu toque
imediatamente. Devia estar muito fraca ainda, olhando os arredores escuros
como um gato assustado.
– Eu te ajudo a cavalgar, Luna. Noite está aqui, ela... – disse Zoey.
– Precisamos partir logo – interrompeu Molly –, algo me diz que ele já
vai conseguir se soltar.
Grunhidos e galhos partidos podiam ser ouvidos, mas não podíamos
ver o quanto Luna o prendeu.
Zoey subiu no belo cavalo preto com adornos prateados. O símbolo da
lua crescente estava na sua testa, eu não precisava ser um lorde para saber
que era uma joia. O animal era dócil, e ajudei Luna a subir no seu dorso
junto da amiga. Ela se manteve calada.
– Dax, deixe o meu cavalo com eles. Precisamos ser ágeis. Eu consigo
conduzir nós duas sem problemas.
– Você sendo prática e ágil? O universo acordou do avesso hoje – ele
resmungou enquanto entregava a rédea do animal nas minhas mãos com
algo que podia jurar ser descontentamento.
Segurei na mão de Molly, e logo estávamos cavalgando guiando o
caminho que nos distanciava da Estrada das Cinzas. Eu olhava para trás
para me certificar que Zoey e Luna continuavam me seguindo. Ela tinha
seus olhos fechados no ombro da amiga, que conduzia sem esforço. Por um
instante, aquela garota tinha parecido tão imbatível e agora ela parecia tão
frágil.
Não sei por que ela queria visitar o Reino de Fogo, mas nenhum
motivo seria bom o suficiente para entrar nesse território esquecido pelos
deuses.
Estava decidido. Eu faria todo o possível para não deixar que ela
colocasse os pés em Cinaéd.
Capítulo 6
Eleanor

Meu coração se contorceu. Se transformou em pedra e tomou forma de


âncora enquanto afundava no meu peito impiedosamente. As palavras de
meu pai ressoaram em mim com o sabor das más notícias. Queria gritar,
mas precisava continuar sorrindo. Era o esperado de mim, após receber uma
notícia tão próspera.
As paredes da sala do conselho pareciam me enclausurar, mesmo que o
sol irradiado pela janela desenhasse losangos coloridos de luz sobre a mesa.
Fitei o vermelho, amarelo e azul, desejando ter a eternidade para não
precisar reagir ao que meu pai acaba de dizer.
Não precisei olhar para o lado para perceber a tensão no rosto de Ayla.
Há semanas ela lamentava o desaparecimento da rainha. Meu pai insistiu
que nós tivemos sorte o suficiente para reencontrar Lunara, para que ela
devolvesse o equilíbrio à magia do nosso reino. Ele disse que foi justamente
pelas nossas forças estarem enfraquecidas que ela foi assassinada no templo
da Deusa que lhe abençoou.
O sangue era dela. Diferente de vinte anos atrás, nós tínhamos a prova
de que a rainha estava morta. A sacerdotisa da Deusa de Prata Argrinis
passou dias reclusa, em um luto prematuro. Os súditos, mais uma vez,
lamentaram sua partida. Mas a cada visita aos campos e condados, eu via
seus olhos brilharem ao se depararem com a doçura da água. Os doentes
voltaram a ter a cor dos vivos e a terra começou a ser gentil com as
plantações. As estrelas reluziam como vagalumes inquietos, e a lua parecia
tão grande que poderíamos tocá-la.
Eu sentia os olhares na mesa sobre mim e sabia que precisava
demonstrar alguma reação. Mirei a joia no centro da testa de Amon, e a
decepção no rosto da esfinge me perfurou. Ele tinha me alertado que esse
momento estaria a caminho e não dei ouvidos. Eu podia elaborar estratégias
e fazer cálculos complexos, mas não sabia decifrar com precisão todos os
seus enigmas.
“Os melhores líderes surgem sem a vontade de um, para necessidade
de muitos. Os tiranos surgem pela vontade de um, para provocar a
necessidade de muitos.”
Eu deveria ter sabido melhor. Deveria ter lido os sinais. Deveria ter
entendido o que Dimas realmente quis dizer quando falou que me “daria o
mundo”.
Eu não queria o mundo. Queria ele. Há anos, tudo que eu desejava era
que nosso amor saísse das sombras. Agora eu me perguntava se algum dia
ele realmente tinha me amado ou se a minha inocência era uma
conveniência nos seus planos.
O sorriso que vi em seu rosto foi a resposta que fez meu peito afundar
ainda mais. Ele parecia... feliz – e não tinha o direito de se sentir assim
enquanto eu estava me sentindo massacrada.
Por fim, fitei o rosto de Ian – o único que parecia tão miserável por
fora quanto eu estava por dentro, apesar da postura impecável. Suas vestes
de púrpuro intenso representavam o luto por Kin, sua esposa. Uma
fatalidade estranhamente conveniente para os planos do meu pai. A essa
altura, eu já sabia mais sobre o mundo e não acreditava em coincidências.
– Eleanor, como deseja responder a essa honra? – meu pai interrompeu
meus pensamentos. Não saberia dizer por quanto tempo eu tinha
permanecido em silêncio, mas minhas bochechas doíam pelo sorriso
forçado.
Ira corria por mim quando a voz de Dimas, que costumava ludibriar
meu coração, declarou:
– Montecorp agora que voltou a plena glória, tem o prazer de se unir a
poderosa Casa Prian-Sostine. Seremos o território mais completo do
continente, e juntos vamos ratificar de uma vez por todas a ameaça que é
Cinaéd.
– Cinaéd foi devastada por nós. Insistir em voltar naquele território é
um desperdício dos recursos que levamos tanto tempo para recuperar –
interveio Ayla, batendo a mão na mesa com a voz firme. Sua calma parecia
ter se esvaído desde que a rainha faleceu.
– É só uma questão de tempo para eles chegarem até nós através das
estradas, Sacerdotisa – disse Ian. – A ameaça de Niasar se estende como um
véu de fogo e escuridão, e estão expandindo sua soberania a cada dia.
– É por isso que nossa aliança trará um feixe de luz, mesmo em tempos
de perdas inestimáveis. – Meu pai apertou o ombro de Ian, como se
lamentasse pela morte de sua esposa. Como se lamentasse a morte da nossa
rainha. Mas eu tinha aprendi a ler seus sinais há tempo demais para
acreditar no que estava fazendo com Montecorp.
Para acreditar que, mesmo remotamente, ele estava fazendo o que
achava que era melhor para mim. Sua única filha, sendo usada como uma
peça de xadrez. Ali, eu vi Ayla como o bispo; Dimas como a torre; Amon
como o cavalo; Ian como o rei... e eu como rainha. Sir Caleb Van Doren
estava nos movendo conforme sua vontade.
– Lorde Ian – procurei as palavras como se tateasse na escuridão –,
qualquer uma que viesse ocupar o lugar de Kin deveria se sentir honrada. O
que posso dizer além disso?
Eu sabia que havia falhado quando vi seu rosto mudar da tristeza para
a raiva.
– Lady Eleanor, ninguém será capaz de ocupar o lugar de Kin – ele
rebateu.
Ninguém poderia ocupar o lugar de Dimas, mas isso eu guardei para
mim. O desgraçado do meu amante não tirava o sorriso do rosto. Ele não
tinha direito de sorrir, mesmo se fosse por puro fingimento. Ódio ameaçava
crescer no meu peito, como a lava de um vulcão que implora para entrar em
erupção.
– Mas considere nossa aliança como um renascimento para nossas
terras. – Ian me fitou de cima abaixo. – Você será minha esposa, terá o meu
respeito – complementou.
Um sorriso descrente se formou no meu rosto.
– Acreditei que já possuía seu respeito, meu caro noivo. Aliás,
acreditei que todos aqui nessa sala também. – Caminhei na sua direção,
parando entre ele e meu pai com uma valentia no meu âmago que jamais
sentira. Eu estava prestes a descobrir que a raiva era uma força motriz
poderosa. O ar na sala pesou quando apontei para a mesa do conselho. – A
diferença entre mim e eles é que você fará seus herdeiros usando meu
corpo.
Eu sabia que não tinha como escapar dessa situação. Sabia que nada do
que eu fizesse faria Dimas se declarar perante todos e pedir minha mão. Ele
teria feito isso há meses – anos – atrás se tivesse essa intenção.
Eu só não esperava receber um tapa estalado no meu rosto, vindo da
mão pesada de meu pai.
– Meça suas palavras, Eleanor – ele declarou com firmeza. – A partir
de agora você deve obedecer ao Lorde Ian como se já dividissem o leito.
Obedecer?
Meu pai não pretendia dividir nenhuma parte do real poder comigo. Eu
era apenas uma moeda de troca, conveniente por ter nascido em meio à
nobreza apenas por ser mulher. Provavelmente, se Kin tivesse sobrevivido
no lugar de Ian, quem estaria noivando hoje seria meu irmão.
Por Argrinis, onde Dax estaria?
Há anos não éramos próximos, mas vivemos por uma década de forma
inseparável desde que deixamos o útero. Eu o amava com todo meu
coração, e sabia que o sentimento permanecia adormecido no meu peito,
paralisado pela falta de convivência, de novidades, de cumplicidade. Eu
sentia falta da época em que completávamos nossas as frases, e podíamos
adivinhar o que outro estava pensando se nos concentrássemos por tempo
suficiente. O mundo lá fora podia estar sucumbindo, mas era o único que
conhecíamos, e em nossa infância, ele era perfeito. Porque tínhamos um ao
outro, não precisávamos de mais nada.
Eu tentava não reviver essas memórias, pois a certeza de que ele estava
por perto, mesmo que distante, de alguma forma me bastava. Não sei como
me contentei com tais migalhas. Há semanas não sinto sua presença e não
esbarro com ele pelos corredores. É como se uma parte de mim estivesse
perdida.
Francamente, era como se todas as minhas partes estivessem perdidas.
Fragmentadas e espalhadas pelos três continentes. Não sabia bem ao certo
quando veio o dia em que ele seguiu um caminho de estudos alquímicos e
arcanos, e eu...
Cada uma das decisões que tomei que me forçaram a tomar, me
trouxeram até aqui. Um noivado forçado, algo que não era feito em
Montecorp há décadas.
Meu rosto ardia, não sabia se pelo tapa ou por vergonha. Lágrimas
incendiaram meus olhos, mas os apertei firmemente, me negando a deixá-
las cair. Eu estava prestes a explodir.
Ou desabar.
Continuei apoiada na mesa de madeira, odiando cada instante daquela
humilhação. Cada segundo parecia uma eternidade estática. Esperei para
que Dimas intercedesse. Que Amon o censurasse. Que Ayla dissesse
alguma coisa. A Sacerdotisa e o Guardião das Palavras se levantaram e as
lágrimas de ódio que tinha segurado começaram escapar em gratidão.
Para minha surpresa, foi Ian quem falou primeiro.
– Sir Caleb, você não encostará um dedo em minha noiva novamente
– ele rosnou.
Se meu pai ficou constrangido com o tom direto do meu noivo, não
demonstrou. Indiferença corria pelo seu rosto. Nem um pingo de
arrependimento por bater na sua única filha.
– Ela é sua para controlá-la agora, Lorde Ian. – Foi tudo que o nobre e
honrado cavaleiro Sir Caleb Van Doren se prestou a declarar.
De alguma forma, isso ainda foi melhor do que a reação de Dimas
Franchot. Ou melhor, a falta dela. O descaso intenso, o sorriso ainda
pregado no rosto como se não percebesse que o clima da sala havia
mudado. Ele era covarde demais para encarar meu pai, ou assim como ele,
não se importava comigo? Meu coração estava em frangalhos, despedaçado
no chão como uma rosa partida.
Ian me ajudou a ficar de pé e me guiou para fora da sala. Meu rosto
ardia enquanto caminhávamos em silêncio. Eu não queria fugir, mas não
podia ficar mais um instante ali. Não poderia encarar meu pai. Nem Dimas.
E sabia que nada que Ayla ou Amon poderiam fazer me ajudaria.
Caminhei em silêncio, resignada. Meu orgulho estava ferido ao pensar
que os três homens à minha volta pretendiam usar meu corpo para cada um
de seus objetivos. Meu pai, para manter a ilusão do poder que ele sempre
desejou e nunca realmente colocou as mãos. Dimas, que desfrutava da
minha aparência e do meu coração quando bem lhe convinha. E, por fim,
Ian, que agora teria posse de todo o resto.
Mantive minha expressão fechada, a última coisa que precisava agora
era de algum murmúrio a meu respeito pela corte. Desfiz minha trança
lateral que tinha preparado a manhã inteira, e deixei que meus cabelos
castanhos caíssem sobre meu rosto como uma cortina que escondia o
espetáculo do desastre que era minha vida. Meu vestido de seda marrom
cobria meus braços, mas revelava meu colo e meus ombros. Olhando para
baixo, admirei o cinto preso a minha cintura, feito de ouro com um lírio
entalhado no centro. Minha flor favorita. A que sempre desejei que
estivesse no meu buquê de noiva, e que agora preferia que estivesse em
minha lápide.
Ian manteve sua postura elegante ao meu lado, me guiando pelos
corredores do palácio onde cresci como se fosse seu. Eu não queria estar de
braços dados com ele, mas entre alguém que me bate e alguém que me
usa... eu preferia estar com alguém que ao menos jurou publicamente me
respeitar. Quando estávamos distantes de outros guardas, Ian parou contra a
parede do castelo e me forcei a encará-lo.
Em qualquer outra ocasião, eu o teria achado atraente. Mas com o
rosto ainda ardendo, e de braços dados com um desconhecido, eu sentia
medo. Sua pele tinha o tom intenso de marrom, seus cabelos pretos eram
lisos e compridos, presos em uma trança. Seus olhos eram como o verde de
uma floresta profunda e impenetrável. E ainda assim, tão tristes.
E eu podia ser uma pessoa horrível por isso, mas saber que ele também
estava sofrendo fazia com que eu me sentisse menos só.
– Respeito é algo que se conquista, Eleanor – ele disse como se
compartilhasse um segredo.
– Eu discordo – rebati.
– E eu respeito você por discordar. Essa situação não é a ideal nem
para mim, nem para você. Não pense por um minuto que eu não sei disso.
Mas te prometo que, ao meu lado, ninguém nunca mais vai encostar um
dedo em você.
– Eu gostaria de acreditar nisso – confessei. Era tola e estúpida por
estar inclinada a acreditar nele, e sabia disso.
– Não foi a primeira vez, certo? – Ian perguntou, direcionando o olhar
para minha bochecha marcada.
Eu neguei com a cabeça.
– Na frente de outras pessoas, foi. Isso já tinha acontecido com minha
mãe, nas poucas vezes que ela discordou do meu pai.
Tentei afastar as lembranças dos móveis sendo arrastados na calada da
noite, dos gritos abafados. Eu e Dax tapávamos as orelhas um do outro até
achar que estávamos seguros. Na manhã seguinte, meu pai se desculpava
compensando seu comportamento com os melhores chocolates e flores. E
minha mãe sempre o perdoava. Ela aprendeu a viver em uma jaula. Eu tinha
dúvidas se conseguiria seguir seus passos.
– Lady Eleanor, sinto muito por ouvir isso. Tem mais alguma coisa que
eu precise saber? Você precisa de proteção?
De mim mesma. Do sentimento traidor que sinto por Dimas. Olhei em
volta e procurei nos meus sentidos se havia alguém em volta capaz de nos
ouvir. Eu deveria contar sobre Dimas. Aproveitar essa janela de honestidade
e confessar o que mais me atormentava. Os largos corredores ainda estavam
vazios, mas eu sussurrei mesmo assim.
– Não. Não há mais nada.
– Eleanor, diga a verdade – Ian disse e eu engoli em seco. – Você está
preocupada com a parte do casamento em que precisamos... “gerar
herdeiros”.
– Essa conversa é extremamente inapropriada – declarei me virando de
costas e me distanciando.
Ian tocou meu braço com gentileza e me soltou assim que parei.
– Eleanor, eu falei a verdade quando disse que ninguém encostará em
você agora que é minha noiva. Inclusive eu.
– Você jura? – Não queria estar demonstrando gratidão. Não queria.
Não queria.
Ele assentiu.
– É isso que respeito quer dizer.
– E você não vai querer herdeiros? – Retomei minha postura,
alongando meu pescoço e o olhando de cima, mesmo sendo mais baixa do
que ele.
– Claro que vou. Mas estou tão feliz com nosso noivado quanto você.
Até lá, podemos fingir que nos damos bem. Fingir que estamos em
harmonia.
– Você está propondo que eu minta?
– Não. Estou propondo que sejamos amigos.
– Eu nunca tive um amigo de verdade. – O único que tinha, havia
partido.
– Eu posso ser o seu primeiro. Se você quiser.
Pensei no casamento que viria sobrepor a morte da nossa rainha. Na
relação amistosa e abusiva que meus pais tinham. Na dinâmica secreta que
eu vivia com Dimas há alguns anos.
E eu queria tanto responder que sim. Que pela primeira vez, ter alguém
que não esconde seu comportamento dos outros seria uma benção. Mas eu
não sabia ser dessa forma. Ainda não.
– Eu não sei como ser essa pessoa, Ian – confessei, a voz baixa e
ríspida.
– Você só precisa ser você mesma.
– É a última pessoa que eu desejo ser. – Declarei, misturando
sinceridade e indiferença.
Parti de volta para meus aposentos. Ainda havia trabalho a ser feito, e
eu preferia mergulhar em números e fórmulas do que encarar minha nova
posição política.
Capítulo 7
Zoey

Não sei aonde estamos indo, mas há alguns dias sinto meu coração insistir
em um pulsar reluzente nessas terras. Desde que o unicórnio me tocou, senti
que algo dentro de mim implora para despertar. Por uma chance, embora
não saiba qual. Alguma coisa que quero descobrir.
– Pode ficar de olhos fechados, Luna. Parece que Noite sabe o
caminho melhor que eu – sussurrei para a rainha, ainda muito fraca em
meus braços.
Realmente acreditei que ela estava mais forte e, ao olhar para Dax,
soube que sua surpresa era a mesma que a minha. Luna ainda precisava
encontrar sua força, seu ponto de equilíbrio. Eu a admirava por tentar. A
admirava por tudo, na verdade.
E, mesmo em uma circunstância infeliz, era grata por estar aqui. Não
mais ouvindo e contando histórias mas, pela primeira vez, sendo parte de
uma. Conseguia ver claramente os bardos entoando através dos séculos
sobre a incrível jornada que trouxe o equilíbrio da magia de volta à terra,
quando a Rainha da Lua e seus fiéis companheiros atravessaram o mundo
para fazer justiça.
A música estava praticamente pronta, só precisava de alguns poucos
ajustes para ser um sucesso. E eu sabia disso por quê? Não, sei, mas eu
sabia. E é mais importante saber do que saber porque se sabe. Disso, eu
sabia bem.
Encontrei em Ellioras uma parte da minha história, apesar de não a ter
revelado. Tinha certeza de que se tivesse compartilhado tudo que descobri
sobre minhas origens, Luna não teria aceitado a minha companhia e
ordenaria que continuasse no território de Peribelle. Ela já ficava relutante
com a nossa presença, pois não queria nos colocar em risco... Se soubesse o
quanto eu ainda tinha para descobrir, teria implorado que eu ficasse lá. Para
alguém que alegava que não queria a Coroa, ela sabia ser extremamente
teimosa.
Mas não era necessário tanta pressa. Eu poderia voltar à Ellioras
depois. Teríamos todo o tempo do mundo, depois que encontrássemos o
herdeiro perdido. Até lá, tínhamos o mundo todo e muito, muito pouco
tempo.
Sorri para mim mesma, girando os pés do alto da sela a fim de evitar a
dormência. Noite estava um pouco rabugenta, reclamando por estar
acostumada a ser a primeira égua na fila, liderando o caminho para os
demais. Igualzinho sua dona.
Eu não precisava olhar para trás para saber que Dax estava com um
péssimo humor. Sua luz estava oscilante, inconstante, visivelmente
incomodada. Para ser franca, todos nós estávamos. Ranzinzas, famintos,
exaustos e preocupados. Mas, por Argrinis, eu seria agradecida pela sorte de
Blaze e Molly estarem por perto hoje até o dia em que todas as estrelas
caíssem.
Teria sido o nosso fim, eu sabia disso. Dax era inteligente demais para
pensar o contrário, mas algo ainda o atormentava. Não sei se era sua
desconfiança usual ou seu mau humor natural. Para alguém tão ligado em
energias, ele parecia não reparar em uma das mais poderosas de todas: a
canalizada pelas pessoas.
Dax parecia conseguir entender e manipular a energia do
conhecimento, dos segredos ocultos dos elementos. Era como se conhecesse
as palavras de ordem que tornavam o impossível em viável.
Luna, por outro lado, trançava a energia dos elementos com a ponta de
seus dedos. Ela era aliada da natureza, como se fosse parte dela. Como se
fosse o coração da própria lua pulsando na terra.
Disso eu tinha certeza, pois sua aura mudava de cor cada vez que ela
interagia com sua magia. A princípio, acreditei que estava me distraindo
com as diferentes nuances iluminadas que via em Ellioras e por todo nosso
caminho até aqui. Eu sabia que a magia – as cores – estavam despertando
desde que Luna voltou ao reino. Era algo novo e fascinante, então eu as
recebi como amigas de infância. Ou como eu imaginava que seria alguém
assim. Acho que Luna e Dax eram as primeiras pessoas com quem eu
realmente tinha um laço como os vistos nas histórias.
Jamais havia percebido que o espectro da luz podia irradiar de outra
pessoa, mas a cada dia, a impressão era mais forte. Eu seria tola se
continuasse acreditando que a luz que via em volta de cada indivíduo era
apenas uma coincidência causada pelos meus olhos.
Meu coração ressoou em curiosidade e fascínio, pois jamais ouvira
sobre uma habilidade como essa. Achei que algumas pessoas tinham o olho
mais certeiro para avaliar caráter e que outras tinham uma intuição mais
apurada.
Foi na biblioteca de Ellioras que encontrei a minha história, não escrita
pela língua do vento, mas sim em uma caligrafia tão bela que os livros
pareciam bordados em tinta e papel. Os Empáticos, como eram chamados,
não eram vistos há quinhentos anos em parte alguma do mundo. Se
tornaram um conto, depois uma lenda, e agora não passavam de páginas
ocultas em livros escondidos. Sua capacidade de ler as pessoas era rara:
acontecia quando um espírito benévolo tocava um feérico, concedendo a ele
o dom da visão.
Era preciso ter a magia inata fluindo no sangue, caso contrário a
benção não funcionaria muito mais do que como uma intuição apurada.
Cheguei a ler registros de como cada cor da aura representava o que ela
estava sentindo. Diziam que um Empático seria capaz de deduzir os
pensamentos alheios apenas observando como sua aura respondia a algumas
perguntas simples.
Uma habilidade forte demais, seja para feéricos ou humanos. É claro
que em algum momento, ela seria usado para algo nefasto. Luna podia ter
feito amizade com Peribelle, mas a verdade é que o poder da Imperatriz
estava ligado ao fato de ela nunca ter sido uma santa. Os unicórnios
podiam ter se afastado de Montecorp há 100 anos, mas séculos antes disso,
os espíritos do bem se afastaram de Ellioras, como se tivessem desistido da
nossa dimensão e não se encaixassem mais aqui.
A noite sem estrelas – literalmente, não a égua meiga que nos
carregava – desafiava nossa visão, mas eu sabia onde Blaze e Molly
estavam. Mesmo ali, eles reluziam.
Não que eu soubesse decifrar o que significava o roxo que emanava
dele, ou o dourado que a envolvia. Não encontrei registros dos significados
das cores.
Tampouco perguntei a algum dos súditos de Peribelle se sabiam algo
sobre os Empáticos. Estava bem claro que eles eram seres de sangue
feérico, e todos os feéricos eram subservientes à Peribelle e Violeta. Eu não
podia – não queria – ser forçada a trocar de corte. Lunara era a única rainha
que eu estava disposta a seguir.
Se eu tinha esse poder agora, só podia ser graças a minha avó. Eu sabia
que ela havia fugido de Ellioras há alguns séculos, possivelmente na mesma
época que os espíritos deixaram o império. Todas as peças se encaixavam,
mas eu não tinha tempo para me distanciar e entender que figura se
formava.
Mas em algum momento, um espírito me tocou. Um pálido azul
celeste me envolveu como uma segunda pele que eu não sabia identificar a
origem. Era como se ela sempre tivesse estado ali, mas agora era visível. E
a magia adormecida em meu sangue começou a implorar para explorar o
mundo, e como eu poderia culpá-la? A cada noite solitária no estábulo eu
rezava para a mesma coisa. Mal podia acreditar que estava realmente
andando na corda-bamba das fronteiras dos territórios que antes eram
apenas histórias sem começo nem fim. E agora nós erámos o meio.
Eu, que nasci em um mundo sem esperança, testemunhei do telhado
dos estábulos o primeiro pôr-do-sol brilhante da minha vida. Não imaginava
que pudesse existir uma hora dourada, tampouco que seria do mesmo tom
do meu cabelo. Foi no dia em que preparei Noite às pressas e vi Luna
galopar furiosa. Mais tarde ouvi os boatos de que a rainha tinha feito um
discurso na praça sobre como tudo iria melhorar.
Lá do topo, fitei finalmente as estrelas que reluziam apenas na minha
imaginação por dezessete anos. Elas eram exatamente como havia sonhado.
Eu sabia que algo estava mudando, mesmo sem ninguém ao meu lado para
concordar comigo.
Eu mal conhecia as tais cores, vivendo em um mundo opaco com uma
promessa de glória... E agora podia vê-las transbordar de suas almas como
se fizessem parte do seu rosto.
Eu queria tanto saber o que elas significavam.
E, quem sabe, aprender a decifrar alguns pensamentos.
Talvez, atrair alguns espíritos benévolos de volta para nossa dimensão.
Amarelo e roxo pararam de se mover na minha frente.
– Podemos passar a noite aqui – comentou Molly com a voz firme e
alegre, descendo do cavalo, seguida de Blaze.
Dax rapidamente saltou ao meu lado, ajudando Luna a descer. Ela
estava acordada, mas em silêncio. Sua luz natural estava fraca, como um
raio de sol que se esconde atrás das nuvens. Meu peito apertou ao ver o
quanto ela estava exausta, mesmo com suas frutinhas mágicas. Elas não
eram milagrosas.
Os olhos verdes de Molly cruzaram os meus e não desviei até que ela
chegou ao meu lado, estendendo a mão para mim. Quando olhei para baixo
soltando as rédeas da Noite – a égua da rainha, não o céu, embora a ideia de
segurar as rédeas do céu noturno e viajar por ele fosse fascinante –, uma
curiosa luz verde-água começou a irradiar no momento em que nossas mãos
se tocaram.
E eu sorri porque... bom, porque era a minha cor favorita.
Capítulo 8
Luna

À noite e enfraquecida, era impossível dizer aonde íamos ou estávamos,


mas a julgar pelas copas frondosas, eu diria que nos deslocávamos para
mais perto de Ellioras do que de Cinaéd. Um misto de frustração e alegria
me invadiu. Estávamos distantes do perigo que quase tomou nossas vidas.
Eu já esperava que nossa viagem pudesse ter momentos hostis, mas não
imaginava que tropeçaríamos logo nos primeiros passos. Nada me garantia
que eu não estava ainda mais longe de encontrar o verdadeiro dono da gema
de fogo. Seu calor familiar parecia mais forte agora como uma bússola
inquieta pelo Norte.
O acampamento em que acordei era aconchegante, como se Blaze e
Molly tivessem o hábito de repousar a céu aberto e o fizessem de um jeito
que parecia uma dádiva dormir sob as estrelas. Ao menos a proximidade
com o reino de fogo sempre fez Montecorp ter o clima ameno, flertando
entre o frescor tropical do inverno e o calor aconchegante da primavera.
Mas agora era como se estivesse mais frio do que nunca.
A magia havia esgotado sua fonte em Montecorp, enquanto Cinaéd
explodiu em desequilíbrio, provavelmente alguns dos efeitos que Amon me
alertara. Que outras anomalias ainda iríamos encontrar? Eu me enganei ao
acreditar que estava indo em direção a um território conhecido. Décadas
atrás, no que parecia ser uma miragem do meu passado, eu era uma
conquistadora. Uma assassina.
E agora, mesmo tantas vidas depois, eu assumia o papel de uma ladra
infiltrada, buscando por um desconhecido em um lugar onde claramente
não era bem-vinda.
Lavei meu rosto com um pouco da água do cantil e desembaracei meus
fios longos e rosados que haviam se soltado da trança na noite anterior.
Agora eles caiam em ondas até meu quadril, e alguns fios molhados
grudaram em meu rosto. Já me sentia consideravelmente melhor após uma
noite de descanso, mas não o suficiente para enfrentar qualquer outra
ameaça. Mesmo em silêncio, procurava lembrar das notas da melodia que
tinha começado a compor muitas eras atrás. Eu havia me esquecido
totalmente da sua existência, mas agora ela caminhava em ondas nos meus
pensamentos e me recordava um pouco mais toda vez que ela me revisitava.
Olhei em volta e vi que Zoey e Molly trocavam sorrisos ao montar
uma fogueira. Blaze não estava em nenhum lugar a vista, mas isso não
significava que eu não o sentia por perto. Doía demais saber sobre ele e ser
uma total desconhecida. Por mais que eu nunca tivesse sabido quem ele era
de verdade, era surreal ser a única guardiã das nossas lembranças. Olhei
para o céu em busca de respostas, pois costumava lê-las nas estrelas. Mas
agora já era dia e as nuvens cinzentas tinham o formato abstrato da neblina,
assim como tudo que eu sentia.
De alguma forma, isso era uma resposta.
Ainda sentada em um cobertor macio contra o chão áspero, toquei na
terra e respirei fundo, me concentrando. Visualizei a cor vermelha, o sabor
doce e cítrico que estourava na minha boca como pequenos fogos de
artifício. Senti a magia de Argrinis correr pelas minhas veias, efervescendo
como um desejo prestes a ser realizado. Em uma língua perdida, que um dia
pertencera a todos os seres vivos, eu repeti três vezes: Cresça.
Não era um comando, mas uma intenção. Da mesma forma que eu
conhecia cada uma das notas que poderiam soar em meu violino, e como
ele respondia à pressão e à determinação dos meus dedos.
Um sorriso repuxou meus lábios ao saber que estava funcionando.
Minha energia estava deixando meu corpo – meu espírito –, e se
transformando em algo novo. Algo além. Eu estava de olhos fechados, mas
podia enxergar claramente as raízes que fincavam na terra, e cada uma das
folhas que desabrochavam ao meu chamado. Naturalmente, percebi também
quando alguém se sentou ao meu lado. Arrisquei quebrar a conexão com a
terra ao fitar seus olhos de âmbar.
– Oi, Dax – disse, a voz saindo de mim um pouco rouca, e ainda
cansada, mas definitivamente, alegre. Me surpreendi ao ver que os arbustos
ao meu lado continuavam a desabrochar em dezenas de frutinhas rosadas
que poderiam ser facilmente confundidas com framboesa - se framboesas
fossem mágicas. Mesmo exausta, conseguia manter meu poder sem precisar
de concentração plena, e senti faíscas no peito ao perceber que estava
ficando mais forte.
– Como você está? – ele perguntou com sua voz grave usual, pousando
o dorso da mão na minha testa e na minha garganta. O ar a nossa volta
estava frio, mas eu sabia que meu corpo estava quente. Não saberia dizer se
por causa da gema vermelha que pulsava contra a minha pele, ou se pela
sua magia que a cada dia buscava uma libertação mais forte através de mim.
Dax franziu a testa em um sinal de preocupação, mas antes que
pudesse sugerir teorias sobre meu estado, me desvencilhei do seu toque e
agitei a poeira das mãos. Joguei um pouco mais de água sobre elas. Colhi
duas frutinhas, satisfeita com o resultado – e principalmente por não estar
zonza graças ao arbusto um pouco maior do que eu costumava criar.
Coloquei uma delas na boca dele, que mordeu a contragosto, e depois comi
a outra. O sabor era perfeito, revigorante.
– Nunca estive melhor – declarei com um sorriso desafiador. Era um
exagero, meu ombro claramente estava luxado e meu pescoço ardia como
se estivesse com vários cortes preguiçosos para cicatrizar. – E você?
– Idem. Graças a você, que prefere se matar antes de aceitar ajuda de
alguém. – Dax nem ao menos tentou ser delicado, o que me fez revirar os
olhos.
– É sério que você está irritado comigo por ter salvado sua vida? –
Franzi a testa, arranquei outra frutinha e comi.
– Estou irritado porque você não deixa ninguém salvar a sua. Zoey
pode não ter nenhum tipo de treinamento, mas não é porque eu cresci em
um laboratório que eu não sei lutar. Eu poderia ter te defendido, Luna. –
Dax se levantou, ajustando o sobretudo preto que já estava perfeito em seu
corpo. Seus olhos amendoados se apertaram ao ouvir uma voz masculina
que era familiar para mim e desconhecida para ele. Era como se a presença
de Blaze tomasse conta do ambiente. – Você não precisava que ele chegasse
para roubar a cena e salvar o dia.
– Não sei se entendo o que você está dizendo.
– Acho que entende, Luna. – Dax estendeu a mão e, apesar de não
precisar, me levantei com a sua ajuda. Essa conversa não se tornaria uma
briga se ao menos um dos dois mantivesse a mente tranquila. Estávamos
próximos como a noite está do entardecer, e eu sentia o aroma cítrico e doce
de framboesa vindo de nós dois.
– Não chegaremos a lugar nenhum se ficarmos competindo pelo título
de herói – sussurrei, antes que me irritasse ainda mais com sua atitude.
Dax fechou sua mão em um punho e deu um passo para trás.
– Olhe em volta. Já estamos em lugar nenhum – ele constatou com os
braços abertos, sua figura elegante em vestes escuras parecia de um
príncipe da noite e dos mistérios.
Me perguntei se charme e ironia estavam necessariamente atrelados as
pessoas que me atraiam e, bufando, colhi as outras frutinhas antes de levá-
las para o café da manhã.

Não sei bem como Zoey e Molly fizeram panquecas no meio do nada,
e por um segundo me perguntei se elas também podiam conjurar
ingredientes naturais. Teria insistido no questionamento, mas preferi me
contentar com o sabor, que beirava o divino. Quem eu estava enganado?
Essa refeição devia ter saído do livro de receitas de Argrinis. As duas
trocavam sorrisos como se fosse um segredo, embora minha amiga fosse
mais doce e discreta, e Molly mostrasse os dentes como se tivesse recebido
a melhor notícia de sua vida.
Nenhum sinal de que quase havíamos perdido nossas vidas há menos
de um dia, julgando pelo olhar delas. Era o exato oposto do que via no
rosto de Blaze, à minha frente, que mantinha a expressão fechada, fitando
por cima dos meus ombros como se enxergasse algo que ninguém mais
pudesse ver. Como se aguardasse um ataque surpresa. Nada da postura
despreocupada do homem que conheci na taverna. Em suas mãos, ele
segurava o que parecia ser uma pequena faca e um tronco de madeira no
qual esculpia algo que não sabia dizer o que era.
Dax, ao meu lado, permanecia com o rosto entre a raiva e indiferença.
Havia uma linha tênue no que dizia respeito a esses dois sentimentos, uma
ponte frágil que eu nem sempre conseguia atravessar para resgatá-lo de si
mesmo.
– Eu disse que as frutinhas ficariam perfeitas nas panquecas – Zoey
comentou, entre uma mordida e outra, cortando o silêncio desconfortável
com sua voz doce. Decidi que engajar em um assunto como “guloseimas”
seria mais gostoso para começar o dia do que falar sobre a criatura que me
feriu, ou sobre para onde iríamos depois de comer.
Há muito, muito tempo, eu adoçava meus dias ruins com um
brigadeiro de laranja, ou de coco. Eu precisaria de um brigadeiro do
tamanho de uma montanha ao voltar para Montecorp.
– Tem algum segredo para cozinhar divinamente no meio da estrada? –
perguntei forçando um sorriso, mas genuinamente curiosa.
– Qualquer viajante preparado consegue, Luna, minha cara –Molly
disse sem um pingo de pretensão, apenas pura franqueza. Ela enrolava uma
segunda panqueca, como se fizesse isso todos os dias. Pelo jeito, era
exatamente isso que acontecia.
– Talvez os viajantes da sua terra sejam melhores cozinheiros do que
os da minha, pois nunca vi nada assim. – Fitei Molly e Blaze, que se
sentavam lado a lado. Um era o oposto do outro, a julgar a expressão de
seus rostos, apesar de terem movimentos parecidos. – De onde vocês são?
– De todo lugar – respondeu Molly, orgulhosa. Seus olhos verdes
brilhavam e seu cabelo preto estava em uma trança perfeita sobre a capa
marrom como sua pele.
– E além disso – concordou Blaze, com os olhos azuis agora cravados
nos meus, como se me desafiasse a perguntar mais. Ignorei.
Zoey pegou mais uma frutinha, e Dax estava lutando para não revirar
os olhos ao seu lado. A fogueira no centro era pequena, e a chama estava
quase se apagando. Eu poderia canalizar a pedra de fogo para nos aquecer
um pouco mais, porém usar o poder dela não parecia certo.
– A gente aprende uma coisa ou outra indo daqui à ali, certo? –
completou Molly, em uma frase que podia dizer tudo e nada ao mesmo
tempo.
Soltei o ar em uma risada. Como eu explicaria que o meu “daqui” e
“ali” eram, na verdade, uma dimensão e outra? Ou um reino de onde estava
fugindo, e outro onde era infiltrada?
Molly exalava uma energia como se fosse a anfitriã de lugar nenhum.
Era alegre, ainda que um pouco intrometida. Algo nela me incomodava,
mas não sabia precisar o que. Blaze e eu dividíamos um passado de mentira,
do qual só eu recordava. Mas mesmo com toda hospitalidade, eles não eram
meus aliados. Ainda não. Eu não poderia revelar sobre ser uma rainha,
sobre minha missão, ou... quase nada.
As meias verdades deveriam servir então. Eu poderia aprender algo
sobre como o mundo estava configurado agora.
– De fato, a gente aprende algumas coisas por aí. – Pisquei para Molly.
– E quem sabe, vocês podem me ensinar um pouco mais sobre Cinaéd. –
Seria arriscado blefar, mas não cheguei até aqui apenas tomando decisões
seguras. – Vocês sabem se o herdeiro de Bólius tem conhecimento sobre
Krotos? Se é aliado ou rival desse bandido?
– Nem aliado, nem rival. – Molly deu de ombros ao responder, e eu
franzi a testa.
– Bólius não tem mais nenhum herdeiro vivo, graças a Niasar. Ele se
autointitulou o “Herdeiro do Dragão”, graças a sua aparência que mistura o
pior do humano com o pior de um lagarto. Pode ser um desgraçado, mas
seu discurso foi bom o bastante para que unisse os destroços de Cinaéd e
transformasse o palácio no coração do vulcão em sua base principal.
“Quando a guerra terminou, o desaparecimento do dragão deixou um
vácuo no poder, e o mais forte e perspicaz o tomou para si. Niasar já era o
general do exército, e tinha domínio das forças bélicas de Cinaéd. Ele
clamou o trono para si, e declarou que o seu povo que vivia no centro da
montanha viesse para a superfície. Ele não teve sucesso conquistando
nenhum outro território até então, mas não duvido que esteja nos seus
planos.
“Há duas décadas ele vem comandando seus lacaios, como Krotos, a
aumentar sua coleção de cabeças de fogo. Pessoas que tem nuances
avermelhadas no cabelo, assim como eu e você, Luna – ele explicou
apontando para o próprio cabelo, os cachos vermelhos despenteados e
escuros. Blaze balançava a cabeça como se tentasse negar para si mesmo o
que falava. – Era o único traço comum conhecido entre todos os herdeiros
de Bólius, mas hoje é só uma desculpa para continuarem usando de sua
crueldade. Assassinam crianças se tiverem a oportunidade, mesmo que a
porra do dragão não tenha sido visto há vinte anos. Por isso que você quase
morreu. – Havia mais dor em sua voz do que Blaze transparecia. – Por isso
que tomar o caminho da Estrada das Cinzas foi uma decisão completamente
estúpida.”
Seus olhos azuis cravaram nos meus enquanto cuspia as últimas
palavras, como se aguardasse uma explicação. Ele terminava de lapidar a
madeira em suas mãos, cravando pequenos buracos no cilindro fino.
– Era a única decisão possível, já que os mapas indicavam que a Via
do Fogo era ainda mais hostil – justifiquei, sabendo que não era uma boa
resposta.
– Ambos os caminhos são estúpidos – Blaze desdenhou, voltando a
fitar o nada no horizonte de árvores. Percebi que ele girava em seus dedos
uma flauta de madeira recém esculpida. – Cinaéd é uma terra esquecida
desde a maldita guerra e os malignos usurpadores do trono. Não há nada ali
além de chamas, desgraças e morte. O mínimo que você deveria ter feito era
procurar uma forma segura de atravessar esse lugar. – Ele passou a mão
pelos cabelos e me encarou. – Por que alguém como você teria algo para
fazer em um lugar como aquele?
– Porque alguém como ela – Dax interrompeu –, não precisa dar
explicações para alguém como você.
Blaze parecia ter nascido na beira da estrada, graças a suas roupas com
beiradas puídas e o aspecto de quem já tinha enfrentado algumas brigas de
taverna com a mesma camisa. Dax contrastava com sua elegância nas
vestes e a arrogância própria de quem tinha crescido em um castelo.
Me levantei e parei entre os dois, de frente para Dax, o encarando
profundamente irritada. Eu sabia qual era o meu lugar, independente do que
qualquer um dos dois pensasse de mim.
– Dax, alguém como eu não precisa que outra pessoa fale por mim ou
que me defenda.
– Ah, claro, Vossa Majestade. – Ele fez uma reverência debochada. –
Você só precisa de alguém que possa salvá-la.
Dax andou com raiva em direção as árvores mais densas da floresta, e
Zoey se apressou atrás dele, lambendo os dedos que ainda tinham o caldo
das minhas frutas encantadas.
– “Vossa Majestade”? – Molly olhou confusa entre o espaço vazio
onde Dax estava e eu.
– É uma brincadeira nossa – despistei. – O título também lhe cai bem,
Blaze, já que gosta de questionar os outros de forma autoritária.
– O que você poderia saber sobre “alguém como eu”? – Ele revirou os
olhos de um lado para o outro, com um meio sorriso despontando dos
lábios. Apoiei os braços nos joelhos, e me inclinei na sua direção.
– Sei que alguém como você parece conhecer um caminho seguro até
Cinaéd.
Era um desafio desesperado, mas normalmente minha inconsequência
compensava.
Blaze deu um passo na minha direção e, pelos deuses, eu queria recuar,
mas me mantive no lugar.
– Talvez eu saiba. Mas minha pergunta não soou como eu gostaria. –
Blaze respirou fundo, gesticulando como se pudesse colher as palavras
certas. – O que uma garota que exala magia como você precisa fazer em um
lugar que vai fazer de tudo para tentar te matar assim que você pisar lá?
– Não seria a primeira vez que eu estou nessa situação – falei sem
pensar.
– Pode ser a primeira vez que você a evita, que tal?
– Não aja como se você pudesse solucionar meus problemas. Você não
me conhece.
– E você me conhece para ter certeza de que não posso te ajudar?
Sim.
Não. Mesmo na outra dimensão, eu não sabia quase nada sobre Blaze.
Sobre sua família, amigos, carreira... nada. Mas eu conhecia seu coração.
Ou ao menos, achava que sim. Isso era o bastante para dizer que se conhece
alguém, certo?
– Você pode me ajudar garantindo para mim e para meus amigos uma
passagem segura para o Reino de Fogo. – Me levantei do tronco de árvore e
andei para perto da fogueira quase apagada, jogando algumas pedrinhas
para perto da lenha queimada. Incerta de como me mover e de como me
expressar. – Fiz um voto à Alma Antiga, não é algo que posso me dar ao
luxo de deixar de lado. Há alguém em Cinaéd que eu preciso encontrar.
Pela expressão de Molly e Blaze, eles já haviam ouvido falar sobre
Madame Sienna, e seus nomes multifacetados que cruzavam as histórias
através das estações, das mudanças das línguas e das eras. A matrona do
panteão divino, a responsável pelo tecido da realidade, a única capaz de
trançar as dimensões como se fosse uma tapeçaria.
– Não há aliados para você lá, Luna – Molly interveio.
– Não busco aliados – suspirei, olhando para o céu cinzento acima de
nós, já conhecendo as lágrimas que subiam pela minha garganta. – Busco
alguém que possivelmente foi morto a mando de Niasar, pelo que me
contaram. Mas se há uma única chance de encontrar um herdeiro do dragão,
eu preciso tentar. Sou estúpida a ponto de atravessar uma estrada perigosa,
mas não quebraria um pacto com uma entidade ancestral.
“Não só pela minha alma, que já foi fragmentada mais vezes do que eu
poderia suportar..., mas pelos reinos que governam esse mundo. E pelo
futuro de paz que ainda acredito que possa existir. O nosso continente não
precisa ser assim, com as fronteiras fechadas e sem nenhuma união. –
Gesticulei as mãos sem jeito, pensando em formas de persuadi-los. – Posso
recompensar vocês, se é tesouro o que buscam.
“Blaze, você não precisa ir comigo. Mas te peço que não fique no meu
caminho. Te devo a minha vida e a de meus amigos por ontem, mas
podemos nos separar aqui.”
Molly deixou escapar uma palavra suja e sussurrou algo para Blaze
que não chegou até meus ouvidos. Pegou alguns cantis de água apoiados no
chão e caminhou em direção ao som de um rio. Um vento frio ainda fluía
entre nós, contrastando com o calor da manhã. Dei alguns passos para trás,
engolindo o choro ao enrolar a ponta do meu cabelo com os dedos,
pensando no que dizer em seguida. Ou se havia dito demais.
– Luna, você acha que nos encontramos por acaso? – A voz de Blaze
era baixa, mas ressoou por mim.
Não.
– Claro que sim.
Ele riu, como se não estivesse me contando alguma coisa.
– Eu vou te ajudar a encontrar o herdeiro de Bólius, se ele ainda
existir. Mas vamos por um caminho diferente das estradas conhecidas nos
mapas.
– Qual caminho? – perguntei, não sabendo ainda se deveria me alegrar
com tamanha sorte.
– Você vai ver chegando lá. É uma surpresa. – E, após olhar em volta
do pequeno acampamento, se certificando que estávamos sozinhos, levou a
flauta aos lábios e soprou uma melodia desconhecida e hipnótica, como a
memória fresca de um sonho ao despertar.
Capítulo 9
Blaze

A madeira da flauta improvisada estava ressecada contra meus lábios, e a


melodia que saía dela era, no máximo, agradável. O instrumento rudimentar
falhava na precisão das notas, mas era o que eu podia fazer estando na
estrada. Uma das poucas habilidades que eu tinha e que não era ligada a
rastrear ou caçar ninguém.
Desde que percebi que sobrevivera as garras de Krotos, busquei um
propósito para estar vivo no peculiar lar em que Molly foi criada. Algo ali
despertava minha curiosidade e respondia ao poder que corria em minhas
veias, comum nos moradores a leste do continente. O alinhamento com
elementos era uma característica incomum, mas não rara, e a afinidade com
o reino de fogo era a única pista da minha origem.
Molly insistiu por dias a fio que a ideia de “raízes de onde você veio”,
era um conceito arcaico e inútil. Que o que importava era para onde estava
indo, e não por onde andou.
Mas do que é feito um homem, senão de suas conquistas? Do que um
velho pode se gabar se não de suas histórias nos tempos de vigor e glória?
A vacância do passado em minha mente era um constante hiato ecoando
que jamais chegava ao fim. Uma frase inacabada, um refúgio inexistente.
Eu passei a chamá-la de amiga poucos dias após nos conhecermos, mas
seguia discordando dela em basicamente tudo.
Eu precisava descobrir quem eu era e o que me pertencia, para decidir
meu próximo destino. Quem sabe um tesouro poderia me trazer o prestígio
que jamais desejei, ou pagar por experiências o bastante para suprir uma
vida perdida? A ideia de ouro e joias em abundância era pertinente em
planos assim. A julgar pela joia na égua de Luna, certamente ela possuía
recursos ou tinha excelentes contatos em outros territórios.
Eu acreditava que, voltando ao local de onde havia partido,
encontraria as respostas para as perguntas que me assombravam, mas o que
encontrei foi totalmente diferente. Olhei de soslaio para trás. Molly e Zoey
trocavam algumas palavras sobre os arredores sem graça da estrada e, logo
depois delas, Luna encarava o horizonte perdida em seus pensamentos, com
o olhar vigilante de Dax sobre ela, atento e protetor.
Ela era forte, mas estava machucada. Não apenas por Krotos, mas
porque tudo aquilo que me faltava, percebi que ela tinha de sobra. Excesso
de passado. Aquele era o olhar de quem convivia com lembranças demais, e
egoisticamente eu desejei lhe perguntar sobre cada uma delas. A busca por
me preencher com as histórias dos outros se tornara um hábito corriqueiro,
talvez até uma espécie de conforto vazio, já que não podia fazer muito para
desvendar meu próprio passado. Mas dessa vez eu estava especialmente
curioso para ouvir tudo o que essa garota tinha a compartilhar.
Acarinhei o dorso do cavalo, indicando que mantivesse o ritmo estável
e levei a flauta até a boca, um sopro fraco o bastante para soar a melodia,
mas não alto o bastante para chamar atenção nesse lugar inóspito. Procurei
as notas nos errôneos buracos cravados, e a melodia saiu equivocada, mas
havia beleza ali.
– Ele parece um passarinho levemente desafinado – minha amiga
comentou atrás de mim.
– Um passarinho é melhor do que o silêncio, Molly – Zoey retrucou
com uma risada baixa. Terminei a curta canção, segurei as rédeas e virei a
cabeça para elas. Molly tinha o queixo um pouco acima da cabeça de Zoey,
seu sorriso bobo pendurado no rosto como sempre. Eu gostava de como ela
sempre parecia estar feliz, como se tivesse ouvido uma boa notícia.
– Obrigada por ser uma amiga melhor que Molly, Zoey – gritei de
longe.
– O desafio é continuar sendo amiga dele a cada nova flauta que ele
faz. Sempre desafina em uma nota diferente – Molly murmurou.
– Eu ouvi isso – falei.
– Em Ellioras tem bons instrumentos, vocês podem ir até lá depois de
guiarem a gente – Zoey sugeriu.
– Isso se a imperatriz te der passagem. Os melhores instrumentos vêm
de Traberan, mas isso fica a um oceano de distância. Ainda não existem
embarcações que chegam tão longe com segurança garantida– Molly
explicou.
– Você já viu o oceano? – Zoey murmurou baixinho, foi a última coisa
que ouvi da conversa delas. Eu não sabia nada sobre o oceano, e as poucas
coisas que pensava se resumiam aos últimos meses e a coisas que não sabia
onde havia aprendido, como usar a flauta em uma memória muscular que
me guiava. Voltei a tocar, ignorando que havia tanto que já soube e jamais
me lembraria.
Eu não possuía nada, mas enquanto ninguém soubesse, eu agiria como
o dono do mundo.
Capítulo 10
Luna

Há algumas horas não sabia para onde estava indo, mas confiava
cegamente em Blaze, apesar de ele ter cortado minhas tentativas de
perguntar qual caminho seguiríamos. Apesar de sermos cinco pessoas,
decidimos dividir os três cavalos, para o grupo manter o ritmo. Noite seguia
comigo mais do que uma montaria, era como uma parte selvagem do meu
coração, como se pudesse ler em seu olhar profundamente escuro alguns de
seus pensamentos. Gostaria de me comunicar com ela, perguntar se ela
preferia torrões de açúcar ou maçãs, apesar de comer os dois com o mesmo
entusiasmo.
Após desmontar o café da manhã, Zoey avaliou os animais e declarou
que o cavalo que levara Molly e Blaze na noite anterior estava cansado e
deveria carregar apenas uma pessoa hoje. Blaze já havia ganhado a
confiança e intimidade do animal, então seguiu sozinho, liderando. Zoey e
Molly seguiram juntas por serem mais leves. E como Noite ainda estava
perfeitamente disposta, seguiu comigo na frente e Dax logo atrás de mim.
Eu não conseguia cavalgar muito bem, graças a dor em meu braço. Na
necessidade de algum movimento brusco, certamente me faltaria a força ou
a agilidade necessária.
O alquimista estava calado – emburrado, para ser totalmente franca – e
seu silêncio me irritava tanto quanto suas reclamações. Especialmente
quando éramos obrigados a ficar tão... próximos. Eu sentia sua perna roçar
na minha, e seus braços seguiam apoiados na minha cintura, mesmo
enquanto eu guiava as rédeas da Noite. Quem me dera guiar as rédeas da
situação. Eu entendia porque Dax desconfiava de Blaze, mas se soubesse
como o conheci, poderia piorar sua antipatia por ele. E nesse momento,
precisávamos de mais aliados.
O silêncio pulsante há horas, ardia. Estávamos perto fisicamente,
dividindo a mesma sela, mas talvez ele estivesse me evitando.
Após tudo que tínhamos dividido, eu não deveria ficar escandalizada
com algo tão simples quanto a sua mão apoiada na minha coxa ao cavalgar.
Não era nada que ele nunca tivesse tocado antes. Ainda assim, a
naturalidade da situação era demasiadamente íntima. Se eu não estivesse
irritada, certamente recostaria a cabeça no seu peito, como fizemos tantas
vezes na paz de Ellioras. Ele diria algo inusitado, e eu responderia com algo
absurdo. Eu abriria um sorriso, e ele fingiria que não. E nem precisava. Ele
sorria com os olhos, apesar de manter o rosto fechado.
Mas agora, tudo o que eu queria era explicar porque confiava
cegamente em Blaze. Porque minha necessidade de cumprir minha missão
era prioridade para que enfim pudéssemos libertar Montecorp – e em
seguida, a mim. Eu entregaria minha coroa à Peribelle, e enfim estaria livre.
Ou perdida. Não saberia a diferença mesmo que assistisse uma apresentação
de slides sobre o assunto. Não que slides existissem aqui. Suspirei. Como
eu explicaria toda a bagunça que era a minha história para alguém? Talvez
um livro conseguisse retratar uma fração do que é o caos deslumbrante que
sinto.
A floresta à nossa volta não era densa, mas própria para montanha.
Como se nascesse a fim de fincar suas raízes em rochas, e não em terra
macia. Desde que a magia despertou em mim, e principalmente desde
quando aprendi a me comunicar com ela, comecei a reparar intensamente
na energia que exalava da natureza à nossa volta. Havia um perpétuo pulsar,
um chamado invisível e silencioso como o intervalo das batidas do meu
coração.
As palavras de sabedoria dos meus ancestrais começavam a fazer
sentido no meu coração, mas ainda permanecia como um enigma na minha
mente: deixe que suas raízes cresçam e sua liberdade surgirá como asas.
Eu, que jamais conheci a liberdade, sonhava acordada pensando em como
seria voar. Se seria melhor deixar a ideia imaculada na minha imaginação,
ou deturpá-la na tentativa de fazê-la real.
Percebi que a cada quilômetro nos aproximamos mais e mais das
montanhas, como se estivéssemos ao mesmo tempo subindo e mergulhando
direto para o centro da terra. Lembro que essa era uma das histórias
favoritas do meu pai – Luiz –, sobre um grupo de aventureiros que
descobriram toda uma civilização perto do núcleo do planeta. A ideia me
pareceu absurda na época, e hoje me parece quase normal.
Ainda não havia tido coragem de olhar o estado do meu violino após a
armadilha de Krotos. Meu ombro ainda pulsava com o eco da dor do nosso
encontro e, mesmo após dormir e comer minhas frutinhas, a musculatura
doía. Eu conseguia repor minha magia, mas não meu vigor físico. Como
não conseguiria tocar, preferi não encarar o estrago no meu instrumento.
Vê-lo partido, iria me ferir. Eu preferia ter meu próprio “violino de
Schroedinger”, quebrado e intacto ao mesmo tempo.
Um dia eu poderia viver tocando até soar como a trilha sonora de uma
chuva de estrelas cadentes.
Um dia.
– Você está calada demais.
Senti a voz de Dax ressoar pelo meu corpo me tirando de um transe
involuntário. Seu tom tinha um toque de deboche e um toque de
preocupação. Aparentemente ele preferia me provocar a não falar comigo.
– Eu não sei o que dizer. – Era verdade.
– Não vou discutir com você sobre confiar em completos estranhos,
Luna.
– O que mudou nessas últimas horas?
– O fato de eu ter percebido que você não vai mudar de ideia.
– Só isso? – indaguei, me virando para encarar seu rosto. Uma mecha
curta de seu cabelo caia na frente do seu olho cor de mel e a ternura ali me
fez estremecer. Seria mais fácil continuar irritada se ele não fosse tão
bonito.
– Eu aceito sua essência cataclísmica, já falei mais de uma vez que a
acho fascinante. Se estamos indo em direção a uma armadilha, ao menos
um de nós está atento a isso.
– Dax, eu não queria lembrar que Sir Caleb foi a pessoa em que eu
mais confiei em toda minha vida, e a que me traiu em todas as
oportunidades. Acreditar em Blaze e Molly me parece uma ideia tão boa
quanto qualquer outra.
Dax ficou calado por um instante. Eu nunca iria culpá-lo pelos erros do
pai, mas não podia deixar o assunto intocado como se não existisse. Eu
deveria contar como conhecia Blaze, mas não sabia qual a melhor forma.
Até poucos dias antes, eu achava que ele não existia.
– Me parece uma ideia incrível – ele nem tentou disfarçar a ironia no
seu tom –, especialmente quando Cinaéd fica à nordeste, e estamos andando
para o sul.
Olhei em volta buscando a posição do sol. Eu sabia que era um pouco
depois de meio dia, mas sem uma bússola não seria capaz de discernir o
leste do oeste, ainda mais com as montanhas cada vez mais impetuosas a
nossa volta.
– O que isso quer dizer, sr. Sabe Tudo?
– Eu não sei tudo, minha estimada rainha. Esse é o seu papel,
aparentemente. – Dax deixou uma parte satisfeita de seus dentes
aparecerem e desceu até meu ouvido para sussurrar. – Mas há sinais ao
nosso redor que são claros, como a posição das sombras das árvores, a
silhueta das montanhas e a direção do vento. Tudo à nossa volta é apenas
uma página de um livro esperando ser escrito. A magia pode ter te
escolhido Luna, mas ela é um recurso que pode ser acessado.
Seu hálito era doce e quente contra minha nuca e um arrepio desceu
pela minha espinha, contrastando com o frio anormal que nos envolvia. Dax
buscou uma pedra cinza, translúcida e brilhante no seu bolso e a colocou na
minha frente.
– Iter – ele disse com uma precisão que poderia rasgar sua garganta.
As pequenas reentrâncias do cristal reluziram e, vindo da luz prateada, um
mapa do nosso mundo conhecido apareceu diante dos meus olhos.
Dax manuseou o instrumento e cada detalhe estava ali. O Carvalho de
Prata, o palácio de Montecorp, a densa Floresta do Oblívio, uma cadeia
montanhosa gelada e o vulcão de Cinaéd.
– É um mapa? – Eu já tinha feito perguntas idiotas, mas essa
definitivamente era a vencedora.
– É um armazenador de mapas. Ao menos do que é conhecido pelos
livros. Essa pedra é feita da rocha prima, extraída do centro da terra. Nós
conseguimos ativar a sua memória e registrar informações geológicas nela.
Mas só podemos inserir o que já sabemos, ela não possui consciência
própria, senão a teríamos usado dentro da floresta.
– Foi assim que você me encontrou no Carvalho de Prata no festival da
Lua Azul?
– Não. – Uma sombra passou pelo seu rosto. – Eu apenas te segui.
– Ainda não acredito que você criou um GPS. – Minha voz estava
incrédula, e os olhos assustadoramente arregalados.
– Supondo que um GPS seja um armazenador de mapas, sim, minha
rainha. E esse ponto esbranquiçado – ele apontou para uma parte da cadeia
montanhosa – somos nós.
Meu sorriso logo desapareceu diante do que via.
Isso fazia sentido. Não estávamos indo em direção a terra do fogo, mas
em direção às Montanhas Profundas. Uma região não explorada, livre de
estradas, reinos ou distritos.
Eu podia ser uma rainha, mas não sabia nada sobre meu próprio
mundo. Ou sobre as maravilhas que se escondiam ali. E aparentemente não
sabia em quem podia confiar.
– Isso quer dizer que...
Ele passou o polegar sobre a pedra – imagino que para desativá-la – e
assumiu as rédeas da Noite sobre minhas mãos.
– Que estamos nos distanciando cada vez mais de Montecorp e de
Cinaéd, então não sei onde nossos novos companheiros de viagem
realmente pretendem nos levar. – Dax olhou por cima da minha cabeça
como se analisasse os movimentos dos cavalos a nossa frente. – Talvez o
herdeiro do dragão não esteja no Reino de Fogo e eles saibam de algo que
não estão compartilhando conosco. Talvez nós estejamos indo ao encontro
de Krotos, Niasar, ou sei lá qual fora da lei possa existir nessas terras
exiladas. Eu só tenho uma certeza.
Odiava quando ele estava certo. Detestava o receio de estar enganada.
Especialmente porque me sentia uma completa incompetente ao arriscar a
vida de todos em uma emboscada, mas como isso já havia acontecido, eu
torcia para que não se repetisse.
Eu estava angustiada, enrolando as pontas do meu cabelo como se isso
pudesse resolver algum dos meus problemas. Revirei os olhos, indignada
por sentir que estava mais longe do que nunca após ter tido a doce ilusão de
que estava prestes a completar minha jornada e voltar para casa. A gente
imagina um caminho, mas a vida improvisa. Faz planos que não te conta.
Pede licença poética e reescreve tudo aquilo que você imaginou.
Com sorte, para algo ainda mais fantástico, como um urso polar
usando um guarda-chuva pequeno e cor de rosa para se proteger de uma
chuva de limonada. Mas a sorte não sorria para mim com frequência.
– O que Dax? – finalmente perguntei. – O que você tem certeza?
– Você fica desnecessariamente linda quando está irritada.
– Desnecessariamente? – a voz saiu de mim aguda e indignada. – O
que isso quer dizer?
– Se você não sabe, eu não vou te falar.
Mordisquei o lábio inferior, incrédula. Em um momento eu queria
chorar de raiva e frustração e, no outro, queria gargalhar. Não percebi que
acabei inclinando no seu peito, respirando fundo para me acalmar – ou para
sentir seu perfume de carvalho e mistérios.
– Você quer ser mais um segredo para minha coleção interminável de
mistérios?
– Presuma que eu sempre quero, Luna. – Seu olhar estava cravado no
meu como um diamante em uma joia preciosa.
E podia ser o balanço suave da cavalgada, o frio que parecia atravessar
as camadas de tecido que eu vestia ou os olhos amendoados de Dax
estudando meus lábios como se calculasse todos os meus movimentos
possíveis, mas virei para frente, fitando a paisagem a nossa volta me
sentindo uma completa idiota.
E talvez não adiantasse esperar por um momento perfeito, pois a vida
nos dava muito poucos e o melhor caminho seria aceitar uma história
repleta de imperfeições, mas desejei que ele pudesse ler minha mente.
– Por que você me desafia o tempo todo? – As palavras saíram como
um suspiro. Um pedido.
– Porque você é incrível quando concordam com você...mas quando
você é provocada? – Ele deixou uma risada espontânea escapar como se
precisasse dela para respirar, e meu coração perdeu uma batida. – Você é
inacreditável.
E eu queria contar para ele sobre como conheci Blaze. Queria que
entendesse o motivo para confiar em alguém que estava mentindo para nós,
mas a parada brusca que Noite fez quebrou o momento.
Ouvi o galope adiante e ao olhar para frente vi Blaze voltando pela
trilha estreita para falar conosco. Eu não fazia ideia de que ele se distanciara
de Zoey e Molly, mas pelo olhar apreensivo em seu rosto fechado, eu sabia
que não era porque havia encontrado um oásis com piscinas termais.
– O que você viu? – perguntou Molly. A natural alegria da sua voz não
estava em lugar algum a vista.
– Temos companhia – Blaze respondeu secamente.
– Quem? – Dax cortou, claramente tenso. Possivelmente, por mais de
um motivo agora.
– Ainda não posso afirmar, mas há sinais nessa trilha. – Ele se virou
para sua velha amiga. – Preciso de você para avaliar os rastros que
encontrei, Molly.
– Então vamos juntos – Dax declarou, saltando da Noite. Ele me
ajudou a descer da égua, e assim que me colocou no chão passou o polegar
no meu rosto. – Não desafie ninguém para um duelo até eu voltar.
– Não posso prometer – tentei brincar, mas, pela expressão em seus
rostos, continuei preocupada.
Capítulo 11
Luna

Dax tomou a liderança andando na direção da qual Blaze viera , como se


soubesse o caminho que deveria trilhar. Parecia o dia que o conheci no
palácio, a mesma autoconfiança, o mesmo ar nobre, ainda que insistisse que
não pertencia à corte.
Molly o seguiu, e Blaze entregou as rédeas do seu cavalo para Zoey
assentindo com a cabeça, agradecendo.
Os três partiram, deixando Zoey e eu para amarrar os três animais e
aguardar o seu retorno. A espada de Krotos estava junto aos meus pertences
e, mesmo com o ombro dolorido, fiquei feliz que nenhum deles questionou
minha capacidade de nos defender em alguma eventualidade.
Após alguns minutos acomodando os cavalos perto dos galhos
retorcidos das árvores ao nosso redor, busquei duas maçãs na bolsa e
entreguei uma para minha amiga. Uma brisa fria nos envolvia agora que
estávamos paradas junto ao chão. Eu pensei que a mudança de clima era
graças ao desequilíbrio na magia, mas agora sabia que só estávamos em
uma região gelada. Me aconcheguei na capa preta com o braço esquerdo
que não estava ferido. O céu seguia cinzento e melancólico, e nem os
pássaros se davam ao trabalho de cantar mais do que o necessário por ali.
Apreensão tomava conta do meu coração com a expectativa de saber o
que Dax, Molly e Blaze descobririam, mas Zoey parecia fascinada ao
analisar a silhueta pontuda da cadeia montanhosa acima de nós. E, por
algum motivo, olhar para ela me acalmou um pouco também. Algumas
pessoas simplesmente possuem uma energia leve que faz o mundo melhor
só de estar perto dela.
– Estamos nas Montanhas Profundas. Quem diria que chegaríamos tão
longe? – Quebrei o silêncio, que não era comum ao lado de Zoey. Me
pergunto o que teria mudado nela.
– Eu poderia me acostumar com isso, sabe, Luna – Zoey disse,
observando longamente a fruta vermelha antes de dar uma grande mordida.
Depois, limpou um pouco do suco que tinha escorrido pelo seu rosto.
– Com maçãs?
– Também – ela riu –, mas eu estava falando dessa paisagem.
– Não sabia que você era apaixonada por montanhas.
– Não são as montanhas especificamente, mas... com a mudança. Estar
um dia em um lugar, e em outro no próximo amanhecer. É como se cada
esquina guardasse uma história desinteressante demais para se tornar lenda
e, ainda assim, um universo próprio.
“Eu não sabia que o mundo podia ter tantas texturas. Digo, até sabia,
só que nunca imaginei que tudo teria outro sabor, outro cheiro quando eu
experimentasse. – Ela girou a maçã em seus dedos, desviando o olhar entre
mim e ela. – E sei que saímos de Montecorp pelos piores motivos, sei que
Molly e Dax provavelmente não voltarão com boas notícias... mas espero
que não fique triste comigo por ter uma parte de mim que fica deslumbrada
com nossa jornada.”
– Eu jamais me ressentiria de você Zoey. Nunca, nunquinha. É
impossível. – Sorri ao fitar seus olhos castanhos, e ver seu rosto se
iluminando com minhas palavras. Eu podia ser descendente da lua, mas
Zoey era o próprio sol. – Muito menos por tirar o melhor de cada situação.
– Suspirei e peguei uma maçã para mim com a mão direita, sem pensar.
Meu ombro fisgou com o movimento, mas não disse nada sobre e
completei: – Mesmo que não saiba para onde estamos indo.
– Acho que a caminhada é mais importante que o destino.
– Se encontrarmos o herdeiro de Bólius na caminhada, tudo bem por
mim. Aliás, Molly lhe disse para onde estamos indo exatamente?
– Ela disse que estamos indo a um lugar seguro. Algum refúgio dos
habitantes do reino de fogo, que fica nessas montanhas. Mas ainda não
conheço suas lendas, ou suas histórias. – Zoey hesitou, titubeando nas
palavras. – Só sei que confio nela, Luna. Acha que isso é loucura?
Deixei uma risada escapar, que poderia ser um ronco.
– Logo eu, jamais pensaria isso, Zoey. Confio em Blaze por motivos
que... não sei como explicar.
– Acho que ele gosta de você – minha amiga disse com naturalidade e
sorriu ao morder a maçã.
Era ridículo, mas senti um frio na barriga. Uma ponta de esperança
ameaçou acender uma faísca no reservatório de dinamite que eu guardava
dentro de mim. Eu não perguntaria por quê. Talvez Molly tivesse dito algo.
Talvez Zoey tivesse ouvido alguma coisa que escapou de mim. Mas eu não
precisava saber. Não tinha por que insistir nisso.
Eu estaria só procurando formas de me frustrar.
Seria melhor ficar calada.
– Por que você acha isso? – perguntei.
Tarde demais.
– Ele arriscou a vida dele para te salvar. E, bom, você confiou em mim
sem me conhecer, e eu já gostava de você. Faz sentido, não é?
– Confiei em você porque você me ofereceu ajuda em um momento
em que eu desesperadamente precisava. Eu era a rainha, todos em
Montecorp “gostavam” de mim. Ou fingiam bem o bastante. – As memórias
das vezes em que Caleb mentiu deliberadamente para mim vieram à tona.
Antes de transferir a Coroa à Peribelle, eu tinha contas a acertar.
–Você é a rainha, Luna. Mas eu só soube disso depois, lembra?
Primeiro eu quis ajudar a garota que apareceu ferida na minha frente. Jurei
lealdade a você antes de saber com quem eu falava. E Blaze se comportou
como um aliado na mesma situação, isso é um bom sinal. Assim como
Molly. – Zoey continuava a girar a maçã pelo cabinho para lá e para cá com
a ponta dos dedos, e murmurou: – O que acha dela?
Olhei os cachos de Zoey flutuando como uma aura, o cálido vento
agora um pouco mais forte assobiando entre nós. O seu olhar suplicante
parecia aguardar algum tipo de aprovação.
– Você é melhor avaliando caráter do que eu, Zoey, então sugiro que
confie no seu coração mais do que em mim... Mas Molly parece ser
divertida, alegre e inteligente. Sabe fazer panquecas com quase nada. São
qualidades valiosas.
– E ela mordisca o lábio quando está trançando o cabelo.
– Você reparou nisso? – indaguei, curiosa, analisando o olhar distante
da minha amiga.
– Como eu não notaria? – ela suspirou.
– Zoey, o que você não está me contando?
Ela pegou a palma da minha mão e colocou sobre a dela. Observou
fixamente, como se enxergasse algo que só ela podia ver. Não sabia se ela
lia o futuro ou algo assim, mas pelo deslumbre em sua face, parecia ser algo
bom.
– Cores invisíveis aparecem para mim agora, Luna – ela declarou
como se dissesse que o sol acabara de nascer, mas que a lua também
permanecia no céu. Eu sorri enquanto repetia a frase na minha mente. Sua
mão macia virava meus dedos para cima e para baixo.
– Isso parece maravilhoso, mas não entendo – olhei em seus olhos que
agora encaravam os meus.
– Eu também não entendo.
Eu sabia como era ter coisas que não podia explicar, então não insisti.
– Se quiser um dia, podemos não entender juntas. – Eu sorri. Ela
também. – Agora vou dar essa maçã para Noite... Acho que ela vai ficar
feliz.
Zoey se levantou logo depois de mim, agitou algumas folhas secas
presas em sua capa verde e caminhou ao meu lado até os três cavalos.
Olhei para Noite, encostei minha testa na sua. Senti sua respiração
quente e calma contra minha pele, seu cheiro de natureza e aventuras. Sua
pelagem preta brilhava mesmo no dia nublado. Cocei suas bochechas e
entreguei metade da minha maçã para ela, que comeu imediatamente.
– Maçãs e cenouras são suas comidas favoritas, Noite adora quando
você a paparica – Zoey comentou, enquanto partia uma outra maçã ao meio
para os outros dois cavalos. Ela caminhou até o cavalo marrom e acarinhou
seu pescoço antes de ele comer a fruta. – Trovão prefere cubos de açúcar,
mas já conversamos como essa não é uma dieta saudável, não é mesmo? –
ela perguntou para o cavalo.
– Não sabia que o nome dele era Trovão – comentei, juntando as
sobrancelhas.
– Ele não é de falar muito, não se preocupa. Raio, por outro lado –
Zoey andou para perto do cavalo branco, lhe deu a maçã e complementou –,
tem opiniões até demais.
– Os cavalos têm opiniões? – Eu estava positivamente incrédula,
curiosa e fascinada.
– Como disse, até demais. – Zoey deu de ombros.
– Você descobriu isso como?
– Ué, conversando com eles, Luna. Achei que você conversava com a
Noite o tempo todo, pelo tanto que ela fala bem de você.
– A Noite fala bem de mim? – Podia jurar que meu coração se liquefez
um pouco.
– Luna – Zoey riu –, você é engraçada.
– Você pode até ficar surpresa, mas não é todo mundo que se comunica
com animais, Zoey. Na verdade, eu não sabia que isso era possível.
– Diz a pessoa que se comunica com plantas.
– É diferente – retruquei.
– Não tanto – ela rebateu, cantarolando.
Olhei no fundo dos olhos da Noite, e me pareceu um pouco bobo
perguntar algo para minha égua e esperar uma resposta de verdade. Então
toquei no seu rosto e murmurei para meu querido animal:
– Eu falo bem de você também, Noite.
E podia ser só meu coração buscando lacunas que concordavam com o
que queria acreditar, mas senti sua felicidade em resposta. De uma forma
parecida com a maneira que eu sentia minha magia: como uma troca de
energia. Exceto que perceber a conexão que existia entre mim e ela, não me
drenava. Mas alimentava.
Me perguntei quantas fontes de magia existiriam no mundo, e quais eu
poderia acessar se prestasse atenção o suficiente. Se não me distraísse com
o que não era de fato importante.
Caminhei até a bolsa que estava amarrada no seu dorso, acarinhando
sua crina enquanto andava. Na lateral da égua, estavam nossos suprimentos,
algumas mudas de roupa, a espada de Krotos... e meu violino.
Eu deveria saber se tivesse quebrado. Se meu sonho teria sido adiado
mais uma vez. Pensei sobre a forma que o violino ressoaria na acústica das
montanhas. Se atrairia ou intimidaria as bestas que viviam ali. Só era
preciso tatear a bolsa de couro vegetal que Violeta havia me entregado e eu
saberia se o instrumento estava inteiro.
Era ridículo ter coragem para enfrentar um dragão e uma Imperatriz
ancestral, e ainda assim sentir medo de ver um instrumento quebrado.
Mas não era como se saber fosse o suficiente para não sentir. Juntei
meus dedos em um punho, minhas palmas suavam frio ao finalmente
levantar os braços na sua direção.
Toquei na superfície macia, sentindo o tecido gelado nas minhas mãos,
porém, antes que pudesse inspecioná-lo, ouvi passos ao longe. Não hesitei
ao pegar a espada, mas meu braço direito pesava com a torção. Zoey subira
no cavalo branco – Raio, como havia aprendido minutos atrás – e estava
preparada para qualquer que fosse meu comando.
De alguma forma, eu sabia que não eram nossos aliados. De olhos
abertos eu não enxergava o que se aproximava, e com o ombro dolorido eu
não duraria muitos minutos em um combate corpo a corpo. Ainda mais sem
treinar há anos, eu estava fora de forma.
Exceto que agora uma nova força corria por mim. Algo que exigia
tudo do meu espírito, mas muito pouco da arma que estava empunhada em
minha mão. Fechei os olhos e procurei sentir. O som rápido de que algo se
aproximava era evidente, então com os pés fincados na terra tentei perceber
o que era.
Se eu podia sentir o que crescia na terra, e se o coração das montanhas
pulsava junto ao meu, talvez eu pudesse ser como a Rocha Prima de Dax.
Talvez, a terra me dissesse algo.
Apertei meus olhos com força, respirei fundo e soltei o ar
dolorosamente devagar. Me tornei cada pedra, raiz e folha ainda presa na
árvore, e foi como se irrompesse do próprio chão, o desenho da energia de
cada elemento vivo.
Eu sorri ao ver que o que se aproximava não era uma ameaça. Pelo
contrário.
Abri os olhos e sinalizei com a cabeça para Zoey descer. Busquei um
pedaço de carne seca na bolsa, guardei a espada e caminhei alguns passos à
frente.
Uma raposa vermelha, com olhos castanhos e a cauda negra se
aproximou de nós. Ela reluzia como uma pequena fogueira macia e peluda.
Coloquei a comida na minha frente e Zoey se ajoelhou ao meu lado. Ela
sorria como se pudesse ocupar todo o rosto com os dentes brilhantes.
– Oi, garota. Se perdeu aqui? – Zoey perguntou. Se a raposa
respondeu, eu não saberia dizer. Mas depois de pouco tempo, o bastante
para o animal se alimentar e cheirar nossas mãos, minha amiga falou de
novo. – É claro que você pode ficar conosco.
– Você acabou de adotar uma raposa?
– Não, uma raposa acabou de adotar a gente – Zoey declarou,
arriscando alguns carinhos na cabeça dela. Prendi meus lábios e também
toquei em seu pelo macio.
– De onde veio a raposa? – A voz de Molly era espirituosa e
esganiçada, enquanto ela corria na nossa direção e se ajoelhava na frente do
animal. – Ainda bem que você estava aqui, a gente precisava de uma boa
notícia – ela murmurou ao animal.
Atrás dela, Dax e Blaze pareciam desnorteados e preocupados. E eu
sabia que não era por causa da nova mascote do grupo.
– Acho que Volpe estava nos seguindo há um tempo – disse Zoey, para
Molly.
– Quem diabos é “Volpe”? – ela perguntou.
– A raposa, já disse! – respondeu minha amiga entre seus cachinhos
selvagens.
– O que vocês encontraram na trilha, afinal? – perguntei, engolindo em
seco. O ar parecia ainda mais frio pelas minhas narinas agora.
– Luna, não sei como te dizer isso... mas ela está de volta. – Dax
caminhou até mim e segurou minha mão. E pelo seu olhar, me preparei para
as más notícias.
Capítulo 12
Luna

– Você podia deixar o suspense para os livros. É bem desagradável


quando você não vai direto ao ponto na vida real. “Ela” quem, Dax?
– A princípio eu quis acreditar que estava errado, mas o eco espectral
que analisei não deixou dúvidas. A forma em que as plantas estavam
decompostas na trilha e as marcas no chão não poderiam ser feitas por nada
composto de matéria. Eu sinto muito, muito por isso, Luna. – Ele apertou
com força meus dedos, seus olhos suplicavam por algo que eu não entendia.
– A Sombra. – Sua voz era seca, incrédula e desprovida de esperança.
As memórias de ser atacada pelo feitiço nefasto no templo de Argrinis
voltaram. A dor de ter o espírito ferido ainda pulsava como uma cicatriz e
não era difícil saber que ela ainda estava ali. Mas a Sombra havia se
dissipado. O unicórnio tinha me curado. Eu não acreditava no que estava
acontecendo.
Não queria acreditar.
– Como isso é possível? – A frase morreu nos meus lábios.
Ele balançou a cabeça, não querendo continuar a explicação.
– Devia haver algum resquício de material que usei no feitiço ainda no
meu laboratório. Meu pai deve ter ativado o encanto, não seria a primeira
vez que isso acontece. – Dax olhou para onde o colar com a pedra de fogo
estava, escondido contra meu peito.
Meu coração afundou ao rever sua escolha de palavras na minha
mente.
– Você? Você fez o feitiço daquela... daquela coisa?! – Eu estava
gritando. Sabia que Caleb havia me traído, me banido para outra dimensão
e me amaldiçoado para guardar um poder que não era meu por direito. Mas
Dax? Eu jamais esperaria que ele tivesse compactuado com o pai.
Até quando eu insistiria em confiar cegamente nas pessoas? Até ficar
cega? Até ver o mundo sucumbir às cinzas?
Dax fugira comigo, e tinha cuidado dos meus ferimentos. Não me
admirava que ele soubesse exatamente como estabilizar meu estado frágil,
uma vez que já sabia com o que estava trabalhando. Mas ele havia lutado
por mim. Pelos Deuses, nós havíamos dividido a mesma cama. E ele, desde
o início, só queria o meu fim.
Um riso triste escapou dos meus lábios ao fitar a súplica falsa em seus
olhos, o sabor do arrependimento pairando entre nós como o aroma pútrido
de carniça.
– Você sempre disse que era complicado viver quando toda hora
alguém diferente quer me matar... Eu só não esperava que você fosse uma
dessas pessoas, Dax.
– Luna, pelos deuses, eu nunca faria mal a você. Você deveria saber
disso a essa altura – ele implorou, dando um passo na minha direção. Eu
recuei.
– E você fez aquele feitiço para que, Dax? Para que a sombra dançasse
valsa comigo? Para que ela espalhasse amor e confete por todo o glorioso
Reino de Montecorp? Você acha que eu te subestimo ou que eu sou burra?
Você sabia o que estava fazendo!
– Eu não sabia que era contra você! Meu pai me incumbia de cuidar de
algumas ameaças ao reino, e eu cumpria as ordens cegamente.
– Para alguém que não se encaixa na corte, você age igual a eles. – A
amargura da minha voz doía. – Até mesmo porque você escolheu não me
contar que foi o responsável pela Sombra. E agora, olha só! Ela está atrás
de mim de novo. Será que vamos ter sorte de encontrar outro unicórnio nas
Montanhas de Deus-Me-Livre quando ela me atacar?
Lágrimas corriam pelo meu rosto e eu não enxergava nada à minha
volta. Tudo era um borrão, um pesadelo do qual eu queria acordar. Tentei
limpar os olhos em um reflexo, mas meu ombro fisgou com o movimento, o
que me deixou ainda mais frustrada.
– Luna, nem em um milhão de anos vou deixar você ser atacada
novamente, eu te prometo. – Dax falou cada palavra pausadamente, sua
indiferença não estava em nenhum lugar a vista. – Se ela se aproximar de
você, não há cura. Nem mesmo com um milagre. Ela partiria a sua alma, de
uma só vez – ele confessou.
– E você realmente quer que eu acredite que você fez esse feitiço sem
saber que estava mexendo com um poder que não deveria ser acessível para
nós? Essa magia é das trevas – aleguei, andando em círculos como um
planeta que esqueceu da própria órbita.
– Você começou a mexer com magia ontem, não deveria julgar as
diferentes fontes de energia desse mundo. Eu voltei por você, te salvei, e
vou com você até o fim do mundo. Até a gente voltar para casa, Luna.
– Um palácio lotado de assassinos e memórias mortas raramente é o
que eu chamo de lar – declarei, sussurrando e amarga. Ainda assim,
esperançosa. – Você ao menos desconfiava que o feitiço era endereçado a
mim?
Encarei Dax no fundo de seus olhos. Ele não queria me responder, pois
sabia que o que iria falar, destruiria tudo que tinha entre nós.
– Eu fui atrás de você no Carvalho de Prata e te acompanhei pelo túnel
para ter certeza de que estaria segura. Eu desconfiei, porém me esqueci que
a Sombra poderia agir no templo. – Uma lágrima escorreu do seu olho, sua
expressão era séria, beirando o desespero... mas eu não sabia se tinha
espaço para perdoá-lo em mim. – Meu erro foi acreditar que você estava
segura e te deixar sozinha por alguns instantes.
Então ele sabia que tinha uma chance de eu ser o alvo. Ainda assim,
essa não foi a parte que mais doeu.
– Não, Dax. Seu erro foi não ter me contado quando teve a chance.
Me virei de costas e andei furiosa até Noite, desfazendo o nó que a
prendia à árvore.
– Aonde você vai? – Dax perguntou.
– Não devo satisfação a ninguém, tampouco aos meus traidores –
declarei sem um pingo de calor.
Olhei para Zoey, Molly e Blaze, que nos encaravam atônitos e
desconfortáveis. Nenhum deles ousou se intrometer na conversa, o único
lado bom dessa situação.
– Alguém tem algo mais para confessar, agora que estamos
compartilhando más notícias e mentiras antigas? – perguntei, ignorando
meus olhos inchados e meu estado fragilizado. Subi na minha égua e
encaixei os pés na cela. Não me importava mais com a dor no meu ombro
naquele momento, aquilo não era a pior que estava sentindo.
Blaze e Molly nos observavam à distância, atentos.
– Você conjurou aquilo que deixa rastro de morte e decomposição por
onde passa? – Blaze perguntou irado para Dax.
– Você chegou agora na história, não tente fingir que se importa – Dax
cortou. A raiva entre eles irradiava fogo e torpor.
– Vamos todos parar de fingir que somos sinceros e que nos
importamos. Cada um de vocês tem seu próprio interesse nessa jornada.
Melhor viajarmos separados então – falei com pesar olhando Dax e Blaze, e
me voltei para Zoey – Você quer vir comigo?
Seus olhos estavam cheios d’água e ela segurou no braço do
alquimista, lhe dando conforto e olhando a palma de sua mão, assim como
havia feito comigo. Enquanto eu desabava, ela escolheu defendê-lo. Mesmo
sabendo que ver o melhor em tudo era parte da sua natureza, eu estava
ferida demais para compreender. Para tentar entender o seu ponto de vista.
Zoey fitou Blaze e Molly por um longo tempo, buscando algo que eu não
sabia explicar. Eu não queria fazer nenhum esforço para me desapegar da
raiva e frustração que sentia, sua intensidade me entregava uma forma
estranha de poder, e eu preferia me agarrar a isso do que sucumbir diante
da dor da traição.
– Luna, acho que isso foi um mal-entendido. Sim, cada um de nós tem
uma vontade no coração, mas nossa prioridade é te ajudar. Esse é o pior
momento para nos separarmos, acredite em mim! Imagino o que está
sentindo, mas Dax não quis te fazer mal. Não tenho como te explicar, mas
eu sei disso.
– Mas eu não tenho como saber. – E eu realmente não tinha. Eu queria,
pela Deusa de Prata, eu queria que nada disso fosse verdade.
E, sem esperar seus comentários, toquei no tronco da árvore ao meu
lado e deixei a magia fluir pelas minhas veias. A raiva que me partia por
dentro, de alguma forma me dava coragem para fugir dali. Me dava forças.
Eu poderia usar as asas que meus antepassados tanto falavam naquele
momento. Eu queria estar longe dali, em outra dimensão. Em um lugar onde
a única traição possível é o seu pai comer o pedaço de lasanha que você
guardou na geladeira.
Eu era feliz e não sabia. Ou sabia, mas não dei o devido valor.
Abri meus olhos, sentindo o cansaço pesando no meu peito, e busquei
algumas frutinhas para colocar na boca. As engoli sem mastigar, o que foi
quase impossível com o nó violento que estava na minha garganta.
Diante de mim, uma ponte de galhos e vinhas ia até o topo da
montanha.
– Vamos, Noite.
Imediatamente, minha égua subiu os degraus e começou a correr pela
construção mágica que eu tinha feito. O ar cada vez mais frio cortava
levemente meu rosto, mas a pedra em meu peito pulsava como se fosse um
pequeno vulcão hibernando. Era um gesto insano, mas a cada passo que
Noite dava eu retraia a ponte atrás de nós. Não queria ser seguida. Não
queria ter que lidar com Dax, com Krotos ou com ninguém naquele
momento.
A montanha era mais alta do que eu esperava, mas a cada instante a
vista ficava ainda mais deslumbrante. Acima do dia nublado, como se o sol
tivesse desistido de brilhar, estava um céu pálido e azul. Estava minha tão
familiar solidão.
Quando Noite chegou em terra firme, era como se a ponte atrás de nós
nunca tivesse existido. Usei o restante de magia que havia em mim para
criar uma cobertura, assim minha égua e eu não seríamos atingidas pelo
frio.
No momento em que os pensamentos já eram altos demais para que eu
suportasse, busquei meu violino e o abri de uma vez só para ver seu estado.
E assim que coloquei meus olhos nele, desabei ajoelhada no chão e
comecei a chorar.
Capítulo 13
Luna

Não importa o quanto desejamos negar um fato desagradável, no fundo, o


coração sempre conhece a verdade. Eu sabia que o violino estaria quebrado
desde que a maldita armadilha nos capturou. Ouvi um estalo nas minhas
costas no momento em que a rede nos prendeu e ainda assim, vê-lo com o
braço partido era real demais. Eu queria gritar, mas travei o som na minha
garganta, atravessado como uma flecha. Queria jogar o instrumento no chão
e terminar de destruí-lo, já que não merecia usá-lo. Queria abraçá-lo e pedir
desculpas por não ter cuidado bem dele, mesmo que fosse um gesto inútil.
Coloquei a mão sobre a boca sentindo fios cálidos de lágrimas quentes
contra minha pele fria, e o juntei próximo ao meu peito. Apertei-o como se
isso pudesse consertá-lo. Ele era feito de madeira, quem sabe minha magia
poderia ter algum efeito de reparação. E por mais que sentisse meu poder
saindo de mim e estivesse tentando encontrar alguma similaridade com o
material em minhas mãos, tudo o que tinha era um instrumento rachado em
dois. Assim como eu. A imperatriz consorte Violeta estava certa, ele era
dolorosamente feito para mim.
Olhei com atenção para o desenho entalhado na mão do violino, que
ela havia feito: um triângulo equilátero com a ponta para cima e, dentro
dele, uma lua crescente. Ela me disse que esse seria meu destino, a chave de
todos os meus sonhos e, por um instante, acreditei.
Era quase um hábito ruim, insistir que tudo ficaria bem mesmo quando
a vida deixava claro que o desafio maior sempre estaria à minha frente. Mas
agora parecia que estava por toda parte: me visitando do passado, do
presente e do futuro. Eu era uma piada para o tempo, uma peça perdida no
universo que tentava ligar vidas demais em uma só. E não só a minha
própria existência, mas também toda a história de Montecorp, Cinaéd e
Ellioras. De alguma forma, eu estava em todos os lugares, e em lugar
nenhum. Possuía tudo e não era dona de nada.
O vento frio assobiou um som agudo, parecido ao que já tinha
escutado há muito tempo, quando a gema de fogo veio ao meu pescoço.
Toquei sua superfície, acarinhei suas arestas mornas e tentei me lembrar do
que Zoey dizia sobre o vento. Sobre como ele contava histórias na língua
que existia antes de todos os seres acharem que sabiam um pouco mais do
que os outros ao seu redor. Da mesma forma que entendi Peribelle quando
nos conhecemos, e que falei com a terra para que os arbustos crescessem,
senti que havia uma mensagem codificada ali. Algo que eu precisava saber
e rápido.
Beijei a mão do violino, onde o símbolo repousava, e o guardei com
todo o cuidado junto à bolsa presa em Noite. Minha égua encostou a cabeça
na minha com um toque suave, que retribui com carinho.
O assobio agora parecia mais forte, mais frio, mais urgente.
– Você o ouve também, Noite? – murmurei. Ela deu pequenos passos
para um lado e para outro, inquieta.
Tirei os fios de cabelos errantes do rosto e os prendi em um coque
improvisado. A temperatura caia rápido no topo da montanha. Tínhamos
alguns metros de terreno liso à nossa volta, com uma visão ampla do que
acontecia lá embaixo. O vulcão de Cinaéd não era alto, mas era impossível
de passar despercebido. O único ponto vermelho era o mais longe que meus
olhos podiam ver. Uma estrada cinzenta e sinuosa parecia morrer quando
seu caminho mesclava com o território tenebroso do Reino de Fogo. A
Estrada das Cinzas, assumi. Em paralelo, o que entendi ser a Via do Fogo se
estendia como uma linha reta e bege até o centro da montanha de lava.
Nunca vi Cinaéd no seu auge, o território estava em ruínas desde a
primeira vez que pisei nele, consumido por décadas de guerra e destruição.
Engoli em seco perante os flashes de lembranças das poucas batalhas que
participei: a fumaça queimando meus olhos, o cheiro de carne podre, a
força necessária para cravar uma espada no corpo de outra pessoa e o som
abafado que a lâmina fazia ao ser arrancada coberta de sangue e
arrependimento. Foi ali que meu cabelo prateado ficou entre o tom de rosa e
vermelho pálido, como se Argrinis retirasse seu chamado, ou como se a
morte me convocasse como emissária.
Suspirei, caminhando com cuidado pela beirada do território tentando
seguir a direção do vento o melhor que podia. Mordisquei os lábios,
procurando algo que deveria chamar minha atenção, e comecei a questionar
por que eu havia subido para o topo de uma montanha. Lunara Alexandria
Montecorp, como você vai descer daí agora?
Quase sorri diante da memória da minha mãe, rainha Ella Montecorp,
que dizia a mesma coisa quando eu me aventurava alguns galhos acima no
Sagrado Carvalho de Prata. Eu era apenas uma criança que gostava de subir
em árvores, mas claramente esse lado da minha personalidade longínqua
havia aflorado de forma exagerada. Eu tinha quase certeza de que minha
magia estava esgotada depois de ter invocado uma ponte para ficar o mais
longe possível de Dax.
Não podia simplesmente encará-lo depois de tudo que vivemos juntos
e aceitar que ele escondeu de mim que foi o autor do feitiço responsável por
ferir meu espírito – que certamente estava a caminho para terminar o que
tinha começado. Eu só esperava conseguir encontrar o herdeiro perdido e
reparar o erro dos meus antepassados antes que isso acontecesse.
Eu queria que Zoey tivesse ficado ao meu lado, que ela – mais do que
qualquer outra pessoa – entendesse a gravidade do que ele fez, mas não foi
isso o que aconteceu. E talvez fosse melhor ficar sozinha agora.
Caminhei inquieta em círculos perto de Noite, tentando entender os
sinais à minha volta, decodificar mensagens invisíveis e descobrir o que
fazer em seguida. Pelos deuses, eu larguei Blaze e Molly para trás sem
pensar como os quatro se relacionariam. Eu amava mistérios, amava
decifrá-los – era uma das qualidades que Amon mais admirava em mim –,
mas estava farta deles. Eles não revelavam onde iríamos, como se o que
estávamos fazendo fosse uma brincadeira de férias, e não que nossos
destinos estivessem em jogo. Bati o pé no chão, detestando estar cercada de
pessoas teimosas. Detestando em parte, ser uma pessoa teimosa e não ter
alternativa a não ser ficar perto de mim mesma.
O vento soprou mais forte, e comecei a ficar preocupada com eles.
Com o que estariam fazendo ou pensando. Dificilmente teriam partido sem
mim, e subir aqui seria incrivelmente perigoso para eles. Eu teria que
descer, mas havia destruído o caminho que criei.
Tentei enxergá-los, mas não conseguia do ângulo que estava no topo
da montanha. Via apenas a estrutura rochosa e majestosa de onde estava, e
os cipós destruídos da minha ponte, que desapareciam com a neblina fina.
Observei mais ao longe, inquieta com a certeza de que tinha deixado
algo passar. Sentia uma urgência chamando minha atenção, e xinguei as
nuvens por não conseguir enxergar com clareza.
Comi algumas frutinhas que tinha na minha capa, fechei os olhos,
coloquei as mãos no chão e me concentrei. Zoey disse que via cores
invisíveis; talvez o invisível estivesse se manifestando para nós.
Novamente, me tornei cada parte da montanha, senti suas depressões e seus
ápices. Percebi o desenho de cada caminho existente à minha volta e
precisei me esforçar para focar e encontrar o que eu realmente precisava.
Podia sentir Dax, Zoey, Molly, Blaze, Volpe, Raio e Trovão ainda no
mesmo local, e precisei procurar mais fundo para encontrar o que o vento
queria me mostrar. Meu peito doía como se estivesse pressionado, mas
puxei a conexão com a terra exalando lentamente o ar nos meus pulmões. O
ar gelado que eu inspirava me ajudava a manter o equilíbrio.
A pedra de fogo pulsava como um coração próprio no meu peito e
deixei o seu poder fluir por mim pela primeira vez. Permiti que alimentasse
minha magia escassa e lhe dei boas-vindas, como a um velho amigo que
você conhece apenas por cartas e finalmente encontra na vida real.
Sua presença nas minhas veias acelerou meu sangue como se a
adrenalina pudesse ser feita de fogo e estrelas. O poder da semente de fogo
era maior do que tudo que havia sentido, talvez por ser uma fonte própria de
magia e não uma bênção, como o que Argrinis me dera.
A pedra havia sido tomada à força, mas parecia ter me escolhido
agora, de alguma forma. Concentrei, tentando não me distrair com a
curiosidade involuntária que nascia em mim, querendo entender essa magia
que tinha uma natureza tão diferente da minha. A magia da lua era como
uma teia conectada de vida, e a do dragão era como um pulsar hipnótico. Os
dois juntos eram quase demais para o meu corpo.
Com ela, entendi que parte desse território também era lava: a mistura
de terra e fogo. Eu podia perceber além dos meus sentidos e por isso meu
peito se retorceu quando vi o que o vento insistia em me avisar.
– Merda! – xinguei, corroída com instantânea preocupação ao perceber
a energia pútrida que se aproximava.
Em breve, não estaríamos mais sozinhos nas Montanhas Profundas.
Krotos e sei lá quantos capangas seguiam nossos rastros.
Eles não demorariam a chegar, e eu não sabia como avisar aos meus
amigos que eles estavam em perigo. Não sabia como descer do topo da
montanha, e não tinha muito tempo para encontrar uma solução onde todos
nós saíssemos vivos e ilesos.
Eu poderia ficar o quão irada com Dax quanto eu quisesse. Mas antes
iria salvar a vida daquele desgraçado. Assim como ele fez comigo tantas
vezes, depois de tentar me matar.
Capítulo 14
Zoey

Luna, não!
Ela não me deu tempo o bastante para que explicasse por que defendi
Dax, e assim que a vi cavalgando pelo ar, um misto de admiração e
arrependimento me tomou. Eu não deveria tê-la deixado fugir sozinha. Não
enquanto seu coração estava partido. O espectro em volta da rainha de
Montecorp ficara cinza, tal qual os dias desolados em que o reino viveu sem
ela. Volpe estava sentada entre minhas pernas, suas orelhas abaixadas.
A montanha parecia subir até acima das nuvens, e já havia perdido
Lunara de vista quando voltei a ouvir vozes ao meu lado.
– E, por um momento, achei que vocês estavam juntos – Blaze
murmurou, jogando o cabelo cacheado para trás com as mãos –, mas, pelo
que entendi, você fez um feitiço para assassiná-la... – Seu tom era irônico,
mas eu sabia que tinha fúria ali. Sua aura reverberava entre o vinho e
vermelho intenso.
– Você não a conhece, não finja que se importa. Nada do que ouviu é
da sua conta – Dax bravejou, apontando o dedo no rosto de Blaze. Azul
marinho e vinho revezavam em sua silhueta, como o ódio e arrependimento
valsando uma canção doentia.
Blaze fitou o fundo dos olhos do meu amigo, e vi o ruivo do seu
cabelo o envolvendo por completo de forma etérea. Roxo subia como
fumaça entre eles. Blaze desceu o dedo de Dax enquanto falava com um
sorriso debochado:
– Conheço o suficiente para saber que jamais seria capaz de fazer mal
algum a ela. Então eu não dou a mínima para o que você pensa, Dax. Tudo
isso agora é estritamente da minha conta, e se você não gostar, chore
durante seu sono.
Era ódio o que vi nos olhos de Dax, e essa vibração que vi crescer ao
seu redor, como se expandisse, desesperada por libertação. Fechei minhas
mãos por impulso, e dei um passo para a direita, mais perto de Molly, que
analisava alguns destroços da ponte caídos no chão. Agachei ao seu lado,
suplicando com os olhos, aquele não era o lugar nem o momento para um
conflito entre nós. Não quando a minha rainha estava sozinha no topo de
uma montanha, enquanto um ser espectral estava a caminho para matá-la.
Luna... Eu a amava, mas se isolar em uma situação assim foi uma das
coisas mais idiotas que ela já fez. Tinha saudades de quando ela desafiava a
realeza para um duelo. Eu quase sorri ao pensar em um duelo entre ela e
Dax. Quase.
– Molly, eu acalmo Dax e você o Blaze. Ok? – sussurrei em seu
ouvido, enquanto o vento insistia em zunir.
– Vamos logo, antes que eles se beijem. – Molly bateu a poeira das
mãos e me encarou com seus olhos surrealmente verdes, analisando as
linhas de tensão no meu rosto. – Fica tranquila, lindinha. Blaze só parte
para ação quando deixa a ironia de lado... Ela ainda é sua arma favorita.
– Você tem certeza que tá tentando me acalmar? – perguntei, um pouco
mais preocupada.
– Não, estou tentando fazer você sorrir. Parece que o sol apaga quando
você fica séria.
Um sorriso, que era mais uma fungada, escapou de mim, e franzi a
testa olhando para o dia cada vez mais cinzento e nublado.
– Acho que o sol está apagado há uns dias.
– Preciso discordar, Zoey – Molly declarou, dando de ombros ao se
levantar. – Blaze, tive uma ideia para sairmos daqui e resgatar a princesinha
da torre em que ela mesma se enfiou – ela gritou, andando na direção deles
como se discutisse sobre o ponto de ebulição da água. Ou alguma outra
coisa complexa e irrelevante.
Tentei me levantar em um pulo, mas acabei caindo sentada no chão. A
raposa chegou seu focinho perto dos meus cachos dourados, que pairavam
em frente aos meus olhos, e sem planejar o que dizer ao meu amigo, apenas
berrei contra a crescente ventania:
– Dax! Preciso que você veja isso! – Ver o que, Zoey? Por Argrinis, eu
não sabia mentir. Precisava de alguma verdade forte o suficiente para tirar
seu foco da raiva que o consumia.
Busquei ao meu redor qualquer coisa plausível e minimamente
interessante. Nada parecia relevante o bastante. Eu teria que improvisar.
Mentir era diferente de improvisar, certo? Talvez eu fosse boa no
improviso. Descobriria em alguns instantes.
– O chão está tremendo! – exclamei, movida por puro de desespero. O
chão não estava tremendo, estava estático como uma rocha.
Ou não.
Meu corpo notou antes da minha mente que, de fato, alguma coisa não
estava sólida sob nossos pés. Algo que poderia ser confundindo com um
estômago roncando, mas rochas não tinham estômago.
Em parte, era um alívio. Não gostaria de ser devorada por um gigante
de pedra.
Zoey, isso não era uma boa notícia. Terremotos não eram uma boa
notícia. Principalmente quando Luna estava no topo da montanha,
completamente sozinha.
– O que tá acontecendo nessa mer... – Dax praguejou ao estender a
mão para me ajudar a levantar.
– A sombra que você conjurou para matar a Luna faz esse tipo de
coisa? – perguntei, esbaforida.
– Porra, Zoey, eu não tentei matá-la! – Dax soltou minha mão, irado.
Azul marinho intenso fluía por ele.
– Responde a pergunta, só isso – o apressei.
– Não – ele soltou em um suspiro. – Seja lá o que está acontecendo, é
outra coisa. Parece que tem um exército vindo na nossa direção – o
alquimista complementou.
– Não precisa de um exército para ressoar pela cadeia das montanhas.
A própria geologia do lugar amplifica os sons e os passos de quem pretende
chamar atenção e intimidar sua presa – Molly revelou.
– Estão atrás de Volpe? – interroguei. O que essa raposa pode ter feito?
– A presa é outra criatura de “pelo vermelho”, Zoey – Blaze interferiu.
– No caso, eu e nossa amiga lá em cima.
Krotos estava nos seguindo? Eu mal consegui vê-lo graças a proteção
que Luna colocou sobre nós. Mas vi suas cores vibrando como o sol do
meio-dia. Verde pantanoso e amaldiçoado emanava dele. Procurei pelos
meus arredores, mas só via as montanhas cinzentas, as árvores ressecadas e
alguns poucos arbustos que insistiam em tentar colorir a paisagem
esquecida pelos deuses.
Eu precisava olhar além.
Portanto, fechei os olhos. E o vento estava ali. Inquieto, persistente e
mensageiro.
Podia ver a aura dos meus companheiros de viagem, o dourado
iluminado de Volpe e de Raio e Trovão. Virei de costas, em direção ao
caminho do qual viemos – não porque o enxergava, mas porque, de alguma
forma, nosso rastro estava ali. Como se deixássemos um eco de energia por
onde andávamos. Me perguntei se era isso que Krotos usava como rastro
para nos alcançar.
E diante das curvas das montanhas e do tronco fosco das árvores, eu
sabia que ele e sua laia se aproximavam, ainda que estivessem distantes.
Sabia que o chão tremia de tal forma que ameaçava partir,
transformando a montanha em um vale.
Sabia que tínhamos pouco tempo, e que estávamos em desvantagem
numérica.
Mas por algum motivo estúpido, eu também sabia que podia ter
esperança. Não iríamos morrer ali, não agora. Não quando havia tanto para
esclarecer e realizar. Não quando eu tinha acabado de fazer amizade com
uma raposa.
Minhas prioridades não eram as melhores do mundo, mas meu coração
parecia estar no lugar certo – só apontando para a direção errada.
Procurar por Krotos era mirar na perdição. Virei para meus amigos,
complexos e desarranjados, e soube que estávamos assim pois faltava nosso
elo. No topo da montanha, ela reluzia como a própria lua cheia, sua aura
prateada irradiando em meus olhos fechados como se brilhasse no céu a
noite.
O vento soprou mais forte, ainda que tenha entendido sua mensagem
de forma tardia. Não deveríamos ir para longe da montanha que ameaçava
se partir, mas em direção a ela.
A cadeia montanhosa esculpida pelo tempo, pela chuva e pelo vento.
Mas a fenda e o caminho que se abriam diante dos meus olhos eram obras
dela.
– Venham comigo! – Corri em direção à passagem no centro da
montanha, que surgia como se tivéssemos permissão para passar. – Molly,
pegue Raio e Trovão – bradei. – Volpe, você vem comigo, anda!
A raposa passou debaixo das minhas pernas e correu para o infinito
escuro diante de meus olhos.
– Vão ficar aí só olhando? – gritei para Blaze e Dax, que tinham suas
espadas em mãos.
– Não sei se gosto muito da sua versão irreverente, Zoey. – Dax
comentou enquanto corria em direção a passagem.
– Não vou roubar o posto de “petulante” do grupo, fica tranquilo. –
Pisquei para ele.
– Onde você aprendeu essa palavra? – ele provocou.
– Você não é o único que se interessa por semântica – declarei. –
Blaze, anda logo!
Blaze jogou o conteúdo de um cantil no chão, perto da passagem onde
estávamos para o interior da montanha. O cheiro de licor subiu pelas
minhas narinas, suave graças ao vento. Em um estalar de dedos, o chão
estava pegando fogo.
– Isso deve atrasá-los – ele declarou, caminhando para o interior
estreito da montanha como se fosse seu dono.
– Um incêndio na floresta é a melhor forma de resolver alguma coisa?
– perguntei, irritada com toda a vida selvagem que poderia ser perdida ali.
– Uma coisa que aprendi por experiência própria é que eles pertencem
ao antigo reino de fogo, mas temem o elemento. Acham que medo é poder,
mas não o encaram de verdade. – Blaze declarou, passando à frente no
grupo.
Não vi ao certo quem acendeu uma tocha e uma escadaria improvisada
apareceu ali. Era escuro, mas o teto alto trazia algum acalento. Volpe me
tranquilizou ao dizer que dificilmente alguma criatura seria prejudicada
pelo fogo e que nada nem muito vivo, nem muito morto, passava por ali.
A presença de Molly logo atrás de mim era reconfortante. Já
estávamos andando há vários minutos, quando finalmente percebi a luz
prateada, junto ao som galopante.
Luna estava montada em Noite, seus olhos pareciam inchados, como
se tivesse passado a noite toda chorando – ou se esforçando além da conta,
o que era a opção mais óbvia. Até porque não anoitecera, por mais que
estivesse consideravelmente escuro.
– Vamos precisar chegar seja-lá-aonde-for por aqui. Acho que você vai
precisar me contar o caminho afinal, Blaze.
– Luna, a gente precisa conver... – Dax começou.
– Não, não precisamos. – A rainha respirou fundo. – Ok, precisamos.
Mas eu não quero, e não sei se vou querer por um bom tempo.
Ela insistia que não havia nascido para reinar, mas seu tom e sua
postura diziam o contrário. Não conseguiria pensar em alguém mais
decidido.
– Vamos descansar aqui e continuaremos amanhã pela manhã... – Luna
ponderou, claramente exausta, descendo da égua que se mesclava com a
paisagem (ou a falta dela) ao redor. – Ou quem acordar primeiro, acorda os
outros e vamos, tanto faz. E alguém faça uma fogueira, não quero que
ninguém vire um picolé.
– O que é um picolé? – perguntou Molly.
– Deixa pra lá – a rainha suspirou balançando a cabeça. Ela caminhou
até Noite, acarinhou seu focinho e a bolsa onde guardava seu violino. Sua
aura prateada parecia cinzenta. Melancólica.
O silêncio da montanha parecia maior agora, sem o vento para
preencher as lacunas das conversas não ditas.
Capítulo 15
Blaze

Se eu fizesse uma lista com todas as coisas impossíveis que eu poderia


cogitar, uma passagem pelo centro da montanha certamente estaria no topo.
Luna tinha a expressão dura, escondendo o claro desolamento que sentia.
Eu seguia ao seu lado, impotente em uma situação em que não sabia como
ajudar. Mantive uma distância segura de Dax, com a certeza de que um dos
dois sairia machucado se o confrontasse. E, por mais que a violência
pudesse aliviar minha raiva, Molly estava certa. Em alguns momentos uma
trégua forçada era o melhor para todos.
Não tinha me preparado para uma viagem em um lugar onde não teria
como repor água ou comida, então estava guardando mantimentos para
quando fosse extremamente necessário. Minha garganta estava seca, mas já
havia sobrevivido em condições piores.
– Vamos seguir mais alguns quilômetros para esquerda até chegarmos
– murmurei pela segunda vez. Havia duas horas que Luna caminhava diante
da rocha sólida, girando os pulsos e contraindo os dedos, a dança para uma
música inexistente que abria passagem de alguns metros a cada passo. –
Você precisa descansar, ou vai desmaiar.
– Eu sei o quanto aguento, não precisa se preocupar comigo – ela
respondeu com a voz rouca.
– Já te disseram o quanto é teimosa?
– Algumas vezes, mas nunca adiantou. – Luna deu de ombros. – Fique
um pouco mais para trás, está me distraindo.
Foi tudo que disse ao fechar os olhos com força, e assim ela seguiu por
mais uma hora, até finalmente ficar ofegante. Suor escorria por sua testa e
seu pescoço parecia estar arrepiado mesmo com o calor da tocha que eu
carregava próxima o bastante para aquecê-la. Voltei a luz para o chão e vi
manchas de sangue seguindo seus passos. Ela estava descalça caminhando
sobre as pedras ásperas.
Finquei a tocha no chão e as chamas projetaram nossas sombras no
alto das paredes.
– Vamos parar aqui – falei para ninguém em especial, já tirando a
bolsa com suprimentos do meu ombro para a próxima refeição.
– Podemos parar mais adiante – Luna declarou, visivelmente cansada
demais para uma discussão enérgica. Eu já sabia que ela não se renderia à
lógica, então recorri a emoção.
– Tenho certeza de que Zoey e Molly estão cansadas. – Olhei para elas
e franzi o cenho, direcionando a atenção para o sangue no chão.
– Eu queria parar um pouco, se pudermos – Zoey falou imediatamente,
seguida por Molly.
– Posso preparar algo gostoso para comermos.
Dax não disse nada, apenas se sentou no chão com os joelhos
próximos a cabeça. Não ouvia sua voz desde que entramos na passagem.
Luna apenas assentiu e encostou na parede, dobrando os joelhos
devagar até chegar no chão, dedilhando algo em sua túnica. Me juntei à ela,
o aroma de suor, terra e algo familiar me envolvia – arbustos cítricos e
labaredas.
– Eu quero saber por que está descalça? – sussurrei. Ela ficou em
silêncio alguns instantes para responder, como se precisasse de forças para
falar.
– Amplifica a conexão, chegaremos mais rápido assim.
– Eu prefiro demorar um ano inteiro do que ver você se autoflagelando
pelo caminho. Será que podemos continuar assim?
– Eu agradeço a preocupação, mas não está doendo tanto assim. Está...
suportável.
– Pelos deuses, Luna. Você já está sangrando e claramente está
pegando alguma infecção. – Toquei na sua testa, e percebi que fervia. – Está
ardendo em febre.
– Só preciso descansar uns minutinhos, depois a gente continua. – Sua
voz doce estava tão fraca que provocou um nó em minha garganta.
– Ninguém vai achar que você é menos poderosa só porque está
exausta, sabia?
– Eu posso ser teimosa, mas você não precisa ser sarcástico.
– Eu não fui... – Merda, era impossível convencer essa garota de
alguma coisa. Passei a mão no cabelo já imundo, e olhei para ela. Os lábios
secos e sem cor, olhos fundos, as bochechas intensamente vermelhas.
Peguei meu cantil, tirei a tampa e o estendi para ela. O aroma da água quase
me fez salivar. – Toma isso aqui.
– Esse é seu, não quero que fique sem...
Revirei os olhos e o levei com cuidado até sua boca. Assim que as
primeiras gotas tocaram seus lábios, Luna recebeu a água com goles fartos
que escorriam por seu rosto, mas se conteve em poucos segundos,
lembrando da escassez e do nosso longo caminho pela frente.
– Você não é a única que sabe ser teimosa – brinquei, e um meio
sorriso despontou no seu rosto.
– Você não é teimoso, é autoritário. É diferente.
Toquei no seu rosto levemente úmido, tão macio sob meus dedos ainda
que uma camada empoeirada do subterrâneo cobrisse todos nós.
– Pode ser. Isso significa que você vai se alimentar e descansar antes
de irmos a qualquer lugar.
– Faz sentido cuidar da pessoa que pode tirar você de debaixo da terra.
– E também tem aquela promessa de um tesouro, se eu entendi certo.
– E eu achando que você era zeloso graças a pureza do seu coração –
ela debochou, mas recostou no meu ombro com um pequeno sorriso. Senti a
pressão da sua cabeça contra mim e era um martírio não a envolver. Ela só
estava gloriosamente exausta e precisava de uma superfície mais macia para
dormir do que as pedras a nossa volta. Eu não abusaria da confiança que ela
cegamente depositava em mim.
– Não aposte na pureza do coração de ninguém. Esse tipo de coisa não
existe – zombei.
E ainda assim, contemplando as pegadas sangrentas a minha frente, eu
queria acreditar na pureza do dela. Talvez um coração de ouro pudesse valer
mais do que qualquer tesouro.
Capítulo 16
Dax

Há dois dias nenhuma palavra era pronunciada por mim. Estou imerso em
demasia nos pensamentos que moldam minha atual realidade.
– Eu diria que se você continuar sem falar nada, vai sufocar na própria
mente. – A voz baixa de Zoey insistia mais uma vez.
Era a terceira vez hoje. Fitei seus olhos castanhos contra a pouca luz
no subterrâneo. Luna e Blaze estavam mais à frente, murmurando algo que
eu não compreendia, provavelmente sobre o caminho que ela abria perante
nós. Possivelmente sobre algum assunto que me deixaria profundamente
irado.
Zoey, impaciente, pegou a minha mão. Um gesto que percebi que ela
ponderara nas últimas intervenções, e eu desviei do toque.
– Deixa eu tentar uma coisa! – ela pediu, e algo no seu tom curioso e
preocupado me fez ceder.
Éramos os últimos da fila, e paramos subitamente enquanto ela
analisava nossas mãos se tocando. Eu conhecia aquele olhar. Sabia que
havia algo que ela não estava me contando.
– O que você está vendo? – sussurrei, meu desejo por conhecimento
sempre ganhando o melhor de mim.
– Ora, ora! Ele tem voz, afinal. Achei que Volpe tinha comido sua
língua.
Franzi a testa, e logo olhei para a raposa ao seu lado. Ela permanecia
junto à Zoey, e o grupo adiante seguia a caminhada com os cavalos sem se
importar se os acompanhávamos. Mas, de fato, não havia como nos
perdermos em linha reta.
– Você tem alguma intenção de me explicar o que está fazendo? –
indaguei, já sabendo a dinâmica da nossa relação: ela me provoca, e eu fico
irritado. Ela fala algo que fura toda lógica, mas que ainda assim faz sentido,
e eu lembro que Zoey é boa demais para esse mundo.
– Tenho alguma intenção, mas só se você se sentir disposto a se abrir. –
Zoey apertou minha mão com força, desviando o olhar para o meu rosto. –
Fala comigo, Dax.
– Eu jurava que você ia ficar do lado da sua rainha.
– Nossa rainha – ela enfatizou como se fosse importante. – Mas não...
Não acredito em lados. Eu só entendo vocês dois. Então você pode pular
para a parte na qual começa a desabafar, e eu vou para a parte que paro de
tagarelar e começo a te ouvir?
– Achei que você era a contadora de histórias do grupo – brinquei.
– Hoje é a sua vez. – Ela sorriu. – Me fala a verdade, Dax.
– Zoey, eu... Eu reviso cada um dos momentos em que obedeci às
ordens de meu pai, tentando em vão encontrar uma brecha do que eu
poderia ter feito de diferente.
“Tudo. A resposta é simples demais, e isso me incomoda.
“Eu deveria tê-lo enfrentado na primeira vez que ouvi minha mãe
suplicar pela sua integridade nas mãos dele. Não importava se tinha apenas
5 anos, Eleanor se levantou da cama imediatamente ao ouvir o estalo
abafado que rompeu o silêncio da noite. Não alto o bastante para atrair
atenção de algum soldado, mas o suficiente para despertar duas crianças
com o sono leve.
“Estávamos de mãos dadas, e os cabelos finos embaraçados da minha
irmã se prenderam nos meus dedos. Eu lhe disse para esperar, que nossa
mãe ficaria bem. Ouvi a voz baixa e grave de meu pai nítida como se
discursasse para um palanque:
‘Anna, aceite de uma vez, a rainha se foi. A glória de Montecorp
estava em suas mãos, mas agora, está na nossa. Nossa família poderá ter
tudo que sempre sonhamos, mas é primordial que você me obedeça como
seu marido e como membro do conselho real. Não coloque tudo a perder,
meu amor.’
“Sei que deveria ter ficado aliviado ao ouvir a voz fraca da minha mãe
responder ‘Sim, Caleb.’, mas foi revolta o que subiu pelas minhas veias.
Eleanor havia soltado minha mão, e espiava pela fresta, se esforçando para
abrir um pouco mais a gigantesca porta de madeira. Ela queria sair para ver
o que estava acontecendo pessoalmente. Buscar alguma certeza de que
estava tudo bem mesmo quando tudo apontava o contrário.
“A segurei com força, temendo que a ira do meu pai chegasse até
minha irmã, minha outra parte. Naquela época, éramos inseparáveis, como
nuvem e chuva. Calor e fogo. Raio e eletricidade. Éramos compostos da
mesma matéria, apesar de termos apresentações diferentes. E esse foi o
primeiro erro que cometi: quando não me juntei a ela e permiti que o
domínio autoritário de Sir Caleb Van Doren se instalasse na nossa casa. Foi
também a primeira vez que Eleanor me encarou com decepção. Ela não me
disse nada, mas eu sentia. Pelo que diziam, a magia abandonara Montecorp
, mas há algo entre gêmeos que transita dimensões. E é por isso que tenho
certeza de que foi naquela noite que começamos a nos separar.
“Um dia, meu pai ordenou que eu assumisse o laboratório, finalmente,
e encarregou Amon de treinar Eleanor para conter a derradeira queda do
reino. Dessa vez, ela nem tentou pedir minha ajuda. Ela sabia que eu não
enfrentaria meu pai e não a ajudaria a tomar um outro destino. Mas com as
fronteiras fechadas, e sendo filhos do cavaleiro da guarda real, que chance
teríamos contra o homem que mandava em Montecorp?
“Minha irmã não entendeu. Eu reprimi qualquer pensamento lógico,
não queria concordar com ela. Eleanor estava certa, nós estávamos
perdidos. E era tudo minha culpa. Eu queria que ela e minha mãe
estivessem a salvo, mas perdi todas as chances que tive de salvá-las.”
– Você era uma criança, o que poderia ter feito? – Zoey me abraçou
por um instante, e foi como se parte da dor se dissolvesse. Ela olhou por
cima dos ombros, e vi a extensão escura que se abrira entre nós e o restante
do grupo. – Vamos andando, não podemos ficar muito para trás.
– O ponto é que eu tentei salvar Luna. Quando percebi que havia uma
chance de a Sombra ter sido conjurada tendo ela como alvo, eu a procurei
por toda parte. Imaginei que o feitiço se dissiparia à meia-noite, que não
teria efeito no Templo de Prata. – Um riso frustrado escapou de mim. –
Nem preciso dizer que errei, mais uma vez.
– Você errou tentando fazer o certo.
– Não, errei tentando consertar o errado. E é por isso que sei que ela
nunca vai me perdoar.
– Se você acha que a Luna não é capaz de perdoar, não a conhece tão
bem.
O que Zoey havia dito era verdade. Eu não a conhecia. Não da forma
que gostaria, mesmo após dividir uma noite com ela tão próxima de mim. O
eco da sua viagem interdimensional estava marcado em sua pele como um
sinete, e o sabor do desconhecido me atraia mais do que qualquer outra
sensação que eu já tinha experimentado.
Eu nunca poderia conhecer todas as suas versões, ou saber de tudo que
ela era capaz. Isso me fascinava e me assustava. A rainha de Montecorp,
que eu cresci acreditando ser a glória do nosso reino, era muito mais do
que eu poderia suportar ou compreender. E por isso, eu a queria. Para tentar
ser parte de sua história, mesmo sabendo que, se tudo tivesse dado certo
para ela, nós jamais teríamos nos conhecido. Que talvez eu nem tivesse
nascido.
– Ela é capaz de tudo, Zoey – suspirei, o mais baixo que pude.
– E você, Dax? É capaz de esperar o tempo que ela precisa para te
ouvir? – Era sinceridade, e não julgamento nas palavras da minha amiga.
Zoey soltou minha mão, e só assim percebi que o seu toque me
reconfortava de uma forma que não sabia que precisava.
– Por ela? – Inclinei a cabeça para o lado, e quis sorrir ao vê-la
desfazendo sua longa trança rosada. A tocha que Blaze carregava iluminava
parcialmente o rosto de Luna, e fiquei aliviado ao ver que ela estava menos
abatida, como se estivesse aprendendo a suportar mais do próprio poder.
Como se não fosse mais um vaso de cristal tentando suportar chumbo, e
estivesse se tornando resistente como aço. Eu quis ter a impressão de que
ela nos ouvia, de que ela se importava com tudo que havia acabado de
dizer. Eu sabia que isso não era possível, mas o querer não conhece as
possibilidades. Ainda assim... – Eu esperaria todo o tempo do mundo, Zoey.
Aliás, você me deve uma explicação.
– Do que? – ela perguntou com os olhos arregalados e confusos.
– Vamos pular para a parte onde você se lembra que foi sobre todo o
lance de “mãos dadas” mais cedo?
– Ah! – Zoey exclamou um pouco alto demais, fazendo Volpe se agitar
entre suas pernas. Ela ajustou o tom de voz, antes que atraísse a atenção dos
outros. – Desde que visitamos Ellioras, eu vejo uma... luz. Uma cor, uma
vibração que emana dos seres vivos. No início imaginei que era porque a
magia voltou, mas depois de uns dias observando, é como se cada cor
tivesse um significado, entende? – ela murmurou, claramente segurando a
empolgação diante do fascínio que andava na corda bamba entre o
desconhecido e o conhecimento. Eu a compreendia totalmente.
– Você já começou a fazer anotações sobre isso?
– Eu poderia dizer que sim, mas não. – Ela abriu um sorriso orgulhoso
e bobo. – Mas percebi que quando as pessoas estão próximas, as cores se...
hum... misturam?
– Não faço ideia, nunca ouvi nada assim.
– Acho que “misturar” é uma boa explicação. Como se fossem tintas.
Mas ao invés de tintas, são emoções. Intenções. Vibrações.
– Você está me dizendo que pode transferir energia psíquica de um ser
vivo para outro? – Era inacreditável, mas depois de tudo que havia visto,
seria um tolo se curvasse os olhos diante de evidências.
– Não sei se é... “psíca”?
– Psí-qui-ca.
Ela acenou com a cabeça, satisfeita e continuou:
– Psíquica ou emocional. Eu estou dizendo que tenho ancestrais em
Ellioras, e que acho parte de uma magia primária, que já se perdeu do
mundo, ainda corre nas minhas veias. Como um resquício.
– Como uma faísca, Zoey. Você não deveria ter vindo conosco, deveria
ter ficado lá e estudado mais sobre seu poder.
– Estudar? – Ela jogou os cachos para trás do rosto. – Aprender
tentando e errando é mais divertido.
– Você está falando isso só para me irrit...
– Eu só estou falando isso para te irritar. – Ela me interrompeu, e nós
dois sorrimos. – Luna pode precisar de mim. Ellioras não vai a lugar
nenhum, tenho tempo para pesquisar e fazer anotações em qualquer outro
momento. Mas o agora só acontece agora. É a única verdade imutável.
– Não posso discordar de você.
– Primeira vez que ouço isso – ela declarou, estalando para Volpe que
tinha ficado um pouco para trás.
– Não se acostume – eu disse.
– Não pretendo.
– Você acha que vamos demorar muito ainda?
– Dax, eu vejo a energia das pessoas, não o futuro.
– Eu sou uma má influência para você, está ficando audaciosa demais
– declarei, e ela mostrou a língua em um gesto infantil. Me lembrou de
quando Eleanor e eu tínhamos momentos assim, com discussões sem
consequências.
Continuei caminhando atrás, mesmo quando Zoey se aproximou de
Molly, e a ausência que sentia da minha irmã começou a apertar no meu
peito. Não éramos mais tão próximos, mas eu jamais havia ficado tanto
tempo longe dela sem saber se ela estava bem. Sem vê-la para ter certeza de
que permanecia intocada. Eu temia o que meu pai estaria fazendo em
Montecorp, e que tipo de planos teria, agora que a rainha partira novamente.
Eu e Eleanor éramos como nuvem e chuva, e eu sabia que uma
tempestade acontecia.
Capítulo 17
Eleanor

Todas as vezes que fechava a porta do quarto dele e me despedia, eu


também me desfazia. Vivemos nas sombras, cultivamos silêncios mas, em
algum momento, eu acreditei que era por cuidado. Por amor. Eu podia ser
brilhante com números, mas claramente ainda era estúpida por ter
acreditado tantos anos que Dimas se importava comigo. Levou uma semana
até que eu finalmente desistisse de esperar que ele me procurasse e fosse até
seus aposentos.
Costumávamos desfrutar das horas roubadas longe dos olhares
curiosos da corte. Mas dessa vez, só se passaram alguns minutos. Breves
como a velocidade de uma flecha, que transforma integridade em
fragilidade de um instante para o outro.
O suficiente para que ele dissesse: “Não podemos ser vistos juntos,
ainda mais agora que você está noiva. O que Lorde Ian pensaria de mim?”
Dimas não perguntou se eu estava bem, após a agressão que meu pai
demonstrou diante dele. Não pareceu sentir tristeza ou ciúme por eu estar
prometida a outro homem. Não me acolheu, não me abraçou. Não se
importava o bastante para fingir. Dimas Franchot prezava apenas pela sua
reputação e por suas alianças.
Eu era apenas uma conveniência. Uma distração. Se suas intenções
fossem reais, ele teria se casado comigo há muito tempo. Mas eu não
deveria tê-lo questionado. Jamais estaria pronta para a resposta que ele
disparou quando indaguei, “Por que você não pediu a minha mão, meses
atrás, enquanto eu podia ser sua?”
Tola. Tola. Tola.
“Você já era minha. Quem sabe de quantos outros. Para fazer parte da
linhagem Franchot você deveria ser uma pretendente pura, querida
Eleanor.” Ele tocou meu cabelo, e eu me odiei por me inclinar em direção
ao seu toque, após tal declaração asquerosa. E quando eu acreditava que
meu coração não poderia ficar mais partido, ele se tornou pó ao ouvir suas
palavras finais: “Não fique tão preocupada, El. Eu sempre quis estar com
uma rainha. Ainda poderemos nos divertir. Assegure a coroa primeiro, e
depois voltamos as nossas brincadeiras.”
Engoli então as lágrimas e recuei. Meu silêncio era o clarão suspenso
de uma tempestade, mas para ele não faria diferença. Um rosto que não
demonstra emoções era uma máscara de segurança para andar pelo palácio
de prata sem levantar comentários. Desejei nunca ter me encantado por
Dimas, desejei não ter me humilhado perante a ele. Desejei não ter mais um
coração, nem orgulho para ser ferido.
Eu precisava estar em outro lugar, ou em lugar nenhum. E só havia um
local fora do tempo em que eu poderia me abrigar. O único onde não
levantaria questionamentos, tampouco recrutariam minha presença.
Os largos corredores do palácio reluziam como se feitos de luz. Vitrais
projetavam sombras coloridas pelas paredes, em nuances que nunca havia
visto. O retorno da rainha tinha, de alguma forma, devolvido a magia à
Montecorp. Isso estava ligado a ela e a benção de Argrinis. Não a mim.
Eu jamais poderia reinar.
Não era a escolhida de Argrinis. Nem de Ian. Nem de meu pai. Nem de
Dax.
De ninguém.
Engoli em seco quando percebi alguns membros da corte me fitando,
curiosos. Com um cumprimento breve, fiz o melhor para deixar meu rosto
neutro e segui até a sala do conselho. E, dentro do covil onde meu futuro
era predestinado, havia a biblioteca do Guardião das Palavras. Eu mal
entendia os enigmas de Amon, mas ele e Ayla eram os únicos com quem eu
podia contar em todo reino.
Atravessei o véu do infinito estrelado que dividia nossas dimensões, e
me vi cercada pelas dunas do tempo mais uma vez. Pilhas de livros se
amontoavam por toda parte, e era difícil determinar se era dia ou noite. Nos
aposentos de Amon, sempre era algo além. Uma suspensão, um suspiro.
Uma pausa.
Eu não entendia, e há anos já nem tentava. Ali eu me sentia em paz.
Ele era o meu tutor, e uma figura paterna mais acolhedora do que meu
próprio pai. Meu coração estava partido e eu não tinha a quem recorrer.
Minha mãe já se acostumara com o dela e eu não queria a mesma sina.
– Qual a resposta que você busca, jovem Eleanor? – sua voz
acolhedora ecoou pelo ar, enquanto seu imponente corpo de leão surgia do
céu escuro, caminhando com graciosidade pela areia fofa.
– Dessa vez, eu nem ao menos sei a pergunta, Amon. – Me sentei no
chão e segurei os joelhos juntos a minha testa enquanto as lágrimas furavam
o chão do deserto. – Eu só queria que parasse de doer.
– Quem é aquele imune à dor e ao júbilo?
Funguei, e levantei os olhos até a gema no centro de sua testa. Se o
encarasse diretamente nos olhos, enlouqueceria – mais ainda.
– Alguém sem coração?
– Ou alguém sem vida. Sua dor tem um nome. Uma face. Saiba o
nome e terá poder sobre ela.
Amon se deitou ao meu lado, mirando a fronteira entre o dia e a noite
em sua biblioteca. Recostei a cabeça na sua pelagem macia, e deixei meus
olhos relaxarem diante da linha imaginária que abrigava sol e lua. Céu azul
e estrelas prateadas.
Eu ainda não sabia decifrar enigmas, mas queria me decifrar. Queria
ter poder – se não sobre as adversidades que me eram impostas, que fosse
sobre mim mesma.
Ponderei. O que parecia ser uma dor pulsante que ecoava por todas as
partes do meu corpo, retraiu, e eu pude enxergar como se fossem espinhos
presos nas minhas partes mais sensíveis.
– E como eu descubro mil nomes ao mesmo tempo? – perguntei,
honestamente. Com a calma que apenas o desespero permite.
– Todos nós temos uma bússola interna, Eleanor. Para onde a sua está
apontando?
– Para um precipício? – Soltei um riso.
– Busque ouvir seu coração, não seus medos.
Ali, diante do infinito, fechei os olhos. Procurei o que havia de eterno
dentro de mim. O que existia antes de ser abandonada por todos que já tive
a infelicidade de amar.
– Solidão – murmurei, me sentando ereta, ainda de olhos fechados.
Agora com as pernas cruzadas, sentia como se flutuasse. – Eu nunca fui a
primeira opção para nada, nem ninguém.
– Ótimo, você descobriu onde está. Agora, para onde sua bússola
aponta?
Inspirei fundo, preenchendo meu pulmão, ainda deliciada pela
sensação de não ter o chão tocando minha pele. Não queria mais estar no
fundo do poço. Minha mente me levou até o centro da cidade, até as
plantações. A todos os lugares onde eu me encontrava com o povo de
Montecorp e me sentia acolhida. A magia não tinha me escolhido, mas as
pessoas dessa terra, sim.
Eu não tinha a benção de Argrinis, mas tinha o carinho do povo. O
pensamento de assumir a coroa me acalentava agora. A rainha partira
definitivamente, alguém precisaria assumir a liderança. Eu realmente
gostava daquelas famílias, tinha dedicado anos da minha vida aos seus
cuidados. A Coroa poderia me ajudar a mantê-los saudáveis, felizes. A
magia havia retornado, ela não partiria novamente. Não havia nada para me
preocupar. Ainda assim, medo engatinhava com suas garras no meu
pescoço.
Dimas havia deixado claro suas intenções mesmo que eu o amasse,
talvez o melhor caminho fosse analisar os pontos positivos de uma aliança
com Ian, um completo estranho o único que me defendeu de Sir Caleb Van
Doren.
Acho que sorri. Eu queria sorrir, mas estava sufocando. Não era o
destino que eu tinha escolhido, nem o que estava escrito, mas parecia
promissor.
– Ela aponta... – Engoli em seco. – Para o trono – confessei, cuspindo
as palavras ao abrir os olhos.
O semblante de Amon era indecifrável. Não sabia como minha
sinceridade poderia refletir na sua estima por mim.
– E como você se sente? – Não havia raiva, ironia ou julgamento em
suas palavras. Apenas dúvida.
Olhei para a incerteza que carregava em mim, e para as promessas de
felicidade que esse futuro me traria. Mais uma vez, fui sincera:
– Incompleta.
Amon assentiu, ponderando minhas palavras. Abracei os joelhos de
novo, mas virei a cabeça para a direita, observando as estrelas enquanto
minha cabeça era aquecida pelos raios de sol. Meu vestido verde escuro
estava com areia preso na barra do tecido, improvisando constelações.
– Você deve ir até onde está sua outra parte.
As palavras da esfinge ainda ecoavam, mesmo quando ela partiu de
volta ao deserto, me deixando ali sozinha.
Não, me deixando ali com meus pensamentos.
Em qual lugar eu havia partido? Dimas ainda tinha meu coração, mas
honestamente, eu só queria que ele implorasse perdão e se declarasse não
fazia tanta questão dele agora. Não pretendia me apaixonar nunca mais.
Meus pais nunca ganharam meu respeito, apenas minha obediência. Ayla e
Amon sempre foram bons para mim, os únicos que jamais me machucaram
na corte.
Só então percebi. Havia alguém que me quebrara muito antes, fazendo
com que eu crescesse tendo a solidão como sombra. Ele era a minha outra
parte, e doía o quanto eu sentia a falta da sua presença. Do nosso silêncio
confortável. Dos momentos em que conversávamos por pensamento.
Há um tipo de conexão que transcende qualquer outra: a que você tem
com seu irmão gêmeo.
Eu precisava saber onde Dax estava.
Capítulo 18
Luna

Depois de alguns dias abrindo o caminho pelo interior da montanha, a


escassez de água fincava minha pele e senti meus olhos arderem quando
finalmente respirei ar puro. Eu havia permanecido a maior parte do tempo
calada, usando toda minha concentração a fim de seguir as instruções de
Blaze com precisão. Tinha plena certeza que era o rubi preso em meu
pescoço que permitia tal esforço possível. Sem esse poder, eu facilmente
partiria em mil pedaços.
De certa forma foi terapêutico. Eu não precisava pensar na traição de
Dax, na minha jornada por terras desconhecidas, no meu violino quebrado.
Não fiquei atordoada com a proximidade de Blaze, apesar de uma parte de
mim achar que ele sabia minha verdadeira identidade. Talvez fosse por isso
que ele buscou me proteger, insistiu que eu calçasse os sapatos e vigiou
para que tivesse horas o bastante de descanso. Era nisso que eu queria
acreditar. Por Argrinis, seria tão bom ter alguém que pudesse entender o que
eu vivi, ter tido contato com o mundo, as músicas e a tecnologia que
conheci. Ou poderia ser puro egoísmo, e eu só queria alguém que
compreendesse a mesma perda.
E assim que a claridade atingiu meus olhos, os apertei com força. Não
sabia se era devido a luz intensa ou se era pura emoção por finalmente ter
deixado o subterrâneo. O ar gelado cortou minhas narinas, e quando
consegui ajustar a visão contra a luz do dia, vi que o sol estava próximo a se
pôr. Raios dourados se esticavam nos cumes das montanhas nevadas,
envolvendo o mundo em um manto dourado.
Volpe correu em direção a saída, e Zoey logo a seguiu, a persuadindo
para ficar próxima do grupo. A raposa podia entendê-la perfeitamente, mas
não se esforçava para obedecer. Uma pequena nascente repousava adiante,
oferecendo o refresco tão aguardado para nossas gargantas secas. Molly
pegou nossos cantis a fim de reabastecê-los, as últimas gotas em cada um
deles já tinha o sabor do próprio odre de couro.
– Eu falei que você ia gostar daqui – constatou Blaze, indo até a
nascente e deixando a água cair pelo seu rosto e pescoço. Ele parecia estar
sedento, e só então me dei conta que não o tinha visto beber ou comer quase
nada enquanto estava concentrada em nos tirar debaixo da montanha.
– Eu não disse ainda que gostei. E não sei onde é aqui. Você não fez a
gentileza de me explicar – respondi, o contrariando. Ele me encarou como
se portasse a chave para os meus segredos e soubesse disso.
– Eu fiz a gentileza de orientar o caminho.
– Realmente, eu só abri um túnel na montanha como se fosse uma
escavadeira.
– O que é uma escavadeira? – interveio Zoey.
– Me cobra essa depois de um banho, tá bem? – pedi tocando a ponta
dos seus dedos. Agora que finalmente podia, relaxar, percebi que estava
mais cansado do que tinha pensado,
– Bom, agora é minha vez de contribuir – disse Molly, com um sorriso
dando alguns passos animados à frente, após entregar o meu cantil. Sua
silhueta parecia encaixar no desenho dos picos longínquos. – Sejam bem-
vindos à minha terra natal. A Vila do Sol!
E podia ser pura sorte olhar para o céu e se ver sob um domo de ouro,
mas ao desviar a atenção para as ruelas tímidas que pareciam se estender
adiante, as pequenas construções de tijolos de pedra ao longe, a vegetação
verde que espreitava com flores selvagens na base da montanha... eu me
senti feliz. Não porque algo bom estava acontecendo comigo, mas porque
algo bom parecia acontecer logo ali. Tão ridiculamente perto.
Pisquei algumas vezes, para ter certeza de que não estava sonhando.
Busquei algumas frutinhas no meu bolso, já desejando profundamente um
gole de água fresca.
Meu olhar cruzou com Dax. Ele observava o céu com um misto de
fascínio e curiosidade, mas quando se virou na minha direção, eu desviei.
Queria estar pronta para conversar com ele. Para perdoá-lo. Mas
sinceramente, eu aceitaria uma boa noite de sono antes.
Segurei as rédeas da Noite, e caminhei ao seu lado, absorvendo o
encanto desse lugar escondido do mundo. Dax guiava Raio um pouco a
frente e Molly liderava enquanto Zoey guiava Trovão. Não vi Blaze em
lugar nenhum, até olhar para trás e vê-lo ajoelhado no estreito caminho que
cruzamos. Andei até ele sem hesitar.
– Sempre pensei que você era do tipo que anda na frente de todo
mundo – provoquei.
– Alguém tem que apagar nossos vestígios, princesa.
– Eu não sou uma princesa – rebati.
– Parece com uma. – Blaze levantou as sobrancelhas, como se
pretendesse continuar a frase, mas a interrompeu. Fingi que analisava o ar a
minha volta para desviar a atenção. Eu precisava ter foco, e ajudar a apagar
nossos rastros. Ainda assim, me sentia observada a cada momento. Uma
enigmática aura de posse e proteção.
– Acho melhor então fechar essa passagem que abri na montanha... –
Estendi as rédeas de Noite para ele, e me apressei até a saída do túnel.
– É a coisa mais sábia que você vai fazer hoje – ele declarou com um
riso que fazia parecer tudo tão óbvio e tão previsível. Eu não admitiria que
parte de mim achava charmoso.
Dei os últimos passos firmes até a base da montanha, concentrando a
energia da mesma forma que fizera nas últimas horas, em direção à rocha.
Essa fortaleza de pedras já era familiar para mim, e respondia ao fluxo do
meu encanto sem problemas. Havia um tempo em que fazer pequenas flores
crescerem exauria minha energia. Não mais. A passagem começou a se
fechar, e a admirei por um instante antes de fechar os olhos.
– E sabe qual foi a coisa menos sábia que fiz hoje? – comentei por
cima do ombro continuando a conversa, ainda de olhos fechados.
Achei que ele estaria mais distante, então quando suspirei ao retrair a
magia, pulei para trás e bati a cabeça na passagem fechada ao ver que Blaze
estava parado ao meu lado, imponente como se fizesse parte da montanha.
Deixei escapar um pequeno xingamento e levei a mão até a pancada, que
latejava.
Só que ele foi mais rápido e senti seu toque morno enquanto me
reestabelecia do susto.
– Acho que foi isso – ele brincou, tateando com cuidado a região que
havia machucado, e deu um passo diminuindo a distância entre nós. Eu
podia sentir sua respiração, apesar de ter certeza de que estava prendendo a
minha.
– Isso o que? – suspirei, percebendo que estava prendendo o ar.
– Bater com a cabeça em uma parede que acabou de criar. A coisa
menos sábia que você fez hoje. – O tempo parecia estar suspenso, e alguns
raios dourados de sol furavam seus cachos vermelhos despenteados. Seus
olhos correram pelo meu rosto, procurando algum detalhe que havia
esquecido. – Você parece distraída. A pancada foi forte, Luna? – Blaze
atiçou.
– Ah... Eu ia dizer que era ter começado essa conversa. – Fiz uma
careta apoiando uma das mãos sobre seu peito, mas não o empurrei. Apenas
senti por um instante o seu coração bater, um pouco mais forte e acelerado
do que esperava. Fiz menção de dar um passo para trás, mas já estava
contra a montanha.
– Adivinha qual a coisa menos sábia que eu gostaria de fazer hoje? –
Ele manteve o toque suave entre as mechas do meu cabelo, certificando de
que não era nada grave, enquanto corria a atenção por mim de um jeito me
intrigava.
– Eu quero saber? – a pergunta era genuína.
Blaze desceu a mão até minha nuca, deslizando o polegar para cima e
para baixo por um instante curto demais.
– Não, princesa. Não quer.

Molly nos guiou por estreitas escadarias de pedra improvisadas, e senti


que estava descendo até o coração da montanha onde o vale guardava a Vila
do Sol como um segredo. No centro do vilarejo, ao contrário do chafariz de
Montecorp, aqui havia uma grande fogueira. Alguns homens e mulheres de
cabelos castanhos, loiros e ruivos ajeitavam a lenha no centro, se
preparando para acendê-la. Mesmo com a proximidade do verão, a região
era naturalmente gelada, mas aquele era o povo do reino de fogo. Os
sobreviventes da guerra causada pelos meus antepassados. Ainda que
soubesse disso, o que eu podia perceber era um vilarejo com uma vida
simples e tranquila.
Lampiões brilhavam nas paredes das construções, oferecendo luz e um
pouco mais de calor agora que o lilás começava a pintar o céu, e que a brisa
morna convidava a neve que beijava as estrelas ao chão que pisávamos.
Puxei minha capa junto à minha nuca, o eco do toque de Blaze ainda estava
presente. Do que ele estaria falando mais cedo?
Cocei a bochecha de Noite, e estava repetindo o movimento em Raio e
Trovão quando Molly fez um gesto para esperarmos.
– Vou encontrar camas macias para dormimos hoje, esperem aqui um
pouco – ela declarou, com um sorriso oculto na voz.
– Achei que você gostava de acampar – comentei, franzindo a testa.
– Eu gosto – ela ponderou com as mãos e puxou a trança para frente. –
Mas Amelia reclamaria até ficar rouca se soubesse que optei por dormir no
sereno ao invés de ir para casa.
– Amelia não precisa de motivos para ser brutalmente rude com
alguém – completou Blaze. Ele passou o braço até o ombro de Molly com
intimidade e sorriu para ela. – Saudades de casa?
– Eu adoraria dizer que sim – ela murmurou.
– Também querem te matar onde você cresceu? – brinquei, mas a
verdade é que estava incomodada. Não com a proximidade entre os dois,
mas... Blaze se lembrava do que tinha vivido com ela. E eu queria isso. Só
isso. Alguém para dividir as mesmas memórias, será que era pedir demais?
– Quase isso, Luna. – Molly piscou para mim. – Eu deixo você tirar
suas próprias conclusões quando conhecê-la, mas preciso explicar por que
trouxe pessoas de fora para cá. De novo. Eu já volto.
Molly se adiantou, olhando para o céu como se o horário fosse algo
importante, e eu acenei. Zoey a observava caminhar, e a cutuquei com o
cotovelo, sussurrando dentre seus cachinhos:
– Vai.
– Ela pediu para esperar aqui, Luna.
– E eu sou sua rainha. Vai com ela – insisti, com um gesto discreto
com a cabeça.
– Você não pode usar esse argumento com tudo – ela cantarolou.
– Mas com isso, posso.
Os cachos de Zoey desenhavam sua silhueta enquanto a vi trilhar os
passos de Molly. Volpe a seguiu e eu amarrei os cavalos em uma árvore
para andar em volta da praça.
Certamente, essas pessoas não recebiam muitos visitantes. Muito
menos membros da realeza que tinham no histórico pessoal os antepassados
que dizimaram seu território. Eu sabia que não seria bem-vinda se
soubessem minha verdadeira identidade, mas o reconforto de estar em um
lugar tão lindo, tão cercado de vida preenchia partes do meu coração que eu
não sabia que havia perdido.
Eu sonhava em ser a Rainha da Paz mas, pela primeira vez, a via com
meus próprios olhos. Sentia seu cheiro de lavanda, geada e nozes. A ouvia
em conversas distantes e risonhas, junto à melodia longínqua de flautas e
cordas, em algum lugar não tão longe. Eu tive o impulso de... de me juntar
a eles. A verdade é que ser impulsiva estava na minha natureza tanto – ou
mais – que a magia. Só que dessa vez, não era para salvar alguém, para
reparar algum dano, para propor um duelo. Era simplesmente, porque a
ideia me fazia feliz. E há muito tempo eu não era motivada por algo que
traria unicamente felicidade. Isso não era importante, tampouco,
prioridade... mas ali, naquele crepúsculo, naquela vila vigiada pelas
montanhas, naquele instante, eu me permiti desfrutar do momento.
Algumas mesas com cadeiras de ferro moldado estavam do lado de
fora do que imaginei serem pequenos bistrôs. Vasos de flores vermelhas,
roxas e azuis pendiam das sacadas dos andares acima, e suas folhas se
estendiam quase até o solo. Pontos coloridos pareciam enfeitar a lateral de
cada casa como confetes em um festival.
No fim da rua, um casal de cabelos castanho avermelhado caminhava
de mãos dadas. Uma senhora de pele oliva com alguns fios de cabelos
brancos deixou uma outra casa e ajeitou seus óculos para ativar a chama de
seu lampião externo. Ouvi risadas de um trio de crianças que brincava com
bolinhas no chão, sentadas em frente do que julguei ser uma padaria, devido
ao aroma quente que corria da janela. Imediatamente meu estômago
respondeu, quase implorando por um pedaço de pão fresco com manteiga.
Ou qualquer outra coisa que não tivesse gosto de bolsa de viagem.
As luzes pequeninas seguiam por ruas sinuosas até perder de vista as
construções de pedra que faziam da Vila do Sol o lar dessas pessoas. Os
refugiados de Cinaéd estavam aqui desde quando a guerra começara? Será
que esse recanto fora criado após a queda de Bólius, ou só depois da
ascensão de Niasar?
Não importava. Blaze, sem querer, estava certo. O herdeiro do dragão
poderia ser qualquer um à minha volta. Mas seria justo interromper sua vida
pacífica com todas as notícias que eu estava trazendo? Bom, não era uma
decisão minha. Eu tinha a responsabilidade de devolver aquilo que não me
pertencia. Se o herdeiro quisesse usar a gema como peso de papel, estava
além do meu poder.
Toquei no rubi de fogo por baixo da capa, entendendo por que a
semente elemental havia emprestado sua magia para mim nos últimos dias.
Assim como eu, ela também ansiava em voltar para casa. Eu já havia
descoberto qual era a dela. Só precisava desvendar qual era a minha.
Mas antes... um banho. Na manhã seguinte eu encontraria o herdeiro,
devolveria a gema e voltaria à Montecorp. E uma vez que a coroa estivesse
com Peribelle, eu encontraria um lugar para pertencer.
Era o plano perfeito.
É claro que estava fadado a dar errado.
Capítulo 19
Molly

Eu não deveria me surpreender por ver tudo exatamente igual. Os mesmos


tijolos nas mesmas paredes das mesmas ruas estreitas que guardam a Vila
do Sol e todos que vivem ali. Os poucos no mundo afora que sabem da
nossa existência já estão velhos demais para se lembrar da localização, ou
não se importam o bastante para passar nosso segredo adiante.
Respirei fundo, apreciando o aroma gelado de eucalipto, violetas e
pão. Eu podia pertencer ao mundo, mas minha infância sempre teria esse
mesmo aroma. Corri meu olhar para ambos os lados, apenas constatando o
óbvio: Zoey andava um pouco atrás de mim, admirando os arcos de pedra;
os lampiões acesos, ainda pálidos contra a claridade que relutava em ceder;
os vasos de flores selvagens, tão diversos quanto o próprio povo.
Dei um passo para trás a fim de caminhar ao seu lado. Iríamos um
pouco mais devagar, mas não estava com pressa. Havia uma alegria
diferente em vê-la experimentando algo novo e, de repente, a vila parecia
um pouco mais interessante.
– Esse vale podia ser um acidente geológico, mas para o povo
refugiado é um oásis nevado. Um lar improvisado a princípio, mas
cultivado com afinco por todos que vivem aqui – comentei, buscando algo
inteligente para dizer.
– O que você falou? – ela perguntou, com alguns segundos de
intervalo.
– Nada. – Sacudi a cabeça. Eu não conseguia me lembrar. Não
importava naquele momento, por algum motivo. – Mas talvez você precise
prestar atenção no que Amelia disser. Ela fica bastante impaciente quando
precisa repetir alguma coisa.
– Me parece que essa senhora fica nervosa com qualquer coisa.
– Lhe parece certo.
– Molly, se eu não te conhecesse, diria que tem medo da tal dona
Amelia. – Ela sorriu e, por um instante, eu tive a impressão de ter visto uma
luz.
– Medo não, Zoey... – respirei fundo. – Respeito.
Zoey torceu o nariz como se fizesse uma conta de cabeça.
– Ela é a “rainha” da Vila do Sol?
– Não estamos em um reino, mas é algo parecido, se te ajudar a
entender. Amelia é nossa matriarca. Ela guarda as tradições e segredos de
Cinaéd, desde que Everly faleceu.
– Você sabe que eu vou perguntar quem é Everly, certo? – Zoey
levantou a sobrancelha.
– Everly foi a última sacerdotisa de Bólius. Diziam que ela estava
presente na noite em que...
–... em que as sombras dançaram nas montanhas, quando os herdeiros
do dragão foram gerados – ela completou. Seu olhar, que antes devaneava
pelos detalhes do vilarejo, agora estava fixo em mim. Determinado. –
Everly foi a mãe de um dos herdeiros?
Eu assenti, levando o indicador a boca, para que falasse mais baixo.
Zoey já sussurrava, mas não era com ouvidos humanos que eu me
preocupava. E sim com algo mais antigo. Algo imortal.
– Ela foi escolhida por ser tão sábia e implacável quanto o próprio
deus do fogo. Amelia, sua neta, não é tão diferente do restante da família.
– E por que estamos indo até ela exatamente? Não tem outra pessoa
que você conheça por aqui que seja mais amigável?
Parei de andar e me aproximei de Zoey, na tentativa de falar o mais
baixo possível. Eu poderia ouvir nossa respiração com a proximidade de
nossos rostos.
– Primeiro... – Levantei um dedo. – Ninguém pode ficar na Vila do Sol
sem o aval da matriarca. Segundo, Amelia me criou. Pode ser uma pessoa
difícil, mas é...
– Como uma mãe? – Zoey tentou.
– Mais como uma prima de terceiro grau muito querida. – Tentei abrir
um sorriso.
– Isso é bastante específico.
– Ah, querida, você não faz ideia. – Coloquei os dedos sobre os lábios
de Zoey e colei a testa na dela. – Nenhuma palavra sobre a história que te
contei, tá bem?
– Mas eu já conhecia a história – Zoey sussurrou, como se o silêncio
fosse algo frágil a ser partido.
– Não essa parte que eu te contei, especificamente. E, por algum
motivo, você sabe mais do que a maior parte das pessoas fora da Vila do
Sol.
– Mas achei que todos aqui soubessem sobre as tradições de Cinaéd.
– Sim, todos daqui. Eu amo o quanto você sabe sobre o mundo, mas
vamos deixar que Amelia goste de você tanto quanto eu gosto para vocês
começarem a trocar informações. Tudo bem?
– Farei o possível, mas você sabe o quanto eu gosto de conversar.
Ajoelhei e cocei a orelha de Volpe, aproveitando sua pelagem macia.
– Não prometo que você vai gostar de conversar com ela. Melhor
continuar falando com a raposa.
Zoey fez algo que deveria ser uma careta, mas era adorável demais
para ser considerado minimamente malcriado.
Continuamos andando por algumas ruas estreitas, até que encontrei a
porta que buscava: de madeira vermelha, pequena o bastante para que
passássemos. A grande argola de ferro estava pendurada no centro, e
abaixei um pouco para bater na porta. Primeiro uma vez. Depois duas.
Depois quatro. Quando criança, eu mal a alcançava nas pontas dos pés. Mas
agora o tempo tinha passado, e a Vila do Sol quase ficou pequena demais
para mim.
Exceto que isso jamais aconteceria realmente.
Não com o povo remanescente de Cinaéd.
Nós éramos o fogo que brilhava todo amanhecer. A estrela que
vingaria a mais longa das noites.
Amelia abriu a porta, sabendo que era eu. Sua expressão continuava
firme, mantendo a tatuagem em seu rosto perfeitamente simétrica: um
triângulo equilátero em sua testa apontado para cima, e dois menores abaixo
de seus olhos, apontando para baixo. O símbolo do fogo, para que a chama
da vigilância perdurasse enquanto seus olhos tivessem força para ficarem
abertos.
Zoey certamente não saberia discernir sua expressão, mas eu sabia que
ela estava feliz pela forma em que seu rosto se repuxou
fantasmagoricamente para cima. Amelia pousou a atenção na minha amiga,
e percebi seu olhar endurecer.
– Não podemos mais aceitar estranhos na Vila do Sol – declarou de
forma seca, sem se importar com o volume da sua voz. – Não com a ameaça
crescente de Niasar. Qualquer um pode ser um espião, Molly.
– Eu mal chego em casa e você me expulsa, Amelia? – Coloquei a mão
no peito, um pouco exagerada. Toda vez era o mesmo discurso.
– Não seja melodramática e irresponsável, Molly. Você escolheu partir,
e eu respeitei sua escolha. Todos nós respeitamos. Mas não ficaremos
protegidos se qualquer estrangeiro conhecer nossa localização. – Amelia
bateu a porta atrás de nós e andou com o dedo apontado para meu rosto.
Andei alguns passos para trás, protegendo Zoey. Podia senti-la tremendo
atrás de mim. – Você está sendo egoísta e irresponsável ao retornar!
– Achei que tinha sido egoísta e irresponsável ao sair daqui.
Podia perceber a postura de Zoey murchando, procurando desaparecer.
Eu precisava convencer Amelia a nos aceitar de bom grado.
– E você foi. Parece que agora está encontrando novas formas para
mostrar seu descaso! Niasar não vai se cansar até exterminar o nosso povo.
Ele não pode nos alcançar nas montanhas, mas devemos manter nossa
localização em sigilo. – Algo em seu olhar irado, suplicava. Ela estava
preocupada. – Você não pode voltar atrás em suas decisões de forma
leviana. Faça o que quiser com a sua vida, mas não com as do que vivem
tranquilos aqui. – A matriarca pontuou as últimas palavras.
– Amelia, não é o que parece. Eu não agi por irresponsabilidade – falei
pausadamente, buscando acalmá-la.
– Seria a primeira vez então – Amelia cuspiu a frase, em um desafio.
– Eu precisava te apresentar Zoey. – Peguei a mão dela, e a puxei para
o meu lado. Ela se aproximou imediatamente, mas manteve o olhar no chão.
– Então me diga, Zoey. – Amelia cruzou os braços, torcendo o pescoço
para analisá-la melhor. – Qual o motivo tão urgente que Molly possui para
te trazer até a Vila do Sol contra todas as leis que guardam esse vilarejo?
– Bom... eu e Molly nos conhecemos na estrada, e bom... Volpe, nossa
raposa... – Ela apontou para baixo e a matriarca arregalou os olhos ao fitar
os olhos intensos do animal.
Não era justo que Zoey tivesse que lidar com Amelia. Tampouco era
justo que a matriarca a fizesse se sentir uma intrusa, quando tinha sido
minha ideia vir até aqui . Eu estava sendo altruísta ao sugerir para Blaze que
Luna deveria vir até aqui encontrar o herdeiro perdido. Não havia decidido
porque uma parte de mim sentia falta das pessoas daqui.
Mas Amelia estava certa... Eu estava sendo um pouco irresponsável.
Que mal haveria em ser muito irresponsável então?
– Amelia... – Eu não acreditei que essa foi a única solução que
apareceu na minha mente. – Quero que conheça e dê as boas-vindas à Zoey
e Volpe. – Pense em outra coisa, Molly. Você vai assustar a garota! –
Minha namorada. Quer dizer, ela... – Segurei a mão de Zoey, não
conseguindo encarar sua expressão de espanto. – Não a raposa, ela é nossa
mascote.
Olhei para cima, buscando alguma nuvem no céu, na tentativa de
puxar assunto sobre o clima e uma possível chuva a caminho. Mas só havia
estrelas à vista, bem quando eu precisava de um raio para me partir em
duas.
Boa, Molly.
Capítulo 20
Zoey

– Volpe é minha amiga, não minha mascote – corrigi. – E você, Molly...


– Engoli em seco. Amelia parecia mais curiosa do que irritada, sua aura
fluindo na minha direção de um intenso laranja para um curioso amarelo.
Eu precisava ganhar a confiança da matriarca se essa era a única forma de
ganhar uma estadia na Vila do Sol. Não queria sonhar com sua reação ao
saber que Luna e Dax também estavam conosco. – É a melhor surpresa que
eu poderia ter encontrado nas estradas – eu disse, olhando no fundo de seus
olhos verdes, e me voltei para Amelia. – Ouvi muito sobre a mulher incrível
que a criou, e ela disse que precisaríamos da sua benção para conseguirmos
seguir em frente com nossos planos. – Ainda era verdade.
– E quais planos vocês trazem à minha porta, Zoey? – Os olhos azuis
estavam fixados nos meus, desafiadores.
– Molly e Blaze salvaram a mim e aos meus amigos quando fomos
atacados por Krotos na estrada. Um dos capangas de Niasar – acrescentei
rapidamente. Eu sabia que estava começando a falar rápido demais, mas
não podia impedir. – Estávamos vulneráveis, perdidos na estrada e ali nós
nos... – A palavra engasgou na minha garganta, e eu rezei para Argrinis que
ela soasse convincente. – Apaixonamos. Foi quando Molly insistiu que
viéssemos até aqui para recuperarmos nossas forças.
Amelia suavizou sua expressão e tocou em um dos cachos do meu
cabelo. Por Argrinis, ele estava sujo, definitivamente passar alguns dias no
subterrâneo não fazia maravilhas pela aparência de alguém.
– Então quer dizer que ele veio também? Logo quando eu pensei que
você tinha melhorado seu gosto para companhias – Amelia se virou para
minha amiga com descaso.
– Perdi alguma parte da história? – sussurrei para Molly.
– Blaze foi acolhido pela Vila do Sol há poucos meses – a voz da
matriarca era soberana, como se iniciasse uma proclamação para uma
multidão. A voz de uma líder. –Logo quando Molly parecia ter desistido da
tolice de viajar por essas estradas, e estava finalmente voltando para casa.
Ele também fora atacado por algum dos capangas de Niasar, e quase não
respirava. Nós cuidamos dele, o tratamos como um dos nossos, mas assim
que se curou, decidiu partir. – Amelia explicou com amargura na voz. O
brilho a sua volta se tornou um amarelo cinzento, como um sol encoberto
por nuvens. Preocupação. – E você decidiu partir de novo, mesmo sabendo
o risco.
– Amelia, se eu não tivesse partido, não teria conhecido Zoey. Não
teria ajudado Luna e Dax. – Molly tocou no braço da sua mãe de criação.
De coração, pela forma que a matriarca voltou a brilhar e que minha amiga
reluziu. – Há coisas boas fora daqui. E eu quero vê-las – sussurrou,
buscando compreensão.
– Você é jovem. – A aura de Amelia ampliou ao seu redor, laranja
como o amanhecer. – E tola! Mas acho que precisa ser jovem e tola, para
que eventualmente se torne...
– Uma velha tola? – Molly interrompeu com um sorriso sarcástico.
Amelia revirou os olhos, levando o indicador até o centro da testa, onde
estava desenhando o triângulo.
– Achei que tinha te criado melhor do que isso – suspirou. – Quem são
esses Dax e Luna?
Molly me encarou, suplicando para que eu respondesse a pergunta. Só
então que percebi quão pouco ela sabia sobre a nossa verdadeira missão.
– Luna é violinista, Dax é alquimista. Eu... falo com animais. – Já que
aparentemente isso é uma novidade e não é todo mundo que se comunica
com eles. Fiz um gesto para Volpe fazer uma gracinha, e a raposa se deitou
aos pés de Amelia e rolou no chão. – Nós somos uma... trupe. De artistas.
Itinerantes. – Ok, isso pareceu sensato. Convincente, eu diria. Nós
poderíamos ser uma trupe se não houvesse as pausas para combater
assassinos e fugir de lugares perigosos. Fiz uma nota mental para sugerir
essas ideias para a rainha mais tarde.
Amelia puxou o ar, buscando calma para dentro do seu peito e
ponderou por um instante com a mão alisando o queixo afilado e perfeito.
– A Vila do Sol de fato precisa de novas atrações, as tavernas insistem
nas mesmas músicas e eu não suporto mais... Busquem seus companheiros.
– Seus olhos correram por nós duas. – E vocês precisam de um banho se
quiserem ficar aqui.
Um sorriso largo irrompeu no rosto de Molly, e no meu também. Pedi
a Volpe que buscasse os demais na praça, e segui a matriarca para o interior
da estreita porta vermelha. Não sabia como caberíamos todos ali, em uma
construção tão pequena, naquele espaço tão dolorosamente apertado.
Abaixei a cabeça, mas senti meus cachos encostarem no topo do
batente. Estava atenta ao chão quando finalmente Amelia e Molly deixaram
meu campo de visão, e pude ver como era a casa da matriarca da Vila do
Sol.
Eu esperava um lugar compacto, tal como os aposentos onde cresci
com meu pai, em Montecorp. Tínhamos dois cômodos pequenos, com
espaço para uma cama para cada um, e dividíamos um armário com
gavetas. Quase não ficávamos ali, então nunca me importei. Não me
importaria novamente agora. Aqui era o lar de Molly.
Perdi as palavras assim que olhei ao redor. O lugar não era pequeno.
Tampouco apertado. Era colossal. Um dragão poderia manter sua cabeça
erguida entre essas paredes – mesmo que eu jamais tivesse visto um dragão,
aqui era uma extensão do reino de fogo, então pareceu um comentário
mental apropriado.
Algumas pessoas conversavam naturalmente em volta de mesas
redondas. Pude ver uma ou duas mulheres de capuz, próximas à estante de
livros. O aroma de pimenta rosa e vinho corria pelo ar de forma
aconchegante. Me perguntei como não ouvi lá fora o ruído das conversas e
risadas que fluíam tão espontaneamente por ali, despreocupadas com o
volume apesar da noite já ter caído.
Senti como se estivesse entrando em uma mansão, onde todas as alas
estivessem visíveis ao mesmo tempo, sem as paredes. Eu estava
exagerando, mas foi assim que me senti. Algo ali transbordava uma energia
diferente, como se alguns objetos tivessem uma aura própria. Eu via todas
as cores ao mesmo tempo, como uma linha discreta delineando o contorno
de livros, de algumas luminárias e das escadas.
– Como isso é possível? – As palavras morreram na minha boca.
– Ah, minha querida... – Molly deu um beijo na minha mão. – Esse é
só o começo.

A casa da matriarca, pelo pouco que pude observar, era dividida entre
uma ala de convivência – pela qual entramos –, e outra superior, com os
quartos interligado por escadas. Quartos para uma civilização inteira.
Quartos o bastante para você não querer perder um brinco, com o risco de
nunca mais vê-lo de novo (se bem que isso acontece mesmo em casas
pequenas, mas o ponto é que aquele lugar que parecia existir fora do espaço
de tão enorme.)
E, ainda assim, Molly insistiu que eu ficasse nos seus antigos
aposentos, alegando que o próximo quarto disponível era longe demais e
que eu não a encontraria.
– Volpe consegue encontrar você farejando, eu não vou me perder.
– Você vai se distrair, é diferente – ela alegou.
– Se distrair é uma outra forma de se encontrar – cantarolei.
– Não quando você não encontra a pessoa que está te esperando. –
Molly cutucou meu braço, brincando.
Precisei concordar com ela ao atravessar os corredores e fiquei
deslumbrada quando ela abriu uma porta verde, revelando o interior dos
seus aposentos. Por Argrinis, ele parecia ter sido feito para alguém da
realeza. Quase um contraste com sua figura viajante e despreocupada. As
paredes verde-água traziam frescor ao ambiente, onde parecia ser de dia,
mesmo sabendo que a noite havia caído. Uma cama grande estava no
centro, com um número insano de almofadas.
– A má notícia é que só temos um banheiro. Mas você pode ir
primeiro, já estou acostumada com a “estrada” colada em mim.
Eu assenti, um pouco sem graça, com medo de esbarrar em alguma
coisa mesmo com tudo a passos de distância de mim. A banheira,
felizmente, tinha o funcionamento parecido com o de Ellioras, então não
tive problemas para me situar. Apenas para desembaraçar o cabelo. Tinha
um nó para cada dia da semana, e para cada hora do dia. Quando finalmente
estava limpa, envolvi uma toalha no corpo e usei um óleo de flores cremoso
para enrolar meus cabelos, mecha por mecha. Desisti em algum momento,
quando ainda faltava a metade de baixo, mas certamente estaria bem melhor
do que nos últimos dias.
Meus cachos pesavam úmidos, alcançando meu quadril. Quando secos,
pendiam um pouco abaixo dos meus ombros. Eu não sabia o quanto
precisava de um banho até finalmente me sentir limpa.
Estava satisfeita com o meu cheiro e com minha aparência mas,
quando andei até as roupas para me vestir, percebi que não havia a menor
possibilidade de usá-las. Corri para minha bolsa de viagem, mas tudo ali
dentro tinha cheiro de algo usado e guardado por eras. Prendi a toalha o
mais apertado que pude e abri uma fresta da porta.
– Molly? – Minha voz saiu desafinada.
– Zoey? Tá tudo bem? – Ouvi seus passos se levantando com alguma
pressa na minha direção.
– Tá sim. Eu só... não tenho o que vestir.
– Ah. – Seus passos pararam. – Eu procuro algo no meu armário. Você
tem alguma... preferência?
– Qualquer coisa que esteja limpa. Tudo o que tenho está um
verdadeiro desastre!
Senti um silêncio do outro lado. Será que Molly achou que eu a estava
chamando de “desastre”, já que ela ainda não havia se lavado? Mordisquei
o lábio, sentindo algumas gotas d’água ainda grudarem na pele. Alguns
instantes depois, uma batida na porta.
– Pode abrir? Minhas mãos estão lotadas. – Podia ouvir o sorriso em
sua voz.
Puxei a maçaneta na minha direção, e fiz o melhor para não corar. Os
olhos verdes de Molly estavam fixos nos meus, quase como se lutassem
para não desviar o contato propositalmente. Ela devia estar desconfortável
com essa situação, por precisar mentir para Amelia. Precisei quebrar o
contato para ajudá-la com as roupas, que escorregavam pelos seus braços.
– Acho que você exagerou na quantidade – brinquei, pendurando em
meu braço alguns vestidos, calças, túnicas, espartilhos e lenços. Não
percebi o quão próximas estávamos.
– Eu procurei algo que ficaria bonito em você, e a resposta foi tudo.
Não me culpe.
Soltei uma risada e abaixei para pegar um dos lenços que tinha caído.
Molly abaixou para me ajudar, e todas as roupas caíram no chão também.
Tentei juntá-las em uma pilha, e logo nós duas estávamos de braços dados,
com uma quantidade considerável de tecido a nossa frente.
– Acho que posso olhar com calma aqui no quarto e você já fica na
câmara de banho, que tal? – sugeri, um pouco sem graça por estar apenas de
toalha.
– Claro, Zoey. Você pediu por tudo limpo e sem desastres. Me incluo
nessa. – Ela deu um meio sorriso sem graça.
– Molly, eu não quis dizer que você estava... está...
– Zoey, tá tudo bem. Eu também tenho um nariz. – Ela apontou para o
próprio rosto. – Você tem cheiro de jasmim, merece uma namorada falsa
que não pareça extrato de troll. Te vejo do outro lado?
Assenti, já de pé, fazendo o possível para equilibrar as roupas e manter
a toalha, que parecia cada vez mais frouxa, presa em mim. E assim que
ouvia Molly fechar a porta, a toalha finalmente cedeu e caiu no chão.
Dentre as muitas opções de roupas, acabei escolhendo um par de
calças cor de vinho que eram justas, quentes e confortáveis. Combinei com
uma túnica da mesma cor, que prendia no meu pescoço em um botão
dourado. Ela tinha mangas compridas, com os ombros abertos e era justa
até meu quadril, e longa até meu tornozelo, com fendas laterais. Encontrei
um lenço dourado que reluzia como ouro na bagunça que fiz na cama, e o
prendi na cabeça, tomando cuidado para não amassar meus cachos.
A essa altura, Luna e Dax já deveriam estar aqui. E, tudo dando certo,
nossa missão estaria próxima de terminar. Olhei em volta, admirando o
quarto de Molly. Ela tinha tudo e, ainda assim, explorar o mundo parecia
uma ideia melhor do que viver em um palácio encantado. Era ousado, mas
eu amava isso. Entendia, de alguma forma.
Pulei para trás quando ouvi a porta destrancar, e vi Molly sair do
banheiro com o cabelo longo e preto ainda pingando no chão. Olhei para o
chão, um pouco tímida.
– Eu não sei onde guardar as peças que não usei – comentei. Silêncio
não era comum entre nós, mas havia algo diferente. Estar ali, sentada na
cama dela, usando suas roupas, sentindo seu cheiro de peônias e água doce.
– Vou pegar alguma delas agora, depois eu guardo. Não se preocupe –
ela disse, desembaraçando o cabelo com os dedos. Era estranhamente
reconfortante vê-la mexendo nele.
Permaneci em silêncio, a observando, talvez fixamente demais. Só
percebi isso quando ela completou.
– Zoey, tá tudo bem?
– Molly, precisamos falar sobre o elefante no quarto.
Ela olhou em volta, procurando algo de cima a baixo.
– Querida, Volpe é uma raposa, lembra?
– Ela voltou? – exclamei, e me deparei com Volpe deitada em um
tapete próximo da porta.
– Há uns cinco minutos. – Molly se sentou ao meu lado,
despreocupada se seu cabelo ainda pingava pelo chão, no colchão, nas
roupas espalhadas... – Eu sei que esse lugar é diferente, mas vai ficar tudo
bem...
– Por que você me apresentou como sua namorada? – vomitei a
pergunta, já não sabendo se fiz certo em perguntar.
– Ah... – Ela endireitou a postura, segurando a toalha junto ao corpo. –
Amelia tinha esse sonho em me “ver com alguém de coração puro”, achava
que isso faria de mim uma pessoa mais responsável. Mais apegada. Eu
sabia que a amoleceria, que a deixaria contente. – Molly suspirou. – Mas foi
errado te colocar nessa situação, eu posso desmentir agora mesmo se for te
deixar mais confortável.
– O que a gente precisaria fazer? – Engoli em seco, tentando não
reparar que ela estava só de toalha perto de mim. Tentando não reparar que
nossas pernas estavam se encostando.
– Não sei se você reparou, mas sou um pouco expansiva.
Provavelmente eu te elogiaria publicamente, o que não seria nada difícil.
– Você realmente elogia bastante as pessoas – ponderei.
– Claro... por isso. E acho que poderíamos andar de mãos dadas. Não é
como se fossem pedir um beijo nosso em praça pública – ela zombou. Eu
senti minha postura ficar mais rígida. – Mas, repito, posso acabar com isso
agora mesmo, se preferir.
Molly se levantou da cama, e eu segurei seu pulso. Seu cabelo preto
caia em fios soltos sobre o rosto, seus olhos intensamente verdes estavam
cravados nos meus como esmeraldas, quando entrelacei seus dedos
alongados nos meus, percebi que sua pele marrom era quase do mesmo tom
da minha.
Ela não sabia que eu via a luz verde, oscilando para o azul, o rosa, o
vermelho e o lilás entre nós duas.
– Não – interrompi. – Pelo que me disse, Amelia estar feliz vai nos
ajudar. Não seria bom irritá-la agora.
Molly assentiu.
– Se eu for longe demais, ou se você não se sentir confortável com
alguma coisa, promete que me fala imediatamente? – ela sussurrou,
ajustando sua mão na minha dando um passo para frente.
Eu assenti. Queria brincar com ela, dizer que já estava ficando mais
responsável, mas pareceu errado quebrar o silêncio. Eu só queria observar
as cores mudando na minha frente. Queria saber o que isso significava.
Volpe parou aos meus pés e Molly se afastou, buscando algo para
vestir. Fiquei sentada no chão, acarinhando a raposa até minha "namorada"
terminar de se vestir, uma vez que ela murmurou que eu não precisava sair
do quarto.
Ela usava calças pretas até a cintura, que marcavam sua silhueta esguia
e uma túnica curta de mangas compridas na mesma cor. Seus cabelos
estavam soltos, já formando ondas largas enquanto secavam.
– Você está... – Não terminei a frase.
– Limpa? – ela brincou.
– Também. – Linda, era o que eu queria dizer. Mas ela não fez nenhum
comentário sobre como eu estava, então pareceu invasivo falar algo do
gênero. Eu podia guardar para quando estivéssemos em público. – Vamos
encontrar os outros agora?
E, quando ela abriu a porta, nós saímos do quarto de mãos dadas.
– Se quiser, pode se distrair que eu te guio – Molly sussurrou no meu
ouvido, e um arrepio correu por mim ao ver o meio sorriso em seu rosto.
Capítulo 21
Dax

Impossível.
É o que qualquer um diria, se não pudesse sentir a mesma aura do
desconhecido que me encantava. De fato, era improvável que uma vila
pacata no centro das montanhas pudesse guardar tal maravilha. A magia
ressoava ali diferente, em um pulso constante, quase hipnótico. Algo
semelhante ao que sentia quando estava perto de Luna.
Volpe nos levou até a porta estreita e fomos recebidos por uma mulher
de temperamento obstinado, que murmurou algo para Blaze que não pude
discernir. Ela logo nos encaminhou até aposentos de banho individuais,
através de corredores e escadas que poderiam ser infinitos – se eu
acreditasse em tais conceitos. Agradecido pelo banho quente, percebi o
quanto meu estômago roncava diante da possibilidade de finalmente comer
uma refeição de verdade.
Vesti as roupas que encontrei na primeira gaveta de uma cômoda de
mogno: uma túnica preta simples, um par de calças e botas. Meu casaco
estava imundo, eu percebia agora enquanto um tecido limpo roçava contra
minha pele. Não era como o algodão de Ellioras, que era suave como a
pluma de um anjo, mas o traje estruturado era próprio para o clima oscilante
da região: frio ao ar livre e ameno no interior.
Transferi meus pertences mais valiosos para os bolsos fundos da calça,
mas nem de perto era tão versátil como o meu casaco. Ainda assim, eu não
o vestiria até que estivesse propriamente higienizado.
Sem saber exatamente qual o local que deveria ir em seguida, e sem ter
ideia de onde estariam Luna ou Zoey, refiz o caminho que me trouxe até o
quarto. Eu poderia tentar bater nas portas pelo caminho até encontrá-las,
mas sabia que a probabilidade era muito baixa. A não ser que eu quisesse
atrapalhar as pessoas que viviam ali, o que parecia uma péssima forma de
agradecer a hospitalidade.
Sendo assim, desci a escadaria passando por outros dois andares
semelhantes ao que eu estava, e encontrei próximo da pequena porta de
entrada algo que era parecido o bastante com uma taverna onde as refeições
eram servidas, e algum entretenimento evidenciado.
Algumas pessoas chegavam perto das mesas, conversando
despreocupadamente, e o lugar estava tomado pelo ruído de talheres e vozes
casuais. Alguns olhares demoravam um pouco mais na minha direção, e os
respondi com um aceno de cabeça educado.
Honestamente, sei que fui guiado pelo aroma inebriante de guisado
que fluía de uma pequena abertura em uma parede de madeira. Me alegrei
ao ver o rosto conhecido de Zoey, acenando incessantemente na minha
direção, com um pedaço de pão levantado. Ela era sorridente, mas havia
algo diferente no seu semblante. Eu precisaria observar mais para descobrir
o quê. Naquele momento, só conseguia focar no pequeno caldeirão no
centro da mesa redonda, e que havia um lugar ao seu lado com um prato
vazio.
– Você me achou – ela disse, empurrando a cesta de pães na minha
direção.
– Achei a nossa janta, você só estava oportunamente ao lado dela –
corrigi, forçando uma expressão séria no rosto.
– Você se deve achar bastante engraçado.
– Não quando estou faminto. – Peguei o prato fundo, e servi duas
conchas cheias do ensopado. Comi algumas colheres transbordantes, não
me importando com o sabor. A fome não conhecia tais luxos.
– Olha só quem finalmente chegou, meu amor! – A voz de Molly
cortou minha atenção, e levantei os olhos para ela rapidamente, ainda
focado na comida. – Falei que eles eram inteligentes o bastante para nos
encontrar.
– Dax é inteligente demais para o próprio bem – Zoey comentou,
beijando a mão de Molly em um gesto nada natural. Algo ali não encaixava.
– E você é linda demais para a minha própria sanidade – Molly
brincou, os olhos cravados nos de Zoey. Por baixo dos cachos, percebi que
ela corou. Agora a fome não doía tanto, e estudei o lugar à nossa volta. Era
hora de ter algumas explicações.
– E vocês, podem me explicar o que está acontecendo aqui antes que
eu abra mão da minha sanidade? – pedi, colocando mais uma concha cheia
no prato e mergulhando o pão no ensopado de cenouras e batatas. Era isso
que estava comendo, por sinal.
– Molly e eu estamos fingindo ser namoradas – Zoey sussurrou no
meu ouvido baixinho como um coelho.
– O que? – exclamei. – Eu me referi a esse lugar gigantesco, e por quê
tudo aqui tem uma atmosfera mágica incompreensível. – Larguei a colher
no prato, fazendo um estalo contra a cerâmica. – Como isso aconteceu?
– Molly precisou fazer isso para amolecer o coração da matriarca da
Vila do Sol – Zoey murmurou, apontando discretamente na direção dela.
– Zoey, eu não poderia me importar menos com isso no momento. –
Era verdade. Todo mundo parecia contente o bastante para que isso não
fosse uma preocupação. Minha necessidade de conhecimento falava mais
alto. – Eu gostaria de saber como esse lugar funciona. Estamos dentro da
montanha?
– Aconselho que você seja mais gentil na forma que fala com minha
namorada – Molly alertou com um tom divertido. – As coisas não são
incompreensíveis só porque você não entende, Dax, meu caro.
– A magia de Cinaéd funciona de forma diferente de Montecorp –
completou Zoey com naturalidade.
– Eu não falaria essa palavra se fosse você, meu amor. – Molly olhou
fixamente nos seus olhos castanhos.
“Desculpa”, Zoey desenhou com os lábios, e recebeu uma piscada em
resposta da sua namorada.
– Do que estamos falando? – Eu podia vê-la antes de me virar. Sua voz
denunciava algum cansaço, mas algo em seu tom envolvente me despertou.
Senti minha coluna enrijecer. Luna estava diante de mim, andando em volta
da mesa até encontrar um lugar ao meu lado no banco estofado que nos
circundava. Seu perfume de lavanda e baunilha era familiar: me fazia
desejar por memórias antigas que envolviam tanto o nosso reino quanto o
toque daquela que o governava.
Ela usava um vestido branco simples de mangas compridas que
deixava seu colo e seus ombros a mostra. A corrente prateada mantinha a
pedra de fogo escondida contra sua pele. Uma fita dourada adornava as
extremidades nas mangas, mas era a sua postura que deixava claro para
qualquer idiota que aquela garota maravilhosa pertencia à realeza. Mesmo
que ela não olhasse diretamente para mim, Luna não se distanciou. Apenas
se serviu de um pouco de ensopado – o que não parecia ser suficiente diante
do gasto de energia que ela certamente tivera nos últimos dias.
– Você deveria se alimentar melhor – falei, encarando seus olhos
escuros à meia luz.
– Não se preocupe, eu só preciso de energia o bastante até a sombra
me encontrar e findar meu espírito – ela ironizou.
– Luna, não é...
– Não é o que? Sua culpa? Inevitável? Eu entendi algo errado, Dax? –
Luna olhou no fundo dos meus olhos, quase suplicando com os seus por
uma resposta. Ela deixou a colher no prato e passou a mão pelos cabelos
rosados ainda úmidos. Tirou algumas mechas quase secas do seu rosto e se
voltou para Zoey. – Do que estávamos falando?
Eu queria dizer que poderia corrigir isso. Queria dizer que ela podia
confiar em mim. Que jamais planejei lhe fazer mal algum, mas qual
argumento teria?
Uma ideia insana passou pela minha mente, mas será que...
– O clima pesou um pouco, lindinha – Molly sussurrou para Zoey que
franzia a testa ao dar mais atenção do que deveria para o pão que cortava.
– Talvez você possa nos contar como funciona esse lugar – minha
amiga pediu, suplicando para mudar de assunto.
– Eu prefiro a sua forma de contar histórias, mas farei o melhor, doce
de coco.
– Doce de coco? – Zoey torceu o nariz.
– Você não gosta? – Molly replicou.
– Detesto coco.
– O que você prefere?
– Que tal focar em explicar a origem bizarra desse lugar gigantesco
por dentro? Parece que estou em algum episódio de Doctor Who – Luna
comentou com um sorriso triste.
– Doctor quem? – perguntou Molly.
– Exatamente. – Luna abriu ainda mais o sorriso. Já conhecia aquele
olhar, que trazia memórias que jamais poderia compreender, e me enchia de
fascínio. Antes, eu poderia perguntar sobre o que falava, e sabia que ela se
divertiria revirando tudo que sabia sobre essa dimensão que guardou uma
de suas vidas. As pessoas que conheceu ali, eu sabia que era um território
doloroso demais para ela explorar. Mas agora... não era como se eu pudesse
pedir para que se abrisse comigo. Mas eu queria. Por Argrinis, como eu
desejava que ela olhasse na minha direção com algo que não fosse a mais
profunda decepção.
Como eu desejava que ela me olhasse da mesma forma que olhava
para...
– Devo ficar ofendido por ninguém ter me esperado para jantar? –
Blaze se sentou ao lado de Molly, já se servindo de um prato cheio. Seu
traje vermelho tinha o modelo parecido com o meu, mas ele usava algumas
correntes douradas em volta do pescoço.
– Sinta-se lisonjeado que ninguém faz questão de ficar com fome por
pura cortesia. – Molly lhe deu um abraço lateral, e ele retribuiu com um
beijo na sua cabeça.
– Melhor assim. – Ele olhou para Zoey, para mim e Luna, apontando
com a colher. – Gostaram daqui? – perguntou casualmente, demorando seu
olhar na rainha ao meu lado. Segurei o copo de água com mais força. – Belo
vestido.
– Obrigada, é emprestado – ela respondeu e gesticulou para os
arredores, voltando seu olhar para Molly. – Ela estava para nos explicar a
origem da magnitude da Vila do Sol.
– Ela estava nos enrolando, para ser sincera – Zoey completou.
Blaze deu um tapinha nas costas de Molly e murmurou: “deixa
comigo” como se fosse o dono do lugar. Apoiou os cotovelos na mesa e
começou a juntar algumas migalhas de pão na superfície de madeira,
formando um desenho amorfo com elas.
Eu detestava o fato de ele saber algo que eu não sabia. Detestava a
forma que ele encarava Luna, como se buscasse alguma resposta para o
mistério que ela era. O mistério que era meu para decifrar.
– A Vila do Sol foi construída por pessoas que dominavam a magia do
dragão. Pessoas que a herdaram, e que sabiam como manipulá-la. – As
luzes vermelhas a nossa volta pareciam tamborilar diante da sua voz. –
Bólius não pertencia a essa dimensão, até aí isso é uma notícia velha. Mas
isso não quer dizer que ele não soubesse como manipular o tempo e o
espaço conforme a sua vontade. Vocês estão, basicamente, dentro de um
portal.
– Um portal? – Não queria ter soado tão espantado, ainda mais falando
com Blaze.
– Dax, presta atenção, eu te admiro. – Blaze debochou. – Mas para
ficar simples de entender, é só isso.
– Só isso? Você não tem noção do conhecimento que está
menosprezando. – Bati a mão na mesa, irado. O descaso com a ciência fazia
a adrenalina correr de forma primária pela minha corrente sanguínea.
– Não sou um mestre, não é meu trabalho explicar nada.
– É por frases assim que Amelia se indispõe com você – Molly
comentou, colocando a mão sobre a de Blaze. – O que ele está tentando
dizer, é que vocês são bem-vindos, enquanto estiverem sob o meu convite.
A Vila foi construída abrigando pessoas que não tinham para onde ir, seja
por terem perdido o seu lar, ou por desejarem um novo começo em outras
terras.
– Molly, eu não poderia ser mais grata. – Luna respirou fundo. –
Começando amanhã, farei o possível para localizar o herdeiro perdido e
partirei imediatamente da Vila do Sol. Não vou abusar da hospitalidade. –
Ela se virou para mim. Realmente me olhou, indecifrável. – Quantos dias eu
tenho até aquela... coisa me encontrar? O quão rápido ela pode viajar?
Engoli em seco. Eu não sabia. Tecnicamente, estávamos fora do tempo
e do espaço aqui, então talvez... talvez houvesse uma chance para retratar o
mal que fiz a ela.
– Não posso dar certeza, mas acredito que esteja segura aqui, nesse
portal. Lá fora, você teria alguns dias, uma semana, talvez. – Ponderei cada
palavra, como se estivesse escolhendo as últimas que jamais diria.
– Ótimo, já sei que não haverá uma viagem de volta. – Ela soltou um
riso de escárnio. – Ao menos, consigo reparar uma dívida histórica. É mais
do que muitos podem dizer que fizeram em vida.
Zoey a envolveu com o braço, acarinhando seu cabelo, e Luna se
aninhou por um instante, antes de recompor a postura e se levantar.
– Volpe pode me ajudar a encontrar o quarto? Estou cansada demais
para lembrar em qual andar estava, e os corredores aqui parecem um
labirinto – Luna comentou com naturalidade, como se não estivesse com o
coração partido. Zoey assentiu.
– Então quer dizer que você é a violinista que Zoey tanto falou sobre?
– A matriarca surgiu diante de nós, com um meio sorriso tão curioso quanto
desconfiado. – É uma alegria receber uma nova trupe de artistas na Vila do
Sol. Sei que estão cansados da viagem, mas adoraria esperar uma
apresentação amanhã. Tenho certeza de que estarão mais revigorados até
então.
Luna arregalou os olhos confusos na direção de Zoey, que implorou
com o olhar algo que só poderia dizer “por favor, concorde!”
– Amelia, deixe que o sangue volte a correr pelas veias dela. A garota
está exausta – Molly interveio, sabendo que estávamos todos perdidos em
alguma informação importante.
– Me sinto ótima, Molly. – Luna tocou na mão dela. Ninguém falava
pela rainha, ela já devia saber disso. – E agradeço a hospitalidade. Será um
prazer, Amelia. Vou me recolher agora para estar em plena forma amanhã. –
Ela abriu um sorriso doce e inocente, nada parecido com sua essência
cataclísmica e, injustamente, belo.
Ela já se distanciava, levando consigo as palavras que eu havia sido
covarde demais para pronunciar mais cedo. Blaze se levantou logo depois, e
seguiu seus passos com alguma distância.
Eu posso consertar isso. Deveria ter dito. Gritado! Mas não queria ser
um mentiroso novamente. Um traidor. Então decidi que ela poderia
descobrir uma forma de encontrar o herdeiro. Eu encontraria uma maneira
de salvá-la. Não só porque ela precisava. Não só porque era minha culpa.
Mas porque eu não deixaria a mulher que amava ter sua vida tirada dela.
Mesmo que fosse para que ela vivesse ao lado de outra pessoa.
Capítulo 22
Eleanor

Não seria difícil era extremamente complicado. Tinha visto Dax uma
dezena de vezes usando feitiços de localização para achar o coelho de
algodão que minha mãe tinha costurado para mim em segredo. Eu o
escondia em lugares diferentes toda vez que ouvia alguém se aproximando
e frequentemente o perdia. Meu irmão sempre seguia uma sequência de
anotações em seu livro que não faziam o menor sentido e logo eu tinha Sr.
Botões novamente.
Eu poderia reconhecer aquele livro e tentar fazer o mesmo para saber
onde Dax estava. Para saber se ele estava bem, são e salvo. Algo no meu
peito estava inquieto e, quando mentalizava seu rosto em meus
pensamentos, eu sentia uma agulha fina atravessando meu peito, deixando o
rastro da linha em um incômodo agudo.
Poucas vezes eu tinha ido até o seu laboratório, que ficava em uma
parte remota do palácio. Não queria levantar comentários intrusos e
curiosos, então busquei na cozinha um manto bege que era usado por alguns
criados. Eu não estava invisível, mas era a segunda melhor opção para
permanecer uma incógnita.
Era como se o palácio tivesse uma ala construída em segredo, pois as
curvas estreitas e escuras não seguiam o mesmo padrão das outras alas. Não
era um lugar de fácil acesso, mas logo eu estava diante da porta de metal e
obsidiana. Ela estava trancada mas, como as demais fechaduras de
Montecorp, respondia ao sangue da família do seu senhorio.
O meu sangue.
Hesitei, com medo de algum feitiço de proteção repelir minha
presença. Em poucos instantes, a esperança poderia se tornar cinzas. Ou
renascer. Ao colocar a mão na maçaneta, quase pulei ao ouvir um clic.
Estava destrancada.
Caminhei timidamente, com medo de pisar em falso. Sentia que estava
invadindo um mundo que não me pertencia, e que ainda assim, era tão
familiar. A mesa central estava lotada de livros abertos com inscrições em
uma linguagem repleta de arestas. Eu não entendia uma palavra nem nunca
entenderia. Potes de vidro apoiados em estruturas rebuscadas de ferro
tinham líquidos coloridos em tons mortos de verde, amarelo e vermelho.
Alguns rótulos aleatórios chamaram minha atenção, mas não soube fazer
nenhuma associação: sombra; fio de cabelo real; cinzas de fogo ancestral.
Nada disso fazia sentido, mas não era para entender o trabalho
alquímico do meu irmão que eu estava ali. Eu só precisava de um livro de
capa vermelha, com um círculo dourado e um ponto no centro. Sabia que
aquilo representava o sol, pois era uma das poucas coisas que Dax havia me
explicado sobre suas artes que eu tinha guardado. Subi as escadas do
mezanino, cercada por centenas de exemplares. Tantos, que achava que a
biblioteca de Amon estava incompleta. Eu jamais encontraria o que estava
procurando.
Parecia um livro como qualquer outro, mas eu sabia que meu irmão
anotava nos cantos das páginas suas descobertas e formas de me fazer
sorrir. Pequenos fogos de artificio que ele conjurava no nosso quarto nas
noites de tempestade, quando eu tinha medo dos trovões. Usava as correntes
de ar para fazer as orelhas de Sr. Botões dançarem ao som de alguma
música cantada pela nossa mãe. Aumentava a chama das lamparinas para
brincarmos com sombras de animais nas paredes.
Dax era fechado mas, do jeito dele, fez o que podia para se certificar
que eu estava bem enquanto crescíamos. Até o momento em que ganhamos
nossos próprios aposentos, como um presente por estarmos crescendo. Foi o
pior dia da minha vida. Passei a vê-lo somente em algumas refeições e
eventos na corte. Nossa agenda de estudos e tarefas nos esgotava, e meu
mundo de canções escondidas e estrelas particulares, findou.
Não muito depois disso, o olhar de Dimas começou a se demorar por
meu corpo durante minhas visitas ao Conselho. Corei na primeira vez que
nossos olhares se cruzaram, uma vez que eu passei meses o evitando.
Estava tão desesperada por atenção e algum senso de diversão, que aceitei
seu convite para tomar uma taça de vinho em seus aposentos, a fim de
receber sua orientação para destacar meu trabalho e logo me tornar membro
do Conselho Real. Foi ali que ele deu o meu primeiro beijo, e jurou
continuar me beijando para sempre. Eu acreditei. Achei que estava,
finalmente, completa. Idiota, idiota, idiota.
Eu havia me perdido tantos anos atrás.
E agora estava cercada por livros que não entendia, buscando um fio
de esperança para encontrar meu irmão, assumir a Coroa e, quem sabe,
finalmente, ser a prioridade na vida de alguém.
Eleanor, você precisa prestar atenção.
Cansada de tanto andar para um lado e para o outro, enxergando sem
ver, fechei os olhos. A sensação inquieta de que Dax não estava bem
deveria servir para alguma coisa. A magia havia voltado, quem sabe eu
tinha alguma em mim também. Quem sabe Argrinis me ajudaria dessa vez.
Vi na minha mente, clara como uma das poucas memórias boas que ainda
tinha: Dax aos sete anos de idade, seu sorriso um pouco banguela, seu
cabelo preto liso e comprido, preso em um nó simples com um laço
marrom. Seus olhos tinham o mesmo tom âmbar dos meus, mas eram
repuxados. Em suas mãos ainda gorduchas, o livro vermelho ganhava
algumas anotações, enquanto eu segurava um botão do Sr. Botões. Segundo
ele, eu precisava de um totem. Algo com um resquício de energia suficiente
para ser rastreado.
Soltei o ar devagar, e logo a linha atravessada no meu coração agia
como a condução de uma valsa lenta e etérea. Abri os olhos, mas minha
visão estava embaçada. Exceto por um ponto. Era tudo que eu precisava ver,
tudo que precisava seguir, e andei até ele, desviando de pilhas de livros
enquanto uma silhueta vermelha chamava minha atenção.
Em minhas mãos, o livro antigo tinha as páginas entreabertas, velhas e
amareladas, contudo não precisei folhear muito para encontrar o que
procurava. O feitiço de localização era complicado, porém repleto de
anotações feitas com a letra infantil do meu irmão, incluindo todas as
nuances, pronúncias e entonações necessárias para que fosse
apropriadamente conjurado.
Um sorriso se abriu em meus lábios, e beijei a página do livro. Alguma
coisa finalmente parecia estar certa! Recitei as palavras, usando o próprio
tomo em minhas mãos como um totem da energia de Dax. Perante meus
olhos, as páginas do livro pareciam um espelho d’água e, distante, coberto
por uma neblina, estava ele. O olhar distante, triste. Senti sua dor como se
fosse minha, uma dose intensa de arrependimento que tomava seu âmago.
Dax estava perdido em algum lugar. Mas por quê?
Forcei os olhos, desesperada para falar com ele, lhe fazer perguntas,
descobrir alguma coisa sobre seu paradeiro. Mas ele não poderia me ouvir,
tampouco saber que estava sendo observado. Ele parecia estar cercado por
montanhas nevadas em algum lugar. Montecorp era um reino tropical, e
busquei meu conhecimento sobre os territórios além das fronteiras, além da
casa Prian-Sostine, além da Floresta do Oblívio e de Cinaéd. Já tinha
ouvido lendas sobre civilizações submersas do outro lado do mundo, mas
nada disso comportava um inverno eterno. A não ser pelas Montanhas
Profundas. O que ele estaria fazendo ali?
Dax, o que está acontecendo? Com quem você está?
Eu gritava com a maldita visão. Precisava de mais detalhes, não de
mais dúvidas.
Dax, me mostre!
O ar deixou meus pulmões e, por um instante, a minha mente não me
pertencia. Nem a dele. Éramos um só. Antes que pudesse enxergar algo, a
pressão no meu peito fez meus próprios sentimentos parecerem plumas ao
vento. Havia uma âncora de pesar e arrependimento em Dax, como se ele
estivesse prendendo o ar embaixo d’água por tempo demais. Eu sufocava
junto à ele, em cada instante da conexão. Tentei estabilizar meus sentidos,
respirar pelo meu próprio peito, para enfim ver pelos olhos dele. Escutei os
sons que o circundavam e, dentre todos que estavam ao seu redor, eu só
reconheci uma pessoa. A rainha.
Dias atrás, isso teria me deixado feliz. Saber que ela estava viva e que
o trono não era uma perspectiva verídica. Mas agora, sentindo toda dor que
meu irmão sentia direcionado à essa mulher...sabendo que ela era a culpada
pela agonia que Dax experimentava, fiquei feliz que assumiria o Trono no
qual ela jamais se sentou. Um ruído fez minha concentração cessar, e a
visão se dissipou. Assustada, me encolhi, segurando o livro junto ao meu
peito como um tesouro.
Eu teria deixado a porta aberta?
Não acredito que teria cometido tal erro embora fosse do meu feitio
sempre estragar alguma coisa.
A voz que ouvi, era familiar.
– E como você tem tanta certeza de que a rainha está morta? É
insensato ser coroado rei de um território que possui um líder.
– Lunara Alexandria jamais foi líder desse reino. – A voz de meu pai.
Coloquei a mão na boca para evitar respirar e ser descoberta, tive medo do
meu coração bater alto demais e me denunciar. Não queria ser punida
novamente. – Não é insensatez, você apenas se tornará um usurpador. Não
será o primeiro nem o último da história.
– E você será o pai da nova rainha, nada mal.
Meu pai soltou um riso.
– O acordo de governo é entre nós dois, Lorde Ian. Eleanor será o
rosto para que o povo aceite essa transição de sobrenomes. Só isso.
– Ela é mais do que um rosto, Sir. Caleb.
– Sim, ela é brilhante... – Meu coração não deveria ter aquecido com
isso. Mas era um elogio. Do meu pai. Ele via valor em mim. – Mas é uma
mulher. E batalhas são assuntos para homens, você sabe. Niasar lhe tirou
Kim, quando ele virá me tirar Anna? Estamos do mesmo lado, eu e você.
– Ainda assim, como garante que Lunara está morta? Se ela retornar
após o meu casamento com Lady Eleanor, teremos um conflito civil. Não
quero que a vida do nosso povo seja perdida.
– Meu desejo também é que tenhamos um território unificado, com um
exército imbatível. – Meu pai se aproximou da bancada, analisou alguns
vidros suspensos e virou uma página ou outra que não pude enxergar de
onde estava. – Em alguns dias, Lunara morrerá, e a dinastia dos Montecorp
terá acabado, junto ao seu legado de fracassos.
Meu pai era o assassino da rainha. O pensamento perturbador me
deixou dividida. Minha raiva por ela, era por causa do meu amor por Dax, e
a dor que sabia que vinha dela. Mas assassinato? Parecia radical demais.
Uma coisa era assumir a Coroa por causa de uma fatalidade, e outra era ser
cúmplice em um crime.
Porém, meu pai estava certo. As décadas de guerra e os conflitos
internos no reino eram culpa dos Montecorp. Os anos em que assumi
responsabilidades demais, o motivo pelo qual minha infância foi cercada de
medo, era graças à ausência dela. E quem poderia saber se isso não
aconteceu pelos próprios motivos egoístas. Talvez fosse a hora de uma nova
linhagem, alguém que realmente tivesse vivido com o povo. Eu não tinha
como me comunicar com Dax, não poderia avisar do risco que a rainha
corria. Não havia nada que eu pudesse fazer nada que eu quisesse fazer para
impedir sua sina, além de honrar minhas novas responsabilidades.
Ouvi o tilintar de taças.
– Ao reino – ofereceu meu pai. Ele me considerava brilhante.
– Ao reino – respondeu meu futuro rei.
– Ao reino. – Minha boca fez o desenho das palavras, sem som.
– Junte-se a nós, Eleanor – bradou meu pai.
Meu coração deu uma cambalhota, e eu tremi de medo. Prendi o livro
de meu irmão nas minhas costas, embaixo do vestido e desci as escadas; a
cada passo eu estava apavorada, meu rosto não estava marcado, mas eu
sentia o eco do tapa que recebera dias antes.
Lorde Ian fez um aceno com a cabeça, e meu pai torceu o rosto ao ver
meu manto.
– Tire esses trapos, Eleanor. Não é assim que a futura rainha deve agir.
Eu obedeci, e aceitei a taça que ele estendeu para mim. Brindamos
novamente, o vidro cortando o silêncio que sufocava minhas expectativas.
Ao menos, estando ao lado de Ian, eu sabia que não seria agredida. Estava
segura por alguns minutos.
– Fico alegre em ver que a razão venceu a batalha contra sua
insensatez, minha querida filha. Feche a porta ao sair, na próxima vez.
Meu pai terminou um longo gole sem esboçar nenhuma reação contra
o líquido forte, apoiou a taça no balcão e partiu. Logo eu estava a sós com
Lorde Ian.
– Pensou na proposta que te fiz?
– De sermos amigos? – perguntei, bebericando o licor.
Ele assentiu.
– Eu aceito um aliado. Quero ser sua rainha, e te quero ao meu lado
como rei. Mas não aceitarei nenhuma intervenção de Sir Caleb Van Doren.
Quero o poder nas nossas mãos. – Minha voz meiga, era firme. Era a
primeira vez que estava no controle. Com a mão livre, corri os dedos pelo
seu braço em movimentos suaves para cima e para baixo, o encarando com
firmeza.
– Você vai trair seu pai? – Suas sobrancelhas se levantaram em
surpresa, mas um sorriso satisfeito despontou do seu rosto.
– Meu pai sempre foi meu inimigo. Mas ele tem razão, eu sou
brilhante. Então vou deixar que me dê o reino em uma bandeja de prata,
para depois lhe mostrar como é não ter controle sobre nada. – Bebi mais um
gole do licor forte e me aproximei de Ian, intensificando a pressão do meu
toque. – Tenho alguma experiência no assunto.
– Não imaginei que você tinha um lado cruel.
– Obstinado. Jamais agi com más intenções. – Dei mais um passo,
agora colando meu corpo no dele. Conhecia a forma como seus olhos
correram pelo meu corpo. A mesma de Dimas, quando eu era nova demais
para entender que ele só estava me usando.
– Eu gosto da ideia de lhe ter como aliada... – Ele apoiou a sua taça na
bancada e enlaçou uma mão na minha cintura e outra na minha nuca – e
como minha rainha, Eleanor. Mas não lhe prometo amor.
– Eu não quero amor, Ian. – Não o seu.
– O que você quer, minha bela aliada?
Eu tinha sido usada tantas vezes, agora era a minha vez de aproveitar
tudo que tinha aprendido no infortúnio que era minha vida.
– Quero poder.
– E como posso lhe dar isso nesse momento? – Ian tinha seus olhos
escuros cravados nos meus. Terminei as últimas gotas na taça, e deslizei as
alças do meu vestido para baixo dos ombros, deixando que fluísse pela
minha cintura.
– Podemos começar a ensaiar como será construir a nossa dinastia.
Sua resposta veio com os lábios colados nos meus e, em meio à todo o
prazer egoísta que eu sugava de seu corpo, me senti livre. Mas eu jamais
estaria.
Capítulo 23
Luna

Abri os olhos com os primeiros raios da alvorada. Não entendia como


dentro daquele portal tínhamos tanta luminosidade, mas acredito que a
região não fora batizada de Vila do Sol à toa. Ainda usava o mesmo vestido
da noite anterior, estava cansada demais para trocar por qualquer outra
coisa.
Me ajustei no colchão como se estivesse em um campo de dentes-de-
leão, percebendo que a maciez efêmera do conforto ao despertar logo se
dissiparia como delicadas flores ao mero sopro. Posicionei minha cabeça
longe dos raios de sol que repousavam sobre meu travesseiro como um
despertador particular.
Alguns dias; era tudo que eu teria ao sair daqui, porém, saber que
estava segura, de alguma forma, entre essas paredes me reconfortava. Eu
poderia ganhar tempo, se Dax estivesse certo... Ele não teria por que mentir
nessa informação. A menos que estivesse trabalhando com o pai esse tempo
todo.
Eu não saberia. Era inútil tentar. O fardo de todo rei e rainha é
desconhecer seus verdadeiros aliados e estar preparado para uma traição
vinda de qualquer lugar e a qualquer momento. Mas eu não esperava que
viesse logo dele. Não queria.
Por que eu insistia em não aprender essa lição? Por que eu insistia em
querer acreditar em Dax, mesmo quando tudo apontava para o outro lado?
Por que meu coração insistia em se comportar feito um idiota?
Sacudi a cabeça dos pensamentos intrusos que me atormentavam nos
primeiros minutos da manhã. Hoje não era o começo do último dos meus
dias, não mais do que qualquer outro. Eu me tornei responsável pelas
minhas próprias decisões há muitos anos, e a verdade é que era mais fácil
ser uma princesa e influenciar decisões, ao invés de tomá-las efetivamente.
Indignar-se com pensamentos avessos aos seus, ao invés de ser aquela
questionada e duvidada todo o tempo.
Hoje, era a primeira vez em que eu realmente estava a poucos passos
de cumprir minha missão. Se o herdeiro sobrevivera, ele estaria aqui.
Ainda deitada na cama, toquei na gema morna junto ao meu peito e a
levantei até os meus olhos. Admirei sua nuance vermelha, escarlate e
carmim reluzir contra o feixe de luz que atravessava o vidro. Alguns
pequenos cortes nos meus dedos já cicatrizavam, pois eu não a manuseava
há alguns dias.
– Como eu vou saber a quem você pertence? – perguntei, esperando
uma resposta. Um brilho especial. Uma vibração. Nada. Sussurrei
novamente: – A gente podia combinar um código. Você pode pulsar quando
estiver perto do seu dono. O que acha?
Nenhuma mudança.
Luna, você precisa parar de conversar com a pedra.
É estranho.
Tá assustando a pedra.
Sentei-me na cama, desfazendo alguns nós do meu cabelo. Ele estava
amassado e ainda com leves traços de umidade. Caminhei até o espelho do
quarto e, apesar de estar suficientemente bonita para alguém que acabara de
acordar, faltava alguma coisa. Encontrei um vaso de trepadeira que pendia
folhas verdes e fartas pela janela e, dali, chamei a magia que se transformou
de um pensamento a energia.
Não havia horizonte ou paisagem que pudesse ser observada. Apenas
luz em seu complexo espectro, como se estivesse dentro de um arco-íris.
Dax certamente estaria fascinado, e me pergunto para que ele usaria esse
conhecimento.
Voltei a atenção para o vaso e, finalmente vi uma linda rosa, no mesmo
tom dos meus cabelos, surgir já desabrochada. A tirei do vaso evitando os
espinhos, e os removi com um gesto simples. Meu coração formigava toda
vez que usava a magia para algo assim: descomplicado, sem propósito
algum além de roubar alguns sorrisos. Havia uma fugacidade parecida com
a sensação de fazer uma nota ressoar no violino. Puro prazer apenas por
alguns instantes de plenitude causado pelas pontas dos dedos. Será que a
música também era uma forma própria de magia?
Juntei duas mechas do meu cabelo para trás e as prendi, colocando a
flor no topo da cabeça. Costumava fazer esse mesmo penteado ao visitar o
jardim que Yohan Montecorp plantara para mim. Como será que ele estaria
agora?
Meu peito pesou ao lembrar essa ideia. Não o visitei quando tive a
oportunidade, e de repente não havia nada mais que eu quisesse no mundo
do que passear pelos seus corredores perfumados uma última vez.
Mas minha mente não poderia trilhar esse caminho. Respirei fundo e
andei pelo quarto revirando as gavetas das cômodas em busca de algo que
pudesse pintar meu rosto, ficando agradecida ao encontrar pequenas latas
com pastas coloridas nos tons de vermelho, preto, verde, roxo e em todas as
demais nuances que já havia visto. Depois de um tempo na estrada e dentro
de uma montanha, era um alívio poder olhar no espelho sorrir diante do que
via.
– Vamos lá, Luna – disse, enrolando duas mechas de cabelo na frente
do rosto e andando em direção a porta do quarto. – Encontre o herdeiro hoje
mesmo e passe os últimos dias da sua vida tocando violino, comendo
chocolate e relendo suas histórias favoritas. – Abri a porta, pressionando a
maçaneta dourada com força até destrancá-la. – Ache alguém bonito o
bastante para dar um último beijo e pare de choramingar.
Eu não disse isso em voz alta.
Disse?
Pelo meio sorriso canalha de Blaze na minha direção, eu
provavelmente havia cavado minha própria cova. Não poderia culpar Dax
dessa vez.
– Precisa de alguma coisa, princesa?
– Se você parasse de me assustar aparecendo do nada, eu agradeceria.
– Eu obviamente ia bater na porta – ele constatou.
Endireitei minha postura.
– E o que você deseja?
– Você precisa mesmo ser mais específica com essa pergunta, Luna.
Não quero te assustar de novo. – Sua boca repuxou para cima, e empurrei
seu braço, escondendo um sorriso. Algo em meu peito palpitava de um jeito
diferente.
– Bom, aproveitando que está aqui e que, se eu entendi certo, você
conhece esse lugar... – Pressionei os lábios, não sabendo exatamente o que
buscava. Eu vim até aqui sem um plano, poderia continuar com essa
estratégia. – Teria algum tipo de arquivo? Uma biblioteca com registros
sobre árvores genealógicas ou talvez...
Ele me interrompeu, parando no meio do corredor vazio e murmurou:
– Você busca o herdeiro perdido de Cinaéd, certo? – Eu assenti. – Eu
quero te ajudar, mas adoraria que me explicasse quais são suas intenções,
meu bem. – Algo no seu tom me causava arrepios. – De jeito nenhum uma
viajante do mundo se arriscaria tanto assim por pura curiosidade histórica.
E qualquer imbecil pode deduzir em um segundo que você não é uma
garota normal. – Eu estava paralisada pelo seu olhar de combustão
completa. Me sentia nua enquanto ele analisava quem eu era como se
pudesse enxergar a verdade através de mim. Queria saber o quão longe ele
iria. O quanto se lembrava. Blaze tocou a rosa no meu cabelo com o
indicador, deixando a lembrança da sensação. – Você tem esse poder que
me fascina, mas seja lá qual for o seu segredo, eu preciso saber se realmente
deseja a minha colaboração. Pois tudo que tenho até agora, é que a garota
impossivelmente maravilhosa que apareceu no meu caminho pode ser
simplesmente uma espiã do território inimigo. – Ele prendeu a respiração
antes de terminar a frase. – Somente a herdeira de Montecorp poderia estar
tão obstinada a encontrar o herdeiro de Cinaéd. Estou errado, princesa?
Não era isso que eu esperava, mas era a resposta que eu lhe daria.
– Está, Blaze. – Firmei os pés no chão, precisando dessa base para
encará-lo sem vacilar. Eu não queria mentir, mas não poderia contar a
verdade em parcelas. – Eu sou herdeira do destino, e a única coisa que ele
me deixou foi o tempo que, por sinal, está acabando. Não sou uma princesa,
apenas um peão em um jogo muito maior do que eu e você. Estou presa em
uma emboscada, e você pode me ajudar acreditando que nada de mau vai
acontecer pela minha intenção ou pelo meu comando. Ou pode duvidar de
mim, e me vigiar noite e dia.
– Era tudo que eu precisava ouvir. – Ele se virou em direção às escadas
e começou a andar casualmente, como se não tivéssemos revelado
informações preciosas. – Você disse que precisava encontrá-lo se quisesse
usar seus dias para “comer chocolate”, não é? – ele brincou. Corei. Eu disse
bem mais que isso. – Vamos por aqui então, princesa.
– Eu já disse que não sou uma princesa – falei entre os lábios, batendo
o pé no chão.
– Você está longe de casa, Luna. No meu território. Aqui, você é o que
eu decidir.

Segui Blaze por um caminho totalmente diferente do que fizera na


noite anterior . Não descemos as escadas em direção à taverna e a porta de
entrada, mas subimos, subimos e subimos por um caminho que espiralava e
estreitava a cada momento. O ar parecia rarefeito, tal qual no topo de uma
montanha, mas não havia janelas em parte alguma para confirmar minhas
suspeitas.
Os corredores de pedra pareciam ter sido esculpidos especialmente
para esse lugar, diferente dos acidentes geográficos de Ellioras, onde era
vontade da própria terra formar uma civilização perfeita. Fiz menção de
perguntar uma ou duas vezes onde ele estava me levando, mas a cada passo
apertado, Blaze sinalizava para não fazermos barulho. Era sensato.
Forasteiros não deveriam ter acesso aos arquivos históricos de uma
civilização refugiada.
Parte de mim sabia que eu não deveria estar fazendo isso escondida.
Que deveria ter ido até Molly ou até a matriarca e tentar um caminho
diplomático, mas tempo da desconfiança não era um recurso que eu podia
dispor. Precisava de mais do que respostas. Precisava de soluções.
Em algum momento, a escada ficou tão estreita que as pedras
raspavam nos meus ombros, e me inclinei um pouco para não danificar o
vestido. Invadir os registros de Cinaéd já era o bastante, não precisava
arruinar a bela peça de roupa que haviam me emprestado. Algumas janelas
triangulares, largas o bastante apenas para que uma andorinha passasse,
começaram a aparecer, ainda espaçadas nessa tal escadaria que rimava com
o infinito. Eu estava ofegante demais para notar, não sei quando percebi que
nenhum raio de sol nos atingia, e que atrás das vidraças dessas janelas o céu
salpicado de estrelas repousava paciente.
– Já anoitece... – a pergunta saiu de mim espantada.
– Shhhh – Blaze interrompeu, balançando a cabeça em negativa. Ele
encurtou a distância entre nós, se aproximando do meu ouvido. Senti alguns
fios de cabelo fazerem cócegas na minha nuca quando sua respiração
chegou no meu pescoço exposto. Senti o toque dos seus lábios mais do que
ouvi as próximas palavras. – Só significa que estamos chegando.
Fiz um gesto para que fossemos mais rápido, embora minhas pernas já
doessem pelo excesso de degraus, e após alguns minutos – e alguns cometas
lá fora – encontramos no final da escadaria uma porta na forma de um
triângulo perfeito. Não havia nenhuma maçaneta à vista. Nenhuma
fechadura.
– Se você não souber uma forma de entrar aí, vai me carregar no colo
na descida ou eu te mato por ter me feito subir isso tudo à toa! – murmurei
irritada, enquanto Blaze estalava os dedos segurando uma risada satisfeita.
Como se esperasse essa reação de mim. Como se me conhecesse o bastante
para saber que eu reagiria assim. Meu peito apertou.
– Não sei se está me fazendo um convite ou se está me desafiando –
ele sussurrou, agora desenhando os dedos por algumas runas cravadas na
porta. Elas estavam ali um instante atrás?
– Eu não sei o que você está fazendo, quero que me explique.
– Aqui você não dá ordens, princesa.
– Por favor, oh nobre e poderoso sabe-tudo? – pedi com uma
reverência debochada.
– Melhor assim, mas prefiro que assista. Você não é a única que tem
um truque na manga, Luna.
Antes que pudesse contra-argumentar, as pontas do dedo de Blaze
implodiram em chamas que revelaram inscrições que cobriam toda a porta.
Para mim, parecia uma trama bordada em uma tapeçaria antiga, mas tinha
certeza de que para ele – para toda Cinaéd – era uma linguagem. Não sabia
se era a forma de controlar portais, ou se era o registro da magia de fogo,
mas uma coisa que tinha aprendido, era reconhecer uma aura majestosa
quando a via. Essa era, certamente, divina.
A porta não se abriu, mas se tornou translúcida, revelando uma sessão
de estantes repleta de livros. Blaze estendeu sua mão para mim, e o toque
ainda guardava a lembrança das chamas. Seus dedos ainda estavam
avermelhados, mas não o bastante para retrair. Acolhedor, de certa forma.
E, assim, andamos em direção ao arquivo, buscando algum registro que me
apontasse para a direção para o herdeiro perdido de Cinaéd.
Conforme andava pelos corredores vazios, cercados por histórias
desconhecidas, eu sentia o olhar vigilante de Blaze e algo em meu peito
insistia em palpitar.
Capítulo 24
Dax

Meus olhos estavam vermelhos após a noite em claro. Não pude dormir
enquanto minha cabeça fervilhava, buscando a possibilidade de uma
salvação entre as lacunas de dúvidas. Revirei minhas anotações, pois tinha
certeza de que estava deixando algo passar. Nas vezes que conjurei a
Sombra a pedido de meu pai, a conectava junto ao alvo usando um
elemento energético pessoal – um fio de cabelo, saliva, sangue, um objeto
de extremo apreço –, construindo um magnetismo entre os dois.
O feitiço era poderoso, pois nada cessava a conexão além de atingir
sua vítima. Naquela maldita noite, eu acreditei que ela não era o alvo e me
descuidei desse detalhe vital. Contudo, se houvesse alguma forma de
mascarar a energia de Luna, uma maneira de torná-la indetectável para este
servo da escuridão, ela poderia andar a salvo enquanto o espírito nefasto
seguisse a vagar o mundo pela eternidade com seu propósito maldito
inacabado.
O quarto era frio, mas suor escorria pela minha testa enquanto eu
rabiscava ideias de como fazer isso. Como protegê-la. Como merecer sua
confiança novamente e recomeçar do jeito certo. Sem verdades omitidas,
sem confissões guardadas.
O bloco no qual anotava tudo que pensava, era particularmente minha
invenção favorita. As folhas eram finas o bastante para que tivesse milhares
de páginas sem que ficasse com uma grossura maior que dois dedos, mas
mantinham a resistência normal contra o grafite.
Todos os meus anos de ideias, resultados de experimentos, objetos
inventados e aperfeiçoados, estavam ali: instruções de como manusear a
rocha prima, truques de luz que usava com Eleanor na infância, a dinâmica
dos rios na Floresta do Oblívio, notas sobre o comportamento do unicórnio,
propriedades sobre as plantas de Ellioras e, mais recentemente,
pensamentos sobre as novas habilidades de Zoey.
Ela era capaz de enxergar energia, o que fazia dela a pessoa perfeita
para me ajudar nos testes que precisaria fazer quando eventualmente
encontrasse uma resposta. Reli minhas anotações, buscando nas minhas
próprias entrelinhas a informação que sabia que estava à minha disposição,
mas que estava perdendo de vista. Eu poderia criar um escudo energético,
parecido com a tecnologia do portal em que estávamos. Talvez, se falasse
com a matriarca, poderia desenvolver uma armadura que Luna pudesse usar
para se movimentar livremente. Exceto que qualquer momento em que ela a
tirasse, estaria em risco novamente.
Arranquei a folha, descartando a ideia e voltei a cogitar as
possibilidades. A sombra flertava com a magia oriunda das profundezas, e a
magia de Lunara era associada à lua, então quem sabe um mecanismo de
luz pudesse criar uma aura para afastá-la? Deixei a ideia no papel,
sublinhando as palavras “luz” e “aura”.
Eu estava perto. Não o bastante para cantar vitória, mas o suficiente
para não querer desistir, mesmo com os olhos ardendo e os dedos calejando
tamanha a fricção contra a madeira do lápis.
Andei em círculos pelo quarto, afastando meu cabelo do rosto,
buscando uma resposta na janela sem horizonte. Deveria ter algo adiante,
não deveria? Normalmente, estaria fascinado por essa possibilidade, mas
agora entender o funcionamento de um portal dessa magnitude era a última
das minhas prioridades.
Não me reconhecia mais. Minha própria identidade, mascarada por
uma sucessão de infortúnios, sofrera uma metamorfose, e talvez eu
estivesse longe demais da crisálida para perceber quem deveria ter me
tornado. Eu repelia minhas ações, minhas escolhas, a minha própria
história.
Eu não era mais o reflexo do grande mago que almejei ser: Uma fonte
de conhecimento e inovações. Um questionador do mundo, um desbravador
de dimensões. Era somente alguém que havia quebrado qualquer esperança
de futuro da pessoa mais fascinante que havia conhecido.
Me encarei no espelho, a figura cansada e desalinhada que devolvia o
olhar refletia como eu me sentia. Arregalei os olhos, caminhando
visceralmente em direção ao objeto. Toquei sua superfície, constatando o
óbvio: jamais poderia atravessá-lo.
Passei os dedos pelo cabelo, anotei mais algumas palavras cruciais no
caderno e o coloquei no bolso antes de sair correndo pela porta, em direção
ao quarto de Zoey. O sol ainda não tinha nascido, mas não podia esperar por
ele.
Eu tinha um plano.
Capítulo 25
Luna

– Você está me vigiando? – minha voz suave cortou o silêncio quando


parei de cantarolar baixinho. No entanto, mantive a atenção no grosso livro
vermelho na prateleira acima, ficando na ponta dos pés para alcançar o topo
e inclinar o volume na minha direção a fim de ler o título. As letras
douradas tinham a caligrafia reta, tal qual as runas que havia visto na porta.
E, no idioma natal de Cinaéd, pude ler “Legado e sucessão”.
Molly, Blaze, Amelia e os demais que entreouvi na Vila do Sol,
falavam a língua comum. Certamente, era uma forma de se mesclar no
mundo sem chamar atenção para a própria origem. Em Montecorp também
usávamos a mesma linguagem, mas tínhamos um idioma próprio, escrito,
onde dividíamos informações de inteligência militar, a história de Argrinis e
do começo dos tempos, quando o sagrado Carvalho de Prata fora plantado.
Minha mãe costumava dizer que Ayla regou pessoalmente a semente da
nossa árvore e, como foi a sacerdotisa que me ensinou sobre os caracteres e
semântica, eu acreditava. Quando somos jovens, temos a impressão de que
tudo que já estava aqui desde que nascemos é eterno. Que sempre esteve e
que sempre estará.
Crescer é perceber que estávamos enganados. Que tudo parte, morre e
se quebra antes do tempo. Às vezes, cedo demais. O destino não se importa
com justiça, apenas com a história que ele decidiu contar. Ninguém escapa
do seu, e só resta a nós, meros mortais, rezar para seu Deus favorito
pedindo sua graça e absolvição.
Como uma princesa que nasceu em período de guerra, entender a
linguagem de Cinaéd era uma necessidade estratégica. Eu precisava saber
decifrar seus planos militares, barganhar por tempo caso fosse sequestrada.
Nunca fui ensinada sobre sua história, crenças e costumes, apenas para o
que servia os artifícios de batalha.
Agora estando aqui, nesse portal impossível e maravilhoso, diante de
uma cultura que seus habitantes lutaram tanto para preservar, eu entendo
por que meus antepassados temeram o povo do dragão. Cinaéd, até onde eu
podia perceber, era estupendo.
Em Montecorp eu conheci as noites em claro em preces no templo,
pedindo para que meus pais retornassem. O povo à minha volta, com o
coração no mesmo lugar de fé que o meu; as aulas de espada que me
exauriam e sobrepujavam frequentemente as aulas de música; as
caminhadas pelas cidades, e o olhar incerto daqueles que dividiam o mesmo
medo que eu; a corte pronta para colocar em dúvida qualquer nova ideia; as
conversas entreouvidas.
A guerra havia começado mais ou menos no mesmo período em que o
dragão gerou seus herdeiros, provavelmente ameaçada pela civilização que
tinha um Deus ao seu lado, enquanto Montecorp contava apenas com as
bênçãos de Argrinis. Vidas deveriam valer mais do que o medo dos
aristocratas. No meu reinado, essa era a minha principal intenção, mas nada
aconteceu como planejei.
Sei que não tive uma infância feliz, mas também acho que a felicidade
é inerente a esse período. Talvez porque eu sabia menos do mundo e das
suas consequências, e a ignorância me protegia como uma armadura de
flores. Bela, frágil, que existia apenas na minha imaginação. Eu tinha
conhecido uma vida plena, sim, mas em outra dimensão. Agora, meses após
o meu retorno, toda essa vida parecia mais com memórias compartilhadas
com um outro alguém do que experiências próprias. A falta que sentia de
Luiz e Diana se encaixava na falta que tinha de Yohan e Ella. A saudade de
Íris e Olivia tinha sabor de férias de verão: eu sabia que jamais as veria,
mas ainda esperava que sim. Queria que o destino gostasse um pouquinho
mais de mim, e que esbarrasse com elas em alguma esquina nesse mundo.
A única coisa que me fazia acreditar que não tinha sido apenas um
sonho louco era a presença dolorosamente familiar de Blaze. Estiquei ainda
mais os dedos para tentar segurar melhor o livro grosso, e ele parou atrás de
mim, pegando o exemplar e entregando nas minhas mãos. O aroma de
pimenta rosa preencheu o ambiente, e apoiei o livro em uma mesa de
mogno onde várias pilhas reviradas se estiravam.
– Ou isso, ou eu só gosto de olhar pra você. Escolha qual dos dois
prefere acreditar – ele respondeu.
– Você disse que confiava em mim. – Alisei a capa do livro,
esperançosa para encontrar alguma resposta. Já havia folheado volumes
sobre o poder do dragão, o reinado de fogo, principais oferendas aceitas, e
tudo mais que alguém egocêntrico exigiria em sua própria biblioteca.
– Eu disse que “tinha tudo que precisava ouvir”. Você ainda é de
Montecorp, é sensato que mantenha os olhos em você. Não faria o mesmo
no meu lugar?
– Depende. Você nunca me disse qual é o seu lugar. Até onde sei, você
poderia ser o herdeiro que estou buscando, já que tem toda essa coisa de ter
fogo na ponta dos dedos e tal. – Toquei na ponta do nariz de Blaze. – Você
está no topo da minha lista.
– Você pode acreditar que sou dono de terras distantes, e estou fugindo
das minhas responsabilidades e buscando uma vida de aventuras. Pode
pensar que tenho um passado trágico e encontrei paz espiritual através da
vingança. Todas essas opções absurdas são válidas mas, pelas minhas
contas, se algum filho de Bólius estiver vivo, ele tem uns 60 anos de idade.
Eu pareço ter 60 anos pra você, Luna?
– Mentalmente, parece ter 8.
– E você parece ter 84 quando tenta ser ranzinza. – Mostrei a língua
em uma careta, e ele completou: – Se eu fosse o tal herdeiro, Amelia teria
alguma simpatia por mim. Você ainda não teve a oportunidade de conhecê-
la, mas veria que eu a irrito mais do que desperto qualquer tipo de
reverência.
– Não posso culpá-la. – Segurei minha boca que insistia em repuxar
para cima.
– Esse dom... – Blaze estalou os dedos, segurando uma chama delicada
na palma da mão. – É raro, mas não é exclusivo. Eu não tenho nada assim
como você, Luna.
Ele me encarou com os malditos olhos azuis, tão injustamente
familiares. Sua atenção corria pelo meu rosto, parando por um instante a
mais nos meus lábios. Meu peito apertou, calor irradiando de mim,
enquanto a vontade de questionar se ele se lembrava de alguma coisa
travava minha garganta com um nó.
– Blaze, eu posso te fazer uma pergunta? – Engoli em seco.
– Todas que quiser – ele respondeu levantando os ombros, parecendo
mais aberto do que nunca.
Era a hora. Eu poderia finalmente descobrir suas reais intenções, saber
se ele também havia dividido comigo uma vida distante. Procurei as
melhores palavras para explicar o porquê precisava de tais respostas para
não parecer maluca, exceto que... eu precisava estar preparada para
qualquer coisa que ele dissesse. Se ele jamais havia me visto, e pensasse
que eu tinha desenvolvido algum tipo de obsessão por ele, criando
memórias românticas sozinha, seria um desastre. Eu não estava pronta para
essa rejeição, não queria começar a me envergonhar das lembranças que
guardava com tanto carinho, independente se eram reais ou não. Estavam
em mim, em cada parte da minha pele. Isso era real o bastante.
E percebendo que estava em silêncio talvez por tempo demais,
coloquei uma mecha para trás da orelha e olhei pela janela estrelada. Fiz o
melhor para minha voz soar despreocupada:
– Por que fica de noite conforme subimos aqui? – falei, voltando
atenção para o sumário do livro, embora estivesse com certeza absoluta que
substituíram meu coração por um tambor de guerra. Quis acreditar que a
expressão dele murchou um pouco.
– O portal protege esse lugar, só entram aqueles que tem a chama do
sol. – Ele se afastou, puxando uma cadeira na outra ponta da mesa e se
sentando. – Amelia nunca iria concordar com isso. Aliás, ela também tem a
magia de fogo, mas não é a herdeira de Bólius, por exemplo, sabichona.
– E como você tem acesso a esse lugar se a matriarca não permite?
– Ela não gosta de mim por um motivo. – Ele riu, e se corrigiu. – Ok,
por vários.
– Obrigada por quebrar as regras por mim – agradeci, sincera. – Eu só
queria resolver isso o quanto antes.
A expressão dele recaiu, severa.
– É por causa do que Dax fez?
– Já era minha prioridade antes disso, Blaze. E eu sei que ele não fez
de propósito, e também sei que não tem como desfazer, então... só gostaria
de não pensar nisso agora.
– Mas ele também disse que você estaria segura aqui.
– Eu não posso viver para sempre em um portal, presa em uma torre,
Blaze.
– E prefere morrer lá fora? – Ele se levantou da cadeira, espalmando a
mesa.
– Eu... – Apertei os olhos marejados para evitar a queda lágrima. Doía
a traição, a vontade de conversar com Dax, a dor em não conseguir perdoá-
lo ainda, o tempo passando rápido demais e a certeza de que não podia
partir sem esclarecer tudo com ele. – Eu não quero responder essa pergunta.
É a única verdade que posso oferecer.
Blaze andou até mim e hesitou, passando a mão pelo cabelo.
Começando algumas frases sem terminar nenhuma. Me levantei, andando
sem rumo até uma estante, fingindo que procurava alguma coisa, uma
névoa de silêncio pairando entre nós.
Senti o calor dos seus dedos tocarem uma de minhas mãos, e me virei
na sua direção. Blaze levou a palma da minha mão até seus lábios em um
movimento repleto de incerteza e colocou um beijo terno ali. O fitei por
alguns instantes, estranhando a ternura daquele momento em contraste com
as provocações que normalmente fazíamos, seus olhos estavam
transparentes e penetravam os meus.
O gesto era sincero, e me faltava bravata para perguntar o que ele
significava, e se ele sofria com as mesmas dúvidas que eu. Blaze tocou meu
rosto, o calor da sua palma provocando uma fermata em meu coração. Uma
pausa indeterminada no tempo, tal qual o hiato em algumas das minhas
músicas favoritas no violino.
O que aconteceria depois poderia ser tudo, ou nada, e eu estaria de
bem com o destino desde que o momento fosse caridoso o bastante e não
passasse tempo demais. Eu o deixei levar o meu corpo contra o seu, senti o
desenho dos seus músculos preencherem minhas curvas, um pouco mais
esguio do que eu me lembrava. Ele havia mudado; o quanto, seria
impossível dizer.
Então só busquei entendê-lo enquanto ele me abraçou. Minhas mãos
pressionavam suas costas, e acolhi sua chama, o perfume que me envolvia.
Seus dedos subiam e desciam pelo meu cabelo, e relaxei o bastante para
abraçá-lo de volta. As lágrimas caíram, tímidas, sem minha permissão.
Blaze apertou meu corpo contra o dele e, de novo, me perguntei se esse
enlace também atormentava suas lembranças tanto quanto as minhas.
– E a única verdade que posso oferecer, é que vou te manter em
segurança enquanto estiver por perto, independentemente de qualquer coisa.
– Por que você se importa tanto? Você mal me conhece. – Meu peito
doía com a pergunta oculta, engasgada em esperança, e ele sussurrou:
– Justamente porque eu quero te conhecer.
Blaze inclinou o rosto em direção ao meu, um movimento que já havia
vivido tantas vezes quando nossos lábios se tornavam um só. Eu queria
responder a esse magnetismo, me render à força sobrenatural que insistia
em nos unir em todas as vidas que havia experimentado. Mas não assim.
Não em prantos pela contagem regressiva da minha morte. Não sem revelar
que eu sabia quem ele era, que já o conhecia, e que isso importava.
Deitei a cabeça novamente no seu peito, e seu abraço envolveu minha
cintura, o calor na ponta dos dedos passando pelo tecido do vestido. Ele
colou um beijo no topo da minha cabeça, e soltou uma risada que
reverberou todo o seu corpo antes de completar a frase.
– E quero todo tempo do mundo pra isso.
Eu assenti, e fiquei ali alguns segundos – daqueles que tem sabor de
eternidade.
Ao voltar para a pesquisa, as horas passaram sem aviso como é da sua
natureza quando estamos apressados, e dentre o idioma que ressoava em
mim como uma memória longínqua e perversa, encontrei beleza e
respostas. Eu revirava as páginas dos livros, e suas ideias plantavam
sementes na minha mente que logo germinariam em fascínio. Ao que supus
ser o cair da tarde, meu estômago reclamava, meu coração palpitava cada
vez mais forte, mas eu sabia de três coisas:

1. O nome do herdeiro perdido de Cinaéd.


2. Que eu o conheceria na apresentação de hoje à noite, pelo que
Blaze disse.
3. Meu violino ainda estava partido, e eu precisava urgentemente
ensaiar.
Capítulo 26
Dax

Bati na porta em que tinha visto Zoey e Molly entrarem na noite anterior,
quando subi a infinidade de escadas após o jantar. Algo em mim encontrou
conforto ao ouvir as patas de Volpe do outro lado. Elas certamente não
demorariam para abrir. Ou foi assim que imaginei. Revi meus pensamentos
uma centena de vezes, registrando cada detalhe importante nas minhas
anotações. A respiração corria pelo meu corpo incerta e imprecisa, ainda
descontrolada diante da euforia que acompanhava o estalo de uma nova
ideia.
Eu não sabia como executaria o meu plano, mas tinha um ponto de
partida. A linha de chegada era a longevidade de Luna. Não precisava dizer
que essa seria minha maior invenção. Insisti com o nó dos dedos contra a
superfície de madeira, mas em dado momento já estava apoiado de costas
contra a porta, impaciente com a demora. Corri os dedos pelos cabelos, os
afastando do rosto enquanto unia na folha do caderno teorias e elementos
que precisaria testar.
Em algum momento, a maçaneta girou fazendo a porta abrir
bruscamente e cambaleei para trás, entrando no quarto. A figura
descabelada de Molly me recebeu, esfregando os olhos verdes como se
quisesse mudá-los de lugar no rosto. Ela se espreguiçou e disse entre
bocejos:
– Tá muito cedo para sair de camas macias, Dax.
– É por um bom motivo – afirmei, andando em direção à cama onde
Zoey dormia, totalmente enrolada. – Zoey! – chamei. Ela abriu um dos
olhos, e se sentou na cama com dificuldade, ainda envolta por camadas e
camadas de cobertor.
– Muito cedo pra largar o travesseiro – ela murmurou com a voz
embebida em sono.
– Levanta logo! – Puxei o cobertor dela pelos pés.
– Ei, cuidado com a minha namorada – Molly advertiu, sentando-se na
cama. Era grande o bastante para caber umas cinco pessoas, percebi.
– Ela é minha amiga antes de ser seja-lá-o-que-vocês-inventaram –
rebati, e me voltei para Zoey. – Eu preciso de você.
– O que aconteceu? – Sua cara amassada tinha uma faísca de
curiosidade.
– Eu descobri uma forma de proteger a Luna da Sombra – declarei,
sem acreditar ainda na veracidade das minhas palavras. Mas era a verdade,
eu sabia como consertar o que tinha feito.
– Por que você não disse isso antes? – Molly deu um tapa nas minhas
costas. Para alguém sonolento ela tinha bastante força.
– Como foi isso, Dax? – Zoey fez o melhor para se desenrolar do
restante do cobertor, e começou a andar em círculos pelo quarto. – Foi tipo
aquelas ideias que vem em um sonho como uma iluminação mágica?
– Foi tipo uma que veio de uma noite em claro, iluminado pelo
desespero.
Ela me encarou, demorando a atenção nas minhas olheiras, olhos
vermelhos e cabelo desalinhado. Apertei meus olhos, e ajustei o cabelo para
trás como pude. Não era importante agora.
– Você não quer descansar um pouco antes?
– A Sombra não vai descansar, então eu também não devo. Não posso.
– Achei que Luna estava segura aqui – Molly refletiu.
– É uma ideia, mas não posso afirmar com certeza. O mais prudente é
agir como se estivesse correndo contra o tempo. E, pra isso, preciso de
vocês duas.
– É só dizer, que se é por você e por Luna, está feito – Zoey afirmou.
Assenti, tranquilo em sentir a respiração se acalmando, o controle
voltando para minhas mãos. Eu poderia fazer isso.
– Preciso de alguns espelhos. E uma sala onde possa trabalhar.
Não pude evitar que um sorriso se formasse em meus lábios, e a forma
que Zoey e Molly se entreolharam me mostrou que eu tinha comigo as
aliadas certas.


Algumas horas depois, Molly tinha recolhido uma dúzia de espelhos e
Zoey havia me ajudado a limpar a mesa do quarto. Segundo elas, os
aposentos de Molly eram o lugar ideal para executar qualquer ideia que eu
pudesse ter, sem levantar suspeitas dos outros habitantes da Vila do Sol.
Aprendi que estávamos na casa da matriarca e, por mais que muitas famílias
ainda vivessem aqui, outras residências e estabelecimentos tinham sido
construídos da mesma forma – provavelmente os que vi ao redor da praça, e
outros mais.
Eu havia desenhado alguns esboços do aparato que protegeria Luna, se
minhas suspeitas estivessem corretas – e, por Argrinis, eu precisava dessa
confirmação. Pela primeira vez, eu não estava movido pela excitação da
descoberta ou pela glória de uma nova invenção, mas por um propósito
maior. E, quem sabe, se eu pudesse salvar a vida de Luna, também poderia
começar a consertar outras coisas na minha vida. Poderia libertar a mente
de minha mãe, reatar os laços com a minha irmã; ainda haveria tempo.
Enquanto isso, tempo era o recurso que me faltava. Mesmo aqui, nesse
portal suspenso, eu não deveria contar com a sorte. Com um pouco mais de
calma, cheguei a analisar a vista das janelas com as mãos no bolso,
contemplando a mais pura luz – quase cegante. Ainda assim, encantadora.
Na biblioteca de Amon, sempre era dia e noite. O portal em Montecorp era
o domínio do guardião das palavras. Jamais imaginei que esse
conhecimento poderia ser moldado de acordo com a vontade humana. É
isso que acontece quando você normaliza o que conhece, quando para de
surpreender com algo só porque o cotidiano o disfarçou de rotina. Você
esquece que ali pode haver algo de fantástico, e não se penaliza por deixar
as maravilhas escoarem pelos dedos, pois não se culpa. Você não percebe.
O mundo acontece, e uma pessoa é capaz de viver toda sua existência a
parte dele se não se entende como uma parte fundamental de tudo.
– Dax, você precisa piscar. – A voz meiga de Zoey interrompeu meus
pensamentos, desviando minha atenção para ela. Minha amiga usava uma
roupa diferente da última noite, percebi que ela e Molly trocaram os trajes
entre si. – Se você não quer dormir direito, pelo menos pisca.
– Não acho que piscar seja a solução dos meus problemas.
– Você não vai saber se não tentar.
Fechei os olhos, esfregando com o indicador e polegar e me surpreendi
com o ressecamento dos glóbulos oculares.
– Já temos tudo que preciso? – desconversei.
– Um milhão de espelhos de tamanho pequeno, uma bancada livre, um
monte de potinhos com líquidos coloridos, e alguns cristais. – Ela enumerou
com os dedos, contente. – Você vai lembrar a Sombra o quanto a Luna é
linda e o quanto ela é feia, e ganhar a proteção dela com bons argumentos?
Senti meu rosto ficar quente.
– Não acho que ela precise de alguém para lembrá-la disso, Zoey. –
Mas eu alegremente passaria boa parte dos meus dias mostrando o quanto
ela me fascina, se tivesse a chance. Depois de tudo que aconteceu, já sabia
que não era mais uma possibilidade. Eu poderia ainda admirá-la. – Eu vou
moldar um... escudo, digamos assim.
– Isso não parece prático, mas deve ser eficiente – acrescentou Molly.
– É um escudo energético – expliquei, caminhando até a bancada. – A
Sombra é atraída pela energia vital, como magnetismo por fricção. –
Provoquei atrito entre as mangas da minha túnica, e levei até a minha
cabeça para mostrar os fios se arrepiando. Molly levantou uma sobrancelha,
e Zoey levou a mão até o próprio cabelo, afastando algum arrepio
imaginário. Não precisava, seus cachos estavam perfeitos. – Com isso
aqui... – Levantei um espelho em cada mão. – Eu consigo refletir a sua aura,
espelhando em outras direções. Isso vai fazer com que a Sombra sempre
esteja no lugar errado. – Repuxei o lábio para cima. – Ou seja, distante dela.
Zoey e Molly estavam estupefatas. Olhos castanhos e verdes se
encararam, trocando confidências invisíveis para mim. Zoey levou a mão à
boca, suprimindo um sorriso. Logo ela estava saltitando. Volpe estava
saltitando. Molly me aplaudia, impressionada. Uma mistura de euforia e
desespero correu por mim, e sabia que era o momento perfeito para
começar a fazer os experimentos.
– Eu pretendia levar Zoey pela Vila do Sol hoje, mas prefiro ver isso
acontecer. – Molly rodou os pulsos e o pescoço, como se preparasse para
uma jornada.
– Eu não vou a lugar nenhum até terminarmos esse tal escudo – Zoey
cantarolou, andando até a bancada e se ajoelhou para olhar os itens mais de
perto, tão parecido com a forma curiosa que Eleanor observava meus livros.
Volpe apoiou as patas na superfície, como se parte dela entendesse e
quisesse ajudar.
– Mãos à obra?
Capítulo 27
Luna

Zhaar Fahir. Zhaar Fahir. Zhaar Fahir. Repeti tal nome vezes o bastante
para que não vacilasse quando finalmente o encontrasse. Segundo os
registros que encontrei, havia outros herdeiros do dragão espalhados pelo
mundo, mas nada me garantia que já não tivessem sido mortos
recentemente por ordens de Niasar – ou há décadas, por ordens de
Montecorp.
O sobrenome Fahir, destinado a linhagem real de Cinaéd aparecia
algumas vezes nos registros, em nomes de monumentos que não fazia ideia
se ainda estavam de pé, citado junto a textos que supus serem poemas,
preces ou cantigas. Todo um legado majestoso, que jamais conheceu seu
ápice e, agora... poderiam decidir o que fazer. Zhaar Fahir poderia ter o
poder da gema de fogo e escolher se iria reconquistar Cinaéd ou se usaria
sua magia para alimentar ainda mais a Vila do Sol.
Porém a verdade era que, se eu tinha alguma expectativa de manter
minha cabeça presa ao pescoço caso minha identidade como rainha de
Montecorp fosse revelada, eu precisaria causar uma boa – excelente –
impressão.
Blaze me acompanhou até a porta do meu quarto, e me despedi com
um aceno rápido antes de entrar e fechar a porta. Não falamos nada sobre o
abraço longo demais, apesar da minha mente continuar revisitando aquele
momento. O relógio na parede não possuía números, apenas desenhos
entalhados com a intensidade do brilho do sol e da lua, indicando o dia e a
noite. Nada preciso, como se pontualidade não pudesse ser verdadeiramente
medida.
Meus pertences estavam sob o baú ao pé da cama. O quarto era
pequeno e aconchegante. A cama era macia, a temperatura era agradável, e
tinha água fresca e doce fluindo da torneira. Algumas rosas cresceram nos
vasos próximos à janela e a brisa morna perfumou o ar à minha volta. Comi
algumas frutinhas, como já tinha se tornado um hábito e uma necessidade, e
peguei o violino de sua capa.
A cravelha precisava de ajuste, e o espelho estava indubitavelmente
partido em dois, as cordas penduradas nele como um penhasco. Tentei
encaixar suas partes da melhor forma possível, frustrada com a perda do
instrumento que Violeta, Imperatriz consorte de Ellioras, fizera para mim.
Alisei o símbolo na voluta, a lua crescente perfeitamente alinhada no
centro do triângulo, e sabia que havia algo diante dos meus olhos que eu
não estava percebendo. É do ser humano a capacidade inata de interpretar
errado as coisas óbvias. Enquanto eu pensava em conseguir algum tipo de
cola, ou de pegar algum outro instrumento emprestado, decidi ceder a
minha loucura – provavelmente porque já tinha entendido que são nesses
momentos de insensatez, que a vida dá certo.
Sem jeito, atrapalhada e irrevogavelmente estúpida, apoiei o violino no
meu queixo, pressionando com força para compensar o equilíbrio do peso.
Arrastei o colar para fora do vestido, e o calor da pedra encontrou a palma
da minha mão assim como observara Blaze brincar com sua própria chama
horas antes. Tateei o topo do baú de madeira até encontrar o arco e fiz o que
qualquer violinista faria: toquei o meu instrumento.
As cordas frouxas não produziam som, apenas desconforto, mas
insisti. Pressionei a gema de fogo contra a madeira, sem me importar se
minha pele começava a arder com alguns cortes superficiais. E assim como
meus dedos insistiam em procurar pelas notas inexistentes, minha mente
sabia qual melodia eu buscava. A única que me acompanhava através de
todas as dimensões era uma canção sobre a lua prateada aguardar seus
filhos que, mesmo no meio da noite, buscavam uma forma de voltar para
casa. Peregrinos na escuridão, guiados pela luz da esperança que viam
refletidos no céu. E assim, eu também voltava para casa, percebi. Não para
o adorável e pequeno apartamento no qual crescera ou para o gigantesco
palácio que governava uma nação.
Mas para essa música.
Clair de Lune.
Sempre que eu estava perdida, ainda podia voltar para ela – o único
caminho que eu sabia trilhar com os olhos fechados. Com as pontas dos
dedos.
Calor irrompeu de mim enquanto a música preenchia o quarto, até me
dar conta de que isso não era possível. Eu estava ouvindo a canção. Abri os
olhos apenas para fechá-los novamente, pois a luz que irradiava era forte
demais. Senti o fio de uma lágrima correr pelo meu rosto, o líquido quente
relaxando meu queixo enquanto encontrava uma posição mais confortável
para tocar. A melodia encontrou seu fim e eu sorri, sabendo que ela
aguardaria por mim novamente. Que nos reencontraríamos.
E, quem sabe, pensei, tudo no universo não passasse de um grande
reencontro: desorganizado, improvisado, e absolutamente mágico.
De alguma forma, a magia da terra e do fogo foram capazes de reparar
o dano causado a madeira.
– Obrigada por isso – sussurrei, ao beijar com cuidado a superfície da
pedra. – Agora é hora de te deixar em casa – lamentei.
Eu vim tão longe, renunciei a tanto, para finalmente deixá-la partir.
Você pode até pensar que se acostuma com despedidas, mas isso nunca
acontece. Mesmo que seja o certo a se fazer.
– Vou sentir falta de você – confessei, analisando uma última vez seus
ângulos translúcidos e imperfeitos. – Obrigada pela companhia. Quem sabe
a gente também se reencontra.
E podia ser pela luz excessiva que atravessou minhas pálpebras, mas
pude jurar que ela brilhou em resposta.

Havia encontrado em uma das gavetas da cômoda alguns vestidos, e


escolhi dentre eles um que parecia mais apropriado para uma apresentação:
a seda de um vermelho profundo fluía até os meus pés em degradê laranja.
Alças de folhas douradas caíam atrás de meus ombros, e as envolvi algumas
vezes na cintura até conseguir dar um laço. O decote era discreto, perfeito
para manter o colar oculto. Ao caminhar, percebi uma fenda lateral que se
abria a cada passo. Qualquer um que colocasse os olhos em mim, me veria
caminhando sobre fogo. Deixei os cabelos soltos, jogados para o lado. Uma
sandália dourada trançava até meu joelho, e com o violino em mãos e a
poucos minutos de uma apresentação, mesmo nas cores do reino que
acreditei – que me fizeram acreditar – ser meu inimigo, me senti eu
mesma.
Na verdade, quem eu realmente gostaria de ser – se ainda tivesse
tempo.
Eu tinha o hoje e isso precisava bastar.
Algumas batidas insistentes ressoaram na minha porta.
– Está destrancada, pode entrar.
A figura de Zoey surgiu, seus cabelos em cachos fartos e perfeitos
atraindo toda luz do ambiente para si. A pintura em seu rosto tinha dourado
no alto de suas bochechas, delineado vermelho nos olhos, e um risco
simétrico no centro do seu lábio inferior.
– Você parece uma pintura, Zoey.
– Eu nem tenho palavras pra você, então imagina um elogio assim, só
que dez vezes maior – ela rebateu, caminhando até minha cama e se
sentando. Volpe a acompanhou, mas veio até os meus pés pedindo carinho.
– Então imagine um elogio cem vezes maior ainda – brinquei.
– Podemos ficar assim pra sempre.
– Ou podemos descer para a apresentação e comer alguma coisa. – Eu
queria muito um prato cheio de algo quente e suculento, mas podia esperar
um pouco mais. Não conseguiria devolver a gema de fogo com o risco de
vomitar de nervoso.
– Era sobre isso que eu queria falar. Disse para Amelia que eu, você e
Dax somos uma trupe de artistas. Vim aqui algumas vezes tentar falar com
você, mas não te encontrei. Eu e Molly mentimos, dizendo que você e
Blaze estavam conosco o dia todo. Vocês estavam onde?
– Descobrindo o nome do herdeiro de Cinaéd.
– E conseguiu?
Eu assenti. Zoey abriu a boca para soltar um grito, e cobri seus lábios
implorando por silêncio.
– Se tudo der certo, eu o encontro hoje à noite. Estava contando com a
ajuda de Molly para identificá-lo sem alarde. E você poderá voltar a
Montecorp... ou ir a qualquer outro lugar do mundo que deseje.
– O que te faz pensar que sairia do seu lado tão facilmente? – ela
perguntou, desconsertada.
– Você tem sua vida inteira para viver e desfrutar. Eu sou uma bomba-
relógio.
– Bomba-relógio?
– Uma contagem regressiva para explodir – soltei a respiração que não
tinha percebido que estava prendendo.
– Nós temos todo o tempo do mundo, Luna. – Zoey engoliu em seco.
– Temos, por essa noite.
– Dax está... – ela começou, mas a interrompi.
– Eu sei que ele está arrependido. E no meu coração tudo o que eu
mais quero é me liberar dessa raiva para poder perdoá-lo, lhe dar um abraço
e dizer que está tudo bem. – Apertei sua mão com força. – Só quero que
quando fizer isso, seja verdade. E não só uma conveniência.
– De toda forma, preciso que você finja que se amam hoje no palco,
para a apresentação.
– Não preciso fingir isso. – Um sorriso amargo se formou no meu
rosto, e Zoey tocou meu rosto, em um sinal de compreensão.
– Você conhece a música “As sete sementinhas”?
– É uma cantiga infantil, certo? Não é complicada, posso aprender
agora se tivermos alguns minutos.
– Temos meia hora ainda até o nosso número. Ensaiei alguns truques
com Volpe cantarolando essa música, pensamos que seria um bom número.
Dax preparou alguns fogos de artifício, e vai apresentar nós duas. Você
pode tocar algumas músicas em seguida, se gostar da ideia.
– Eu gosto bastante – respondi, e usei cada minuto restante para
praticar. Precisava estar perfeita antes de selar os nossos destinos.
Capítulo 28
Luna

A oeste da cozinha da taverna que ocupava uma grande parte da área


comum, havia um pequeno palco. Não tinha reparado no dia em que
chegamos, consumida pela fome e pelo cansaço, mas agora que estava
prestes a pisar nele, percebia sua verdadeira dimensão. Não importa o
tamanho do lugar que você se apresenta, a adrenalina sempre acompanha.
Especialmente quando outras pessoas dividem a apresentação; é necessária
uma sincronia que acontece em uma forma totalmente nova de magia.
Sempre vi Dax como alguém que gostava de viver discretamente, e seu
mistério sempre me fascinou. Odiaria pensar que, na verdade, toda sua aura
enigmática servia apenas para encobrir verdades dolorosas demais de ouvir.
Dos bastidores do palco, ouvia os murmúrios vindo das mesas e o
observei aguardando ser chamada, tal como Zoey havia me instruído.
Minha amiga havia vestido uma capa alaranjada e transparente sobre suas
roupas pretas e até a raposa tinha um laço farto e vermelho em volta do
pescoço. Dax usava um longo casaco vermelho com botões dourados, os
bordados a sua volta eram semelhantes a inscrição que tinha visto na porta
ao visitar o Arquivo mais cedo. Sua expressão parecia despreocupada para
qualquer um que o conhecesse agora, mas eu podia notar seus olhos fundos,
e alguns lenços presos em suas mãos e pulsos, como uma luva. O impulso
que tive foi de ir até ele e perguntar como ele estava. Mas, por hora, eu
precisava esperar, e interpretar o papel que era necessário nessa noite.
O violino tinha um peso reconfortante em minha mão, eu o segurava
tal qual uma menina de mãos dadas com sua mãe antes do seu primeiro dia
de aula, torcendo para que tudo ficasse bem, e que gostassem de mim. Aqui,
sem a coroa, longe do meu nome e do meu cargo, eu sabia que as reações
seriam autênticas, para o bem ou para o mal.
Dax estalou os dedos no centro do palco, e faíscas douradas cruzaram
sobre sua cabeça como um arco de estrelas. Aplausos irromperam perante a
mínima demonstração do que ele podia fazer quando usava seu
conhecimento para algo divertido. Eu sorri, querendo aplaudir também, e só
não o fiz pois tinha as palmas ocupadas, mas sei que foi nesse momento que
ele me chamou.
Não só porque ele já apresentara Zoey e Volpe, e essa seria a minha
vez, mas porque vi meu nome no seu olhar antes que ele falasse em voz alta
e, quando nossos olhares se cruzaram, o meu sorriso fez o dele surgir. Não
da forma performática e educada que ele conduzia a apresentação, mas com
sinceridade. Já havia aprendido a diferenciar os dois.
– ... e para acompanhar a fantástica Zoey e a adorável Volpe, recebam
a violinista que possui em si própria a essência do inesperado. Vocês
entenderão isso ao olhar pra ela e perderem o fôlego. Luna!
Aplausos e assobios fluíram pelo ambiente, em um momento de pura
festa conforme pisei no palco. Não acreditava que ele tinha disfarçado o
próprio apelido infame que tinha me dado para me apresentar. Parei ao seu
lado, e apertei sua mão em agradecimento. Um gesto de perdão e um sinal
de que eu também queria que voltasse tudo ao normal. Dax vacilou, e não
respondeu a pressão do toque. Desconsertada, não insisti, e preferi
encontrar uma posição no palco para tocar e iniciar o número surrealmente
fofo que Zoey e Volpe haviam preparado. Nós ensaiamos no quarto, mas
não se comparava com os suspiros de “Awnnnnn” que a raposa roubava a
cada instante da plateia. Ela saltitava, dava cambalhotas e parava como uma
estátua de acordo com a música, com os comandos de Zoey – e em troca de
petiscos. Ao final do número, Dax deixou mais fogos de artifícios correrem
pelo palco, e foi a minha vez de caminhar até o centro para apresentar
algumas canções.
Toquei algumas que sabia que eram populares na estrada, evitando as
músicas que podiam ser conhecidas apenas em Montecorp. O ritmo
animado contagiou o salão, eu batia o pé rapidamente sendo apenas uma só
com a sensação de alegria e festa que, por um momento, era tudo que
existia no mundo.
Acenei com a cabeça para Zoey no canto do palco, que assistia
batendo palmas e mostrei alguns passos que ela poderia fazer ao meu lado,
deixando sua energia radiante contagiar todos a dançar. Meu sorriso se
alargou quando Volpe veio ao meu lado, imitando meus movimentos com
suas patinhas. Minha amiga se juntou a nós duas, e logo as pessoas se
levantavam das cadeiras, em pares ou sozinhas, entrelaçando os braços com
quem estava mais próximo e rodopiando entre si.
Eu prestava atenção para que a música seguisse seu curso natural, mas
arrisquei alguns giros entre nós três. Dax parecia se entreter também
enquanto aplaudia no fundo do palco, imaginei que ele não seria o tipo de
pessoa que dançaria em uma apresentação. Estávamos totalmente suados,
como se o frio da montanha do outro lado da porta jamais tivesse existido.
A última nota da canção anunciou a sua chegada, e pisquei para Dax
encerrar nosso número.
Quando os fogos estouraram tal qual uma chuva particular de estrelas
cadentes, abri os braços segurando o violino em uma mão, o arco na outra, e
agradeci em uma profunda reverência. Naquele momento eu não era uma
rainha diante do povo que era seu inimigo, nem uma garota contando seus
últimos dias de vida. Era apenas uma artista perante seu público, grata por
fazer a música colorir uma realidade em preto e branco. Eu estava livre
nesse breve instante, e foi aí que tive certeza de que a música era de fato,
uma forma de magia.
Capítulo 29
Molly

– Vocês são espetaculares – gritei, andando na direção da escada estreita


nos fundos do palco. Os aplausos haviam cessado há alguns instantes, e o
murmúrio de conversas voltava a ocupar o salão enquanto o músico
seguinte afinava seu instrumento. – Até você, Dax.
– Obrigado? – Ele entortou a cabeça ao responder.
– Não faz mal sorrir de vez em quando – expliquei, disfarçando a
verdade em uma brincadeira. Ele deveria se permitir estar feliz depois de ter
se dedicado com tanto afinco. – E você, Zoey, estava deslumbrante.
– Você não deveria estar me elogiando onde mais pessoas podem
ouvir? – ela sugeriu, Volpe parando logo atrás de mim.
– Claro – respondi apressada, sem jeito. – Esqueci que nós somos
namoradas tanto quanto vocês são uma trupe.
– Nós poderíamos ser uma trupe – Zoey afirmou, com um meio sorriso
lutando para se conter.
E nós poderíamos ser namoradas. Era isso o que ela deixou nas
entrelinhas? Eu estava me distraindo com seus olhos desnecessariamente
brilhantes. Pensei em dizer isso para provocar algum sorriso involuntário
em seu rosto, mas senti uma mão no meu ombro antes que pudesse
continuar.
– Molly, eu preciso de um favor seu antes que comece a declarar
publicamente sua devoção por Zoey. – Luna estava atrás de mim, e sabia
que ela precisava da minha discrição pelo seu tom de voz.
Tinha conhecido sua história ao longo da tarde, sobre como Lunara
estava fugindo de Montecorp quando foi atacada por um espectro maléfico.
Eles eram do reino que existia além das montanhas e da floresta, o lar que
fora escolhido pela lua – enquanto nós fomos escolhidos pelo sol. Eles
certamente pertenciam à nobreza, por tudo que observei na forma que
andavam e falavam. Mas às vezes, assim como eu, não queriam
proximidade com todo o circo de responsabilidades que vinham com uma
posição de prestígio. E, por isso, eu queria ajudá-los. Era o tipo de aventura
que eu buscava ao deixar a Vila do Sol novamente: encontrar algo com
sabor de novidade, e render meu coração ao inesperado.
Zoey havia explicado com detalhes o encontro com o unicórnio, e Dax
sorrira amargamente ao falar sobre o duelo contra a Imperatriz de Ellioras.
Ele não deu detalhes sobre como foi sua estadia no império, mas pude sentir
que o motivava a continuar com os experimentos.
– Você também apoia essa loucura? – Dax interferiu, a frase perdendo
a confiança conforme ele a olhava, sem nem ao menos tentar esconder o
quão atraído ele se sentia por ela. Naquela noite, eu precisava concordar,
pois jamais havia visto Lunara tão bela.
Mas ali, ao lado de Zoey... Era difícil olhar para outro lugar.
– Ela me apoiou em todas, claro que sim! É isso que amigos fazem. –
Luna concluiu.
– Achei que éramos algo além disso – ele rebateu.
– Éramos. Você é o cara que dormiu comigo e esqueceu de contar que
quase me matou. Primeiro e único. – Ela piscou na sua direção, sarcástica.
– Eu quero entender que essa brincadeira é um jeito de me perdoar.
– Entenda o que quiser, como sempre. – Luna rebateu e fixou os olhos
nos meus. – Molly, tem algum lugar melhor para nos falarmos rapidamente?
Eu assenti, dei um beijo na mão de Zoey e sinalizei para que Luna me
seguisse. Havia um velho aposento na coxia com algumas fantasias e
chapéus descartados que não era frequentado. Desviei o olhar para trás
apenas uma vez, e vi que Zoey apertava as ataduras de Dax.
As mãos dele. Pelos deuses, não sabia como tinha conseguido
completar uma performance como aquela, quando tantos cortes retalhavam
seus dedos, suas palmas e seus pulsos. A tentativa de moldar o bracelete
que protegeria Luna havia sido um completo fracasso: espelhos estilhaçados
por todo o quarto, gotas de sangue no carpete, algumas queimaduras que
prometiam virar bolhas fenomenais no dia seguinte.
Ele ainda não havia conseguido moldar o material de forma que
realmente refletisse a energia do seu usuário para outros pontos,
independente da combinação de elementos que testava. O alquimista
precisava de algo diferente, e eu era a última pessoa para dizer o que. Mas
se Zoey estava determinada em ajudá-lo, eu também estava. E quem sabe
eu não causaria uma impressão melhor do que ser apenas a garota maluca
que a convocou como namorada falsa.
Eu e Luna nos apertamos contra os cabides repletos de figurinos
abandonados, e ela sussurrou, direta ao ponto.
– Preciso que me aponte quem é Zahar Fahir – sua voz vacilou, mas
ela manteve a postura firme. Agora que sabia um pouco mais sobre seu
passado, me pergunto como não percebi que ela era nobre. Porém, ao ouvir
esse nome, hesitei antes de responder.
– O que você quer com o honorável Fahir?
– Você o conhece?
– Claro, ele é um dos anciões da Vila do Sol que orientou Amelia na
construção de tudo à nossa volta. O homem mais respeitado dentre todos
nós.
– Você diria que ele é reverenciado?
– Talvez seja um pouco de exagero, mas se encaixa – ponderei. Fahir
era um grande sábio, apesar de seu aspecto fechado. O tempo parecia ter lhe
deixado cicatrizes incompreensíveis para mim, mas sempre seria grata pelas
histórias que ele dividiu comigo e com outras crianças, anos atrás. Era
como se ele guardasse sua afeição e doçura apenas para os inocentes.
– Ele também é o filho de Bólius, segundo os registros que vi hoje com
Blaze em algum tipo de arquivo selado a fogo.
– Ele levou você até o Portal Radiante? – Tive que me conter para não
gritar. Queria esganar meu amigo enquanto o aplaudia, embora soubesse
que só tinha duas mãos, o que tornava essa atividade simultânea inviável.
– Ele fica no topo de uma escadaria sem fim cercado de estrelas? – Um
tom de obviedade saiu dos lábios de Luna, atrevida. Eu quase sorri em
resposta, mas não podia.
– Luna, se Amelia souber que eu deixei alguém de Montecorp passear
livremente pelos registros mais antigos de Cinaéd, ela jamais vai me
perdoar. Aquele lugar é proibido, inclusive para mim! Deveria ser para
Blaze também mas, pelos deuses, ele é mais inconsequente que eu. – Minha
garganta deu um nó. Eu estava dobrando todos os limites para ignorar que
Luna era, de acordo com todos os fatos históricos, membro do reino
responsável pela nossa derrocada. Fechei os olhos, pressionando com o
polegar e indicador. – Eu queria te ajudar, de verdade.
– Você não quer mais? – ela hesitou.
– Luna, você está decepcionada com Dax porque ele omitiu algo
importante de você. Como espera que eu faça o mesmo, quando a densidade
de segredos aumenta cada vez mais?
Ela pegou na minha mão por um momento, seu olhar suplicante.
– Eu odeio ter que te pedir, justamente por isso. Mas eu quero reparar
um erro que começou antes mesmo que eu nascesse, quero devolver o poder
elemental de Cinaéd, que jamais deveria ter parado nas mãos de um
Montecorp. Eu te peço, Molly, não me olhe como sua inimiga. Eu poderia
estar passando os últimos dias da minha vida fazendo qualquer outra coisa,
mas estou escolhendo limpar o nome do meu reino e fazer a coisa certa pela
primeira vez no século de conflito entre nossos territórios. Me olhe como
alguém que só quer acabar com essa sensação de que o mundo está em
guerra. Por favor.
– Como posso acreditar em você se só hoje você resolveu se abrir?
Todo o jogo de mistérios e segredos enquanto estávamos nos conhecendo
era divertido, a adrenalina no sangue trazia uma sensação legal. Mas agora
está ficando complicado demais.
Me virei para a entrada apertada, pronta para ter uma conversa séria
com Amelia, ignorando que Zoey começaria a me odiar. Meu peito estava
dividido entre o que eu sentia e o que fazia sentido quando Luna chamou
meu nome.
– Molly, por causa disso. – Luna puxou a corrente em volta de seu
pescoço, revelando uma pedra vermelha, translúcida e reluzente sob seu
vestido. O brilho vermelho me atraiu, despertando meu lado curioso. De
alguma forma, ela pulsava como um coração. Como uma chama. Tive o
impulso de tocá-la, e a jovem de Montecorp a colocou sob meus dedos.
Estava encantadoramente morna.
– E como seu colar fará isso? – sussurrei, temendo que minha voz alta
cortasse o momento. Ele parecia especial, por alguma razão.
– Montecorp surgiu em volta do nosso Sagrado Carvalho de Prata. Ele
foi plantado com uma semente parecida com essa que foi dada por Argrinis.
– A Deusa da Lua. – Já ouvira esse nome, em alguma história perdida.
Luna sorriu ao pensar nela.
– Nosso reino cresceu abençoado pelo céu e pela terra; tínhamos a
Floresta do Oblívio em uma direção, e a costa do Arco-íris na outra.
Argrinis havia deixado nossa dimensão, mas as bênçãos permaneceram. E
os Montecorp, foram escolhidos para fazer o território prosperar. – Ela
engoliu em seco. – Infelizmente, alguns membros da família real
confundiram prosperidade com expansão e poder com ganância. E a história
você conhece.
– Todos nós conhecemos – assenti.
– Essa pedra... – Luna evidenciou com a ponta dos dedos. – Pertencia a
Bólius. Foi arrancada brutalmente no dia em que ele desapareceu e, em uma
emboscada, foi presenteada a mim. – Lágrimas subiam aos seus olhos e,
pela primeira vez na conversa, eu enxerguei a fragilidade na garota que
levava o mundo em suas costas. – E apenas o herdeiro pode retirar esse
colar, segundo a Alma Antiga. E é por isso que é tão importante fazer isso
em silêncio. Eu não espero que todos aqui entendam a minha história,
tampouco os culparia se fossem hostis.
– Eu posso? – perguntei, apontando para o colar, e Luna
imediatamente entendeu e se virou de costas, tirando o cabelo da frente do
fecho do colar. Eu estava acostumada a destrancar portas, fazer tranças e
nós elaborados, talvez pudesse soltá-lo...
Estava enganada. De todos os ângulos possíveis que tentei desprender
o fecho ou abrir alguma das argolas rígidas da corrente, nenhum esforço foi
o bastante para soltar o colar de seu pescoço, que escorregava em meus
dedos. A sensação de estar com algo preso ao pescoço dia e noite era
agoniante.
Luna e eu nos encaramos, ela limpava as lágrimas em seu rosto,
respirando fundo como se alguma expectativa tivesse sido quebrada.
– Vamos fazer um acordo? – sugeri.
– Qual?
– Você vai lá fora e vai aceitar todos os elogios e flores que vão
estender para a violinista mais talentosa que a Vila do Sol já ouviu em
décadas. – O rosto dela se iluminou. – Quando encontrar Zahar Fahir, te
chamo para cumprimentá-lo em particular.
Capítulo 30
Zoey

Meu cabelo grudava nas minhas costas, suado depois do esforço no palco,
enquanto refazia o curativo de Dax. As ataduras tinham ficado frouxas
durante a apresentação, então cruzei as tiras negras de tecido
cuidadosamente sobre os cortes: alguns profundos com um rastro de
sangue, e outros arranhões superficiais que deveriam estar ardendo
intensamente.
– Acho que em dois dias estará cicatrizado e você poderá voltar com
os experimentos – sugeri, colocando cada palavra como se enfeitasse
biscoitos delicados de manteiga.
– Eu continuo amanhã pela manhã, Zoey – Dax resmungou. –
Certamente vou me cortar de novo, assim poupo meu corpo de se recuperar
duas vezes.
– Você quase não consegue abrir e fechar suas mãos – declarei, com o
olhar fixo nos dele.
– Eu digo o que consigo ou não consigo fazer, podemos combinar
isso?
– Você tá falando igual a Luna e vai acabar se matando se continuar
assim.
– É eu, ou ela.
Tristeza passou como um pingo de mel por seus olhos pequeninos
quando percebi Dax correndo o caminho imaginário que Luna fez ao
desaparecer do ambiente com Molly. Seja lá o que elas estivessem
conversando, eu esperava que fossem boas notícias.
– Nenhum de vocês vai morrer, para de besteira.
– Você não pode afirmar o que você não sabe.
– Mas posso afirmar aquilo que quero muito, muito mesmo que
aconteça. Aí acontece.
– Não é assim que o mundo funciona – ele reclamou, testando alguns
movimentos com os dedos e com os pulsos.
– Poderia ser. – Dei de ombros, certa de que havia alguma lógica no
meu argumento, mas ela não era necessária agora.
– Zoey, eu estou exausto. Não dormi nada, e queria tentar descansar
um pouco. – Pela sua voz, o cansaço não vinha só do corpo, mas também
do espírito. Sua aura estava instável, mais como uma sombra do que como
um brilho. Ainda assim, seu lábio repuxou para cima na tentativa de um
sorriso, e Dax puxou um dos meus cachinhos, que balançou como uma
mola. – Obrigado por... tudo. Tudo que você fez hoje. Receba os aplausos
por mim, você e Volpe foram adoráveis.
– Você não vai conversar com Luna hoje?
– Não fui eu quem ela chamou para conversar após o show, nem eu
quem ela procurou o dia todo.
– Mas ela precisa saber de tudo que você está fazendo.
– Eu não vou contar nada até ter algo concreto. Chega de meias
verdades.
– Tentar não é uma mentira.
– Também não é um fato. Promete pra mim que não falará nada sobre
isso... – Dax apontou para sua mão – pra ela.
Eu assenti, e antes que pudesse perguntar o que ele queria comer, vi
meu amigo desaparecer andando entre as mesas, fazendo reverências
discretas para as pessoas que o cumprimentavam. Volpe estava inquieta aos
meus pés quando tive uma ideia. Me ajoelhei para ajustar seu laçarote
vermelho e falei com a raposa:.
– Vai com ele. Durma com Dax essa noite, acho que, mesmo estando
cansado, ele não vai conseguir pregar os olhos preocupado desse jeito. –
Afaguei a sua pelagem vermelha e macia, e beijei sua testa antes que ela
partisse na direção dele.
Estalei os dedos sem saber para onde ir, e o som animado da canção de
mais um artista começou a preencher o salão com a vibração de suas cordas
e dos aplausos de boas-vindas. Não sabia se seguia Molly ou se
cumprimentava despretensiosamente pessoas desconhecidas, então fiz o que
qualquer pessoa perdida em um lugar novo e estranho faria: Sentei em um
degrau baixo, escondida pelas cortinas na saída do palco. Ouvi a música
memorizando o refrão e cantei junto, baixinho.
– Tem cadeiras livres, sabia? – a voz grave interrompeu meus
pensamentos, e mirei nas botas gastas, na calça marrom e elegante até
chegar no rosto de Blaze.
– Nunca te falaram que o chão é muito mais confortável?
– Você está certíssima – ele concordou, sentando-se ao meu lado. –
Trouxe isso pra você e pra Luna. Ela está em algum lugar por aqui? – ele
indagou olhando em volta.
Blaze estendeu uma flor do azul mais intenso que vira na vida,
reluzente como se tivesse uma aura própria. Suas pétalas eram largas e
compridas, afiladas na ponta, com alguns fios dourados surgindo de seu
miolo.
– Ela é belíssima, obrigada. – Levei a flor ao meu nariz, inspirando
fundo seu aroma doce e fresco. – Luna e Molly estão em algum lugar
trocando segredos, não sei se posso interromper.
– A melhor forma de descobrir se você pode interromper é
interrompendo.
– Não parece muito educado.
– Mas é eficiente. – Blaze abriu um sorriso travesso, e eu retribui.
– Elas não devem demorar – refleti, levando a flor até o cabelo. Blaze
observou o movimento como se esperasse um grand finale. – Eu coloquei
um abacaxi na minha cabeça pra você me encarar assim?
– Quase isso. Lírios do céu são poderosos restauradores de energia
física. Achei que era um bom presente após uma apresentação.
– Ah... eu não conhecia – comentei, levando uma pétala até os lábios.
Isso explicava a sua energia tão diferente das outras plantas. Mas a flor era
tão bela que eu estava com dó de comer.
– Elas são adocicadas, você vai achar parecido com hortelã. Prove –
ele insistiu, arrancando a pétala de uma das flores que estava na sua mão e
mastigando. – Viu, uma delícia.
Então eu provei. Era o mais distante de uma hortelã que poderia
imaginar: doce, levemente azeda, mas a textura aveludada fazia dela uma
iguaria surpreendentemente gostosa, então me apressei a devorar as pétalas
e ia mordiscar os fios dourados quando Blaze me interrompeu.
– Só as pétalas, Zoey. Esses fios têm o efeito oposto e podem te fazer
dormir por horas sem que ninguém consiga te acordar.
– Essa plantinha é um pouco perigosa, não acha? – indaguei de olhos
arregalados. Ele podia ter dito isso antes.
– Tudo que é poderoso é perigoso se não for usado do jeito certo. Eu
trouxe uma para Dax também, mas não o vi em lugar nenhum.
– Ele não é muito de multidões – desviei o assunto, sem jeito. – Eu
posso levar pra ele.
Blaze assentiu e me ofereceu a outra flor. Desprendi o cabo e a guardei
no meu bolso.
– O cabo da flor faz alguma coisa?
– Faz cócegas – ele brincou, apontando a parte pontuda verde na
direção da minha barriga, e eu me levantei arrancando o cabo dele, fugindo.
Meu ponto fraco era cosquinhas. Bati em algo macio com as costas, e o
aroma de aventura e alecrim me envolveu. – Aí está você!
– Oi, lindinha – Molly disse com um sorriso largo, e eu retribui com
um gesto tímido. – Oi, Blaze. – Ela piscou para o amigo, e algo nas
entrelinhas dizia “mais tarde eu te mato”.
– Feche os olhos, Luna – Blaze pediu de pé, em frente a rainha,
segurando o lírio atrás das costas.
– Pra que? – Luna perguntou, franzindo a testa desconfiada.
– Confiança é uma força que vai e volta – ele declarou, sem oferecer
maiores explicações, e Luna obedeceu respirando fundo. – Abra a boca –
ele falou, já rindo.
– O que? – Ela arregalou os olhos, indignada.
– Confie nele, Luna – afirmei, e a rainha hesitou antes de voltar a
fechar os olhos atendendo ao estranho pedido.
Blaze arrancou uma das pétalas azuis e colocou nos seus lábios. Ela
levou a mão até o rosto, surpresa com o gesto. A melodia do bandolim atrás
de nós agora estava mais lenta, contemplativa. Certamente a apresentação
estava perto de terminar e precisaríamos sair desse espaço.
– O que é essa coisa deliciosa? – Luna perguntou, e Blaze começou a
explicar, caminhando em direção ao salão quando Molly estendeu a mão
para que eu me levantasse, entrelaçando nossos dedos.
– Quero te apresentar a alguém importante. Vamos?
Me levantei em um pulo, ajeitando a capa laranja que havia entortado e
caminhei pelo salão ao seu lado. Estávamos na ala onde aconteciam as
apresentações, no mesmo ambiente em que tivemos nossa ceia no dia
anterior, porém o palco ficava a metros de distância, oferecendo
tranquilidade para aqueles que buscavam uma refeição pacífica, longe da
agitação dos números artísticos.
As mesas redondas estavam lotadas com pessoas que supus não serem
da mesma família, por serem tão distintas entre si, nos mais diferentes tons
de pele, formato de nariz e escolha de penteados. Contudo, suas auras
vibravam em tons de azul claro e verde intenso. Havia harmonia entre eles,
e encontrei em cada sorriso, um cumprimento pela apresentação. Alguns
perguntaram de Volpe, e brinquei dizendo que a estrela do show estava no
seu sono de beleza. Um rapaz de cabelo vermelho e curto me olhava
fixamente, e mandou um beijo na minha direção. Isso jamais tinha
acontecido comigo.
– Ei, ela tá comigo, Finn! – Molly gritou, envolvendo minha cintura.
– Quando você for embora de novo, deixa ela aqui – ele gritou de
volta, visivelmente alcoolizado.
– Como se eu fosse me interessar por você – falei, não com tanta força
quanto deveria, e sussurrei para Molly: – Quem estamos procurando? Esse
mané?
– Vamos andando, lindinha. Não quero precisar fazer o tipo namorada
ciumenta e atrair o tipo errado de atenção pra nós duas.
– Você ficou com ciúmes? – perguntei parando de andar fitando seus
intensos olhos verdes, meu coração encontrando um novo sentido para a
palavra “cambalhotas”, mas não foi Molly quem falou em seguida.
– Zoey, querida, como foi delicioso observar você em ação com sua
raposa! Bravo, há tempos não via algo tão divertido. – Amelia vestia um
traje amarelo e brilhante que prendia em seu pescoço, deixando as costas
nuas. Braceletes dourados adornavam seus pulsos, e um sorriso satisfeito
estava nos lábios da matriarca.
– O prazer de retribuir a gentileza da Vila do Sol em receber a nossa
trupe é todo meu. Me diverti muito no palco também. – Era verdade. Poder
estar com Dax e Luna em harmonia, me lembrava os momentos tranquilos
que tivemos em Ellioras.
– Fico feliz que Molly teve seu coração roubado por alguém tão
adorável como você, eu já achava que ela jamais se importaria de verdade
com nada.
– Molly não gosta quando falam dela como se ela não estivesse
presente – minha namorada de mentira respondeu, e prendi uma risada na
garganta.
– Não é só você que sabe fazer graça – Amelia disse de forma
elegante, cruzando os belos braços junto ao corpo. Sua aura expandia ao
nosso redor, se misturando com a de Molly. A matriarca sentia saudades de
tê-la por perto, eu podia ver.
– Amelia, já que estamos em um momento de festividades, eu gostaria
de pedir a benção do honorável Fahir para a nossa relação. Gostaria de
apresentá-lo à Zoey, mas não o vi em nenhuma parte hoje.
O rosto da matriarca se fechou, e sua aura retraiu. Do amarelo
vibrante, passou para um tom fosco e sem vida.
Os seus olhos disseram antes que proferisse a palavra, e Amelia nos
direcionou até um canto menos movimentado, distante das mesas.
– O nosso Fahir, Molly, repousa agora junto à chama eterna da vida,
onde nada pode perecer, apenas brilhar – a matriarca declarou com firmeza,
monotônica.
– O que? – As palavras morreram nos lábios de Molly, e ela soltou
minha mão se jogando em um abraço apertado, retribuído por Amelia. Por
alguns segundos elas permaneceram entrelaçadas, suas energias
tremeluziam uma na outra, as ondas de suas auras oscilando inconstantes e
confusas, até se acalmarem como o céu que se despede de uma nuvem de
chuva. A última apresentação do dia começou a tocar distante de nós, o som
de flauta em uma melodia doce e sonhadora.
– Energia nunca se perde, lembra? – Amelia murmurou, se afastando
para olhar nos olhos da garota que havia criado.
– Só se transforma – Molly repetiu, como se fosse um verso ensaiado.
– Quando isso aconteceu?
– Quando você não estava aqui. A vida segue seu curso, mesmo
quando você não a assiste.
– Eu não quero assistir, quero vivenciar. Fazer algo com um propósito,
impactar vidas, estar presente nas histórias que acontecem pelo mundo –
Molly rebateu.
– E lá vamos nós de novo... – Amelia fez menção de iniciar um sermão
exagerado, mas disse entre os dentes o mais baixo e assertiva que pode: –
Nossa paz é uma cortina de fumaça. Niasar expande seu território e sua
tirania dia após dia, a única coisa que nos protege são essas montanhas
inóspitas. Você ainda é jovem demais para entender que tipo de cicatriz essa
perseguição deixa no nosso povo. Mas qualquer um que seja velho o
suficiente para ter visto a guerra com os próprios olhos sabe que ninguém
está seguro de verdade. Nós não temos mais o poderoso Bólius para nos
proteger, Molly.
– Ele não morreu tentando nos defender? Ele não falhou? – Molly
perguntou, sem nenhum deboche na sua fala.
– Ele desapareceu. Jamais encontraram seu corpo, ou sequer um
vestígio de suas escamas. Por isso ainda há esperança de que ele tenha sido
banido para outro plano. Que ele tenha voltado para a sua dimensão de
origem, após séculos conosco.
– E não podemos trazê-lo de volta? – perguntei, incerta se deveria estar
ouvindo algo tão particular sobre Cinaéd.
– Poderíamos, se tivéssemos acesso aos pergaminhos que estão
guardados no Pico da Luz. Niasar era um dos principais generais, tomou
posse e controle de todo local assim que Bólius desapareceu. Zahar Fahir já
estava construindo a Vila do Sol há anos quando isso aconteceu, por isso
conseguimos preservar nossa cultura e nossos ensinamentos.
“Abraçamos alguns outros que fugiam da zona de guerra e
construímos tudo o que você, Molly, conheceu enquanto crescia. Mas
Bólius era possessivo com seus pertences, absoluto em suas decisões, e
negou ao filho a permissão para levar consigo tais tomos. E é por isso que
devemos ser cautelosos e zelar pelas vidas que estão aqui.
“Por isso que não concordo com suas partidas. Os jovens são
inconsequentes demais para serem cautelosos. E os mais velhos... estão
começando a se despedir do mundo.” – Amelia concluiu, com pesar.
– Você precisa ter fé que criou a mim e a toda Vila para ter coragem de
mudar as coisas, se preciso.
– Não me falta fé, Molly. Me falta inocência para acreditar em um
mundo ideal. Isso aqui... – A matriarca girou os pulsos evidenciando o lugar
a nossa volta, admirando seus detalhes com seus braceletes reluzindo contra
a luz. – É o mais próximo que vamos conhecer. Zoey, você é uma viajante,
já viu um lugar como esse?
– Não conheço o mundo inteiro, mas já vi alguns lugares em que se
vive em paz.
– E de onde vocês vieram mesmo, minha querida? – ela indagou, me
olhando com curiosidade analítica. Havia muito nessa pergunta inofensiva,
e evitei tremer com medo de ser descoberta.
– Minhas raízes vêm de Ellioras, mas minhas asas vêm da minha
coragem de voar – respondi com toda a verdade em meu coração. Eu rezava
para que ela jamais identificasse a analogia ao lema de Montecorp.
– Ellioras é um território neutro entre os conflitos, não é à toa que
prosperam como abelha e mel – Amelia ponderou, levando a mão ao
queixo. – Por isso que você tem habilidades advindas do mundo natural.
– E, mais uma vez, obrigada pela oportunidade de fazer uma pequena
apresentação.
– Guarde a modéstia para o público, eles adoram isso – ela declarou,
pomposa. – Agora onde está a maravilhosa violinista? Tenho uma proposta
especial para ela.
Capítulo 31
Blaze

Caminhar pela taverna do prédio principal onde viviam Amelia e a maior


parte dos habitantes da Vila do Sol era uma experiência sofrível. Ainda que
estar no portal fosse reconfortante, eu sabia como aquelas pessoas olhavam
para mim e o que diziam pelas minhas costas. Não duvidava do rancor que
sentiam pela minha aparente ingratidão, por ter sido acolhido por eles
enquanto estava vulnerável e ter partido assim que me senti bem o bastante
para caminhar com minhas próprias pernas. Mas não havia muito a que se
apegar para alguém que estava sendo torturado por capangas de Niasar que
não possuíam culhões o bastante para cessar minha vida imediatamente.
Molly tinha ouvido meus gritos, e estudou o comportamento e rodízio
de vigília do acampamento por duas noites, até plantar armadilhas o
bastante para me libertar com segurança. Eu estava tão ferido devido as
surras, que não me recordava como chegara ali e tampouco de onde eu
realmente vinha – ou para onde ia. Pisar novamente na Vila trazia a
sensação de recordar de alguma coisa, e isso era uma novidade singular.
Minha amiga, insana e brilhante, foi a primeira pessoa que despertou
em mim algo que não fosse dor e vingança. Amelia acreditou que, por ter
vivenciado de perto a violência fora dessas montanhas, eu logo criaria
vínculos aqui, e se decepcionou ao ver que eu e Molly éramos apenas
amigos. Minha determinação foi interpretada como ingratidão e teimosia, e
eu não tinha o menor interesse em provar que eles estavam errados.
Uma parte de mim queria não pertencer àquele lugar, mas possuí-lo.
Era por isso que eu infringia as regras e passava noites no Portal Radiante
desde quando descobri uma forma de entrar nele a fim de entender melhor o
mundo que me cercava. A fim de me entender, ou de no mínimo, me
inventar. Foi por isso que levei Luna até lá... Não só porque eu desejava
ajudá-la, esse motivo não era forte o bastante. Mas porque eu sabia que ela
tinha tudo, e eu queria desesperadamente lhe oferecer alguma coisa que
merecesse seu fascínio. Era o mínimo para retribuir o quanto a sua presença
inquietava a minha mente.
A única certeza que me acompanhava era alguma coisa inquieta que
me implorava para que desbravasse o mundo, pois havia algo esperando por
mim além. Uma força que sublimava no ar até se tornar pedra em meu
peito. A mesma força que pulsava quando eu estava ao lado dela.
Hoje, em especial, eu queria sair, caminhar na quietude da noite e
respirar o ar gélido das montanhas, contrastando o fogo em minhas mãos
com o frio natural que corria lá fora. Mas não poderia fazer isso agora. Não
quando isso significava um risco à segurança de Luna... era melhor
acreditar que Dax estava certo e que, no portal, ela estava a salvo da
Sombra que a perseguia. Melhor do que reconhecer minha impotência sobre
esse assunto.
Bebi o último gole de vinho na minha taça logo após finalizar o pão
em meu prato, e a encarei. Seus cabelos rosados caiam sobre seu colo, ela
enrolava uma mecha em seu dedo, distraída. Me peguei imaginando que a
seda vermelha que envolvia seus seios e sua cintura teria a mesma
suavidade que a sua pele. A observar durante todo o dia foi o método de
tortura mais doce que já tinha conhecido. Lunara se movimentava com
graciosidade natural, e a forma que ela se irritava cada vez que eu lhe
provocava, a chamando de “princesa” era deliciosamente adorável.
Uma sensação extremamente familiar emanava quando estava em sua
presença, uma vontade inexplicável de falar com ela. De ouvi-la. À
princípio imaginei que seria apenas atração por uma garota incrivelmente
bela, pois qualquer um poderia querer tê-la nos braços. Porém, desde que a
abracei, tão franca e vulnerável, eu só quis protegê-la dos males desse
mundo – não por que eu seria capaz, mas por que ela parecia deixar que
cuidasse dela, diferente de como agia com outras pessoas a sua volta.
Após assistir à sua apresentação, ver a forma que ela manuseava o
violino como se moldasse sonhos em música, temia que o meu sentimento
por ela fosse algo que eu jamais entenderia. Algo que eu não poderia
controlar. Algo que eu não queria controlar. Desde que a segurei
desacordada no meu colo, desejei reviver esse momento com seus olhos
cravados nos meus, procurando neles a mesma chama que havia em mim.
Eu não queria estar tão intrigado, e não conseguia pensar em outra coisa.
Mas ainda havia segredos entre nós, Luna deliberadamente escondia
alguma coisa, prolongando essa distância. E quem sabe eu poderia
descobrir, se prestasse atenção o bastante.
– Você não pode conhecer Fahir sem comer nada – afirmei. Os olhos
dela corriam pelo horizonte, procurando por Molly em algum lugar na
multidão e não a encontrando.
– Posso comer tudo o que eu quiser assim que conhecê-lo e terminar
com isso.
– Luna, você não se alimentou hoje. Vou pedir pra Molly adiar o
encontro de vocês se você não terminar o que está no seu prato. Uma batata
recheada com queijo e legumes mal pode ser chamada de uma refeição
completa.
– Você está tentando ser fofo cuidando de mim? – ela debochou.
– Talvez esteja. – Pisquei.
– Porque só está me irritando e me deixando mais ansiosa.
– Me odeie se quiser, mas coma. – Estendi o garfo que estava
completamente abandonado ao lado do seu prato.
– Se for terminar com esse assunto, tudo bem – ela resmungou
revirando os olhos, mas vi que um sorriso se prendeu no seu rosto enquanto
jantava.
– E se eu disser que você fica linda irritada?
Lunara arremessou uma rodela de cenoura na minha cabeça, e desviei.
Ela acertou a cabeça careca de um senhor atrás de mim, e murmurou mil
pedidos desajeitados de desculpas enquanto eu ria da situação.
– A culpa disso é sua – ela disse, corada de vergonha. Como disse,
linda.
– Eu pedi pra você comer, não para arremessar cenouras pelo ar.
– Você me irrita, Blaze.
– Mas você está sorrindo.
– Não estou não – ela rebateu. Ela estava, e não fazia ideia do que
aquele sorriso fazia comigo.
– Pelo menos agora não parece tão preocupada, e a batata está quase
no fim. Todo mundo ganhou.
– Isso a gente vai descobrir agora – ela murmurou, levando o
guardanapo até a boca rapidamente e se levantando cordialmente. Eu
permaneci sentado, com uma perna cruzada sobre a outra.
– Olá, Amelia! – saudei, descontraído. A matriarca, Molly e Zoey se
aproximavam com os rostos indecifráveis. Frio desceu minha espinha ao
pensar que havíamos sido descobertos, e que Luna seria punida por ter
visitado o Portal Radiante. Me preparei para afirmar que fora até lá sozinho
e que ela passara o dia todo praticando para sua apresentação, porém
Amelia me ignorou e se direcionou somente à Luna.
– Sua apresentação hoje foi um encanto para meus ouvidos. Há tempos
que não ouço canções tão únicas e, por isso, tenho um convite especial para
você, menina – disse a matriarca, seu rosto afável. Luna fez a menção de
responder, mas Amelia como sempre, seguiu sua fala, tal como era da sua
natureza ser o centro das atenções, mesmo diante de uma estrela como a
violinista.
– Estou ansiosa para ouvi-lo.
– Luna… – Amelia falou pausadamente, levantando a sobrancelha
enquanto analisava o rosto dela de perto. – Uma jovem tão bela com um
nome tão… desagradável. – A matriarca tocou o queixo e fiquei ereto, sem
saber o que ela faria. – Similar demais a territórios de poderes nefastos,
como Montecorp. Uma pena que não te nomearam com algo mais
apropriado.
– Não acho que a lua ou o sol tenham significados ruins, com todo
respeito. – Eu vi que Luna se contorceu diante das palavras dela. Mas
Amelia, que sempre foi dissimulada o bastante para dobrar os outros a sua
própria vontade, continuou:
– Em dois dias teremos uma grande festividade que acontecerá sob as
estrelas. Celebraremos o Litha, e faz parte da nossa tradição levar todo o
povo da Vila do Sol para o pé da montanha em um festival que acontece no
dia mais longo do ano. No solstício de verão, as terras do fogo são
abençoadas com uma chuva de meteoros, e agradecemos ao eterno dragão
pela chama que nos transformou. Temos algumas atrações musicais
programadas e adoraria te ouvir tocar no palco principal.
– Lá fora? – intervi, me levantando.
– Se você conseguir nos dar a graça da sua presença por mais dois
dias, verá que chuvas de meteoro só acontecem na parte exterior, Blaze –
ela rebateu, irônica.
– É uma péssima ideia – respondi.
– Eu acho que é uma ótima ideia. – Luna me encarou aborrecida, e
voltou para Amelia. – Será novamente um prazer, não posso expressar a
honra que é poder me apresentar novamente para vocês, ainda mais em uma
data tão importante.
Amelia repuxou os lábios, satisfeita e tocou no ombro de Luna em um
gesto discretamente afetuoso antes de nos deixar a sós sem desferir um
olhar na minha direção.
– Zoey, você conversa com ela? – pedi, lutando contra a irritação. Ela
passar horas longe da proteção do portal seria o mesmo que uma
apresentação suicida. Eu não podia ser o único a enxergar que essa loucura
não podia acontecer.
– Antes eu preciso falar com você, Luna – Molly pediu, sentando-se ao
lado dela. Vi que o nariz da minha amiga estava vermelho, assim como seus
olhos. Inspirei fundo.
– Isso nunca é uma frase que antecede boas notícias. – Ela empurrou o
prato para o centro da mesa ignorando o final da refeição. Apoiou o
cotovelo na superfície e dedilhou os dedos na madeira, impaciente. – Fahir
não aceitou me receber?
– Ele se foi, Luna – Molly despejou, de uma vez só.

Na manhã seguinte, peguei a espada guardada junto ao flanco de


Noite, e acarinhei o dorso da amável égua. Senti o cabo com ambas as
mãos, rodando o pulso de um lado para o outro e atestei que o balanço da
lâmina de Krotos tinha o equilíbrio perfeito, uma arma forjada em fogo para
atrair a morte com uma canção. Luna certamente usava a mesma roupa com
que tinha dormido: uma calça preta que vinha até sua cintura e uma blusa
da mesma cor que prendia em seu pescoço, colada em todo seu corpo para
protegê-la do frio que a alcançava mesmo no interior da Vila do Sol. Nem
mesmo a magia poderia ir contra a natureza. O verão estava próximo, mas a
neve era presente durante todo o ano. Seu cabelo estava preso em um rabo
de cavalo alto com algumas mechas soltas flutuando. Ela me encarava com
os braços cruzados, sua expressão desolada após o encerramento da noite
passada quando ela havia cultivado tanta esperança.
Na distância entre nós, cortei o ar mais uma vez ouvindo o som do
vento contra a precisão do metal. O estábulo seria um lugar tranquilo o
bastante para treinarmos, uma vez que a Vila não tinha necessidade de criar
animais que ajudassem no deslocamento, e somente Noite, Raio e Trovão
ocupavam as baias.
– É impressionante que você tenha desarmado um guerreiro como
Krotos – comentei.
– É impressionante agora que a história está sendo contada, na hora foi
assustador. – Luna se aproximou da égua, acariciando sua fronte. – Por que
você me acordou tão cedo para vir aqui? Eu queria aproveitar esse
momento em que não faço ideia do que fazer com a minha existência para
dormir.
– E eu quero aproveitar que você ainda existe para treinar. Você é
teimosa e quer se apresentar lá fora, onde uma Sombra pode te matar.
– Blaze, para morrer, basta estar vivo. Eu já desapeguei dessa ideia de
ter uma vida longa e feliz. No momento, só queria um cochilo longo e feliz.
– Ela se virou em direção a saída, me dando as costas.
Busquei uma trufa em meu bolso, e a chamei. Ela olhou para mim com
dúvida, irritação e só um pouco de curiosidade. Era tudo o que eu precisava.
– Luna, pensa rápido. – Joguei o bombom na sua direção, ela tentou
pegar, mas acabei acertando sua cabeça.
– Ouch! – ela reclamou, levando a mão até a testa, e se abaixando para
pegar o que arremessei.
– Por que você tacou isso em mim? – ela perguntou, girando a
embalagem rosada e brilhante com os dedos.
– Porque você tinha dito que queria aproveitar sua vida comendo
chocolate, não se lamentando pelos cantos. Então não vou pedir desculpas;
nada de sono da beleza para você hoje, princesa. Você não precisa. – Diante
da última frase, ela sorriu.
– E precisava arremessar isso em mim? – Ela reclamou, mas colocou a
trufa na boca de uma só vez, revirando os olhos diante do recheio de licor,
certamente.
– É a prova de que seus reflexos estão uma merda. Se você não se
desvia de um inocente chocolate, como vai esquivar da Sombra? E agora
você sabe como aquele senhor de ontem se sentiu quando você tacou uma
cenoura nele. Não foi nada educado, Luna – acrescentei.
– Você certamente se acha muito engraçado.
– Nem tanto, mas você está sorrindo. Eu deixo você se apresentar com
essa condição. Que ao menos treine para ser ágil o bastante para escapar, se
for necessário.
– Eu não preciso da sua permissão. – Seu riso se tornou zombeteiro.
Ela não precisava de mim em nenhum aspecto, mas eu jamais cederia a
verdade.
– No meu território, já disse que precisa.
– Você não manda na Vila do Sol. Amelia mal olha na sua direção –
ela ponderou, sem deboche dessa vez. Como se ela se importasse comigo.
– Quando você anda por onde andei, vê o que eu vi, e sobrevive ao
inimaginável, você se torna dono do mundo. – Era uma mentira. Eu não era
dono de nada, não tinha um teto ou um passado, mas acreditava que se eu
possuísse essa mentira, ela se tornaria verdade. Luna claramente pertencia à
nobreza, eu não poderia ser somente um pé rapado qualquer diante dela. Ela
tinha seus segredos, eu tinha os meus.
– Se esse é o critério, somos dois então – ela afirmou pegando a espada
da minha mão. – Você podia arrumar uma desculpa menos esfarrapada para
vir pra cima de mim.
– Não preciso arrumar um motivo pra isso – rebati a provocação,
dando um passo na sua direção, a envolvendo com minha presença. Luna
levantou a arma e cortou o ar na altura do meu peito, me fazendo desviar
para o lado. Saquei a espada em minhas costas, recebendo seu peso em meu
pulso, e a coloquei diante do meu corpo na defensiva. Meus olhos azuis
cravaram satisfeitos nos dela amadeirados como um violino. – Já vai
começar me atacando, princesa?
– Estava testando os seus reflexos. – Ela sorriu maliciosamente. –
Fique lisonjeado que te tenho em alta estima.
– Quer deixar as coisas interessantes? – desafiei.
– O que você oferece?
– Se eu te desarmar, você me deve um beijo.
– Só isso? – Seu rosto ficou vermelho e, apesar de tentar não vacilar a
postura, ela girava inquietamente a espada no pulso.
– E eu te acompanho no palco na apresentação, distante, para sua
proteção – Levantei a mão que estava livre, mantendo a espada em
posição–. Afinal vai ser um claro indício de que você não é capaz de se
defender sozinha.
– Eu não tenho um bom histórico com guardas pessoais – ela
debochou, ajustando a posição dos pés contra o feno. Ela certamente havia
recebido treinamento.
– Pense em mim mais como um cão de guarda nesse caso.
– E se eu te desarmar?
– Pra ser justo, você escolhe. – Pisquei.
Luna titubeou, respirando fundo enquanto pensava em uma
contrapartida. Não importava, eu iria ganhar esse jogo.
– Você faz as pazes com Amelia.
– Luna, a brincadeira está perdendo a graça.
– Você não estava tão certo que meus reflexos estão fracos? Prefere
desistir?
– Jamais, princesa.
Desarmá-la seria fácil – foi o que eu pensei. Ela tinha uma boa base,
sabia onde colocar os pés e antecipou o movimento que fiz quando mirei
minha espada na sua direção. Luna bloqueou o golpe com um sorriso de
superioridade que faria qualquer um ajoelhar aos seus pés. Mas não eu, não
agora.
Sua espada tinha a ponta curva, e ela parecia usar esse balanço para
fazer o metal cantar contra o ar, ocupando o lugar onde eu estava. Os metais
se chocavam enquanto tínhamos a atenção cravada um no outro, testando
nossa agilidade. Eu investi para frente e Luna recuou para o lado me
fazendo perder o equilíbrio. Ela se aproveitou disso, e girou para trás de
mim, golpeando a espada que tinha em punho a fim de me desarmar.
Ela iria ganhar, e provar que sabia se defender sozinha, que seus
reflexos ultrapassavam o de uma garota privilegiada qualquer. Eu teria que
me desculpar com Amelia com algum discurso meloso e piegas. E eu
perderia a chance de tê-la em meus braços – mesmo que por um instante.
E isso não poderia acontecer. Tomei firme a arma no pulso e, antes que
pudesse soltá-la com a força do golpe, me joguei deitado no chão,
desferindo uma rasteira em Luna, que caiu ao meu lado com um grito
surpreso. Estendi o braço livre para pegá-la antes que ela atingisse o chão
de feno, e subi em cima dela com a espada em mãos.
Ela estava deitada sob mim com a espada ao lado da sua mão,
desarmada. Joguei minha arma longe, o metal abafado soou pelo no
estábulo enquanto a deixava assimilar o que acabara de acontecer. Seu peito
ofegante subia e descia após o duelo, e alguns pedaços de feno estavam
presos em seu cabelo rosado, já quase solto.
– Eu ganhei – sussurrei contra seus lábios.
– Você me derrubou, isso não foi justo.
– Seus inimigos são tão honrados assim, princesa, que agem com
justiça?
– Você está no clima de fazer piada ou de coletar o seu prêmio? – Luna
provocou, levando a ponta das unhas até meu braço em movimentos suaves.
O arrepio correu por meu corpo, e toquei meu nariz no dela, sentindo de
perto seu cheiro de lavanda e baunilha. Abracei sua cintura com o braço que
havia amortecido sua queda e puxei seu corpo quente contra o meu. Senti-la
colada em mim era uma sensação que parecia se encaixar de um jeito tão
ridículo, que poderia me fazer acreditar em destino. Nossos lábios roçaram
e tive que usar toda a minha força para lutar contra o magnetismo que me
segurava para devorá-la por inteiro.
– Eu não disse quando quero o meu prêmio. – Me distanciei, sorrindo
ao ver que minha ação foi diferente do que ela esperava. Era um sinal de
que ela também queria. Que eu podia não ser ninguém, nem ter nada a
oferecer, mas ela ainda assim esperava um beijo meu. – Só posso afirmar
que vai ser em algum lugar que não tenha cheiro de merda de cavalo.
Menti, ainda estava inebriado pelo seu perfume. Ela me empurrou,
percebendo o cheiro desagradável que estava no ambiente, mas seu olhar
continuou cravado no meu. O meio sorriso que estava em seu rosto
desafiava a me manter no lugar mais do que qualquer provação. Me levantei
e limpei o feno que tinha se prendido em mim, e ela fez o mesmo, mas
agora seu cabelo estava solto enquanto Luna desprendia pequenos pedaços
de palha dos fios, olhando para o vazio.
– Uma moeda por seus pensamentos? – pedi, prendendo a espada
jogada no chão em sua bainha.
– Eu achei que já teria esquecido da maior parte das lições. Eu... não
queria me lembrar – ela confessou, fitando longamente a espada. – Estou
enferrujada, mas meus músculos se lembram.
– Quer ouvir um segredo?
– Ouvir e guardar um segredo são coisas diferentes – ela alertou, seus
lábios repuxando para cima.
– Eu não me lembro como aprendi a tocar flauta. Mas meus dedos, de
alguma forma, sabem.
– Você podia tocar pra mim, inverter nossos papeis uma só vez.
– Aquela que fiz joguei fora... preciso de um instrumento menos
improvisado. Mas quem sabe um dia?
– Um dia podemos fazer um dueto, se quiser – ela convidou, e eu
assenti. O silêncio confortável nos envolveu, ora encarando a paisagem
inóspita do estábulo, ora observando a égua que balançava
involuntariamente as orelhas.
– Luna, como é isso? – indaguei desviando o olhar do seu rosto para as
mangas desajustadas que usava.
– Isso o que?
– Ter tantas memórias. – Deixei escapar. – Tenho a impressão de que
frequentemente sua mente não está aqui, nem no futuro, mas perdida em
algum outro lugar.
Seus olhos arregalados me fitaram, e logo me arrependi por ter falado
demais, entregando a minha fraqueza. Eu esperava que ela não pudesse ver
através de mim a ponto de me julgar.
– Sinceramente? Agoniante. Eu sinto que vivo em um cabo de guerra
entre o passado e o futuro, ambos exigindo minha atenção de forma injusta.
E eu nunca consigo estar verdadeiramente no presente, porque sempre há
uma preocupação ou um arrependimento latente. – Luna desviou seu olhar
do chão, brincando com o feno sobre os seus pés e prendeu o foco em mim,
ainda que sua voz não tenha saído mais forte que um sussurro. – Às vezes
eu queria não conseguir me lembrar de várias das coisas que um dia me fez
sorrir. Eu sei que parece ingratidão, mas... não ter com quem dividir essas
memórias, às vezes é insuportável.
– Você pode dividir comigo. Se confiar em mim o bastante.
Ela deixou escapar um riso, e senti que desistiu da frase que pretendia
dizer verdadeiramente.
– Eu confio. Hoje já compartilhei minha odiosa habilidade
manuseando uma espada.
– Não há nada de errado em querer se defender em um mundo hostil,
Luna.
– Eu não ganhei isso... – Ela apontou para o cabelo rosado. – Por
legítima defesa. É uma marca pelo sangue que foi derramado por mim. –
Ela se atropelou nas últimas palavras.
– Qual era a cor do seu cabelo? – Sentei em um banco de madeira ao
lado de uma baia.
– Prateado. Ou era, quando nasci, até pisar pela primeira vez em um
campo de batalha.
– Você fala como se tivesse visto a guerra de perto. – Seria impossível,
ela era nova demais para ter vivenciado tais tempos sombrios.
– Às vezes eu mesma também acho que a conversa que tive com o
dragão foi um sonho.
– Como assim? – Franzi a testa, intrigado.
– É um jeito de dizer – Luna desconversou, e não insisti. – O ponto é
que eu odeio lutar, detestava as aulas e gostaria de nunca mais precisar
empunhar uma espada na minha vida.
– E o que você faria, se tivesse todo o tempo do mundo?
Luna jogou o cabelo para trás após desatar os nós e puxou um
banquinho ao meu lado.
– Se eu não me sentisse tão perdida, eu viajaria, me apresentando nas
melhores tavernas do mundo. – Ela começou fitando um infinito visto
somente por ela, a sua própria voz como uma canção bela e determinada.
Eu poderia ouvi-la por horas. – Tocaria nos palcos, para depois dançar nos
bailes. Passaria as manhãs explorando a magia que corre nas minhas veias,
e as tardes lendo deitada na grama fresca cercada pelas flores que eu mesma
criei – ela suspirou. – Eu sei que essa falta de direção é uma outra forma de
me perder.
– Me parece uma forma de você se encontrar. Eu posso te dar uma
carona.
– Claro, eu subo nas suas costas e a gente cruza o planeta.
– Combinado?
– Blaze, é um plano idiota e inviável. – Ela levou a mão ao rosto,
apertando os olhos.
– Combinado? – insisti, estendendo minha mão. Luna revirou os olhos
e estendeu a dela, seu toque quente e sedoso contra o meu.
– Combinado.
Eu poderia tê-la puxado para mim e a beijado, mas preferi apenas
observar seu sorriso bobo e sonhador ao imaginar por alguns momentos
como a vida poderia ser. Preferi me perder na curva dos seus lábios e
imaginar como seria o seu gosto. Preferi, novamente, a forma mais doce de
tortura.
Capítulo 32
Dax

Quando Zoey chamou meu nome, despertei com algo incômodo prensado
contra o meu rosto e percebi que havia dormido sobre as anotações na
bancada no quarto de Molly. Após um banho rápido nos meus aposentos, eu
me deitei na cama na tentativa de clarear os pensamentos, de encontrar na
paz do descanso, uma solução. Mas tudo que estava na minha mente era o
pulsar do relógio em uma contagem regressiva maldita que ia contra a vida
dela. Mesmo com o quarto em absoluto silêncio, e a cálida iluminação que
vinha da janela, de alguma forma imitando a noite fora do portal, minha
mente gritava.
Se eu ia ficar acordado, poderia perfeitamente estar debruçado sobre os
experimentos, testando novas possibilidades. Exceto que eu já havia
esgotado minhas ideias com os materiais que tinha em mão. A verdade, é
que eu não estava no meu laboratório, não tinha a biblioteca ou a variedade
de componentes que precisaria.
Meus olhos ardiam, e por um momento esqueci que não podia levar
minhas mãos ao rosto sem sentir uma fisgada aguda e intensa de dor. Mas
não precisava me preocupar com isso, os cortes cicatrizariam.
Zoey murmurou algo sobre deitar na cama e, desnorteado e com ajuda
de Molly, segui suas palavras. Ela tirou algo que enxerguei como um vulto
azulado, e retirou do centro um fio dourado. Ela o colocou na minha boca, e
ele derreteu como se minúsculos fogos de artificio explodissem em mim.
Eu não saberia dizer o que tinha ali, mas acordei cercado de almofadas
macias no quarto de Molly algumas horas depois. As duas dormiam
abraçadas na outra extremidade da larga cama.
Eu sorri, porque apesar de Zoey ser a pessoa mais doce e sonhadora
que eu já havia conhecido, parecia diferente, como se tivesse desabrochado.
Vê-la dormir me fazia pensar em Eleanor quando ela ainda era tão nova, e
ainda éramos como um só. Queria que minha irmã tivesse esse mesmo
aspecto curioso e aberto para o mundo, ao invés da forma que ela se fechou
– e parou de acreditar – que as coisas poderiam ser diferentes.
Ignorando os cortes que me lembravam do fracasso do dia anterior, me
levantei da cama com um pouco de dificuldade e caminhei até à câmara de
banho. Lavei o rosto, esquecendo das ataduras que agora estavam
encharcadas. Eu precisava salvar Luna, e assim que tivesse certeza de que
ela ficaria bem, iria resgatar minha irmã. Já estava fora há tempo demais, e
temia como ela estaria com a dominância do meu pai sobre Montecorp.
Mesmo de longe, mesmo sem nos falarmos com tanta frequência a
necessidade de saber se ela estava bem cortava meu peito mais do que os
retalhos nas palmas das minhas mãos. Porque, lá no fundo, eu sabia que ela
não estava.
Joguei fora o curativo já manchado com sangue, e soltei uma maldição
ao ver que a toalha branca e macia de Molly agora estava com largas
marcas vermelhas. Tentei lavá-las, mas o sabão ardia intensamente. O dia
havia começado brilhantemente.
Ignorei as tentativas de fazer algo certo, e voltei para a bancada a fim
de errar até esgotar todas as ataduras da Vila do Sol. A estação de trabalho
parecia uma zona de guerra, com estilhaços de vidro espalhados como uma
tempestade de neve maldita. Todos eles refletiam o meu fracasso mas, por
alguma razão, eu me sentia revigorado. Estava pensando de forma mais
clara hoje, o que não encaixava com o caos das últimas 48 horas.
Me afastei da bancada e caminhei discretamente até a cama, incerto e
desconfortável de como acordar Zoey, porém sabia que ela, entre todas as
pessoas, entenderia. Ajoelhei e cutuquei o seu braço, chamando seu nome
baixinho algumas vezes enquanto Molly a abraçava, inerte como uma
pedra. Precisei sacudi-la um pouco para que finalmente Zoey olhasse para
mim totalmente confusa, e se jogasse para o chão assustada, deixando a
cama para Molly.
Minha amiga se levantou, afastando os cachos do rosto, e perguntou:
– Tá tudo bem, Dax? – A frase foi concluída em um longo bocejo.
– Sim, eu dormi maravilhosamente bem.
– Que bom! – Ela sorriu, sonolenta, sentando-se de pernas cruzadas no
tapete fofo. Volpe tinha conquistado seu lugar, e agora Molly abraçava a
raposa.
– Eu mal conseguia fechar os olhos ontem, mas tenho a vaga
lembrança de você ter me dado alguma coisa.
– Ah...
Zoey se levantou, ainda cambaleante e andou até as roupas que tinha
usado na apresentação do dia anterior. Sob a capa laranja, havia uma flor
azul diferente de tudo que havia visto.
– É alguma obra da Luna? – Meu peito pulou uma batida, pensando
que ela poderia ter ficado preocupada comigo a ponto de usar sua magia
para me fazer descansar. Mas mal nos falávamos há dias, apesar da última
noite no palco ter parecido uma chance para recomeçarmos.
Zoey apenas balançou a cabeça de um lado para o outro.
– Blaze entregou pra mim... Bom, na verdade, para nós três – ela
comentou, coçando o olho.
– Claro, o grande herói entra novamente em ação. Maldita hora em que
paramos naquela taverna.
– Dax, ele só tem tentado ajudar.
– Eu sei, isso só faz dele mais insuportável – desabafei. Queria
explodir, queria dizer que ele não tinha direito de olhar para Luna do jeito
que a engolia com os olhos. Não tinha o direito de ser o cara legal que fazia
tudo certo, enquanto eu só fazia tudo errado. Passei a mão no cabelo, o
jogando para trás apenas para respirar fundo prendendo a dor quando os
fios encaixaram nos cortes. – E o que essa flor faz?
– É um lírio do céu, pelo que me lembro. Ele disse que as pétalas
ajudam a regenerar energia, então levou para nós três como presente depois
da apresentação – ela concluiu, entregando a flor para mim.
– Eu lembro de ter dormido após ter comigo algo que parecia ouro
explosivo.
Zoey riu, e o som fez Molly se sentar na cama e começar a falar, ainda
de olhos fechados. Volpe permanecia no mais aconchegante dos sonhos.
– O miolo do lírio é um calmante poderoso. Em doses maiores, pode
fazer alguém dormir por dias a fio. Amelia sempre usava em pequenas
quantidades para aliviar as aflições do coração e da mente. Eu pedi que
Zoey te desse um pouco para que pudesse descansar e não passasse a noite
na minha mesa.
– Fascinante – murmurei. – E qual a origem dessa planta? Em qual
época ela nasce? É próximo ao verão, ou ela desabrocha o ano inteiro? Já
tentaram fazer algum tipo de infusão com ambas as partes para tentar
encontrar um equilíbrio?
– Bom dia pra você também, Dax – Molly gritou me interrompendo
com os olhos arregalados e vermelhos. Seus cabelos pretos estavam
totalmente bagunçados, e Zoey se sentou ao seu lado começando a
desembaraçá-los. – São muitas perguntas pra quem acabou de acordar,
calma.
– Eu só sei que o cabo não presta pra nada, só pra fazer cócegas –
Zoey comentou. Molly se reclinou em direção ao seu toque, fechando os
olhos. Minha amiga deu um pulo para o lado quando sua falsa namorada a
cutucou na barriga.
– Não precisamos do cabo pra isso – Molly brincou, e Zoey correu
para a câmara, fechando a porta. – Essa flor foi um presente das montanhas,
até onde eu sei. Mas suas propriedades não têm sido tão exploradas, pois
em grandes dosagens ela já se mostrou fatal – concluiu.
Tomei meu caderno para anotar o que acabara de aprender sobre a
planta, fazendo esboços do lírio. Zoey voltou ao quarto, e ela conversava
com Molly, algo que não prestei atenção. Permaneci focado no que
aprendera com os fracassos de ontem, em como nenhum elemento parecia
concluir a fusão entre as propriedades refletivas de um espelho com a aura
energética de uma pessoa.
Molly havia buscado alguns livros que contavam com algumas
informações sobre os portais, a Vila do Sol e Cinaéd. Qualquer coisa que
pudesse guiar minha pesquisa naquele momento, algo que eu pudesse ter
deixado passar. Um triângulo equilátero estava presente ao final de cada
página – o símbolo do fogo, percebi.
Vi registros sobre um idioma mágico conhecido somente pelos filhos
do fogo, alguns esboços sobre a relação dos solstícios de inverno e a
instabilidade dos vulcões, mapas antigos e possivelmente desatualizados
sobre Cinaéd. Mesmo assim, busquei a Rocha Prima a fim de registrar o
relevo e construções conhecidas do Reino de Fogo. Tais informações eram
desconhecidas em Montecorp, e poderiam ser úteis em algum momento.
Logo estava sozinho no quarto com o argumento que elas buscariam
comida pois tinham certeza de que eu não deixaria o quarto hoje. Estavam
certas. Eu só tinha acesso a uma flor, e precisava fazer valer suas
propriedades.
Primeiramente, busquei a fusão das pétalas com o espelho na intenção
de amplificar a energia a ponto de ela ser refletida a milhas de distância de
Luna, deixando a Sombra perdida para sempre. Derreti os fragmentos de
espelho em um pequeno caldeirão, e uni a pasta azul cremosa que tinha
feito com a pétala. Mais uma vez, a teoria me provava que, na prática, os
experimentos são falhos, e tudo que restou nas minhas mãos foram mais
cacos e uma mistura heterogênea detestável.
Tentei imbuir nos espelhos o miolo, tentando minimizar a essência
energética de Luna, a tornando invisível para Sombra. O fracasso foi a
única coisa que me saudou em mais essa tentativa.
Rasguei uma das folhas do caderno revendo minhas anotações,
tentando encontrar algum estabilizador, alguma coisa que pudesse fundir a
magia da flor com a propriedade natural do espelho, e já chorava de ódio e
arrependimento quando Molly abriu a porta do quarto com uma cesta em
mãos.
– Dax, suas mãos estão sangrando. Por que você não pediu para fazer
as ataduras de novo? – Zoey se apressou e abriu a pequena gaveta na
cômoda onde tinha alguns tecidos, agulha e linha.
Não havia notado que as mãos voltaram a sangrar com os cortes novos
– e antigos – que abriram.
– Eu não consigo, Zoey – falei, sentindo a lágrima arder os olhos, um
nó na garganta me sufocava, e a abracei. – Eu não sei o que fazer pra salvar
a vida dela.
Zoey largou as ataduras no chão e me abraçou forte, e sabia que estava
chorando também. Eu caí sentado no chão, desolado na derrota que eu
mesmo criei. Ela se ajoelhou na minha frente, e limpando minhas lágrimas,
disse:
– Se tem alguém que pode resolver isso, é você, Dax.
– Eu achava isso, mas agora não consigo mais acreditar. Luna jamais
vai voltar à Montecorp, jamais vai pisar em Ellioras, jamais verá os palcos
do mundo, e é tudo minha culpa.
– Dax, me conta o que você fez.
– Eu acreditava que o lírio poderia funcionar para criar uma proteção,
mas eu falhei.
– Você não falhou.
– Você fala como se acreditasse nisso. – Tentei manter a compostura e
me levantei apoiando a mão na bancada, ignorando os novos cacos que eu
tocava. Zoey observava a bancada e os caldeirões arruinados como se
procurasse alguma coisa.
– Dax, você já testou as pétalas e o miolo da flor, certo?
– Nenhum deles teve algum sucesso – confessei, tal como um pecado.
– Vendo agora com atenção, o lírio tem uma aura própria, mas com
cores totalmente diferentes. – Zoey pegou um vestígio da pétala ainda presa
ao cabo e um outro dourado no canto da mesa. – Você não enxerga, mas eu
vejo o roxo e o amarelo claro tal qual a luz do dia nas minhas mãos. Como
pode uma mesma planta ter propriedades tão opostas?
– Por que elas são complementares? – falei diretamente, sem pensar.
– E o que as une? – ela perguntou já sabendo a resposta, seus olhos
castanhos reluzindo.
– O caule. – Era como saltar de um penhasco para provar do chão mas,
por ela, era uma queda que eu estava disposto a sofrer.
Precisei de mais algumas horas até preparar outra infusão, a ansiedade
tinha sabor de milênios enquanto o caldeirão fundia as propriedades, e pela
primeira tentativa, sem partir. O espelho derretido reluzia como o próprio
sol, e com ele moldei os dois braceletes necessários, seguindo o pulso delas
como modelo.
Meus olhos ardiam devido à exposição à luz, ao calor, ao foco
intensivo após tantas horas, mas não me dei ao luxo de piscar. A tarde já
caía quando finalmente prendi o fecho nos pulsos de Molly e perguntei para
Zoey, a esperança quebrando em minha voz:
– Funcionou?
Capítulo 33
Luna

Eu definitivamente precisava de um banho após o treino desajeitado no


final dessa manhã. Caminhei sozinha de volta ao meu pequeno quarto,
cumprimentando com um sorriso educado algumas pessoas que ainda me
parabenizavam pela apresentação da noite anterior – duas meninas que se
passariam facilmente como irmãs de Molly e que não pareciam ter muito
mais que quinze anos, e um garoto mais novo que as acompanhava com
cabelos pretos e intensos olhos azuis. Fechei a porta, admirando a janela
que refletia um eterno arco-íris sem nenhum horizonte, me apressando para
tirar as roupas sujas e suadas no caminho da banheira, que cobri com os
primeiros recipientes de sais de banho que encontrei. O aroma adocicado de
pimenta ainda me envolvia, mais forte agora contra a água quente. O
perfume dele.
Por Argrinis, nós quase nos beijamos. Eu podia ser louca, mas
permanecia a sensação fantasmagórica dos nossos lábios se tocando. Levei
a ponta dos dedos até a boca para abafar o formigamento. Eu precisava me
desprender da ideia de que ele se lembraria de mim, e pretendia guardar a
nossa história – e todo o resto – no lugar onde ela pertencia. No passado.
Estávamos construindo algo novo, algo diferente, e isso era mais importante
do que memórias particulares. Esfreguei o sabão contra a minha pele,
brincando com a espuma esbranquiçada suave que criava pequenas bolhas
de sabão na superfície da água enquanto meus pensamentos se dissolviam.
A impressão de que ele me observava como se guardasse alguma coisa
de mim era latente, como uma música que você acaba de escutar, mas
permanece com a melodia na cabeça, cantando involuntariamente um refrão
que só você pode ouvir. O silêncio entre nós gritava cada vez mais alto,
como se não houvesse um momento sequer na minha vida em que não
estivéssemos ligados.
Blaze me olhava como se pudesse me devorar ou me libertar, e eu
estava em paz com ambas as opções. Meu coração era um dado saltitando
em um grande tabuleiro cósmico, sem jamais saber qual resultado sairia.
Um jogo de azar. Uma cartada do destino. Um blefe.
E saber que agora lhe devia um beijo, e que isso poderia vir a qualquer
momento... Virei em direção a porta, buscando ouvir algum toque. Uma
meia esperança de que ele tivesse me seguido e que bateria no meu quarto
buscando pelo momento interrompido de instantes atrás. Tive a impressão
de ter ouvido passos, e minha coluna ficou mais rígida.
– Tem alguém aí? – gritei para quem estivesse atrás da porta. Eu estava
totalmente nua, o que seria perfeito – ou extremamente constrangedor
dependendo de quem estivesse do outro lado.
Mas se fosse ele, poderia vê-lo na minha mente andando até mim,
deixando uma trilha de roupas conforme se despia e mergulhava aos poucos
na água quente ao meu lado. Seus cachos molhados deveriam ficar na altura
de seus ombros, e ele sorriria enquanto afirmaria que eu lhe devia um beijo.
Eu deixaria que ele envolvesse minha cintura e colaria meu corpo no dele,
grata por não ter nenhum tecido entre nós. Correria a ponta dos dedos pelos
músculos dos seus braços, sentindo seu tórax e seu abdômen, o desafiando a
chegar mais perto. Blefando que uma vez que minha dívida estivesse paga,
ele deveria partir.
Então ele finalmente começaria a me beijar, primeiro correndo os
lábios delicadamente pelo meu pescoço, intensificando a pressão. E eu
responderia ao seu toque, procurando por sua boca, roubando o beijo que
me pertencia. Suas mãos se tornariam exploratórias, além do ápice das
minhas coxas, curiosas, apenas para me encontrar pronta para recebê-lo.
Contudo, não ouvi nenhuma resposta e meu coração desacelerou
lentamente, frustrado. Mais uma vez imaginei algo que não aconteceu, nada
além. Mergulhei na banheira, e terminei de lavar o cabelo. Meu corpo
pulsava ansioso quando me levantei usando apenas o colar com a gema de
fogo. Os fios rosados pingavam no piso e logo o frio arrepiou meus braços,
o desejo se esvaindo dolorosamente do meu corpo.
Sair do banho significava ter que lidar com a vida e, honestamente, eu
só queria um dia de folga. Sem o herdeiro de Bólius ao meu alcance, eu não
sabia por onde recomeçar minha busca e, provavelmente, se não tivesse
ficado acamada tantos dias em Ellioras, talvez eu tivesse chegado a tempo.
Talvez.
Uma palavra com tanta esperança, e tanta desolação.
Após me secar, vesti uma túnica vinho larga e macia com bordados
geométricos dourados por todo o tecido, formando um padrão quase
hipnótico. Combinei com um par de calças e botas pretas. Não me
preocupei com maquiagens, tampouco com meu cabelo, apenas o trancei
após secá-lo com uma toalha.
Meu violino estava em cima do baú, e fui até ele verificar se estava em
perfeito estado. A última noite tinha sido um sonho, e sorri ao ver que o
instrumento não aparentava ter nenhuma rachadura, nenhum arranhão. O
posicionei e toquei o início de uma melodia que havia começado a compor
há tanto tempo, que não saberia dizer se foi nas paredes de um palácio ou
de um apartamento. Às vezes eu fingia que não era minha, pois tinha medo
demais do que os outros poderiam pensar. Não importava, pois a canção se
arriscava em passagens lentas e suaves, caminhando pela melodia como um
olhar passeia diante de um campo verde e infinito. Encontrei no silêncio a
antecipação do mistério que era desvendado a cada nota – não como uma
grande revelação, mas como um reencontro aguardado há tempo demais. A
suavidade do som corria no ar até eu perceber que me faltava aos pulmões
espaço para respirar. Era uma mistura de concentração profunda e plena
entrega.
Amanhã já celebraríamos o Litha, e meu peito apertou com as
memórias do festival, o tempo quando o mundo suspendia seus problemas
por um momento de perfeição. Eu precisava apresentar alguma nova
música, e como se a arte tivesse vida própria, essa melodia perdida no
tempo me encontrou. Senti fogos de artifício no peito ao pensar em
apresentá-la no Solstício de Verão, mas suprimi tal vontade. Eu era tratada
como uma artista e convidada por pessoas que desconheciam minha origem
e meu sobrenome. Nem mesmo Blaze e Molly sabiam que eu era a rainha
de Montecorp, e não uma jovem qualquer da nobreza do Reino de Prata.
Ao menos eu não precisaria mentir por muito tempo para eles.
Peribelle assumiria o trono, e meu reino estaria em boas mãos, enquanto eu
passaria o resto dos meus dias sem jamais contemplar o horizonte
novamente, apenas a bela luz que cruzava as janelas. Amanhã eu sairia, e
poderia dar adeus ao ar livre. Ficaria na Vila do Sol estudando violino e
pesquisando sobre a linhagem de Bólius até saber o suficiente para me
arriscar pelo mundo novamente, certeira como uma flecha.
Mas antes precisava encontrar uma canção para apresentar amanhã.
Alguma que não tivesse sido escrita por uma mentirosa.

Já havia entendido o funcionamento das escadas e dos corredores que


faziam o caminho dos meus aposentos até o primeiro andar, onde ficava o
espaço comum – próximo à taverna, o palco de apresentações e uma ala
repleta de fileiras suntuosas de estantes de mogno escuro e avermelhado. Lá
era tão espaçoso que mal parecia que estávamos dentro de um lugar fora do
tempo-espaço, como se o próprio portal se adaptasse aos seus moradores e
se expandisse quando necessário. Absolutamente fascinante. Não fazia ideia
de onde os demais estavam instalados, por isso sorri ao encontrar Molly
diante de uma prateleira, devolvendo algum livro para o seu lugar.
Ela me saudou com um sorriso, mas parecia cansada. Certamente eu
não era a única abalada com a perda do herdeiro. Na minha história, ele era
só uma peça de quebra-cabeça para sempre perdida. Para ela, era um elo
com suas lembranças mais antigas.
– Luna! Te ver fora dos palcos é uma raridade nos últimos dias. –
Molly piscou, divertida.
– Você é a melhor pessoa que eu poderia ter encontrado, já que cresceu
aqui. Estou buscando algum livro de partituras com canções que possa
tentar aprender até amanhã – comentei, ignorando o elefante branco que
visitava a vasta biblioteca.
– Talvez você consiga encontrar alguns naquela prateleira de lá... – Ela
apontou para uma estante há duas fileiras de onde estávamos. – Mas talvez
fosse melhor tocar algo novo. O povo te amou pelo que você trouxe
diferente. Esse portal pode ser infinito, mas há poucas novidades quando
não se recebe referências de fora.
– É por isso que você é apaixonada por vagar pelo mundo?
– Você, mais do que ninguém, parece ter ido bem longe, pelas coisas
que fala – Molly comentou, batendo as mãos após encaixar o último livro
na prateleira.
Duas tranças simétricas dividiam a frente do seu cabelo ao meio, com
algumas pequenas argolas de metal presas ao longo delas, a túnica verde
floresta que usava tinha um leve toque metálico tal como seda, e
harmonizava com sua pele marrom. Seus olhos estavam contornados com
khajal preto, evidenciando seus belos traços. Seu eterno sorriso debochado
estava em seu rosto, um toque de otimismo mesmo diante de notícias
difíceis. Por um instante pensei que seria de fato incrível, se ela e Zoey
namorassem. As duas transmitiam essa sensação contagiante de alegria
perene.
– Digamos que portais e dimensões não são assuntos completamente
desconhecidos para mim – brinquei. – Quer me ajudar a escolher uma
música que o público vá gostar? Eu não sei julgar quais são os maiores
sucessos.
– Ninguém aguenta mais os maiores sucessos, eu daria tudo para ouvir
algo novo. Como o que você tocou ontem, não teria nada assim?
– Eu não sei tantas canções assim de cor. Já apresentei todas.
– Uma pena – ela suspirou, e caminhamos juntas pelas estantes,
acenando para algumas senhoras que tinham triângulos desenhados no rosto
tal como Amelia, algumas crianças acompanhadas de seus pais que
buscavam uma nova história, e um ou outro jovem solitário que queria se
perder dentre as páginas de um livro.
– Ainda não te agradeci direito pelo que fez na última noite... ou por
tudo. Você e Blaze salvaram nossas vidas e eu sinto muito se não fui
totalmente honesta desde o princípio – sussurrei. – E, principalmente, me
desculpe se acabei fazendo você viver um momento difícil.
– Não se preocupe, Luna. – Molly escalou a estante e tirou alguns
livros do topo e pulou ao meu lado com a agilidade de um gato. – Você não
é a responsável pela morte do Fahir, nem pela situação patética em que a
Vila do Sol se encontra – ela disse, colocando alguns conjuntos de partitura
nos meus braços.
Senti um nó na garganta pois, de certa forma, eu era culpada por boa
parte do que aconteceu a esse povo.
– Você pode subir assim nas estantes aqui? – desconversei.
– Claro que não. Mas ninguém vai contar, não é?
Balancei a cabeça em resposta.
– Por que você acha que aqui é patético? Vocês têm a eternidade aqui.
– O que temos é a estagnação. Paramos de fazer história, porque
paramos de viver. O tempo precisa passar, Luna. As coisas precisam
mudar. É o ciclo da vida, e se esconder para sempre dentro dessas
montanhas, nesses portais... é se privar. Entende? Eu sei que pareço ingrata,
mas é que sempre tive essa inquietação de que existe alguma coisa lá fora
que quer ser descoberta.
– E que talvez você seja quem chegará até ela primeiro, não é?
– Sabia que entenderia. – Ela me levou até o fim da biblioteca, e um
complexo de mesas compridas e cadeiras acolchoadas esperava por nós.
Havia pessoas fazendo seus estudos ou leituras, em conjunto ou sozinhas, e
tinha espaço para tantas outras mais. Nos sentamos distante de possíveis
ouvidos curiosos.
– Eu entendo. Mas acho que o tempo passa quando a gente desapega –
respirei fundo e ajustei a postura. – Você sabe onde é o quarto de Dax?
Preciso falar com ele.
– Vocês deveriam acertar as coisas entre vocês. Ele é o que? Ex-
namorado?
– Ele é... Ah, é complicado. Ele é a pessoa errada que estava no lugar
certo. E agora, depois que descobri que Fahir se foi, eu simplesmente não
me importo mais em tentar traçar um plano para fazer qualquer coisa. –
Molly tinha a expressão fechada cravada em mim, compreensiva. – Eu só
estou cansada de me sentir decepcionada com ele. Sinto falta do meu
amigo, e se for para deixar esse mundo, eu prefiro fazer isso com ele tendo
certeza do quanto eu gosto dele. Quero que saiba que eu o perdoo.
– Então ele é seu ex – Molly ponderou, folheando até parar em uma
partitura chamada “Balada da meia-noite” e a colocou na minha direção.
– Ele é meu amigo. E meu aliado. Só precisei de tempo para meu
coração entender que o que ele fez não foi intencional.
– Você deveria dizer isso para ele – ela afirmou com um meio sorriso.
– Como se as palavras aparecessem na ordem certa quando a gente
realmente precisa – zombei, analisando a página que Molly colocou na
minha frente.
– Acho que você deveria voltar para o seu quarto e praticar essa
canção. É um clássico, mas é um pouco complicada para músicos
preguiçosos como os que temos aqui. – Havia algo mais no seu tom, mas
não questionei. Cada um com seus segredos.
– Eu quero falar com Dax primeiro. – A ordem saiu naturalmente na
minha voz.
– Zoey me disse que ele estaria testando alguns experimentos com o
Lírio do Céu após o almoço, mas posso levá-la até lá depois. Os aposentos
dele ficam bem distantes dos seus.
– Você gostaria de me ouvir tocando essa música? Ajudaria ter uma
pessoa para testar a apresentação.
– Lunara, Lunara, você está nervosa? – Molly abriu um largo sorriso,
me provocando.
– Você fala como se fosse algo escandaloso da minha parte! – Revirei
os olhos, empilhando os livros e apostilas musicais.
– Um pouco. Você parece dona do mundo no palco, tanto quanto a
Zoey.
Os olhos dela reluziram ao citar o nome da minha amiga. Um brilho
diferente, que anunciava chuvas bem-vindas de verão ou boas notícias
inesperadas.
– Você gosta dela, não é? – Ela sabia o que eu estava perguntando, e vi
que Molly prendeu a respiração antes de responder.
– É impossível uma pessoa não gostar da Zoey.
Segurei os livros junto ao peito ao me levantar da mesa e falar:
– Eu aposto que ela gosta de você também. – Seus olhos verdes
arregalaram, e suas bochechas avermelharam. – Entenda como quiser.
– Você está plantando ideias na minha cabeça com sua magia de planta
– bufou.
– “Magia de planta” soa um pouco ridículo – fingi indignação
enquanto atravessamos as mesas e estantes de volta para o meu quarto.
– Ridículo é sua ideia de que ela pode gostar de mim. – As palavras
saíram esganiçadas.
– Ridículo é que sua voz está mais aguda a cada palavra.
Já subíamos as escadas e Molly prendeu os lábios em uma linha fina.
– Não tá não. – Ela rebateu como um tenor.
Abri a porta do meu quarto, alegre com o formigamento no meu peito.
Que saudade de conversar com minhas amigas sobre histórias e romances.
Uma caixa dourada estava próxima ao meu travesseiro, e franzi a testa
na sua direção.
– Você sabe quem pode ter deixado isso aqui? – perguntei para Molly,
que permanecia na entrada com um sorriso travesso.
– Você vai saber. – Ela fechou a porta e partiu antes que pudesse
persuadi-la para ouvir a canção.
Apoiei os livros com as partituras na cama e me sentei ao lado da
caixinha. Era menor que um livro, extremamente leve e sem nenhuma
inscrição visível. Aguardei alguns segundos para abri-la, encantada com o
mistério, desfrutando o momento em que “não saber” dava lugar para a
imaginação.
Ao remover a tampa, um sorriso encontrou meus lábios ao ver que no
seu interior estavam dois braceletes finos prateados, tal como um espelho
sem reflexo. No fundo da caixa, encontrei uma folha de papel fina com as
laterais levemente rasgadas, e ali, uma pequena anotação à mão que deixava
o resto da página em branco:
“A liberdade é um tipo diferente de magia. A lua se redescobre e se
reinventa a cada nova fase. E agora aquela que usa seu manto pode vagar
pelo mundo tal como um eterno eclipse: reluzente e impossível.”
As palavras repletas de significados soltos eram como os dizeres de
Amon em um enigma delicioso. Meu peito aqueceu conforme encaixava as
peças na minha cabeça. Eu conhecia aquela caligrafia... ela havia feito
várias anotações em um livro que lera há muito tempo.
Uma certa obra sobre o sol que havia ganhado de um certo alquimista,
onde seu capítulo favorito falava sobre o alinhamento das forças do Cosmos
e tudo que era viável nesses momentos.
Coloquei os braceletes, e me apressei a esmo pelas escadarias da Vila
do Sol, fazendo caminhos alternativos e desconhecidos. Larguei o violino, a
partitura, o festival para trás. A única coisa que importava agora era
encontrar Dax.
Capítulo 34
Dax

Meu rosto estava enfiado em uma almofada que tinha três vezes o
tamanho da minha cabeça enquanto sentia meu corpo derreter sobre o
colchão. O veludo era macio, mas a textura era densa demais para ser
confortável e afundar apropriadamente. Pela primeira vez em muitos dias,
eu conseguia relaxar a musculatura o suficiente para me permitir não
pensar, e parecia que as horas de estresse e dedicação agora cobravam seu
preço – que eu pagaria de bom grado.
Minhas mãos e pulsos ardiam, cada corte e cada bolha eram um
universo próprio de ardência e incômodo. Zoey havia prendido as ataduras
com esmero, e eu quase não conseguia mover os dedos, logo, não poderia
subir ao palco durante a celebração do Litha. Um certo alívio, pois a única
coisa que permitiu que eu fingisse alguma alegria na taverna fora o
pensamento de que isso garantia nossa segurança no portal.
E agora, finalmente, ela estava segura. Eu consegui, pensei. O sorriso
de satisfação permanecia congelado desde o momento em que Zoey tinha
confirmado a eficácia da minha invenção – a energia vital de Molly fora
dissipada pelos braceletes, ela não deixaria mais um rastro energético.
Minha querida Luna estava livre para fazer tudo o que desejasse, e eu...
também.
Havia esquecido o quanto era fascinante poder usar meu conhecimento
para desvendar as entrelinhas dos livros a fim de buscar inovações. Foi
assim que os grandes alquimistas de Montecorp fizeram grandes avanços há
um século, como o advento das fechaduras conectadas ao sangue da família,
a rede de iluminação química que trazia luz nas noites em que Argrinis não
estava presente. Uma linha fina entre magia e inteligência se interligavam e
trançavam, juntas, uma nova imagem. Pela primeira vez em muito, muito
tempo, eu me sentia realizado com algo que partiu de mim.
Eu fui iniciado em tais tomos de magia no mesmo período em que
Eleanor se destacou em jogos de lógica e aritmética. No início, estávamos
animados com o que poderíamos aprender, nossa mãe nos dizia que seriam
habilidades valorosas para o reino, uma forma de “assegurar nosso lugar”.
Hoje, duvido que as intenções tenham sido tão puras quanto simplesmente o
zelo pela nossa educação.
Se meu conhecimento estava sendo usado para executar os planos
sujos de meu pai, o nobre e inquestionável Sir Caleb Van Doren, o que será
que ele tinha guardado para minha irmã gêmea? Uma parte de mim sentia
que ela estava perdida, como se minha mente esticasse involuntariamente
para ouvi-la, insistindo em procurá-la; como se ela estivesse em desespero.
A cada dia longe de Montecorp, eu tinha mais dúvidas sobre Eleanor e
minha mãe estarem a salvo.
Uma batida na porta me puxou da corrente de pensamentos sem forma,
e senti uma fisgada de dor ao apoiar no colchão para me levantar.
Provavelmente Zoey e Molly estariam me aguardando com alguma refeição
sem sentido que elas tanto insistiam que eu fizesse. Certamente, eu devia ter
apagado no intervalo em que elas saíram.
O cabelo caia no meu rosto, e o afastei com o dorso do braço, de
qualquer jeito. Respirei fundo quando a maçaneta encostou na palma da
mão, e abri em um só puxão. Luna me encarava com os olhos arregalados e
marejados. Mechas rosadas flutuavam em volta do seu rosto, soltas de sua
longa trança.
– Aconteceu alguma coisa? – perguntei imediatamente. Ela estava
bem? Estava ferida? Minha invenção teria tido algum efeito colateral por
não passar pelo período necessário de observação? Os pensamentos
aceleraram impiedosos, buscando preencher uma lacuna que se alastrava a
cada instante.
Eu teria falhado de novo?
E todas as perguntas perderam o sentido quando ela envolveu seus
braços delicados em volta do meu pescoço. Ignorando a dor nas mãos, eu a
apertei contra mim como se ela pudesse escapar se a soltasse, apreciando
seu aroma de lavanda e baunilha que agora eu sabia o quanto me lembrava
de casa.
– Ainda está brava comigo? – brinquei, sussurrando contra seu
pescoço, torcendo para não macular a felicidade que sentia com ela por
perto.
– Uhum. – Ela balançou a cabeça contra meu ombro.
– Não parece – respondi, e Luna deu um passo para trás, suas mãos
apoiadas no meu rosto. Quase me inclinei no seu toque, mas me mantive
firme.
– E como eu pareço? – ela perguntou com a voz um pouco rouca.
– Linda. – Seus lábios se repuxaram para cima. Ao ver seus olhos
reluzindo com o eco das lágrimas, sua respiração ofegante... eu precisaria
de uma palavra mais forte. – E livre.
– Entendi certo o que isso significa? – Luna apontou para seus pulsos
com o olhar. O bracelete era uma joia mágica e rudimentar, talvez simples
demais para uma rainha, mas tinham servido com perfeição. Olhando com
atenção, percebi que algo estava diferente nela, como se sua vibração
interdimensional que tanto me fascinava não estivesse em nenhum lugar à
vista. Eu não possuía as habilidades de Zoey, mas percebia diferentes
energias que pairavam no mundo.
– Você é inteligente, Luna. Não teria me perdoado sem um bom
motivo – as palavras saíram mais amargas do que eu tinha planejado.
– Eu já tinha escolhido te perdoar. – Seu polegar subia e descia pelo
meu rosto em um carinho quase irreal. – Só queria que o gesto viesse de
coração... eu precisei de tempo, mesmo sabendo que não tinha. Sinto muito
pela forma que te tratei, e se te feri também.
– Você não tem nada com que se desculpar. Eu vivo, e continuarei a
viver por você, minha rainha.
– Não estamos em Montecorp, eu não preciso ser sua rainha aqui.
– Você sempre vai reinar sobre tudo que sinto e tudo que penso, Luna.
– Dei um passo na sua direção, diminuindo a distância entre nós, sentido o
calor do seu corpo que era tão familiar e confortável. Ela desceu suas mãos
do meu pescoço para o meu peito, e senti meu corpo arrepiar.
– Doeu porque você foi um dos únicos que sabe sobre tudo que eu
vivi. Eu esperava a mesma sinceridade vinda de ti. – Luna respirou fundo e
pousou a mão sobre meu coração. Não tenho certeza se ele estava batendo.
– E se a gente começasse tudo do zero?
– Você acha que isso é possível? – perguntei, a esperança incerta se
quebrando.
– Eu, acima de todo mundo, acho que isso é perfeitamente possível. –
Ela sorriu tão docemente que eu poderia me desfazer ali. – E não acho que
consiga viver em um mundo em que você não está ao meu lado como meu
amigo.
– E se eu quiser ser mais do que seu amigo?
– O que você quer dizer com isso? – Ela levantou a sobrancelha.
– Já disse, você é inteligente, Luna. Você sabe o que eu quero.
Seus lábios se prenderam em uma linha fina, preocupada. Eu não
deveria ter falado nada. Deveria ter aceitado sua amizade e me regozijado
com sua liberdade, mas sabia que me flagelaria até o fim dos meus dias se
jamais tentasse.
– Eu não posso te dar o que você quer, Dax. Na verdade, nunca pude. –
A voz de Luna morria a cada palavra, e senti que o que quer que ainda batia
no meu peito, também. – Mas posso lhe dar isso.
Na ponta dos pés, a rainha de Montecorp levou seus lábios mornos e
afetuosos até os meus, que se tocaram por um breve momento, não em
luxúria, mas em um gesto de amizade.
– Obrigada – ela suspirou junto ao meu pescoço. Senti seu abraço me
envolver mais uma vez, mas não retribui com a mesma intensidade.
Acariciei suavemente seus cabelos úmidos e inspirei seu perfume,
memorizando cada nota. E a soltei, não porque não a queria. Não porque
não desejava possuí-la ali mesmo e lembrar exatamente porque seu beijo
era viciante e dar a aquele quarto algumas boas memórias.
Mas porque, acima de tudo, havia cumprido minha palavra.
Eu a amava, e ela estava livre.
Capítulo 35
Luna

O fogo craquelava timidamente na fogueira plácida na Vila do Sol.


Colocar os pés do lado de fora do portal e respirar ar puro em paz foi uma
sensação que jurei jamais ignorar novamente. O caminho que havia feito
pelo túnel subterrâneo, tinha o ar abafado e estagnado, e rapidamente me
acostumei com a atmosfera no portal onde vivia Amelia e tantos outros.
Mas só do lado de fora percebi o quanto senti falta do vento. Do ir e
vir das estações que traziam consigo aromas, promessas e memórias. A
partitura estava entreaberta sobre minha cama e havia ensaiado dezenas de
vezes até acreditar que a música estava agradável o bastante – fiz o melhor
que pude sem Molly por perto –, e quando a luz do meu quarto começou a
esmaecer, busquei minha capa e decidi estrear o presente de Dax.
Zoey ajudava Molly e Amelia com alguns preparativos do festival, e
sinalizei que estava saindo. Não demorou para que encontrássemos um
assento em um dos bancos triangulares ao ar livre ao redor da fogueira –
alguns lugares oferecendo mais proximidade com o calor do que outros.
Permaneci ali em um silêncio confortável, sabendo que meus amigos se
aproximariam em breve. Contemplei o vermelho metamórfico da fogueira,
agradecendo a brisa que afastava a fumaça dos meus olhos. Eu achava que
não conseguira resolver nada desde que parti de Montecorp. Na verdade, só
tinha entregado meu reino para uma outra governante... mas se não tivesse
partido, jamais teria conhecido Zoey e Molly. Jamais teria reencontrado
Blaze, ou descoberto a magia que pairava no meu sangue.
Nada tinha sido perfeito, mas eu tinha aprendido tanto. Admirei as
montanhas nevadas que nos cercavam, vigilantes, ignorando o verão que
nos espreitava. Ainda assim, de acordo com o calendário, amanhã seria a
celebração de Litha. O primeiro dia do verão, marco das festividades que
um dia foram tão comuns e aguardadas em Montecorp, e como aprendi...
em Cinaéd também.
E aqui, os murmúrios sobre a chuva de meteoros corriam a Vila,
enquanto o palco das apresentações permanecia no horizonte com a
promessa de risadas compartilhadas, performances inesquecíveis e
memórias a serem guardadas. Graças a Dax, eu não precisava mais me
recolher na segurança dos portais. Eu estava livre – o mais livre que eu
poderia ser.
Só por hoje, não me preocuparia no que fazer agora que o herdeiro de
Bólius tinha partido, afinal, a gema morna que repousava sobre minha pele
parecia ansiar também a troca da estação. O ruído das vozes de Molly,
Zoey, Dax, e Blaze fluía sereno conforme se aproximavam, como se jamais
tivessem discutido em toda vida. Volpe cochilava sobre suas patinhas e,
aninhada próxima ao calor das chamas, parecia uma bolinha felpuda de
fogo.
Havia uma magia no ar, diferente da voz do vento, da alquimia de Dax,
ou do constante pulsar que corria pelas minhas veias. Um espírito de
renovação que nos visitava todo ano, nessa mesma época. A Vila do Sol,
parecia iluminada pelo astro rei mesmo à noite: pequenos lampiões foram
colocados em sequência por todas as paredes das pequenas lojas ao longo
da avenida principal, transformando-a em um corredor de luz. Flores
vermelhas e brancas eram trançadas em arranjos circulares e colocadas em
cada porta.
Eu observava as crianças risonhas de mãos dadas com seus pais,
carregando cestas de pães e biscoitos frescos enfeitados. Algumas delas eu
tinha encontrado na residência de Amelia, e outras eram rostos totalmente
novos. Vi os sorrisos banguelas e olhares orgulhosos em direção às suas
obras de arte, e meu coração se retorceu ao entender que esse é o povo de
Cinaéd. Distantes do Reino de Fogo, que fora destruído pelos meus
antepassados mas, ainda assim, carregando orgulhosamente suas tradições.
Eles mereciam celebrar Litha em sua própria terra, junto ao calor do verão
que lhes dava vida e um propósito. Quem sabe, no próximo ano, eles
poderiam ter essa escolha. Tudo dependia de mim e, como uma Montecorp,
não poderia falhar. Não de novo.
Sem meus cabelos prateados, eles jamais saberiam da minha
verdadeira identidade e dinastia. Aqui eu era só uma garota buscando um
pouco de calor próxima à fogueira, como todos os outros. E era exatamente
quem eu queria ser naquele momento: a violinista amiga de Molly que faria
mais um número musical.
Um garotinho sorriu para mim de longe, e eu retribui, ignorando a voz
na minha mente que dizia que eu era uma farsa, a verdadeira responsável de
seu exílio. Mas talvez por estar exilada do meu próprio reino, alguma parte
de mim me perdoara. O menino soltou a mão do pai, e correu de forma
desengonçada com sua cestinha de madeira chacoalhando de um lado para o
outro. Ele estendeu a mãozinha enluvada com um biscoito em forma de sol,
enfeitado com cobertura branca de açúcar.
– Para mim? – perguntei, sabendo que foi algo bobo a dizer.
– Moças bonitas merecem comidas bonitas – ele explicou satisfeito, e
logo estendeu biscoitos para Molly e Zoey também. – É o que meu pai
sempre diz. – Volpe se levantou, farejando curiosa, Zoey partiu um dos
raios do sol e estendeu para a raposa.
Sorri, sem jeito. O aroma de nozes, noz moscada e canela me
encantava ao mesmo tempo que me levava para uma memória distante, tão
bela quanto dolorosa. Queria estar em Montecorp para participar das
festividades, compartilhar tais alegrias com Ayla e Amon. O menino
encarava meu cabelo cor de rosa, curioso, e decidi lhe presentear.
Discretamente fingi que pegava algo na minha bolsa no chão, e chamei
minha magia. Uma coroa de louros logo estava em minhas mãos, e a
coloquei em sua cabecinha.
– E meninos bonzinhos merecem presentes legais – completei,
tentando ajustar as folhas no seu cabelo vermelho. – Ficou um pouquinho
grande.
– Eu tô crescendo rápido, amanhã já vai servir direitinho – ele afirmou
com toda certeza do universo.
Não querendo contrariá-lo, coloquei o biscoito na boca e segurei firme
a coroa com as duas mãos. Senti o formato da sua cabeça e a ajustei
perfeitamente. Entreguei em suas mãos, mordi o biscoito e disse, tentando
não falar de boca cheia:
– Amanhã com certeza vai estar perfeita em você – a voz saiu um
pouco abafada. Ainda bem que o biscoito era super amanteigado e que não
tinha a palavra “farofa” na frase.
Ele a colocou em sua cesta, e logo correu para o outro lado da larga
fogueira, a fim de presentear outras pessoas com seus biscoitinhos. Acabei
por terminar o biscoito, guarda um pedaço para levar ao estábulo onde
estava Noite depois.
– Eu vi o que você fez – murmurou Dax à minha direita, fingindo
indiferença natural.
– Você, analisando algum movimento meu? – Revirei os olhos,
saboreando o sarcasmo. – Eu deveria chamar os repórteres para colocar essa
notícia na primeira página.
– O que são repórteres? – perguntou Zoey.
– São... Hum... Pessoas que compartilham notícias de interesse
público.
– E por que Dax te observando seria de interesse público? – Foi a vez
de Molly falar.
– O sarcasmo vive nas entrelinhas. – Eu ri. Toda vez que tentava
explicar sobre algo da outra dimensão acontecia a mesma coisa. Eu gostava.
– A poesia também – completou Dax.
– Ele não tira os olhos de você, duvido que o significado de
“entrelinhas” se aplique aqui – explanou Molly, com olhares nada discretos.
– Não o culpo por isso – sussurrou Blaze, ao meu lado. Senti meu
rosto ficar mais quente, e culpei a brisa que havia mudado e soprava o calor
da fogueira na minha direção.
Culpei a pedra abaixo do tecido bordado que usava. Culparia até as
estrelas – especialmente as estrelas – se pudesse.
– Não é como se magia fosse proibido aqui – declarei, mas parte de
mim sentia medo.
– Não é proibido, mas chama atenção – explicou Dax, mas longe da
forma afiada que costumava falar. – E ainda precisamos manter a descrição,
não é hora de provocar um cataclisma. – Ele sorriu para mim e, pela
primeira vez em muitos dias, eu finalmente retribuí de coração aberto.
– Por que o garotinho não entregou biscoito pra vocês? – interrompeu
Zoey, provavelmente percebendo que o tom da conversa estava caminhando
para algo deprimente.
– Os meninos entregam biscoitos para as meninas, e as meninas, para
os meninos – explicou Molly, com seus olhos verdes cravados nos de Zoey,
e começou a gesticular com os dedos sinais de vai e volta. – É uma forma
de “honrar o equilíbrio”. Francamente, é algumas daquelas tradições que
são assim porque são assim. O importante é que todo mundo ganha
biscoitos, então eu não reclamo.
– Em Montecorp – sussurrei –, nós trocávamos presentes.
– Típico da nobreza – esnobou Blaze, e franzi a testa.
– Não é verdade, eu cresci cuidando dos estábulos e meu pai sempre
me presenteava na Noite de Prata – interveio Zoey. – Muitas vezes era algo
que ele fazia à mão, como um vaso de barro com flores. – Ela olhou para o
céu como se assistisse alguma memória que não compartilhava conosco. –
Teve um ano em que ele encontrou um filhote de cachorro, e me deu. Nós
fomos melhores amigos por dez anos.
Zoey enxugou algumas lágrimas finas com a manga da túnica, Molly a
envolveu com um braço, e ela deitou a cabeça em seu ombro. Volpe apoiou
a cabeça nos joelhos de Zoey, que fungou ao acarinhar seu pelo.
– E eu cresci entre a realeza, mas tudo que eu e Eleanor ganhávamos
eram mais livros de estudos – Dax declarou, amargo. – Versões complexas,
traduzidas da biblioteca de Amon, que meu pai insistia que lêssemos... Mas
teve um ano que minha mãe nos deu um livro com as páginas em branco, e
uma caixa com giz colorido para nós dois. Ela sussurrou escondido para que
fizéssemos desenhos, e o que mais quiséssemos. Foi o melhor Litha de
todos.
Zoey tocou no seu joelho, e eu quase imitei seu gesto. Mas foi para ela
que ele revelou sobre seu passado. Eu não deveria ter ouvido, e nada disso
justificava o que ele tinha feito, mas... eu lamentava.
– Bom, eu cresci em um palácio, isso vocês sabem. Mas Litha em
Montecorp tinha mais do que a antecipação pelos presentes. Era o dia em
que o Carvalho de Prata reluzia cintilante, como se estivesse coberto por
milhares de estrelas, pousadas em cada uma de suas folhas e a lua decidisse
visitar nossas terras, representada pela sua copa majestosa.
“Havia dias de paz, mesmo em tempos de guerra. Momentos em que o
glorioso reino suspirava como se o tempo estivesse suspenso, em uma noite
feita para celebrações, presentes, e a esperança de um mundo melhor.
“Para o resto do mundo, era celebrado o Litha.
“Para os súditos de Argrinis, era a Noite de Prata.
“Para mim, era o dia em que meus pais estavam de volta ao castelo.
“Eu tinha onze anos quando meus pais se dividiam entre o caos do
acampamento de guerra, e o palácio de prata. Naquela época, eu treinava e
estudava sem entender muito bem para que exatamente. Eu imaginava que
isso me daria mais tempo ao lado dos meus pais e, por isso, era assídua em
todas as minhas aulas. Todo Litha eles estavam comigo, então eu acreditava
estar fazendo algo certo.
“Três dias antes e três dias depois do Litha eu era dispensada das
minhas atividades oficiais, e passava a maior parte do meu tempo na
cozinha do palácio, colocando canela demais nos biscoitos, ou assistindo a
massa do pão crescer. A farinha cobria meu cabelo, ainda prateado na
época, assim como meus dedos e todo meu vestido.”
– Você não usava avental? – perguntou Blaze.
– Avental não é apropriado para uma dama.
– Você é um pouco metida – ele completou.
– Para de interromper minha história! – O empurrei para o lado com o
ombro, brincando.
– Ele tem um ponto – Dax assentiu.
– É sério que é nisso que vocês vão concordar? – perguntei incrédula.
Soltei um risinho, desviando do olhar âmbar e amendoado de Dax para as
safiras afiadas e azuis de Blaze. – Enfim, eu queria tudo perfeito para
receber meus pais. Assim como Zoey, eu também gostava de fazer
presentes. Nunca fui muito boa em bordar, mas fazia bons bolos e biscoitos.
“O festival de Litha, começava ao meio-dia, e terminava à meia noite,
e não ao contrário, como fazem aqui na Vila do Sol. Amon fazia um
discurso da sacada principal do palácio, sobre sabedoria e resiliência no
início, e Ayla celebrava um ritual sobre esperança e glória no encerramento.
Presentes eram distribuídos para as crianças nas ruas: bolas, piões, lupas,
cadernos de desenho, jogos de xadrez e muito mais. Cestas com flores, pães
e bolos, eram entregues aos mais velhos. E sim, o povo gostava de saber
que eles haviam sido assados e cultivados pela sua nobreza, uma vez que o
rei e a rainha estavam fora.
“Na véspera de Litha, os guardas me acompanhavam pela cidade para
a entrega dessas oferendas. Nesse dia, entendíamos que uma oferenda ao
povo, era o mesmo que uma oferenda à Argrinis.”
– Você fazia algo parecido com o que minha irmã faz – entendeu Dax.
Eu concordei com um aceno de cabeça, um sorriso amargo nascendo em
nós dois.
– Então, quando chegava o dia de Litha, minhas aias deixavam meu
cabelo solto, com várias flores brancas presas no comprimento. Colocava
um vestido prateado, bordado com alguns diamantes e cristais na gola e
mangas leves que fluíam dos ombros até os cotovelos. E ficava na minha
sacada, encarando o horizonte até ver algum sinal de movimento. Algo que
me indicasse que finalmente era Litha. Eu esperava a carruagem real entrar
na paisagem, pois ali eu sabia que estariam meus verdadeiros presentes. Um
dia, parecido com hoje, onde as preocupações dão licença à alegria, mesmo
que passageira, mesmo que efêmera. Pois tudo que importava, é que eles
estariam ali por um momento, e a eternidade daquele instante era tudo que
importava.
“Eu era proibida de ir até seus aposentos, por ordens da rainha.
Deveria esperar que viessem até meu quarto, e hoje eu sei que é porque
meus pais não queriam que tivesse a imagem deles exaustos após a guerra.
Esperar por eles era ruim, muitas vezes levava algumas horas, mas eu
suportava de bom grado pois sabia que eles estavam em casa. Alívio corria
por mim com tanta naturalidade, que me pergunto se a sensação não era
algum tipo de magia também.
“E quando as batidas na porta surgiam, todo meu controle derretia. Eu
gritava, e corria na direção da porta, ansiando pelo abraço dos meus pais, o
perfume de mirra, rosas e sândalo me envolvia. Eu morava no palácio mas,
com eles, realmente estava em casa. Yohan, meu pai, mantinha a mesma
barba preta e farta, um sorriso sempre iluminado ao me ver com seus olhos
cor de mel. Minha mãe, Ella, tinha os cabelos prateados assim como eu e a
pele mais bronzeada, provavelmente por causa da exposição ao sol durante
os dias de acampamento. Ambos vestiam trajes da cor da lua, assim como
eu. A imagem perfeita da glória de Montecorp, que era vista apenas por
mim. Mas nada disso importava de verdade.
“Nos abraçamos forte, e aprendi que a saudade ficava retida no
coração, e quando era liberada, expandia. ‘Vocês vieram para ficar?’, eu
sempre perguntava, e sempre recebia a mesma resposta: ‘O hoje é um
presente.’ – dizia minha mãe. ‘E esse é o seu.’, completava meu pai.
“E aos onze anos, sentei-me na beira da minha cama quando a rainha
colocou uma caixa de madeira à minha frente. Meu pai levantou as travas, e
ambos disseram: Feliz Litha, Luna.
“Levantei a tampa e dentro, havia um instrumento de madeira escura,
polida e brilhante...”
– O seu violino! – interrompeu Zoey extremamente empolgada.
– Sim, o meu violino, Zoey. O primeiro que tive em toda minha vida,
pelo menos. O meu pai disse que fora dele, mas que nunca aprendera a
tocar. E minha mãe disse que música era uma forma de magia, e eu
acreditei. Já era apaixonada pelo som, e pedia ao músico da corte que
tocasse minhas músicas favoritas repetidas vezes... eventualmente ele se
tornou meu instrutor.
“Ella também sabia tocar, então me ensinou a segurar o instrumento,
pois meu pai era desajeitado demais pra isso. Ela me ajudou com as
primeiras notas que fiz, pareciam um gato implorando por leite. ‘Por estar
tentando, você já está conseguindo.’, ela afirmou. Tentei novamente repetir
o movimento suave que ela me ensinou com o arco, e a lenta troca de uma
nota para outra. Soou menos esganiçado da segunda vez, e nós três sorrimos
por satisfeito. ‘Acho que ela nasceu pra isso.’, murmurou meu pai no
ouvido de minha mãe. Ela apenas concordou.
“Contei-lhes sobre como o povo havia recebido aos bolinhos que tinha
feito, e caminhamos juntos até a varanda do palácio, para ouvir as palavras
de Amon. O festival de Litha parecia de verdade com eles ao meu lado,
como se todos os dias que vieram antes em que falamos sobre esse dia,
fosse apenas uma história, lida pela voz de outra pessoa. À meia-noite, o
Carvalho de Prata estava no ápice do seu brilho, piscando incessantemente.
Eu tinha a impressão, de toda a Floresta do Oblívio reluzir com ele, até que
assim que as badaladas findavam, as faíscas pousadas em suas folhas
flutuavam lentamente pelo céu, até cobrir todo o firmamento com prata, tal
como fogos de artifício. Era como se a noite virasse dia. Como se a guerra
se transformasse em paz. Como se tudo que era bom e puro, pudesse
perdurar.
“Eu era inocente o bastante para acreditar que todos os dias podiam ser
assim... Minha mãe voltava ao meu quarto comigo, e recolhíamos as flores
que apareciam em minha janela, às colocando em um vaso na mesinha ao
lado da minha cama. Meu pai aparecia na porta e soprava um beijo na
minha direção. Os dois me desejavam ‘boa noite’ de longe, e eu dizia ‘até
amanhã’.
“Até que teve um ano, em que eles não estavam ali pela manhã. Que
haviam partido mais cedo. Eu já tinha 16 anos na época, e sabia que tinha
sido nosso último Litha juntos. Toquei violino até meus dedos sangrarem
naquele dia, e foi a única coisa que fez sentido para mim. Não sabia se a
música de fato era mágica, mas ela me acolhia. Não era o que eu precisava,
mas era o que me mantinha sã.”
O fogo ainda crepitava, e eu cutucava a pedra de fogo por cima do
tecido tentando engolir o nó em minha garganta.
– Desculpa se minha história não foi muito feliz – suspirei, sincera.
– Aqui na Vila do Sol, acreditam que durante o Litha você deve
compartilhar algo genuíno. Seja um sentimento, uma verdade, um segredo...
– Blaze começou –, um talento.
– O que você quer dizer com isso? – indaguei.
– Você entendeu – ele retrucou. – Deveria tocar uma música sua,
aquela que você murmura quando acha que ninguém está olhando, não algo
batido em alguma partitura milenar.
Senti minha espinha gelar. Não sabia que ele havia reparado nisso.
– Molly você contou que estou aprendendo a “Balada da meia-noite”?
– Ouvi uma melodia bem diferente dessa quando passei na frente do
seu quarto horas atrás. Uma coisa que nunca ouvi em nenhuma taverna, em
nenhuma parte do mundo. – Molly levantava as sobrancelhas rapidamente,
convidando os demais a me persuadir com o olhar. Os quatro olhavam
fixamente para mim, Zoey cobria o sorriso com as mãos. Volpe era a única
que não parecia entender nada.
A ideia de apresentar minha música, ainda tão imatura, tão íntima... era
loucura.
– Eu não vou tocar uma canção minha no festival.
– Você deveria – pediu Dax, pensativo. – Você é o legado das suas
próprias escolhas. O violino te conecta com seus pais, com tudo que sempre
prezou. Pense nisso como um elo entre vocês.
– Litha é sobre esperança – concordou Zoey.
– E renovação – completou Molly.
– Ninguém aqui já ouviu nada parecido, eu tenho pavor de ninguém
gostar e acabar sendo vaiada pela multidão. – Balancei a cabeça, me
levantando do banco.
– Você gosta. Só isso conta – afirmou Blaze, segurando minha mão
antes que eu me distanciasse.
A nossa volta, a praça estava mais vazia, as luzes adornavam as
vitrines fechadas. O palco adiante era tentador. Eu adoraria, mas não sabia
se era a hora certa e o momento certo. Como se existisse tal coisa.
– Prometo pensar sobre. – Foi tudo que disse, ao recolher meus dedos,
e caminhar até o estábulo onde estava minha égua.
Algumas ruas depois, tendo apenas as estrelas e o silêncio dos meus
passos como companhia, entrei no portal de Amelia até o local onde Noite
estava, no térreo. As marcas do feno do meu encontro com Blaze mais cedo
me fizeram suspirar. Ainda lhe devia um beijo, e não sabia quando ele faria
a cobrança. Vi minha égua de pé e entreguei um pedaço do biscoito. Uma
janela que genuinamente mostrava o lado de fora emoldurava as montanhas
esbranquiçadas ao longe, ainda que embaçada por luz.
Se estivesse com o violino, arriscaria algumas notas, já seduzida pela
ideia de me apresentar uma canção minha no festival. Tinha medo de ser
hostilizada, caso descobrissem que eu era uma Montecorp. Não queria que
me temessem ou me culpassem, embora entendesse perfeitamente o motivo
para ambos.
Eu sonhava em ser a Rainha da Paz, mas até quando meu nome
significaria guerra? O festival era sobre algo sincero e genuíno, eu poderia
ocultar minha identidade diante deles? Isso seria justo?
Me despedi de Noite, e voltei para o lado de fora buscando mais da
sensação de liberdade. Caminhei pelas estreitas e adoráveis ruas de pedra
até encontrar um banco vazio, provavelmente por estar longe do calor da
fogueira. Puxei a capa contra meu corpo e suspirei ao fitar as estrelas, tão
brilhantes longe da luz da cidade.
Apoiei a mão no meu colo, e algo diferente do veludo macio tocou
minha pele. Pequenos cristais chamaram minha atenção.
Não cristais.
Mas sim flores brancas, com cinco pétalas, que reconheceria em
qualquer parte do mundo.
E em algum lugar, no vento nevado da noite, eu ouvi na língua antiga
um sopro de saudade com aroma de sândalo e rosas:
Feliz Litha, Luna.
Capítulo 36
Dax

No dia seguinte, bati na porta de Luna ao pôr do sol. Os preparativos das


festividades tomaram toda atenção de Zoey e Molly, me deixando em uma
solidão inquieta. Li todos os livros que pude carregar até as mesas na vasta
biblioteca, fazendo anotações sobre o funcionamento da magia em Cinaéd.
Acredito ter estudado mais de vinte tomos, ainda que de forma superficial e
apressada. Como cresci em um mundo onde tudo que era mágico havia
esvanecido, sempre fui fascinado por encontrar fragmentos ainda
remanescentes no interior do meu laboratório a cada experimento, cada
tentativa. Estar imerso em uma fonte pura de energia cósmica era mais do
que eu podia desejar.
Todo o processo de aprendizagem era dolorosamente solitário e, por
muitos anos, foi tudo que conheci. Antes de encontrar a rainha e partir do
palácio movido por culpa, curiosidade e fascínio, as expectativas
frequentemente tendiam a se alinhar com o fracasso. E mesmo assim, eu
persistia por causa de um momento. O momento em que as variantes se
encaixavam e na palma das minhas mãos e eu fitava o desconhecido que
acabara de criar. Mesmo quando estive distante de Eleanor ou de qualquer
outro membro da corte, o conhecimento me bastava como companhia.
Mas depois de ter criado os braceletes na companhia de Zoey e Molly,
que foram prestativas a todo momento mesmo sem saber o que fazer, a
solidão era diferente. O quarto estava silencioso sem seus comentários sem
sentido, que a princípio me tiravam o foco, e de alguma forma me
acalmavam. Sentia falta até de Volpe farejando tudo a sua volta. Eu não
imaginava que ter alguém para compartilhar as dúvidas seria tão bom
quanto o sabor de uma nova conquista. O retorno para Montecorp levaria
tempo já que Luna ainda tinha a gema de fogo em seu poder, mas já sentia
que viver naquele palácio novamente seria mais frio do que caminhar pelas
Montanhas Profundas.
Insisti a batida na porta, ajustando meu sobretudo junto ao corpo – que
finalmente estava limpo e impecável –, o lenço vermelho que completava o
traje de gala e as luvas pretas que escondiam as ataduras em minhas mãos.
O festival aconteceria durante a madrugada, e mesmo em pleno verão o ar
gelado se fazia presente.
Luna abriu a porta e seus lábios se repuxaram em um sorriso ao me
ver. Seus cabelos estavam soltos em ondas fartas com flores brancas presas
ao longo dos fios. Ela fez algumas tranças finas enfeitadas com argolas e
correntes douradas, tal qual a chuva de meteoros que iríamos assistir. Seu
vestido intensamente vermelho deixava seus ombros expostos, mangas
justas se ajustavam aos seus braços com uma fita dourada tal qual o
espartilho que desenhava sua cintura, com bordados dourados em padrões
aleatórios. O tecido rubro envolvia seu quadril e revelava, em uma fenda
central, a saia fluida repleta de camadas rosa pálido na parte de baixo.
Deslumbrante. Imediatamente quis abraçá-la, mas contorci a urgência
dentro de mim.
Da entrada do quarto pude ver alguns vestidos jogados em cima da
cama, partituras reviradas e o violino apoiado em cima de um baú. Ofereci
meu braço e sinalizei com a cabeça para sairmos.
– Me atrasei um pouco, só falta pegar o violino! O restante consegui
prender por dentro do vestido – ela comentou, se apressando na direção do
instrumento, juntando algumas folhas de papel com anotações em sua
própria letra.
– Já decidiu o que vai fazer? – perguntei ao entrar e encostar a porta.
– Não faço a menor ideia, Dax. O herdeiro se foi, e não tenho nenhum
indício se existe algum outro vivo – ela suspirou. – Amanhã eu vou até
Amelia e revelarei toda a verdade, como deveria ter feito desde o início.
– Eu estava perguntando sobre o que iria tocar na apresentação, mas
revelar tudo depois de tantos dias aqui? E se ela levantar uma revolta contra
nós?
– É um risco que eu estou disposta a correr. – Ela engoliu em seco. –
Eu também ia pedir para que você voltasse para o reino com Zoey, não
quero arruinar a vida de vocês.
– Se você acha realmente que vamos te abandonar, não entendeu nada
esse tempo todo. Eu detestaria pensar que você não é tão inteligente quanto
eu imagino.
Um sorriso descrente surgiu em seu belo rosto, e ela ajustou o violino e
as partituras nas mãos, um pouco sem jeito, antes de prosseguir.
– Ela é a única que pode me ajudar a devolver esse colar. Prefiro arcar
com as consequências de Amelia do que da Alma Antiga. – Luna apontou
para onde a pedra estava escondida debaixo do vestido. – Só não vou falar
hoje para não estragar as festividades... e porque quero me apresentar. Isso é
egoísmo?
– Ela te convidou para tocar, e tenho certeza de que só nos aceitou aqui
porque precisava de novidade no entretenimento. Um conselho: seja um
pouco egoísta, Luna. Tá tudo bem fazer o que você tem vontade,
especialmente se não está machucando ninguém.
– Teoricamente eu estou mentindo sobre minha identidade.
– Você é mais do que a rainha de Montecorp. Você é uma artista. –
Diante disso, seu sorriso abriu para logo se fechar.
– Tem uma coisa que eu precisava te contar – ela afirmou, parada
como um gato.
– Essa frase nunca precede boas notícias.
– Não são exatamente más… – Luna retrucou, seus dedos tensionavam
apertando as partituras, amassando levemente o papel amarelado.
– Você pode ir direto ao ponto?
– Não sou mais rainha – ela se atropelou nas palavras. – Não serei,
assim que voltar a Montecorp. – Eu estava totalmente estático. – Imperatriz
Peribelle III irá anexar a Floresta do Oblívio e todo nosso território até a
costa do arco-íris como parte do império de Ellioras.
– Você enlouqueceu? – Não queria levantar a voz, mas não me contive.
Meu peito palpitou, sem querer acreditar no que ela dizia. O conselho não
receberia bem essa notícia, e não podia imaginar em que tipo de revolta
meu pai incitaria contra o império.
Luna balançou a cabeça.
– Ela é uma governante de um território próspero e longevo. É isso que
eu quero para o nosso povo... paz, magia, unicórnios atravessando as ruas. –
Luna forçou um sorriso triste.
– Mas ela não foi escolhida por Argrinis. Você foi. – Toquei no seu
rosto, vendo que seus olhos estavam marejados. – Você foi capaz de
terminar uma guerra, de atravessar o mundo, de voltar para casa cruzando
dimensões. Eu já sabia sobre você mesmo antes de sonhar em te conhecer, o
seu retrato e sua participação para cessar a guerra estavam em todos os
livros de história do reino, Ayla sempre manteve o seu nome vivo, apesar de
meu pai insistir que deveríamos deixar sua memória para trás. Você merece
a coroa, não ela. Por que fez isso, Luna? Nós não te abandonaríamos ao
voltar para o palácio. Eu não te abandonaria jamais. Não deixei claro que
iria até o fim do mundo com você?
– Foi a única forma que encontrei para barganhar nossa liberdade,
teríamos ficado presos em Ellioras para sempre, ou algo próximo disso. Os
imortais têm uma noção de tempo muito diferente da nossa. – Luna tocou
minha luva com ternura e se afastou. – Nós não seremos expulsos, Dax. Só
haverá uma transição de poder.
– Mas é a sua vez de reinar. Isso não é justo, quando tantos outros
menos capazes tiveram sua vez para governar o Reino de Prata.
– Talvez isso seja apenas mais um equívoco na linha do meu destino. –
Ela deu um passo até a porta, determinada, como se quisesse deixar a
conversa para trás. – Mas ainda bem que tudo isso me fez conhecer você.
– É errado estar feliz por você ter desaparecido por vinte anos? Jamais
teria te conhecido se não fosse por isso.
– Se é errado, nós dois estamos falhando. – Ela apontou para a
maçaneta e levantou os braços ocupados. – Agora vamos. Uma festa nos
espera.
Capítulo 37
Zoey

Molly havia insistido de novo e de novo – e de novo, para salientar – que


eu “só entenderia o Litha da Vila do Sol à noite”. Revirei os olhos o dia
inteiro, enquanto carregava toda sorte de bandeirinhas coloridas, tecidos
aleatórios com estampas demais ou lisos demais nas mais variadas texturas,
como seda, veludo e juta, e tudo mais que me instruíram. Volpe ajudou a
puxar uma caixa de madeira com rodinhas que ora tinha alguns potes de
biscoitos no formato do sol que estariam a disposição em uma das tendas,
ora itens como papel de seda, grafite e plaquinhas com nomes de doces.
Uma vez que o festival comemorava o início do verão, escolhi um
casaco longo amarelo e vibrante com botões lilás e prendi meus cachos no
alto da cabeça com uma fita vermelha. Encontrei uma tinta intensamente
dourada, e arrisquei desenhar algumas linhas desconexas perto de meus
olhos com um pequeno solzinho em cada extremidade. O pincel fazia
cócegas tal como minúsculas estrelas expandindo na minha pele. Os outros
podiam não enxergar auras da mesma forma que eu, mas quis me certificar
que saberiam como era a minha – se olhassem com atenção.
Molly colocou calças vermelhas, largas a partir de seu joelho, e uma
blusa curta da mesma cor que prendia em seu pescoço. As mangas
compridas eram fluídas como rios de fogo, uma vez que o tecido brilhava
como o sol dependendo da incidência de luz. Um espartilho com alças preto
abaixo da linha dos seios marcava sua cintura. Seus cabelos estavam em um
rabo de cavalo justo, deixando exposto o seu rosto que insistia em carregar
um cativante sorriso de eterno deboche.
– Hoje você está tão linda – comentei involuntariamente, assim que ela
deixou a câmara de banho.
– Só hoje? – Ela levantou as sobrancelhas, buscando pelas botas no
chão do seu grande quarto. – Antes tarde do que nunca.
– Não foi o que eu quis dizer... – Por que eu sempre dizia a coisa
errada?
– Já você, está maravilhosa, Zoey. Todos os dias, quem te olha tem
sorte de presenciar algo tão belo – ela afirmou depois de amarrar um dos
cadarços com o olhar fixo no meu. Fiquei sem respirar.
– Como você consegue?
– O que?
– Ser assim. Tão genuinamente segura, ser tão espontânea nos
elogios… ter sempre a coisa certa a dizer. Reparei isso desde que te vi de
longe, cumprimentando Luna na taverna.
– Eu só falo o que penso sem filtros, Zoey, e isso está longe de ser o
ideal nesse mundo. Foi isso que acabou deixando a gente nessa situação. –
Ela buscou algumas pulseiras douradas sob a penteadeira que precisariam
de um laço, e meu coração gelou diante da menção ao nosso falso namoro.
Segurei as pontas de camurça junto ao seu pulso e, ao tocá-lo, pensei que
talvez seu traje festivo não fosse a única coisa que imitasse fogo. Sua pele
era morna e macia sob meus dedos, e tudo nela irradiava profundo
escarlate. Molly parecia descontraída, não tensa como eu, então tentei
respirar normalmente. Ah, se eu soubesse como se fazia algo assim. – Se
gostar de mim, ótimo. Se não, tudo bem. Mas não viveria fingindo ser
alguém que não sou só para agradar outra pessoa.
– Eu aprendo muito com você, sabe? – comentei, demorando um
pouco a mais para soltar seu pulso, meu polegar deslizando até que a ponta
dos nossos dedos se encostasse sem querer me desprender.
Meu peito saltitou quando ela entrelaçou os dedos nos meus.
– Então deixa eu te mostrar como celebramos o Litha aqui.

Era uma loucura. De alguma forma, a energia não só das pessoas, mas
também dos arranjos de flores, das pedras, e até do ar estava diferente.
Cores se entrelaçavam como tubos de tintas espalhados em uma paleta
usada por muitas horas por um pintor inspirado. Eu sentia que cada canto
havia sido habitado pelas estrelas, que vibravam esperando pela chuva de
meteoros que cairia em poucas horas. Em Montecorp, Litha era sobre a luz,
e as celebrações começavam de manhã, tendo seu encerramento quando a
lua pairava no céu, mas aqui... era sobre o dia conquistar a noite, irradiando
o mundo com fogo. A antítese do porquê o Reino de Prata e o Reino e Fogo
tinham comemorações opostas e complementares, me intrigava.
As tendas, as bandeiras triangulares e as lanternas que ajudei a trazer
para o centro da área externa da Vila eram bonitas à tarde, mas de noite,
tudo brilhava. Uma camada reluzente e dourada cobria cada detalhe, como
se tivesse uma chama própria. Detalhes geométricos com triângulos
equiláteros, círculos perfeitos e linhas retas formavam mandalas que
adornavam o detalhe de cada copo, prato e tecido bordado. Eu podia estar
exagerando, mas sentia que a vida e dedicação das pessoas dali haviam
transferido parte da sua aura para os objetos, apenas por uma noite.
Até o chão de pedra da praça parecia irradiar luz entre os
paralelepípedos, nos fazendo caminhar sobre minúsculos rios de ouro
líquido. Do largo palco de madeira que foi revitalizado contra a montanha,
o som de música e festa preenchia o festival, alguns casais e amigos
dançavam mais perto dos músicos, e outros, em volta da grande fogueira.
Por toda parte, ruídos de risadas, conversas e provocações amigáveis
pairavam, misturado ao refrão sutilmente desafinado, próprio de quem está
alegre demais para tomar cuidado com a entonação. Naturalmente, eu seria
uma dessas pessoas, porém tinha perdido as palavras.
– Você também vê isso? – perguntei sem me virar para Molly,
segurando mais firme sua mão, ainda hipnotizada por tudo que via. Ellioras
tinha luminescência e magia, mas não assim. Não compartilhada pela
energia vital de quem vivia e cultivava aquele lugar. No império tudo era
naturalmente mágico, mas aqui, a magia vinha puramente das pessoas.
– Eu disse que de noite tudo ficava diferente, lindinha. – Ela apontou
para uma tenda mais distante. – Blaze está pegando minha bebida favorita,
vamos lá antes que ele acabe com tudo.
A segui, desviando das pessoas que trilhavam alegres seus caminhos
comendo maçãs do amor, confeitos caramelizados e provando bebidas
temáticas enfeitadas com flores e frutas. Pude jurar que um dos copos tinha
um líquido azul e profundo, o que me fez pensar diretamente no lírio do
céu. Vi uma ou outra garota também com pinturas do sol no rosto com
alguns triângulos, lembrando as marcas de Amelia. Mais um símbolo do
fogo para ser homenageado. Eu estava em um vulcão em erupção de vida,
música e memórias em formação. Já havia imaginado que o mundo podia
ser assim, mas estar aqui… tinha mais sabor de sonho do que o próprio
sonho em si.
– Muito obrigada por ter guardado pra gente, Blaze – Molly gritou,
tirando o copo da mão de Blaze antes que ele pudesse levá-lo à boca.
– Não, não. – Ele colocou a mão na frente da boca dela, não deixando
que bebesse. – Seja gentil, o primeiro copo vai pra sua namorada. E você,
minha cara, vai para o final da fila comigo. – Blaze piscou para mim.
Ele estava com um casaco longo, vermelho escuro como sangue vivo,
com botões de ônix. Seu cabelo estava mais cacheado e comprido do que
antes, e ele parecia ter se barbeado para o evento.
– Argh, você está certo. Mas não se vanglorie, eu odeio isso.
– Não odeia – ele retrucou com os lábios repuxado para cima em um
gesto charmoso.
Molly revirou os olhos, e estendeu o copo para mim.
– É todo seu, lindinha.
– Eu não faço questão, pode tomar – comentei, sem saber como me
enfiar na discussão.
– Litha é sobre compartilhar. Se eu tenho uma acompanhante, o
primeiro gole, a primeira mordida, primeiro qualquer coisa, tem que ser
dela.
– Por isso que eu venho nesses eventos sozinho – Blaze comentou.
– Primeiro: eu sempre vim contigo; segundo: você só está sozinho
porque a garota que roubou toda sua noção e senso de foco está de braços
dados com outra pessoa – Molly alfinetou enumerando com os dedos das
mãos.
Luna acenou ao longe, seguida por Dax. Eles apontavam e
comentavam algo entre si que parecia algum tipo de piada interna, e meu
amigo finalmente parecia bem. Sua energia vibrava um tom intenso de lilás
como se uma parte dele estivesse se curando. Já a rainha, era um mistério.
Ela agora estava invisível para a Sombra, e para mim também. Mas pela sua
respiração descompassada, acredito que estava apreensiva com a
apresentação.
– Sua namorada tem um senso de humor mórbido, Zoey – Blaze
comentou, depois de piscar e sussurrar alguma coisa para a atendente da
tenda e ganhar outro drink sem entrar na fila.
– Acho que é por isso que vocês são amigos – retruquei, provando um
gole da bebida. O sabor de limão e cravo era forte e azedo demais para
mim, então segurei na mão de Molly antes que ela se distanciasse e devolvi
o copo. – É seu, meu bem.
Ela bebeu um longo gole, feliz como se aguardasse por isso há muito
tempo. Nos afastamos alguns passos tentando não esbarrar nas outras
pessoas. A residência de Amelia era espaçosa, mas não tinha percebido
quantos habitantes viviam na Vila do Sol – em outros portais – até a noite
do festival, quando todos estavam nas ruas. A vasta praça da noite passada,
agora parecia apertada – de um jeito bom, como um abraço.
Paramos embaixo de uma corrente de bandeiras coloridas presas de um
lado a outro da praça, o aroma de caramelo, frutas cítricas e pimenta fluindo
pelo ar como faíscas reluzentes. Luna chegou até nós, de perto vi as flores
brancas no seu cabelo rosado, uma homenagem silenciosa a Montecorp, e
cumprimentou cada um os envolvendo ternamente, parando entre Molly e
Blaze.
– Eu não faço a menor ideia do que visitar primeiro – a rainha
comentou olhando em volta, seu olhar não parava em um ponto fixo,
correndo por cada detalhe com uma empolgação infantil.
– Uma das mentiras mais lindas que contam no Litha – Molly
começou, entre goles –, é que as estrelas brilham só para você.
– Isso não precisa ser uma mentira. – A empurrei com o ombro, e ela
soltou um riso baixo.
– A mentira não é algo ruim, lindinha. Frequentemente, é só o reflexo
de um desejo. – Molly desviou seus olhos verdes como uma floresta de
mim para o copo em suas mãos.
– Você mesma levantou a hipótese de algo parecido, Zoey – Dax
comentou com uma postura que parecia elegante, mas que eu já havia
entendido que era sua forma de me cutucar.
– Mas, respondendo nossa violinista, você pode escrever alguma coisa
que você quer muito em uma lanterna, e torcer para que alguma estrela
atenda seu pedido. É só isso... Uma tradição legal para forasteiros, se
recebêssemos um número razoável de vez em quando. – Molly apontou
para uma tenda maior, onde a luz irradiava fortemente em tons de dourado,
laranja e vermelho. Pessoas acendiam lanternas flutuantes com um estalar
de dedos e olhavam encantados a sua suavidade ao subir pelos céus.
– Eu adoraria! – Luna ficou na ponta dos pés para olhar o palco, o som
do alaúde e a voz do cantor irradiava empolgação enquanto ele começava
uma nova música. – Mas acho que minha apresentação já está chegando,
não posso ficar na fila. Depois dela, eu vou.
– Você pode comer algum confeito, as filas são bem menores. Eu te
levo. – Molly entrelaçou o braço no de Luna e as duas sumiram na
multidão. Quando percebi, Blaze também não estava mais por perto.
Dax se aproximou de mim e caminhamos sem rumo pelo festival, eu
lhe apontando os detalhes que mais admirava: uma tenda vermelha
pequenina com biscoitos redondos cobertos com glacê e aroma de canela, o
carrinho que Volpe tinha puxado e agora estava repleto de flores silvestres,
e um poste de luz que parecia feito de estrelas da base ao topo. O calor do
fogo sempre estava ali, contrastando com o frio persistente das montanhas.
– Como fizeram a gente acreditar que esse lugar era mau? – sussurrei.
– O que importa é que agora sabemos a verdade, e podemos fazer a
diferença quando chegarmos em casa.
– Você pode, Dax. Tem influência pra isso, já eu... posso persuadir os
cavalos e pássaros do reino a acreditarem em mim.
Ele subitamente parou de andar e se virou, olhando em volta.
– Você já teve a sensação de que estava vivendo algo pela última vez?
– Dax indagou, sem olhar para um lugar específico.
Um arrepio correu meu coração. Um medo insano se instalou, mas
todas as cores à minha volta pareciam estar em paz.
– O que quer dizer? – Mesmo assim, não queria ouvir a resposta.
– Eu só acho que não tem como voltarmos para nossas antigas vidas,
Zoey. Não há um caminho de volta para o “normal” depois de tudo que
vivemos. Eu só... não queria que acabasse. Por mais que parte de mim
precise, ainda não estou pronto para voltar para o nosso reino.
– Ei, o que a gente construiu não acaba. E a gente nunca tá preparado
de verdade pra nada de importante, não é? – Peguei na sua mão com
delicadeza e o abracei. – Eu não estava preparada para encontrar em você,
um irmão. Sabe disso, não é?
Senti sua respiração pausar antes que ele me envolvesse de volta e
respondesse com pesar:
– Você também é. – Dax engoliu em seco. – E irmãos não se
abandonam.
Capítulo 38
Molly

O número de acordeão tocava uma das músicas que eu mais gostava,


palmas ritmadas ecoavam por todo o festival, e eu cantava enquanto
esperava minha vez de ser atendida na tenda de doces branca e amarela. O
interior tinha o desenho do sol feito com padrões geométricos e precisos,
como uma mandala que ganhara vida.
– Estaria mentindo se dissesse que não senti falta disso aqui –
comentei, entregando um palito de algodão doce laranja para Zoey assim
que a encontrei em meio à multidão. Seus cachos refletiam a luz dourada do
ambiente como se fossem feitos de pura luz. Havia espaço para andarmos
sem problemas, mas eventualmente eu esbarrava em alguém. Litha parecia
estranhamente mais cheio esse ano, ou eu tinha crescido e não cabia mais
aqui. – Esse lugar era a primeira parada que Amelia e eu fazíamos quando
eu era criança.
– É natural sentir falta de casa, ou da infância, nessas épocas do ano –
Dax interveio, suas mãos no bolso do casaco mostravam uma postura
despreocupada, mas seu rosto estava apreensivo. Mais fechado do que o
costume.
– E onde está a matriarca? – Zoey perguntou, provando o doce,
levando-o à boca com a ponta dos dedos. Seus olhos reviraram,
maravilhados e eu não pude evitar de sorrir ao ver o contorno dos seus
lábios repuxando para cima. – Parece uma nuvem derretendo na boca.
Prova isso, Dax!
– É uma infusão de açúcar e ar quente, uma iguaria típica nas festas de
Cinaéd – expliquei, mas Zoey estava muito concentrada na forma que
flutuava no palito. – E Amelia deve estar no centro da multidão, festejando.
Ela deseja a liberdade tanto quanto eu, mas não diz isso em voz alta.
– Hoje pode ser breve, mas as duas podem ter o que querem – Dax
comentou, com a mão nos ombros de Zoey. – Luna já vai começar a tocar,
vou assisti-la mais perto do palco – Roubou mais um tufo de algodão doce e
desapareceu na multidão à nossa frente com um meio sorriso.
– Nós devíamos ir com ele, Molly.
– O melhor lugar para ouvir música é próximo à fogueira – expliquei.
– A acústica das montanhas amplifica o som até aquele ponto, por algum
motivo. – Peguei sua mão, e Zoey me acompanhou, segurando o palito na
outra. Volpe andava ao nosso lado, parando para farejar ocasionalmente.
– Não deveríamos avisar Dax então?
– Zoey, minha linda, ele não quer ouvir música. Quer só olhar pra ela
mais de perto. – Dei de ombros, pegando um pouco do doce que ela
carregava.
– Deve ser difícil demais gostar de alguém de um jeito e não ser
retribuído da mesma forma.
Meu coração interrompeu uma batida, implorando que isso fosse uma
forma dela deixar as entrelinhas em aberto, mas seus olhos sonhadores
focados nas luzes acima não denunciavam nada.
– Deve ser insuportável – foi tudo que revelei, sem coragem o
suficiente para encará-la.
A grande fogueira craquelava ainda mais imponente do que na noite
anterior. Aquele lugar era quase vazio, um segredo que eu havia percebido
após anos testando qual era a melhor região para assistir às festividades do
solstício de verão.
Zoey finalmente descartara o palito vazio em um cesto, e lambia a
ponta dos dedos com discrição. A luz do fogo irradiava uma luz vermelha
sobre nós, e ela parecia um elemental da natureza.
– Está tudo bem? – ela perguntou, e só então reparei que não olhava
para nenhum outro lugar há alguns instantes. Por Bólius, eu não queria
assustá-la.
– Acho que Luna já vai se apresentar – desconversei, desviando
fixamente para o palco.
O mundo estava em silêncio, os ruídos de passos e conversas cessaram
na troca de artistas. Luna fez uma reverência elegante com a cabeça para o
músico anterior que retribuiu o gesto e piscou para o público antes de
descer do palco.
Só havia Luna, seu violino em mãos, e a cadeia de montanhas
esbranquiçadas a sua volta. De alguma forma, ela não parecia pequena –
pelo contrário. Depois de ter visto sua conexão com a terra, era como se ela
fosse parte daquelas rochas também. Ela arrumou as partituras em um
pequeno cavalete a sua frente e posicionou o violino em seu ombro.
Zoey segurou minha mão, e o fogo atrás de nós não impediu o arrepio
que senti com seu toque macio e morno. Mas ela só estava apreensiva pela
sua amiga. Sabia que Luna tinha passado o dia inteiro praticando até os
dedos calejarem, e se importava demais com ela para relaxar. Assim era
Zoey... buscava ver o que o mundo tinha de belo e de positivo, mesmo
quando o medo e a incerteza imperavam.
Luna parecia um ponto cor de rosa e vermelho salpicado por pequenas
estrelas quando começou a tocar uma música que encontrou minhas
memórias rapidamente. A “Balada da meia-noite”. A canção contava a
história de um dia mítico onde a noite havia acordado para festejar, e todos
os moradores da cidade se animaram para dançar pelas ruas desertas ao
invés de reclamar do barulho dos vizinhos. Sua melodia era alegre, ressoava
perfeitamente onde estávamos, encaixava com Litha e por toda parte as
pessoas aplaudiam e buscavam um par para dançar, independente do gênero
ou da idade.
– Nunca ouvi essa música – Zoey comentou esperançosa, olhando para
mim. Tão injustamente linda emoldurada pelo fogo. – É dela?
– Essa canção é clássica – balancei a cabeça –, mas difícil demais de
ser executada, e nossos músicos são um pouco acomodados... As pessoas
estão felizes de poder dançar e ouvi-la apropriadamente, ao invés de
cantarolar desafinados.
– Vamos dançar também então! – Zoey entrelaçou seu braço no meu e
giramos.
Um sorriso radiante surgiu no seu rosto, e peguei sua mão, levando um
joelho no chão enquanto ela caminhava ao meu redor como uma borboleta
em volta de uma flor. Eu não sabia que felicidade podia ser assim – junto a
uma outra pessoa. Perto do final da música, eu já estava de pé e enlacei
Zoey em uma pose final onde ela deveria se sentar no meu colo, mas nós
duas caímos no chão, desajeitadas.
O mundo ficou em suspensão, eu fitava os olhos castanhos de Zoey e
os cachos que haviam se desprendido e agora pendiam em volta do seu
rosto. Uma outra melodia começou a soar, mas dessa vez, não era alegre ou
dançante – mas incerta e insistente, ao mesmo tempo que parecia que mil
vagalumes surgiam a cada nota.
Olhei para o céu, e os primeiros riscos de luz começaram a cortar o
manto da noite. A chuva de meteoros começou no seu próprio ritmo errante,
enquanto eu e Zoey permanecíamos sentadas no chão, fitando o céu, e a
violinista que parecia convocar as estrelas. Não percebi que ainda
estávamos de mãos dadas até Zoey entrelaçar seus dedos nos meus.
– Essa é a música que ela compôs – Zoey sussurrou com medo de
interromper o acontecimento que irradiava mistério. Ninguém fazia som
algum, hipnotizados pela melodia desconhecida que ecoava pelas
Montanhas Profundas. O céu noturno era preenchido por luz e curiosidade,
assim como os olhares que apontavam para o palco.
Voltei a atenção para Zoey, e ela cravou os olhos nos meus. E talvez
tenha sido uma força maior que me obrigou a falar, ou eu estava apenas
inebriada pelo momento, mas as palavras saíram. Inconsequentes como
tudo que já fiz na vida e, pela primeira vez, tão certas.
– Esse momento seria perfeito se fossemos namoradas de verdade. –
Levei o polegar ao seu rosto, a respiração incerta. – Se estivéssemos...
apaixonadas de verdade. Seria perfeito para um primeiro beijo.
– A gente nunca conhece a verdade, mas eu odiaria desperdiçar
momentos perfeitos, já que eles são tão raros. – Sua voz era tão doce, e ela
estava tão dolorosamente linda, que ao mesmo tempo me derretia e
apavorava. – Tenho medo de que as forças do destino vejam isso como
desdém, e parem de colocar ocasiões como essa no meu caminho.
– Eu tenho medo de que as forças do destino não tenham colocado um
beijo seu na minha história. Então não me odeie se eu fizer isso.
Não sei qual força me deu ousadia, mas levei minha boca até o canto
dos seus lábios, tomada de esperança que ela retribuiria, e Zoey encaixou
seu rosto no meu, procurando também pelo beijo. O toque era morno e
aveludado, delicado demais para despertar uma chama tão forte dentro de
mim, e ainda assim achei que poderia explodir. Envolvi sua cintura, a
trazendo para o meu colo, e Zoey devolveu o abraço, brincando com meu
cabelo até soltá-lo. Seus dedos acariciavam minha nuca enquanto o beijo
aumentava a intensidade, as línguas entrelaçadas na única sinfonia possível
para os apaixonados. Era como se tivéssemos todo o tempo do mundo,
como se a música fosse infinita, e como se a chuva de meteoros
permanecesse eternamente sendo o cenário para um sentimento que insistia,
desconvidado, em desabrochar.
Eu a tinha nos meus braços, e ela procurava com seu corpo cada vez
mais o meu enlace. Subi meus dedos apreciando a maciez de seus cachos,
querendo sentir mais do seu perfume de mel e primavera. Nossa relação
podia ser uma mentira, mas cada instante do nosso beijo confessava uma
verdade minha que já estava guardada há tempo demais. E eu pensei que
talvez, liberdade fosse algo totalmente diferente do que eu pensara a vida
toda.
Capítulo 39
Luna

A última nota soou como um longo suspiro guardado há muito tempo


dentro de mim, e o silêncio das montanhas me envolveu. Estava frio, mas
suor escorria pelas minhas costas, resultado dos minutos de intensa
concentração e entrega. Eu havia conseguido. Apresentei uma música
minha em algum lugar que não as paredes do meu quarto. Imaginei que
ficaria eufórica, mas me senti anestesiada, contemplativa. Grata.
Eu consegui, foi o que pensei, ainda incrédula diante dos fatos.
Aplausos irromperam da multidão que me assistia, e me ajoelhei no centro
do palco. Os assobios aumentaram. Eles jamais saberiam o que significava
esse gesto, o peso que a reverência de uma rainha possui. No entanto,
sempre acreditei que os governantes devem idolatrar o seu povo, e não o
contrário. Eu não era de Cinaéd, mas a música – a arte – não pertencia a um
reino. Pertencia ao mundo, e a todas as dimensões que pudesse alcançar.
Na madeira do meu violino, pequenas luzes eram refletidas. Tinha me
esquecido totalmente da chuva de meteoros, mas ao olhar para cima, lá
estava: delicados riscos dourados correndo pelos céus em uma trajetória
rápida e magnífica. Eu estava mais perto das estrelas, como se pudesse
esticar os dedos e pegar uma delas com as mãos se ficasse na ponta dos pés.
Um assobio mais perto do palco chamou minha atenção, me trazendo
para a realidade – certo, eu deveria dar a vez para o próximo artista fazer
sua performance musical. Me levantei buscando pelo instrumento e
partituras de forma apressada, as várias camadas do vestido farfalhando
quando me movia. Algumas flores brancas se soltaram do meu cabelo e
caíram pelo caminho, minha tão ensaiada graciosidade real havia sido
substituída por gestos desajeitados e apressados.
Descia as escadas de madeira tentando me equilibrar, as tábuas gastas
rangendo, quando Blaze interferiu e estendeu a mão, segurando as folhas da
partitura que tinha escrito horas mais cedo. Ajustei o violino em uma das
mãos, e estendi a outra na sua direção para chegar até o chão. Saias rodadas
definitivamente não foram feitas para atividades esportivas.
– Tenho uma surpresa pra você, princesa. Venha comigo.

Chegamos na base de uma velha torre feita de pedras cinzentas


desgastadas, próximo à residência de Amelia, longe do centro do festival.
Entramos em uma passagem apertada demais para duas pessoas, e Blaze
girou a manivela que acionava um antigo mecanismo de engrenagens que
nos levou até o topo em poucos minutos. A proximidade entre nós era
inevitável, mas ele permaneceu de costas para mim, escondendo algo
propositalmente. Não havia janelas, e me concentrei para respirar sem me
sentir sufocada.
A plataforma deu um pequeno solavanco, indicando que tínhamos
chegado ao topo, e Blaze empurrou a porta para a lateral, um rastro de
poeira prateada acompanhando o movimento. O cômodo escuro era um
pouco mais espaçoso, o espaço circular tinha uma cadeira de madeira sem
uma perna, um tapete vinho que fora bonito algum dia e agora estava
manchado e comido por traças, arcos e flechas enferrujados descartados em
um canto coberto por aranhas felpudas, e um sino quebrado estava jogado
no chão. O ar era frio, especialmente à noite, e pairava a sensação de que o
mundo havia se esquecido desse lugar.
– Se você quer me impressionar, vai precisar fazer muito melhor do
que isso – brinquei, perplexa.
Blaze se manteve em silêncio, caminhou decidido até a fresta de uma
janela que oferecia um filete de luz e a empurrou para fora. O desgraçado
apenas virou para mim e seus lábios repuxaram para cima, sabendo que eu
fora mordida pelas minhas palavras. Meus passos foram incertos até o
batente, com medo de cair, e coloquei o violino no chão para me apoiar e
inclinar a cabeça para fora. A paisagem diante de mim, era mais do que eu
poderia imaginar. Eu não sabia que estávamos tão inacreditavelmente alto.
A chuva de meteoros persistia, mas agora era como se estivesse no
camarote dos céus. Ao longe, o vulcão Pico da Luz ecoava um brilho etéreo
e vermelho, como se procurasse assistir o fenômeno também. Dali o
território parecia uma chama de mistérios, reluzindo mesmo em uma noite
sem lua. Cinaéd possuía luz própria, tal como o sol. Era um universo
totalmente diferente do que eu tinha sido ensinada, e tentei evitar a sensação
de que estava traindo meus ancestrais ao perceber como me sentia sobre
esse lugar. Eu estava me apaixonando pelo Reino de Fogo a cada instante
que aprendia sobre ele.
Era esse o sentimento que acompanhava a coroa: o amor por um povo,
por um território, de uma forma tão intensa que você daria sua vida para
protegê-lo e fazê-lo feliz. Sempre senti isso por Montecorp, mas agora
percebia que isso não era um mérito do Reino de Prata, mas do mundo.
– Você está babando um pouco – Blaze parou atrás de mim, colocando
os braços na lateral a minha volta, revelando uma lanterna de papel
delicadamente dobrada. – E você me deve um pedido de desculpas.
– Eu já te devo um beijo e, se me lembro bem, um tesouro. Não vou
acumular dívidas com você. – Dei de ombros, fingindo que minhas pernas
não amoleceram quando uni minha coragem para falar.
Ele entregou um pedaço de papel pequeno e um grafite apontado,
desdobrando a lanterna e pediu:
– Anota um desejo seu aqui.
– Você ficou naquela fila gigantesca por mim? – Torci o corpo na sua
direção, com o mais bobo dos sorrisos na cara.
– Aparentemente. – Ele levantou a sobrancelha, sacudindo o grafite
próximo aos meus dedos.
Cobri com as mãos para que ele não espiasse o que eu iria escrever,
sem saber se eu deveria pedir algo egoísta como “Desejo ter mais
apresentações como essa”, ou algo com finalidade prática do tipo “Desejo
nunca mais precisar lavar a louça”, ou “Desejo devolver o colar para seu
legítimo dono”.
Revirei os olhos tentando não bufar. Era óbvio o que eu escreveria,
então anotei no papel, a superfície áspera contra a ponta afiada do grafite, e
o dobrei. Blaze o prendeu em um compartimento na lateral e eu sentia sua
respiração na minha nuca enquanto ele ajustava a lanterna diante do
horizonte de escuridão, fogo e promessas de desejos. Meu coração pulsava
mais forte, ainda que eu pensasse que ele poderia parar a qualquer
momento.
– Segure aqui nas laterais – ele pediu, e toquei no arame fino que
sustentava a lanterna. Olhando de perto, estrelas douradas e pequeninas
compunham o padrão do fino papel. Blaze estalou os dedos, uma pequena e
delicada chama surgiu quando ele acendeu o pavio e sussurrou: – Faça um
desejo, Luna.
Suas mãos eram mornas e tocaram por cima das minhas, as levantando
de baixo para cima para que soltasse a lanterna. A vi flutuar delicadamente,
trilhando seu próprio caminho em direção à chuva de meteoros, levando
meu desejo consigo.
– Ele vai se realizar? – perguntei. Todo Litha, a mesma esperança. A
mesma inocência em acreditar em finais felizes e milagres pertinentes.
– A vida só está equilibrada se você deseja mais do que realiza. Se
não, é sinal que você deixou de sonhar.
Blaze recuou alguns passos para trás, e o fitei. Estava injustamente
elegante, em um longo casaco vermelho profundo como o ruivo de seu
cabelo cacheado, com opulentos botões escuros em ambos os lados. Ele
agia como se fosse o dono de tudo à sua volta, independente de estarmos
cercados de farrapos. Estalando os dedos, Blaze acendeu alguns lampiões
antigos que estavam presos à parede, sua iluminação cálida oferecendo uma
memória de calor no ambiente frio, e tirou do bolso da calça preta uma
flauta totalmente diferente dos instrumentos esculpidos por ele nos
acampamentos, e me aproximei pisando no tapete velho e macio buscando
enxergar melhor.
– Não sabia que você também tocava flauta transversa – comentei,
observando o instrumento. Ela era dourada e polida, como se tivesse
acabado de ser presenteada.
– Um pouco. Só consegui encontrar um instrumento hoje, senão teria
me apresentado em algum momento também.
– Espera, isso não é seu? – Soltei um riso, sem acreditar.
– Eu peguei emprestado. – Blaze piscou, a frase é-claro-que-esse-
instrumento-não-veio-até-mim-pelo-jeito-correto gritando entre nós.
– Músicos não emprestam seus instrumentos.
– A pessoa já se apresentou hoje, Luna, relaxa. Deve estar bebendo,
comendo ou beijando alguém nesse exato momento. Amanhã eu devolvo, e
agora você pode fazer a gentileza de não ser fiscal da ordem igual Amelia e
pegar seu violino um instante? Quero te mostrar uma coisa.
– Isso não está certo – falei, buscando o violino no chão.
– Então você também gostaria de saber que é proibido ficar nessa
torre.
– Por que tudo que você faz envolve algum problema? – indaguei
abrindo os braços, fingindo o máximo de indignação possível.
– Você está se divertindo? – Seu olhar travesso me desafiava. Eu não ia
responder que sim, então posicionei o violino ignorando a pergunta.
– O que você quer ouvir? – perguntei, um nó na garganta se formando
conforme a memória encaixava dolorosamente com uma outra que eu
guardava tão fundo.
– A última música que você tocou. Tem um padrão que se repete, não
é? Acho que consigo te acompanhar.
– Essa aqui? – Toquei as primeiras cinco notas que iniciavam o refrão,
falando o nome de cada uma delas, e Blaze repetiu a melodia. – Eu tenho a
partitura aqui, se preferir. Está escrita à mão, mas minha caligrafia não é tão
ruim.
– Já li piores – ele provocou.
Fiz uma careta e, sem um pedestal, arrumei as folhas rabiscadas no
chão e me acomodei na larga saia do meu vestido para que os dois
pudessem ler. Blaze se sentou ao meu lado, e começamos a tocar a música
devagar. Cordas e sopro se entrelaçando, as chamas a nossa volta fazendo
nossas sombras na parede se tocarem enquanto eu usava toda minha
concentração para não delirar no momento em que dividia uma música
minha com ele. Talvez eu não precisasse das lembranças antigas, e pudesse
entender que a nossa dinâmica envolvia música, olhares intensos e
encontros inesperados.
Não chegamos às partes mais aceleradas, mas a melodia do primeiro
verso até o refrão fluiu com pouca dissonância. Para um primeiro ensaio,
ficou melhor do que poderia sonhar. Apoiei o violino no meu colo, o cabelo
caia pelo meu rosto e Blaze ajustou uma das flores contra meus fios. Com o
seu toque tão perto da minha pele a sala não parecia mais tão fria assim.
– Eu já ouvi muitas pessoas tocando, mas o que você tem com a
música é totalmente diferente, Luna.
Meu rosto aqueceu e tive certeza de que estava vermelha. Apoiei o
violino no meu colo e o admirei: suas mãos largas segurando a delicada
flauta dourada, os olhos azuis cravados nos meus, e eu estava ciente demais
que ele analisava o contorno do meu rosto, o desenho dos meus lábios e
tudo mais que eu vestia. Seus cachos no mesmo tom que as chamas à nossa
volta pareciam emanar o aroma de pimenta rosa mais forte agora. Inclinei
para frente, apoiando o cotovelo na perna, descansando a cabeça na palma
da mão. Perto dele eu estava totalmente relaxada, e em extremo estado de
alerta ao mesmo tempo.
– Essa é sua percepção, mas significa muito pra mim... O que você
pensa, significa muito pra mim. – Desviei a atenção para o violino,
admirando os detalhes entalhados na madeira. Eu era covarde, mal podia
falar aquilo que realmente pensava para ele, então lhe oferecia migalhas de
verdades perdidas.
– Você sabe o que significa esse símbolo? – Ele seguiu o caminho que
meus dedos faziam sobre o instrumento que ganhei em Ellioras.
– O triângulo com a lua crescente? Imagino que seja exatamente o que
parece, não?
– Oh, Luna, você ainda não entendeu que nada é o que parece? – Blaze
pegou minha mão, uma corrente de energia irradiou por mim, e traçou com
o indicador o desenho cravado na voluta. – O triângulo apontado para cima,
representa o fogo; a lua dentro dele deve ser uma mensagem especial para
você. Seu reino é chamado de “Reino de Prata”, não é?
– É um apelido carinhoso, sim. – Dei um meio sorriso, percebendo que
estava muito inclinada sobre seu corpo e ajustei a postura, olhando pela
janela. – O que é esse lugar, e por que você só me leva em locais proibidos?
– Respondendo sua pergunta, minha bela violinista... – Ele se levantou,
e caminhou até a janela, sentando-se no batente como se fosse impossível
cair dali. – É só uma torre de guarda antiga, usada na época da guerra para
vigiar quem se aproximava da Vila do Sol. Por isso é tão alta, e tão vazia.
Ninguém mais vem aqui, a passagem foi selada, pelo que sei, então ela caiu
em desuso. Ela se tornou proibida porque a estrutura é frágil, e algumas
pessoas já caíram daqui, mas isso não vai acontecer com a gente.
– Você está tão debruçado que não ficaria surpresa se caísse. – Fiquei
de pé, após arrumar as partituras e o instrumento em um canto.
– Ficaria preocupada? – provocou, se afastando da janela, encostando
na parede sólida ao lado. A meia luz dos lampiões definia sua silhueta, sua
sombra o fazia parecer ainda mais alto.
– O que você acha? – Não lhe dei o gosto de responder sua pergunta
infame.
– Eu acho que a gente não se encontrou por acaso. – Sua voz ficou
mais grave, como se não estivesse mais brincando. Ele estendeu a mão, e eu
retribui, sentindo seu calor envolver por completo a ponta dos meus dedos
gelados. Eu não me sentia pequena, mas estava totalmente indefesa, refém
de lembranças demais que imploravam para implodir tal como o vulcão lá
fora, que parecia responder ao pulsar do meu coração.
– E por que você acha que nos encontramos? – perguntei, tão perto de
revelar tudo, não me importando com o que ele pensaria de mim em
seguida. Só esperava que não mudasse a ternura e desejo que consumiam
seu olhar.
– Vou soar ridículo se eu disser que foi por algo como “destino”,
mesmo sem acreditar em coisas assim?
Neguei com a cabeça e meu coração parou em uma batida intensa, que
subitamente era tudo o que sentia por dentro. Blaze afastou meu cabelo, que
estava grudado contra minha pele, e acariciou os dedos do meu colo até
meu pescoço, deslizando sobre a corrente que guardava a pedra de fogo.
– Você vai me achar louca se disser que sinto que já te conheço?
– Eu acho você totalmente maluquinha por tantas outras coisas, já
essa... – Ele encostou sua testa na minha, ambas as mãos explorando
delicadamente minha nuca e meu pescoço provocando arrepios e desejo por
todo o meu corpo. A cada instante, a distância entre nós diminuía. – Eu não
tenho muitas lembranças, Luna. Mas, nas minhas favoritas, está você.
Ele sorriu. Não o tipo convencido e repleto de razão que usava como
escudo, nem aquele que aparecia em momentos propositais para irritar ou
desafiar outra pessoa. Mas pela primeira vez, o vi vulnerável, como se
também guardasse de mim algum segredo por medo de que eu não
compreendesse. Eu derretia por dentro, e o segurei firme para me manter de
pé antes que meus joelhos falhassem.
– Eu acredito que te devo uma coisa – sussurrei, inclinando o rosto na
sua direção, querendo registrar cada faísca de fervor que irradiava dele.
– Você realmente está louca se acha que apenas um beijo vai ser capaz
de sanar essa dívida. – Blaze abriu um sorriso predatório, roçando o polegar
sobre minha boca, analisando cada detalhe do meu rosto enquanto a espera
me consumia.
Deslizei as mãos embaixo de seu grosso casaco, sentindo os músculos
firmes tão quentes que pareciam incendiar, e ouvi um rosnado abafado
ecoar – ele não parecia ser capaz de aguardar por muito mais tempo.
Na ponta dos pés, rocei a ponta do meu nariz no dele, e envolvi seu
pescoço com meus braços quando Blaze me levantou pela cintura como se
eu não pesasse nada. A única distância entre nós eram as camadas de tecido
que vestíamos, que escondiam pouco da atração que pairava entre nós –
ainda mais perceptível da parte dele.
– Você vai esperar para sempre? – murmurei, brincando com seus
cachos longos entre meus dedos.
– Princesa, eu poderia morrer de tanto te desejar – ele sussurrou contra
meu ouvido, e não sabia que podíamos ficar ainda mais próximos sem nos
beijar. – Mas eu aguardei por isso tempo demais, e não tenho a menor
intenção de ser rápido com você.
Seus lábios correram preguiçosos abaixo da minha orelha, e minha
pele arrepiou quando senti uma mordida leve no meu pescoço. Seu toque
era mais firme na minha cintura enquanto ele deixava uma trilha de beijos
insuportavelmente doces no meu colo até a curva dos meus seios,
evidenciados pelo vestido.
– Me fale o que você quer, como você quer... – Blaze sussurrou contra
meus lábios em um meio sorriso, o carinho em minha nuca cada vez mais
intenso e possessivo. – Me peça o que você quiser, Luna, que eu te dou.
E, como se libertasse uma fera dentro dele, Blaze me beijou
furiosamente, em contraste com a suavidade do seu toque poucos instantes
atrás. Devolvi a intensidade, pois a mesma fome, o mesmo incêndio que ele
sentia, me consumia.
Era o mesmo beijo, o mesmo encaixe, a mesma paixão. Senti como se
jamais tivéssemos interrompido o contato faminto dos nossos lábios, já
conhecia o seu toque exploratório que me envolvia, e não pude deixar de
sorrir no breve instante em que nossos lábios se uniram novamente – e pela
primeira vez.
Ignorei o lugar onde estávamos, eu alegremente o teria ali, pois tudo
que importava era estar em seus braços naquele momento. Blaze
entrelaçava meu corpo no dele, conhecendo cada parte da minha pele
exposta, fincando os dedos em meu cabelo, descendo pela minha nuca
quando, subitamente, ele parou em um estalo.
Não quebrei a distância entre nós, mas os nós dos meus dedos
escorregavam pela sua pele, como se não devessem mais estar ali. Abri os
olhos procurando pela paixão que há poucos instantes o assolava, que ainda
estava presente em cada centímetro meu, ainda derretida nos seus braços.
– Lunara, o que você fez? – ele indagou com a voz rouca e grave após
alguns instantes me fitando em silêncio. Algo como tristeza passou pelo seu
olhar, mas logo foi substituído por algo diferente e inflamável. Pura raiva.
– Blaze, eu não entendo – murmurei com um passo para trás, meu
coração trovejava enquanto ajustava o vestido que havia se movido, e
percebi que pendia uma corrente prateada diferente dos adornos do meu
traje.
Não acreditei no que vi. Em todos os cenários que imaginei que o colar
seria aberto, em nenhum deles foi assim. Blaze era o herdeiro perdido? Ele
tinha me garantido que isso era impossível, mas não era o momento para
dúvidas ou incertezas. De alguma forma, ele percebeu que eu tinha algo que
o pertencia, e agora devia me odiar por isso. Eu devia ter contado que era a
rainha de Montecorp antes de que minha imagem passasse a ser uma
mentira aos seus olhos.
Busquei no centro do peito a pedra vermelha finalmente solta diante
dos meus olhos – de alguma forma, era mais pesada agora que a segurava
com os dedos. Levei a outra mão até o pescoço, e a corrente não tocava
mais a minha pele.
– Isso é meu – ele grunhiu, a voz que saiu dele agora era uma só, e
muitas. O som ancestral fez reverberar as paredes frágeis da torre, e caí
sentada no tapete, tremendo.
– Você é o herdeiro – sussurrei, tentando explicar que o compreendia,
desesperada para encaixar as peças que eram óbvias demais para terem
escapado de mim. Estendi a pedra para ele, desejando tudo, menos que ele
olhasse para mim daquela forma. Eu não podia suportar a decepção na
minha direção.
Blaze tomou a pedra das minhas mãos, jamais a vi tão incandescente.
E podia ser efeito do fogo a nossa volta, mas pude jurar que seus olhos
estavam vermelhos, como se uma descarga de adrenalina forte demais o
possuísse.
– Não, Lunara. – Ele deu um passo na minha direção, e se agachou na
minha frente. Fez menção de tocar no meu rosto, e eu esperei, sem
conseguir me mover. Blaze pegou a corrente ainda presa em mim com um
gesto delicado, e restituiu o colar. Tocou no meu queixo em um quase com
ternura, mas só havia ódio e frustração em seu olhar. Então, caminhou até a
janela e saltou contra meu grito desesperado. Corri até o batente,
tropeçando na saia opulenta do vestido procurando por ele, mas tudo que vi
foi o rastro de gigantescas asas vermelhas que desapareceram como uma
sombra disfarçada na noite.
– Bólius – murmurei, sem produzir nenhum som. Busquei por ele na
paisagem, e gritei seu verdadeiro nome contra o frio gelado, implorando
que me escutasse, que voltasse até mim.
Me segurei com força contra as pedras, temendo cuspir meu coração,
tamanho era o nervoso que sentia. Observei atentamente o horizonte, mas
não o encontrei em parte alguma.
O que vi se aproximando na trilha a caminho da Vila do Sol foi ainda
mais aterrorizante. As passagens até a Vila do Sol deveriam estar seladas,
mas algo claramente trilhou um caminho sorrateiro e perverso até esse
lugar. Há muito tempo eu não via o exército de Cinaéd marchando na minha
direção, mas sabia reconhecer sua formação em qualquer lugar: escudos e
lanças na frente, espadas no centro e arqueiros de elite ao fundo – prontos
para abrasar as flechas quando a batalha se iniciasse.
Não era somente a chuva de meteoros que participaria do festival, mas
fogo de verdade estava a caminho – e eu estava dolorosamente sozinha para
salvá-los.
Capítulo 40
Luna

Adrenalina invadia meu sangue, e meu corpo era uma estrela cadente
inquieta e ligeira até alcançar o chão. Sozinha na torre, tive dificuldade em
fechar a porta pesada e precisei dos dois braços para girar a manivela.
Quando cheguei ao chão, toda a parte superior do meu corpo parecia
manteiga derretida. O violino e a partitura da minha música haviam ficado
para trás.
Corri em direção ao festival, atravessando as ruelas desertas com
dificuldade; meu vestido era largo demais para proporcionar agilidade, e as
pedras estavam escorregadias graças a umidade das montanhas. Caí
algumas vezes até finalmente vislumbrar a chama intensa da fogueira
central, e encontrei forças para acelerar.
A música fluía serena, indiferente à ameaça iminente. Eu havia visto
uma formação, mas possivelmente mais guerreiros se aproximavam. Eu não
sabia quanto tempo tinha até a Vila do Sol encontrar sua destruição,
tampouco por onde chegariam, e precisava de uma boa ideia rápido para
salvar suas vidas.
Casais, famílias e amigos andavam sem rumo, cantando, conversando
e dividindo guloseimas. Alguns ainda observavam a chuva de meteoros.
Parei em meio à multidão, aflita, sem reconhecer ninguém familiar. Não
sabia onde estavam Zoey, Molly e Dax, mas não tinha tempo para procurá-
los individualmente. Meu pulmão parecia que iria rasgar, mas me apressei
até o grande palco, esbarrando em todos no meu caminho, sem fôlego para
pedir desculpas.
A saia do meu vestido se prendeu no gancho de uma das tendas, e eu
soltei uma maldição. Segurei a grossa camada superior de tecido que
rasgara, conseguindo um pouco mais de mobilidade, mas não o suficiente.
Tropecei nos degraus de madeira que rangeram conforme eu subia no palco,
e odiei interromper a apresentação de uma jovem que tocava harpa – sua
melodia celestial jamais chegaria ao fim.
Ao cessar da música, o olhar de toda Vila parou em mim, e vergonha
aqueceu meu sangue mais forte que qualquer chama.
– A Vila está em perigo – murmurei para a musicista, que me encarou
furiosa. – Você precisa voltar para casa e trancar as portas.
– Você precisa sair do meu palco... – ela começou irritada.
– A Vila do Sol está sob ataque, eu vi a formação dos exércitos lá fora!
– gritei, torcendo para que todos me escutassem. – Vocês precisam se
proteger. – Minha garganta arranhou bruscamente na última frase.
– A que se deve esse caos, Luna? – A voz irada de Amelia surgiu ao
fundo, a matriarca subia no palco com o rosto cravado em linhas firmes e
impiedosas.
– Eu os vi, Amelia – lamentei. – Os exércitos estão próximos demais,
vocês precisam voltar para casa.
– As montanhas nos protegem de todos os males, você está inflamando
a discórdia em meio ao festival com qual propósito? – Ela me puxou pelo
braço, em direção à lateral, e me debati contra ela.
Abaixo do palco, ninguém parecia tomar iniciativa sem a orientação da
matriarca, e a harpa continuou a fluir com toques mais dissonantes, uma vez
que frustrei a concentração da jovem que a tocava.
Isso era loucura. Ninguém me daria ouvidos a menos que algo
realmente acontecesse diante dos seus olhos – quando seria tarde demais.
Me apressei até os estábulos e busquei a espada que estava presa em Noite,
prendi algumas facas por dentro da minha bota e no vestido. Aproveitei
para cortar a camada vermelha e grossa que impedia que me movesse com
liberdade. Dei à minha égua um cubo de açúcar e implorei que ficasse a
salvo. Fiz o mesmo com Raio e Trovão, e pedi para que levassem Zoey e
Dax em segurança para Ellioras, e depois para Montecorp. Podia confiar em
Zoey para entender a mensagem.
Eu estava vestida em farrapos e sem aliados, mas pronta para a batalha
novamente. Não deixaria o povo de Cinaéd sucumbir diante dos meus olhos
mais uma vez. A gema de fogo já havia sido devolvida, e o vazio no meu
peito ia muito além da falta do seu calor reconfortante. Blaze – Bólius –
havia partido, logo agora que ele era tão necessário, e eu estava tão sozinha.
Saí do estábulo ajustando a espada em minhas costas, o cinto de couro
cortava minha pele com seu peso transpassado. Zoey e Molly estavam
diante de mim, tinham corrido ao meu encontro após meu discurso
desesperado. Seus lábios e bochechas estavam vermelhos, cabelos soltos e
bagunçados, olhos arregalados e atentos.
– Molly, você precisa fazer alguma coisa para que todos se tranquem
no portal. Não é seguro ficar aqui fora – implorei.
– Ninguém vai acreditar em mim, Luna. Precisamos de um outro
plano. Algo que lhes faça ver que o perigo é real.
– Então só tem uma coisa que posso fazer. – Olhei para Zoey
esperando que ela entendesse e me apoiasse.
– Você não pode se entregar, vai ser hostilizada e vai acabar morta de
um jeito ou de outro – minha amiga suplicou.
– E tem alguma outra ideia? – pedi. Eu daria qualquer coisa para não
estar vivendo esse momento, mas o meu querer pouco interferia no que
estava em curso através do destino. Mais uma batalha em Cinaéd, e nenhum
sentimento de propósito ou vitória me acompanhava naquele momento.
Zoey tinha os olhos marejados, e balançava a cabeça incrédula.
– Você não pode fazer isso. Por favor, Luna. – A voz dela quebrou.
– O que ela quer fazer? – Dax surgiu, ofegante. Ele cruzou os braços,
desesperado, buscando uma resposta urgente entre Zoey e eu.
Lhe dei um forte abraço e sussurrei em seu ouvido:
– Blaze é o verdadeiro dono da gema de fogo. Acredito que foi ele
quem seu pai derrotou no final da guerra, mas ele jamais assassinou o
dragão. Apenas o transformou em humano, e o baniu, o ligando até mim em
alguma piada de mal gosto. E agora eu preciso que você cuide de Zoey
enquanto eu convenço a Vila do Sol de que há uma ameaça iminente. – Me
distanciei e encontrei seu rosto atônito, em negação. Falei em voz alta para
Zoey e Molly me ouvirem. – Quando souberem que vocês são de
Montecorp, pode haver uma revolta e não conseguirem abrigo. Molly, eu
preciso que você os leve para longe daqui em segurança. Existe alguma
passagem segura o bastante para isso?
Era a única forma. Era o certo a se fazer, eu repeti para mim mesma.
Ainda que a cada instante tudo o que eu ouvia no meu coração era errado,
errado, errado.
– Se o exército de Niasar descobriu a passagem principal, eu posso
tirar a gente daqui por um outro caminho, que eu mesma trilhei anos atrás –
Molly explicou enquanto prendia o cabelo no alto.
– Vão com ela – pedi, em uma frágil prece para os meus amigos. – Eu
encontro vocês em Ellioras para partirmos juntos para casa.
Seus rostos me diziam que eles não iriam ceder, mas era uma missão
suicida tentar ficar ao meu lado quando o exército de Niasar e o povo da
Vila do Sol estavam prestes a ficar contra mim.
– E se você não conseguir? – Os olhos de Dax estavam marejados e
lágrimas corriam pela sua bela face, agora tão cansada, tão desesperançosa.
– Ei, já viu algum plano meu não dando certo? – Tentei fazê-lo sorrir,
mas as lágrimas já cortavam meu rosto mais ardentes do que qualquer
ferida. A mentira doía, mas a verdade era simplesmente impossível de
encarar. Então com o que restava em mim como rainha, comandei: – Você
sabe o que fazer então, Dax. Coloco nosso reino em suas mãos.
– Eu prometi que ficaria ao seu lado até o fim do mundo, Luna – ele
suplicou, mas eu não podia arriscar sua vida. Dax tinha me dado apoio,
liberdade, amor. Não aceitaria menos do que isso para ele.
– E eu prometo estar lá contigo quando esse dia chegar.

As ruas continuavam vazias mesmo com o eco da alegria do festival


que agora parecia tão distante, enquanto vi Dax, Zoey com Volpe em seu
colo, e Molly cavalgando em Noite, Raio e Trovão. Não os encorajei a
demorar na despedida, com uma certeza falsa de que nos veríamos em
breve. Dax havia colocado nas minhas mãos a Rocha Prima que carregava
consigo, e selado nossa separação com um abraço que terminou rápido
demais. Eu deveria ter desabado, mas a força encontra a gente em
momentos estranhos, como que atraída pela necessidade de sobrevivência.
Eles sabiam que eu precisava estar ali se quisesse viver em paz com minha
consciência. Se quisesse reparar verdadeiramente o mal que meus
antepassados fizeram a esse reino.
Reuni a coragem que me restava como se juntasse farrapos, estalando
os dedos enquanto buscava a magia que pairava da terra como minha única
cúmplice. Olhei para cima. A chuva de meteoros riscava com a mesma
intensidade, exceto que o fogo que agora preenchia o céu não tinha a
promessa de desejos, mas de destruição.
Me apressei novamente entre a multidão e, de frente para o palco,
chamei a terra ao meu comando, e o solo se levantou em um alto palanque,
onde novamente eu tinha a atenção de todos. Mas dessa vez, nenhum olhar
de admiração estava na minha direção. A Vila do Sol precisava de um bom
motivo para deixar as festividades e se proteger, e eu lhes daria exatamente
isso. Algo do que se proteger. Algo a se temer.
Eu só precisaria dizer a verdade amarga que ocultava, e ser a vilã que
pisara em seu território há vinte anos.
– Meu nome é Lunara Alexandria Montecorp, Rainha de Montecorp, e
os exércitos de Niasar estão prestes a entrar na Vila do Sol. Se prezam por
suas vidas, tranquem-se em suas casas. – Invoquei espinhos grossos e
tenebrosos que envolveram a formação rochosa onde eu estava. A pedra
agora parecia retorcida e deformada com os galhos sem vida que
emolduravam a minha pior versão. – Eu vou lhes dar 5 minutos para
mostrar que posso ser piedosa. – Cada palavra arrancava meu coração
coberto por amargor e mentira. Fiquei aliviada em ver que uma multidão
começava a correr, no momento em que uma flecha banhada em fogo
atingiu uma das tendas do festival.
Rezei para Argrinis para que ninguém se machucasse, para que não
perdêssemos vidas, mas logo olhar para o céu era um gesto de desespero,
não de sonhos.
As flechas continuaram vindo, e desci com um salto, assistida pelos
espinhos que acabara de criar. Senti repulsa ao ver que minha magia
também era capaz de machucar e Amelia, transtornada, caminhou na minha
direção, indiferente à chuva de fogo que pairava sobre nós ou aos gritos
aflitos que preenchiam toda a praça. Janelas eram batidas, portas trancadas
e cortinas fechadas.
Se antes havia contentamento e alegria, agora a energia que fluía era
de pavor e misericórdia. Mais uma vez, eu estava sozinha, porém, ao
menos, ninguém que eu amava corria risco. A matriarca não daria abrigo à
Dax e Zoey, e eles eram preciosos demais para mim. Não permitiria que se
ferissem. O destino de Montecorp estava selado, a pedra de fogo fora
devolvida. Não tinha mais nada que eu precisasse fazer. A história da minha
vida, havia sido contada, e eu estava pronta para encarar qualquer que fosse
meu juízo final.
– Você foi a nossa derrocada – Amelia vociferou ao atingir meu rosto
com um tapa pesado. Cambaleei para trás, meu corpo estava fraco após
descer da torre e correr por toda a Vila. O calor em meu maxilar me dizia
que os anéis em sua mão haviam me cortado. – Não vou deixar que
conquiste nosso território com vida. Eu posso partir, mas levo você comigo,
Rainha da Desgraça! – Ela cravou as mãos em meu pescoço, e tentei
resistir, tentei explicar. Falhei em ambos.
Mais flechas corriam pelo céu, e como se o inferno estivesse lotado,
ouvi o som de centenas de criaturas dracônicas distantes invadirem a vila
por alguma passagem desconhecida por mim. Não pude ver se já estavam
próximos, tampouco suas armas ou armaduras, a visão se turvava mais a
cada instante que Amelia prendia seus dedos à minha volta. Eu não podia
respirar.
Ainda assim, ouvi os gritos de uma dor que jamais seria curada. Não o
som de alguém que deixou o mundo, mas a voz de uma pessoa que perdeu
outra que amava. Eu jamais saberia quem era. Jamais poderia reparar as
vidas que ouvia partir de forma impiedosa – e senti um conforto mórbido
em saber que estaria junto com elas, em algum momento. Junto de meus
pais, Ella e Yohan. Não parecia tão ruim assim me render ao toque frio da
matriarca e deixá-la ter sua vingança. Era justo – para aqueles com o senso
desajustado de justiça. Uma rufada de vento morno fez pedras e areia
cortarem minha pele quando uma sombra parou diante de nós duas.
– Solte-a – uma voz grave feita de fogo e vento ordenou, e Amelia
obedeceu imediatamente.
Caí no chão sem estar certa se a consciência me deixara por completo,
enxergando tudo como um grande borrão. Mas, definitivamente, a figura
poderosa de asas longas e vermelhas no centro do palco era ele. Blaze.
Em um passo na direção da matriarca ele estava de volta a sua forma
humana, mas seus olhos permaneciam rubros como o mundo à nossa volta,
desconsertados. Não sabia se tinha se transformado por vontade própria ou
por outra razão. Amelia havia ajoelhado em profunda reverência, e tudo que
vi foi Blaze lhe sussurrando algo que a fez desaparecer no conflito.
Os gritos tinham cessado, mas o som de aço e o cheiro metálico de
terra e sangue me envolvia junto à brisa gelada. Meus olhos estavam
fechados, mas sentia a energia vinda da terra com sua vibração errada,
corrompida de uma forma que jamais havia visto.
Braços fortes me pegaram no colo sem que conseguisse resistir a sua
força, sem saber se deveria me tranquilizar ou implorar por minha vida.
Forcei minhas pálpebras, e a face impenetrável de Blaze me analisava,
como se verificasse meus ferimentos.
– Você voltou para me salvar? – perguntei, me arrependendo de cada
palavra imediatamente.
– Eu... não quero você viva, mas a ideia de saber que está morta é
insuportável – ele confessou, entredentes. Sua voz parecia ainda mais grave,
mais profunda, como se verdadeiramente crepitasse.
Os soldados de Niasar se aproximaram, e Blaze me colocou no chão,
cessando o contato entre nós. Ele tinha voltado por mim, mas eu
permanecia sozinha.
Reconheci os olhos amarelos do seu general – Krotos. Sua pele
vermelha e escamosa estava coberta por uma capa preta elegante, criando
um contraste com sua aparência rudimentar. Seu cheiro de morte, podridão
e infelicidade crescia a cada passo na minha direção, e ele caminhava
pisando nos corpos como se fossem lama.
– Você é a princesa carmim... – Seu sotaque era carregado e tosco,
pausando a cada “r” das palavras. Suas garras afiadas analisaram as mechas
soltas do meu cabelo, e ele voltou a atenção para Blaze, seus olhos piscando
na horizontal. – E você... Ah, você será o meu novo triunfo.
– O que você quer comigo? – me corrigi com a voz rouca e arranhada.
– Conosco?
– São os novos presentes para o poderoso Niasar, princesa. Foi
extremamente vantajoso não ter arrancado sua cabeça quando nos
encontramos. – Ele mostrou seus dentes afiados em um não-sorriso. –
Agora encontrar o próprio dragão... é um golpe de pura sorte.
Krotos segurava uma nova espada que parecia ainda melhor do que
aquela que eu havia roubado dele. Ele a levantou na direção de Blaze,
medindo a distância entre seu pescoço e a curvatura da lâmina.
– Krotos, você deve servir a mim, ordeno que abaixe essa arma –
Blaze – Bólius – afirmou. A gema de fogo revelada pelo colarinho aberto de
sua roupa parecia opaca em seu pescoço. Ele podia ser um dragão de fogo,
mas seu tom era frio e afiado como as montanhas a nossa volta. Nenhum
morador estava ao redor, salvo pelos corpos dilacerados e abandonados. Eu
quis vomitar ao ver os rostos eternamente paralisados em desespero de
pessoas jogadas a esmo no chão.
– Niasar é meu único líder, ele não abandonou nosso território como
você fez – Krotos cuspiu cada palavra, fitando Blaze de cima abaixo. – Mas
o poderoso Niasar não acreditará em mim a menos que eu surja no salão
com uma cabeça de dragão. Transforme-se para que possa coletar meu
prêmio.
– Se eu me transformar, vai ser para destruir você e o resto do seu
exército. Vocês foram convocados para servir a mim. – Não tinha nada
piedoso no olhar de Blaze. Nada humano.
Krotos assentiu o desafio, sua mente certamente cambaleando entre o
desejo por sangue imediato e a estratégia fria de uma conquista a longo
prazo. O capanga olhou para mim e puxou meu braço, o prendendo para
trás, colocando a linha de aço contra meu pescoço com força o bastante
para que o menor movimento me fizesse contorcer de dor.
– Liberte-a – Blaze ordenou.
– Transforme-se – Krotos provocou, forçando a lâmina contra minha
pele em uma dor aguda.
– Você vai se arrepender – foi tudo que Blaze prometeu.
E tudo que ele fez.
A pedra parecia cada vez mais turva e sem vida, e em um grito furioso,
o vento ouviu seu chamado, mas tudo nele permaneceu o mesmo. Ele não
podia ter perdido seus poderes. Não agora. Desolação e ódio novamente
passaram pelo seu rosto, mesmo mantendo sua postura impiedosa.
Krotos me empurrou na sua direção e tropecei, tossindo. O líder do
exército sibilava uma risada perversa que atormentaria minhas memórias
até o final dos dias.
– Você é fraco. Exatamente como o poderoso Niasar disse. – Krotos se
virou para o exército atrás dele, já em formação, aguardando o próximo
comando. – Matem-no – declarou sem emoção.
– Não! – Me coloquei na frente de Blaze. Forcei minha energia contra
a terra, implorando para que uma parede de rocha nos defendesse das
flechas na nossa direção. Drenei toda minha energia, agora sem a pedra de
fogo para amplificar meus poderes, e quase sorri ao ver que as flechas se
espatifaram extinguindo seu fogo. Ajoelhada no chão, a parede
desmoronou, não consegui sustentá-la, e tranquei minha atenção em Krotos.
– O que Niasar deseja comigo?
– Você é herdeira de Montecorp, e o poderoso conquistador Niasar
deseja o seu título e seu território. Ele ordenou que eu encontrasse sua nova
noiva, assim que relatei sobre nosso pequeno encontro na Estrada das
Cinzas. – As palavras eram ásperas na sua boca.
– Niasar quer que eu me case com ele? – perguntei, lutando contra a
vontade de desabar ali mesmo.
– Ainda bem que ele só precisa do seu título, não do seu cérebro. Mas
certamente seus poderes produzirão fortes descendentes.
Krotos era um esboço de podridão, mas estava certo. Para todos os
efeitos, meu título, minha origem, ainda valiam. Não era o primeiro
miserável que desejava arruinar meus planos, eu tinha uma longa
experiência com isso graças à Caleb, Peribelle, e até mesmo Bólius. Exceto
que dessa vez eu poderia criar algumas regras, colocar as peças no tabuleiro
conforme a minha vontade. Talvez eu devesse parar de ser perseguida, e me
tornar aquela que persegue e se infiltra nas tramas nefastas alheias. E quem
sabe, poderia devolver Cinaéd à Vila do Sol, uma vez que estaria no
coração do Reino de Fogo. Era um lance longo, arriscado, e com todos os
elementos para dar errado. Insano o bastante para dar certo.
– Eu vou… – Dei um passo na direção dele com a voz monótona, a
postura de uma governante que sabia dar ordens, apesar de odiar esse papel.
– Sem resistir, se o deixarem ileso – apontei para Blaze, que não estava
mais atrás de mim, mas ao meu lado. Vi um símile de hesitação no seu
rosto, mas nada além. Um sorriso desafiador estava preso em meus lábios.
Podíamos ser mortos ou feridos ali, mas não teríamos tanto valor assim.
O rosto inexpressivo de Krotos ponderou em silêncio suas chances, e
assentiu o que sugeri. Com um estalo, alguns soldados de pele vinho e
amarela trouxeram uma liteira que certamente fora carregada por todo esse
território apenas para cumprir seu plano asqueroso, e a colocaram diante de
mim. Ela parecia ter sido feita a pouco tempo, por alguém com o gosto
extravagante para coisas cruéis. Antes de subir, acrescentei:
– E exijo que deixem esse vilarejo intacto para nunca mais voltar – a
voz de uma rainha saiu de mim.
– Você não está mais em posição de fazer barganhas – o guerreiro
alegou. – Queimem tudo. Coloquem-no em uma jaula. Niasar vai adorar
decapitar o dragão com suas próprias mãos.
Ele me empurrou para o interior da liteira, o tecido macio impedia a
agilidade dos meus movimentos quando vi a Vila do Sol implodir em fogo.
As janelas de vidro estouravam, e o horizonte colorido e iluminado logo foi
contagiado por uma fumaça densa e pegajosa, se intrincando na madeira e
nos cadáveres espalhados – impropriamente cremados. Meus olhos ardiam
e lágrimas caíam graças à neblina de maldição que flutuava no ar onde
antes abrigava música e sorrisos que jamais veriam o nascer da nova
estação.
Esse oásis havia sido descoberto, e toda a cultura de Cinaéd agora
estava em risco, refém da prisão involuntária ou da perseguição certa. Tive
a impressão de ter ouvido lamúrias distantes, misturadas a risadas sádicas e
inumanas. Não havia mais estrelas no céu, nenhuma procurava testemunhar
a frágil paz que mais uma vez, encontrava seu fim.
Blaze era carregado em uma jaula apertada, aparentando fúria em cada
parte do seu corpo mas, sem poder liberar sua verdadeira forma, ele estava
tão indefeso quanto eu.
Meu violino e a partitura certamente queimariam quando a torre
sucumbisse às chamas. Com alguma sorte, os portais não seriam atingidos e
a maior parte daquelas pessoas conseguiriam seguir suas vidas, apesar das
sequelas.
Porém fazia muito tempo que a sorte era uma visitante breve e
passageira, e mesmo com a missão cumprida e a gema devolvida ao seu
dono, eu sentia que minha história estava longe de encontrar um final feliz.
Epílogo
Bólius

As barras de ferro enferrujadas cortavam minha pele, a jaula era apertada


demais – Krotos não tinha o hábito de fazer prisioneiros, então certamente
eu estava preso em algum objeto improvisado, usado para transportar ração
ou armamentos. As montanhas que antes nos protegiam agora preenchiam o
horizonte cada vez menores e insignificantes. Não restou nada da área
exterior da Vila do Sol após as chamas reduzirem tudo que estava no seu
caminho a pó.
Já caminhávamos há dois dias e meio e em breve chegaríamos à
Cinaéd – ao que fora o meu reino. O calor começava a tomar a estrada, e
logo a roupa que usava era quente demais para a região. Os malditos
soldados que deveriam se curvar a mim, que me deviam obediência e
devoção, não perdiam uma oportunidade de me chutar ou de cuspir na
minha cara toda vez que passavam pela minha cela. Ódio inflamado subiu
rasgando meu peito, quando mais uma vez tentei voltar a minha forma
natural, e falhei. A pedra em meu pescoço ainda estava morna, mas parecia
opaca e sem vida.
Eu não deveria ter voltado a forma humana, mas a magia parecia
escorregar ao meu comando, impedindo que mantivesse minha faceta
original. Só agora percebia como meu corpo era fraco, lerdo e limitado. Eu
estava imundo, coberto de terra, suor, catarro e pedaços de carne em
decomposição que os lacaios de Niasar arremessavam em minha direção.
Cobri meu rosto, sem poder respirar fundo enquanto o fedor de carniça
se fazia presente por toda parte. Achei que nunca mais poderia me mover,
que nunca mais ficaria de pé ereto, que nunca mais iria voar.
Um dia, quando o mundo era novo, eu decidi ficar nessa terra para ser
adorado como um Deus. Lhes dei conhecimento, magia, um reino, e só pedi
que guardassem o meu território. Confiei cegamente e fui humilhantemente
derrotado. Banido. E agora, exilado em meu próprio reino. Os humanos
tinham seus Deuses para quem rezar e apelar, já eu, não tinha ninguém.
Ainda encolhido junto ao chão, movimentei os dedos lentamente, a
câimbra clamava meus músculos impiedosamente. Em volta no
acampamento, os roncos estrondosos afastavam as criaturas que existiam na
Via do Fogo. Era o único momento em que eu não era hostilizado mas,
ainda assim, Krotos e outros soldados surgiam ao meu lado para fincar
flechas na minha pele. Havia cinco delas cravadas pelo meu corpo,
espalhadas pelo braço, pelas pernas e nas costas. Não o bastante para tirar
minha vida, mas o suficiente para cogitar desistir dela. E, após algumas
horas, a dor do aço cravado na carne parava de pulsar e adormecia, mas o
peso do cabo parecia me rasgar.
O Pico do Sol reluzia, em resposta ao meu poder adormecido, mas eu
ainda não era capaz de comandá-lo à minha vontade. Eu precisaria sair
daqui antes de pensar em um plano de vingança, porém a fome e a sede
nublavam meus sentidos. Esse corpo era frágil demais. Meus lábios
estavam rachados, e a garganta seca ardia. Meu estômago parecia se
contorcer a cada segundo, a sensação se tornando enjoativa.
Na primeira noite, Luna tinha se esgueirado dos soldados para trazer
um prato de algo insosso e quente, e eu fui arrogante o bastante para negar.
Não podia olhar no seu rosto e ver a face de uma traidora, mas ainda assim,
nos raros intervalos de quietude no inferno, eu me pegava olhando na
direção da sua liteira. Eu buscava por lembranças, e agora elas me
assombravam. Luna também estava presa, impedida de descer sem
supervisão severa, e apenas para suprir necessidades do seu corpo. Quem
me dera ter o mesmo luxo, mas fui abandonado a minha própria sujeira.
E era orgulho, mas não queria que ela se aproximasse de mim nesse
estado. Que visse de perto o meu fracasso, quando eu quis exibir o mundo
para ela.
Em outros tempos, eu juraria de morte cada um ao meu redor e não
deixaria dos seus corpos nem as carcaças para que os abutres se
banqueteassem no dia seguinte. A vingança e a promessa pelo poder
alimentariam minhas chamas, e o mundo sucumbiria aos meus desejos.
Isso, quando o coração que eu tinha no peito era o de um dragão.
Quando eu era um líder, e não uma presa. Quando a semente do fogo era
parte do meu ser, e não uma bijuteria qualquer.
Quase sorrir ao pensar nessa palavra. Memórias chegavam a minha
mente como convidadas desavisadas, surreais demais, confortáveis demais.
Olhei mais uma vez na direção da liteira onde ela dormia. Luna parecia
exausta deitada sobre as estrelas, com cinco guardas ao seu redor. Eu estava
na sarjeta, porque me importava com seu bem-estar?
Neguei para mim o pensamento que me invadiu não como uma
lembrança, mas como uma contestação: olhar para ela era a forma mais
doce de tortura e, agora, cada parte ferida e ardente do meu corpo,
concordava.
Eu podia me lembrar de tudo, menos da sensação dela. Não podia
deixar que vencesse esse estúpido coração humano. Não podia lembrar o
que verdadeiramente sentia pela mulher que me destruiu.
Agradecimentos

É difícil falar desse livro sem pensar tudo que vivi para concluir essa
edição. Era de Sombras e Lembranças foi o meu primeiro romance, a
primeira narrativa longa que criei, de brincadeira. Mas chegando nesse
volume que você acaba de ler (e depois de ter publicado outros livros no
decorrer, A Falsificadora de Mapas e Se essa rua fosse minha), eu percebi
que a parada ficou séria.
O que começou como um experimento, se tornou toda uma realidade
que passou a ser tão real quanto a minha própria vida. O dia que segurei
ESL nas mãos pela primeira vez, também foi o último dia que vi meu pai
com vida. A última coisa que ele me disse, era que o livro estava perfeito.
Ele sempre acreditou nas minhas histórias, então fiz meu melhor para
continuar escrevendo, mesmo de luto. Então, primeiramente, agradeço ao
meu pai.
Em seguida, agradeço minha mãe, que foi um pilar incansável para que
eu continuasse minha jornada como autora independente, e sempre foi a
primeira a me incentivar quando eu me sentia insegura.
Agradeço profundamente à Cecília Mendes, por ser uma amiga
perfeita e uma leitora beta maravilhosa. Ao Gimmy, que inspirou 100% a
voz de Blaze, e que me ajudou tanto a pensar no funcionamento de Cinaéd
(aguardem o terceiro livro, a coisa vai pegar fogo!). E gratidão imensa às
minhas parceiras de divulgação, por todo carinho e empenho surreal que
tem com essa história.
Por fim, agradeço aqueles que se distraem um pouco do mundo real na
minha fantasia. Eu espero de coração que vocês se reconectem com seus
desejos, que lhes dê uma chance.
Books By This Author
A Falsificadora de Mapas
Essa é a história de como uma pirata enganou a Deusa do Caos.
Mas isso, é segredo nosso.

Pryia, uma bela pirata misteriosa, está presa há três anos em Porto Magnus,
juntando dinheiro ao vender mapas falsificados para escapar desse lugar
esquecido no mapa, visitado apenas pela escória da pirataria.

Ela jura vingança ao maldito capitão Leonardo North, que desgraçou sua
vida após roubar seu bem mais precioso. Quem dera que fosse seu coração.

Jim, um pirata excêntrico surge a sua procura, sabendo muito mais do que
revela, e oferece uma aliança para que possam juntos, destruir Leonardo.

Um romance sensual, repleto de aventuras marítimas e bom humor. Perfeito


para amantes de sereias, piratas e civilizações submersas.

Volume único.
Classificação: +16

Se essa rua fosse minha


Isabel era refém dos seus medos.

Sam, era refém da Solidão.

Em um amanhecer chuvoso, uma garota humana e um anjo se encontram


em uma rua esquecida no Rio de Janeiro, sem saber que estão prestes a
roubar um coração.

Um romance adolescente inspirado na canção "Se Essa Rua Fosse Minha",


doce, encantador, sobre amizade, coragem e eternidade.

Classificação + 12

Era de Sombras e Lembranças


Lunara Alexandria Montecorp, última herdeira do Reino de Prata acaba de
ser coroada “Rainha da Paz”. Ela recebeu o colar com o Rubi elemental de
Fogo, espólio de guerra presenteado pelo belo cavaleiro Caleb Van Doren,
que salvou sua vida. Ele findou décadas de guerra contra o Reino das
Chamas Cinaéd, ao degolar Bólius, o tempestuoso dragão vermelho.

Montecorp parece finalmente estar prestes a entrar na Era da Paz.

Contudo, Luna acorda e percebe que está a contra gosto no intervalo do


curso pré-vestibular, contando o sonho sobre Montecorp para suas amigas
que acham que ela está totalmente maluca.

Lunara pensa que elas podem estar certas.

Mas se foi apenas um sonho, como o colar ainda está no seu pescoço?

Misturando fantasia e realidade, Lunara já não sabe mais se Montecorp


desesperadamente clama por sua rainha ou se está perdendo sua mente.

E assim começa a Era do Espectro.

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