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Parte 1:
Prólogo
Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onze
Parte 2:
Doze
Domingo, 24 de janeiro de 2019, 05:40
Treze
Domingo, 24 de janeiro de 2019, 17:34
Segunda-feira, 25 de janeiro de 2019, 16:54
Segunda-feira, 25 de janeiro de 2019, 23:23
Terça-feira, 26 de janeiro de 2019, 07:24
Terça-feira, 26 de janeiro de 2019, 07:33
Terça-feira, 26 de janeiro de 2019, 07:54
Terça-feira, 26 de janeiro de 2019, 12:12
Quarta-feira, 27 de janeiro de 2019, 10:12
Quarta-feira, 27 de janeiro de 2019, 20:12
Quarta-feira, 27 de janeiro de 2019, 23:11
Quarta-feira, 27 de janeiro de 2019, 23:32
Quarta-feira, 27 de janeiro de 2019, 23:52
Quatorze
Telegram
Quinze
Dezesseis
Dezessete
Dezoito
Sexta-feira, 29 de janeiro de 2019, 01:01
Telegram
Dezenove
FIM
Bônus: Você venceu o sorteio!
Apoio
Entrevista com o Sem Spoiler
Agradecimentos
Sobre o autor
Pedro Rhuas é autor agenciado pela Increasy Consultoria Literária
e publicado pela Editora Seguinte. Para mais informações sobre
seus trabalhos entrar em contato no contato@increasy.com.br.
Copyright © 2021 Pedro Rhuas
Acredite se quiser (ou não), esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e
acontecimentos são certamente produtos da imaginação duvidosa do autor. Qualquer
semelhança com a realidade é mera coincidência.
Era a minha noite de ficar até tarde na recepção, mas meu pai me
pediu para dar uma mão ao Otávio — o novo voluntário do hostel —
na limpeza das pranchas, enquanto o movimento estava fraco.
Otávio era um cara superengraçado. Aquela era nossa primeira
grande oportunidade para conversar sem a galera do hostel por
perto. Mas eu — pensando obsessivamente em Júlio — não estava
presente. Ele me contou, de qualquer modo, sobre seu tempo em
Pipa e sobre todos os lugares incríveis que conhecia em seu
mochilão pelo Nordeste, que já durava meses.
Eu respondia tudo com “uhuns”, “ahans”, “é verdade” ou
“sério?”.
Em determinado ponto, Otávio não se segurou:
— Meu Deus, eu realmente tô enchendo seu saco, né?
— Não — eu disse, despertando do transe. — Só tô com muita
coisa na cabeça.
Otávio me olhou por cima da prancha cuja leash — a cordinha
que colocamos ao redor do tornozelo — tentava prender sem
sucesso.
— Assuntos do coração? — ele perguntou com um sorriso
enquanto eu o ajudava.
Otávio era bonito. Piauiense, branco, alto e olhos de um
castanho muito claro. Era mais velho que eu, mas não que a
diferença fosse tão grande; tinha 24 anos, enquanto eu nem havia
chegado aos 20.
O jeito com que falava, naquele cantar arrastado do Piauí, era
agradável e inspirava confiança, como faria um terapeuta.
— Tipo isso.
— Alguma menina na jogada?
— Menino — confessei, me sentindo à vontade para contar.
— Ah — ele disse, me passando umas das pranchas. — Quer
falar sobre? Dramas amorosos são a minha especialidade.
Ele me encarou com um sorriso condescendente, como se
fosse um ancião e eu, uma criança.
— Não é nada demais.
— Tem certeza? Porque você passou a noite toda caladão. Não
é como se isso fosse muito comum.
— Ei, eu nem falo tanto assim — protestei.
— Por favor, né? Desde que cheguei no hostel você é a pessoa
que mais vejo falando — Otto apontou com graça. — Se minha avó
te conhecesse, diria que bebeu água de chocalho.
Dei uma risada e Otávio pegou a vassoura, gargalhando
enquanto parecia prestes a me atacar com o cabo.
Entramos em um ritmo silencioso de organização após isso.
Quando ele terminou de varrer o quartinho das pranchas, disse:
— Óh, a gente tá quase acabando aqui. Se quiser voltar pra
recepção, fique à vontade. Eu dou conta.
— Não, tá de boas — respondi. — Vou te fazer companhia.
— Então pega o espanador aí, herdeiro. Não tem corpo mole
aqui, não.
Quando Otto chegou, minha mãe brincou dizendo que eu era o
“herdeiro do hostel” e que deveria ajudá-lo a se sentir em casa.
Desde então, ele não desperdiçava nenhuma oportunidade para
fazer brincar com aquilo.
Eu assenti, calado, e passei a tirar a poeira superficial das
coisas. Ele também não falou mais nada.
Me senti mal.
Queria contar a ele porque Otto seria a única pessoa em todo o
hostel que poderia me entender sem esforço. Ao mesmo tempo, não
pensava em me arriscar. Não o conhecia de verdade e, bem, não
valia a dor de cabeça caso ele saísse por aí dando com a língua nos
dentes.
Ele recolheu o pó com a pá e terminou, batendo palmas.
— Tudo certo por hoje. Estamos livres.
Eu não disse nada, e ele colocou a mão na cintura.
— Olha, saquei que você não é assumido pros seus pais —
Otávio comentou simplesmente. — Se esse é o seu medo, pode ficar
tranquilo. Não vou falar nada pra eles.
— Eu sei. Não é isso — respondi, ainda que fosse, de certo
modo. — Só é meio estúpido.
Ele sorriu.
— Acredite em mim, homens são estúpidos. Nada que você
possa dizer me surpreenderia.
— Uau, senhor experiente.
— 24 anos nas costas, fofo. É claro que sou experiente —
Otávio disse. — Anda. Conta logo. Odeio suspense.
Suspirei.
— Tá. Eu conheci um menino bem lindo na praia,
completamente meu tipo...
— Que tipo? — ele me cortou, as sobrancelhas arqueadas.
— Novinho — eu devolvi, e Otávio colocou a mão no peito. —
Sem ofensas...
— Anotado. Mas só pra constar: eu sou novinho também. 24
anos é MUITO, MUITO jovem. Um dia você vai entender — ele falou,
fechando o armário com as pranchas enquanto eu me escorava na
parede. — Pode continuar.
— E aí que eu vi ele duas vezes na praia. Na primeira ele foi
bem mal-educado e na segunda, após muita enrolação, disse o
nome.
— Então tá dando tudo certo?
— Eu não poderia dizer que tá rolando nada... Porque hoje ele
não estava lá.
— Eita. Acha que ele foi embora?
— É possível.
— E tu não pegou nem o número dele?
— Sei lá, ele era bem reservado...
— Tem certeza de que era gay? — Otávio subitamente
perguntou.
— Ele tava sentado em uma canga indiana e tinha uma ecobag
com as cores do arco-íris — defendi.
— Bom, Matias, nada disso justifica a sexualidade de ninguém
— ele disse, e eu o lancei um olhar vencido. Era verdade. — Mas
qual o problema?
— Problema nenhum.
— Então é isso? Só isso? — Otávio balançou a cabeça,
chocado. — Cara, jurava que tava rolando algo muito mais...
intenso? O que tu acabou de descrever foi só o início de um
clichezinho de verão.
Seria mesmo o que vivera com Júlio aquilo? Só o início de um
clichezinho de verão?
Eu não queria apenas o "início". Queria a história completa na
minha mesa, pra já.
— Falei que era estúpido.
Ele se sentou na bancada de madeira que eu tinha acabado de
limpar.
— A tristeza de uma decepção só dura o tempo em que você
se mantém apegado a ela — disse, sério, o espaço entre as
sobrancelhas formando uma forte linha de expressão.
— O que isso tem a ver com a situação?
Ele riu.
— Nada, não. Eu só tava com essa frase na cabeça há um
tempo e seria muito idiota se perdesse a oportunidade de falar pra
alguém. Você foi minha cobaia.
— De nada?
— GRACIAS — Otávio falou. — E aí? Tem algo mais que eu
possa fazer pra te ajudar? Precisa que eu cheque pra ver se ele tá
online no Grindr passando o rodo em Canoa? Porque isso acontece
mais frequentemente do que você imagina.
— Eu não acho que ele faça muito o perfil de quem estaria no
Grindr.
Otávio deu um empurrão no meu braço.
— Eu faço o “perfil” de quem estaria no Grindr?
— Faz.
— É? Não sei se isso é uma ofensa, mas agora é questão de
honra mostrar que esse menino vai estar a alguns metros da gente
com o nome NOVINHO QUER CURTIÇÃO e a barriguinha à mostra.
— Otávio tirou o celular do bolso. — Aposta quanto?
— Todos os turnos de limpeza do banheiro coletivo por uma
semana.
Ele nem titubeou.
— Essa é uma aposta cruel, mas considerando que sairei
vencendo, eu topo. Me aguarde.
Confiante, Otávio abriu o aplicativo e seis notificações com o
som característico do Grindr apitaram uma atrás da outra. A foto de
perfil o mostrava em uma pose animada atrás do símbolo de Canoa
Quebrada (a lua nova envolvendo uma estrela) cravado na falésia
laranja. Vestia uma sunguinha branca e posava ao lado de uma das
nossas pranchas de surf. Seu nickname era composto de sugestivas
ervinhas, o emoji formando o número dois com os dedos e “4:20”.
— Mas tu nem surfa! — protestei, rindo.
— Detalhes, meu caro Watson. Apenas uma mera questão de
estética e estatísticas.
— Como assim?
— Bom, desde que coloquei essa foto fingindo que sou surfista
— ele comentou com seriedade —, o número de biscoitos que recebi
aumentou exponencialmente em 300%. Essa é a combinação mais
fácil pra se ganhar admiradores no Grindr, Matias: erva e surf. Dá
bom sempre.
— Você não presta, Otto.
— Fale isso pros trinta biscoitos que eu recebi, pô!
Passamos uns cinco minutos procurando por Júlio. Felizmente,
nem sinal dele no Grindr. Otávio me pediu uma descrição completa
do menino, convencido de que o acharia. Visitou todos os perfis
disponíveis, fazendo comentários como “tem certeza de que ele não
é esse aqui?” até para as pessoas sem foto. “Casal com Local”,
“Leke 22cm a fim”, “Coroa Discreto” e “Pauzudo Passivo”
definitivamente não eram quem procurava. Eu não conseguia parar
de rir com ele, que tinha uma piada mais absurda que a outra na
manga.
Finalmente, resignado, Otávio reconheceu a derrota.
— Uma semana lavando o banheiro social? — Ele suspirou. —
Não pode ser quatro dias, pelo menos?
— Não. A gente combinou uma semana.
— Tá — ele se levantou, guardando o celular no bolso —, mas
eu vou continuar de olho no Grindr. Se o Júlio aparecer, o trato tá
desfeito.
— Fechado. Mas ele não vai.
— Ai, ai, Matias, você é muito santinho. Qual seu problema
com o Grindr?
— Não acho que vou encontrar o amor da minha vida em um
app de pegação.
— Eu encontrei meu ex-namorado em um app de pegação,
sabia?
— Quanto tempo vocês ficaram juntos? — perguntei por força
do hábito. Era um dado importante, de qualquer forma.
— Bem... — Otávio fez as contas, desligando as luzes do
quarto. — Dois meses.
— É disso que tô falando! Eu não quero um relacionamento de
dois meses. Quero alguém pra minha vida toda.
— Não tem nem idade de gente e tá pensando em alguém pra
vida toda, Matias? Calma aí, né?
Eu estava certo o bastante sobre o meu romantismo para não
precisar prová-lo a ninguém, então mudei o fluxo da conversa.
— E como era esse ex do Grindr?
— Uma fofura — Otávio respondeu. — Pena que queria me
levar em uma orgia pagã na praia e eu disse não, que foi a razão
pela qual a gente acabou. Poxa, sabe? Nada contra Dionísio, mas eu
não tava a fim de vinho!
Ri alto outra vez. O quarto das pranchas ficava no lado externo
do hostel e a partir dali tomaríamos caminhos opostos.
— Muito obrigado pela ajuda, Otto.
— De nada — ele disse em espanhol. — Estoy muy feliz en
ayuardarte. Qualquer problema amoroso que tiver, pode contar
comigo, viu?
— Vale! Gracias — eu agradeci. — Ah, e por favor... Não conta
pra ninguém dessa conversa, ok?
Quando você passa tanto tempo se escondendo, esconder se
torna parte de você. Um mecanismo de defesa que não sabemos
desativar quando necessário. Eu sabia que não precisava agir assim,
mas quando é tudo que conhecemos...
Otávio colou a ponta do polegar com o indicador e passou os
dedos pelos lábios, como se fechasse um zíper.
— Boquita cerrada, chico español — ele falou em um forte
sotaque cearense. — Seu segredo está guardado.
Cinco
Oi, Matias!
Abraços,
Júlio Andrade
Boa tarde, guapo! (Tá vendo como não vou respeitar as normas?
Tô falando ‘boa tarde’ no segundo parágrafo!!!). Espero que tenha
ido tudo bem com a viagem. Demorei pra responder porque passei a
manhã em uma ReuniãoMuitoSériaSobreMeuFuturo.com.br. Agora
eu sou oficialmente o “Gestor Aprendiz” do Hippie *yey*, o que
significa que tenho que trabalhar sete horas por dia seguindo meus
pais de cima abaixo pra pegar as manhas até abril, quando eles
voltam pra Espanha e eu fico. Todas essas mudanças são um pouco
assustadoras, mas é o que eu queria...
Matias
Júlio Andrade
De dentro do mar
Era mais miragem que visão real
Se parasse para olhar
Encontraria respostas de um tempo ancestral
E o seu beijo
Beijo com gosto de d'Abruzzo
E o seu cheiro
Eu provaria do pescoço ao pulso
Ah, Júlio
Que tamanho orgulho
Só de pensar em ti
Eu fico....................................
Com amor,
Matias Shakespeare
Terça-feira, 26 de janeiro de 2019, 07:24
‘O’
AMADO?????
O que ACABOU de acontecer aqui????????????????
Terça-feira, 26 de janeiro de 2019, 07:33
:(
Poxa!
Não gostou da minha obra de arte, guapo? Escrevi com tanto
carinho...
Indignado e com coração partido,
Matias Nem Tão Shakespeare
ps.: A palavra que faltava era “maluco”. O que você achou que
era?
Terça-feira, 26 de janeiro de 2019, 07:54
Assunto: Perdão?
Querido Matias,
Sinto muito por ter partido seu coração... Não pense que intentei,
deliberadamente, colocar em xeque seu talento como poeta. Acredito
que você tem muito potencial... só não na poesia.
Devo admitir, porém, que fiquei surpreso com o encadeamento do
poema.
(Ah, antes que eu esqueça: tô indo buscar o celular agora na
assistência! Dedos cruzados!!!)
Beijos,
Júlio Com Sabor de d'Abruzzo
ps: Eu completei com “duro”. Admita que era isso.
Terça-feira, 26 de janeiro de 2019, 12:12
Belíssimo Júlio,
Matias
Júlio.
OI?
EU LI DIREITO?
Guapo, obrigado por ter topado. Vai ter uma galerinha por lá,
então nem se preocupe. Só chegar às 19h com seu maior sorriso
que será suficiente. Ah: Não há palavras proibidas e roupa é
totalmente opcional (mentira, o que você vestiu pro Terra Napoli tá
ótimo, embora eu fosse preferir sem nada).
Ah, parabéns pelo celular! Quando li essa parte fiquei feliz por
você, mas depois pensei que seria meio triste a gente parar com os
e-mails. Aí fiquei feliz de novo quando vi sua sugestão; era
exatamente o que eu tinha em mente. Vê?
SINCRONIZADÍSSIMOS!!!
Todo seu,
M.
J.
Caro Júlio,
Te vejo amanhã.
Quatorze
Olá?
Alguém em casa?
Você entrouuuu!
Pensei que isso não aconteceria nuncaaaa.
Boa noiteeeeeeee, guapo!!!
Hey, Matias! ;D
Você é o “único marido” em questão?
Bobo!!!
(Mas vem mesmo).
(De jeito).
Quinze
Fiquei tão sem fôlego com a interrupção que nem soube o que
falar. Olhei para Júlio com medo de encontrá-lo chateado com o
ocorrido, mas ele estava rindo.
A risada, inicialmente baixa, foi crescendo até se tornar
descontrolada, como uma bola de neve despencando do cume de
uma montanha. Eu comecei a rir junto, o prazer de trinta segundos
atrás revertendo-se para a comicidade da situação.
Quando paramos, Júlio tinha encaixado a cabeça sobre o meu
peito. Podia sentir seu sorriso em minha pele, e alívio se espalhou
por mim.
— Eu não acredito que sua irmã viu a gente se pegando — ele
disse, ainda rindo.
— Nem eu.
— Acha que ela vai ficar traumatizada? Deveríamos sugerir
terapia ou algo assim?
— Ah, não. Melissa é forte, consegue se recuperar — brinquei.
— Mas e eu?
— O que tem você?
— Não sei se consigo me recuperar do que quase aconteceu.
— Você diz “quase gozar”? — Ele me beliscou e eu baguncei o
seu cabelo. Não soube o que falar em seguida, e Júlio se apoiou nos
cotovelos. — Quê? Eu deixei Matias Mendonza sem palavras?!
— Sim.
— Isso é novo.
— Eu sei.
Ele riu, virando-se para deitar ao meu lado na cama.
— Ainda nem vi o seu quarto. Que tipo de anfitrião você é?
— O tipo que tá ocupado demais entretendo o hóspede — eu
disse, me levantando para acender a luminária 3D no formato de lua
cheia na cabeceira da cama. A luz não era tão forte, mas no escuro
do quarto se destacava. Deixei em azul, a réplica das crateras da lua
iluminada.
Quando me virei para ele, Júlio observava meu cantinho. Minha
antiga prancha, coberta de adesivos, ficava encostada em uma das
paredes verde-menta. Havia um jarro com uma samambaia ao seu
lado. Na parede oposta, um painel de madeira aramado exibia várias
fotos minhas. Era o tipo de quarto que se encontraria no Pinterest
adicionando as palavras “surf room” na barra de pesquisa. Original?
Não necessariamente. Bonito? Com certeza.
— Gosta? — perguntei ao deitar com ele outra vez.
— Tem a sua cara — Júlio disse simplesmente. De alguma
forma, a frase soou como um elogio, uma confirmação a algo que
havia imaginado previamente.
Agora que o quarto estava claro, podia ver o menino melhor: os
cabelos pretos desgrenhados, os lábios mais rubros que o normal
(culpa minha). Via também seu peitoral, as duas finas linhas
horizontais abaixo dos mamilos demarcando o ponto da
mastectomia. Tinham um tom rosado em oposição ao restante da
pele branca dele.
Ele me percebeu olhando e pegou minha mão, colocando-a ali.
— Doeu? — perguntei, me aninhando nele.
— A recuperação, sim. Mas tive apoio. Meus amigos nunca
saíram do meu lado. Minha mãe é médica e foi maravilhosa também.
— Júlio falou. — O procedimento é caro e invasivo, e eu não queria
que ela pagasse tudo. Aí fiz uma vaquinha online com o pessoal do
site.
— E deu certo?
— Muito — ele deu um sorrisinho lindo, resgatando a
lembrança. — A gente arrecadou uma grana boa. Acabei nem
usando esse dinheiro, e o que devia ser algo pra mim se tornou uma
campanha pra ajudar outros meninos que não podiam pagar a
cirurgia.
— Que atitude linda, Júlio.
— Foi tão massa ver todo mundo se ajudando, todo amor
envolvido... Eu não fiquei sozinho em nenhuma parte do processo,
sabe? Isso que é o mais bonito.
— Eu fico tão feliz que você recebeu esse apoio. —
Gentilmente toquei seu lábio. — É o que você merece. Amor.
Era um momento diferente do de minutos atrás. Maré mansa e
águas calmas em detrimento à turbulência de antes. Eu me sentia à
vontade, como se já tivéssemos feito isso muitas vezes: deitado um
ao lado do outro, contando segredos e histórias, partilhando beijos
quentes no pescoço.
— Posso te perguntar uma coisa? — Júlio indagou.
— Sempre.
— Na praia. — Sua voz era baixa e curiosa. — Como você
sabia que eram 15:15?
— Eu não sabia.
— Não mesmo?
— Não fazia a mínima ideia.
Ele olhou para o teto do quarto com um ar contemplativo.
— Então foi só coincidência?
— Eu prefiro ler como um sinal. Como a capa do seu Kindle
com as luas.
Ergueu o queixo. As pontas dos dedos de Júlio vagaram acima
do meu peito, bem onde ficava a tatuagem. A luz da luminária
derramava um tom de azul sobre ela, que começava com a lua nova
e terminava na minguante.
— Eu pensei sobre isso — ele murmurou. — Foi tão estranho
quando vi a tatuagem em seu coração, porque havia ela e as horas
iguais... Tive a sensação muito louca de dèjá-vu, como se já te
conhecesse, como se já tivéssemos tido aquela conversa. Como se
fosse tudo uma grande ironia do destino.
Eu assenti.
— Acho que foi por isso que voltei no dia seguinte — falei para
Júlio. — Porque me senti como você se sentiu.
— Como?
— Como se já te conhecesse de alguma forma.
Ele estreitou os olhos, voltando-os para a tatuagem.
— O que ela significa pra você?
— A lua me influencia muito. Quando está cheia, fico mais
criativo e apaixonado, como agora — beijei o ombro dele. — Assim
como o mar é afetado pelas fases dela, também vejo que sou.
Queria honrar esse sentimento.
Júlio aproximou os lábios da tattoo, pressionando-os em cada
uma das pequenas luas.
— Como tá sendo a noite do aniversariante até agora? — ele
perguntou em seguida, sorrindo.
— Perfeita. Tudo por sua causa.
— Por quê?
— Porque você não está com medo de se mostrar pra mim.
Júlio passou a mão pela lateral da minha cabeça.
— Eu tô morrendo de medo.
— Não parece.
— Me tornei especialista em camuflar o que sinto, mas é
verdade, Matias. Pra mim, confiar não é fácil. Sabe quando a gente
passa tanto tempo correndo que, quando não precisa mais, nosso
corpo ainda se mantém na vibração da fuga? Eu estive nessa corrida
por mais do que queria. Achava que, se mudasse meu exterior para
se adequar a como me enxergo por dentro, tudo se resolveria de
uma hora pra outra, mas isso não é real. Minhas inseguranças
ganharam uma nova cara, os obstáculos se tornaram outros...
— Você tentou fugir de mim na praia.
— Não porque não quisesse te conhecer, mas porque pensei
que eu fosse algum tipo de brincadeira pra você. Um jogo.
— Você nunca seria uma “brincadeira” pra mim, Júlio.
— Eu sei disso agora. Mas não achei que um menino como
você ia reparar em mim.
— Como não repararia?
— É isso que tô tentando dizer, Matias. Não é sobre você. É
sobre mim, minha percepção a respeito do meu corpo e quem eu sou
— ele murmurou. — Só que algo mudou nesse meio tempo, porque
já não tenho mais a necessidade de correr quando estou contigo.
— Jura?
— Não sei por que — Júlio desenhou um círculo em meu
coração —, mas você me faz querer ficar.
Você me faz querer ficar.
Como contaria que aquela era uma das frases mais lindas que
alguém jamais me disse? Tentei encontrar uma maneira de verbalizar
o que sentia. Virei meu rosto em sua pele e inspirei o cheiro de seu
suor e perfume de lavanda, tranquilidade e maresia que aprendia a
reconhecer como dele.
— Você me faz querer ficar também.
— E isso não é estranho? A gente querendo ficar um com o
outro quando a maioria das pessoas não quer nada? Sexo casual é
legal, mas é só? Viver de deslumbres superficiais, nunca conhecer
ninguém de verdade...
— Nunca sair do raso — eu disse, a gargalhada de Júlio vindo
em seguida. — Ei, que foi?
— Suas referências com água não acabam nunca?
— Infinitas como o oceano — brinquei, beijando-o novamente.
— Você contou antes que nunca namorou. Era por medo também?
— Em partes. Minha cabeça compartimentaliza tudo, sabe?
Quando a gente cresce sendo magoado, é difícil não pensar que isso
não vai voltar a se repetir em outras relações, como em um padrão
insuperável.
— Uma das nossas professoras de meditação disse uma vez
que dor e êxtase são as duas partes de uma mesma moeda. Não dá
para suportar um grande êxtase se não conseguimos suportar uma
grande dor.
— Então eu devo estar pronto para o grande êxtase — Júlio
tirou onda. — Mas acho que entendo um pouco disso. Dessa
“balança”. Quando comecei meu processo de autoconhecimento, de
realmente perceber essa jornada que é me abraçar e defender meu
lugar no mundo como um homem trans, por um tempo eu quis viver
nos polos dos extremos.
— Oito ou oitenta.
Lembrei de nós dois no terraço do Terra Napoli, velas ao nosso
redor. Eu sou oito ou oitenta, por isso curti o rumo que as coisas
tomaram hoje, Júlio tinha dito.
— Sim. E apesar de eu ter brincado contigo sobre isso, nem
sempre os extremos me fizeram bem — ele tocou meu braço. —
Qual o exemplo de homem que a sociedade tem?
— Isso é uma pergunta retórica?
— Não, sério. Qual é?
— Ok: bruto, insensível, sexualmente orientado, bom demais
pra tarefas domésticas, racional...
— Exato. Esses são os aspectos do “homem” criado pelo
patriarcado. O provedor, o caçador. Sei que não é a realidade de
todos, mas foi com um pai assim que cresci, o tipo de pai que foi
embora quando esse mesmo ideal de homem foi questionado em
casa — ele disse com certo remorso, a voz falhando ao mencionar o
pai. Havia mais do que Júlio deixava transparecer ali. Imaginei que
falaria a respeito se estivesse pronto, um dia. — Infelizmente, esse
era o meu modelo também e eu quis correr pra isso. Quis ser o
homem que a sociedade enxerga como tal porque achava que era a
única maneira de ser visto como um em primeiro lugar.
— Funcionou?
— Nunca. Para ser o homem que sou eu não preciso ser esse
homem. Esse modelo cis falido que só ajudou a levar o mundo a
esse estado em que a gente está agora. Principalmente, descobri
que não preciso negar nem sufocar a minha energia feminina para
ser quem eu sou.
— No Xamanismo, o Grande Espírito é formado pela união das
duas polaridades. — Eu sempre fui apaixonado pelos ensinamentos
xamânicos e o comentário de Júlio me fez recordar do que conhecia
a respeito. — É o Deus e a Deusa reunidos. Yin e Yang.
— Mas eu fiz isso, sabia? — Júlio suspirou. — Neguei o que é
julgado como feminino em mim achando que assim me afastaria da
“mulher” que as pessoas me viam como, que me tornaria mais
homem... Só que não preciso caber na caixinha de ninguém para ser
quem eu sou, ainda mais uma tão defasada.
Tomei um tempo para analisar a vivência de Júlio. Eu nunca
tinha me envolvido romanticamente com uma pessoa trans antes.
Acompanhei, de longe, o processo de uma colega na Espanha.
Estudávamos em salas diferentes, ela era mais velha e não tínhamos
amigos em comum. Eu achava Melanie corajosa e linda. A única vez
em que nos falamos ela estava na cantina e eu, timidamente, disse
que, se um dia precisasse, podia contar comigo.
Às vezes, isso é tudo que podemos enquanto comunidade:
proporcionar a sensação reconfortante de que não estamos
sozinhos. Que apoiamos uns aos outros.
Eu pensei em Júlio encontrando seu caminho em um mundo
cheio de correntes, fazendo a coisa mais corajosa de todas: tornar-
se dono de si mesmo, se descobrindo e se construindo à imagem
viva que aquecia seu coração. Ele era mais valente do que percebia.
— Você é lindo — beijei a ponta do nariz dele. — Obrigado
mesmo por compartilhar isso comigo.
— Obrigado por ouvir — ele respondeu com um sorriso, os
lábios fechados se alargando no rosto.
— Se algum dia eu disser algo errado, se eu te fizer sentir
menos do que você é e merece, se te machucar de alguma forma...
Você me diz? Me corrige?
Júlio me estudou.
— Não quero ficar nessa posição de instrutor, nem ser
professor de ninguém. Mas me conhecendo como você tá
conhecendo, Matias — ele semicerrou os olhos —, acha mesmo que
eu ficaria calado?
Foi minha vez de rir.
— Pensando bem, acho que você faria algo muito terrível.
— Como quebrar Rosalía em pedaços?
— Coitada da minha bichinha. Ela merece um fim menos
doloroso.
Ele fez um pouco de cócegas em mim.
— Então tenha cuidado, surfista.
Ficamos deitados na cama por um tempo, o sussurro das
folhas dos coqueiros vindo da janela.
Eu não percebi que estava tão cansado até Júlio me despertar
de um cochilo. Ele tocava minhas costelas e beijou o espaço entre
minhas sobrancelhas.
— Acho que a gente devia voltar pra festa, dorminhoco — ele
disse.
— Hummm — eu gemi, puxando-o em um abraço apertado. —
Tá tão bom assim. Queria passar a noite agarradinho contigo. Dormir
de conchinha.
— Por mais tentador que seja, a gente já ficou tempo demais
no seu quarto. Tenho que socializar com sua família, lembra?
Eu suspirei e me levantei, vestindo a bermuda. Júlio abotoou
sua blusa e mudou a cor da lua para vermelho.
— Juro que da próxima vez que você vier aqui não vai ter
ninguém em casa — eu falei.
— Ah, é? Por quê?
— Pra gente terminar o que minha irmã não deixou.
Ele apanhou a minha camisa do chão e a jogou na minha cara.
— Só se for nos seus sonhos.
A questão é: ele já estava lá.
Sexta-feira, 29 de janeiro de 2019, 01:01
Hey!
Hoje foi bom dia com TEXTÃO na mesa?
Tô lendo aqui.
Pera.
Hola!
Tô perando, haha.
Ai, Matias...
Não sei nem o que falar.
Tá, sim!
A gente se encontra na capelinha de novo?
Às 16h?
Isso aê!