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Pedro Rhuas

Contents
Copyright
Parte 1:
Prólogo
Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onze
Parte 2:
Doze
Domingo, 24 de janeiro de 2019, 05:40
Treze
Domingo, 24 de janeiro de 2019, 17:34
Segunda-feira, 25 de janeiro de 2019, 16:54
Segunda-feira, 25 de janeiro de 2019, 23:23
Terça-feira, 26 de janeiro de 2019, 07:24
Terça-feira, 26 de janeiro de 2019, 07:33
Terça-feira, 26 de janeiro de 2019, 07:54
Terça-feira, 26 de janeiro de 2019, 12:12
Quarta-feira, 27 de janeiro de 2019, 10:12
Quarta-feira, 27 de janeiro de 2019, 20:12
Quarta-feira, 27 de janeiro de 2019, 23:11
Quarta-feira, 27 de janeiro de 2019, 23:32
Quarta-feira, 27 de janeiro de 2019, 23:52
Quatorze
Telegram
Quinze
Dezesseis
Dezessete
Dezoito
Sexta-feira, 29 de janeiro de 2019, 01:01
Telegram
Dezenove
FIM
Bônus: Você venceu o sorteio!
Apoio
Entrevista com o Sem Spoiler
Agradecimentos
Sobre o autor
Pedro Rhuas é autor agenciado pela Increasy Consultoria Literária
e publicado pela Editora Seguinte. Para mais informações sobre
seus trabalhos entrar em contato no contato@increasy.com.br.
Copyright © 2021 Pedro Rhuas

Todos os direitos reservados

Acredite se quiser (ou não), esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e
acontecimentos são certamente produtos da imaginação duvidosa do autor. Qualquer
semelhança com a realidade é mera coincidência.

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fotocópia, gravação ou outro, sem a permissão expressa por escrito do editor.

Increasy Consultoria Literária

Edição: Alba Milena


Revisão: Grazi Reis
Leitura sensível: Ariel F. Hitz e Anna Anchieta
Ilustração de capa: Lune Carvalho
Lettering: Renata Nolasco
Diagramação: Laís Lacet
Aos encontros inesperados à beira-mar
Parte 1:
O Menino do
Kindle
Prólogo

O inverno é minha estação favorita. É durante ele que, todos os


anos, sem falta, minha família foge para o verão no Brasil.
Essa é nossa tradição desde... sempre. Nunca houve um eu
sem o Brasil, e acho que nunca haverá. Metade de mim, ao menos.
A outra é necessariamente espanhola.
Não. Sou um terço Espanha, um terço Brasil e o restante mar.
Somente pelo mar passei a existir, de modo que ele precisa ser
devidamente creditado na equação.
Meus pais são surfistas. Desde pequenos, eu, meu irmão mais
velho, Pablo, e minha irmãzinha, Mel, rodamos o mundo em uma
espécie de nomadismo comunitário. Antes de se aposentar e
construir os dois hostels que são a base dos negócios da família —
um na ilha de Formentera, na Espanha, e outro em Canoa
Quebrada, no Ceará —, minha mãe era uma premiada surfista,
famosa por suas vitórias no Circuito Mundial.
Em uma competição no Havaí, anos atrás, acabou conhecendo
meu pai, um jornalista brasileiro e surfista amador, trabalhando como
correspondente esportivo de uma emissora brasileira. Naquela
época, sua principal tarefa era cobrir competições mundiais de surf.
Mamãe contava a história do primeiro encontro dos dois, uma
passagem costumeiramente explorada em entrevistas e jantares com
nossos hóspedes. Ela dizia que papai levou um caldo imenso e que
quase se afogou, não fosse por sua agilidade em tirá-lo da água e
partir para uma bem-sucedida respiração boca a boca que salvou
sua vida.
Já papai, orgulhoso, alegava que havia fingindo se afogar só
para sentir os lábios da “mulher mais bonita que já viu na vida”.
Quando ambos terminavam a anedota, mamãe criava um
momento de tensão em que respirava fundo, olhava ao redor da
mesa e, segurando a mão de papai enquanto o fitava intensamente,
dizia: “Pero soy muy agradecida, pues fue el mar que me llevó a ti”.
O mar havia moldado todos os aspectos importantes da minha
existência. Naquele dia de janeiro, foi também o mar que me levou a
você.
Um

Eu estava prestes a pegar uma onda quando o vi.


Não dava para ignorar o menino: o guarda-sol colorido
projetando sombra em seu rosto; a ecobag nas cores do arco-íris
pendendo no ombro da cadeira de praia em que sentava; a canga
com estampa indiana estendida desajeitadamente no chão, vento
insistindo em soprar as pontas.
Ele estava completamente vestido, a camiseta preta destoando
na praia. Tirou os chinelos brancos, deixando-os junto à cadeira, e
conectou um fone de ouvido. Com uma das mãos, segurava o que
julguei ser um Kindle.
Eu o assisti de dentro da água, afastando o cabelo molhado da
testa para olhá-lo melhor.
Não sei o que exatamente nele capturou minha atenção. Não
era como se não houvesse outro menino bonito na praia. Por mais
que tentasse desviar, no entanto, meus olhos eram atraídos para ele,
para a vagarosidade dos movimentos sutis, o modo absorto com que
conduzia a leitura...
Passei uns quinze minutos parado na prancha, fitando-o.
Aquela parte do mar em Canoa Quebrada era o meu spot favorito.
Dava de frente para um espaço aberto onde não havia barracas:
somente a falésia vermelha e a cintilante areia branca abaixo dela.
Ali, o céu azul acima dele e a paisagem de fundo, pensei no quanto
queria minha câmera comigo para fotografá-lo no jogo de contrastes
em que o via.
Uma brisa suave vinha do Sul e, por um minuto ou dois, tudo
ficou silencioso e calmo. Com Rosalía, a prancha rosa-choque que
meu irmão Pablo me deu de presente no ano passado e que se
converteu na minha fiel escudeira no mar, eu podia passar horas
entre as ondas. Poucas coisas me interessavam mais que a agitação
da maré, e o menino era uma delas.
Tendo crescido sob o treinamento constante de mamãe, eu era
um surfista excelente. As ondas em Canoa não eram tão radicais; o
vento forte era mais adequado para Windsurf e Kitesurf, e minha
técnica não era muito desafiada.
Comecei a nadar ao perceber a mudança de corrente. Uma
onda bonita — talvez a melhor de toda a sessão — se formava no
horizonte. Peguei embalo, meus braços cortando a água, e fiz o que
sabia de melhor: surfei.
Eu estava absolutamente convicto de que acertaria. Minha
intenção era fazer com que o Menino do Kindle me notasse,
performando uma exibição digna de campeonato. Como ele parecia
tão desinteressado pelo oceano, pensei que talvez pudesse se
interessar por... mim?
Agora compreendo não só quão convencido eu fui, mas o
quanto subestimei o mar do Ceará.
Porque, sendo sincero, eu estava errado.
Muito, muito errado.
Era como em um daqueles vídeos virais no Facebook: tudo
seguia em aparente normalidade até o meu pé escorregar e eu
capotar para fora da onda, Rosalía deslizando para longe, meu peito
acertando com força o espelho d’água.
Entrei em queda livre, o mar me envolvendo no caldo mais
ridículo da minha vida. Fiz o possível para evitar que a prancha
acertasse minha cabeça, e só por um triz terminei a salvo de um
acidente fatal; o nível de dificuldade dessa onda era 1 de 10, mas fui
levado por ela até a arrebentação, rolando e sentindo o arranhar da
areia na pele.
O lado bom é que o Menino do Kindle não parecia ter visto meu
incidente vergonhoso. Seus olhos se mantinham tão concentrados
no aparelho quanto estavam antes do caldo.
Agarrei Rosalía e cuspi um pouco da água (e os dois quilos de
algas e até um atum inteiro, aparentemente) que engoli. Tentando
recolocar ordem nos pensamentos, chequei o short para confirmar se
não havia terminado nu. O cós estava um pouco abaixo da cintura e
revelava a linha onde o bronzeado empalidecia; não mais que isso.
Qualquer pessoa sensata faria questão de mostrar menos
barriga, mas eu estava decidido a impressioná-lo. Se o mar e minhas
habilidades com o surf não foram suficientes para despertar qualquer
reação nele, talvez meu carisma tanquinho bastasse.
De perto, era mais fácil distingui-lo. Seu cabelo castanho-
escuro e liso, penteado para o lado, contrapunha lindamente com a
pele branca. Usava óculos com aro em meia-lua e a camisa preta, na
realidade, era azul-marinho com gola em V.
Um colar de corda com um cristal rosa pendia no pescoço. O
aparelho era mesmo um Kindle; tinha uma capa com as várias fases
da lua, a cheia ao centro.
Eu me aproximei dele.
Não estava ansioso. Já tinha feito abordagens como aquela
antes; simplesmente perguntaria a hora, abriria um sorriso simpático,
arquearia a sobrancelha e torceria para que meu personagem
surfista-sexy-paquerador desse conta do recado.
O menino só ergueu a vista quando eu estava bem perto,
minha sombra decerto o atrapalhando. Tentei me ver da perspectiva
dele: cabelo meio dourado, meio preto, dreadlocks em um moicano
curto e o lado raspado com listras de navalha; a pele negra que
dispensava o bronze do sol; a textura do protetor solar resistente à
água no rosto; os olhos de um tom mais sutil de verde.
Se me achou interessante, não demonstrou. Seus olhos
castanhos me avaliaram sem muito interesse. Um segundo depois,
sem pressa, voltaram-se ao Kindle.
Era quase como se eu nem estivesse ali.
Pigarreei, mas ele não me escutou (por conta do fone, talvez?).
Senti o banho de água fria escorrer sobre mim como uma cascata
ártica.
O plano não saía conforme imaginado. Nem um pouco.
Meu ego arrasado buscava minimizar a atitude dele,
justificando-a em vão. Se eu não tivesse uma confiança tão forte,
teria voltado para o mar. Sua falta de interesse, em vez de me
desencorajar, tinha acendido algo em mim. Positivo como era, enfiei
o orgulho no bolso, fiquei de cócoras e acenei.
— E aí! Tudo bem? — eu disse quando ele tirou o fone de
ouvido, torcendo que meu domado sotaque espanhol não ficasse
explícito.
Ele demorou até me olhar, como se estivesse numa frase boa
demais para ser interrompida; uma leitura que preferia não parar,
sobretudo diante da intromissão de um surfista inconveniente como
eu.
Ele não devolveu o sorriso, e eu decidi que estava pronto para
o desafio.
Afinal, as melhores coisas não vêm fáceis, certo?
— Posso ajudar? — foi o que me deu como resposta. Sua voz
não era bem o que eu esperava. Era calma e fina, delicada como o
formato de seu rosto. Quando ergueu o queixo, pude ver que uma
barba rala começava a crescer.
Mas “posso te ajudar?”? Nem um “sim, estou bem, e você?”.
Misterioso.
Desconfiado.
Gostei disso.
— Somente se puder me dizer que horas são — respondi,
fazendo questão de continuar sorrindo. Meu braço estava ao redor
de Rosalía, e água pingava pelo meu rosto.
O menino assentiu, contrariado. Percebi que quase revirava os
olhos. Pressionou o dedo na tela do Kindle e informou:
— São quinze e quinze.
— Muito obrigado — falei, e corri para emendar: — Sou Matias.
Prazer te conhecer.
Não dava para ser mais direto que isso, dava? Certo de que o
menino seria minimamente educado, estendi a mão para
cumprimentá-lo.
Mas o gelo que me deu podia acabar de vez com o
aquecimento global.
— Hm. Certo. Valeu. — Franziu a testa, seco, deixando minha
mão pender solta no ar.
— Poxa, não vai nem me dizer seu nome?
— Eu deveria? — o Menino do Kindle rebateu.
— Bom, já que é o que pessoas educadas fazem, por que não?
Tentei falar isso com a intenção de que soasse como uma
piada, mas ele deve ter me interpretado mal.
Pela primeira vez, ele reconheceu minha presença. Sua boca
se entreabriu e os dentes superiores pressionaram suavemente o
lábio inferior. Ele afastou o suor que se acumulava na testa com a
palma da mão, e seus olhos subiram da minha barriga até o meu
rosto.
Senti meu coração bater mais rápido. Por um instante, torci que
as coisas saíssem exatamente como eu queria.
Mas o que quer que passou pela cabeça dele foi embora
depressa, um pensamento rejeitado, e o desinteresse ganhou seu
rosto.
— Ah, sim. Que seja. Tchau.
Pronto.
Imerso no Kindle outra vez.
Não fazia o menor sentido.
Honestamente, quem não daria atenção a um surfista
segurando uma prancha rosa-choque com o nome “LA ROSALÍA”
cravejado em um Comic Sans dourado?
Eu fiquei ali, plantado, surpreso com seu desdém.
Ok...
Aquela sensação no meu peito era a de um coração partido ou
só excesso de vergonha?
Eu não esperava por isso.
Talvez tenha exagerado nesse lance do charme surfista?
Ou, sei lá, talvez tenha apostado fichas demais em mim
mesmo?
Mas aquela reação...
Qué fuerte, tío!
— Tchau, então, seu mal-educado — eu disse o que me
restava.
Novamente, ele não respondeu.
Eu me escondi atrás de Rosalía e, devastado, o deixei para
trás.
Dois

Voltei a ver o menino na tarde seguinte.


Não esperava reencontrá-lo; o fluxo constante de turistas em
praias como Canoa significava que as pessoas estavam em um
eterno vai e vem. Ninguém permanecia por tempo demais.
Levando a vida nômade em que cresci, eu havia me acostumado à
efemeridade dos encontros. Tanto que nem me passara pela cabeça
a possibilidade de o achar outra vez, ainda que, secretamente,
guardasse a esperança.
E ali estava ele.
Contive a sensação de déjà-vu conforme o acompanhei vagar ao
mesmo ponto em que ficara na tarde anterior. Caminhava enfiando
os pés na areia, cabeça baixa e passos curtos, segurando os
chinelos na mão. Vestia uma regata vermelha e uma bermuda de
náilon colorido, uma combinação mais vibrante que o preto básico de
ontem.
Dessa vez, não trazia a cadeira nem o guarda-sol. Estendeu a
canga indiana no chão, a sandália havaiana firmando cada ponta na
areia. Um largo chapéu de palha ocultava seu rosto e a ecobag arco-
íris, junto ao ombro, não o abandonava.
De dentro do mar, o assisti concluir o ritual: sentar-se sobre a
canga; tirar o Kindle de dentro da ecobag; e conectar os fones de
ouvido. Vi quando ergueu o rosto, o chapéu inclinando para trás.
Por um momento, admito, achei que me procurasse.
Tive vontade de acenar, mas logo seus olhos se fixaram em
qualquer que fosse a história que lesse, distantes.
Eu estava sentado em La Rosalía. O mar secava, e uma boa onda
não aparecia há tempos. Outros surfistas haviam desistido e voltado
para o raso. Os que resistiam eram os otimistas à espera de uma
improvável saideira; ou aqueles que, como eu, simplesmente
aproveitavam os instantes meditativos no balanço delicado da maré,
quando mesmo os pensamentos mais difíceis se dissolviam.
Eu estudei o menino do Kindle outra vez, sua postura firme na
areia, e abri um sorriso.
Estava decidido: iria até ele outra vez.
Ontem recebi um não, mas hoje era um admirável novo dia, e, se
fosse para ser, seria.
Saltei para fora da prancha, mergulhando na água quentinha. Dois
minutos depois estava na praia.
A principal diferença entre o Matias que o abordou a primeira vez
era que agora eu não levara um caldo capaz de comprometer minha
apresentação. Então, com muito mais moral e confiança para
encará-lo, ataquei.
Minha sombra voltou a atrapalhá-lo. Previsivelmente, o menino
demorou até me olhar. Quando o fez, sua expressão impassível nada
revelava; nem a menor surpresa.
— E aí? — eu disse, repetindo o texto de ontem só para tirar o seu
juízo. — Tudo bem?
— Deixa eu adivinhar — ele falou abruptamente, o tom evasivo me
surpreendendo. — Quer saber as horas?
Dei uma gargalhada.
— Seria muita gentileza da sua parte se pudesse ajudar um pobre
surfista necessitado. — Fiz beicinho. Não era para soar como uma
pergunta, mas as palavras vieram atabalhoadamente.
Ele me avaliou com cansaço antes de voltar à tela do Kindle.
Aproveitei a oportunidade para estudar seu rosto: uma linha espessa
de protetor solar riscava verticalmente o nariz, e notei que ele usava
um alargador na orelha direita. O sol do Ceará, apesar das tentativas
de autopreservação do menino, havia beijado suas bochechas.
Franziu a testa.
— São... quinze e quinze — ele se surpreendeu, reticente,
arqueando as sobrancelhas.
— Claro que são.
— A mesma hora de ontem? Não acha isso estranho?
— Então você lembra de ontem? — rebati.
Ele não respondeu, e eu percebi que o havia encurralado.
Moveu o pescoço em direção à direita, onde a praia se alargava,
como se pensasse no próximo movimento.
Era enigmático. Não da maneira que as pessoas gostavam de
fingir que eram.
Reservado e tímido?
Sim, mas malcriado e rebelde, também.
Intenso.
Eu não conseguia lê-lo com a precisão com que frequentemente
lia os outros.
Seria essa a fonte do meu interesse por ele? Será que queria
apenas desvendá-lo? Fazia... sentido. Eu gostava de quebra-
cabeças e enigmas, matematicamente tentando revelar o que se
escondia na superfície. Às vezes levava isso longe demais com as
pessoas; descobrir seus sonhos, as ambições ocultas e as manias
era algo que amava.
Daquela vez, no entanto, não quis apressar o jogo. Se fosse para
ser uma partida de xadrez, melhor que fosse longa; rainhas e reis,
bispos e torres traçando suas estratégias no tempo que precisavam.
— Se sabe que horas são — ele começou, desafiador —, por que
pergunta?
— Não posso contar todos os meus segredos.
— Certo — o menino bufou. — Massa. Posso ajudar em mais
alguma coisa?
Era ironia, mas eu não me importava.
— Na real, tenho outra pergunta importante pra te fazer. — Esperei
que ele comentasse algo. Quando não disse, prossegui: — O que é
esse aparelhozinho na sua mão?
— Um Kindle? — Descrente, o menino balançou a cabeça, como
se sua resposta fosse óbvia. Devolvi seu veneno ficando calado. Ele
continuou: — Você não sabe o que é um Kindle?
— É de comer? — brinquei.
Ele revirou os olhos.
— Pra ler. Um leitor digital.
— Então tem livros aí dentro?
— Ah, para. Você não tá falando sério.
— Não.
— Sabe o que é um Kindle, então?
— Sei.
— E por que perguntou?
Para chatear e te fazer falar comigo.
— Não posso contar todos os meus segredos.
Havia dito algo que o tocara, porque senti que ele me observava
de verdade. Com interesse. Nada daquela presunção de antes.
Seus olhos profundamente castanhos se fixaram nos meus por
alguns segundos. Ele baixou a vista em seguida, apressado, como
se eu o tivesse flagrado em um delito. Focou na tatuagem logo acima
do meu peito: a lua em diferentes fases, um desenho parecido à
capa que protegia seu Kindle.
Acharia a coincidência engraçada?
Na minha mente, o mar e aquelas luas nos conectavam,
apontando: talvez vocês estejam destinados a se conhecer. Talvez
devessem se conhecer.
Ele não deve ter pensado nisso, porque falou:
— Hm... se não se importar, eu tô no meio de uma cena importante
aqui...
— Claro! Pode voltar pro seu livro.
— Tá. Beleza! — Quando viu que não me movia, insistiu: —
Tchau?
— Eu sou Matias, aliás — reforcei e, sem uma gota sequer de
amor próprio, estendi a mão para ele.
Como ontem, o menino só me deixou no vácuo.
Na terceira vez eu poderia pedir música no Fantástico, mas não
havíamos chegado lá ainda.
— Eu sei — ele disse, voltando a atenção para a história
irresistível que lia.
Eu sabia que não seria fácil, mas o progresso era encorajador,
certo? Saímos de duas frases e meia para cinco sentenças
completas, mais que o bastante para um segundo encontro ao
acaso.
Amanhã, se ele estivesse ali de novo, eu aproveitaria a chance.
Sentaria ao seu lado na canga indiana e o conheceria; não levaria
não como resposta.
— Foi bom te ver, menino do Kindle — me despedi, desenterrando
a ponta de Rosalía da areia e o deixando para trás.
Quando já estava a alguns metros de distância, no entanto, sua
voz soou atrás de mim.
— Ei, Matias... — ele falou. Me virei. O vento havia levado o
chapéu de palha para detrás da nuca dele, formando uma espécie de
auréola ao redor da cabeça. O cabelo, fino, escuro e liso, também
fora soprado pela brisa, que o empurrara contra a testa. — Júlio.
Escutei com clareza, mas coloquei a mão na orelha, fingindo que
não o ouvia.
— Quê?! O vento tá forte demais! — disse, escondendo meu maior
sorriso. — Pode repetir?
— É JÚLIO! — ele gritou. — Meu nome é Júlio!
Era mesmo um novo dia.
Xeque-mate.
Três

Na tarde seguinte, ele não estava lá.


Júlio.
O espaço na praia em que sentava jazia estranhamente vazio
sem sua energia misteriosa — a maneira com que o chapéu
enquadrava seu rosto, o colorido da canga estendida na areia
branca, a ecobag e as bochechas queimadas...
Tudo isso fazia falta.
Eu esperei por ele até que o sol desaparecesse ao leste,
escondendo-se atrás das falésias, e as barracas fechassem, as
últimas jangadas voltando a atracar enquanto turistas deixavam
pegadas na iluminação difusa.
Eu podia sentir a decepção, aquele inexplicável sentimento
crescendo em meu peito.
Ainda assim, era simples: eu não conseguia parar de pensar
nele. Cada pensamento me levava de volta a Júlio, em quão seco foi
no primeiro dia e em como consegui extrair mais dele, depois; o
modo como me chamou, tímido, e disse seu nome; a descrença
seguida de chateação quando brinquei sobre o Kindle; a surpresa
quando viu que nos encontramos os dois dias no mesmo horário.
15:15.
No caminho de volta para casa, enquanto marchava com
tristeza pelas ruazinhas de Canoa, imaginava as possibilidades.
Acharíamos mais nessa história para contar? Nossos caminhos
se cruzariam novamente, olhos em choque diante da aparição
repentina do outro?
À medida em que me perguntava tudo isso, percebia que o
mais racional é que Júlio tivesse ido embora. Que tinha feito check-
out onde quer que estivesse, e partido para onde quer que fosse.
Mas, apesar de tudo isso, eu também sentia algo diferente em
meu peito, um tipo de conforto místico.
Sentia que não era a última vez.
Sentia que as luas e o mar que nos conectavam não deixariam
aquela história morrer na praia.
Quatro

Era a minha noite de ficar até tarde na recepção, mas meu pai me
pediu para dar uma mão ao Otávio — o novo voluntário do hostel —
na limpeza das pranchas, enquanto o movimento estava fraco.
Otávio era um cara superengraçado. Aquela era nossa primeira
grande oportunidade para conversar sem a galera do hostel por
perto. Mas eu — pensando obsessivamente em Júlio — não estava
presente. Ele me contou, de qualquer modo, sobre seu tempo em
Pipa e sobre todos os lugares incríveis que conhecia em seu
mochilão pelo Nordeste, que já durava meses.
Eu respondia tudo com “uhuns”, “ahans”, “é verdade” ou
“sério?”.
Em determinado ponto, Otávio não se segurou:
— Meu Deus, eu realmente tô enchendo seu saco, né?
— Não — eu disse, despertando do transe. — Só tô com muita
coisa na cabeça.
Otávio me olhou por cima da prancha cuja leash — a cordinha
que colocamos ao redor do tornozelo — tentava prender sem
sucesso.
— Assuntos do coração? — ele perguntou com um sorriso
enquanto eu o ajudava.
Otávio era bonito. Piauiense, branco, alto e olhos de um
castanho muito claro. Era mais velho que eu, mas não que a
diferença fosse tão grande; tinha 24 anos, enquanto eu nem havia
chegado aos 20.
O jeito com que falava, naquele cantar arrastado do Piauí, era
agradável e inspirava confiança, como faria um terapeuta.
— Tipo isso.
— Alguma menina na jogada?
— Menino — confessei, me sentindo à vontade para contar.
— Ah — ele disse, me passando umas das pranchas. — Quer
falar sobre? Dramas amorosos são a minha especialidade.
Ele me encarou com um sorriso condescendente, como se
fosse um ancião e eu, uma criança.
— Não é nada demais.
— Tem certeza? Porque você passou a noite toda caladão. Não
é como se isso fosse muito comum.
— Ei, eu nem falo tanto assim — protestei.
— Por favor, né? Desde que cheguei no hostel você é a pessoa
que mais vejo falando — Otto apontou com graça. — Se minha avó
te conhecesse, diria que bebeu água de chocalho.
Dei uma risada e Otávio pegou a vassoura, gargalhando
enquanto parecia prestes a me atacar com o cabo.
Entramos em um ritmo silencioso de organização após isso.
Quando ele terminou de varrer o quartinho das pranchas, disse:
— Óh, a gente tá quase acabando aqui. Se quiser voltar pra
recepção, fique à vontade. Eu dou conta.
— Não, tá de boas — respondi. — Vou te fazer companhia.
— Então pega o espanador aí, herdeiro. Não tem corpo mole
aqui, não.
Quando Otto chegou, minha mãe brincou dizendo que eu era o
“herdeiro do hostel” e que deveria ajudá-lo a se sentir em casa.
Desde então, ele não desperdiçava nenhuma oportunidade para
fazer brincar com aquilo.
Eu assenti, calado, e passei a tirar a poeira superficial das
coisas. Ele também não falou mais nada.
Me senti mal.
Queria contar a ele porque Otto seria a única pessoa em todo o
hostel que poderia me entender sem esforço. Ao mesmo tempo, não
pensava em me arriscar. Não o conhecia de verdade e, bem, não
valia a dor de cabeça caso ele saísse por aí dando com a língua nos
dentes.
Ele recolheu o pó com a pá e terminou, batendo palmas.
— Tudo certo por hoje. Estamos livres.
Eu não disse nada, e ele colocou a mão na cintura.
— Olha, saquei que você não é assumido pros seus pais —
Otávio comentou simplesmente. — Se esse é o seu medo, pode ficar
tranquilo. Não vou falar nada pra eles.
— Eu sei. Não é isso — respondi, ainda que fosse, de certo
modo. — Só é meio estúpido.
Ele sorriu.
— Acredite em mim, homens são estúpidos. Nada que você
possa dizer me surpreenderia.
— Uau, senhor experiente.
— 24 anos nas costas, fofo. É claro que sou experiente —
Otávio disse. — Anda. Conta logo. Odeio suspense.
Suspirei.
— Tá. Eu conheci um menino bem lindo na praia,
completamente meu tipo...
— Que tipo? — ele me cortou, as sobrancelhas arqueadas.
— Novinho — eu devolvi, e Otávio colocou a mão no peito. —
Sem ofensas...
— Anotado. Mas só pra constar: eu sou novinho também. 24
anos é MUITO, MUITO jovem. Um dia você vai entender — ele falou,
fechando o armário com as pranchas enquanto eu me escorava na
parede. — Pode continuar.
— E aí que eu vi ele duas vezes na praia. Na primeira ele foi
bem mal-educado e na segunda, após muita enrolação, disse o
nome.
— Então tá dando tudo certo?
— Eu não poderia dizer que tá rolando nada... Porque hoje ele
não estava lá.
— Eita. Acha que ele foi embora?
— É possível.
— E tu não pegou nem o número dele?
— Sei lá, ele era bem reservado...
— Tem certeza de que era gay? — Otávio subitamente
perguntou.
— Ele tava sentado em uma canga indiana e tinha uma ecobag
com as cores do arco-íris — defendi.
— Bom, Matias, nada disso justifica a sexualidade de ninguém
— ele disse, e eu o lancei um olhar vencido. Era verdade. — Mas
qual o problema?
— Problema nenhum.
— Então é isso? Só isso? — Otávio balançou a cabeça,
chocado. — Cara, jurava que tava rolando algo muito mais...
intenso? O que tu acabou de descrever foi só o início de um
clichezinho de verão.
Seria mesmo o que vivera com Júlio aquilo? Só o início de um
clichezinho de verão?
Eu não queria apenas o "início". Queria a história completa na
minha mesa, pra já.
— Falei que era estúpido.
Ele se sentou na bancada de madeira que eu tinha acabado de
limpar.
— A tristeza de uma decepção só dura o tempo em que você
se mantém apegado a ela — disse, sério, o espaço entre as
sobrancelhas formando uma forte linha de expressão.
— O que isso tem a ver com a situação?
Ele riu.
— Nada, não. Eu só tava com essa frase na cabeça há um
tempo e seria muito idiota se perdesse a oportunidade de falar pra
alguém. Você foi minha cobaia.
— De nada?
— GRACIAS — Otávio falou. — E aí? Tem algo mais que eu
possa fazer pra te ajudar? Precisa que eu cheque pra ver se ele tá
online no Grindr passando o rodo em Canoa? Porque isso acontece
mais frequentemente do que você imagina.
— Eu não acho que ele faça muito o perfil de quem estaria no
Grindr.
Otávio deu um empurrão no meu braço.
— Eu faço o “perfil” de quem estaria no Grindr?
— Faz.
— É? Não sei se isso é uma ofensa, mas agora é questão de
honra mostrar que esse menino vai estar a alguns metros da gente
com o nome NOVINHO QUER CURTIÇÃO e a barriguinha à mostra.
— Otávio tirou o celular do bolso. — Aposta quanto?
— Todos os turnos de limpeza do banheiro coletivo por uma
semana.
Ele nem titubeou.
— Essa é uma aposta cruel, mas considerando que sairei
vencendo, eu topo. Me aguarde.
Confiante, Otávio abriu o aplicativo e seis notificações com o
som característico do Grindr apitaram uma atrás da outra. A foto de
perfil o mostrava em uma pose animada atrás do símbolo de Canoa
Quebrada (a lua nova envolvendo uma estrela) cravado na falésia
laranja. Vestia uma sunguinha branca e posava ao lado de uma das
nossas pranchas de surf. Seu nickname era composto de sugestivas
ervinhas, o emoji formando o número dois com os dedos e “4:20”.
— Mas tu nem surfa! — protestei, rindo.
— Detalhes, meu caro Watson. Apenas uma mera questão de
estética e estatísticas.
— Como assim?
— Bom, desde que coloquei essa foto fingindo que sou surfista
— ele comentou com seriedade —, o número de biscoitos que recebi
aumentou exponencialmente em 300%. Essa é a combinação mais
fácil pra se ganhar admiradores no Grindr, Matias: erva e surf. Dá
bom sempre.
— Você não presta, Otto.
— Fale isso pros trinta biscoitos que eu recebi, pô!
Passamos uns cinco minutos procurando por Júlio. Felizmente,
nem sinal dele no Grindr. Otávio me pediu uma descrição completa
do menino, convencido de que o acharia. Visitou todos os perfis
disponíveis, fazendo comentários como “tem certeza de que ele não
é esse aqui?” até para as pessoas sem foto. “Casal com Local”,
“Leke 22cm a fim”, “Coroa Discreto” e “Pauzudo Passivo”
definitivamente não eram quem procurava. Eu não conseguia parar
de rir com ele, que tinha uma piada mais absurda que a outra na
manga.
Finalmente, resignado, Otávio reconheceu a derrota.
— Uma semana lavando o banheiro social? — Ele suspirou. —
Não pode ser quatro dias, pelo menos?
— Não. A gente combinou uma semana.
— Tá — ele se levantou, guardando o celular no bolso —, mas
eu vou continuar de olho no Grindr. Se o Júlio aparecer, o trato tá
desfeito.
— Fechado. Mas ele não vai.
— Ai, ai, Matias, você é muito santinho. Qual seu problema
com o Grindr?
— Não acho que vou encontrar o amor da minha vida em um
app de pegação.
— Eu encontrei meu ex-namorado em um app de pegação,
sabia?
— Quanto tempo vocês ficaram juntos? — perguntei por força
do hábito. Era um dado importante, de qualquer forma.
— Bem... — Otávio fez as contas, desligando as luzes do
quarto. — Dois meses.
— É disso que tô falando! Eu não quero um relacionamento de
dois meses. Quero alguém pra minha vida toda.
— Não tem nem idade de gente e tá pensando em alguém pra
vida toda, Matias? Calma aí, né?
Eu estava certo o bastante sobre o meu romantismo para não
precisar prová-lo a ninguém, então mudei o fluxo da conversa.
— E como era esse ex do Grindr?
— Uma fofura — Otávio respondeu. — Pena que queria me
levar em uma orgia pagã na praia e eu disse não, que foi a razão
pela qual a gente acabou. Poxa, sabe? Nada contra Dionísio, mas eu
não tava a fim de vinho!
Ri alto outra vez. O quarto das pranchas ficava no lado externo
do hostel e a partir dali tomaríamos caminhos opostos.
— Muito obrigado pela ajuda, Otto.
— De nada — ele disse em espanhol. — Estoy muy feliz en
ayuardarte. Qualquer problema amoroso que tiver, pode contar
comigo, viu?
— Vale! Gracias — eu agradeci. — Ah, e por favor... Não conta
pra ninguém dessa conversa, ok?
Quando você passa tanto tempo se escondendo, esconder se
torna parte de você. Um mecanismo de defesa que não sabemos
desativar quando necessário. Eu sabia que não precisava agir assim,
mas quando é tudo que conhecemos...
Otávio colou a ponta do polegar com o indicador e passou os
dedos pelos lábios, como se fechasse um zíper.
— Boquita cerrada, chico español — ele falou em um forte
sotaque cearense. — Seu segredo está guardado.
Cinco

Mas, na manhã seguinte à minha conversa com Otávio, acordei


com a impressão de que todo o hostel sabia sobre Júlio.
Não era uma hipótese infundada.
Os demais voluntários com quem topei a caminho do café me
recepcionaram com risadinhas abafadas e uma condescendência
estranha. Como não funciono bem logo cedo, me expressei através
de uma cara confusa enquanto tentava ignorá-los. Ainda assim, me
sentia como o alvo de uma fofoca chegando ao local onde todos
tinham conhecimento dela, menos o principal envolvido.
Meus pais terem viajado para fazer compras em Fortaleza era a
única coisa me impedindo de ser arrancado do armário,
aparentemente. Os dois tinham me colocado na gerência até depois
do almoço (começaram a me passar mais responsabilidades
administrativas desde que anunciei meu desejo de ficar no Brasil o
restante do ano e não fazer faculdade), e encontrei alguns hóspedes
e funcionários juntos à grande mesa de madeira no terraço.
Era uma área coberta e muito bonita, com plantas em vasos
suspensos e um pé de maracujá que havia se alastrado por todo o
parapeito. Tínhamos uma vista incrível do mar e das dunas de
Canoa, os cata-ventos da eólica girando ao longe. Duas palmeiras
ficavam em lados opostos da mesa, em frente a um coloridíssimo
mural psicodélico que demarcava bem a estética do hostel.
Otávio — ou uma versão dele sobrevivente a um apocalipse
zumbi — estava ali, todo olheiras e caretas. Era o responsável por
servir o café da manhã naquele sábado. Apesar da ressaca e de
claramente não ter dormido nada, ao menos não tinha furado com a
gente, o que rendia alguns pontos importantes a ele.
Usava óculos de sol exagerados que tampavam as
sobrancelhas e uma camisa branca com os dizeres do you believe in
life after o boy escroto te arrasa, mana?. O visual era apropriado
para alguém que aparentava ter passado a noite toda na farra.
— Preciso falar com você — anunciei para um Otto agarrado
em uma xícara de café.
— Bom dia pra você também, herdeirinho — ele falou com a
voz rouca, se espreguiçando. — Antes de tudo, devo dizer que,
embora o que acontece em Canoa fique em Canoa, postei a nude no
meu story sem querer, tá? Agi o mais rápido que pude e apaguei
quando vi. Prometo que não vai manchar a reputação do hostel nem
nada.
— Do que você tá falando? — estreitei os olhos, confuso.
Otávio se empertigou.
— Tu não veio falar comigo sobre a nude que acidentalmente
foi parar no Insta? — ele perguntou, surpreso, e eu neguei. — Ai,
nossa, ufa. Menos mal. Que alívio.
— Como é que foi isso, Otto?
— Bom, anjo, você não vai acreditar. Fui mandar essa foto pra
um crush no direct, né? Mas aí acabei me atrapalhando nos botões.
Tava bêbado, não percebi, enfim... Acordei com minha mãe morta de
preocupada ligando e perguntando se tinham me hackeado. Me
hackeado!!! — Otto suspirou. — Cem pessoas, inclusive minha ex-
chefe, me viram pelado. Tem noção?
Sentei ao seu lado.
— Caramba! Sinto muito pelo ocorrido, de verdade. — Dei
tapinhas solidárias em suas costas.
— Não desejo isso nem pro meu maior inimigo.
— Era uma foto boa, pelo menos?
— Claro. E eu lá tenho nude ruim, Matias? — ele disse de
modo afetado, dando uma colherada cheia no cuscuz com ovo.
Como que eu ia saber?
— Deixa eu te perguntar uma coisa — baixei a voz.
— Que foi?
— Você falou pra alguém sobre o Júlio?
— Who?
— Júlio, Otto! O menino que te contei ontem.
— AH! — Ele coçou a cabeça. — Não?
— Tô falando sério...
— Eu também! Não disse nada a ninguém do Júlio, fica
tranquilo. — Aí ele parou de mastigar e pôs a mão no queixo. —
Quer dizer... Médio.
— Médio? O que significa “médio”?
Ele gaguejou.
— Bom, talvez eu tenha comentado com a Lila que você tava a
fim de alguém...
— Lila? A voluntária chilena que chegou ontem?
— Sim. — Otávio passou o braço ao redor dos meus ombros e
aproximou a boca da minha orelha, sussurrando: — Ela te curtiu e
perguntou se você namorava. Disse que não, mas que havia um
interesse romântico na jogada e tal.
Ergui a vista. Falando nela, Lila estava se servindo junto à
mesinha onde disponibilizávamos o café. Era uma menina bonita e
simpática, com trança nagô e pele negra. Em outras circunstâncias,
algo facilmente poderia rolar entre nós, mas não quando eu estava
arriado com os quatro pneus por Júlio.
Ela acenou para Otávio e eu ao nos ver conversando, e se
sentou junto com um grupo de hóspedes.
— E isso é só?
— Absolutamente.
Ok... Menos mal.
Mas ainda havia uma coisa que não entrava na minha cabeça.
— E por que tá todo mundo me olhando esquisito?
Otávio reclinou dramaticamente os óculos por cima do nariz.
— Talvez você devesse prestar mais atenção antes de sair do
banheiro, Matias. Tem um pedaço de papel higiênico enorme
pregado no seu chinelo. É por isso.
Seis

Já passava das duas e meia da tarde quando consegui me livrar


da recepção. Foi o tempo de me jogar no chuveiro antes de começar
a correr rumo à praia. Saí tão apressado do hostel que nem lembrei
de botar uma camisa.
Do lado de fora, o movimento era de alta estação. Motoristas
de buggy tentavam conseguir os últimos clientes da tarde, e os que
estavam ocupados levavam turistas animados para os passeios nas
dunas. Desci com pressa o caminho dentro das falésias, a respiração
ofegante.
A chance de que Júlio não estivesse lá após o fiasco da
procura no dia anterior era alta, mas tentei me manter confiante. Hoje
seria a prova de fogo. Se não o encontrasse, aceitaria que não era
para ser.
Quando enfim cheguei à praia, eu o vi.
Ele estava lá.
Meu coração disparava e eu corria, mas ele estava lá: no
mesmo lugar em que o vi pela primeira vez.
O largo chapéu protegendo seu rosto.
O colar com o quartzo rosa ao redor do pescoço.
A canga indiana tremulando com o vento.
O Kindle em suas mãos, qualquer que fosse o livro que lesse.
Ele tinha ido embora alguma vez? Não parecia. Era como se
fizesse parte daquela paisagem; um monumento, uma estátua.
Exceto que não era estático. Respirava, se movia, e era real. Havia
pensamentos em sua mente, ideias e sonhos que eu não distinguia,
que não podia acessar. Mas algo não deixa de existir apenas porque
o desconhecemos.
Senti o alívio invadindo meu corpo. Minhas células estavam
esperando apenas pela visão dele, aparentemente, para sentir
aquele relaxamento engraçado, quase caótico.
Parei a uma distância segura. Toda a confiança que senti das
últimas vezes evaporou. A praia estava muito mais lotada e as
pessoas serviam de distração para o meu nervosismo. Perto de mim,
uma jangada azul com as velas abertas atracava na areia e duas
crianças jogavam futebol, ocasionalmente parando para dar
estrelinhas desengonçadas.
Júlio tinha algo de sereno ao seu redor que o fazia se
diferenciar dos demais. Estava tão alheio que tampouco conseguiu
se preparar para o desastre iminente, erguendo-se no mar à
espreita.
— JÚLIO! CUIDADO! — eu ainda gritei, mas era tarde demais.
Quando ele olhou para mim, um meio-sorriso lindo crescendo em
seus lábios, a onda o atingiu.
Não era a primeira vez que eu via aquilo acontecer com
alguém. Canoa Quebrada podia ser imprevisível quando queria. Era
uma típica onda malvada que servia de prenúncio à maré cheia;
ainda demoraria um pouco até que a água chegasse ao pico, mas
sempre havia uma onda mensageira enviada para sondar o terreno e
pegar turistas desavisados.
O azar dele é que tinha sido uma especialmente forte. A onda o
devorou sem pena, cruel como a boca de uma baleia faminta. Sua
primeira reação foi dar um pulo. A segunda, pegar o Kindle e o
arremessar em direção à areia seca atrás de si. O mar molhou o
short azul e a bainha da regata com listras de marinheiro, arrastando
consigo a canga indiana e a ecobag.
Já a sorte de Júlio é que eu estava perto e corri em seu
resgate. Consegui recuperar a ecobag enquanto ele salvava a canga
e um par de havaianas boiando na água.
— Merda, merda, merda — Júlio não parava de praguejar. Era
como se eu nem existisse para ele, que foi tomando a ecobag da
minha mão sem pestanejar. De lá, tirou um celular todo molhado e
coberto de areia. Deu um suspiro seguido de um gritinho,
vociferando o tempo todo.
Coitado.
— Poxa, sinto muito. É a prova d’água? — perguntei a primeira
coisa que me veio à cabeça. Não sabia o que dizer naquelas
circunstâncias, e decididamente não foi a melhor escolha de
palavras: Júlio me fulminou. O chapéu tinha caído para detrás de sua
cabeça durante a confusão, mantendo-se firme no corpo dele apenas
por conta do elástico que pressionava seu pescoço. Os cabelos
pretos estavam arrepiados e percebi o que não notei antes; um
piercing na orelha contrária àquela com o alargador.
— Não, não é a prova d’água.
— Ainda tá funcionando?
No lugar de me responder, Júlio tentava ligar, sem sucesso, o
celular. Pressionou o botão por longos trinta segundos e então soltou
junto com a respiração que havia prendido.
— Porra, que inferno. Não tá pegando.
— Vai voltar a funcionar depois que você deixar algumas horas
com arroz. Uma vez eu derrubei meu celular dentro de um vaso
sanitário e ele prestou — tentei confortá-lo. — Mas juro que o vaso
não estava sujo. Eu tinha acabado de lavar o banheiro. Tava
limpinho...
Júlio pôs o dedo em riste, erguendo-o à altura do meu rosto.
— Isso tudo é culpa sua!
— Peraí um minuto! CULPA MINHA?
— SIM! Se você não tivesse gritado, eu teria visto a onda.
— Cara, não é justo! Você estava distraído com a leitura —
repliquei. — Com ou sem minha presença isso teria rolado.
— Não teria nada — ele rebateu, balançando a cabeça em uma
negativa furiosa e me dando as costas.
— Mal-agradecido — eu disse alto o suficiente para que me
ouvisse. Se ouviu, resolveu não discutir.
Era tão engraçado testemunhar sua irritação. Juro. Talvez eu
fosse sadomasoquista ou algo assim, porque nada como um menino
bonito como Júlio — todo briguento e cheio de marra — para me
fazer tremer na base.
O melhor é que ele agia como um pitbull feroz quando era
claramente um poodle. O poodle mais fofo em quilômetros, chutando
a areia como se fosse uma inimiga mortal.
A falésia se erguia magnânima à nossa frente. Fazia calor
demais, o sol das três da tarde nos fritando. Para alguém tão branco,
Júlio escolhia horários muito inapropriados para ir à praia.
Eu o segui conforme fez uma parada para recuperar o Kindle
soterrado na areia.
— Também não é à prova d’água? — eu fiz questão de
implicar, só de mal.
Ele bateu o pé com força, me ignorando outra vez. O Kindle
continuava funcionando, felizmente; a tela estava apenas cheia de
grãos clarinhos, e parte deles despencaram quando Júlio levantou o
aparelho.
Depois, ainda xingando, ele andou até a jangada azul e
espalhou seus pertences na madeira enxuta.
Como eu amava confusão, disse:
— Sabe, se não fosse por mim seu celular seria comida de
camarão agora.
— Ainda tá aqui? — Júlio rebateu com impaciência. Tentava
tirar a areia do celular com a parte enxuta da camiseta, soprando-o
em vão.
— Mesmo você sendo um ingrato — falei —, continuo
querendo te ajudar.
— Por quê?
— Porque sou uma pessoa solidária.
— E?
— Também porque gosto de você.
Aquilo o pegou de surpresa.
Momentaneamente desarmado, Júlio virou o rosto de leve para
mim. De perfil, seu nariz era fino e afilado como um escorregador
exageradamente simétrico. Os óculos de grau que usava refletiam
um fiozinho de luz, e ele me encarou com o canto do olho, a boca
entreaberta. Logo recuperou a pose impassível de soldado medieval,
armadura posta à frente em defesa.
— Não gosta, não.
— Claro que gosto. Você é lindo.
— Até parece — Júlio murmurou, incerto. Respirou fundo e
revirou os olhos de uma maneira muito engraçada. E ali, se
escondendo atrás de tanta fachada, o vi sorrir.
Era um sorriso pequeno, praticamente inexistente, como a lua
nova. Ainda assim, inegável.
Era isso.
Eu disse que gostava dele, e ele sorriu.
— Quer ajudar? — Júlio cedeu. Eu assenti. — Então óh, vai
tirando a areia das minhas coisas, pode ser? E por favor...
— O quê?
— Fica calado.
Eu juntei as pernas, alonguei a coluna e fingi uma continência:
— Seu desejo é uma ordem, Capitão!
Por dentro, estava explodindo de felicidade. Afinal, o mar queria
tanto nos juntar que até mandou uma pequena onda assassina para
acelerar o processo.
Agradeça seu pai por mim, Percy Jackson!
Sete

Provando ser um cavalheiro atencioso e amigável, fiz exatamente


o que Júlio pediu.
Durante dez angustiantes minutos bati meu recorde pessoal de
silêncio. Foi um martírio e tanto ficar de boca fechada. Otávio estava
certo quanto a isso. Exceto por raríssimos instantes de
contemplação, eu não parava de falar.
Chacoalhei a canga, tentando ao máximo tirar a areia, e a
estendi sobre a jangada. Fiz o mesmo com a ecobag. O calor só
aumentava, e a sombra encurtada da falésia se derramando sobre
nós era a única coisa que nos impedia de virar peixe assado.
Júlio passou aquele tempo todo fazendo um inventário
cuidadoso do estrago causado pela onda. Parou de xingar lá no
minuto cinco, quando se deu por vencido; o celular, afinal, não ligou
após várias tentativas frustradas.
O pior de tudo foi descobrir que andava com a carteira no
bolso. Sua identidade molhou um pouco; agora secava ao sol ao
lado de dois cartões de crédito e uma nota velha de vinte reais. Não
pude deixar de reparar que a impressão era nova. O verde reluzia e
não tinha nada da textura desgastada da maior parte dos
documentos de identidade.
Em determinado ponto, quando ele estava distraído, inclinei a
cabeça para observar a fotografia que deixara virada para cima. Júlio
Andrade Lima sorria alegremente para a câmera, como se estivesse
adorando ser fotografado. A expressão era a de alguém tirando a
foto da sua vida; não uma 3 por 4.
Ele me pegou fuçando, porém, e eu desviei o rosto, tentando
disfarçar.
A verdade é que tinha muitas perguntas para Júlio. Uma lista
enorme delas, para ser exato.
Para começar, qual era sua idade?
De onde ele era?
Qual seu signo?
Namorava?
Me achava um chato/metido?
Por que não entrava na água nunca?
Que livro estava lendo?
E, mais importante ainda, até quando ficaria em Canoa?
Quando ele enfim sentou ao meu lado na jangada, seus pés
cavando e formando um montinho de areia no chão, me surpreendeu
ao falar primeiro.
— Desculpe ter sido tão grosso contigo. — Sua voz era amável
e franca agora, sem nada da raiva que a preencheu antes.
— Tudo bem. Acontece.
Ele franziu a testa.
— Nenhuma gracinha?
— Dessa vez, não. Queria respeitar sua dor. — Mentira.
Pensei, sim, em fazer uma piada, mas decidi que era melhor mostrar
outro lado meu, para variar.
— Obrigado por ter ajudado, de verdade. Não precisava.
— Tô recebendo o devido reconhecimento por meu bravo ato
de compaixão?
— É — ele disse baixinho. Tinha feito questão de manter um
seguro palmo de distância entre nossos joelhos; distância que eu
estava doido para quebrar. — Meu Deus, eu sou um ogro.
— O mais gato que já vi.
— Você não se aguenta, né? — Júlio deu um soquinho no meu
braço. Era nosso primeiro toque deliberado.
— Não, desculpa. É que sou viciado em paquerar.
— Então faz isso com todo mundo?
— Somente com quem cativa meu coração.
Isso o deixou desconcertado. Eu não sabia dizer se a
vermelhidão em suas bochechas era devido à vergonha ou ao sol.
Provavelmente ambos.
— De onde saiu aquela onda? — Júlio desviou o assunto.
— É bem comum por aqui.
— Foi tão do nada.
— Quando a maré começa a encher, uma dessas aparece meio
que pra testar o estrago — expliquei.
— E o estrago fui eu.
— Você.
Olhei para o mar. A água era de um verde esmeralda intenso,
com pedaços de azul onde as nuvens formavam sombras. As pipas
dos kitesurfistas e as velas dos parapentes cortavam o céu como
asas de borboletas multicoloridas, e um grupo de surfistas disputava
as recém-crescidas ondas.
Com a visão periférica, percebi que Júlio estava me encarando.
Ele não era nada discreto. Quando virei, rapidamente moveu o rosto
na direção da praia.
— Então, hm, sem surf hoje? — ele perguntou, me evitando.
— Decidi tirar uma folga.
— Enjoou?
— Isso nunca. É que tinha outra coisa em mente — falei,
fazendo questão de manter a vista fixa nele para reforçar o meu
ponto.
Júlio engoliu em seco.
Podia ficar mais lindo? Timidez combinava com ele.
— Qual é a história da sua prancha rosa?
— A Rosalía?
Ele riu.
— E por que esse nome? Você é fã da Rosalía ou algo assim?
— Na verdade, foi uma brincadeira do meu irmão mais velho.
Ele me pegou escutando a Rosalía um montão de vezes e me deu a
prancha de presente quando fiz 18 anos. Queria implicar comigo,
mas eu amei. Rosa choque. Detalhes dourados — contei. —
Totalmente a minha cara.
— Imagino que você seja a sensação da praia, né?
— O quê? — Ri. — Com toda certeza. O melhor é quando as
pessoas chegam perto de mim e dizem: “LA ROSALÍAAAA”. Aí eu
não me aguento e caio na risada. Infalível.
Era inédito ouvi-lo gargalhar. Sua risada era alta e gostosa,
ainda que um pouco contida, como se não quisesse se soltar
demais. Resolvi que, custasse o que custasse, iria ouvir aquela
risada outras vezes. Muitas delas.
— Você mora aqui? — ele me perguntou. Estava decidido a
assumir o controle da conversa após todos os foras que me deu,
aparentemente.
— Parte do ano, pelo menos.
— E a outra?
— Em Fomenteira, na Espanha. A família da minha mãe é de
lá. Todo inverno a gente vem pro Brasil — expliquei. — Escapar do
frio, renovar os ares... Essas coisas.
— Ah, bacana. E como você faz com a escola?
— Fazia. Terminei ano retrasado. Meus pais tinham um acordo
especial com a direção. As aulas eram presenciais quando eu estava
na Espanha e remotas aqui.
— Funcionava?
— Terminei os estudos direitinho, então acho que sim —
zombei.
— Mas peraí. Como que você é espanhol e não tem sotaque?
— Meio espanhol.
— Mesmo assim.
— Realmente acha que não tenho?
— Não. Achei que você fosse daqui.
A história era muito mais complexa do que "meramente" não ter
sotaque, mas não a contaria agora para Júlio.
Eu não gostava de me sentir espanhol de menos na Espanha,
nem brasileiro de menos quando no Brasil. Me esforçava para
camuflar o sotaque. “Falar como um nativo” foi meu objetivo supremo
na puberdade. Havia aperfeiçoado ao máximo aquela arte.
— É porque você não me viu estressado. Fico gritando coisas
como “Díos mio, la puta madre, que hóstia, tio” sem parar. É
péssimo.
Fiz minha melhor performance espanhola possível para Júlio,
que voltou a rir a plenos pulmões.
— E você? — eu perguntei quando paramos de rir. — Só
turistando?
— Mais ou menos. Minha mãe alugou uma casa de veraneio
aqui. Cheguei semana passada.
— Tá gostando?
— Até a parte em que o mar comeu minhas coisas — brincou.
— Tirando isso, sim. Canoa é linda demais. Eu amo.
— Foi em algum luau depois que chegou?
— Ainda não. A gente veio no último sábado e eu tava bem
cansado. Não saí de casa à noite.
— Olha, conselho de nativo: vir à Canoa e não ir a um reggae é
o mesmo que nada, um crime. A Freedom tem as melhoras festas.
— Freedom?
— Aquela barraca ali. — Apontei para a nossa esquerda.
Júlio colocou a cabeça por cima do ombro para ver melhor. A
Freedom era a única barraca que abria à noite na praia. Dona das
festas mais legais, era feita de madeira, a parte inferior parecendo a
base de uma casa de palafitas.
O lugar era todo pintado com as cores do reggae. Bandeiras do
Brasil e da Jamaica tremulavam ao vento numa paleta que chamava
imediatamente atenção dos turistas. Na prática, era difícil passar em
frente sem ouvir Natiruts cantando alguma coisa.
— Ah, tá. Você tá falando da chaminé — Júlio comentou.
— Como assim?
— É só que sempre que eu passo por lá o lugar está em
chamas, muita fumaça, se é que você me entende.
Então ele tinha senso de humor, afinal de contas.
— O nome não é “freedom” à toa. Legalizaram a maconha aqui
e esqueceram de avisar pro restante do Brasil. — Outra gargalhada.
Respirei fundo e tomei coragem de perguntar: — Você topa ir na
Freedom comigo hoje? Não tem luau, mas pensei que...
— Desculpa, não posso. Tô indo amanhã em Natal visitar
minha avó. Volto na próxima quinta.
— Entendi. Que pena.
E era uma pena de verdade. Queria muito levá-lo para sair
comigo.
— Mas que tal se a gente combinar algo pro início da noite? —
Júlio propôs subitamente ao me perceber murchar.
— Sério? — me animei. — Não vai te atrapalhar?
— Não se for cedo e você prometer não me arrastar pra
Freedom depois — ele disse. Era impressão minha ou o palmo de
distância entre nossas pernas havia reduzido? As peles não se
esbarravam, mas eu podia sentir nossos pelos batendo. Droga.
Queria tocá-lo. Muito.
— Prometo.
— Legal — Júlio concordou, aparentemente se esforçando para
continuar sério. — Um açaí de agradecimento?
— Acho ótimo.
Então tínhamos um encontro marcado?
Uau.
Isso era surpreendente.
— Como a gente faz? — perguntei. — Porque seu celular tá
indisponível agora.
— “Indisponível” — Júlio bufou e desenhou aspas imaginárias
com os dedos. — Pensei da gente se encontrar na frente da
capelinha. Às sete?
— Perfeito. Então acho melhor eu ir indo. Tenho que ajeitar
umas coisas e botar uma roupa ainda.
— E você tem roupa em casa?
— Claro que sim!
— Achei que suas camisas tivessem sido devoradas por um
cachorro faminto.
— Não, não. Sou só surfista mesmo. Andar sem camisa faz
parte da aesthetic.
Júlio balançou a cabeça, achando graça.
Aí eu me levantei, ele se levantou e ficamos ambos em um
impasse. Será que deveríamos nos abraçar? Tentei encontrar no
rosto dele alguma indicação disso, mas não descobri nenhuma.
— Vai subir também?
— Não agora — Júlio respondeu. — Vou continuar aqui mais
um pouco.
— Lendo?
— E esperando as coisas secarem também.
— Mais tarde tem que me contar que livro bom é esse.
— Conto o que você quiser saber.
Não desviou a mirada ao dizer isso e a luz brincou com um
efeito sutil em seus olhos. De repente, pude ver com clareza a
intensidade deles; o marrom-claro das íris brilhando. Eram lindos.
— Então tchau? — Hesitei, corando. Era eu quem não conseguia
manter o olhar dele agora, e Júlio parecia satisfeito em me vencer no
meu próprio jogo.
Estendi a mão e, apesar de todas as suspeitas, Júlio não a
ignorou. Seus dedos apertaram os meus e um sorriso explodiu sem
disfarce em mim.
Não importava que visse meu contentamento.
— Até mais, Matías.
— Até já, guapo.
Se o professor Xavier lesse agora meus pensamentos, era isso
que ouviria: Júlio lembrou o meu nome. Apertou a minha mão. E me
chamou para tomar um açaí mais tarde.
Não ia ter música no Fantástico coisíssima nenhuma.
Fui embora da praia me sentindo como se tivesse ganhado uma
medalha olímpica. De ouro!
Oito

As sete horas de Júlio logo se transformaram em sete e dez.


Depois, sete e quinze.
E, finalmente, sete e quarenta.
Eu não fazia ideia de por que continuava ali. Deveria ir embora.
Vinte minutos de atraso ainda era tolerável, mas quarenta?!
Honestamente, por mais que me esforçasse, não encontrava a
menor lógica. Júlio não poderia lançar mão da desculpa do trânsito
em Canoa, tão pequena que podia ser caminhada a pé. Além disso,
ele me pareceu metódico demais para não chegar ao lugar
combinado na hora certa.
Claro que alguma emergência poderia ter impedido que ele
viesse, mas não conseguia tirar da cabeça que simplesmente tinha
desistido.
O desânimo tomava conta do meu estado de espírito.
E se ele não vier mesmo?
E se não for só um atraso?
Eu não parava de mexer as pernas, angustiado; a qualquer
momento uma fenda dividiria em dois o calçamento da Igreja de São
Pedro e me levaria ao inferno em um só impulso final.
Sem nada para fazer, observei a igreja. Era uma construção
simples, mas centenária. Delimitava a separação entre a parte mais
urbana de Canoa Quebrada e o restante da comunidade; dali em
diante não haveria calçamento, e a Vila dos Estevãos, formada
sobretudo pela família dos pescadores, se afastava do agito do
restante do lugar. As paredes eram pintadas de branco, com o
padrão quebrado por linhas azuis que emolduravam as arestas.
O céu estava estrelado. Era noite de lua crescente. Próxima
semana ela estaria cheia e fogueiras seriam armadas na praia.
Apertei a tela do celular novamente.
19:42.
Balancei a cabeça, irritado.
Estava prestes a ir embora quando, justo no último segundo,
senti uma mão tocar meu ombro.
— Caramba, Matias, mil desculpas! — um Júlio ofegante,
suado e preocupado suplicou.
— Oi — eu respondi secamente.
— Tô muito atrasado, né?
— Quarenta e três minutos, pra ser exato.
— Sou péssimo, eu sei, eu sei... — Júlio falou. Estava feliz que
havia resolvido aparecer? Evidentemente! Mas isso não apagava o
tempo em que fiquei sozinho fazendo papel de trouxa na capelinha,
cinquenta Avé Marias depois. — É agora que você começa a me
xingar em espanhol? Porque seria justo, sabe, considerando que te
deixei na mão por quase uma hora.
Era o comentário perfeito que salvava nossa noite.
Não consegui não esboçar um sorrisinho.
— Gilipollas — murmurei.
Mas “gilipollas” não era a palavra adequada. “Lindo”, por outro
lado, combinava com ele.
A luz laranja da rua iluminou as feições de Júlio. Pareciam
muito mais vívidas aqui, quase afogueadas, a forma angular da
mandíbula se destacando. Usava uma camisa cinza larga, uma
bermuda jeans que ia até os joelhos e as havaianas brancas que
salvamos da onda mais cedo.
— Ei! Já escutei essa palavra em Elite antes. Não vale me
chamar de idiota — ele riu, endireitando os óculos no rosto. — Mas
beleza. Mereço.
Olhamos um para o outro em silêncio por um tempo. Júlio
estava um pouco ansioso, tentando preencher a lacuna dos quarenta
e poucos minutos em que me deixou sozinho com humor.
Resolvi perguntar o motivo do atraso.
— Aconteceu alguma coisa contigo?
Ele suspirou.
— Na verdade, minha mãe aconteceu.
— Sua mãe? Tá tudo bem com ela?
— Tá, tá tudo bem, sim. É que meu celular não voltou a prestar.
— Eita, sério?
— Não ainda. — Encolheu os ombros. — Está no arroz, como
você sugeriu. Por isso pedi à minha mãe que avisasse quando fosse
a hora certa, mas ela tá maratonando os DVDs de Sex and The City
que têm na casa. E esqueceu.
— Sua mãe vê Sex and The City?
Não muito tempo atrás, eu também fiquei fascinado com a série
da HBO. Assisti as seis temporadas em menos de um mês, sem
conseguir parar de acompanhar as loucas aventuras de Sarah
Jessica Parker, Kim Cattrall, Cynthia Nixon e Kristin Davis em Nova
Iorque. Se alguém entendia a razão pelo qual a mãe de Júlio se
distraíra tanto, esse alguém era eu.
— Ela tá completamente viciada. Não para de falar que é uma
mistura de Charlotte e Miranda, seja lá o que isso signifique — Júlio
comentou, e eu pensei em dizer que, talvez, fosse controladora,
rígida e romântica em suas relações.
— Eu sou um pouco mais parecido com a Carrie — disse, mas
Júlio se calou. Estava me observando, ausente da conversa, e notei
quando seus olhos se arregalaram.
— Uau. Nossa. Você está...
— Lindo? — completei antes que ele terminasse a frase.
— Ia dizer muito arrumado, mas bastante bonito também e... —
Júlio gaguejava mesmo? — Eu tô sem entender. Achei que a gente
tivesse combinado de tomar um açaí.
— Foi exatamente o que combinamos.
— Mas por que você tá vestido como se fosse me levar em um
jantar romântico?
— Bom — falei, abrindo um sorriso galante —, esse é o plano.
A boca dele se abriu.
— O quê?
— Anda, a gente não tem muito tempo pra perguntas. Seu
atraso acabou nos deixando com um prazo apertado.
— Apertado pra quê? — Arqueou as sobrancelhas.
— Vai ter que confiar em mim para descobrir. — Segurei sua
mão e o arrastei comigo antes que pudesse questionar.
Nove

— Se soubesse que você ia me levar pra jantar em um


restaurante italiano chique, Matias — Júlio sussurrou no meu ouvido
à medida em que o recepcionista confirmava nossos nomes na lista
—, teria pelo menos calçado um sapato.
— Gosto de você assim. — Minha mão estava apoiada na base
de sua coluna, logo acima da bunda. Pensei que Júlio a afastaria
dali, mas não demonstrou se incomodar.
— Só é estranho que você esteja todo engomadinho enquanto
tô parecendo um turista sem noção.
— Você é um turista. — E eu estava mesmo “todo
engomadinho”. Vestia uma camisa de botões com as mangas
dobradas e uma calça jeans. Meu propósito naquela noite era que
Júlio visse uma versão completamente coberta de mim. — Mas não
sem noção.
— Estou prestes a entrar em um restaurante italiano com um
menino que acabei de conhecer na praia — debochou. — Talvez eu
seja um pouco sem noção, sim.
— Sem noção ou sortudo?
Júlio estendeu a língua, brincalhão.
— Foi uma reserva de última hora, senhor? — o recepcionista
indagou seriamente, pigarreando. — Seu nome não consta no meu
arquivo.
— É Mendonza — soletrei, começando a ficar um pouco
nervoso. Não queria passar vergonha na frente de Júlio após todo o
esforço para conseguir levá-lo ali.
O homem balançou a cabeça, assentindo. Segurou firmemente
a prancheta de madeira em sua mão, a ponta do indicador cruzando
a página. Virou uma folha e chegou ao fim da lista.
— Sinto muito, senhor Mendonza, mas não encontro. E
estamos completamente cheios hoje...
— Deve haver algum engano.
— Senhor, realmente não vejo como poderia ajudá-lo...
Júlio apertou minha mão.
— Ei, tá tudo bem. A gente pode ir em outro lugar, sério.
Neguei. Olhei para o recepcionista com minha melhor cara de
adulto (o que era difícil). Havia um cartão com o nome dele afivelado
em seu peito. Se chamava Tázio. Trabalhando com o atendimento ao
público desde sempre, preferi uma abordagem mais pessoal.
— Tázio, Alessandro me disse que...
— Alessandro Borrelli? — o recepcionista falou o nome italiano
com um escorregadio sotaque cearense, erguendo as sobrancelhas
e ensaiando depois um sorriso afável. — Por que não disse antes?
Imagino que devam ser os convidados do signore Borrelli. Sejam
bem-vindos ao Terra Napoli!
Era como se eu tivesse dito uma palavra mágica e um mundo
inteiramente novo se abrisse para nós. O recepcionista escancarou a
porta do restaurante, nos convidando a entrar.
— Quem é Alessandro Borrelli? — Júlio, caminhando ao meu
lado, cochichou.
— É o dono do restaurante. Um amigo da família — expliquei.
— Networking legal, hein? — Tirou onda, parecendo
especialmente encantado.
Era fácil entender a expressão em seu rosto. A magia do Terra
Napoli era justamente o fato de que Alessandro tinha conseguido
transportar um pedacinho da Itália para Canoa Quebrada.
Passar por aquela porta me dava a sensação de atravessar o
guarda-roupa que levava a Nárnia; já não estávamos no Brasil.
As paredes do restaurante eram formadas de uma escura
pedra aparente. Luminárias em tons de âmbar eram dispostas nas
colunas entre arcos encurvados. Em cada um dos arcos, pinturas
diversas de Nápoles: a cidade contemplada do mar, com seus
prédios coloridos erguendo-se em direção ao céu; o imponente
Vesúvio e as ruínas de Pompeia; o Castel dell’Ovo nas cores do
crepúsculo; uma multidão encapuzada usando as diversas máscaras
tradicionais napolitanas...
O lugar em si era uma obra de arte, e por isso maravilhava
tanto os clientes (a nota máxima no TripAdvisor era a prova). Se o
primeiro bloco era cavernoso e intimista, dali passávamos por uma
parte ao ar livre, com heras prendendo-se no muro e tochas
iluminando o forno a lenha onde um Alessandro Borrelli em pessoa
— comandando um time de mais três cozinheiros — trabalhava
concentradamente em suas receitas.
— Esse é o Alê — eu disse para Júlio.
Era possível admirar a equipe em ação através de uma parede
de vidro. Uma menina branca com um grande iPhone nas mãos
aproveitava a oportunidade para filmar o processo. O celular estava
logado em uma live no Instagram, e ela dublava com seriedade o
passo a passo do Alê com as pizzas.
— Nossa, nada a ver — Júlio falou. — Tinha imaginado ele
como um senhorzinho de meia-idade, não um modelo de passarela
aposentado.
Alê era um modelo aposentado, só que comercial.
— Você ficaria surpreso em saber que ele tem cinquenta anos,
mas não diga que eu contei.
Alê não nos viu e seguimos em frente, acompanhando a visita
guiada do recepcionista.
Tázio não havia exagerado: era uma noite cheia para o Terra
Napoli. Todas as mesas que passamos estavam ocupadas, e o
barulho das pessoas conversando se fundia à playlist com músicas
tipicamente italianas que vinham de pequenas caixas de som
espalhadas pelo local. O cheiro lá dentro também era delicioso; uma
mistura de lenha, uva, ervas finas, tomate e queijo.
Cruzamos uma adega apinhada de garrafas de vinho e, após
subirmos uma escada angulosa, chegamos a um terraço decorado
com velas e flores.
— O signore Alessandro reservou este lugar para vocês. É
onde recebemos os convidados especiais da casa — o recepcionista
apontou para a única mesa em todo o terraço. — Podem se
acomodar. O jantar será servido em breve. Rosé?
Júlio me olhava com a cara mais embasbacada do mundo. Nos
sentamos, e eu sorri para ele, me sentindo o máximo por
proporcionar aquele momento para nós dois.
— Gosta de vinho?
— Sim, mas...
Eu me virei para Tázio.
— Pode trazer um rosé, por favor. O d'Abruzzo?
Quando o homem se foi, assentindo, me voltei para Júlio e abri
os braços.
— O que acha?
— É incrível, Matias — ele admitiu, baixando a voz ainda que
fôssemos só nós dois lá em cima. — E eu não quero ser chato nem
nada, porque é realmente maravilhoso e tal, mas como a gente vai
pagar isso tudo?
— Relaxa. É por minha conta.
— Não é isso que quero dizer... — Júlio mordeu os lábios. —
Eu só não tô entendendo. Você é um milionário e não me contou?
Porque, sabe, seria melhor ter essa informação antes da gente
começar qualquer coisa.
Antes da gente começar qualquer coisa. Ok. Bom prenúncio.
Dei uma risada.
— Bem que queria ser milionário, Júlio. Alessandro é um velho
amigo. Na real, ele é meio que meu “padrinho”. Conheceu Canoa por
conta dos meus pais e se mudou pra cá no início dos anos 2000 —
expliquei. — Quanto ao jantar, fiz um acordo com ele...
— Que tipo de acordo?
Aquilo tiraria o glamour da coisa, mas tudo bem.
— Vou ser a babá dos dois cachorros dele por quinze dias
quando ele tirar férias após a alta temporada — fui sincero, e Júlio
caiu na risada.
Olhou ao redor.
— É muito romântico e generoso da sua parte — ele disse. —
Não acredito que fez isso pra gente.
— Nosso primeiro encontro deveria ser memorável. Além disso,
depois do que te aconteceu na praia hoje, pensei que seria legal
equilibrar um pouco as coisas. Amenizar o karma.
Júlio corou, sorrindo sem mostrar os dentes justo quando um
novo garçom chegou com nosso vinho. Era um Montepulciano
d'Abruzzo, um favorito da Toscana, doce e frisante, que nos foi
servido em duas borbulhantes taças de cristal.
— À onda que destruiu suas coisas e nos deu a chance de nos
conhecer melhor. — Ergui a minha taça para um brinde quando
ficamos sozinhos outra vez.
— Não vou brindar a isso — Júlio reclamou, mas nossas taças
tilintaram, meus olhos fixos nos seus. Bebemos juntos. Ele saboreou
o vinho primeiro, dando um trago pequeno, e vi quando apertou a
testa, surpreso com o sabor.
— Que delícia!
— Não é?
— Nossa, muito saboroso mesmo! E olha que eu não sou de
beber, mas esse é gostoso.
O jeito com que disse "gostoso" me deu vontade de ouvi-lo
sussurrar a palavra no meu ouvido.
— Fico feliz que gostou. — Sorri para ele, que devolveu um
sorriso ainda maior. O desconforto que mostrara desapareceu, e eu
me senti mais à vontade.
— E você, Júlio?
— O que tem eu?
— Quero saber mais sobre você.
Ele deu um gole maior que o anterior. Em seguida, tirou os
óculos, colocando-os sobre o colo. Piscou os olhos algumas vezes;
notei que era a primeira vez que o via assim.
— Por quê? — Júlio simplesmente perguntou, me pegando
desprevenido. Pensei em começar a responder, mas ele levantou a
mão. — Não, não, não. Não me entenda mal. Percebi que você é
romântico, e o fato de que me trouxe aqui diz muito disso. Mas por
que a gente precisa desempenhar esse papel de um casal saindo em
um primeiro encontro? A gente não tem que sair contando toda
nossa vida um pro outro. Só aproveitar o momento basta. Fazer isso
é tão... americano. E não muito eu.
Torci para que ele não visse o choque transparente em meu
rosto.
— Bem, talvez soe como uma surpresa, então — eu disse, me
recompondo —, mas fiquei interessado em você.
— Isso não significa que a gente precise conversar como
personagens de uma série. Ações falam mais que palavras. Gosto
das suas.
— Gosta, é?
Ele riu.
— Confia em mim, não estaria aqui se não gostasse.
— Aí não sei. Lá na praia você pareceu meio resistente ao meu
charme.
— Não acredito que você disse essa frase em voz alta. Que
cafona, Matias — Júlio passou o polegar no lábio inferior. Era
evidente que estava se divertindo com a mudança de rumo da
conversa.
— É sério — insisti. — Você quase nem olhou pra mim.
— Não cometa o erro de se deixar enganar por essa carinha de
criança que eu tenho. O negócio é que gosto do meu espaço, de ter
a minha privacidade — ele contou. — Além disso, também gosto de
ler um livro em paz na praia, sem ninguém me interromper.
Foi minha vez de rir alto.
— Desculpa?
— Não, porque também gosto de quando as coisas fogem de
controle. — Júlio se inclinou para a frente, os pés da cadeira
rangendo. — Eu sou oito ou oitenta, por isso curti o rumo que as
coisas tomaram hoje. Gosto de estar aqui. — Ele voltou para trás e
abriu os braços. — Mas não gosto de fingir, então, se quiser saber
mais sobre mim, vai ter que merecer.
Aquele era um baita discurso, e eu estava inegavelmente
impressionado com ele. Minha teoria era que, ao tirar os óculos, Júlio
se transformava em uma versão mais impulsiva e segura de si.
Como se arrancasse um véu invisível de inibição e não ligasse a
mínima para que o mundo pensava ao seu respeito. Torci que fizesse
isso mais vezes. Gostava de quem ele era nesses termos.
— Como é que você foi de me ignorar, para inesperadamente
me dizer seu nome, desaparecer no dia seguinte, gritar comigo,
depois me convidar pra tomar um açaí, parecer romântico e agora
isso?
— Eu falei — Júlio deu de ombros —, oito ou oitenta.
— Ok, Senhor Oito ou Oitenta. Proponho um trato. Se a pizza
for um 100, fingimos que somos os personagens de um romance de
verão e nos abrimos um para o outro como os leitores gostariam que
fizéssemos. Uma coisa meio que política do pão e circo — brinquei.
— Dar às massas exatamente o entretenimento que querem.
— Combinadíssimo — assentiu, e apertamos a mão em um
cumprimento excessivamente masculino. Cresci com um irmão mais
velho muito competitivo, que amava toda sorte de apostas. Algumas
coisas herdadas do convívio familiar nunca mudam; minha fixação a
desafios era uma delas. — Embora, pra ser sincero, já que estamos
falando em entretenimento para as massas, etc...
— Sim?
— Bom, acredito que os leitores achariam um saco tantas
páginas sem um beijo.
— Isso é o quê, Júlio? Um convite? Porque poderia te beijar
agora. Não seria um problema.
— É mais uma afirmação. — Ele recolocou os óculos. —
Vamos ver se no final da noite você vai ter o que precisa para me
beijar.
Dez

E embora o Terra Napoli fosse reconhecido pela arquitetura


única, era a comida que trazia fama ao restaurante. Com comida
leia-se “a melhor pizza do Nordeste”, de acordo com renomados
críticos gastronômicos.
Quando o garçom apareceu equilibrando duas bandejas,
posicionando uma pizza para cada um de nós, Júlio hesitou.
— Por que pediu duas? Não aguento comer isso tudo, não.
— É o estilo italiano. Cada pizza é servida individualmente.
— E cadê o ketchup?
Engasguei com o vinho que começava a tomar.
— Tá, Júlio, vamos lá. Hora da lição. — Ele cruzou os braços.
— Essa palavra é proibida. Nunca, sob qualquer hipótese, ouse dizê-
la na frente de um italiano, tá bem? Simplesmente esqueça. Até
onde você sabe, ketchup é algo que não foi inventado pela
humanidade.
— Nossa, que exagero. Mas tudo bem. Nada de falar sobre
ketchup com italianos, então — Júlio sorriu, analisando a comida. —
Mais alguma coisa que eu deveria saber?
Assenti.
— Nápoles é conhecida por ter a melhor pizza da Itália e
napolitanos como Alessandro levam isso muito a sério. Tão a sério
que nem me deixou escolher o sabor que a gente ia comer. Disse
que seria a “margherita com mozzarella extra” — imitei o sotaque
carregado do meu padrinho — e pronto. Então, Júlio, por bem ou por
mal, você está prestes a vivenciar uma experiência gastronômica
singular, da qual não esquecerá tão cedo. De nada.
O menino me lançou um olhar cético. Um olhar que, como
previsto, logo se desmanchou em prazer quando colocou o primeiro
pedaço na boca. Júlio ficou tão satisfeito com a pizza que durante os
minutos em que a devorou mal falou comigo; desnecessário informar
que não sobrou nem o menor pedaço da borda no prato.
Eu não tirava sua razão. A pizza era mesmo impecável — fina,
úmida e consistente, tudo ao mesmo tempo. O queijo derretia na
boca e o manjericão da horta pessoal do Alê fazia a diferença.
Minha tia Dani morava em Nápoles — foi através dela que
conhecemos meu padrinho — e costumávamos visitá-la quando
possível, sobretudo na primavera. Havia algo de muito distinto no
preparo do prato no Terra Napoli. Era impossível provar a receita
sem ser transportado para as minhas memórias da cidade. Eu
adorava esses truques que a mente pregava — como cheiros e
sabores evocavam lembranças tão vívidas.
Eu me imaginei no futuro, anos luz à frente. Será que algum dia
comeria uma pizza que me levaria de volta a esse instante com
Júlio?
Uma garrafa de vinho e a melhor pizza do Nordeste depois, ele
estava disposto a falar. Variações da Tarantella Napoletana tocavam
de fundo em uma cinematográfica trilha italiana enquanto uma brisa
gostosa percorria o ar.
— Por onde começo? — um Júlio com as bochechas coradas
indagou, encostando-se relaxadamente no apoio da cadeira, o rosto
iluminado pelo tremular da chama das velas.
— Talvez pelo livro que estava lendo? — propus.
— Os Sete Maridos de Evelyn Hugo.
— Ela realmente teve sete maridos?
— O número de maridos não se traduz no de amores, e é isso
que faz a história ser tão interessante. Além da Evelyn ser uma das
melhores protagonistas que conheci, claro. Um clássico instantâneo
— ele se empolgou. — Não quero dar spoilers, por isso só vou dizer
que está entre os meus favoritos da vida e que você tem que ler.
— Lógico que quero ler o livro que te impediu de olhar na
minha cara por duas tardes seguidas — tirei sarro, tamborilando de
leve na mesa. Em seguida, fingi analisá-lo como se fosse uma peça
de museu. — Hmmm... Você tem um ar meio que de escritor, Júlio.
Escreve também?
— Pior que sim — ele respondeu, surpreso. — Escrevo pra um
site de viagens chamado Meu Mapa, Seu Destino, que é de um
amigo meu, o Levi.
— Você fala sobre o quê?
— Por mais surpreendente que pareça — ele me olhou por
cima dos óculos —, é sobre turismo de aventura. São mais crônicas
e dicas de viagens com um enfoque LGBTQIA+. Eu gravo alguns
vídeos pro canal do site também. É bem divertido e a melhor parte é
que acabo viajando de graça.
— Turismo de aventura? Jura? — perguntei. — Não diria
nunca.
— Ninguém diz, mas é a minha praia. Tudo que envolve
ecoturismo, trilhas, rapel, tirolesa, escaladas...
— E não mar? — minha curiosidade falou mais alto. — Não te
vi entrando nenhuma vez.
Júlio aparentou estar desconfortável com o assunto, porque
baixou a vista e bebericou o vinho.
— Água é meu ponto fraco. Não curto. Gosto do barulho das
ondas, da maresia, mas não de estar na água.
— Nunca surfou?
— Não, sinto muito...
Coloquei as mãos dramaticamente sobre o peito
— Um amante de aventuras renegando o surf? Se um dia
mudar de ideia, nosso hostel oferece cursos básicos. Posso ser seu
instrutor particular.
— “Nosso hostel”? Como é isso?
— Yep. Minha família tem um hostel aqui, o Hippie Canoa.
— Eu fiquei no Hippie uma vez! — Júlio exclamou. — Ano
passado, em julho! Tava viajando com umas amigas na época. Será
que a gente se esbarrou?
— Duvido. Eu lembraria de ti e, de qualquer modo, esse é o
período do verão na Espanha. É quando a gente fica no hostel de lá.
Em qual quarto você ficou?
— No rosa. — O Hippie tem quatro dormitórios e três quartos
privados, cada um com uma cor do arco-íris diferente.
Minha mãe era viciada no movimento hippie. Morou na
Califórnia por um tempo em uma comunidade livre. Nossos dois
hostels incorporavam o melhor do surf e da paixão de mamãe pela
psicodelia hippie. O resultado era o lugar mais colorido e acolhedor
do mundo.
— A Karina ainda trabalha com vocês? Ela foi uma fofa com a
gente.
— Não mais. Tá em Ilha Grande agora. Conseguiu uma oferta
de trabalho muito boa.
— Ai, ela merece. A gente é amigo no Facebook até hoje, eu
acho. Engraçado como o mundo é pequeno.
— Especialmente Canoa. — Me mexi na cadeira. Queria
destroçar a distância entre nós. Era difícil continuar olhando para ele
sem querer acariciar o seu rosto. Ele era muito atraente e
aparentemente não se dava conta disso. Sempre que sorria era
como se trouxesse o mundo todo consigo. Era possível se viciar no
sorriso de alguém? Porque eu estava. Muito. Com um suspiro, segui
em frente para riscar mais um item da minha Lista de Perguntas
sobre Júlio. — Você namora?
— Não estaria aqui se namorasse — Júlio respondeu. Ele
repôs vinho em nossas taças e levou a sua aos lábios. Um fiozinho
do líquido escapou pelo canto da boca e ele o limpou com a barra da
mão na cena mais sexy da noite.
— Ah, sei lá. Vai que fosse um relacionamento aberto.
Ele balançou a cabeça.
— Nunca namorei.
— Nunca? Nunca tipo nunca nunca mesmo?
— Nunca mesmo. Não há homem pra mim no Brasil. — Ele deu
de ombros, e eu ri. Aquele meme eu conhecia.
— Pra sua sorte, lindo, eu só sou meio brasileiro. Tecnicamente
espanhol, já que nasci na Espanha e tal.
Júlio sorriu.
— Tá me pedindo em namoro, Matias?
— E se estiver?
— Por favor, não. Não tô a fim de partir o coração de ninguém
hoje à noite. — Ele gargalhou, e me estudou. — Você já namorou?
— Duas vezes. Com meninas — disse, e emendei: — Porque
eu sou bi.
— Estamos compartilhando nossas letrinhas da sigla agora?
— Só se você quiser.
— Eu sou gay — Júlio disse tranquilamente — e trans.
Aquela era a última coisa que eu esperava que ele falasse. Eu
o encarei, tentando encaixar mais essa peça em seu enigma
pessoal, quando ele revirou os olhos, ressentido.
— Pode ir parando aí.
— Hã?
— Com o olhar.
— Do que você tá falando? — Franzi a testa.
— Do olhar que a maioria das pessoas dá quando digo que sou
trans, como se procurassem no meu corpo algum sinal que deixasse
isso evidente, que fosse óbvio — ele se mexeu desconfortavelmente
na mesa, as bochechas ainda mais vermelhas que antes. — Como
se estivessem sendo enganados e quisessem me examinar até
achar a resposta que procuram. Não faça isso.
— Desculpa de verdade. Não queria te fazer se sentir assim. —
Ele cruzou os braços com firmeza e virou a cara. — É sério. Quem
quer que te enxergue menos porque você contou que é trans é um
gilipollas do caralho.
Isso o fez rir um pouco.
— Tudo bem. Eu tô só... exausto. Exausto de uma reação que
nem deveria existir, em primeiro lugar. Não é pedir muito ser tratado
com respeito, é?
— Definitivamente não. E, além disso, qualquer pessoa que te
trate assim não te merece nem um pouco, Júlio — falei. — Sério.
Você é um homem lindo, com um sorriso encantador e uma
personalidade muito única. Meu pedido de namoro continua de pé,
então, se a resposta for um sim, fique à vontade para quebrar meu
coração. É todo seu.
Ele relaxou, os vincos em sua testa suavizando.
Virei o rosto ao ouvir uma risada característica explodindo atrás
de mim. Alessandro Borrelli se apresentava diante de nós com o traje
branco de chef e o brilho nos olhos que nunca o abandonava.
Ele abriu os braços em um gesto descomedido e falou alto
como só um bom napolitano faria:
— Ciao, bambino! Come stai, Matias?
“Bambino” era como me chamava desde que pedi que se
tornasse meu padrinho anos atrás (meus pais não eram católicos e
logo não sou batizado, mas de alguma forma cismei que Alê era meu
padrinho e foi essa a relação que construímos). Segundo ele, não
importava quão velho eu me tornasse, seria eternamente sua
criança.
Alê era a única pessoa na família que sabia que eu era bi. Ele
era muito aberto sobre si mesmo e todos o amavam; jamais
presenciei alguém falando algo desagradável sobre o meu padrinho.
Imaginava que as coisas provavelmente ficariam bem se eu
contasse, sobretudo por parte dos meus pais, mas tinha um medo
estranho e inconsolável... Sem contar o fato de que, embora sentisse
atração por meninos, até então não havia me apaixonado por
nenhum. Sou muito reservado nos meus relacionamentos e não via
sentido em apresentar aos meus pais alguém com quem só
estivesse ficando.
Eu me levantei para abraçar Alê.
Seu sorriso arreganhado e feliz ofuscava todos ao redor. Os
olhos eram do azul mais cristalino que já vi. E o cabelo, louro-palha,
hoje começava a mostrar alguns fios brancos, algo que Alê custara a
aceitar.
— Todo bien, mi viejo! — respondi em espanhol com uma
alegria genuína, mantendo nosso diálogo tradicional intacto.
— Dai! Quando vai parar de me chamar de velho? — Ele fez
beicinho e colocou o braço sobre o meu ombro. Falava em
português, mas a cantoria cadenciada que conduzia suas palavras
era inegavelmente italiano.
— No dia em que você parar de me chamar de criança.
— Isso nunca! — Alessandro gargalhou naquele seu jeito de se
sentir no topo do Universo.
Seu avental tinha um pequeno respingo vermelho de molho de
tomate e um círculo espesso de farinha de trigo subia pelo pescoço
como se tivesse escapado de um mela-mela carnavalesco. Acima do
lábio superior pairava a pintinha que era sua assinatura pessoal.
Voltei a fitar Júlio. Ele acompanhava minha interação com Alê
com curiosidade, soando um pouco incerto a respeito de como se
encaixar em nossa dinâmica.
Resolvi apresentá-los.
— Alê, esse é o Júlio, meu potencial namorado — eu disse com
um sorriso malicioso. Júlio cobriu os olhos com as mãos.
— Tá deixado o garoto sem graça — meu padrinho
repreendeu, se desvencilhando de mim e estendendo o braço para
Júlio. — Perdoe a malcriação do meu afilhado, Júlio. Devo admitir
que a parte da paquera ele puxou de mim. É um pouco desesperado,
se me permite dizer, mas tem bom coração!
— Ei! — Abri a boca em choque. Alê deveria estar do meu lado,
não me servindo numa bandeja de prata para as hienas.
— Muito obrigado pela acolhida — um educado e composto
Júlio respondeu, evitando olhar para mim. — O restaurante é incrível
e a comida é deliciosa! Nunca comi uma pizza tão boa.
— Grazie! Estou feliz que gostou. Será sempre bem-vindo à
nossa casa. — Ele colocou as mãos na cintura. — Ah, também
estamos no Instagram. Sei que vocês, jovens, são bastante
conectados à internet hoje em dia. Inclusive, recebemos a visita de
uma influencer muito famosa essa noite — Alê disparou. Isso
explicava a menina que vi mais cedo. — Ganhamos vários
seguidores depois que aparecemos no perfil dela. Excelente negócio!
Eu só dei uma pizza e uma Coca-Cola e ela ficou felizinha da vida!
Abafei uma risada. Acho que criadores de conteúdo não
ficariam muito felizes ao ouvir isso.
— Júlio escreve pra um site de viagens — eu contei, tentando
puxar a sardinha dele e trazer um tema comum aos dois.
— Não diga! Vocês estão no Instagram também?
Alessandro Borrelli era viciado. Leonino, ex-modelo, evidentes
traços narcisistas... Eu me arrependia até hoje do dia em que o
apresentei à rede social que exacerbava tudo o que já lhe era
normalmente acentuado. Meu padrinho, uma sensação online
(musculoso, médio grisalho, olhos azuis, italiano, dois cachorros
lindos e pizzaiolo renomado), nos últimos tempos investia no perfil
pessoal e no do Terra Napoli em uma espécie de “hobby pelo
marketing digital”, conforme defendia.
Júlio passou o @ do Meu Mapa, Seu Destino para o Alê, que
ficou em choque com o que viu.
— 300 mil seguidores?! — ele exclamou, praticamente
esfregando a tela do celular na minha cara. — Mah que chazzo,
Matias, por que não disse que trazia um influencer pra jantar?
— Eu não sabia — falei, sentando novamente na cadeira. Alê
era elétrico como um menino de 13 anos explodindo de hormônios.
— Ele não sabia mesmo — Júlio partiu em minha defesa, o que
era um bom sinal. — E eu com certeza vou recomendar o
restaurante. Preciso fazer uma matéria para o site sobre Canoa
durante as minhas férias aqui, e o Terra Napoli não pode faltar na
lista.
Alessandro vibrou, agradecendo com entusiasmo. Em seguida,
se ajoelhou ao lado de Júlio e o chamou como que para contar um
segredo. Reduziu o volume da voz, mas eu sabia que era apenas
parte da performance; ainda falaria alto o suficiente para que eu o
ouvisse. Era esse seu charme teatral.
— Matias nunca convidou ninguém pra jantar aqui antes, então
devo imaginar que você é molto especial.
Júlio ruborizou, dando um sorriso amarelo.
Decidi intervir.
— Do que vocês estão falando?
— Nada — Alê contestou, ficando em pé. — Vou deixar os dois
pombinhos a sós. Júlio, foi um prazer conhecê-lo! Depois me siga de
volta no Instagram e me mande o link da matéria quando sair! Ficarei
alegre em compartilhar na minha lista de transmissão no Zap!
Júlio concordou com um sorriso polido, e levei a mão à testa.
Alê ainda vai me matar de vergonha um dia.
— Com certeza. Muito obrigado pela recepção, Alessandro. Foi
tudo divino — ele disse, e me olhou. — Acho que a gente também tá
indo, né?
— Sim, já terminamos e você precisa ir pra casa. Ele viaja cedo
amanhã pra Natal — falei essa última parte para o meu padrinho.
— Eu adoro Natal. Já tive um namorado de lá. Antes do
Ricardo, claro — ele disse essa parte para mim. Ricardo era seu
“companheiro”, a expressão atenuante que Alê utilizava para evitar
“marido” e não ser confrontado por sua gamofobia (o medo do
casamento). Se 10 anos juntos não fosse casamento, sinceramente
não fazia ideia do que era.
Antes de ir embora, Alê parou ao meu lado só o suficiente para
dizer em voz alta suas últimas palavras:
— Gostei dele. Mantenha por perto.
Onze

A principal e mais conhecida rua de Canoa Quebrada se


chamava Broadway. Nada da opulência nova-iorquina, claro, mas
com um charme único; rústico e praiano. Um monumento com a lua
nova e a estrela símbolo do vilarejo anunciava o início do percurso, e
os turistas costumavam disputar espaço para tirar uma foto ali.
A Broadway era o lugar onde todos os mais famosos bares,
lojas, mercadinhos e restaurantes se enfileiravam nas duas vias. Em
dias como hoje, uma noite animada de fim de janeiro, ficava lotada.
Para muitos, era o fim das férias de verão e as expectativas se
voltavam ao Carnaval.
O calçamento levava a uma praça com vista para o mar perto
da igreja, e era para lá que Júlio e eu caminhávamos.
Deixamos para trás a Itália do Terra Napoli e retornamos ao
Ceará. Não que fôssemos as mesmas pessoas de antes; andávamos
sem pressa lado a lado, nossos ombros e dedos furtivos roçando um
no outro, colidindo, nós dois encontrando motivos diferente para nos
tocar.
Embora tenha dito que precisaria voltar para casa mais cedo
por conta da viagem, Júlio não retornou ao assunto, rindo das
minhas piadas com muito mais disposição do que antes.
— Sabia que foi rodado um filme francês aqui que nunca
lançou? — disse a ele quando passamos pela entrada da Broadway.
— A história é confusa, mas alguns dizem que foi assim que a praia
começou a se tornar conhecida lá fora.
— Por que não foi lançado?
— Era na época da ditadura. Aparentemente, o filme[1] foi
censurado pelos militares no Brasil. Os idealizadores eram do
Nouvelle Vague[2] e se apaixonaram por Canoa. Tinha cenas de
violência e piratas — falei. — Foi meu pai quem me contou sobre.
Ele conhecia algumas das pessoas mais velhas da comunidade que
lembravam das filmagens, e viajantes que chegaram após o boca a
boca causado pelo filme lá fora. Rolou uns conflitos entre o diretor e
a produtora, a Fox, e os arquivos terminaram destruídos. Pouco
depois disso começaram a aparecer os primeiros hippies, muitos que
ficaram por aqui.
— Como cê sabe disso tudo?
— Ah, o de sempre. Conhecimento acumulado pra
impressionar hóspedes e potenciais interesses amorosos — brinquei,
e ele me deu um empurrão.
— Às vezes gostaria de ter conhecido lugares como Canoa
antes de se tornarem destinos turísticos famosos — Júlio disse,
contemplativo. — Sei que soa um pouco hipócrita da minha parte,
porque escrevo pra um site de viagens, mas não é triste ver o que o
capitalismo faz? Constrói um bocado de prédios onde era apenas
natureza, força uma gentrificação escrota e acaba com a essência
pouco a pouco. É horrível.
— Entendo seu ponto de vista. É por isso que gosto tanto de
história. De que outra maneira saberíamos o que foi? E é
complicado, porque as pessoas não conhecem o passado. Os
turistas que vêm aqui querem ficar bêbados e aproveitar a noite, e tá
de boas. Mas há mais que isso. Nada é acabado em si como a gente
pensa.
Paramos de andar. Uma banda se apresentava na rua e um
grupo barulhento de viajantes os rodeava. Eu conhecia o vocalista, o
Kaio. Era um menino divertido e bastante talentoso de Canoa. Ele
fazia dinheirinho extra durante o verão com seus shows e rodadas de
chapéu. Em uma terra dominada pelo forró, era um roqueiro no
armário que cantava covers de Roberto Carlos para apelar ao
público.
Kaio parecia comigo em termos de aparência. Tínhamos a
mesma carinha que marcava a miscigenação de Canoa Quebrada: a
mistura da negritude com a branquitude dos parentes europeus. No
caso de Kaio, preto com olhos claros e cabelos aloirados, como eu, o
pai era um francês que nunca viu na vida. Uma realidade comum,
infelizmente, sobretudo na geração dos anos noventa, marcada pelo
turismo sexual[3].
Eu acenei para Kaio, que me viu e mandou um tchauzinho sem
perder o time.
— É seu amigo? — Júlio indagou, mexendo a cabeça ao som
da música. — Canta bem.
— É porque você não ouviu as autorais — eu tirei onda. As
composições de Kaio eram... obscuras, para dizer o mínimo.
Agora cantava “As Curvas da Estrada de Santos”, canção
indispensável no repertório da banda. A baterista — parecendo
irritada — colocava mais ênfase nos pratos do que deveria, e o
guitarrista queria iniciar um solo no verso errado. Ainda assim, o
resultado era uma confusão gostosa. A plateia que se formara
cantarolava junto, e eu atravessei a multidão para contribuir com
umas moedinhas no chapéu.
O movimento foi diminuindo conforme saímos da Broadway e
chegamos à Igreja. Algumas pessoas desciam o caminho das
falésias que levava a Freedom, e eu, não querendo que o encontro
acabasse, fiz uma última tentativa.
— Tem certeza que não quer ir no luau? Ainda dá tempo...
Júlio me deu um sorriso acanhado.
— Por mais que queira, é melhor não. Mainha deve estar um
pouco preocupada — ele disse.
— Sua mãe tá entretida com Sex and the City — comentei. —
A última coisa que ela deve tá pensando é em você.
Ele riu.
Essa era uma parte mais escura da Igreja onde a luz não
alcançava e só havíamos nós dois à vista. Era a hora e o lugar
perfeitos para beijá-lo, por mais herético que fosse, e Júlio e eu
parecíamos conscientes disso.
Conscientes demais, inclusive.
Travamos com força, constrangidos frente às possibilidades
que se estendiam diante de nós. Achei que as duas garrafas de
d'Abruzzo me deixariam mais leve e confiante para dar o segundo
passo, mas não foi assim que me senti.
E se falei demais? E se o “olhar” na mesa quando ele contou
que era trans o tivesse chateado ao ponto de nem querer me beijar?
— Então, é... hm... — gaguejou, indeciso, e fiquei grato de que
tivesse sido ele a quebrar o silêncio, porque eu não conseguiria. —
Essa noite foi realmente algo.
— “Algo”?
Não era o que eu esperava como definição para as últimas
duas horas.
— Você sabe. Inesperada. Bonita. Inédita. Romântica. E eu já
disse inesperada? — Júlio falou, cruzando os braços atrás das
costas.
— Muitos adjetivos para alguém que nem queria apertar minha
mão.
— Gosto de bancar o difícil — ele respondeu. — Soube que
rapazes como você gostam dos “misteriosos”.
— Então foi tudo uma farsa pra conquistar minha atenção?
— Em partes — ele riu, olhando do chão para mim. — Eu
estava realmente muito concentrado no livro e você foi um chato.
— Poxa! Depois de tudo que vivemos, Júlio, é isso que recebo?
— faço meu drama.
— Okay, corrijo: um surfista fofo e cheio de marra, querendo
receber meus biscoitos com um sorriso lindo, nenhuma camisa e
uma prancha rosa — zombou. — Receita perfeita pra minha
resistência anticoração partido se erguer.
Um vento forte soprou seu cabelo, fazendo com que uma
mecha caísse sobre os olhos. Agi por reflexo: trouxe meus dedos
para sua testa e empurrei os fios ligeiramente para o lado.
— A resistência anticoração partido ainda está ativa? —
sussurrei, olhando-o atentamente.
— Não...
— Então, hipoteticamente falando — coloquei a mão no rosto
dele, acariciando sua bochecha —, eu tenho alguma chance?
— Uma chance hipotética de quê?
— A chance hipotética de te beijar.
Ele respirou fundo, tirando os óculos outra vez e os colocando
no bolso de trás da bermuda. O que foi bastante inteligente,
pensando bem. Lembraria disso para não causar a Júlio uma
segunda perda material naquele dia.
— Eu hipoteticamente abriria uma exceção.
Não esperei duas vezes para encostar meus lábios nos do
menino. Sua boca macia tinha o gosto do último gole do rosé e de
algo mais, também. Algo de conotativo, como estrelas e eclipses,
expectativa e realização.
Entre as muitas coisas que podem ser fingidas, conexão
verdadeira não é uma delas. Júlio e eu, a lua crescente nos
espionando por detrás das nuvens, foi tudo o que pedi ao mar que
acontecesse desde que o vi absorto em seu próprio mundo, na praia.
E agora que sua mão estava em meu cabelo, gentil e curiosa, e seus
dentes mordiscavam meu lábio inferior, acrescentaria outras
informações à descoberta dele: os pedacinhos fragmentados que,
juntos, começavam a me contar a história de quem era.
Ele me empurrou contra a parede da igreja e me puxou pelo
colarinho da camisa, enterrando sua boca em meu pescoço e
percorrendo uma sequência de pequenos beijos até encontrar meus
lábios outra vez. Meus sentidos embaralhados perceberam tudo: o
cheiro de protetor solar e maresia em sua pele; o som
descompassado das nossas respirações; o arrepio elétrico
desencadeado em meu corpo...
Alguém uma vez me disse que é difícil descrever a perfeição
porque a mente humana é imperfeita. Cheia de bagagens, inquieta
demais para traduzir a resposta. Como pode, afinal, uma consciência
imperfeita perceber um sentimento perfeito se não tem as
ferramentas para compreendê-lo em primeiro lugar? Era como tentar
segurar o oceano: somos parte dele enquanto estamos submersos,
mas não capazes de carregá-lo em nossas mãos ao partir. Não
fisicamente. Não logicamente.
Se descrever era impossível, provar era o oposto. Eu pensei
sobre isso naquele instante. Em quão perfeito um momento é apenas
por ser. Por que explicá-lo quando poderia simplesmente vivê-lo?
Então eu o beijei mais uma e outra vez. Eu o abracei forte e,
silenciosamente, desejei outros momentos perfeitos como esse.
Momentos que nenhum de nós precisaria explicar.
— Sabe, tô me sentindo demais como a Júlia Roberts em Comer,
Rezar e Amar — ele disse antes de nos despedirmos, os dedos da
mão direita no bolso da frente da minha calça. — A gente até foi
mais ou menos em Nápoles como no filme!
Dei uma risada com a comparação.
— E eu sou quem, Júlio? O brasileiro que ela conhece no final
e conquista seu coração?
— Ainda não sei — ele respondeu gentilmente, beijando minha
bochecha e se afastando. — Mas gostaria de descobrir.
Não trocamos números, já que o celular dele estava quebrado
(pelo menos até o arroz decidir agir e executar seu poder milagroso).
Combinamos de mandar e-mails um para o outro até ele voltar de
Natal na próxima quinta. Era clichê e fora de moda, mas quem
ligava?
Quando estava na metade da rua e tudo o que queria era levá-
lo comigo para casa, não aguentei.
— Júlio! — Minha voz se elevou mais do que horário permitia.
Ele se virou, surpreso, sua silhueta na contraluz, a sombra comprida
estendendo-se no calçamento. Esperou que eu continuasse. — Vou
te encontrar de novo?
A resposta demorou alguns segundos até chegar a mim.
— Acho que vamos ter que esperar pra ver.
Parte 2:
Pegadas na areia
Doze

Júlio está em Rosalía comigo. De alguma maneira impossível,


surfamos juntos. Uma onda infinita nos carrega. É como se fôssemos
uma extensão fluida do vento: vejo as falésias, o céu violeta. Sinto o
corpo dele encostado no meu, sua bunda na altura dos meus
quadris, nossos braços esticados para a frente...
— Quando vou te ver outra vez? — eu pergunto, minha boca
no espaço entre seu ombro e orelha.
— Você está me vendo — ele responde com uma risada.
— Mas não estou te beijando — eu digo, e esqueço da
prancha.
É quando acontece.
Sinto um empurrão atrás de mim, o sentimento esquisito do
mundo estar virando de cabeça para baixo, e então há uma onda.
É gigante, incontrolável e forte demais.
De repente, estou na água. Uma tempestade nos abate, pingos
pesados de chuva nos sufocando. Júlio submerge, o mar furioso o
levando para longo de mim e quebrando Rosalía ao meio.
— Matiaaas! — Escuto a voz sufocada dele ecoar de todos os
cantos. E eu grito seu nome, também. Uma e outra vez. JÚLIO!
JÚLIO! JÚLIO!, me percebo dizer, mas, por mais que tente, não o
vejo. Ele não está em lugar algum. — Matias... Matias...

— DIOS MIO, MATIAS, DESPIERTA! — a voz estridente da minha


irmã me acordou, varrendo a imagem de Júlio no sonho. Quando abri
os olhos, meu coração pulava e o rosto de Melissa pairava acima de
mim, os cabelos cacheados caindo em cascatas como guirlandas de
Natal.
— Aconteceu alguma coisa? — eu disse com a voz grogue,
grunhindo e me virando no colchão suado.
— O que não aconteceu, Mah — Melissa reclamou, pulando
para se sentar ao meu lado e mudando do espanhol para o
português.
Eu a observei de soslaio. Batom rosa e gargantilha de búzios
no pescoço, Mel era a caçula. Aos treze anos de idade, era uma
cópia burguesa de mamãe: branca e com o mesmo rosto oval, era
apaixonada por moda, KPOP e maquiagem enquanto à matriarca só
importava praticidade, surf e playlists de Yoga. Do nosso pai havia
herdado os olhos escuros e o castanho cabelo encaracolado.
As pessoas não nos achavam parecidos, claro. Eu tinha a pele
negra dele, enquanto os olhos verdes e o cabelo aloirado eram
definitivamente os traços espanhóis dela. Eu amava aquela mistura,
a diversidade nítida que explodia no entrelaçar das nossas histórias,
mas isso não significava que outros nos viam com a mesma
simpatia.
Cresci sem me sentir encaixado, enfrentando olhares de
esguelhas e os constantes comentários que nos acertavam quando
estávamos os cinco juntos. Era por isso que nos rodeávamos de
viajantes, pessoas com a mente aberta e menos preconceituosa.
Não deveria, mas viver em uma bolha, às vezes, é nossa única
solução.
A não ser que queiramos dar um basta.
A não ser que queiramos colocar fogo em tudo.
Mas eu sou água. Quando a raiva explode em mim, encontro
meu caminho de voltar ao mar — onde tudo é sereno e me torno
imbatível.
— Que horas? — perguntei, bocejando e colocando as mãos
sobre os olhos.
Melissa havia escancarado a janela do quarto. As folhas dos
coqueiros que rodeavam aquela parte do jardim farfalhavam com o
vento e o sol trazia mais luz do que eu suportava.
Sentei na cama feita com madeira de pallet, me espreguiçando,
e tentei arrepiar o cabelo de Melissa, que se esquivou da minha mão.
— São quase oito. A chefe mandou te acordar, já que você tava
demorando. — “A chefe”. Era com um jeito azedo que Mel se referia
à nossa mãe, ultimamente. As duas viviam em pé de guerra. Minha
hipótese é que Melissa queria subverter a ordem reinante na casa,
negando tudo o que entendia como norma; sobretudo o surf.
— Oito?
Dormi tudo isso? Droga! Meus pais marcaram uma reunião às
7h30 comigo depois que voltaram de Fortaleza. Queriam
“estabelecer um canal de comunicação positivo e saudável” agora
que decidi assumir meu lugar nos negócios da família. Não ia ser
nada legal começar essa nova etapa com um atraso.
Pulei da cama e fui direto para o banheiro, lavando o rosto e
colocando pasta de dente na escova.
— Não tá esquecendo nada? — Mel disse em voz alta.
Coloquei a cabeça entre a porta. Com a boca cheia de espuma,
disse:
— Desculpe, irmãzinha. Não sei do que você tá falando.
Não sabia mesmo. No momento, minha mente registrava
apenas duas informações: quão rápido eu poderia chegar ao
escritório e Júlio.
As memórias da noite anterior voltavam lentamente. Tudo
aquilo realmente aconteceu? A onda. Nosso encontro no Terra
Napoli. Os beijos... principalmente os beijos.
Melissa me fulminou.
— Você prometeu que ia me levar em Aracati. — Mel cruzou os
braços e fez beicinho.
Aracati é a cidade onde a praia de Canoa Quebrada se localiza.
É uma viagem considerável até o centro e precisávamos ir lá sempre
que quiséssemos comprar algo que não vendia na vila. No caso de
Melissa, isso era uma vez por semana.
— Foi mal, Mel. Tô superatrasado.
— Atrasado pra ir na reunião ou pra ver o Júlio? — Melissa
disse pausadamente.
Não consegui disfarçar minha surpresa. A expressão travessa
em seu rosto revelava quão satisfeita estava em me tirar do sério.
— Como você sabe do Júlio? — perguntei com cuidado,
cuspindo a espuma na pia.
— Tenho meus métodos.
Tinha que admitir: ela definitivamente era minha irmã.
— Alguém comentou com você sobre?
Estava pensando no Otávio. Não achava que ele contaria para
minha irmã de TREZE anos o segredo que pedi que guardasse, mas
depois do lance com a Lina nada mais me surpreenderia.
Ela balançou a cabeça, negando a hipótese.
— Melissa...
— Ai, Mah, você não parava de repetir o nome dele quando
entrei no quarto.
— Eu não falo dormindo. — Mas falava, sim, e Mel me fitou
com desdém. Como alguém na idade dela me fazia sentir tão
pequeno? Às vezes era difícil conciliar a ideia de que a irmã que eu
carreguei nos braços já era uma adolescente, as primeiras espinhas
começando a estourar no rosto.
Melissa era a minha prova mais clara da passagem do tempo,
um lembrete de que estávamos todos em movimento, gostássemos
ou não.
— Fora que tem uma notificação gigante no seu celular dizendo
que você recebeu um e-mail do Júlio — ela acrescentou.
Meu coração parou por um segundo.
E-mail dele? Já?!
Quando trocamos contato, pensei que precisaria escrever
primeiro. Ele disse que guardaria meu e-mail na memória, mas não
levei a sério.
— Mel, você tá mexendo nas minhas coisas? — perguntei,
empunhando a escova de dente de forma ameaçadora. Não seria a
primeira vez que faria algo assim.
— Pensei que não houvesse segredos nessa família — ela
rebateu.
— Toda família tem segredos — eu disse com uma dose de
mistério. — Júlio não é um deles, espertinha, mas isso não significa
que preciso sair contando pra todo mundo.
Passei a vista pelo quarto à procura do celular. Melissa o
segurava com um olhar malicioso, passando-o de uma mão para a
outra. Ainda brincou de escondê-lo, parando ao ver a expressão em
meu rosto.
— Júlio é seu namorado? — ela indagou em um tom casual,
despreocupado, ao me passar o telefone. A blusa rosa rendada lhe
conferia uma aparência infantil que não se refletia em como falava.
Mais uma vez, minha surpresa devia estar estampada na testa,
porque Mel revirou os olhos. — Não é grande coisa, tá? A gente tá
em 2019 e eu sou fã do Troye Sivan. É até legal, na verdade. De
hétero basta o Pablo.
— Ele não é meu namorado — contestei, apertando a tela do
celular com ansiedade. Mail: JÚLIO ANDRADE, a notificação dizia.
— Matias, é totalmente de boas. Você não precisa ser alguém
que não é — minha irmã seguia tentando me consolar. — Não vou
deixar de te amar se você for gay.
— Eu sou bi, Mel — expliquei, resistindo à tentação de ler a
mensagem e colocando o celular no bolso.
— Por que nunca falou pra gente?
— Preciso? Pablo disse pra gente que é hétero? — rebati.
— Não.
— Esse é o meu argumento. Nossos pais dizem que são
superprogressistas, que nos amariam independentemente da nossa
sexualidade e blá, blá, blá. Quero testar se isso é verdade.
— Boring. Esperava que você fosse fazer a maior cena, Mah.
Uma coisa superdramática no meio de um jantar com todo mundo te
encarando, sabe? — Mel disse teatralmente, suspirando de
decepção. — Pensei até que a gente podia gravar e postar no
TikTok. Esse tipo de vídeo viraliza demais! Você podia virar famoso!
Não pude deixar de rir.
— Primeiro que minha vida pessoal não precisa ser
espetacularizada por uma criança — disse ao vestir a camisa, Mel
torcendo a cara. — E segundo que eu não faço ideia do que é
“TikTok”.
Melissa me ignorou:
— Tá, seu idoso. E qual é o plano? Anunciar sua
bissexualidade com seu namorado? Trazer o Júlio pra jantar com a
gente?
Balancei a cabeça em negativa.
— Como eu disse antes, ele não é meu namorado.
— Você quer que seja?
— Acabei de conhecer ele...
— Mas quer? — insistiu, petulância cintilando em seus olhos.
— Baseado unicamente em como me sinto agora — falei,
aceitando que aquela conversa estava de fato acontecendo —, sim.
— Ahá! Então devia trazer ele aqui. Sério. Eu ia amar ver a
cara da mamãe — Mel disse, e entendi tudo.
— Talvez eu faça isso mesmo.
Melissa me observou como se eu fosse um problema de
maquiagem que não conseguia resolver nem com Facetune.
Segurou o pulso da mão esquerda e começou a brincar com as
várias pulseiras, souvenirs de alguns dos lugares por onde viajamos.
Minha irmã batia o pé e não parava de reclamar até que a
levássemos a um lugar onde pudesse comprar as pulseiras. Agora
havia sete coladas em seu braço, a coleção formando um arco-íris
desajeitado, mas estiloso.
Quando nervosa ou perdida em seus próprios pensamentos,
Melissa mexia as pulseiras freneticamente. Não era o caso hoje.
— Estarei sempre aqui pra te apoiar, maricón.
Sem tempo para pensar naquele diálogo com a profundidade
que pedia (minha irmãzinha havia mesmo acabado de me tirar do
armário?) e depositando um beijo no topo da cabeça de Melissa, eu
disse antes de sair do quarto:
— Lição número um: maricón é uma palavra fora de alcance
pra você. Continuo sendo seu irmão mais velho e isso nunca, nunca
mudará. Agora tchau. Deveres de adulto me chamam.
Domingo, 24 de janeiro de 2019, 05:40

De: Júlio Andrade (julioandrade@mmsd.com.br)

Para: Matias Mendonza (matiasmt@hippiehostels.com)

Assunto: Sobre Ontem

Oi, Matias!

Bom dia! Ou será que eu deveria dizer “boa madrugada”? Ainda


nem amanheceu direito e já estou a caminho de Natal. Pensei em te
escrever só mais tarde, mas você não vai acreditar no que
aconteceu.

Meu padrasto tem um pendrive com uma seleção musical


duvidosa. Geralmente começa com algumas MPBs legais e termina
em forró das antigas, como Desejo de Menina (você não deve
conhecer Desejo de Menina, acho). Só que dessa vez a primeira
música foi “As Curvas da Estrada de Santos”. Quando a voz do
Roberto começou a tocar eu não consegui deixar de lembrar de
ontem, de você e... bem, da gente.

A pizza não saiu da minha cabeça. Como sobrevivi uma vida


INTEIRA sem comer algo assim? Estava absolutamente delicioso,
juro. E o vinho?! Nossa, DIVINO!!!

De verdade, obrigado por ter me levado no Terra Napoli. Eu saí


de casa imaginando que a gente ia tomar um açaí enquanto você
planejava (e eu não vou soar meloso assim nunca mais, então
guarde essas palavras) o encontro mais romântico de todos.

Espero que os cachorros do Alê não te deem muito trabalho


quando for cuidar deles. Se eu estivesse em Canoa, me ofereceria
pra ajudar (eu amo cachorros e sou alérgico a gatos... só pra você
ficar sabendo o meu lado da Força).

Sério, obrigado mesmo. Por tudo. Foi lindo.

Tenha um bom dia!

Abraços,

Júlio Andrade

Colunista de Turismo de Aventura do Meu Mapa, Seu Destino

ps.: A história lá do arroz não deu muito certo. Peguei o celular da


minha mãe pra te mandar esse e-mail, mas é provável que eu só
consiga te responder quando tirar o meu do conserto em Natal.
Treze

Lia a mensagem de Júlio com um sorriso no rosto conforme


andava até o escritório do hostel. Na verdade, não era só um
“sorriso”: era o maior sorriso de todos os tempos, um sorriso do
Coringa; gigante e sincero e feliz, totalmente apaixonado.
Quando primeiro acertamos de trocar e-mails, não imaginei
nada disso. Acreditei que seriam mensagens curtas e meio
impessoais, uma espécie de band-aid para a distância enquanto ele
não voltava para Canoa. Eu não esperava por algo tão...
emocionalmente aberto e romanticamente expressivo. Não nesses
termos (jamais pensei que isso fosse possível vindo dele, verdade
seja dita).
Suspirei, visualizando-o no carro com cara de sono e teclando
o texto ao som de Roberto Carlos, os óculos caídos sobre a raiz do
nariz. Era engraçado o modo como me sentia ao lado de Júlio
apenas ao ler suas palavras; ele me entregava uma versão diferente
de si, e eu adorava descobri-la.
Nossa casa ficava localizada justo atrás do Hippie, ainda no
mesmo terreno. Os dois locais eram separados por um grande
quintal repleto de mangueiras, cajueiros e coqueiros, e uma cerca de
madeira (precisamos construí-la depois que hóspedes drogados
invadiram a casa achando que era um after; o after, no caso, era
Pablo ouvindo trance nas alturas).
Passei pela piscina do hostel. Algumas pessoas se
bronzeavam e Otto se espreguiçava em uma boia de flamingo
gigante na água, seu Ray-Ban rosa refletindo a luz.
Ainda tentei me esconder, mas ele me viu mesmo assim.
— Não vai entrar, Matias? — Otto perguntou, jogando água em
minha direção. — O banho tá perfeitooooo.
— Ocupado demais com os negócios da família — respondi,
dando tchau e correndo antes que ele pudesse me ensopar.
Otto gritou alguma coisa como “MAS É DOMINGO!”,
“DEVERES DE HERDEIRO!” e um “NOSSA, PRA QUE ISSO?”
quando ergui o dedo do meio para ele.
A porta do escritório estava aberta. Fumaça de incenso
espiralava pelo cômodo decorado com bambu. Havia um futton
cercado de plantas de um lado e três pranchas de surf com
tamanhos diferentes pregadas na parede acima dele. Um globo
terrestre decorativo ocupava a superfície de um caixote de madeira
coberto de livros, pequenos alfinetes indicando os países que meus
pais conheciam.
Em muitos aspectos, exceto pelas fotografias de papai, o
ambiente era predominantemente mamãe. Uma prateleira enorme
era preenchida com os seus troféus, e olha que não eram poucos.
Os principais — e dos quais sentia maior orgulho — eram os do
Circuito Mundial.
Mamãe venceu a competição três vezes. Primeira espanhola a
conquistar o título, apareceu em diversos filmes e documentários.
Sua ascensão nos mares começou cedo. Em 1993, quando tinha 21
anos, desbancou a favorita Wendy Botha. Manteve seu lugar no
pódio no ano seguinte, mas não disputou em 1995 ao engravidar de
Pablo. De fora por dois anos, só voltou a vencer em 1998, quando foi
eleita Surfista do Ano pela ESPN.
Vivia o melhor momento da carreira até que eu apareci. Não
que tenha dito pessoalmente (está implícito em um de seus filmes,
de qualquer forma), mas eu sabia que me gestar havia sido mais
complicado que gestar Pablo. Mamãe tentou retornar cedo demais
ao trabalho após o meu nascimento e acabou sofrendo um acidente.
Com o joelho lesionado e uma depressão ocasionada pelo trauma,
passou dois anos fora do Circuito Mundial. Terminou em sexto lugar
em 2002 sob comentários de que estava acabada. Conseguiu a
redenção que buscava em 2003, batendo a então invencível
australiana Layne Beachley. Daí em diante apertou o pé no freio,
mesmo nunca tendo parado de verdade.
O hostel em Fomenteira surgiu primeiro, em 2005. Já em 2007,
quando eu tinha 8 anos, o Hippie Canoa abriu; Melissa veio ao
mundo nesse intervalo. Hoje aos quarenta e sete anos de idade, Ana
Mendonza mantinha praticamente o mesmo rosto que eu lembrava
da infância, exceto pelas rugas que apareciam nas covinhas ao
sorrir.
Naquela manhã, ela estava sentada ao lado do meu pai no
futton. Usava um vestido marrom coberto de mandalas e sorria
bobamente para o computador.
— Buenas. Foi mal pelo atraso — falei para eles ao entrar.
Mamãe acenou para mim sem despregar os olhos da tela do
PC. Já meu pai, careca desde que o grisalho invadira a cabeça, me
notou.
Ele era dez anos mais velho que minha mãe. Sua barba era
cheia e desgrenhada, tatuagens tribais e com referências ao mar
espalhadas por todo o corpo. Quase chegando aos sessenta,
mantinha uma rotina de exercícios que o preservava. Era musculoso
e esguio, lábios grossos parecidos com os meus e um sorriso
cativante.
Papai trabalhava como correspondente esportivo internacional
para uma emissora de TV quando a conheceu. Se aposentou depois
da abertura do primeiro hostel, desenvolvendo uma relação mais
profunda com o fotojornalismo. Como fotógrafo, era excelente e tinha
um olhar único para mostrar o que as pessoas normalmente não
viam. Além disso, ajudava a organizar a mostra de cinema de Canoa
e ações culturais na praia.
— Na paz, filho? — disse, me chamando com a mão para
sentar ao seu lado. Se estava irritado com o atraso, não
transpareceu. Não era novidade, considerando que papai era todo
good vibes, paz e amor. Apesar da yoga e das meditações, era
mamãe quem puxava nossa orelha quando a situação mandava. —
A gente tá em uma chamada de vídeo com seu irmão. Vem dar um oi
pra ele.
— O Matias tá por aí? — Escutei a voz do Pablo. Ele falava de
uma maneira forçada em português, seu sotaque soando fabricado.
Era como se tivesse sido criado no Rio de Janeiro e não em Canoa
Quebrada. Entre as muitas coisas que me irritavam no meu irmão,
aquela era só uma delas.
Mamãe mudou a posição do computador no colo para que eu
aparecesse. Pablo usava a câmera frontal do celular no Skype:
sorriso canastrão, sobrancelha riscada e cachos arrepiados pelo
vento.
— Oi! Ainda tá no Havaí? — Sorri para ele.
— Tá maneiraço aqui, hermanito! — Afastou o celular do rosto
para mostrar os arredores, uma praia paradisíaca cercada de árvores
e areia clara. Duas lanchas cheias de mulheres de biquíni e homens
sem camisa aportavam na beira do mar. Eu reconhecia a paisagem,
mas não conseguia definir de onde. — A gente veio no lugar que
gravaram Lost, cara. Tá rolando uma festinha da hora com o
pessoal. O Medina e o Ítalo tão por aqui também.
Óbvio que meu irmão estaria em uma festa no Havaí (na
locação privada de Lost) com Gabriel Medina e Ítalo Ferreira, dois
dos favoritos do Circuito Mundial nesse ano. Pablo competiria pela
terceira vez em 2019. Ele era muito, muito bom, e uma das grandes
promessas internacionais do surf. Tinha ficado em quinto lugar ano
passado e recebia apoio de marcas grandes no Brasil e na Espanha,
além de ser excelente com networking.
Todo mundo sabia que era apenas questão de tempo até
estourar — e com estourar não me referia apenas a “ganhar”, mas
estrelar comerciais de TV, ficar internacionalmente famoso e quem
sabe até milionário como alguns de seus amigos; surf dava muito
mais dinheiro hoje que na época de mamãe, e Pablo é homem.
— Ah, legal. Aproveita com a galera.
— Manda um abraço pro Medina também, filhão! — meu pai,
que era fã, pediu. Pablo fez legal com o polegar e voltou a falar
comigo, malícia evidente em seu rosto. Dominei a vontade de revirar
os olhos.
— Você poderia estar aqui se quisesse, Mah. — Era um
comentário perfeitamente aceitável para quem ouvia de fora, mas eu
sabia o que significava; sabia o que estava implícito ali.
— Valeu, Pablito, mas tô de boas em Canoa.
Ele deu uma risada falsa. Usar apelidos era sempre um sinal de
tempestade.
— Por que se contentar com uma praia se pode ter o mundo
todo, irmãozinho?
— Eu não sou você, Pablo.
— Todos nós sabemos disso. — A voz seca dele falhou do
outro lado da linha. Ainda assim, mantinha um inabalável sorriso no
rosto.
Meus punhos se fecharam. Ele sabia muito bem o que fazia.
— Chega disso os dois — minha mãe repreendeu. — Será que
nem longe conseguem parar de brigar?
— O Matias que é muito esquentadinho.
Respirei fundo para não falar besteira.
— Seu irmão está nos ajudando bastante. — Foi minha mãe
quem disse isso. Não era comum vê-la se colocar entre os filhos em
uma discussão. Ela nunca escondeu o favoritismo. Afinal, Pablo
seguia seus passos enquanto eu...
— É? Bom, depois que largou os campeonatos, jogando a
chance de entrar na Liga no lixo e parando com os estudos — o
prodígio da família ironizou —, era o mínimo.
— Vete al carajo, Pablo! — xinguei, me afastando dos meus
pais. Podia ouvi-lo do outro lado da linha, falando sobre como eu era
“sensível”. A raiva fervendo dentro de mim era algo vivo. Eu queria
gritar. Queria dizer tudo o que nunca disse para Pablo ali, naquele
segundo.
Como conseguia fazer isso com tanta facilidade? Como podia
me tirar tanto do sério? Ele nem se esforçava; só estalava os dedos
e booom, eu me tornava o “Matias sentimental com inveja do irmão”,
digno de pena e patético.
Uma parte de mim achava que era culpa minha; que era eu
quem dava poder demais a ele. A verdade é que Pablo não escondia
seu desejo de ser o melhor. Por muito tempo, eu o admirei mais que
a qualquer pessoa. Ele era tudo que eu queria ser, meu exemplo,
mas os quatro anos de diferença criaram um abismo gigantesco
entre nós. Crescer ao seu lado foi exaustivo. Por mais que tentasse
me distanciar, era sua sombra.
O problema de viver à sombra de alguém como ele é que é
matava aos poucos.
Estar constantemente em segundo lugar.
Não ser bom o bastante.
Nunca se destacar em nada porque já tinham se destacado
antes.
Ter sonhos que não eram seus apenas para atender às
expectativas de todos ao redor.
Apesar de enxergar onde nascia a minha inveja e
ressentimento, via também como Pablo alimentou os conflitos,
ajudando a erguer a barreira que nos dividia. Ele via a pólvora e não
hesitava em trazer o fogo; era difícil recordar um momento nos
últimos anos em que não estivemos em plena combustão.
Se fui sua sombra por tanto tempo, não era apenas porque ele
me via como uma, mas porque me tratava como tal.
Apoiei a mão no birô do escritório. Minha cabeça corria a mil
por hora, imersa em um turbilhão de pensamentos.
Ouvi mamãe se despedindo de Pablo, uma certa frieza
implicada em seu tom de voz. Quando tomei coragem para erguer a
vista, os dois estavam na minha frente, rostos preocupados e olhos
tristes.
— Você tá bem? — ela perguntou. Tinha 1,65m de altura. Em
momentos como esse, porém, parecia mais alta, imponente.
— É só que... — mordi os lábios, tentando me acalmar. — Eu
não aguento falar com ele, mãe. Não suporto.
— Sei que é difícil, Matias...
Balancei a cabeça.
— Não é questão de ser “difícil”, mãe. É questão de ser uma
tortura.
— Tenho certeza de que ele não faz isso por mal.
— Tem mesmo? Porque eu não.
Ela suspirou.
— Seu irmão só continua fazendo isso porque você cai na
chantagem. Se parar de dar a atenção que ele quer, se ele perceber
que você não liga pro que ele tem a dizer, vai eventualmente parar.
— Eu ergui o rosto para encará-la. — Matias, não é verdade o que
Pablo disse. Você sabe disso, não sabe?
— Que ele é melhor do que eu? — bufei. — É o que todo
mundo acha mesmo.
— Não é. Você é você, mi hijo. Não importa o que Pablo ou
qualquer um fale, nós te amamos por quem você é. Se deixou de
competir, se quer seguir outro caminho, se não quer voltar à
Espanha — ela passou a mão em meu rosto, acariciando minha
bochecha —, estaremos aqui para te apoiar em qualquer que seja a
sua decisão. Acreditamos e confiamos em você. Sempre.
E então eu estava chorando.
Como um bebê.
Copiosamente.
Minha mãe me abraçou, repetindo que ia ficar tudo bem. Papai,
que havia ficado na retaguarda, se aproximou e começou a
massagear meus ombros, me consolando.
Deixei as lágrimas rolarem como não fazia há meses. Era como
se os sentimentos que guardei nos últimos tempos jorrassem de mim
— o peso das minhas escolhas, os segredos, as frustrações; tudo
vazava.
Enxuguei o rosto com o pulso ao levantar o rosto, prendendo o
choro e fungando.
— Tá melhor? — papai perguntou, descansando as duas mãos
em meus ombros.
— Um pouco.
— Porque se precisar, filho, pode chorar. Chorar faz bem à
alma. Ajuda a limpar o que está congestionado, abrindo espaço para
o novo e permitindo que a gente leve luz aos processos que
precisam ser superados. Se a ferida não é tratada, a gente acaba
adoecendo mais.
Eu concordei, escondendo uma risadinha. Se desse corda, ele
me convocaria para uma meditação guiada com ho'oponopono (coisa
que eu provavelmente faria mais tarde no meu quarto, sozinho, não
em uma sessão aberta com meu pai repetindo “sinto muito, me
perdoe, te amo e sou grato” sem parar).
— Eu tô bem, pai. Obrigado — falei. — Obrigado pelo apoio de
vocês.
— Certeza? — Arqueou a sobrancelha daquele jeito
preocupado que mostrava quando ficávamos doentes. Na infância,
era ele quem checava se estávamos com febre e trazia sopa na
cama, nos contando histórias com vozes engraçadas.
— Absoluta.
— Neste caso — começou, sentando-se em posição de lotus
ao lado da minha mãe, que já estava no chão (nada de cadeiras ou
se esconder atrás da mesa para ter uma conversa com o casal: com
eles era cara a cara e conexão direta com Gaia) —, está pronto para
discutir sobre o futuro e assumir suas responsabilidades no hostel?
— Sim.
— É uma grande mudança, filho — minha mãe enfatizou
quando sentei junto a eles, como se me desse uma última grande
chance para mudar de ideia.
— Eu sei.
Domingo, 24 de janeiro de 2019, 17:34

De: Matias Mendonza (matiasmt@hippiehostels.com)

Para: Júlio Andrade (julioandrade@mmsd.com.br)

Assunto: Re: Sobre Ontem

“Você tem uma nova mensagem na sua caixa de entrada”

Sabe há quanto tempo eu não recebo uma notificação dessas,


Júlio? Não? Pois eu te digo: há muitoooooos anos. Na verdade, não
lembro de ter me comunicado com uma “pessoa real” assim antes.
Acho que as mensagens da Amazon confirmando a compra dos
meus e-books (oi! essa é a parte em que eu digo que também tenho
um Kindle – o meu é à prova d’água, rs) não contam, então me
perdoe se eu não respeitar as estruturas do gênero.

Boa tarde, guapo! (Tá vendo como não vou respeitar as normas?
Tô falando ‘boa tarde’ no segundo parágrafo!!!). Espero que tenha
ido tudo bem com a viagem. Demorei pra responder porque passei a
manhã em uma ReuniãoMuitoSériaSobreMeuFuturo.com.br. Agora
eu sou oficialmente o “Gestor Aprendiz” do Hippie *yey*, o que
significa que tenho que trabalhar sete horas por dia seguindo meus
pais de cima abaixo pra pegar as manhas até abril, quando eles
voltam pra Espanha e eu fico. Todas essas mudanças são um pouco
assustadoras, mas é o que eu queria...

Só consegui surfar um pouco hoje. Tô morto de cansado e


pensando em como é estranho ir na praia e não te ver. Eu ficava te
observando de dentro do mar (você é lindo :3) e o fato de você não
estar lá me faz sentir esquisito.

Bom, que loucura que tenha tocado “Estrada de Santos”! E que


legal que você pensou em mim. Demorei a dormir ontem pensando
em ti, então acho que estamos quites. E eu falei! A pizza do Alê é
outro nível (aliás, parabéns por não ter comentado nada sobre
ketchup na frente dele).

Está nevando em Natal? Já topou com o Papai Noel? Tá tudo


certo na casa da sua avó? Manda um beijo pra ela (e pra minha
sogra também!).

E Júlio... Só mais uma coisa:

Volta logo. Tô doido pra te ver de novo. Te beijar de novo (alguém


já disse que sua boca é linda? Não? Então segura aí: sua boca é
linda DEMAIS).

Muitos beijos na sua boca linda e assumidamente seu,

Matias

(Gestor Aprendiz do HIPPIE CANOA)

ps.: eu vivo entre o Ceará e a Espanha desde criança, lindão. É


LOGICO QUE EU CONHEÇO DESEJO DE MENINA!!! “Jane” e “Vida
Vazia” são as melhores! Aliás, você ainda não me disse de onde
você é (sim, é uma súplica).

ps2.: Uma pena que o arroz não deu certo. ☹

ps3.: Eu prefiro cachorros também! É mais um match. Bora


casar?
Segunda-feira, 25 de janeiro de 2019, 16:54

De: Júlio Andrade (julioandrade@mmsd.com.br)

Para: Matias Mendonza (matiasmt@hippiehostels.com)

Assunto: Re: Re: Sobre Ontem

Bom dia, Matiaaas!

Ou será que eu deveria chamar de Gestor Aprendiz? Parabéns


pela promoção! Isso significa que os dias de adolescência estão
ficando para trás, e que você está prestes a se tornar um adulto
cheio de responsabilidades! Como vai conciliar com o surf? E com os
cachorros do Alê? E comigo?

Não tem problemas se quiser subverter as estruturas do gênero.


Para um e-mail ainda mais híbrido, eu sugeriria que adicionasse um
poema autoral dedicado para mim, inclusive. O que acha? Há algo
de poético em ti para além das cantadas e da insistência?

Falando em “insistência”, e considerando que a gente está se


expondo mesmo nesses e-mails nada convencionais, devo dizer que
sua insistência foi um dos motivos pelos quais gostei de você. O
fato de que você levou dois foras meus antes de levar um sim é
louvável. Eu não conseguiria. Na verdade, eu provavelmente nem
chegaria em alguém em primeiro lugar. Tenho vergonha demais do
não para buscar o sim. E voltar na pessoa que te deu um não para
levar outro não e depois receber um sim? UAU!!! Isso que eu chamo
de CORAGEM.

A viagem foi tranquila, mas cansativa também. Cinco horas até


Natal é bastante e eu fiquei com uma ressaca literária enorme depois
de ler Evelyn Hugo (já que você assumiu que TEM um Kindle,
Matias, eu sugiro que baixe urgentemente o livro pro-seu-bem). O
lado bom é que tinha esse cara vendendo uma fruta muito louca na
estrada. Disse que era o resultado de um enxerto de um pé de
ciriguela com um umbuzeiro, e era in-crí-vel; maior que uma ciriguela
normal e com um pouco do azedinho do umbu. A gente batizou de
cirimbu. Se achar vendendo na volta, eu compro pra você provar! :-)

Em Natal não está nevando ainda, seu engraçadinho, mas


passou o dia chovendo. O celular ainda tá na assistência e minha
avó está bem. Preparou uma paçoca de feijão verde com carne de
sol e arroz da terra (eu sou taurino, desculpa se só falo sobre
comida). Ela é muito engraçada, acho que você iria gostar de
conhecê-la. A bisa era dona de um dos primeiros cabarés de Natal e
vovó conta muitas histórias sobre isso. Não mandei seu beijo porque
isso levaria a um longo interrogatório para além do interrogatório de
sempre (e desde quando mainha é sua ““““““sogra”““““? eu não
lembro de ter aceitado pedido de namoro algum).

Também quero te ver de novo. Em breve. Na quinta. Assim que


eu chegar.

E sua boca não é apenas linda como beija muito bem.

Esperando um poema original,

Júlio Andrade

Colunista de Turismo de Aventura do Meu Mapa, Seu Destino


ps.: “Diga Sim Pra Mim” é imbatível, mas só por você conhecer
Desejo de Meninas já tem todos os pontos.

ps2.: Beeem, a família de mainha é toda de Natal, mas nunca vivi


lá. Tô morando em Guaramiranga atualmente.

ps3.: Lógico que eu não ia falar sobre ketchup na frente do Alê,


né, Matias? E correr o risco de ser EXPULSO do Terra Napoli?
Tenho mais amor à minha vida do que afrontar um italiano orgulhoso
de sua culinária rebuscada...
Segunda-feira, 25 de janeiro de 2019, 23:23

De: Matias Mendonza (matiasmt@hippiehostels.com)

Para: Júlio Andrade (julioandrade@mmsd.com.br)

Assunto: Pegadas na Areia

Segui todas as suas pegadas na areia


Acompanhei atento seus movimentos
Fui levado para ti como num canto da Sereia
Seria eterno? Ou só um momento?

De dentro do mar
Era mais miragem que visão real
Se parasse para olhar
Encontraria respostas de um tempo ancestral

E o seu beijo
Beijo com gosto de d'Abruzzo
E o seu cheiro
Eu provaria do pescoço ao pulso

Ah, Júlio
Que tamanho orgulho
Só de pensar em ti
Eu fico....................................

Com amor,

Matias Shakespeare
Terça-feira, 26 de janeiro de 2019, 07:24

De: Júlio Andrade (julioandrade@mmsd.com.br)

Para: Matias Mendonza (matiasmt@hippiehostels.com)

Assunto: RE: Pegadas na Areia

‘O’

AMADO?????
O que ACABOU de acontecer aqui????????????????
Terça-feira, 26 de janeiro de 2019, 07:33

De: Matias Mendonza (matiasmt@hippiehostels.com)

Para: Júlio Andrade (julioandrade@mmsd.com.br)

Assunto: RE: RE: Pegadas na Areia

:(
Poxa!
Não gostou da minha obra de arte, guapo? Escrevi com tanto
carinho...
Indignado e com coração partido,
Matias Nem Tão Shakespeare
ps.: A palavra que faltava era “maluco”. O que você achou que
era?
Terça-feira, 26 de janeiro de 2019, 07:54

De: Júlio Andrade (julioandrade@mmsd.com.br)

Para: Matias Mendonza (matiasmt@hippiehostels.com)

Assunto: Perdão?

Querido Matias,
Sinto muito por ter partido seu coração... Não pense que intentei,
deliberadamente, colocar em xeque seu talento como poeta. Acredito
que você tem muito potencial... só não na poesia.
Devo admitir, porém, que fiquei surpreso com o encadeamento do
poema.
(Ah, antes que eu esqueça: tô indo buscar o celular agora na
assistência! Dedos cruzados!!!)
Beijos,
Júlio Com Sabor de d'Abruzzo
ps: Eu completei com “duro”. Admita que era isso.
Terça-feira, 26 de janeiro de 2019, 12:12

De: Matias Mendonza (matiasmt@hippiehostels.com)

Para: Júlio Andrade (julioandrade@mmsd.com.br)

Assunto: Perdoado com uma condição

Belíssimo Júlio,

Cordialmente aceito suas desculpas. Concordo que, como poeta,


ainda tenho um longo caminho a percorrer.

ATENÇÃO: a partir de agora eu vou abandonar esse personagem


shakespeariano com linguajar culto para voltar a ser o euzinho de
sempre, espero que não se incomode. VALENDO!

Oi! Você me perguntou como eu iria conciliar meu novo trabalho


com o surf, cachorros do Alê e você. Saiba que as minhas paixões
terão um espaço especial na minha rotina, então não se preocupe
em ser deixado de escanteio; não vai acontecer.

Insistência é uma das maiores virtudes na vida de um surfista.


Veja bem, não dá pra pegar todas as ondas do mundo, certo? O que
não significa que a gente não continue tentando e esperando por
aquela onda que mudará tudo. Porque é exatamente sobre isso:
continuar tentando e tentando e tentando até dar certo (será que eu
sirvo pra ser um Coach Quântico? Aguardo feedbacks).

Fiquei doido pra provar o cirimbu! Traz mesmo, lindo. E, se


possível, traz sua avó também, ué. Filha da dona de um CABARÉ?!
Isso é FANTÁSTICO. Ela deve ser dessas senhorinhas bem
divertidas e enxeridas. E sua mãe é minha sogra, SIM. A gente tem
tudo a ver porque ela também assiste Sex and The City. Se fosse pra
conquistar o coração dela, eu maratonava FÁCIL.

Agora uma notícia horrível: não sei se consigo te ver na quinta.


Toda última quinta do mês a gente faz um jantar comunitário com
nossos hóspedes à noite, e eu vou ficar ocupado organizando tudo
(o que inclui a comida, jogos, música ao vivo e karaokê). Exceto se...

Ok. Esse é um pedido e tanto. Você pode dizer NÃO se quiser,


Júlio, se estiver cansado e tudo o mais. Mas... e se vier pro jantar?
Como meu convidado de honra, claro! Talvez você possa até
adicionar o Hippie no seu post sobre Canoa Quebrada no site? O
que me diz, hã?

DIGA SIM PRA MIM!!!

Ansioso pela resposta,

Matias

ps.: Eu não vou dizer nada, mas você pode sentir........................


um dia.
Quarta-feira, 27 de janeiro de 2019, 10:12

De: Júlio Andrade (julioandrade@mmsd.com.br)

Para: Matias Mendonza (matiasmt@hippiehostels.com)

Assunto: Cadê a condição? (tenho boas notícias também)

Considerando que já desistimos de manter alguma lógica nesses


e-mails, vou começar assim: cadê a condição?! Você mencionou no
assunto que me perdoava com “uma condição”, mas não mencionou
nada depois. É um jogo comigo? Uma maneira de tentar me deixar
curioso? Se for, conseguiu.

A boa notícia (que mencionei no título e reforço no conteúdo do


texto, sendo a pessoa sensata que sou) é que já estou com o celular!
Deu tudo certo no conserto. O carinha que ajeitou disse que foi “por
um triz” e que tirou “areia o suficiente pra encher um vaso” - exagero.
Apesar disso, fiquei o dia sem internet porque vovó queria visitar a
estátua de Santa Rita de Cássia, em Santa Cruz, uma cidade perto
de Natal. Sabia que esse é o maior monumento católico do mundo?
Quase o dobro do Cristo Redentor, de acordo com a freira que
acompanhou a gente (ela é filha da ex-sócia da minha falecida
bisavó no cabaré, haha).
Chegamos tarde em casa, eu capotei e só acordei agora, por isso
tô escrevendo tão tarde zZzZz. Você dormiu bem? Como tem sido
esses dias de trabalho intenso, Gestor Aprendiz?

Quanto ao convite, nossa. Meu Deus. Conhecer seus pais? Plus


todos os seus hóspedes? Não sei, não...

Ei, é mentira, Matias! Não precisa chorar aí do outro lado. Fui


convencido no “diga sim pra mim”. Me passe todos os detalhes,
incluindo horário, dicas de roupa, palavras proibidas, contribuições
necessárias...

Eu posso te passar meu WhatsApp, mas tô gostando muito de


ficar falando por e-mail. O que acha de a gente continuar por aqui até
eu chegar de viagem?

Beijos e desejando um ótimo dia,

Júlio.

ps.: me oponho a responder isso.

ps2.: O que diabos é um “couch quântico”?


Quarta-feira, 27 de janeiro de 2019, 20:12

De: Matias Mendonza (matiasmt@hippiehostels.com)

Para: Júlio Andrade (julioandrade@mmsd.com.br)

Assunto: Preparado para o maior voo da sua vida?

OI?

EU LI DIREITO?

JÚLIO ANDRADE ACEITOU MEU CONVITE PRA UM JANTAR


EM FAMÍLIA?

Isso tenho certeza que ninguém viu chegando. Se eu soubesse


que referências a Desejo de Menina era tudo o que precisava, teria
feito antes.

Guapo, obrigado por ter topado. Vai ter uma galerinha por lá,
então nem se preocupe. Só chegar às 19h com seu maior sorriso
que será suficiente. Ah: Não há palavras proibidas e roupa é
totalmente opcional (mentira, o que você vestiu pro Terra Napoli tá
ótimo, embora eu fosse preferir sem nada).
Ah, parabéns pelo celular! Quando li essa parte fiquei feliz por
você, mas depois pensei que seria meio triste a gente parar com os
e-mails. Aí fiquei feliz de novo quando vi sua sugestão; era
exatamente o que eu tinha em mente. Vê?
SINCRONIZADÍSSIMOS!!!

Poxa, você descobriu meu segredo, Júlio! Eu queria, sim,


apimentar as coisas com a minha “condição”, jajajaja. Não a sugeriria
pra todo mundo, mas alguém aqui é o COLUNISTA DE TURISMO
DE AVENTURA DO SEU MAPA MEU DESTINO...

Por isso, confiando no seu senso de aventura, eu gostaria de


saber se você está disposto ao maior voo da sua vida. Acontece que
alguém aqui (eu), além de surfar, é habilitado pela Confederação
Brasileira de Voo Livre. Parapente é uma das minhas paixões, e por
um tempo era eu quem levava os hóspedes nos passeios. Eu sou
muito bom no que faço e prometo te manter vivo no processo se
você confiar em mim.

Tudo para te proporcionar uma experiência completa em Canoa


Quebrada. Faço isso pela divulgação da minha praia, entende? Não
pra te ter coladinho no meu corpo enquanto a gente conquista o
céu...

Sei que são muitos planos.

Sei que eu tô propondo uma coisa depois da outra.

Mas é o que um bom Coach Quântico diria: viver o agora.

Todo seu,

M.

ps.: Que bom que o Haddad e a Manu ganharam a eleição.


Imagina a gente nesse inicinho de 2019 sabendo que Bolsonaro
seria o presidente? Como poderíamos viver uma história de amor
assim? UFA!
Quarta-feira, 27 de janeiro de 2019, 23:11

De: Júlio Andrade (julioandrade@mmsd.com.br)

Para: Matias Mendonza (matiasmt@hippiehostels.com)

Assunto: RE: Preparado para o maior voo da sua vida?

Então quer dizer que além de Gestor Aprendiz do Hippie Canoa,


paquerador profissional e surfista você ainda é piloto de parapente?
Caramba, Matias! Que caixinha de surpresas, hein?

Eu aceito, óbvio. Já estava pensando antes em pagar um


passeio, mas aí receber um de graça? Com você?! Taurino que sou,
confesso que todo centavo salvo é um grande alívio.

Mas oh, agora eu estou meio em dúvida em relação ao que está


rolando entre a gente. É o segundo e-mail que te vejo mencionar
minha posição como colunista de um dos maiores sites de viagem no
Brasil para beneficiar seus negócios particulares com menções em
meus textos... Isso não apenas vai contra todo o código de ética do
jornalista, como me faz questionar suas verdadeiras intenções aqui.
Sabe, se mostrasse essa conversa para os meus amigos, eles diriam
que você está sendo interesseiro.
Acredite, eu não preciso de nenhum subterfúgio para topar sair
com você, Matias - sua companhia já basta. E sobre os muitos
planos: keep them coming... Se um dia eu perder o interesse você
vai ficar sabendo logo (8 ou 80, lembra? hahahahahaha)

Tudo isso dito, te encontro amanhã às 19h pelado na festa com


sua família. É isso mesmo? Deixei algo de fora? Se for, saiba que eu
estou ansioso para te reencontrar, Matias.

Preparado para o maior voo da minha vida,

J.

ps.: Pelo amor de Deus, eu não aguentaria viver em um mundo


onde Bolsonaro é presidente do Brasil. O dia em que ele perdeu a
eleição foi o momento mais feliz da minha vida. Ainda não paguei
todas as promessas que fiz.

ps2.: A propósito, “guapo”? “jajajajaj”? Para alguém que se


esforça tanto para se misturar, você até que está soando bastante
espanhol aqui. É uma tentativa de me impressionar? Só continue!
Quarta-feira, 27 de janeiro de 2019, 23:32

De: Matias Mendonza (matiasmt@hippiehostels.com)

Para: Júlio Andrade (julioandrade@mmsd.com.br)

Assunto: O Único Marido de Júlio Andrade

Caro Júlio,

Você realmente pensa tão pouco de mim? :(

Eu JAMAIS tiraria proveito do fato de que meu potencial


namorado trabalha em um “dos maiores sites sobre viagens do
Brasil” para forçar minha agenda pessoal na mídia... Além de ser
antiético, é completamente inapropriado. Como Gestor Aprendiz do
Hippie Canoa, eu abomino totalmente tal prática (este e-mail conta
com a supervisão da minha assessoria de crise composta por me &
myself).

Guapo, agora falando sério, é tarde e eu tenho que descansar.


Quis te responder o mais rápido possível só pra ver se ainda te
pegava acordado. Tô compartilhando um link (clique aqui) que leva a
um grupo no Telegram que criei pra nós dois chamado “O Único
Marido de Júlio Andrade” – uma referência ao fato de que, cumprindo
com sua indicação, comecei a ler Evelyn Hugo[4]. Pode falar comigo
à noite amanhã. Estarei te esperando!

Desejando uma viagem de volta segura ao paraíso,

Matias Mendonza, Seu Piloto de Parapente Particular & Outras


Coisas

ps.: jajajajajaj sé que te gusta ;)


Quarta-feira, 27 de janeiro de 2019, 23:52

De: Júlio Andrade (julioandrade@mmsd.com.br)

Para: Matias Mendonza (matiasmt@hippiehostels.com)

Assunto: Re: O Único Marido de Júlio Andrade

Te vejo amanhã.
Quatorze

O problema com as quintas do Hippie era a enorme lista de


tarefas. Para garantir que tudo estava em ordem, eu precisava:
1 — Me certificar de que os pavões do hostel estão dentro do
cercado, não soltos como normalmente (sim, a gente tem pavões;
sim, eles cagam o terreno todo; sim, mamãe se apaixonou por
pavões após uma temporada fazendo voto de silêncio em um
ashram em Nova Délhi, na Índia);
2 — Preparar o telão com o projetor para o karaokê;
3 — Organizar os equipamentos de som;
4 — Ajeitar as mesas para colocar as comidinhas;
5 — Comprar gelo e deixar as bebidas gelando no bar;
6 — Ajudar mamãe com a aula de paella, incluindo carregar a
gigantesca frigideira que usa;
7 — E hoje, extraordinariamente, ensaiar com Mel a
apresentação que planejei para Júlio.
Na verdade, não era bem “para Júlio”. Mel e eu vínhamos
treinando Lucky, parceria do Jason Mraz e da Colbie Caillat, desde
que comecei a me aventurar com o violão. Mas a música acabou
ganhando um significado especial após a noite que passamos juntos
e das trocas de e-mail que se seguiram. Era inevitável que a
apresentação se tornasse uma maneira de mostrar como me sentia
ao seu respeito.
Minha semana inteira foi baseada nele.
Na expectativa das notificações.
Na ansiedade em dizer a palavra certa.
Eu estava nervoso demais em meio àqueles textos. Uma coisa
era aproveitar o momento para me sair bem com uma piada ou
comentário que encaixasse ali, no calor do improviso; outra muito
diferente era escrever algo que ficaria ao livre escrutínio de um
destinatário cuja reação eu nem conseguiria chutar.
Para minha felicidade, deu tudo tão certo. Júlio era incrível. As
mensagens — o que me contou sobre si mesmo, seu senso de
humor e provocações — eram fantásticas. Eu me pegava relendo os
e-mails, repassando mentalmente as histórias que partilhou comigo,
as piadas internas recém-inventadas, as observações flertivas.
Ainda me surpreendia quão inesperada a vida podia ser
quando simplesmente aceitávamos suas deixas, presentes e
possibilidades espalhadas pelo caminho. Do muito que poderia
acontecer em único dia de verão, se apenas nor permitíssemos
seguir o fluxo.
Às quatro da tarde, a organização da ‘grande noite’ ia bem. Era
minha primeira vez no comando e todos estavam ajudando — nada
que apagasse o fato de que eu queria que fosse tudo perfeito para
Júlio.
Otto ficou responsável pelo som e parte da decoração; Lina
pelas mesas; Noah, o instrutor alemão de surf, foi escalado para
apoiar mamãe com a paella; e até Iluna, a recém-chegada
professora de yoga e meditação, colocava a mão na massa com os
pavões e o gelo.
O restante era comigo.
A parte que ninguém contou é que eu seria a pessoa a quem
todo mundo recorreria em caso de dúvidas ou reclamações. “Tá
faltando gelo no mercadinho”, “cadê o camarão?”, “o pavão fez cocô
no meu pé!” foram algumas das frases que ouvi ao longo do dia.
Melissa era que menos largava do meu pé. Passamos Lucky
três vezes, já que ela errava uma nota no final do último refrão e
pedia para reiniciar sempre que isso acontecia.
Quando enfim terminarmos de aprontar os preparativos para a
festa, eram quase 17h30 e os hóspedes, voltando do pôr do sol na
duna, rodeavam minha mãe na cozinha como animais famintos
enquanto ela fazia seu show de praxe com a paella; o processo
ocorria em espanhol, uma maneira de “promover o intercâmbio
linguístico e cultural”, mote do Hippie.
Debaixo de uma árvore, o céu crepuscular antecipando a noite
em tons de roxo e azul-escuro, eu observava o resultado com uma
sensação de dever cumprido. Otto apareceu ao meu lado logo
depois, apontando para o varal de luzes coloridas que colocamos
entre as mangueiras e os coqueiros. O telão branco do projetor havia
sido ligado por ele e o clipe de We Found Love, da Rihanna, passava
com o som baixinho.
— É por isso que nossos voluntários são geralmente surfistas
— eu impliquei, me referindo à escolha musical dele.
— Pra colocarem Jack Johnson toda hora? — Otto revirou os
olhos. — Todo café da manhã vocês tacam as mesmas músicas
tilelês que ninguém aguenta mais, Matias. Meus ouvidos sangram,
os hóspedes merecem uma trégua...
Eu ri.
— Como o DJ e apresentador da noite — eu falei —, você vai
poder dar uma diversificada na playlist. É uma honra e tanto, hein?
Ele se virou para mim.
— Tá nervoso pra apresentação?
— Sim, mas não pelo motivo que você tá imaginando.
Ele me lançou um olhar interrogativo.
— Como assim?
— O Júlio tá vindo.
— Júlio? Tipo, Júlio, o amor da praia que não tá no Grindr e me
fez lavar o banheiro coletivo a semana inteira? Esse Júlio? —
Balancei a cabeça, assentindo. — Quando isso aconteceu?
— Eu o reencontrei no sábado e a gente tem se falado desde
então.
— Não acredito que você não disse nada, Matias!
O que eu podia falar? Não era como se quisesse manter Júlio
em segredo. Só preferia que Otávio não espalhasse o que a gente
tinha para todo o hostel (depois do episódio com Lina, minha
confiança nele foi abalada). Não até hoje, pelo menos, quando Júlio
conheceria meu círculo social inteiro.
— Pois é, ele tá vindo, e eu não quero pagar nenhum mico
desafinando na frente dele.
— Vai dar certo — Otto consolou, e em seguida me fez a
pergunta esperada. — Seus pais sabem disso?
— Que ele vem?
— É.
— Não...
— Ah, tá. E Júlio sabe que você vai usá-lo como uma desculpa
pra se assumir? Não vai pegar seus velhos de surpresa, né? —
Fiquei calado, a pior coisa que poderia ter feito. — Nossa, Matias —
Otto bateu em minhas costas, escandalizado.
— Que foi?
— Não acho justo. Com ninguém. Você deveria avisar a eles,
mais como desencargo de consciência mesmo. Tenho certeza de
que vai ser de boas. Seus pais são muito legais.
— Será?
— Por favor. Hoje sua mãe me perguntou se eu já tinha
arranjado um namorado em Canoa, fora que o Hippie é famoso por
ser LGBTQIA+ friendly. É muito irônico você não ser assumido —
Otto apontou. — Veja também pelo lado do Júlio. Imagine o climão
que poderia rolar só por uma simples falta de comunicação.
Ele estava certo. Não seria justo com Júlio nem com meus pais,
e só reforçaria meu medo. Era isso: o momento em que eu tiraria
aquele peso de dentro de mim e me assumiria para meus pais
chegara. Dessa vez eu não o adiaria.

Um banho e alguns minutos antes das 19h, eu esperava por Mel na


sala da nossa casa quando meus pais saíram do quarto, já
arrumados para o evento que aconteceria em instantes.
Formavam um casal lindo: completavam as frases um do outro;
saíam em aventuras épicas; se permitiam tempos separados; e,
acima de tudo, conversavam sobre seus problemas.
Mas o que era natural entre os dois não necessariamente se
refletia na relação com os filhos. Às vezes, me perguntava por quê.
Melissa e mamãe, Pablo e eu: éramos a bagunça — escondida atrás
de cortesias e meias-verdades — sobre a qual não sabíamos como
lidar a respeito; que ignorávamos achando que, um dia,
simplesmente se ajeitaria, como mágica.
Por mais que tivesse dito a Mel que queria testar a reação dos
meus pais, ver se eram mesmo “progressistas” como diziam, não era
toda a verdade — nem chegava perto de uma. Era a desculpa que
eu rebobinava sem parar na minha mente, a única justificativa
plausível para ocultar o que me atormentava: não queria decepcioná-
los, não de novo. Minha questão com Pablo, a sensação de ser uma
derrota quando comparado ao meu irmão... Eu tentava ocultar aquilo
constantemente implorando pela validação deles.
E se contar sobre a minha sexualidade fosse o que me tirasse
da “disputa”? E se eu fosse a falha que, secretamente, sussurrava a
mim mesmo que era?
Como uma forma de me distanciar de Pablo e das confusões
que causava, me transformei no filho confiável e certinho com quem
podiam contar. Eu tentava ser perfeito ao meu modo, mas acabei me
perdendo no processo. Aquela era uma estrada falha e tortuosa,
insustentável.
Parecia adequado que meu ciclo de silenciamento acabasse
nesses dias, quando tanto mudava de uma vez.
— Ainda tá por aqui, filho? — meu pai indagou. Usava a camisa
larga repleta de padrões geométricos que comprou em uma viagem
à África do Sul, colorida e cheia de vida como ele. Segurava uma
latinha de cerveja e fez cafuné no meu cabelo ao passar. Ele tinha
um Olho de Hórus tatuado em sua mão, as linhas clareadas pelas
décadas. Papai dizia que muitas pessoas carregavam seus amuletos
de proteção fora deles, elementos externos. Mas o seu empunhava
na pele, inapagável.
— Tô esperando Mel. Ela queria dar uma passadinha final na
música antes da gente se apresentar.
Pelo canto do olho, vi minha mãe colocar um incenso de
alfazema no incensário, o cheiro perfumando a sala em uma lufada
de vento. Ela bateu na porta do quarto de Melissa, que gritou um “já
vou!” lá de dentro.
Mamãe me encarou.
— Quando essa fase vai passar? — desabafou. — Você e seu
irmão não foram tão rebeldes.
— Tem certeza, mãe? — Nas minhas lembranças, Pablo havia
sido, sim, bastante rebelde. Na Espanha, fazia grandes festas com
os amigos quando nossos pais viajavam; desaparecia e não dava
notícias por dias... O casal traduzia as ações do meu irmão como
uma “busca natural por liberdade” do filho mais velho, o passarinho
que, merecidamente, escapava do ninho como torcia que fizesse.
Eu não concordava.
— Você nunca me deu muito trabalho — ela continuou.
— Exceto — meu pai deu uma risada entre um gole e outro da
cerveja — quando estava doente. Dramático que uma beleza — ele
disse, sua voz subindo uma oitava.
— Vamos, cariño? — Minha mãe puxou o braço de papai
gentilmente, os cabelos soltos pendendo sobre os ombros nus. Seu
vestido era um tomara que caia laranja, o tom vívido quebrado
apenas pelo colar trançado com uma ametista lapidada ao centro.
Ele concordou, e ambos estavam prestes a sair pela porta
quando me dei conta de que, se não agisse, minha chance iria
embora com eles também.
Seria tão natural simplesmente deixá-los. Depois de anos
omitindo aquela parte de mim, era difícil encontrar coragem para
falar em voz alta.
— Espera! — Minha voz soou meio partida, o peito palpitando.
Eu tinha pulado do sofá e os dois se viraram em sincronia. — Preciso
contar uma coisa pra vocês.
Podia ver a transformação alarmada no rosto deles, como se
também soubessem que eu estava prestes a dizer algo que mudaria
para sempre nossa relação, de um jeito ou de outro.
— É sobre o hostel? — mamãe perguntou. — Se estiver muito
difícil, mi hijo, se estiver muito pesado, pode dizer. A gente acha
alguma ajuda ou...
Balancei a cabeça.
— Não, mãe. Não é isso.
Eles esperaram que eu continuasse. Minhas mãos estavam
suadas e eu não conseguia manter o peso do olhar deles.
— Pode nos contar qualquer coisa, filho. Sabe disso, certo? —
meu pai reforçou.
Claro que eu podia contar qualquer coisa. Claro que me
apoiariam. Eles nunca foram o real problema, foram?
Era o medo.
O meu medo.
E o medo de ser rejeitado era apenas a voz sabotadora
sussurrando no fundo da minha mente. A voz sorrateira que me
impedia de me mostrar de verdade, de ser quem eu era. A voz que
tentava me manter à margem de Pablo, uma versão disforme dele
incapaz de desabrochar. A voz do Matias que era sombra de alguém
que nunca existiu, e que desapareceria hoje, agora.
— Eu sou bi. Sei que não deveria, mas eu tinha medo de... não
sei. Desapontar? Não ser o que vocês esperavam? Porque eu não
sou nada que vocês esperavam, sou? Eu não sou Pablo. Não vou
seguir a carreira que vocês imaginavam pra mim. Nunca vou ser um
surfista famoso e, honestamente, nem sei o que fazer da minha vida.
Mas eu queria contar pra vocês agora. — Minha voz saía
estranhamente firme. — Conheci uma pessoa legal e ele vai estar
aqui hoje. E embora só o conheça há poucos dias, sinto que gosto
dele de verdade. Não queria esconder mais nada de vocês.
Se estava em pé, não sabia como. Sequer os olhava. E se
olhasse e visse a decepção que tanto temia refletida neles? E se
visse ódio, rancor e tristeza manchando o que fora amor e orgulho?
Quando criei coragem, entretanto, não encontrei nada além de
ternura.
Mamãe deu um passo à frente; era ela quem o fazia. Nunca
teve medo do mar, mesmo quando se mostrava turbulento e
tempestuoso. Ela alcançaria a mais perigosa das ondas sem um
momento de hesitação, se precisasse. Independentemente de quão
difícil fosse, ela se concentraria, limparia os pensamentos e tomaria
a dianteira. Foi a qualidade que a tornou uma campeã.
— Matias, você não é nada como eu esperava.
E embora aquelas palavras não fossem o que eu imaginava
ouvir, não causaram dor, tampouco.
— Também não é nada que eu esperava, filho — a voz do meu
pai veio logo após a dela.
— E é isso que nos deixa mais felizes, não é, Augusto? — Ela
olhou para o marido. — Que você seja você. Não seu irmão, não
qualquer outra pessoa, mas o indivíduo único que nós amamos e
somos orgulhosos de acompanhar crescer.
— Não te criamos pra você ser uma cópia das nossas
expectativas, filho, mas para que você seja quem você é. Seja lá o
que isso for — papai então pensou melhor, fazendo uma cara
confusa. E sorriu; era o sorriso de quem tinha, na ponta da língua, a
piada perfeita para amenizar a inquietação do momento. — Exceto
bolsominion. Pelo amor de Deus, Matias, não dê essa vergonha pra
gente. Nunca, tá me ouvindo?
Eu dei uma risada alta. Aquilo era tão meu pai: fazer graça
quando a situação era impossível, tensionada como o fio esticado de
uma navalha e prestes a cortar tudo ao meio. Ele não se jogaria na
onda como minha mãe. Esperaria na areia, atento, e estaria lá para
nós se caíssemos.
Era o que os tornava tão bons juntos: um correria os riscos e o
outro apoiaria.
Caos e tranquilidade.
Ascensão e queda.
Eles teriam um ao outro apesar das consequências.
A tensão desapareceu. Em seu lugar, uma sensação de
acolhimento e alívio tomou conta de mim. Nunca poderia ter sido
diferente disso, compreendi, e por um instante me senti bobo por ter
temido em vão.
— É a hora em que a gente dá um abraço em família no maior
chororô? — perguntei. Seria o segundo em menos de uma semana.
Valeria a pena.
— Siempre — mamãe disse, rindo naquele seu jeitinho
anasalado. Nós três nos agarramos desajeitadamente, minha cabeça
descansando no topo da dela, os braços de papai em meus ombros.
Melissa abriu a porta do quarto bruscamente e indagou:
— O que tá pegando aqui?
— A gente tá celebrando, Mel — meu pai falou.
— Oi? Celebrando o quê, gente?
— Seu irmão acabou de contar que é bi! — Pela excitação em
sua voz, era como se eu tivesse dito que ganhei na loteria.
— E sem vídeo no TikTok — acrescentei.
Mel revirou os olhos.
— Ai, Matias, finalmente! Mas eu realmente queria ter gravado,
poxa — ela disse antes de se jogar entre nós, seus bracinhos ao
redor da cintura de mamãe.
Foi como se as desavenças familiares momentaneamente
evaporassem. Ali, os quatro juntos, aconchegados, éramos ninho
outra vez. Eu fechei os olhos marejados e me permiti saborear o que
significava estar entre eles.
Quando nos afastamos, meu pai fingiu tirar um cisco do olho e
Melissa e mamãe continuaram agarradas; era o mais próximo que
via as duas juntas em meses.
— Podemos falar depois? — escutei minha mãe dizer baixinho
para ela. — Sobre a gente e como você tem se sentido... Não quero
ficar distante, Mel, achando que te perco aos poucos.
Isso a pegou de surpresa. Por um instante, Melissa voltou a
parecer como a bebê que todos nós cuidamos e amamos, frágil e
risonha, luz onde estivesse.
— Tudo bem. Eu também quero — Mel respondeu, e mamãe a
abraçou com mais força. Papai e eu compartilhamos um meio
sorriso.
Em seguida, sentindo que tinha se tornado a atenção do
quarto, Melissa me questionou com malícia:
— Isso quer dizer que o Júlio tá vindo?
— Júlio? — mamãe inclinou as sobrancelhas.
Eu pigarreei.
— O menino.
— Que você gosta?
Eu assenti.
Ironia do destino ou não, justo naquele segundo meu celular
vibrou com uma notificação.
Era ele.
— É o Júlio? — Meu pai tentou espiar, dando um
empurrãozinho no meu ombro. Pelo modo carinhoso com que dizia
seu nome, era como se fossem velhos amigos.
— Sim. Acabou de chegar, eu acho.
— Tá esperando o quê, filho? Vá lá receber meu genro. Mas
olha, camisinha sempre, hein?!
— PAI — eu protestei, a risada dele ecoando pela sala. Minhas
bochechas pegaram fogo. Ignorei os olhares de todo mundo e corri
para a porta, não sem antes ouvir a voz de mamãe ao trancá-la atrás
de mim:
— Pensei que ele não contaria nunca. Pra cima e pra baixo
com uma prancha rosa com o nome Rosalía, dios mio. Achava que a
gente não sabia?
— Cores não dizem nada sobre a sexualidade de ninguém,
Ana. Você sabe disso — meu pai a corrigiu, e eu gargalhei
novamente pela ironia.
Ah, a vida.
Passei quase 20 anos com medo de dizer que era bi, só para
ouvir que minha mãe sabia desde sempre.
Telegram

O Único Marido de Júlio Andrade

Júlio Andrade entrou no grupo.

Olá?
Alguém em casa?

Você entrouuuu!
Pensei que isso não aconteceria nuncaaaa.
Boa noiteeeeeeee, guapo!!!

Hey, Matias! ;D
Você é o “único marido” em questão?

É a minha teoria, hahahaha


Você tá bem? Chegou ok de viagem?

Foi tudo tranquilo. Tô na frente do hostel agora (sem atrasos


dessa vez!). Vem me pegar?

Aguenta aí, lindooo! Já tô chegando pra te


pegar de jeito hahaha.

Bobo!!!
(Mas vem mesmo).
(De jeito).
Quinze

Ele estava lindo.


Não que eu esperasse outra coisa. Mas a franja caindo pela
testa em vez de penteada para o lado; a blusa de botões de chita
com estampa de cactos e flor de mandacaru; o colar; o All Star azul
com uma meia branca que ia até pouco abaixo do joelho... Aquilo era
demais para o meu coração.
O bronzeado no rosto havia se tornado mais homogêneo, a
vermelhidão dos dias na praia esmaecido. O único vestígio da
exposição ao sol era a pele que descamava na região do nariz. Na
mão, trazia uma pequena sacola de plástico cujo conteúdo me era
um mistério.
Acesas, as luzes rosas da entrada do Hippie contrastavam com
o colorido psicodélico das pinturas da parede. Aquele arco-íris com
cara de rave deixava Júlio sob uma aura diferente. Eu o espiei por
cima da cerca de plantas da lateral antes de fazer minha aparição.
Quando ele me viu, um sorriso iluminou seus olhos e lábios.
Júlio acenou e eu corri para abraçá-lo.
Ninguém me julgaria por isso. Todos aqueles dias longe dele
foram uma tortura que eu fazia questão de reduzir a nada agora.
Ele cheirava a banho recém tomado e café. Era uma delícia.
Minha mão deslizou para suas costas e eu beijei sua bochecha.
— Cuidado — ele disse, tentando se equilibrar.
Seus braços não sabiam bem o que fazer inicialmente, mas
logo se acomodaram na minha cintura, os dedos desenhando
círculos em minha pele.
— Morri de saudades, guapo — sussurrei em seu ouvido,
sentindo seu corpo estremecer.
— Eu também — Júlio admitiu, a cabeça descansando em meu
ombro.
— Você está vestido — falei com um muxoxo.
— Deveria tirar a roupa antes de entrar?
— Não, agora não. Só mais tarde.
Júlio riu, o ar quente que saiu de sua boca dançando entre nós
dois como um afago.
Eu não lembrava de me sentir assim antes.
As paixões que tive se empalideciam diante de Júlio, do jato de
adrenalina que só em estar ao lado dele invadia minha corrente
sanguínea como uma enchente de hormônios ensandecidos. Havia
algo de muito... certo. Nenhuma outra explicação era viável além
dessa. Certo. Certo como um mais um é igual a dois. Certo como o
nascer de um novo dia após uma longa noite. Certo como todas as
coisas certas do mundo.
Ele beijou meu pescoço e depois se afastou de leve,
desvencilhando-se de mim.
— Olha o que eu trouxe pra você — Júlio me entregou a sacola
misteriosa.
— O que é isso?
— Lembra que falei sobre uma fruta que a gente encontrou no
caminho pra Natal?
— A que vocês batizaram de “cirimbu”?
— Isso! A gente achou na volta. Na verdade, a história é um
pouco mais louca que isso. — Ele riu enquanto eu tateava o saco. —
O cara que vendeu pra gente não tava. Um conhecido dele contou
onde era o sítio em que ele morava, e fomos até lá pra comprar.
— Não precisava fazer isso por mim.
— Não foi só por você, seu besta! — Ele balançou a cabeça. —
Mainha e eu ficamos viciados. A gente não sabia se acharia de novo
um dia, porque esse enxerto foi um experimento e a safra tá
acabando, mas aqui está. Quer provar?
— Claro. Tem que ser na sua frente? — eu perguntei. Júlio
disse que sim e eu o puxei com a mão até a escadaria principal do
Hippie, onde podia ver com mais clareza. As frutas pareciam
ciriguelas inchadas, ainda não completamente amadurecidas, sendo
que bem maiores e ovais. Eu peguei dentro e coloquei inteirinha na
boca.
O sabor explodiu na língua; tinha um gosto maravilhoso, cítrico,
vibrante e doce, como o próprio Nordeste.
Júlio observava a cena com curiosidade e excitação. Devo ter
expressado todo meu prazer, porque deu uma gargalhada alta e
satisfeita.
— É. TÃO. BOM! — exclamei de boca cheia.
— Eu disse!
— O caroço é menor e tem mais carninha, né? Nossa, perfeito.
Mamãe vai adorar.
Júlio olhou para o chão.
— Sua família tá lá dentro? O Alê também?
Joguei o caroço do cirimbu na lixeirinha da entrada.
— Todo mundo menos meu irmão, que mora fora, e o Alê, que
tá trabalhando — anuí. — Por quê? Tá com medo?
— Medo-medo, não. Nervoso.
— Não fique.
— Eles sabem que você me chamou?
Estudei o rosto dele. Sim, era fácil entender de onde vinha o
receio de Júlio. Eu até podia agir como se não fosse grande coisa,
mas era.
— Sabem, e minha irmã viu uma notificação com seu nome no
meu celular.
— Ela tem ciúmes de ti?
Balancei a cabeça.
— Ciúmes, não. Mas ela gosta de ação. Então, se estiver
pretendendo me pedir em casamento hoje, faça um gesto grande e
exagerado que ela vai amar.
Ele deu uma risada gostosa.
— Vamos entrar? — intuitivamente segurei a mão dele. Júlio
hesitou. — Tudo bem se a gente ficar de mãos dadas, né?
Ele levantou o rosto.
— Não acha que enviaria uma mensagem errada?
— Que a gente tá junto?
A expressão em seus olhos era desafiadora.
— Estamos, Matias?
— Você está aqui agora.
— Mas o que isso significa de verdade?
— Que você está aqui. Segurar sua mão só significa que eu
gosto de você, e que gosto de te ter por perto. Não ligo mais pro que
vão pensar.
Uma sensação de gratidão preencheu meu peito ao dizer essas
palavras, sobretudo por Otávio. Foi ele quem me fez perceber a
importância de contar aos meus pais sobre minha bissexualidade e
Júlio. Pensei em falar ao menino a respeito da conversa que havia
acabado de acontecer, mas decidi guardar comigo, por ora.
Júlio me analisou com curiosidade. Passou a vista de nossas
mãos para o interior do hostel, onde algumas pessoas entravam.
Carlos, um dos funcionários mais antigos, atendia as visitas na
recepção, indicando o lugar da festa.
— Só pra deixar claro — Júlio falou —, você não é meu
namorado.
— Ainda...
— Nada disso — ele apertou meus dedos com força.
— Como desejar, guapo. Agora podemos ir?
— Só se prometer se comportar, Matias.
— Quando não me comportei? — indaguei, puxando-o comigo
antes que pudesse responder.
Fomos pelo caminho lateral do terreno. Minha vontade era
empurrá-lo contra o muro e beijá-lo, mas concentradamente nos
guiei na direção da festa.
Cerca de quarenta pessoas lotavam o quintal do Hippie. As
luzes coloridas criaram um efeito acolhedor ao redor do lugar, a água
da piscina refletindo-as. No karaokê, Otto dividia o microfone com
uma hóspede canadense. Haviam escolhido Shallow, da trilha de A
Star is Born, a menina cantando a parte do Bradley Cooper enquanto
meu amigo se esbaldava com a da Lady Gaga. Otto era bastante
expressivo e emotivo no palco, chegando a ficar de joelhos e fingir
choro no refrão.
— Cadê os seus pais? — Júlio sussurrou, olhando ao redor.
— Ali — eu apontei para a mesa da comida. Conversavam com
um casal, papai segurando sua segunda cerveja da noite.
— Você parece com seu pai — ele disse —, só que com um
pouco do sorriso e os olhos da sua mãe.
— É o que todos dizem.
Eu ia até os dois, mas mamãe nos viu primeiro. Ela cochichou
algo no ouvido de papai, que se virou rapidamente para nos
observar, acenando com entusiasmo. Depois, pedindo licença ao
casal com quem conversavam, começaram a marchar até nós.
Eu podia sentir o nervosismo crescer em Júlio.
— Eles tão vindo pra cá, né? — perguntou baixinho.
— Uhum.
— O que eu faço agora?
Me virei para dar outro beijo em sua bochecha.
— Fique firme e faça o que fez comigo: arrebate o coração dos
velhos.
Júlio pisou de propósito no meu pé e abriu um sorriso largo
quando meus pais chegaram.
— Boa noite, senhor e senhora Mendonza! — ele disse com
polidez, soltando a minha mão para cumprimentá-los. Para quem
questionou os clichês americanos no Terra Napoli, a saudação soava
excessivamente formal. Refreei uma risada.
— Olá, Júlio. Pode me chamar de Ana. — Mamãe sorriu,
lançando uma piscadela conspiratória para mim.
— Guto — meu pai disse, apertando a mão dele — Teixeira.
Mendonza é só da Ana.
— Desculpa! É que o Matias usa o Mendonza e eu pensei
que...
Papai deu uma batidinha em seu ombro. Ele amava contato
físico. Dizia que aproximava as pessoas e permitia que realmente
sentíssemos a energia dos outros.
— Ih, Júlio, esquenta não. Meus filhos me renegaram... Afinal,
Teixeira não é sobrenome de uma campeã mundial...
— Para de chororô, pai — eu reclamei, mas em parte era
mesmo verdade. Pablo e eu atendíamos por Mendonza. Era mais
compreensível vivendo na Espanha, sobretudo durante a escola.
Nem todo mundo sabia pronunciar o sobrenome da minha família
paterna e era exaustivo ter que explicar sempre.
Mamãe veio em minha defesa.
— Estamos muito felizes em recebê-lo, Júlio. Gostaria de algo
para beber? Ou comer?
— Ana fez uma paella maravilhosa mais cedo! — papai disse, e
os dois não deram nenhuma chance para Júlio recusar: arrastaram o
coitado com eles rumo à mesa, escoltando-o como um prisioneiro de
guerra. Júlio ainda fez menção de mover o pescoço para trás com
um pedido de socorro estampado nos olhos. Seus lábios disseram
algo como “e agora?”, mas eu só dei de ombros e sorri. Coisas
piores podiam acontecer nessa noite para além dos meus pais
tentando socializar com meu então não-namorado.
Senti meu coração aquecer ao observá-los juntos. Minutos
atrás eu debatia se deveria falar para eles a verdade, e ali estavam
agora: receptivos e amáveis.
Era como se nada tivesse acontecido, e mesmo essa afirmação
era uma mentira.
Algo acontecera, só que para melhor.
De fato, para muito melhor.
Dezesseis

Otávio segurava o microfone com tanta segurança que parecia


um mestre de cerimônia experiente.
Ele havia permitido que as duas meninas que cantavam
Bixinho, da Duda Beat, chegassem ao final da música no karaokê.
Mas agora olhava para o público com um sorriso canastrão que só
podia significar uma coisa: era nossa vez, minha e de Mel, de
comandarmos o show.
— Amores, espero que o ouvido de vocês ainda não tenha
estourado essa noite, porque nossa próxima apresentação é muito
especial! — A voz dele ecoou pelo quintal, uma leve microfonia
deixando todos desconfortáveis no final da frase. — Defendendo o
legado artístico da família, senhoras e senhores, diretamente de
Formentera na Espanha, Matias e Mel Mendonza!
Tudo era exagerado demais, mas as pessoas, de alguma
forma, tinham comprado a ideia. Elas aplaudiram conforme Melissa
me puxou até o ponto perto do telão onde duas cadeiras foram
dispostas junto a tripés com os microfones que usaríamos. Eu
segurava o violão com força, tentando fingir que o movimento na
minha barriga não era nada além de um pequeno desconforto.
Um semicírculo se formou ao nosso redor, a galera que estava
espalhada pelo terreno se reagrupando. Otto conectou o vídeo que
Mel escolheu para passar no telão, imagens de drone sobrevoando o
mar. Me ajeitei no assento, respirando fundo, o violão azul em meu
colo.
— Não estrague isso — Mel sussurrou com os olhos
espichados, sorrindo com condescendência e assumindo seu posto.
— Vou tentar.
Tirando uma ou outra vez no karaokê ou em fogueiras na praia,
era minha primeira vez cantando em público. Minha voz não era
marcante ou sublime, e meu talento no violão tampouco seria
descrito como glorioso. Mas era afinado e meu timbre combinava
com a música escolhida — isso bastava.
No fim, era tudo sobre Melissa e seu sonho de ser cantora. Mel
fazia aulas de canto desde pequena e se imaginava como uma pop-
star. Sua voz era realmente linda, doce e potente, com um arranhado
natural nos graves que surpreendia. Foi mais para acompanhá-la
que comecei a tocar violão, já que ninguém na família era envolvido
com música. Era grato a Mel por isso; descobri algo de mágico na
experiência de criar arranjos e melodias a partir dos meus dedos
(fora que ajudava bastante nas paqueras).
Júlio estava no primeiro plano da roda, sozinho. Meus pais
haviam desaparecido. Ele me encarava com uma expressão
surpresa. Não o avisei da apresentação e me ver com o violão,
sendo anunciado por Otávio, o deixou com as sobrancelhas
arqueadas, incerto do que eu estava prestes a fazer. Maneei
timidamente a cabeça em sua direção, e ele colocou a mão sobre a
boca, segurando um riso.
— Podemos, Mel?
Minha irmã assentiu, inspirando profundamente e cruzando as
pernas, os dedos buscando as pulseiras em seu pulso.
Fechei os olhos. Primeiro me permiti experimentar a sensação
do violão. Depois, passei os dedos pelas cordas sem produzir som
algum. Contei até três em voz baixa e comecei.
A primeira nota de Lucky era lá maior. Repeti a introdução duas
vezes, sentindo a energia da música me envolver. Quando entoei o
primeiro verso, já estava completamente entregue.
A frase inicial era a minha favorita. “Do you hear me? I’m talking
to you”, Jason Mraz dizia em tom de convite, como se falasse
diretamente ao ouvinte — ou qualquer que fosse a pessoa que o
inspirara. A composição inteira era um diálogo, uma promessa, um
flerte. Uma declaração de amor. Quando Mel escolheu a faixa, não
tinha nenhum significado para mim além do abstrato; afinal, não
havia ninguém em especial a quem eu pudesse dedicá-la.
Mas aquilo mudou: Júlio estava ali. A franja caindo pela testa.
As bochechas vermelhas. As luzes coloridas refletindo-se na lente de
seus óculos. Ele parecia mais leve, e eu apostaria que até um pouco
emocionado também. Pela maneira com que sorria, era como se me
conhecesse de novo.
Se antes tentei desvendá-lo, buscando compreender a pintura
completa dele, Júlio fazia o mesmo comigo agora. Só esperava que
ele gostasse do que encontraria.
Meus olhos iam do violão para o menino involuntariamente, e
até quando Mel cantava a parte da Colbie, a voz afetuosa e leve, eu
achava uma maneira de voltar minha atenção a Júlio.
Era engraçado como aqueles quase quatro minutos cantando
aparentavam ser mais longos do que realmente eram. Júlio deveria
saber que eu cantava para ele. Era tão óbvio: tudo o que dizia —
todas as partes da letra — era sobre nós dois.
Havia um diálogo implícito naquela nossa troca de olhares. Se
a cena ganhasse uma sequência cinematográfica, dois holofotes de
luz nos iluminariam: um centrado no menino e o outro, em mim, nos
isolando do restante do mundo. Eu não precisava da ilusão dos
filmes para sentir aquilo; na minha cabeça, não havia ninguém além
dele, Melissa, eu e a música.
No último refrão, todos cantarolavam em um coro engraçado.
Algumas pessoas gravavam e outras haviam ligado o flash do
celular, braços erguidos indo de um lado para o outro como se
estivessem no show de seu ídolo favorito.
Júlio também cantava, os lábios se mexendo no ritmo da
música, curtindo o momento. Melissa acertou a nota que tanto
temera, e, quando sussurramos os últimos vocalizes, eu me senti
com sorte.
Com sorte por tê-lo conhecido.
Com sorte pela família que me amava.
Com sorte pelo futuro que se desenhava para mim, qualquer
que fosse a direção que tomasse.
Devagar, tirei a mão do violão. Deixei a música ir embora e
agradeci.
Os aplausos preencheram o ar e Mel me agarrou forte, sorrindo
de orelha a orelha.
— Obrigada por não estragar nada — ela murmurou, deixando
um beijo em minha sobrancelha.
— Você arrasou muito, minha diva — disse a ela, colocando o
violão no chão.
De mãos dadas, nos curvamos para o público. Todo mundo
podia ver que o que significava para Melissa estar ali, e os aplausos
e assobios foram longos, estrondosos.
Talvez, naquela noite, contemplássemos o desabrochar dela
também.

Caminhei até Júlio e dei um abraço nele.


— Não sabia que você cantava — ele falou. — Nem que tocava
violão.
Mas eu não consegui responder. Do nada, o círculo se abriu e
um coro de Parabéns Pra Você, puxado por Otto no microfone,
explodiu. Minha mãe segurava um bolo enorme na mão com uma
vela daquelas que parecem fogos de artifício. No topo, havia o
número 20 ao lado de uma miniatura minha surfando em Rosalía.
Papai, caminhando à direita da esposa, empunhava sua
câmera de filmagem antiga; ele nunca deixou de gravar vídeos
caseiros engraçados que nos pegavam em situações inesperadas, a
imagem tremida e granulada.
— Feliz cumpleaños, mi hijo! — mamãe festejou.
— Faz o pedido, Matias! — Mel gritou enquanto a cantoria
continuava. Os hóspedes que não falavam português tentavam
seguir as palavras no idioma que conheciam e uma mistura louca era
percebida no ar.
À minha esquerda, Júlio parecia chocado pela segunda vez na
noite. Ele acompanhava os outros, batendo palmas no ritmo da
música. Claramente não fazia ideia do que estava acontecendo.
Nem eu, para ser sincero. Pablo transformava o seu aniversário
em um grande acontecimento, mas eu não comemorava o meu
desde os 13 anos. Meus pais me deixavam em paz quanto a isso.
Minhas redes sociais mostravam que nasci em um dia errado que
pregava peças, e ninguém fora da família sabia da data verdadeira.
Tanto que, ao longo de toda a quinta-feira, pensei que haviam
esquecido e fiquei na minha. Até Melissa, que era a única a ainda me
dar os parabéns, não disse nada.
Deveria ter suspeitado que tramavam algo.
Pela primeira vez em anos, no entanto, não me senti mal com a
surpresa. Agora via que tinha me feito acreditar que não gostava de
aniversários apenas para ter algo que me diferenciasse de Pablo,
que nos separasse.
De modo que, quando me inclinei para apagar a vela, um único
pedido se acendeu em minha mente: “me surpreenda”.
No microfone, Otto até começou um “com quem será” com o
nome de Júlio, tão vermelho quanto uma pimenta. Com pena dele,
lancei um olhar mortal para meu amigo, que deixou para lá e partiu
para uma imitação ousada da Marilyn Monroe cantando ao
Presidente.
Ajudei mamãe a colocar o bolo na mesa. Os abraços e as
felicitações de um ano incrível se seguiram, e eu atendi todos até só
sobrar Júlio.
— Ainda não acredito que você não disse que era seu
aniversário! — Ele cruzou os braços em desafio.
— Eu não fazia ideia de que eles tinham planejado isso tudo.
— Por que não falou? Eu poderia ter trazido um presente ou sei
lá.
— Mas você trouxe.
— O cirimbu?
— Uma fruta rara é o que muita gente gostaria de ganhar de
aniversário. Além disso, você veio. Esse é o maior presente de
todos.
Júlio relaxou.
— Bom, o lado positivo disso é que você não falou que era
aquariano.
— Teria sido um problema?
— Eu teria pensado duas vezes antes de ter te convidado pra
tomar o açaí que nunca aconteceu.
— E perder a oportunidade de estar aqui agora por uma má
interpretação idiota do meu signo? — Balancei a cabeça. — Que
bom que isso não aconteceu. Eu não iria querer essa noite nem um
pouco diferente.
— Realmente. Não sabia que precisava te ver cantando Jason
Mraz até te ver cantando Jason Mraz.
— Você gostou?
Ele franziu a testa.
— Você sabe que sim, Matias. Na verdade, você é
autoconsciente demais de como me faz sentir, e talvez esse seja o
seu problema.
— Saber que te deixo louquinho? — brinquei, aproximando
nossos rostos. Júlio colocou suas mãos entre nós dois, no entanto,
me impedindo de chegar mais perto.
— Para, você não vai me beijar na frente dos seus pais — ele
alertou, e percebi que havia esquecido da existência das demais
pessoas à nossa volta. De novo.
— Tudo bem. Na frente deles, não — baixei a voz. — Mas
preciso deixar o violão no meu quarto e não queria ir sozinho, porque
tenho medo do escuro e tal. Me acompanha?
— Você quer que eu vá contigo no seu quarto? — ele arqueou
as sobrancelhas.
— Quero.
— E seria só isso?
— Não só...
Júlio colocou a mão na cintura. Pude ver uma faísca de malícia
cintilar no olhar dele enquanto considerava o convite. Naquele
instante, soube que tinha ganhado exatamente o que queria.
— Então acho que a gente deveria ir — o canto da boca dele
se ergueu em um sorriso astuto. — Eu não deixaria o aniversariante
sozinho no seu dia.
Dezessete

Mas, quando deixamos a festa para trás, a lua cheia e o céu


estrelado acima, nos beijamos.
Não sei quem deu o primeiro passo.
Não sei como chegamos em casa.
Não sei como o violão não quebrou.
A única coisa que eu sabia era o corpo de Júlio. O gosto de
seus lábios, o calor que emanava de seu toque. Ele estava em toda
parte em mim, suas mãos puxando minha camisa e meu cabelo.
Jogamos nossos chinelos de qualquer jeito na entrada da casa,
assim como o violão, que deixei no sofá com os óculos do menino.
Era como se não pudéssemos nos separar, nem mesmo por um
segundo.
Abri a porta do quarto sem acender a luz, a maçaneta fria na
palma suada, e o agarrei pela cintura.
Ele pressionou minha garganta e minhas mãos desbravaram
suas costas, a barreira da camisa à sua pele tornando-se pouco a
pouco insustentável. Eu queria mais. Queria senti-lo sem que
houvesse nada entre nós, nenhum empecilho.
Eu o apertei contra mim, minha virilha pressionada à sua, e eu
tinha certeza de que percebia o momento como eu o experimentava
agora: quente e abrasivo, labaredas e incêndio.
Meus dedos seguraram a ponta de sua camisa, tentando trazê-
la para cima.
Mas houve um movimento, e Júlio me afastou de leve, uma
mão em meu ombro.
— Espera — ele murmurou, a voz entrecortada e ofegante. Eu
não conseguia ver seus olhos no escuro, nada além da silhueta e da
imagem que minha mente projetava de nós. — Não sei se devo.
— Júlio... — Tentei achar uma resposta em seu rosto, mas não
havia nada que pudesse ser decifrado. Um pensamento atravessou
minha mente: e se eu estivesse pressionando-o demais, levando-o
onde ele não estava pronto para ir? A ideia de magoá-lo me
assombrou, e eu recuei. — A gente pode parar, lindo, se você não
estiver confortável.
— Não é isso. — Ele balançou a cabeça.
— Qual é o problema?
Eu sentia seu nervosismo, a incerteza falando através dos
gestos. Mas ele ergueu o rosto e, embora não pudesse distinguir os
detalhes em seus olhos, eu via a verdade que cuidadosamente
tentava mostrar.
— Nunca fiquei sem camisa na frente de ninguém antes. Não
desde a cirurgia.
Minha barriga deu um pulo e eu juntei as peças.
Era por isso que não entrava na água, por isso que parecia tão
inseguro...
Como se tirar sua camisa o deixasse em ameaça iminente,
arriscasse colocá-lo na berlinda; sua zona de perigo particular.
Em um mundo como o que vivíamos, com tanto ódio e
preconceito, era tão difícil assim entender o medo dele?
— Júlio — eu segurei sua mão, beijando o espaço entre seus
dedos. — Você ama seu corpo?
Não sei o que me fez fazer essa pergunta em particular.
Parecia certo, apenas, uma intuição.
Ele não disse nada, a princípio. O instante seguiu, nós dois
segurando a respiração o máximo que podíamos.
Uma eternidade depois, ele olhou para mim com um olhar
intenso que me desfez completamente.
— Ainda estou aprendendo a me amar de verdade — Júlio
respondeu, sincero. — Mas não cheguei lá totalmente. Tenho medo
que você não veja o que eu vejo. Que não goste do que vê.
— Eu gosto de tudo que vejo em você.
Descansei a mão em seu coração. As batidas eram
descompassadas, quase elétricas.
— Mas e se eu não for o que você espera?
— Eu espero você, Júlio. Não há nada que precise esconder de
mim. Vou continuar aqui, de um jeito ou de outro, porque é você
quem eu quero.
Minhas palavras acenderam algo nele. Júlio passou os braços
por detrás da minha nuca e me puxou. Beijou minha boca com força,
sugando meu lábio inferior.
Era nosso beijo mais apaixonado, mais febril e apaixonado.
Júlio me empurrou até a cama e me jogou nela, minha cabeça
caindo sobre o travesseiro.
“Porra, Matias”, eu o ouvi murmurar. Lembrei de nós dois na
praia, logo após a onda acertá-lo; a expressão chateada em seu
rosto, a maneira com que a testa apertada desenhava uma linha
séria e sexy entre suas sobrancelhas. Desde o primeiro momento ele
havia construído barreiras protetoras ao redor de si. Elas caíam uma
a uma agora, desmoronando onde todas nossas vulnerabilidades
vinham à tona.
E embora não pudesse vê-lo, intuí que tirava a camisa. O
tecido caiu ao meu lado, um dos botões roçando na minha coxa
como pluma. Segundos depois ele estava sobre mim: sua bunda
pressionando minha virilha, suas mãos em meu peito afundando-me
no colchão. Ele se inclinou e me beijou, sua língua tocando o céu da
minha boca.
Eu o agarrei pela cintura e nos movi de lado. Estava em cima
dele agora. Deixei uma trilha de beijos da sua boca até o pescoço.
Baixei devagarinho, provando seu gosto e seu calor. E conforme
beijava sua pele, minha boca se aproximando do seu peitoral, eu via
como ele se tornava mais arquejante em mim, pequenos espasmos
atravessando seu corpo.
Eu sabia que chegava em um lugar especial nele; um lugar
aonde ninguém havia chegado, não daquela forma. Dali em diante
seriam terras inexploradas para Júlio — e que me deixar ir tão longe
era o maior presente que ele poderia dar; uma permissão que ia
muito além do físico, muito além do efêmero. Eu tocava seu coração,
literalmente. Ele o entregava para mim sem precisar dizer nada.
Lambi cada um de seus mamilos com cuidado enquanto as
pontas dos meus dedos sentiam a elevação das cicatrizes. Não eram
ásperas; a pele era macia ali, como o relevo sutil de uma tatuagem
recém-feita. Ele se agitou, a respiração ofegante. Eu o escutei
sussurrar meu nome e alinhei nossos rostos.
— Você é tão lindo — eu disse contra seus lábios. — Seu corpo
é tão lindo. Nunca pense o contrário.
A mão dele puxou meu cabelo com força e eu gemi. Não sabia
onde iríamos parar.
Se continuássemos... Se seguíssemos naquele ritmo...
Quis alertá-lo.
Quis dizer que, se pudesse, eu beijaria sua barriga e desceria
para além dela, também.
Quis que visse o quanto eu o desejava, o quanto o admirava.
Será que sabia? Será que era evidente?
Devia, porque, em seguida, Júlio falou como se desvendasse o
que se passava em minha mente:
— Eu quero você também, Matias.
As palavras ecoaram em meu ouvido. Ele colocou o indicador
entre os meus lábios, e eu o chupei lentamente, mordendo de leve a
ponta. Ele deu uma risada abafada, achando graça de algo
insondável. O ar ao nosso redor era quente e úmido, suor nascendo
do ponto onde nossos corpos se encontravam.
Ele subiu em cima de mim outra vez, prendendo minhas pernas
no colchão. Sugou meu mamilo direito, a língua desenhando círculos
enquanto apertava o outro com a mão.
Ficou por ali um tempo até descer mais com a boca. Fez uma
parada rápida no meu umbigo e, lentamente, desabotoou a minha
bermuda, puxando-a. Ergui o quadril, ajudando-o a tirá-la.
Fiquei apenas de cueca. A mão dele passeou por ali,
cuidadosa, sentindo onde eu estava duro. Ele me apertou com força,
seus dedos ao redor de mim, e eu empurrei a cabeça no colchão,
respirando fundo uma e outra vez.
Ele continuou me pressionando pela cueca até deslizar para
dentro dela.
Um gemido escapou por entre meus lábios, meu corpo
buscando por oxigênio tão rapidamente quanto podia.
Não havia nada nos separando.
— Júlio — acho que murmurei seu nome, ou talvez tenha sido
apenas em pensamento. Sua mão continuava subindo e descendo,
cada vez mais rapidamente. Quando não consegui me conter,
segurei seu pulso e o trouxe de volta à minha boca.
Mas então um feixe de luz acendeu debaixo da porta do quarto,
e a voz de Melissa ressoou.
— Matias? Tá por aqui? — ela arruinou o clima ao abrir a porta
de uma vez. Por sorte, Júlio se jogou em cima de mim, impedindo-a
de me ver pelado. Mel colocou as mãos sobre os olhos ao nos
flagrar, um gritinho agudo escapando de sua garganta. — Ay, Dios!
Perdón! Vale, chicos, ya me voy, no pasa nada, no pasa nada... —
Mel mudou inconscientemente para o espanhol e fechou a porta com
força.
Dezoito

Fiquei tão sem fôlego com a interrupção que nem soube o que
falar. Olhei para Júlio com medo de encontrá-lo chateado com o
ocorrido, mas ele estava rindo.
A risada, inicialmente baixa, foi crescendo até se tornar
descontrolada, como uma bola de neve despencando do cume de
uma montanha. Eu comecei a rir junto, o prazer de trinta segundos
atrás revertendo-se para a comicidade da situação.
Quando paramos, Júlio tinha encaixado a cabeça sobre o meu
peito. Podia sentir seu sorriso em minha pele, e alívio se espalhou
por mim.
— Eu não acredito que sua irmã viu a gente se pegando — ele
disse, ainda rindo.
— Nem eu.
— Acha que ela vai ficar traumatizada? Deveríamos sugerir
terapia ou algo assim?
— Ah, não. Melissa é forte, consegue se recuperar — brinquei.
— Mas e eu?
— O que tem você?
— Não sei se consigo me recuperar do que quase aconteceu.
— Você diz “quase gozar”? — Ele me beliscou e eu baguncei o
seu cabelo. Não soube o que falar em seguida, e Júlio se apoiou nos
cotovelos. — Quê? Eu deixei Matias Mendonza sem palavras?!
— Sim.
— Isso é novo.
— Eu sei.
Ele riu, virando-se para deitar ao meu lado na cama.
— Ainda nem vi o seu quarto. Que tipo de anfitrião você é?
— O tipo que tá ocupado demais entretendo o hóspede — eu
disse, me levantando para acender a luminária 3D no formato de lua
cheia na cabeceira da cama. A luz não era tão forte, mas no escuro
do quarto se destacava. Deixei em azul, a réplica das crateras da lua
iluminada.
Quando me virei para ele, Júlio observava meu cantinho. Minha
antiga prancha, coberta de adesivos, ficava encostada em uma das
paredes verde-menta. Havia um jarro com uma samambaia ao seu
lado. Na parede oposta, um painel de madeira aramado exibia várias
fotos minhas. Era o tipo de quarto que se encontraria no Pinterest
adicionando as palavras “surf room” na barra de pesquisa. Original?
Não necessariamente. Bonito? Com certeza.
— Gosta? — perguntei ao deitar com ele outra vez.
— Tem a sua cara — Júlio disse simplesmente. De alguma
forma, a frase soou como um elogio, uma confirmação a algo que
havia imaginado previamente.
Agora que o quarto estava claro, podia ver o menino melhor: os
cabelos pretos desgrenhados, os lábios mais rubros que o normal
(culpa minha). Via também seu peitoral, as duas finas linhas
horizontais abaixo dos mamilos demarcando o ponto da
mastectomia. Tinham um tom rosado em oposição ao restante da
pele branca dele.
Ele me percebeu olhando e pegou minha mão, colocando-a ali.
— Doeu? — perguntei, me aninhando nele.
— A recuperação, sim. Mas tive apoio. Meus amigos nunca
saíram do meu lado. Minha mãe é médica e foi maravilhosa também.
— Júlio falou. — O procedimento é caro e invasivo, e eu não queria
que ela pagasse tudo. Aí fiz uma vaquinha online com o pessoal do
site.
— E deu certo?
— Muito — ele deu um sorrisinho lindo, resgatando a
lembrança. — A gente arrecadou uma grana boa. Acabei nem
usando esse dinheiro, e o que devia ser algo pra mim se tornou uma
campanha pra ajudar outros meninos que não podiam pagar a
cirurgia.
— Que atitude linda, Júlio.
— Foi tão massa ver todo mundo se ajudando, todo amor
envolvido... Eu não fiquei sozinho em nenhuma parte do processo,
sabe? Isso que é o mais bonito.
— Eu fico tão feliz que você recebeu esse apoio. —
Gentilmente toquei seu lábio. — É o que você merece. Amor.
Era um momento diferente do de minutos atrás. Maré mansa e
águas calmas em detrimento à turbulência de antes. Eu me sentia à
vontade, como se já tivéssemos feito isso muitas vezes: deitado um
ao lado do outro, contando segredos e histórias, partilhando beijos
quentes no pescoço.
— Posso te perguntar uma coisa? — Júlio indagou.
— Sempre.
— Na praia. — Sua voz era baixa e curiosa. — Como você
sabia que eram 15:15?
— Eu não sabia.
— Não mesmo?
— Não fazia a mínima ideia.
Ele olhou para o teto do quarto com um ar contemplativo.
— Então foi só coincidência?
— Eu prefiro ler como um sinal. Como a capa do seu Kindle
com as luas.
Ergueu o queixo. As pontas dos dedos de Júlio vagaram acima
do meu peito, bem onde ficava a tatuagem. A luz da luminária
derramava um tom de azul sobre ela, que começava com a lua nova
e terminava na minguante.
— Eu pensei sobre isso — ele murmurou. — Foi tão estranho
quando vi a tatuagem em seu coração, porque havia ela e as horas
iguais... Tive a sensação muito louca de dèjá-vu, como se já te
conhecesse, como se já tivéssemos tido aquela conversa. Como se
fosse tudo uma grande ironia do destino.
Eu assenti.
— Acho que foi por isso que voltei no dia seguinte — falei para
Júlio. — Porque me senti como você se sentiu.
— Como?
— Como se já te conhecesse de alguma forma.
Ele estreitou os olhos, voltando-os para a tatuagem.
— O que ela significa pra você?
— A lua me influencia muito. Quando está cheia, fico mais
criativo e apaixonado, como agora — beijei o ombro dele. — Assim
como o mar é afetado pelas fases dela, também vejo que sou.
Queria honrar esse sentimento.
Júlio aproximou os lábios da tattoo, pressionando-os em cada
uma das pequenas luas.
— Como tá sendo a noite do aniversariante até agora? — ele
perguntou em seguida, sorrindo.
— Perfeita. Tudo por sua causa.
— Por quê?
— Porque você não está com medo de se mostrar pra mim.
Júlio passou a mão pela lateral da minha cabeça.
— Eu tô morrendo de medo.
— Não parece.
— Me tornei especialista em camuflar o que sinto, mas é
verdade, Matias. Pra mim, confiar não é fácil. Sabe quando a gente
passa tanto tempo correndo que, quando não precisa mais, nosso
corpo ainda se mantém na vibração da fuga? Eu estive nessa corrida
por mais do que queria. Achava que, se mudasse meu exterior para
se adequar a como me enxergo por dentro, tudo se resolveria de
uma hora pra outra, mas isso não é real. Minhas inseguranças
ganharam uma nova cara, os obstáculos se tornaram outros...
— Você tentou fugir de mim na praia.
— Não porque não quisesse te conhecer, mas porque pensei
que eu fosse algum tipo de brincadeira pra você. Um jogo.
— Você nunca seria uma “brincadeira” pra mim, Júlio.
— Eu sei disso agora. Mas não achei que um menino como
você ia reparar em mim.
— Como não repararia?
— É isso que tô tentando dizer, Matias. Não é sobre você. É
sobre mim, minha percepção a respeito do meu corpo e quem eu sou
— ele murmurou. — Só que algo mudou nesse meio tempo, porque
já não tenho mais a necessidade de correr quando estou contigo.
— Jura?
— Não sei por que — Júlio desenhou um círculo em meu
coração —, mas você me faz querer ficar.
Você me faz querer ficar.
Como contaria que aquela era uma das frases mais lindas que
alguém jamais me disse? Tentei encontrar uma maneira de verbalizar
o que sentia. Virei meu rosto em sua pele e inspirei o cheiro de seu
suor e perfume de lavanda, tranquilidade e maresia que aprendia a
reconhecer como dele.
— Você me faz querer ficar também.
— E isso não é estranho? A gente querendo ficar um com o
outro quando a maioria das pessoas não quer nada? Sexo casual é
legal, mas é só? Viver de deslumbres superficiais, nunca conhecer
ninguém de verdade...
— Nunca sair do raso — eu disse, a gargalhada de Júlio vindo
em seguida. — Ei, que foi?
— Suas referências com água não acabam nunca?
— Infinitas como o oceano — brinquei, beijando-o novamente.
— Você contou antes que nunca namorou. Era por medo também?
— Em partes. Minha cabeça compartimentaliza tudo, sabe?
Quando a gente cresce sendo magoado, é difícil não pensar que isso
não vai voltar a se repetir em outras relações, como em um padrão
insuperável.
— Uma das nossas professoras de meditação disse uma vez
que dor e êxtase são as duas partes de uma mesma moeda. Não dá
para suportar um grande êxtase se não conseguimos suportar uma
grande dor.
— Então eu devo estar pronto para o grande êxtase — Júlio
tirou onda. — Mas acho que entendo um pouco disso. Dessa
“balança”. Quando comecei meu processo de autoconhecimento, de
realmente perceber essa jornada que é me abraçar e defender meu
lugar no mundo como um homem trans, por um tempo eu quis viver
nos polos dos extremos.
— Oito ou oitenta.
Lembrei de nós dois no terraço do Terra Napoli, velas ao nosso
redor. Eu sou oito ou oitenta, por isso curti o rumo que as coisas
tomaram hoje, Júlio tinha dito.
— Sim. E apesar de eu ter brincado contigo sobre isso, nem
sempre os extremos me fizeram bem — ele tocou meu braço. —
Qual o exemplo de homem que a sociedade tem?
— Isso é uma pergunta retórica?
— Não, sério. Qual é?
— Ok: bruto, insensível, sexualmente orientado, bom demais
pra tarefas domésticas, racional...
— Exato. Esses são os aspectos do “homem” criado pelo
patriarcado. O provedor, o caçador. Sei que não é a realidade de
todos, mas foi com um pai assim que cresci, o tipo de pai que foi
embora quando esse mesmo ideal de homem foi questionado em
casa — ele disse com certo remorso, a voz falhando ao mencionar o
pai. Havia mais do que Júlio deixava transparecer ali. Imaginei que
falaria a respeito se estivesse pronto, um dia. — Infelizmente, esse
era o meu modelo também e eu quis correr pra isso. Quis ser o
homem que a sociedade enxerga como tal porque achava que era a
única maneira de ser visto como um em primeiro lugar.
— Funcionou?
— Nunca. Para ser o homem que sou eu não preciso ser esse
homem. Esse modelo cis falido que só ajudou a levar o mundo a
esse estado em que a gente está agora. Principalmente, descobri
que não preciso negar nem sufocar a minha energia feminina para
ser quem eu sou.
— No Xamanismo, o Grande Espírito é formado pela união das
duas polaridades. — Eu sempre fui apaixonado pelos ensinamentos
xamânicos e o comentário de Júlio me fez recordar do que conhecia
a respeito. — É o Deus e a Deusa reunidos. Yin e Yang.
— Mas eu fiz isso, sabia? — Júlio suspirou. — Neguei o que é
julgado como feminino em mim achando que assim me afastaria da
“mulher” que as pessoas me viam como, que me tornaria mais
homem... Só que não preciso caber na caixinha de ninguém para ser
quem eu sou, ainda mais uma tão defasada.
Tomei um tempo para analisar a vivência de Júlio. Eu nunca
tinha me envolvido romanticamente com uma pessoa trans antes.
Acompanhei, de longe, o processo de uma colega na Espanha.
Estudávamos em salas diferentes, ela era mais velha e não tínhamos
amigos em comum. Eu achava Melanie corajosa e linda. A única vez
em que nos falamos ela estava na cantina e eu, timidamente, disse
que, se um dia precisasse, podia contar comigo.
Às vezes, isso é tudo que podemos enquanto comunidade:
proporcionar a sensação reconfortante de que não estamos
sozinhos. Que apoiamos uns aos outros.
Eu pensei em Júlio encontrando seu caminho em um mundo
cheio de correntes, fazendo a coisa mais corajosa de todas: tornar-
se dono de si mesmo, se descobrindo e se construindo à imagem
viva que aquecia seu coração. Ele era mais valente do que percebia.
— Você é lindo — beijei a ponta do nariz dele. — Obrigado
mesmo por compartilhar isso comigo.
— Obrigado por ouvir — ele respondeu com um sorriso, os
lábios fechados se alargando no rosto.
— Se algum dia eu disser algo errado, se eu te fizer sentir
menos do que você é e merece, se te machucar de alguma forma...
Você me diz? Me corrige?
Júlio me estudou.
— Não quero ficar nessa posição de instrutor, nem ser
professor de ninguém. Mas me conhecendo como você tá
conhecendo, Matias — ele semicerrou os olhos —, acha mesmo que
eu ficaria calado?
Foi minha vez de rir.
— Pensando bem, acho que você faria algo muito terrível.
— Como quebrar Rosalía em pedaços?
— Coitada da minha bichinha. Ela merece um fim menos
doloroso.
Ele fez um pouco de cócegas em mim.
— Então tenha cuidado, surfista.
Ficamos deitados na cama por um tempo, o sussurro das
folhas dos coqueiros vindo da janela.
Eu não percebi que estava tão cansado até Júlio me despertar
de um cochilo. Ele tocava minhas costelas e beijou o espaço entre
minhas sobrancelhas.
— Acho que a gente devia voltar pra festa, dorminhoco — ele
disse.
— Hummm — eu gemi, puxando-o em um abraço apertado. —
Tá tão bom assim. Queria passar a noite agarradinho contigo. Dormir
de conchinha.
— Por mais tentador que seja, a gente já ficou tempo demais
no seu quarto. Tenho que socializar com sua família, lembra?
Eu suspirei e me levantei, vestindo a bermuda. Júlio abotoou
sua blusa e mudou a cor da lua para vermelho.
— Juro que da próxima vez que você vier aqui não vai ter
ninguém em casa — eu falei.
— Ah, é? Por quê?
— Pra gente terminar o que minha irmã não deixou.
Ele apanhou a minha camisa do chão e a jogou na minha cara.
— Só se for nos seus sonhos.
A questão é: ele já estava lá.
Sexta-feira, 29 de janeiro de 2019, 01:01

De: Júlio Andrade (julioandrade@mmsd.com.br)

Para: Matias Mendonza (matiasmt@hippiehostels.com)

Assunto: Feliz aniversário! :-D


Hey, aniversariante!
Cheguei em casa há um tempinho. Aposto que você está
dormindo (ou quase lá), mas, por mais que eu tenha tentado, não
consegui. Tô deitado na rede da varanda agora, assistindo a lua
cheia e pensando em você. Embora eu tenha dito que não seria
meloso de novo, queria que você soubesse o quanto tudo tem sido
especial para mim. Mágico, até.
Quando eu era mais novo — ok, nem tão antigamente assim —,
sonhava em viver exatamente isso que a gente está vivendo: essa
sensação de poder compartilhar tudo com o outro e que tudo,
também, é possível. Mas, conforme o tempo passava, comecei a
acreditar que amor não era o tipo de coisa que pudesse acontecer
para mim. Me dei conta que todas as histórias de amor midiatizadas
que via eram cis, e me senti estúpido ao pensar que teria uma
chance.
Claro: cresci, fiz novos amigos, tive acesso a novas narrativas...
Vi pessoas trans felizes pela primeira vez na vida real, apesar de
toda a dor com a qual tentam nos vincular e a qual nos submetem
também, diariamente. Mas paixão, esse frio na barriga, nunca senti.
Até agora. Até você perguntando a hora na praia, corpo molhado
recém-saído do mar, o sol dourado em sua pele linda. Até sua
insistência. Até seu convite. Até você cantando Lucky no violão com
sua irmã. Até o seu quarto. Até o seu beijo. Até você.
E, porque é novo, é assustador. Eu não sei aonde estamos indo.
Não faço ideia do que vem depois, Matias. Para ser sincero, estar no
olho do furacão me deixa cheio de dúvidas; escuto o medo dizer que
não mereço nada disso e que, tão rápido quanto o mar nos trouxe
um para o outro, também vai nos separar.
Mas não há nada que eu possa fazer quanto a isso, há? Não há
nada além de um dia após o outro, nada além de respeitar e honrar o
que eu sinto, nada além de me manter aberto à experiência...
E já que é seu aniversário — e porque tem sido tão bom vivenciar
isso contigo —, queria dizer exatamente como me sinto — toda a
verdade, por mais boba e romântica que pareça. Talvez eu acorde
amanhã antes do que costumo, e talvez haja um impulso frenético de
apagar a mensagem. Como se tivesse revelado tanto de mim e, de
repente, quisesse de volta pedaço por pedaço do que compartilhei.
Mas fazer isso seria apenas ouvir o medo, e eu cansei de temer a
felicidade.
Então, adivinha só: você disse que gostava de mim e eu acho
que estou pronto para dizer que gosto de você também. Você me faz
sentir confortável comigo e com o mundo ao meu redor, e a
sensação é que, quando a gente está junto, tudo fica mais leve.
Feliz aniversário, Matias. Eu desejo que você seja feliz de
verdade. E desejo que, enquanto durar, sejamos felizes também.
Juntos.
Até nosso voo de parapente,
Júlio.
ps1.: Eu sei que a gente tá no Telegram agora, e que seria muito
mais fácil falar por lá, mas queria deixar essa mensagem registrada
de outra forma. E a gente criou algo tão bonito aqui. Enfim. Você
entendeu! xD
ps2: Sua família é tão incrível! Foi muito legal mesmo conhecer
todo mundo. Te entendo melhor agora.
Telegram

O Único Marido de Júlio Andrade

Acabei de ler seu e-mail.

Quer me fazer chorar a essa hora da manhã? É


isso mesmo, Júlio Andrade?

Guapo, sei que somos de realidades


completamente diferentes. Não tenho sua
vivência, por exemplo, e nem passo pelas mesmas
questões que você. Ainda assim, vejo que há mais
que nos aproxima do que nos distancia. Como o
coração batendo acelerado a cada mensagem sua, o
sorriso no rosto que não consigo esconder quando
tô ao teu lado, essa vontade de largar tudo e só
ficar contigo... Você se sente assim também? Se
sentir, então não estamos sozinhos.

Ontem, na cama, você falou da sensação de


déjà-vu ao me conhecer. Lembrei de um filme que
gosto, “A Chegada” (você já viu?). O tempo é
algo louco, né? Nossa relação com ele faz com
que a gente o enxergue de uma maneira
linearmente fatiada: há o presente, há o futuro
e há o passado. Vivemos cada um deles de modo
separado, e é quase como se esquecêssemos do
agora. Mas no filme os alienígenas utilizam uma
linguagem não linear que os faz perceber o tempo
de modo diferente. Eles enxergam o todo, vivem o
todo. Talvez seja assim com Deus também. Pode
ser que sua onipresença signifique que Deus
apenas existe. Não é que esteja no passado ou no
futuro, mas que simplesmente está.
Isso tudo foi só para dizer que não sei aonde
estamos indo, e pra falar que não tenho a menor
pretensão de pensar nisso agora. Não quero viver
em nenhum lugar que não seja neste exato momento
contigo. Como você bem disse, não há nada além
de se manter aberto à experiência, e que
experiência MARAVILHOSA.

Você é especial e lindo e tô aqui


animadíssimo pra te levar nos ares daqui a
pouco! Claro, se você não tiver desistido
hahahahahahahaha

Hey!
Hoje foi bom dia com TEXTÃO na mesa?
Tô lendo aqui.
Pera.

Hola!
Tô perando, haha.

Ai, Matias...
Não sei nem o que falar.

Não precisa dizer nada, guapo. Só me confirma


se nosso parapente tá de pé!

Tá, sim!
A gente se encontra na capelinha de novo?
Às 16h?

Isso aê!

Eu tenho que calçar tênis ou algo assim?

Vai ficar ensopado de areia, porque a gente


parte da duna em cima da falésia, mas simmm. É
melhor.
Ok, ok.
Perfeito.
Se eu morrer...

Eu nunca permitiria isso.


Até já, guapo.
E obrigado de novo pelas felicitações! Como
te contei, não gosto muito de aniversários, mas
ter passado o meu contigo (depois de ter minha
farsa revelada jajajaja) significou muito.

<3 <3 <3


Fico feliz de ter estado ao teu lado.
Beijoooooooo!
Até o céu!
Dezenove

Abaixo de nós, Canoa Quebrada era mais uma pintura do que


qualquer outra coisa aos nossos olhos: os tons de azul do céu se
mesclando ao verde do mar e ao laranja avermelhado das falésias.
Sobrevoávamos arbustos com cactos e a areia clara da praia, a
antiga passarela interditada e os buggys em movimento, jangadas e
hotéis, barracas à beira-mar e crianças que, quando nos viam,
acenavam e gritavam como se também estivessem nos ares com
Júlio e eu.
O corpo dele estava firmemente preso ao meu, suas costas
entre as minhas pernas. Ambos usávamos capacetes pretos de
proteção. As cores da asa do parapente eram rosa e amarelo, o
símbolo de paz e amor hippie ao meio. Conforme voávamos, o vento
ideal nos empurrando aonde quer que eu nos guiasse, a sombra do
velame cortava o chão como um pássaro pré-histórico.
Quando saí de casa para encontrar Júlio na capelinha antes de
partirmos para o voo no mirante, uma ideia estranha me ocorreu: eu
não tinha mais nada a esconder. O alerta e o medo constante tinham
sumido. No lugar deles, apenas essa tranquilidade tênue, leve como
brisa de verão.
Júlio também parecia, se não mais relaxado, diferente em
relação à noite anterior. Usava um tênis de corrida vermelho e uma
camisa laranja sem estampa, os óculos que normalmente utilizava
substituídos por um de sol. Vestia-se como o colunista de turismo de
aventura que assinava os e-mails mais bonitos que já recebi;
adicionei aquela versão dele às muitas facetes que começava a
colecionar do menino e que esperava seguir conhecendo.
Em não mais que uma semana, passamos de total estranhos
para duas pessoas que se gostavam e estavam dispostas a se
conectar de verdade. Pensei em como ele se mostrou para mim ao
tirar a camisa, em como me permitiu tocá-lo... Eu o conhecia melhor
agora; era isso que havia mudado.
De alguma forma, sabia que era o começo de algo novo.
— Você realmente sabe o que tá fazendo, né? — ele perguntou
com um tom debochado ao me cumprimentar, a testa franzida e os
olhos semicerrados.
— Não. Era tudo uma grande mentira elaborada pra conquistar
seu coração.
Júlio forçou uma risada nervosa.
Vê-lo na luz do dia me levou à noite anterior, logo depois que
saímos do meu quarto e voltamos para a festa. Mel, ao conhecê-lo
para além do flagra, havia abraçado Júlio com um sorriso maroto de
quem sabia mais do que devia. “Ele fala seu nome quando tá
dormindo”, minha irmã o contou, criando um elo instantâneo e
assuntos inesgotáveis entre os dois.
Com Otto, a situação foi quase idêntica. Meu amigo
praticamente arrastou Júlio para o karaokê. Ele cantou aquele hit
infame do Lippe, Mão na Massa, que nunca entendi o porquê de ter
feito tanto sucesso. Assistir a ele se soltando em um funk-pop
questionável, no entanto, foi de fato um dos pontos altos da quinta-
feira, Júlio requebrando ao ritmo da música e a voz desafinando nos
lugares comicamente certos.
Todo mundo gostou dele. Como poderiam não amá-lo? Júlio
era gentil e simpático, honesto consigo e com aqueles ao seu redor.
Meus pais, nitidamente cativados, haviam convidado o menino para
voltar ao Hippie sempre que quisesse. Minha mãe até perguntou se
ele gostava de yoga e, se sim, era mais que bem-vindo para
participar das aulas no hostel pouco antes do pôr do sol.
Quando voltou para casa naquela noite, não era só eu quem
fazia planos com Júlio: minha família toda também.
Depois que terminamos de colocar os equipamentos e o
expliquei como seria o voo, fomos empurrados pelo pessoal que
dava apoio aos parapentistas no mirante. Corremos pela duna até
dispararmos no abismo da falésia, nada além de ar sobre os nossos
pés.
Um grito carregado de adrenalina saiu da garganta de Júlio e
eu soltei uma gargalhada alta que a praia inteira deve ter ouvido.
— UHUUUUUU! EU TÔ VOANDOOOOOOO — ele dizia a
pleno pulmões, a voz levada pelo ar. — ISSO É TÃO LEGAL!
A liberdade em sua voz era contagiante. Eu sabia exatamente
como ele se sentia: o peso da Terra desvanecendo em seus ombros,
como se fôssemos astronautas despencando em espiral no universo.
— Eu tô feliz demais que você tá aqui comigo — falei para
Júlio. Minhas mãos seguravam as argolas ligadas ao freio do
parapente; era assim que nos conduzia.
Ele moveu a cabeça, a silhueta dos seus olhos atrás dos óculos
escuros encontrando os meus.
— Eu também. Muito.
Havia um momento quando eu voava livre em que sentia tudo
suspenso. As cordas de marionete da gravidade se desprendiam,
anulando seus efeitos em mim. Era como se nada importasse, e me
sentir sublime e intocável, desafiando as leis que me mantinham
firme ao chão, fosse meu estado natural de ser.
Vivenciava aqueles instantes no topo do mundo normalmente
sozinho.
Não hoje.
Júlio estava ligado a mim para além dos equipamentos que
impediam nossa queda. Pela primeira vez em muito tempo, mais até
do que imaginei, eu soube, com certeza, que não estava só.
— Tá sentindo isso? — perguntei a ele, inclinando minha
cabeça o mais perto possível da sua.
— Como se fôssemos pássaros? Como se não existisse nada
além desse voo? Como se o universo inteiro estivesse na ponta das
nossas asas? — ele respondeu, excitação pincelando cada aspecto
de sua voz.
Exatamente isso, eu pensei, virando à direita.
Por um segundo, foi como se estivéssemos voando direto rumo
ao oceano aberto. Senti meu coração disparar, eletrizado, e sabia
que precisava perguntar algo a ele. Talvez fosse bobo e pretensioso
e provavelmente um não, mas eu o faria de qualquer forma.
— Júlio — falei alto.
— O quê? — ele respondeu, as palavras se projetando como
se proferidas na frente de um ventilador.
— Você quer namorar comigo?
Mas a pergunta deve ter se perdido (parcialmente pelo
nervosismo, parcialmente pelo vento potente que nos acertou do
nada), porque ele gritou ainda mais, a voz ligeiramente embargada:
— NÃO CONSIGO TE ESCUTAR DIREITO, MATIAS!
— QUER NAMORAR COMIGO? — eu repeti ansiosamente, e
ele virou o capacete em direção ao meu rosto.
— TÁ BRINCANDO, NÉ?
— NÃO TÔ BRINCANDO!
A resposta foi imediata:
— QUANDO VOCÊ ME LEVAR SÃO E SALVO PRO CHÃO —
ele disse —, EU RESPONDO.
Minha risada se estilhaçou no ar e todo o meu corpo tremeu
com ela, cheio de vida.
Era a maneira mais literal de dizer que estávamos no céu.
Nada de metáforas, nada de conotações e alegorias daquela vez.
Era tudo concreto.
E talvez o fato de que o vento nos levava, talvez o fato de que
víamos o mundo como uma águia veria, fosse suficiente, por
enquanto.
Talvez estar no céu fosse o final perfeito para uma história que
começou na areia da praia. Afinal, céu e mar. Será que podemos
apontar onde um começa e o outro termina? A linha do horizonte que
os separa é também a que os transforma em um, no fim.
FIM
Bônus: Você venceu o sorteio!

Terça-feira, 05 de fevereiro de 2019, 16:37

De: Matias Mendonza (matiasmt@hippiehostels.com)

Para: Lucas Henrique (lucashenrique@bichas.com.br)

Assunto: Parabéns! Você venceu o sorteio!


Olá, Lucas! Tudo bem?
Eu sou o Matias do Hippie Canoa que falou contigo no Instagram!
Conforme anunciado, parabéns: você foi o ganhador do nosso
sorteio e vai receber um fim de semana com tudo pago em Canoa
Quebrada!
Além da hospedagem, também ofereceremos um passeio de
parapente ou jangada, yoga e meditação no fim da tarde, e uma aula
exclusiva de surf para você e seu acompanhante!
Ficamos no aguardo do retorno para saber as melhores datas
relativas à sua viagem, assim podemos proceder com a reserva.
Também vou precisar de um número para contato, além de nome
completo seu e do acompanhante.
Novamente, parabéns pelo sorteio!
Nós do Hippie Canoa te esperamos em breve por aqui!
Atenciosamente,
Matias Mendonza.
***
Terça-feira, 05 de fevereiro de 2019, 17:43

De: Lucas Henrique (lucashenrique@bichas.com.br)

Para: Matias Mendonza (matiasmt@hippiehostels.com)

Assunto: Re: Parabéns! Você venceu o sorteio!


Oiê, Matias!!! Eu tô ótimo, anjo, e você?!
Ainda não tô acreditando que ganhei o sorteio, boyyyy!
UM FIM DE SEMANA EM CANOA QUEBRADA COM TUDO
PAGO??? Aula de surf/yoga/meditação/passeio de parapente? Foi o
que eu pedi, SIMMMMMMMMMMM! VITÓRIA DAS GAYS! (você
todo profissionalzin comigo e eu aqui dando aloka, mas
boyyyyyyyyyy, nunca ganhei nenhum sorteio!!! vou comemorar só
porque posso!).
Meu nome completo é Lucas Henrique Silva e o do meu
acompanhante é Eric Oliveira Santos. A gente tá querendo ir agora
no final de fevereiro, depois do Carnaval. Será que rola? E eu vi que
vocês têm karaokê tambéeeeeeem. TEM KATY PERRY E LADY
GAGA, NÉ?!
Gratiluz por tudoooo!
Até breve,
Lucas Henrique
+55 84 9944663434
Apoio

O Sem Spoiler é o maior perfil de atualizações literárias do


Twitter. Há três anos, traz as últimas notícias do mercado editorial,
cobre os principais lançamentos de livros pelo mundo e compartilha
conteúdo diverso com milhares de leitores do Brasil.
Entrevista com o Sem Spoiler

O Sem Spoiler, o principal perfil de atualizações literárias do


Brasil, bateu um papo com o autor Pedro Rhuas sobre a novela que
você acabou de ler. Acompanhe a seguir.
1. De onde surgiu a ideia para escrever a novela “O mar me
levou a você”?
Eu estava viajando em Canoa Quebrada no início de 2020 (antes
da pandemia, antes de todo este caos absurdo) quando a ideia veio
à mente. Canoa é um lugar tão bonito e inspirador, locação perfeita
para uma história como “O mar me levou a você”, que é toda sobre
encontros, mar, trocas culturais, possibilidades e clima quente. A
casa onde moro em Icapuí, no Ceará, fica a 40km de Canoa e eu já
vivi também em Aracati, município ao qual a praia pertence. Quando
criança, eu costumava ir com meus pais quase todos os fins de
semana. Nessa minha aventura de valorizar ambientações
nordestinas, Canoa não podia ficar de fora!
2. Qual parte do processo de escrita da novela foi mais
desafiador?
Escrever Júlio, um personagem trans, foi um dos maiores
desafios. Enquanto homem gay e cis, eu não tenho a vivência de
uma pessoa trans. É preciso cuidado quando abordamos
personagens que são parte de grupos minoritários socialmente
invisibilizados nos espaços públicos e também midiáticos,
especialmente quando não os integramos. Dar ao Júlio a voz que ele
precisava (respeitando o tom romântico e leve da obra) demandou
de mim um olhar empático de imersão. Acima de tudo, eu queria
trazer uma representação positiva para o Júlio e o que ele significa
enquanto arquétipo.
3. Escritores nordestinos ainda são minoria na literatura
brasileira mainstream. Que outros autores do Nordeste você
indicaria para os seus leitores?
Eu fico muito feliz em acompanhar o fortalecimento de uma cena
nordestina de disputa da literatura nacional, especialmente através
de narrativas repletas de protagonismo LGBTQIA+. Em 2020 eu
integrei o coletivo de autores nordestinos OXE LGBT+ NE, que
lançou sua primeira antologia na Amazon, "O Nordeste em Cores"
(tem até um continho meu!). Para além dos integrantes do OXE,
indico Vanessa Perola, Deko Lipe, Lucas Santana, G. G. Diniz,
Mateus Bandeira, Pablo Praxedes, Eduardo Santiago, Camila
Cerdeira, Mateus Aiam, Matheus Monteiro, Laís Lacet, Isabela Vieira,
Alec Silva, entre muitos outros!
4. A novela traz um easter egg do seu romance de estreia,
“Enquanto eu não te encontro” (Seguinte, 2021). Quais as suas
expectativas para o relançamento do livro?
Lucas é o protagonista de “Enquanto eu não te encontro” e ele
aparece no e-mail bônus, uma maneira de conectar as duas histórias
(que, como muitos descobrirão em breve, estão inseridas em um
grande único universo – onde Bolsonaro não venceu as eleições e o
coronavírus nunca existiu)! Estou muito ansioso porque não se trata
apenas de um “relançamento”: há toda uma narrativa cujo desfecho
os leitores que leram EENTE na Amazon ainda não conhecem. Isso
porque o que havia sido publicado era apenas a Parte 1; a Parte 2
segue um mistério, e só agora a obra completa estará disponível ao
público. Quero muito saber como todo mundo reagirá às mudanças
no livro, que cresceu bastante com o suporte e orientação da equipe
da Editora Seguinte. Estamos caprichando para levar esse livro ao
mundo em sua melhor forma. <3
5. Você começou a carreira como autor autopublicado, mas
logo foi contratado pela Seguinte e agenciado pela Increasy.
Como está sendo essa jornada?
Imagine uma montanha-russa em um parque de diversões
gigantesco: é assim que tenho me sentido. De certa forma, muito
demorou para acontecer (foram anos de idas e vindas na escrita de
EENTE até decidir publicar o livro, em março de 2020, na Amazon),
e muito aconteceu em um timing curto, rápido e inesperado. Olhando
de fora, algumas pessoas podem ter a sensação de que foi
“meteórico”, mas só a gente conhece, de verdade, o próprio
percurso. Apesar de um tempo distante, estou no universo literário
desde 2012, quando tinha 15 anos e entrei para a equipe do site Up!
Brasil. Ainda em 2012 criei meu próprio site, O-Livreiro, um primo
distante do Sem Spoiler (haha). Todas essas experiências me
aproximaram do meu verdadeiro sonho, que é escrever. Vencer a
CLIPOP foi um marco porque abriu diversas portas, incluindo o
agenciamento com a Increasy, que possibilitou um amparo e
efetivamente a percepção da literatura como uma carreira em minha
vida. E se por um lado meu caminhar nunca foi de fato isolado, hoje
que não é mesmo. Tenho verdadeiros companheiros de luta na
jornada, colegas, amigos e profissionais que acreditam no meu
potencial e torcem por mim. A diferença entre o Pedro do início de
2020 para o Pedro de 2021 está no caminho trilhado e todo o amor,
apoio e carinho que brotaram no processo. Sou só gratidão!
Agradecimentos

Quando essa história primeiro apareceu em minha mente após


uma viagem à Canoa Quebrada, no início de 2020, não imaginei que
chegaria ao final que você acabou de ler. Lembro de enviar
mensagens para o meu grupo comigo mesmo no WhatsApp e
começar a esboçar Matias e Júlio. Um ano depois, aqui estamos.
Não poderia começar esse agradecimento de outra forma que
não agradecendo o mar. Mar que me banha, que me cura, e a quem
conto meus segredos. Essa novela é um grande ode a ele, a como
me faz sentir e me presenteia com energia criativa e amor; abrindo
caminhos e possibilidades, encontros e sonhos. Foi esse mesmo mar
que, à sua forma, me permitiu algo ainda mais maravilhoso: não
estar sozinho. 2020, ano que marca o princípio de fato da minha
carreira como escritor, fui abençoado com anjos ao longo da jornada.
Um deles é o Fred. Fred, nunca vou esquecer quando abri o
Twitter e te vi, do nada, postando suas impressões sobre “Enquanto
eu não te encontro”. Aquele foi nosso primeiro contato de verdade e
que bonito é ver como nossa amizade floresceu desde então.
Encontrei em você uma espécie de versão de mim (já disse milhões
de vezes!!!), e o sentimento de irmandade que construímos é um dos
maiores presentes que eu poderia ter recebido. Gratidão por todo
amor, carinho e receptividade com que me abraçou desde o início.
Você acredita em mim e, ao fazê-lo, me faz acreditar também — e
que você nunca deixe de acreditar em si mesmo. Obrigado por todas
as conversas, planos divididos, betas e maquinações sobre vida,
Katy Perry x Taylor Swift e literatura, irmãozinho! Te amo!
Entre as coisas que menos esperava, ter uma agente era
certamente uma delas. Sempre amei ler os agradecimentos das
histórias que lia, e a figura do agente era uma constante misteriosa
que eu não compreendia muito bem. Bem, até Alba aparecer! Alba,
nosso casamento foi uma das consumações mais rápidas da história
e “O mar me levou a você” é, de fato, nosso primeiro bebê! Que feliz
compartilhar essa etapa contigo. Sou muito, muito grato pelo trabalho
que estamos realizando e pela força/confiança/desejo de crescer que
você me dá. Obrigado por acreditar em mim e no que eu tenho a
oferecer enquanto escritor. É algo valioso demais.
Aproveito para agradecer toda a família Increasy, pelos sprints e
pela força mútua que damos uns aos outros. Com certeza isso
contribuiu demais na escrita dessa novela, criando um ambiente
leve, coletivo e descontraído para a criação. Também não poderia
deixar de agradecer aos Escrilindes. Esse grupo incrível de
escritores que tive a ideia de unir e estreitar relações ao longo de
2020, e que foi, de fato, um dos grandes presentes do ano. Estar
perto de quem tem sonhos parecidos e quer crescer é maravilhoso, e
nossa irmandade é TUDO para mim. Obrigado mesmo!
A Victor Marques, amigo e escritor talentoso, que leu em betagem
essa novela e contribuiu com pontos importantes; a Ariel F. Hitz,
importante voz da literatura nacional, que realizou a leitura sensível
focada sobretudo no Júlio, pela disponibilidade e feedback
extremamente assertivo; a Lune, nosso ilustrador e capista, pela
atenção que deu à obra e o resultado fantástico que ajudou a trazer
à tona; à incrível potiguar Renata Nolasco pelo lettering da capa; às
queridíssimas Anna Anchieta e Becca Stupello, da Associação
Boreal, pelo apoio (em especial Anna, escritora incrível, que fez uma
leitura sensível extremamente valiosa e que recomendo a todo
mundo); à maravilhosa e workaholic Grazi Reis, revisora desta
novela; e, claro, ao Sem Spoiler, este parceiro de todas as horas que
desde o primeiro momento me abriu espaço para fazer com que
minhas histórias chegassem para ainda mais pessoas.
Finalmente, a vocês, leitores. Desde que lancei “Enquanto eu não
te encontro” tenho recebido tanto amor e acolhimento. Sempre tentei
derrubar o máximo de muros nesse tal de “relacionamento frio” que
algumas pessoas tentam adotar como postura predominante nas
redes. Para mim, quanto mais me sinto perto de vocês, quanto mais
eu os conheço, melhor. Obrigado por fortalecerem meu trabalho e
por vibrarem comigo e meus personagens (ou será que deveria dizer
nossos?). Obrigado por acreditarem em mim. Obrigado por cobrarem
por mais! Obrigado por panfletarem. Obrigado por fazerem a
diferença. Espero continuar honrando vocês com mais e mais
novelas e contos e romances, atravessando dias de caos com luz e
um abraço apertado através das palavras. Amo vocês!
Até “Enquanto eu não te encontro” com a Editora Seguinte!

[1] "La Gabruges", traduzido para "Operação Tumulto".


[2] A Nouvelle Vague foi um nome utilizado pelo crítico francês François Giroud em
1958 na revista "l'Express". Giroud se referia a um grupo de novos cineastas que
propunham filmes que rompiam com a narrativa tradicional do cinema. Nomes como Jean-
Luc Godard, François Truffaut, Alain Resnais, Jaques Rivette, Claude Chabral, Eric Rohmer
e Agnes Varda eram representantes do movimento.
[3] Há debates duros que questionam o termo "turismo sexual". Como opção, sugere-se
a expressão "exploração sexual no contexto do turismo", considerada mais adequada.
Pesquisadores defendem que "turismo sexual" traria certa suavização às práticas
exploratórias.
[4] Alguns leitores devem ter percebido que, à época em que “O mar me levou a você”
se passa, cronologicamente “Os Sete Maridos de Evelyn Hugo”, de Taylor Jenkins Reid, não
havia sido lançado no Brasil. O título foi publicado pela Editora Paralela em outubro de
2019, mas o lançamento original, nos Estados Unidos, foi em junho de 2017. No
Rhuasverse, porém, uma realidade onde Bolsonaro não é presidente, livros legais são
também traduzidos e lançados com mais rapidez no país! Quem quer se mudar comigo para
essa realidade paralela?
Sobre o autor

Escritor, jornalista e cantor nordestino, Pedro Rhuas estreou de modo independente


em 2020 com o romance Enquanto eu não te encontro. O livro venceu o concurso Clipop, da
Editora Seguinte, e ganha edição inédita no primeiro semestre de 2021. Entre literatura e
música, já lançou sete canções autorais e acumula mais de 100 mil streams nas plataformas
digitais. Aprendeu a surfar em Imsoaune, no Marrocos, onde trabalhou em um
acampamento de yoga e surf. Atualmente morando no Ceará, prepara o lançamento de seu
primeiro álbum de estúdio.
Siga o autor nas redes sociais e converse diretamente com ele: @pedrorhuas! Conheça as
músicas de Pedro Rhuas no Spotify e as adicione em suas playlists favoritas! ;-)

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