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A dor era quase física.

Sentia o estomago se virar contra ela toda vez que seu pulmão enchia e
se esvaziava de ar. Suas mãos formigavam e seus pés estavam gelados como pedra, mesmo
estando em baixo de um fino lençol. O que ela sentia no fundo da alma fazia eco e se chocava
contra seu corpo presente; doía tanto, sangrava muito. Os ferimentos vinham de brigas
incansáveis que se repetiam noite após noite, dia após dia e até os fins dos tempos. Era um
hábito, um hábito ruim.

O quarto estava escuro demais, sombrio demais e o silêncio incomodava demais. Ela olhava
pra fora da janela, dava um trago no cigarro e soltava a fumaça com uma preguiça irritante. Só
o que eu via era o contorno do seu corpo, por causa das luzes da rua, e da brasa que se
acendia toda vez que ela puxava o ar e a fumaça pra dentro dos pulmões. Pegava o cigarro da
boca e o suspendia entre os dedos, quase caindo, desafiando as leis da física. Era como se ela
não quisesse estar ali, comigo. Perdia-se nos barulhos alheios da cidade e ficava
repentinamente atenda quando escutava uma freada brusca, tentava seguir com os olhos até
onde dava os carros e as pessoas que passavam lá na rua.

O apartamento não era grande, mas era confortável. Ficava no terceiro andar e tinha uma vista
linda para cidade e para as avenidas. A gente lutou tanto por aquele espaço de chão que era
nosso. Eu lembro como começamos pequenas, só um cômodo com as paredes recém-
rebocadas, éramos quase umas sem-teto, pois sempre nos faltou tempo, mas sobrava
potencial. Quando tudo foi aumentando, aumentaram-se também as paredes, as cores, agora
tudo tinha seu devido nome. Parede, porta, chão e teto. Até compramos uma mesinha para
guardas as lembranças, fotos e tickets de cinema. Mas com o tempo a mesinha ficou pequena
e as paredes pediam por mais cores, e as cores pediam por mais paredes, mas a gente foi
devagar, uma coisa de cada vez, ninguém estava com pressa, somos jovens e temos todo o
tempo do mundo! E por isso a gente nem percebeu que estávamos criando um lar, uma casa,
um nosso, sem esforço algum. Todo dia que chegávamos em casa, tirávamos as roupas e
sentávamos no sofá pra contar dos amores, das dores, da falta de dinheiro, todos esses
momentos iam grudando no pano do sofá, no branco da geladeira, no fofo do travesseiro,
tudo estava se criando em nossa volta e a gente nem percebendo; éramos tão inocentes que
não nos demos conta o quanto a casa estava linda, pé direito alto, com vista para o mundo. As
paredes tinham texturas diferentes a cada corredor, você pendurou quadros de filmes antigos
e pintou na parede da sala frases de livros mais antigos ainda. Os discos de vinil e suas capas
estavam espalhados pelas paredes, dentro de quartos e a música estava presente em cada
cômodo que você colocou o dedo. Era tudo aconchegante, me dava vontade de voltar, de ficar
e dormir. A casa era nossa e a nossa casa era linda!

Você ainda não conseguia olhar pra minha cara e preferia encarar estranhos correndo da
chuva a se virar e fazer um contato visual. Tragava e fechava olhos, soltava o trago com os
olhos ainda fechados e eu jurava que ouvia um gemido de dor quase que inaudível quando o
ar saia, mas quis acreditar que era só o barulho da chuva se chocando contra o duro do vidro.
Invejei o quão confortável você fumava seu cigarro, sentada na beira fria da janela enquanto
eu, deitada nas mais fofas das camas, não achava uma só posição para fazer meu corpo parar
de doer. Enrolava-me no lençol e me afagava nos travesseiros encostados na parede, mas nada
me parecia quente o suficiente, meu corpo não precisava daqueles panos, meu corpo
precisava de você e você precisava do seu cigarro.

Essa sou eu andando pela nossa casa tentando lembrar todas essas lembranças penduradas
nas paredes pra me esquentar do frio que é aquele quarto e sua indiferença pra minha
presença. Essa sou eu me agarrando ao que resta de nós quando você me dá as costas como
quem não vai voltar, me fala coisas como quem não quer saber e me deixa aqui, como se
estivesse tudo bem. E toda vez que você se vira pra essa janela essas paredes morrem um
pouquinho mais, tudo fica em tom de cinza; e a cada sorriso mal executado por você faz com
que as coisas comecem a desaparecer. Hoje mesmo eu trouxe uma linda memória pra enfeitar
a mesinha de centro da sala de estar. Era um coração, mas não esses corações que você vê por
aí, com bordas arredondas e vermelhos como sangue, não. Era um coração diferente, puxado
mais para o lado realístico da vida, todo torto e sensível, um coração de verdade. Mas ele já
não está mais aqui onde eu deixei, nem em nenhum outro lugar da casa que a gente fez, ele se
foi. Ele foi pra um lugar que eu espero nunca descobrir como é. Ele saiu pela porta dos fundos
e provavelmente você não sentirá sua falta, pois ele foi esquecido, é como se ele nunca tivesse
entrado aqui e decorado sua mesinha baixa. Você entende?. Ele não existe quando você não
lembra dele.

Voltei pro quarto e não me esforcei pra não fazer barulho e te tirar desse transe de nicotina e
indiferença. Peguei minhas roupas do chão e dobrei todas, empilhei e as joguei
organizadamente em cima de uma cadeira, tentando criar forças pra puxar a minha mala e sair
pela porta da frente; não ia conseguir, não era pra eu sair. Sentei na cama pesando toneladas,
estava esgotada e destruída. As dores físicas estavam passando, a perna respondia bem aos
reflexos e o estômago pareceu ter entrado em um acordo com o resto do corpo, as náuseas
agora eram pelo cheiro da fumaça e do perfume doce. Já a dor que não é física, essa ainda
latejava.

Sentada ali com as pernas cruzadas e encarando suas costas como se você fosse virar a
qualquer momento e precisava que eu estivesse ali olhando pra você, eu me sentia dura. Eu
reprimia todas as vontades que eu tinha de pular no seu pescoço e te jogar no chão e no chão
resolver todos os problemas dessa vida, reprimia o ódio que irradiava de mim e que queria te
dar um soco no meio dos olhos! Reprimia tudo, me anulava, todas as vontades morriam na
ultima sinapse antes do ato. Você formava esse escudo em volta da sua pele que não deixava
minhas palavras passar, era impenetrável e quando você o vestia se transformava em outra
pessoa. Essa pessoa não podia estar na minha casa, ela era arrogante e não sabia dos meus
segredos e gostos, ela não era bem vinda, mas mesmo assim a aceitava dentro do nosso
quarto. Eu não conseguia a fazer rir, essa versão sua que me dava nos nervos, ela só sabia
fumar e me ignorar; criava diálogos patéticos e não sabia lidar comigo, eu só queria que você
me ouvisse gritar baixinho, por de trás dessa película de orgulho ferido “Volta!”.

Eu não me lembro de como aconteceu, quando dei por mim tudo já estava tão fodido que eu
não conseguia mais ouvir sua voz, só palavras feias voando pela quarto nos atingindo com a
força de uma bala na nuca. E de repente o barulho era tanto, que eu jurava sentir as ondas da
sua voz se propagando sobre a minha pele, cada palavra vibrando em uma frequência
diferente intercalando-se com os arrepios de dor subindo pela espinha no final de cada frase.
Sentia que era quase uma batalha medieval, sem regras, sem juízes, sem sobreviventes. A que
permanecer em pé por mais tempo, ganha! Em segundos o quarto ficava destruído, as paredes
pintadas de preto e os móveis com cheiro de queimado, velhos. Eu sempre fui a primeira a me
ajoelhar, capenga, quase que chacoalhando um pedaço de pano branco só pra ter você de
volta.

Eu só queria que você deitasse de novo nessa cama, que pintasse essas paredes de branco e
fizesse parar de chover. Queria te pegar pela mão e te levar para o banheiro, tirar seus cabelos
dos olhos e te olhar bem firme. “Não precisa ser assim.” Dizer isso enquanto eu vou tirando
seu relógio e pulseiras, anéis e brinco. Deixar sua blusa cair pra lá e desabotoar os botões da
calça. Acompanhar-te para o banho e ligar a ducha no máximo, deixar que a água bata nas
suas costas e que espirre para todos os lados, eu vou te secar; tirar essa coisa que você deixa
crescer por cima da sua pele que a deixa dura, não permeável, feia.

Essa sou eu pedindo pra você voltar, ficar e dormir!

“Volta, por favor.” Vem ser menina que construiu uma casa pra mim.

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