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A noite caiu e ela acordou como se estivesse esperando o sol parar de tentar iluminar a casa.

Sentou na cama ainda com os olhos fechados, esfregando os dedos do pé no chão gelado,
fazendo movimentos circulares com o ombro, pequenos movimentos, sentindo a dor dos
músculos duros, frios, os nervos se degradando por falta de uso. Respirou devagar e fundo,
como quem toma ar pra dar o ultimo mergulho e a dor veio como flechas certeiras pra dentro
do abdômen, entre as costelas, a coluna penou para ficar reta e o pulmão pediu arrego. “Pra
que mesmo eu acordei?” Ela repetia a mesma pergunta enquanto o corpo ia acordando e ela
se decidia se era isso mesmo que queria. “Pra que acordar?” pensou, e desistiu. Esperou o
estomago dar notícias, pegou de leve no cabelo pra se lembrar de qual foi a ultima vez que
tomou banho e percebeu que já havia se passado dias demais. “Comida e banho.” Não
necessariamente nessa ordem. Levantou com dificuldade, não porque havia alguma coisa
doendo, porque havia sim, mas era falta de vontade de levantar mesmo. Passos pequenos e
incertos, pra longe da luz, seguindo o azulejo gelado, se guiando pela sabedoria de quem já fez
esse caminho de olhos fechados milhares de vezes. Acendeu as luzes indiretas do banheiro e
não olhou pra frente, não se atreveu a olhar para o espelho, fez uma conchinha com as mãos e
a encheu d’água, respirou fundo e trouxe com força as mãos até as bochechas. Dor. Doía cada
vez mais, cada vez mais fundo, ela estava acordando e voltando aos sentidos e não existe dor
maior que essa. A realidade em si é o maior tapa na cara que você pode levar, é implacável,
tapa de mão aberta, aqueles que deixam as marcas dos dedos perto da orelha. “Péssima
ideia”, mas já era tarde demais, ela já estava tomando banho e deixando a água molhar as
costas, pernas e barriga. Era estranhamente confortável, quente, pensou no porque dela não
fazer isso mais vezes “não tá doendo tanto agora” Pensou enquanto fechou os olhos e trancou
a respiração por uns segundos, só ouvindo a água bater no ombro se espelhar pelo boxe, criar
uma gotinha, ir escorrendo lentamente até ir embora pra sempre.

A dor não era física, a dor dela era dela. A cabeça dela pesava tanto quando ela acabava de
acordar, porque ela não queria acordar. O pulmão dela doía tanto quando ela respirava,
porque ele queria puni-la por fazê-lo viver em meio de tanta fumaça, maldita. E ela se deitava
na cama com tanta vontade por que ela queria se perder ali, dava pra ver em seus olhos, que
ela não queria ser achada, resgatada, essa princesa queria um castelo só pra se esconder do
reino inteiro. Na verdade era tudo uma fuga não planejada pra fora da realidade, pra dentro
de qualquer outra coisa.

Quando chegou na cozinha, acendeu as luzes e se arrependeu logo em seguida, os olhos


ardiam por causa das luzes brancas e fortes e a realidade continuava dando tapas fortes na sua
cara. Sentiu o cheiro do lixo que devia ter sido tirado há algum tempo e se recusou a olhar pra
pia. Abriu a geladeira e sentiu pena dela mesma. Comeu as mesmas porcarias de sempre, com
a mesma coca-cola sem gás e não tirou a mesa. Voltou pro quarto, sem vida, se jogou na cama
e olhou para o teto. “Covarde”.

Covarde em todos os sentidos de ser covarde. Fraca. Ela não estava fazendo nada da vida,
deixando os dias passar como se fosse um jogo, como se eles fossem infinitos. Os dias da
semana não importavam mais, nada importava mais. E a dor só crescia, só tomava conta da
vida dela, das roupas dela, da cor dos olhos dela. E ela não resistia nem lutou simplesmente se
entregou a escuridão daquela casa e não foi procurar a saída. Os vizinhos ficavam de olho na
correspondência que ficava empilhada na porta e se ficassem lá por mais de ma semana,
alguma vizinha fofoqueira ia lá pedir uma xícara de açúcar que ela não precisava, só pra ter
certeza que ela ainda estava em casa. Houve boatos que ela estava em depressão por causa de
um homem por aí. Outras pessoas dizem que era por causa de uma mulher aí. A vizinha da
direita disse que nunca viu alguém sair daquela casa, só o carro preto, luxuoso, sair e entrar da
garagem com ela dentro, de óculos, nunca dando a seta. A vizinha da esquerda jurou que já viu
sim, outro carro, vermelho sangue, abrir o portão da garagem, mas nunca mais viu mais nada.
E todos se perguntam o que se passa na maior casa da rua, perto da esquina, com as janelas
sempre tão fechadas e a caixa de correio sempre tão cheia.

E lá dentro, no ultimo quarto do corredor, na suíte, ela se encontra no meio da cama. Ela busca
todas as respostas do mundo olhando para o teto em gesso, e pra cada pergunta que fica sem
resposta uma parte dela morre. Pra cada vez que ela chegou a uma conclusão ruim sobre as
coisas, um pedaço dela se cola na cama. E que ninguém saiba na verdade o que se passa
dentro daquela mansão, e que ninguém nunca descubra.

Lá existe uma mulher triste, que nunca foi deixada por ninguém, que nunca sofreu de amor,
que nunca teve problemas financeiros. Ela nunca deixou a pessoa amada e também nunca
amou. Não sente saudades de casa e não tem pai ou mãe. Nunca chorou de dor, nem fez as
pazes com alguém. Não tem amigos, não tem paixões inacabadas.

Ela nunca viveu, nem viverá... não tem coragem pra isso.

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