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consciência cósmica
Fernando Fogliano
cAt - UNESP; Criação em Arte e Ciência GIIP -UNESP
RESUMO
Paradoxalmente a evolução tecnológica e material conduziram a humanidade a uma imensa crise social e
ambiental. Tendo em perspectiva esse quadro desastroso, muitos estudiosos não escondem suas preocupações
com a possibilidade da sua extinção. Neste estudo busca-se especular sobre possíveis nexos entre a produção no
campo da Arte e essa crise sistêmica. Este estudo focaliza suas preocupações sobre a questão da experiência
estética considerando-a seminal nas transformações citadas. Nesse contexto examina-se a evolução da
Consciência e da Inteligência humanas sob o crivo dos fenômenos da Complexidade. Isso permite perceber a
produção da Arte num cenário cosmológico em que a Consciência pode ser entendida a partir da interação entre
Razão e Intuição, estes como princípios geradores dos significados. Especula-se se o desequilíbrio entre aqueles
princípios não estaria no cerne do cenário crítico e contraditório aqui apontado.
Abstract
Paradoxically, technological and material evolution has led humanity to an immense social and environmental
crisis. With this disastrous picture in perspective, many scholars do not hide their concerns about the possibility
of its extinction. This study seeks to speculate on possible links between production in the field of Art and this
systemic crisis. This study focuses on his concerns about the issue of aesthetic experience, considering it seminal
in the aforementioned transformations. In this context, the evolution of human Consciousness and Intelligence is
examined under the scrutiny of Complexity phenomena. This allows perceiving the production of Art in a
cosmological scenario in which Consciousness can be understood from the interaction between Reason and
Intuition, the latter as principles that generate meanings. It is speculated whether the imbalance between those
principles would not be at the heart of the critical and contradictory scenario pointed out here.
Introdução
Neste texto tem-se em perspectiva indagar e especular sobre a importância da Arte no cenário
de crise em que vivemos neste século XXI, já em seu vigésimo primeiro ano e, em meio a
uma pandemia global e muitos outros aspectos críticos, quando muitos não veem um futuro
promissor para a humanidade. No cerne das indagações aqui trazidas reside a aparente
contradição entre o cenário de catástrofe e o avanço tecnológico e científico hoje disponível.
A humanidade está correndo o risco de autoextinção? Que aspectos do pensamento humano
estão em jogo determinando a tomada de decisão nessa jornada aparentemente suicida? Teria
a Arte, uma atividade cultural presente há aproximadamente 80 mil anos em todas as culturas
e civilizações humanas que prosperaram de desapareceram antes de nós, alguma relevância na
construção das complexas relações que estabelecemos com o mundo e entre nós mesmos?
Para muitos especialistas, o modelo capitalista está em crise. Esta parece em sincronia com a
crise a que nos referimos acima, a do racionalismo, incrustado no âmago do modernismo.
Para seu estabelecimento, o modernismo demandou o desencantamento do mundo, a
eliminação de todas as forças autônomas da natureza, seus espíritos. Isso exigiu o
soterramento da autonomia, de tudo de mágico que havia na natureza, desde os pré-socráticos
até os alquimistas da renascença. Os efeitos deletérios dessa decisão se fizeram sentir com
maior evidencia com a industrialização. “O homem substituiu a dança, o canto e o riso, por
uma teoria, a pior: aquela que tudo quer explicar pela causalidade”. No rastro de destruição
produzido em nome do controle absoluto, ficaram destituídas de valor as emoções, a
autonomia do inconsciente, a intuição como parte dos mecanismos de entendimento da
natureza. Giannetti (2016, p.16), ao refletir sobre esse quadro, apresenta o que ele denominou
de tríplice ilusão: o pensamento científico capaz de eliminar todos os mistérios do mundo; a
submissão da natureza ao controle por meio do uso da tecnologia; avanços no processo
civilizatório conquistado para toda a humanidade, promovendo o refinamento ético e
intelectual acompanhado da felicidade. Para o autor, uma era termina quando se percebe que
seus valores fundantes estão exauridos. Então, para ele, a constatação de que a era moderna
“caducou” é inescapável. Godoi e Mastella (2015) enumeram diversos aspectos que marcam o
esmorecimento do pensamento moderno enquanto outra agenda, a do pós-modernismo,
buscou caminhos para atender às necessidades da sociedade, geradas pelas enormes
transformações sociais, científicas, tecnológicas e econômicas da virada do século XX para o
XXI. Com o fim das grandes ideologias dominantes e o estabelecimento global as teses
neoliberais passam a reger a sociedade e os mercados, homogenizando a Cultura e reduzindo
sua diversidade:
O conceito de Antropoceno tem sido abordado e discutido em campos das humanidades como
filosofia, literatura e arte. Donna Haraway, refletindo sobre as falhas e os pontos fortes do
Antropos e o Antropoceno, considera que à figura do Antropos não se deve atribuir a causa
dos processos de extinção em massa que nos ameaçam. Em vez disso, ela sugere que
deveríamos usar apenas uma palavra para compreender esse processo, deve ser o capitaloceno
– a era do capital.
Eu sou uma composista, não uma pós-humanista: somos todos compostos, adubo, não pós-
humanos. O limite que é o Antropoceno/Capitaloceno significa muitas coisas, incluindo o
fato de que a imensa destruição irreversível está realmente ocorrendo, não só para os 11
bilhões ou mais de pessoas que estarão na terra perto do final do século XXI, mas também
para uma miríade de outros seres. (O número incompreensível, mas sóbrio, de cerca de 11
bilhões somente será mantido se as taxas de natalidade de bebês humanos, em todo o
mundo atual, permanecerem baixas; se elas subirem novamente, todas as apostas caem por
terra). “À beira da extinção” não é apenas uma metáfora; e “colapso de sistema” não é um
filme de suspense. Pergunte a qualquer refugiado, de qualquer espécie. (Haraway, 2016)
David Harvey (2014) examina as contradições internas no interior dos fluxos de capital como
deflagradoras das crises econômicas recentes. Segundo o autor, embora as contradições
tornem o sistema capitalista flexível e resiliente, elas também contêm as sementes da
catástrofe sistêmica. Skydelsky recorda o economista John Maynard Keynes, cujas ideias
influenciaram decisivamente o pensamento econômico do século XX. Keynes ficaria
estarrecido se pudesse ver como suas crenças e perspectivas foram desvirtuadas quando
confrontadas com a economia contemporânea nesse primeiro terço do século XXI. Hoje,
quase um século depois da publicação do artigo Economic Possibilities for our Grandchildren
(1930) é possível perceber a flagrante discrepância entre as perspectivas do autor e a
economia dos nossos dias:
O ritmo em que podemos chegar ao nosso destino de felicidade econô mica será
regido por quatro coisas – nosso poder de controlar a populaçã o, nossa
determinaçã o em evitar guerras e dissensõ es civis, nossa disposiçã o de confiar à
ciência a direçã o daqueles assuntos que sã o adequados a preocupaçã o da ciência e
a taxa de acumulaçã o fixada pela margem entre nossa produçã o e nosso consumo;
dos quais o ú ltimo cuidará facilmente de si mesmo, dados os três primeiros.
Enquanto isso, nã o haverá mal em fazer preparativos suaves para o nosso destino,
em encorajar, e experimentar as artes da vida, bem como as atividades de
propó sito. (Economic Possibilities for our Grandchildren (1930).
Para o sociólogo e historiador do meio ambiente Jason Moore (2015), a perspectiva humana
no século XXI não é totalmente promissora. Para ele, nosso futuro pode ser especificado em
dois níveis de abstração. O primeiro é a natureza humana. O envolvimento humano com o
resto da natureza, na última década, alcançou o ponto “onde as mudanças ambientais globais
abruptas não podem mais ser excluídas”. O segundo é o capitalismo na natureza. A crise que
se desenrola do capitalismo neoliberal sugere que vemos algo muito diferente do padrão
familiar. Hoje está cada vez mais difícil conseguir da natureza – incluindo a natureza humana
- “brindes” baratos. Isso indica que podemos experimentar não apenas uma transição de uma
fase do capitalismo para outra, mas algo mais épico: o colapso das estratégias e relações que
têm a acumulação sustentada de capital nos últimos cinco séculos. Recentemente, Toby Ord
constatou as possibilidades consideráveis de problemas catastróficos no horizonte dos eventos
da sociedade humana. O uso de tecnologias poderosas como armas nucleares, biotecnologia e
inteligência artificial. O autor emprega a metáfora do “precipício” para se referir ao presente
período, para ele uma época insustentável. Segundo o autor, o que está em jogo envolve o
risco da autodestruição da espécie humana.
Ao término do século XX, Antônio Varela (2016), pesquisador que fez importantes
contribuições para o campo da Ciência Cognitiva está entre aqueles que irão se preocupar
com a questão da subjetividade, percebendo como esta constitui, junto com a objetividade,
uma relação de polaridade instável (idem, pg. 240). Adotando uma postura de distanciamento,
senão ruptura, com os postulados que definem o sujeito moderno a partir da racionalidade,
universalidade e objetividade. A noção de subjetividade, quando resgatada trouxe também a
centralidade do corpo, das emoções e da experiência. Reconhecendo esta última como o
processo através do qual atribuímos sentido às nossas interações no mundo, imbricadas num
contexto emocional para produzir nossa memória, história e identidade. As perspectivas de
Varela convergem com o pensamento de John Dewey. Para esse filósofo, a questão da
experiência esteve no foco das preocupações, quando se debruçou sobre a arte e a estética.
Para ele, esses assuntos situam-se no campo diametralmente oposto às ideias iluministas
propostas, pela primeira vez em 1735, por Baumgarten que, no iluminismo, levaram a uma
perspectiva elitista da arte, uma forma especial de conhecimento e apreciação desinteressada.
Essa perspectiva marca o período moderno e esteve internalizada no pensamento ocidental
desde então até meados do século XX, como vimos, quando suas limitações se tornaram
insuportáveis. A dessacralização da experiência estética é um importante aspecto considerado
por Dewey, afastando a arte dos pedestais:
Partícipe da vida, a arte se dá sob novas formas e modos de percepção na atualidade, pois
distante dos pedestais dos museus e instituições onde se expõe oficialmente, aparece em
lugares incomuns, mas que propiciam a busca do prazer e o exercício da sensibilidade. Ou,
como propõe o autor que as artes que têm hoje mais vitalidade para a pessoa média são
coisas que não são consideradas artes como, por exemplo, filmes, jazz, quadrinhos e, com
demasiada frequência, as reportagens de jornais sobre casos amorosos, assassinatos e
façanhas de bandido (Reis, 2011).
Brown e Dissanayake (2018) vão refletir sobre a questão da artificação considerando a arte
como uma atividade que inclui comportamentos complexos que não se reduzem somente à
dimensão estética. Suas observações sobre a arte no período pré-moderno (idem p.46)
convergem com a perspectiva de Shapiro, acima, permitindo-nos concluir que o período pós-
moderno recupera muitos dos valores pré-modernos que aproximavam a arte do cotidiano e da
organização social. Como um comportamento, deve ser considerada no bojo de uma ampla
teoria da emoção e atendendo funções do coletivo e comunitário, envolvendo atividades
participativas que incluem, p.ex., encorajamento à cooperação; crítica, coordenação, e
harmonia sociais.
Esses aspectos caracterizam a prática do ativismo na arte. Machado (2020) define arte-
ativismo, ou artivismo, como um modo de disseminar contestações de interesse coletivo. Hoje
em que o espaço da comunicação ocorre nas redes telemáticas, essa prática é denominada
como net art, podendo ainda assumir a forma de intervenção em sistemas de computadores
com objetivos sociais ou políticos, o hacktivismo. As manifestações artísticas realizadas nos
espaços públicos apresentam vasto repertório e exploram as possibilidades estéticas neles
existentes.
Ao considerar as diferentes manifestações de arte-ativismo nos espaços públicos das mais
distintas ocorrências políticas, um vasto repertório de formas e possibilidades estéticas
revela dimensões singulares da própria arena em que os confrontos acontecem. Um
inusitado diálogo entre criação estética e espaço se configura como discurso vigoroso de
um ativismo bem distinto da dinâmica das agitações que, no início do século XX, abriram
caminho para movimentos estéticos como os agit-prop do construtivismo russo, pesadas as
diferenças (Machado, 2020; p.48).
A atividade artística, no contexto aqui delineado, deve ser inserida às demais formas de
produção de conhecimento. Consideradas no contexto de uma ciência pós-moderna (Best e
Kelner. 1997, p. 242) de forma alargar os limites entre conhecimento científico e “não-
científico”. Ao incluir, nesse processo inclusivo, outros domínios do conhecimento à ciência,
produz-se uma nova unidade científica, ética, estética e intuições religiosas, numa “síntese
criativa de ideias pré-modernas, modernas e pós-modernas” (idem).
Comentários finais
Objetos sensíveis e narrativas criam oportunidades para experiências e acesso a conteúdos que
nos permitem construir, incorporar e transformar a realidade. A percepção da arte como
caminho da expansão da consciência permite-nos concebê-la como exercícios criativos e de
expansão da cultura que evolui de forma acelerada e é constituída por processos turbulentos
que permitem a construção de modelos de realidade dinâmicos e, muitas vezes contraditórios,
que nos permitem evoluir em nossa relação com o planeta e sua teia de relações físico-
1 “The universe gives birth to consciousness, and consciousness gives meaning to the universe.”
― John Archibald Wheeler
2 Neste texto o autor refere-se à hipótese materialista que implica considerar a identidade entre mente e
cérebro (mente = cérebro).
químico biológicas. Trata-se de uma atividade própria dos processos evolutivos e, portando,
em contraposição a estagnação e o conservadorismo retrógrado.
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Fernando Fogliano
Pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes da UNESP, doutor e mestre em
Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, Co-cordenador do Grupo Ciência Arte e Tecnologia cAt-UNESP,
participante do Grupo Internacional de Pesquisas em Convergências entre Arte, Ciência e Tecnologia da UNESP,
GIIP. Graduado em Física e Engenharia Civil.