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Arte em tempos de crise: a evolução humana e a

consciência cósmica
Fernando Fogliano
cAt - UNESP; Criação em Arte e Ciência GIIP -UNESP

RESUMO
Paradoxalmente a evolução tecnológica e material conduziram a humanidade a uma imensa crise social e
ambiental. Tendo em perspectiva esse quadro desastroso, muitos estudiosos não escondem suas preocupações
com a possibilidade da sua extinção. Neste estudo busca-se especular sobre possíveis nexos entre a produção no
campo da Arte e essa crise sistêmica. Este estudo focaliza suas preocupações sobre a questão da experiência
estética considerando-a seminal nas transformações citadas. Nesse contexto examina-se a evolução da
Consciência e da Inteligência humanas sob o crivo dos fenômenos da Complexidade. Isso permite perceber a
produção da Arte num cenário cosmológico em que a Consciência pode ser entendida a partir da interação entre
Razão e Intuição, estes como princípios geradores dos significados. Especula-se se o desequilíbrio entre aqueles
princípios não estaria no cerne do cenário crítico e contraditório aqui apontado.

Palavras-chave: arte, tecnologia, crise, consciência, cosmologia.

Abstract
Paradoxically, technological and material evolution has led humanity to an immense social and environmental
crisis. With this disastrous picture in perspective, many scholars do not hide their concerns about the possibility
of its extinction. This study seeks to speculate on possible links between production in the field of Art and this
systemic crisis. This study focuses on his concerns about the issue of aesthetic experience, considering it seminal
in the aforementioned transformations. In this context, the evolution of human Consciousness and Intelligence is
examined under the scrutiny of Complexity phenomena. This allows perceiving the production of Art in a
cosmological scenario in which Consciousness can be understood from the interaction between Reason and
Intuition, the latter as principles that generate meanings. It is speculated whether the imbalance between those
principles would not be at the heart of the critical and contradictory scenario pointed out here.

Keywords: art, technology, crisis, consciousness, cosmology.

Introdução
Neste texto tem-se em perspectiva indagar e especular sobre a importância da Arte no cenário
de crise em que vivemos neste século XXI, já em seu vigésimo primeiro ano e, em meio a
uma pandemia global e muitos outros aspectos críticos, quando muitos não veem um futuro
promissor para a humanidade. No cerne das indagações aqui trazidas reside a aparente
contradição entre o cenário de catástrofe e o avanço tecnológico e científico hoje disponível.
A humanidade está correndo o risco de autoextinção? Que aspectos do pensamento humano
estão em jogo determinando a tomada de decisão nessa jornada aparentemente suicida? Teria
a Arte, uma atividade cultural presente há aproximadamente 80 mil anos em todas as culturas
e civilizações humanas que prosperaram de desapareceram antes de nós, alguma relevância na
construção das complexas relações que estabelecemos com o mundo e entre nós mesmos?

Ao longo do texto, abordaremos os períodos históricos do Modernismo e do Pós-Modernismo


sem entrar no mérito das discussões que cercam sua demarcação. Contudo é importante frisar
que as ideias aqui apresentadas alinham-se com o pensamento crítico que a sociedade
experimentou, e continua a experienciar um período de transição entre projetos de
organização social e histórica. Como poderemos ver mais adiante, há entre muitos estudiosos
a percepção que os valores e teses modernistas estão superados (Godoi e Mastella., 2015).
Atravessamos um período de grande turbulência e imprevisibilidade, num processo de
transição decorrente da demanda para que a sociedade estabeleça novos sistemas de ideias em
substituição àqueles construídos ao longo de cinco séculos e que se tornou arcaico,
inadequado e instável, mas ainda dando suporte para diferentes setores reacionários da
sociedade, principalmente no âmbito da economia e da política, atendendo a interesses
conservadores, tanto corporativos, quanto políticos.

Do ponto de vista dos representantes clássicos da filosofia pós-moderna


(estamos nos referindo principalmente aos filósofos franceses de meados do
século XX e o início do XXI), o mundo mudou tão drasticamente, que
exigiu um forma completamente diferente de análise, narrativa e operações
mentais. Os filósofos pós-modernos oferecem sua visão da sociedade
identificando-a como pós-moderna e descrevendo-a por meio de uma série
de aspectos que a distinguem da era anterior, a modernidade (Chistyakova,
2018).
Artistas, filósofos, cientistas vêm buscando novos rumos para fundamentar a realidade, e a
tomada de decisão convergente com a busca pela permanência. Os efeitos desse esforço,
realizados ao longo do século XX e os primeiros anos do século XXI, caracterizaram a Pós-
Modernidade e o que veio depois dela até os dias correntes, denominada, ainda que
precariamente, de Pós-Pós-Modernidade (Shinn, 2008). Essa mudança de fase decorre da
busca por metaestabilidade em um novo patamar de complexidade. Mesmo reconhecendo que
há perspectivas contraditórias cercando esta questão, não é nosso objetivo aqui aprofundarmo-
nos nos debates entorno desta transição. O cenário proposto para as questões aqui formuladas
é aquele em que se reconhece a presente crise em tempos de reconstrução da realidade em
todos os campos do conhecimento e das relações humanas. Nesse contexto, pretende-se
especular como a Arte, entendida como campo de produçã o de conhecimento, através
das experiências produzidas na interaçã o propiciada pelos objetos culturais produzidos
nesse campo, pode apresentar alternativas apara a superaçã o da crise sistêmica em que
nos encontramos.

A economia, o motor da crise contemporânea

Para muitos especialistas, o modelo capitalista está em crise. Esta parece em sincronia com a
crise a que nos referimos acima, a do racionalismo, incrustado no âmago do modernismo.
Para seu estabelecimento, o modernismo demandou o desencantamento do mundo, a
eliminação de todas as forças autônomas da natureza, seus espíritos. Isso exigiu o
soterramento da autonomia, de tudo de mágico que havia na natureza, desde os pré-socráticos
até os alquimistas da renascença. Os efeitos deletérios dessa decisão se fizeram sentir com
maior evidencia com a industrialização. “O homem substituiu a dança, o canto e o riso, por
uma teoria, a pior: aquela que tudo quer explicar pela causalidade”. No rastro de destruição
produzido em nome do controle absoluto, ficaram destituídas de valor as emoções, a
autonomia do inconsciente, a intuição como parte dos mecanismos de entendimento da
natureza. Giannetti (2016, p.16), ao refletir sobre esse quadro, apresenta o que ele denominou
de tríplice ilusão: o pensamento científico capaz de eliminar todos os mistérios do mundo; a
submissão da natureza ao controle por meio do uso da tecnologia; avanços no processo
civilizatório conquistado para toda a humanidade, promovendo o refinamento ético e
intelectual acompanhado da felicidade. Para o autor, uma era termina quando se percebe que
seus valores fundantes estão exauridos. Então, para ele, a constatação de que a era moderna
“caducou” é inescapável. Godoi e Mastella (2015) enumeram diversos aspectos que marcam o
esmorecimento do pensamento moderno enquanto outra agenda, a do pós-modernismo,
buscou caminhos para atender às necessidades da sociedade, geradas pelas enormes
transformações sociais, científicas, tecnológicas e econômicas da virada do século XX para o
XXI. Com o fim das grandes ideologias dominantes e o estabelecimento global as teses
neoliberais passam a reger a sociedade e os mercados, homogenizando a Cultura e reduzindo
sua diversidade:

Observamos o desenvolvimento do individualismo, a diminuição do papel do Estado, a


supremacia da mercadoria, o reinado do dinheiro, a sucessiva transformação da cultura, a
massificação dos modos de vida, a exibição das aparências, o achatamento da história na
imediatez dos acontecimentos e na instantaneidade informacional, o importante lugar
ocupado pelas tecnologias poderosas e, com frequência, incontroladas, a ampliação da
duração de vida, a demanda insaciável de plena saúde perpétua, a desinstitucionalização da
família, as interrogações múltiplas sobre a identidade sexual, as interrogações sobre a
identidade humana, a hesitação do conflito, a desafetação progressiva em relação ao
político, a publicização do espaço privado e a privatização do domínio público (Godoi e
Mastela, 2015).

O conceito de Antropoceno tem sido abordado e discutido em campos das humanidades como
filosofia, literatura e arte. Donna Haraway, refletindo sobre as falhas e os pontos fortes do
Antropos e o Antropoceno, considera que à figura do Antropos não se deve atribuir a causa
dos processos de extinção em massa que nos ameaçam. Em vez disso, ela sugere que
deveríamos usar apenas uma palavra para compreender esse processo, deve ser o capitaloceno
– a era do capital.

Eu sou uma composista, não uma pós-humanista: somos todos compostos, adubo, não pós-
humanos. O limite que é o Antropoceno/Capitaloceno significa muitas coisas, incluindo o
fato de que a imensa destruição irreversível está realmente ocorrendo, não só para os 11
bilhões ou mais de pessoas que estarão na terra perto do final do século XXI, mas também
para uma miríade de outros seres. (O número incompreensível, mas sóbrio, de cerca de 11
bilhões somente será mantido se as taxas de natalidade de bebês humanos, em todo o
mundo atual, permanecerem baixas; se elas subirem novamente, todas as apostas caem por
terra). “À beira da extinção” não é apenas uma metáfora; e “colapso de sistema” não é um
filme de suspense. Pergunte a qualquer refugiado, de qualquer espécie. (Haraway, 2016)

David Harvey (2014) examina as contradições internas no interior dos fluxos de capital como
deflagradoras das crises econômicas recentes. Segundo o autor, embora as contradições
tornem o sistema capitalista flexível e resiliente, elas também contêm as sementes da
catástrofe sistêmica. Skydelsky recorda o economista John Maynard Keynes, cujas ideias
influenciaram decisivamente o pensamento econômico do século XX. Keynes ficaria
estarrecido se pudesse ver como suas crenças e perspectivas foram desvirtuadas quando
confrontadas com a economia contemporânea nesse primeiro terço do século XXI. Hoje,
quase um século depois da publicação do artigo Economic Possibilities for our Grandchildren
(1930) é possível perceber a flagrante discrepância entre as perspectivas do autor e a
economia dos nossos dias:
O ritmo em que podemos chegar ao nosso destino de felicidade econô mica será
regido por quatro coisas – nosso poder de controlar a populaçã o, nossa
determinaçã o em evitar guerras e dissensõ es civis, nossa disposiçã o de confiar à
ciência a direçã o daqueles assuntos que sã o adequados a preocupaçã o da ciência e
a taxa de acumulaçã o fixada pela margem entre nossa produçã o e nosso consumo;
dos quais o ú ltimo cuidará facilmente de si mesmo, dados os três primeiros.
Enquanto isso, nã o haverá mal em fazer preparativos suaves para o nosso destino,
em encorajar, e experimentar as artes da vida, bem como as atividades de
propó sito. (Economic Possibilities for our Grandchildren (1930).

Para o sociólogo e historiador do meio ambiente Jason Moore (2015), a perspectiva humana
no século XXI não é totalmente promissora. Para ele, nosso futuro pode ser especificado em
dois níveis de abstração. O primeiro é a natureza humana. O envolvimento humano com o
resto da natureza, na última década, alcançou o ponto “onde as mudanças ambientais globais
abruptas não podem mais ser excluídas”. O segundo é o capitalismo na natureza. A crise que
se desenrola do capitalismo neoliberal sugere que vemos algo muito diferente do padrão
familiar. Hoje está cada vez mais difícil conseguir da natureza – incluindo a natureza humana
- “brindes” baratos. Isso indica que podemos experimentar não apenas uma transição de uma
fase do capitalismo para outra, mas algo mais épico: o colapso das estratégias e relações que
têm a acumulação sustentada de capital nos últimos cinco séculos. Recentemente, Toby Ord
constatou as possibilidades consideráveis de problemas catastróficos no horizonte dos eventos
da sociedade humana. O uso de tecnologias poderosas como armas nucleares, biotecnologia e
inteligência artificial. O autor emprega a metáfora do “precipício” para se referir ao presente
período, para ele uma época insustentável. Segundo o autor, o que está em jogo envolve o
risco da autodestruição da espécie humana.

A Arte no motor da transformação

Em meio a esse processo turbulento e eivado de contradições, a produção da arte se fez


presente perscrutando a sociedade para dar visibilidade a aspectos concretos, tanto quanto os
abstratos, da crescente complexidade dos processos e relações sociais no século XX.
Influenciando as transformações e a percepção da realidade, o fenômeno artístico que
caracteriza o pós-modernismo emergiu nos anos 1950, nos Estados Unidos, nos campos da
arquitetura, escultura e arte (Chistyakova, 2018). A produção de artistas emblemáticos como
Francis Bacon e Paul McCarthy, marcada pelo ecletismo, apropriação, miscigenação de
diferentes estilos também aponta para o “fim das vanguardas” e do modernismo na arte. A arte
pós-moderna incorporou novos valores, ao mesmo tempo em que rompeu com a tradição do
novo, a aversão ao passado, e o sentimento vanguardista do início do século XX (Fabbrini,
2012). Nesse período, ampliaram-se os interesses para as inter-relações entre as diferentes
áreas do conhecimento, e a heterogeneidade das manifestações artísticas envolvendo temas e
técnicas múltiplas. O estranhamento na recepção das obras era tal que se considerou a própria
“morte da arte” (Malva, 2019). Sobre esse tema, ou o do surgimento de novos paradigmas e
valores para o entendimento da Arte, acirrou-se um debate que ficou marcado pelas posições
conflitantes entre Greenberg e Danto (DANTO, 2006). Esse diálogo tinha como pano de
fundo a produção artística da época e a reorganização dos estatutos da Arte, questionando
modelos clássicos estabelecidos. A influência da arte moderna sobre a filosofia se fez sentir,
p.ex., quando Danto escreveu “que o fim da arte consiste na tomada de consciência da
verdadeira natureza filosófica da arte” (DANTO, 2006, p.34). É nesse cenário febril e
contestador que Lyotard formulou a ideia de “atomização” do social na era das novas
tecnologias comunicacionais. Quase que prevendo o surgimento das Redes Sociais, notava, na
transição da modernidade para a pós-modernidade, a desintegração das estruturas sociais
rígidas em átomos individuais. Nesse processo, emergiram novos “jogos de linguagem” nos
quais a atomização social permitia a formação de muitas “redes flexíveis de jogos de
linguagem”. Por meio deles, as conexões sociais poderiam se legitimar e adquirir seu
significado pragmático. A sociedade atomizada mostrava sua eficiência capitalista e
variabilidade sob a influência de receber e enviar informações. A interação com as obras de
Pollock forneceram a ele o material imagético para conceber a sociedade conectada por meio
de redes fluídas que, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que conectam, a dividem em polos
opostos.

O mundo da pós-modernidade é simbólico. Os indivíduos desse período, contrariamente


àqueles do modernismo, que viviam no mundo natural, vivem numa realidade virtual,
artificial, povoada por processos simulativos, simulacros, signos e imagens. As obras de
Warhol foram essenciais para as construções teóricas de Baudrillard (Chistyakova, 2018).
Ciência e filosofia em convergência com a Arte

Ao término do século XX, Antônio Varela (2016), pesquisador que fez importantes
contribuições para o campo da Ciência Cognitiva está entre aqueles que irão se preocupar
com a questão da subjetividade, percebendo como esta constitui, junto com a objetividade,
uma relação de polaridade instável (idem, pg. 240). Adotando uma postura de distanciamento,
senão ruptura, com os postulados que definem o sujeito moderno a partir da racionalidade,
universalidade e objetividade. A noção de subjetividade, quando resgatada trouxe também a
centralidade do corpo, das emoções e da experiência. Reconhecendo esta última como o
processo através do qual atribuímos sentido às nossas interações no mundo, imbricadas num
contexto emocional para produzir nossa memória, história e identidade. As perspectivas de
Varela convergem com o pensamento de John Dewey. Para esse filósofo, a questão da
experiência esteve no foco das preocupações, quando se debruçou sobre a arte e a estética.
Para ele, esses assuntos situam-se no campo diametralmente oposto às ideias iluministas
propostas, pela primeira vez em 1735, por Baumgarten que, no iluminismo, levaram a uma
perspectiva elitista da arte, uma forma especial de conhecimento e apreciação desinteressada.
Essa perspectiva marca o período moderno e esteve internalizada no pensamento ocidental
desde então até meados do século XX, como vimos, quando suas limitações se tornaram
insuportáveis. A dessacralização da experiência estética é um importante aspecto considerado
por Dewey, afastando a arte dos pedestais:

Partícipe da vida, a arte se dá sob novas formas e modos de percepção na atualidade, pois
distante dos pedestais dos museus e instituições onde se expõe oficialmente, aparece em
lugares incomuns, mas que propiciam a busca do prazer e o exercício da sensibilidade. Ou,
como propõe o autor que as artes que têm hoje mais vitalidade para a pessoa média são
coisas que não são consideradas artes como, por exemplo, filmes, jazz, quadrinhos e, com
demasiada frequência, as reportagens de jornais sobre casos amorosos, assassinatos e
façanhas de bandido (Reis, 2011).

Para Dewey (2010), a função da arte é a de buscar a quebra de expectativas, desequilibrar um


sistema de crenças, tendo em perspectiva a busca de equilíbrio em novas configurações do
pensamento (idem, p.76-77). Bergson também se voltou para essa questão da reorganização
do pensamento, ou processo criativo, quando descreve como o “centro de indeterminação”
nos indivíduos pode, numa experiência singular (que aqui consideramos a experiência
estética) criar hábitos, despertar novas disposições para a ação e memórias. Esse processo
criativo, para Bergson, se instaura entre a percepção e a ação sempre que os hábitos
inconscientes internalizados não atenderem às necessidades do corpo (Fatorelli, 2013; p.138).
A consequência de se compreender a experiência estética inserida no cotidiano,
dessacralizada, permite-nos a expandir o conceito de arte como artificação. Para Shapiro
(2007):

A artificação é a transformação da não-arte em arte. A constatação do aumento geral da


atividade artística e do dinamismo da produção em ciências sociais que lhe é consagrada
nos encoraja a propor a artificação como um novo campo de investigação para a sociologia
da arte e da mudança social …
… Compreender o engendramento desses processos e descrever minuciosamente seu
desenvolvimento poderá nos ajudar a clarificar a natureza dos objetos “de arte” e dos
mundos sociais nos quais eles emergem ou, até mesmo, de mundos sociais resultantes
desses objetos (Shapiro, 2007).

Brown e Dissanayake (2018) vão refletir sobre a questão da artificação considerando a arte
como uma atividade que inclui comportamentos complexos que não se reduzem somente à
dimensão estética. Suas observações sobre a arte no período pré-moderno (idem p.46)
convergem com a perspectiva de Shapiro, acima, permitindo-nos concluir que o período pós-
moderno recupera muitos dos valores pré-modernos que aproximavam a arte do cotidiano e da
organização social. Como um comportamento, deve ser considerada no bojo de uma ampla
teoria da emoção e atendendo funções do coletivo e comunitário, envolvendo atividades
participativas que incluem, p.ex., encorajamento à cooperação; crítica, coordenação, e
harmonia sociais.

Esses aspectos caracterizam a prática do ativismo na arte. Machado (2020) define arte-
ativismo, ou artivismo, como um modo de disseminar contestações de interesse coletivo. Hoje
em que o espaço da comunicação ocorre nas redes telemáticas, essa prática é denominada
como net art, podendo ainda assumir a forma de intervenção em sistemas de computadores
com objetivos sociais ou políticos, o hacktivismo. As manifestações artísticas realizadas nos
espaços públicos apresentam vasto repertório e exploram as possibilidades estéticas neles
existentes.
Ao considerar as diferentes manifestações de arte-ativismo nos espaços públicos das mais
distintas ocorrências políticas, um vasto repertório de formas e possibilidades estéticas
revela dimensões singulares da própria arena em que os confrontos acontecem. Um
inusitado diálogo entre criação estética e espaço se configura como discurso vigoroso de
um ativismo bem distinto da dinâmica das agitações que, no início do século XX, abriram
caminho para movimentos estéticos como os agit-prop do construtivismo russo, pesadas as
diferenças (Machado, 2020; p.48).

A atividade artística, no contexto aqui delineado, deve ser inserida às demais formas de
produção de conhecimento. Consideradas no contexto de uma ciência pós-moderna (Best e
Kelner. 1997, p. 242) de forma alargar os limites entre conhecimento científico e “não-
científico”. Ao incluir, nesse processo inclusivo, outros domínios do conhecimento à ciência,
produz-se uma nova unidade científica, ética, estética e intuições religiosas, numa “síntese
criativa de ideias pré-modernas, modernas e pós-modernas” (idem).

Comentários finais

A arte em sintonia com a filosofia e a ciência, no contexto do pensamento pós-moderno,


afasta-se, como vimos acima, dos valores e práticas do capitalismo neoliberal. Entendida
como comportamento que atende aos pressupostos evolucionistas de expansão e permanência
humana num contexto sistêmico, como o descrito pelas ciências da Complexidade
(Holland,1995; Gell-Mann, 1994; Kauffman,1995), a Hipótese Gaia (Lovelock, 2019),
Campo Quântico (Lazlo, 2016), p.ex.. A questão da subjetividade e da consciência, ainda que
divida opiniões entre cientistas e filósofos, torna-se uma questão para a física no início do
século XX. A Mecânica Quântica em sua interpretação de von Neumann–Wigner enfatiza a
função do observador no colapso quântico e impõe à ciência a necessidade de lidar com a
questão da consciência como um fundamento da realidade. Considerar os indivíduos como
parte de um grande sistema integrado para o qual nossa experiência cotidiana se abre,
expandindo nosso conhecimento e consciência, existe como hipótese científica a ser
comprovada, e como uma abordagem estética da realidade. Parece simplesmente belo e
intuitivo nos vermos como partícipes na construção do universo. Essa perspectiva converge
com o pensamento do físico e filósofo John Wheeler (1911-2008) que sugeriu que a realidade
é criada pelos observadores, ao propor o Princípio Antrópico Participativo (PAP). Segundo o
PAP, o “universo permite o nascimento da consciência e esta, por sua vez, lhe dá
significado”1. Nesse contexto teórico, a consciência está expandindo junto com o universo
num processo evolutivo. Assim, o objetivo de nossa existência é expandir nosso
conhecimento e consciência na direção do ponto Omega, quando, segundo Teilhard de
Chardin (2018), num futuro suposto, tudo no universo encontrará um ponto de unificação.

A questão da experiência e a expansão da consciência de que aqui tratamos converge com as


teses dos filósofos da mente que se identificam com a ideia do pampsiquismo, segundo a qual
a consciência pervade o universo e constitui um de seus fundamentos. Esse modelo de
realidade, não é livre de contestação científica, muitas vezes acirrada. É mister da ciência
pautar-se pelo racionalismo, e cientistas e filósofos que se afastam dessa essa diretriz são
criticados por seus pares. A perspectiva integradora do universo consciente, contudo,
apresenta um forte apelo estético, estabelecendo profundas relações entre os indivíduos e a
natureza. A esse respeito, Paul Thagard (2019), considera importante estabelecer
pragmaticamente um caminho para perceber a relação entre a consciência, criatividade e
outras importantes funções cognitivas como emoção e linguagem.

Não defendo diretamente a hipótese da identidade 2, construo o cenário capaz de descrever


os mecanismos chave que podem explicar toda a gama de fenômenos mentais discutidos
em capítulos posteriores, incluindo emoções, consciência, ação, linguagem e criatividade.
Meu objetivo geral é mostrar que mente = cérebro fornece uma explicação melhor desses
fenômenos do que alternativas disponíveis, incluindo a hipótese sedutora de que mente =
alma (idem, p.18).

Objetos sensíveis e narrativas criam oportunidades para experiências e acesso a conteúdos que
nos permitem construir, incorporar e transformar a realidade. A percepção da arte como
caminho da expansão da consciência permite-nos concebê-la como exercícios criativos e de
expansão da cultura que evolui de forma acelerada e é constituída por processos turbulentos
que permitem a construção de modelos de realidade dinâmicos e, muitas vezes contraditórios,
que nos permitem evoluir em nossa relação com o planeta e sua teia de relações físico-

1 “The universe gives birth to consciousness, and consciousness gives meaning to the universe.”
― John Archibald Wheeler

2 Neste texto o autor refere-se à hipótese materialista que implica considerar a identidade entre mente e
cérebro (mente = cérebro).
químico biológicas. Trata-se de uma atividade própria dos processos evolutivos e, portando,
em contraposição a estagnação e o conservadorismo retrógrado.

...proponho que o trabalho de arte não deve, de antemão, apresentar-se ao apreciador na


condição de “objeto”, com todas as premissas e implicações que isso comporta. Pois o
objeto (da ciência, do discurso ou da arte) nada mais é que uma mistura dos pilares onto-
epistemológicos da razão universal, que sustenta os modos de operação do sujeito nos
momentos de apreciação, produção e presentificação. Quando desenredada do sujeito, a
reflexão sobre a obra de arte libera a imaginação da rede de significação sustentada pela
separabilidade, determinabilidade e sequencialidade. Trata-se de um passo crucial na
dissolução de um modo de conhecimento que sustenta o estado-capital, isto é, que
fundamenta uma imagem do mundo como aquilo que deve ser conquistado (ocupado,
dominado e subjugado). (Da Silva, 2019).

A Arte, é um campo do conhecimento marcado pelo pensamento especulativo intuitivo e pela


expressão da subjetividade do artista. Isso não significa que as discussões científicas e
filosóficas não constituam sólidas referências que se imbricam no pensamento e fazer
artístico. Contudo diferentemente do cientista ou filósofo, o artista pode se deixar seduzir
abertamente por uma abordagem onto-epistemológica da realidade para a qual a consciência
constitua um de seus fundamentos. A arte cria condições para o pensamento divergente,
lateral e criativo. Além disso, estudos neurocientíficos mostraram que, nesse estado mental
emergem configurações neurais (correlatos à experiência) que põem em evidência a existência
do outro, da alteridade, em direção à empatia, afastando-nos da clausura do individualismo. O
pensamento predominantemente racionalista, voltado para o controle, domínio da natureza e a
atomização do indivíduo, não obstante ter permitido grande avanço tecnológico e material,
oblitera uma perspectiva integradora da natureza, afasta-nos de nossas intuições e desequilibra
nossas relações interpessoais. Arte e experiência estética apresentam alternativas capazes de
apontar caminhos que nos permitam escapar do paradoxo que vivemos hoje, quando, a
despeito do enorme progresso científico e tecnológico, enfrentamos a possibilidade do
autoextermínio.

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Fernando Fogliano
Pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes da UNESP, doutor e mestre em
Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, Co-cordenador do Grupo Ciência Arte e Tecnologia cAt-UNESP,
participante do Grupo Internacional de Pesquisas em Convergências entre Arte, Ciência e Tecnologia da UNESP,
GIIP. Graduado em Física e Engenharia Civil.

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