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GEOGRAFIA DA MODERNIDADE
E GEOGRAFIA DA PÓS-MODERNIDADE
A m alia Inés G eraig es de Lem os

RESUM O :
Este trabalho refere-se aos diferentes enfoques epistem ológicos que a Geografia assum e nestes dois momentos
civilizatórios.
Parte-se desde os paradigmas impostos pela filosofia positivista e as formas de análise teóricos que se exigiam
da G eografia (sr universal e geral em seus conteúdos), até os novos enfoques da relação sujeito-objeto, que
adm item o único e o excepcional.
A aproxim ação do sujeito e do objeto permite pluralidades de enfoques e também de interpretações, ao que se
dá por denom inação de ciência pós-moderna.
Ao longo da exposição do trabalho procura-se ver os estudos geográficos inseridos numa visão herm enêutica e
aceitando novas interpretações entre o local e a totalidade.
PALAVRAS-CHAVE:
Geografia, m odernidade, pós-modernidade, ciência, herm enêutica.

ABSTRACT:
This text discusses different epistemological approaches that Geography assumes in these two civilizatory moments.
It starts from the paradigms imposed by positivist philosophy and the theoretic analyse's forms Geography was
required (to be universal and general its contents), to the new approaches about the relation subject-object that
accept the unique and the exceptional.
The approxim ation between subject and object permits pluralities of approaches and even of interpretation
which is nom inated post modern science.
Along this exposition it's pursuit to see geographic studies under a hermeneutic vision, accepting new interpretations
between local and totality.
KEY W ORDS:
Geography, modernity, post modernity, science, herm eneutic.

Partindo dos Conceitos verdades propostas pela ciên cia, já não m ais
respondem .
A re fle x ã o entre m o d e rn id a d e e pós- Neste final de sécu lo uma quantidade de
m o d ernid ad e, que penetra diferentes cam pos term os são procurados pelos cien tistas so ciais
te ó rico s no co m eço da década de 80, significa para rotular o nosso tem po prenhe de m udan­
que se p erceb em m utações com referência a ças, em ergindo um novo tipo de sistem a s o c i­
um a p ro fu n d a m e n to das in c e rte z a s , a um a al: "so cied ad e de in fo rm ação " "socied ad e de
barb arização da história pela exacerb ação da consum o"' "s o c ie d a d e p ó s- in d u stria l" e n tre
c a rê n c ia e da m iséria hum ana, a que as velhas outros, mas que sugerem o fim de um período.

Professora Titular do Departamento de Geografia da FFLCH/USP


Depto. de Geografia: Av. Professor Lineu Prestes, 338 Cidade Universitária Butantã SP C EP 05508-900
28 Revista G EO U SP, N° 5 p. 27-39 Amalia Inés Geraiges de Lemos

A c r is e e n t r e m o d e r n id a d e e pós- ou pela administração e, a organização da so cie­


m o d ern id ad e apresenta-se em relação às id eo ­ dade, regulada pela lei e a vida pessoal, anim ada
logías p o líticas, aos co n ceito s estéticos, aos ra­ pelos interesses, mas também pela vontade de
cio c in io s cien tífico s, às co n ce p çõ es religiosas, se liberar de todas as opressões."(1995, p. 9)
críticas filo só fica e cultural, enfim , em todo o A modernidade se identifica com o m o­
esp ectro do conhecer. derno e a modernização, num tempo em que a
"Mós, latino-am ericanos, com uma histo­ palavra mais ouvida e exigida é progresso, e isto
ria vio lentam en te em preendida no despontar do não significa unicam ente progresso nas idéias,
m oderno através da conquista hispano-portugue- mas tam bém o das formas de produção e de tra­
sa, ficam os plenam ente envolvidos nesta pro­ balho, seja na industrialização e na urbanização,
b le m á tic a , desd e as n ossas e sp e cificid a d e s, seja, por extensão, na adm inistração pública e
desde a nossa m em ória e formas de ter partici­ na organização da vida da população.
pado dos códigos e paradigmas da modernidade: O progresso era identificado com a for­
desde nossos an te ced en te s de sedu ção e de mação política do estado-nação, forma concreta
form ar um ju ízo ao civilizatório que ela propôs." da modernidade econôm ica e social. Mas, o con­
(CASULLO , 1989, p. 12) teúdo da nação, foi produto da revolução france­
A própria essência de m odernidade traz, sa como pensam ento republicano e leigo, triun­
no bojo, a idéia de ruptura com um mundo tra­ fo da razão sobre a tradição, o novo destruindo
dicional, com outra ordem, com outra cultura, as velhas formas.
que fóra sustentado na religião e seus dogmas. A m odernidade é identificada com o ca­
Um novo mundo, sim bólico, produzirá essa rup­ pitalism o e para sua realim entação e seu dina­
tura com o triunfar da racionalidade. m ism o te v e o c o n h e c im e n t o c ie n t íf ic o e
Modernidade pode também, ser concebi­ tecnológico aplicados, tanto à produção dos ho­
da com o um valor determ inante de assumir os mens, quanto aos valores e às m ercadorias.
p rin c íp io s que fazem da história a realização da A nova religião seria o mercado, e seu fun­
c iv iliz a ç ã o . Urdanibia escreve: "A modernidade cionamento exigia racionalidade que dependia da
su rg irá com a idéia de sujeito autônomo com a liberdade pessoal. "Através da ciência e do co ­
fo rça d a razão e com a idéia de progresso histó­ nhecimento sempre renovado, do cálculo formal
rico p ara um b rilh a n te final na terra. Continua, e matemático, coloca-se um novo pré-requisito
o autor, a firm a n d o que a tese central do pensa­ aos indivíduos: a liberdade estatuída pelo direito
m ento desse período é que "...todos os homens positivo formal. Liberdade que se singulariza atra­
são., por n a tu re z a , essencialm ente idênticos en­ vés de códigos prescritos em term os de regras
tre s i." (1990, p. 51) A partir dessa tese há uma formais aderidas ao estatuto do homem livre, sen­
idéia de universalidade e identidade; dentro de do geradas, a partir dele, as duas condições que
uma concepção marxista a tese do sujeito indivi­ constituem o capitalism o como m odernidade": o
dual muda para a tese da história. O sujeito, a capital não originário de acum ulação primitiva
partir desse mom ento, com eça a ser pensado porém resultante de violência e "relação políti­
com o nação, cultura, classe social, raça, ou seja, ca" e o trabalhador livre e assalariado. (HIRAMO,
com o sujeito coletivo. 1991, p. 4)
T o u r a in e o p in a que " . .. a id é ia de O capitalism o com o m aterialização da
m odernidade, na sua forma mais am biciosa, é a modernidade exigia um processo de transform a­
afirm ação de que o homem é o que ele faz, e ção dos lugares em que penetrava, pois era o
que portanto, deve existir uma correspondên­ "progresso" que chegava. Como se identificava
cia cada vez mais estreita entre a produção, tor­ esse progresso? em prim eiro term o havia que
nada m ais eficaz pela ciência, pela tecnologia racionalizar o trabalho. Palavra de ordem da in-
Geografia da m odernidade e geografia da pós-modernidade 29

dústria desde as concepções de Taylor e Ford até Je a n Chesneaux se interroga "com o ca­
Lenine, discípulo muito aplicado e entusiasta dos racterizar nossa sociedade dos anos 8 0 ? "S iste ­
dois anteriores. Em seguida, havia que intensifi­ ma técnico" diz Ellul, para quem tom a com o base
car um poder político, que mobilizasse as ener­ a hegemonia da tecnologia; "So cied ad e Pós- In­
gias, para obter uma m odernização acelerada. dustrial" afirma Touraine, a quem preocupa as
Finalm ente, a necessidade de subordinar as tra­ transform ações no sistem a de produção. Prim a­
dições, os regionalism os e o senso de pertencer do do produtivism o e da tecnocracia, afirm am
ao lugar para ob ter uma poderosa integração os ecologistas. Uma etapa nova do capitalism o,
nacional. asseguram os marxistas.
Esta correspondência entre a razão e a É um conceito periodizador, que mostra
vontade resultava numa subordinação do indiví­ traços novos na cultura, na em ergência de um
duo à sociedade e, desta, a uma produção mo­ novo tipo de vida social e uma nova ordem eco ­
dernizada e ao poder do estado, o qual poderia nômica, denominada, eufem isticam ente, de so­
exigir uma m obilização coletiva, com apelo à ra­ ciedade pós-industrial ou de consum o, so cied a­
cionalização e ao desenvolvim ento, que resulta­ de dos meios de com unicação ou do espetáculo
va no progresso. ou do capitalismo transnacional. Observa-se, tam ­
Este paradigma se afirm ava em três pila­ bém , na s o c ie d a d e , um a c u ltu ra de m assa
res de sustentação: O Estado Moderno, o Merca­ hedonista e psicodélica que não é mais, aparen­
do e a Cidade. temente, revolucionária.
Enfim , poderíam os continuar falando de Concom itantem ente, os m eios de co m u ­
m odernidade por muito mais tempo, mas a ver­ nicação formaram uma m ultiplicação geral das
dade é que, desde o final do sécu lo X V III a v is õ e s do m u n d o : um W e lt a n s c h a u u ngen
m odernidade tem com o projeto a em ancipação mundializado. Tomaram a palavra as m inorias
da sociedade, a partir dos pensadores burgue­ de to d as as c la s s e s , e to d as as c u ltu ra s e
ses, que sustentam o ideário da Revolução Fran­ subculturas se fizeram públicas. A lógica do mer­
cesa, assim com o as doutrinas sociais do libera­ cado e da inform ação perpassou todos os lim i­
lismo inglês e do idealism o alem ão; paralelam en­ tes e, num a am p liação co n tín u a de n o tícias,
te surgem os m arxistas e p o sterio rm en te os "tudo" é objeto de interesse e de mercantilização.
neom arxistas, e os defensores da Teoria Crítica O ocidente vive uma pluralização de con­
Alemã. Todos eles têm, como epicentro de suas cepções irresistíveis. "Hoje é impossível assum ir
idéias, a defesa da liberdade do indivíduo e o o m u n d o da H is tó ria so b p o n to s de v is ta
direito à igualdade perante a lei e perante as con­ unitários"(VITTIHO, 1990, p. 5) A realidade é o
dições econôm icas. resultado de cruzarem-se, de inter-relacionarem-
Quanto ao conceito de pós-modernidade, se, de "contaminarem-se" múltiplas imagens, de
Je a n François Lyotard escreve, em seu livro "La interpretações que distribuem os meios de co­
Condition Posm oderne" que a palavra se usa no m unicação em concorrência mútua sem uma li­
continente am ericano a partir dos sociólogos e nha ou coordenação central.
dos críticos, em virtude do estado da cultura e Ha sociedade de com unicação generali­
da realidade social, após as transform ações que zada e de vários conteúdos, a pluralidade de cul­
afetaram as "regras do jogo" tanto nas ciências, turas hoje é muito mais concreta do que se po­
com o na literatura e nas artes. Hum outro mo­ deria imaginar e, muito mais interconectada com
mento, o m esm o autor nos ensina que o termo as diferenças particulares dos seus lugares de
quer reafirm ar o conteúdo de verdadeiro e do origem. Vittino nos diz que "viver neste mundo
justo, que vem a faltar e que a modernidade não múltiplo significa fazer experiência da liberdade
concretizou. e n te n d id a c o m o o s c ila ç ã o c o n t ín u a e n tre
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pertinência e desfazim ento." Liberdade proble­ Fin a lm en te , uma an títese do d iscu rso
m ática pela banalidade assum ida, estereotipada da m o d e r n id a d e , a p r e g o a o a n a r q u is m o
e vazia de significados e de compromissos. e p iste m o ló g ico , to m an d o co m o e x em p lo as
Do ponto de vista teórico, a denom inada idéias de Feyerabend e ap oia as p esq uisas pe­
pós-m odernidade nega o universalism o, a gene­ quenas e d esco m p ro m etid as. Mega os mega-
ralização, que eram qualidades e procedim en­ projetos de investigação e se volta, com ên fa­
tos inerentes da m odernidade. Valoriza o cará­ se, ao diferente e estim u lante enq uanto o b je ­
ter único e excepcional, adm ite a necessidade to de pesquisa. C o n testa o m étodo cie n tífico ,
de se chegar ao conhecim ento por outras vias que co n sid era um dogma, e a estru tu ra rígida
de legitim ação que, nem sem pre, podem proce­ e hegem ônica do c o n h e cim e n to ra cio n a l. Em
der da racionalidade: tais com o a inspiração, os o p osição aos p rin cíp io s da m o d ern id ad e, co n ­
sentim entos, a indeterm inação, a polimorfologia, sidera que há, na base do c o n h e cim e n to , um
a polissem ia, enfim, interpretações que negam irrealism o (in tu iç ã o ?), que, nem sem pre, é pro­
a validade da razão totalizante e toda generali­ duto do binôm io razão/ciência e que, pode ser,
zação produzida por leis gerais. Em oposição aos tam bém , mito/ m agia/religião. Negá-lo, c o n s­
m odernistas, há uma predom inância do irracio­ titui uma ideologia a u to ritá ria dos cien tistas.
nal tom ando com o princípios as formas, as co­ Mito e razão devem ter vín cu lo s estrei­
res, as imagens, as metáforas, os sentidos, per­ tos dados pela proxim idade sujeito-objeto. Va­
m anentem ente reatualizados e reconstruídos. lorizar o m om ento particular e único com o ins­
O m aior indicador do m ovim ento que se tância na progressão do saber.
poderia cham ar de pós- m oderno, talvez seja a V a t tin o n o s p r o p õ e r e in t r o d u z ir a
crítica às raízes ilum inistas, ao poder absoluto h erm en êu tica nas c iê n c ia s so c ia is com o um
da razão e com ela à ciência postas, agora, sob novo "idiom a com um à filo sofia e à cultura nos
suspeita. Má uma adesão irrestrita a um m ovi­ anos 90 e assim suprim ir as interp retaçõ es m ar­
mento de herm enêutica. Mas sociedades pós xistas e estruturalistas, globalizantes, do u trin á­
industriais, ou, cham em os, mais desenvolvidas, rias e autoritárias predom inantes até os anos
as transform ações tecnológicas do saber foram 80. "O horizonte da h erm en êu tica ab riria esp a­
consideráveis e afetaram as principais funções ço para um co nh ecim ento não hierarquizado,
com o são a pesquisa e a transm issão do conhe­ m enos pretensioso em suas generalizações e
cim ento. Seguidam ente a estes "desastres" um mais atento às e sp ecificid ad es, pois não está
outro questionam ento de grande alcance se es­ com prom etido com uma ordem lógica, estável
b o ça : os "m e ta d is c u r s o s " na e x p re ssã o de e g e ra r(G O M E S , op. cit. 1996, p. 24)
Lyotard (1979, p. 12), as grandes narrativas, não
mais atingem os objetivos propostos. Menciona Na Procura da Essência
por exem plo uma multidão de acontecim entos
de ordem histórica, que não responderam às ne­ Entraremos no tema falando da epistemología
cessidades da realidade social. O discurso cris­ da ciência como um todo, elemento fundador da
tão de redenção do pecado de Adão pelo amor, modernidade, e dos paradigmas nos quais a nossa
"...a narrativa aufklarer da em ancipação e da ser­ disciplina está inserida. A Geografia não é separada
vidão pelo conhecim ento..." o discurso marxis­ nem divorciada do contexto de visão do mundo, da
ta da em ancipação da exploração e da alienação mentalidade, do Weltanschauung dos alemães, do
pela socialização do trabalho, a narrativa capita­ pensamento filosófico que lhe dera origem.
lista de que se chegaria ao desenvolvim ento e se Ao final dos anos 80 os paradigmas da ci­
term inaria com a pobreza do mundo, através do ência moderna, é sustentado no pensamento raci­
avanço técnico-industrial. onal, já que a razão foi desde o final do século
Geografía da m odernidade e geografia da pós-modernldade 31

X V III a fonte de todo conhecim ento, da norma, européia. Esse progresso, em ascensão gradual
do direito, da verdade. Fonte da ordem, do equilí­ do conhecim ento, perm ite a ruptura que daria
brio, do progresso, da civilização, são conceitos uma espécie de evolução entre a crise e os m o­
emitidos desse sistema moderno de acesso a um mentos de ascensão. Esta concepção de m ovi­
mundo considerado humano, a um domínio da mento é particularm ente interpretada, tanto para
natureza a partir da razão. A racionalidade mo­ o processo histórico, com o para o co nh ecim en ­
derna exigia o enfrentamento objetivo do sujeito to científico. Gom es nos afirma que: "a crise é o
frente ao objeto, a explicitação do método cientí­ anúncio de uma m odificação, é tam bém o signo
fico, as normas precisas para a condução do pen­ da confrontação entre dois níveis de com preen­
sam ento que produzem o conhecimento. Todos são, o antigo e o novo. Este último terá sempre
estes alicerces da ciência moderna se encontram êxito nesta luta pela dem onstração de sua supe­
numa profunda crise. Isto significa que esses rioridade e ad equ ação de sua argum en tação,
paradigmas, não correspondem mais à necessi­ continuando, assim, a marcha inexorável que visa
dade do pesquisador e às respostas que procura. a uma posição mais justa, mais adequada e mas
As norm as que com punham as caracte­ poderosa do ponto de vista dos instrum entos da
rísticas das ciên cias na m odernidade, sustenta­ racionalidade"
das nas expressões m etafísicas, traziam como Este raciocínio, sustentou todas as gran­
exigência "... a apreensão de algo exterior ao des bases epistem ológicas, desde Kant, Megel,
intelecto ou pensam ento, e preexistente a ele e Comte ou Marx. De qualquer maneira, há, em bu­
a suas operações. E que apreendido e incorpo­ tidos nestas diversas concepções do pensam en­
rado ao p e n sam en to se faz c o n h e c im e n to ".( to científico moderno, os conteúdos diferencia­
PRADO JR , Caio 1979, p. 5). Conceitos com o es­ dos de espaço e de tempo.
sên cia e verdadeiro deviam dar a autenticidade P o rém , a p a r tir de q u a lq u e r o p ç ã o
ao conhecim ento. epistemológica que se faça, não há possibilida­
O longo período que se den om ina de de de se escapar de fazer uma reflexão sobre a
modernidade, que para alguns, nasce com Des­ ciência de um repensar herm enêutico, o que sig­
cartes no século XV II e, para outros pensadores, nifica que, para podermos com preender a pro­
com o Descobrim ento da Am érica (Octavio Paz), dução geográfica hoje, o existir da Geografia nos
que se estenderia até os anos 70, definido como dias atuais, devem os com preender a totalidade
o longo tem po de dom ínio da racionalid ad e, das ciências. C itando G adam er, (in: SA N TO S,
"...constrói sua identidade muito mais sob a for­ 1989, p. 12) "...o todo e a parte são aqui, de
ma de um duplo caráter: de um lado, o território algum modo, uma ilusão m ecân ica, pois o prin ­
da razão, das instituições do saber metódico e cípio h erm enêutico é o de que a parte é tão
normativo; do outro, diversas "contracorrentes" determ inada pelo todo com o o todo pelas suas
contestando o poder da razão, os modelos e mé­ partes"
todos da ciência institucionalizada e o espírito ci­ Os anos 90 nos introduzem numa crise
entífico unlversalizante".(GOM ES, 1996, p. 26). epistemológica, na qual os paradigmas conheci­
Nesse conjunto de princípios de domínio dos como produtos da m odernidade já não res­
da racionalidade, aceitava-se a idéia de movimen­ pondiam à nova realidade que o mundo nos apre­
to de progressão, que, em última instância, per­ sentava. As oscilações decorrentes das interpre­
mitia a aproximação da realidade de um fenôme­ tações empiristas, de bases positivistas até as
no, através da lógica científica e da verdade uni­ funcionalistas e estruturalistas de fundam entação
versal. O progresso é, no dizer do escritor Bengali, marxista ou, não haviam se esgotado. Os m ode­
a carruagem que levaria todos os povos da terra a los metodológicos que exigiam a formulação de
participar da civilização e do domínio da cultura leis, assim como de sistema, estrutura ou de pro-
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cesso, após esta profunda crise, deixaram alguns tentada na concepção teórica de Bachelard, hou­
sedim entos, o que perm itiu aos geógrafos, pro­ ve a necessidade de procurar desconstruir para
vavelm ente os mais tem erosos de enfrentar os construir uma nova forma de se "fazer co n h eci­
problem as epistem ológicos, a certeza de que o m ento"
conhecim ento, assim com o a ciencia, estão em Esta reflexão, que fazemos a partir da
perm anente transform ação. Esta situação se deu Geografia, uma fatia do conhecim ento, privile-
ñas C ien cias So ciais com o um todo, e dentro da giando-a com o uma ciência social, que a partir
G eografia tam bém , com o resultado da sua exis­ dela será para uma totalidade "a realidade so ci­
tencia sustentada no fenôm eno da "realidade al" enfocarem os, abordarem os, analisarem os
so ciai" com o nosso instrum ental teórico que dará uma
Através da reflexão hermenéutica, conse- forma diferente da m esm a "realid ad e" Com a
gue-se transformar a ciência de algo estranho, Ion- reflexão herm enêutica pois, procurarem os tor­
ge das nossas vidas, incompreensível, num obje­ nar com preensível o que as ciências sociais são
to familiar, próximo, falando nossa língua e, o mais na sociedade e o que elas dizem da sociedade.
importante, fazer-se compreensível, para comuni­ O conhecim ento científico-social hoje, apre­
car-nos aos leigos, as suas valências, os seus limi­ senta o nosso papel social e, assim sendo, a
tes, "...os seus objetivos e o que realiza aquém e "autocom preensão do nosso estar no mundo téc­
além deles, um objeto que, por falar, será mais nico-científico contem porâneo. "(SA N TO S, 1989,
adeqüadam ente concebido numa relação eu-tu (a p. 14)
relação herm enêutica) do que numa relação eu- As Ciências Sociais, entre as quais consi­
coisa (a relação epistemológica) e que, nessa me­ deramos a Geografia latu sensu, tornam-se uma
dida, se transforma num parceiro da contempla­ prática social, além de um co n h ecim en to , na
ção e da transfo rm ação do m u nd o "(SA N T O S, medida em que a objetivação seja apropriável e
1989, p. 13). Aceitar esse novo olhar sobre a ci­ se transform e em su b jetivável. Este processo
ência é resgatá-la dos princípios dogmáticos ab­ acontece, quando os objetos sociais dos sujei­
solutos ou, aprurísticos, que desde Descartes com tos sociais se convertem em conhecim ento cien-
seu "Cogito ergo sum " à reflexão transcendental tífico-social. Em resumo, afirm a Souza Santos,
de Kant ao idealism o hegeliano, às diferentes re­ "...a subjetividade científica é cada vez mais o
flexões filosóficas da historia do pensamento ci­ produto da ob jetivação so cia l."( 1989, p. 15)
entífico trouxeram até os nossos dias. "...Trata- Meste final de século XX, com o grande
se de compreendê-la enquanto prática social de dinam ism o do que Milton Santos denom inou o
conhecim ento, uma tarefa que se vai cum prindo "m eio técnico-científico-inform acional" o nos­
em diálogo com o mundo e que é afinal fundada so "objeto-subjetivado" sofre de um dinam ism o
nas vicissitudes, nas opressões e nas lutas que o extremo. Assim Boaventura de Souza Santos nos
com põem e a nós, acom odados ou revoltados." volta a informar: "A análise das condições soci­
Consideram-se assim, situações, valores, compor­ a is, dos c o n te x to s c u ltu ra is , do s m o d e lo s
tam entos, atitudes, além de outras "circunstân­ o rganizacion ais da pesquisa c ie n tífica , antes
cias" na expressão de Ortega e Gasset, que cons­ acantonada no cam po separado e estanque da
tituem o nosso existir. sociologia da ciência, passou a ocup ar o papel
A partir dessa atitude, do que se deno­ relevante da reflexão epistem ológica'^ 1989, p.
m ina o "circu lo h erm en êu tico " se realiza uma 57). O novo paradigma, que nos é apresentado
d esco n stru çáo do corpo teórico, construído pela e, que poderíamos cham ar ciência pós-moder-
c iê n c ia sobre si própria e, as imagens que de si na (título que o próprio autor utiliza), para reali­
m esm a fez, para tornar com p reensíveis as ra­ zar a nossa pesquisa científica, parte do reco­
zões desses objetos e imagens construídas. S u s­ nhecim ento de que todo saber é social, signifi-
Geografia da m odernidade e geografia da pós-modernldade 33

cando que os conceitos de historicidade e de fronteiras na busca de novas e m ais variad as


processo, de liberdade, de autodeterm inação e interfaces.
até de co n sciên cia que pertenciam a valores Esta nova forma de an alisar o c o n h e c i­
pessoais do hom em , agora devem ser estendi­ mento entre o local e o total, traz tam bém uma
dos à realidade social, o que significa que a pró­ nova m aneira de perceb er que, o ser total não é
pria relação sujeito-objeto sofre uma m udança determ inístico, e sendo local não é descritivista.
radical. Souza Santos cita Clausewitz para afir­ O autor suma-citado nos afirm a: "É um c o n h e ci­
mar que o objeto é a continuação do sujeito por mento sobre as condições de possibilidade da
outros m eios, e conclui afirm ando que '...o co­ ação humana projetada no m undo a partir de
nhecim ento cien tífico é autoconhecim ento" um espaço-tempo local. Um conh ecim ento des­
N esse novo paradigm a, que os episte- se tipo é relativam ente ¡m etódico, constitui-se
m ólogos denom inam de ciência pós-moderna, a partir de uma pluralidade m etodológica. Cada
ela é definida com o "...assum idam ente analógica método é uma linguagem e a realidade respon­
que co n h ece o que conhece pior através do que de à língua que é perguntada. Só uma co n stela­
co n h ece m elhor" (SANTOS, 1989, p. 63) ção de m étodos pode captar o silêncio que per­
Esta form a de interpretação nos perm i­ siste entre cada língua que pergunta. Numa fase
te e stu d ar a relação sociedade-natureza sem de revolução científica com o a que atravessa­
desprezar os sistem as de crenças, os ju izo s de mos essa pluralidade de m étodos só é possível
valor, os p reconceitos, os costum es, sem que m ediada pela transgressão m etodológica" Esta
se jam c o n s id e ra d o s elem e n to s do senso c o ­ visão diferenciada da ciência, permitirá, cada vez
mum ou com o d escriçõ es nào-científicas. Par­ mais, uma aproxim ação entre as ciências natu­
ticu larm en te para a Geografia, reform ula prin­ rais e as ciências sociais.
cíp ios que estão na essên cia da cham ada G e o ­ Os quatro momentos do conhecim ento ci­
grafia M oderna, ou seja o da analogia ou co m ­ entífico que podemos m encionar com o da o b­
paração, só que, neste m om ento, com novos servação, da descrição, da explicação e da inter­
conteú dos, não só puram ente descritivos, for­ pretação, em cada particularidade epistemológica
m ais ou generalizantes. teve valorização diferentes. Hoje afirm am os que,
Com o integrantes de um m undo p erp as­ nessa transgressão metodológica, a distância en­
s a d o p e la c o m u n ic a ç ã o , n a s e x ig ê n c ia s tre a descrição e a explicação será cada vez mais
m e to d o ló g icas, há n e cessid ad e de p articip ar curta. Milton Santos afirm a que descrição e ex­
desse rum o. A c o m u n ic a ç ã o do co n h ecim en to plicação são inseparáveis. Deve fazer parte dos
é a e s s ê n c ia do seu ser so cial. Tem que ser alicerces da descrição a vontade da explicação
co n sid e ra d o , assim m esm o, que todo c o n h e ­ (1996).
cim en to é local e ao m esm o tem po é total, por­
que a parte é o todo e, o todo é a parte, se ­
Demostrando a Existência
gundo nos in te rp re ta a visão h erm en êu tica da
c iê n c ia
Em bora, respeitando-se a fragm entação Os conteúdos dos conceito s de espaço
das disciplinas, a divisão do conhecim ento hoje, e de tempo, que constituem a essên cia da nos­
não é disciplinar, é temática. "Os temas são gale­ sa interpretação científica com o geógrafos dos
rias por onde os conhecim entos progridem ao estudos sobre a relação natureza e sociedade
encontro uns dos outros" (SANTOS, 1989, p. 65). são o que m uda nos d ife re n te s m o m e n to s
O conhecim ento avança na medida em que o ob­ epistem ológicos do nosso ramo do saber entre
je to se expande como as raízes de uma árvore, a Geografia da m odernidade e a G eografia da
procede pela diferença e pelo alongamento de pós-modern idade.
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Se o objeto da Geografia é o espaço, o damental de articulação da História. O tempo que


conceito dele foi mudando nos diferentes m omen­ possui um fim em si mesmo, um tem po teológi­
tos do pensam ento científico. Num primeiro mo­ co, um tempo que é uma doação de Deus para
mento, ele foi concebido como am biente físico, usufruto dos homens, da m esm a forma que Deus
o condicionam ento e o determinante natural da outorgara outros frutos da natureza, a terra, a
sociedade. Posteriormente, é o estudo das rela­ água, o sol, as plantas, os anim ais; era o tempo
ções espaciais e da distribuição no interior de apropriado à interpretação da Gênese. Como tal,
seu espaço geográfico, embora considerando que esse tempo "...n ão poderia ser subm etido ao
a organização e a estruturação desse espaço per­ controle dos homens, não poderia ser utilizado
tencem ao homem. Há nesses conceitos uma para permitir ganho material aos homens, pois
forte influência do caráter de espaço absoluto tal fato significaria a exploração de algo que não
de Newton, o qual era considerado, junto com o pertencia aos hom ens" (G LEZER, 1992, p. 5)
tempo, com o categorias de ordem imanentes. As­ Nas socied ad es pré-m odernas, nos diz
sim mesmo, tanto o espaço, como o tempo, seri­ Giddens, o tempo ainda estava intim am ente liga­
am classificados no que Aristóteles denominou do ao espaço. Media-se aquele em relação a este.
determ inantes dos dados sensíveis. A experiência do tempo está na relação com a
Os co n ceito s de espaço introduzidos pela experiência do lugar. Há uma relação natural en­
física predo m inaram na Geografia até os anos tre estes elementos. No período de intensifica­
70, quando, por in flu ê n cia das con cep çõ es m a­ ção das atividades com erciais, e ao iniciarem-se
t e r ia l is t a s da h is t ó r ia , to m a m u m a n o v a as viagens interoceánicas, as distâncias com eçam
co n o tação . a ser calculadas em tempo e, este, igual ao espa­
Assim, a física nos trouxe a idéia do "es­ ço, se torna objeto de contagem e de medida.
paço caixa" no qual se coloca determinado nú­ Assim, surge um tempo novo e um espaço novo,
mero de objetos. Trata-se neste caso de uma pro­ "mensurável, orientado, previsível, sobreposto ao
priedade do objeto material caixa que é, ao m es­ tempo eternam ente recom eçado e imprevisível
mo tem po considerado real, porém nesta defini­ do meio natural".(G LEZER, 1992, p. 6)
ção o conceito espaço adquire um significado Com a den o m in ad a "m o d e rn id a d e " o
que é livre de qualquer relação com um objeto tempo adquire uma nova forma de percepção,
m aterial particular. "Por este cam inho, através de agora há um esvaziam ento das antigas relações
uma extensão natural de "espaço-caixa" pode- e, em conseqüência, a ciência e a técnica criam
se chegar ao conceito de um espaço indepen­ um tempo hegemônico, escravizante, que se im­
dente (absoluto), de extensão ilimitada, no qual põe ao indivíduo, tempo com uma lógica absolu­
são contidos todos os objetos materiais. Então ta de mensuração, "tem po com edor de tempo"
um objeto m aterial que não esteja situado no es­ A modernidade criou um tempo seqüencial,
paço é sim p lesm ente in co n ceb ível; por outro com operações de controle, com atitudes de sig­
lado, no esquem a de form ação deste conceito, é nificados para a produção de lucros e rendas
perfeitam ente concebível que possa existir um rígidas, com ord ens im u táve is. É um tem po
espaço vazio"(BETTANINI, 1982, p. 17) com partim entado, com valor financeiro, de pro­
Se a percepção do espaço tinha uma for­ dução, de uso e de consum o, o tem po da reali­
te influência da física, também o era o tempo, já zação rápida da m ercadoria. É o tempo real que
que nos primordios estava direcionado à sua re­ tornou o homem seu escravo. A m aior realização
lação com o espaço. Posteriormente, a percep­ da modernidade foi a form ação do modo de pro­
ção do tem po entra numa nova dimensão, pela dução capitalista, e este conseguiu converter o
influência da civilização judaico-cristá. Nessa tra­ tempo, Dom de Deus, em tempo com o Se rvid o r
dição o tem po é um Dom Divino, é elemento fun­ a um tempo, Senhor e escravavizador, dos dias
Geografia da m odernidade e geografia da pós-modernidade 35

atuais. A m odernidade recusa o passado porque tempo considerada imediata, é o espaço "meio-
é uma perda do tempo, a razào, essência desse am biente" que trouxe à Geografia preconceitos
tem po, não perm ite ficar no passado. Com as que perduram até os dias atuais.
grandes transform ações que a m odernidade trou­ Esses conceitos, de espaço e de tempo,
xe, com o diz Qiddens, o espaço vai ficando cada foram as bases da Geografia dos cham ados "pais
vez mais longe do tempo, pois fomenta relações da Geografia Moderna": Hum boldt e Ritter além
localm ente distantes ou de interações face a face. de Ratzel, da cham ada escola determ inista e dos
"Em condições de m odernidade, o lugar se torna possibilistas franceses, foi a Geografia distribuí­
cada vez mais fantasm agórico: isto é, os locais da pelo resto dos países, tanto do mundo anglo-
são com pletam ente penetrados e moldados em saxõnico, como do mundo latino.
term os de influências sociais bem distantes de­ H u m b o ld t, e s c r e v e Q u a in i c it a n d o
les."! 1991, P- 27) Há um "esvaziam ento de tem­ Alm agià, ...restituiu à geografia, quase que de
po "com o pré-condição para o "esvaziam ento do todo esvaziada de seu conteúdo, ob jeto s, m é­
espaço" todos e critérios de ciê n cia original de caráter
Harvey igualm ente discute a concepção essencialm ente naturalista; de ciên cia tendo ta­
do tem po-espaço, antes e após o ilum inism o, refas próprias, muito am plas e bem d ife ren cia­
com o um dos paradigmas da m odernidade e, em das das de outras ciên cias que no passado flo ­
especial, o espaço estreitando-se cada vez mais resceram de seu tronco'TQ UAINI, 1983, p. 22).
pelo tempo. O pensam ento m odernista encara o Lucien Febvre, procurando as bases com ­
dom ínio da natureza com o uma m aterialização ponentes da origem da Geografia m oderna, es­
da liberdade humana. "Sen do o espaço um "fato" creve: "Um a científica: na gênese da geografia
da natureza, a conquista e organização racional m oderna é conhecida a função desenvolvida por
do esp aço se tornaram-se parte integrante do n a tu ra lis ta s e v ia ja n te s , d e sd e H u m b o ld t a
projeto modernizador. A diferença, desta vez, era Richtofen e Ratzel. A outra, política, no sentido
que o espaço e o tempo tinham que ser organiza­ mais amplo do termo: toda a progênie intelectu ­
dos, não para refletir a glória de Deus, mas para al, toda a série dos herdeiros espirituais de um
celebrar e facilitar a libertação do "hom em como Montesquieu poderia ser encontrada diante de
indivíduo livre e ativo, dotado de consciência e nós. A terceira, finalm ente histórica: porque o
vontade"(1989, p. 227). Essa imagem, esse mito, tempo em que nenhuma geografia, com o signifi­
trouxeram as grandes transform ações à Am érica cado atual do tempo, existe ainda, foram em pri­
Latina e ao resto do mundo não europeu. meiro lugar os historiadores, pelo próprio pro­
Essa concepção do "espaço caixa" e de gredir de seus estudos particulares, a se verem
tempo atemporal, teve forte influência nos estu­ obrigados a formular uma série de problem as,
dos da Geografia Moderna, porquanto a definição não propriamente geográficos, mas que tinham
da Geografia estava em concordância de como os alguns elem entos de ordem geográfica."(citado
fenôm enos físicos, biológicos e humanos esta- por QUAim, 1983, p. 22)
vam distribuídos, colocados dentro dessa "caixa" Interessante destacar que esse espaço re­
que era a superfície terrestre. Esse espaço era ceptáculo, divorciado do tempo, ou m elhor dito,
contínuo, isotropo (com as mesmas qualidades um tempo atem poral que tam bém na sua per­
físicas em todas as direções), homogêneo, finito cep ção não produzia o espaço , com o afirm a
ou infinito, dado que era completamente indepen­ Dollfus "Um espaço mutável que se descreve"
dente de sistem a de relações. Era o espaço da está impregnado de toda uma term inologia de
localização, dos inventários dos recursos naturais, ordem biológica. Assim, Vidal de la Blache, um
enfim o espaço dos quatro parâmetros de com ­ dos fundadores da geografia francesa no início
primento, largura, altura e duração, a medida do do século, define a paisagem com o "espaço con-
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creto e localizável que pode ser descrito "e o de­ prias e, o mais surpreendente, com o se este não
nom ina de "fisionom ia" Outro autor francês se fosse propriedade privada.
refere à paisagem chamando-a de "seres geográ­ De qualquer forma, foram os anos 70 que
ficos" A geografia tradicional, de base positivista, nos trouxeram a concepção de espaço m ercado­
está impregnada de expressões com forte influ­ ria, a partir das teorias marxistas e de um enfoque
encia dos conceitos das ciencias biológicas; mar­ metodológico com base no m aterialism o históri­
cam a necessidade de ser uma ciência natural co, no qual o espaço tem valor de uso e valor de
que lhe davam a possibilidade de criar leis. Este troca, que este recebe as diretrizes do papel do
fato, com o diz Foucault, pertence ao projeto estado e dos conflitos sociais. Toma-se consci­
positivista que pretendia fundam entar sobre to­ ência, a partir dos trabalhos de Milton Santos, de
das as ciencias. Esse espaço receptáculo, tinha que "produzir é produzir espaço" e mais ainda,
sua principal preocupação nas formas e na des­ que "...ele é sim ultaneam ente produtor e produ­
crição das mesmas. to; determ inado; um revelador que permite ser
Todos estes autores se preocuparam em decifrado por aqueles mesmos a quem revela; e,
assegurar um estatuto científico à Geografia, pro­ ao mesmo tempo, em que adquire uma significa­
porcionar-lhe um lugar dentro da classificação ção autêntica, atribui um sentido a outras coi­
das ciências, através de uma adaptação ao mé­ sas. Segundo essa acepção, o espaço é um fato
todo científico por meio de leis e princípios ge­ social, um fator social e uma instância social"
rais, definir seu cam po de trabalho, classificar (1978, p. 130)
os fatos de seu dom ínio, e procurar uma hierar­ A Geografia, nos diz Pierre George em
quia de valores. Mas, com passar do tempo, a 1966, "é o resultado e o prolongamento da His­
Geografia se havia tornado o que Milton Santos tória" e continua afirm ando com o historiador do
denom inou de "viu va do espaço "porque a sus­ atual deve -aplicando métodos próprios- se preo­
tentação da sua existência era debitada à "...h is­ cupar com os estudos da História m aterializada
tória dos historiadores, a natureza "natural" e à no espaço. A cidade em especial a metrópole-
econ om ia neoclássica, todas as três tendo subs­ é, sem dúvida, esse "reescrever" do tempo no
tituído o espaço real, o das sociedades em seu espaço, tanto na sua forma, com o no seu con­
devir, por qualquer coisa de estático ou sim ples­ teúdo. (p. 21)
mente de não existente, de ideológico." ( 1978, Bachelard faz referência à interpretação
p. 91) da relação am algam ada espaço-tempo e "m o s­
A p ó s as te o r ia s da r e la t iv id a d e de tra como tudo está contra esta idéia a im agina­
Einstein, o conceito de espaço da física muda ção, os sentidos, as representações: só vive ­
para o campo, no qual está embutida a idéia de mos o tempo esquecendo o espaço, só enten­
cam po de forças. A definições do espaço na Ge­ demos o espaço suspendendo o curso do tem ­
ografia se tornam "o espaço como um sistema po, mas a fusão espaço-tempo é uma relação
de relações "ou, também , o espaço como "refle­ to tal..."(B A C H ELA R D , 1929, p. 99, citad o por
xo da socied ad e" O próprio Lefebvre define a BARBO SA, 1996 p .114)
cidade com o a projeção da sociedade sobre o Milton Santos define o espaço "com o acu­
terreno ( O Direito a Cidade). mulação desigual de tem pos" (1978, p. 209), e
Interessante considerar que nos anos 60 a maior expressão dessa acum ulação desigual é
e 70, tanto na Europa como nos Estados Unidos, a metrópole, porque esse espaço representa di­
nos estudos que se faziam, especialm ente da ci­ ferentes momentos do desenvolvim ento da so ci­
dade, se considerava o espaço como palco onde edade.
a sociedade se produz, sem nenhuma particulari­ A partir do momento em que a Geografia
dade, como uma planície sem características pró­ deixou de pensar o espaço como absoluto e pela
Geografia da m odernidade e geografia da pós-modernidade 37

re la çã o espaço-tem po, produzoiu-se um novo po. Mas, sem dúvida, no conceito de lugar há
conteúdo na interpretação da realidade. um denso conteúdo de cotidianeidade m arcado
Ao finalizar os anos 70 e, principalm ente pela cultura e pelo imaginário.
no com eço da década de 80, se fecham os gran­ Os conceitos de lugar mudaram a partir
des debates acerca do papel do espaço na inter­ de uma dim ensão puram ente física Vidal de Ia
pretação m aterialista da realidade, especialm en­ Blache definia a Geografia com o a ciência dos
te no desenvolvim ento capitalista, numa relação lugares- a uma expressão de inserção no proces­
d ialética entre a sociedade e o conteúdo, que so de totalidade. Lefebvre afirm a que "a história
teria o espaço nesta visão. So ja citando Gregory de um dia, engloba a do mundo e a da sociedade
o qual transcrevem os nos diz: "A análise da es­ "e eu concluo, acrescentando, tam bém , a do lu­
trutura espacial não é derivada e secundária à gar. (1991, p. 8)
análise da estrutura social, com o sugeriria a pro­ Os lugares que hoje a geografia estuda
blem ática estruturalista: antes, uma exige a ou­ devem ser considerados como um com ponente
tra. A estrutura espacial não é, por conseguinte, de nossa identidade de sujeitos, com o centro de
m eram ente a arena em que os conflitos de clas­ significados, como condição da própria existên­
se se expressam (SCOTT, 1976, p. 104), mas é cia, foco de vinculação em ocional para os seres
tam bém o cam po no qual e, em parte, através humanos, contexto para as nossas ações; o lu­
do qual- as relações de classe se constituem , e gar como expressão da paisagem e da cultura,
seus conceitos devem ter lugar na construção de experiências e significações diferenciadas. O
dos conceito s de determ inadas form ações soci­ lugar concentra significados, pensam entos e os
ais (...) as estruturas espaciais não podem ser sentimentos dos seus habitantes. A especificidade
teorizadas sem as estruturas sociais, e vice-ver­ dos lugares traz, no seu bojo, o estudo das paisa­
sa, e (...) as estruturas sociais não podem ser gens em função das experiências diferenciadas
praticadas sem as estruturas espaciais e vice- e dos significados, tam bém diferenciados. Por
versa"( 1978, p. 120-1). esta linha de abordagem, da cham ada Geografia
Para concluir este processo, finalmente, Humanista, é possível interpretar os lugares com
o espaço é considerado uma instância social, ocu­ novas dim ensões sim bólicas e culturais, co nce­
pando o lugar de m ercadoria no modo de produ­ bidos "...com o uma paisagem vivenciada holística
ção capitalista e sofrendo todos os defeitos e as e sentida em todas as suas dim ensões, inclusa a
qualidades de qualquer outra m ercadoria, inclu­ temporal" (BA LLEST ER O S, 1992, P.II).
sive o fetichism o do consum o exagerado, m es­ Esta vertente de interpretação humanista,
mo que ele possua características especiais. na versão existencialista afirma a existência de uma
Porém esse paradigma do espaço-merca- potencialidade de tempo, de uma empiricidade do
doria, visão econom icista, tam bém esgota sua tem po, de grande c o n te ú d o no lu g ar e que
forma de interpretação no início dos anos 90, Ballesteros citando Sam uels afirma: "...o tempo
porque a ciência, com o já m ensionam os, tem é sempre algum lugar e o lugar é sempre algum
outras visões e perspectivas. Em bora a realida­ tem po"
de econ ôm ica do espaço não mudou, ela só já Milton Santos igualmente define o lugar
não satisfaz da explicação e da interpretação. "...com o a extensão do acontecer hom ogêneo ou
E n tre as n o v a s fo rm a s de a b o rd a r o e s p a ­ do acontecer solidário e que se caracteriza por
ço d e n tro d a G e o g ra fia p ós-m oderna, d e s ta c a m o s dois gêneros de constituição: uma é a própria
o c o n c e it o de lugar, de reg ião , de te rritó rio , de configuração territorial, outra é a norma, a orga­
p a is a g e m ; em to d o s e le s estã o e m b u tid o s os c o n ­ nização, os regimes de regulação" (1994, p. 34)
c e ito s d e lo c a l e de g lo b a l. Má n e sse s an tig o s c o n ­ Porém o lugar, a interpretação e vivência
c e ito s g e o g rá fic o s u m a n o va c o n c e p ç ã o de te m ­ do mesmo se diferenciam segundo as classes so-
38 Revista G EO U SP, IT 5 p. 27-39 Amalla Inés Geraiges de Lemos

ciais, os gêneros, a condução de origem, o grau os problemas am bientais, não com o elem entos
de cultura, entre outras categorias. Assim, o lu­ da natureza, que já não existem, mas com o con­
gar não só nos rem ete a um territorio habitado, seqüências culturais, produzidas num espaço que
mas, tam bém , a uma posição dentro de um sis­ se define como sistem a de objetos e sistema de
tem a social. ações. Levam tam bém a se preocuparem com a
Estes conceitos em itidos nos remetem a história do presente, na qual a religião, o lazer, o
outros muito im portantes para a nossa realidade turismo, os gêneros, os grupos m inoritários, e o
de Terceiro Mundo. Estes sáo os de tempo e de consum o se m aterializam num lugar, numa re­
cultura. Am bos estão interligados. Qual é o signi­ gião, num território, num espaço com tempos e
ficado de tem po para nós hoje, na nossa realida­ culturas diferenciados. Formas e conteúdos pró­
de de pós-m odernidade? Em primeiro lugar dire­ prios de nosso tempo, de nossa visão de mundo.
mos que se trata de um tempo social, que inclui Para concluir, diremos que as categorias
nele todas as outras concepções de tempo co­ do método geográfico não se esgotaram, em bo­
nhecidas, além de possuir a essência do tempo ra formuladas por Milton Santos ao final da déca­
histórico que é ideológico, político e cultural. A da de 80. Hoje elas possuem novas formas de
percepção do tempo histórico é a percepção das interp retação . Analisam o-nas com uma visão
m udanças e das transform ações. O tempo social herm enêutica. Qual o significado desta palavra
inclui em seu conteúdo valores. que foi tã o u s a d a ao lo n g o d e s te a r tig o ?
Entendem os por cultura um sistema de Herm enêutica vem do gregro h e rm e n e u tik é que
ordens significativos e sistem áticos, que relacio­ significa arte de interpretar, expressão de um
nam o m aterial ao social por meio do sim bólico. pensamento e a sua explicação. Esta forma de
M arilena Chauí define cultura como "...criação análise foi muito usada na Idade Média para es­
coletiva de representações, valores, símbolos e tudar as Sagradas Escrituras, pois elas deviam
práticas que determ inam para essa coletividade não só ser traduzidas, como também interpreta­
suas formas de relação com o espaço, o tempo, das segundo os significados lingüísticos, sociais
a natureza e os outros homens, definindo o sa­ e e s p a c ia is da é p o c a . C h am a- se ta m b é m
grado e o profano, o necessário e o possível, o herm enêutica a interpretação do que está expres­
contraditório e o impossível, o justo e o injusto, so em símbolos, assim como toda expressão hu­
o verdadeiro e o falso, o belo e o feio, o legítimo mana escrita ou não, desde as obras de arte até
e o ilegítimo, o "nós" e o "eles" " Continua Chauí os relatos populares.
dizendo que "a ordem humana da cultura é a re­ Como reflexão filosófica é uma forma de
lação sim bólica com o ausente, isto é, a lingua­ análise interpretativa sobre sím bolos religiosos
gem, o trabalho, a historia e a m orte."( 1993, p4) e mitos, e, em geral, sobre qualquer forma de
E s ta s c o n c e p ç õ e s te ó ric a s leva m os expressão humana, em oposição à análise ob je­
geógrafos pós-modernos a se preocuparem com tiva e ao pensam ento lógico.

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