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NOMES

Um amigo se chama
De Onde Venho.
Outro se conhece
como Para Onde Vou.

O tempo se esgota
para um.
Para outro apenas
se alonga.

De Onde Venho sabe


o que aconteceu.
Para Onde Vou
o que não adivinhamos.

Quando um morre outro


o contempla.
AULA

Fala de vendedor ambulante


é signo em rotação. A gente
lança no ar o que tem de ser
dito e colhe — nem sempre —
o fruto de algo vendido.
Repetimos as falas aceitas
para garantir a venda, mas
o risco do improviso é o que
há. Três por dois, duas por
uma — essa sintaxe apraz.
A gente lança no ar. Se der
ritmo ganhamos a feira, se
não, fazemos fina de baile.

In. OIRO DE MINAS a nova poesia das GERAIS. Seleção de Prisca Agustoni. S. l.: Pasárgada; Ardósia, 2007.
https://www.escritas.org
/pt/livro/edimilson-de-
almeida-pereira
Ruy Duarte de Carvalho (Angola)

https://www.buala.org/pt/ruy-duarte-de-carvalho

DlOGO CÃO ÀS PORTAS DO ZAIRE

Deste lado da história

o rio morre aqui.

Do mar sabemos nos e aos capitães

a fama da conquista.

Faço-me ao Sul

porque pertenço ao Norte

e a costa s6 me serve p'ra cumprir

tarefas de abandono.

Meu fim é circular, ir mais além.

Por isso eu sei de estrelas

direções

e nada sei do fruto

que se projecta e espera.

Cumpro tarefas, sim, porque viajo.


Assim nasci

sabendo o que me aguarda após a descoberta.

Fronteiras

só conheço as do meu lar

e sei amá-lo, só,

noutras distâncias.

De Deus, empreendi que mora aqui no mar,

porque sou eu

quem lhe constrói a face.

Ao Rei e a Vos

apenas dou notícia do rumo horizontal.

Pois que sabeis da vertical sagueza?

Sei medir hoje, enfim, com muito mais rigor, a força da distância.

Sei decompô-la em tempo, espaço, velocidade e som.

Revendo-te, sereno, é de tal forma denso o teu volume

e natural o teu contorno exacto e fino

que dir-se-ia não haver sequer

um tempo em que me fiz a recordar-te.

Entre os pólos da distância retenho tão-somente a ponte,

quero dizer, a velocidade.

Das viagens não conservo uma noção que exceda um breve

sono, sonho, lapso de altura, vertical perfil.

Vou arriscar uma noção de ausência a elaborar humilde


na hora

do encontro/reencontro.

Imponho a tela crua que teci distante

(e que transporto do país do sono)

a forma testemunho da memória.

A minha percepção faz-se madura.

Retenho a sombra, apenas, do que — revisto ou novo —

adrega preservar a virgindade

e a febre do contorno a sua audácia.

Renovo a nitidez das referências.

A vaga geografia das ausências imponho uma paisagem

reassumida, renovada de ardor e nitidez amável.

Adquiro assim um depurado entendimento do que é posse.

Tenho também que o meu crescer se faz

de cinza acumulada pelos regressos —

uma brancura donde emerge opaca

a medular estrutura da paisagem.

Não nos separa espaço, nem distância ou tempo.

Entre nos dois

apenas o painel da mais recente ausência

aberto para os sinais

do encontro a conquistar.

Não mais do que a distância de um parágrafo.

E a ponte, a velocidade.
PRIMEIRA PROPOSTA PARA UMA NOÇÃO GEOGRÁFICA

solo — pastor

Sou testemunho da noção geográfica

que identifica as quatro direções

do sol as muitas mais que o homem tem.

Sou mensageiro das identidades

de que se forja a fala do silêncio.

Habito um continente e a comunhão prevista

além dos horizontes por transpor.

Renovo-me em saber, olhando o sol

acesa a cor para além destas fronteiras.

E se me ocorre o mar e me detenho

a frente dos meus gados indefesos

eu saberei da costa o quanto me prolonga

além das águas e dos meus recursos.

Olhando o mar eu sei que no temor

vivo em meu sangue, ardente e tão pesado

que há-de acorrer ao sangue de meus filhos

se deposita a mágoa antiga já

em que fermento a raiva e o vigor

para conquistar o mar e devolver

a cor o seu sentido e a dignidade.

Circulo a plataforma das viagens

para inventar as direções do mar

além de estéreis nuvens.

Um chão propício para erguer o encontro

entre o destino e o corpo.


Se as minhas mãos se tingem de vermelho, ao norte

e eu todavia me reservo ao sul

porque da terra quero a superfície plana

e a natureza vítrea do seu rosto

e a dádiva frugal de quanto a terra da

sem que lhe fira o ventre

eu digo —

a terra toda, a terra, a funda terra...

e uma noção mais vasta me sugere

a extrema dimensão do continente

e a comunhão de muitas outras vozes

vertendo o mesmo som no vão da noite.

E a forma de dois pés e o pó que os cerca

as mesmas latitudes para um só pisar

em cor de pés e pó omnipresente.

Habito o cheiro e quantas coisas simples

me fazem merecer o pó pisado.

E se eu falar de exílios mergulhado em dambas

ou penetrar florestas de umidade alheia

ou me dessedentar em águas que me expulsem

por lhes negar respeito e vê-las fáceis

ainda assim recordarei montanhas

quando a manha me recordar cacimbos

e saberei que estas imagens novas

por serem espelho de outras me pertencem

como se vê-las fosse a minha origem.


Nem tanto a voz cativa de um lugar

nem a função contida pela herança

nem a ciência exacta de um relevo.

Habito um corpo móvel de paisagens

protegidas por clareiras de fartura.

Habito o movimento e a minha pátria

é todo o continente de que não sei o fim.

Irei tão longe quanta for a sede e a urgência da mudança.

Cruzar-me-ei com as nuvens de outros corpos

movidos por idêntica voragem.

A diástole da vida me governa.

Atingirei o extremo norte

se a tanto me levar

o corpo fustigado pela carência das águas.

Habito as fontes todas do deserto

e obedeço ao vento, ao sol, as luas da verdura.

E nada me detém se a sede anima

o sangue aceso deste corpo enxuto.

Devasso a região dos Grandes Lagos

e as baixas pantanosas de Okavango.

Bordejo os areais da suave brisa:

Chaibi, Namibe, Kalaari

a estepe do Masai, montes do Karoo

que é onde a planta luta por florir

e aguarda paciente a gota de água.

Mergulho na garganta de Olduvai

e calco em meu andar


os fósseis mais remotos

argamassada em pedras a grandeza

da inusitada fúria que transforma

a mão em arma e os olhos em zagaias.

Repouso nas ruínas de Ashanti

nas construções ciosas do Benim

nas alas circulares do Zimbabwe:

adormeço vertido no regaço

do odor antigo do poder vencido

e na serena placidez do tempo.

Monomotapa, Ghana, Luba

reinos, impérios, fundadores de impérios.

Cavaleiros de Kanem-Bornu

mercadores de Kano, Zaria e Nok

profetas do Congo

muquixis da Lunda

adoradores do ferro:

Ashanti, Ibos

sentinelas dos rios:

Núbios, Kikuios

sóbrios amantes do leite:

Masai, Hereros

cultivadores de anharas

caminheiros da estepe

sombras da savana.
YORUBA

(4)

Três amigos eu tinha.

Pediu-me o primeiro

que dormisse na esteira.

Pediu-me o segundo

que dormisse no chão.

Pediu-me o terceiro

para dormir no seu peito.

Cedi a voz do terceiro

e vi-me transportado a um grande rio.

E do rio eu vi o rei

e o rei do sol.

E vi palmeiras

tão carregadas de fruto

que o peso as vergava

e as palmeiras morriam.

ClCLO DO FOGO

Há coisas que se choram muito anteriormente.

Sabe-se então que a história vai mudar.


ABERTURA

Silêncio mas por que e não apenas vento

até que a pedra se arredonde enfim

e a água se expanda

raiada no verde?

Um sono que se estenda obliquamente

entre a murada construção da idade

e as veredas ordenadas pelo passado.

Uma memória a ter-se

mas não aquela que o futuro impeça.

O sal, por toda a parte.

Então pequenos lagos se acrescentam

a partir de alguma fenda original. E são taças de mar

que dão contorno ao continente agreste.

Ana Paula Tavares (Angola)

http://m.redeangola.info/opiniao/nova-carta-de-ana-na-palavra/

https://www.youtube.com/watch?v=dhc884cpBms
RAPARIGA

Cresce comigo o boi com que me vão trocar


Amarraram-me às costas, a tábua Eylekessa

Filha de Tembo
organizo o milho

Trago nas pernas as pulseira pesadas


Dos dias que passaram...

Sou do clã do boi —

Dos meus ancestrais ficou-me a paciência


O sono profundo do deserto,

a falta de limite...

Da mistura do boi e da árvore


a efervescência
o desejo
a intranquilidade
a proximidade
do mar

Filha de Huco
Com a sua primeira esposa
Uma vaca sagrada,
concedeu-me
o favor das suas tetas úberes
A MÃE E A IRMÃ

A mãe não trouxe a irmã pela mão

viajou toda a noite sobre os seus próprios passos

toda a noite, esta noite, muitas noites

A mãe vinha sozinha sem o cesto e o peixe fumado

a garrafa de óleo de palma e o vinho fresco das espigas

[vermelhas

A mãe viajou toda a noite esta noite muitas noites

[todas as noites

com os seus pés nus subiu a montanha pelo leste

e só trazia a lua em fase pequena por companhia

e as vozes altas dos mabecos.

A mãe viajou sem as pulseiras e os óleos de proteção

no pano mal amarrado

nas mãos abertas de dor

estava escrito:

meu filho, meu filho único

não toma banho no rio

meu filho único foi sem bois

para as pastagens do céu

que são vastas

mas onde não cresce o capim.

A mãe sentou-se

fez um fogo novo com os paus antigos

preparou uma nova boneca de casamento.

Nem era trabalho dela

mas a mãe não descurou o fogo

enrolou também um fumo comprido para o cachimbo.


As tias do lado do leão choraram duas vezes

e os homens do lado do boi

afiaram as lanças.

A mãe preparou as palavras devagarinho

mas o que saiu da sua boca

não tinha sentido.

A mãe olhou as entranhas com tristeza

espremeu os seios murchos

ficou calada

no meio do dia.

(Dizes-me coisas amargas como os frutos)

O CERCADO

De que cor era o meu cinto de missangas, mãe

feito pelas tuas mãos

e fios do teu cabelo

cortado na lua cheia

guardado do cacimbo

no cesto trançado das coisas da avó

Onde está a panela do provérbio, mãe

a das três pernas

e asa partida

que me deste antes das chuvas grandes

no dia do noivado

De que cor era a minha voz, mãe

quando anunciava a manhã junto à cascata


e descia devagarinho pelos dias

Onde está o tempo prometido p'ra viver, mãe

se tudo se guarda e recolhe no tempo da espera

p'ra lá do cercado

(Dizes-me coisas amargas como os frutos)

BOI À VELA

Os bens nascidos na huíla


são altos, magros
navegáveis
de cedo lhes nascem
cornos
leite
cobertura

os cornos são volantes


indicam o sul
as patas lavram o solo
deixando espaço para
a semente
a palavra
a solidão>

A ABÓBORA MENINA

Tão gentil de distante, tão macia aos olhos


vacuda, gordinha,
de segredos bem escondidos

estende-se à distância
procurando ser terra
quem sabe possa
acontecer o milagre:
folhinhas verdes
flor amarela
ventre redondo
depois é só esperar
nela deságüem todos os rapazes.

NOVEMBER WITHOUT WATER

Olha-me p´ra estas crianças de vidro


cheias de água até às lágrimas
enchendo a cidade de estilhaços
procurando a vida
nos caixotes de lixo.

Olha-me estas crianças


transporte
animais de cargas sobre os dias
percorrendo a cidade até os bordos
carregam a morte sobre os ombros
despejam-se sobre o espaço
enchendo a cidade de estilhaços.

Chegas
eu digo sede as mãos
fico
bebendo do ar que respiras
a brevidade

assim as águas
a espera
o cansaço.

EX-VOTO

O tempo pode medir-se


No corpo

As palavras de volta tecem cadeias de sombra


Tombando sobre os ombros

A cera derrete
No altar do corpo

Depois de perdida, podem tirar-se


Os relevos
ADORNO

Toda a noite chorei na casa velha


Provei, da terra, as veias finas,
Um nome um nome a causa das coisas
Eu terra eu árvore eu sinto
todas as veias da terra
em mim e
o doce silêncio da noite.

CIRCUM-NAVEGAÇÃO

Em volta da flor fez


a abelha
a primeira viagem
circum-navegando
a esfera

Achado o perímetro
suicidou-se, LÚCIDA
no rio de pólen
descoberto.

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