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Último dia

Só mais três mapas e Pryia teria moedas suficientes para sair de


Porto Magnus. O vento em seus cabelos curtos refrescava seu
pescoço, enquanto sua larga bolsa de couro pesava em suas
costas. Os adornos de caveira foram moldados em bronze, e as
fivelas contrastavam com a seda da sua blusa branca.

Ela era um navio encarnado, esperando por ventos melhores.

Pryia sabia que poderia estar vendendo mapas falsificados para


piratas de verdade, que poderiam identificar uma fraude há milhas
de distância. Ou seja, exatamente o tipo de gente que ela desejava
encontrar naquela ilha esquecida pelas rotas, onde estava presa há
três anos. Desde aquele maldito naufrágio.

Diferente de um pirata, ela jamais conseguiu um papagaio para


levar no seu ombro, mas, como desejava ser uma capitã, conseguiu
algo melhor. Olive era muito mais sábia, guardando seus segredos
ao invés de repeti-los em troca de um biscoito. A verdade é que ela
se apaixonou pela coruja assim que a viu, e a admiração foi
recíproca. Criaturas perspicazes tendem a saber que são mais
fortes quando estão unidas.

Ela até gostaria de sentir pena dos coitados que vinham até ela e
caíam na sua fala mansa como mar, na sua voz melodiosa de sereia
e, principalmente, nos seus mapas que prometiam ouro, gemas e
glória.

Se ela realmente soubesse sua localização, por que estaria ali,


desperdiçando seu charme com a escória da pirataria?

Francamente, eles pediam para ser enganados.

“Hoje”, ela pensou, “será meu último dia na ilha”.


Hoje ela teria o suficiente para comprar um navio de farol, gasto
como tudo disponível em Porto Magnus, mas o suficiente para sair
dali e reconquistar o horizonte.

Ecos do passado

Pryia fazia a contagem regressiva para esse dia desde que avistou
as nuvens carregadas e cinzentas que convidaram, para o fundo do
mar, o navio Marie III, onde ela viajava há várias semanas. Estava
há apenas sete dias de distância da cidade de Realmar, onde
assuntos urgentes aguardavam por ela: Pryia tinha marcado um
encontro inadiável da lâmina da sua faca com o coração do canalha
que havia partido o seu. Provavelmente, três anos poderiam parecer
tarde demais para acertar essa dívida... Possivelmente Leonardo
haveria sofrido a mesma sina, pelo mesmo motivo, pelas mãos de
outra mulher, mas ela ainda queria vê-lo sofrer. Ela só precisou adiar
seus planos, pois o naufrágio a achou primeiro.

Apenas o povo que pertencia à terra e escolhia a vida no mar


compreendia o que um naufrágio tirava de um marinheiro. Você
perdia o seu barco, sua tripulação, seu destino. E, principalmente,
você perdia o nome que conquistou enquanto cruzava os mares.

Pryia orgulhava-se de ser Pryia North, nome que recebera quando


se tornou primeira imediata do capitão North, também conhecido
como Mastro do Norte, Terror das Orlas, Domador de Sereias.

Leonardo.

Leo.

Maldito.

Canalha.

Desgraçado.
Miserável!

Pryia se orgulhava por ter criado uma lista de xingamentos


consideravelmente maior do que os títulos que ele havia ganhado

enquanto construía sua reputação como pirata.

O canalha não hesitava quando encontrava terra firme e a


possibilidade de fincar seu mastro nela. Assim, ofereceu a Pryia sua
confiança e uma posição de prestígio entre a tripulação.

Não demorou para que conquistasse também sua boca. Depois sua
confiança. E, finalmente, roubou o que ela tinha de mais precioso.

E quem dera que tivesse sido o seu coração.

Mas agora, vivo ou morto, ela o encontraria.

Recuperaria o único mapa de tesouro verdadeiro que ela já havia


visto em todo a sua vida. A única herança de uma menina órfã de
mãe – o que tornava a forma como o objeto chegara às suas mãos
sua ironia favorita. A sorte é que Pryia era a única capaz de decifrar
as coordenadas codificadas ali, graças a uma antiga melodia que
aprendeu ainda criança. Um segredo que pertencia apenas a ela e
ao seu pai. Que o mar o tenha em suas brumas.

Eram muitas as lembranças que a assombrava.

Infelizmente, sua memória pregava muitos truques, e ela não


conseguia reproduzir o desenho do mapa, por mais que tentasse.

Ainda assim, como todo pirata que se preze, ela conhecia a lenda
do Tesouro do Povo Submerso.

Ela sabia que lá poderia encontrar muito mais do que ouro e joias,
como também o elixir que permitia um simples humano ser capaz de
se comunicar com as criaturas marítimas. Diziam também que
poderia torná-lo capaz de controlar os ventos e as marés.
Talvez pudesse até mesmo conferir o status de Deus para um mero
mortal. Um presente, pela audácia de chegar até ali. Isso mostraria
que tal mortal era digno de tamanho poder.

Pryia era digna de tamanho poder.

Não Leonardo.

Não aquele bastardo traidor.

Ainda assim, tão perto de finalmente deixar o maldito Porto, ela


sentia certo vazio.

Agora ela avistava no horizonte uma embarcação modesta de


suprimentos chegando, certamente com marujos dispostos a pagar
qualquer moeda por alguns minutos ouvindo Pryia com atenção

total, enquanto ela falava com eles distribuindo sorrisos, olhares e


elogios que não mereciam.

Ela não imaginou que poderia sentir saudade de sua vida ali.

De suas tardes desenhando mapas até os dedos calejarem, de suas


noites na cozinha da estalagem na qual trocava suas habilidades de
cozinheira por bem-estar e segurança, do vazio existencial brutal
que clamava o seu sono toda noite enquanto ouvia o mar bater nas
rochas.

"De alguma forma", pensou ela, "a gente se acostuma com a vida
que tem. Não importa quão miserável ela seja".

Toda vez que uma lágrima escorria pelo seu rosto, ela sentia como
se o mar a chamasse de volta para casa. Pryia se recompôs,
estampou no rosto o seu melhor sorriso (daqueles que faziam o sol
parecer um lugar frio) e esperou os viajantes perdidos.

O único motivo plausível para alguém estar em Porto Magnus era


para se abastecer com recursos ou porque não sabiam onde
estavam. Era uma ilha localizada em um lugar tão infeliz do mapa
que não havia motivo para ser diferente.

Pryia nunca via o mesmo marujo duas vezes, o que tornava seu
discurso ensaiado infinitamente mais fácil. Ele funcionava
absolutamente. Toda. Vez.

Mas, logo hoje, ela avistou o pirata mais esquisito que já havia
pousado os olhos em toda sua vida. Ele tinha o cabelo comprido
preso por um laço, sua barba estava feita, usava calças, colete e
botas marrom, acompanhados de uma camisa branca. E o mais
chocante de tudo é que ele estava surpreendentemente limpo. Não
só limpo, mas também cheiroso, e com os dentes brancos perfeitos
e retos. Parecia um idiota.

Como estava acostumada a ver homens castigados pelo sol, pela


viagem e pela escassez de recursos, Pryia piscou duas vezes para
tentar manter a naturalidade em seu sorriso conforme saudava o
forasteiro.

– Ahoy! Que bons ventos o trazem, nobre viajante? Seja muito bem-
vindo a Porto Magnus! – Ela passou o braço pela cintura dele,
girando-o para que ficasse de frente para a bela paisagem tropical e

pudesse olhar apenas para a terra firme e para o seu belo rosto.

Tudo o que um marinheiro gostaria de ver após sabe-Deus-quanto-


tempo-no-mar. – Eu venho lhe oferecer uma oportunidade
imperdível como boas-vindas ao nosso recanto paradisíaco. Como
imagino que a sua estadia aqui será breve, gostaria de lhe confiar
um dos maiores segredos de Porto Magnus. O mapa que leva até o
Tesouro do Povo Submerso. – Sua voz era empolgada e radiante,
talvez um pouco dramática demais ao citar o misterioso item mítico.

O inusitado pirata arregalou os olhos diante da menção do mapa.


Sabendo que ele havia mordido a isca, ela prosseguiu:
– Essa preciosidade pode ser sua por apenas uma moeda de ouro.
Posso separá-lo para você?

– E o que exatamente me impede de levar o mapa e você de


souvenir, nobre cartógrafa? – Ele levantou a sobrancelha, sua voz
magia e grave a pegando de surpresa.

– O primeiro impedimento claramente é a sua ousadia – ela


desdenhou. – Se você procura companhia, siga para noroeste por
três ruas. Não vai precisar andar muito para ser bem recebido. – Ela
apontou para trás de seus ombros, jogando sua franja para o lado.

Pryia conhecia o tipo. Certamente pensava que qualquer mulher na


beira do mar poderia atuar no ofício do prazer. Ela normalmente
recebia viajantes assim colocando-os na direção do prostíbulo mais
próximo, e os insistentes levavam a palma da sua mão estampada
no seu rosto, quando não a sua faca. Não era frequente, mas em
duas ocasiões Pryia teve a necessidade de desenhar uma cicatriz
no rosto de alguém que não respeitava as suas próprias vontades. E
faria isso quantas vezes fossem necessárias.

– Peço desculpas, milady. Minha intenção foi cortejá-la e não


ofendê-la. – Jim fez uma reverência debochada e irritantemente
elegante. Pryia revirou os olhos e prendeu os lábios para não rir. –

Acredito que lidar com piratas realmente deixa moças bonitas como
você na defensiva. Mas eu vim até aqui para ver se os rumores são
verdade.

– Eu não teria como saber, não chegam rumores no fim do mundo.

– Verdade, mas eles podem partir daqui – ele declarou.

– A graça dos rumores é que eles sempre são tão verdade quanto
mentira. Qual te trouxe a Porto Magnus?

– Existem coisas, mocinha, que começam a acontecer quando se


espalha o boato de que existe uma bela jovem no fim do mundo
prometendo um mapa que leva a riquezas e poderes inimagináveis.

– Jim ajeitou as sobrancelhas com o polegar enquanto avaliava a


paisagem tropical decadente, fitando a pirata dos pés a cabeça. Sua
roupa era de segunda mão, mas certamente já era velha antes
disso. A camisa branca tinha rendas delicadas, um contraste com
sua calça marrom. Uma bolsa de couro batido preta possuía vários
pergaminhos amarelados. Trajes rudes perto da beleza delicada da
falsificadora de mapas. – Esse seu “negócio” tem criado
expectativas em marujos desafortunados.

– E também existem coisas que acontecem no fim do mundo,


quando uma jovem se sente ameaçada por cretinos desgraçados
que só querem tirar vantagem dela.

– Quem foi que te feriu?

– A melhor pergunta seria: "Quem não?".

– Está muito enganada se pensa que minha proposta pode ir contra


a sua vontade.

Ela mordeu os lábios rubros de sol em súbita curiosidade.

– Estou ouvindo.

– Você quer sair deste fim de mundo, não quer?

– Isso é uma questão de tempo.

– E se eu puder encurtar o seu tempo?

– Imagino que isso teria um preço.

– O seu mapa.

– Ele custa uma moeda de ouro, já disse.

– E você.
Ele piscou um dos olhos, e ela jurou que, se ficasse balançada por
isso, correria para o navio mais próximo e andaria na prancha para
se atirar aos tubarões. Pryia ajustou a pesada bolsa no seu ombro,
acomodando Olive com gentileza, e começou a se distanciar do
pirata singular que havia aparecido nesse dia.

– Eu não estou a venda – ela declarou com firmeza.

– Nem se eu te oferecer a vingança que você tanto procura? –

Jim gritou, mantendo as mãos nos quadris. Pryia movida novamente


por uma súbita curiosidade, olhou para ele.

– Como diabos você sabe quem eu sou?

– Não sei quem você é, mas sei o que você faz. – Jim apontou para
os mapas. – E sei que você já trabalhou para alguém que eu
conheço. Alguém que desgraçou a minha vida, e provavelmente a
sua. Caso contrário, uma moça bonita e talentosa como você não
estaria sorrindo para marujos miseráveis. Você deve ter um objetivo
maior para sua vida, não tem?

A verdade de Jim fez seus joelhos vacilarem, e Pryia se aproximou


do homem misterioso. Seus olhos de avelã pareciam dourados
contra o sol. A determinação neles, incendiava.

– E o que você sabe sobre os meus objetivos? – ela perguntou.

Maldita curiosidade.

– Eu sei que temos em comum.– Jim levantou a sobrancelha.

Ela tentou e falhou ao conter um riso de escárnio.

– E qual objetivo em comum eu poderia ter com alguém que acabei


de conhecer?

Ele se aproximou do seu ouvido, e o aroma de hortelã, limão e


maresia a envolveu. A voz dele ressoou como o trovão que
antecede uma tempestade.

– Quero o capitão Leonard North morto.

Pryia ficou entorpecida. Há anos ela não ouvia esse nome sendo
pronunciado em algum lugar fora dos seus pensamentos.

Quem era aquele pirata? E como ele a encontrou? Pryia conhecia o


poder dos boatos, mas o que Leo tinha feito a esse homem ao ponto
de ele identificar onde Pryia estava e vir buscá-la só para ter uma
aliada ao seu lado?

De volta ao horizonte

Pryia relutou, desejando que sua sabedoria e bom senso não


dessem lugar a sua curiosidade. Conseguiu se enganar por poucos
segundos. Ela concordou, mas antes que pudesse fazer alguma
pergunta ao pirata, ele se virou e partiu, alegando que estaria de
volta quando o sol estivesse no meio do céu.

Pryia calculou suas chances. Ela não tinha interesse em partilhar o


seu desejo de vingança com um desconhecido. Não sabia quais
eram os seus motivos e, principalmente, não deixaria alguém roubar
sua glória: ver a vida de Leonardo se apagando dos seus malditos e
lindos olhos cor de avelã.

Contudo, ela adorava a possibilidade de pegar uma carona e manter


consigo as moedas que juntara todos esses anos. Pela primeira vez
em muito tempo, ela sentiu uma ponta de esperança diferente no
seu peito.

Ela não precisava mais pensar em sair dali. Ela podia começar a
cogitar como seria sua vida de verdade.

Chegando à estalagem, Pryia abraçou Velho John, que sempre fora


gentil com ela, mesmo que fosse um casca-grossa por fora. Ela
juntou em uma bolsa os seus pertences: um bloco de folhas de
papel, um kit de desenho, algumas poucas roupas que ainda
estavam em boa condição e as facas da cozinha. Pryia não se
incomodou em roubar do velho bondoso. Ele já enxergava muito
mal, e ela temia pela integridade dos seus dedos. Seria melhor para
ele ficar longe de lâminas afiadas. E nem por todo o tesouro
naufragado ela entraria em uma embarcação desconhecida
desarmada.

O sol já havia passado do topo do céu e agora caminhava em


direção ao horizonte. Logo escureceria, mas ela não via nenhum
pirata, muito menos algum tipo de embarcação por perto. Olive
repousava no seu ombro, certamente questionando as decisões de
sua amiga humana.

Os velhos marujos, já com seus navios devidamente abastecidos,


partiam de volta ao horizonte.

Levaria semanas para outro aparecer. E ela não havia vendido


nenhum mapa hoje. Ficaria presa naquela ilha por sabe-lá-Deus
quanto tempo mais.

Ela começou a se xingar por ser tão idiota.

A xingar o pirata por não cumprir sua palavra.

A xingar ainda mais alto por ter sido estúpida o suficiente para
acreditar na palavra de um pirata.

Ela o amaldiçoou.

Amaldiçoou o próprio naufrágio que tirou o seu nome. E pôde jurar


que o mar se revoltou em resposta.

Amaldiçoou Leonardo, simplesmente porque ela não perdia uma


oportunidade para fazer isso.
E amaldiçoou sua inocência, que, mesmo depois de tudo que
passou e que foi forçada a fazer para sobreviver, insistia em se
manifestar nos momentos mais inoportunos.

– Eu juro que algum dia ainda hei de me vingar de você! Está agora
na minha lista negra, junto do maldito Leonardo! – ela bradou,
chutando a madeira do cais tão irada que não percebeu os passos
silenciosos de Jim atrás dela. Ele tinha os lábios repuxados para
cima, e falou com uma calma irritantemente despreocupada:

– E como você vai escrever o nome de alguém nessa lista, se você


não sabe o que anotar? – Ela não queria ter dado um pulo de susto,
mas já era tarde para isso. Então aproveitando o movimento brusco,
Pryia agarrou a camisa perfeitamente branca e limpa do pirata e deu
à sua raiva um destino certo.

– Escuta aqui, seu patife, quem você pensa que é? – ela disse
entredentes.

– Oh, meu amor, cuidado. Vai acabar descompensando o figurino. –


Ele retirou seus dedos um a um com tanta delicadeza, que só a
deixou mais irritada.

– Eu não sou seu amor. E você está atrasado.

– Isso é inteiramente culpa sua – ele declarou.

– Como eu poderia ser culpada do seu atraso?

– É culpada por não ser o meu amor. No que depender de mim… –


Ele piscou. Maldito. Pryia estava apostando suas fichas em um
galanteador.

Ela agradeceu por já estar escurecendo, pois sentiu seu rosto


aquecer violentamente. A pirata voltou o olhar para o horizonte, pois
começou a reparar que ele era irritantemente atraente, e isso não a
ajudava a continuar brava.
– Sinceramente, você é impossível! – ela gritou, de costas.

– Poderíamos ser impossíveis juntos.

Ignorando totalmente o que ele disse, além da forma como seu


coração perdeu um compasso e todas as outras coisas que ela não
gostaria de estar sentindo nesse exato momento, ela perguntou:

– E o seu navio? Onde está? Não vejo nada além deste horizonte
tedioso cercado por árvores e um idiota.

Ela apontou o dedo em sua direção, apenas no caso de a ofensa


não ter ficado clara.

O pirata pegou sua mão com ternura sem pedir licença e a guiou até
uma margem de pedras do outro lado do farol. Ali estava uma
embarcação que, na melhor das hipóteses, poderia ser chamada de
modesta.

– Realmar fica a uma semana daqui. – ele disse, de repente.

– Sei disso. Estou presa a uma semana de distância do meu destino


já tem três anos. É sério que é nessa coisinha que você pretende
que a gente viaje?

Aquilo jamais sobreviveria a qualquer tipo de tempestade, mas


possivelmente os levaria até Realmar em poucos dias.

É claro, imaginando que Leonardo ainda estaria lá.

Faria sentido, já que ele tinha propriedades da sua família na


cidade. Pryia nunca entendeu como ele teve coragem de abrir mão
de seu título de lorde pela pirataria. Ele claramente era um idiota

desde o princípio, e ela, mais idiota ainda por não ter reparado
nisso.

Ainda assim, ele tinha as propriedades e alguma herança em ouro


bruto que sua mãe deixara antes que seu pai o deserdasse.
Pryia cometeu o erro de pensar que essas confissões eram
sinônimo de cumplicidade.

– Você pretendia chegar até lá com aquele barco velho do farol, não
é? – A voz sedutora do pirata a provocou, a roubando dos seus
pensamentos.

Pryia se surpreendeu, mas tentou não deixar transparecer.

Simplesmente murmurou algo em resposta para que ele


continuasse falando.

– Você acha que chegaria muito longe da orla com ele? E ainda
sozinha? Sinceramente, eu vou te desculpar só dessa vez por você
não estar ajoelhado aos meus pés me agradecendo por te salvar
deste fim do mundo. – Jim ajeitou alguns fios soltos de seus
cabelos, com um sorriso de superioridade.

– Se não fosse vantajoso para você, eu duvido que teria se


importado comigo do absoluto nada. Não tente me convencer de
sua bondade – Ela declarou, olhando de soslaio.

Jim seguiu para o barco com o andar casual e elegante, sinalizando


para ela o acompanhar.

– É sempre vantagem ter uma linda mulher ao meu lado.

Especialmente uma que tem uma boca tão inteligente quanto a sua.

Me diga, o que mais ela sabe fazer? – Sua voz grave reverberou
contra as ondas. O mar estava calmo, como se ouvisse a tensão
entre eles.

– Ela sabe direcionar abusados como você diretamente para o fim


do mundo. – Pryia bufou.

– Fico imaginando o que deve ser necessário para conquistar um


beijo seu. Eu sei que Leonardo conseguiu, e sinceramente não sei
por que ele mereceu. – Algo nisso soou como uma confissão.
A resposta era simples: Leonardo era um desgraçado, mentiroso,
idiota e miserável. Ainda que não pudesse esquecer as memórias
agridoces dos seus dedos passando pelos seus cabelos ou dos
beijos roubados que ela alegremente daria de bom grado.

– Ele conheceu uma versão mais ingênua de mim – sussurrou.

A sinceridade foi quase demais para ela suportar, mas pela primeira
vez não parecia que o pirata estava zombando dela. – A propósito,
como eu devo te chamar?

Uma chance de construir uma aliança, um pedido para começar do


zero.

– Prometo que se me chamar de “meu amor", eu virei


imediatamente. Mas, por enquanto, pode me chamar de Jim.

– “Jim” me parece apropriado o bastante. Vamos ver se você


merece algum outro título.

Ele levou uma mão apoiada ao coração dramaticamente, como se


pudesse desmaiar. Palhaço.

Eles caminharam para as cordas da embarcação, preparando sua


partida.

– A propósito – ela disse –, não me contou como conheceu


Leonardo, o porquê o odeia, como conseguiu me encontrar. Temos
tempo, adoraria ouvir suas histórias, Jim.

– Muitas dessas histórias não são minhas para contar. Eu e


Leonardo somos rivais desde que viemos ao mundo. Mas
principalmente desde que ele entrou para a vida da pirataria e
deixou nossa família aos frangalhos.

Foi então que Pryia percebeu.

O mesmo tom sonhador de avelã que a encarava de volta.


O mesmo desenho da boca que uma vez a fez se perder por
completo.

O mesmo sorriso perfeito.

– Vocês são irmãos. – a pergunta, suspensa na sua voz doce.

– Éramos. Agora eu sou o seu desejo de morte.

Pryia sabia que sentira falta do mar aberto, mas agora, vendo o
crepúsculo colorir o oceano e nada além de mar a sua volta, ela não
sabia como permanecera sã por tanto tempo.

Ela rabiscava em seu caderno o que seus olhos podiam ver: o rosto
anguloso e perfeito de Jim junto às velas, as constelações alinhadas
com a lua crescente, números e símbolos que tinham significado só
para ela.

Sentia que estava em casa, agora que estava de volta às águas


desconhecidas.

Ela amava tudo que ainda precisava desvendar.

O frio da noite valsou com o balanço das ondas. Uma melodia de


liberdade que chamava pelo seu coração.

Pryia não percebeu que Jim estava atrás dela, até que seu rosto
ficasse perto o bastante para roubar-lhe um beijo na bochecha ao
mínimo movimento.

– Você deveria estar ao meu lado nesse desenho – ele murmurou.

– E você não deveria bisbilhotar uma artista no seu momento de paz


e criação.

– Artista? Achei que fosse uma pirata. – Sua voz brincalhona a


desafiava.
– Posso ser as duas coisas – Pryia declarou, mantendo seus olhos
firmes nos dele.

– Para mim, você poderia ser várias. Mas não vou perturbá–la.

Achei que pudesse estar com frio.

Sem mais uma palavra, Jim lhe entregou um copo de vidro, que
nada tinha de refinado, com uma bebida marrom-escura, e voltou
para o timão. O aroma cortou suas narinas, mas foi bem-vindo. Há
tempos Pryia não provava do rum com laranja em pleno alto-mar.

A lua viu a forma que Jim observava do alto do convés a bela jovem
mergulhada em desenhos, segredos e vingança. Pryia cruzou com
seu olhar, alheia dos pensamentos do seu novo aliado, e sorriu,
estendendo o copo em um brinde distante. Ele retribuiu o gesto e o
sorriso.

De repente, ela se perguntou se seria apenas o rum que aquecia


seu rosto, suas pernas e seu peito, como se caminhasse sob o sol.

Mesmo sendo destemida, ela se balançou sobre a incerteza desse


novo sentimento, que sorrateiramente anunciava sua

chegada. Tal como a calmaria que antecede a tempestade.

"Bom...", ela pensou, fitando o líquido escuro e brilhante. "Mar calmo


nunca fez um bom marinheiro."

Canção de ninar

Há um dia e uma noite Pryia e Jim compartilhavam pequenas


refeições, longos olhares e conversa pontuais enquanto se
esquivavam de flertes.

Pelo menos ela se esquivava.


Só havia os dois em mar aberto. Nada além do ruído das ondas se
chocando contra a madeira da pequena embarcação. Nada além do
som do vento ajustando as velas. Nada além da doce melodia que
Pryia murmurava quando achava que Jim estava distante. Ou ela
não havia percebido que ele sempre estava por perto, observando
cada movimento que acontecia no pequeno navio, ou ela não se
importava.

A canção era doce e repetitiva, uma cadência de notas que ela


entoava como se conversasse consigo mesma. Com alguma
memória querida.

Em dado momento, Jim se pegou cantarolando a mesma música,


provando da melodia em sua voz grave e falhando em representar
seu encanto.

A noite já estava prestes a chegar. Pryia estava apoiada na


balaustrada do convés, observando o sol se tornar uma meia lua na
linha do horizonte, enquanto a própria lua crescente a encarava do
alto do céu.

Jim percebeu que ela cantava sem ao menos se dar conta de que
tudo parava para ouvi-la. Nesse momento, ele já havia
compreendido em qual momento ela dobraria o verso e, pelo sorriso
que repuxava o canto de seus lindos lábios, que ela se alegrava de
verdade no refrão. Foi justamente nesse momento que ele a
surpreendeu completando a melodia, enquanto apoiava seus braços

na madeira, tal qual um passo de dança da corte do reino de


Traberan. Ele a envolveu por trás perto o bastante para não
encostar na sua pele, mas transferir seu próprio calor. Se ela
conhecesse os passos, teria segurado em sua mão, para que o
cavalheiro guiasse a dama em um giro elegante.

Pryia se assustou, porém ao contrário de como agiu nas últimas


vezes, não o empurrou para longe. Tampouco seguiu a coreografia
que não conhecia, mas virou em sua direção e o encarou.
– Eu odeio admitir, mas ficou muito bom na sua voz.

– Por mais que eu precise admitir quão maravilhosa fica na sua,


você não sabe alguma outra canção? Ou será que Porto Magnus
também é desprovido de músicos?

– Se você não reparou, Porto Magnus é desprovido de tudo.

– Mesmo assim. Antes disso, você não aprendeu outra música?

– Ele soltou um riso sarcástico.

Ela já havia entendido que a ironia era seu jeito de pedir que
contasse uma história.

– Nenhuma que valesse a pena cantar sozinha. Uma coisa é bradar


entre a tripulação com rum e cerveja sendo derramados pelo
convés, celebrando nossa pilhagem de sucesso ou territórios
conquistados. Há um propósito nessas canções, uma alegria nas
histórias sem noção que continuamos cantando até que o álcool
finalmente cale nossa boca e nos coloque para dormir.

– Mas quando você não tem uma tripulação… – A frase morreu em


seus lábios.

– Essas canções são apenas um lembrete do quanto estou sozinha.


– A confissão era um peso em seus lábios. Jim sentiu seu coração
amolecer dentro do peito ao ver a desolação que passou pelos
olhos da jovem.

– Estava.

– Você entendeu. – A pirata deu de ombros, colocando uma mecha


de cabelo para trás da orelha.

– E o que essa música que você não para de cantar, e que por sua
culpa eu não paro de cantar também (muito obrigado) tem de
especial?
Ela suspirou, ponderando o quanto deveria compartilhar.

Enquanto isso, Jim fitava o seu rosto perfeito contra o pôr do sol, se
perguntando se seria possível existir alguém com nariz mais
arrebitado do que o dela. Algo irracional dentro dele o fazia querer
pegar naquele nariz. Jim nunca teve intimidade suficiente com
alguém para simplesmente brincar assim. Pryia passou por debaixo
de seus braços para escapar, agitada por suas memórias.

– Meu pai costumava cantar essa canção para mim antes de dormir.
Ele dizia que, toda vez que ouvia minha mãe cantando, se
apaixonava novamente.

– Não culpo seu pai por isso – Jim a cutucou com o cotovelo,
tentando brincar. Tentando fazê-la sorrir.

Pryia fez o melhor para ignorá-lo e prosseguiu.

– Eles se conheceram em alto-mar. Ela era sobrevivente de um


naufrágio...

– Isso é tipo maldição de família ou algo assim?

Ela o encarou da forma mais atravessada que pôde, mas não


deixou de abrir um sorriso. Rir da própria desgraça parecia um jeito
tão bom quanto qualquer outro para ver as coisas.

– ...E ele era um capitão. Um dos melhores que já existiu, na


verdade. Um pirata honrado, se é que isso existe. Se alguma coisa
tivesse dado certo na minha vida, eu teria herdado uma frota de
velas azuis. Invisíveis a olho nu durante todo o horizonte
ensolarado. Nosso próprio toque de mágica. Eu conhecia cada
tábua daquele navio de tanto correr por ele descalça. Meu pai fez o
piso com uma madeira “macia”, como ele chamava, para que não
entrasse farpas nos meus pés.

Jim sabia que estava em águas perigosas ao ver o mar reluzir nos
olhos da jovem.
– E o que aconteceu com ele?

Pryia decidiu contar. Não porque já fazia muito tempo e não doesse
tanto assim. Se era possível, a cada dia doía um pouco mais,
porque cada dia que se passava era um dia a menos na vida sem
ele. Ela contou porque não fazia sentido esconder. Porque essa dor
que ela carregava talvez fosse o seu sentimento mais puro e
sincero.

O da perda sem uma despedida. O das brigas que agora nunca


seriam remediadas. Os momentos em que ele explicava sobre o
funcionamento do universo quando ela era tão nova e de alguma
forma fazia tudo parecer tão simples. Fazia Pryia pensar que ela já
tinha entendido o mundo, porque o seu pai havia explicado para ela,
então ela estaria preparada para qualquer coisa.

O tipo de sabedoria que só as crianças possuem: infinita.

Então ela decidiu contar aquilo que o seu coração sentia vontade,
simplesmente porque alguém se interessou em saber.

Todo mundo tem uma perda. Mas são poucas as pessoas que estão
dispostas a ouvir o que o outro perdeu. E ela pensou a saudade que
tinha poderia ser mais profunda do que o fundo do mar.

Ela teve certeza da resposta. Se agora tudo que ela tinha de sua
família era a lembrança de histórias e canções, era exatamente isso
que ela dividiria com o mundo.

Ah, claro. Ela também tinha o seu mapa. Só precisava recuperá-lo.

– O que aconteceu com ele? A história não é óbvia? Um capitão


pirata com honra. O que você acha que aconteceu?

Jim engoliu em seco.

– Amotinado?

Ela fez que sim.


– Meu pai tinha uma frota invisível. As velas se mesclavam com o
horizonte, então podíamos navegar livremente pelo mundo. Ele
tinha boas relações com todo mundo, principalmente porque
presenteava líderes importantes com tesouros singulares. – ela
hesitou antes de continuar, as memórias dos diferentes portos,
idiomas e comidas exóticas, o cais aconchegante por onde ela
corria descalça como um pedaço dela perdido no fundo do mar. –

Alguns membros da tripulação não concordavam, alegando que


tudo deveria ficar para eles. O navio principal onde eu morava,
Elizabeth, está no fundo do mar. Eu sobrevivi pois meu pai havia me
deixado em um porto, responsável por uma entrega de sedas...

Como você disse, os rumores correm. Eu estava sozinha, mas tinha


algum dinheiro. E bom, agora estou aqui.

Jim ficou sem ação. Passou a mão pelo rosto e pela boca, buscando
as palavras certas, mas não encontrou nenhuma. E como ele não
tinha o hábito de pedir permissão para fazer alguma coisa,
simplesmente abraçou Pryia e suspirou um beijo em sua
sobrancelha.

Não durou mais que alguns segundos, mas era tudo que ela
precisava. O amargor das suas palavras parecia menos violento.

– Acho que estamos fazendo um bom progresso – disse Jim,


segurando o rosto dela em suas mãos. Ela sentiu seu olhar
passando pelos pontos de seu rosto e perguntou:

– Os ventos estão melhores? E não vi tanta diferença desde ontem


– ela perguntou, olhando em volta.

– Os ventos estão a mesma merda. – Ele riu. – Mas pelo menos


você não me xingou hoje.

Pryia se lembrou de que não gostava de se sentir acolhida e


cuidada. Confiar não valia a pena. Soltou-se do abraço como um
ladrão que roubara um saco de ouro, mas deixou uma sensação
leve e fria onde seu tesouro estava.

– Não comemore, o dia ainda não acabou.

Ela não ficou para ouvir a sua risada grave ecoar.

Não tinha valido a pena para o seu pai confiar em sua tripulação.
Não tinha valido a pena confiar no canalha de Leonardo.

E não tinha valido a pena para seu pai acreditar em finais felizes,
pois sua mãe partira pouco depois de ela nascer.

Ela não conheceu seu rosto, mas seu pai dizia que Pryia era a
miragem dela. E de alguma forma, Pryia se lembrava da sua voz
como um sonho distante. Um sonho que ela sempre voltava a
sonhar quando cruzava os oceanos.

Talvez fosse por isso que ela gostasse tanto de navegar: por essa
sensação permanente de voltar para casa.

Quando você vive no mar, você não precisa de um destino.

Você mal precisa de uma bússola.

Os melhores piratas conseguiriam navegar usando apenas as


estrelas como guia e ainda o fariam com olhos fechados, apenas
sentindo o impacto da correnteza no casco do navio.

Pryia sabia disso, pois seu pai era assim. Mas nem mesmo os
melhores piratas reinam nos mares para sempre.

Naquela noite, as estrelas sussurravam muitas coisas entre elas.


Algumas contavam histórias de heróis, outras apontavam
descaradamente a direção para uma ilha escondida coberta de
ouro. Algumas ouviam a lua destilar suas opiniões a respeito do
casal que insistia em valsar sem se tocar. E algumas repetiam a
mesma melodia que embalou o pequeno navio junto às ondas.

O mar cantava em resposta. Uma perfeita harmonia.

Jim não conseguia dormir enquanto a canção era tocada de novo e


de novo na sua cabeça. Ele estava prestes a ficar maluco, se
convenceu disso.

Até que se deu conta, de que a música não estava vindo dele.

Não era uma memória de Pryia cantando que passava pela sua
mente, mas era a própria pirata que cantarolava em algum lugar do
navio. E por mais fascinante que fosse sua voz, Jim não suportava
ter o seu sono atrapalhado por ninguém. Mesmo que fosse um

“ninguém” extremamente bonito.

Ela estava certa, alguém acabaria xingando o outro ainda hoje.

Irritado, ele saiu de sua pequena e improvisada cabine descalço. Ele


odiava ficar descalço, então estava duas vezes mais irritado com
ela. Enquanto se encaminhava para o convés, não parava de
resmungar.

– Uma coisa é você vir com esse papinho de que está com saudade
de casa. – ele afinou a voz, como se quisesse imitá-la –

"Ah, coitada de mim! Sofri um naufrágio e perdi minha família. Eu


ando por aí com o nariz perfeitinho e com cabelo batendo ao vento,
e não sofro nenhuma consequência de tratar mal os outros, porque
eu sou linda e minha voz encantadora passeia pelo navio inteiro
blá–blá–blá.” Mas não a essa hora!

Jim chegou até a beira do convés com toda a intenção de gritar com
ela, para que parasse de cantar um pouco. Não queria ser

grosseiro, mas o som estava alto demais. Demais.


Pryia se levantou sobressaltada da rede que tinha como cama.

Ouviu passos furiosos passando pela porta da cabine e a


inconfundível voz de um Jim sonolento e irritado falando algo.

Na pressa, ela não se incomodou em colocar uma calça e saiu para


o convés apenas com sua longa camisa branca.

Ela procurou pelo som das ondas e não encontrou. Procurou pelo
vento que também não estava ali.

Ela só ouvia sua canção de ninar.

Do outro lado do barco, estava Jim. Passando as pernas sobre a


madeira do convés, como se quisesse pular na água.

Ela correu na sua direção. O que esse idiota estava fazendo agora?
Ela se aproximou dele e viu que seus olhos castanhos estavam
dourados e brilhantes.

Hipnotizado.

Ela o agarrou pela camisa, não se importando se ele iria reclamar se


ficasse amassada ou rasgada depois. Francamente, ele era o pirata
mais fresco que ela já havia ouvido falar.

Pryia sentiu seus músculos reclamarem ao arrastá-lo pelo convés.


Pelos deuses, ele era pesado. Ela xingou todo o tempo, tentando
mantê-lo no lugar, mas ele era forte. Buscou uma corda áspera no
chão e tentou amarrar Jim ao mastro principal o mais depressa que
pode. Não conseguiu, pois o idiota não parava de se mexer, em
direção ao oceano. Pryia pediu desculpas logo antes de lhe dar um
belo soco no queixo, o colocando para dormir. Só assim conseguiu
prendê-lo.
A canção que por toda a vida embalava seus sonhos agora era um
pesadelo que se tornava realidade. Encarando a situação de frente,
ela se debruçou sobre a balaustrada e retribuiu, com a voz vacilante
e o coração acelerado, cada nuance da canção que ela conhecia
melhor do que a si mesma.

Parecia a coisa certa a fazer. Parecia a única coisa que podia ser
feita. Com Jim desmaiado, agora ela estava sozinha.

Alguma peça se encaixou, e sua história desesperadamente


começou a fazer sentido enquanto Pryia via sereias agilmente
escalarem o pequeno navio.

Segredos perdidos, segredos achados

Todas as vezes em que Pryia se via em uma situação perigosa, ela


repetia para si mesma que não estava com medo. Foi assim quando
ela se deu conta do sumiço do mapa que leva até o baú do Tesouro
do Povo Submerso. Foi assim quando o navio estava prestes a
naufragar. Foi assim quando ela precisou nadar pela sua vida até
que alguém a resgatasse.

E com certeza estava sendo assim agora que três adoráveis sereias
estavam sentadas na popa à sua frente, seus rabos de peixe
balançando alegremente enquanto imitavam o movimento que
deveriam fazer na água.

Tons entre o azul, dourado e rubro salpicavam o brilho translúcido


de suas escamas contra a luz da meia lua.

Ela continuava entoando a canção de ninar e por dentro afirmava


que não tinha medo. E como sempre, era uma mentira.

Pryia aprendeu que, na vida, frequentemente as mentiras eram


muito melhores de serem ouvidas do que as verdades.
A canção já estava no final quando Pryia aproveitou para analisar as
criaturas. A primeira tinha um cabelo longo e azul com a meia-noite.
Seus olhos eram como esmeraldas afiadas. Ela parecia a mais doce
e inocente de todas. Pryia fez uma nota mental de ter cuidado
especialmente com ela.

A do meio possuía cabelos que certamente seriam dourados sob o


sol, mas que agora a noite pareciam castanhos, assim como seus
olhos. Seu sorriso era lascivo e mortal.

A terceira era absolutamente alaranjada da cauda até o último fio de


cabelo. Ela tinha caninos afiados em um sorriso que poderia

fazer homens desmaiarem ao mínimo relance, enquanto entoava a


mais bela das vozes.

Por pura e inútil vaidade, assim que a última nota se estendeu sobre
as ondas, Pryia reparou em seu estado. Seu cabelo estava
amassado pelo travesseiro, sua blusa branca já estava com o tecido
puído e desgastado, e suas pernas estavam nuas. Ao menos o
aroma cítrico de laranja que emanava de sua pele era agradável.

Melhor do que o fedor de peixe fora d'água.

As sereias agora a encaravam com o olhar brincalhão.

– Irmãs, vocês não acham que essa coisinha bípede desafinou um


pouco? – A jovem pirata fitou os olhos verdes como o mar de
Cascais da sereia.

– Você diz um pouco, porque sempre foi a mais meiga de nós. –

Os cabelos dourados pingavam na cauda, tilintando, e ela deu um


sorriso malicioso como se Pryia não estivesse bem ali.

Talvez ela não estivesse. Talvez isso fosse um sonho. Faria muito
mais sentido.
– Ela até que é bonita… Se você tem um gosto para coisas sem
graça.

Pryia sentiu seu coração encolher em seu peito. Mesmo sob a luz
das estrelas, ela podia notar a cauda luminescente flertar com tons
de vermelho, assim como seus cabelos, que certamente formariam
cachos se a sereia passasse tempo o bastante no sol. Ao
amanhecer, sua visão seria impossivelmente bela.

– Eriela, você é terrível! – A sereia de cabelos azuis bateu sua


barbatana na cauda laranja da irmã, vacilando seu equilíbrio.

– Irmãzinhas, chega! – E com um comando da voz da sereia


dourada, até as ondas se calaram. As sereias trocaram seu sorriso
brincalhão por uma expressão séria. Os olhares analíticos agora
perfuravam o de Pryia, que seguia sem palavras. Sem ação. Ela não
entendia o que estava acontecendo e tinha certeza de uma só coisa:
Ela. Não. Desafinou. A. Porra. Da. Música.

Jim agora começava a murmurar coisas sem sentido. Droga, ele


estava acordando. O nocaute de Pryia era dos bons, mas não forte
o bastante para sobrepujar suas vozes mágicas. Ela precisava se
livrar daquelas sereias o quanto antes.

– O que vocês querem aqui? – A pirata corajosamente perguntou.

– Nós? – elas perguntaram juntas em perfeita harmonia. –

Apenas queremos saber por que você nos chamou, queridinha.

– Mas eu não chamei ninguém. – A frase morreu aos poucos nos


lábios de Pryia.

– Isla, você acha que ela é sonsa ou burra? – A sereia agora torcia
uma madeixa áurea, enquanto olhava nos olhos de esmeralda da
irmã.

– Eu acho que ela é só mais uma mentirosa, Pérola.


– Mentirosa e ladra – completou Eriela com um largo sorriso.

Pryia já havia ouvido o bastante. E agora Jim começava a murmurar


declarações indefiníveis. Ela torceu para o nó de pescador segurá-
lo.

Talvez ela pudesse entrar no joguinho das três irmãs à sua frente.

– E posso saber o que roubei de vocês?

As sereias reviraram os olhos, se entreolhando como se já tivessem


feito esse ato inúmeras vezes.

– Talvez ela seja só burra – sussurrou Isla para as outras.

– Eu posso te ouvir, tá bem? – Nesse momento Pryia já estava


levantando a voz. Mesmo que absolutamente tudo parecesse estar
em silêncio a sua volta.

– Ops, me desculpe. – Seus olhos verdes a encaravam com uma


doçura quase enjoativa. Quantos homens já se afogaram por causa
deles... – Imaginei que seu ouvido pudesse ser tão ruim quanto sua
afinação.

Isla pegava finas mechas azuis e começava a trançá-las. Pryia


nunca se sentiu tão irritada ao ver a indiferença em um movimento.

– É exatamente por isso que mortais não deveriam saber nossa


canção. Eles a arruínam – lamentou Eriela. Seus cachos ruivos
começavam a encolher, revelando as conchas que cobriam seus
seios.

– Diga imediatamente de quem roubou nossa música, humana.

– Olhos castanhos refletiam os seus.

– Meu nome é Pryia, Pérola. – Ela tentou usar o máximo de


desprezo ao falar seu nome. – E não lhes devo nada se estou
cantando a música que aprendi com minha mãe.
De repente, o ar mudou entre as criaturas. As sereias correram o
olhar uma pelas outras, mas não estavam mais indiferentes ou
sarcásticas. Estavam preocupadas.

– Mas vocês estão certas. – Pryia continuou –Eu tenho uma coisa
que pertence a vocês.

A pirata manteve o suspense por alguns segundos, em uma


tentativa improvisada de ganhar o controle da situação. Ela sabia
que sereias eram criaturas que significavam a morte, tal como um
tornado.

– Não nos deixe curiosas. Ou é assim que tratam convidadas no seu


mundo tórrido? – A forma que Pérola falou deixou Pryia compelida a
interromper o suspense. Afinal, ela era apenas humana e não
estava imune aos efeitos delas. Mesmo com a vontade pulsante de
estapear seus lindos rostos.

– Eu sei onde está o mapa que leva até o Tesouro do Povo


Submerso. E se vocês não nos deixarem em paz, vou me certificar
que seu pior pesadelo as encontre.

– Você fala como se fosse o seu pior pesadelo, querida – disse


Eriela.

– Acredite, seria a primeira coisa que teríamos em comum. – E

Pryia foi sincera.

– O problema dos pesadelos é que alguns beijam bem –

sussurrou Isla em um sorriso tímido, e as outras concordaram.

Pryia corou. De desejo. De ódio. Algo sobre aquelas criaturas


despertava os dois sentimentos na mesma medida. Ainda mais após
tantos anos sozinha. Com Jim a rodeando dia e noite. Com o
bastardo Leonardo a poucos dias de distância.
– Eu juro que é a última pessoa que vocês iriam querer que
possuísse o poder dos sete mares. E sim, Isla, eu já caí na lábia
dele. Infelizmente contei como ler o mapa, como chegar até o
tesouro. Planejávamos dividi-lo, e ele me largou. Eu quero impedi-lo
de chegar até o tesouro, e sou a única que pode fazer isso. – O

blefe dançava na sua voz com total confiança e graciosidade. Ao

menos metade disso era verdade, e mesmo sendo uma mentira


inteira, Pryia torceu ser o bastante para convencê-las.

– Pois bem. – Pérola a encarou firmemente, suas irmãs seguindo o


movimento. – Você pode partir e impedir quem quer que esteja com
o mapa. Você sabe mais do que revela, e isso eu respeito. Mas
precisamos levar aquele idiota ali.

Ela apontou o dedo enfeitado com pulseiras e anéis na direção do


pirata amarrado.

Não.

Pryia não poderia deixar que algum mal acontecesse a Jim.

Não podia permitir que ele morresse afogado por essas criaturas
metidas, encantadoras e desgraçadas. Ele merecia coisa melhor.

Merecia dar um fim a Leonardo tanto quanto ela.

– Aquele ali, querida, é o meu idiota. Receio que não posso abrir
mão dele. É a minha chave para chegar até o local que está o
mapa.

– Mas ele conhece nossa música. Isso é roubo. – Isla era tão doce
que era quase impossível discordar dela.

Quase.

– Ele já a ouviu por mim. Jamais vai imaginar que seja uma música
do seu povo.
Pérola ergueu uma sobrancelha, ponderando as informações.

Ela sorriu, e, ao ver sua reação, as outras a imitaram.

– Nosso trabalho aqui está feito, irmãs. – Ao comando de Pérola, as


ondas voltaram a soar.

– Não esqueça de trabalhar nas suas notas. O segredo está no


ritmo das ondas. O mar dá a cadência. – Eriela piscou antes de
graciosamente se jogar no mar.

– Até mais, olhos castanhos. – Isla cutucou seu nariz e saltou em


seguida.

– Vou encontrar o tesouro antes de você, Pryia. – Pérola disse como


um convite e um desafio. Ela olhou para Jim, que ainda tentava se
soltar das cordas e voltou a atenção para a pirata. – Não é porque
seu coração foi partido que ele não está mais aí dentro para ser
roubado.

E novamente a falsificadora de mapas estava sozinha. Ela poderia


ter imaginado tudo se não fosse por um pequeno anel de pérola e
ouro que estava no chão. Ela o pegou e enfiou em um dos dedos.
Serviu perfeitamente.

– Sinto muito, irmãzinhas. Achado não é roubado – a pirata falou


sem emitir som algum, mas se deliciando com o movimento das
palavras em sua boca.

Pryia desamarrou Jim. Ele tentou abraçá-la e beijá-la, enquanto a


chamava de “meu amor”, ainda sob o efeito da hipnose. Não se
parecia nada com o cara doce que a acolheu horas antes, ou com o
pirata fresco e divertido que a fazia sorrir mesmo quando ela
esquecia o que era isso, nem com o rapaz que a fazia querer confiar
de novo. Que fazia isso parecer valer a pena.

– Desculpe, Jim.
Ela deu um beijo na sua testa seguido de uma pancada na sua
nuca, desacordando seus sentidos.

Antes de abrir os olhos Jim teve certeza de que estava morto, a


julgar pela dificuldade que sentiu em se mexer. À sua frente, via um
anjo, então fazia sentido que tivesse partido dessa para a melhor.

Ele tentou se levantar e caiu direto no chão, acordando Pryia com


um sobressalto.

A lateral do rosto estava com uma mancha roxa, mas ele iria
sobreviver. Mas, mesmo sendo para o bem dele, uma culpa
gigantesca começou a crescer no peito de Pryia.

– Como você está se sentindo? – Ela o ajudou a subir de volta para


a cama e se abaixou à sua frente, olhando-o nos olhos.

– Se isto é vida, eu prefiro a morte. O que diabos aconteceu por


aqui? – Ele se esforçou para olhar em volta, passando as mãos
pelos cabelos e pela roupa. – O que aconteceu com a minha
camisa? Isso aqui é algodão de Ellioras, tem ideia de quanto vale,
Pryia?

Ela precisou cobrir seu sorriso com as mãos. O valor que ele dava
aos detalhes, como se fossem a coisa mais importante do

universo…

A pirata não sabia o que dizer, nem o quanto contar. Havia dito às
irmãs que ele achava que era uma canção humana. Se ele
soubesse que encontrou uma sereia e viveu para contar a história,
sua vida estaria em perigo. Todos sabiam da existência do povo
submerso e todos sabiam que não deveriam se misturar.

Pryia odiava o sabor da mentira em seus lábios, mas ela não viu
uma alternativa. Depois do medo que sentiu ontem, ficou claro que
jamais faria alguma coisa que pudesse colocar a vida de Jim em
risco.

– Eu estava cantando ontem.

– Disso eu me lembro – Jim disse com a voz ainda embaralhada.

– Acho que bebi um pouco demais e perdi a noção do som.

Acabei te acordando e você veio falar comigo…

– Também me lembro de algo assim.

– Só que o convés estava molhado, você estava descalço e…

caiu. Tentei te segurar pela camisa, mas não consegui. – Pryia


piscou algumas vezes, mantendo o rosto neutro. Quase entediado.

– Pryia. – Sua voz era grave, bela e séria.

– Jim?

– Hematomas são curados naturalmente. O corpo faz esse trabalho


sozinho – ele explicou calmamente.

– E daí?

– E daí que camisas não se regeneram, meu amor! Era mais fácil ter
me deixado cair sozinho. – Ele conseguiu se levantar e foi até o
espelho improvisado da cabine observar seu reflexo turvo em uma
bandeja de prata. – Agora eu estou parecendo um miserável.

– E um encrenqueiro.

– E um encrenqueiro – ele concordou.

– Que levou a pior na luta.

– Não force a barra, meu amor.


– Estou brincando com você, bobo. – Ela soltou uma risada
satisfeita. A primeira sincera e espontânea em muito tempo.

Jim percebeu uma paisagem estranha através da pequena janela


redonda e se correu até o convés. Pryia o seguiu logo depois

de alimentar sua coruja Olive e vestir suas calças e botas.

– Meu amor? – ele gritou desesperado do convés.

– O que, Jim? – Pryia decidiu que estava muito cedo ainda para ter
pressa.

– Olha só, você já responde por meu chamado – ele concluiu,


estranhamente alegre.

– Se você consegue brincar é porque a pancada não foi forte, não


é?

– Se não te conhecesse, diria que está aliviada.

– Se me conhecesse, saberia que não gosto de suspense.

– Acho que você precisa ver isso aqui. – Ele segurou seu queixo e o
virou para a direção que roubou sua atenção.

Uma ilha majestosa, repleta de prédios e mansões cobertas de


algas, conchas e corais estava diante eles. Uma cidade que
mostrava os danos da corrosão da água, mas sem que nada
atingisse seu desenvolvimento.

Essa ilha não estava em nenhum mapa que os dois já tinham visto,
mas estava em livros e canções, trocadas como um precioso
segredo apenas entre os melhores capitães.

Pryia e Jim se entreolharam enquanto a correnteza forçava sua


pequena embarcação a se aproximar do porto. Um sistema
inteligente para facilitar a chegada de comerciantes e convidados.
Uma correnteza manipulada especialmente para os raros escolhidos
que dominaval os mares com maestria.

Há dezessete anos, ela visitou essa ilha, acompanhando seu pai.


Pryia não tinha mais que oito anos, mas prestou toda a atenção que
pode, maravilhada com os milênios de prosperidade que eram
confidenciados ali.

Ela sabia que não poderia pisar nela sem um convite. A sentença
era de morte para os bisbilhoteiros e os desrespeitosos.

– Preciso que você confie em mim e siga meu comando – ela disse,
ajeitando o cabelo, o cinto e a calça o melhor que pôde.

Desceu rapidamente para a cabine e trocou sua blusa por uma


branca de seda que já estava gasta, mas possuía charmosas
mangas bufantes. Pegou uma fita preta com uma pequena medalha

dourada e a prendeu em seu pescoço. Colocou nos pulsos todas as


pulseiras que tinha, todos os aneis e se olhou no espelho. Viu um
reflexo do que ela costumava ser: um reflexo gasto. Buscou sua
bolsa de couro e caveiras, colocou sua coruja no ombro e estampou
seu melhor sorriso. O mesmo que dobrava qualquer um à sua
vontade. Jim também prendeu seus cabelos castanhos, xingando as
marcas de olheiras e hematomas em seu rosto.

– Nós estamos mesmo prestes a atracar ali? – ele perguntou.

– Perguntas óbvias não são o que precisamos agora. – Ela riu, mas
era com nervosismo na voz.

– Nós não somos convidados em Nanrac, até onde eu sei.

– Eu sou.

Jim levou a mão à boca, em puro choque satisfeito, e abriu um largo


sorriso.

– Jura?
– Na verdade, eu fui. Tem muitos anos, mas o convite ainda deve
servir. Não acredito que um reino milenar troque a chave com tanta
frequência.

E seu pai, que tinha como único defeito confiar demais – roubar e
matar não eram suas melhores características, mesmo seguindo
seu código de pegar dos que têm demais e matar aqueles que
fazem o mal –, contou a Pryia o código que recebera para entrar na
ilha.

Talvez as sereias estivessem certas. Talvez Pryia possuísse mais


conhecimentos sobre o mar do que deveria ser permitido a ela.

Ela não se sentiu nem um pouco mal por isso.

Conforme o pequeno navio encontrava seu lugar ao lado de


embarcações digna de reis, ela andou com toda a confiança que
tinha até a criatura marinha que estava ali para recebê-los.

Era um soldado imponente, o corpo forte quase humano, se não


fosse pelas escamas azuis destacadas através do seu uniforme da
guarda de Nanrac. As guelras em seu pescoço pareciam vibrar
enquanto Pryia e Jim se aproximavam, sorridentes por fora e
desesperados por dentro. Seu sorriso era afiado e letal de um jeito
totalmente diferente das sereias. Não havia um único pelo em seu
corpo ou cabeça. Absolutamente belo e inumano.

Pryia não sentiu medo quando criança, mas agora ela sabia do que
o mundo era capaz e sentiu o coração pulsar mais forte.

– Chave? – a pergunta do guarda foi direta. Ele esperava uma


resposta direta.

Pryia olhou para sua mão, brincando com o anel, sorrindo para si e
para sua coletânea de ironias e coincidências. Ela o encarou e disse
como se desse as boas-vindas ao inesperado:
– Solens Perle – ela disse com toda certeza que seu coração tinha.
Pérola do sol.

Jim se perguntou se a falsificadora de mapas seria capaz de passar


um dia sem o fascinar. Odiou o estado de suas roupas, mas deu um
glorioso sorriso ao guarda, que o ignorou solenemente enquanto
aceitava a chave e ia até outra embarcação.

Seu pequeno navio parecia patético ali, mas ele não se importava.
Vingança poderia esperar um pouco, enquanto entravam na
misteriosa República de Nanrac.

Destinos impossíveis

Era exatamente como ela se lembrava. Só que maior.

Construções em madrepérola irrompiam pelos céus como se não


houvesse limite a ser alcançado. Provavelmente elas desconheciam
tal noção já que prosseguiam submersas até o infinito do mar.
Nanrac era famosa (e misteriosa) por manter sua identidade oculta
sob a superfície, inalcançável para qualquer um que não fosse um
ser marítimo.

Pryia uma vez teve a impressão de que sua magnitude poderia ser
apenas um reflexo da sua infância. Que, quando crescesse, prédios
assim aparentariam ser normais. Ela estava enganada.

Nanrac era uma república independente de todos os reinos


vigentes. Uma terra neutra, onde as leis dos humanos não se
aplicavam. Onde o ouro não possuía relevância perante o que os
comerciantes, cônsules e embaixadores realmente valorizavam:
informações.

Jim já havia ouvido falar daquele lugar. De como seu irmão – o


abestado, de coração podre – Leonardo enviou cartas com provas
de que havia visitado a república, alegando à sua mãe que as
aventuras haviam compensado sua bravata, pois agora ele era
Capitão Leonardo North e estava prestes a formar alianças com
Nanrac!

A descrição das cartas e os rascunhos de desenhos combinavam


com o que Jim via. As altas pilastras de rocha com sinais de erosão,
o misto de seres humanos e criaturas do mar como se não
houvesse distinção entre eles. Em cada canto que olhava, via a
riqueza em abundância que transbordava no visual dos indivíduos a
sua volta. A seda brilhava mais do que um reflexo do

sol sobre o mar cristalino. Pérola, ouro e coral adornavam adereços


que cobriam os braços, caudas, barbatanas, pescoços e cabeças.

Os tons ricos eram refletidos diretamente nas pilastras por onde Jim
e Pryia passavam.

Jim se contorcia por dentro por estar tão esfarrapado, mas estava
deslumbrado demais para se prender ao estado trágico da sua
camisa. Pryia, ao seu lado, seguia com olhos brilhantes e um sorriso
genuíno no rosto.

A essa altura, ele já havia aprendido a decifrar alguns de seus


sorrisos. Ela repuxava a boca toda vez que estava prestes a
debochar de alguma coisa ou para xingá-lo com satisfeita esperteza.

Também tinha o sorriso que faria qualquer um curvar à sua vontade,


que normalmente era combinado a um delicado movimento, olhando
para baixo primeiro para dar tempo a quem quer que fosse que
estivesse à sua frente para analisar sua figura bela e repleta de
curvas, até que finalmente ela erguesse o queixo e exibisse seus
dentes perfeitos em um movimento graciosamente fatal.

E, finalmente, havia o sorriso favorito de Jim: quando ela estava


distraída. Sua boca abria e fechava como se procurasse pelas
palavras certas, o sorriso se metamorfoseando em um misto de
empolgação e surpresa. Quando ela estava maravilhada, isso fazia-
o se sentir maravilhado também.
Após uma hora andando, Jim entendeu que aquele lugar era
composto por gigantescas ruas combinadas com becos e vielas.

Pryia murmurou que os primeiros círculos da ilha eram destinados


ao comércio e à troca de iguarias e de outras preciosidades. Ela se
lembrava de que a república era dividida em anéis cada vez
menores, e que os líderes se encontravam no centro. Era lá que
eram decididas as guerras, os assassinatos, os golpes.

Do centro de um lugar alheio ao resto do mundo, seres que ninguém


sabia nomear decidiam o futuro dos demais. Nada de novo sob o sol
ou sob o mar.

Com isso, Jim reparou que, em cada tenda, havia seres da terra ou
do mar conversando como se fossem bons amigos ou como os
piores inimigos prestes a dar uma trégua. E ninguém ali era
esquisito o bastante para chamar a atenção, mas ele reparou que o

luxo começava a contrastar com a simplicidade de suas roupas.

Eles não permaneceriam invisíveis na multidão por muito tempo.

A pirata permaneceu em silêncio por bastante tempo, pois queria


experimentar o lugar. Sentiu o cheiro salgado e cítrico que subia
pelo chão enquanto o sol secava as poças que surgiram quando a
ilha decidiu emergir. A falsificadora de mapas deixou seu olhar se
perder entre as cores e texturas, como se ela estivesse tendo uma
visão clara de como era o fundo do mar. De alguma forma isso a fez
se sentir em casa. Pryia não conhecia essa sensação havia muitos
anos… A curiosidade ao se deparar com o desconhecido. O sabor
das coisas novas aguardando para cumprimentá-la. O relance de
felicidade em simplesmente estar vivendo.

Mas já que estava em Nanrac, ela sabia quem deveria procurar no


centro da república. Uma oportunidade assim não apareceria na
vida de alguém que não acredita em destino.
Não que a falsificadora de mapas acreditasse nesse tipo de coisa.
Ela já havia perdido muito e acreditado demais (em vão) para se
permitir tal fantasia. Mas uma parte dela queria acreditar, e, para a
Deusa do Caos, isso já era o bastante.

Eles certamente ainda caminhavam pelo círculo mais largo da ilha


quando Jim percebeu que ele queria conversar. Falar alguma coisa.
Qualquer coisa.

– Não há nada mais lindo do que te ver sorrir nesse lugar, mas
detesto te lembrar de que não estamos a passeio – disse, e
conseguiu fazer Pryia olhar em sua direção.

– Isso não quer dizer que não podemos passear.

– Não acha que precisamos nos misturar um pouco mais na


multidão?

– Você pensou em guelras ou barbatanas? Não acho que vendam


isso aqui.

– Engraçadinha – ele debochou.

– São poucos os abençoados com meu senso de humor, eu não


jogaria fora se fosse você.

Jim não se conteve. O rosto redondo de Pryia agora estava corado


pelo sol e pela empolgação, seu sorriso ocupava dois terços

do seu rosto e seu nariz estava impossivelmente mais arrebitado.

Ele bateu com o indicador no nariz da pirata enquanto dizia:

– Eu jamais jogaria fora o meu tesouro.

– Sinto dizer, meu amor, mas não sou nada sua.

– Segundo suas próprias palavras, agora eu sou o seu amor. –


Os olhos dele reluziram perfurantes em um desafio.

– Você sabe o que é sarcasmo? – A pirata jogou suas mechas


queimadas de sol para trás, como se o desdém fosse uma capa.

– Não quando não me convém.

Pryia apenas o encarou com a boca fechada, olhos arregalados e a


sobrancelha próxima a linha do cabelo.

– Já sei, vai falar que eu sou impossível. – Jim levantou as mãos,


como se estivesse se rendendo.

A pirata parou. Um de seus olhos ganhou um círculo roxo em volta.


O sorriso era sincero e ao mesmo tempo malicioso nos seus lábios.
A camisa que faltava um botão revelava sua pele bronzeada pelo
sol. O cavanhaque feito. O cuidado com o cordão que prendia seu
cabelo.

Irritantemente bonito.

Atrás dele, passavam seres de toda parte do mundo, alheios à sua


identidade e ao seu propósito. Os pilares da república tinham
conchinhas cravejadas e algas. Entrelaçadas. Os raios de sol
penetravam cada viela de Nanrac. Ela tentou mudar de assunto.

– Acho que tudo a nossa volta ainda parece impossível, por mais
que não seja minha primeira vez aqui.

– Mas tudo isso é real. – Ele fez um gesto para tocar na sua mão,
deixando um instante de eletricidade ser percebido por sua pele. Um
sorriso surgiu nos lábios dos dois, mas nenhum viu.

Estavam focados nos seus dedos.

– Acho que preciso concordar com você.

– Uau, fácil assim? Acho que vai chover.


Pryia desfez o toque empurrando-o com um sorriso – que Jim
catalogou mentalmente como um deboche – e foi em direção a uma
das tendas, repletas de tecido e apetrechos. Olive disparou do seu
ombro, sua sombra pincelando as tendas coloridas.

– Você é impossível, Jim!

Pryia voltou minutos depois, enquanto Jim mastigava algo que


parecia uma fruta exótica da qual ele nunca havia ouvido falar. O

vendedor possuía garras vermelhas em forma de pinça, longas


antenas e foi bastante simpático. Ofereceu a ele uma iguaria
suculenta e salgada.

Ele catalogou a experiência como "não é ruim, mas definitivamente


repetiria."

A pirata acenou, fazendo-o se apressar para engolir o restante da


fruta e andar até ela.

Em uma tenda, Pryia parecia minúscula em pé ao lado de uma


fêmea marítima. Um grupo de tentáculos verdes despendiam
brilhosos de sua cabeça, presos com uma larga presilha de
madrepérola.

– Ah, esse é o bonitão vaidoso de quem você falou? – Pryia


imediatamente corou, não sabendo onde enfiar a cara. Ótimo. Agora
ele ficaria insuportável. – Me desculpe, querido bípede, mas na
minha concepção vocês são todos iguais. – Sua voz tinha um quê
de pegajoso, histérico e cordial.

⁃ Haha! – Pryia forçou uma risada para interromper a vendedora – O


que madame Khlaha está tentando dizer é que ela não possui
roupas prontas para venda, mas podemos nos arrumar
perfeitamente bem com um de seus majestosos tecidos. São feitos
com algas marinhas fluorescentes de Cascais. Mais fluidos e
brilhosos que a nossa seda.

– Oh, sim, a jovem Pryia escolheu os melhores cortes que possuo,


na minha opinião. Mas preferiu conferir com você, já que é mais
sensível ao seu visual do que ela. – A fêmea a olhou dos pés a
cabeça. – Claramente.

– Madame Khlaha, por favor, está me deixando sem jeito – a pirata


disse entredentes.

– Pois eu estou achando tudo ótimo. – O sorriso de Jim podia


iluminar toda a tenda. Toda a ilha.

Khlaha foi até uma antecâmara por um instante para pegar alguns
acessórios.

– Você disse mesmo para madame Carla que me acha...

Bonitão? – Jim sussurrou. Pryia deu de ombros, ainda com uma


vergonha que nunca havia sentido.

– O nome dela é Khlaha. “Clar – rá”. E eu disse que você se achava


bonitão – Ela desconversou.

– E você não acha? – Jim insistiu com seu charme natural.

– Eu acho que você se acha. Serve?

– Eu acho você linda.

– Enfim concordamos em uma coisa. – Ela sorriu. Aquele maldito


sorriso ainda seria a derradeira queda de Jim.

– E metida. – Ele retribuiu o gesto. Ela deixou a expressão se


dissipar e passou a língua pelo lábio inferior, saboreando as
palavras.
– Temos isso em comum. – Ela piscou, e ele jurou que uma parte
dele derreteu.

Um som estridente e empolgado surgiu na sala conforme Madame


Khlaha trazia o que pareciam ser cintos, braceletes e coroas.

A comerciante mostrou a eles como o tecido deveria envolver o


macho e a fêmea humana. Pryia escolheu um com um tom de verde
esmeralda, que valorizava sua pele marrom-clara. O vestido fluía
em muitas camadas e tinha um decote reto com mangas que se
transformavam em uma capa atrás dela. Incrível o que podia ser
feito com alguns metros de tecido e alfinetes.

Madame prendeu uma faixa na sua cintura, mostrando que tinha


conhecimento do que era desejável na silhueta humana feminina.
Sugeriu algumas peças para o cabelo, mas a pirata decidiu mantê-
los soltos. O castanho já havia se tornado dourado nas pontas,
devido aos anos expostas ao sol, e ela sentia-se bem assim. Mas
concordou em usar uma gargantilha simples de tecido preto com
uma pérola negra pendurada. Também aceitou uma pérola para
Olive, que piou em satisfação. A comerciante encarava

a coruja com misto de curiosidade e medo, e a pirata a ouviu


sussurrar que Olive era a gaivota mais estranha que já havia visto.

Quando Jim surgiu da câmara do provador, parecia um lorde.

Um embaixador. Um rei.

Ele concordou com o tecido azul profundo que Pryia havia


separado, com uma barra dourada que certamente era bordada com
fios de ouro. Com certeza ele mandaria um alfaiate aproveitar o
tecido para uma túnica, um colete, uma camisa e uma capa. Mas,
naquele momento, ele parecia um nobre local.

Os piratas agradeceram Madame Khlaha e seguiram pelas ruas da


república, sem saber que alguém os observava.

– Como você pagou por tudo isso? – Jim estava fascinado.

– Como você pagou pelo pêssego de sal?

– Pêssego? Tem certeza? Claramente esse povo jamais provou um


bom pêssego maduro… Bom, aparentemente, ouro tem alguma
valia aqui. Mas você não respondeu minha pergunta.

– Um pirata com ouro sobrando para gastar em frutas? Claro que


tinha que ser você. – Eles andavam agora em direção a ruas
menores, mais para o centro da ilha. – E bem... Paguei com a única
coisa que tem valor aqui. Achei que conhecesse os mitos.

– Eu conheço, é claro! Imagina se não conhecesse. – Pryia se


perguntou se ele era apenas soberbo ou provocantemente
charmoso. – Mas posso perguntar qual informação bancou esse
luxo?

– Dei a ela o nome dos traidores de meu pai. – Qualquer alegria que
Jim estava sentindo morreu em seu peito. – Eles agora comandam a
frota que deveria ser minha. Saber qual capitão é um traidor é algo
bastante valioso.

– Pryia... – Ele passou a mão pela barba, experimentando um tipo


totalmente diferente de angústia. – Não precisava revisitar essa
história por mim.

– Preciso tirar algo de bom dela, Jim. Caso contrário, é apenas a


maior merda da minha vida. Pelo menos, estamos lindos. Passei

três anos vestindo farrapos. Ou acha que alguma costureira que se


preze vive em Porto Magnus?

– Olhe só quem também é vaidosa!


Eles seguiam andando aleatoriamente, passando por tendas
coloridas e produtos que jamais imaginariam encontram em nenhum
outro lugar do mundo.

– Não comece.

– Não tem como começar o que já está no meio.

– O que tem meio tem fim, Jim.

– Não foi isso que eu quis dizer.

– Ninguém nunca fala como as coisas acabam. Mas a única


verdade é que elas acabam. – Pryia suspirou, absorvendo aquele
momento. O fato de ele existir, e a certeza de que se transformaria
em mais uma memória. Ela só não sabia se seria uma doce ou
amarga.

– Existem outras verdades também, sabe, meu amor?

Ela revirou os olhos. Ele ignorou e continuou:

– Algumas coisas simplesmente existem. Se você for sábia o


bastante e reconhecer que elas estão ali. – Ele pegou sua mão e a
puxou gentilmente, desviando para uma viela. Por um instante,
acreditou que estavam sozinhos. Jim entrelaçou seus dedos nos
dela e encostou seu corpo contra a parede. A cada frase, ele se
aproximava um pouco, mas não o bastante. – Por exemplo, o
oceano simplesmente existe. O horizonte não possui nem começo,
nem meio, nem fim.

Pryia finalmente sentiu que estava no fundo do mar, pois não havia
fôlego em nenhuma parte com o movimento que a pegou de
surpresa.

– Isso parece... impossível, não é? – Seu corpo estava paralisado,


pois toda sua força de vontade estava focada em não colar seu
corpo ao dele. Ela odiava a sensação de estar cedendo aos seus
encantos, mas esse parecia um erro que ela estava disposta a
cometer. Parecia o tipo de erro que valia a pena.

– Parece, meu amor. Mas nós estamos aqui, não é? E você saberia
dizer quando isso começou? – O olhar dela era de dúvida. –

Esse magnetismo que transborda de cada parte linda do seu rosto e


do seu corpo? – Ele agora passava os braços musculosos pela sua
cintura, sentindo a seda escorregar entre os dedos.

– Está me dizendo que ele simplesmente existe? Que não possui


um fim? – Era esperança que passava pela sua voz melodiosa, por
mais estúpida que ela se sentisse ao perceber seu coração vacilar.
Ele estava partido em mil partes. Mas estava ali.

Disponível para quem quisesse montar o quebra-cabeça.

– Nenhum fim se você não quiser. – Ele soltou sua mão e tocou no
seu rosto. Seus lábios cor de cereja pareciam tremer com
ansiedade, e ele deslizou seu polegar por eles. Saboreando cada
parte daquele momento para que o infinito nunca acabasse.

Jim aproximou seu rosto de Pryia, sem saber como algo que lhe
provocava tanto desejo ainda o mantinha raciocinando.

Mas era tudo verdade. Ele estava em Nanrac, vestido como um


lorde, com a mulher mais bela que já viu em seus braços.

Seu pensamento começou a deslizar.

Ele estava em Nanrac.

Não Leonardo.

Provavelmente toda sua farsa tinha a complexa verdade contada


por alguém que realmente esteve na ilha. Provavelmente pela
mesma pirata linda e corajosa que estava à sua frente. As
informações, as histórias, os desenhos vieram dela.
Jim se odiou por sentir ciúmes. Mas odiou mais ainda seu irmão,
que havia provocado tanto sofrimento a todos que mais amava.
Invejou o desgraçado por já tê-la beijado, por conhecer cada parte
do seu corpo e por ter arrancado seu prazer egoísta a partir dela.

Odiou por Leonardo ter abdicado de seu título, deixando todas as


obrigações e responsabilidades para o segundo filho.

O pirata precisava parar com a farsa.

Ele não era um pirata, nem marujo, tampouco um capitão. Mas sim
um marquês que estava prometido à noiva que seria do seu maldito
irmão. Eles deveriam se casar assim que ele completasse sua
missão.

Pryia merecia mais que isso. Alguém melhor que ele e


definitivamente, melhor que Leonardo. Jim não poderia ter um caso
passageiro com ela.

Com o coração pesado, ele apertou os olhos marejados e beijou a


testa da bela jovem antes de se distanciar. Arriscou um toque no
seu narizinho perfeito e manteve o charme esnobe ao caminhar pela
rua principal. Ele não podia olhar nos olhos dela sem desmoronar e
buscou por qualquer distração a vista para se recompor.

Marquês Hector James Cerulius II sentiu o sabor amargo ao


perceber que ela estava certa...

Pryia era, de fato, impossível.

A falsificadora de mapas encontrou um banco para se sentar e


pegou um de seus cadernos gastos, quase sem páginas a essa
altura. E, como sempre, deixou o lápis fluir pelos espaços em
branco, tentando colocar os pensamentos no lugar. Passou pelos
esboços que fez do pequeno navio, das constelações, do rosto dele.
Agora tudo que ela queria era saber desenhar a sensação que ele
trilhou no seu corpo e nos seus lábios.

Talvez esse fosse o jeito dele de mostrar o infinito. Mantendo um


momento apenas na imaginação.

Pryia abriu uma folha em branco e desenhou o que se lembrava da


república. Fez um pequeno mapa só para os dois, a fim de
encontrar o cônsul. Seu pai confiava nele. Talvez ela também
pudesse contar com seu apoio, a fim de recuperar o bem mais
precioso do oceano. Ela ainda não sabia o que faria, mas parecia
certo.

A pirata não sabia quanto tempo se passou até finalmente olhar em


volta, sentindo coragem o bastante para falar com Jim naturalmente
de novo. Ele não estava em nenhum lugar à vista.

Ela ajeitou a bolsa, que parecia uma brutalidade contra o vestido


majestoso, e começou a andar seguindo o que poderia ter

chamado a atenção de seu amigo. Ela já poderia considerá-lo


assim, certo?

Várias ruas se passaram, e ela revezava entre as principais e as


ruelas menores, mas não o encontrava em lugar algum. Apenas
seres excêntricos, marítimos, humanos e híbridos com vestes
coloridas e barulhentas por toda parte. Pryia contornou e penetrou
diversos becos até ter certeza de que estava perdida.

Mas não sozinha.

– Encontramos nossa ladra.

A voz estalada e gutural a fez virar a cabeça. O ser humanoide


possuía uma garra crustácea vermelha na mão esquerda e uma
cimitarra na direita. Pryia gelou ao ver o ferrão articulado que
despontava de suas costas.
A pirata engoliu em seco. Não era hora para temer.

Não que ela tivesse esse controle, é claro, mas Pryia era uma
excelente mentirosa.

Uma carta na manga

"Vamos lá, Pryia. Esse não é o primeiro mané metido a lagosta que
você vai colocar no espeto."

Ela estava acostumada a transformar iguarias meramente palatáveis


em pratos divinos. Sua caçarola de lagosta fez o próprio velho John
prosperar, se é que existia tal palavra em Porto Magnus.

Mas ela nunca havia cozinhado um crustáceo do tamanho de um


homem adulto.

Também jamais esperava ser ameaçada por um. A pirata analisou


suas chances: estava sozinha, em um beco escondido em uma ilha
totalmente desconhecida para a maioria das pessoas. Seu oponente
era duas vezes o seu tamanho, e suas próprias mãos – na
realidade, garras – eram armas mortais que poderiam cortar seu
pescoço com a mesma facilidade que ela estalava os dedos.

O fato de ele empunhar uma espada e ostentar um grosso ferrão na


ponta do rabo era só mais um dos seus problemas. Só faltava estar
envenenado, o que, com a sorte de Pryia… Digamos que ela já
estava contando com isso.

Tudo culpa do Jim. Foi por causa do sumiço dele e da ideia idiota de
sair por aí em um lugar que ele jamais pisou. Ele mal sabia se portar
diante dos costumes locais! Era por culpa dele que ela agora estava
presa ali. Se ao menos ele não tivesse confundido seus
pensamentos com aquela brincadeira de mau gosto…
Algumas coisas eram impossíveis, e ponto. Não deveria estar aberto
para debate.

Ele a chamava de “meu amor”, mas será que realmente conhecia o


significado dessa palavra? Pryia sentiu raiva, porque

tinha algo nele que a deixava curiosa para saber o que era esse
sentimento.

Ela conhecia o amor que teve por seu pai. Por Olive. Pela liberdade.
Mas amar outra pessoa, que surgiu do absoluto nada?

Isso não parecia fazer sentido. Ainda assim, ela tinha que ceder ao
fato de que não parecia ser impossível. Afinal, seus pais se
amaram. Mesmo que ela não tenha visto isso acontecer, seu pai
falava de sua mãe com uma admiração que só poderia ser esse tal
de amor.

E agora, graças a esses pensamentos idiotas, ela estava sozinha,


confusa e em apuros. Não seria a primeira vez. Ela não teve tempo
para pensar, mas se tivesse, teria xingado Jim. Dito que ele era um
irresponsável, fanfarrão, vaidoso e egoísta por tê-la deixado
vulnerável com a porra de um homem-lagosta vindo direto das
profundezas do oceano para fazer da sua vida um inferno.

Não que Jim pudesse fazer uma grande diferença em uma batalha,
mas dois contra um parecia alguma vantagem. Ele poderia distrair a
criatura marítima à sua frente. Ludibriar com conversas macias.

“Concentre-se, Pryia. Use as ferramentas que você tem.”

Normalmente, ela recorria ao charme e à esperteza para conseguir


o que queria. Mas a falsificadora de mapas tinha certeza de que não
fazia o tipo do crustáceo humanoide. Mesmo com a pele
avermelhada pelo sol.

Entre suas muitas ciladas, era a primeira vez que Pryia tinha a
verdade ao seu lado. Essa era nova.
Ela não era uma ladra. Ao menos não naquele momento. Ela havia
conseguido o tecido e as joias pagando um preço justo. Ela
conhecia as leis de Nanrac e sabia que ali não era o lugar para
bancar a esperta.

Ah, se ela ao menos conseguisse resistir…

– Não roubei nada, cabeça de bagre.

– Você mente! – ele vociferou. Estressado e com vocabulário


limitado. Ótimo. Mais um idiota. Seus olhos vermelhos suspensos
por pequenas antenas não o tornavam mais fácil de se olhar.

– Hoje, eu não roubei nada. Melhor assim? – A pirata não sabia se


ele podia ler expressões faciais humanas, mas abriu o sorriso de
deboche mais lindo que tinha em seu arsenal.

A criatura marítima avançou na sua direção.

OK, sem tempo para conversa fiada hoje.

Um fedor de sal e amônia permeava no beco, como se o sol tivesse


se esquecido da maldita viela. Atrás dela, uma parede de tijolos de
pedra bloqueava sua rota de fuga. Ela precisaria passar pelo
agressivo crustáceo. Ou morrer tentando.

Pryia não estava mesmo com vontade de morrer naquele dia.

Para alguns, a morte viria como um beijo doce e impiedoso. Mas


hoje era ela quem se sentia doce e impiedosa. Como a própria mão
do ceifador.

Ela iria lutar.

Revirou

suas

memórias,
tentando

se

lembrar

do

comportamento das lagostas que costumava preparar na velha


estalagem. Primeiro, elas usavam suas pinças para escapar, depois
atacavam com seu rabo. Ela torceu para a criatura ignorante
funcionar de um modo semelhante.

Em um movimento que pareceu tão instintivo quanto natural, o


crustáceo direcionou suas garras mirando em seu pescoço.

Exatamente como ela imaginou que faria. Pryia não era muito alta,
portanto usou seu tamanho como uma vantagem. Antecipou o golpe
e se abaixou, disparando um soco entre as pernas dele.

Com alguma sorte, ele também teria características em comum com


um homem e ficaria atordoado por alguns instantes. Mais uma vez
foi exatamente como ela previu, fazendo-a estranhar a própria sorte.

Só não imaginou que isso aumentaria o desejo de sangue dele.

Seus olhos pendurados e irados prometiam retaliação. Lenta. E

dolorosa. Ah, sim, ele a jogaria em água fervente assim que tivesse
oportunidade.

Pryia usou bem seu tempo: teve o suficiente para enfiar sua mão no
fundo da bolsa e procurar desesperadamente pelo cabo da faca de
corte que ela conhecia tão intimamente.

Aquilo, sim, ela tinha roubado. Mesmo sabendo que foi um favor ao
velhote – ele perderia os dedos com uma lâmina tão afiada.
Sem poder tirar os olhos do crustáceo que cambaleava para ficar
em pé, Pryia tateou todo tipo de bugiganga em sua bolsa.

Sentiu com seus dedos seu caderno, o lápis, algumas moedas de


cobre, pedaços de papel que certamente eram retalhos de mapas
rasgados. Algo mole o bastante para ela acreditar que seria algum
biscoito de Olive, provavelmente estragado.

Ela precisava fazer uma limpeza naquela bolsa. A lagosta se


levantava diante dela, como o pesadelo de todo cozinheiro.

“Onde está essa maldita faca?”

Ela não devia ter se abaixado. Agora estava sentada no chão,


revirando sua bolsa, prestes a ser morta igual a uma idiota patética.

Até que… a ponta de seus dedos achou um cabo liso junto a uma
suave superfície de couro de dragão. Agora, sim, ele provaria do
gelo da sua lâmina e pensaria duas vezes antes de mexer com
Pryia.

Eram nessas horas que ela sentia falta de um sobrenome.

Intimidar com apenas uma palavra não tinha o mesmo efeito. Mas
nunca voltaria a ser Pryia North. E ela já não podia mais ser Pryia
Yabbah. Esse nome naufragou com seu pai.

Talvez agora ela pudesse ser apenas “Pryia, matadora de lagostas


malditas”. Ela gostou de como o pensamento soou.

Ela trouxe a faca para a superfície e tentou soltar o botão que


prendia a capa, protegendo seus dedos da lâmina. Ela não poderia
enfrentar essa criatura desarmada e forçou seu dedo no fecho, que
insistia em permanecer fechado. O botão estava enterrado e ela
precisou baixar os olhos a fim de ver o que estava de errado com a
capa desgraçada.
Foi a deixa para que a lâmina da cimitarra corresse em sua direção
junto a um grito borbulhante e grave. O aço rasgou a lateral do seu
braço, deixando um corte ácido correr por seus sentidos.

Primeiro, veio a dormência. Depois, a queimação. Por fim, a raiva.

Mesmo se inclinando para trás, ela ainda estava caída no chão, e,


na sua posição desvantajosa, ele mirava suas garras novamente
para ela.

Pela Deusa do Caos!

Foi quando finalmente o botão se abriu, e ela estava com


instrumento perfeito para servir picadinho de lagosta. O seu braço
estava vacilante, mas não era hora de sentir dor. Não que a dor se
importasse com seus planos.

Ela precisaria ser rápida, mas manteve a faca próxima do seu rosto,
pronta para atacar. Um rio vermelho fluiu do seu ombro, as gotas
acertando o chão em um som estalado. Bastou um olhar de relance
para ver que o corte não havia sido tão profundo assim.

Tudo graças ao tecido da Madame Khlaha, que possuía uma


resistência fora do comum. Mas que agora estava arruinado.

Ela odiou o fato de entender o que Jim dizia sobre sua camisa
branca. Tecidos não se regeneram.

Droga, agora ela estava ficando fresca, e era tudo culpa daquele
pirata almofadinha e idiota que a abandonou para se perder ali.
Pryia só não disse que odiava Jim, porque era o que ela sentia por
Leonardo.

Talvez houvesse algo naquela família feito apenas para tirar sua
paciência.

Uma tira de tecido verde como esmeralda, como o belíssimo mar de


Cascais, como os olhos daquela sereia doce e insuportável, estava
caído no chão. O crustáceo já preparava o próximo golpe.

– Você tem noção de que eu não visto nada que preste há 3

anos, seu merda?

Podia ser a adrenalina. Podia ser o medo pela própria vida.

Podia ser porque tinham acabado de arruinar seu vestido novo...

Definitivamente era porque arruinaram seu vestido novo.

De qualquer forma, sua faca foi mais precisa que a pinça e o


movimento que deveria arrancar a cabeça dela deixou o crustáceo
aleijado.

Uma pancada oca foi ouvida enquanto a larga garra do seu


oponente veio ao chão. Ela viu a dor reluzir nos seus olhos e sorriu
com satisfação.

Ela o finalizaria ali. Naquele momento.

Mas não podia. O simples ato de violência que cometeu traria uma
sentença de morte à sua sombra.

Nanrac era um lugar de trocas de artefatos, badulaques, invenções


e informações… Era o lugar onde os poderosos do mundo
planejavam as mortes.

Mas não onde elas eram executadas. Ainda mais em um dos


primeiros círculos da ilha. Pryia sentia a vingança clamar sua
atenção com cada parte do seu corpo, sequer conseguia sentir
piedade por mutilar a criatura maldita diante dela. Ele estava
disposto a fazer pior em nome de uma falsa acusação. E Pryia havia
aprendido da pior forma que entre estar presa no seu pior pesadelo
ou ser o pior pesadelo do outro…

Digamos que uma jovem sozinha no mundo não possuía muitas


vezes o luxo da escolha.
Pryia optava por ser bondosa sempre que podia, mas jamais se
desculparia por sobreviver.

– Escute aqui, seu patife de merda. Eu não te devo satisfação, mas


guarde na sua cabeça de peixe uma coisa: eu não roubei nada do
que estou usando. Conheço as regras de Nanrac, assim como
qualquer convidado.

Ele agonizava de dor pela perda do seu membro, ou talvez por ter
sido derrotado por uma bípede franzina arrogante e mentirosa, mas
sabia que algo bem pior do que ele estaria atrás dela.

– Mestiça maldita. – Ele cuspiu em seu rosto.

O bafo podre de peixe a atingiu. No seu cabelo. Pryia não era


vaidosa, mas isso já estava passando dos limites e ela não deveria
jogar uma carta que nem sabia se de fato tinha na manga. Mas, de
novo, ela não perdia uma chance de mostrar que sabia mais do que
aparentava. Podia ser só para fazer que ele se sentisse mal, e o
veneno na sua ameaça tocou seus lábios como mel fresco.

– Cônsul Simas vai gostar de saber como sua laia trata seus
convidados de honra.

A criatura deu um sorriso cruel e dolorido com seus não lábios.

Uma satisfação que não deveria estar ali tinha desabrochado. Pryia
não conseguiu mentir para si mesma: aquilo não era nada bom.

– Tratamos bem quem tem a insígnia real, Pérola.

Com um chute certeiro na sua cara, Pryia o deixou desacordado e


saiu correndo. Mesmo com a bota de couro, seus pés sentiram o
impacto duro. Se não fosse por sua faca de corte, teria sido seu fim.

Ela voltou para um dos círculos principais e se distanciou o máximo


que pode, sem perceber que a cada passo estava ainda mais longe
de encontrar seu amigo. Seu amigo idiota, mas, ainda assim, a
pirata buscava por ele. Com um assobio forte, ela se sentou
ofegante no chão e esperou por Olive. Bebeu de seu cantil,
agradecendo o frescor da água que descia pela sua garganta.

Perto demais. Ela passou perto demais da morte… Sem motivo.

O que o desgraçado quis dizer com “mestiça maldita”? Todos ali


eram mestiços de algum jeito. Há gerações o mundo dos humanos
havia fundido ao marinho. Era a única evolução que tinham
conseguido na história, graças à sua vontade de foder com qualquer
um que estivesse disponível.

Yay. Grande avanço. Agora o grande tabu de qualquer relação,


inclusive de amizades, era entre as raças terrestres e marítimas.

Cordialidade comercial era bem-vinda, o mundo submerso e da


superfície descobriram que, juntos, eram parceiros prósperos. Mas
relações pessoais…

Pryia usou parte da água do cantil para limpar a mecha suja do seu
cabelo. Ela encontraria Jim a qualquer momento e não queria
aquele aroma pútrido atrelada a ela. Não que isso importasse, mas
a única vaidade real de Pryia era se manter cheirosa. O que era um
desafio gigantesco quando se vive na beira do mar. Ainda assim seu
nariz sempre foi exigente.

Após torcer uma das mechas, ela enxugou as mãos na barra do


tecido e reparou em seus dedos. Um pouco de sangue e sujeira
ainda estavam embaixo de suas unhas. Mas no indicador ela ainda
usava o belo anel de pérola.

Ainda assim, ela não era uma ladra. Se a sereia era estúpida o
bastante para se ocupar mais em diminuir os outros e dar conselhos
impraticáveis ao invés de cuidar dos próprios apetrechos, o
problema era dela.

Falsificar mapas já era o pior dos ofícios, Pryia não se tornaria babá
de peixe. Mas agora fazia sentido. Enquanto a silhueta de Olive
vinha até ela, Pryia entendeu o que tinha feito. E não era nada bom.

O crustáceo havia dito algo sobre uma insígnia. E se o anel de


Pérola era uma insígnia real… isso fazia da sereia uma princesa. E

faria de Pryia uma emissária real enviada pelo povo submerso.

A pirata não sabia nem como começar a interpretar esse papel.

Ela torceu para ser tão boa mentirosa quanto sempre acreditou que
fosse.

Olive pousou no seu ombro, dando cabeçadas entre piados de


saudação. Pryia riu do fato de Madame Khalah tê-la confundindo
com uma gaivota. Corujas eram muito mais inteligentes.

Olive, sim, havia sido roubada. Sequestrada. Mas a pirata não iria
deixar essa criatura majestosa ser levada por contrabandistas de
quinta categoria que aportaram em Porto Magnus. Ela libertou todos
os animais presos, mas Olive ficou. Os piratas estavam tão bêbados
que não se deram conta das gaiolas vazias. A história ainda a fazia
sorrir com satisfação. Seu próprio código de honra colocado em
prática. Papai ficaria orgulhoso.

A coruja estava linda com sua pérola negra combinando com suas
penas cinzas. Pryia arriscou a dar a massa amorfa que tinha na
bolsa, que, para sua surpresa, foi devorado de bom grado.

Independente do que fosse.

– Olive, onde está Jim?

A coruja a encarou com o olhar estático.

– Viu Jim? – Pryia gesticulou como se imitasse sua barba e o jeito


exagerado de colocar a mão no coração e fingir um desmaio.

Olive piou em resposta e levantou voo. Pryia seguiu o mapa invisível


trilhado por sua sombra pelas tendas coloridas.

– Eu quero saber como isso aconteceu? – A pirata espalmou a mão


no rosto, em parte para esconder a raiva, em parte para esconder o
riso, que nada tinha a ver com graça ou aprovação.

– A versão longa ou a curta?

– A curta.

– Usei a carta que tinha na manga.

– Eu espero que você esteja falando em metáforas.

Ele soltou um riso entre o desespero e o escárnio.

– Você sabe que não estou.

Pryia jogou a cabeça para trás, buscando encontrar o azul do céu


entre as tendas vermelhas, amarelas e azuis. Ótimo. Ela havia
salvado Jim de sereias sanguinárias para que ele se afogasse por
conta própria depois.

A república funcionava com leis diferentes, mas roubar no jogo era


crime em qualquer parte do mundo. Se ele pensou que seria
diferente ali, era um idiota maior do que ela esperava.

“Meu idiota”, ela havia dito a Pérola. E mesmo não sendo


responsável pelos atos inconsequentes do pirata, ela não poderia
largá-lo nessa situação: amarrado a uma cadeira, com os braços
para trás, entre copos de bebida vazios e baralhos de cartas
repetidas graças ao engraçadinho à sua frente.

Isso era um péssimo sinal. Pryia não quis ficar e descobrir qual seria
a punição pela mentira, eles precisavam sair dali o quanto antes.
Suas chances de chegar até o cônsul agora estavam arruinadas.
– Achei que você era inteligente o suficiente para entender que, se a
informação é a coisa mais valiosa da república, você não pode usar
informações falsas!

– Mas era para ser só uma partida inocente de pokka, meu amor.

– E por que você resolveu usar uma carta fora do baralho? E

não me chame de meu amor! – Ela rosnou cada sílaba.

– Para mostrar que eu não estava blefando. Você fica uma graça
irritada, sabia?

– Mas a ideia do jogo é justamente saber blefar direito! – Idiota.

Idiota. Idiota. Ele veria a graça em breve.

– Eu não gosto de fazer ameaças em vão. A palavra é tudo que um


homem tem.

– Que bom então que eu sou uma mulher, não é? – Ela estava tão
irritada que suas sobrancelhas estavam quase coladas uma na
outra, enquanto buscava sua faca ainda grudenta de sangue para
cortar as cordas que o prendia.

– Não foi isso que eu quis dizer. Eu confio plenamente em você.

– Péssima escolha.

Pryia agora andava ao redor de Jim e quase o puxou pelos cabelos


quando ele alisou os ferimentos no seu pulso, como se fosse algo
grave.

– Não temos tempo a perder. Eles vão voltar a qualquer momento, e


você não vai gostar do que está por vir.

– Estou ficando emocionado com a forma que se preocupa comigo.

– Você é um idiota, mas não quero que morra.


– Morrer? Sério? Por causa de um jogo de cartas?

– Sinto dizer que a escória da pirataria com que eu convivo não é


tão elegante como a sua. Sinceramente, às vezes é difícil entender
como você sobreviveu nos sete mares.

Eles já se encaminhavam para fora do beco que a coruja havia


encontrado. Pryia refez os caminhos para as ruas principais, o mapa
claro na sua mente de cada tenda, comerciante e criatura que ela
passou até encontrar Jim.

Mas sem saber de quem exatamente eles estavam fugindo, Pryia


não sabia como se esquivar. Jim foi inconclusivo ao descrever seus
companheiros de mesa, a deixando ainda mais irritada com a sua
atitude de se meter em tudo, como se tivesse todas as respostas.

Como? Como ele havia trilhado seu caminho na pirataria se ainda


cometia erros tão básicos como aquele?

Foi então que ela se deu conta. Se Jim era irmão do Leonardo, de
jeito nenhum ele seria um pirata assim como o irmão. Ele queria
matá-lo justamente por isso. Pryia parou de correr, com as mãos
apoiadas nos joelhos e ofegante. Jim parou logo ao seu lado. Olive
ainda circulava pelos céus.

– Você não é um pirata. – Não foi uma pergunta e ele sabia.

– E você é uma pirata um pouco menos esperta do que os outros –


“E infinitamente mais linda”, o que ele guardou para si. Não queria
andar nesse território perigoso. – Já que demorou tanto tempo para
descobrir isso.

– Eu estava preocupada com outras coisas. – O ar faltava nos seus


pulmões e agora sua boca estava seca de sede.

De repente, ele resolveu notar a parte arruinada de sua manga.

– Pelos deuses, o que aconteceu com seu vestido?


– Essa era uma das coisas que estava me mantendo ocupada.

– Você está machucada? – A preocupação vacilou sua voz. Jim


subitamente parou, analisando cada detalhe de Pryia.

– Vou sobreviver, não se preocupa. Agora você deveria ter me dito


que não era um marujo.

– Não me venha com essa. Você teve dias para descobrir que eu
não era um pirata e não se importou com isso.

Ela quis bufar, mas ele tinha razão. O que a deixou duas vezes mais
irritada, se isso fosse possível. Ainda assim, isso não mudava o fato
de que ele era um idiota inconsequente. E, graças a isso, eles
precisavam sair da ilha.

– Se você não tivesse sumido, nada disso teria acontecido.

“Se você tivesse me beijado, nada disso teria acontecido.”

E, de alguma forma, ele percebeu as palavras não ditas nos seus


olhos. Tremendo para sair por seus lindos lábios.

Seria melhor Jim contar a verdade. Ela poderia ficar com raiva, mas
já estava bastante nervosa. Pryia não merecia pensar que ele era
um mentiroso manipulador assim como o maldito Leonardo.

– Pryia, não faz diferença eu ser um pirata ou não… Mas a verdade


é que eu sou…

Sua frase foi interrompida.

– Ali está ele.

Foi a única coisa que ouviram da voz aguda antes de Jim e Pryia
serem arrastados para enfrentar a justiça de Nanrac.

8
Tempo emprestado

O coração da república.

Pryia se lembrava dessa região como uma sensação, não como


uma memória. Os véus de seda coloridos ficavam para trás, assim
como as longas ruas circulares cercadas de vida em todas as
direções, os segredos distribuídos como moeda e as risadas
educadas de seres de todas as parte do mundo.

Ninguém era tolo o bastante para entrar em Nanrac sem um


objetivo. Estar ali era um privilégio, uma oportunidade de investir em
suas frotas e uma chance única de obter conhecimento.

O sonho de todo rei, pirata ou comodoro. Ali, a realeza não


importava. Nem o título, nem o sangue. Nanrac se regulava através
de uma lei própria, assim como o mar. Os cônsules e os
embaixadores mantinham as relações harmônicas, cumprindo um
código de ética simples o bastante para que ninguém tivesse a
oportunidade de acusar a própria estupidez pelos seus crimes.

Tinham uma regra: Não mentirás.

Conhecimento era ouro e sentenças falsas eram estrume.

A falsificadora de mapas jamais sonhou estar ali. E talvez


justamente por isso fosse mais merecedora do que qualquer outro
que já tivesse colocado os pés, tentáculos ou barbatanas naquela
ilha. Ela também não imaginara que seu passaporte seria uma
mentira. E era inteligente demais para culpar sua desatenção.

Jim, por sua vez, sentia um arrependimento que escoava até o


oceano. As manhas de um lorde não se encaixavam com o mundo
dela. Uma verdade que ele conhecia, da mesma forma que ouvimos
uma lição e deixamos que a memória desapareça antes que se
consolide. A culpa o consumia em ângulos diferentes, mas em
especial por ter arriscado a vida da pirata corajosa que estava ao
seu lado.

Ela merecia sua vingança e felicidade mais do que ele. Ela viveu
mais provações em um mês do que o marquês em toda sua vida. E
ainda tinha a capacidade de sorrir de forma devastadora, o
suficiente para fazer o mundo cair aos seus pés.

Exceto que agora aquele sorriso que ofuscava o sol não estava em
lugar algum para ser encontrado. Por culpa dele. Ele era a noite
nublada que sabotava os navegantes.

As ruas apertadas os recebiam, enquanto atravessavam portões de


ossos e rocha. A única sensação de liberdade vinha do céu azul,
que parecia tão inalcançável quanto o oceano abaixo deles.

A respiração de Pryia estava concentrada e ofegante. Da realeza à


pirataria, os amantes do horizonte não estavam acostumados a
lugares apertados.

Não havia uma cela para eles. Apenas uma fila. Crimes eram
esperados, assim como sua sentença impiedosa. Ninguém
enganava Nanrac e vivia com essa informação.

Com um chute nas costas, eles foram posicionados, e dois guardas


crustáceos ordenaram, com um sotaque carregado na língua
comum, que ficassem ali.

O sol já começava a cair quando Pryia aguardava sua vez. Ela e Jim
não trocaram uma palavra, tendo em vista o que acontecera com os
prisioneiros à sua frente. Nem um olhar. Nanrac iria voltar ao oceano
em breve, e eles afundariam com a ilha se não tivessem sua
audiência a tempo.

A república visitava a superfície segundo sua vontade própria e


permanecia ali até o amanhecer seguinte, dando a oportunidade
para certas criaturas noturnas visitarem seus segredos também.

Entretanto, hoje o mar estava muito próximo, e a pirata não sabia se


seria abraçada por ele ou se teria novamente sua liberdade.

Pryia sentiu o pânico se instalar ao pensar em passar por outro


naufrágio. A sensação de quase morrer afogada a fazia companhia
durante pesadelos, e a possibilidade de estar a poucas horas dessa
sensação novamente a deixava inquieta.

As horas passaram, as constelações giravam no céu e Pryia tremia.


Não por culpa da maresia fria, mas pela incerteza.

Ela rezava para a Deusa do Caos. Estava prestes a fazer uma


barganha silenciosa, mas o que teria para oferecer? Sua vida era a
única coisa que tinha, e entre a morte e a escravidão, ela sabia qual
caminho escolheria.

Ela seria a próxima a ser julgada e sussurrou tão baixo que apenas
o vento pôde discernir o som de suas palavras. Para a Deusa do
Caos, ofereceu um favor: se houvesse algo que pudesse fazer que
não ferisse ninguém de quem gostava, ela faria. Se ela e Jim – já
que ele estava ali e, por mais que fosse um idiota, ela não queria
que ele morresse – pudessem seguir seus caminhos ilesos, ela
faria.

Pryia soltou um riso de escárnio. Quem era ela para fazer um favor
à Deusa do Caos? Uma ninguém. Sem nome, nem futuro.

Mas perdida em seus pensamentos, ela ouviu um nome familiar que


surgiu do fundo de sua memória como uma viagem no tempo.

Era alguma força caótica a segurando pelo queixo gentilmente,


dizendo que tinha grandes planos para ela.

Um arrepio subiu por sua espinha enquanto algo no universo se


encaixou, e uma fita invisível agora estava presa ao seu pulso
direito. Ela tocou seu braço procurando algo físico, mas só
encontrou uma presença cativante e intimidadora, pressionando sua
pele.

Merda. Talvez ela fosse idiota também. Talvez o mundo inteiro fosse
apenas uma gigante bola feita de rocha e água, com propósitos
idiotas e únicos para fazê-la se irritar.

Mas aquela palavra... Ouvir aquilo era como voltar para casa. E

lembrar que seu lar agora estava destruído.

– Yabbah .

Pryia levantou seus olhos e encontrou os olhos pretos e


acolhedores de Simas.

Cônsul Simas.

Ele abriu um sorriso ao vê-la, e novamente ela era uma garotinha


encantada pela sua veste púrpura bordada a ouro e prata.

Seu longo chapéu despontava de sua cabeça, um sinal de sua


influência na república. Sua pele marrom-escura o fazia parecer
vestido de noite, agora que se encontravam perante as estrelas.

Foi ele quem falou primeiro, mas em vestes semelhantes havia


outros humanos, assim como seres mesclados com o mar.

Tentáculos, garras e antenas estavam com sua atenção focada nela.

Alguns dos embaixadores deixavam sua luminescência natural


reluzir diante da escuridão da noite. Suas faces eram como a de
demônios vestindo a luz dos anjos.

A pirata deu um passo à frente e dobrou os joelhos, reverenciando


em sinal de respeito. Jim percebeu o movimento e o repetiu,
curvando o tronco. Nenhum dos dois falaram, ainda temendo a
repercussão.
– Meu coração se alegra ao ver a bela jovem que se tornou.

Apesar das circunstâncias – disse com uma voz firme e gentil.

Simas não estava acima da lei, portanto a condenaria se


necessário, apesar de o fazer com grande pesar. Pryia ergueu o
queixo em sua direção, ajustando os trajes que, mesmo com um
rasgo e sangue, ainda vestiriam uma rainha.

– É um prazer encontrar Vossa Excelência, sabendo que posso


explicar esse grande mal-entendido.

– Hoje aprendi a origem do motim que levou Yabbah aos braços de


Éris. Seu pai era um homem honrado, e apenas por isso vou lhe dar
a oportunidade de falar em sua defesa. Você nega que está usando
a insígnia real da sereia Pérola Cascais?

– Eu nego que a roubei. Tenho um acordo com a…– A pirata


titubeou nas palavras, se recordando do que ouviu. – Princesa. Ela
me confiou uma missão.

Um som esganiçado veio de um embaixador. Seus trajes eram de


um verde profundo, assim como os dela. Tentáculos impiedosos
ocupavam parte da larga bancada. Suas palavras foram claras,
apesar do sotaque carregado.

– E como uma reles humana conseguiu uma audiência com a


herdeira do trono?

– Não acham que eu vou revelar meus segredos espontaneamente


logo aqui, certo? – Pryia já tinha total confiança no seu recém papel
de embaixadora da princesa. Uma perfeita atriz.

– Você está revelando seus segredos em troca da sua vida, menina


– interviu Simas. Para ele, Pryia ainda era uma garotinha curiosa
que havia se metido em uma confusão muito, muito grande.
– E o que me garante que eu e meu imediato teremos imunidade se
revelar minha aliança com Pérola?

– Nada. Mas você terá uma chance, que é justamente o que está
acabando para você, Yabbah – falou um humano de traje azul claro
como seus olhos e pele pálida. Certamente vinha das terras de gelo,
pois transpirava de calor na ilha tropical.

– Os segredos da princesa não são meus para serem revelados.


Vocês pedem que eu quebre a confiança da coroa? – O

tom de Pryia era quase uma súplica dramática, seguida de um


sorriso de satisfação.

– Ou você fala, ou será deixada na ilha junto de seu imediato para


prestar contas à princesa pessoalmente. Se seu acordo é real, ela
virá ajudá-la, e você não terá nada que temer. – Naquele momento,
não havia nada do Simas sorridente e brincalhão que ela havia
conhecido. Sua bondade só ia até certo momento. Sua sede de
poder era maior.

Pois bem. Pryia há muito tempo não era a mesma criança inocente.
Poderia jogar esse jogo.

– Eu ficarei feliz de reportar à princesa que a república pretende se


intrometer em seus planos. Mas se querem mesmo saber, eu sei
qual a localização do mapa que leva até o Tesouro do Povo
Submerso. Me lembro dos seus detalhes em vermelho vivo, de
quais correntezas e constelações errantes se deve seguir em qual
momento do ano para ter nas mãos o poder dos sete mares.

Eles sabiam que ela falava a verdade, pois apenas quem já havia
visto o mapa pessoalmente poderia descrever tais características.
Nanrac e o Reino Submerso não eram inimigos, no

sentido de não possuírem alianças ou inimizades com ninguém.

Mesmo assim, o mapa deixava a coroa do mar vulnerável.


Ninguém havia olhado para Jim. Ele estava absorto, maravilhado e
definitivamente apavorado. Pryia havia se encontrado com uma
sereia e não disse nada sobre isso para ele?

Ousou um olhar para o conselho. Eles ponderavam as informações,


mas claramente nada disso lhes era útil. Era uma curiosidade
saciada, mas não lhes dava poder.

Ele decidiu então lhes dar algo palpável para usarem.

– Há uma transfusão de poder a ser feita na superfície, no Reino de


Traberan. O duque de Gimez está prestes a firmar uma aliança com
o marquês de Cerulius. Estão desenvolvendo uma frota imune a
tempestades que se alimenta de raios. Ofereço esse conhecimento
em troca da nossa liberdade e segurança imediata.

Murmúrios correram em sons inaudíveis, interessados com as


possibilidades. Nenhum ser das profundezas ou da terra havia sido
capaz de evitar os efeitos devastadores de uma tempestade que
fundia céu e mar.

– E como podemos validar sua informação? – A voz veio de uma


boca feita apenas de dentes e olhos flutuantes.

– Eu sou Hector James Cerulius II, herdeiro do marquês de


Cerulius. O duque e duquesa de Gimez prometeram a mão de lady
May junto à prosperidade de nossas famílias.

Pryia estava se afogando. Era a única explicação. A barganha com


a Deusa do Caos não havia funcionado e ela estava no fundo do
mar.

Não.

Havia ar o bastante à sua volta, mas não o suficiente para parar a


faca que atravessava seu coração.
Ela não tinha direito de se sentir assim. Ela e Jim não eram nada um
do outro, nunca seriam. Ela mesmo deixou isso claro desde o
primeiro dia.

Só que a vingança contra Leonardo de repente não era o que ela


mais queria. Mas Pryia nunca foi acostumada a ter suas vontades.
Só havia desacostumado com o vazio.

Ainda assim, a única certeza de que tinha era de estar certa.

Confiar era para os fracos, e ela estava farta de se sentir indefesa.

Não era como se sua vida valesse o mundo, então Pryia fez a única
coisa que a preenchia: rechear suas verdades e certezas de
mentiras.

– Como meu imediato disse, estamos à beira de uma revolução


benéfica a todos. Muitos se enganam pensando que deixarei o
trabalho de meu pai inacabado. Nanrac e eu compartilhamos o
mesmo pensamento no que diz respeito a traidores. – Pryia agora
tinha atenção de todos. Até o mar parou e as estrelas congelaram
para ouvir suas palavras. E, sim, ela tinha aquele sorriso nos lábios.

Um misto de poder, satisfação e charme que apenas o desespero é


capaz de conceder.

– Cuidado com o que diz, menina – alertou o conhecido cônsul.

– Meu nome é Pryia. E agora ou vamos sair daqui com seu melhor
navio ou vou deixar a localização do mapa com o pior pesadelo que
podem encontrar. Envie uma pequena tripulação conosco se
quiserem. Meu imediato fornecerá informações sobre nossos
estudos mais recentes.

E entre conhecimento e dúvida, ela sabia qual caminho os


aristocratas seguiriam.


Pryia sorriu ao ver o belo navio, feito com marcas do céu e do mar,
impecavelmente limpo como se jamais tivesse sido usado.

Certamente barganhado com algum dos comerciantes locais. E

agora era dela. Ou quase. Ela poderia ter um nome finalmente, se


mantivesse a embarcação em seu poder.

Dois enviados embarcaram com eles, Alex Gim e Pequeno Dave.


mas falariam pouco até desembarcarem e conquistarem as
informações prometidas. Os novos recursos e a localização do
mapa.

Dois dias se passaram, e o sol encontrava novamente o horizonte.


O mar, o vento e as instruções breves eram os únicos sons por
milhas. Não havia mais canto, risadas ou conversas suspiradas.

Jim tentou falar com Pryia algumas vezes, mas ela o dispensou com
comandos curtos que ele foi compelido a seguir.

Dali a um dia eles estariam em Realmar. Deveriam encontrar a


localização de seu maldito irmão e então cumprir cada um o seu
destino.

Ele não era muito melhor que Leonardo.

Ou talvez fosse muito pior.

Porque mesmo tendo seu futuro amarrado a outra, não pode se


conter em ir até a porta da cabine da falsificadora de mapas e bater,
chamando seu nome. Uma súplica, uma prece, uma última chance.

Ela entreabriu uma fresta e encontrou esperança nos seus olhos de


avelã. Nos dela, ele encontrou fogo, raiva e, o pior, decepção.

Tudo o que tinham era tempo emprestado.


9

Verdades ocultas

Jim sabia que não teria mais que alguns segundos antes de Pryia
dispensá-lo novamente, assim como vinha fazendo nos últimos dias.

Os astros, curiosos, observavam os olhares trocados pelo casal


como se estrelas cadentes cortassem o céu. Beleza e destruição
iminentes. Ira e verdades prestes a explodir. Nem a força das ondas
poderia ser mais poderosa do que o destino. Mas contra ele duelava
a energia do caos.

A pirata olhou bem para o marquês à sua frente. Seu rosto parecia
cansado, círculos escuros se formavam sob seus olhos. Se ao
menos isso atenuasse sua beleza… Mas ela nunca buscou pela
perfeição. O que a atraía era justamente as falhas, os pontos
vulneráveis. Só ali ela percebia que alguém poderia ser tão
quebrado quanto ela. A pirata sabia que a atração era o mais doce
dos venenos, a mais óbvia das armadilhas.

Ela não cairia novamente. Jurou para si mesma que não. Mas Pryia
era… Bom, vocês sabem.

A marca do soco que ela disparou não passava de uma lembrança


de dias mais leves. Ela via a súplica nos seus olhos, sincera e
desesperada. Como se ele tivesse o direito de sentir-se assim.

Ele ainda usava as vestes azuis de Nanrac. Certamente, um traje


muito mais adequado para alguém nascido em berço de ouro do
que suas antigas roupas rasgadas – que ela mesma rasgou,
enquanto salvava sua vida.

Talvez porque a pirata se deu conta de que essa seria a última noite
que navegariam juntos antes de separarem seus caminhos, ou
porque ela estava cedendo à curiosidade, ou apenas porque Pryia
estava desesperada para uma boa briga, a fim de extravasar tudo
que estava atravessado na sua garganta, ou simplesmente porque a
rachadura que tinha em seu olhar a partiu um pouco mais. Seja lá
qual fosse o motivo, a pirata abriu a porta, apoiando seu cotovelo no
batente. Levantou uma sobrancelha e perfurou olhar do marquês
com o próprio, mantendo o queixo erguido. Um pio de Olive ecoou
do mastro do belo navio. Pryia sorriu ao ver a silhueta de suas
penas e orelhinhas no alto do mastro.

Jim quase perdeu o fôlego. Há apenas alguns dias ele não via os
lábios de Pryia se curvarem para cima, mas ele não havia se dado
conta de que essa falta era como se estivesse em uma prisão
desprovido de luz e água. Era ridículo e exagerado, mas ele não
pode conter um suspiro. Quando ela sorria era como se o mundo
parasse para admirá-la.

O marquês congelou aquele instante na sua memória. Guardou para


revisitá-lo conforme os anos passassem e Pryia fosse apenas uma
lembrança. Uma história inacabada.

Uma história que nem chegou a começar.

Ali, a pirata retratava uma pintura de tudo que ela era. Tudo que ela
tinha. Sua camisa branca e gasta tinha apenas alguns botões no
lugar e pendia larga, caindo por um de seus ombros. Alças pretas
de renda se revelavam por debaixo da camisa como uma peça que
certamente era reservada apenas a ela e aos afortunados que
convidava à sua cama. A calça preta estava justa nas suas curvas
valorosas; seus pés, descalços. Jim engoliu em seco.

Pryia passava as mãos pelos cabelos curtos, não para arrumá-los,


mas como se gostasse do toque de seus dedos. Seus olhos
reluziram as estrelas curiosas em mil diamantes no breve instante
em que ela desviou a atenção para sua coruja e sorriu. Sua beleza
vinha sem o mínimo esforço, e ela parecia saber e não se importar.

Pois a falsificadora de mapas se interessava por liberdade, arte e


vingança. E era justamente isso que a tornava absolutamente
formidável.

Jim não sabia ainda, mas aquele foi o momento em que se


apaixonou.

Quando a pirata voltou seu olhar para o dele, Jim estava perdido em
seus próprios pensamentos. Percebendo que o infinito acabara
rápido demais, ele só podia torcer para ter memorizado todos os
detalhes corretamente.

– Podemos conversar? – Jim não costumava pedir permissão, então


a pergunta a surpreendeu.

– E há alguma coisa para ser dita, Vossa Graça? – Sua voz


melodiosa não tinha ironia, apenas raiva.

– Há várias coisas que eu acho que precisam ser ditas, Pryia. E

me chame de Jim. Por favor.

Ele gostava de ser Jim. Não Hector. Nem Vossa Graça. Só Jim .

Mas ela não se importava com o que ele gostava. Não naquele
momento.

– Pois então diga de uma vez. Não pretendo perder muito mais do
meu tempo com você.

Em cima da cama dela, Jim observou alguns papéis espalhados.


Estava longe demais para identificar o que eram os rascunhos que
ela desenhava.

– Sabe, Pryia, eu acho que você está com ciúmes. Por isso está me
evitando e não suporta ficar perto de mim mais do que alguns
instantes.

Era um território perigoso, ele sabia. Mas, por mais esperta que a
pirata fosse, a ira tende a nublar os sentidos... E ela mordeu a isca.
– Você deve se considerar importante demais se acha que dou a
mínima para a sua vida, mas tenho certeza de que vale tanto quanto
seu irmão, se fez o que fez mesmo com a adorável e casta lady May
esperando por você.

– Eu não a conheço, Pryia. Talvez você tenha passado tempo


demais no mar e não entenda como os casamentos são arranjados
nas cidades. Eu a vi apenas uma vez, logo antes de embarcar para
Porto Magnus.

– E estava buscando uma última aventura antes de seguir com sua


vida perfeita de luxo e regalias, não é?

– Eu estava procurando vingança e uma aliada – ele declara, com


seu coração aberto e sincero.

– E você também tenta seduzir todos os seus aliados em becos?

– Se forem tão deliciosos como você, por que não? – Em parte ele
estava sendo sincero, mas ele queria irritá-la. Ele preferia sua ira à
sua indiferença. Mas Pryia não explodiu, apenas cuspiu cada
palavra para que ele não perdesse nenhuma.

– Você não vale nada, Jim. Com o irmão que tem, eu que fui
estúpida em pensar que era diferente.

– Eu não entendo, Pryia. Se não é ciúme, por que você está tão
irritada comigo?

– Você mentiu pra mim!

– Você mente pra todo mundo!

– Isso não vem ao caso!

– Só porque não te convém.

– E você me culpa por escolher as situações que me convêm?


Eu minto para sobreviver, não para cumprir meus caprichos. Tudo
que eu já tive foi tirado de mim. Diferente de você e de seu irmão,
que tem tudo e decidem jogar fora.

– Podemos chegar ao consenso de que os três fazem qualquer


coisa para conseguir o que querem? E você deveria parar de se
achar a pirata mais honrada dos sete mares, pois você também
encontrou com uma sereia e não me contou!

– Ela iria te afogar, é isso que você quer saber? Fiz uma barganha
para salvar sua vida. O reino submerso é conhecido pelos líderes da
república de Nanrac, mas sua existência não deve ser popular ao
povo da superfície. Eu prometi a ela que resgataria o mapa das
mãos de Leonardo. Mas você não entende isso, pois é apenas um
lorde idiota e mimado, acostumado ao mundo se dobrar às suas
vontades!

– Você me chamou de idiota? Deve ter voltado a gostar de mim de


novo – provocou o marquês.

– E importa se eu gosto ou não de você? – A pirata cruzou os


braços e recostou na parede, respirando fundo, buscando se
acalmar.

Sim, importava. Naquele momento, parecia importar mais do que o


próprio tesouro que buscavam. Jim estava prestes a dizer isso, mas
as palavras nunca deixaram seus lábios.

– Porque eu não gosto – ela completou. – Não me importo com você


ou com seu futuro. Tudo o que temos é uma aliança de benefício
mútuo. Sei que Leonardo vai precisar de mim para ler o mapa, então
não precisaremos encontrá-lo: ele virá até mim. Então eu seguirei
meu destino e cedo a você o privilégio de acabar com a sua vida
sozinho. – Ela ponderou um momento calmamente, com a dúvida
flutuando por seus olhos. – Por que exatamente você deseja
assassinar seu próprio irmão? Ele pisava nos seus brinquedos ou
coisa assim?
O sorriso dela era quase malicioso.

– Leonardo… – A história era longa demais, e Jim sabia que não


teria mais tanto tempo da atenção da pirata. – Ele partiu nossa
família. Minha mãe entrou em uma tristeza profunda quando nosso
pai deserdou o seu primogênito. Leonardo queria sua liberdade,
mas jamais poderia retornar à nossa casa. Minha mãe chorou por
ele como se estivesse morto, porque, aos olhos da sociedade, ele
está. E eu não vou deixar que ele aproveite sua vida irresponsável
às custas do sofrimento dela. Se minha mãe precisa chorar a morte
de um filho, ela chorará a morte de um filho que realmente está
morto.

– Seus motivos são mais honrados que os meus. A morte dele


estará em boas mãos se forem as suas.

Por esse estranho elogio o marquês não esperava.

– E tem outra coisa…

Pryia inclinou a cabeça, curiosa para que continuasse.

– É graças a ele que eu preciso me casar com lady May. Ela estava
prometida como sua noiva há muitos anos. A responsabilidade de
manter a aliança entre as famílias agora é minha. Eu posso ter
muitos privilégios, como ouro e luxo, mas escolher não é um deles.

– Ao menos você realmente tem o hábito de seduzir seus aliados.


Um homem de palavra, de fato. – Palavras disparadas como flechas
ácidas. Sim, Jim percebeu exatamente onde a pirata

havia sido ferida. E por mais que ela quisesse fazê-lo acreditar, ele
não foi o alvo, mas ela mesma.

– Só tem uma aliada que eu gostaria de seduzir, mas eu não sei se


ela baixaria a guarda por um momento. Não sei se teria uma
chance. – E deu um passo em sua direção, sentindo o calor irradiar
do seu corpo como o magnetismo que sempre sabe onde está o
Norte.

– Você certamente não teria – a pirata afirmou, tentando não vacilar


a voz. Ela hesitou um passo para o lado, mas a parede de madeira
chocou contra suas costas.

– Pryia, nossas vidas estão prestes a seguir caminhos separados.


Diga que você em dez anos não vai querer saber como seria o beijo
que eu te daria esta noite. Diga que você não está curiosa para
saber o que minhas mãos fariam quando passeassem pelo seu
corpo. Eu quero que você olhe nos meus olhos e jure que em
momento nenhum da vida você desejou que eu a envolvesse de
calor e prazer.

Jim tinha uma mão apoiada na parede ao seu lado. Nenhuma parte
de seus corpos se tocava, mas o calor de suas peles queimava,
implorando por contato. O marquês passou o nó dos dedos pelo
rosto de Pryia, memorizando os detalhes. Os lábios fartos, os olhos
pequenos e adoráveis, o nariz arrebitado mais lindo que já vira.

Pryia desejou que o mundo acabasse naquele momento, assim ela


não teria um futuro para se preocupar. Ela queria aquele presente,
só por um instante. Sem amarras invisíveis. Mas tudo o que
conseguiu foi dizer o óbvio:

– Você está louco, Jim.

– Louco por você? Sim. – Suavemente ele tirou o cabelo dela de


seu rosto, e, em seguida, seus braços fortes a envolveram por
completo. Seus lábios estavam a um suspiro de distância. – Não
negaria. E você, Pryia? – Um desafio. – Você nega?

– Não – ela confessou.

Ele sorriu e se aproximou, seus lábios finalmente prestes a se


encostar. Jim falou:
– Eu sabia que você não era uma mentirosa tão boa assim.

E o beijo que ele desenhou em seus lábios tinha pressa de existir.


Eles não tinham tempo, então contariam cada segundo nos braços
um do outro.

Pryia laçou o pescoço dele com seus braços, permitindo que a


abraçasse por inteiro. Suas línguas se encaixaram como se já
conhecessem a vontade uma da outra. Ela era um mapa que
instigava sua curiosidade em conhecer cada detalhe. Ele era a
bússola que sabia exatamente aonde ir pelo seu corpo.

Pryia não era tocada há tanto tempo, que não havia se dado conta
de que sentira tanta falta. E Jim… Era tudo que ela queria. Ela já
suspeitava que estar em seus braços seria uma perdição, mas a
falsificadora de mapas não tinha tanta vontade assim de se
encontrar, pelo visto. Sentir o aroma cítrico de laranja e rum direto
dos seus lábios era mil vezes melhor do que sentir seu próprio toque
na intimidade de sua cabine. Na sua imaginação, seu próprio toque
o traduzia de uma forma muito previsível. Ela mesma era muito
delicada, muito familiar para seu gosto.

Mas Jim… Ele era o inesperado. Suas mãos eram


consideravelmente maiores que as dela, e a pirata sentia-se
envolvida por inteiro. Querendo mais. Precisando de mais. Jim
poderia dar bastante e ainda não seria o suficiente.

Apesar de sua postura firme durante o dia, Pryia agora parecia


derreter em seus braços. Sua pele era macia demais, e suas curvas
já estavam desafiado a sanidade dele. Jim saboreou o beijo dos
seus lábios de ameixa, trilhando seu pescoço com os dedos. Ele
interrompeu o beijo e a ponta do seu nariz seguiu o mesmo caminho
de suas mãos, fazendo cócegas na jovem pirata.

Uma risada escapou, sobrepondo o som da rebentação das ondas


contra o casco do barco, e Jim soube que aquilo poderia ser a
verdadeira felicidade. O marquês levantou o rosto, sorrindo de volta.
E como se um feitiço tivesse sido quebrado, Pryia afastou Jim de
seu corpo. Ela voltou-se em direção à porta de sua cabine e
sussurrou sem olhar para trás, com algo que ele podia jurar que era
tristeza na sua voz:

– Eu quero que você nunca mais toque em mim.

Ele soltou suas mãos e rapidamente ela fechou a porta de sua


cabine. O coração do marquês se partiu em mil pedaços, sujando o
chão de sangue e lágrimas conforme ele se distanciava pelo
convés.

Na escuridão da noite, ele apenas sussurrou:

– Você não é mesmo tão boa mentirosa quanto pensa, Pryia.

E foi a solidão dos náufragos, desprovidos de futuro e de


companhia, que os visitou naquela noite.

10

Nada mudou

Terra firme. Pryia nunca imaginou que sentiria um estranho conforto


em pisar nessa cidade novamente. Não porque os tijolos das ruas e
os becos guardassem memórias dos seus erros precipitados e
sonhos inocentes, mas porque finalmente, após três anos, ela não
estava mais no fim do mundo, nem em uma ilha prestes a voltar às
profundezas do planeta a qualquer momento. Ela no centro dele.

Era reconfortante andar pelo píer de madeira ouvindo o salto de


suas botas ecoar enquanto sabia que seu navio a aguardava. Ela
estava a poucos passos de se tornar uma capitã, só precisava
assegurar que o navio ficasse em sua posse e recrutar uma
tripulação que inspirasse confiança. Ambas as coisas se pareciam
com aquelas tarefas impossíveis que as bruxas obrigavam as
princesas a realizar em contos de fadas.
E como Pryia havia lido vários deles nas tardes que passava na
cabine de seu pai, ela idiotamente também começou a acreditar que
essas missões poderiam ser cumpridas. Ela acreditava em finais
felizes. Hoje em dia, a pirata se dava por satisfeita se conseguisse
apenas cumprir as tarefas.

Quanto aos finais… Ela sabia que felicidade era um conceito que
adivinha de um devaneio momentâneo. Felicidade era apenas um
momento que antecedia uma desilusão.

Olive sobrevoava os telhados baixos, certamente em busca de um


abrigo da luz do sol. Ela não poderia ficar na cabine do navio, já que
era muito arriscado, então a contragosto a coruja seguiu sua amiga.

Realmar amanhecia barulhenta, diferente de Nanrac, que misturava


o som das ondas, de sussurros e de frases cativantes. O

porto de Realmar era um local de transição entre todas as partes do


mundo, e pessoas de todas as cores e alturas, vestindo-se com
peças de roupas de mais ou de menos, já começavam a se
aglomerar. Apressados, cada um ia para o seu destino sem se
importar com quem estava ao redor. Chapéus exacerbados cobertos
de correntes, penas e laços mostravam que a moda dos viajantes
não havia se tornado mais discreta. Extravagância era poder. E era
preciso ser visto em uma multidão se quisesse ser respeitado.

Sabendo disso, Pryia arrumou sua belíssima seda de Cascais verde


esmeralda de uma forma diferente da que madame Khalah havia
ensinado: passou as faixas pela cintura e por cima de um dos
ombros, a fim de esconder o corte causado pelo guerreiro
crustáceo. Seus pertences pesavam em seu ombro, mas a única
bolsa que ela tinha teria que servir. A pirata não se importou em
avisar Jim, Alex Gim ou Dave – os enviados pela república – aonde
iria. Apenas afirmou que, em três dias, teria o mapa e a localização
de Leonardo. Jim estava livre para passar-lhes qualquer informação
sobre o navio mágico idiota que ele e sua noiva queridinha estavam
planejando criar para salvar o mundo.
Ao inferno com todos eles.

Pryia andava pelas ruas de Realmar como se estivesse em um


sonho que já havia sonhado muitas e muitas vezes. Nos três anos
de isolamento, ela acreditava que este lugar teria evoluído. Navios
cortariam as nuvens, o povo submerso viveria entre eles na
superfície. Ela acreditou que tudo teria mudado enquanto ela
permanecia ilhada.

As notícias não chegavam ao fim do mundo, e em Porto Magnus a


pirata ousava pensar que, quando finalmente saísse dali, a
realidade seria diferente. Mas quando se passava tanto tempo
sozinha da forma que ela passou, se percebe que a solidão tem um
efeito muito mais forte do que se poderia imaginar.

Ela estava mudada, por mais que não soubesse precisar o que tinha
causado essa mudança: o vazio e a desesperança dos últimos anos
ou a breve sensação de acolhimento que experimentou na última
semana e que agora era apenas uma lembrança inacabada.

Um sonho, do qual ela despertou antes da melhor parte. Mais uma


peça para sua coleção de perdas.

Passando pelas ruas de pedra, a pirata manteve o queixo erguido.


Para todos os efeitos, agora ela era uma capitã recém-chegada da
misteriosa República de Nanrac, ostentando a opulenta insígnia de
pérola no seu dedo. Longe da distração do cais, ela começava a
atrair olhares. Pryia sempre chamou atenção por onde passava,
mas agora, com seus novos trajes, os cidadãos de Realmar
perguntavam entre si por que uma lady como ela estava
desacompanhada.

A falsificadora de mapas nunca teve a pretensão de pertencer à


realeza. Regras demais, protocolos demais e, assim como Jim havia
dito, não havia liberdade para os nascidos em berço de ouro. Pryia
focou nos sussurros de cada jovem e cada senhor e senhora
conforme passava pelas portas das casas, torcendo para que uma
única coisa ainda não tivesse mudado naquela cidade: a fofoca.
Seus pés fizeram o mesmo caminho que traçaram tantas outras
vezes, estranhando a familiaridade com as ruas. A pirata não sabia
o porquê, mas aonde quer que fosse, os caminhos ficavam
gravados na sua mente. Ela nunca se perdia, nunca errou um
endereço. E a deixava extremamente irada não entender por que
não havia memorizado o mapa do tesouro. Faltava algum detalhe,
que era como uma névoa em sua mente… Mas isso estaria prestes
a ter um fim.

Pryia sentia-se aliviada por estar sozinha naquelas ruas. Havia se


acostumado com Jim por perto para lhe roubar um sorriso, para
provocá-la, para tirá-la do sério. Em algum momento, ela imaginou
que eles seriam amigos para sempre. Aliados para sempre. Talvez
até algo mais, porém sua imaginação não a deixou ir tão longe. Ela
sabia que “para sempre” não existia… Mas imaginou que o que quer
que tivessem poderia durar um pouco mais.

Era mais fácil encarar a silhueta dura e fria das casas de pedra e
dos telhados de barro beijados pelo sol. Era mais fácil ignorar os
olhares e sussurros vindo na sua direção. Qualquer coisa era mais
fácil de encarar do que a lembrança de Jim olhando nos seus olhos
com o sorriso devastadoramente lindo logo após beijá-la.

O beijo que a fez querer pertencer a outro corpo, como se fossem


um só. O abraço que ela encontrou sem saber que passara a vida
inteira procurando por ele. Seu sorriso com ele era fácil demais. E
perigoso demais para ela domar os próprios pensamentos.

Há poucas horas, que mais pareciam ser outra vida, eles estavam
juntos, banhados pela luz das estrelas. E tudo que ela queria era
puxá-lo pela sua túnica azul, jogar todos os seus rascunhos no chão
e esquecer que o mundo existia, enquanto eles idolatravam o corpo
um do outro como se prometesse uma oferenda aos deuses.

Assim que a pirata percebeu isso, teve a certeza de que se


entregasse só mais um pedaço seu para ele não teria como se
montar de volta. E Pryia já estava cansada de se despedir de tudo
que amava.
Ela ainda não sabia se amava a forma que ele a fazia se sentir, se
era apenas o efeito de ter alguém por perto após os anos de
isolamento ou se a gravidade era muito maior e ela realmente havia
se apaixonado por ele.

Não, ela não passaria a amar alguém impossível. Não havia nascido
para ser uma aventura ou uma amante. Ao menos, não de alguém
que ela queria por inteiro. Era mais fácil deixá-lo para trás, da
mesma maneira que desgarramos de um sonho ao levantar da
cama.

Ninguém se apaixona em uma semana, certo?

Sozinha na rua, ela riu.

Tantas vezes sua vida mudou em um dia. Uma hora. Uma semana,
parecia tempo o bastante para uma mudança radical.

E, finalmente, dissipando seus pensamentos, ela chegou à entrada


de um prédio bonito e modesto, com paredes brancas e portas de
mogno. Empurrou para encontrá-la destrancada e subiu quatro
andares em uma apertada escada de madeira. Bateu na porta,
sabendo que ainda era cedo demais e com a certeza de que não
era aguardada, portanto se preparou para os gritos de Jasmine.

A pirata esperou e esperou, batendo firmemente de tempos em


tempos, torcendo para não acordar os vizinhos. Depois do que

pareceu uma eternidade, a porta finalmente se abriu.

Os cabelos vermelhos e cacheados pareciam ocupar todo o campo


de visão. Os olhos cor de mel arregalaram, ocupando quase todo o
rosto, e a jovem mulher levou a mão a boca para conter um grito de
surpresa ao ver Pryia à sua frente. Se fosse qualquer outra pessoa,
Jasmine teria respondido com xingamentos e violência. Mas como
era sua melhor amiga que aparentemente acabava de retornar do
reino dos mortos, tudo que ela pode fazer foi arrastá-la pelo pescoço
para um abraço forte e sufocante. Pryia sorriu e a abraçou de volta.
Ela não imaginava que haveria ainda algum lugar desse mundo que
fosse como estar em casa.

– Essa velha é insuportável. Se faz de surda só quando convém.

– Jas, você estava gritando no meio do corredor. Ela deve ter


pensado que era uma emergência!

– Aquela ali? – Jasmine jogou os cachos emaranhados para trás


com desdém. – Se eu morresse, seria a primeira a arrombar minha
fechadura para dançar em cima do meu cadáver.

– Aposto que tem uma história aí.

– Muitas, na verdade. – Abriu um sorriso felino. – Mas agora quero


ouvir a sua.

E Pryia contou. A traição de Leonardo, o naufrágio, Porto Magnus,


Nanrac. Jasmine a interrompia com interjeições exageradas
enquanto preparava um bule de chá preto para as duas.

Não era a primeira noite que ela passava em claro, mas ao menos
hoje ela tinha um bom motivo para ficar acordada.

Pryia estava ali. Mais magra do que a última vez que a vira e mais
corada de sol, com várias sardas adoráveis despontando dos
ombros e bochechas. O cabelo, mais curto e mais claro nas pontas
do que se lembrava. Mas a mesma voz melodiosa e o mesmo
sorriso encantador permaneciam.

Contudo, algo em seu olhar... Isso, sim, havia mudado. Havia mais
do que ela estava contando, e Jasmine, por mais que estivesse
curiosa, não se importava de esperar um pouco para ouvir.

Sentadas cada uma na extremidade do sofá simples azul-escuro do


apartamento, as amigas desfrutaram de um momento de silêncio
confortável.

A pirata aproveitava mais um gole da xícara quando um homem


belo e forte de meia idade, a julgar pelos fios brancos despontando,
apareceu e se encaminhou para porta com sua calça semiaberta e a
camisa desabotoada. Pryia fez o possível para não engasgar.

O homem deu um beijo longo nos lábios de Jasmine e piscou na


direção de Pryia, depois saiu e fechou a porta.

Antes que a falsificadora de mapas pudesse fazer uma pergunta,


uma mulher de pele castanha e um corpo escultural repetiu
basicamente os mesmos passos que o homem. Ela se despediu
com um sorriso tímido de lábios fechados.

Pryia olhou Jasmine por alguns instantes e prendeu o riso, até que
as duas explodiram em uma larga gargalhada.

– Vejo que você não perdeu o costume de fazer amizades –

concluiu Pryia.

– Deus me livre ter aqueles dois como amigos! Nossa relação é


apenas carnal. Conversar só estraga uma boa foda.

– Eu acho que a conversa deveria fazer com que o sexo fosse ainda
melhor, não?

– E correr o risco de derreter de prazer nas mãos de alguém só para


descobrir depois que é um idiota?

Idiota.

Aquela palavra bateu firme no seu estômago. Não era algo tão ruim
assim. Era bom ter um idiota por perto. Principalmente quando, na
verdade, ele não era nada idiota, mas, sim, brilhante à sua própria
forma.

Pryia pigarreou e tentou manter a voz neutra.


– Talvez você possa conversar com as pessoas antes de levá-las
para a cama.

– E perder tempo de beijo com palavras?

– Talvez não seja perda de tempo – a pirata levantou a hipótese e


as sobrancelhas.

– Pryia. – Uma pausa dramática. Tudo com Jas precisava de um


toque de drama.

– Jasmine?

– Quem ficou conversando com você ao invés de te beijar?

– Ele não ficou só conversando, nós nos beijamos.

– Ah, então existiu alguém! Quem ele é? – Jasmine exclamou,


triunfante.

– Não vem ao caso. – A pirata corou mais do que admitiria em voz


alta.

– Pryia, não se deve ficar apaixonada por homem casado, sabia?

– Ele não é casado.

– Pryia. – Jas queria a história completa. Naquele instante.

– Ele é um nobre.

– Uh, um nobre! Conde? Barão? Marquês? Duque? Imagine você


como uma duquesa! – Ela bateu palmas enquanto falava cada vez
mais alto.

– E noivo.

– Isso já não é tão legal. – Sua amiga fez um bico preocupado.


– Sei disso. E prefiro não falar mais desse assunto.

– Você é tão linda… – Jasmine tinha as mãos apoiadas no queixo e


os olhos arregalados.

– Por que isso, do nada?

– Está apaixonada e em negação. Posso te levar para uma taverna


para beber e trepar até amanhã se quiser esquecer o lordezinho.

– Não vejo como nada disso possa me fazer bem agora, Jas.

Obrigada… Eu acho.

– O tempo que ficou em Porto Magnus a fez esquecer como a


luxúria bêbada funciona, não é, Pri?

Pryia tacou uma almofada no rosto bonito de Jasmine. Mesmo com


os cachos bagunçados e o sorriso de dentes levemente tortos, sua
energia era inebriante.

– Talvez você possa conhecer pessoas sem estar bêbada.

– Adoraria, mas as pessoas não são tão bonitas assim.

Especialmente as inteligentes.

– Dizem que a sabedoria vem com o tempo, não é? – refletiu


gozadamente a pirata.

– Se eu quiser conversar, sei onde estão os filósofos, os pensadores


e o restante dos esquisitões de Realmar. – Jasmine se inclinou e
agarrou Pryia novamente pelo pescoço em um abraço. –

E, agora, sei onde está você!

– Senti sua falta também, Jas.


Assim como Realmar, Jasmine não havia mudado nada. Ainda era a
mesma mulher que escolhia viver sob a luz da lua, pedindo a
opinião de canecas de cerveja enquanto dançava livremente no topo
das mesas. A pirata nunca perguntou como ela bancava sua vida
simples e descomplicada, mas isso não era da sua conta. Era uma
boa companhia.

– Me lembre de novo por que vamos sair essa noite para o porto e
não para uma taverna?

– Pela terceira vez, porque eu vim a Realmar com um objetivo.

– Ser confundida com uma cortesã ou uma prostituta? – Jas


provocou.

Pryia quase se engasgou com a risada.

– Precisamos começar um rumor, já te expliquei.

– Sim, sim... Atrair o tal canalha, bastardo e truculento Leonardo até


você.

– Exatamente, você se lembrou direitinho. – A pirata piscou para a


amiga, que sorriu em retorno, satisfeita com a própria inteligência.

– A taverna seria mais divertida.

– Podemos ir depois à taverna. Primeiro, precisam saber que eu


estarei lá.

– E como faremos isso mesmo? Atrair alguém que você odeia que
tem o paradeiro desconhecido para um lugar que você está?

– Simples. – Pryia deu de ombros. – Começaremos um boato.

– Agora sim estou vendo sinais de diversão, mas preciso que você
prometa que vai deixar a noite embalar suas escolhas hoje.
Nós estamos juntas, Pri. E eu te conheço: sei que não será por
muito tempo.

A falsificadora de mapas assentiu. Jasmine estava certa: a vida


havia sido boa em lhe permitir tantos intervalos com uma mesma
amiga, com tantos anos de diferença. Ela deveria aproveitar, pois as
gentilezas do tempo não costumam durar para aqueles que as
desperdiçam.

Pryia e Jasmine, vestidas como deusas com seus olhos delineados


e curvas evidenciadas, caminhavam pelas ruas movimentadas de
Realmar com o plano na ponta da língua.

Conforme a noite conquistava seu lugar nos céus, os astros


tristemente encaravam o marquês que seguia solitário para seu
destino e o marquês sem título que não sabia o que estava a sua
espreita.

As estrelas entre si faziam suas apostas.

11

Sinas Cruzadas

– Acha que deu certo? – Pryia esticava as pernas enquanto se


acomodava na cadeira. Tudo que desejava era uma caneca de
cerveja fresca.

– Você está brincando comigo? Você me convenceu a andar a


cidade inteira sussurrando a mesma frase para desconhecidos, e
ainda tem uma chance de dar errado?!

– Tudo tem chance de dar errado, Jas... Na verdade, normalmente é


isso que acontece.

– Já percebeu que, quando você fala assim, pode soar um


pouquinho pessimista?

– Nunca fui do grupo das pessoas realistas.


Pryia sorriu e piscou para a amiga, que logo levantou a mão em um
gesto exagerado, atraindo uma atendente até sua mesa. A jovem
usava um vestido azul marinho com um corte simples e bonito, mas
com algumas manchas do que deveriam ser molho e bebidas
alcoólicas. Seu copo curvilíneo e sinuoso chamou atenção de
Jasmine, que, assim que mirou suas bochechas rosadas e amáveis,
se esqueceu do porquê a chamou até ali.

Pryia viu o olhar desconsertado da moça e intercedeu. Para o alívio


das duas.

– Hoje é uma comemoração, acredito que merecemos duas


canecas da sua melhor bebida para começarmos a noite. – A voz de
Pryia estava leve. Feliz.

Por uma noite, ela decidiu dar ouvidos à amiga e apenas se divertir.
Ao menos enquanto tudo que ela poderia fazer era esperar.

Leonardo viria até ela. Ela sabia que sim. Como se as próprias
estrelas a ajudassem na missão, que era um tiro no escuro. Mas

algo dentro dela a fazia acreditar. Até porque, para atrair o Diabo,
basta estar disposta a fazer um pacto com ele.

Ou ao menos fazê-lo acreditar nisso.

Mas até sua vida ser forçada a mais essa reviravolta, ela daria sua
atenção completa a Jasmine. Que claramente, ao ver a bela
garçonete, pensava diferente da pirata.

– Você quer alguma coisa diferente, Jasmine? – indagou Pryia,


chutando a amiga por debaixo da mesa. Seu rosto não denunciou
nada.

– Podemos começar com o cerveja, mas adoraria conhecer a


especialidade da casa.
E deu uma piscadela descarada. A atendente mordiscou os lábios,
prendendo um sorriso antes de assentir e voltar entusiasmada para
a cozinha.

– Está apaixonada, Jas?

– Claro que sim, mas minhas paixões só duram uma noite –

respondeu a jovem. Seus cabelos vermelhos agora emolduravam


seu rosto em largos cachos, assim como determinada sereia que
Pryia encontrou noites atrás. “Eriela”, se a pirata se recordava bem
de seu nome. Uma criatura bela e maldita, assim como tudo que
vem do mar.

Como era possível que há tão pouco tempo ela estava em alto-mar,
barganhando com a herdeira do povo submerso pela vida de Jim, e
agora estava em uma taverna aguardando seu pior inimigo?

Quanto ao seu plano… ela teria que trabalhar com improviso. A


falsificadora de mapas ainda não sabia como faria para levar
Leonardo até Hector James Cerulius II. Aliás, ele estava certo: esse
nome ser complicado demais.

Jasmine

seguia

apontando

os

frequentadores

mais

interessantes de Vinho Rubro, enumerando aqueles que conheciam


a morada do prazer de uma mulher e aqueles que a tratavam como
um jogo de dardos. Pryia não sabia o que ela queria dizer com isso,
mas sua risada melodiosa preencheu a taverna de um jeito que
todos pareciam olhar para as velhas amigas.

A bebida continuou sendo servida, embora a pirata estivesse mais


nervosa a cada hora, temendo encontrar o desgraçado

Leonardo bêbada e acabar revelando algo que não deveria.

Em sua bolsa, ela sentia o peso do papel que Jim havia deixado
com ela. O endereço de sua mansão, onde deveria mandar chamá-
lo quando finalmente fosse a hora de cumprir sua parte do acordo:
vingar o luto precoce da mãe antes de assumir sua responsabilidade
como marquês.

Eles já haviam se despedido, os próximos dias não deveriam


significar nada… Mas ainda assim, seu coração sussurrou que, se o
visse novamente, não teria forças para virar as costas.

Ela implorou para que o coração se calasse assim que olhos frios de
avelã fixaram-se nos seus do outro lado do bar, em um sorriso
venenoso e lascivo.

Nunca foi tão fácil fazer aquilo que Pryia fazia melhor. Mentir era tão
natural para a pirata como respirar, mas ela nunca pensou em si
mesma como uma enganadora... Ela preferia pensar que era uma
contadora de histórias. Com versões muito mais interessantes e
articuladas das realidades finas e frágeis.

Ninguém queria ouvir canções sobre dias ordinários. As músicas


eram entoadas pelos lábios ressecados de marujos, e capitães
falavam de vitórias conquistadas ao preço do ferro e do sangue.
Tesouros fartos capazes de cobrir com ouro as dunas do deserto por
milhas, e retratos desenhados com tamanha perfeição que se
movimentavam ao se deparar com sua origem, tal como o reflexo
em um espelho.
Assim, Pryia e Jasmine sopraram nos ouvidos de marujos
desacompanhados e de prostitutas curiosas os contos sobre o baú
do Tesouro do Povo Submerso e sobre uma bela jovem que era a
única a conhecer seu código escondido e que sabia se orientar
pelas constelações ocultas até do navegante mais experiente.

Deixaram as notícias correrem pelas ruas movimentadas de


Realmar, assim como a noite crescia e finalmente clamava seu lugar
de direito nos céus.

A lua cheia observou o marquês destitulado arregalar os olhos ao


ouvir os rumores pela voz de homens e de mulheres, mesmo que
repetidos por línguas enroladas, seja pelo álcool, seja pela luxúria
da pessoa ao seu lado. As palavras soltas chegaram aos seus
ouvidos como um quebra-cabeça simples de montar, apesar de
inacreditável.

Leonardo sabia que só existia uma pessoa no mundo capaz de


decifrar o mapa que possuía. As coordenadas para o tesouro que
lhe faria soberano da terra e do mar.

Por três anos, o capitão se arrependeu por ter dispensado sua


imediata. Feriu seu orgulho confessar à sua tripulação que o
poderoso Leonardo North não conseguia decifrar um mero mapa,
mas não revelou a nenhum marujo que havia descartado a única
pessoa capaz de conhecer seu código. A jovem que sabia tanto
sobre o mar.

Em sua arrogância, ele acreditou que já tinha tirado tudo que ela
poderia oferecer. No fundo, ele temia que seu conhecimento
possuísse força o bastante para sobrepujar seu mérito, mas lhe
doeu partir sem olhar para trás há pouco mais de três anos. Pryia
North era uma pirata excelente e uma companhia deliciosa na cama.

Uma pena que sabia demais para o seu próprio bem.

Antes de içar suas velas, Leonardo North certificou-se de que o


mapa estava no bolso de seu longo casaco azul-marinho. Pagou um
saco de ouro em um prostíbulo por sua moça mais bela e, tendo
tudo que precisava para partir, sorriu em direção à sua glória.

Ainda assim, alguma coisa não parecia encaixar. As coordenadas


que ele alcançou levaram a mergulhos infrutíferos.

Não encontrou nada além de destroços e da visível decepção de


sua tripulação. Mas se recusou a perder o respeito que conquistou
as duras batalhas. Os levou diretamente para pilhagens brilhantes,
transformando cidades fartas em vilas miseráveis. Os piratas
cobertos em seda e prata sorriam com seus dentes de ouro.

Ele ainda era um excelente capitão. Mas nunca seria o melhor.

Não sem ela. Essa fraqueza, o feria. Ele não admitiria o próprio erro
para si mesmo, mas isso não significava que não seria assombrado
a noite pelas suas decisões.

E pensando bem, ter Pryia ao seu lado estava longe de ser a pior
opção. Ele se lembrava de que seu beijo era como fruta fresca e
que ela podia ser esperta demais, a ponto de tirá-lo do sério…

Mas podia ser usada a seu favor. E, francamente, ele estava


cansado de pagar por uma companhia noturna. Ele gostava da
caça. Do desafio. E infelizmente qualquer escória vendia o próprio
corpo por algumas moedas.

Alguma parte do capitão ferveu ao pensar em finalmente ter o


tesouro em suas mãos. Como se seus desafios até então tivessem
sido atitudes paliativas.

Ele era um mestre das terras, mas não dos mares.

Sua presença opulenta cruzou os pedregulhos pobremente


iluminados de Realmar, observando as poças alaranjadas de luz
castadas pelos lampiões. Algumas janelas se fechavam ao perceber
seus passos se aproximando, e olhos curiosos o observavam por
entre as frestas. North era medo e inspiração. Realmar era
abençoada por ser sua cidade natal, portanto jamais foi alvo de sua
tirania, mas isso não queria dizer que seus moradores testariam sua
bondade.

Já era tarde e Leonardo precisou atravessar a cidade, mas


finalmente chegou às portas de Vinho Rubro, uma taverna
frequentada por aqueles dispostos a ostentar bebidas de qualidade
razoável. Ainda assim, longe de ser uma de suas preferências.

Com seu caminhar despreocupado, chegou até o balcão sem se


importar em sorrir para a atendente. Gesticulou para o que seria
uma pequena dose de sua bebida mais forte e, conforme o álcool
barato cortou sua garganta, ele analisou as mesas em volta, até
encontrar um rosto adorável e familiar.

Ele estava sendo tolo. Definitivamente, Pryia teria todo o direito de


chamá-lo de idiota agora.

Jim não deveria estar buscando conselhos de vida nos livros de


poesia de sua irmã mais nova. Havia lido uma passagem que dizia
que, se você pensa em alguém logo antes de dormir e no momento

que acorda, está apaixonado. Claro, o livro sabia mais do que ele.

Todos sabiam.

Seu pai estava ocupado demais com a honra de receber dois


enviados da República de Nanrac em seu escritório a fim de
conhecer seus avanços científicos. Reuniões que duravam horas
intermináveis, simplesmente porque seu pai insistia em interrompê-
lo a cada frase, acrescentando detalhes inúteis. Por mais que
Hector conhecesse a dinâmica daquelas máquinas melhor que
ninguém. Já trabalhava na teoria de transformar raios em energia
desde que começou a pegar nos livros.
Sua amável mãe tinha seus olhos verdes repletos de empolgação
ao alinhar cada detalhe para o baile que anunciaria seu noivado. E
após a perda de um filho… Jim apenas aceitava o amor em dobro
que ela oferecia. Mesmo que essa festa, esse casamento, fosse a
última coisa que quisesse, ele ainda estava fazendo tudo isso para
que sua mãe estivesse feliz.

Então o marquês sorriu quando deveria sorrir, se calou quando era


interrompido e repetiu apenas aquilo que seria esperado de um
homem na sua posição, prestes a ascender ao título de toda uma
dinastia.

– Os Cerulius são o futuro do reino! – bradava seu pai a cada


oportunidade. Na opinião de Jim, ele criava tais oportunidades ou
usava todas as deixas cabíveis.

Ao menos ele tinha um orgulho descarado do filho mais novo. E

isso era necessário, já que o primogênito era declaradamente o rei


da pirataria. Um escândalo que levou anos para ser apagado,
graças à sorte de o Duque ter filhas demais e pelo fato de que os
solteiros elegíveis no reino eram escassos.

Jim arremessou o pequeno livro de sonetos no chão, apenas para


pegá-lo de volta em seguida e colocá-lo com toda delicadeza em
cima da mesa de centro, temendo a repreensão de Cecília. Sua
irmãzinha de doze anos parecia ser mais sábia do que ele certas
vezes, mas sem dúvida estava lendo toda sorte de inutilidades.

Afinal, se o livreto estivesse correto, ele estava apaixonado por


Pryia.

Pryia, a mulher mais linda que ele já vira e que ele teve o prazer de,
por um instante, morar nos seus lábios e curvas, apenas para ser
atormentado com o vazio da lembrança pelo resto de seus dias.

Talvez fosse melhor não saber.


Talvez.

Mas agora ele sabia, e tudo que lhe restava era a saudade que tinha
de sua risada ecoando pelos cantos, das músicas que ele mesmo
passou a repetir e do sorriso que fazia o sol nascer.

Ele precisaria esperar só mais um pouco para que ela entrasse em


contato, assim que localizasse o paradeiro de Leonardo North.

Ele quase invejava o maldito irmão pelo sobrenome, que significava


propósito e liberdade, enquanto Cerulius significava um destino de
servidão.

Mas ele ansiava pelo momento que poderia vê-la de novo. Só para
ter certeza de que ela não era tão perfeita na realidade quanto em
sua memória. Quem poderia ser?

Mas ele sabia que estava errado. Ela provavelmente seria ainda
mais maravilhosa.

Acomodado na poltrona da biblioteca, ele adormeceu com o brilho


do sorriso dele em mente. E, como esperado, sonhou com os anjos.

Que ninguém o acordasse.

12

Época de caça

Ela não imaginava que vê-lo traria uma sensação tão familiar, e uma
estranha nostalgia congelou seus ossos.

Saudade.

Não de Leonardo, mas de quem ela era antes de sua traição.

Da leveza e da esperança que a acompanhava. Da certeza de que


tudo ficaria bem, afinal tudo estava tão bem.
A pirata percebeu que sentia saudades dela mesma. E uma raiva
súbita tomou conta de seu sangue ao perceber o tanto que havia
deixado de ser, graças ao belo homem maldito à sua frente.

Seus traços eram delineados assim como os de um príncipe: o


queixo quadrado, os olhos grandes e penetrantes, o sorriso
malicioso. Tudo em Leonardo era predatório. Do tipo que destrói e
descarta às traças. Sua barba estava muito mais longa do que se
lembrava, chegando até a base de seu pescoço, e seus cabelos
soltos em longos dread locks castanhos tornavam quase impossível
acreditar que ele possuía sangue nobre.

Pryia fitou cada um dos detalhes que um dia despertou seu desejo e
entendeu totalmente por que havia caído em sua lábia.

Mas, agora, ela era tomada por um desejo ainda mais poderoso que
a luxúria ou a esperança: vingança.

A pirata não desviou os olhos quando Leonardo caminhou


preguiçosamente até sua mesa, roubando descaradamente os
olhares a sua volta conforme seus ombros largos movimentavam o
longo casaco que esvoaçava atrás dele.

Claramente ele não tinha o mesmo zelo pela aparência que seu
irmão, mas tinha o mesmo apreço por badulaques que as sereias.

De fato, ele era inegavelmente atraente. Se ao menos soubesse


saciar uma dama tanto quanto pensava...

Pryia perdoou a garota que ela fora no passado, pois entendi por
que ela acreditou naquele canalha, portanto não sentiu raiva de si
por ter acreditado nele. Acreditar não era uma sensação tão ruim,
era definitivamente melhor do que os sentimentos dos últimos anos:
solidão e desesperança.

Sim, ela havia se perdoado. E agora estava prestes a vingar sua


versão mais jovem e ingênua. Afinal, Leonardo – canalha –
North, claramente não havia mudado nada, enquanto a pirata...

agora ela era uma falsificadora de mapas. E uma enviada oficial de


Nanrac.

O sorriso de Pryia iluminou o ambiente. Jasmine, que conhecia


absolutamente todas as possíveis interações possíveis em uma
taverna, levantou-se com sua taça, cambaleando em direção a
cozinha, certamente em busca da formosa atendente.

Capitão North puxou a cadeira recém vazia, sem disparar uma


palavra ou esperar por um convite, e esticou o braço por trás da
pirata. Pryia cerrou os lábios sensuais e virou a cabeça lentamente
antes de apoiá-la preguiçosamente em uma das mãos.

O sorriso dele apenas aumentou. Que bom, ele ainda a


subestimava, mas ainda queria a adrenalina da caçada. E, por ela,
tudo bem fingir que era a presa por alguns instantes.

Seria tão mais divertida a sua queda.

Ela daria a Leonardo toda a corda que quisesse. Apenas para


enforcá-lo depois.

Ele não imaginava que vê-la traria de volta o sabor de antigas


vitórias e promessas douradas. Não imaginava que algo dentro dele
gritaria em seu peito com urgência para recuperá-la. Pryia era sua
imediata, sua bússola, sua chave para o tesouro que tanto cobiçava.

Ela era seu futuro. Um presente enviado diretamente pela Deusa do


Caos. Leonardo estava acostumado com a própria sorte e sorriu,
como se agradecesse diretamente a Eris.

O rosto dela estava ainda mais belo agora que seus cabelos
estavam mais curtos, e sardas adoráveis adornavam seu pequeno
nariz, como pistas que seguiam até seus ombros. O capitão não
gostava de revisitar antigos affairs, mas poderia abrir uma exceção
para a bela pirata, que o encarava tão docemente.

– Olhe só o que eu encontrei – declarou com sua voz ronronante,


analisando cada traço do seu rosto como se avaliasse uma
pilhagem de alto valor.

– Talvez eu quisesse ser encontrada, Leo. – Pryia precisou forçar


sua entoação para soar mais meiga, seguida de um sorriso capaz
de fazer qualquer um concordar com o que dizia. Ela ficaria enjoada
de se prestar a esse papel, mas não veio de tão longe para falhar
logo ali. Capitão North estava acostumado a ser temido e venerado,
portanto não suspeitaria de alguém que inflasse sua vaidade até os
céus.

– Encontrada por mim, Pryia?

– Claro. – A pirata endireitou a postura na cadeira, mantendo seu


olhar cravado no dele. – Temos alguns assuntos inacabados.

– Senti falta de como você sempre vai direto ao ponto. – E era


verdade. Leonardo não suportava conversas infrutíferas que só o
faziam perder tempo.

– Senti falta do meu mapa. – Ela não conseguiu segurar o desafio,


mas seria ainda mais suspeito se não tocasse no assunto.

Ela deveria parecer dócil, não imbecil. Percebendo a hesitação


correr pelo rosto de Leonardo, ela arrastou suavemente seus dedos
até a mão dele. – E de… outras coisas.

Ela odiou o toque. Odiou a familiaridade com a qual reconhecia o


calor da sua pele, as lembranças de quando eles se tocaram, a
rigidez de seus movimentos mesmo em um gesto tão simples. Seus
olhos correram da mesa para o rosto do capitão, e um olhar
penetrante começava a devorá-la por inteiro. Por Eris, ainda bem
que ela não havia bebido demais, senão vomitaria ali mesmo.
– Vamos a um lugar mais calmo – ele disse. – Tenho certeza de que
seu mapa está em algum lugar por aqui.

Ele correu o nó de seus dedos por seu rosto, o olhar infestado de


planos, ganância e frieza.

Pryia levantou-se graciosamente, buscou algumas moedas de cobre


em sua bolsa e as colocou em cima da mesa. Leonardo interrompeu
o movimento de sua mão, jogando uma larga moeda de ouro dentro
de uma das taças, e a envolveu pela cintura enquanto caminhavam
em direção à porta da taverna.

– Da próxima vez, podemos ir à uma espelunca um pouco melhor,


minha querida.

Querida. A palavra fez a própria alma de Pryia arder. O eco das


memórias, de quando ela entendia que esse era um termo de
carinho quando, na verdade, era apenas uma distração. Pryia já
havia enganado piratas, sereias e até mesmo uma república inteira,
mas esse sem dúvidas era o papel mais desafiador que já havia
assumido.

A placa do estabelecimento era parcialmente iluminada pelas


chamas dos postes, o suficiente para enxergar mas não para
reconhecer, enquanto o mundo se misturava em álcool, sombras e
fogo.

Até as estrelas prenderam o fôlego quando o marquês sem título


encostou a pirata contra a fria parede de pedra e roubou um beijo de
seus lábios, fazendo a pirata questionar se, de fato, a vingança seria
doce.

Mas ela era uma excelente mentirosa. E tomou dele a única coisa
que Leonardo North poderia oferecer: prazer egoísta.

Afinal, o segredo das mentiras é ser capaz de acreditar nelas.

13
Nem tão complicado assim

Pryia permitiu por alguns instantes que o prazer amargo nublasse


seus pensamentos. Não importava o quanto Leonardo fosse
habilidoso com suas mãos ao explorar as curvas do seu corpo,
reivindicando cada parte como se fosse dele, seu beijo tinha sabor
de decisões precipitadas, memórias clandestinas e arrependimento.

A pirata sabia que, ao se despir, todas as suas promessas


permaneciam no imaginário. Ainda assim, Pryia colou seu corpo ao
dele, sentindo cada volta de seus músculos, enquanto suas línguas
ferozmente exploravam cada canto de suas bocas. Não importava
quem ele era, ela repetiu para si mesma.

"Amanhã de manhã, ele vai perceber que não era ele quem tinha as
rédeas nas mãos, e eu vou estar rindo gloriosamente de sua
arrogância a milhas de distância."

Então, a pirata se entregou ao seu toque, seus dedos habilmente


explorando o interior do seu casaco e passando pelos bolsos de
suas calças, enquanto Leonardo levantava lentamente suas saias.

– Achei que tinha dito que iríamos para uma espelunca melhor do
que essa – ela ronronou sensualmente.

– Você está certa, mas acho que senti tanta sua falta que não
consigo esperar.

Sempre foi assim com ele. O seu desejo não possuía hora marcada
ou barreiras. Muitas vezes ele a despertava para cumprir seus
caprichos. Ela acreditou na época que era um gesto de paixão, mas
após perceber que a tal paixão encontrava outros portos que não o
dela, a pirata passou a impor suas próprias vontades.

Começou a pensar no que Jasmine havia lhe dito há tanto tempo –


que o prazer dela era tão relevante quanto de qualquer outro
parceiro. Pryia tentava não se importar com as outras companhias
femininas ou masculinas que Leonardo levava até a sua cabine. Ela
mesma começou a procurar entretenimento entre a tripulação. Foi aí
que as coisas ficaram... Difíceis.

A pirata havia entendido que o sentimento de posse por um corpo


não importava – não quando havia um horizonte infinito com
incontáveis promessas de tesouros e glória adiante. Porém logo ela
aprendeu que, assim como cada vela, corda e tábua do navio, ela
também deveria pertencer somente ao capitão Leonardo North. Ela
deveria aceitar suas ordens sem questioná-las, para manter sua
posição como imediata.

Não deveria ser assim, e no fundo ela sabia disso. Mas a Rosa dos
Ventos era mais do que o navio de Leonardo: era a única casa que
ela tinha após seu pai falecer. Curioso como ela descobriu,
conforme os anos se passaram, que um lar se parece muito mais
com um abraço do que com lugar.

Contemplando seus pensamentos, a pirata respondeu:

– Uma enviada de Nanrac não se entrega simplesmente no meio da


rua, na porta de uma taverna qualquer. — E antes de tomar
coragem para selar mais um beijo naqueles malditos lábios, Pryia
acariciou sua barba em um claro desafio: Eu quero que você me
impressione.

Capitão North queria exatamente isso. A adrenalina da competição,


a incerteza da conquista. E agora, Pryia não era mais sua
subordinada. Ela havia conquistado uma das maiores honrarias dos
sete mares. Ele a invejava, por isso desejava possuí-la.

Leonardo pensava que estava destinado a ter a força dos mares


abençoada pela energia do caos assim que encontrasse o estimado
baú. Ele teria acesso à misteriosa República de Nanrac e faria todos
os Cerulius se arrependerem por tê-lo deserdado. Mas antes, ele a
teria. O capitão já havia se deitado com companhias muito menos
atraentes em troca de recompensas pueris. Pryia era um inusitado
suspiro de alívio. Ao menos para uma noite, ela deveria servir.
Afinal, agora que ela estava em seus braços, e ele percebeu que
sentira falta dela. De como ela o fazia se sentir.

A pirata estava prestes a lhe entregar absolutamente tudo pelo que


ele batalhou tanto para conquistar. Ela ainda mantinha o mesmo
olhar inocente, o mesmo toque suave, o mesmo corpo curvilíneo
que fazia suas mãos deslizarem.

Ela merecia ser impressionada. Por tudo que ela iria fornecer a ele,
Pryia merecia uma noite com o absoluto melhor. Ele prometeu a si
mesmo que iria demorar o tempo que fosse preciso com ela, até que
as paredes ecoassem quando ela gritasse seu nome.

Como o lorde que havia sido criado, ele se afastou levemente e fez
uma pequena mesura, enquanto seu olhar predatório mirava os
lábios da bela pirata.

Pryia passou a mão pelo peito dele, fingindo timidez ao ajeitar seu
casaco, e finalmente sentiu o formato longo, cilíndrico e firme no
interior do bolso. Ela sorriu, e ele imaginou que era graças à sua
presença imponente. Ela deixou que ele pensasse assim. Afinal,
Leonardo não havia mudado nada.

A pirata quase sentiu vontade de lhe agradecer por tornar seu


trabalho um pouco fácil demais. Leonardo lambeu a língua da jovem
mais uma vez e beliscou levemente um de seus seios, enquanto a
envolvia e direcionava pelas ruas de Realmar, em direção ao melhor
aposento que tinha acesso. Não era todo dia que ele tinha o
privilégio de cortejar uma enviada da república. Ah, se o marquês
Cerulius soubesse que Leonardo podia ser um mestre das
negociações... Uma vez que elas acontecessem entre quatro
paredes.

14

Elixir venenoso
O frio das ruas de pedras passava até mesmo pelas grossas botas
de couro de Pryia. Ou talvez fosse o gelo que crescia no seu espírito
pela armadilha em que acabara de se meter. Ela era ao mesmo
tempo a protagonista e a vítima. E se tudo ocorresse como o
planejado, uma heroína.

A pirata sabia que a única forma de tornar Leonardo vulnerável,


incapaz de convocar a matilha que chamava de tripulação, era levá-
lo para a cama. Conforme andavam rapidamente lado a lado, o peso
da mão dele na cintura dela transferia um calor que não fazia nada
para acalmá-la. Ela sempre sentia uma gloriosa satisfação enquanto
manipulava os outros, mas fingir que estava sendo manipulada a
enojava.

Após tantos anos longe da grande cidade de Realmar, a pirata


observou algumas mudanças no ambiente: as ruas eram mais
iluminadas, com postes altos esculpidos em pedra que tinham
gravados no topo algumas letras que ela não conseguia decifrar. Ao
longe, o som de corujas, morcegos e outros seres da noite a fazia
se perguntar onde estaria Olive. Ela ainda precisava encontrar a
amiga antes de partir definitivamente daquele lugar.

A pirata fez o possível para reconhecer as ruas pelas quais


andavam, mas tinha poucas referências para se localizar. Nada
além do eco dos passos, das risadas bêbadas entre promessas
falsas e de Leonardo cantarolando entre os lábios uma velha
canção do mar. Se ela não estava enganada, eles estavam no bairro
de Vertitas. Nunca havia pisado naquelas ruas, mas sentiu que a
linha imaginária que separava os trabalhadores dos herdeiros era
grosseiramente pintada ali.

Inexplicavelmente, as avenidas e calçadas largas eram do mais


puro mármore branco. Não havia prédios, apenas casas com uma
fachada suntuosa, trabalhada em diversos tons de branco, cinza,
azul e verde. As portas entalhadas em madeira maciça eram
grandes o suficiente para receber uma família lado a lado sem
formar filas.
Seu coração ficou apertado. Em uma dessas casas, estaria Jim.

Lorde Hector. Não importava. Pensar que ele havia crescido tendo
aquele horizonte como cotidiano a fazia se perguntar por que ele
escolheria uma vida nos mares ao seu lado.

Ela sabia que isso era apenas um pensamento que surgia em sua
mente como a mais doce forma de tortura. Ele não poderia jamais
ficar com ela, e ela não tinha nada a oferecer. Nada que jamais se
comparasse com o luxo opulento ao seu redor.

E ele estava prometido para a filha de um duque.

Provavelmente, um par de brincos da jovem deveria valer mais do


que absolutamente tudo que a pirata possuía. Ela soltou um riso de
escárnio ao pensar que tudo que possuía era um navio que
pretendia roubar, o mapa que clamaria por direito e a tal liberdade
que Jim falou que jamais conheceria. Uma palavra que podia ser
equiparada a solidão. Havia alguma diferença entre elas?

Não para a bela pirata. Não naquela maldita noite.

Não quando seu livre-arbítrio era usado para estar ali, ao lado de
Leonardo.

Ele, sim, desfrutava da tal liberdade enquanto planejava se tornar o


capitão mais poderoso do mundo. Para os quintos dos infernos que
Pryia permitiria isso.

Leonardo jurou que os lábios da pirata se repuxando para cima


eram um sinal de que ele havia conseguido impressioná-la, que ela
estava verdadeiramente deslumbrada com toda riqueza que ele lhe
proveria essa noite.

Apesar de sua residência em Realmar ser uma das menores do


bairro luxuoso, era exagerada demais para apenas uma pessoa.
Pryia identificou o número da casa – 896 – e tomou uma nota
mental para não esquecê-lo.

Ela teria que encontrar Jim e levá-lo até lá antes que Leonardo
acordasse. Mas não havia, entre as suntuosas ruas, nenhum garoto
de recados, nenhum bêbado procurando rumo, absolutamente
ninguém que pudesse encontrá-la ali.

Lembrando em manter a farsa, a pirata não hesitou ao subir os três


degraus de mármore negro e finalmente se encontrar em um lugar
que um dia abrigara seus sonhos, mas que agora se realizava como
o palco de um pesadelo.

– Sinta-se à vontade – foi tudo que Leonardo disse ao desprender a


mão forte de sua cintura e começar a despi-la da bolsa que estava
pendurada no seu ombro.

Ele estava indo rápido demais. Já não era sua intenção primordial
beijá-lo, mas não era algo tão ruim assim que ela não pudesse
fechar os olhos e fingir que se tratava de um desconhecido
qualquer. Mas a ideia de ir novamente para cama com ele, de fingir
enaltecê-lo enquanto ele estava no ápice da sua masculinidade, era
demais para ela.

Rapidamente, Leonardo começou a desprender com dedos hábeis a


seda verde-esmeralda que formava o seu vestido. Ele era
impaciente e preciso demais, quase não dando tempo a ela para
reagir.

Pryia teria gargalhando com o fato de ele não ter mudado nada.

Mas esse tipo de situação teria graça apenas quando ela estivesse
contando essa história de um ponto de vista triunfante para
Jasmine. No momento em que estava vivendo, o desespero
crescente começou a subir por seu peito.
A pirata afastou as mãos de Leonardo com firmeza, encarando-o
fixamente nos olhos, em um pedido silencioso para que ele a
deixasse assumir o controle. Ela sabia que o Leonardo gostava
desse tipo de jogo. Desejava não ter esse conhecimento, mas
usaria absolutamente tudo a sua disposição. Ele gostava de sentir
que estava sendo idolatrado. Afinal, ele tinha certeza de que

merecia nada menos do que isso. Pryia não ousou mencionar seu
navio, o mapa ou a traição. Quanto mais o foco dele estivesse em
seus lábios e na promessa do que faria com eles, menos pensaria
na relíquia que carregava em seu bolso.

Pryia apoiou suas mãos no peito musculoso de Leonardo, deixando


seus dedos traçarem os longos dreads e tocando todos os pontos
que ela recordava serem prazerosos quando estava em suas mãos.
Reunindo sua coragem e ousadia, a pirata subiu na ponta dos pés e
sugou mais um beijo dos seus lábios repletos de rum e promessas
falsas. Desceu as mãos pelos seus ombros por dentro da camisa,
fazendo o maldito casaco finalmente cair no chão como uma poça.
Agora ela precisava atrair o dono desgraçado para longe dele.

– Leo... – O apelido era amargo em sua língua, mas sua voz a fez
parecer uma abelha banhada em néctar.

– Senti saudade de você chamando meu nome – foi sua única


resposta. Uma verdade egoísta, a prova de que a honestidade não
era uma virtude tão honrável.

– E não haveria um outro lugar que pudesse chama-lo? – Seria


impossível dizer não para ela, mesmo que ele quisesse. – Algum
lugar mais... confortável.

Ele sorriu, exibindo um dente de ouro que só agora se tornou visível


no ambiente mais iluminado, e fez um gesto exagerado com a mão,
como se lembrasse de algo óbvio.

– Claro que tem, onde estão meus modos? – Ele firmou mais um
beijo no seu pescoço, agora buscando apertar seu seio antes que
ela interrompesse o movimento. – É difícil me controlar com você,
havia me esquecido disso. – Ela não esqueceu.

Especialmente as vezes em que ela estava adormecida e ele


plenamente disposto. – O quarto é por aqui.

Pryia subiu as escadas ao lado dele, procurando por qualquer objeto


que pudesse usar para desacordá-lo. Ele era um guerreiro hábil,
saberia antecipar uma ameaça. Em termos de força, ela não
venceria uma luta desarmada.

Estar ao lado dele lhe despertava um prazer com sabor de remorso.


Ele sabia estimulá-la, mas agora Pryia o odiava, e a última

coisa que queria era a familiaridade de seus braços.

Não. A última coisa que ela queria era lhe propor o alívio que vinha
junto de uma onda de prazer. Mas a ideia de interromper essa
sensação, jamais deixá-lo atingir o clímax, lhe dava energia para
seguir em frente com a sua atuação. Seu mapa agora estava jogado
no chão da sala vazia. Ela só precisava desacordá-lo e, de alguma
forma, encontrar Jim naquele bairro. Ele não estaria longe.

Apenas um breve pensamento de seu sorriso fácil e de seu toque


que verdadeiramente lhe davam a sensação de lar a fez se sentir
uma pessoa horrível. Mesmo que ela não merece se sentir assim.
Eles não tinham nada além de um acordo, e ele estava prestes a se
casar com alguma garota insuportável metida a princesa. Jim iria
muito mais longe com sua duquesa do que a pirata com Leonardo, e
uma garota não deve se desculpar pelas coisas que precisa fazer
para sobreviver. Acreditando em mais essa mentira, a pirata deu um
passo em direção ao quarto de Leonardo North.

Ela fez menção de falar, mas ele colocou o indicador sobre sua
boca.

– Eu sei que temos alguns negócios inacabados, mas podemos


começar por esse aqui. – E sem esperar, novamente curvou a
cabeça para beijá-la, como se estivesse impaciente. Como se
tivesse esse direito.

Claro, Leonardo North podia fazer qualquer coisa a qualquer hora.


Bastardo, cretino, mimado miserável!

Dessa vez, foi ela que o interrompeu com a mão em seus lábios,
desejando que o movimento fosse um soco.

– Na verdade, eu só queria um lugar onde pudesse me refrescar.

– Adoro que você faz questão de estar sempre cheirosa para mim.
Tem uma câmara de banho no corredor.

A pirata repuxou os lábios para cima forçadamente e saiu pela


porta. Ela fazia questão de estar sempre cheirosa, mas para ela
mesma, não para os outros. Aliás, Leonardo podia pegar esse
hábito – ela pensou enquanto descia silenciosamente as escadas.

Não poderia demorar muito. Logo avistou sua bolsa e o casaco


largados no chão, como se um ato muito apaixonado estivesse
prestes a acontecer. A troca precisava ser rápida, mas Pryia não
havia iniciado um boato sobre ela mesma do próprio fim do mundo
se não fosse uma excelente falsificadora de mapas.

Enquanto Jasmine dormia, Pryia fez duas cópias. Uma para o


miserável que esperava sedento pelo seu corpo no andar de cima e
outra para Alex e Dave, os manés enviados da república que nada
mais eram do que espiões de luxo, parasitando algo que não lhes
pertencia.

O mapa era dela.

Então ela trocou o seu desenho de dentro da bolsa pelo desenho


que ele carregava no bolso do seu casaco e voltou para o quarto
rapidamente. Entretanto, assim que entrou no cômodo, encontrou
seu arqui-inimigo pronto para ela. O queixo dela caiu não por
admiração, mas pela ousadia.
Sua calça estava despojada no chão, e ela agradeceu por ele ter
mantido suas meias nos pés. Seus músculos mostravam que ele
comandava o Rosa dos Ventos sem camisa, pois parecia que o sol
havia tocado em todas as partes do seu corpo, exceto…

A pirata corou.

Precisaria ser rápida para desacordá-lo. Não desejava mais o seu


toque e agora não poderia suportá-lo. Já havia encontrado o seu
limite na atuação naquele momento e, antes que ele pudesse se
levantar e ir até ela, Pryia começou a desamarrar o seu vestido
enquanto o compelia:

– Eu quero que você assista. – Era mais uma mentira, mas deixar
que ele apreciasse cada curva de seu corpo era muito melhor do
que permitir que ele a tocasse mais uma vez.

Em movimentos lânguidos e circulares do seu quadril, a pirata fez o


melhor para mostrar relances das pernas, dos braços e do colo,
apenas o suficiente para deixá-lo curioso, mas não apressado.

E Leonardo, como gostava de apreciar um bom espetáculo, analisou


cada um dos seus lentos movimentos enquanto estimulava a si
mesmo.

– Saindo desse quarto, depois que as paredes tremerem, nós


teremos o mundo na palma das mãos.

Ah, quantas vezes ela já havia ouvido esse discurso em uma


situação semelhante…

– Mas antes, eu terei você na palma das mãos. – Pryia passou um


dos dedos pelo pescoço do capitão, dizendo a verdade pela primeira
vez. Não que ele tivesse percebido o que realmente desejava com
essa declaração.

A pirata apoiou o joelho entre as pernas dele, avaliando o que ele


podia oferecer a ela: prazeres ilusórios, sonhos quebrados e
arrependimentos.

– Foi um erro te deixar para trás. Nunca mais farei isso, você sabe
disso, não sabe, Pryia? – As promessas vazias e os olhos repleto de
luxúria já a haviam feito flutuar. Não mais.

Em resposta, ela ajoelhou na sua frente. E o sorriso de Leonardo


nunca foi tão largo e satisfeito. Ele teria tudo, começando por ela.

– Feche os olhos – ela pediu com tamanha malícia no olhar que,


mesmo adorando assistir a tudo que ela estava fazendo, ele
atendeu seu pedido.

Leonardo interpretava tudo de acordo com os próprios interesses.


Jamais saberia ler o mapa que levava ao Tesouro do Povo
Submerso, pois não era capaz de ler as entrelinhas. Não era capaz
de lembrar que sua imediata havia conquistado esse cargo
justamente por manipular todos ao seu redor. Ela só não o
manipulava, porque era tola e inocente o suficiente para se importar
com ele. Para acreditar que ela era especial para ele.

Nada era especial para Leonardo North além de si próprio. E

acreditando que era digno de ser tratado como um Deus, ele não
hesitou em fingir que era um, prestes receber o prazer de sua boca.

E assim que ele fechou os olhos, o sorriso da pirata foi sincero.

O toque hesitante de Pryia se fechou em um punho que


assertivamente atingiu Leonardo bem no meio das pernas,
arrancando um grito desesperado e furioso. Mas ele não poderia se
mexer – não por alguns instantes.

Todo o interesse que ele sentia por ela, toda a boa vontade que
tinha em cobri-la de prazer por essa noite, automaticamente se
transformou em ódio. Aproveitando a oportunidade, Pryia deu uma
cotovelada em sua têmpora, rezando para que ele caísse
desacordado com a dupla de golpes.
Ela não teve tempo para verificar, apenas pegou o seu cinto que
estava jogado no chão e correu pela porta sem encontrar a tranca.
Pegou sua bolsa e disparou pela porta principal, levando a chave e
a trancando por fora.

Leonardo não sabia da sua relação com Jim, portanto não teria
como saber que ela buscaria por ele. Felizmente, o canalha havia
morava perto bastante para que ela corresse a pé e chegasse na
casa do marquês em poucos minutos. Ela se perdeu pelas ruas,
conferindo a numeração e os pontos de referência muitas vezes,
perdendo minutos preciosos para que Jim conseguisse chegar na
casa do de seu irmão encontrá-lo em estado vulnerável.

Mas deveria ser aquela a mansão correta: uma suntuosa residência


de portas e paredes claras, amareladas pelos postes da rua. Já era
tarde, e, ao contrário de Leonardo, Jim tinha uma família.

A madrugada ia alta e o sol em pouco tempo romperia o horizonte.

Deveria haver criados por toda parte, e alguém deveria estar


acordado.

Ela bateu selvagemente na porta, ignorando os modos que deveria


ter. Não gostaria de passar a impressão de que era apenas uma
pirata louca e malcriada para família dos irmãos. Ela não sabia por
que se importava, mas ela não ficava confortável com a ideia de não
ser bem-vista pela família de Jim. Ainda assim, ela havia feito uma
promessa a ele e estava ali para cumprir a sua parte.

Após alguns instantes, uma criada sonolenta abriu a porta,


claramente ainda vestindo seu camisola.

Era uma senhora de meia-idade com bochechas rosadas, que


analisou a pirata de cima a baixo e olhou com reprovação para os
seus lábios claramente inchados e seu vestido totalmente amassado
e desalinhado. Pryia parecia uma prostituta batendo na casa de um
lorde. Ótima primeira impressão.
– O que a... senhorita faz na residência Cerulius a essa hora?

– Eu preciso falar com lorde James. É urgente.

A criada nada fez para atender ao seu apelo e já começar a fechar a


porta na sua cara quando Pryia gritou:

– É sobre Leonardo! – era verdade. E foi o suficiente para prender a


atenção da senhora. Certamente ela havia sido sua babá, pela
forma que arregalou os olhos ao ouvir seu nome. – Ele está
morrendo e precisa ver seu irmão. Agora!

Era uma mentira. Em parte. Leonardo estaria prestes a morrer


apenas quando Jim o encontrasse. Pryia sentiu-se mal ao pensar
que provavelmente a senhora que abriu a porta tinha alguma
afeição por aquele canalha, assim como sua mãe. Devia ser muito
difícil amar alguém e perceber que a pessoa… não vale a pena.

Uma amante poderia curar um coração decepcionado, mas uma


mãe... Pryia sacudiu a cabeça, focando apenas na urgência da
situação.

Ela precisava explicar o que tinha acontecido com Leonardo, porque


Jim iria encontrá-lo totalmente nu no seu quarto. Precisaria fazer
entender seus motivos para que não pensasse mal dela. Ela não
sabia por que, mas isso era mais importante do que sua vingança.

Todas as palavras desapareceram quando o marquês apareceu à


sua frente, os cabelos castanhos soltos e ondulados caindo um
pouco abaixo do seu ombro, o cavanhaque perfeitamente aparado,
a camisa aberta com botões de madrepérola perfeitos e o seu
aroma de mar, eucalipto e saudade.

***

Jim não esperava vê-la ali naquele estado, mas quantas vezes na
vida poderia dizer que estava no meio de um sonho e acordou para
vê-lo ser realizado?
Exceto que dessa vez era a realidade. O marquês começou a correr
assim que Pryia lhe jogou a chave e disse o número com urgência,
frisando a cor dos degraus na fachada e que Leonardo o aguardava
no segundo andar.

Ele não teve tempo de ouvi-la explicar as outras informações,


enquanto ordenava que Magda a acolhesse como sua convidada
pessoal. O sol nascia conforme seus passos ecoavam pelas ruas.

Vingança finalmente estava a caminho.

15

Dívidas antigas

Vertitas estava fadado a despertar mais cedo, e o sol amanheceria


com a aurora banhada em sangue. Ao menos era isso que Jim
pretendia, enquanto corria pelas largas ruas de pedra, pensando em
colocar as mãos no homem que desgraçou sua família. O homem
que, em algum momento da vida, ele teve o desprazer de chamar
de irmão. Leonardo nunca entendera o significado dessa palavra e
certamente jamais a honrara.

Leonardo não merecia ter nascido em berço de ouro, com uma mãe
amorosa ou o prospecto de um futuro brilhante que fora desenhado
por seu pai. Sendo totalmente honesto consigo mesmo, Jim também
não se sentia merecedor da última parte, mas se sua sina havia sido
traçada graças à escolha de um inconsequente, então agora o
desgraçado arcaria o preço com sua liberdade.

Jim não sentiu remorso em seu peito, conforme avistou o número


896 e as escadas de mármore negro descritas por Pryia.

Com os dedos estranhamente firmes, ele enfiou a chave na


fechadura, mas não disparou um sorriso de satisfação quando ouviu
um clique abrindo a porta. Ainda não.
James era um homem honrado – o que não era uma conquista
difícil, considerando que cresceu com Leo ao seu lado –, mas
estava longe de ser um santo. Ele reconhecia os sinais desastrosos
do que apenas uma cena guiada pela luxúria era capaz de provocar
em uma sala de estar. Ele não teve tempo (na realidade, não teve
coragem) o bastante para pensar qual método Pryia havia utilizado
para emboscar seu irmão. E com a certeza silenciosa do que iria
encontrar, o marquês subiu as escadas o mais rápido que pôde.

Talvez a cadeira estivesse fora do lugar porque Leonardo era um


desordeiro. Talvez o tapete estivesse com a ponta virada para cima
porque Pryia tropeçou, entrando ou saindo da residência.

Talvez seu casaco estivesse jogado no chão porque... tinha algum


bom motivo para isso.

Talvez não.

E a confirmação de seus pesadelos dançou diante de seus olhos ao


ver seu irmão sentado na cama com sua virilidade exposta e
murcha. Seu rosto era o semblante da dor, revanche e péssimas
notícias.

– Magda, pelo amor de todos os deuses, nada disso é necessário –


insistiu Pryia pela terceira vez, enquanto a senhora anotava as
medidas de sua cintura, quadril e busto com uma fita métrica.

– Se Jimmy disse que era para cuidar de você, ele não pode voltar
para encontrar a... senhorita nesse estado.

– O que tem de errado com o meu estado, Madga? –

Absolutamente tudo estava errado no estado de Pryia. O rasgo no


tecido agora estava evidente, pregas amassadas se formavam em
partes dissonantes e seu cabelo estava desalinhado. Até mesmo
seu perfume havia mudado, misturado com álcool e saliva.
– Olhe, dona...

– Pryia – a falta de sobrenome era como uma farpa.

– Dona Pryia, eu não estou aqui para questionar as escolhas dos


senhores da casa. Mas nenhuma convidada dos Cerulius ficará aos
meus cuidados em trajes tão… lascivos.

– Você quis dizer extravagantes. – A pirata provocativamente exibia


o belo tom de esmeralda da seda exótica.

– Eu quis dizer sem vergonha. – Magda farejou o ar a sua volta.

– E você fede a álcool, menina! Qual é a sua relação com os


meninos, afinal?

– Meninos? Você já viu o tamanho da...

Magda prendeu a respiração e seus olhos arregalados preencheram


seu rosto.

– ...barba – Pryia enfatizou– daqueles meninos? Ou por acaso a


governanta dos Cerulius parou no tempo?

– Depois que você troca os cueiros de um bebê, dificilmente ele


passa a ser algo além de uma criança para você.

Pryia começou a fazer uma careta diante da imagem mental pintada


pela criada, mas percebendo sua sensação nostálgica, manteve o
rosto neutro. A pirata mais do que ninguém entendia o que era sentir
falta de um tempo em que a inocência prevalecia, quando as nuvens
tinham sabor de açúcar e sonhos. Mas a realidade era fel e
tempestades, e ela não traria mais um raio para a velha senhora.

– Eu respeito isso, Magda – a jovem não precisou mentir.

– Que bom. Então deve também respeitar o teto da nobre residência


em que você está e tratar de tomar um banho para colocar vestes
apropriadas para uma dama.
– Não sou uma dama.

– Nem eu faço milagre – disparou. – Só quero que se pareça com


uma e não com...

– Uma profissional do prazer? – Pryia abriu um sorriso imenso ao


proferir tais palavras chocantes diante da criada.

– Olhe, menina, não estou julgando o que você faz ou deixa de fazer
para ganhar seu pão. Sei que a vida pode ser difícil para uma jovem
mocinha... – rebateu gentilmente enquanto apoiava a fita no balcão
da cozinha.

Jovem mocinha?

– Eu não estou no mercado do prazer, Magda – disse calmamente,


encarando os olhos da outra enquanto segurava suas mãos macias.

– Então quer dizer que não estava entrelaçada com Leozinho?

E que não é por isso que seus lábios estão inchados como ameixa
madura?

– Não foi o que eu disse. – A pirata se perguntou por que não


mentiu. Algo em Magda extraía a verdade dela.

– E o que você faz afinal, menina? – perguntou curiosa, enquanto


pegava algumas toalhas brancas de um armário de mogno.

– Falsifico mapas. – “Sério, Pryia? A verdade de novo?”, ela pensou.

– Pelos deuses! – O choque da velha governanta era real. – Há


salvação para você?

– Não. – Quando Pryia inúmeras vezes implorou por uma, ela não
veio. – Não há.

E compreendendo toda a história não contada sobre a bela moça


que estava à sua frente, Madga decidiu deixá-la.
– Começamos por um banho, então?

Como o desejo de lavar cada impressão digital de Leonardo de sua


pele pulsava como uma urticaria canibal, ela aceitou a oferta da
governanta e a acompanhou pela mansão.

Leonardo não teria se tornado o capitão mais temido e adorado dos


sete mares se não soubesse lidar bem com imprevistos. E se não
fosse um canalha completo. Parte dele sentiu pela primeira vez o
gosto da estupidez quando acordou sentindo o mundo latejar em dor
e desespero à sua volta. Pryia não o desejava, o que era novo.

E ele percebeu um ódio metálico crescente apontado na direção da


pirata.

Em momento algum ele pensou que merecia ter sido atingido em


seu ponto mais vulnerável e sensível. Não quando ele tinha
convicção que ela estava totalmente rendida aos seus encantos,
exalando saudade em cada um de seus movimentos.

Ele se sentou na cama, não se importando em se vestir – ainda não


conseguia mover as pernas, como se estivesse paralisado pelo
golpe. Definitivamente não foi assim que ele esperava sentir o
punho firme de Pryia. Contudo, o que ele jamais, em sonho algum,
imaginaria era que o seu pomposo e insosso irmão entrasse pela
porta do quarto.

James era o retrato rasgado de um passado que ele não sentia


falta. É verdade que havia encorpado, criando músculos para
preencher a manga das camisas, e não estava tão franzino quanto
há oito anos, na data da sua partida, além de a pele estar

bronzeada por uma provável exposição ao sol. Mas ainda mantinha


a barba ridiculamente aparada e era difícil encontrar um fio fora do
lugar em seu cabelo. Não havia a menor chance de eles serem
irmãos verdadeiros. O exemplo perfeito de opostos que não se
complementavam em absolutamente nada. Um caso digno de ser
estudado por Nanrac.

– Olá, irmãozinho – ele provocou, totalmente a vontade com sua


nudez parcial. – Se divertindo tomando meu lugar e meu futuro?

– Eu vim aqui para acabar com seu futuro – rosnou Jim.

– Sempre tão esquentado.

– Sempre tão presunçoso.

– Achei que você tinha vindo aqui porque finalmente se cansou das
ordens daquele velho.

– Ele é nosso pai. – Por mais que Jim odiasse a prospecção de se


tornar marquês Cerulius.

– Seu pai. – Leonardo apontou para Jim. Depois para si mesmo. –


Deserdado, lembra?

– Essa casa dificilmente parece pertencer alguém que nasceu às


margens da sociedade.

– Eu sou um bom pirata – se vangloriou, ajeitando os dreads.

Precisava ganhar tempo até conseguir se levantar.

– Você é péssimo em tudo. – Jim lhe jogou a calça que estava no


chão, e Leonardo a pegou ainda no ar.

O maldito abriu um sorriso satisfeito como se finalmente entendesse


o festival de coincidências para o qual havia sido convidado. O
sangue finalmente voltava a circular pelos lugares certos de seu
corpo, e o dente de ouro reluziu quando o dia orgulhosamente
começou a irradiar pelas janelas largas.

– Sua amiga parecia achar que eu era bastante bom em algumas


coisas.
– Cale a boca – Jim rebateu.

– Ah, foi um tiro no escuro! – Seu maldito sorriso se alargou em um


desafio. – Então você e Pryia são amigos. Já conseguiu levá-la para
cama também? Ouvi dizer que é bem fácil.

– Já disse para calar a boca, ela não tem nada a ver com isso.

– Mas a forma que os punhos do marquês fecharam na lateral do

corpo dizia o contrário. Não era como se Jim precisasse de mais


motivos para assassinar seu irmão.

– Na verdade, todos nos sete mares sabem disso, irmãozinho.

– Ele levou sua mão a boca, em um gesto cínico. – Você ainda não
conseguiu? – perguntou, fingindo espanto.

E Jim o odiou, porque o bastardo tinha razão. Ele não tinha


conseguido. Havia chegado minimamente perto disso no barco e
provado dos lábios mais inebriantes que poderia sonhar. Estava
atormentado com a lembrança que o impedia de respirar, de comer,
de viver. Tudo o que mais desejava era ouvir sua voz
descompromissada lhe convencendo de que ele era um idiota. Mas
se Pryia realmente esteve com Leonardo há poucos momentos...

Talvez ele fosse mesmo um idiota.

– O segredo, Jimmy, é assoprar no pé do ouvido dela enquanto...

– Cale.

–...você desliza sua mão da cintura...

– A.

–...subindo direto para o bico do...

– Porra.
–...peito dela e...

– Da.

– ...aperta como se virasse uma chave.

– ...boca.

– Eu te prometo que ela fica molhada na hora, a ponto de gemer


enquanto enfia na boca o seu p...

Leonardo estava saboreando cada fisgada de dor que contraía o


rosto do seu irmão, de tal forma que estava de olhos fechados
quando o soco de Jim o atingiu. Certeiro, inusitado e furioso. Mais
forte do que Leonardo esperava que ele pudesse ter se tornado. Se
North ficou abalado pelo golpe, não deixou que Jim percebesse,
revidando o gesto com oito anos de remorso e raiva guardados.

“O filho perfeito.”

Soco.

“Que sorte teriam os Cerulius se Leonardo fosse tão aplicado como


James.”

Soco.

“É importante manter uma aparência alinhada e impecável nos


eventos da sociedade.”

Soco. Para o inferno a porra da sociedade engomada.

Ele havia feito um favor para seu pai, mas o velho desgraçado não
foi homem o bastante para reconhecer que Leonardo estava dando
ao marquês o que ele mais queria: um herdeiro apto. Afinal, em que
família o segundo filho recebe o nome do pai? Era como se Leo
fosse descartado ainda no útero. O velho preferiu retirar todos os
títulos e bens do seu primogênito, pois não queria nenhum tipo de
conexão com a pirataria. Tarde demais, decrépito.
O supercílio de Jim manchava o lençol branco com sangue. Ele
deveria ter desmaiado com os golpes, mas Leonardo certamente
ainda não estava com sua força total. Assim que disparou o quarto
golpe, Jim desviou e prendeu o pescoço de Leonardo firmemente
com seu braço até deixar seu rosto roxo.

Leonardo começou a lutar por ar.

– Nunca mais fale de Pryia desse jeito. – Cada palavra era uma
pausa. – O nome dela não merece estar na sua boca.

– Ah... é? Então por que... o corpo dela... estava? – Leonardo


debochou com dificuldade.

A provocação tinha a intenção de fazer Jim vacilar. E

conseguiu. A imagem de Pryia e Leonardo trocando beijos apareceu


em sua mente como um pesadelo. Exceto que era real. Ele era um
grande idiota por ter percebido que estava apaixonado por ela.

Quem sabe se não tivesse descoberto teria se livrado da dor.

Agora mil agulhas estavam em seu coração, em um feitiço cruel e


imutável. Seu amor era impossível. Mas seu irmão era a última
pessoa que merecia tê-la nos braços.

O único beijo que ele deveria provar era o da própria morte.

Infelizmente, a brecha que Jim deu a Leonardo era tudo que ele
precisava para se soltar e inverter a situação.

Os dois caíram no chão e, dessa vez, era Jim que buscava respirar
enquanto Capitão North o sufocava com suas próprias mãos.

– Eu deveria te matar, sabe, irmãozinho? – Havia algo mórbido em


assassinar seu irmão mais novo, ainda mais mórbido do que
assassinar qualquer outra pessoa. Algo a ver com ter visto a pessoa
andar de cueiros, como Magda dizia.
Jim tentou afastar suas mãos tiranas, mas agora Leonardo usava
seu peso a seu favor, e o marques não conseguia se mexer.

Não podia. Morreria sentindo vergonha e ódio e sem jamais ter dito
as coisas que realmente importam para quem ele realmente queria
por perto.

Enquanto seu rosto ficava roxo e sua pele clamava pelo frio do
ceifador, Leonardo se perguntou se uma dose de misericórdia
alimentaria ou apaziguaria as energias do caos.

– Mas não vou – ele decidiu. – Mamãe não merece perder mais um
filho. – Que ele ainda a amava e sentia desesperadamente sua falta,
mas Leonardo não disse. Ele soltou Jim, que rolou para o lado
enquanto tossia e engasgava, lutando para trazer ar aos pulmões.

Capitão North buscou suas calças e as vestiu calmamente,


dobrando bem os joelhos como se apreciasse o movimento de suas
pernas.

Com uma olhada no espelho, ele lambeu o polegar e acertou suas


sobrancelhas despenteadas. Jim permanecia no chão, buscando
forças para se levantar e acabar de vez com ele, mas seus
membros não respondiam seu comando. A concussão finalmente
cobrava seu preço, enquanto ele via as botas sujas do irmão indo
em direção à porta.

– Mas cuidado com ela, irmãozinho. Aquela garota é uma magnífica


mentirosa.

Com o eco de seus passos pelo corredor e escadas, Jim respondeu


sem que ninguém ouvisse:

– Sim... a melhor de todas.

A escuridão o envolveu, fazendo-o esquecer que já era dia lá fora e


o levando à inconsciência.
16

Sonhos rasgados

Aparentemente Magda estava falando sério quando disse que ela


seria tratada como uma convidada especial. A pirata a essa altura
da vida estava acostumada com o horizonte, e o infinito era um dos
poucos conceitos que fazia sentido para ela. Uma das muitas coisas
no mundo que igualmente a assustava e a fascinava. Contudo, ela
conheceu uma nova versão da palavra ao caminhar pelos
corredores da mansão Cerulius.

Sua quietude durante a manhã apenas denunciava seu ar


organizado e pacífico, e Pryia teve a impressão de passar por portas
o suficiente para abrigar uma dezena de gerações sob o mesmo
teto. Era um pouco parecida com o mar, que cobria piratas, marujos
e sereias com o sol, a tempestade e as estrelas; se essa era a
residência de um marquês, ela não podia conceber o que seria o
palácio real.

Magda tinha seus passos leves e, apesar de trabalhar ali, não


mantinha a cabeça baixa, como servos geralmente faziam. Era
como se ela pertencesse àquelas paredes. Ou como ela gostaria de
se sentir enquanto os senhorios estavam dormindo. Pryia amava
segurar no timão para sentir a textura da madeira polida, fechar os
olhos e permitir que seu rosto fosse atingido pela brisa e pelos
respingos gelados. E quando ninguém estava olhando, ela também
fingia que era dona do oceano. Provavelmente era assim que
Magda se sentia andando de madrugada naqueles corredores.

A governanta rapidamente girou os mecanismos que traziam água


quente até a banheira. Não se demorou ao apresentar o armário e,
enquanto o banho era preparado, manejou alguns vestidos que
deveriam atender as medidas da jovem. Felizmente,

Magda deixou Pryia ter sua privacidade para se banhar, e, sozinha


no gigantesco aposento, ela teve a impressão de que ali podia
facilmente caber a pequena embarcação que dividira com Jim até
Nanrac.

A pirata não sabia reagir a tanto luxo. Não sabia como se mexer
naquele quarto, com medo de sujar ou quebrar alguma coisa. O piso
de mármore branco refletia o sol nas paredes pintadas em um tom
de verde-claro. Arabescos dourados adornavam o teto, e a cama
repleta de travesseiros e almofadas a seduzia mais do que qualquer
outra coisa que ela já havia presenciado.

Estava exausta. Exausta e imunda de terra, suor e saliva.

Precisava de memórias novas, uma boa notícia e um bom


presságio. Mas, primeiro, um banho. Magda sabia das coisas, Pryia
precisava reconhecer isso.

Sabonetes e óleos perfumados com flores e especiarias a


transportaram para uma atmosfera primaveril e encantada. Bolhas
logo começaram a preencher a câmara de banho, flutuando pelo ar
e transbordando pelo chão, e a pirata sabia que havia usado alguns
produtos do jeito errado. Ela esfregou os cabelos e lavou o rosto
inúmeras vezes, até se livrar do pigmento preto que contornava
seus olhos. Apesar da qualidade e do conforto, Pryia não teria se
incomodado com uma bucha mais áspera conforme se esfregava –

especialmente as partes em que Leonardo havia encostado.

Magda mais uma vez estava certa. Um banho não faria um milagre.
Mas a fazia bem, e isso era um bom começo. Enquanto saía da
banheira, desdobrava as toalhas e secava sua pele, pensou que
talvez sua sorte estivesse mudando.

Agora ela tinha novamente seu mapa, um bom navio, e estava há


alguns passos do destino que sempre quis: um sobrenome, uma
tripulação e todo o poder dos sete mares com ela.

Então por que ela sentia vontade de chorar?


Não era pela noite que havia tido. Ela sabia que, em alguns dias,
estaria rindo ao repetir orgulhosamente a história de como seduzira
e desarmara violentamente o temido Capitão North.

Também não era pelo seu passado, pela morte de seu pai e pelos
anos que passou perdida em uma ilha visitada por ninguém

interessante.

Pryia sentiu os cabelos molhados grudarem em sua nuca enquanto


andava pelo quarto. Três vestidos estavam pendurados em frente a
um elaborado biombo de mogno e renda branca.

Um era feito de um tecido elaborado e brilhante de tom creme, com


mangas bufantes e um broche que fechava na altura de seu
pescoço. Um espartilho de renda do mesmo tom complementava as
saias bufantes. Pryia jamais havia visto nada mais ridículo. Era fácil
confundir com um bolo.

Ela suspirou com pesar, pensando que talvez estivesse se sentindo


triste porque o horizonte era grande demais, o bastante para ser
dividido com alguém, ela pensou. Mas antes: roupas.

O segundo modelo parecia ser do mesmo tecido, mas um toque


brilhante fazia reluzir seu tom azul-claro. As mangas se uniam sobre
o colo, formando o desenho de um coração, e uma faixa prateada
parecia cumprir a função do espartilho que ela viu no modelo
anterior. Ela torceu o nariz, mas ficou intrigada, arriscando um toque
no tecido sedoso.

A cor lembrava o céu e o mar quando se tornavam uma coisa só ao


meio-dia. As velas de Elizabeth, o navio onde cresceu. Os
momentos em que o infinito é um desafio a ser aceito e um destino
a ser conquistado. A vida que era embalada pelo movimento das
ondas e pela harmonia de canções. Não disse em voz alta – não
porque alguém a ouviria, mas porque não queria admitir: Pryia sabia
que dividir o tal infinito era uma ideia idiota e impossível, mas assim
também era o seu coração.
Ela se voltou para o terceiro vestido, que tinha um tom vibrante de
amarelo, um espartilho pêssego e mangas bufantes o bastante para
se passarem por cabeças. Pryia se perguntou se deveria deixar a
pirataria para desenhar roupas. A nobreza às vezes tinha um
péssimo gosto.

A falsificadora de mapas puxou a toalha de seu corpo, apertando


mais uma vez seu cabelo molhado no tecido e a deixou cair sobre
seus pés. Contra suas expectativas, o vestido azul deslizou sobre
sua pele macia como se fosse feito para ela. O

contraste que formou contra sua pele marrom-clara a iluminou. As

pontas douradas de seu cabelo pareciam raios de sol na glória da


manhã. E ela não pretendia se sentir assim, mas, ao se olhar no
espelho, viu o reflexo de uma dama. Abriu um sorriso que faria o rei
lhe entregar as chaves de seu palácio.

Pryia ouviu sete badaladas e rapidamente buscou sua bolsa –

que ainda não combinava com nenhum de seus trajes. Jim já


deveria ter cumprido sua parte no acordo. Ela precisava falar com
ele, explicar o que aconteceu. A pirata não sabia como o marquês
fugira de seus pensamentos na última hora, mas ela necessitava
apagar as digitais de Leonardo – tanto de seu corpo quanto de sua
mente. Era hora de partir, pois o encontro apressado nas escadas
não poderia ser sua despedida final. Seu coração ficou apertado
conforme andava livremente pelos corredores, buscando Magda ou
outra criada que pudesse lhe colocar na direção do marquês.

O corredor ainda estava vazio, mas assim que a pirata virou em


direção à escada, encontrou uma jovem descendo os degraus. Pryia
viu apenas suas costas, seus cabelos castanhos finamente
trançados (o que fez Pryia perceber que os dela ainda estavam
úmidos) e seu vestido de um rosa intenso e mangas bufantes com
pequenas borboletas de tecido. A pirata sentiu suas pernas
tremerem. A garota nas escadas usava uma roupa digna de uma
princesa... Ou da filha de uma duquesa.
17

Disposta a afogar

Pryia não esperava estar sozinha. Ela já contava que iria esbarrar
com alguma criada, com algum familiar de Jim ou até mesmo com
os oficiais de Nanrac, que certamente estavam hospedados em
alguma parte da mansão.

Mas não com lady May. Não com a preciosa filhinha do duque que
ancorava Jim na terra, enquanto afundava os sonhos que Pryia nem
ao menos ousava pronunciar. O que ela estava fazendo ali a essa
hora? Estariam eles casados?

Não seria possível.

Será que já dividiam o leito? Uma forma pura de ódio inflamou o


peito da jovem pirata, seguido por uma onda de tristeza. Ela tentou
se lembrar de que não deveria se importar, mas parecia que aquele
navio já havia partido. Uma coisa era saber que May existia... Outra
totalmente diferente era olhar para ela, perceber sua beleza,
perfume e riqueza.

Não seria o primeiro monstro que Pryia já havia enfrentado, mas


seria um que voltaria para assombrá-la. Ainda assim, ela já havia
sobrevivido a coisas piores. Com toda coragem que tinha, Pryia
declarou com sua voz melodiosa, apesar de o nó na garganta a
estrangular:

– Com sua licença, milady.

O movimento delicado permitiu que Pryia visse perfeitamente o


rosto da garota. Ela não deveria ter muito mais que dez anos,
aparentando ter acabado de deixar as bonecas para trás. A menina
tinha ainda as proporções erradas: o corpo esguio sob um vestido
exagerado, os olhos grandes e verdes e a pele em alguns tons mais
claros que Jim. Ele não poderia estar noivo de uma criança. Seria
inconcebível, aquela não poderia ser a futura marquesa.

– Não lembro de termos sido apresentadas – ela pronunciou


prontamente, com um brado que chamou a atenção da pirata.

– Podemos nos conhecer agora. Ou eu permaneço como uma


estranha misteriosa, o que prefere? – brincou Pryia enquanto
sinalizava para continuar descendo as escadas. A cada degrau seu
coração relaxava ao perceber que não conheceria Lady May.

– Gosto da segunda opção. Dá mais espaço para a imaginação

– a menina decidiu. – Mas eu sou Cecília Maria Angélica Cerulius.

Meus mistérios não moram com meu nome. Nunca tive esse luxo.

– Posso estar enganada, mas me parece que você tem todos os


outros – disse enquanto sorria para Cecília.

– Esse pode ser o seu mistério a decifrar, que tal?

– Me parece um bom acordo, lady Cecília. – Pryia abaixou até ficar


na altura dos olhos da garota. – Mas preciso da sua ajuda para
resolver um em que estou presa agora.

Cecília assentiu, os olhos brilhando como esmeraldas em


curiosidade e antecipação. A empolgação que permanece por pouco
tempo depois que alguém sai da infância.

– Preciso encontrar Jim. – Ela sacudiu a cabeça. – Digo... lorde


James. Jimmy? É urgente.

– Ele já deve estar em pé, milady. O quarto dele está iluminado, e


Jimmy não suporta dormir com muita luz.

– Sabe em que parte da casa posso encontrá-lo?

– O que você é do meu irmão, milady? – inqueriu a menina.


A resposta doeu como uma espada em seu coração.

– Nada. Só realmente preciso falar com ele – confessou a pirata


com um sorriso amargo.

Cecília a estudou por alguns instantes. A moça misteriosa tinha o


mesmo olhar desolado que Jim estampava ontem. Mas ela tinha um
sorriso que, mesmo triste, parecia carregar o sol consigo. E a
pequena lady Cecília Cerulius, que era de longe a mais esperta de
toda família, via o invisível e predizia coisas que desafiavam até
mesmo as forças do caos.

– Milady... – sua voz ainda possuía um toque agudo em cada


pronúncia pausada e perfeita.

– Sim, lady Cecília?

– O amor é como o mar.

– Jura? E o que uma jovem mocinha como você sabe do amor?

– Jovem mocinha? Pryia não acreditou que estava repetindo


aquelas palavras. Madga a estava contagiando, sem dúvidas.

– Sei que se você quiser ficar na superfície com medo de se afogar,


jamais vai conhecer as maravilhas que se escondem no fundo. É
preciso estar disposta a mergulhar.

– E se a pessoa se afogar? – perguntou a pirata, sorrindo e


revirando os olhos.

– E se ela respirar debaixo d’água? – ela rebateu.

– Isso é impossível.

– Talvez esse seja o ponto. – E como se ela quisesse fazer uma


saída triunfal, começou a se afastar da jovem misteriosa à sua
frente. – Se Jimmy estiver em casa, estará no jardim. Agora estou
atrasada para a aula de piano.
E sem ao menos se despedir, os passos de lady Cecília se
afastaram pela mansão.

Jim não estava no jardim, e nenhuma das criadas o havia visto


desde que se levantou. Duas levaram um susto ao ver Pryia com os
cabelos soltos e úmidos. Uma delas se desculpou por ter esquecido
de colocar o chapéu junto ao vestido e a fez perder cinco preciosos
minutos buscando um modelo que acompanhasse seu traje.

Sem desejar esperar mais novidades, Pryia saiu pela porta principal
em direção ao seu destino. Iria buscar seu navio e partir o mais
rápido possível de Realmar. Mas antes precisava se certificar de
que Jim estava bem. Precisava saber que ele estava vivo.

18

Mar de ilusões

Medo crescia no ventre de Pryia conforme ajustava os passos


rápidos ao vestido suntuoso. Ela levantou as saias para não
tropeçar nos degraus negros e encontrou a porta destrancada. Jim
deveria ter entrado, mas não saído. Leonardo, por sua vez, estaria
solto nesse mundo como uma maldição antiga, pois seu casaco – e
o mapa falsificado – não estava em lugar algum.

A pirata foi em direção ao quarto que desejava jamais pisar


novamente e deixou seu chapéu cair enquanto corria pelas escadas
segurando a barra do vestido azul celeste, até encontrar o retrato de
seus medos diante de seus olhos. Jim estava desacordado no chão,
e sangue seco contornava sua cabeça e saia por seus lábios.

Ela estava atrasada. Com as mãos trêmulas, ela tentou sentir o


pulso de Jim e procurou acalmar os trovões em seu peito ao buscar
pelo eco da batida de seu coração. O dela parecia estar preste a
fugir de seu peito. O dele parecia ter deixado esse mundo.
Leonardo não teve a intenção de matar seu irmão. Mas o pirata era
forte, estava acostumado a acabar com homens mais resistentes
com golpes mais fracos.

Pryia havia chegado tarde demais.

Mais uma vez na sua vida, ela procurou por ajuda em vão.

Ela não deveria ter colaborado com esse plano estúpido e ter
deixado Jim para acertar as contas com Leonardo a sós.

Pryia levantou a cabeça do marquês – de seu amigo – e a abraçou


junto ao seu peito, transferindo seu calor para ele.

Desejando o seu toque morno, seu olhar provocativo, seu sorriso


fácil e debochado. Desejou a voz dele falando insanidades e
tentando convencê-la de que ela era possível. Desejou por ele e

tudo que não poderiam ter juntos. Desejou que ele pudesse ouvi-la.

Desejou que pudesse acordar.

E chorou. Não se importando com o sangue tingindo seu novo


vestido. Não se importando com nada além do homem inerte que
estava em seus braços.

Volte para mim.

Por favor, Jim, não morra!

Não assim. Não agora.

Ela murmurou seguidas vezes como uma prece. Uma das únicas
que realmente quis que fosse atendida. Suas lágrimas corriam livres
pelo seu rosto, como se o mar se vingasse em uma tempestade. Ela
o apertava mais forte, como se a pressão dos seus dedos pudesse
buscar sua alma do outro lado e trazê-la de volta para ela.

Era impossível.
E só assim ela percebeu que estava disposta a se afogar.

Jim.

Ela ainda tinha o hábito inocente e infantil, de ocasionalmente


acreditar. Algo em Jim despertava a esperança de que a vida teria
um sabor diferente, um eco de glória e não de perdas. Ao menos
dessa vez. Somente dessa vez.

Por favor.

E talvez porque Eris estava sempre à espreita, se alimentando do


caos que emanava dos corações humanos desesperados...

Volte para mim.

Talvez porque a Deusa do Caos gostava de assistir as desventuras


da pirata mestiça de terra e mar...

Eu não quero viver em um mundo em que você não existe.

Talvez porque Pryia ainda aprenderia sobre sua verdadeira origem.

Mas enquanto a pirata entoava essas mesmas palavras em uma


melodia capaz de comover os deuses, as feridas de Jim pareciam
atenuar. O sangue começava a desaparecer como se jamais
estivesse ali. Claro, ela não percebeu, pois sua visão estava
embaçada demais para que pudesse enxergar claramente. Ela se
recusava a abrir os olhos para ver Jim morto.

– Eu também não quero viver em um mundo onde você não está –


uma voz rouca e grave respondeu, e Pryia sentiu o toque da mão do
marquês envolver sua nuca.

Não, ela sentiu o toque que a fazia se sentir em casa.

Não foi um milagre, mas isso não importava. Ela entenderia mais
tarde como foi capaz de curar Jim, mas, por ora, as forças do caos
permitiram que a pirata acreditasse em tais coisas. Elas haviam
aprendido a admirar as capacidades mentirosas da bela pirata.

– Você está vivo – sua voz balbuciou incrédula, enquanto Pryia se


distanciava para olhar Jim.

– Eu acho que não.

– Está machucado? – ela disparou, com uma onda nova de


preocupação correndo por seu corpo.

– Não – Jim declarou como se fosse óbvio. – Estou diante de um


anjo.

Pryia imediatamente revirou os olhos e confessou:

– Eu preferia quando você me chamava de “meu amor”.

– Não seja por isso.

Ele usou o resto de força que ainda tinha para erguer-se e sentar.
Depois, virou na direção de Pryia e, usando o peso do próprio corpo,
deitou-a no chão, debruçando-se sobre ela.

– Meu amor.

E seus lábios fizeram o único caminho que poderiam: em direção


aos dela.

O beijo foi como um raio de sol em meio a uma tempestade.

Jim roçou seus lábios nos dela como se tivesse uma vida inteira
apenas para sentir a maciez aveludada que vinha de Pryia. Ela não
pode segurar o sorriso que crescia dentro dela, e isso foi o bastante
para o marquês se desfazer.

Ela o envolveu com os braços, levantando a perna para lhe dar mais
acesso a suas curvas presas naquele pomposo vestido. Jim se
encaixou em seu corpo, intensificando o beijo como se desejasse
explorar cada parte dela. Como se pudesse clamá-la para si,
guardá-la em seus braços e eternizar esse momento em um lugar
que ela não pudesse deixá-lo para fora.

Jim sabia que Pryia não era o seu destino de berço, mas faria dela o
seu futuro. E como se a pirata lesse a intenção nos movimentos do
marquês, que explorava descaradamente as curvas de seu corpo,
ela levou as mãos para baixo da camisa dele, agradecida pelo calor
que a pele emanava e a incendiava. Pryia estava alegremente
disposta a queimar de paixão.

Ela já havia tido outros amantes. Ela sabia o que era o prazer e o
que era a mais descarada das mentiras. Mas estar com Jim ia além
de tudo que já havia experimentado. Parecia certo. Algo que era
feito para durar além do ápice, encontrando uma nova definição
para o paraíso, que ela estava disposta a experimentar. Era como
se o mundo lá fora não existisse. Pryia tinha a certeza de que ele
poderia esperar.

Jim havia voltado dos mortos, mas ela sentia que estava mais vivo
do que nunca. Ardendo por vida e faminto por ela. Suas mãos
hábeis puxavam os laços de seu vestido sem esforço, deixando
claro que ele conhecia esse modelo de roupa até mesmo melhor do
que ela.

Ela sorriu, admirando sua habilidade, e depois desejou apagar a


memória de qualquer outra pessoa que havia passado pela vida
dele. Assim como ele estava fazendo com ela.

O marquês beijou seu rosto, bem no canto do sorriso que o havia


laçado desde a primeira vez que pousou os pés em Porto Magnus.
Ele esperava encontrar alguém cativante, mas não uma jovem
arrebatadora. Jim desejou sentir o toque de sua pele desde aquele
instante. Seu cavalheirismo dera lugar à ousadia para que ele
pudesse merecer sua atenção, para chegar perto dela. E agora ele
estava.
Se aquilo fosse um sonho, ele mataria o desgraçado que o
acordasse.

Pryia sentiu as mãos firmes em sua cintura e a barba roçar em seu


pescoço e deixou escapar um som envolvente que clamava por
mais.

Mas Jim parou. Sentiu o cheiro de flores e sonhos que vinha de sua
pele e se distanciou. Ele mataria Leonardo duas vezes agora. O

que o maldito havia dito sobre Pryia estava certo, e mesmo não
importando... Importava.

Eles estavam na casa dele. Ao lado da cama dele. Não deveria ser
assim... Jim começou a amarrar o vestido de Pryia de volta, e a
pirata leu em seu rosto sua decepção. Ela precisava explicar o que
tinha acontecido.

– Jim, eu... eu não queria – não parecia argumento o suficiente.

Não era. – Odiei cada minuto que ele esteve ao meu lado, não
duvide disso.

– E eu acredito em você, Pryia. – Ele levantou seu rosto e pousou


um beijo nos seus lábios, depois em sua testa. – Mas aqui eu não
consigo.

Pryia o apertou em um abraço, sentindo o volume rígido em suas


pernas.

– Consegue, sim – ela brincou.

– Sim, consigo... – Jim sorriu, a apertando de volta. – Mas não


quero. Você merece um lugar melhor do que um covil.

– Não sabia que você era um romântico.

– Achou que eu era só um idiota?


– Achei que... – Achei que você poderia ser o meu amor.

Pryia manteve as palavras só para ela e o beijou. Jim queria saber o


que ela diria, mas nada no mundo o faria interromper seu beijo. Ele
aproveitou cada segundo em que a pirata estava em seus braços,
até que ela o olhou com os lábios inchados repuxados para cima,
buscando por ar. O marquês então disse com a voz de um amante:

– O idiota aqui tem um plano. Se tudo der certo, podemos nos livrar
de Leonardo, dos enviados de Nanrac e do meu noivado. – A pirata
arregalou os olhos ao ouvir as palavras de Jim. – Mas preciso da
sua ajuda.

– Claro, tudo o que precisar – ela respondeu prontamente. – O

que é?

– Uma última mentira.

Pryia beijou a mão do marquês e se levantou, depois o ajudou a se


colocar em pé também. Ele ainda estava um pouco cambaleante

depois de voltar à vida, portanto ela o guiou em direção a porta,


segurando pelo braço.

– Nos seus sonhos que será a última mentira.

Eles tinham um futuro a desafiar: o mais temido capitão do oceano,


a imponente sociedade secreta que regulava céu e mar e o marquês
Hector Cerulius I.

Parecia impossível.

Que bom que essa era a especialidade dos dois.

19

O toque de um sonho
De volta à mansão Cerulius, o casal apaixonado mantinha seus
reais sentimentos como um segredo. Era o tipo de declaração que
se tornava mais saborosa na forma de dúvida do que quando dita
aos quatro ventos. E é claro que eles só pensavam assim porque
não queriam cantar vitória cedo demais. O plano era arriscado, e as
chances de dar errado adicionavam um compasso a mais em seus
corações.

Pryia chocou os criados da residência com as largas manchas


vermelhas em seu vestido azul-claro. Dois vestidos arruinados em
um só dia. Ainda bem que a pirata estava com um bom humor fora
do comum. Ou pelo menos estava, até ser surpreendida por um par
de olhos verdes que a analisava dos pés à cabeça.

– Por todas as estrelas, o que aconteceu com essa jovem, James?


– exclamou a dama. Ela deveria ser uma vida mais velha que Jim,
embora seus olhos possuíssem a gentileza de uma sonhadora. Seu
vestido era de um rico lilás coberto de flores um tanto quanto
exageradas para o gosto de Pryia – bem como toda a moda na
capital.

– Minha querida mãe, esta é a enviada de Nanrac, que me


acompanhou durante minha jornada.

– Jimmy, por favor. Guarde as apresentações opulentas para seu


pai. Sabe que, assim que começo a ouvir sobre frotas, já sinto
vontade de desfalecer. – Ela franziu a testa na direção de Jim e
depois voltou para a pirata. – Eu quero saber por que ela está
coberta em sangue.

– Isso é uma ótima pergunta, Jimmy – provocou Pryia.

Jim havia dito que precisaria de mais uma mentira da pirata, mas ele
não enganaria sua mãe. Não muito, pelo menos.

– Leonardo armou um esquema para tirar minha vida.


A marquesa ficou em choque. A mera menção ao nome de seu
primogênito a deixou pálida, com as pernas bambas. Jim
imediatamente a abraçou, murmurando que os dois estavam vivos e
bem, e completou:

– Pryia me salvou.

Algo na forma que ele pronunciou a última palavra fez sua mãe
perceber que havia mais na história do que ele desejava
transparecer. A marquesa buscou se recuperar e voltou sua atenção
para a pirata disfarçada de embaixadora.

– Pryia. – Ela experimentou o som em voz alta. – Que nome


adorável!

A mãe de Jim pegou na mão quente da pirata com um toque


afetuoso e a guiou para a escadaria principal da mansão.

– Imagino que desventuras você deve ter vivido ao se deparar com


a antiga desavença de James e Leonardo, pelos deuses! Você deve
estar exausta! Vou pedir para Magda te acomodar em um de nossos
aposentos. O marquês não vai admitir que uma enviada de Nanrac
fique pelas ruas de Relmar, eu conheço meu marido o bastante para
saber disso. – Ela piscou.

Antes que Pryia ou Jim pudessem contestar, a marquesa chamou


pela criada com um pequeno sino que levava em um bolso secreto
de seu vestido. A ama arregalou os olhos ao ver o sangue, mas não
demonstrou nenhum sinal de tê-la reconhecido. Apenas cumpriu as
ordens da patroa enquanto subiam os degraus em direção ao largo
corredor.

– Menina, eu quero saber por que você está coberta em sangue.

Pryia soltou algo que ficou entre um riso e uma bufada.

– Ajuda se eu disser que o outro cara está muito pior do que eu?
Magda torceu o nariz.

– Não, Magda, você não quer saber – declarou firmemente a pirata.

– Vou separar um vestido marsala para você, para garantir.

Pryia deu um abraço na velha senhora antes de entrar no quarto,


tirou o vestido manchado e aceitou ser seduzida pelos travesseiros
de pluma e seda que a aguardavam.

Marquesa Berenice Cerulius esperou ouvir a porta fechar no


distante corredor antes de se voltar para seu filho. Por mais distante
que fossem os cômodos, ela sabia distinguir cada estrondo ou ruído
em sua própria casa.

– Jimmy, o que você não está me contando? – seu tom indicava um


longo e penoso sermão repleto de empatia e conselhos.

– Se não estou lhe contando, minha mãe, é porque é melhor que a


senhora não saiba. – Jim pegou em sua mão com um sorriso
confiante.

– James, basta um olhar na sua direção para saber que você está
totalmente encantado por essa garota.

Berenice não disse isso porque conhecia bem seu próprio filho, nem
porque era boa julgadora de caráter, mas porque qualquer um podia
sentir a energia faiscante que emanava de Jim ao estar perto de
Pryia. E não era como se ele fosse o melhor em esconder seus
sentimentos: ele nem ao menos tentava. Sua sinceridade seria sua
derradeira queda, mas uma vez que já estava caindo de amores, ele
simplesmente aproveitou o salto.

– Sinceramente, mãe, você me culpa? – Ele deu de ombros,


sentando-se em uma larga poltrona de veludo verde-escura.
– Claro que não – ela foi sincera. Sua mãe ficou em pé à sua frente,
andando de um lado para o outro. – Ela é belíssima, apesar de as
manchas de sangue causarem um impacto desagradável para uma
primeira impressão. Mas o que me preocupa é que ela parece
gostar de você também.

Os olhos de Jim brilharam.

– Você acredita mesmo nisso? – sua voz era pura esperança com
um toque de desespero.

Berenice sentou-se ao seu lado e pegou nas mãos do filho, que


agora eram maiores do que as suas próprias. A marquesa se
perguntou como eles cresciam tão rápido e por que partiam tão
cedo. Ela sabia que era a hora de James voar. E, ao contrário do
que o marquês vislumbrava para os Cerulius, ela sabia que James
poderia fazer muito mais do que controlar tediosas frotas inventivas.

– Pelo visto, você quer acreditar. Mas não preciso lembrá-lo que seu
compromisso com Lady May deverá ser firmado em breve. A última
coisa que desejo para você é o sabor amargo de uma desilusão.

– Pryia não é uma ilusão.

– Mas um futuro juntos é.

– Não, mãe. Nosso futuro é um sonho. E, para isso, preciso que me


ajude. Lady May acaba de fazer dezenove anos.

– Exatamente, está na idade de se casar. Com você, assim como foi


acordado há dez anos!

– Foi acordado que ela se casaria com Leonardo.

– Mas a responsabilidade recaiu sobre você depois que... – Ela


agitou a cabeça, tentando afastar as memórias. – Você sabe.

– Mas isso nunca foi registrado – Jim afirmou. – E lady May


certamente está apaixonada por alguém. Todo mundo aos dezenove
anos está. Se ela souber que não é oficialmente prometida e casar
escondida com quem ela escolheu, a aliança será desfeita sem mal
nenhum recair sobre a família Cerulius.

– E como você pretende fazer isso, Hector?

– Pretendo que você faça.

Berenice não queria, mas sorriu. Começar um rumor para unir dois
jovens apaixonados em um casamento escondido era uma ideia
fascinante. O tipo de adrenalina e poder que ela desejava instigar na
sociedade. May merecia mais do que se casar com um
desconhecido que estava apaixonado por outra mulher. E, no fundo,
ela só queria ver seu filho feliz. Quem poderia culpar uma mãe por
isso?

– E o que você fará enquanto eu tento mover céus e infernos para


desmanchar seu noivado sem arruinar a honra dessa jovem?

James sorriu.

Não.

Jim sorriu como se estivesse em frente ao horizonte que deveria


conquistar.

– Vou mover céu e mar para começar um reinado.

20

Calmaria antes da tempestade

Leonardo já havia aprendido a diferença entre o vento e a


tempestade. Conhecia o sabor da glória tal qual o da persistência. A
verdade é que ele havia progredido como um grande pirata não
graças à sua origem privilegiada ou aos seus conhecimentos
oportunistas, mas porque possuía uma persistência invejável, ligada
a um grau de inconsequência que era um pré-requisito para a vida
imprevisível em alto-mar. Logo, ele sabia que era apenas uma
questão de tempo até Pryia pertencer a ele. De novo.

O pirata poderia ter se ressentido da traição ou ter seu ego ferido ao


pensar que a jovem estava mancomunada com seu irmão, mas a
verdade é que se ele, na noite passada, estava ansioso para tê-la
por algumas horas, agora a desejava para sempre. O sabor da vida
estava no desafio, na adrenalina da caça, na incerteza da conquista.
Pryia era selvagem, assim como o mar. Como ele poderia não estar
apaixonado?

Leo havia crescido ouvindo histórias sobre marinheiros que


desafiavam a natureza, enfrentando tempestades ou momentos de
extrema e desesperadora calmaria. Era fascinado por contos de
heróis que assassinavam bestas colossais das profundezas,
ostentando orgulhosamente seus tentáculos apodrecidos como uma
medalha por sua valentia. Agora era a vez de deixar o seu legado e
tomar o elixir do Povo Submerso a fim de conquistar todo o oceano.

Pryia havia se enganado se pensava que seu ataque havia ferido


seu orgulho, que ele não a desejaria mais agora que deixou claro
seu desprezo. Como alguém poderia negar o incrível e poderoso
Capitão Leonardo North? Fazê-la desejá-lo havia se tornado seu
desafio pessoal. A desgraçada havia o lembrado bem

demais do quanto as curvas opulentas de seu corpo perfeito


poderiam ser um oásis de perdição e prazer. E, querendo ou não,
ela havia deixado o trabalho inacabado.

Seu membro ainda pulsava em agonia, o impedindo que andasse


rápido demais pelas ruas de Relmar. Ele mancava, mas manteve a
postura descompromissada, os ombros orgulhosos e largos para
trás, o sorriso de ouro reluzente contra o sol do meio-dia. Era hora
de se preparar para uma batalha diferente.

Retirar Pryia da mansão Cerulius à força seria uma tarefa simples,


mas ela não a deixaria sem fazer um alarde, e pisar na residência
de sua juventude para causar um conflito... era algo que ele não
queria provocar. Em respeito à sua mãe, que, escondida da maldita
alta sociedade, fez o que estava a seu alcance para não deixar seu
primogênito desamparado por ter escolhido a liberdade a um destino
de tédio sem propósito.

Leonardo estava de volta ao seu navio, lavando a vergonha que


sentia, mas que negava até para si mesmo. Ele tirou a camisa,
percebendo o aroma de sol, sal e álcool impregnado no tecido, e a
jogou em um balde com sabão. No espelho de madeira da sua bela
cabine, analisou as tatuagens que colecionava em cada porto, os
souvenires após cada batalha, conquista e pilhagem. Entre os
rascunhos de rosas, bússolas, mulheres nuas e outros desenhos,
ele sempre demorava o olhar um pouco mais no que primeiro
marcou sua pele, a primeira coisa que tatuou assim que abdicou de
seu título e herança: Berenice.

Assim que estava limpo o bastante, Leonardo bebeu até dormir na


larga cama de seus aposentos. Só precisaria estar em pé ao
anoitecer, e esvaziar uma garrafa de rum rumo à inconsciência
parecia ser uma forma primorosa de passar o dia.

Levou algumas noites para que ele finalmente encontrasse a jovem


que procurava em Realmar. Ele andava com seu sorriso
miseravelmente confiante e atraente pelas ruas parcialmente
iluminadas e regadas a maresia e álcool, buscando por ela pelos
bares. A linda jovem era a chave para tudo que ele mais queria
naquele momento. Seu amuleto. Seu trunfo.

Até que, finalmente, após alguns infortúnios procurando por seu


sorriso fácil em vão, Leonardo finalmente a avistou em uma taverna
de procedência duvidosa. Ele não esperava que ela sorrisse para
ele de imediato, então se surpreendeu com sua reação. Certamente
já estava bebendo há mais tempo para não mostrar sinais de que o
reconhecia. Uma mulher bonita, com curvas elegantes e fartas
falava algo no seu ouvido e a fazia gargalhar. Ela estava no ponto
que ele precisava, então aguardou que ela ficasse sozinha por
alguns momentos antes de se aproximar. Leonardo jogou seus
longos dreads para o lado e apoiou-se na mesa à sua frente com
confiança.

– Olá, delícia! Preciso de você para encontrar uma amiga que temos
em comum.

Jasmine tinha os olhos turvos e demorou mais do que deveria para


identificar quem era o estranho charmoso à sua frente. Ela sabia
que em tavernas assim poderia encontrar duas coisas: uma boa
foda ou um problema. E, apesar de seu estado alterado, ela sentiu
na sua pele que os olhos profundos que encaravam os seus não
eram boa notícia.

Leonardo abriu a parte da frente de seu casaco, deixando revelar as


facas presas ao cinto. Então se aproximou de seus largos cachos
vermelhos e sussurrou na voz de um amante:

– Podemos encontrar Pryia juntos ou posso deixar uma trilha de


pedaços seus pela cidade até ela vir até mim. Eu odiaria machucar
uma mulher tão bonita, mas acho que a paixão está me deixando
irracional.

– Le... Leonardo? – perguntou Jas, sua voz soando incrédula e


apavorada.

– O prazer é todo meu – ele ronronou. – Não tenho a noite toda,


ruivinha. Como prefere fazer isso?

21

A estrela oculta

Pryia não estava acostumada a acreditar em milagres. Os


considerava eventos grandiosos demais, que não apareciam
quando ela realmente precisava. E na sua opinião, o funcionamento
era bastante arbitrário, pois não seguia uma ordem lógica de
prioridades. Contudo, especialmente naquela fatídica noite, ela
agradeceu pelo que parecia ser um tipo de coincidência pequena o
bastante para não ser considerada providência divina, mas
conivente para fazê-la agradecer às forças do caos.

Só havia ela e Jim na mansão. Ou pelo menos, no mesmo andar.

A pirata não ousou sair da cama macia onde havia passado a tarde,
mas se surpreendeu com a batida na porta que a fez abrir os olhos
e encontrar o céu azul-escuro através das belas janelas. O

quarto estava com pouca luminosidade, mas ela reconheceria em


qualquer sonho a silhueta que se formou sob o batente quando a
porta se abriu. O cabelo penteado preso em um laço discreto, a
camisa entreaberta que transparecia a postura confiante, o aroma
de hortelã que a refrescou como a brisa do mar que ela tanto
amava.

– Estamos sozinhos – disse Jim com a voz grave e baixa enquanto


fechava a porta atrás dele. – E acredito que tenhamos assuntos
inacabados.

O som da tranca sendo ativada pelos seus dedos fez o coração da


pirata estremecer. Ela respirou fundo, absorvendo sua presença
crescente a cada passo que o jovem marquês dava para se
aproximar.

– Imaginei que Vossa Graça precisaria de permissão para entrar no


quarto de uma dama – debochou com um sorriso já pintado em seus
lábios, enquanto se sentava no colchão e passava a mão nos
cabelos.

– Podemos fingir que eu sou um marquês bastante inapropriado e


que você é uma dama indefesa, se isso a divertir.

Pryia abriu uma gargalhada melodiosa, jogando uma almofada no


rosto dele. Jim desviou do projétil e escalou agilmente a cama,
engatinhando até estar ao seu lado. Ele segurou seu pulso, puxando
a palma de sua mão até os lábios e pousando um beijo no centro.
Era o selo da carta de amor que ele estava prestes a escrever com
seu corpo.

– Não acho que a “donzela indefesa” combine muito comigo, Jim.

– Concordo, você é uma pirata – constatou Jim, chegando mais


perto de Pryia na cama. – Sabe como eu sei disso?

– Talvez porque você tenha me conhecido no fim do mundo,


vendendo mapas falsificados em meio a escória da pirataria...?

– Eu ia dizer que você roubou meu coração, mas você tirou


totalmente a graça.

Pryia disparou outra risada, incrédula.

– Essa foi a pior cantada que eu já ouvi em toda a minha vida!

– Imagino que você já tenha ouvido muitas.

– Imaginou certo. Mas acho que essa foi a pior que já inventaram.

– Se é tão ruim, por que você não tirou suas mãos de mim? –

questionou Jim, confiante.

– Não tenho culpa se esse tipo de coisa funciona quando a pessoa


está apaixonada.

O mundo parou, assim como suas respirações. Mas logo seus


peitos voltarem a sincronizar, ainda um pouco incertos ao deixar o
próprio coração bater com risco de fazer um som alto demais e
estragar o momento.

– O que disse, Pryia? – sussurrou Jim.

Antes que ela pudesse responder, o beijo do marquês a engoliu. A


devorou. Com urgência e pressa, como se o sabor dela
fosse vital para que ele continuasse respirando.

Talvez fosse.

Então por que ele buscava mergulhar em seus lábios como se


quisesse parar de respirar?

Pryia retribuiu cada nuance do seu beijo, do seu toque, enquanto


jogavam no chão tudo que estava em cima da cama e poderia ser
um obstáculo entre eles. O frio da noite passava pela fina camisola
azul-claro que ela usava, deixando sua pele arrepiada e seus seios
firmes contra o corpo de Jim. Ela não demorou a puxar a barra de
sua camisa por cima de sua cabeça, com certo cuidado para não a
rasgar, mesmo que ele parecesse não se importar nem um pouco
com o estado de sua vestimenta naquele momento.

Jim também buscou pela renda que cobria suas pernas macias e
aproveitou cada nuance que seus dedos sentiam conforme
escalavam seu corpo, passando pelo quadril, cintura e lateral dos
seios. Tentou não estremecer por estar tão perto da perfeição e
procurou tocá-la onde ela gostaria de ser tocada. A noite envolvia os
dois amantes, suas sombras entrelaçadas, enquanto o marquês se
despia e os dois estivessem deitados sobre a seda dos lençóis sem
nada entre suas peles.

Pryia correu por seus braços, se contorcendo com a firmeza do seu


toque enquanto implorava por mais. Ela queria ir até o fim com Jim.
Não só uma noite de prazer, mas até o fim do horizonte. Até o fim da
vida. Ela nunca havia imaginado que tocar alguém podia ser um
gesto tão íntimo, além da pele, da respiração e dos compassos
cardíacos. Pryia havia hesitado antes, mas agora tinha certeza. Ela
tinha esperança de novo, e Jim era tudo que o futuro significava.

Começando pelo presente.

Mas Jim... ele não tinha pressa alguma. Sabia que tinha a vida
inteira para conhecer cada detalhe de Pryia. Havia uma aura
cósmica em buscar ver suas nuances à meia-luz. Ele podia
perceber as curvas perfeitas de seu corpo, o desenho sedutor da
sua boca que insistia em se repuxar em um sorriso devastador, o
perfume de flores, de sonhos e de aventuras. Ele poderia se
desfazer apenas pelos sons que ela deixava ecoar, uma melodia

angelical e pecaminosa que provava às quatro paredes daquele


quarto a tensão que crescia entre suas pernas.

Jim sabia que ela não era uma donzela, mas Pryia estava
totalmente indefesa nos seus braços, refém do seu toque e do que
ele faria em seguida. O marquês deixou os lábios correrem pelo seu
pescoço, fazendo todo o caminho até abaixo do seu umbigo, onde
finalmente provou do seu mais puro sabor. Ele alegremente se
deixaria afogar se necessário.

Pryia sentia o prazer fluir dos lábios de Jim por todo o seu corpo, até
ela precisar sentir mais dele, com o risco de se partir em duas se
não fizesse isso logo. Ela se desvencilhou do seu toque, o pegando
de surpresa quando se colocou em pé e se ajoelhou à sua frente.
Agora era Jim que não sabia como lidar com a presença dos lábios
de Pryia em volta de sua parte mais sensível e rígida, com o
momento ameaçando acabar rápido demais a cada toque morno de
sua língua. A pirata o engolia de tal forma que indicava exatamente
o que desejava que ele fizesse com ela.

E assim ele fez.

Com gentileza, Jim passou o cabelo dela para trás da orelha e


levantou seu rosto, buscando por seu beijo. Eles tinham o sabor um
do outro. Assim como o sol e o mar, eles eram um só. Mantiveram o
enlace de seus lábios, sem interromper o contato nenhuma vez. Jim
a levou de volta para a cama, permitindo que seus corpos guiassem
o caminho. O encaixe foi perfeito. Ele era quase grande demais para
ela, ainda mais quando ela não havia tido a companhia de ninguém
por mais de três anos. E ela era absolutamente inebriante. Nada
parecido com o que ele já havia vivido ou sonhado.
O marquês não ousou parar de beijá-la. Nem quando ela começou a
buscar por ar ao encontrar o ápice do prazer. Nem quando ele
perdia o controle do próprio corpo, se liquefazendo dentro dela. Os
beijos continuaram. A cada beijo, uma promessa silenciosa de que
ficariam juntos. A cada beijo, um sopro de esperança. A cada beijo,
um sorriso roubado.

– Eu poderia fazer isso todos os dias, sabia? – sussurrou Jim,


enquanto acariciava seus cabelos e Pryia mantinha os olhos
fechados, deitada sobre seu peito.

– Eu não me oponho – declarou a pirata antes de colar um beijo


contra sua pele.

Jim e Pryia estavam deitados, desenhando círculos preguiçosos no


corpo um do outro pelo que parecia ser a eternidade. Eles estavam
anestesiados pelo prazer, sentindo as extremidades ainda
dormentes. Ainda assim, não pararam de encontrar motivos para se
tocar e se beijar. Não para atiçar, embora o desejo permanecesse
latente, mas como uma forma de prazer diferente. Uma necessidade
da alma, e não do corpo. Explorar o físico era uma curiosidade
calorosa, mas o aconchego que vinha com o toque... Era algo que
Pryia não sabia existir.

A pirata se virou na cama, deitando-se de lado, enquanto o marquês


seguia o movimento, a abraçando por completo.

– Me lembre de novo por que precisamos sair dessa cama –

pediu Jim.

– Bom, não sei quanto a você, mas eu comeria alguma coisa –

disse Pryia, olhando para ele por cima do ombro.

– Tudo o que você quiser – ele interrompeu.


– E nós ainda temos todo o drama do mapa e de Nanrac para
resolver – ela suspirou.

Jim se sentou no colchão, passando a mão pelos cabelos


despenteados. Pryia se cobriu com o lençol e se sentou também, de
frente para ele. Seus olhos correram pelo peitoral do homem à sua
frente, e, dessa vez, ela não percebeu que estava sorrindo, nem que
seus olhos brilhavam.

– Você ainda não me contou como conseguiu o mapa – disse Jim.

– Você nunca me perguntou. – Pryia continuou a admirar o


marquês, desejando voltar ao seu enlace.

– Se você continuar me olhando assim, vai ser muito difícil


conversar sobre outros assuntos.

– E quem disse que eu quero falar de outras coisas? – Pryia


engatinhou até se encostar ao tronco de Jim e o beijou novamente.

Os dedos dele passaram por seus cabelos de forma preguiçosa


conforme ele intensificava o toque, explorando o interior de sua
boca com a língua.

Pryia beijou seu rosto antes de se afastar. Desceu da cama,


acendeu o lampião na mesa lateral e trouxe sua bolsa – que a pirata
estava cada vez estava mais decidida que não combinava com
absolutamente nada. De dentro dela, tirou o mapa e o abriu diante
de Jim.

O papel envelhecido ainda estava intacto, salvo por algumas


manchas amareladas. Ele havia sido desenhado em finas linhas
vermelhas, trazendo informações que cruzavam a posição das
estrelas, as estações do ano e os sete mares.

O desenho principal era de um grande círculo, e inscrições em


caracteres desconhecidos ladeavam nas margens. Era o detalhe
que Pryia sabia ler, mas não reproduzir. Em suas falsificações, ela
sempre anotava uma série de números, coordenadas sem sentido.

A falsificadora de mapas traçou os dedos pelas linhas delicadas,


lembrando o movimento que seus dedos tantas vezes fizeram nas
noites em claro que passava em Porto Magnus. Suas cópias eram
boas... mas o que tinha em mãos era uma obra-prima.

Ela podia sentir um eco vindo das linhas, como se escutasse o


interior de uma concha. A energia caótica e a aura de mistério e
desafio no papel que estava em suas mãos a chamavam,
convidativas.

Ela demorou para aprender a decifrá-lo, mas as noites solitárias na


sua cabine dentro do Rosa dos Ventos compensaram. Capitão
North pretendia seguir as linhas óbvias, mas sua imediata sabia que
elas não levariam a lugar nenhum. Pryia North queria surpreendê-lo
e provar seu valor. Ironicamente, quando enfim havia o
compreendido por completo, Leonardo a abandonou, levando o
mapa consigo e deixando as respostas e a promessa de vingança
com ela.

– Eu gosto de pensar que isso é minha herança – ela sussurrou,


respirando fundo diante das memórias que a visitavam.

– Era de seu pai? – perguntou Jim, compreensivo.

Pryia negou com a cabeça, as pontas douradas de seu cabelo


balançando contra a luz. A pirata olhou para cima, buscando
encontrar forças para falar em voz alta, e tentou manter a voz
estável:

– Eu o encontrei na praia, alguns dias depois que perdi meu pai.


Estava sentada na areia, ainda triste demais para sentir ódio...

Mais um dia em que o sol estava se pondo, e eu teria todos os


outros para estar sozinha.
“A garrafa verde estava ali, só boiando, flutuando contra o mar
alaranjado. Eu senti como se me chamasse, não sei explicar... mas
senti vontade de correr na sua direção e buscá-la. Senti curiosidade,
que era um sentimento melhor do que o luto.

“E parece idiota, mas gosto de pensar que foi o espírito do meu pai
que trouxe o mapa até mim. Uma forma de me dar um novo destino,
um novo propósito. E feliz ou infelizmente, poucas semanas depois,
conheci seu irmão. Eu estava tão sozinha – sem um navio, nem
tripulação, nem uma família – que aceitei a primeira oferta de
atenção que apareceu na minha frente. E bom... o resto você já
sabe.”

Jim a encarou por um momento, sem saber o que dizer, então a


abraçou. Sentiu algumas lágrimas de Pryia em seu ombro e
aguardou alguns minutos até encarar de novo a pirata e enxugar
seu rosto redondo com seu polegar.

– Sei que seu pai está orgulhoso de você, Pryia.

A pirata sorriu. Um sorriso novo, na coleção de Jim. Um que


misturava doses iguais de tristeza... e de esperança.

Pryia limpou a garganta antes de se voltar para o mapa e apontar


para o círculo.

– O segredo para encontrar o tesouro está nesse verso. Aqui diz:

O oceano que se esconde mora abaixo da estrela oculta da noite, à


meia-noite.

– Em que língua está isso? – Jim perguntou, mas poderia ser uma
exclamação.

– Na mesma língua da minha cantiga de ninar, eu acho.

Significa que você precisa cruzar o mar de Cascais e mergulhar na

direção da estrela mestra, durante o verão.


– E a estrela oculta da noite?

– O sol – ela disse simplesmente. – À meia noite, a estrela mestra


está alinhada com o sol, do outro lado do mundo. Assim eles
completam uma linha perfeita no universo, selando o local secreto
do tesouro. Está escrito aqui, Jim...

– Na língua do Povo Submerso?! – Ele levantou as sobrancelhas,


atônito. – Como você aprendeu isso, Pryia?

– Não é só a nobreza que recebe uma boa educação – rebateu a


pirata com um sorriso satisfeito.

Jim apenas a encarou, chocado.

– Eu concordo que é estranho, – ela disse – mas meu pai sabia ler e
falar. Cresci achando que era um conhecimento comum.

– Mas não é, meu amor.

– Voltamos ao “meu amor”? – Ela revirou os olhos.

– Achei que você já gostava de ser chamada assim.

Pryia baixou os olhos, sentindo seu rosto ficar vermelho.

– É que acho que não consigo falar ainda... “Meu amor.” – Ela
sacudiu a cabeça, constrangida.

– Como você preferir – ele falou baixinho, tentando esconder a


decepção na voz.

– Acho que prefiro só dizer que você é meu. – Pryia o encarou, um


sorriso desafiador em seu rosto.

– Não vou me opor a isso. – E ele a beijou, sem intenção alguma de


parar.

22
Um suspiro no tempo

Por alguns dias, tudo pareceu perfeito. Era mais do que muitos
podiam alegar sobre a própria vida, mas uma falácia perante o que
estava para acontecer. Pryia e Jim não poderiam saber, mas
enquanto aproveitavam a companhia um do outro, o destino do
mundo começava a mudar para sempre. Por enquanto, eles não
precisavam lidar com isso ainda. Apenas se preparar.

Leonardo ainda tinha o paradeiro desconhecido, e até a data do


baile que seria sediado na mansão Cerulius, eles decidiram não
deixar a propriedade. A pirata precisava fazer visitas clandestinas à
cozinha durante a noite, a fim de preparar um tônico de ervas
contraceptivas se quisesse continuar suas noites com o marquês.

Por sua vez, Jim descobriu uma nova noção de paraíso: admirar
Pryia desenhando em seu caderno, deitada de bruços totalmente
nua depois de ter enaltecido cada parte do seu corpo.

Ela guardava esboços de Jasmine, Pérola, Isla e Eriela – as sereias


que teve a chance de conhecer. Eventualmente, Pryia contou a Jim
sobre o encontro inesperado com as herdeiras do oceano.

– Não, Pryia – ele rebateu. – Eu jamais teria me atirado no mar e me


afogado por elas. Isso é mais uma de suas mentiras. – Jim bateu
com o indicador no pequeno nariz da pirata.

– Ninguém se afoga porque quer, Jim. A voz delas é mágica.

Você fica encantado e é obrigada a obedecê-las... Não conseguiria


resistir a tamanha beleza – explicou Pryia.

– Você acaba de descrever como eu me sinto perto de você.

A falsificadora de mapas corou, e o marquês beijou sua bochecha


antes que ela continuasse a folhear seu caderno.
Pryia havia desenhado paisagens que vira em Nanrac; um retrato
fiel de madame Khlaha enquanto ela disparava um grito agudo,
dando uma atenção especial ao movimento de seus tentáculos; um
esquema de como seria seu navio ideal, com várias pequenas setas
descrevendo os materiais utilizados em cada parte do convés; e o
desenho que fez Jim tomá-la nos braços novamente: um retrato dele
com as mãos no timão na pequena embarcação onde começaram
sua viagem.

Ele lembrava que havia visto a pirata desenhando, tremendo


levemente com a maresia noturna, logo antes de lhe entregar um
copo de rum. Jim não esperava ser o objeto de sua inspiração e
deixou isso claro quando fechou delicadamente seu caderno, o
apoiando no chão logo antes de possuí-la.

Olive levou duas noites para encontrar Pryia, e a pirata não


escondeu a alegria ao ver sua coruja na janela do quarto. Magda,
por outro lado, se assustou ao ver a bela ave na manhã seguinte,
dizendo que era o maior pombo que já vira.

Os dias tinham uma dinâmica bastante diferente – afinal, o noivado


com lady May ainda não havia sido rompido oficialmente.

Apenas marquesa Berenice sabia do relacionamento entre Jim e


Pryia. Ela nunca havia visto o filho tão feliz, o que a fez amar a
jovem.

Pryia não encontrou nenhum problema para conquistar o atual


marquês Cerulius. Seus conhecimentos sobre as correntes
marítimas e criaturas míticas ou reais, além de saber ler o mapa que
levava ao Tesouro do Povo Submerso, o deixaram fascinado. Algo
na forma que ela falava o fazia acreditar em suas palavras. Até
mesmo Alex Gim e Dave se viram como reféns da inteligência da
jovem. Eles podiam ler o enigma com perfeição, mas não eram
capazes de decifrá-lo.
E a pirata sabiamente manteve o segredo entre ela e Jim, que se
entreolhavam toda vez que o tema surgia durante as reuniões e
jantares. A mansão Cerulius estava em alvoroço, enquanto

preparavam o tradicional baile de máscaras, que servia para


anunciar o noivado entre famílias nobres.

Realmar ainda possuía uma alta sociedade conservadora, em que


os homens se encarregavam dos compromissos financeiros, e as
mulheres, dos compromissos sociais e artísticos. Os homens se
aprofundavam em invenções, trocas comerciais e negociações; as
mulheres eram responsáveis pela educação dos filhos, artes e
eventos sociais. E por ser um dos poucos territórios que não haviam
sucumbido à pirataria, acreditavam que o sistema funcionava
perfeitamente bem.

Felizmente, isso também estava prestes a mudar.

Cecília merecia mais reconhecimento pela sua notável sabedoria e


pelas frases à frente do seu tempo e da sua idade. Mas por ter
completado doze anos, ajudava Berenice a organizar o baile que
viria a anunciar o noivado de James e May. Entretanto, as duas
sabiam que a festa pretendia exatamente o oposto: o rompimento
do compromisso. A menina havia percebido isso dias atrás, assim
que colocou os olhos no irmão, sentado na sala de estar da
mansão. Ela levantou as sobrancelhas e disse com um sorriso
travesso e infantil:

– Conheci sua amiga. – Sua irmãzinha agitava alegremente o tule


brilhoso de seu vestido cor-de-rosa.

– Ela me contou que conheceu você também – respondeu Jim, a


chamando com o dedo, para um abraço. Cecília ainda era a pessoa
mais adorável que ele havia conhecido. Novamente, algo sobre ver
a pessoa em seus cueiros.
– Ainda não sei o nome dela, Jimmy... – ela disse, sentando na sua
perna.

– Não seja por isso, Cecília. Meu amor! – gritou Jim.

Pryia se apressou na sua direção, usando um vestido marsala com


alças desenhadas de um ombro a outro. O modelo não possuía
muitas camadas ou uma saia bufante, o que caía perfeitamente na
pirata.

– Jim, está louco? Alguém pode te ouvir! – falou Pryia entredentes,


mas sorriu ao ver a cumplicidade entre os dois.

– Já percebeu o tamanho dessa casa? – rebateu o futuro marquês,


gesticulando com uma mão, enquanto puxava a orelha de sua irmã
em alguma brincadeira que parecia ser repetida muitas vezes.

– Esnobe. – Pryia revirou os olhos.

Cecília encarava um, depois o outro, e a risada doce e aguda que


escapou dela fez os dois apaixonados lhe darem atenção.

– Cecília, esta é Pryia – disse Jim, direcionando sua irmã para sua
própria almofada no sofá.

– Uau, mesmo? Que nome lindo! Agora sei como chamar minha
futura cunhada – declarou Cecília empolgada, aplaudindo.

Pryia arregalou os olhos diante da palavra, sentindo o coração pular,


e se acomodou ao lado dela.

– O que você disse a ela? – indagou a pirata por cima da cabeça de


Cecília.

– Basta um olhar na direção de vocês para saber que estão


completamente apaixonados. Ele não disse nada, mas eu não sou
mais criança – interveio Cecília com os olhos verdes brilhantes.
– E por acaso é um oráculo? – perguntou Pryia, sentando-se no
sofá e deixando Cecília entre os dois.

– Hum... Talvez. Esse pode ser o meu mistério! – exclamou a


menina.

Jim buscou a mão de Pryia por trás da irmã, acariciando seus


dedos. Ele beijou a cabeça de Cecília antes de ela se levantar para
mostrar sua nova composição para o piano.

A noite em que tudo mudaria, havia chegado.

– Pode entrar! – disse Pryia ao ouvir uma batida na porta.

A pirata acabava de ajustar seu vestido dourado. O traje era um


óbvio exagero e uma obra de arte opulenta e escandalosa. Perfeito
para um evento da alta sociedade. Até mesmo a princesa viria à
essa festa, pelo que Pryia havia ouvido das fofocas dos criados.

Parecia estar envolvida por uma escultura de ouro. A cor a


iluminava como o próprio sol, ressaltando sua pele aveludada. O

espartilho evidenciava a curva de seus seios e afinava sua cintura,


até formar uma saia rodada digna da realeza. A manga de renda
imitava uma tatuagem floral junto a seus braços, e tudo combinava
com o brilho dos seus olhos. Magda havia prendido algumas plumas
brancas e cristais nos cabelos da pirata, o que era desconfortável se
ela não precisasse se movimentar mais do que o necessário, mas
inegavelmente belíssimo.

Pryia segurava com a mão direita a máscara, sustentada por uma


haste. A peça havia sido feita com o mesmo tecido e cristais do
vestido. No espelho, ela viu uma obra de arte. Era a peça perfeita
para a mentira que iria definir para sempre sua vida.
Jim, por outro lado, teve uma visão de como seria se Pryia
pertencesse ao seu mundo. Como ela seria uma presença
inebriante durante as socializações, roubando toda atenção para si
mesma sem fazer o menor esforço. E o marquês se permitiu sonhar
com um mundo em que os dois pudessem fluir do mar para a terra,
sem precisar abdicar de um ou de outro.

– Como se sente? – ele indagou.

– Apertada – ela respondeu francamente, ainda buscando uma


posição confortável no espartilho.

– Mas você está belíssima, meu amor. – Jim deu um beijo na parte
exposta do seu pescoço, respirando seu perfume de flores e
sonhos.

– Eu não disse que estava feia – protestou Pryia, virando em sua


direção.

– Eu nunca disse nada parecido com isso!

– Você não está nada mau, também. – Ela o analisou dos pés à
cabeça.

Pryia deu um passo para trás, a fim de admirar o marquês.

Aparentemente ele havia aprendido a transformar o estilo cafona da


capital em algo repleto de pompa e identidade: usava um elegante
casaco vermelho, fechado com botões dourados assim como o
vestido dela. Detalhes em renda branca saíam pelas mangas e pela

gola, um toque repleto de volume que de alguma forma combinava


com sua personalidade.

Ela imediatamente se arrependeu de estar com a mobilidade


limitada e com um compromisso marcado, senão teria o maior
prazer em despi-lo – enquanto ele faria o mesmo.
– Eu prometo que não vou me tornar um esnobe insuportável se
você fizer um elogio decente – disse Jim com a voz grave,
acariciando o rosto dela com o nó dos dedos.

Pryia sentiu as palavras ressoarem no seu corpo. Seu coração já


estava acelerado com a expectativa do baile, e a forma que Jim
mexia com seus sentimentos não a tornava mais esclarecida. Ela
roçou seus lábios nos dele e cantarolou baixinho o trecho de uma
conhecida melodia. O marquês sentiu um desejo diferente dentro de
si: a vontade de passar a noite toda memorizando seus traços,
mesmo que já os soubesse de cor. Ele se aproximou, prensando um
beijo doce.

Pryia sorriu e sussurrou no seu ouvido, enquanto caminhavam de


mãos dadas para a porta do quarto:

– Eu nadarei até o fim do horizonte para voltar para meu belo amor.

– O que disse?

– É a tal letra da música. Você não queria um elogio decente?

Jim subiu as mãos pelas mangas de renda que ela usava,


desejando a pele macia da pirata em vez do tecido delicado. Algo
em seu coração se apertou, mas ele forçou um sorriso.

– Não precisa se preocupar em voltar. Você não vai a lugar algum.

Da janela, as estrelas hesitaram ao ver quem andava pelas ruas de


Realmar. Ah, se ao menos o marquês estivesse certo...

23

Quando as máscaras caíram

Era claro o objetivo do baile: esbanjar poder. Na nobreza de


Realmar, uma pessoa só era devidamente apresentada ao seu
prometido no momento do seu noivado. E, ainda assim, usando
máscaras. A tradição dizia que era para proteger o futuro do casal
das más energias. Uma crença com uma desculpa protetora, mas
que na prática funcionava para exibir os trajes luxuosos, a comida
requintada e a melhor orquestra que o dinheiro e a influência
poderiam conseguir.

O atual marquês Cerulius era um homem honrado e correto.

Fisicamente, era parecido com Jim, porém com os cabelos curtos e


grisalhos e um sorriso forçado. Ele estava feliz por finalmente unir
sua família à prole do duque, elevando assim seu status social, mas
ele não esperava encontrar o salão de eventos da forma que estava
no horário da festa.

Sim, era esperado o luxo e a pompa para deslumbrar seus


convidados, mas ele sentiu que atravessava um palácio feito de luz,
ouro e esmeraldas. Próximo a uma parede, um palco que parecia
ser de puro cristal aguardava o casal que seria anunciado naquela
noite. Toda a tapeçaria da mansão havia sido substituída por
modelos novos, exibindo imagens que pareciam pinturas a óleo.

Tons ricos de roxo e dourado pendiam do teto em largos castiçais.

Uma fonte de chocolate estava no centro de uma extensa mesa,


além de diversas frutas brilhantes, tortas finamente decoradas com
creme e outras iguarias que ele não sabia nomear.

O nobre marquês soube imediatamente que ele não teria como ter
arcado com tantas despesas, e Berenice havia perdido totalmente a
mão para organizar festas. O evento seria sua falência!

Mas conforme a sociedade entrava no salão, murmurando elogios e


interjeições satisfeitas, ele esqueceu suas preocupações. Ninguém
ali havia ousado demais em suas máscaras, casacos e vestidos. O

noivado era um evento digno de um rei.

Pryia permaneceu em um canto do salão, fazendo o possível para


não chamar a atenção para si. Não era o momento. Ela precisava
esperar Jim finalmente chegar ao palco e fazer seu pronunciamento,
para que anunciassem a união dos dois diante de todos. A pirata
sabia como isso era importante para ele, sabia do que ele estaria
abrindo mão caso o plano desse errado. Ele poderia ser deserdado,
causando mais uma vez uma dor insuportável sua doce mãe. Ele
poderia acabar manchando o nome de sua família e arruinando as
chances de Cecília de ter oportunidades de um futuro próspero.
Nanrac poderia revogar o contrato se simplesmente sentisse que
não desejava mais se envolver.

Por sua vez, Jim sentia que ficar distante de Pryia enquanto
cumprimentava convidados era uma das coisas mais difíceis que já
havia feito em toda sua vida. Ele sorria durante a farsa, apenas
desejando que chegasse o momento de contar a verdade. O

momento de revelar para o mundo com quem ele firmaria sua


verdadeira aliança.

Os relógios soaram discretos em meio a conversas repletas de


segundas intenções, risadas altas demais e o som suave de piano e
cordas – mesmo que ninguém dançasse. A primeira dança seria o
primeiro contato oficial entre o casal prometido.

Pryia parou de respirar quando ouviu as nove badaladas, e, assim


como ela, todos voltaram sua atenção para o palco de cristal.

Lá surgiu uma moça em um vestido rosa claro, seguindo a moda do


evento. Sua máscara era branca, coberta de pérolas, como a
pequena coroa em seu cabelo. Lady May. A visão perfeita da
delicadeza, exceto pelo sorriso de canto de boca que ela não
conseguia evitar.

Jim subiu no palco logo em seguida. Por um segundo, a falsificadora


de mapas sentiu que assistia ao seu pesadelo de camarote. Ela
sacudiu a cabeça para afastar os pensamentos,

focando no que ele iria dizer e torcendo para a repercussão ser de


acordo com o que eles planejavam.
– Estimados convidados, é com grande prazer que eu anuncio a
união de duas respeitadas e nobres famílias de Realmar. Lady May
é uma jovem donzela, coberta de beleza, inteligência e sentimentos
valiosos.

O coração de Pryia se apertou ao ouvir as palavras de Jim. Ela não


precisava escutar essa parte do discurso, poderia esperar o seu
momento quando fosse pronunciado seu nome. Então, caminhou
discretamente para o final da multidão. Ela viu Cecília pedindo
licença ao pianista e sentando-se ao instrumento, acariciando as
teclas antes de começar uma doce balada, enquanto o irmão seguia
sua fala:

– E por reconhecer e respeitar o que está em seu coração, eu peço


que compreendam por que rompo a tradição, passando a palavra a
ela.

Jim estendeu a mão para guiar a filha do duque até o centro do


palco. Lady May não hesitou, falando com uma voz meiga, mas
firme:

– Marquês Hector Cerulius, sua família é repleta de carisma,


influência e bom gosto. Entendo o motivo de meu pai ter prometido
minha mão quando eu tinha apenas nove anos. – Era raiva que May
evitava transparecer em suas palavras? – E eu jamais imaginaria
que o dia de meu noivado seria assim: anunciando para toda a
sociedade de Realmar a paixão que já sinto em meu coração.

Os convidados murmuravam entre si, comentando uns com os


outros tamanha a curiosidade. As estrelas no céu permaneciam
inquietas. Assim como as batidas no peito de Pryia.

Era só uma encenação. Só uma encenação. Só uma encenação.

Mas Pryia reconhecia uma mentira quando via uma. E lady May
estava falando a verdade.
Todos desviaram a atenção quando uma jovem de vestido púrpuro,
com detalhes em rosa parecidos com os de lady May, subiu ao
palco. Sua máscara era repleta de diamantes negros. Assim que ela
parou ao lado da dama, os guardas da mansão ameaçaram tirá-

la do palco. Jim sorriu, apesar da confusão, e buscou por Pryia na


multidão.

– Definitivamente eu não senti falta desses eventos – declarou uma


voz rouca atrás de Pryia.

Agora ela estava vivendo um pesadelo de fato. Sentiu seu coração


afundar dentro do peito ao encontrar os olhos de Leonardo por trás
da máscara azul que ele usava.

– Essa festa está muito caída. Vamos sair daqui, delícia? – ele
perguntou, enquanto a puxava pelo braço.

Pryia fez menção de gritar, mas o pirata foi mais rápido, mostrando
quem era sua acompanhante. Uma bela mulher de sorriso torto e
cabelos vermelhos.

– Me perdoe, Pri – Jasmine murmurou.

As mãos dela estavam amarradas, mas não era visível embaixo das
camadas de tecido que formavam as mangas de seu vestido.

– Eu realmente odiaria fazer um escândalo aqui. Vamos, Pryia.

– Leonardo olhou de Jas para a pirata, levantando uma sobrancelha


impaciente. – Não me faça ser o cara ruim. Por favor.

A atenção de Jim estava nos convidados que observavam atônitos a


garota misteriosa invadir o palco de cristal. Ele buscava entre a
multidão a mulher mais fascinante que havia conhecido em toda a
sua vida. Queria trocar com ela um olhar. Um sorriso.

Enquanto isso, a jovem de vestido púrpuro e máscara negra fez um


gesto com a mão, impedindo que os guardas tocassem nela.

Bastou um olhar para o sinete em seu dedo para que os soldados


se retraíssem. Assim que ela tirou sua máscara, uma interjeição de
surpresa soou em uníssono.

Cecília sorria para si mesma, satisfeita, sem precisar desviar o olhar


do piano para entender o que estava acontecendo. A música fluía
dramática e imponente, como havia combinado com a filha do

duque. Uma das poucas vantagens de ser filha da nobreza em


Realmar era a conexão aberta que fazia com todas as outras
jovens. E a irmã do marquês logo cativou a atenção de May e de
Sabrina durante as confraternizações de elite.

Princesa Sabrina amava pianola, piano e cravo. Roxo e esmeralda


eram de longe suas cores favoritas. E ela não passou um único dia
de seus 19 anos sem comer chocolate. Assim como Cecília, amava
sonetos e romances. E como todas as jovens, a princesa ficava
encantada ao ler a sutileza dos poetas quando descreviam a beleza
etérea das mulheres que caminhavam pela primavera de sua
juventude. Era encantada por seu aroma de lavanda e baunilha,
pela maciez de sua pele e pelo olhar tímido seguido de um sorriso
malicioso.

Lady May parecia existir através do tempo, pois absolutamente tudo


que Sabrina tinha o prazer de ler se encaixava com a delicadeza
cativante da filha do duque. Elas eram como a rima e o ritmo de
cada verso. Não eram o sol e a lua, mas a lua e as estrelas.

Feitas da mesma matéria, do mesmo desejo, do mesmo amor. E por


mais que o silêncio funcionasse nos versos dos poemas, ela não
aguentava mais ter seu sentimento calado. Não quando ele gritava
em seu peito.
Assim que Vossa Alteza Real, princesa Sabrina de Traberan,
revelou seu rosto, May revelou o dela. A filha do duque mantinha o
sorriso satisfeito contrastando com seus doces olhos azuis. O nariz
dela parecia uma batata, um dos detalhes que conquistou a
princesa. Ela também amava batatas.

May segurou as mãos de Sabrina, admirando os lábios fartos que


ela conhecia tão bem, sua pele castanha iluminada por um pigmento
prateado especialmente preparado para a ocasião. Ela assentiu com
a cabeça, sinalizando que era hora de falar. Era a hora de elas
conquistarem sua vida – ou sua morte. Mas entre uma vida de
prisão ou uma chance de felicidade... a escolha era bastante óbvia
para elas.

– Meus caros súditos de Traberan, é com profunda alegria que


agradeço à família Cerulius por honrarem com o compromisso mais
sério que a palavra de um homem e por valorizarem o coração de

duas mulheres. É graças a pensamentos assim, a frente do seu


tempo, que Traberan continua seguindo para um futuro de notável
prosperidade!

“Venho a todos com a benção da coroa lhes apresentar sua futura


princesa consorte: lady May Gimez, filha mais nova do duque e
duquesa de Gimez.”

A multidão estava perplexa com o pronunciamento da princesa.

E mesmo que suas palavras fossem firmes, Sabrina e May


seguravam a mão uma da outra com força o bastante para tirar o
sangue de sua pele com as unhas. Elas poderiam venerar esses
machucados depois – as chagas de sua liberdade.

Sabrina sabia que seu pai, o rei, era orgulhoso. Jamais chamaria a
filha de mentirosa publicamente, temendo que toda sua linhagem
pudesse ser acusada de falsários do trono. Ele dizia que Traberan
fora construída nos fundamentos da verdade e da inovação. A
proposta de Berenice era justamente o que as garotas apaixonadas
precisavam para se libertar das amarras injustas da alta sociedade e
seguir esses princípios.

Sabrina se ajoelhou diante de May. Todos seguiram seu movimento,


incluindo Jim, o marquês e o duque.

– May, você me daria o prazer de passar a vida toda ao meu lado...


– Ela engoliu em seco, seus olhos pretos brilhando. – Como minha
esposa?

May ajoelhou diante da princesa, ignorando todos os olhares


arregalados em sua direção. Esse poderia ser seu último beijo com
Sabrina ou, com sorte, o primeiro de muitos em uma nova vida.

– Sempre – ela sussurrou.

A filha do duque acariciou o rosto de sua amada, admirando suas


sardas e os cachos pretos que caíam pelo seu rosto. E como se
elas fossem as únicas pessoas presentes no salão, May roçou seus
lábios nos dela. Deixou sua língua partir sua boca, sem pressa com
o beijo que estava se formando na frente de todos.

Sim, era um escândalo. Justamente o tipo de que Traberan


precisava se realmente quisesse se tornar um reino mais próspero.

Os convidados não ficaram espantados por duas mulheres se


beijarem, mas por elas tomarem decisões por conta própria.

Berenice, da lateral do palco, desconversou quando o marquês a


questionou se ela sabia disso. A marquesa respondeu que não
estava em posição de contrariar a princesa, e a história morreu
entre os dois ali mesmo; afinal, os Cerulius tinham agora o apoio
público dos Gimez e da coroa de Traberan. E Jim estava prestes a
ter a noiva de seus sonhos. Tudo estava ocorrendo impossivelmente
bem.

Sabrina e May se levantaram devagar e sorriam para Jim.


Antes que a valsa do casal pudesse irromper no salão, o rapaz
apaixonado se pronunciou com sua voz rouca e grave do centro do
palco:

– Hoje nos unimos para celebrar poderosas uniões, o futuro de


nosso reino e o amor que irá semear a prosperidade em nossas
ruas. Permitam que lhes apresente a enviada de Nanrac, que
conquistou meu coração e a admiração de todos que cruzaram seu
caminho. Gostaria de chamar o meu amor. Pryia!

Rapidamente, a nobreza ali presente começou a procurar pela


desconhecida também. A pirata deveria estar próxima ao palco
agora. Jim olhou entre as máscaras, buscando o vestido dourado
que o encantou algumas horas antes. Todos estavam curiosos,
ardentes por uma nova e suculenta fofoca. Certamente eles ficariam
com câimbras na língua de tanto falarem dessa noite nos próximos
dias.

– Pryia? – Jim chamou novamente. – Pryia! – ele gritou.

Jim desceu apressado, esbarrando em todos no seu caminho


enquanto buscava pela pirata. Medo começou a subir pelo seu
peito. Será que ela ficou apavorada com a multidão e resolveu fugir?

Ou será que ela não estava tão certa de seu compromisso com ele?

Com os olhos arregalados, ele arrancou a máscara e se certificou


que viu cada canto do salão antes de correr até a saída.

Os soldados que a guardavam deviam tê-la visto.

– Vocês viram uma jovem belíssima de pele marrom-clara e vestido


dourado passando por aqui? – indagou o marquês, desesperado.

– Sim, milorde. Ela partiu com um dos convidados de traje azul.

Ele estava acompanhado de uma bela mulher de cabelos

vermelhos, também.
– Ela foi levada contra sua vontade? – perguntou Jim com urgência,
levantando o tom de voz e disparando perdigotos na direção do
soldado.

– Não, milorde. Ela partiu sorridente e de braços dados com o


homem.

Não poderia ser. Jim se recusou a acreditar que Pryia havia partido,
embora seu coração sangrasse em seu peito junto ao vazio ardente
que o sufocava.

– Como era esse homem? – rosnou o marquês.

– Um lorde, milorde. Pelo sorriso com dentes de ouro, só poderia


ser algum membro da nobreza.

O vazio em Jim rapidamente foi substituído por um outro sentimento


totalmente inflamável. Ódio. Ele provou da palavra com sede de
vingança nos lábios.

– Leonardo.

24

Convidada amaldiçoada

– Eu odeio mentir para você, mas eu não falei a verdade quando dei
a entender que queria ficar com você, Leo – disse Pryia, tentando
manter a voz calma enquanto Leonardo a guiava para o convés do
Rosa dos Ventos.

Ele deixou uma risada baixa escapar.

– Pryia, estamos em casa. Você não precisa mais mentir para mim.

– Ok, deixe-me reformular a frase. Eu amo mentir para você, mas


fingir que te desejava foi a atuação mais asquerosa que precisei
fazer em toda a minha vida. Você me dá nojo, Leonardo!
Dessa vez a pirata não manteve suas palavras para si. Ela gritou,
chamando atenção de toda a tripulação de piratas, fiéis ao Capitão
North. Mas ele não havia se tornado o pirata mais temido de todos
por comandar o navio com o pulso frágil. Pryia mal teve tempo de
terminar a frase antes que Leonardo atingisse seu rosto com o nó
de seus dedos em um tapa estalado.

Ele torceu o semblante, recolhendo os dedos como se


imediatamente estivesse arrependido do que fez. Mas sabia que era
um mal necessário, então ajustou seu casaco e se aproximou da
pirata, sussurrando para que só ela pudesse ouvir.

– Eu te pedi para não fazer de mim o cara ruim, Pryia. A próxima


insubordinação será paga pela sua amiga, entendeu?

Lágrimas arderam os olhos da pirata, mas ela não deixou


transparecer. Isso não poderia estar acontecendo. Ela não podia
estar de volta àquele navio, nas mãos do pior monstro marítimo que
já havia encontrado em toda a sua vida.

Leonardo percebeu que um de seus anéis havia aberto uma ferida


no belo rosto de Pryia, e um filete de sangue começou a escorrer do
corte fino. Ele fez menção de tocar no ferimento, mas a pirata virou
o rosto para o outro lado.

– Na-na-não. Deixe-me cuidar de você. Estão todos olhando.

O capitão pegou um lenço branco em seu bolso, tocando com


suavidade no rosto de Pryia, mas o inchaço logo viria. A jovem
olhou para as estrelas, que pareciam cair diante do infinito breu da
noite sem lua, como se chorassem por ela. Pryia prendeu a
respiração, implorando aos astros que alguém a salvasse.

– Eu não gosto de ser assim com você, juro que não – ele ronronou.
– Não me desafie uma próxima vez, está bem?

Pryia não respondeu. Ela encarou Jasmine, que estava silenciosa


enquanto lágrimas corriam pelo seu rosto. Leonardo percebeu a
direção de seu olhar e voltou a falar:

– Nenhum mal vai acontecer a ela, Pryia. É só você colaborar que


eu e toda a tripulação trataremos as duas como convidadas de
honra, assim como nos velhos tempos. Que tipo de monstro você
acha que eu sou?

– Do tipo que existe fora dos pesadelos – ela respondeu, sentindo a


voz amarga.

Leonardo riu.

– Ou fora dos sonhos, que tal? – O capitão se distanciou um passo,


fitando a pirata. – Vou mandar alguém cuidar de você, Pri.

Prefiro quando está bonita.

O estômago de Pryia retorceu diante das palavras dele.

– Chega desse teatro, Leonardo! Vá direto ao ponto. O que você


quer? – ela perguntou entredentes.

– Vamos cumprir nosso destino, delícia.

E ele não fazia ideia do quanto estava certo.

25

Acerto de contas

Os murmúrios no salão provocavam um ruído alto. Uma eternidade


de fofocas eram disparadas em poucos minutos, e as palavras se
sobrepujavam enquanto os olhares arregalados da nobreza
levantavam seus pensamentos e hipóteses sobre o que estaria
acontecendo enquanto o marquês disparava pelo salão.

A orquestra, instruída em iniciar a pomposa valsa após a


proclamação do noivado, começou a tocar sem se importar com o
alvoroço caótico que se formava. Berenice, percebendo a
movimentação, buscou Cecília no piano e a conduziu até seu
quarto. Algo havia saído errado, e ela precisava manter as
aparências antes de tomar alguma providência. Mas primeiro
deixaria sua filha mais jovem e mais sábia em segurança.

Esse era o plano, ao menos até perceber o semblante desolado de


James ao voltar para o salão. Foi quando a marquesa pediu ao
marido que fosse verificar a filha em seu quarto. Berenice não sabia,
mas seu ato decidiu o futuro de sua família. O marquês não passava
tanto tempo com a menina, nem conhecia plenamente seus dotes e
habilidades. Ele logo ficaria admirado com a inteligência de sua
caçula. E graças aos eventos do baile, que abriram as mentes das
pessoas, ele finalmente enxergaria a herdeira ideal para o legado
dos Cerulius na jovem moça.

Quando a marquesa alcançou Jim próximo à entrada, seu coração


murchou.

– Ele a levou – foi tudo que Jim conseguiu dizer à sua mãe. O

pesar que ele sentia não foi aliviado, pelo contrário: se tornou mais
insuportável.

Berenice o abraçou assim que viu as lágrimas correrem pelo rosto


do filho. Marcas de saudade, de vingança e do mar que ele viria a
travar por Pryia.

– O que Leonardo poderia querer ainda com essa jovem, meu filho?

– Tudo. – Ele deu de ombros, os olhos fixos e desesperados. –

Ela é a única que sabe decifrar o mapa para o tesouro que pode
torná-lo mais poderoso do que qualquer outro homem que já existiu.

– Então nossa enviada partiu com o capitão mais nefasto dos sete
mares em direção ao Tesouro do Povo Submerso? Que...
conveniente – interrompeu Pequeno Dave, um dos irritantes
enviados de Nanrac. Eles foram convidados para o baile por
estarem hospedados na mansão, mas não deveriam estar se
intrometendo.

– Não ouse questionar as reais intenções de Pryia, ou eu te mostro


o que realmente seria conveniente – rosnou Jim.

– Você não deveria estar tão exaltado, exceto se houvesse verdade


nas palavras de Pequeno Dave, James. É meu dever informar que
isso é uma quebra de acordo e que, nesse caso, você deverá ser
submetido a julgamento em Nanrac – declarou Alex Gim com
naturalidade.

Ambos não usavam mais suas máscaras, e as expressões apáticas


e calmas só inflamaram ainda mais o gênio de Jim.

Malditos diplomatas e seu protocolo a ser seguido. Dave e Alex


tinham a personalidade de um esfregão usado, o que nunca havia
incomodado Jim. Bom, até aquele momento.

– Porque achar um culpado deve ser a prioridade em vez de


encontrar quem realmente está causando todo o tumulto. Eu achava
que Nanrac possuía embaixadores mais inteligentes, mas acho que
o cérebro de vocês está lotado de água salgada! – berrou Jim.

– Vale acrescentar que tudo que está dizendo está sendo registrado
em seus arquivos, que serão usados em seu julgamento

– comentou Pequeno Dave.

– Não vai haver julgamento nenhum – grunhiu Jim. – Eu vou


resgatar Pryia, nem que precise partir Nanrac ao meio para
conseguir.

– Anotou essa ameaça direta, Dave? – perguntou Alex Gim.


– Claro, claro... – Dave vasculhava os bolsos internos de seu traje
laranja brilhante, em busca de algo para tomar notas.

– Nenhum filho meu vai partir nada, nem tomar nenhum tesouro! Por
todas as estrelas, eu não os criei melhor que isso? –

Berenice tentava se manter estável, mas queria chorar. – Prezados


senhores, deve haver uma forma de resolvermos isso de forma
amigável, visando a nossa... – Como seu marido chamava os
planos? – inovação marítima... fenomenal!

– Eu estarei disposto a conversar amigavelmente assim que Pryia


estiver aqui. – Jim apontou vigorosamente para o chão. – Ao meu
lado. E qualquer um que se colocar em meu caminho será tratado
como meu inimigo.

O jovem marquês... Ou melhor, o jovem pirata falou. Suas palavras


não eram de um filho de lorde, mas de alguém que estava disposto
a quebrar qualquer lei, norma ou comando para ter sua amada de
volta. Ele havia roubado o coração de Pryia também, um crime pelo
qual Jim não se desculparia. Uma cantada idiota que ele ainda
viveria para repetir e roubar mais um sorriso dela.

– Anotou esse detalhe do “tratado como meu inimigo”, Pequeno


Dave? – insistiu Alex.

– Sim, sim! Anotei na mente, Gim. Só falta transcrever para o papel


– se apressou Dave em responder, enquanto vasculhava os bolsos
à procura de sua caderneta, pois já tinha um lápis em mãos.

– Seu patife de merda, vou anotar isso na sua cara!

Jim segurou Alex Gim pela gola de renda, prestes a disparar um


soco no meio de sua face sonsa. Quem sabe assim ele não mudaria
sua expressão permanentemente entojada? Pequeno Dave se
abaixou, e Berenice gritou tentando impedir a fúria de seu filho.

Mas foi outro som que interrompeu a briga:


– Não estamos entre inimigos até começarmos a nos tratar como
tal.

A voz da princesa Sabrina era calma, firme e macia. Um suspiro de


raciocínio em uma situação insana. Foi o bastante para Jim deter
seu golpe em Alex, que ao menos se deu ao trabalho de arregalar
os olhos.

– Amigos não ameaçam condenar inocentes – disse Jim com uma


voz amarga, fitando a princesa.

– E inocentes não agem como culpados.

Os olhos escuros da princesa estavam repletos de compaixão.

Foi quando Jim desabou em lágrimas, largando Alex Gim, que caiu
no chão.

– Princesa... eu... – Jim gaguejava, não sabendo por onde começar


a história. – Pryia estava logo aqui, mas agora...

– Nós ouvimos tudo. – disse a princesa.

– Mas é o noivado de vocês. Deveriam estar na sua primeira dança


nesse momento.

– Teremos todas as danças durante nossa vida juntas. Mas você


ajudou o nosso amor a encontrar um caminho... – Sabrina pegou na
mão de May, que estava ao seu lado. – Queremos fazer o mesmo
por você.

– E nem tente dizer que não precisa de nossa ajuda –

completou lady May.

– Você tem o apoio da coroa de Traberan e de Nanrac. Só nos


aponte a direção.
– Vossa Alteza está insinuando que Nanrac concordaria em ajudar
dois criminosos em fuga? – indagou Alex Gim, indignado.

– Eu não gostaria de sonhar que Nanrac questionaria a palavra da


Coroa, quando sua princesa diz que Hector James Cerulius II e
Pryia são nossos aliados, Alex Gim – disse Sabrina, sorrindo. Um
gesto diplomático, como forma de dobrar os grandes poderes à sua
vontade. Ela estava pronta para ser uma governante espetacular.

– Para onde acha que Pryia foi levada? – indagou May.

– Nossa enviada deve estar indo rumo ao tesouro – declarou Alex,


ajustando seu colarinho e escondendo seu orgulho ferido.

– Excelente. E como chegamos lá? – perguntou Sabrina.

– Convenientemente, ninguém além dela sabe como decifrar o


mapa – respondeu Alex.

– ... como decifrar o mapa – disse Pequeno Dave baixinho,


enquanto anotava tudo em seu caderno, sentado no chão. – Pronto,
acho que consegui anotar tudo, Gim!

Jim olhou para o patife aos seus pés, aninhado no chão como uma

doninha

aconchegada.

Nanrac

precisava

melhorar

urgentemente a seleção dos seus enviados, pois uma pilastra


possuía mais opinião e interesses do que Alex e Dave. O marquês,
atordoado, arrancou o velho caderno das mãos de Pequeno Dave.
– Ninguém precisa anotar porra nenhuma, me dá essa merda!

Jim olhou a capa de couro que tinha em suas mãos. Uma versão
mais trabalhada do que o caderno de desenhos de Pryia. Há tão
pouco tempo, ele havia se perdido nas suas histórias, enquanto
admirava seus traços e suas curvas. Seu coração se apertou dentro
do peito.

– Se Pryia é a única que sabe como chegar lá, como vamos ajudá-
lo, Sabrina? – perguntou May no ouvido de sua noiva.

– Faremos por eles o mesmo que fizeram por nós, Batatinha –

respondeu a princesa.

– Ela não é a única que sabe como ler o mapa – declarou Jim,
sentindo a ideia faiscar em sua mente como uma fagulha de
esperança.

– Nós também sabemos ler, marquês. Só não sabemos como


interpretar – interveio Alex. – Convenientemente, sua Pryia omitiu
esse detalhe em cada oportunidade que teve.

– Isso porque ela jamais entregaria seu maior segredo a qualquer


um – disse Jim.

– E suponho que ela contou a você – disse Dave, como se tirasse


um coelho de uma cartola.

– Ora, ora. Alguma coisa que disse essa noite está certa, afinal

– retrucou o marquês, satisfeito.

E sem perder tempo, Jim buscou no quarto a bolsa e o mapa de


Pryia. Ela lhe mostrou como chegar ao tesouro mais cobiçado de
todos. Era para lá que Jim estava indo, mas não pelo elixir, nem
pelo poder ou conhecimento. Mas por ela: o verdadeiro tesouro que
ele já havia encontrado em toda sua vida de riquezas. O seu
coração, a sua liberdade. O seu amor.
26

Coordenadas amaldiçoadas

A noite estava estranhamente quieta, como se o mar estivesse


inerte, pensativo. Apreensivo. Ou talvez fosse apenas a forma que
Pryia percebia os seus arredores. Ela já havia chorado calada, com
medo dos gritos presos em sua garganta atraírem a atenção da
tripulação. Sua maçã do rosto ferida pulsava, e um hematoma já
aparecia. O vestido dourado estava no chão, como uma montanha
de ouro, e ela usava uma blusa branca com mangas fofas que iam
até o cotovelo. O decote não era profundo, mas desenhava a curva
dos seus seios. Uma calça marrom subia até o alto da cintura e
combinava com um par de botas da mesma cor, que ela deixou no
chão, onde as encontrou.

Leonardo havia planejado isso, nos mínimos detalhes. Tudo naquela


cabine foi feito especialmente para ela, mas não com a intenção de
agradá-la. Não tinha papel nem carvão à vista. Nenhum espaço
para Olive, sua coruja que certamente estaria perdida, procurando
pela pirata. E o tom azul-marinho estava por toda parte, a cor que
assinava as posses do desgraçado Capitão Leonardo North. Os
aposentos de Pryia eram o maldito reflexo de sua opressão e
domínio.

A única coisa que ela realmente apreciou era a escotilha com vista
para o oceano. Ela era grande o bastante para que pudesse fitar o
horizonte, fingindo ser livre por alguns poucos segundos. A pirata
reviu suas chances milhares de vezes, mas não teria como escapar
do navio sem colocar a vida de Jasmine em risco. Nenhum dos
membros da atual tripulação de Leonardo era de sua época de
imediata. Certamente haviam morrido ou foram substituídos – como
Leo fazia com tudo e todos.

A pirata cruzou as pernas no colchão. A cama era macia,


reconheceu imediatamente, mas cansaço algum foi o bastante para
clamar seu sono. Uma parte dela queria aplaudir o destino, o caos,
a ironia que unia toda sua vida. Sempre que ela acreditava que algo
estava prestes a se ajustar, era lembrada que seu caminho jamais
seria tão simples.

Mesmo pudesse parecer assim nos momentos que estava ao lado


de Jim, desfrutando de suas noites mal iluminadas, implicâncias
sem sentido e risadas sem fim. Ela tentava dizer para si mesma que
deveria se sentir sortuda por ter experimentado tamanha alegria,
mesmo que passageira. Mas ela não queria que passasse. Então
decidiu que, se houvesse um caminho de volta para ele, ela traçaria
esse destino. Só precisava descobrir como fazer isso, pois mesmo
quando perdeu sua frota, seu pai e seu sobrenome, ela nunca havia
se sentido tão só. Ela sabia agora como era a sensação de estar em
casa. Era estranho como se tratava de uma pessoa, não de um
lugar. Ela sabia aonde precisava chegar. E isso não era mais do que
muitos podiam dizer?

– Olha só para você, minha querida.

Leonardo entrou na cabine, enquanto o sol alaranjado irradiava um


novo dia. Não bateu na porta, não anunciou sua chegada, apenas a
destrancou e fitou a silhueta de Pryia sentada na cama, contra a luz
da escotilha redonda. Ela não se deu ao trabalho de olhar na
direção do capitão.

Seus dedos lotados de anéis com gemas preciosas tilintavam


baixinho enquanto ele caminhava em direção à pirata.

– Está muito mais bonita agora do que com aquele vestido ridículo –
disse Leonardo, chutando o traje dourado com suas botas sujas.

Isso irritou Pryia, pois ela havia gostado do vestido – mesmo sendo
exagerado e desconfortável. Um vestido bonito ainda era um vestido
bonito.

– O que está fazendo aqui? – ela o cortou antes que continuasse


falando baboseiras sobre sua roupa.
– Uh, alguém acordou de mau humor! Qual é o problema, Pryia?
Encontrou carrapatos no colchão? Mandei preparar um tão

confortável para nós dois...

– Não existe “nós dois”, Leo – ela evidenciou de forma pejorativa.

– Olhe em volta. Claramente existe.

Leonardo se sentou na cama ao lado da pirata, e ela estremeceu.


Pryia sabia se defender se fosse preciso, mas jamais passou por
uma situação em que fosse forçada a se deitar com alguém. Ela
esperava que a monstruosidade de Leonardo não chegasse tão
longe.

O capitão torceu os lábios ao ver o pequeno hematoma no rosto de


Pryia, junto aos círculos escuros abaixo de seus olhos.

– Você não dormiu, não é? – ele perguntou.

– Olhe só, temos um gênio aqui.

– Seu rosto está terrível, querida.

– Deve ser porque um babaca me bateu ontem, depois de me


sequestrar – ela enrijeceu o tom de sua voz, o mantendo baixo.

– Você costumava gostar de um tapa de vez em quando. – Leo


piscou um olho.

– Não assim, Leonardo! Pelos deuses, você é doente?

Pryia se levantou da cama, não suportando o sorriso cínico e


dourado no rosto do capitão. A aurora só iluminava ainda mais suas
feições portadoras de beleza asquerosa.

– Vamos ser diretos? O que eu preciso fazer para voltar para a


minha vida?
– Você não está falando sério que aqueles bailes idiotas junto do
meu irmãozinho são o que a incrível Pryia agora chama de vida, não
é?

– Não te interessa – Pryia rebateu, com raiva.

– Interessa, sim, queridinha. E muito. – Leonardo ficou em pé, de


frente para ela. Sua presença a sufocava, mas ela manteve os
ombros erguidos.

– Leonardo, você não me quer. Você quer algo que eu possa fazer
por você. Então me diga logo o que é.

– Pryia, Pryia... Eu não gosto que você me faça parecer o monstro


aqui. Eu te ofereço uma tripulação para te tratar como uma princesa,
uma parte do elixir do Povo Submerso e uma posição ao

meu lado para governar os mares, e é assim que você retribui?

Assim você me machuca.

– Pena que não o bastante para te matar – ela murmurou.

– Você está mesmo tão assanhada assim para ser uma cadelinha
de companhia da nobreza de Realmar?

Leonardo cuspiu no chão ao terminar a frase e balançou a cabeça,


incrédulo. Respirou fundo e voltou a encarar a pirata.

– Minha querida, você perdeu o bom senso. Ainda bem que eu te


encontrei.

– Sequestrar não é encontrar, Leonardo.

– Ué. Pirata – ele declarou, apontando para si mesmo e sorrindo


orgulhoso.

Pryia revirou os olhos e se distanciou dele, indo em direção à porta


entreaberta. Ela nadaria até a morte, mas deixaria o Rosa dos
Ventos imediatamente. Já havia sobrevivido em condições piores.

– Não vá fazer nada idiota, Pri. Sabia que Jasmine não sabe nadar?
Ela está bem, por sinal, foi gentil da sua parte perguntar sobre sua
amiga.

– Eu quero vê-la – disse Pryia com a mão apoiada na maçaneta.

– Está começando a falar como uma imediata novamente, gosto


disso. Mas aqui você não me dá ordens, querida.

– Leonardo, ela é inocente. Você precisa deixá-la livre e em


segurança em algum porto, com recursos para voltar para casa. Não
precisa envolvê-la na nossa história.

– Tarde demais, não acha, Pryia? – Ele franziu a testa, como um


cachorro faminto. – Mas você pode ajudá-la, se realmente é o que
deseja. Me leve até o Tesouro. Sem paradas, sem desvios. –

Seu tom ficou grave.

– Você tem o mapa e não sabe como ler? Uau, eu imagino o que
isso deve ter causado na sua reputação... Foi por isso que você
trocou toda a tripulação? – Pryia gesticulou com os dedos,
mostrando ao redor do navio.

– Claramente, eu preciso da sua esperteza. Me leve até o tesouro,


sem truques, e Jasmine estará livre e em segurança.

– E eu?

– Depois você me chama de egoísta...

– Nós duas devemos ser libertas em segurança, sem ninguém deste


navio encostar em um centímetro nosso.

– Posso prometer que ninguém encostará em vocês até chegarmos


ao tesouro. Acho esse seu joguinho de “brincar de difícil”
e “precisar esperar” uma delícia, Pryia. Estava com saudades de
você.

– Você é nojento – ela deixou escapar.

Leonardo soltou uma risada baixa.

– Eu espero você mudar de ideia. Agora, venha. Precisamos definir


as coordenadas.

27

A canção do mar

Outra noite sentindo a brisa opaca do mar respingar água salgada


em seu rosto. Outra noite em que ele se afogava em sede de
vingança. Outra noite provando da liberdade com sabor de solidão.

Outra maldita noite sem ela.

O mar parecia mais silencioso do que o de costume, como se o


vento não se importasse em anunciar sua presença ao soprar, e até
as estrelas estavam caladas entre si. Apreensivas. Impotentes no
firmamento, podendo vigiar, mas não alertar, os dois amantes dos
perigos que os aguardavam.

As águas agora possuíam tom de verde-esmeralda, mesmo à noite.


Haviam finalmente alcançado o mar de Cascais. Ninguém sabia de
verdade o que seria feito ao alcançar o elixir do Povo Submerso.
Qual o poder ele conferiria a um corpo humano, uma vez que fora
criado para potencializar as habilidades marítimas.

Jim estava inclinado sobre a balaustrada do poderoso barco de


Nanrac. Já não havia mais lágrimas no homem, que ora era um
marquês, ora um pirata. No momento, ele sentia-se apenas vazio.

As risadas de Sabrina e May ecoavam no deque, certamente por


terem ganhado mais uma partida de cartas contra Alex e Dave. Os
oficiais de Nanrac podiam ter a personalidade de uma estrela-
domar, mas estavam de fato se esforçando para se manter nas
graças da Coroa de Traberan. É o velho ditado: ”Negócios antes dos
escrúpulos”.

– Jim, venha! Vamos começar mais uma rodada! – gritou May,


acenando com uma das mãos, enquanto segurava um cobertor
sobre os ombros com a outra.

Jim tentou ignorar, mas os gritos de Sabrina intensificaram os


pedidos. Até que a voz aguda de Pequeno Dave o convenceu a se
sentar com eles. Talvez faltasse aos oficiais a oportunidade de viver
momentos de descontração. Afinal, é isso que faz uma pessoa ser
humana.

– O que estamos jogando? Pokka? – perguntou Jim, ajeitando sua


camisa. Ela estava totalmente torta há horas. Há dias.

– Marreco – respondeu princesa Sabrina, enquanto embaralhava as


cartas com incrível agilidade nos dedos.

– Ás são baixos ou altos? – perguntou Alex Gim.

– Ambos, é claro – May cortou a resposta.

– Fico honrada que resolveu deixar seus pensamentos de lado um


pouco para jogar conosco, Jim – disse Sabrina baixinho. Ela agora
distribuía as cartas.

– Você se engana se acha que parei de pensar, Brina... Não acho


que eu consiga – respondeu o marquês. Pirata. Os dois.

Alex, Dave, May, Jim e Sabrina pegaram, cada um, sete cartas.

Marreco não era um jogo complicado, mas era um carteado da


realeza, não de piratas. O objetivo era montar uma tríade com o
valete, a rainha e o rei do mesmo naipe – do mesmo reino.

A pessoa que tivesse um ás do mesmo naipe, ou seja, quando o ás


era considerado uma carta alta, ganhava mais 100 pontos. E
quando o ás era de um naipe diferente, passava a ser considerado
uma carta baixa e reduzia 100 pontos da mão, tal como uma
maldição. O ás só poderia ser descartado junto a uma carta de um
dos membros da tríade. Ao final de sete rodadas, cada membro da
mesa deveria mostrar sua mão para contar os pontos.

Jim manteve o foco nas suas cartas, mas, aparentemente, nem


mesmo o baralho lhe trouxe sorte. Então, ao invés de pensar em
estratégias, ele admirou as cartas que eram desenhadas à mão;
uma arte fina de pintura delicada em tons de roxo e verde-escuro. O

dourado que envolvia a parte traseira do baralho certamente era


folheado a ouro. O marquês havia dito para partirem imediatamente,
levando apenas o essencial, e sorriu pensando nas prioridades da
princesa e de sua noiva.

– Foi assim que vocês ficaram amigas? – perguntou Jim para May.

– Na verdade, foi assim que nos tornamos inimigas – disse ela,


sorrindo como se lembrasse de um momento específico. – Eu
sempre ganhava de Sabrina quando jogávamos Marreco com outras
garotas nos eventos de socialização.

– Você sempre roubava, Batatinha – interveio Sabrina, falando


entredentes e jogando um ás e um rei no centro da mesa.

– Vai começar de novo, Bri? – May revirou os olhos.

– A realeza de Traberan é bastante estranha, não acha, Gim? –

sussurrou Pequeno Dave para Alex.

– Estranha, sim, mas não surda – berrou Sabrina, com um sorriso


perolado no rosto, jogando uma carta no centro da mesa de forma
despreocupada.

– Não grite, vão nos ouvir! – May apertou a mão de sua noiva.
– May, olhe em volta. – Sabrina levou os dedos frios de May até
seus lábios e deu um beijo. Fitou a noite estrelada e o infinito
oceano que os cercavam. – Não tem ninguém aqui. E mesmo que
tivesse, nós não somos mais um segredo.

– Não sei se vou me acostumar com isso – sussurrou May antes de


puxar a mão de Sabrina para retribuir o gesto.

– Vocês têm a vida toda para tentar – interveio Alex.

Todos olharam perplexos para Alex Gim, que havia disparado o belo
conselho.

– O quê? Não posso ficar comovido diante de uma história de amor?


– completou ele.

Uma risada baixa fluiu pela mesa, e eles continuaram a jogar. O

barco mal se movimentava, mesmo com as ondas. A República de


Nanrac possuía as melhores inovações marítimas, e aquela
embarcação era a mais ligeira que eles tinham disponível. Jim havia
visto seu projeto de construção, mas ainda assim disparou uma
prece para que fosse rápida o bastante para alcançar Pryia antes
que se tornasse tarde demais.

Sabrina estava certa... observar os quatro ali, de trás de suas


cartas, o ajudava a se desviar dos pensamentos desolados. Alex e
Dave, quando vistos de perto e longe de assuntos burocráticos,

pareciam ter um coração. Ou algo semelhante. Já May e Sabrina


viveram suas vidas lado a lado, sem nunca poderem estar juntas de
verdade. De mãos dadas, se abraçando, se beijando e se
chamando por apelidos especiais.

A primeira coisa que Jim faria ao estar com Pryia seria inventar um
apelido para ela. Alguma coisa idiota, que a fizesse sorrir, para que
ele pudesse ter a sua visão iluminada sempre que quisesse.
A ideia o aqueceu por um instante, mas logo era como uma nevasca
em seu peito. As sete rodadas de Marreco haviam acabado, e Jim
havia perdido todas. Ele não se importava com as cartas, mas uma
discussão inflamada entre May e Sabrina sobre um

“roubo descarado de valetes” começou a interferir no silêncio da


noite.

O marquês agradeceu a partida e se retirou. Pensou em ir até sua


cabine, mas preferiu andar para o ponto mais distante do navio.

Ele não poderia enfrentar Leonardo e sua tripulação inteira com


duas jovens aristocratas e dois cabeças de abacate. Em número,
eles perderiam.

Então Jim teve uma ideia. Algo louco o bastante para dar certo, um
ato desesperado de um apaixonado. Ou de um idiota. Ou, nesse
caso, dos dois. O mar estava silencioso demais, mas ele sabia
como voltar a ter melodia e canção a sua volta. Lembrou de alguém
que conhecia bem o verde mar de Cascais e que poderia ajudar a
proteger o tesouro. E, quem sabe, lutar contra Leonardo.

O pirata idiota e apaixonado buscou cera de vela por todo navio e


entregou a Dave, Alex, Sabrina e May, pedindo para que
tampassem os ouvidos com ela. Mesmo um tanto quanto confusos,
eles obedeceram. Afinal, Jim estava passando por dias difíceis, e se
disse que colocar cera de vela nas orelhas era uma boa ideia, não
parecia gentil contrariá-lo. Depois, ele pediu a todos que se
recolhessem em suas cabines e trancassem as portas. Ele não
arriscaria a vida de seus aliados.

Então, sozinho no convés, Jim cantou. Desafinado, pois mal podia


se ouvir. Mas repetiu, balbuciando as palavras que não conhecia, na
melodia que usava como uma segunda pele nos

momentos que sentia falta de Pryia. Ele acreditava na música.

Queria acreditar. Precisava.


Eu nadarei até o fim do horizonte para voltar para meu belo amor.

Nenhum humano poderia reconhecer o significado de tais palavras,


mas Jim não buscava ajuda de um ser humano. Ele tinha como
aliada a herdeira do maior reino da superfície. E agora precisava da
ajuda da herdeira do mar.

As ondas se agitaram em resposta, e as estrelas exclamaram pela


ousadia do marquês, que repetia sem parar, com um sotaque
carregado, as mesmas palavras do mesmo verso da mesma
canção.

E ele só se calou quando viu subir no convés uma sereia de olhos,


cabelos e cauda douradas, seguido de outras duas: uma de cabelos
azul-escuros e olhos doentiamente verdes, e outra que parecia uma
encarnação do crepúsculo alaranjado.

Sua visão era como a memória de um sonho que estava enterrado


em sua mente. Os desenhos de Pryia eram fiéis aos traços reais,
provando o talento de sua amada, mas havia algo além por estar na
presença de sereias. Um magnetismo surreal emanava de suas
auras brilhantes... um pouco semelhante ao que ele sentia quando
estava perto da sua adorada pirata.

Mesmo sem conseguir ouvi-las, a mera visão era quase o bastante


para hipnotizá-lo, mas ele precisava manter sua mente clara. Ficou
em silêncio e não podia ouvir o que elas diziam com a cera de velas
nos ouvidos. Pérola pareceu aborrecida com sua falta de resposta.
Elas poderiam atacar a qualquer momento se ele continuasse
paralisado.

Então Jim olhou para o céu, reunindo sua coragem, e repetiu as


palavras sem cantar e sem ter certeza de qual significado saía de
cada som que pronunciava pausadamente com a voz grave e
trêmula:

– Eu nadarei até o fim do horizonte para voltar para meu belo amor.
Pérola abriu um sorriso satisfeito e jogou sua cauda para dentro no
navio.

– Esse não foi o humano que você deixou de afogar? – a voz de Isla
soou enjoativamente.

– Naquele dia, ela estava uma chata... – Eriela revirou os olhos


alaranjados.

– Não só naquele dia.

– Irmãzinhas, já basta – interrompeu Pérola. Suas palavras podiam


ser mais venenosas do que uma caravela.

A sereia dourada não sabia como aguentava viver noite e dia com
suas irmãs seguindo cada movimento que fazia.

Pérola gesticulou com os dedos para Jim retirar o que quer que
estivesse no seu ouvido. Ela se lembrava da bela pirata que foi
resistente o bastante para desafiá-la – jamais esqueceria um rosto
como o dela.

Jim precisava confiar que estava fazendo o certo, mas, ainda assim,
tremeu ao tirar sua única proteção contra a voz mágica das sereias.
Ele estava fazendo aquilo por Pryia, e, mesmo sendo um gesto
insano com todos os elementos para dar errado, havia uma chance
de dar certo. Era tudo que ele precisava.

– Da última vez que o vi, você estava diferente – disse a sereia em


suas palavras de ouro.

– Hipnotizado, não é? De fato, não é o meu natural – respondeu


Jim.

– Até que ele fica bem bonito quando não parece um imbecil –
falou Eriela, torcendo um cacho ruivo molhado com os dedos. Gotas
tilintavam das sereias sentadas na beira do deque, com suas
caudas brilhantes balançando.

– Eu odeio concordar com você – respondeu Isla, imitando o sorriso


afiado de sua irmã.

Pérola permanecia com a expressão indecifrável, enquanto ouvia o


interminável discurso sem sentido de suas irmãs. Algo não estava
certo com o mar, e elas deviam sentir isso. A herdeira do mar
sentia... As ondas se movimentavam com uma estranha dinâmica,
como se estivessem preocupadas. Esperando.

– Desculpe decepcioná-las, garotas. Mas já fui fisgado. – Jim forçou


seus lábios para cima, guardando a cera de vela nos bolsos da
calça. Um gesto corajoso e tolo.

Pérola deixou escapar uma risada, que saiu como um ronco.

Suas irmãs olharam atravessado para ela, que ignorou, mirando o


marquês.

– Se você se sente confiante o bastante para dispensar minhas


irmãs, ela deve ser mesmo bem especial.

– Ela é. – Jim sentiu sua respiração pesar.

– E onde está ela?

– Foi levada.

– Vou precisar fazer todas as perguntas ou pretende dizer de uma


vez por que arriscou sua vida para nos chamar?

A verdade é que Jim não sabia o que fazer. Metade da sua postura
era sua nobre criação diplomática, e a outra metade era impulso
apaixonado. Ele não havia sido preparado para barganhar com
sereias, mas alegremente aprenderia se isso significasse ter Pryia
de volta.
– Pryia é refém do Capitão North. Acredito que eles estejam indo em
direção ao tesouro do seu povo.

Pérola absorveu esse nome, que ressoava em algumas memórias


perdidas de sua infância. Algo que sua mãe costumava citar. A
sereia mordiscou os lábios, enquanto sua própria história se
encaixava na sua mente.

– E por que você acha que humanos saberiam chegar até lá?

– Claramente você não conhece minha mulher.

– Mais do que você imagina – desafiou Pérola, levantando uma


sobrancelha.

– Ela sabe como encontrar a estrela perdida à meia-noite. – Jim


engoliu em seco. – E eu também.

– Ele está praticamente implorando para ser afogado –

murmurou Eriela. Ela agora trançava os cabelos azuis de sua irmã,


que fingiu uma gargalhada tímida.

– Estou implorando por ajuda, Pérola. Vossa Alteza... Marítima.

Eu sei o caminho, mas não posso lutar contra a tripulação do Rosa


dos Ventos sozinho.

– Qual é o seu nome mesmo, humano? – perguntou a sereia, sem


piscar seus olhos dourados.

– Jim. Por que isso é relevante?

– Não faço acordos com estranhos – ela respondeu imediatamente.


Sua voz, mesmo sem cantar, inebriava parte dos sentidos. – E não
me parece justo você saber como nos chamar, e nós não. Diga, Jim
do Povo da Superfície, por que nós o ajudaríamos?
– Se o maldito Leonardo tomar o elixir, não é só na superfície que
ele poderá espalhar o caos.

– Me parece que tem uma história inacabada aí – provocou Eriela.

– Rancor é um sentimento muito feio – completou Isla, fazendo


biquinho.

– Claro, e a dinâmica de vocês parece super saudável –

instigou Jim, gesticulando sarcasticamente na direção das sereias.

Eriela e Isla levaram as mãos ao peito, profundamente ofendidas.

– Pérola, eu quero tanto afogá-lo! – Eriela pulou para dentro do


convés e agarrou a mão de Jim, puxando-a ao mesmo tempo que
murmurava uma melodia que criou uma névoa em seus sentidos.

Isla abriu a boca para cantar junto da irmã, mas Pérola a empurrou
de volta para o mar. O som de água soou abafado na noite, e a
herdeira do mar puxou Eriela pelo pulso, dizendo:

– Já chega, irmã. Prometo que buscaremos uma diversão para você


em breve. Mas não com esse aqui.

Eriela se calou, irada por ser forçada a obedecer a irmã mais velha.
A pena por contrariar a princesa herdeira poderia chegar ao
banimento, e a paciência de Pérola não se estendia muito. Sua
única qualidade, na opinião das irmãs. A sereia contrariada ficou
com o rosto tão corado quanto seus cabelos ruivos e cauda laranja
e logo se atirou do barco com incrível agilidade, nadando para longe
com Isla.

Jim estava caído no chão, ainda hipnotizado, e Pérola sentou-se ao


seu lado a fim de quebrar o encanto. Um leve tapa no rosto traria
sua consciência em poucos minutos. Então Pérola repassou

os últimos acontecimentos na sua mente e esperou o marquês


acordar.
– Eu já morri? – a voz de Jim estava embriagada. Ele conseguiu se
sentar com dificuldade e encarou a sereia.

– Que eu saiba, não. Qual é o plano?

– Você é a princesa do mar, não é? Poderia clamar o poder


submerso de Nanrac para impedir meu irmão.

– Ah! Então vocês são irmãos... E eu achei que minha relação com
elas que era complicada. – Pérola olhou para o mar escuro do outro
lado da balaustrada. Um símile de lamento correu pelos seus olhos
âmbar.

– A gente não escolhe família, não é?

A sereia sorriu. Por um instante, Jim viu que o jeito dela de se mover
era parecido com o de Pryia.

– Acho que não – suspirou. – Mas sinto dizer, Jim da Superfície, que
não posso envolver Nanrac na sua missão. Nossos povos já têm
muita dificuldade para aceitar a existência um do outro. Um ato
assim de Leandro seria visto como uma declaração de guerra.

– O nome dele é Leonardo.

– Essa não é a parte importante. Nossa, minha irmã estava certa


quando disse que você é um idiota.

– Sua irmã me chamou de imbecil, na verdade.

– Não a que você procura – Pérola sorriu em uma declaração


silenciosa de que sabia mais do que estava contando.

Jim encarou Pérola atônito. Eriela certamente havia cantado perto


demais dele, pois não poderia ter entendido corretamente o que a
sereia havia acabado de dizer. O marquês ficou alguns instantes em
silêncio, juntando as poucas informações que tinha sobre o passado
de Pryia. Sua mãe havia partido pouco depois de ela nascer; a
canção que ela amava não era conhecida por ninguém da
superfície, assim como sua naturalidade com o desconhecido
idioma do Povo Submerso. E algo na forma de Pérola se mexer era
semelhante a da pirata.

– Como? – Foi tudo que ele conseguiu articular.

Pérola não sabia a que exatamente ele se referia, então disse a


única verdade que a assombrava desde a primeira vez que ela

colocou os olhos em Pryia, no dia do terrível naufrágio:

– Pryia se parece com a minha mãe. – Ela deu de ombros, o silêncio


desconfortável repousando no seu colo escamado. – E você é o
meu cunhado.

– Pretendo ser. Mas, para isso, preciso salvar sua irmã. – As


palavras de Jim ainda não pareciam reais. Pelos Deuses, quando
Cecília ouvisse essa história, ela não iria parar de fazer perguntas.

– Não seria a primeira vez que faço isso. Vamos lá, o quão difícil
pode ser?

– Difícil – ele respondeu, tentando sorrir ao assimilar que Pryia não


era só uma pirata... mas também uma princesa do mar.

As ondas poderiam estar em silêncio, mas as estrelas estavam em


total alvoroço. Jim havia descoberto a verdadeira origem de Pryia,
desconhecida até para a própria moça. E agora, ela teria a chance
de ter uma família novamente. Se existia alguém que merecia esse
acolhimento, era ela.

A alegria e empolgação dos astros durou apenas essa noite.

Eles sabiam que, em breve, seus heróis seriam atingidos por uma
tempestade.
28

Hora da verdade

O tempo passou em câmera lenta, mesmo contando com os ventos


fortes no céu limpo e com os rápidos motores dos navios que
rumavam em direção à estrela oculta da noite, à meia-noite.

Qualquer leigo poderia dizer que a quietude do oceano se formava


graças a uma mudança climática totalmente esperada pelos piratas
que fincam suas residências em alto-mar.

Contudo, aqueles poucos e raros que sabiam ler as marés


entendiam que a calmaria que se formava era feita pela matéria do
caos. A cada mudança no curso do destino dos seres vivos, Eris
sorria. Curiosa e ansiosa para saber os desdobramentos que se
dariam diante das escolhas tolas dos humanos.

Foi graças à Deusa do Caos que Pryia conheceu Leonardo, logo


após ter perdido tudo. A mestiça da terra e do mar, com o mestiço
da nobreza e da escória. Claro que seriam um casal interessante!
Eris era apaixonada pela imprevisibilidade e pela surpresa e se
divertiu assistindo os dois por um tempo.

Como uma divindade, ela sabia que era o destino de Leonardo


buscar o elixir do Povo Submerso. Foi exatamente para isso que ela
criou a poderosa poção: um elemento de caos, intriga e poder. Algo
que poderia entreter sua imortalidade.

E agora, só lhe restava esperar um pouco mais.

– Eu não imaginava que o mar poderia ser tão verde assim –

disse Jasmine casualmente.


Ela não falou como se estivesse há dias sem ver Pryia. Falou como
se não estivesse temendo por suas vidas, nem como se estivesse
totalmente desolada. Afinal, não existia um momento ruim ao lado
de Jas. Ela era uma dessas pessoas que parecem um porto-seguro
ensolarado.

– Dizem que existe, à oeste da Floresta do Encontro, a Praia do


Arco-Íris. A água é transparente, mas as brumas são totalmente
coloridas. – A voz de Pryia era a melodia em um sussurro.

– Parece um lugar perfeito para caminhar na orla. Nós deveríamos ir


um dia.

– Eu não vejo por que não.

O sol estava quase a pino no convés, refletindo o brilho da água


como se fossem diamantes que oscilavam no horizonte. Jasmine
estava apoiada sobre a balaustrada, olhando para o mar, com os
cachos vermelhos presos em um coque bagunçado para evitar os
nós causados pela maresia. Ela manejou um sorriso torto para Pryia
enquanto apertava sua mão. A pirata retribuiu o gesto e a puxou
para um abraço apertado.

Leonardo havia deixado na cabine de Jasmine um vestido branco de


algodão com mangas bufantes, acompanhado por um espartilho e
botas marrons. Pryia usava um modelo parecido na cor azul-
marinho, mas feito de seda, e uma fita de cetim preta estava
amarrada no seu pescoço. Um pedido estúpido da parte do capitão:
que toda a tripulação estivesse bem-vestida para presenciar seu
momento de glória.

Ao meio-dia, ele mergulharia e tomaria seu lugar como o homem


mais poderoso do mundo. Então não haveria mais motivos para se
ter esperança. Pryia sabia disso, e Jasmine também. Por isso, as
amigas preferiram fazer planos para um futuro que não existiria,
sorrir diante de memórias que não passavam de ilusões e se
abraçar – pois era a única coisa que poderiam fazer para salvar
seus espíritos quebrados.
– Vou levar você para casa em segurança, sabe disso, não é? –

Uma mentira da falsificadora de mapas.

– Sei, sim. – Uma verdade da ruiva espirituosa.

O som de palmas fez Pryia soltar Jasmine, colocando sua amiga


atrás dela enquanto encarava Leonardo, cujo sorriso dourado e
debochado a encarava. Uma beleza cruel e nefasta.

– Vocês podem me convidar para um abraço assim quando


quiserem.

– Convite declinado, Leo – a pirata respondeu com a voz baixa e


firme. Pela segurança de Jasmine, ela não confrontaria o capitão em
público. Mesmo que seu sangue fervesse e seu punho fechasse.

– Assim você fere meus sentimentos, Pryia.

– Você não tem sentimentos por ninguém além de você mesmo.

– Tenho por você – ele disse, fingindo mágoa profunda.

– Tesão não é sentimento – interrompeu Jasmine, indo para o lado


de Pryia.

Leonardo deixou uma risada escapar e olhou as duas mulheres dos


pés à cabeça. Jasmine tinha uma beleza oculta, que se apoiava em
seu charme, espírito livre e despreocupação. Mas Pryia era como o
mar: impossível tirar os olhos do seu rosto bem desenhado ou das
curvas fartas dos seus seios e quadril. A seda azul caía por seu
corpo como se ela estivesse vestida com o próprio oceano.

Exceto que, agora, estavam cercados pelo mar de Cascais.

– Gosto da sua ousadia, Jas. Uma pena não termos tido a


oportunidade de nos conhecer melhor.
– Talvez seja porque fiquei os últimos dez dias presa em uma cabine
– Jasmine rebateu. Sua inconsequência seria seu fim, se falasse
assim novamente.

– Ei, uma cabine de luxo. Não seja mal-agradecida. – Leonardo


segurou as abas largas de seu chapéu e o jogou no chão.

Tirou o mapa falsificado do bolso de seu casaco e o rasgou na


frente de todos. Pryia sentiu seu peito apertar, e o capitão piscou
para ela. Ele sabia que o mapa era uma farsa, mas não se
importava. Não quando tinha ela. A tripulação voltou a atenção para
seu capitão.

– Hoje, o Rosa dos Ventos começa a conquistar não só os


territórios, mas também as profundezas do oceano! – ele bradou.

Aplausos e assobios interromperam o silêncio inquieto da maré.

Leonardo tirou seu casaco e o entregou para um de seus marujos.

Enquanto dobrava as mangas de sua camisa, ele falou:

– Eu, Capitão Leonardo North, trouxe vocês até a localização do


misterioso Tesouro do Povo Submerso. A minha vitória será também
a de vocês, por seguirem fielmente seu capitão!

Mais aplausos, gritos e euforia. Pryia sentiu seu coração gelar e


procurou pela mão de Jasmine.

Leonardo prendeu seus dread locks com uma fita, tampou seus
ouvidos para evitar que água entrasse neles, tirou suas botas e
voltou sua atenção para Pryia.

– Hora do show, delícia.

– Eu entendi mal ou não era o Capitão Leonardo North que iria


conseguir o tesouro?
O sorriso dele se fechou. O tempo havia acabado. O sol já estava a
pino. Meio-dia.

– Esqueceu o que acontece quando você não colabora, Pryia?

– A ameaça estava velada em cada palavra doce do capitão.

Mais uma vez, o sabor amargo da esperança a abandonava.

Era como escalar uma montanha usando um fio de linha como


corda. Uma questão de tempo para queda livre. Ela olhou para a
amiga, desejando ver seu sorriso torto novamente. A pirata deu um
beijo no rosto de Jasmine e repassou mentalmente o enigma do
mapa.

O oceano que se esconde mora abaixo da estrela oculta da noite, à


meia-noite.

Eles estavam no verão, então Pryia tirou suas botas e olhou para o
horizonte esverdeado de Cascais. A água era como a Aurora Boreal
aos seus pés. Como ela gostaria de desfrutar da paz desse lugar, se
tivesse tido a oportunidade para isso. Seus cabelos acariciavam o
topo de seus ombros, e ela os prendeu atrás da orelha, mas sua
franja ainda escapava.

Pryia se concentrou. Buscou encontrar o ponto exato em que


precisaria mergulhar, onde o reflexo do sol refletia sobre o mar, a fim
de encontrar o tesouro. E poderia ser loucura ou desespero, mas
sentia que o mar a chamava. Não como da vez em que sobreviveu
ao naufrágio, mas como no dia em que encontrou o mapa preso na
garrafa de vidro, que era do mesmo tom verde-esmeralda.

Ela estava cumprindo seu destino, mesmo que na hora errada e


com a pessoa errada. Esse momento era dela, e quem sabe o que
poderia acontecer se ela pegasse o elixir antes de Leonardo?

Pryia olhou para Jasmine e assoprou um beijo na sua direção.


Sua amiga o pegou com a mão e abriu a palma sobre seu coração.

Depois a pirata correu os olhos para Leonardo, que mantinha sua


postura triunfante. Em um desafio, ela saltou para o mar e começou
a nadar.

Em um momento, o mundo era vento, frescor e ar. E no outro, sal,


pressão e pressa. Pryia nadou o mais rápido que conseguia, com o
estúpido vestido preso ao seu corpo. Desde o naufrágio ela não
havia sentido vontade de mergulhar, mas, antes disso, ela fora uma
nadadora excepcional. Nem ao menos tinha grandes problemas
para enxergar debaixo d’água.

Ela sentia a pressão a sua volta, claramente indicando que aquele


ali não era o lugar para uma humana. Mas, de um jeito estranho,
parecia ser um lugar apropriado para Pryia. A sensação de paz
durou muito pouco, pois logo em seguida percebeu a agitação na
água. Leonardo estava atrás dela.

Diferente dele, que nadava buscando seu fôlego pela superfície,


Pryia buscava encontrar o ponto em que o raio do sol mergulhava
sob as ondas. Leonardo que fizesse seu melhor para seguir sua
sombra.

O capitão não ficou feliz com seu comportamento e logo mergulhou,


a puxando pelo braço de volta para a superfície.

– Que merda é essa, Pryia? – ele disse ofegante, seus olhos


vermelhos graças ao sal.

– Se não consegue me acompanhar, não deveria ter pedido a minha


“ajuda” – ela provocou, sem mostrar outros sinais de que estava
afetada pelo mergulho além de seus cabelos molhados.

Ela abriu um sorriso satisfeito e, aproveitando que estava no mar,


subiu a barra do seu vestido e o amarrou junto ao quadril. Com mais
liberdade nas pernas, poderia nadar ainda melhor. E sem se

despedir de Leonardo, Pryia mergulhou em direção ao baú do


tesouro.

A pirata podia ver sua superfície dourada, reluzindo como estrelas


no fundo do mar. Apenas areia cercava o ponto inóspito.

Nenhum sinal de civilização marítima ou terrestre por milhas e


milhas, a não ser por uma carroça naufragada enterrada pela
metade. Pryia estendeu seus braços, ávida para tocar no baú e se
libertar daquela ameaça.

Pilhas de moedas de ouro, pérolas e gemas coloridas eram o único


ponto de cor além das águas verdes que a cercava, mas o que a
fascinava não era a expectativa de riqueza e fortuna, e sim a chance
de liberdade.

Esse era o seu destino.

Ela podia quase tocá-lo com a ponta dos dedos. Mais algumas
braçadas e ela poderia alcançar a tampa do baú dourado, revelando
assim o cobiçado tesouro. E Pryia seria aquela a tomar do elixir,
mas algo a distraiu.

29

O elixir

– Pryia, não toque nisso!

A voz de Pérola era um comando impossível de se ignorar.

Contudo, nem mesmo Eris soube definir se a sereia ordenou que a


pirata que ficasse longe do elixir para protegê-la ou para evitar
perder sua própria coroa. Afinal, como sua irmã mais velha e com o
poder dos sete mares, Pryia facilmente poderia herdar o mar. A
sereia estava disposta a ajudar, mas isso não significava abrir mão
da vida que lhe fora prometida.
Pryia se espantou, e água entrou em sua boca, fazendo seu fôlego
acabar mais rápido do que deveria. A sereia, que reluzia como ouro
puro, se colocou entre o baú e a pirata.

Pérola não entendia a gravidade da situação. Não parecia


compreender que seu pior pesadelo estava prestes a se tornar
realidade em poucos instantes. A pirata alcançou a areia submersa
e, flexionando os joelhos, pegou impulso para voltar à superfície e
respirar. Ela não teve tempo de olhar em volta, portanto não
percebeu Leonardo sorrindo ofegante e mergulhando no ponto em
que ela havia emergido.

Assim que viu o olhar vermelho e vidrado do capitão, a sereia


começou a cantar. Leonardo estaria totalmente incapaz sob o efeito
de sua voz. A melodia fluía na água, reverberando com mais
intensidade e preenchendo todo o território inóspito com encanto e
beleza hipnótica. Ele estava prestes a perder, assim como todo
homem que falhava, um final merecido para o pirata desgraçado.

O capitão sorriu sem mostrar os dentes ao ver a belíssima sereia


cantando diretamente para ele. Sem dúvidas, era o ápice de sua
vida: estar prestes a conquistar o mundo enquanto recebia a

serenata diretamente da herdeira do mar. Todos o desejavam e


fariam tudo por ele. Quem não gostaria de cair nas graças do
poderoso Capitão Leonardo North?

Uma pena que ele não podia ouvir uma palavra. Diziam que o canto
de uma sereia era letal, mas que o marujo morreria com um sorriso
no rosto. Bom, ele preferiria viver com um sorriso hoje.

Leonardo nunca mergulhava sem proteger seus ouvidos da água.

O que dizer? A sorte escolhe estranhos hospedeiros.

Pérola continuava cantando, com mais e mais fervor. A melodia se


tornava mais encantadora a cada nota que ela modulava em sua
voz etérea. Movimentava seus braços e mãos como as próprias
ondas do mar, fazendo seu cabelo brincar com a gravidade
excêntrica das profundezas. O capitão nunca em sua vida viu algo
mais gracioso e lindo.

Infelizmente, Leonardo era um desgraçado. Um desgraçado


inteligente. Enquanto nadava em direção à sereia, ele fingiu que
estava hipnotizado por ela, desejando abraçá-la e possuí-la. Seria
uma pena agredir algo tão incrivelmente belo, mas o canalha tinha
suas prioridades.

A herdeira do mar não viu quando ele enfiou uma faca em seu
abdômen. Não teve tempo para matá-lo. Ela conseguiu apenas
sentir a lâmina da faca vagarosamente entrando em sua pele.

Pryia não hesitou quando viu Pérola sendo atingida e gritou.

Para surpresa da pirata, o som de sua voz ecoou no mar – uma


frequência ligeiramente mais grave de sua voz, porém ainda mais
sublime.

– Leonardo, não! – ela exclamou. Não tinha tempo para pensar


sobre como estava conseguindo falar debaixo d’água.

Ela nunca havia tentado, mas percebeu que seu fôlego estava muito
mais curto logo após falar apenas duas palavras.

O capitão empurrou o corpo de Pérola para o lado, que ainda tentou


arranhá-lo como podia. Ele chutou o rosto dela em resposta.

O corpo da sereia rolou sobre o tesouro, sangue vermelho pintando


o verde de Cascais.

A tampa do baú era pesada, e o metal, anormalmente frio. A


temperatura não adivinha do material, mas da própria magia que

vazava pelas fendas. Um pote quase insignificante de um vidro


velho e fosco estava no fundo, e uma rolha que parecia existir por
uma eternidade selava o poderoso elixir.
Leonardo pela primeira vez não se preocupou com a aparência de
alguma coisa. Enquanto Pryia nadava em direção à sereia
desacordada, Leonardo voltou à superfície segurando o seu
estimado tesouro.

E assim que sua pele sentiu o ar, ele o tomou em um só gole.

30

Entre a glória e o fracasso

Essa era a chance deles. O plano foi perfeitamente arquitetado


entre Jim e Pérola. O marquês havia pensado em um esquema
rebuscado, composto de diversas etapas: primeiramente, distrair a
tripulação do Rosa dos Ventos; depois, bombardear com os
canhões; e, por fim, decidir quem viveria ou morreria através da arte
perdida da espada.

Pérola o encarou com os olhos arregalados. Não havia nada de


civilizado para alguém que pertencia à nobreza. Talvez o povo da
superfície ainda fosse adepto da barbárie, já que não possuía magia
ao seu alcance. Então a sereia sugeriu algo mais simples: ela
cantaria para Leonardo, e suas irmãs cantariam na superfície.

Nenhum sangue precisaria ser derramado.

Como a princesa de Traberan estava presente, era importante que


nenhum membro do reino do Povo Submerso agredisse um
humano. Jim não teve como argumentar e precisou concordar com
Sabrina. A missão deles era resgatar Pryia e parar Leonardo, não
fazer justiça contra uma ameaça pirata – não importando quão
grandiosa ela fosse.

Mesmo assim, nada foi dito em relação a humanos matarem


humanos. A fim de proteger a Coroa, Jim orientou que Sabrina e
May ficassem junto aos canhões, pois elas teriam cobertura e
proteção durante uma possível batalha. E para Alex Gim e Pequeno
Dave, ele ofereceu duas espadas que encontrou nos arsenais do
navio. Nada disso seria preciso, se o plano de Pérola desse certo.

Há dias eles não encontravam uma alma viva ou morta ao seu


redor. O mar azul começou a ficar esverdeado conforme
atravessavam o mundo em nós. E quando achavam que o horizonte

não poderia ficar mais esverdeado ou hipnotizante, avistaram o


Rosa dos Ventos.

Jim não precisava de confirmação, pois teve certeza de que era


Pryia soprando um beijo para uma jovem ruiva antes de saltar na
água. Pérola não se despediu ao nadar na sua direção, pois poderia
manipular as correntes para chegar no baú antes da pirata.

Mesmo estando longe, Jim respirou aliviado ao ver o seu amor


inteira. Logo ele iria tê-la de volta e beijaria cada um de seus dedos
para ter certeza de que Leonardo não havia feito nada de terrível
com ela.

O momento havia chegado. Com os ouvidos tapados, Jim, Alex,


Dave, Sabrina e May esperaram Isla e Eriela fazerem o que sabiam
de melhor: enfeitiçar humanos. Em pouco tempo, May e Brina
dispararam os canhões. O estrondo afetou a superfície, e o barco
começou a naufragar diante de seus olhos. Jim tinha um sorriso
satisfeito em seu rosto.

Contudo, ele se desfez ao perceber que Jasmine corria


desesperada pelo convés, enquanto os homens de Leonardo se
atiravam ao mar, em busca do toque letal das belas sereias.

O marquês não podia ser ouvido, mas gritou o mais alto que pôde:

– Isla, Eriela, salvem a moça! Ela está conosco!

Pryia nunca iria perdoá-lo se sua amiga morresse por causa dele.
Jim estava tão atordoado com a ideia de salvar Pryia que se
esqueceu totalmente da possibilidade de o canalha Leonardo ter
levado a amiga dela apenas para fazer a pirata cooperar com seus
ideais insanos. O marquês sentiu sua garganta rasgar enquanto
gritava cada vez mais alto para que as sereias resgatassem
Jasmine do mar. Ainda daria tempo de salvá-la. Teria que dar.

Eriela a princípio não queria ouvir as palavras de Jim, entretida


demais com seu próprio encanto enquanto via os piratas se
afogarem nadando em sua direção. Eles se afogariam graças ao
ataque produzido pelos canhões humanos, então ela não estava
infringindo o tratado ao cantar. Era esse tipo de diversão de que ela
precisava. Mas Jim não parava de gritar seu nome, então ela olhou
na sua direção, irritada com a interrupção.

– Que moça? – ela perguntou para si mesma, irritada. Humanos


pareciam todos iguais quando estavam morrendo. Desesperados e
sem o mínimo de classe.

Mas logo Eriela viu cabelos vermelhos junto a alguns destroços do


navio e nadou rapidamente na sua direção. Jasmine buscava por ar,
apoiada a uma tábua de madeira. O canto das sereias não tinha um
efeito tão devastador em mulheres, mas era o suficiente para nublar
seus sentidos.

E por pura vaidade da sereia, ao ver uma humana com os cabelos


parecidos com os seus, Eriela sentiu vontade de ajudar.

– Ei, você vai ficar bem – ela cantarolou. – Seus... amigos vieram
buscar você.

Eriela tirou alguns cachos molhados do rosto de Jasmine, que


assentiu, totalmente encantada com a sereia ao seu lado. Elas eram
como fogo e alvorada.

– Segure firme, vou tirar você daqui antes que tudo exploda.

Jas segurou firme na madeira, e Eriela nadou com incrível


velocidade, a levando até a borda do barco de Nanrac. Dave tirou
seu casaco e mergulhou o mar para ajudar Jasmine com a escada
de cordas.

– Suba – ordenou Eriela.

Enquanto Jasmine subia para a segurança, Eriela voltou para perto


de sua irmã. Ela não sabia por que, porém afogar aqueles piratas
não era mais a coisa que ela queria fazer no momento.

May correu na direção de Jasmine, trazendo uma toalha seca para


envolver a moça. Os movimentos de Jas pareciam com os de um
manequim, mas de olhos fechados curvou seu corpo molhado junto
ao calor da moça.

– E eu? – perguntou Dave, totalmente ensopado. Ninguém o


escutou, por causa da cera de vela. Talvez em uma próxima, ele
mergulhasse sem as botas. E talvez ele deixasse de lado um pouco
a burocracia de Nanrac, para viver aventuras no oceano de verdade.

Se ele sobrevivesse a essa, é claro.

O mundo em volta deles era uma pincelada de desespero. Um


momento de dúvida, seguido por outro de agonia. As estrelas,
mesmo durante o dia, mantinham a atenção no que se passava no
fundo do mar.

– Onde está Pryia? – sussurrou Jim. Já era para ela estar de volta à
superfície. Em meio ao tumulto do navio naufragando, homens se
afogando e sereias cantando, ele não podia discernir a ordem do
caos.

Mas o marquês não havia cruzado o mundo para esperar.

Então ele tirou as botas, prendeu uma adaga no cinto e saltou do


barco. Contudo, quando ele começou a nadar, o céu azul se tornou
preto, o mar verde se tingiu de nanquim e o mundo irrompeu em
desespero.

31

O fim do horizonte

As profundezas agora pareciam familiares. Leonardo estava no


fundo do mar, caminhando sobre areias que não foram feitas para
pés ou barbatanas. Ele esperava que sentiria o sabor de sal, de
bebida barata ou de porra. Mas Leonardo nunca imaginou que o
elixir seria amargo como boldo, com um toque enjoativo de mel ao
fundo. O líquido viscoso e liso escorregou pela sua garganta, como
se ansiasse por seu sistema. Como se estivesse esperando para
ser liberto há muito, muito tempo. Desde quando o mundo era novo,
e as regras do universo ainda estavam sendo escritas.

Eris sorriu como um relâmpago em uma tempestade. O céu piscou.

Pryia nadava segurando Pérola nos seus braços, mas ela


enxergava pouco nas águas escuras. Não havia tempo para
testemunhar o que teria acontecido com Leonardo, pois salvar a
sereia era sua prioridade. O estrago com o capitão já estava feito, e
ela não era tola o bastante para rezar por salvação.

Alguns destroços estavam próximos a ela, então a pirata apoiou o


corpo da sereia sobre uma das madeiras com dificuldade e
começou a bater as pernas para longe. Seu coração estava pesado,
e o mundo a sua volta parecia estar acabando, mas ela começou a
chorar de alegria e alívio ao ver no horizonte o brilho de
madrepérola na embarcação branca como nuvens navegando sobre
o mar. O barco de Nanrac estava ali.

Jim.

Ainda havia uma chance de que se salvassem.


Pryia queria fugir de Leonardo, mas só então percebeu que havia
outros corpos na água. A pirata olhou para o lado, e percebeu que o
Rosa dos Ventos estava totalmente destruído. Jasmine estaria em
perigo. Não, esse pesadelo de novo, não.

Se ela largasse Pérola ferida, a sereia morreria, mas se não


buscasse Jasmine, talvez sua amiga não tivesse uma chance. A
pirata não queria escolher. Não podia. Então inspirou fundo, enfiou a
cabeça debaixo d’água e gritou:

– Socorro!

Mais uma vez, o som saiu de seus lábios, drenando rapidamente


seu fôlego – ela estaria encantada se não fosse pelo desespero.

Ao segundo chamado, Isla e Eriela apareceram subitamente ao seu


lado. Seus rostos perfeitos estavam atônitos, olhando para o céu e
para o mar. Os olhos de Isla eram da mesma cor que o mar onde
estavam, antes do inferno implodir. Tudo ao redor estava ficando
obscuro, enquanto algo agitava a superfície da água.

Pryia chorava de desespero.

– Aju... Ajudem-na! – Ela apontou para Pérola que estava


desacordada. – Preciso salvar Jasmine, ela estava naquele barco!

A pirata apontou para os destroços, tentando em vão encontrar sua


amiga em meio aos corpos já mortos.

– Já cuidei da sua amiguinha ruiva, humana – disse Eriela,


corriqueiramente.

– O que quer dizer com cuidou? – perguntou Pryia, horrorizada.

Isla deixou escapar uma risada seca e alta, enquanto Eriela revirava
os olhos ao dizer:

– Ela está bem. Pelos mares, o que vocês humanos pensam que
nós somos? Assassinas frias?
– Eles não estão errados de se proteger de nós, Eriela... –

murmurou Isla.

Pryia ainda não entendia o que estava acontecendo, mas o mundo


estava mudando rápido demais para que tivesse tempo de assimilar
as informações. Ela ainda chorava, misturado lágrimas ao mas, que
ela tentava não engolir enquanto as ondas se agitavam.

As sereias e a humana estavam assustadas com a tempestade que


se movimentava nos céus e nas profundezas.

Eriela pegou o rosto da pirata e o puxou com uma firmeza bruta até
a ferida de Pérola. Lágrimas caíram sobre a abertura
ensanguentada, e Pryia ficou atônita quando viu a cicatrização
começar. As gotas finas caíram sobre a pele da sereia, juntando a
carne ferida vagarosamente até estar perfeita, sem nenhuma marca.

– Não é que a piranha estava certa? – comentou Isla com um tapa


na água, que respingou em Eriela.

– Quem diria, temos mais uma irmãzinha – respondeu a sereia do


crepúsculo.

– Ela não é nossa irmã, Eriela.

– Alguém quer me explicar o que diabos está acontecendo? –

perguntou Pryia, se sentindo extremamente confusa.

– Lágrimas de sereia têm propriedades curativas, óbvio – disse Isla.


– Minha beleza se cansa com a ignorância humana, sabia? E

ainda bem que você estava chorando, porque eu e Eriela não nos
emocionamos nunca. A não ser quando nosso peixe dourado
morreu... – ela suspirou. – Seria uma pena ver nossa princesa
morrer por algo tão banal.
– Espere, vocês estão dizendo que eu tenho lágrimas de sereia? –
indagou a pirata, entendendo ainda menos a situação.

– Ela faz um bom par com aquele humano imbecil bonitão, preciso
admitir isso – murmurou Eriela. Isla riu com seu charme doce e letal.

Pryia observou o rosto de Pérola com atenção. O formato arrebitado


do nariz, os lábios cheios... era como olhar uma versão dela mesma
em outra realidade. Os olhos dourados da sereia se apertaram
antes de se abrirem com dificuldade.

– Agora estamos quites. – A herdeira do mar forçou um sorriso


enquanto se esforçava para movimentar sua cauda de ouro.

– O que quer dizer? – Pryia sussurrou e depois sacudiu a cabeça,


tentando manter as ideias no lugar. – Pérola, você deveria ter
impedido Leonardo, não a mim!

– Eu deveria ter impedido qualquer humano, Pryia.

Pérola encarou suas irmãs. Os olhos cínicos e verdes de Isla, o fogo


alaranjado e furioso em Eriela, e o castanho brilhante e encantador
de Pryia. O mar à sua volta estava mudando, ela sentia nas suas
barbatanas a energia perversa que fluía pelas águas. Era tarde
demais. Ela se soltou do tronco de madeira onde estava apoiada e
mergulhou. Não enxergou nada nas profundezas. Era o princípio do
fim. Pérola voltou para a superfície e percebeu a escuridão invadir o
meio-dia. O mar se tornara tinta preta. As nuvens anunciavam
tempestade.

Ao longe, Jim se aproximava delas, nadando o mais rápido possível.


Assim que Pryia o viu, deixou as sereias e começou a nadar em sua
direção.

– Ao menos eles estão juntos para vivenciar o fim do mundo.


Acho que esse é o “fim do horizonte” da canção – Pérola declarou,
tal como um menestrel que anuncia o final de uma tragédia.

– O amor é nojento – disse Isla com convicção, antes de se virar


para trás e sentir seu coração. Foi a primeira vez que ela percebeu
que tinha um: logo antes de ele afundar no próprio peito diante do
caos à sua frente.

– Não parece tão ruim – murmurou Eriela ao desviar os olhos do


marquês e da pirata para fitar o navio branco de Nanrac. Ela nadou
na sua direção, arrastando Isla com ela. O mar talvez não fosse o
lugar mais seguro naquele momento.

Pérola observou as irmãs fugirem para qualquer sensação de


segurança que poderiam buscar, mas seguiu o caminho oposto e
nadou em direção aos destroços do Rosa dos Ventos. A herdeira do
mar não deveria se esquivar do conflito, mas seguir na sua direção.

Os corpos sem vida boiavam ao seu redor, com expressões


inchadas e desoladas.

Então era assim que tudo acabaria. Banhada em solidão, magia e


caos.

Do topo do mastro naufragado que boiava, a sereia limpou suas


lágrimas, respirou fundo e reuniu sua coragem para presenciar o fim

de tudo com a cabeça erguida.

– Você me encontrou – foi tudo que Pryia disse antes de alcançar


Jim e puxá-lo para um beijo salgado, com sabor de reencontro e
despedida.

– Você parece impressionada – rebateu Jim, segurando o rosto da


pirata nas mãos para admirar seus pequenos olhos brilhantes, seu
nariz estupidamente bonitinho e a boca que o fazia quase perder os
sentidos. Uma pequena mancha roxa estava no alto da maçã do seu
rosto, e ele deu um beijo bem ali. – Achou que seria levada durante
nossa festa de noivado e eu não faria nada?

– Acho que vamos precisar remarcar essa festa – disse Pryia,


tentando sorrir enquanto mirava nos olhos de avelã do marquês.

Seus cabelos soltos estavam grudados no pescoço. Suas pernas


balançavam embaixo d’água, enquanto ondas mais fortes os
agitavam.

– Também acho. Parece que vai chover.

Pryia deixou uma risada escapar.

– Senti falta disso – ele disse.

– Do meu sorriso?

– De tudo. Agora vamos tirar essa roupa molhada?

– Eu aceitaria roupas secas.

– Não foi isso que eu disse. – Jim piscou e sinalizou com a cabeça
em direção ao barco de Nanrac.

As ondas agora pareciam mais intensas e sinistras. O mar, que


antes estava calmo e morno, agora parecia ser preenchido por gelo
e fúria. E quando eles estavam na escada do navio, algo surgiu na
superfície.

32

Seu pior pesadelo

Leonardo não era mais humano. Ele sentiu aquela coisa se


apossando do seu corpo, dos seus movimentos, da sua mente,
enquanto tudo à sua volta se distorcia, ficando pequeno demais. Ou
ele estava maior do antes. Ainda assim, tudo o que ele sentia era
glória. Agora, era o homem mais poderoso do mundo, e seria uma
questão de tempo até dominar tamanho poder. Sentiu seus pés
alcançarem o chão de areia, e agora o torso do seu corpo estava na
superfície. Ele era gigantesco. Seus cabelos estavam soltos sobre
seu peito. Leonardo percebeu que estava totalmente nu. Suas
roupas já não cabiam mais em sua nova forma divina, mas ele sorriu
ao ver suas tatuagens intactas, contando as histórias de suas
aventuras. Entre elas, seu olhar se demorou na primeira que fez:
Berenice.

“Ah, se você pudesse me ver agora, mamãe. Ficaria orgulhosa”, ele


pensou.

O capitão testou suas novas mãos, fascinado com seu tamanho


perante as nuvens e o oceano. Era como se ele pudesse segurar o
mundo com entre os dedos. Tudo à sua volta estava coberto em
sombras, mas ele não se importava.

Sua tripulação já havia aprendido a temê-lo em sua forma humana,


certamente agora iria amá-lo como um deus. Porém, ao buscar o
coro e os aplausos, finalmente olhou para algo que não fosse ele
mesmo, e percebeu os gritos desesperados. Ao destampar seus
ouvidos, entendeu tudo: o canto das sereias, as lamúrias dos piratas
e os gritos de quem morria com um sorriso no rosto. O Rosa dos
Ventos estava destruído.

E os responsáveis por se intrometerem em seus planos pagariam


com a própria vida.

Isso não era a promessa de um capitão, mas de um ser que agora


escrevia as próprias regras.

33

A prece de um tolo

– Agora você foi longe demais, irmãozinho. – A voz de Leonardo era


grave como um trovão que anunciava perda e desespero. Ele sentiu
suas novas cordas vocais vibrarem por seu corpo, invocando ondas
à sua volta.

Jim empurrou Pryia em direção à escada de cordas, mas a pirata


teve dificuldades de se segurar. A situação se parecia demais com o
naufrágio: a tempestade, o mar impiedoso. Entre salvar sua própria
vida ou se afogar ao lado de Jim, ela sabia exatamente qual
caminho escolheria, então paralisou.

Sabrina, Dave e Alex observavam tudo do convés. Dave já havia


decidido que não era útil tentando salvar pessoas do mar, então
gesticulou para que Sabrina ou Alex se voluntariassem.

– Alex, é sua chance de se tornar um herói – disse a princesa.

– Talvez eu seja só um covarde – Alex Gim declarou com sua voz


desesperada.

– Salve aquelas pessoas. É uma ordem da sua princesa!

E sem esperar pela resposta de Alex, Sabrina correu em direção


aos canhões mais uma vez. Havia um peixe bem maior para pegar
agora.

– Suba, Pryia! – Jim estava desesperado.

– Não sem você! Está louco?

– Isso é uma pergunta para uma hora diferente. Tenho um acerto de


contas para fazer. – O marquês voltou sua atenção para seu irmão e
sacou a adaga do cinto.

– É sério que você vai tentar derrotá-lo com uma faquinha?


– Ué, aprendi com você.

Claro, Pryia precisou de seu jogo de facas roubados de Porto


Magnus para garantir sua segurança.

Antes que pudesse ouvi-la dizer algo sensato como “vamos


enfrentá-lo juntos” ou “não faça isso, é perigoso!”, o marquês
segurou a pequena arma entre os dentes quando ouviu Alex
dizendo que havia encontrado outra escada.

Alex jogou mais uma escada de cordas pelo costado, gritando para
que os dois subissem imediatamente. A verdade é que o enviado de
Nanrac nunca havia aprendido a nadar.

O barco sacudia fortemente e as ondas começavam a molhar o


deque. Sabrina tentava manter a pólvora seca, mas havia uma
umidade estranha no ar. Ao menos May estava a salvo, junto de
Jasmine, assim a princesa conseguiria se concentrar. Só precisava
de um disparo de canhão contra Leonardo, para que tivessem
algum relance de esperança. Mesmo que o capitão parecesse
imortal para eles.

Os olhos do capitão North brilhavam em um tom de verde, assim


como o mar de Cascais. Mas diferente de Isla, havia um brilho
inumano que pertencia aos deuses. Algo antigo e eterno. Ele ainda
estava se acostumando ao poder do elixir, tentando dominá-lo.
Leonardo percebeu que não queria vingar seu navio usando seu
tamanho como trunfo. Fechou os olhos e se concentrou no seu
tamanho natural. Em poucos segundos, tinha a altura de um
humano novamente e caminhava sobre as águas. Sentia o poder
lutando para expandir, mas ao ordenar que obedecesse aos seus
comandos, a magia se acalmou.

Jim e Pryia estavam no final da escada de cordas e passaram com


dificuldade para o topo do convés, enquanto o Capitão North se
aproximava deles como se andasse em terra firme. A pirata tentava
se levantar do chão escorregadio, mas era difícil se equilibrar
descalça. Jim estendeu a mão para que se apoiasse nele e fez da
adaga uma extensão do seu braço, entre Leonardo e sua futura
noiva, para protegê-la.

– Isso é uma vingança baixa por eu quebrar seus brinquedos,


Jimmy. – Leonardo apontava para os destroços do Rosa dos
Ventos.

– Você não deveria ter tocado em Pryia. – Jim gritou de volta.

– O tapa nem foi tão forte... você não deveria deixar uma garota
ficar entre dois irmãos – disse Leonardo, nu e despreocupado,
enquanto levantava ondas na direção do barco de Nanrac.

– Você bateu na minha mulher? – Jim gritou furioso, cuspindo.

Ele não pensou quando correu na direção de Leonardo. Ele


degolaria o desgraçado de uma vez por todas.

O marquês estava totalmente fora de si. Disposto a morrer, mas não


sem lutar. Pryia gritou para que parasse e tentou segurá-lo pela
camisa, mas falhou. Jim correu em direção à corda solta no mastro
do navio e se pendurou nela, sentindo o próprio peso rasgar seus
músculos do braço enquanto empunhava a lâmina afiada. Ele correu
com toda sua ferocidade, aumentando a potência de seu golpe, que
seguia um caminho certo. Em direção à garganta de Leonardo.

– Mamãe já disse que você não deve correr segurando objetos


pontudos.

O capitão mal precisou se desviar, recebendo não mais que um


arranhão em seu braço. Seus reflexos eram como o movimento das
ondas. O poder fluía por suas veias, e cada parte do seu corpo dava
as boas-vindas. Jim caiu no convés, rolando violentamente pelo
chão.

Leonardo analisou rapidamente os olhares assustados sobre ele.


Dois aristocratas que claramente não pertenciam ao mar e que
poderiam ser mortos como formigas esmagadas; Pryia, que agora
se esforçava para correr até alguma cabine, certamente buscando
alguma arma inútil para usar contra ele, por quem cuja a força ele se
sentia doentiamente atraído; e próximo ao timão, os olhos verdes e
laranjas mais adoráveis que o pirata já havia visto: as sereias que
haviam levado o Rosa dos Ventos às profundezas.

Isla e Eriela se abraçavam, um gesto sincero demais para as duas.


O tipo de momento que só se vive quando sabe que sua vida

está prestes a acabar.

Leonardo balançou a cabeça para os lados, sentindo seus dreads


roçarem em sua pele, e disse:

– Ainda bem que ainda tenho minha imediata. Alguém vai precisar
limpar o mar depois que eu acabar com vocês, malditas.

Ira subiu pelo capitão, tomando seu corpo de uma forma primitiva e
eterna. Se seu irmão era aliado das sereias, merecia o mesmo
destino que elas. Uma perda inevitável, infelizmente. Mas assim
Pryia estaria livre para ser completamente sua. Seu coração –

ou o que restava dele – afundou no peito quando ele pensou no luto


de sua mãe. Mas com um filho poderoso como um deus, Berenice
certamente seria capaz de perdoá-lo.

Quando Leonardo apontou para Isla e Eriela a fim de dizimá-las, ele


não fez mais do que sentir para que a energia disparasse do seu
indicador. Um raio branco transformou o dia cinza em luz por um
momento. Depois, veio a destruição. O barco de Nanrac estava
partido em dois e agora começava a afundar, assim como as ondas
furiosas recebiam seus destroços.

Leonardo sorriu. O poder inebriou seus sentidos, e tudo que ele


precisava era descarregar a energia infinita que dominava todo o
seu ser. Até as estrelas olharam em outra direção quando o capitão
começou a rir e chamar as profundezas ao seu comando.

O problema das tentativas desesperadas e inúteis é que às vezes


elas são a única saída. Um momento insano de coragem ou a
esperança de um tolo em ação. Às vezes, é tudo que precisa para
mudar o rumo do destino.

Princesa Sabrina percebeu o mundo reverberar sob seus pés.

Seus cabelos negros caíam sobre seu rosto, enquanto ela tentava
de novo e de novo disparar o canhão. Por May ela derrotaria
Leonardo, para que elas pudessem viver em um mundo de paz. Seu
coração se regozijou ao ver o fogo consumindo a pólvora. Sua mira
estava perfeita, Leonardo iria cair.

De fato... A esperança de um tolo.

– Esse é o nosso fim? – perguntou May, ajudando Jasmine a ficar


de pé na cabine.

– Se for, você não deveria estar aqui. Comigo. – Jas apontou com a
cabeça para a porta, se escorando na parede. Ao longe, elas
podiam ver na fenda entreaberta a silhueta alongada de Sabrina. –

Abrace-a e não solte, entendeu?

May beijou o rosto cansado de Jasmine, desejando ter mais tempo


para poder ser sua amiga, conhecer seu espírito. Mas, sem tempo,
correu na direção da princesa pelas tábuas negras do navio antes
de ele se partir.

Era tarde demais.


Uma espada. Uma adaga, uma faca, uma flecha. Pryia buscava na
sua antiga cabine qualquer arma que pudesse combater Leonardo.
Uma perda de tempo, um impulso inútil, e ela sabia disso.

Nenhuma arma terrestre ou marítima poderia com o seu poder.

A pirata tentou se lembrar do mapa, das canções que costumava


entoar, de alguma coisa – qualquer coisa – que pudesse lhe dizer
como parar o capitão.

Ele possuía o coração podre, as intenções maléficas.

Acreditava que merecia esse poder, que era a pessoa certa para
dominar o mundo. Leonardo tinha fé nele mesmo, mais do que
qualquer outro devoto a um deus.

Ele era puro caos.

E, então, uma ideia surgiu em sua mente. Era um tiro no escuro,


mas Pryia correu de volta para o convés, escorregando e caindo até
a popa do navio. Seus joelhos sangravam quando ela finalmente
fitou o horizonte desolador, ignorou os gritos desesperados e rezou
por Eris.

Jim não atingiu Leonardo com sua adaga, mas o distraiu E,


francamente, essa era a única ponta de esperança que qualquer um
deles poderia ter agora.

Mas as estrelas voltaram a observar e até os planetas pararam de


girar quando algo ainda mais poderoso surgiu no mar de desespero
e sombras em Cascais.

34

Uma oferta irrecusável


– Eu, Pryia, ofereço a você, Eris, um parceiro para o caos. Eris, seu
marido está aqui.

A pirata repetiu de novo e de novo a prece, mas sabia que não seria
o suficiente.

O mundo irrompeu.

O navio se partiu.

O raio que acendeu o dia como o suspiro do sol que recebeu os


aventureiros até ali agora convidava Pryia aos mares. Ela sentiu o
gelo envolver sua pele e teve certeza de que iria morrer.

Mas quantas vezes ela não teve essa mesma certeza, e o destino
provou que ela estava errada?

Debaixo d’água, Pryia usou o pouco fôlego que ainda tinha para
repetir prece:

Eris, deixe-me apresentá-la ao seu parceiro.

As palavras eram o único símile de beleza nas profundezas


amaldiçoadas. A prece de um tolo. Um suspiro de desespero. A
última carta na manga da falsificadora de mapas. Mas a frase foi o
suficiente para que o ar no seu peito se acabasse.

A visão de Pryia ficou turva, e, mesmo que tentasse voltar até a


superfície, sentia algo a puxando para baixo. Uma força poderosa,
que esculpia cada uma das ondas do mar. Algo repleto de encanto,
poder e... caos.

Eris.

Um mero humano que ousasse olhar em sua direção perderia a


mente. A Deusa do Caos era a pintura da inspiração e do
desespero. Asfixiante como descobrir que se está apaixonado.

Sublime como um coração partido. Sua pele acinzentada brilhava


como prata polida, e seus cabelos eram como ônix líquido – ora
totalmente pretos, ora totalmente brancos. Os olhos verdes
incandescentes possuíam um tipo diferente de ternura, em um misto
de pena e ironia. O sorriso em seus lábios fartos era indecifrável,
mas definitivamente havia curiosidade neles.

Uma das poucas sortes na vida da falsificadora de mapas era ser


mestiça de terra e de mar. Seu lado humano ficou paralisado, sem
dúvidas. Mas seu lado que era sereia... esse encantou a deusa
ancestral.

Pois é, nem sempre a sorte escolhe mal seus hospedeiros.

– E quem é você para oferecer uma vida que não a sua? –

indagou Eris, analisando a pirata. A jovem sufocava, procurando por


ar sem saber se deveria nadar para o norte ou para o sul. O mundo
agora era puro breu, e a gravidade parecia puxá-la impiedosamente.

Eris revirou os olhos, e, em um estalar de dedos, os pulmões de


Pryia começaram a subir e descer, mesmo que ofegante.

– Seu lado humano te faz frágil – disse monotonamente.

Pryia tentou ignorar e ergueu os ombros para trás. Repuxou um


sorriso no canto dos seus lábios.

– Seu lado eterno te faz solitária – rebateu a pirata. – Encontrei o


par perfeito para você. O único problema é que, no momento, ele
está fazendo da minha vida um inferno.

– Isso não parece ser um problema meu. – Eris deu de ombros, e


mil estrelas começaram a acender, acompanhando seu movimento
sensual.

– Mas é – insistiu Pryia.

– Estou perdendo o interesse, mestiça.


– Capitão Leonardo North tem ilusões de ficar comigo, mas não
desejo o seu coração ou sua paixão. São pútridas e egoístas. Quero
oferecê-lo a você.

– E por que eu aceitaria os descartes de uma reles mortal?

– Porque ele é absolutamente caótico. Só conhece sentimentos


intensos. Ama o poder mais do que tudo... E agora que ele tomou o
elixir do Povo Submerso, é como um Deus.

Eris se aproximou de Pryia, dividindo suas respirações. A Deusa do


Caos podia ouvir o coração da pirata reverberando em

seu frágil corpo mortal.

– Continue... – ela disse com sua voz aveludada, que ecoava no


limbo onde estavam.

– Ele irá destruir meu mundo se você não o clamar. E o que você
terá para assistir então?

– Ainda assim, você não pode barganhar a alma de outro indivíduo.

– Eu duvido que ele tenha alma.

– Todos vocês têm. Mesmo que seja um trapinho inútil.

Pryia estava começando a perder as esperanças. Se Eris não


pudesse derrotar Leonardo, não haveria esperança para Traberan,
Nanrac, o Povo Submerso... Ela não permitiria que isso
acontecesse. Não após saber o que era o verdadeiro caos, o
desespero e anos em solidão até encontrar seu verdadeiro lar. E

agora que ela ainda tinha a chance de conhecer suas origens, sua
família... A pirata precisava dar o melhor de si. Talvez Eris também
mentisse de vez em quando. A cada era ou outra.

– Leonardo é um pesadelo, Eris. Mas o problema dos pesadelos é


que alguns beijam bem.
A Deusa soltou uma gargalhada poderosa e envolvente,
desaparecendo do horizonte de Pryia por alguns instantes.

A pirata por um momento pensou que estava sozinha entre os


mundos, com ar o bastante apenas para não sufocar, mas não para
encher os pulmões. Ela havia entediado a Deusa do Caos? O

mundo agora não teria alternativa além da sua derradeira queda?

Eris apareceu certo tempo depois, rindo como uma garotinha.

– Ele estava nu.

– É, eu vi antes de chamá-la...

Eris gesticulou com as mãos um gesto grandioso e obsceno, e Pryia


se segurou para não revirar os olhos. Leonardo era um amador
perto do seu irmão mais novo, mas isso ela não poderia contar.

– Qual sua ideia...?

– Pryia.

– Qual sua ideia, Pryia? – A Deusa apoiou as mãos no queixo, com


os olhos hipnóticos fixos na pirata.

– Eu e você sabemos que não posso vender a alma dele, certo?

– Vá direto ao ponto, Pryia.

– Ele não sabe. Você pode mentir para ele, fazê-lo jurar lealdade e
subserviência a você. Quando ele descobrir, será tarde demais.

– Eu não posso articular barganhas contra o livre-arbítrio.

– Ah, claro... eu achei que estava falando com a Deusa do Caos –


desafiou Pryia, com um sorriso belo e certeiro.

Eris fechou o semblante.


– Você se acha melhor do que as infinitas regras celestiais? –

Não havia nada divertido ou brincalhão no seu tom. Eris falava com
as faíscas da fúria de uma deusa. Um redemoinho começava a se
formar em volta delas, provocando pequenos cortes nos braços da
pirata. O som era abafado.

Perfeito.

A pirata tinha a deusa exatamente onde queria. Pryia se esforçou


para ficar parada e manter sua voz estável, ainda lutando para
respirar.

– Não. Acho que você é. – Vendo que Eris cedeu um pouco em sua
fúria, a jovem continuou: – Agora que ele tem o elixir agindo dentro
dele, duvido que essas regras se apliquem a Leonardo. Ele não é
mais um humano qualquer.

– O que ele é, então? – indagou Eris, refletindo enquanto as estrelas


voltavam a reluzir em volta delas.

Sim, aquelas mesmas estrelas que observavam Pryia tão


atentamente.

– Ele é seu. Se você quiser. Eu juro que não conto para ninguém. –
A pirata piscou com seu charme inegável.

Eris deu um sorriso lascivo.

– Temos um acordo, Pryia Yabbah.

– Como sabe meu nom...

Antes que pudesse terminar a pergunta, Eris colou um beijo nos


lábios da pirata, selando a barganha entre elas. Um segredo divino
entre a Deusa do Caos e a Falsificadora de Mapas. Um truque
provocado pela lábia de uma pirata. A aurora de um novo dia.

O mundo se dobrou ao avesso. Pryia abriu os olhos, tossindo água


salgada enquanto tentava se levantar. Ela mal podia se mexer.

Seus olhos ardiam diante da claridade e seu corpo estava quente


como se tivesse ficado exposto o dia inteiro ao sol sem proteção.

Enquanto tateava o chão, reconhecia aquelas tábuas. Eram as


depressões no piso de madeira que havia sido o palco de sua
infância.

Ao longe ela podia ouvir a voz de Jim e de alguns outros se


aproximando. Subindo no navio em que ela estava, a julgar pelo
balanço das ondas e do som calmo do mar.

A pirata esfregou os olhos antes de abri-los, se ajoelhando no chão.


O céu estava limpo, sem nenhuma nuvem à vista. Nenhum sinal da
tempestade, do caos ou de Leonardo. Nenhum sinal de Eris.

Mesmo com a cabeça pesada, Pryia se forçou a olhar ao redor, em


busca de seus amigos. Mas o que ela viu fez seus olhos se
encherem de lágrimas descrentes.

Velas azuis se misturavam com o infinito do céu. Só havia um navio


assim em todo o mundo, um que ela acreditava que estava nas
profundezas.

Elizabeth.

O navio do seu pai.

Como?

As palavras saíram sem som dos seus lábios, enquanto ela se


segurava na lateral do navio para ficar em pé e fitar o mar de
Cascais. Novamente, estava verde como uma piscina de esmeralda
líquida.
Misturado ao som das gaivotas e das ondas, Pryia ouviu o sussurro
de uma voz que era etérea e perene:

– Também há beleza no caos, Capitã Yabbah.

35

O infinito é azul

– Pryia, você está bem?

A voz de Jim era apressada e aconchegante enquanto ele corria na


sua direção. Quando a alcançou, a abraçou com força, procurando
checar se todas as partes do seu corpo estava inteiras.

Ele mesmo estava totalmente molhado, os cabelos castanhos


grudados junto aos olhos, que estudavam cada parte do rosto da
jovem capitã.

Ela sorriu. Um sorriso que ele nunca havia visto, mais radiante que o
sol sobre eles. O tipo de sorriso capaz de conquistar o mundo

– o que era exatamente que ela faria. Mas, dessa vez, não sozinha.

Agora a falsificadora de mapas possuía um navio, um sobrenome,


uma tripulação e, acima de tudo, um lar. Um amor. Um destino.

A pirata retribuiu o abraço apertado e se distanciou um pouco para


um beijo no rosto. A barba estava cerrada e fez cócegas nos seus
lábios, mas ela não se importou.

Pelo cais de Elizabeth, May e Sabrina trocavam beijos e abraços


apaixonados. Alex e Dave disputavam a atenção de Jasmine, que
caminhava em direção à sua velha amiga.

Pryia deu alguns passos, testando a firmeza de suas pernas.

Seus joelhos ainda latejavam. Não havia sido um sonho, então...


Mas ver que tinha dado tudo certo a fazia querer se beliscar, mesmo
temendo acordar cedo demais.

– Quer me contar o que aconteceu, meu amor? – ela perguntou


para Jim.

– Acho que nunca vou me cansar de você responder ao meu


chamado assim.

– Eu talvez me canse de como você enrola antes de me responder.

– Mesmo? – Ele levantou a sobrancelha, com um sorriso de canto.

Pryia balançou a cabeça negativamente, seus lábios repuxados


para cima. Seu coração estava acelerado. Havia tanto que ela
gostaria de contar... Mas seria mais prudente ouvir primeiro.

– Algum tipo de deusa super poderosa, Érica eu acho, clamou o


entojado do meu irmão para ela. Ele desapareceu em um grito de
agonia que quase nos deixou surdos. E puf pof, o mar não parecia
mais tomado por demônios – esclareceu Jim sem mais delongas. –

Logo que vi esse navio, eu não pensei, só vim até aqui. Eu sabia
que te encontraria.

A capitã prendeu o riso. Jim era um idiota em algumas coisas, o que


a fazia se apaixonar ainda mais por ele. Ela estendeu o braço para
Jasmine, que se aproximou ainda ensopada. As amigas se
abraçaram, seguidas de May, Sabrina e até mesmo Alex e Dave.

Eles sabiam em silêncio o que aquilo significava. Um momento em


que o futuro muda, porque algumas pessoas improváveis
resolveram se unir para fazer algo que acreditavam ser o certo. Por
saber que o amor é a bússola que define o curso da vida e que a
aventura é o magnetismo que faz com que a seta gire.

O mundo não teria paz, mas certamente seria um lugar mais seguro
e feliz para viver agora que o pirata mais cruel dos sete mares havia
partido para uma outra dimensão. Um lugar onde seu narcisismo
doentio deveria aprender a viver em meio ao caos. Seu inferno
particular. Traberan tinha uma princesa que se casaria por amor.
Elizabeth teria na tripulação dois enviados de Nanrac, que
desejavam provar mais do sabor das aventuras. Jim herdaria o título
que construiu para si. Pryia herdaria o nome que era dela por direito.

Eles poderiam estar chorando, não havia como saber. Mas as


estrelas, mesmo de dia, estavam. De alegria e fervor.

Uma chuva cristalina veio do céu limpo, e o abraço cessou para que
sentissem as gotas tilintar na pele.

– O nome dela não era Éris? – perguntou Jasmine, cortando o


silêncio.

– Eris, Érica... É a mesma coisa – retrucou Jim dando de ombros,


piscando para Pryia.

– Não é mesmo – se intrometeu princesa Sabrina.

– Preciso concordar com o humano bonitão – Eriela subiu no navio,


jogando sua cauda laranja para dentro do convés. Pérola e Isla
chegaram em sequência e sorriram ao seu lado, se entreolhando.
Certamente pensando em algo que não falavam em voz alta.

– E eu concordo com minha noiva – disse May, entrelaçando os


dedos com a princesa.

– Falando nisso... – disse o marquês.

Ele se ajoelhando na frente da capitã.

Pryia arregalou os olhos, agora com um sorriso maior do que o


mundo. Jim se apaixonou por ela novamente naquele momento.

– Pryia... – ele falou, com doçura na voz.


– Pryia Yabbah. Desculpa te interromper. Eu com certeza vou dizer
“sim”, mas queria que você usasse meu sobrenome.

Jim concordou sem precisar entender, feliz por sua amada usar o
sobrenome do seu pai, independentemente do motivo. Ele pegou
sua mão, levando-a até o coração.

– Pryia Yabbah, você aceita viver todas as aventuras da sua vida ao


meu lado como minha esposa?

– Achei que precisava de uma tradicional festa na corte para


oficializar o noivado.

– Eu achei que você iria responder que “sim”!

– Eu não disse que “não”!

Risadas ecoaram em volta. Jasmine viu Eriela estudando seus


cachos de longe. Dave e Alex trocavam a mesma sintonia
apaixonada. Isla cutucava as unhas, entediada.

– Temos aqui a princesa Sabrina de Traberan. Pérola, que herdará o


trono do mar. Alex e Dave, que falam pela misteriosa República de
Nanrac. São testemunhas bem razoáveis – declarou Jim,
gesticulando a sua volta.

– E eu – cortou Jasmine com solenidade, prendendo o riso. –

Representando o povo de Traberan.

– Então, você aceita? – insistiu Jim, seus olhos de avelã derretendo


Pryia de dentro para fora.

– Claro que sim! – Ela revirou os olhos, puxando Jim para se


levantar.

– Espera, eu esqueci que preciso de um anel! – O marquês tateou a


roupa na tentativa vã de encontrar alguma joia com ele.
– Pode ficar com o meu – gritou Pérola ao longe. – Presente de
irmã. – Ela piscou. Agora na luz do dia, a sereia parecia ser feita de
sol, ouro e mármore.

Pryia pegou o anel que havia encontrado no convés ao que parecia


ser uma vida atrás e entregou a Jim. Ele o beijou e colocou no dedo
da capitã. Pryia se ajoelhou e colou um beijo no seu futuro marido.

– Podemos ter nossa primeira dança em outro momento – ela


sussurrou.

– Posso ajudar com isso também... – interveio a sereia dourada.

– Não sei se é seguro, Pérola – respondeu Pryia.

– Prometo não afogar vocês. – Um sorriso letal e brincalhão. –

A gente consegue cantar sem encantar, fique tranquila.

Quando a capitã assentiu, Pérola, Isla e Eriela entoaram uma


harmonia bela como o dia que os cercavam. Cada nota era o sol
que secavam suas roupas. O prelúdio de tempos amanteigados. A
aurora das paixões que sobrevivem ao tempo e às calamidades.

May e Sabrina, que ainda não haviam tido sua primeira dança,
agora rodopiavam pelo convés, embaladas pela melodia cuja
coreografia nunca teria fim: a valsa da vida.

Dave e Alex buscavam entender seus próprios corpos, longe das


amarras que por tanto tempo os mantiveram presos. E, por um
momento, eles foram um só com a música, e um com o outro.

Jasmine rodopiava sozinha, com olhos fechados e seu sorriso torto


aberto. Ela poderia estar zonza, mas teve a impressão de ver Eriela
cantando para ela em dado momento da canção.

Pryia Yabbah não era humana, nem uma sereia. Jim Cerulius não
era um pirata, tampouco um marquês. Juntos, eles eram algo
novo. A união entre terra e mar. Sonho e realidade. Possível e...

bem, vocês entenderam.

Um arco-íris decorava o céu como um dossel de boas-vindas a uma


nova era. O jeito dos astros participarem da tão estimada festa.

– Pryia, você tinha prometido algo sobre uma praia do arco-íris,


antes de a gente quase morrer, não foi? – gritou Jasmine, cortando
a canção ao meio enquanto se segurava no mastro, tentando ficar
em pé. Pérola e Isla pararam de cantar, com os rostos fechados.

Eriela riu baixinho.

– Quais suas ordens, capitã? – perguntou Jim, parando a valsa e


tirando a franja da sua amada de seus olhos.

– Oeste. Vamos para o Oeste – respondeu Pryia firmemente,


jogando seus cabelos queimados de sol para trás de seu rosto.

– Eu mesmo não comandaria melhor – disse Dave, buscando seu


caderno para anotar as coordenadas.

– Temos um mapa, capitã? – indagou Alex.

– Me dá alguns minutos? – Pryia deu um beijo no rosto do Jim e


correu para a cabine, como se tivesse se lembrado de algo.

Jim a seguiu.

– Vai fazer um mapa para o Oeste, meu amor?

Pryia tinha os olhos marejados enquanto vasculhava as gavetas


antigas. Por algum milagre, estava tudo ali. Todas as anotações de
seu pai, todos os seus esboços da infância. Suas recordações, sua
vida, sua história.

– Não, amorzinho – ela respondeu concentrada, enquanto pegava


um pedaço de papel, pena e tinta, que pareciam estar frescas e
novas. Um milagre que ela não questionaria. – Vou fazer um mapa
do infinito.

Jim soltou uma risada ao dizer:

– Parece impossível.

– Por isso mesmo. – E de novo ela abriu aquele bendito sorriso.

O desafio aceito reluziu em seus olhos, como o amanhecer


tilintando no mar.

Nem mesmo o horizonte foi o bastante para o que iriam viver


depois.

Epílogo

A tal felicidade

– Então quer dizer que sua mãe está viva? – indagou Jim.

– Foi o que Pérola disse... E depois de tudo que ela me contou, eu


realmente quero conhecê-la.

O silêncio da capitã dizia que estava apreensiva, precisando mudar


de assunto.

– Eu só não sei o que esperar – ela sussurrou.

– Vai dar tudo certo, minha amorinha – ele respondeu.

O sol já alaranjava o horizonte sobre as águas transparentes na


Praia do Arco-Íris. Era possível admirar por milhas os recifes de
corais, cavalos marinhos e cardumes coloridos. As brumas que
chocavam seus pés eram ora azuis, ora violetas, ora verdes... O

aroma fresco de coqueiros se misturava à maresia e envolvia a


capitã em uma balada de amor e sonho. As estrelas, como uma só
constelação, suspiraram ao ver Pryia e Jim caminhando de mãos
dadas nas vésperas de seu casamento.

A capitã parou de andar e ficou de costas para o mar, encarando


seu noivo com as sobrancelhas levantadas e os lábios levemente
repuxados para cima.

– Amorinha? Sério?

Jim levou a mão até a nuca, sem jeito.

– Então você também não gosta desse apelido?

– Não muito.

– Mas você está rindo.

– Não estou, não! – Ela estava. Era o quinto apelido idiota na


semana.

– Sinto muito, meu amor – Jim ronronou.

– “Meu amor”, eu gosto.

– Mas não gostava – Jim retrucou.

– Isso porque você ainda não era o meu amor.

– Aí você fere meu coração. – Jim ajoelhou na areia, sentindo as


brumas alaranjadas molharem sua calça.

– Você é muito dramático.

Ela se inclinou para levantá-lo, mas Jim a puxou, fazendo-a cair


sentada ao seu lado. Pryia soltou um grito quando uma onda gelada
molhou toda sua perna. Antes que pudesse xingá-lo, Jim falou:

– E você é muito linda. – Um beijo na nuca. – E eu não vou parar de


tentar te fazer sorrir. – Outro beijo, agora no canto dos lábios. –
Então é melhor você se acostumar, porque ser minha esposa quer
dizer ser casada com um idiota. – Um beijo em sua boca. – Que é
maluco por você, entendeu?

Pryia devolveu o beijo por inteiro, de corpo e alma. Mais do que a


promessa de um futuro, a realidade de um presente.

– E vocês são muito melosos! – berrou Jasmine ao longe. –

Pryia, você pode me dizer que porra de morcego é esse?

Pryia se levantou, ajeitando sua blusa curta branca e a seda verde-


esmeralda que havia amarrado na cintura, como uma saia longa.
Quando se virou para ver do que Jas estava falando, a capitã ficou
radiante.

– Olive! – Pryia assobiou, e a coruja voou diretamente até seu


ombro.

– Como ela te achou aqui? – perguntou Jim.

– Olive é mais inteligente que eu e você juntos, amorzinho. –

Ela acariciou suas penas acinzentadas e macias e brincou: – Pronto


para conhecer sua sogra?

– Só se você estiver pronta para conhecer sua mãe.

Pryia soltou um riso nervoso enquanto ajudava Jim a se levantar, e


juntos andavam de mãos dadas em direção ao seu navio.

As estrelas já pontilhavam o céu quando o casal pisou no convés de


Elizabeth. Mais do que uma tripulação, um sobrenome e um
destino... Pryia Yabbah agora construía seu legado.

De fato, ela havia sido corajosa – e não tola – nas vezes que seu
coração insistiu em acreditar que a tal felicidade realmente existia.

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