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Último dia
Ela até gostaria de sentir pena dos coitados que vinham até ela e
caíam na sua fala mansa como mar, na sua voz melodiosa de sereia
e, principalmente, nos seus mapas que prometiam ouro, gemas e
glória.
Ecos do passado
Pryia fazia a contagem regressiva para esse dia desde que avistou
as nuvens carregadas e cinzentas que convidaram, para o fundo do
mar, o navio Marie III, onde ela viajava há várias semanas. Estava
há apenas sete dias de distância da cidade de Realmar, onde
assuntos urgentes aguardavam por ela: Pryia tinha marcado um
encontro inadiável da lâmina da sua faca com o coração do canalha
que havia partido o seu. Provavelmente, três anos poderiam parecer
tarde demais para acertar essa dívida... Possivelmente Leonardo
haveria sofrido a mesma sina, pelo mesmo motivo, pelas mãos de
outra mulher, mas ela ainda queria vê-lo sofrer. Ela só precisou adiar
seus planos, pois o naufrágio a achou primeiro.
Leonardo.
Leo.
Maldito.
Canalha.
Desgraçado.
Miserável!
Não demorou para que conquistasse também sua boca. Depois sua
confiança. E, finalmente, roubou o que ela tinha de mais precioso.
Ainda assim, como todo pirata que se preze, ela conhecia a lenda
do Tesouro do Povo Submerso.
Ela sabia que lá poderia encontrar muito mais do que ouro e joias,
como também o elixir que permitia um simples humano ser capaz de
se comunicar com as criaturas marítimas. Diziam também que
poderia torná-lo capaz de controlar os ventos e as marés.
Talvez pudesse até mesmo conferir o status de Deus para um mero
mortal. Um presente, pela audácia de chegar até ali. Isso mostraria
que tal mortal era digno de tamanho poder.
Não Leonardo.
Ela não imaginou que poderia sentir saudade de sua vida ali.
"De alguma forma", pensou ela, "a gente se acostuma com a vida
que tem. Não importa quão miserável ela seja".
Toda vez que uma lágrima escorria pelo seu rosto, ela sentia como
se o mar a chamasse de volta para casa. Pryia se recompôs,
estampou no rosto o seu melhor sorriso (daqueles que faziam o sol
parecer um lugar frio) e esperou os viajantes perdidos.
Pryia nunca via o mesmo marujo duas vezes, o que tornava seu
discurso ensaiado infinitamente mais fácil. Ele funcionava
absolutamente. Toda. Vez.
Mas, logo hoje, ela avistou o pirata mais esquisito que já havia
pousado os olhos em toda sua vida. Ele tinha o cabelo comprido
preso por um laço, sua barba estava feita, usava calças, colete e
botas marrom, acompanhados de uma camisa branca. E o mais
chocante de tudo é que ele estava surpreendentemente limpo. Não
só limpo, mas também cheiroso, e com os dentes brancos perfeitos
e retos. Parecia um idiota.
– Ahoy! Que bons ventos o trazem, nobre viajante? Seja muito bem-
vindo a Porto Magnus! – Ela passou o braço pela cintura dele,
girando-o para que ficasse de frente para a bela paisagem tropical e
pudesse olhar apenas para a terra firme e para o seu belo rosto.
Acredito que lidar com piratas realmente deixa moças bonitas como
você na defensiva. Mas eu vim até aqui para ver se os rumores são
verdade.
– A graça dos rumores é que eles sempre são tão verdade quanto
mentira. Qual te trouxe a Porto Magnus?
– Estou ouvindo.
– O seu mapa.
– E você.
Ele piscou um dos olhos, e ela jurou que, se ficasse balançada por
isso, correria para o navio mais próximo e andaria na prancha para
se atirar aos tubarões. Pryia ajustou a pesada bolsa no seu ombro,
acomodando Olive com gentileza, e começou a se distanciar do
pirata singular que havia aparecido nesse dia.
– Não sei quem você é, mas sei o que você faz. – Jim apontou para
os mapas. – E sei que você já trabalhou para alguém que eu
conheço. Alguém que desgraçou a minha vida, e provavelmente a
sua. Caso contrário, uma moça bonita e talentosa como você não
estaria sorrindo para marujos miseráveis. Você deve ter um objetivo
maior para sua vida, não tem?
Maldita curiosidade.
Pryia ficou entorpecida. Há anos ela não ouvia esse nome sendo
pronunciado em algum lugar fora dos seus pensamentos.
De volta ao horizonte
Ela não precisava mais pensar em sair dali. Ela podia começar a
cogitar como seria sua vida de verdade.
A xingar ainda mais alto por ter sido estúpida o suficiente para
acreditar na palavra de um pirata.
Ela o amaldiçoou.
– Eu juro que algum dia ainda hei de me vingar de você! Está agora
na minha lista negra, junto do maldito Leonardo! – ela bradou,
chutando a madeira do cais tão irada que não percebeu os passos
silenciosos de Jim atrás dela. Ele tinha os lábios repuxados para
cima, e falou com uma calma irritantemente despreocupada:
– Escuta aqui, seu patife, quem você pensa que é? – ela disse
entredentes.
– E o seu navio? Onde está? Não vejo nada além deste horizonte
tedioso cercado por árvores e um idiota.
O pirata pegou sua mão com ternura sem pedir licença e a guiou até
uma margem de pedras do outro lado do farol. Ali estava uma
embarcação que, na melhor das hipóteses, poderia ser chamada de
modesta.
desde o princípio, e ela, mais idiota ainda por não ter reparado
nisso.
– Você pretendia chegar até lá com aquele barco velho do farol, não
é? – A voz sedutora do pirata a provocou, a roubando dos seus
pensamentos.
– Você acha que chegaria muito longe da orla com ele? E ainda
sozinha? Sinceramente, eu vou te desculpar só dessa vez por você
não estar ajoelhado aos meus pés me agradecendo por te salvar
deste fim do mundo. – Jim ajeitou alguns fios soltos de seus
cabelos, com um sorriso de superioridade.
Especialmente uma que tem uma boca tão inteligente quanto a sua.
Me diga, o que mais ela sabe fazer? – Sua voz grave reverberou
contra as ondas. O mar estava calmo, como se ouvisse a tensão
entre eles.
A sinceridade foi quase demais para ela suportar, mas pela primeira
vez não parecia que o pirata estava zombando dela. – A propósito,
como eu devo te chamar?
Pryia sabia que sentira falta do mar aberto, mas agora, vendo o
crepúsculo colorir o oceano e nada além de mar a sua volta, ela não
sabia como permanecera sã por tanto tempo.
Ela rabiscava em seu caderno o que seus olhos podiam ver: o rosto
anguloso e perfeito de Jim junto às velas, as constelações alinhadas
com a lua crescente, números e símbolos que tinham significado só
para ela.
Pryia não percebeu que Jim estava atrás dela, até que seu rosto
ficasse perto o bastante para roubar-lhe um beijo na bochecha ao
mínimo movimento.
– Para mim, você poderia ser várias. Mas não vou perturbá–la.
Sem mais uma palavra, Jim lhe entregou um copo de vidro, que
nada tinha de refinado, com uma bebida marrom-escura, e voltou
para o timão. O aroma cortou suas narinas, mas foi bem-vindo. Há
tempos Pryia não provava do rum com laranja em pleno alto-mar.
A lua viu a forma que Jim observava do alto do convés a bela jovem
mergulhada em desenhos, segredos e vingança. Pryia cruzou com
seu olhar, alheia dos pensamentos do seu novo aliado, e sorriu,
estendendo o copo em um brinde distante. Ele retribuiu o gesto e o
sorriso.
Canção de ninar
Jim percebeu que ela cantava sem ao menos se dar conta de que
tudo parava para ouvi-la. Nesse momento, ele já havia
compreendido em qual momento ela dobraria o verso e, pelo sorriso
que repuxava o canto de seus lindos lábios, que ela se alegrava de
verdade no refrão. Foi justamente nesse momento que ele a
surpreendeu completando a melodia, enquanto apoiava seus braços
Ela já havia entendido que a ironia era seu jeito de pedir que
contasse uma história.
– Estava.
– E o que essa música que você não para de cantar, e que por sua
culpa eu não paro de cantar também (muito obrigado) tem de
especial?
Ela suspirou, ponderando o quanto deveria compartilhar.
Enquanto isso, Jim fitava o seu rosto perfeito contra o pôr do sol, se
perguntando se seria possível existir alguém com nariz mais
arrebitado do que o dela. Algo irracional dentro dele o fazia querer
pegar naquele nariz. Jim nunca teve intimidade suficiente com
alguém para simplesmente brincar assim. Pryia passou por debaixo
de seus braços para escapar, agitada por suas memórias.
– Meu pai costumava cantar essa canção para mim antes de dormir.
Ele dizia que, toda vez que ouvia minha mãe cantando, se
apaixonava novamente.
– Não culpo seu pai por isso – Jim a cutucou com o cotovelo,
tentando brincar. Tentando fazê-la sorrir.
Jim sabia que estava em águas perigosas ao ver o mar reluzir nos
olhos da jovem.
– E o que aconteceu com ele?
Pryia decidiu contar. Não porque já fazia muito tempo e não doesse
tanto assim. Se era possível, a cada dia doía um pouco mais,
porque cada dia que se passava era um dia a menos na vida sem
ele. Ela contou porque não fazia sentido esconder. Porque essa dor
que ela carregava talvez fosse o seu sentimento mais puro e
sincero.
Então ela decidiu contar aquilo que o seu coração sentia vontade,
simplesmente porque alguém se interessou em saber.
Todo mundo tem uma perda. Mas são poucas as pessoas que estão
dispostas a ouvir o que o outro perdeu. E ela pensou a saudade que
tinha poderia ser mais profunda do que o fundo do mar.
Ela teve certeza da resposta. Se agora tudo que ela tinha de sua
família era a lembrança de histórias e canções, era exatamente isso
que ela dividiria com o mundo.
– Amotinado?
Jim ficou sem ação. Passou a mão pelo rosto e pela boca, buscando
as palavras certas, mas não encontrou nenhuma. E como ele não
tinha o hábito de pedir permissão para fazer alguma coisa,
simplesmente abraçou Pryia e suspirou um beijo em sua
sobrancelha.
Não durou mais que alguns segundos, mas era tudo que ela
precisava. O amargor das suas palavras parecia menos violento.
Não tinha valido a pena para o seu pai confiar em sua tripulação.
Não tinha valido a pena confiar no canalha de Leonardo.
E não tinha valido a pena para seu pai acreditar em finais felizes,
pois sua mãe partira pouco depois de ela nascer.
Ela não conheceu seu rosto, mas seu pai dizia que Pryia era a
miragem dela. E de alguma forma, Pryia se lembrava da sua voz
como um sonho distante. Um sonho que ela sempre voltava a
sonhar quando cruzava os oceanos.
Talvez fosse por isso que ela gostasse tanto de navegar: por essa
sensação permanente de voltar para casa.
Pryia sabia disso, pois seu pai era assim. Mas nem mesmo os
melhores piratas reinam nos mares para sempre.
Até que se deu conta, de que a música não estava vindo dele.
Não era uma memória de Pryia cantando que passava pela sua
mente, mas era a própria pirata que cantarolava em algum lugar do
navio. E por mais fascinante que fosse sua voz, Jim não suportava
ter o seu sono atrapalhado por ninguém. Mesmo que fosse um
– Uma coisa é você vir com esse papinho de que está com saudade
de casa. – ele afinou a voz, como se quisesse imitá-la –
Jim chegou até a beira do convés com toda a intenção de gritar com
ela, para que parasse de cantar um pouco. Não queria ser
Ela procurou pelo som das ondas e não encontrou. Procurou pelo
vento que também não estava ali.
Ela correu na sua direção. O que esse idiota estava fazendo agora?
Ela se aproximou dele e viu que seus olhos castanhos estavam
dourados e brilhantes.
Hipnotizado.
Parecia a coisa certa a fazer. Parecia a única coisa que podia ser
feita. Com Jim desmaiado, agora ela estava sozinha.
E com certeza estava sendo assim agora que três adoráveis sereias
estavam sentadas na popa à sua frente, seus rabos de peixe
balançando alegremente enquanto imitavam o movimento que
deveriam fazer na água.
Por pura e inútil vaidade, assim que a última nota se estendeu sobre
as ondas, Pryia reparou em seu estado. Seu cabelo estava
amassado pelo travesseiro, sua blusa branca já estava com o tecido
puído e desgastado, e suas pernas estavam nuas. Ao menos o
aroma cítrico de laranja que emanava de sua pele era agradável.
Talvez ela não estivesse. Talvez isso fosse um sonho. Faria muito
mais sentido.
– Ela até que é bonita… Se você tem um gosto para coisas sem
graça.
Pryia sentiu seu coração encolher em seu peito. Mesmo sob a luz
das estrelas, ela podia notar a cauda luminescente flertar com tons
de vermelho, assim como seus cabelos, que certamente formariam
cachos se a sereia passasse tempo o bastante no sol. Ao
amanhecer, sua visão seria impossivelmente bela.
– Isla, você acha que ela é sonsa ou burra? – A sereia agora torcia
uma madeixa áurea, enquanto olhava nos olhos de esmeralda da
irmã.
Talvez ela pudesse entrar no joguinho das três irmãs à sua frente.
– Mas vocês estão certas. – Pryia continuou –Eu tenho uma coisa
que pertence a vocês.
Não.
Não podia permitir que ele morresse afogado por essas criaturas
metidas, encantadoras e desgraçadas. Ele merecia coisa melhor.
– Aquele ali, querida, é o meu idiota. Receio que não posso abrir
mão dele. É a minha chave para chegar até o local que está o
mapa.
– Mas ele conhece nossa música. Isso é roubo. – Isla era tão doce
que era quase impossível discordar dela.
Quase.
– Ele já a ouviu por mim. Jamais vai imaginar que seja uma música
do seu povo.
Pérola ergueu uma sobrancelha, ponderando as informações.
– Desculpe, Jim.
Ela deu um beijo na sua testa seguido de uma pancada na sua
nuca, desacordando seus sentidos.
A lateral do rosto estava com uma mancha roxa, mas ele iria
sobreviver. Mas, mesmo sendo para o bem dele, uma culpa
gigantesca começou a crescer no peito de Pryia.
Ela precisou cobrir seu sorriso com as mãos. O valor que ele dava
aos detalhes, como se fossem a coisa mais importante do
universo…
A pirata não sabia o que dizer, nem o quanto contar. Havia dito às
irmãs que ele achava que era uma canção humana. Se ele
soubesse que encontrou uma sereia e viveu para contar a história,
sua vida estaria em perigo. Todos sabiam da existência do povo
submerso e todos sabiam que não deveriam se misturar.
Pryia odiava o sabor da mentira em seus lábios, mas ela não viu
uma alternativa. Depois do medo que sentiu ontem, ficou claro que
jamais faria alguma coisa que pudesse colocar a vida de Jim em
risco.
– Jim?
– E daí?
– E daí que camisas não se regeneram, meu amor! Era mais fácil ter
me deixado cair sozinho. – Ele conseguiu se levantar e foi até o
espelho improvisado da cabine observar seu reflexo turvo em uma
bandeja de prata. – Agora eu estou parecendo um miserável.
– E um encrenqueiro.
– O que, Jim? – Pryia decidiu que estava muito cedo ainda para ter
pressa.
– Acho que você precisa ver isso aqui. – Ele segurou seu queixo e o
virou para a direção que roubou sua atenção.
Essa ilha não estava em nenhum mapa que os dois já tinham visto,
mas estava em livros e canções, trocadas como um precioso
segredo apenas entre os melhores capitães.
Ela sabia que não poderia pisar nela sem um convite. A sentença
era de morte para os bisbilhoteiros e os desrespeitosos.
– Preciso que você confie em mim e siga meu comando – ela disse,
ajeitando o cabelo, o cinto e a calça o melhor que pôde.
– Perguntas óbvias não são o que precisamos agora. – Ela riu, mas
era com nervosismo na voz.
– Eu sou.
– Jura?
– Na verdade, eu fui. Tem muitos anos, mas o convite ainda deve
servir. Não acredito que um reino milenar troque a chave com tanta
frequência.
E seu pai, que tinha como único defeito confiar demais – roubar e
matar não eram suas melhores características, mesmo seguindo
seu código de pegar dos que têm demais e matar aqueles que
fazem o mal –, contou a Pryia o código que recebera para entrar na
ilha.
Pryia não sentiu medo quando criança, mas agora ela sabia do que
o mundo era capaz e sentiu o coração pulsar mais forte.
Pryia olhou para sua mão, brincando com o anel, sorrindo para si e
para sua coletânea de ironias e coincidências. Ela o encarou e disse
como se desse as boas-vindas ao inesperado:
– Solens Perle – ela disse com toda certeza que seu coração tinha.
Pérola do sol.
Seu pequeno navio parecia patético ali, mas ele não se importava.
Vingança poderia esperar um pouco, enquanto entravam na
misteriosa República de Nanrac.
Destinos impossíveis
Pryia uma vez teve a impressão de que sua magnitude poderia ser
apenas um reflexo da sua infância. Que, quando crescesse, prédios
assim aparentariam ser normais. Ela estava enganada.
Os tons ricos eram refletidos diretamente nas pilastras por onde Jim
e Pryia passavam.
Jim se contorcia por dentro por estar tão esfarrapado, mas estava
deslumbrado demais para se prender ao estado trágico da sua
camisa. Pryia, ao seu lado, seguia com olhos brilhantes e um sorriso
genuíno no rosto.
Com isso, Jim reparou que, em cada tenda, havia seres da terra ou
do mar conversando como se fossem bons amigos ou como os
piores inimigos prestes a dar uma trégua. E ninguém ali era
esquisito o bastante para chamar a atenção, mas ele reparou que o
– Não há nada mais lindo do que te ver sorrir nesse lugar, mas
detesto te lembrar de que não estamos a passeio – disse, e
conseguiu fazer Pryia olhar em sua direção.
Irritantemente bonito.
– Acho que tudo a nossa volta ainda parece impossível, por mais
que não seja minha primeira vez aqui.
– Mas tudo isso é real. – Ele fez um gesto para tocar na sua mão,
deixando um instante de eletricidade ser percebido por sua pele. Um
sorriso surgiu nos lábios dos dois, mas nenhum viu.
Khlaha foi até uma antecâmara por um instante para pegar alguns
acessórios.
Um embaixador. Um rei.
– Dei a ela o nome dos traidores de meu pai. – Qualquer alegria que
Jim estava sentindo morreu em seu peito. – Eles agora comandam a
frota que deveria ser minha. Saber qual capitão é um traidor é algo
bastante valioso.
– Não comece.
Pryia finalmente sentiu que estava no fundo do mar, pois não havia
fôlego em nenhuma parte com o movimento que a pegou de
surpresa.
– Parece, meu amor. Mas nós estamos aqui, não é? E você saberia
dizer quando isso começou? – O olhar dela era de dúvida. –
– Nenhum fim se você não quiser. – Ele soltou sua mão e tocou no
seu rosto. Seus lábios cor de cereja pareciam tremer com
ansiedade, e ele deslizou seu polegar por eles. Saboreando cada
parte daquele momento para que o infinito nunca acabasse.
Jim aproximou seu rosto de Pryia, sem saber como algo que lhe
provocava tanto desejo ainda o mantinha raciocinando.
Não Leonardo.
Ele não era um pirata, nem marujo, tampouco um capitão. Mas sim
um marquês que estava prometido à noiva que seria do seu maldito
irmão. Eles deveriam se casar assim que ele completasse sua
missão.
Não que ela tivesse esse controle, é claro, mas Pryia era uma
excelente mentirosa.
"Vamos lá, Pryia. Esse não é o primeiro mané metido a lagosta que
você vai colocar no espeto."
Tudo culpa do Jim. Foi por causa do sumiço dele e da ideia idiota de
sair por aí em um lugar que ele jamais pisou. Ele mal sabia se portar
diante dos costumes locais! Era por culpa dele que ela agora estava
presa ali. Se ao menos ele não tivesse confundido seus
pensamentos com aquela brincadeira de mau gosto…
Algumas coisas eram impossíveis, e ponto. Não deveria estar aberto
para debate.
tinha algo nele que a deixava curiosa para saber o que era esse
sentimento.
Ela conhecia o amor que teve por seu pai. Por Olive. Pela liberdade.
Mas amar outra pessoa, que surgiu do absoluto nada?
Isso não parecia fazer sentido. Ainda assim, ela tinha que ceder ao
fato de que não parecia ser impossível. Afinal, seus pais se
amaram. Mesmo que ela não tenha visto isso acontecer, seu pai
falava de sua mãe com uma admiração que só poderia ser esse tal
de amor.
Não que Jim pudesse fazer uma grande diferença em uma batalha,
mas dois contra um parecia alguma vantagem. Ele poderia distrair a
criatura marítima à sua frente. Ludibriar com conversas macias.
Entre suas muitas ciladas, era a primeira vez que Pryia tinha a
verdade ao seu lado. Essa era nova.
Ela não era uma ladra. Ao menos não naquele momento. Ela havia
conseguido o tecido e as joias pagando um preço justo. Ela
conhecia as leis de Nanrac e sabia que ali não era o lugar para
bancar a esperta.
Revirou
suas
memórias,
tentando
se
lembrar
do
Exatamente como ela imaginou que faria. Pryia não era muito alta,
portanto usou seu tamanho como uma vantagem. Antecipou o golpe
e se abaixou, disparando um soco entre as pernas dele.
dolorosa. Ah, sim, ele a jogaria em água fervente assim que tivesse
oportunidade.
Pryia usou bem seu tempo: teve o suficiente para enfiar sua mão no
fundo da bolsa e procurar desesperadamente pelo cabo da faca de
corte que ela conhecia tão intimamente.
Aquilo, sim, ela tinha roubado. Mesmo sabendo que foi um favor ao
velhote – ele perderia os dedos com uma lâmina tão afiada.
Sem poder tirar os olhos do crustáceo que cambaleava para ficar
em pé, Pryia tateou todo tipo de bugiganga em sua bolsa.
Até que… a ponta de seus dedos achou um cabo liso junto a uma
suave superfície de couro de dragão. Agora, sim, ele provaria do
gelo da sua lâmina e pensaria duas vezes antes de mexer com
Pryia.
Intimidar com apenas uma palavra não tinha o mesmo efeito. Mas
nunca voltaria a ser Pryia North. E ela já não podia mais ser Pryia
Yabbah. Esse nome naufragou com seu pai.
Ela precisaria ser rápida, mas manteve a faca próxima do seu rosto,
pronta para atacar. Um rio vermelho fluiu do seu ombro, as gotas
acertando o chão em um som estalado. Bastou um olhar de relance
para ver que o corte não havia sido tão profundo assim.
Ela odiou o fato de entender o que Jim dizia sobre sua camisa
branca. Tecidos não se regeneram.
Droga, agora ela estava ficando fresca, e era tudo culpa daquele
pirata almofadinha e idiota que a abandonou para se perder ali.
Pryia só não disse que odiava Jim, porque era o que ela sentia por
Leonardo.
Talvez houvesse algo naquela família feito apenas para tirar sua
paciência.
Mas não podia. O simples ato de violência que cometeu traria uma
sentença de morte à sua sombra.
Ele agonizava de dor pela perda do seu membro, ou talvez por ter
sido derrotado por uma bípede franzina arrogante e mentirosa, mas
sabia que algo bem pior do que ele estaria atrás dela.
– Cônsul Simas vai gostar de saber como sua laia trata seus
convidados de honra.
Uma satisfação que não deveria estar ali tinha desabrochado. Pryia
não conseguiu mentir para si mesma: aquilo não era nada bom.
Pryia usou parte da água do cantil para limpar a mecha suja do seu
cabelo. Ela encontraria Jim a qualquer momento e não queria
aquele aroma pútrido atrelada a ela. Não que isso importasse, mas
a única vaidade real de Pryia era se manter cheirosa. O que era um
desafio gigantesco quando se vive na beira do mar. Ainda assim seu
nariz sempre foi exigente.
Ainda assim, ela não era uma ladra. Se a sereia era estúpida o
bastante para se ocupar mais em diminuir os outros e dar conselhos
impraticáveis ao invés de cuidar dos próprios apetrechos, o
problema era dela.
Falsificar mapas já era o pior dos ofícios, Pryia não se tornaria babá
de peixe. Mas agora fazia sentido. Enquanto a silhueta de Olive
vinha até ela, Pryia entendeu o que tinha feito. E não era nada bom.
Ela torceu para ser tão boa mentirosa quanto sempre acreditou que
fosse.
Olive, sim, havia sido roubada. Sequestrada. Mas a pirata não iria
deixar essa criatura majestosa ser levada por contrabandistas de
quinta categoria que aportaram em Porto Magnus. Ela libertou todos
os animais presos, mas Olive ficou. Os piratas estavam tão bêbados
que não se deram conta das gaiolas vazias. A história ainda a fazia
sorrir com satisfação. Seu próprio código de honra colocado em
prática. Papai ficaria orgulhoso.
A coruja estava linda com sua pérola negra combinando com suas
penas cinzas. Pryia arriscou a dar a massa amorfa que tinha na
bolsa, que, para sua surpresa, foi devorado de bom grado.
– A curta.
Isso era um péssimo sinal. Pryia não quis ficar e descobrir qual seria
a punição pela mentira, eles precisavam sair dali o quanto antes.
Suas chances de chegar até o cônsul agora estavam arruinadas.
– Achei que você era inteligente o suficiente para entender que, se a
informação é a coisa mais valiosa da república, você não pode usar
informações falsas!
– Mas era para ser só uma partida inocente de pokka, meu amor.
– Para mostrar que eu não estava blefando. Você fica uma graça
irritada, sabia?
– Que bom então que eu sou uma mulher, não é? – Ela estava tão
irritada que suas sobrancelhas estavam quase coladas uma na
outra, enquanto buscava sua faca ainda grudenta de sangue para
cortar as cordas que o prendia.
– Péssima escolha.
Foi então que ela se deu conta. Se Jim era irmão do Leonardo, de
jeito nenhum ele seria um pirata assim como o irmão. Ele queria
matá-lo justamente por isso. Pryia parou de correr, com as mãos
apoiadas nos joelhos e ofegante. Jim parou logo ao seu lado. Olive
ainda circulava pelos céus.
– Não me venha com essa. Você teve dias para descobrir que eu
não era um pirata e não se importou com isso.
Ela quis bufar, mas ele tinha razão. O que a deixou duas vezes mais
irritada, se isso fosse possível. Ainda assim, isso não mudava o fato
de que ele era um idiota inconsequente. E, graças a isso, eles
precisavam sair da ilha.
Seria melhor Jim contar a verdade. Ela poderia ficar com raiva, mas
já estava bastante nervosa. Pryia não merecia pensar que ele era
um mentiroso manipulador assim como o maldito Leonardo.
Foi a única coisa que ouviram da voz aguda antes de Jim e Pryia
serem arrastados para enfrentar a justiça de Nanrac.
8
Tempo emprestado
O coração da república.
Ela merecia sua vingança e felicidade mais do que ele. Ela viveu
mais provações em um mês do que o marquês em toda sua vida. E
ainda tinha a capacidade de sorrir de forma devastadora, o
suficiente para fazer o mundo cair aos seus pés.
Exceto que agora aquele sorriso que ofuscava o sol não estava em
lugar algum para ser encontrado. Por culpa dele. Ele era a noite
nublada que sabotava os navegantes.
Não havia uma cela para eles. Apenas uma fila. Crimes eram
esperados, assim como sua sentença impiedosa. Ninguém
enganava Nanrac e vivia com essa informação.
O sol já começava a cair quando Pryia aguardava sua vez. Ela e Jim
não trocaram uma palavra, tendo em vista o que acontecera com os
prisioneiros à sua frente. Nem um olhar. Nanrac iria voltar ao oceano
em breve, e eles afundariam com a ilha se não tivessem sua
audiência a tempo.
Ela seria a próxima a ser julgada e sussurrou tão baixo que apenas
o vento pôde discernir o som de suas palavras. Para a Deusa do
Caos, ofereceu um favor: se houvesse algo que pudesse fazer que
não ferisse ninguém de quem gostava, ela faria. Se ela e Jim – já
que ele estava ali e, por mais que fosse um idiota, ela não queria
que ele morresse – pudessem seguir seus caminhos ilesos, ela
faria.
Pryia soltou um riso de escárnio. Quem era ela para fazer um favor
à Deusa do Caos? Uma ninguém. Sem nome, nem futuro.
Merda. Talvez ela fosse idiota também. Talvez o mundo inteiro fosse
apenas uma gigante bola feita de rocha e água, com propósitos
idiotas e únicos para fazê-la se irritar.
Mas aquela palavra... Ouvir aquilo era como voltar para casa. E
– Yabbah .
Cônsul Simas.
– Nada. Mas você terá uma chance, que é justamente o que está
acabando para você, Yabbah – falou um humano de traje azul claro
como seus olhos e pele pálida. Certamente vinha das terras de gelo,
pois transpirava de calor na ilha tropical.
Pois bem. Pryia há muito tempo não era a mesma criança inocente.
Poderia jogar esse jogo.
Eles sabiam que ela falava a verdade, pois apenas quem já havia
visto o mapa pessoalmente poderia descrever tais características.
Nanrac e o Reino Submerso não eram inimigos, no
Não.
Não era como se sua vida valesse o mundo, então Pryia fez a única
coisa que a preenchia: rechear suas verdades e certezas de
mentiras.
– Meu nome é Pryia. E agora ou vamos sair daqui com seu melhor
navio ou vou deixar a localização do mapa com o pior pesadelo que
podem encontrar. Envie uma pequena tripulação conosco se
quiserem. Meu imediato fornecerá informações sobre nossos
estudos mais recentes.
☆
Pryia sorriu ao ver o belo navio, feito com marcas do céu e do mar,
impecavelmente limpo como se jamais tivesse sido usado.
Jim tentou falar com Pryia algumas vezes, mas ela o dispensou com
comandos curtos que ele foi compelido a seguir.
Verdades ocultas
Jim sabia que não teria mais que alguns segundos antes de Pryia
dispensá-lo novamente, assim como vinha fazendo nos últimos dias.
A pirata olhou bem para o marquês à sua frente. Seu rosto parecia
cansado, círculos escuros se formavam sob seus olhos. Se ao
menos isso atenuasse sua beleza… Mas ela nunca buscou pela
perfeição. O que a atraía era justamente as falhas, os pontos
vulneráveis. Só ali ela percebia que alguém poderia ser tão
quebrado quanto ela. A pirata sabia que a atração era o mais doce
dos venenos, a mais óbvia das armadilhas.
Ela não cairia novamente. Jurou para si mesma que não. Mas Pryia
era… Bom, vocês sabem.
Talvez porque a pirata se deu conta de que essa seria a última noite
que navegariam juntos antes de separarem seus caminhos, ou
porque ela estava cedendo à curiosidade, ou apenas porque Pryia
estava desesperada para uma boa briga, a fim de extravasar tudo
que estava atravessado na sua garganta, ou simplesmente porque a
rachadura que tinha em seu olhar a partiu um pouco mais. Seja lá
qual fosse o motivo, a pirata abriu a porta, apoiando seu cotovelo no
batente. Levantou uma sobrancelha e perfurou olhar do marquês
com o próprio, mantendo o queixo erguido. Um pio de Olive ecoou
do mastro do belo navio. Pryia sorriu ao ver a silhueta de suas
penas e orelhinhas no alto do mastro.
Jim quase perdeu o fôlego. Há apenas alguns dias ele não via os
lábios de Pryia se curvarem para cima, mas ele não havia se dado
conta de que essa falta era como se estivesse em uma prisão
desprovido de luz e água. Era ridículo e exagerado, mas ele não
pode conter um suspiro. Quando ela sorria era como se o mundo
parasse para admirá-la.
Ali, a pirata retratava uma pintura de tudo que ela era. Tudo que ela
tinha. Sua camisa branca e gasta tinha apenas alguns botões no
lugar e pendia larga, caindo por um de seus ombros. Alças pretas
de renda se revelavam por debaixo da camisa como uma peça que
certamente era reservada apenas a ela e aos afortunados que
convidava à sua cama. A calça preta estava justa nas suas curvas
valorosas; seus pés, descalços. Jim engoliu em seco.
Quando a pirata voltou seu olhar para o dele, Jim estava perdido em
seus próprios pensamentos. Percebendo que o infinito acabara
rápido demais, ele só podia torcer para ter memorizado todos os
detalhes corretamente.
Ele gostava de ser Jim. Não Hector. Nem Vossa Graça. Só Jim .
Mas ela não se importava com o que ele gostava. Não naquele
momento.
– Pois então diga de uma vez. Não pretendo perder muito mais do
meu tempo com você.
– Sabe, Pryia, eu acho que você está com ciúmes. Por isso está me
evitando e não suporta ficar perto de mim mais do que alguns
instantes.
Era um território perigoso, ele sabia. Mas, por mais esperta que a
pirata fosse, a ira tende a nublar os sentidos... E ela mordeu a isca.
– Você deve se considerar importante demais se acha que dou a
mínima para a sua vida, mas tenho certeza de que vale tanto quanto
seu irmão, se fez o que fez mesmo com a adorável e casta lady May
esperando por você.
– Se forem tão deliciosos como você, por que não? – Em parte ele
estava sendo sincero, mas ele queria irritá-la. Ele preferia sua ira à
sua indiferença. Mas Pryia não explodiu, apenas cuspiu cada
palavra para que ele não perdesse nenhuma.
– Você não vale nada, Jim. Com o irmão que tem, eu que fui
estúpida em pensar que era diferente.
– Eu não entendo, Pryia. Se não é ciúme, por que você está tão
irritada comigo?
– Ela iria te afogar, é isso que você quer saber? Fiz uma barganha
para salvar sua vida. O reino submerso é conhecido pelos líderes da
república de Nanrac, mas sua existência não deve ser popular ao
povo da superfície. Eu prometi a ela que resgataria o mapa das
mãos de Leonardo. Mas você não entende isso, pois é apenas um
lorde idiota e mimado, acostumado ao mundo se dobrar às suas
vontades!
– É graças a ele que eu preciso me casar com lady May. Ela estava
prometida como sua noiva há muitos anos. A responsabilidade de
manter a aliança entre as famílias agora é minha. Eu posso ter
muitos privilégios, como ouro e luxo, mas escolher não é um deles.
havia sido ferida. E por mais que ela quisesse fazê-lo acreditar, ele
não foi o alvo, mas ela mesma.
Jim tinha uma mão apoiada na parede ao seu lado. Nenhuma parte
de seus corpos se tocava, mas o calor de suas peles queimava,
implorando por contato. O marquês passou o nó dos dedos pelo
rosto de Pryia, memorizando os detalhes. Os lábios fartos, os olhos
pequenos e adoráveis, o nariz arrebitado mais lindo que já vira.
Pryia não era tocada há tanto tempo, que não havia se dado conta
de que sentira tanta falta. E Jim… Era tudo que ela queria. Ela já
suspeitava que estar em seus braços seria uma perdição, mas a
falsificadora de mapas não tinha tanta vontade assim de se
encontrar, pelo visto. Sentir o aroma cítrico de laranja e rum direto
dos seus lábios era mil vezes melhor do que sentir seu próprio toque
na intimidade de sua cabine. Na sua imaginação, seu próprio toque
o traduzia de uma forma muito previsível. Ela mesma era muito
delicada, muito familiar para seu gosto.
10
Nada mudou
Quanto aos finais… Ela sabia que felicidade era um conceito que
adivinha de um devaneio momentâneo. Felicidade era apenas um
momento que antecedia uma desilusão.
Ela estava mudada, por mais que não soubesse precisar o que tinha
causado essa mudança: o vazio e a desesperança dos últimos anos
ou a breve sensação de acolhimento que experimentou na última
semana e que agora era apenas uma lembrança inacabada.
Era mais fácil encarar a silhueta dura e fria das casas de pedra e
dos telhados de barro beijados pelo sol. Era mais fácil ignorar os
olhares e sussurros vindo na sua direção. Qualquer coisa era mais
fácil de encarar do que a lembrança de Jim olhando nos seus olhos
com o sorriso devastadoramente lindo logo após beijá-la.
Há poucas horas, que mais pareciam ser outra vida, eles estavam
juntos, banhados pela luz das estrelas. E tudo que ela queria era
puxá-lo pela sua túnica azul, jogar todos os seus rascunhos no chão
e esquecer que o mundo existia, enquanto eles idolatravam o corpo
um do outro como se prometesse uma oferenda aos deuses.
Não, ela não passaria a amar alguém impossível. Não havia nascido
para ser uma aventura ou uma amante. Ao menos, não de alguém
que ela queria por inteiro. Era mais fácil deixá-lo para trás, da
mesma maneira que desgarramos de um sonho ao levantar da
cama.
Tantas vezes sua vida mudou em um dia. Uma hora. Uma semana,
parecia tempo o bastante para uma mudança radical.
Não era a primeira noite que ela passava em claro, mas ao menos
hoje ela tinha um bom motivo para ficar acordada.
Pryia estava ali. Mais magra do que a última vez que a vira e mais
corada de sol, com várias sardas adoráveis despontando dos
ombros e bochechas. O cabelo, mais curto e mais claro nas pontas
do que se lembrava. Mas a mesma voz melodiosa e o mesmo
sorriso encantador permaneciam.
Contudo, algo em seu olhar... Isso, sim, havia mudado. Havia mais
do que ela estava contando, e Jasmine, por mais que estivesse
curiosa, não se importava de esperar um pouco para ouvir.
Pryia olhou Jasmine por alguns instantes e prendeu o riso, até que
as duas explodiram em uma larga gargalhada.
concluiu Pryia.
– Eu acho que a conversa deveria fazer com que o sexo fosse ainda
melhor, não?
Idiota.
Aquela palavra bateu firme no seu estômago. Não era algo tão ruim
assim. Era bom ter um idiota por perto. Principalmente quando, na
verdade, ele não era nada idiota, mas, sim, brilhante à sua própria
forma.
– Jasmine?
– Ele é um nobre.
– E noivo.
– Não vejo como nada disso possa me fazer bem agora, Jas.
Obrigada… Eu acho.
Especialmente as inteligentes.
☆
Assim como Realmar, Jasmine não havia mudado nada. Ainda era a
mesma mulher que escolhia viver sob a luz da lua, pedindo a
opinião de canecas de cerveja enquanto dançava livremente no topo
das mesas. A pirata nunca perguntou como ela bancava sua vida
simples e descomplicada, mas isso não era da sua conta. Era uma
boa companhia.
– Me lembre de novo por que vamos sair essa noite para o porto e
não para uma taverna?
– E como faremos isso mesmo? Atrair alguém que você odeia que
tem o paradeiro desconhecido para um lugar que você está?
– Agora sim estou vendo sinais de diversão, mas preciso que você
prometa que vai deixar a noite embalar suas escolhas hoje.
Nós estamos juntas, Pri. E eu te conheço: sei que não será por
muito tempo.
11
Sinas Cruzadas
Por uma noite, ela decidiu dar ouvidos à amiga e apenas se divertir.
Ao menos enquanto tudo que ela poderia fazer era esperar.
Leonardo viria até ela. Ela sabia que sim. Como se as próprias
estrelas a ajudassem na missão, que era um tiro no escuro. Mas
algo dentro dela a fazia acreditar. Até porque, para atrair o Diabo,
basta estar disposta a fazer um pacto com ele.
Mas até sua vida ser forçada a mais essa reviravolta, ela daria sua
atenção completa a Jasmine. Que claramente, ao ver a bela
garçonete, pensava diferente da pirata.
Como era possível que há tão pouco tempo ela estava em alto-mar,
barganhando com a herdeira do povo submerso pela vida de Jim, e
agora estava em uma taverna aguardando seu pior inimigo?
Jasmine
seguia
apontando
os
frequentadores
mais
Em sua bolsa, ela sentia o peso do papel que Jim havia deixado
com ela. O endereço de sua mansão, onde deveria mandar chamá-
lo quando finalmente fosse a hora de cumprir sua parte do acordo:
vingar o luto precoce da mãe antes de assumir sua responsabilidade
como marquês.
Ela implorou para que o coração se calasse assim que olhos frios de
avelã fixaram-se nos seus do outro lado do bar, em um sorriso
venenoso e lascivo.
Nunca foi tão fácil fazer aquilo que Pryia fazia melhor. Mentir era tão
natural para a pirata como respirar, mas ela nunca pensou em si
mesma como uma enganadora... Ela preferia pensar que era uma
contadora de histórias. Com versões muito mais interessantes e
articuladas das realidades finas e frágeis.
Em sua arrogância, ele acreditou que já tinha tirado tudo que ela
poderia oferecer. No fundo, ele temia que seu conhecimento
possuísse força o bastante para sobrepujar seu mérito, mas lhe
doeu partir sem olhar para trás há pouco mais de três anos. Pryia
North era uma pirata excelente e uma companhia deliciosa na cama.
Não sem ela. Essa fraqueza, o feria. Ele não admitiria o próprio erro
para si mesmo, mas isso não significava que não seria assombrado
a noite pelas suas decisões.
E pensando bem, ter Pryia ao seu lado estava longe de ser a pior
opção. Ele se lembrava de que seu beijo era como fruta fresca e
que ela podia ser esperta demais, a ponto de tirá-lo do sério…
que acorda, está apaixonado. Claro, o livro sabia mais do que ele.
Todos sabiam.
Pryia, a mulher mais linda que ele já vira e que ele teve o prazer de,
por um instante, morar nos seus lábios e curvas, apenas para ser
atormentado com o vazio da lembrança pelo resto de seus dias.
Mas agora ele sabia, e tudo que lhe restava era a saudade que tinha
de sua risada ecoando pelos cantos, das músicas que ele mesmo
passou a repetir e do sorriso que fazia o sol nascer.
Mas ele ansiava pelo momento que poderia vê-la de novo. Só para
ter certeza de que ela não era tão perfeita na realidade quanto em
sua memória. Quem poderia ser?
Mas ele sabia que estava errado. Ela provavelmente seria ainda
mais maravilhosa.
12
Época de caça
Ela não imaginava que vê-lo traria uma sensação tão familiar, e uma
estranha nostalgia congelou seus ossos.
Saudade.
Pryia fitou cada um dos detalhes que um dia despertou seu desejo e
entendeu totalmente por que havia caído em sua lábia.
Mas, agora, ela era tomada por um desejo ainda mais poderoso que
a luxúria ou a esperança: vingança.
Claramente ele não tinha o mesmo zelo pela aparência que seu
irmão, mas tinha o mesmo apreço por badulaques que as sereias.
Pryia perdoou a garota que ela fora no passado, pois entendi por
que ela acreditou naquele canalha, portanto não sentiu raiva de si
por ter acreditado nele. Acreditar não era uma sensação tão ruim,
era definitivamente melhor do que os sentimentos dos últimos anos:
solidão e desesperança.
O rosto dela estava ainda mais belo agora que seus cabelos
estavam mais curtos, e sardas adoráveis adornavam seu pequeno
nariz, como pistas que seguiam até seus ombros. O capitão não
gostava de revisitar antigos affairs, mas poderia abrir uma exceção
para a bela pirata, que o encarava tão docemente.
Mas ela era uma excelente mentirosa. E tomou dele a única coisa
que Leonardo North poderia oferecer: prazer egoísta.
13
Nem tão complicado assim
"Amanhã de manhã, ele vai perceber que não era ele quem tinha as
rédeas nas mãos, e eu vou estar rindo gloriosamente de sua
arrogância a milhas de distância."
– Achei que tinha dito que iríamos para uma espelunca melhor do
que essa – ela ronronou sensualmente.
– Você está certa, mas acho que senti tanta sua falta que não
consigo esperar.
Sempre foi assim com ele. O seu desejo não possuía hora marcada
ou barreiras. Muitas vezes ele a despertava para cumprir seus
caprichos. Ela acreditou na época que era um gesto de paixão, mas
após perceber que a tal paixão encontrava outros portos que não o
dela, a pirata passou a impor suas próprias vontades.
Não deveria ser assim, e no fundo ela sabia disso. Mas a Rosa dos
Ventos era mais do que o navio de Leonardo: era a única casa que
ela tinha após seu pai falecer. Curioso como ela descobriu,
conforme os anos se passaram, que um lar se parece muito mais
com um abraço do que com lugar.
Ela merecia ser impressionada. Por tudo que ela iria fornecer a ele,
Pryia merecia uma noite com o absoluto melhor. Ele prometeu a si
mesmo que iria demorar o tempo que fosse preciso com ela, até que
as paredes ecoassem quando ela gritasse seu nome.
Como o lorde que havia sido criado, ele se afastou levemente e fez
uma pequena mesura, enquanto seu olhar predatório mirava os
lábios da bela pirata.
Pryia passou a mão pelo peito dele, fingindo timidez ao ajeitar seu
casaco, e finalmente sentiu o formato longo, cilíndrico e firme no
interior do bolso. Ela sorriu, e ele imaginou que era graças à sua
presença imponente. Ela deixou que ele pensasse assim. Afinal,
Leonardo não havia mudado nada.
14
Elixir venenoso
O frio das ruas de pedras passava até mesmo pelas grossas botas
de couro de Pryia. Ou talvez fosse o gelo que crescia no seu espírito
pela armadilha em que acabara de se meter. Ela era ao mesmo
tempo a protagonista e a vítima. E se tudo ocorresse como o
planejado, uma heroína.
Lorde Hector. Não importava. Pensar que ele havia crescido tendo
aquele horizonte como cotidiano a fazia se perguntar por que ele
escolheria uma vida nos mares ao seu lado.
Ela sabia que isso era apenas um pensamento que surgia em sua
mente como a mais doce forma de tortura. Ele não poderia jamais
ficar com ela, e ela não tinha nada a oferecer. Nada que jamais se
comparasse com o luxo opulento ao seu redor.
Não quando seu livre-arbítrio era usado para estar ali, ao lado de
Leonardo.
Ela teria que encontrar Jim e levá-lo até lá antes que Leonardo
acordasse. Mas não havia, entre as suntuosas ruas, nenhum garoto
de recados, nenhum bêbado procurando rumo, absolutamente
ninguém que pudesse encontrá-la ali.
Ele estava indo rápido demais. Já não era sua intenção primordial
beijá-lo, mas não era algo tão ruim assim que ela não pudesse
fechar os olhos e fingir que se tratava de um desconhecido
qualquer. Mas a ideia de ir novamente para cama com ele, de fingir
enaltecê-lo enquanto ele estava no ápice da sua masculinidade, era
demais para ela.
Pryia teria gargalhando com o fato de ele não ter mudado nada.
Mas esse tipo de situação teria graça apenas quando ela estivesse
contando essa história de um ponto de vista triunfante para
Jasmine. No momento em que estava vivendo, o desespero
crescente começou a subir por seu peito.
A pirata afastou as mãos de Leonardo com firmeza, encarando-o
fixamente nos olhos, em um pedido silencioso para que ele a
deixasse assumir o controle. Ela sabia que o Leonardo gostava
desse tipo de jogo. Desejava não ter esse conhecimento, mas
usaria absolutamente tudo a sua disposição. Ele gostava de sentir
que estava sendo idolatrado. Afinal, ele tinha certeza de que
merecia nada menos do que isso. Pryia não ousou mencionar seu
navio, o mapa ou a traição. Quanto mais o foco dele estivesse em
seus lábios e na promessa do que faria com eles, menos pensaria
na relíquia que carregava em seu bolso.
– Leo... – O apelido era amargo em sua língua, mas sua voz a fez
parecer uma abelha banhada em néctar.
– Claro que tem, onde estão meus modos? – Ele firmou mais um
beijo no seu pescoço, agora buscando apertar seu seio antes que
ela interrompesse o movimento. – É difícil me controlar com você,
havia me esquecido disso. – Ela não esqueceu.
Não. A última coisa que ela queria era lhe propor o alívio que vinha
junto de uma onda de prazer. Mas a ideia de interromper essa
sensação, jamais deixá-lo atingir o clímax, lhe dava energia para
seguir em frente com a sua atuação. Seu mapa agora estava jogado
no chão da sala vazia. Ela só precisava desacordá-lo e, de alguma
forma, encontrar Jim naquele bairro. Ele não estaria longe.
Ela fez menção de falar, mas ele colocou o indicador sobre sua
boca.
Dessa vez, foi ela que o interrompeu com a mão em seus lábios,
desejando que o movimento fosse um soco.
– Adoro que você faz questão de estar sempre cheirosa para mim.
Tem uma câmara de banho no corredor.
A pirata corou.
– Eu quero que você assista. – Era mais uma mentira, mas deixar
que ele apreciasse cada curva de seu corpo era muito melhor do
que permitir que ele a tocasse mais uma vez.
– Foi um erro te deixar para trás. Nunca mais farei isso, você sabe
disso, não sabe, Pryia? – As promessas vazias e os olhos repleto de
luxúria já a haviam feito flutuar. Não mais.
acreditando que era digno de ser tratado como um Deus, ele não
hesitou em fingir que era um, prestes receber o prazer de sua boca.
Todo o interesse que ele sentia por ela, toda a boa vontade que
tinha em cobri-la de prazer por essa noite, automaticamente se
transformou em ódio. Aproveitando a oportunidade, Pryia deu uma
cotovelada em sua têmpora, rezando para que ele caísse
desacordado com a dupla de golpes.
Ela não teve tempo para verificar, apenas pegou o seu cinto que
estava jogado no chão e correu pela porta sem encontrar a tranca.
Pegou sua bolsa e disparou pela porta principal, levando a chave e
a trancando por fora.
Leonardo não sabia da sua relação com Jim, portanto não teria
como saber que ela buscaria por ele. Felizmente, o canalha havia
morava perto bastante para que ela corresse a pé e chegasse na
casa do marquês em poucos minutos. Ela se perdeu pelas ruas,
conferindo a numeração e os pontos de referência muitas vezes,
perdendo minutos preciosos para que Jim conseguisse chegar na
casa do de seu irmão encontrá-lo em estado vulnerável.
***
Jim não esperava vê-la ali naquele estado, mas quantas vezes na
vida poderia dizer que estava no meio de um sonho e acordou para
vê-lo ser realizado?
Exceto que dessa vez era a realidade. O marquês começou a correr
assim que Pryia lhe jogou a chave e disse o número com urgência,
frisando a cor dos degraus na fachada e que Leonardo o aguardava
no segundo andar.
15
Dívidas antigas
Leonardo não merecia ter nascido em berço de ouro, com uma mãe
amorosa ou o prospecto de um futuro brilhante que fora desenhado
por seu pai. Sendo totalmente honesto consigo mesmo, Jim também
não se sentia merecedor da última parte, mas se sua sina havia sido
traçada graças à escolha de um inconsequente, então agora o
desgraçado arcaria o preço com sua liberdade.
Talvez não.
– Se Jimmy disse que era para cuidar de você, ele não pode voltar
para encontrar a... senhorita nesse estado.
– Olhe, menina, não estou julgando o que você faz ou deixa de fazer
para ganhar seu pão. Sei que a vida pode ser difícil para uma jovem
mocinha... – rebateu gentilmente enquanto apoiava a fita no balcão
da cozinha.
Jovem mocinha?
E que não é por isso que seus lábios estão inchados como ameixa
madura?
– Não. – Quando Pryia inúmeras vezes implorou por uma, ela não
veio. – Não há.
– Achei que você tinha vindo aqui porque finalmente se cansou das
ordens daquele velho.
– Já disse para calar a boca, ela não tem nada a ver com isso.
– Ele levou sua mão a boca, em um gesto cínico. – Você ainda não
conseguiu? – perguntou, fingindo espanto.
– Cale.
– A.
– Porra.
–...peito dela e...
– Da.
– ...boca.
“O filho perfeito.”
Soco.
Soco.
Ele havia feito um favor para seu pai, mas o velho desgraçado não
foi homem o bastante para reconhecer que Leonardo estava dando
ao marquês o que ele mais queria: um herdeiro apto. Afinal, em que
família o segundo filho recebe o nome do pai? Era como se Leo
fosse descartado ainda no útero. O velho preferiu retirar todos os
títulos e bens do seu primogênito, pois não queria nenhum tipo de
conexão com a pirataria. Tarde demais, decrépito.
O supercílio de Jim manchava o lençol branco com sangue. Ele
deveria ter desmaiado com os golpes, mas Leonardo certamente
ainda não estava com sua força total. Assim que disparou o quarto
golpe, Jim desviou e prendeu o pescoço de Leonardo firmemente
com seu braço até deixar seu rosto roxo.
– Nunca mais fale de Pryia desse jeito. – Cada palavra era uma
pausa. – O nome dela não merece estar na sua boca.
Infelizmente, a brecha que Jim deu a Leonardo era tudo que ele
precisava para se soltar e inverter a situação.
Os dois caíram no chão e, dessa vez, era Jim que buscava respirar
enquanto Capitão North o sufocava com suas próprias mãos.
Não podia. Morreria sentindo vergonha e ódio e sem jamais ter dito
as coisas que realmente importam para quem ele realmente queria
por perto.
Enquanto seu rosto ficava roxo e sua pele clamava pelo frio do
ceifador, Leonardo se perguntou se uma dose de misericórdia
alimentaria ou apaziguaria as energias do caos.
– Mas não vou – ele decidiu. – Mamãe não merece perder mais um
filho. – Que ele ainda a amava e sentia desesperadamente sua falta,
mas Leonardo não disse. Ele soltou Jim, que rolou para o lado
enquanto tossia e engasgava, lutando para trazer ar aos pulmões.
Sonhos rasgados
A pirata não sabia reagir a tanto luxo. Não sabia como se mexer
naquele quarto, com medo de sujar ou quebrar alguma coisa. O piso
de mármore branco refletia o sol nas paredes pintadas em um tom
de verde-claro. Arabescos dourados adornavam o teto, e a cama
repleta de travesseiros e almofadas a seduzia mais do que qualquer
outra coisa que ela já havia presenciado.
Magda mais uma vez estava certa. Um banho não faria um milagre.
Mas a fazia bem, e isso era um bom começo. Enquanto saía da
banheira, desdobrava as toalhas e secava sua pele, pensou que
talvez sua sorte estivesse mudando.
Também não era pelo seu passado, pela morte de seu pai e pelos
anos que passou perdida em uma ilha visitada por ninguém
interessante.
Disposta a afogar
Pryia não esperava estar sozinha. Ela já contava que iria esbarrar
com alguma criada, com algum familiar de Jim ou até mesmo com
os oficiais de Nanrac, que certamente estavam hospedados em
alguma parte da mansão.
Mas não com lady May. Não com a preciosa filhinha do duque que
ancorava Jim na terra, enquanto afundava os sonhos que Pryia nem
ao menos ousava pronunciar. O que ela estava fazendo ali a essa
hora? Estariam eles casados?
Meus mistérios não moram com meu nome. Nunca tive esse luxo.
– Isso é impossível.
Sem desejar esperar mais novidades, Pryia saiu pela porta principal
em direção ao seu destino. Iria buscar seu navio e partir o mais
rápido possível de Realmar. Mas antes precisava se certificar de
que Jim estava bem. Precisava saber que ele estava vivo.
18
Mar de ilusões
Mais uma vez na sua vida, ela procurou por ajuda em vão.
Ela não deveria ter colaborado com esse plano estúpido e ter
deixado Jim para acertar as contas com Leonardo a sós.
tudo que não poderiam ter juntos. Desejou que ele pudesse ouvi-la.
Ela murmurou seguidas vezes como uma prece. Uma das únicas
que realmente quis que fosse atendida. Suas lágrimas corriam livres
pelo seu rosto, como se o mar se vingasse em uma tempestade. Ela
o apertava mais forte, como se a pressão dos seus dedos pudesse
buscar sua alma do outro lado e trazê-la de volta para ela.
Era impossível.
E só assim ela percebeu que estava disposta a se afogar.
Jim.
Por favor.
Não foi um milagre, mas isso não importava. Ela entenderia mais
tarde como foi capaz de curar Jim, mas, por ora, as forças do caos
permitiram que a pirata acreditasse em tais coisas. Elas haviam
aprendido a admirar as capacidades mentirosas da bela pirata.
Ele usou o resto de força que ainda tinha para erguer-se e sentar.
Depois, virou na direção de Pryia e, usando o peso do próprio corpo,
deitou-a no chão, debruçando-se sobre ela.
– Meu amor.
Jim roçou seus lábios nos dela como se tivesse uma vida inteira
apenas para sentir a maciez aveludada que vinha de Pryia. Ela não
pode segurar o sorriso que crescia dentro dela, e isso foi o bastante
para o marquês se desfazer.
Ela o envolveu com os braços, levantando a perna para lhe dar mais
acesso a suas curvas presas naquele pomposo vestido. Jim se
encaixou em seu corpo, intensificando o beijo como se desejasse
explorar cada parte dela. Como se pudesse clamá-la para si,
guardá-la em seus braços e eternizar esse momento em um lugar
que ela não pudesse deixá-lo para fora.
Jim sabia que Pryia não era o seu destino de berço, mas faria dela o
seu futuro. E como se a pirata lesse a intenção nos movimentos do
marquês, que explorava descaradamente as curvas de seu corpo,
ela levou as mãos para baixo da camisa dele, agradecida pelo calor
que a pele emanava e a incendiava. Pryia estava alegremente
disposta a queimar de paixão.
Ela já havia tido outros amantes. Ela sabia o que era o prazer e o
que era a mais descarada das mentiras. Mas estar com Jim ia além
de tudo que já havia experimentado. Parecia certo. Algo que era
feito para durar além do ápice, encontrando uma nova definição
para o paraíso, que ela estava disposta a experimentar. Era como
se o mundo lá fora não existisse. Pryia tinha a certeza de que ele
poderia esperar.
Jim havia voltado dos mortos, mas ela sentia que estava mais vivo
do que nunca. Ardendo por vida e faminto por ela. Suas mãos
hábeis puxavam os laços de seu vestido sem esforço, deixando
claro que ele conhecia esse modelo de roupa até mesmo melhor do
que ela.
Mas Jim parou. Sentiu o cheiro de flores e sonhos que vinha de sua
pele e se distanciou. Ele mataria Leonardo duas vezes agora. O
que o maldito havia dito sobre Pryia estava certo, e mesmo não
importando... Importava.
Eles estavam na casa dele. Ao lado da cama dele. Não deveria ser
assim... Jim começou a amarrar o vestido de Pryia de volta, e a
pirata leu em seu rosto sua decepção. Ela precisava explicar o que
tinha acontecido.
Não era. – Odiei cada minuto que ele esteve ao meu lado, não
duvide disso.
– O idiota aqui tem um plano. Se tudo der certo, podemos nos livrar
de Leonardo, dos enviados de Nanrac e do meu noivado. – A pirata
arregalou os olhos ao ouvir as palavras de Jim. – Mas preciso da
sua ajuda.
que é?
Parecia impossível.
19
O toque de um sonho
De volta à mansão Cerulius, o casal apaixonado mantinha seus
reais sentimentos como um segredo. Era o tipo de declaração que
se tornava mais saborosa na forma de dúvida do que quando dita
aos quatro ventos. E é claro que eles só pensavam assim porque
não queriam cantar vitória cedo demais. O plano era arriscado, e as
chances de dar errado adicionavam um compasso a mais em seus
corações.
Jim havia dito que precisaria de mais uma mentira da pirata, mas ele
não enganaria sua mãe. Não muito, pelo menos.
– Pryia me salvou.
Algo na forma que ele pronunciou a última palavra fez sua mãe
perceber que havia mais na história do que ele desejava
transparecer. A marquesa buscou se recuperar e voltou sua atenção
para a pirata disfarçada de embaixadora.
– Ajuda se eu disser que o outro cara está muito pior do que eu?
Magda torceu o nariz.
– James, basta um olhar na sua direção para saber que você está
totalmente encantado por essa garota.
Berenice não disse isso porque conhecia bem seu próprio filho, nem
porque era boa julgadora de caráter, mas porque qualquer um podia
sentir a energia faiscante que emanava de Jim ao estar perto de
Pryia. E não era como se ele fosse o melhor em esconder seus
sentimentos: ele nem ao menos tentava. Sua sinceridade seria sua
derradeira queda, mas uma vez que já estava caindo de amores, ele
simplesmente aproveitou o salto.
– Você acredita mesmo nisso? – sua voz era pura esperança com
um toque de desespero.
– Pelo visto, você quer acreditar. Mas não preciso lembrá-lo que seu
compromisso com Lady May deverá ser firmado em breve. A última
coisa que desejo para você é o sabor amargo de uma desilusão.
Berenice não queria, mas sorriu. Começar um rumor para unir dois
jovens apaixonados em um casamento escondido era uma ideia
fascinante. O tipo de adrenalina e poder que ela desejava instigar na
sociedade. May merecia mais do que se casar com um
desconhecido que estava apaixonado por outra mulher. E, no fundo,
ela só queria ver seu filho feliz. Quem poderia culpar uma mãe por
isso?
James sorriu.
Não.
20
– Olá, delícia! Preciso de você para encontrar uma amiga que temos
em comum.
21
A estrela oculta
A pirata não ousou sair da cama macia onde havia passado a tarde,
mas se surpreendeu com a batida na porta que a fez abrir os olhos
e encontrar o céu azul-escuro através das belas janelas. O
– Imaginou certo. Mas acho que essa foi a pior que já inventaram.
– Se é tão ruim, por que você não tirou suas mãos de mim? –
Talvez fosse.
Jim também buscou pela renda que cobria suas pernas macias e
aproveitou cada nuance que seus dedos sentiam conforme
escalavam seu corpo, passando pelo quadril, cintura e lateral dos
seios. Tentou não estremecer por estar tão perto da perfeição e
procurou tocá-la onde ela gostaria de ser tocada. A noite envolvia os
dois amantes, suas sombras entrelaçadas, enquanto o marquês se
despia e os dois estivessem deitados sobre a seda dos lençóis sem
nada entre suas peles.
Mas Jim... ele não tinha pressa alguma. Sabia que tinha a vida
inteira para conhecer cada detalhe de Pryia. Havia uma aura
cósmica em buscar ver suas nuances à meia-luz. Ele podia
perceber as curvas perfeitas de seu corpo, o desenho sedutor da
sua boca que insistia em se repuxar em um sorriso devastador, o
perfume de flores, de sonhos e de aventuras. Ele poderia se
desfazer apenas pelos sons que ela deixava ecoar, uma melodia
Jim sabia que ela não era uma donzela, mas Pryia estava
totalmente indefesa nos seus braços, refém do seu toque e do que
ele faria em seguida. O marquês deixou os lábios correrem pelo seu
pescoço, fazendo todo o caminho até abaixo do seu umbigo, onde
finalmente provou do seu mais puro sabor. Ele alegremente se
deixaria afogar se necessário.
Pryia sentia o prazer fluir dos lábios de Jim por todo o seu corpo, até
ela precisar sentir mais dele, com o risco de se partir em duas se
não fizesse isso logo. Ela se desvencilhou do seu toque, o pegando
de surpresa quando se colocou em pé e se ajoelhou à sua frente.
Agora era Jim que não sabia como lidar com a presença dos lábios
de Pryia em volta de sua parte mais sensível e rígida, com o
momento ameaçando acabar rápido demais a cada toque morno de
sua língua. A pirata o engolia de tal forma que indicava exatamente
o que desejava que ele fizesse com ela.
pediu Jim.
“E parece idiota, mas gosto de pensar que foi o espírito do meu pai
que trouxe o mapa até mim. Uma forma de me dar um novo destino,
um novo propósito. E feliz ou infelizmente, poucas semanas depois,
conheci seu irmão. Eu estava tão sozinha – sem um navio, nem
tripulação, nem uma família – que aceitei a primeira oferta de
atenção que apareceu na minha frente. E bom... o resto você já
sabe.”
– Em que língua está isso? – Jim perguntou, mas poderia ser uma
exclamação.
– Eu concordo que é estranho, – ela disse – mas meu pai sabia ler e
falar. Cresci achando que era um conhecimento comum.
– É que acho que não consigo falar ainda... “Meu amor.” – Ela
sacudiu a cabeça, constrangida.
22
Um suspiro no tempo
Por alguns dias, tudo pareceu perfeito. Era mais do que muitos
podiam alegar sobre a própria vida, mas uma falácia perante o que
estava para acontecer. Pryia e Jim não poderiam saber, mas
enquanto aproveitavam a companhia um do outro, o destino do
mundo começava a mudar para sempre. Por enquanto, eles não
precisavam lidar com isso ainda. Apenas se preparar.
Por sua vez, Jim descobriu uma nova noção de paraíso: admirar
Pryia desenhando em seu caderno, deitada de bruços totalmente
nua depois de ter enaltecido cada parte do seu corpo.
– Cecília, esta é Pryia – disse Jim, direcionando sua irmã para sua
própria almofada no sofá.
– Uau, mesmo? Que nome lindo! Agora sei como chamar minha
futura cunhada – declarou Cecília empolgada, aplaudindo.
– Mas você está belíssima, meu amor. – Jim deu um beijo na parte
exposta do seu pescoço, respirando seu perfume de flores e
sonhos.
– Você não está nada mau, também. – Ela o analisou dos pés à
cabeça.
– Eu nadarei até o fim do horizonte para voltar para meu belo amor.
– O que disse?
23
O nobre marquês soube imediatamente que ele não teria como ter
arcado com tantas despesas, e Berenice havia perdido totalmente a
mão para organizar festas. O evento seria sua falência!
Por sua vez, Jim sentia que ficar distante de Pryia enquanto
cumprimentava convidados era uma das coisas mais difíceis que já
havia feito em toda sua vida. Ele sorria durante a farsa, apenas
desejando que chegasse o momento de contar a verdade. O
Mas Pryia reconhecia uma mentira quando via uma. E lady May
estava falando a verdade.
Todos desviaram a atenção quando uma jovem de vestido púrpuro,
com detalhes em rosa parecidos com os de lady May, subiu ao
palco. Sua máscara era repleta de diamantes negros. Assim que ela
parou ao lado da dama, os guardas da mansão ameaçaram tirá-
– Essa festa está muito caída. Vamos sair daqui, delícia? – ele
perguntou, enquanto a puxava pelo braço.
Pryia fez menção de gritar, mas o pirata foi mais rápido, mostrando
quem era sua acompanhante. Uma bela mulher de sorriso torto e
cabelos vermelhos.
As mãos dela estavam amarradas, mas não era visível embaixo das
camadas de tecido que formavam as mangas de seu vestido.
Sabrina sabia que seu pai, o rei, era orgulhoso. Jamais chamaria a
filha de mentirosa publicamente, temendo que toda sua linhagem
pudesse ser acusada de falsários do trono. Ele dizia que Traberan
fora construída nos fundamentos da verdade e da inovação. A
proposta de Berenice era justamente o que as garotas apaixonadas
precisavam para se libertar das amarras injustas da alta sociedade e
seguir esses princípios.
Ou será que ela não estava tão certa de seu compromisso com ele?
vermelhos, também.
– Ela foi levada contra sua vontade? – perguntou Jim com urgência,
levantando o tom de voz e disparando perdigotos na direção do
soldado.
Não poderia ser. Jim se recusou a acreditar que Pryia havia partido,
embora seu coração sangrasse em seu peito junto ao vazio ardente
que o sufocava.
– Leonardo.
24
Convidada amaldiçoada
– Eu odeio mentir para você, mas eu não falei a verdade quando dei
a entender que queria ficar com você, Leo – disse Pryia, tentando
manter a voz calma enquanto Leonardo a guiava para o convés do
Rosa dos Ventos.
– Pryia, estamos em casa. Você não precisa mais mentir para mim.
– Eu não gosto de ser assim com você, juro que não – ele ronronou.
– Não me desafie uma próxima vez, está bem?
Leonardo riu.
25
Acerto de contas
– Ele a levou – foi tudo que Jim conseguiu dizer à sua mãe. O
pesar que ele sentia não foi aliviado, pelo contrário: se tornou mais
insuportável.
– O que Leonardo poderia querer ainda com essa jovem, meu filho?
Ela é a única que sabe decifrar o mapa para o tesouro que pode
torná-lo mais poderoso do que qualquer outro homem que já existiu.
– Então nossa enviada partiu com o capitão mais nefasto dos sete
mares em direção ao Tesouro do Povo Submerso? Que...
conveniente – interrompeu Pequeno Dave, um dos irritantes
enviados de Nanrac. Eles foram convidados para o baile por
estarem hospedados na mansão, mas não deveriam estar se
intrometendo.
– Vale acrescentar que tudo que está dizendo está sendo registrado
em seus arquivos, que serão usados em seu julgamento
– Nenhum filho meu vai partir nada, nem tomar nenhum tesouro! Por
todas as estrelas, eu não os criei melhor que isso? –
Foi quando Jim desabou em lágrimas, largando Alex Gim, que caiu
no chão.
Jim olhou para o patife aos seus pés, aninhado no chão como uma
doninha
aconchegada.
Nanrac
precisava
melhorar
Jim olhou a capa de couro que tinha em suas mãos. Uma versão
mais trabalhada do que o caderno de desenhos de Pryia. Há tão
pouco tempo, ele havia se perdido nas suas histórias, enquanto
admirava seus traços e suas curvas. Seu coração se apertou dentro
do peito.
– Se Pryia é a única que sabe como chegar lá, como vamos ajudá-
lo, Sabrina? – perguntou May no ouvido de sua noiva.
respondeu a princesa.
– Ela não é a única que sabe como ler o mapa – declarou Jim,
sentindo a ideia faiscar em sua mente como uma fagulha de
esperança.
– Ora, ora. Alguma coisa que disse essa noite está certa, afinal
Coordenadas amaldiçoadas
A única coisa que ela realmente apreciou era a escotilha com vista
para o oceano. Ela era grande o bastante para que pudesse fitar o
horizonte, fingindo ser livre por alguns poucos segundos. A pirata
reviu suas chances milhares de vezes, mas não teria como escapar
do navio sem colocar a vida de Jasmine em risco. Nenhum dos
membros da atual tripulação de Leonardo era de sua época de
imediata. Certamente haviam morrido ou foram substituídos – como
Leo fazia com tudo e todos.
– Está muito mais bonita agora do que com aquele vestido ridículo –
disse Leonardo, chutando o traje dourado com suas botas sujas.
Isso irritou Pryia, pois ela havia gostado do vestido – mesmo sendo
exagerado e desconfortável. Um vestido bonito ainda era um vestido
bonito.
– Leonardo, você não me quer. Você quer algo que eu possa fazer
por você. Então me diga logo o que é.
– Você está mesmo tão assanhada assim para ser uma cadelinha
de companhia da nobreza de Realmar?
– Não vá fazer nada idiota, Pri. Sabia que Jasmine não sabe nadar?
Ela está bem, por sinal, foi gentil da sua parte perguntar sobre sua
amiga.
– Você tem o mapa e não sabe como ler? Uau, eu imagino o que
isso deve ter causado na sua reputação... Foi por isso que você
trocou toda a tripulação? – Pryia gesticulou com os dedos,
mostrando ao redor do navio.
– E eu?
27
A canção do mar
Alex, Dave, May, Jim e Sabrina pegaram, cada um, sete cartas.
– Foi assim que vocês ficaram amigas? – perguntou Jim para May.
– Não grite, vão nos ouvir! – May apertou a mão de sua noiva.
– May, olhe em volta. – Sabrina levou os dedos frios de May até
seus lábios e deu um beijo. Fitou a noite estrelada e o infinito
oceano que os cercavam. – Não tem ninguém aqui. E mesmo que
tivesse, nós não somos mais um segredo.
Todos olharam perplexos para Alex Gim, que havia disparado o belo
conselho.
A primeira coisa que Jim faria ao estar com Pryia seria inventar um
apelido para ela. Alguma coisa idiota, que a fizesse sorrir, para que
ele pudesse ter a sua visão iluminada sempre que quisesse.
A ideia o aqueceu por um instante, mas logo era como uma nevasca
em seu peito. As sete rodadas de Marreco haviam acabado, e Jim
havia perdido todas. Ele não se importava com as cartas, mas uma
discussão inflamada entre May e Sabrina sobre um
Então Jim teve uma ideia. Algo louco o bastante para dar certo, um
ato desesperado de um apaixonado. Ou de um idiota. Ou, nesse
caso, dos dois. O mar estava silencioso demais, mas ele sabia
como voltar a ter melodia e canção a sua volta. Lembrou de alguém
que conhecia bem o verde mar de Cascais e que poderia ajudar a
proteger o tesouro. E, quem sabe, lutar contra Leonardo.
– Eu nadarei até o fim do horizonte para voltar para meu belo amor.
Pérola abriu um sorriso satisfeito e jogou sua cauda para dentro no
navio.
– Esse não foi o humano que você deixou de afogar? – a voz de Isla
soou enjoativamente.
A sereia dourada não sabia como aguentava viver noite e dia com
suas irmãs seguindo cada movimento que fazia.
Pérola gesticulou com os dedos para Jim retirar o que quer que
estivesse no seu ouvido. Ela se lembrava da bela pirata que foi
resistente o bastante para desafiá-la – jamais esqueceria um rosto
como o dela.
Jim precisava confiar que estava fazendo o certo, mas, ainda assim,
tremeu ao tirar sua única proteção contra a voz mágica das sereias.
Ele estava fazendo aquilo por Pryia, e, mesmo sendo um gesto
insano com todos os elementos para dar errado, havia uma chance
de dar certo. Era tudo que ele precisava.
– Até que ele fica bem bonito quando não parece um imbecil –
falou Eriela, torcendo um cacho ruivo molhado com os dedos. Gotas
tilintavam das sereias sentadas na beira do deque, com suas
caudas brilhantes balançando.
– Foi levada.
A verdade é que Jim não sabia o que fazer. Metade da sua postura
era sua nobre criação diplomática, e a outra metade era impulso
apaixonado. Ele não havia sido preparado para barganhar com
sereias, mas alegremente aprenderia se isso significasse ter Pryia
de volta.
– Pryia é refém do Capitão North. Acredito que eles estejam indo em
direção ao tesouro do seu povo.
– E por que você acha que humanos saberiam chegar até lá?
Isla abriu a boca para cantar junto da irmã, mas Pérola a empurrou
de volta para o mar. O som de água soou abafado na noite, e a
herdeira do mar puxou Eriela pelo pulso, dizendo:
Eriela se calou, irada por ser forçada a obedecer a irmã mais velha.
A pena por contrariar a princesa herdeira poderia chegar ao
banimento, e a paciência de Pérola não se estendia muito. Sua
única qualidade, na opinião das irmãs. A sereia contrariada ficou
com o rosto tão corado quanto seus cabelos ruivos e cauda laranja
e logo se atirou do barco com incrível agilidade, nadando para longe
com Isla.
– Ah! Então vocês são irmãos... E eu achei que minha relação com
elas que era complicada. – Pérola olhou para o mar escuro do outro
lado da balaustrada. Um símile de lamento correu pelos seus olhos
âmbar.
A sereia sorriu. Por um instante, Jim viu que o jeito dela de se mover
era parecido com o de Pryia.
– Acho que não – suspirou. – Mas sinto dizer, Jim da Superfície, que
não posso envolver Nanrac na sua missão. Nossos povos já têm
muita dificuldade para aceitar a existência um do outro. Um ato
assim de Leandro seria visto como uma declaração de guerra.
– Não seria a primeira vez que faço isso. Vamos lá, o quão difícil
pode ser?
Eles sabiam que, em breve, seus heróis seriam atingidos por uma
tempestade.
28
Hora da verdade
Leonardo prendeu seus dread locks com uma fita, tampou seus
ouvidos para evitar que água entrasse neles, tirou suas botas e
voltou sua atenção para Pryia.
Eles estavam no verão, então Pryia tirou suas botas e olhou para o
horizonte esverdeado de Cascais. A água era como a Aurora Boreal
aos seus pés. Como ela gostaria de desfrutar da paz desse lugar, se
tivesse tido a oportunidade para isso. Seus cabelos acariciavam o
topo de seus ombros, e ela os prendeu atrás da orelha, mas sua
franja ainda escapava.
Ela podia quase tocá-lo com a ponta dos dedos. Mais algumas
braçadas e ela poderia alcançar a tampa do baú dourado, revelando
assim o cobiçado tesouro. E Pryia seria aquela a tomar do elixir,
mas algo a distraiu.
29
O elixir
Uma pena que ele não podia ouvir uma palavra. Diziam que o canto
de uma sereia era letal, mas que o marujo morreria com um sorriso
no rosto. Bom, ele preferiria viver com um sorriso hoje.
A herdeira do mar não viu quando ele enfiou uma faca em seu
abdômen. Não teve tempo para matá-lo. Ela conseguiu apenas
sentir a lâmina da faca vagarosamente entrando em sua pele.
Ela nunca havia tentado, mas percebeu que seu fôlego estava muito
mais curto logo após falar apenas duas palavras.
30
O marquês não podia ser ouvido, mas gritou o mais alto que pôde:
Pryia nunca iria perdoá-lo se sua amiga morresse por causa dele.
Jim estava tão atordoado com a ideia de salvar Pryia que se
esqueceu totalmente da possibilidade de o canalha Leonardo ter
levado a amiga dela apenas para fazer a pirata cooperar com seus
ideais insanos. O marquês sentiu sua garganta rasgar enquanto
gritava cada vez mais alto para que as sereias resgatassem
Jasmine do mar. Ainda daria tempo de salvá-la. Teria que dar.
– Ei, você vai ficar bem – ela cantarolou. – Seus... amigos vieram
buscar você.
– Segure firme, vou tirar você daqui antes que tudo exploda.
– Onde está Pryia? – sussurrou Jim. Já era para ela estar de volta à
superfície. Em meio ao tumulto do navio naufragando, homens se
afogando e sereias cantando, ele não podia discernir a ordem do
caos.
31
O fim do horizonte
Jim.
– Socorro!
Isla deixou escapar uma risada seca e alta, enquanto Eriela revirava
os olhos ao dizer:
– Ela está bem. Pelos mares, o que vocês humanos pensam que
nós somos? Assassinas frias?
– Eles não estão errados de se proteger de nós, Eriela... –
murmurou Isla.
Eriela pegou o rosto da pirata e o puxou com uma firmeza bruta até
a ferida de Pérola. Lágrimas caíram sobre a abertura
ensanguentada, e Pryia ficou atônita quando viu a cicatrização
começar. As gotas finas caíram sobre a pele da sereia, juntando a
carne ferida vagarosamente até estar perfeita, sem nenhuma marca.
ainda bem que você estava chorando, porque eu e Eriela não nos
emocionamos nunca. A não ser quando nosso peixe dourado
morreu... – ela suspirou. – Seria uma pena ver nossa princesa
morrer por algo tão banal.
– Espere, vocês estão dizendo que eu tenho lágrimas de sereia? –
indagou a pirata, entendendo ainda menos a situação.
– Ela faz um bom par com aquele humano imbecil bonitão, preciso
admitir isso – murmurou Eriela. Isla riu com seu charme doce e letal.
– Do meu sorriso?
– Não foi isso que eu disse. – Jim piscou e sinalizou com a cabeça
em direção ao barco de Nanrac.
32
33
A prece de um tolo
Alex jogou mais uma escada de cordas pelo costado, gritando para
que os dois subissem imediatamente. A verdade é que o enviado de
Nanrac nunca havia aprendido a nadar.
– O tapa nem foi tão forte... você não deveria deixar uma garota
ficar entre dois irmãos – disse Leonardo, nu e despreocupado,
enquanto levantava ondas na direção do barco de Nanrac.
– Ainda bem que ainda tenho minha imediata. Alguém vai precisar
limpar o mar depois que eu acabar com vocês, malditas.
Ira subiu pelo capitão, tomando seu corpo de uma forma primitiva e
eterna. Se seu irmão era aliado das sereias, merecia o mesmo
destino que elas. Uma perda inevitável, infelizmente. Mas assim
Pryia estaria livre para ser completamente sua. Seu coração –
Seus cabelos negros caíam sobre seu rosto, enquanto ela tentava
de novo e de novo disparar o canhão. Por May ela derrotaria
Leonardo, para que elas pudessem viver em um mundo de paz. Seu
coração se regozijou ao ver o fogo consumindo a pólvora. Sua mira
estava perfeita, Leonardo iria cair.
– Se for, você não deveria estar aqui. Comigo. – Jas apontou com a
cabeça para a porta, se escorando na parede. Ao longe, elas
podiam ver na fenda entreaberta a silhueta alongada de Sabrina. –
☆
Uma espada. Uma adaga, uma faca, uma flecha. Pryia buscava na
sua antiga cabine qualquer arma que pudesse combater Leonardo.
Uma perda de tempo, um impulso inútil, e ela sabia disso.
Acreditava que merecia esse poder, que era a pessoa certa para
dominar o mundo. Leonardo tinha fé nele mesmo, mais do que
qualquer outro devoto a um deus.
34
A pirata repetiu de novo e de novo a prece, mas sabia que não seria
o suficiente.
O mundo irrompeu.
O navio se partiu.
Mas quantas vezes ela não teve essa mesma certeza, e o destino
provou que ela estava errada?
Debaixo d’água, Pryia usou o pouco fôlego que ainda tinha para
repetir prece:
Eris.
– Ele irá destruir meu mundo se você não o clamar. E o que você
terá para assistir então?
agora que ela ainda tinha a chance de conhecer suas origens, sua
família... A pirata precisava dar o melhor de si. Talvez Eris também
mentisse de vez em quando. A cada era ou outra.
– É, eu vi antes de chamá-la...
– Pryia.
– Ele não sabe. Você pode mentir para ele, fazê-lo jurar lealdade e
subserviência a você. Quando ele descobrir, será tarde demais.
Não havia nada divertido ou brincalhão no seu tom. Eris falava com
as faíscas da fúria de uma deusa. Um redemoinho começava a se
formar em volta delas, provocando pequenos cortes nos braços da
pirata. O som era abafado.
Perfeito.
– Não. Acho que você é. – Vendo que Eris cedeu um pouco em sua
fúria, a jovem continuou: – Agora que ele tem o elixir agindo dentro
dele, duvido que essas regras se apliquem a Leonardo. Ele não é
mais um humano qualquer.
– Ele é seu. Se você quiser. Eu juro que não conto para ninguém. –
A pirata piscou com seu charme inegável.
Elizabeth.
Como?
35
O infinito é azul
Ela sorriu. Um sorriso que ele nunca havia visto, mais radiante que o
sol sobre eles. O tipo de sorriso capaz de conquistar o mundo
– o que era exatamente que ela faria. Mas, dessa vez, não sozinha.
Logo que vi esse navio, eu não pensei, só vim até aqui. Eu sabia
que te encontraria.
O mundo não teria paz, mas certamente seria um lugar mais seguro
e feliz para viver agora que o pirata mais cruel dos sete mares havia
partido para uma outra dimensão. Um lugar onde seu narcisismo
doentio deveria aprender a viver em meio ao caos. Seu inferno
particular. Traberan tinha uma princesa que se casaria por amor.
Elizabeth teria na tripulação dois enviados de Nanrac, que
desejavam provar mais do sabor das aventuras. Jim herdaria o título
que construiu para si. Pryia herdaria o nome que era dela por direito.
Uma chuva cristalina veio do céu limpo, e o abraço cessou para que
sentissem as gotas tilintar na pele.
Jim concordou sem precisar entender, feliz por sua amada usar o
sobrenome do seu pai, independentemente do motivo. Ele pegou
sua mão, levando-a até o coração.
May e Sabrina, que ainda não haviam tido sua primeira dança,
agora rodopiavam pelo convés, embaladas pela melodia cuja
coreografia nunca teria fim: a valsa da vida.
Pryia Yabbah não era humana, nem uma sereia. Jim Cerulius não
era um pirata, tampouco um marquês. Juntos, eles eram algo
novo. A união entre terra e mar. Sonho e realidade. Possível e...
Jim a seguiu.
– Parece impossível.
Epílogo
A tal felicidade
– Então quer dizer que sua mãe está viva? – indagou Jim.
– Amorinha? Sério?
– Não muito.
De fato, ela havia sido corajosa – e não tola – nas vezes que seu
coração insistiu em acreditar que a tal felicidade realmente existia.