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tradução
EDMUNDO BARREIROS
The Reader
TÍTULO ORIGINAL
© 2016 by Traci Chee
© 2017 Vergara & Riba Editoras S.A.
Plataforma21 é o selo jovem da V&R Editoras
Chee, Traci
A leitora / Traci Chee; tradução Edmundo Barreiros. – São Paulo: Plataforma21, 2017. (Série Mar de
tinta e ouro; 1)
Título original: The Reader
ISBN: 978-85-92783-13-6
1. Ficção juvenil I. Título II. Série.
CDD-028.5
17-01114
Capa
Créditos
Mapa
Olá!
O livro
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
O lugar dos descarnados
Capítulo 26
Capítulo 27
Harison salva o mastro principal
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
O garoto do mar
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Águas vermelhas
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Agradecimentos
Para minha mãe,
que sempre soube.
OLÁ.
SE VOCÊ ESTÁ LENDO ISTO, ENTÃO TALVEZ SAIBA
QUE DEVERIA LER TUDO. E TALVEZ
JÁ JULGUE QUE DEVERIA LER COM ATENÇÃO.
E HÁ
ENCANTAMENTOS
PROFUNDOS NESTAS PALAVRAS, PROCURE EM SEUS SINAIS DE
FUMAÇA FEITIÇOS E MÁGICA NAS PÁGINAS
E NA LOMBADA.
E ATÉ
QUE APRENDA A PROCURAR
FANTÁSTICOS SEGREDOS NO MAR,
RECEBÊ-LOS, VOCÊ NÃO
IRÁ ENTENDER O QUE É LER.
EI, OLHE, ISTO É UM LIVRO. VOCÊ É O LEITOR. VEJA COM
ATENÇÃO.
AQUI HÁ MAGIA.
O livro
As consequências de um roubo
ISTO É
Capítulo 2
UM LIVRO,
Capítulo 3
E UM
Capítulo 4
Isto é um livro
Isto
Com um sorriso, ela deu um tapa no papel com a mão espalmada. Ela
disse aquilo mais uma vez, memorizando a ordem das formas:
– Isto!
A palavra seguinte saiu mais depressa:
é
E a que veio depois, ainda mais rápido:
um
A última a fez parar. Ela lutou com os pedaços, tentando forçá-los a se
juntar, fazê-los ganhar sentido.
– L-li… li…
Então ela entendeu, com toda a clareza, saltando como as luzes de um
prisma, em faixas de cor:
livro.
Ela disse a coisa inteira novamente, dessa vez mais segura de si.
– Isto é um livro. – Sua voz soou estranha e ressoante em meio ao sussurro
das árvores, mas ela tornou a dizer, tudo junto:
Isto é um livro.
Como se dizer tornasse aquilo verdade. Ela disse de novo e de novo, sem
estar completamente segura de que a palavra final significava alguma coisa,
embora cada vez que a dissesse, mais fizesse sentido. Era um livro. Isto!
Aquela coisa estranha e retangular tinha dado um nome a si mesma.
Ela tinha um nome.
– Livro. – Sefia sorriu.
Por um instante, ela sentiu como se as marcas estivessem brilhando e
queimando. Ouro surgiu nos cantos de sua vista. Então ela piscou, e o mundo
todo se inundou de luz, rodopiando ao seu redor em amplos círculos
interconectados, até o céu e em meio às estrelas. Ela tinha visto a luz antes,
mas aquela lhe mostrava que o mundo estava cheio de pequenos fluxos de
ouro, um milhão deles e um trilhão de partículas de luz, todos perfeitos e
exatos e repletos de significado.
A visão daquilo tudo a derrubou de volta na rede. O livro caiu de suas
mãos.
Magia. Ela sentia que estava olhando além das bordas das estrelas, para o
que quer que houvesse depois.
Podia sentir a si mesma, suavemente, ainda no próprio corpo, ainda
sentada na rede, mas havia tanta luz brilhante em movimento que ela sentia
que podia ser levada a qualquer instante, perdida para sempre em um mar de
ouro.
Era aterrorizante ver tanta coisa. Afogar-se, se debatendo na luz. Seu
estômago se revirou. Suas têmporas latejaram. Ela se agarrou aos lados da
rede, como se isso fosse ancorá-la, como se fosse fazer o mundo parar de
girar.
Então ela piscou, e tudo desapareceu. Sefia ficou ali deitada, tonta e sem
fôlego, tentando se concentrar nas formas negras das árvores, em uma única
estrela, para impedir que sua visão saísse de controle.
O que era aquela magia?
Como seus pais a haviam descoberto? E por que seus inimigos a queriam?
Nin sabia para o que aquilo servia?
As perguntas sem respostas giravam a sua volta enquanto ela apertava a
cabeça para deter o latejar no crânio. As árvores se aproximavam dela.
Ela repetiu as palavras:
Isto é um livro.
Elas eram tão pequenas. Havia dezenas de outras marcas, centenas de
outras palavras, só naquela única folha de papel – e na seguinte, mais marcas,
mais palavras… e na seguinte e na seguinte e na seguinte.
Sefia pensou em sua visão, aquela sensação atordoante e repentina de que
tudo era enorme e conectado. Haveria sinais para cada uma das estrelas e
grãos de areia na praia? Para árvore ou pedra ou rio? Para casa? Será que,
pairando no ar, eles seriam tão bonitos quanto soavam?
Era como se, por todo aquele tempo, ela estivesse trancada do lado de fora,
captando vislumbres de alguma palavra mágica através da fresta sob uma
porta. Mas o livro era a chave, e ela sabia que, se conseguisse apenas
descobrir como usá-lo, seria capaz de abrir a porta e ver – realmente ver – a
magia que se agitava em correntes invisíveis, além do mundo que ela
experimentava com os ouvidos, a língua e a ponta dos dedos.
E depois de entender tudo aquilo – todos os sinais, todas as palavras – ela
descobriria o significado do símbolo na capa, e descobriria por que sua
família tinha sido levada, e quem fizera aquilo, e como caçá-los.
LIVRO É
Capítulo 5
O aprendiz
D uas semanas antes, a alguns dias de seu décimo quarto aniversário, Lon
jamais teria acreditado que sua vida poderia mudar tão drasticamente
ou tão rápido.
Houvera o tráfego habitual das manhãs no portão sul – fazendeiros e
mercadores seguindo para as elevações em camadas de Corabel, marinheiros
recém-chegados de viagem, cheirando a sal e más intenções –, mas muitos
deles eram figuras habituais, cuidando dos próprios assuntos, por isso ele não
fez nenhum esforço especial para atraí-los para sua mesa.
Ele puxou para perto de si o pequeno braseiro de carvão, depois o
empurrou de volta, um pouco para a esquerda, depois outra vez para a direita.
Estivera aferrado à esperança cada vez menor de que os pais voltassem para
seu aniversário e o levassem embora da cidade em alguma viagem fantástica
a uma terra distante, onde ele começaria um aprendizado com um grande
vidente, só para ser raptado por um pirata da areia desesperado por encontrar
a cura para a doença que assolava sua linda filha.
Mas seus pais tinham partido havia seis meses, viajando com uma trupe de
outros acrobatas, atores e artistas de rua. Eles não ganhavam o suficiente para
contratar mensageiros, por isso ele não tinha ideia de quando iam voltar. Não
sabia sequer se eles ainda estavam no Reino de Deliene ou se tinham viajado
para o sul, para as outras ilhas.
Com um suspiro, Lon salpicou um pouco de incenso sobre o braseiro, e, na
fumaça de aroma adocicado que subia em espiral das brasas, sentiu como se
sua vida estivesse se desenrolando a sua frente: uma série de dias que iam se
transformar em anos, cada um igual ao anterior, lendo sortes junto do portão
da cidade, até que ficasse fraco demais para carregar sua mesa para a rua.
Conforme a fumaça se dispersava, ele espiou um homem de idade
caminhando em meio à multidão, seu cabelo grisalho e despenteado na altura
do ombro, os olhos correndo loucamente dos telhados de terracota e sacadas
de ferro ornamentado de volta para as ruas de pedra como se fosse sua
primeira vez em Corabel. Sempre se podia identificar visitantes na capital de
Deliene por suas expressões de assombro e pescoços virados enquanto
tentavam assimilar todas as imagens da agitada cidade na colina.
Lon estreitou os olhos e o estudou com atenção. A pele do homem era
morena e enrugada como uma casca de noz, embora houvesse pouco dano
provocado pelo sol em seu rosto e suas mãos. Seu robe de veludo comprido e
largo não era apropriado para andar pelas ruas cheias, e quando outros
passantes pisavam nas barras que ele arrastava, Lon via seus chinelos macios,
a parte de cima já se soltando das solas.
Ele deve trabalhar lá dentro, observou Lon. Mas saiu de casa, hoje, sem
pensar em trocar de roupa. Com pressa? Ou apenas distraído? E se ele estava
visitando Corabel, por que parecia ter acabado de sair de casa de roupão?
– Ei, vovô! – chamou Lon. – Aqui!
Piscando, o homem ergueu os olhos. Ele parecia ter dificuldades em
focalizar.
Ele provavelmente usa óculos. Lon ficou de pé e acenou para que ele se
aproximasse.
O homem de idade seguiu entre carrinhos e peixeiros recém-
-chegados do mar, batendo os dedos dos pés nas pedras do calçamento e
esbarrando em marinheiros de folga em terra. Ele despencou agradecido no
banco baixo que Lon lhe ofereceu, secando a testa com a barra de sua manga
bordada.
Lon sorriu. Depois daquilo, foi preciso apenas um pouco de incentivo para
descobrir o nome do homem – Erastis – e um pouco mais para fazê-lo trocar
alguns zens de cobre para que ele lesse sua sorte.
– Pegue uma pitada de incenso e jogue sobre os carvões – explicou Lon,
embolsando as moedas do homem. – Vou conseguir ver na fumaça o que está
reservado para o senhor.
Obedientemente, Erastis fez o que ele disse. O fogo crepitou, e através da
fumaça Lon começou a escrutinar o homem, registrando mentalmente o calo
no dedo médio da mão direita, as manchas de tinta e o fio de cabelo solto na
manga bordada, a curva de suas costas e seus ombros, as sombras roxas sob
os olhos, as reentrâncias rasas na ponta do nariz.
Mas Erastis nem piscou quando Lon explicou que ele usava óculos, que
raramente saía, mas estava em uma missão importante, e que passava a maior
parte do tempo curvado sobre uma mesa, pintando detalhes delicados com
um pincel de zibelina.
O velho sorriu, vincando seu rosto já enrugado.
– Qualquer vigarista podia me dizer isso. Eu ouvi dizer que você era
especial.
Lon hesitou.
– Quem disse?
– Você me diga.
Não sendo do tipo que recuava diante de um desafio, Lon passou as mãos
pelo cabelo escuro, fazendo-o se erguer nas pontas.
Inspirou profundamente e encarou Erastis direto nos olhos castanho-claros.
Ele sentiu sua consciência se dividir em duas enquanto as cores vivas e o
barulho do tráfego começavam a desaparecer, substituídos por uma
percepção do mundo que estava além da visão, dos sons e do olfato.
Normalmente, era preciso apenas um pouco de observação e alguns
comentários direcionados, e os clientes praticamente contavam a ele o que
queriam ouvir. Mas quando precisava, sempre havia aquela visão dupla. Ele
tinha que se concentrar para dividir a consciência entre o mundo físico e o
outro reluzente sob ele, e sempre acabava com o estômago embrulhado, como
se tivesse engolido água salgada demais, mas, nos piores momentos, aquele
sentido extra fazia com que fosse pago e o mantinha alimentado, e ele tinha
bastante orgulho disso.
Ele podia olhar uma manga remendada e observar sua história se
desenrolar a sua frente em imagens dispersas: mãos velhas e manchadas
costurando à luz de uma vela derretendo, um avô no leito de morte, uma
viagem à capital para registrar sua morte com os Historiadores no Salão da
Memória.
Se examinasse o engaste vazio em um broche antigo, via o que tinha
acontecido com a pedra desaparecida: um mestre avarento, um ladrão à meia-
noite, um penhorista, crianças doentes e doses de remédios malcheirosos.
Lon piscou, e seu sexto sentido entrou em foco. Faixas de ouro jorraram
sobre a cabeça e os ombros do homem, escorrendo por seus braços até suas
mãos magras, onde se empoçaram com significado.
E ele soube por que Erastis viera.
– Esta é apenas a terceira vez na última década que o senhor sai de casa,
mas alguém chamado Edmon disse que era importante. – Lon passou a mão
em frente de seu rosto, surpreso. – Ele disse que eu era importante. Disse que
o senhor ia querer me encontrar. “Porque a Biblioteca está há tempo demais
sem um Aprendiz.”
Lon tornou a piscar, e seu sexto sentido se esvaiu. A luz desapareceu,
deixando-o apenas um pouco bambo enquanto combatia a tontura e a náusea.
– O que é Biblioteca? Como ele podia saber onde eu estava, para começar?
– Seus dons. – Erastis enfiou o cabelo atrás das orelhas e debruçou-se para
a frente. – Outras pessoas nascem com talentos como o seu. Você já ouviu
falar nelas, tenho certeza: videntes, feiticeiros, fabricantes de armas mágicas.
A maior parte das figuras lendárias tem alguma espécie de habilidade que as
torna notáveis.
Lon exultou.
– Como o homem com a força de um boi? Como o joelheiro que fez os
Diamantes Amaldiçoados de Lady Delune?
– Eles são amadores comparados a nós. Podemos ensinar você a usar seus
dons com a precisão de um bisturi.
– Quem são vocês?
– Nós somos uma sociedade de leitores – respondeu Erastis, sorrindo. –
Pessoas como você.
Leitores. Lon testou a palavra em sua língua, embora a reverência na voz
do velho o impedisse de dizê-la em voz alta.
– Fomos formados muito tempo atrás – continuou o homem. – Antes que
qualquer um dos Historiadores possa se lembrar, quando cada onda da
história apagava tudo o que tinha vindo antes. Tudo era caos e trevas, e
nessas trevas nós nos tornamos a luz, encarregados da proteção de todos os
cidadãos de Kelanna.
Lon franziu o cenho. Desde a resolução da rixa de sangue entre as
províncias de Ken e Alisar, Deliene estava indo bem, mas todo dia ele
escutava notícias da guerra em Everica, e de fome e ruína em Liccaro, o
Reino do Deserto.
– Vocês não estão fazendo um grande trabalho, estão?
– Eh, tente proteger um mundo inteiro dele mesmo.
– Não é por isso que o senhor está aqui?
– Verdade. – Erastis deu um sorriso triste. – Temos grandes planos para
você.
Ele descreveu os feitos maravilhosos de magia que Lon poderia realizar
caso se juntasse a eles. Iriam caminhar entre montanhas e através dos mares,
como os aventureiros e foras da lei que enchiam seus sonhos, todos cheios de
oceanos, navios a vela e estrondos de canhões. Seus feitos trariam a paz a um
mundo instável, preservado em lenda em meio às estrelas.
– Nunca houve uma paz como essa – observou Lon.
– Vai haver.
– Como o senhor sabe?
– Nós temos o Livro.
Lon não sabia o que era o Livro, mas podia sentir seu caminho se bifurcar
a sua frente: de um lado estava a vida de um artista de rua, lendo a sorte por
trocados. Talvez um dia seus pais o levassem com eles. Talvez nunca
voltassem.
Do outro lado, havia o desconhecido, com a promessa de poder e perigo, e
o tipo de grande propósito que ele sempre imaginara para si mesmo… e ele
sabia que tinha de descobrir qual era esse propósito.
Ele usou as parcas economias para deixar uma mensagem para os pais no
posto principal e partiu de Corabel com Erastis naquela noite.
No dia seguinte, começou sua nova vida como Aprendiz Bibliotecário.
A Biblioteca em si era mais do que Lon poderia ter imaginado. Ela tinha
sido construída na encosta de uma montanha de onde se avistavam
picos de granito e um vale esculpido por geleiras antigas. A parede norte era
totalmente feita de vidro, com portas que davam para uma estufa em degraus
que refratava a luz como um prisma.
A Biblioteca tinha um teto abobadado, janelas com vitrais e sacadas
guardadas por estátuas de bronze de antigos Bibliotecários. Das paredes e
colunas de mármore pendiam lâmpadas elétricas que banhavam o ambiente
em abundante luz dourada. Eletricidade! Ela o cativou com sua maquinaria
misteriosa; o resto do mundo ainda estava usando velas e lampiões de
querosene.
Uma pancada brusca o arrancou de seu devaneio, e Lon imediatamente
ficou atento. Erastis, o Mestre Bibliotecário, batia na lousa com a ponta de
uma vara comprida. Lon estava certo, é claro: anos estudando manuscritos
tinham provocado grave miopia no Bibliotecário, e ele usava óculos estreitos
em formato de meia-lua na ponta do nariz. Lon já havia aprendido que,
quando se apressava nas lições, Erastis olhava para ele por cima da armação
dos óculos, sério e crítico.
Exatamente como agora.
– I – instou-o Erastis.
Lon devia estar estudando as letras, embora tivesse decorado o alfabeto
antes do fim da primeira semana, e agora achasse aqueles exercícios chatos.
– I – repetiu ele obedientemente.
O som se encaixava com a forma redonda. Ele sorriu. – Isto – disse ele.
– Isto. Isto. Isto.
O Mestre acenou com a cabeça em aprovação.
– Levei um mês estudando o alfabeto até conseguir juntar uma palavra.
Lon se ergueu no assento com entusiasmo.
– Então… podemos fazer alguma coisa mais divertida, agora? Rajar e os
outros já estão muito à minha frente em Iluminação.
Magia do livro. A habilidade de fazer coisas miraculosas. Ele já usava o
primeiro nível de magia, o Olhar, quando o Mestre Bibliotecário o
encontrara, mas com a Iluminação poderia aprender a fazer coisas maiores do
que espiar a história das pessoas – erguer objetos sem tocá-los, criar talismãs
que davam ao portador força ou invisibilidade, desaparecer de um lugar e
reaparecer em outro.
– Rajar e os outros estão aqui há mais tempo do que você. E não dê
ouvidos a Rajar. – Erastis fez um gesto desdenhoso. – Soldados pensam em
termos do que podem manobrar, destruir e conquistar. É por isso que são
apenas soldados.
– Sim, mas pelo menos eles fazem coisas – disse Lon.
O Mestre Bibliotecário olhou feio para ele.
– Está bem, mas e o cofre? Eu ainda não vi o Livro.
Erastis olhou discretamente para trás. O movimento foi tão rápido que Lon
não teve certeza absoluta de realmente tê-lo visto.
– Nós somos a única divisão com o privilégio de trabalhar diretamente
com o Livro. Você o verá quando estiver pronto.
A ordem era composta de cinco divisões, cada uma com um Mestre e um
Aprendiz, e um Diretor para liderar todos. Os Soldados estudavam estratégias
de batalha nos jardins de areia. Os Assassinos seguiam pistas na floresta. Mas
apenas Lon iria lidar com o Livro, um dia.
Ele olhou além das lousas para a porta redonda de metal instalada na rocha
da montanha. O cofre tinha um volante de cinco raios que controlava as
travas, e duas fechaduras, uma de cada lado da maçaneta. O Mestre
Bibliotecário tinha uma chave, que usava em uma corrente de ouro comprida
em torno do pescoço; o diretor Edmon, líder da ordem, tinha a outra.
Ninguém sabia onde ele a guardava. Quando se tinha as duas chaves, era
preciso executar uma sequência complexa de giros e rotações para abrir a
porta.
Lon, porém, estava morrendo para ver o Livro. Apenas ouvira falar dele
por Erastis, que o descrevera em termos formidáveis, como se o Livro fosse
feito de luz e magia em vez de papel e linha. Todo dia, Lon implorava ao
Mestre Bibliotecário que o descrevesse, até ser possível ver de olhos
fechados – especialmente de olhos fechados – as páginas finas e esvoaçantes,
a capa de couro marrom, as fivelas com pedras preciosas e a filigrana de ouro
nos cantos. Ele jurava para os outros quatro Aprendizes que sabia a forma
dos engastes e das gemas cintilantes, e que às vezes, quando estava deitado
na cama à noite, podia até sentir seu cheiro: bolor, grama, ácido, baunilha.
Mas nem Rajar acreditava nele.
– Ninguém pode ver o Livro sempre que quer, nem Edmon – advertiu-o
Erastis, batendo outra vez na lousa. – Continue.
Lon deu um suspiro e tentou se sentar ereto.
– É – ele leu, pulando a soletração. – Um. Livro. Isto é um livro. – Ele
revirou os olhos. – Isto não é um livro. É só um quadro-negro.
– É isso o que você acha?
Lon abriu a boca para responder, mas tornou a fechá-la após um momento.
Inclinou a cabeça de lado, intrigado. Será que uma lousa poderia ser um
livro? Será que qualquer coisa poderia ser um livro, se você soubesse como
lê-la?
– De novo. – Erastis ergueu a vara.
Lon inspirou fundo e se concentrou nas letras.
– I – disse ele. – Esse. Te. Ó.
É possível que qualquer coisa pudesse ser um livro, não havia limites para
o que se podia aprender, se soubesse o que procurar. Seixos lisos
formando palavras sobre um chão musgoso. Linhas desenhadas na areia, ou
inscritas na lateral de um tronco caído, semiobscurecidas por gravetos e
matéria orgânica: Isto é um livro.
UM MUNDO,
O capitão Reed
e o Corrente da Fé
Uma coisa a se contar é que havia vários navios
verdes em Kelanna, mas qualquer pessoa com um
mínimo de conhecimento poderia lhe dizer que só
um deles realmente importava. Sua figura de proa
era uma árvore que parecia crescer do próprio
casco, com galhos que subiam em torno da lança
orgulhosa do gurupés, dando a impressão de que
folhas estavam prestes a brotar a qualquer segundo
de seus impressionantes ramos em espiral. As pessoas
diziam que era uma árvore mágica do bosque secreto
em Everica, onde as árvores andavam, sussurrando
para a feiticeira que vivia entre elas.
Diziam que aquele barco era mais rápido do que
qualquer outro no Mar Central, sua velocidade
equiparada apenas à do Beleza Negra no sudeste.
Mas todos sabiam que o Corrente da Fé não corria.
Ele já tinha ficado cara a cara com redemoinhos e
monstros marinhos, participado de mais batalhas
do que barcos com o dobro de sua idade, e
sobrevivera a tudo.
Quando o navio estava no porto e a tripulação
passava as noites em tabernas úmidas que fediam a
suor e cerveja, eles se debruçavam sobre as mesas em
clima de conspiração para sussurrar coisas como:
— O Corrente vai lhes mostrar o caminho.
Mesmo no barulho que enchia o teto cheio de
teias de aranha da taberna, falavam dele em tons
baixos e reverentes.
— O Corrente nunca vai conduzi-los pelo
caminho errado.
Outros diziam que o barco não era notável, mas
sim seu capitão. Cannek Reed era filho de um
pedreiro com punhos de pedra, e pertencia à água
do mesmo modo que o pai — uma criatura rara —
pertencia à terra. Diziam que o capitão Reed se
cercava da melhor tripulação em Kelanna. Eles
trabalhavam para ele — dariam suas vidas por ele —
porque Reed cuidava de todos, os transformava em
lendas e os tratava como irmãos. Ele era sempre o
primeiro a enfrentar o perigo.
Às vezes, quando o Corrente estava no porto, o
capitão subia no mastro principal e ficava de pé no
cesto da gávea enquanto o sol se punha, e
conforme as águas ficavam douradas e escuras, ele
ouvia o mar. Diziam que a água falava com ele. Ele
conhecia todas as baías naturais, as correntes mais
velozes, e como evitar uma tempestade mesmo
quando ela parecia ter a intenção de destruí-lo.
Alguns diziam que até podia olhar para o padrão
das ondas e dizer de onde elas tinham vindo e
aonde estavam indo.
Todo mundo em Kelanna sabia sobre Reed e seu
navio. As coisas eram assim. Você vivia entre
gigantes e monstros.
As pessoas passavam as histórias de boca a boca como
beijos ou pragas, até que elas escoavam para ruas,
sarjetas, riachos e rios, chegando ao próprio
oceano.
Capítulo 6
O garoto no caixote
M uito embora Sefia não tivesse deixado Oxscini, ela passou o ano
seguinte perambulando pelo Reino da Floresta, procurando em vão
por sinais de Nin e seus raptores, tornando-se endurecida e forte em sua
solidão. Na maior parte do tempo ela sobrevivia do que conseguia coletar,
capturar e caçar, e quando não estava preparando arapucas, montando
armadilhas para lagostas ou caçando com arco na floresta, estava ensinando a
si mesma a ler.
No início tinha sido lento, uma linha de cada vez, até que ver as letras e
compreender as palavras mais comuns se tornou cada vez mais fácil. Ainda
assim, ela podia levar minutos para descobrir o significado de algumas delas,
lutando contra a pronúncia, testando cada som na ponta da língua antes de
desfilá-los todos juntos. Outras passagens eram tão cheias de palavras
confusas e enroladas que ela cerrava os dentes diante de sua própria
incapacidade e pulava para algo mais simples.
Ela se ensinou a ler empoleirada no alto de árvores, em cavernas
esculpidas pelo vento, avistando cachoeiras surpreendentes despencando
através das montanhas, e sempre que pegava o livro, sempre que o
desembalava de seu invólucro, passava os dedos pelo emblema na capa,
traçando suas reentrâncias.
Isso a ajudava a conjurar as pessoas que havia perdido. A mãe, com seus
traços desbotando como aquarelas ao sol. O pai, duro e frio como cera. E
Nin, olhando para ela através das folhas.
Aquilo se tornou um ritual. Duas curvas para seus pais. Uma curva para
Nin. A linha reta para si mesma. O círculo para o que ela tinha de fazer:
aprender para quê servia o livro. Resgatar Nin. E, se pudesse, punir os
responsáveis.
Mas ainda assim o livro não lhe dava respostas, e por mais que lesse, por
mais habilidosa que se tornasse com a faca e o arco, ela não parecia estar
chegando mais perto de cumprir sua promessa.
Então, algumas semanas antes de completar dezesseis anos, tudo mudou.
Como sempre, Sefia estava enroscada em uma rede pendurada entre duas
árvores, vinte e cinco metros acima do nível da floresta, com o dossel
rangendo e balançando sobre ela, e o chão coberto de matéria orgânica muito
abaixo. Nuvens macias passavam flutuando pelo céu azul.
Ela tinha acabado de se instalar com o livro aninhado no colo e o
desembalou com movimentos ágeis e precisos. Lá estava o símbolo, olhando
para ela como um olho escuro. Ela traçou suas linhas com a ponta do dedo.
Respostas.
Redenção.
Vingança.
Então, ela passou os dedos pelas bordas da capa e o abriu em uma folha
em forma de pá que estava usando como marcador. As páginas vibraram sob
suas mãos, e ela começou a ler.
O som de gravetos quebrando a interrompeu. Leve como um pássaro, ela
fechou o livro e olhou para baixo através dos galhos frondosos. Houve mais
sons: passos ruidosos na vegetação rasteira, grunhidos, o chacoalhar de
bainhas de espadas e coldres de revólveres. Sefia ouviu com atenção.
Julgando pelos barulhos, havia de quinze a vinte pessoas caminhando pela
floresta.
Um minuto depois, eles surgiram em sua linha de visão: homens sujos e
suados com ombros caídos e posturas curvadas. Eles usavam botas pesadas, e
seus passos batiam ruidosamente no chão. Alguns conduziam burros mal
alimentados e puxavam carroças frágeis carregadas de suprimentos. Mas a
última carroça levava apenas um grande caixote velho, fechado com cadeado,
com buracos para respiração perfurados nas laterais, e com uma marca na
parte de trás – um símbolo que ela teria reconhecido em qualquer lugar.
Ela pensou imediatamente em livros, mais livros do que poderia ter
imaginado que existissem, empilhados uns sobre os outros e, entre suas
capas, milhões e milhões de palavras novas. Combinações novas.
Olhou fixamente para o livro em seu colo. Um ano à procura do símbolo e
ele surgiu não entre as palavras, mas no mundo, sólido como o caixote onde
estava gravado.
Um caixote com buracos para respiração.
Sefia parou. Livros não precisavam de ar. Ela conseguiu captar um
vislumbre do caixote antes que ele desaparecesse ao virar a curva seguinte.
Nin?
Levou a mão à faca, e, quando o som dos passos desapareceu, desmontou
a rede e enfiou seus pertences de volta na mochila. Conferiu o arco e a aljava,
com suas flechas de penas vermelhas, e desceu pelo tronco da árvore.
Nin.
Antes de seguir os homens para o norte pelo interior da floresta, Sefia
enfiou as mãos na terra e estreitou os olhos, prometendo a si mesma que,
dessa vez, não ia falhar.
O tronco de uma árvore é entalhado com uma faca, muito acima do chão
da floresta: Isto é um livro.
E PALAVRAS
Capítulo 7
Assassino nato
SÃO COMO
Capítulo 8
C uca e Aly tinham feito tudo o que ele pedira e mais. Além da porcelana
fina e dos talheres reluzentes, eles acrescentaram copos de cristal, uma
garrafa de vinho de um vermelho profundo e uma travessa grande de iguarias.
Oito fatias de maçã; dezesseis uvas; quatro figos cortados ao meio, suas
entranhas brilhando rosa e dourado ao sol; vinte e quatro fatias de queijo;
vinte e quatro bolachas redondas salpicadas de ervas; e quatro quadrados de
chocolate amargo já amolecendo ao sol.
Dimarion deu um assovio de aprovação e se sentou. Ele era alto, mais alto
do que diziam as lendas, tão grande que as pernas não cabiam embaixo da
mesa, e estendeu o pé na direção de Reed. O bico de ouro da bota reluziu à
luz.
– Espero que não tenha se dado a todo esse trabalho por mim – ele riu.
Tinha uma voz profunda e melodiosa, como um instrumento bem afinado.
Reed estava sentado na cadeira à sua frente, traçando círculos com uma
das mãos na toalha de mesa.
– Nada menos que o melhor para meu velho inimigo – disse ele.
– Inimigo! – Ainda rindo, o capitão do Crux girou a taça entre os grandes
dedos de carvalho. Ele tinha uma pele lisa e marrom que combinava
perfeitamente com sua voz poderosa como um fagote. – E eu esperava tanto
que pudéssemos ser amigos.
– Com todo o respeito, estivemos em lados opostos por vezes demais para
sermos amigos. Seria uma pena mudar tudo isso agora.
Dimarion virou o vinho na boca e o bochechou antes de engolir. Ele sorriu
e selecionou uma bolacha e uma fatia de queijo.
– Imagino que seja o mais adequado, não é? Afinal, você roubou meu
gongo.
Reed enfiou uma bolacha na boca.
– Que gongo? – perguntou ele.
– Meu gongo.
– Ah, você quer dizer o gongo que é meu por direito, como restituição pelo
modo como você me abandonou naquela ilha? – Ele deu um sorriso
malicioso.
– Você o usou?
A verdade era que ele nem funcionava mais, mas Reed não ia contar isso a
Dimarion. Em vez disso, deu de ombros e rebateu com outra pergunta.
– Como você saiu daquele redemoinho?
Dimarion sorriu e bebeu o resto de seu vinho. Aly, que aguardava ali perto
para servi-los, tornou a encher sua taça e afastou-se outra vez. Ele não
agradeceu, sequer olhou em sua direção. Reed ficaria insultado se o talento
dela para desaparecer na multidão não fosse tão útil.
O homem grande mordeu uma bolacha e cantarolou de prazer.
– Isso não está nada mau – ele disse. – É uma vergonha um artista como
Cuca acabar cozinheiro em um navio como o seu.
– O imediato não aceita nada menos que a boia mais refinada.
Dimarion girou o vinho em seu copo. O líquido bordô agitou-se sobre as
paredes da taça e escorreu lentamente enquanto ele o erguia contra o sol.
Acostumado ao esnobismo, o homem até andava com um lenço de seda
amarrado na cabeça para se proteger do sol. Para um fora da lei que passava o
tempo pilhando navios mercantes e tomando os sobreviventes como escravos
para as galés, ele era extremamente limpo.
Mas a vida fora da lei atraía gente de todo tipo. Apesar de todo o conflito
nas Cinco Ilhas, a jurisdição de um reino só se estendia até onde se pudesse
ver suas ilhas. O resto de Kelanna era oceano livre. Foras da lei podiam ser
tão bons ou tão imorais quanto quisessem, e não respondiam a nenhuma
autoridade além das armas e do mar.
– Mas você não veio aqui para elogiar a comida do Cuca – disse Reed.
Dimarion inspecionou suas unhas bem cortadas. Seus quatro anéis,
encimados com diamantes amarelo-canário afiados, reluziam ao sol. Se ele
tivesse a chance, usaria os anéis em Reed. Era assim que o capitão do Crux
marcava seus inimigos. Se ele o socasse com força suficiente – e Reed sabia
por experiência própria que ele batia forte –, você ficava com quatro
cicatrizes em forma de estrela, uma para cada anel, pelo resto da vida.
Dimarion pegou um figo na bandeja cintilante de frutas e o jogou na boca.
A polpa rosada escorreu ao ser esmagada entre seus dentes.
– Tenho uma proposta para você.
Reed observou Dimarion olhar de relance para suas tatuagens. Elas se
espalhavam pelos braços de Reed, desaparecendo sob suas mangas e
ressurgindo na abertura de sua gola, onde o botão de cima da camisa estava
faltando – um monstro marinho com tentáculos longos e ventosas, um
cardume de peixes alados, a silhueta de um homem com um revólver negro
fumegante. Todas as coisas importantes que ele jamais fizera estavam ali,
escuras e permanentes. Se você olhasse de perto, podia encontrar as histórias
da Senhora da Misericórdia, o resgate na Rocha do Homem Morto e seu caso
de amor com a fria e perigosa Lady Delune.
Mas Dimarion só estava à procura de uma: na dobra do braço esquerdo de
Reed havia um pequeno navio tatuado equilibrando-se no alto de um
redemoinho em turbilhão – lembrança do último encontro deles. Dimarion
estalou os nós dos dedos.
– Tesouro – disse ele.
– Eu tenho tesouros.
– Não um tesouro como esse.
A contragosto, Reed chegou para a frente na cadeira. Só um tesouro podia
despertar aquele anseio ganancioso e profundo na voz de Dimarion.
– O Tesouro Perdido do Rei – murmurou Reed.
Não era apenas o tamanho do tesouro que o tornava atrativo, mas o
mistério de seu desaparecimento e a desolação do que acontecera quando ele
se perdeu. Segundo a lenda, antigamente Liccaro era um reino rico. Suas
minas produziam mais metais e pedras preciosas que quaisquer outras em
Kelanna. Com tal matéria-prima para trabalhar, os liccarinos se tornaram os
melhores artesãos do mundo; viajantes de toda parte vinham ver seu trabalho,
e comprá-lo, se pudessem pagar por ele. Então, um dia, sem qualquer razão, o
rei Fieldspar pegou todos os cetros e coroas, os mantos e colares com pedras
preciosas, os finos vasos esmaltados, e sumiu com todos eles no fundo do
labirinto de cavernas sob seu reino, e nunca mais se ouviu falar dele. As
pessoas disseram que seu navio afundou na Baía Efígia quando tentava fazer
a viagem de volta para casa. O reino mergulhou em decadência. As minas se
esgotaram. Seca e fome assolaram a terra. Divididos e corruptos, os regentes
nada fizeram. O povo sofreu.
As cidades foram abandonadas e encolheram a uma fração de seu tamanho
original, e toda sua riqueza considerável foi vendida para pagar por sementes
que não cresciam, por terra que não podiam irrigar.
– Enquanto houver pessoas para escutar, vão contar a história do homem
que o descobrir – disse Dimarion, sem jamais tirar os olhos de Reed. – Outra
história para sua coleção.
Reed tamborilou os nós dos dedos no tampo da mesa. De vez em quando,
à noite, quando não conseguia dormir, acendia uma vela tremeluzente e
contava as tatuagens. Ele as contava até se esquecer da escuridão que
assomava nas escotilhas e em torno de sua vida. Às vezes, precisava de mais
de uma vela.
– Por que está me falando disso? – ele perguntou.
– E se eu lhe dissesse que sei como encontrá-lo?
– Eu diria que se você realmente soubesse onde está o tesouro, a essa
altura já estaria a caminho.
– Ah, mas eu preciso de sua ajuda.
– Para quê?
– Não consegui essa informação sozinho. – Dimarion se recostou, pôs a
mão sobre o peito e disse, com a voz pingando veneno: – Tive uma fonte a
serviço de certa capitã que conhecemos… uma bela mulher, querida de
ambos os nossos corações.
Reed bebeu o vinho e secou a boca com as costas da mão. Havia apenas
uma mulher que Dimarion odiava tanto quanto respeitava: a capitã do Beleza
Negra, o navio mais veloz do sudeste. Reed lançou um olhar para o mar ao
redor, mas não havia sinal de outro navio.
– É para isso que você precisa de mim – disse ele. – Para combater o
Beleza Negra.
– Nossos dois navios contra o dela. Se combinarmos forças em nossa
busca pelo tesouro, não temos como perder.
– Eu não apostaria nisso. – O capitão Reed tamborilou os dedos na mesa. –
Onde ela está agora?
– Oxscini.
– O velho rei de Liccaro escondeu seu tesouro em outra ilha?
– Não. Acredito que ela esteja caçando um traidor.
Reed sacudiu a cabeça. Ela não tolerava traições. Se soubesse que alguém
de sua tripulação tinha traído seus segredos para Dimarion, não ia demorar
para que ela o descobrisse. Ele estremeceu, pensando em piras funerárias
queimando na superfície da água, em luzes vermelhas nas profundezas.
– Então onde está o tesouro?
– Não sei ao certo. Mas ouvi dizer que a primeira pista está em Jahara.
Reed riu e se recostou, olhando para o grande casco do Crux. Jahara ficava
demais ao norte para um navio lento como o Crux chegar lá antes do Beleza
Negra, mesmo que o Beleza estivesse fazendo um desvio por Oxscini.
Dimarion se debruçou para a frente.
– Ela não espera que eu me alie a você, não com nosso… passado
complicado. – Quando Reed hesitou, ele continuou: – Pense na história que
isso vai dar: os três melhores navios de Kelanna envolvidos em uma corrida
pelo Tesouro Perdido do Rei! Não importa quem vença, vão continuar a
contá-la muito tempo depois que você morrer e seu corpo voltar à água.
– Mas o tesouro provavelmente está enterrado em algum lugar de Liccaro.
– O capitão Reed sacudiu a cabeça. – Isso significa se envolver com
Serakeen. Se não formos pegos no fogo cruzado entre Oxscini e Everica
primeiro.
– Você não navega sob a bandeira de um corsário oxsciniano? – Quando
Reed assentiu com a cabeça, Dimarion prosseguiu: – Eu faço o mesmo para
Everica. Eles vão nos deixar passar sem criar problemas, se souberem o que é
bom pra eles. Em relação a Serakeen… – O capitão do Crux se levantou, e o
convés pareceu vergar sob seu peso quando ele foi até a amurada. – Esse
homem é uma desonra para toda a nossa espécie. Há quanto tempo é assim?
Reis e rainhas podem brigar por terra, mas nenhum fora da lei de respeito diz
que é dono do mar.
– Falta de respeito próprio não faz dele uma ameaça menor.
– Bah. Até o Flagelo do Leste iria pensar duas vezes antes de enfrentar ao
mesmo tempo o Crux e o Corrente. Ele pode até acabar com o Beleza e nos
livrar da concorrência.
Reed franziu o cenho. Eles podiam ser inimigos, mas a ideia de um mundo
sem o Beleza fazia com que os mares parecessem menores, um pouco menos
grandiosos.
Ele se juntou a Dimarion na amurada. Embora Reed fosse alto e duro
como um prego, parecia quase frágil em comparação com o capitão do Crux.
Por um instante, os dois estudaram o estonteante mar azul.
O capitão Reed esfregou o círculo de pele bronzeada em seu pulso, a única
faixa de pele vazia em seu braço esquerdo. Em um mundo em que a única
evidência de sua existência era um corpo condenado à decomposição e as
obras que deixava para trás quando esse corpo morria, você tentava todo tipo
de coisa para se convencer de que sua vida tinha algum significado, alguma
permanência. Mas, um dia, mesmo as tatuagens iriam apodrecer – as imagens
de baleias com chifres, mulheres bonitas, ilhas desaparecidas – e nada restaria
dele além das lendas sussurradas das coisas que fizera.
Ele olhou para o navio. Sua tripulação parecia ocupada esfregando
conveses e apanhando estopa de calafetagem, mas seus olhares não paravam
de se dirigir ao tombadilho. Harison, Meeks, Aly. Marinheiros que tinham
ficado com ele pelos cinco anos anteriores, depois… bem, depois do que
tinha acontecido. Homens e mulheres que dependiam dele para mantê-los
vivos em lendas mesmo depois que
tivessem partido.
– Vou lhe contar onde achar a pista, e vamos nos encontrar em Jahara
como aliados e iguais – disse Dimarion.
O capitão Reed contou até oito. Ele gostava do número, o modo como se
articulava quando o dizia, era como morder um pedaço de maçã. Gostava do
intervalo que levava para contar até oito, a quantidade de tempo perfeita para
tomar uma decisão ou fazer mira. Nunca errava quando contava até oito. Era
um bom número.
No convés principal, o imediato esperava junto da amurada, os olhos
mortos vendo tudo. Com seu sentido apurado do navio, o velho estava
provavelmente ouvindo cada palavra que eles diziam. Sob o escrutínio de
Reed, ele balançou a cabeça, apenas uma vez.
Reed batucou oito vezes com a base das mãos na amurada. Era disso que
precisava. Perigo. Aventura. Algo para ser lembrado. Porque, em Kelanna, se
não continuassem a contar sua história depois que você morresse, você podia
muito bem sequer ter vivido.
– Pelo tesouro e pela glória – disse ele, estendendo a mão.
Dimarion a tomou, sorrindo como um predador que sabe ter a presa
encurralada.
– E vamos incluir algum derramamento de sangue de juros.
SEMENTES
Capítulo 9
Lado a lado
COM SEGREDOS
Capitão Reed
e o redemoinho
Isso nunca tinha sido feito antes.
Nunca seria feito.
Todo navio que tentara alcançar a Borda Oeste
do mundo havia se perdido no mar: o Dominó, o
Jogador, o Rocinante… todos bons navios, agora
apodrecendo em algum lugar no fundo do oceano.
Eles não entendiam. Por que arriscar um navio
como o Corrente da Fé em uma viagem da qual ele
nunca retornaria?
Era um desperdício, disseram.
Uma tarefa absurda, disseram.
E se você começasse esta história com o dia em
que eles zarparam na direção do oeste azul e sem
limites, você ficaria inclinado a concordar.
Mas para entender realmente por que o capitão
Reed levou seu navio para as Águas Vermelhas, e o
que aconteceu com ele e toda sua tripulação
quando chegaram lá, você teria de começar antes
do princípio.
Você teria de começar com o redemoinho.
As paredes já estavam começando a se inclinar e
balançar quando o capitão Reed chegou ao fundo
do mar. O redemoinho rugia ao seu redor, subindo
sempre como as paredes de um poço verde, com o
olho brilhante do céu e as silhuetas do Crux e do
Corrente circulando muito acima. Sob suas mãos, a
areia estava úmida e macia como pó.
Dimarion fez um giro, sua figura enorme
emoldurada por espuma e água em torvelinho. Suas
roupas estavam encharcadas, e a ponta de seu lenço
de cabeça agitava-se às suas costas como um
chicote. Entre eles, os conteúdos do baú de
tesouro arrombado jaziam expostos na areia: o
malho e o disco de latão tinham ficado verdes com
a idade, semicorroídos pelo tempo e pela água
salgada, mas o gongo era inconfundível. Havia
figuras entalhadas nas bordas, gritando ou
cantando, segurando armas ou instrumentos
antigos, clamando pela tempestade no centro —
nuvens turbulentas e raios.
— Como você… — A voz profunda de Dimarion
mal era audível sob o uivo do furacão.
Borrifos do mar atingiram o rosto de Reed
quando ele ficou de pé, testando a areia em
movimento com os dedos dos pés. Ele sorriu.
— Você acha que há um corpo de água em Kelanna
que eu não consiga atravessar?
— Hah. — O olhar de Dimarion se voltou na
direção da antiga moeda de cobre na areia.
Enquanto ela girasse, o redemoinho permaneceria
aberto. Mas ela estava começando a se inclinar e a
balançar, suas faces reluzentes alongadas e
instáveis. O redemoinho estava se desfazendo, com
pequenos ciclones espiralando para o lado e para
fora da água. Logo as paredes iriam desabar, e a
água iria esmagá-los em segundos,
e seus corpos quebrados seriam mastigados em seu
interior para os carniceiros.
— Você não teria nenhuma ideia brilhante,
teria?
Reed bateu nervosamente nas coxas, onde deviam
estar suas pistolas. Seus dedos seguiram na direção
da faca.
— Acabei de aterrissar no pé de um redemoinho
com um homem que tentou me matar duas vezes.
Acho que nenhuma das minhas ideias é muito
brilhante.
Dimarion sacou o revólver.
— Então para que você serve?
Houve um tiro. Uma explosão de luz e fumaça, e
o mercúrio da bala cortando a distância entre
eles.
Reed se esquivou. Areia foi levantada atrás dele
quando ele saltou para a frente, com a faca
estendida.
Sangue. Dimarion soltou a arma, e Reed a
chutou para o lado, onde ela foi sugada para o alto
pela espiral de água e lançada no mar.
Que som fazia o ronco da água em torno deles! O
chamado sem palavras do oceano.
Algo colidiu com o lado da cabeça de Reed. Um
punho… um pé… uma marreta? Luzes rebentaram em
seu crânio. Ele cambaleou para o lado.
Dimarion pegou seu braço e o torceu. A faca
caiu.
Então Reed estava sendo erguido. Seus pés
deixaram o chão. Aquele ronco. Aquela voz de
vento e água. Ele acertou um golpe, talvez dois,
antes que Dimarion o lançasse no chão. Uma
cratera se encolhendo na areia, e o mar gritando
ao seu redor.
Dimarion estava em cima dele. Punhos nus como
avalanches golpeando-o no rosto, os braços e as
mãos arrancando pedaços de carne, provocando
ferimentos e sangramentos.
Reed contorceu-se para o lado e se levantou,
arquejante. Ele não ia sobreviver se eles voltassem
a trocar socos.
Dimarion riu, erguendo-se como um gigante
saindo
da terra.
— Não há nenhum lugar para onde você ir.
O capitão Reed sacudiu a cabeça e o circundou,
cuidadoso, contando os passos. Um, dois, três,
quatro…
— Não se lembra do que eu disse sobre a água?
Quando Dimarion abriu a boca para falar, Reed
se lançou pela areia, agarrou o gongo e mergulhou
na parede curva de água.
Sua respiração o deixou. O mar despencou sobre
ele várias vezes como uma pedra, procurando seus
olhos, nariz e garganta. Sua perna quebrou. Ele
não conseguia ouvir, não conseguia ver, mas a
sentiu quebrar. Sentiu os ossos lascando. Tentou
nadar, bater as pernas, mas no redemoinho não
havia para cima nem para baixo. Só o torvelinho e a
água selvagem.
O capitão Reed se agarrou ao gongo. As coisas
estavam ficando quentes e escuras, mas quando
encontrassem seu corpo em alguma praia distante,
saberiam que ele tinha conseguido aquilo que fora
buscar.
E foi quando teve certeza de que ia morrer,
varrido para sempre para o interior do oceano azul
sem fim, que a água falou com ele.
Ninguém sabe ao certo o que ela disse, mas
algumas pessoas acham que ela contou como ele ia
morrer. Algumas pessoas acham que ele viu tudo em
um clarão, rápido e brilhante: uma última
respiração de ar molhado e salgado. Um revólver
preto. Um dente-de-leão resplandecente no
convés.
E as madeiras do navio estourando.
E escuridão.
Por um instante, ele lutou contra a visão, como
se pudesse golpeá-la com as mãos ou debatendo as
pernas, mas logo foi tomado por uma paz repentina
e intensa. Ela se
espalhou por ele como sangue se espalha por
tecido, saturando todas as suas fibras.
Ele ia morrer, certo, mas não ia morrer naquele
dia.
E foi então que ele decidiu levar seu navio à
Borda Oeste do mundo.
Porque ainda havia milhares de aventuras para
serem vividas, e apenas um número limitado de dias
para vivê-las.
Porque elas estavam lá fora.
E por que não?
Com esse pensamento, ele sorriu, fechou os
olhos e se deixou levar pela água.
Capítulo 10
S efia apertou os olhos para a página escurecida a sua frente. A vela tinha
queimado quase inteiramente enquanto ela lia, e agora seu pavio
enegrecido começava a soltar fumaça. Recostando-se, ela pôs a pena verde
entre as páginas e fechou o livro. Seus olhos estavam sombrios e sérios à luz
mortiça.
Às vezes, ela sentia que as passagens que lia no livro tinham sido escritas
apenas para ela, como se a estivessem conduzindo a um entendimento maior,
como tinham feito no dia em que aprendera a ler. E havia pistas até nas
velhas histórias de heróis foras da lei que ela escutara ao longo da vida. Mas
enquanto delineava o símbolo na capa, ela não conseguia evitar se perguntar:
se o livro deveria estar lhe ensinando, por que não dava as respostas de que
precisava? Por que não contava a ela como encontrar as pessoas que tinham
destruído sua família?
– O que você faria se soubesse como vai morrer? – perguntou. – Ia correr
na direção disso, como o capitão Reed, ou fugir?
Arqueiro passou o dedo pela base do pescoço e sacudiu a cabeça.
– Eu iria terminar o que havia começado. Se isso significasse correr na
direção da morte, bom…
Ela deu de ombros. Por um segundo, teve vontade de raspar e arrancar
toda a capa, e as páginas embaixo dela, como se destruir o livro fosse destruir
sua necessidade de entendê-lo. Mas não podia fazer isso.
– Estou disposta a fazer o que for necessário – disse ela. – Mas você não
precisa. Na verdade, talvez fosse melhor se não fizesse.
Os olhos de Arqueiro se arregalaram de mágoa e surpresa.
Devia ter contado a ele antes. Contado quem ela era e o que tinha, e
porque ninguém que a conhecia estava seguro. Sefia tentava não gostar dele,
tentava fingir que não significava nada para ela.
Mas isso não era verdade.
Ela contou tudo a ele – sobre o pai, sobre a casa na colina de frente para o
mar, sobre o livro e sobre o desaparecimento de Nin. Porque ele estava em
perigo. Todo mundo com quem ela entrava em contato podia ser levado,
torturado, morto.
– Você pode sair disso. Pode ir para casa – disse ela. Suas palavras
vacilaram. – Mas isso é o que há para mim. Eu não tenho mais nada.
Os dedos dele tamborilaram na borda irregular da cicatriz, e ela prendeu a
respiração, temendo perturbar o silêncio que tinha caído entre eles.
Será que ele ia deixá-la?
Ela queria mesmo que ele fizesse isso?
Fora da caverna, a cascata rugia, ficando mais alta no silêncio dele.
Por fim, Arqueiro ergueu a mão. Ela pôde ver apenas as formas de seus
dedos contra a luz das estrelas. Enquanto observava, ele cruzou o dedo médio
sobre o indicador, entrelaçando-os.
Ele nunca tinha usado aquele sinal antes. Mas quando ela compreendeu
seu significado, foi tomada por uma espécie triste de calor.
Ele estava com ela.
Não apenas ali, com ela na caverna, mas com ela de todas as maneiras que
importavam.
Um sorriso se abriu no rosto dele.
Ela agarrou os joelhos e sentiu os olhos reluzirem à luz fraca. Eles iam
fazer aquilo juntos, ela e Arqueiro.
Aprender para que servia o livro. Resgatar Nin. Encontrar as pessoas que
tinham arruinado suas vidas e obter sua vingança.
A carne do crânio tinha sido removida havia muito tempo, deixando para
trás ossos chamuscados como pedaços queimados de madeira flutuante
em um oceano de veludo azul que quebrava contra suas órbitas oculares ocas,
o vazio enervante do nariz, os dentes protuberantes fixos em um sorriso
permanente pela mandíbula presa.
Lon olhou para o crânio, para seu riso silencioso de escárnio, e enrolou
suas mangas compridas demais.
– Já sei como fazer isso – resmungou.
– Então prove – disse Erastis.
Ele estava sentado a uma das mesas curvas e compridas, examinando
manuscritos dispostos como retalhos de uma colcha. Suas mãos enluvadas
aninhavam as páginas como se elas pudessem se desfazer a seu toque.
Lon olhou para ele de cara fechada. Mas como o Mestre Biblio-
tecário não ergueu os olhos, ele deu um suspiro e se concentrou. Desde o ano
da sua iniciação, ele tinha lido toda palavra esotérica, toda passagem
mundana que Erastis jogara sobre ele. Na verdade, dominara a leitura e a
escrita com tamanha rapidez que começara a treinar iluminuras três meses
antes de qualquer outro Aprendiz. Utilizando seu sentido extra, buscou os
pontos de ouro em movimento que reluziam logo abaixo do mundo físico.
Então piscou, e o mundo Iluminado se ergueu ao seu redor. Estava
simultaneamente consciente de seu corpo, da Biblioteca ao entorno e do
crânio disposto a sua frente, e da tapeçaria de luz magnífica que estava
sempre ali, atrás do mundo que ele podia cheirar, tocar e provar. Ao acessar o
Olhar, ele podia sentir os dois mundos ao mesmo tempo.
O mundo Iluminado era uma teia de todas as coisas que já haviam existido
e das que ainda seriam feitas. Era por isso que provocava náusea em
Iluminadores não treinados: era um oceano de história, cheio de redemoinhos
e marés subindo e descendo, e poderia fazê-lo em pedaços pelos turbilhões da
memória. Para não ser levado, você precisava de uma marca, um som ou um
cheiro, alguma referência no mundo físico para ancorar sua mente àquele
momento, para que sua consciência dividida pudesse mais tarde se tornar
uma novamente.
Lon sentiu um calafrio. Erastis o alertara sobre os perigos de perder a
referência. De ser golpeado no mundo Iluminado por todas as correntes
estonteantes de luz, tão perdido em todas as coisas que tinham acontecido
antes que seria como se afogar, procurando em vão ao redor por uma praia
que jamais veria outra vez. Iluminadores que perdiam a referência entravam
em colapso, seus corpos vazios e catatônicos, olhos abertos, mas sem ver,
respirando, mas não vivendo, até que seus órgãos paravam lentamente de
funcionar e eles morriam.
Atingido pelas espirais de ouro, Lon se concentrou nas marcas de
queimadura. As correntes de história giraram ao seu redor e entraram em
foco, e ele soube o que as havia causado. Calor e fumaça, chamas tão
brilhantes que queimavam seus olhos, e uma figura solitária entrando nas
chamas e retirando livros em combustão das estantes.
– O nome dele era Morgun – disse Lon, observando a túnica do antigo
Bibliotecário pegar fogo e queimar, ouvindo seus gritos. – Ele era o
Bibliotecário durante o Grande Incêndio, e morreu tentando resgatar
Fragmentos das chamas.
Aquela era a ligação entre alfabetização e Iluminação, por que Erastis
insistira em ensiná-lo a ler antes de ensinar a usar o Olhar: ler era
interpretação de sinais, e o mundo estava cheio deles. Cicatrizes, arranhões,
pegadas. Se pudesse compreender o mundo Iluminado, podia ler a história de
cada marca com a mesma clareza com que lia uma frase em um livro.
– Isso é uma coisa que você pode aprender com esse crânio. Há mais duas.
Lon tornou a piscar, e o mundo Iluminado desapareceu.
– Vamos, me dê um desafio.
– Isto é um desafio – disse Erastis calmamente. – Você já está bem mais
adiantado em seu estudo da Iluminação do que eu estava na sua idade.
– Mas isso não é um desafio para mim. – Lon cerrou os dentes, frustrado. –
Sabia que Rajar recebeu a primeira comissão hoje? Agora mesmo ele está lá
fora navegando com seu Mestre.
– Rajar é seis anos mais velho do que você.
Fora da Biblioteca, nuvens negras se encurvavam sobre os picos glaciais, e
o vento soprava intermitentemente pelas janelas.
– É um desperdício me manter aqui – disse Lon. – Eu devia estar lá fora.
No mundo. Fazendo coisas.
– Bobagem. – Erastis agitou os dedos para ele, desdenhoso. –
A noite vai cair em algumas horas.
Lon jogou a cabeça com impaciência, como que para se livrar das palavras
de Erastis.
– Não é isso o que eu quero dizer! Quando me juntei ao senhor, me
prometeu que íamos fazer coisas grandes. – Ele começou a citar o juramento
que fez no dia de sua iniciação. – Proteger o Livro de descoberta e mau uso e
consolidar a estabilidade e a paz para todos os cidadãos de Kelanna.
– E estamos fazendo isso. Eu disse a você que o Mestre Bibliotecário e o
Aprendiz Bibliotecário são as posições mais poderosas em nossa ordem, além
do Diretor. Sem nós, não haveria ninguém para interpretar os Fragmentos.
Não haveria ninguém para investigar profecias nem desenvolver técnicas para
Iluminação. É por nossa causa que Edmon e os outros podem fazer o que
fazem.
– Mas eu não estou fazendo nada!
Lon estava prestes a continuar quando viu a garota no umbral da
Biblioteca. Ele não sabia quando tinha acontecido, mas de repente ela
aparecera na porta, carregando dois volumes de capa azul nos braços.
Ele enrubesceu.
Ela era pequena e magra, com olhos escuros e o cabelo negro amarrado em
um coque no alto da cabeça, expondo o pescoço. O coração de Lon palpitou
em seu peito. Ela era incrivelmente bela. Às vezes, quando a via, ele se
esquecia de respirar.
Ela era a Aprendiz Assassina, mas não tinha nome. Assassinos não tinham
nomes. Assassinos sabiam caçar e matar, e mais nada. Em vez disso, ela era
conhecida como a Segunda; sua Mestra era a Primeira. Como nas outras
divisões, havia sempre apenas dois.
A Segunda era alguns anos mais velha do que ele e estava lá havia mais
tempo, por isso tinha mais privilégios, como poder retirar os Fragmentos da
Biblioteca e devolvê-los quando quisesse. Naquele ano de sua iniciação, ela
nunca dirigira a ele mais que meia dúzia de palavras. Não que ela estivesse
sempre por perto. Como Rajar e o Aprendiz Administrador, ela e sua Mestra
frequentemente deixavam a Sede Principal para realizar tarefas para o diretor
Edmon. Só Lon estava preso ali.
Mas ele sabia que ela era talentosa. Sem ter a intenção, se virou para ela,
para vê-la melhor, para ver o que iria fazer.
Ela se movia com gestos rápidos e delicados como um pássaro ou uma
dançarina, alternando de um pé para o outro em um passo complicado, como
se estivesse ensaiando uma coreografia. Um chute, uma deslizada, um toque
do dedão no piso. Então ela olhou para cima, viu Lon encarando-a e parou.
Seus olhos perfuraram os dele, desafiando-o a continuar olhando.
Ele corou e desviou o rosto.
Por fim, Erastis a percebeu junto da porta.
– Entre, entre, minha querida! – disse ele, gesticulando para que ela se
aproximasse da mesa. Suas mãos enluvadas adejaram como grandes
mariposas brancas. – Você terminou a leitura do Guia Ostis para Armas
Brancas Talismânicas, não foi? O que achou?
Ela atravessou o chão de lajotas sem emitir som e pôs os volumes na mesa
ao lado do Bibliotecário.
– Obrigada. Eu tenho o que preciso.
– Excelente!
Lon se aproximou da mesa também, sua frustração com o Mestre
Bibliotecário momentaneamente esquecida. Ele tentou não olhar diretamente
para ela.
– Para quê? – perguntou ele.
Sentiu a Segunda olhando fixamente para ele, em silêncio, mas Erastis
abriu um sorriso.
– A Segunda vai forjar sua própria espada de sangue.
– O que é uma espada de sangue?
A Segunda olhou para o Mestre Bibliotecário, que gesticulou para que ela
explicasse. Franzindo o cenho, ela pressionou as pontas dos dedos na borda
da mesa.
– Uma espada de sangue é uma arma que passou por Transformação. Já
ouviu falar nelas? – Quando Lon sacudiu a cabeça, ela tentou outra vez. –
Uma arma mágica? Como o Executor?
Um revólver negro amaldiçoado que matava sempre que era removido do
coldre; se você não escolhesse seu alvo, ele escolhia um para você.
– Ah. Sim.
– Segundo Ostis, você pode usar a Transformação e imbuir uma espada de
“sede de sangue”, de modo que, quando for hora de matar, a própria lâmina
procure seus alvos.
– Você quer dizer que a espada mata por conta própria?
– Não. Ela se torna uma ferramenta mais precisa e mortal para um
espadachim habilidoso. Nas mãos erradas, provavelmente iria ferir ou matar
quem a portasse.
– Ah.
– Ela também suga o sangue dos alvos, o que dá às espadas de sangue seu
odor ferroso característico – acrescentou Erastis, prestativo – e
proporcionando uma limpeza fácil.
– Uau… – Lon fez uma pausa. Por um segundo, estava mais
impressionado que nunca com a Segunda, com as coisas que ela podia fazer e
as coisas que estava aprendendo, mas então seu ciúme e frustração voltaram.
Ele virou-se para Erastis. – Ela ganha uma espada de sangue? Por que eu não
ganho uma espada de sangue? Ou qualquer coisa! Uma… caneta de sangue!
De repente, a Segunda estava em movimento, toda feita de curvas e graça
violenta, e o golpeou com tanta força no peito que ele cambaleou para trás e
caiu na cadeira que ela de alguma forma puxara de baixo da mesa. Lon
desabou, atordoado.
Ela era rápida demais.
Ela o havia tocado.
Ele podia sentir a marca de sua mão como uma queimadura latejando em
sua clavícula.
– Este é seu Mestre – a Segunda o repreendeu. – Você não fala com ele
assim.
Erastis riu.
– Ah, ele faz isso o tempo todo. Não deixo que me aborreça. Fiquei sem
Aprendiz por décadas. Eu não o teria escolhido se não valesse a pena.
Ela fez um ruído de nojo no fundo da garganta.
– Ei! – Lon olhou para ela e esfregou o peito onde fora atingido.
O olhar da Segunda cruzou com o dele. Era estranho. Quando criança, ele
ganhara a vida com sua habilidade de ler as pessoas. Mas não sabia dizer o
que ela estava sentindo naquele momento. Irritação? Desprezo?
Provavelmente. Era assim que ela sempre olhava para ele. Mas quando a
Segunda fechou os dedos, Lon se perguntou se ela sentia a mesma pulsação
quente na palma da mão que ele sentia no peito.
Lon afastou os olhos.
– Eu valho a pena – declarou ele, ficando de pé. – Vou lhe mostrar.
Sem esperar que ela respondesse, olhou para o crânio e piscou. O mundo
Iluminado explodiu a sua frente, uma teia brilhante interconectada.
Havia a linha fina de uma fratura no maxilar inferior. Ele a acompanhou
de volta através dos fios reluzentes da vida do velho Bibliotecário.
– Morgun era Aprendiz, estava caminhando pelo corredor quando o
Aprendiz Soldado saltou em suas costas.
Ao lado dele, a Segunda acrescentou:
– Morgun caiu para a frente e quebrou a mandíbula na balaustrada. Uma
estupidez. Soldados não têm controle.
Ela também devia estar lendo o crânio, tão rápida para aceitar um desafio
quanto ele. Lon olhou para ela e seu coração se partiu.
No mundo Iluminado, ela era radiante. Como um cometa. Como
devastação e solidão. Era fogo e calor calcinante, flamejando
desafiadoramente em meio à escuridão.
– São duas de três – disse Erastis, que parecia estar se divertindo. – Vocês
têm mais uma.
Lon procurou outra marca, outra referência, mas não encontrou nada.
Caminhou até o crânio e o girou na mão, espiando suas fendas escurecidas.
Foi então que as viu: protuberâncias bem no fundo do osso temporal, onde
deveria estar o canal auditivo. Ele nunca as teria visto apenas com os olhos,
mas na teia de luz podia espiar além do osso, nos vazios do crânio. Ele riu.
– Você viu – disse Erastis.
– Ele era surdo! – exultou Lon. – Morgun era surdo. Essas saliências nos
ossos fecharam seus canais auditivos quando ele era criança.
Ele piscou e a luz desapareceu do mundo.
– Viu? – Ele sorriu para a Segunda, de queixo empinado.
Mas a Segunda franziu o cenho e sacudiu a cabeça. Suas pupilas eram
pequenos pontos, mal visíveis nos olhos castanho-escuros. Ela ainda devia
estar usando o Olhar.
– Onde? – perguntou ela, toda a irritação com ele desaparecida.
Em outro momento, ele teria se gabado, mas não agora. Não com ela.
Lon deu o crânio a ela, sentindo as palmas abertas das mãos dela roçarem
as costas das suas, e apontou para a cavidade no osso temporal.
– Aqui.
Os olhos dela se arregalaram, e ele soube que ela estava vendo Morgun
quando criança, com as mãos nos ouvidos e chorando de dor. Estava vendo
um médico tocar um diapasão e levá-lo até os lados da cabeça de Morgun.
Estava vendo Morgun esfregar as orelhas, tentando ouvir algum sussurro, e
lentamente se acostumando com uma vida em silêncio.
A Segunda tornou a piscar e suas pupilas retornaram ao normal.
– Como você soube que isso estava aí? – ela perguntou.
– Ele tem um bom professor – disse Erastis, devolvendo seus óculos ao
rosto.
Lon riu. A Segunda o estava observando, com a boca se erguendo
levemente nos cantos. Um sorriso. Durante o ano em que a conhecia, ele
nunca a vira sorrir. Era uma coisa mágica. Quando percebeu que ele estava
olhando para ela, o sorriso dela se abriu.
E dessa vez ele não desviou os olhos.
EM SEU
Capítulo 11
A página dobrada
É UM LIVRO
Ela franziu o cenho. Eles tinham levado três meses para descobrir que a
garota existia, e mais dois para saber que ela ainda estava em Oxscini, mas
agora estavam perto. Perto o suficiente para Tanin abandonar o que estava
fazendo e se juntar à Assassina nas selvas úmidas do Reino da Floresta. Perto
o suficiente para quase sentir a atração do Livro como a atração de um ímã
sobre limalha de ferro.
Eles alcançariam a garota em três dias.
Ela pegou uma folha com profundos veios roxos e a girou entre os dedos.
Àquela altura, a garota devia ter escrito a frase centenas de vezes. Conforme
Tanin e os rastreadores reduziam a distância entre eles, as palavras se
tornavam cada vez mais óbvias – entalhadas em troncos, rabiscadas em
pedras com carvão –, como se a garota estivesse deliberadamente deixando
uma trilha para eles seguirem.
Para os rastreadores, as palavras significavam tanto quanto excrementos e
gravetos quebrados, sinais da passagem dela e nada mais, e Tanin mantinha
as coisas assim, eliminando cada letra que eles encontravam.
E se a curiosidade de um rastreador superasse sua discrição, ela o
eliminava também.
Mais do que qualquer outra coisa, a imprudência da garota a incomodava.
Se os pais dela a haviam ensinado a escrever, deviam tê-la ensinado a ser
mais cuidadosa. Deviam ter ensinado que palavras eram perigosas. Que, se
caíssem nas mãos erradas, isso poderia resultar na ruína de um plano que
levara gerações para ser posto em ação.
Recolheu as folhas restantes e as jogou na fogueira, onde pegaram fogo e
flutuaram para o alto como páginas negras queimando. Ela se recostou e
observou as folhas se apagarem na vegetação baixa.
Ao lado dela, a Assassina olhava para os rastreadores, a escuridão da
floresta se erguendo atrás dela. Como sua Mestra, que tinha sido chamada
para uma missão na capital oxsciniana, ela se vestia inteiramente de preto, e,
por baixo do capuz, seus olhos azul-claros corriam de um homem para outro
à medida que suas piadas ficavam cada vez mais vulgares.
Um homem robusto chamado Erryl a cutucou com o cotovelo, piscou
sedutoramente para ela e estendeu um cantil.
– Ei, você está quieta demais. Por que não relaxa?
O olhar azul-pálido da Assassina passou uma vez por suas mãos e seu
rosto antes de piscar e tornar a se afastar.
Erryl riu. Seu rosto oleoso reluzia à luz da fogueira.
– Vamos, beba. Você está fazendo a gente ficar mal.
Hesitantemente, a Assassina pegou a garrafa e a levou aos lábios. Um
segundo depois, ela a afastou outra vez, tossindo. Quando os rastreadores
riram, sua pele cor de mingau corou de vergonha. Ela pareceu encolher nas
sombras.
Erryl pegou o cantil de suas mãos, rindo.
Tanin estreitou os olhos prateados na direção dele, em alerta, mas ele
estava bêbado demais para perceber.
– Você sempre pode julgar uma mulher pelo modo como ela bebe
aguardente – gargalhou ele. – Se ela engole ou…
– Você sempre pode julgar um homem por sua conversa. –
As palavras de Tanin foram tão precisas quanto uma lâmina cortando a pele.
– Quanto mais tem a dizer, menos ele sabe.
Os outros riram enquanto Erryl balbuciava.
– Na verdade, a julgar pelo quanto você fala, eu diria que sabe muito
pouco sobre qualquer coisa – a voz dela tornou a atingi-lo. – Acho melhor
ficar de boca calada pelo tempo em que estiver conosco. Talvez aprenda
alguma coisa.
– Eu só estava tentando me divertir um pouco…
– À custa de minha tenente? – Tanin deu um riso frio. – Permita-
-me deixar algo profundamente claro: você é dispensável. Ela não é. Por isso,
vai tratá-la com respeito e deferência ao ponto da adulação. Se não o fizer, ela
tem toda minha permissão para desmembrá-lo o mais rápido ou lentamente
que quiser.
O homem ficou branco; seus olhos injetados voaram para a espada da
Assassina. A bainha negra era incrustada com detalhes intrincados – meros
desenhos para os não iniciados, mas leitoras como Tanin e a Assassina
podiam perceber centenas de pequenas palavras gravadas à mão no couro:
feitiços de proteção para a portadora, maldições contra seus inimigos. Como
se reagindo ao medo do homem, um cheiro penetrante de cobre saiu da
bainha e impregnou o ar.
Tanin se ergueu, limpando as mãos.
– Com isso, cavalheiros, eu lhes dou boa-noite.
Ela afastou do rosto o cabelo negro, que começava a ficar grisalho, e
deixou o círculo em torno da fogueira. Atrás dela, os rastreadores começaram
a falar outra vez, suas vozes suavizadas, e quando entrou nas sombras, ela se
virou uma vez para a Assassina, que lhe deu um sorriso.
A escuridão pendia do dossel como cortinas negras, e enquanto os olhos
de Tanin se ajustavam, ela seguiu um caminho em meio a raízes espalhadas e
troncos em decomposição até chegar a uma clareira.
Sob a luz das estrelas, ela puxou uma página dobrada do colete. O papel
era velho e amassado, não mais rígido, mas maleável como tecido. A escrita
era corrida e apertada, as margens transbordando de perguntas e anotações
feitas apressadamente, mas ela podia ter recitado cada frase e situado cada
sinal de pontuação com os olhos fechados.
A cópia de uma cópia. A maior parte do Fragmento original tinha sido
destruída pelo fogo – as páginas queimaram e se desfizeram em cinzas, todas
as suas palavras transformadas em pó. Ela ordenara que o que havia sobrado
fosse trancado em segurança no cofre, mas não antes de copiar aquela única
página.
Estava frustrantemente incompleta – parágrafos chamuscados nas bordas,
palavras inteiras apagadas pelo fogo – e ao longo dos anos suas anotações
tinham submergido o texto original em conjecturas e frases incompletas até
que ele se tornara ilegível para qualquer um exceto ela mesma.
De repente, ela ergueu os olhos. As estrelas tinham mudado de posição no
céu. Ela devia estar ali estudando a página por horas.
– Não sei por que você deixou que eles a irritassem – disse ela para a
escuridão.
A Assassina se adiantou, materializando-se da linha das árvores como que
de pleno ar.
– É fácil pra você falar. Eles gostam de você.
Tanin sorriu quando o cheiro adocicado de cobre pairou ao seu redor. Ela
aprendera um ou dois truques com os Assassinos ao longo dos anos, mas
nunca tinha sido capaz de desaparecer nas sombras como eles conseguiam.
Não fazia diferença. Ela não tinha interesse em ficar invisível.
– Eles me temem – disse ela. – Como deviam temer você.
– Eles me temem, sim. – A Assassina mexeu no punho puído de sua
camisa.
– Se a temessem, iriam respeitá-la. – Tanin sentou em um tronco coberto
de musgo, dando um tapinha na madeira úmida ao seu lado. – E eu não teria
de intervir para defendê-la.
– Você não precisava ter feito isso – murmurou a Assassina, juntando-se a
ela.
– Claro que precisava.
Embora os votos de sua ordem a proibissem de ter sua própria família,
Tanin ainda se lembrava de irmãs mais novas, em sua vida anterior à
iniciação: esquisitas, impopulares, teimosas, como versões menos bonitas de
suas irmãs mais velhas, a quem elas seguiam como cachorrinhos. Mas as
amava – não amava? – por sua coragem, sua lealdade e porque elas eram sua
família.
Embora Tanin não tivesse parentesco de sangue com ela, a Assassina era
família.
Tanin olhou para o papel, como se as palavras pudessem ter se rearrumado
quando ela não estava olhando. Mas não tinham, e ela enfiou a página
dobrada outra vez no colete. Ela nunca conseguira descobrir detalhes
específicos, mas uma coisa que sempre soubera era que iria recuperar o
Livro.
E agora sabia quando.
Em três dias.
A Assassina encostou a cabeça no ombro de Tanin.
– De qualquer modo – disse ela –, obrigada.
Tanin apertou o rosto contra o topo da cabeça da Assassina, seus sentidos
se enchendo de cobre. Ela fechou os olhos, suspirando.
– Sempre que precisar.
FUNDO.
Capítulo 12
O garoto na cabana
PÁGINAS DE
Capítulo 13
Não há coincidências
F oi tudo tão rápido, tão improvável, que se ela não tivesse visto antes, se
ela mesma não tivesse feito aquilo, não teria acreditado.
Houve um tiro.
Uma nuvem de fumaça e uma língua de fogo.
E a garota mandou a bala em espiral de volta para o peito do homem.
Agachada um pouco além do alcance da luz, Tanin se esforçava para
controlar a respiração. De repente, tomou consciência de seu corpo, os
pulmões, a dor no peito. Atrás dela, os rastreadores ergueram os rifles e
aguardavam seu sinal, mas ela não se mexeu.
A garota caiu de joelhos ao lado do homem. Tanin se maravilhou com ela.
Ela era muito jovem, mas tinha o mesmo cabelo negro como fuligem, os
mesmos olhos escuros.
E ela sabia Manipulação. Se já tivesse dominado o segundo nível de
Iluminação, não havia como dizer o que mais ela poderia fazer.
– Agora – disse a Assassina. Ela se misturava tão bem à escuridão que
mesmo sua voz era uma sombra, como o hálito de uma brisa inexistente.
– Ainda não.
A garota estava tentando estancar a ferida. Não ia conseguir.
Ela se parecia com ela. Tanin não estava esperando por isso. Não tinha
pensado que importaria tanto.
Houve um estalo na vegetação rasteira, e um homem irrompeu das árvores
atrás deles, seu rosto redondo retorcido de raiva. Ele deu uma olhada para
Tanin e os rastreadores e ergueu o rifle.
Com isso ela podia lidar.
Uma olhada para seus homens, um movimento rápido dos dedos.
O líder dos rastreadores passou a faca pelo pescoço do homem e pegou o
cadáver enquanto ele caía no chão. A cabeça dele tombou para frente, seu
chapéu de viseira estreita caindo sobre os olhos sem vida.
A Assassina caminhou lentamente e tocou a poça de luz com a ponta do
pé.
– Por que não?
– Você não conhecia… ela. – Tanin fez uma careta. Mesmo depois de todo
aquele tempo, ela ainda não conseguia se forçar a usar seu nome.
– Não é ela.
Não, ela estava morta. E Tanin nem estivera lá para ver. Para segurar sua
mão ou enxugar sua testa ou o que quer que se fizesse quando seus entes
queridos estavam morrendo.
Ela tinha de fazer alguma coisa agora. Era para isso que tinha vindo, não
era? Tanin examinou a clareira. Seu olhar percorreu a cabana, o arco e as
flechas caídos, o corpo.
– Ela não está com o Livro.
– Você podia fazê-la nos contar. Seria fácil.
Tanin observou o garoto ajudá-la a se levantar. A luz da cabana iluminou
seu colar de tecido cicatrizado.
Ele era um candidato.
Tanin sacudiu a cabeça. De todas as companhias que a garota podia ter
escolhido, ela tinha escolhido um candidato.
– Veja o pescoço dele – sussurrou ela com voz trêmula. Quando foi a
última vez que isso aconteceu?
A Assassina não tirou os olhos da garota.
– E daí? – Sua voz escorria condescendência. – Os cães de Serakeen
trazem outro para a Jaula de meses em meses.
Tanin passou a mão sobre o bolso oculto do colete, onde guardava a
página dobrada.
– Edmon costumava dizer que não há coincidências, só significado.
Havia dez anos, Serakeen pagava os impressores para lhe conseguir
matadores jovens com cicatrizes.
Havia vinte anos, ela estava à procura do Livro.
E agora ali estavam eles, os dois, juntos.
Isso tinha de significar alguma coisa.
– Podemos levar o garoto também, se é isso o que você quer dizer. – A
Assassina sacou a espada dois centímetros da bainha. O cheiro de cobre
floresceu em torno deles.
Tanin a segurou pelo cotovelo.
– Eu disse não.
A Assassina olhou para ela, mas a atenção de Tanin já tinha seguido
adiante.
O garoto pegou a garota nos braços e a levou de volta à cabana, onde ela
desabou nos degraus, com joelhos e cotovelos salientes. Estranha.
Vulnerável.
A Assassina arrancou o braço das mãos de Tanin.
– Foi para isso que viemos. Capturá-la. Pegar o Livro. Tem de ser agora.
– Se for ela, você não conseguiria derrotá-la com cem espadas.
– Só preciso de uma.
Com um aceno da mão, Tanin dirigiu os rastreadores de volta para a
floresta, onde eles desapareceram rapidamente, como enguias em água negra.
Ela se virou para a Assassina.
– Você vai me obedecer nisso ou vai ser removida desta missão. – Sua voz
estava seca. – Não tenho utilidade para subordinadas que não seguem ordens.
A Assassina cerrou os punhos até que a luva de couro na mão esquerda
rangeu.
– Você nunca confia em mim – disse ela. – Não como confiava nela.
– Você não é ela.
Os olhos da Assassina se arregalaram com a provocação de Tanin. Ela se
virou e saiu apressada para o interior da vegetação rasteira, sem emitir
qualquer som.
A garota estava sentada nos degraus da cabana, esfregando os dedos como
se pudesse apagar o que eles tinham feito. Por um instante, Tanin quis ir até
ela. Abraçá-la, talvez. Ela não sabia.
Lentamente, ela recuou da clareira e desapareceu nas sombras sob as
árvores até não conseguir mais ver a garota.
Sefia.
Uma leitora e uma matadora.
UM OCEANO,
Capítulo 14
Dúvida
Duas curvas para seus pais. Uma curva para Nin. A linha reta para si
mesma. O círculo para o que tinha de fazer.
– Aprender para que serve o livro. – Ela se atrapalhou com as palavras. –
Resgatar Nin, se ela ainda estiver viva… – Soluços embargaram sua voz. Sua
visão tinha ficado molhada e turva.
Mas, por mais que ela tentasse sorver essa raiva, a fúria que a sustentara
por todos aqueles meses, sempre que tentava abraçá-la, ela via Palo Kanta.
Via a bala acertá-lo.
Via o sangue escorrer dele.
Via-o morto a seus pés.
Sefia agarrou o livro nos braços e chorou, odiando-se por essa fraqueza.
– Acho que não consigo fazer isso – sussurrou ela.
Arqueiro entrou na rede e a tomou nos braços. Ela sentiu a pressão do seu
corpo nos ombros, a superfície de seu rosto sobre a cabeça, suas mãos
segurando as dela. O tipo de contato que ela não tinha havia anos,
envolvendo-a repetidas vezes como uma atadura, até que todas as coisas
quebradas em seu interior ficaram bem presas no lugar, seguras nos braços de
Arqueiro.
MARGENS
A Capitã Cat
e sua tripulação canibal
Depois que o Corrente da Fé pescou o capitão Reed
para fora do redemoinho, e ele anunciou a intenção
de navegar para a Borda Oeste do mundo, houve
alguma consternação entre a tripulação.
Ele tinha enlouquecido, diziam.
Algo havia acontecido com ele, lá embaixo nas
águas selvagens.
Aquilo estava indo longe demais.
Alguns foram embora, mas em sua maioria, eles
ficaram. Talvez tivessem se acostumado tanto a
ouvir histórias exageradas de suas próprias
aventuras que realmente acreditassem que iam
sobreviver quando todos os outros haviam falhado.
Talvez achassem que Reed e o imediato não iam
deixar o Corrente desaparecer no mar como os
demais. Talvez soubessem que aquele era o único
navio em Kelanna com sequer um fiapo de esperança
de conseguir aquilo.
Quaisquer que fossem suas razões, eles pegaram
seus ganhos consideráveis, carregaram provisões
nas Ilhas Paraíso perto da costa de Oxscini, e
tomaram o rumo do oeste azul infinito. A viagem
foi tranquila até a oitava semana, quando,
à beira de águas não mapeadas, eles depararam com
um escaler cheio de ossos humanos.
Pelves, escápulas, costelas.
Entre os esqueletos, dois sobreviventes olhavam
para o casco curvo do Corrente com olhos fundos.
Seus lábios afastados exibiam os dentes, revelando
línguas inchadas.
— Não está certo — disse Camey, um dos
marinheiros
no quarto de estibordo de Meeks. Ele era novo, um
dos homens que eles tinham apanhado nas Ilhas
Paraíso, e um pouco encrenqueiro, mas ninguém o
contradisse quando ele tornou
a dizer, mais alto: — Só não está certo.
Enquanto a tripulação se remexia
desconfortavelmente nas amuradas, o capitão Reed
esperava, contando os segundos, avaliando suas
opções. Resgatá-los ou deixá-los morrer? Era
assim, às vezes, no oceano.
Claro que ele os levou a bordo. Ele era o
capitão Reed. Desceu pessoalmente.
Um dos sobreviventes desmaiou assim que Reed
aterrissou no escaler, mas a outra recuou,
esforçando-se para se equilibrar nas pilhas de
ossos. Ela usava um casaco de veludo elegante e
chapéu de feltro, porém suas roupas estavam em
farrapos, e tufos de seu cabelo ruivo comprido
tinham começado a cair. Ela se agarrava a um
fêmur quebrado e o sugava com avidez.
Reed sentou ao lado do mastro e desatarraxou a
tampa de seu cantil. A mulher olhou para ele
curiosa, como se tivesse se esquecido para que
servia aquilo.
— Quem é você? — perguntou ele. — O que
aconteceu com seu navio?
Um lampejo de compreensão passou pelo rosto
dela. Sua boca trabalhou, a língua se soltou dos
dentes.
— Catarina Stills — disse com voz rouca. —
Capitã do Sete Sinos.
Você ouviu falar do Sete Sinos, é claro. Ele era
conhecido por explorar o sul profundo,
aventurando-se cada vez mais longe, além de Roku,
para o interior do Gelo Eterno. A capitã Cat
herdara o navio do pai, Hendrick Still, o
Explorador do Sul, que morrera de pneumonia em
sua última viagem.
O que ninguém sabia era que, desde a morte do
pai, a capitã Cat estivera explorando o oeste,
navegando cada vez mais perto da Borda do Mundo.
— Eu sou o capitão Reed. Você está a salvo agora.
Ela deixou o osso cair das mãos. Reed foi até ela,
ergueu seu corpo malcheiroso e emaciado e levou o
cantil aos seus lábios, deixando a água cair em sua
boca gota a gota, molhando as rachaduras. De
olhos arregalados como um bebê recém-nascido,
Cat olhou fixamente para ele, surpresa, sem
acreditar, enquanto ele sinalizava para a
tripulação, que começou a içar os sobreviventes
para o convés do Corrente.
Os sobreviventes permaneceram na enfermaria
com a doutora pelo resto do dia, mas a tripulação
não conseguia parar de falar sobre eles. Não
paravam de lançar olhares na direção da escotilha
principal, embaixo da qual ficava a enfermaria,
embora nunca olhassem diretamente para ela.
Marinheiros são fortemente supersticiosos e,
enquanto
cumpriam suas tarefas diárias, tomavam o cuidado
de evitá-la, como se fossem pegar canibalismo ou
azar, caso se aproximassem demais.
Contra os conselhos da doutora, a capitã Cat
insistiu em jantar na cabine grande naquela noite,
embora seu homem Harye ainda estivesse acamado
na enfermaria.
— Delirante — disse a doutora enquanto limpava
os óculos. — Eu o peguei recolhendo ossos, sabia?
Aly e eu achamos que tínhamos pegado todos eles,
mas encontrei mais alguns enfiados nas mangas de
sua camisa. Acho que ele nem sabe que foi
resgatado. Em sua cabeça, ainda está naquele barco.
— Ela passou os dedos morenos pelo cabelo raspado
e deu um suspiro. — Ficarei surpresa se ele
sobreviver mais um dia.
O capitão Reed pediu a Meeks que se juntasse a
eles na cabine grande. O contramestre era um
exímio contador de histórias: podia absorver uma
história e contá-la mais tarde, palavra por palavra,
e ficava sempre feliz em fazer isso. Ele se sentou em
frente à capitã Cat, brincando distraído com as
pontas de seus dreadlocks enquanto guardava a
história da capitã na memória.
Cat tinha sido limpa, suas feridas lavadas e
enfaixadas, mas estava magra como um varapau, e
suas mãos tremiam quando ela pegou os talheres.
— Acreditem ou não — começou ela —, mas foi
assim que aconteceu…
O imediato se inclinou para perto, examinando-
a com cuidado, à procura de falsidades da mesma
maneira com que examinava o Corrente atrás de
vazamentos.
Mas ela não mentiu. Às vezes, a verdade é mais
pavorosa do que a ficção.
O Sete Sinos estava no mar havia cento e vinte e
dois dias à procura da Borda Oeste do mundo
quando uma grande rachadura surgiu no céu
negro, afogando as estrelas e os mares escuros com
cascatas de luz.
— Raios? — perguntou Reed.
A capitã Cat sacudiu a cabeça.
— Foi como se o céu tivesse se rasgado ao meio,
revelando um mundo brilhante do outro lado.
Quando nos aproximamos, o céu inteiro ficou
pálido, e o Sete Sinos foi iluminado, claro como o
dia. Nunca me senti tão pequena. Um grão de
poeira em um oceano infinito. E havia algo tão
bonito naquilo que quase me fez cair de joelhos.
Mas então a luz se apagara, e se apagara com um
estrondo, e liberara sobre eles uma tempestade
como nunca imaginaram em seus pesadelos mais
tenebrosos.
A capitã Cat gritou ordens, mas o barulho
ensurdecera a todos. O vento agitava as águas,
quebrava os mastros. Havia uma rachadura no
Sinos. A água entrava tão rápido que eles mal
conseguiram fugir com metade do que estava no
compartimento de carga… e isso nem era muito,
não depois de viajar tão longe e por tanto tempo.
Os homens estavam espalhados. O vento
arrancara alguns diretamente das vergas. Outros
afundaram com o navio. De uma tripulação de
quarenta e dois, só onze sobreviveram.
A essa altura da história, a capitã Cat ficou em
silêncio por um minuto. Quando tornou a falar,
sua voz estava áspera
e mais frágil que antes.
Ela descreveu a desidratação, a boca seca de sede.
Sob o sol inclemente, seus corpos se encheram de
bolhas, e logo eles estavam tão enfraquecidos que
até sentar era uma agonia.
Devagar, dolorosamente, os membros
remanescentes de sua tripulação começaram a
morrer.
No início tentaram usar os corpos como isca,
picando-os e jogando os pedaços em seu rastro. Mas
foram atacados por um monstro de olhos azul-
leitosos, pele áspera e dentes como lanças se
projetando da mandíbula inferior. Maior que uma
baleia, pior que qualquer tubarão. Em segundos,
ele tinha matado metade da tripulação restante e,
bom, eles não puseram iscas em mais nenhuma linha
depois disso.
A capitã Cat fez outra pausa, arfando. Suor
brilhava em sua testa. As palavras saíam aos
borbotões, mais depressa agora, como se uma
represa em seu interior tivesse se rompido e a
história estivesse correndo ruidosamente através
dela.
Na quinta semana, as provisões terminaram, e foi
decidido que eles iam tirar a sorte. Rasgaram
pedaços de lona e os puseram em um chapéu, e cada
marinheiro tirou um.
O ponto preto significava morte. Se ele
marcasse você, significava que ia morrer.
Quando Farah o tirou, eles a mataram e
devoraram seu coração imediatamente. O resto da
carne estragou em dois dias, e depois disso, eles
tiveram apenas ossos para roer.
Uma semana e meia depois, tiraram a sorte outra
vez, e o ponto negro caiu para Waxley. Ele durou
mais doze dias, até chegar a hora de sortear outra
vez.
E assim foi.
Tinha de ser um deles, para que os outros
pudessem viver.
Você faz coisas para sobreviver que jamais faria em
outra situação, só para viver mais uma semana, mais
um dia.
— Não me arrependo do que fizemos — disse Cat.
— Mas
me arrependo de ter levado minha tripulação até
lá. Eu me arrependo de ter tanto medo do sul,
depois que ele levou meu pai, que não consegui
voltar. Talvez, se eu não estivesse com tanto
medo, eles ainda estivessem vivos. Talvez tivessem
sido os primeiros a cruzar o Gelo Eterno até o que
quer que exista além.
— Não acho que eles culparam você — disse Reed.
— Eles escolheram segui-la.
Pela primeira vez, a capitã Cat olhou para
Meeks, cuja pele escura ficou pálida sob seu olhar.
— O quanto de escolha têm seus homens? —
perguntou ela. — Eles são nossos homens.
Ela estava ficando cada vez mais fraca com o
esforço necessário para continuar falando, mas a
história em seu interior estava borbulhando outra
vez, e não ia deixá-la descansar até que ela
terminasse de contar.
No fim, restaram apenas dois: a capitã Cat e seu
homem Harye. Dois pedaços de lona e um ia matar
você. Qualquer um deles poderia tê-lo tirado, mas
o ponto negro saiu para Harye. Ele estava marcado.
Seu septuagésimo dia desde o naufrágio e ele ia
morrer.
Mas aí surgiu o Corrente da Fé, e pela primeira
vez o ponto negro não significou morte.
— Quarenta de minha tripulação morreram —
disse ela. — Só dois de nós sobrevivemos. Quarenta
homens… quarenta de meus homens… quarenta…
Ela estava se encolhendo de volta para o
interior de seu corpo emaciado, com ombros
curvados e pulsos sem força. Parecia ter esvaziado
enquanto contava a história, como se por um
curto espaço de tempo o conto a tivesse
preenchido e mantido em pé, mas agora que tinha
terminado, ela desabara, e não havia mais força
nela.
Depois de algum tempo, ela disse:
— Estamos em débito com você, capitão, por nos
retornar à civilização.
— O quê? — Meeks piscou, olhando de Reed para
o imediato e de volta outra vez. — Capitão, nós
não… nós vamos voltar?
Reed inspirou demoradamente e tamborilou o
indicador na mesa. Oito vezes. Ele podia sentir
Cat observando-o com seus olhos amarelados.
— Não — suspirou ele. — Nós não vamos voltar.
Capítulo 15
Histórias e pedras
S efia bateu com o livro com a capa para baixo na terra. As páginas
dobraram. Ela não se importou. Levantou-se, sacou a faca em um
movimento suave e a arremessou na árvore mais próxima, enterrando-a de
ponta no tronco.
Arqueiro ergueu os olhos de onde estava com a água até a cintura, lavando
suas roupas em um poço cercado por pedras chatas.
Ela ignorou sua expressão confusa, andou até a árvore e arrancou a faca da
casca. Girando-a na mão, ela a arremessou de novo.
A lâmina se alojou em outra árvore.
Ignorando a dor em seus pés nus, Sefia caminhou através da vegetação
rasteira. Enquanto arrancava a lâmina da árvore, fechou os olhos e expirou
pelo nariz, invocando a lembrança de olhos cor de água suja e de um rosto
pontilhado, o travo metálico no ar, e uma voz como fumaça.
Ela abriu os olhos, apontou e lançou a faca.
Mas quando a lâmina deixou seus dedos, a lembrança da mulher de preto
foi substituída pelo rosto retorcido de Palo Kanta. Um homem que temia o
oceano. Um garoto que resgatava gatos.
A faca bateu contra a casca e aterrissou de lado sobre a camada de matéria
orgânica no chão.
Praguejando, Sefia foi resgatá-la, mas Arqueiro chegou lá antes dela. Ele
esfregou a terra do aço e pressionou o cabo frio na palma da mão dela.
Ela a pegou, mas não tornou a arremessá-la.
Arqueiro tocou a têmpora com os dedos e ergueu as laterais das mãos
juntas, abrindo-as e fechando-as como as capas de um livro.
Sefia fechou os dedos em torno da faca.
– Porque a capitã Cat foi covarde – disse ela. – E seus homens pagaram
por isso. Ela mesma disse: se não tivesse ficado com tanto medo da coisa que
matou seu pai, nunca os teria posto em perigo. Eles morreram porque ela
estava com medo. Eu podia ter impedido que eles levassem Nin. Estava bem
ali. Mas tinha visto o que eles fizeram com meu pai… e não consegui me
mexer.
Sefia desviou o olhar. Para o chão. Para a cachoeira que escorria no poço.
Para qualquer lugar que não fosse Arqueiro.
– Nem sei se ela ainda está viva. Mas se estiver… eu tenho que os
impedir. Não posso deixar que eles a machuquem mais. Não posso deixar que
machuquem mais ninguém. – Lágrimas brotaram em seus olhos enquanto ela
embainhava a faca.
Arqueiro assentiu com a cabeça e ela o seguiu de volta até a beira do poço,
onde ele pegou o livro, alisou suas páginas amassadas e pôs a pena verde
entre elas para que Sefia não perdesse o ponto em que tinha parado.
Ela se enroscou perto da beira da água e Arqueiro se sentou ao seu lado
enquanto secava ao sol. Ele tinha ganhado algum peso nas semanas
anteriores, mas suas costas estavam pontilhadas de cicatrizes. Levaria anos
para algumas delas desaparecerem – e outras não sumiriam nunca.
Os homens de Machada tinham deixado o lago três manhãs antes, e ela e
Arqueiro continuaram a segui-los rumo ao norte. Eles estavam
provavelmente se dirigindo à cidade portuária de Epidram, situada no
nordeste de Oxscini.
Desde aquela noite com Palo Kanta, ela estivera praticando sua visão.
Podia senti-la o tempo todo agora, tremeluzindo sob a superfície das coisas.
Se focalizasse certo e piscasse, ela surgia a sua frente. Mas toda vez que
entrava naquele mundo de luz, ela era oprimida por imagens, lembranças,
histórias, e se debatia através dos infinitos fragmentos de tempo, lutando
contra dor de cabeça, vertigem e náusea.
Era como se afogar. Às vezes, ela se perdia na inundação de imagens e
sons e momentos infinitos no tempo e não tinha certeza se conseguiria
encontrar o caminho de volta para o próprio corpo outra vez.
Olhou para Arqueiro. Ela tinha sido capaz de ver a vida inteira de Palo
Kanta em um borrão rápido. Talvez conseguisse descobrir quem Arqueiro era
realmente. A história dele devia estar escondida em seu interior, enjaulada
por seu silêncio, embora suas marcas estivessem por todo o seu corpo: as
cicatrizes em seu pescoço, em suas costas e braços.
Ela estreitou os olhos e sentiu a visão se elevar a sua volta.
Quinze queimaduras, alinhadas como cordilheiras em seu braço direito.
Quinze marcas.
Ela piscou, e o mundo dourado se descortinou a sua volta.
Quinze confrontos.
Fios de luz ondulavam em torno do braço dele. Eles se acumulavam e
giravam, brilhando com partículas diminutas de luz. Ela lutou para controlar
sua visão enquanto as imagens passavam correndo por ela em um turbilhão
de história.
Então ela viu as lutas.
Elas aconteceram em toda Oxscini: em círculos de terra batida limpos de
arbustos e pedregulhos, delineados por tochas que manchavam de preto a
parte de baixo das folhas; em porões onde o chão cheirava a barro; em jaulas
com barras de ferro através das quais os espectadores atiçavam os lutadores
com varas de madeira afiadas, zombando e gritando.
As lutas eram sempre em um ringue e alguém sempre morria.
Eles apareceram em lampejos, mais rápido do que ela podia acompanhar,
deixando-a tonta e enjoada: garotos com pescoços quebrados; garotos
espetados por lanças; garotos sangrando em dezenas de cortes profundos,
morrendo no chão; garotos com rostos arruinados, irreconhecíveis.
E Arqueiro parado acima de cada um deles. Segurando a lança, o punhal, a
pedra. Arqueiro derrubado no chão por homens duas vezes maiores que ele e
preso no centro do círculo enquanto alguém o queimava com um ferro em
brasa. Aconteceu repetidas vezes. O corpo de Arqueiro atingindo o chão. Um
lado de seu rosto na terra. O fedor de carne queimando. Seu braço direito
colecionando queimaduras como troféus. A dor. Os aplausos. Uma marca
para cada luta que venceu.
Ele havia sido marcado porque tinha sobrevivido.
Sefia tornou a piscar, e a luz se esvaiu, deixando-a arquejante. As lutas
eram um borrão dentro dela, mas havia visto o suficiente para saber o que
tinha acontecido com ele, o que ele tinha feito, por que a história estava
trancada em seu interior como um animal. Sentiu como se estivesse estado
sob a pele dele, e seu sangue fosse o sangue dele – o coração dele, o dela.
Uma proximidade que nunca havia sentido antes e que não merecia.
Era um tipo cruel de roubo, penetrar nas piores lembranças de uma pessoa.
Ela segurou a cabeça dolorida, tentando aliviar o latejamento nas têmporas e
por trás dos olhos. Não faria isso com ele outra vez.
Mas agora entendia, pelo menos em parte. Remexendo no bolso do colete,
ela sacou o porta-moedas e derramou seu conteúdo na palma da mão: alguns
colbies de ouro, uma turmalina bruta e um pedaço de quartzo rutilado do
tamanho de seu polegar.
O cristal era entremeado por fragmentos negros e dourados que pareciam
estrelas cadentes, e quando você o aproximava do olho, o mundo parecia
explodir em fogos de artifício.
Arqueiro olhou com interesse quando ela lhe estendeu o pedaço de cristal
que estava no centro da palma da sua mão.
– Eu quero lhe dar uma coisa.
Ele tocou o quartzo com o indicador.
– Nin me deu isso quando eu era pequena – ela explicou. – Chama-se
pedra da preocupação. E sempre que eu ficava contrariada, lembrando de
todas as coisas ruins que tinham acontecido… a morte de minha mãe, de meu
pai… você a esfrega com o polegar e ela o lembra de que está seguro. De que
não está mais lá.
Quando Arqueiro foi pegar o cristal, seu polegar roçou a palma da mão
dela, deixando uma gota de água entre as linhas de sua mão. Ele levou a
pedra à luz, onde ela brilhou, preta e dourada, e esfregou o polegar nela uma
vez antes de guardá-la no fundo do bolso. Então sorriu para Sefia. Ele tinha
um sorriso grande e bonito, com caninos pontiagudos.
Sefia de repente percebeu a pele dele, as depressões onde a água formava
gotas e o brilho de bronze em seus braços nus. E não sabia o que fazer com as
mãos, por isso abraçou os cotovelos e deu um sorriso estranho para ele. Ela
ainda podia sentir a gota na palma da mão, como uma pequena estrela
cintilante.
Arqueiro fez o sinal do livro, abrindo e movendo as palmas das mãos
como asas.
Ela revirou os olhos.
– Está bem, eu leio. Mas se a capitã Cat continuar a agir como uma
covarde amarelona, vamos pular essa parte.
DE CHÃO.
A capitã Cat
e sua tripulação canibal
(continuação)
Ele viu a revelação atravessá-la como um raio. Não
iam voltar? A capitã Cat olhou para ele
boquiaberta, estupefata.
Antes que ela pudesse reagir, houve um estrondo
nos conveses inferiores.
— Socorro! — Os gritos explodiram pelo navio. —
Socorro!
Reed chegou à porta antes que o resto deles
tivesse sequer deixado seus assentos, saiu da cabine
principal e foi até o convés, onde a tripulação
tinha se reunido em torno da escotilha principal.
— É o capitão — murmuraram, abrindo passagem
para ele. — O capitão está aqui.
Enquanto ele descia até o porão e se aproximava
da enfermaria, uma sensação profunda de medo
surgiu em seu interior. Começou a bater os dedos
juntos — polegar e indicador, polegar e médio,
polegar e anular, polegar e dedo mínimo. Um, dois,
três, quatro…
Inverteu a ordem, começando pelo dedo mínimo.
Isso dava oito. Oito toques. Ele chegou à porta.
A doutora ergueu os olhos de onde estava
ajoelhada, ao lado de um homem grande que
aninhava um corpo inerte e esquelético nos braços.
Ele tinha perdido a maior parte do cabelo, e as
mãos estavam magras e grandes demais nos pulsos.
Harye. Ele mal parecia humano.
A doutora fechou os olhos de Harye com dois
dedos compridos.
O homem segurando o corpo era Cavalo, o
carpinteiro do navio. Ele tinha ombros largos e
braços musculosos, mãos que pareciam martelos, e a
pele coriácea de um homem que havia se queimado
de sol tantas vezes que sua compleição
naturalmente clara e suave tinha ficado áspera e
marrom como couro cru.
— Vim ver como ele estava. — Cavalo apontou a
cabeça na direção de um grande cantil jogado no
chão ao seu lado. Fungando, puxou o lenço
amarelo que usava na testa por cima dos olhos. —
Sabe, talvez animá-lo um pouco. Mas quando
entrei, ele deu uma olhada em mim e atacou. Eu
não sabia o que estava acontecendo. Ele veio para
cima de mim do nada. Estava louco, gritando
alguma coisa… não sei o quê. Eu… eu bati nele, pra
tirá-lo de cima de mim, sabe? Mas ele estava leve
demais. Saiu voando pelo quarto até a parede.
Havia sangue na parede ao lado dele, mas não
muito. Talvez Harye não tivesse muito sangue no
corpo.
— Ele não ia passar desta noite, de qualquer
modo —
disse Reed, apertando o ombro de Cavalo. Nunca
era fácil tirar uma vida. Especialmente para um
homem como Cavalo, o tipo que visitava um
completo estranho só para animá-lo. — Certo,
doutora? Nós o retiramos daquele barco tarde
demais. Ele não ia conseguir.
A doutora confirmou com a cabeça.
Cavalo ergueu a bandana de volta à testa e
esfregou o nariz.
— Mas por que ele faria isso?
Houve um grito — o som de um lamento animal.
A capitã Cat empurrou Reed do caminho e entrou
na enfermaria, onde caiu ao lado do corpo, as mãos
movendo-se inutilmente sobre seus membros
ressequidos.
— Sinto muito, capitã — disse Cavalo. — Não foi
minha intenção.
Quando olhou para o gigante que matara seu
último tripulante, os olhos de Cat se
arregalaram.
— O ponto negro — murmurou ela, apontando
um dedo trêmulo para as mãos dele.
Elas estavam sarapintadas de piche.
A capitã recuou, o rosto contorcido.
— Você foi marcado — disse ela. — Você é o
próximo a morrer.
— O quê?
Do lado de fora, os homens sussurravam entre si.
— Isso não está certo — disse Camey. Ele
esfregou seu nariz adunco e olhou ao redor para
ver se angariava algum apoio da tripulação. —
Estou dizendo a vocês. Isso não está certo.
Greta, uma mulher robusta com uma pele pálida
e um cabelo negro que parecia escorrer de sua
cabeça como cera
de vela, fez um ruído de reprovação com a língua.
Camey cutucou com o ombro o grumete que
embarcara com eles nas Ilhas Paraíso.
— Não está certo, está, Harison?
Jigo, o homem mais velho no Corrente,
empurrou-o por trás, rosnando por baixo de seu
bigode grosso.
— Cale a droga da sua boca.
Camey fez silêncio, mas Greta estalou a língua
mais uma vez.
— Basta — repreendeu o imediato.
Atentamente, Meeks observava todos eles.
— Ladainha! Cavalo é nosso carpinteiro —
explicou Reed para Cat. — As mãos dele estão
sempre assim.
Capitã Cat recuou contra os beliches.
— Ora, não foi culpa de Harye! Ele não sabia.
Vocês não entendem. Não estavam lá conosco… por
todos aqueles dias sem fim… não sabem como foi.
— Não está mais lá fora, Cat — disse Reed.
Infeliz, ela lançou um olhar para ele.
— Sempre vou estar lá fora. E se não quiser estar
lá comigo, tem que voltar.
Tenso, Reed sacudiu a cabeça.
— A minha tripulação saiu para realizar algo.
Sinto muito, mas não vamos voltar até terminar.
Metamorfosearam-se em garras os dedos dela. Os
dentes em presas.
— Ei, você não escutou? — rosnou ela. — Todos
nós vamos morrer lá fora!
Novamente, a tripulação sussurava.
— Todos ouviram o que ela disse?
— Infelizmente, não quero acabar assim.
— Repense, capitã — interrompeu Reed,
silenciando os outros. — Vou lhe dar uma escolha.
Nós vamos até a Borda, com ou sem sua permissão.
Se quiser, pode vir conosco, ficaríamos felizes em
tê-la. Ou então pode voltar para seu escaler e
tentar a sorte no mar. Talvez sobreviva. Há uma
rota de navegação algumas semanas a leste daqui.
Mas eu não vou obrigá-la a ir mais longe do que
quiser.
O queixo dela caiu, a respiração ficou pesada.
— Sabe que eu não vou entrar outra vez naquele
barco — disse ela, a voz entrecortada. — E também
não vou com vocês.
O capitão Reed estudou o rosto magro dela, o
cabelo desgrenhado, o modo como sua pele se
grudava aos ossos. Levou apenas um segundo para
entender o que estava querendo dizer. Ela ainda
estava lá fora, cercada pelos ossos de sua
tripulação, e não importava quão saudável ficasse
nem a distância que pusesse entre si e o mar, sempre
estaria lá fora.
— Capitã, você não pode…
— Eu posso — disse ela. — Vou fazer de qualquer
jeito, se você não me ajudar.
Ela tinha esgotado o que restava de sua vida
contando sua história, e com Harye morto, estava
pronta para se juntar à tripulação. Completar
quarenta e dois. Quarenta e dois mortos. Um
número par.
Reed deixou as mãos caírem ao lado do corpo e
sacou a Senhora da Misericórdia.
À luz mortiça da enfermaria, o revólver parecia
brilhar. Seu longo cano prateado era adornado
com folhas de algodoeiro e cachos de ervilhas, seu
cabo de marfim, encrustado com madrepérola.
Alguns diziam que era o revólver mais bonito que
já tinha sido feito, produzido por uma armeira
liccarina para seu amante, e nunca houve expressão
de desejo ardente e devoção mais perfeita.
Expressões de assombro circularam pela
tripulação. Mas o outro revólver permaneceu no
coldre, só o cabo negro à mostra sob o polegar
irrequieto de Reed.
Quando a capitã Cat se levantou, empinou o
nariz e saiu da enfermaria com o máximo de
dignidade que conseguiu.
A tripulação abriu caminho para ela. Alguns
inclinaram a cabeça quando ela subiu os degraus
até o convés principal. Sob o luar, já parecia um
cadáver, com sombras no fundo dos olhos. Ela subiu
na amurada, recusando assistência quando a
tripulação tentou ajudá-la, e se agarrou ao
cordame, o corpo balançando no ar frio.
— É isso, capitã — disse Reed. — Tem certeza?
— Nunca tive mais certeza de uma coisa na vida —
ela respondeu, agarrando o cabo em suas mãos
ressecadas; estava frágil, mas orgulhosa.
Todo homem e mulher na tripulação observou o
capitão erguer a arma. Ele puxou o cão do
revólver, e o som atingiu o navio como um trovão.
— Últimas palavras? — perguntou.
A capitã Cat olhou fixamente para ele.
Encarando a própria morte, com o ruído do mar às
suas costas e a noite estendida como uma capa, ela
parecia ter ficado mais alta, soberba. Sua voz ecoou
como um sino.
— Talvez eles se lembrem de você, Cannek Reed
— ela disse, olhando para cada membro da
tripulação por vez,
deixando, por fim, seu olhar descansar em Camey,
que coçava o nariz adunco desconfortavelmente. —
Mas quem vai se lembrar da sua tripulação?
Reed puxou o gatilho.
Houve um clarão e um estouro, e então o corpo
da capitã Cat estava despencando do navio, o
cabelo flutuando, braços e pernas espalhados. Ela
caiu ruidosamente na água, e assim Catarina Stills,
filha do Explorador do Sul Hendrick Stills,
última capitã do Sete Sinos, morreu.
Mas suas palavras permaneceram. Meeks já as
estava repetindo para si mesmo, olhando fixamente
para o espaço vazio que a capitã tinha ocupado
apenas alguns instantes antes. Foram palavras das
quais Reed nunca se esqueceu.
Quem vai se lembrar da sua tripulação?
Capítulo 16
Trapaça
Medo e dor
QUE VOCÊ
Capítulo 18
TEM BEM
Capítulo 19
O caixote novo
Q uando Sefia despertou, estava tão escuro que ela não tinha certeza se
tinha sequer aberto os olhos. Ouviu passos, vozes roucas, o rangido de
cordas. O ar quente e encerrado se comprimia ao seu redor como um
cobertor. Ela tossiu, se remexeu e disse, com a voz baixa e rouca:
– Arqueiro?
Algo fresco estava sendo apertado em suas mãos, e seus dedos tocaram de
leve os dele quando ele ergueu o cantil até sua boca. Água escorreu por seus
lábios e desceu por sua garganta. Ela sentou e tornou a falar.
– Onde estamos? Eles nos pegaram?
As mãos dele apertaram as dela. Eles estavam em segurança.
– Obrigada – sussurrou ela.
Enquanto ele se recostava, tirou algo do bolso e começou a revirá-lo entre
os dedos. Ela estendeu o braço e, no escuro, encontrou a pedra da
preocupação repousada na mão dele.
Do lado de fora, ondas murmuravam na respiração lenta da maré. Estavam
perto da água, talvez em um dos atracadouros. Seu esconderijo era pequeno,
com laterais duras de madeira, mal cabia os dois.
– Um caixote! – Seus dedos passaram pelas dobras da roupa dele.
A mão de Arqueiro encontrou as delas, e ele ergueu dois dedos cruzados
no escuro. Eles estavam grudentos – com sangue? –, mas ela sabia o que
significavam.
Ela estava com ele. Estavam juntos. Então ele estava bem.
Sefia se encostou nas paredes do caixote, mas a mão dele permaneceu
sobre as suas. Na escuridão, a pressão dos seus dedos parecia a única coisa
real no mundo, e se ela soltasse, todos os seus pedaços iam se espalhar,
girando loucamente para a escuridão. Eles tinham se tocado antes, mas a
sensação nunca tinha sido aquela.
Ela não tirou as mãos da dele.
– O que tem lá fora?
O ombro de Arqueiro se ergueu e caiu. Ela tomou outro gole de água.
– Desculpe – ela disse, sua voz baixa e vacilante. – Eu devia ter sido mais
cuidadosa. Devia ter percebido… simplesmente não consegui controlar
minha visão… – Ela fez uma pausa. – Machada disse que você deveria
liderar um exército.
Ele não respondeu, mas ela sabia que ainda estava esfregando a pedra da
preocupação. Serakeen já tinha reivindicado várias faixas do oceano. Agora
ele queria terra também. Liccaro, com seus regentes corruptos e sua
população empobrecida, seria presa fácil.
Era por isso que ele necessitava de garotos? Para seu exército? Porém, a
forma com a qual Machada falara sobre Arqueiro na doca deixou transparecer
que ele acreditava que o garoto era especial. Não bucha de canhão, mas um
líder. Um capitão. Um condutor de violência. Arqueiro já havia matado
quinze rapazes, mas Serakeen queria muito mais. Legiões mais.
– Nunca. – Ela apertou com mais força os dedos dele. – Você nunca mais
vai ter de matar para eles.
Ele se inclinou e encostou o rosto no alto da cabeça dela.
Depois de um minuto, Sefia estendeu a mão e sentiu a forma familiar de
sua mochila e do livro em seu interior.
– Nós nem descobrimos aonde eles estavam indo.
Arqueiro deu tapinhas urgentes nas costas de sua mão.
– Eles disseram alguma coisa?
Arqueiro balançou a cabeça afirmativamente e ela começou a tentar
adivinhar. Corabel. Kelebrandt.
– Roku! – ela riu. O menor dos reinos era uma ilha vulcânica fumegante
que cheirava a enxofre e cinza. Embora já tivesse sido um território
oxsciniano e ainda exportasse pedras pretas e pólvora para seu antigo
soberano, era pequeno e isolado demais no sul profundo para ter muita
importância. – Eu sei. Ninguém vai a Roku.
Mesmo assim, ela não demorou para chegar à resposta certa.
– Jahara – sussurrou. – Eles estavam indo para Jahara.
Arqueiro parecia prestes a responder quando ouviram passos ecoando no
exterior, batidas rápidas e leves como as de uma ave. No interior da caixa,
eles congelaram. Apertada contra o ombro dele, Sefia podia sentir a própria
pulsação vibrando em seu pescoço. Os passos ficaram mais altos, então
pararam. Alguém estava perto, separado deles por apenas algumas tábuas.
Houve o ruído de arranhões, como uma escavação, como fogo em madeira
seca. Ele mordiscava e estalava em torno deles, enchendo o caixote de
barulho.
Então uma voz rouca:
– Você, aí!
O ruído cessou, e eles ouviram alguém sair correndo.
– Ei, aquela não era a garota que…?
– Não, velho. Ela era apenas uma coisinha magrela.
As vozes se aproximaram, e alguém deu um tapa na lateral do caixote.
Sefia sentiu um calafrio.
– Depois daquela encrenca no Javali Negro, todo mundo está atrasado. O
capitão queria a gente no mar uma hora atrás.
– Mesmo uma hora atrás não teria sido cedo para o capitão.
Eles riram.
A mão de Arqueiro se apertou em torno das dela.
O caixote balançou. Algo grande e pesado estava sendo batido contra ele.
Cordas. O caixote estava sendo amarrado como um presente. Ela se segurou
contra as paredes. Estivera em barcos antes. Sabia o que viria em seguida.
Sentiu como se o chão tivesse despencado de baixo dela. Seu estômago
quase saiu pela boca. Eles estavam em voo, balançando pelo ar, adernando de
um lado para outro. Ela caiu sobre Arqueiro quando as mochilas acertaram
suas costas. Eles caíram um por cima do outro, uma mistura de cotovelos,
cabeças e alças se agitando.
Então eles foram soltos. Sefia mordeu o lábio para não emitir nenhum som
com o impacto.
Eles estavam cercados por gritos e murmúrios e coisas sendo colocadas no
lugar. Sefia e Arqueiro jaziam imóveis no fundo do caixote, enroscados onde
haviam caído. Os braços dele junto dos dela. A respiração entrecortada dela
em seu cabelo desgrenhado. Em toda a confusão, ele não havia soltado a mão
dela.
Houve um grande baque seco: uma escotilha sendo fechada acima deles,
então eles ficaram sozinhos. As vozes vinham distantes, de algum lugar
acima.
Eles tinham sido carregados para um navio.
Sefia estremeceu. Eles eram clandestinos, e clandestinos eram
dispensáveis. Ela tinha ouvido histórias. Se o barco estivesse em uma viagem
curta, entre reinos ou pela costa, eles poderiam ser escravizados e vendidos
no próximo porto. Se o navio estivesse em uma daquelas longas viagens
marítimas, eles seriam mortos imediatamente, e seus corpos jogados no
oceano aberto, sem cerimônia.
A caixa, que apenas momentos antes parecera quente e segura, agora se
fechava em torno deles como uma prisão.
Arqueiro estava tremendo. Sua respiração estava acelerada demais. Sob a
mão, ela podia senti-lo passar o polegar por cima da pedra da preocupação
repetidas vezes. Ela se enroscou ao seu redor e apertou o rosto contra seu
cabelo, abafando o tremor dele com a pressão do próprio corpo.
– Está tudo bem. – Suas palavras mal se ouviram quando sussurradas no
ouvido dele. – Está tudo bem.
Quanta comida eles tinham?
– Está tudo bem.
Quanta água?
– Está tudo bem.
Quanto tempo eles poderiam durar nas entranhas do navio?
– Está tudo bem.
NA PALMA DE
Capítulo 20
Ela
SUA MÃO.
Capítulo 21
MAS VEJA
Capítulo 22
Os clandestinos
S efia não sabia quanto tempo se passara desde que Arqueiro dormira, mas
a julgar pelo modo como os ruídos do navio tinham gradualmente
diminuído – as vozes, os passos, o desenrolar repentino de velas, como
páginas viradas –, era noite quando ele se mexeu.
Ele acordou tão silenciosamente quanto fazia todas as outras coisas, com
um leve estremecimento da ponta dos dedos. Ela o sentiu se sentar.
– Temos água e comida suficiente para três dias, se formos cuidadosos. –
Ela começou a tatear as arestas da caixa. – Precisamos encontrar uma saída.
Depois de empurrar e forçar um pouco, uma lateral do caixote se
entreabriu. Ar fresco entrou soprando pela abertura, e eles respiraram fundo,
felizes. Mas seu alívio durou apenas um momento, porque quando
empurraram a parede com mais força, ela emperrou e não abriu mais.
Arqueiro golpeou-a com o ombro, empurrou com os pés, as mãos e o
corpo. Sefia rastejou para longe dele. Ele se lançou outra vez contra as
paredes, com punhos, cabeça e pernas. O caixote pareceu se encolher em
torno deles. Eles foram envolvidos pelos cheiros imaginários de sangue e
urina, palha velha e chão imundo.
– Arqueiro, por favor!
Ele a ignorou. Empurrou todo o peso contra o lado da caixa. Ela podia
sentir o pânico dele tão palpável quanto suor.
Então, com um ruído alto, a parede cedeu. Arqueiro se espremeu e saiu no
interior do compartimento de carga no fundo do navio. Ficou ali abaixado por
um longo instante na semiobscuridade, ouvindo. Sefia prendia a respiração.
Mas não havia sinais de que alguém tivesse ouvido – nenhum som dos
vigias, nenhum passo.
Logo Sefia rastejou para fora também e esticou as pernas. O resto do
compartimento de carga estava cheio de caixotes, barris e sacas de aniagem.
Arqueiro examinou a escotilha que levava ao convés inferior acima deles,
mas não havia sinais de movimento.
Perto da parte dianteira do compartimento de carga, Sefia arrombou a
tranca da despensa e encontrou batatas, carne salgada, cenouras, queijos
duros embalados em pano, manteiga, gordura, ovos e, no canto, um lampião
apagado com o globo de vidro rachado.
Ela piscou, e a história do lampião nadou a sua frente; o mar revolto
quando ele quebrara, de onde viera, imagens tão rápidas e confusas que ela
não conseguia se concentrar nelas. Foi tomada por náusea e cambaleou,
batendo a parte de trás das pernas em um caixote próximo.
Por que sua visão funcionava algumas vezes e outras não? Ela sacudiu a
cabeça, piscou e tentou outra vez, mas ainda assim ficou se debatendo no mar
de mãos, rostos, vislumbres de lugares escuros. Sua visão saltou do passado
para o futuro: ela se viu acendendo o lampião, viu as sombras do rosto de
Arqueiro, e então ela estava deslizando pela história até a oficina de um
soprador de vidro, sentindo o calor no rosto, vendo globos de vidro girarem
em hastes de ferro como enormes bolas de caramelo de cristal.
Então ela piscou e voltou ao presente, onde Arqueiro estava parado a sua
frente com um sorriso nos olhos. O estômago de Sefia se revirou, e não
apenas pela náusea. Por quanto tempo ele estivera ali? Como ela devia
parecer? Ela quase riu, e nervosamente cobriu a boca com a mão para se
controlar.
O sorriso de Arqueiro se abriu.
Para se ocupar até que o calor em seu rosto arrefecesse, pegou o lampião e
procurou ao redor até encontrar óleo para acendê-lo. Então ela e Arqueiro
voltaram em silêncio para o caixote.
Durante os dias seguintes, eles comeram primeiro a própria comida, mas
quando seus estoques terminaram, começaram a roubar, sempre pegando um
pouco menos do que precisavam: meio punhado de ervilhas, uma concha de
água, um pedaço pequeno de porco. Estavam constantemente com fome. Seus
estômagos roncavam. Mas não podiam se dar ao luxo de ficar cheios.
Eles aprenderam a diferenciar a noite do dia pela forma como os sons do
navio desapareciam, acompanhando a hora pelas irrupções repentinas de
barulho na troca de guarda, e só saíam depois que o resto do navio tinha ido
dormir – só alguns minutos para se esticar e recolher suprimentos.
Uma vez, estavam catando migalhas de queijo quando passos soaram no
convés. Eles se abaixaram atrás do caixote mais próximo quando a luz de um
lampião inundou o compartimento de carga escuro. Houve o som de ratos
correndo para se esconder nos cantos.
Uma sombra comprida atravessou o compartimento até a despensa. O
grumete destrancou a porta e começou a procurar entre os barris; era uma
silhueta de membros compridos e cachos sobre as madeiras curvas.
– Manteiga – disse ele. – Manteiga, manteiga, manteiga. Nunca vou me
acostumar com isso. A gente devia arranjar uma vaca e fazer a nossa, pelo
ritmo que ele está usando.
O grumete a encontrou embrulhada no canto do porão, pegou um pedaço e
tornou a subir a escada, ainda resmungando baixo.
Eles não roubaram mais nenhuma manteiga depois disso.
As viagens ao compartimento de carga tornaram-se regulares, ocorrendo
algumas horas antes de cada refeição, em visitas inesperadas e ocasionais, e
Sefia e Arqueiro se acostumaram às idas e vindas e resmungos do rapaz.
Eles dormiam durante o dia, apertados um contra o outro. Acordavam
apenas com o som dos passos acima, então ficavam imóveis e mal
respirando, até que os passos desapareciam e eles estavam sozinhos outra
vez.
No tempo que passavam acordados, durante as horas mais escuras e
seguras da noite, Sefia praticava sua visão. Às vezes, funcionava. Às vezes,
ela via antigos pastos delieneanos, montanhas verdes e ondulantes com vacas
malhadas pastando à sombra do pico Kozorai, onde valas e muros de pedra
cobertos de mato serviam como lembranças de um cerco que ocorrera
centenas de anos antes, no calor da rixa de sangue dos Ken-Alissar. Às vezes,
ela via mãos brutas separando cordas e trançando-as outra vez, com o sal no
ar e uma brisa nas velas. Mas cada momento que via lhe provocava dor de
cabeça e enjoo, e ela não conseguia manter a visão por muito tempo.
Outras vezes, quando considerava seguro o bastante, acendia o lampião no
interior de seu pequeno caixote. Arqueiro debruçava-se para perto, a luz
iluminando seu queixo, as maçãs do rosto, os olhos dourados. E ela lia. Sua
voz os cercava de histórias, até que ficavam saturados com o mundo no
interior do livro, inalando-o, ouvindo não os rangidos do próprio navio, mas o
do navio da história, um de casco verde que navegava para a Borda Oeste do
mundo.
BEM O SEU
O Corrente da Fé
e a ilha flutuante
Depois de deixar a capitã Cat e os ossos de sua
tripulação canibal para trás, continuaram a
navegar. Quando encontraram a ilha flutuante
mais de seis meses após a partida das Ilhas Paraíso,
eles já estavam sentindo os efeitos da fome. Nem
Cuca, com todos os seus truques com cascas de
legumes e caldo de osso, conseguia amenizar as
pontadas que sentiam no estômago. Alguns dias, o
capitão Reed sacrificava uma de suas refeições para
Harison, o grumete que ele pegara nas Ilhas
Paraíso, ou Jigo, o homem de guarda mais velho, mas
eles estavam todos ficando com fome.
Por isso, não foi surpresa que, ao avistar a ilha, a
tripulação corresse a se preparar para ir à terra.
Reed estava de pé na proa enquanto eles se
movimentavam ao seu redor, com Jigo e o imediato
ao seu lado.
O imediato ergueu o rosto envelhecido para a
brisa úmida.
— A julgar pelo vento, diria que estamos
seguindo direto para aquela tempestade — disse.
Ao lado dele, Jigo concordou com a cabeça,
esfregando o quadril com mãos velhas e nodosas.
— Essa vai ser mesmo uma fera. Vai durar a noite
inteira.
Depois de uma dura queda do cordame vinte anos
antes, ele dizia conseguir prever a duração de uma
tempestade pela dor em seus ossos. Pelo que se
sabia, nunca tinha errado.
Reed estreitou os olhos e observou as nuvens
enfurecidas de chuva.
— Não gosto de ficar ancorado em uma
tempestade mais do que vocês, mas não vamos
sobreviver se não encontrarmos alguma coisa
naquela ilha.
Jigo resmungou e saiu capengando para se juntar
ao resto da turma do quarto de bombordo.
Os olhos cinzentos e mortos do imediato não
piscavam.
— É hoje?
— Hoje, não. — Reed tirou o chapéu e passou os
dedos pelo cabelo. — Vou deixar Aly com você.
Mande-a se ficar apreensivo. Essa tempestade vai se
abater sobre nós, e é melhor estar todo mundo de
volta a bordo. E nossa carga também.
Agora, eles estavam perto o suficiente da ilha
para ver que ela fervilhava de vida vegetal, com
árvores duas vezes maiores que o navio e uma
vegetação rasteira de arbustos e capim alto.
— Você vai passar perto.
— Ha! — Reed enfiou o chapéu de volta na cabeça
e sorriu. — Já passei mais perto que isso.
A ilha estava se movendo rápido, mas o Corrente
era páreo para ela. Eles se aproximaram da costa,
passando por praias sarapintadas e capinzais. Veados
de chifres pequenos saltavam entre os arbustos, e
aves parecidas com pedras preciosas adejavam pelo
ar escuro. O vento beijava o rosto deles e girava em
torno de seus braços. Então, de repente, por todo
o navio os marinheiros soltaram gritos de alegria,
e seu riso encheu
as velas.
A ilha nada tinha de ilha. Era uma tartaruga
marinha gigante com um casco largo que se erguia
trezentos metros para fora da água, suas
nadadeiras enormes agitando as ondas em grandes
movimentos de baixo para cima, como lentas
batidas de asas. Sua cabeça maciça erguia-se acima
das ondas sobre um pescoço longo e branco que
dava lugar a delicadas escamas marrons, olhos
antigos com pálpebras, e um bico afiado que podia
cortar um homem ao meio.
Cavalo ajustou a bandana.
— Agora, isso é especial…
Ao lado dele, Harison murmurou com a mesma
voz
assombrada:
— É mesmo.
Após um aceno de cabeça do capitão, Airoso, o
timoneiro, virou o Corrente na direção da
tartaruga. Ele estava gargalhando como um louco.
Nenhum deles jamais vira Airoso tão excitado com
nada — cabeça jogada para trás, molares expostos. E
toda a tripulação estava agarrada às amuradas,
assoviando e dando vivas.
O capitão Reed subiu no gurupés e ficou ali,
equilibrado sobre o mar ruidoso, simplesmente
berrando de alegria.
E, por um momento, eles se esqueceram da fome.
Porque experiências como aquela eram melhores
do que qualquer provisão que tivessem pensado em
preparar.
Conforme se aproximavam o suficiente para usar
seus ganchos de abordagem, o capitão montou na
amurada. Por toda a volta havia o som do mar, o
murmúrio de ondas na costa, a cacofonia de água
caindo das enormes nadadeiras da tartaruga
enquanto elas mergulhavam e se erguiam do mar.
Abordar uma criatura antiga como aquela! Mais
velha
do que todas as histórias que jamais tinham
ouvido. Mais velha, talvez, que todas as palavras
no mundo.
Era mesmo incrível, sem dúvida.
Assim que chegaram em terra, o capitão os
despachou.
— Peguem o que precisarem, mas não peguem tudo
— disse. — Este lugar é bonito demais pra ser
arruinado por gente como nós.
Em duplas, eles se espalharam pela ilha em busca
de provisões. A vegetação rasteira era cheia de
tubérculos, cebolas selvagens e alface picante; as
árvores pendiam com frutas verdes e amarelas.
Roedores grandes fuçavam entre as raízes
e comiam satisfeitos as nozes caídas.
Na vegetação rasteira, Harison se abaixou até o
chão e pegou uma pena de cauda verde com um
cacheado curioso na extremidade. Girou-a entre
os dedos por um instante, depois a enfiou na casa de
botão mais alta de sua camisa.
— Minha mãe coleciona penas desde criança — ele
explicou. — Ela tem pelo menos umas cem, mas pode
contar a história de como conseguiu cada uma.
Prometi pra ela que levaria penas de todos os
lugares que visitasse.
O capitão lhe deu um tapinha nas costas.
— Vou ficar de olho.
Enquanto continuavam cavando à procura de
raízes, Camey e Greta caminharam em sua direção.
Camey tinha um javali pendurado sobre os ombros,
e Greta carregava três aves mortas no punho que
lembrava uma marreta.
Harison fez uma careta quando eles se
aproximaram.
O capitão riu.
Nem Camey nem Greta tinham se tornado
populares com o resto da tripulação. Eles eram
reservados na maior parte do tempo, e faziam
apenas o que lhes era pedido, mais nada. Mas eram
parte de sua tripulação, e Reed os tratava bem.
— Só acho que o trabalho seria mais fácil se a
gente pudesse expulsá-los com fogo — disse Camey,
dando um tapa no traseiro do javali. Ele era um
bom atirador; o animal tinha sido baleado
exatamente entre os olhos. — A gente sempre fazia
isso em casa. Certo, Greta?
— Aqueles malditos saíam de seus esconderijos
bem rápido — sorriu Greta, os dentes amarelados
devido a anos de fumo. Ela passou a mão livre pelo
cabelo negro e gorduroso, e fragmentos de caspa
caíram sobre seus ombros largos. — Era como atirar
em garrafas em cima de uma cerca.
— Lamento, mas isso não é como em casa — disse
Reed. — A ilha é uma coisa viva, e coisas vivas se
protegem. Se começarem um fogo aqui, a ilha
afunda, e vocês só vão conseguir uma morte na
água.
— Vencidos pelo mar ou pela espada, né, capitão?
É isso o que nós, foras da lei, podemos esperar.
Ela estalou a língua melancolicamente e,
percebendo a caspa na camisa, começou a tirar os
flocos maiores com o polegar.
— Ora, só um tolo corre na direção da morte —
murmurou Reed, mais para si mesmo do que para
Greta. — Mesmo se corrermos dela, acabamos
perdendo a corrida no final.
— Gracejador, eu não sou um idiota — resmungou
Camey. Segurando outra vez as patas do javali, ele
continuou descendo na direção da praia,
murmurando: — Não é certo tratar a gente assim.
As aves mortas balançavam na mão de Greta, que
estalou a língua como que dizendo: “O que você
pode fazer?”.
Reed, olhando-os se afastar, perguntou ao
grumete:
— Ora essa, há quanto tempo eles estão assim?
Timidamente, Harison deu de ombros e passou a
mão suja pelos cachos escuros.
— Olha, capitão, desde que me lembro.
— Eles vão criar problemas se não chegarmos
logo à Borda.
Depois de duas horas, a chuva começou. A
tripulação correu sem parar entre as árvores e o
navio, trazendo carne e ovos, repolhos selvagens e
barris de água fresca. Gotas grandes bombardeavam
a grama e a superfície do mar. A caça desapareceu,
abrigando-se da chuva, e os homens começaram a
coletar qualquer coisa que pudessem: frutinhas
vermelhas como gotas de sangue, nozes de casca
dura, aves que não voavam, com asas brancas e
cinzentas.
Trovões ribombavam. Raios reluziam em bolsões
do céu.
O capitão Reed começou a tocar cada caixote e
barril de água antes que fosse carregado. Mesmo
com o ruído da tempestade, eles podiam ouvi-lo
contando: seis, sete, oito…
Harrison e Jigo saíram em busca de mais
tubérculos
na mata.
A chuva caiu com mais força. Um raio riscou o
céu como um tridente, e por um instante toda a
ilha se iluminou com uma luz forte e ofuscante.
Gotas de chuva brilhavam no céu negro.
As nadadeiras da tartaruga pareciam pedras
gigantes em movimento, avançando pela água.
Veados mortos aguardavam para serem
carregados — com a pele encharcada e as patas
imóveis.
Trovão. Um brilho laranja e uma trilha de
fumaça na floresta.
O raio tinha ateado fogo às árvores.
Reed deu ordem de embarcar o restante da
carga, então subiu o morro correndo e entrou na
mata à procura do resto da tripulação.
Jules e Goro.
Theo e Senta.
Dupla a dupla, ele os mandou de volta para o
navio, até que os únicos membros da tripulação
ainda não localizados eram Harison e Jigo.
A chuva despencava como balas, mas não aplacou
as chamas. Folhas caíam a sua volta como mariposas
quentes e adejantes, enquanto galhos murchavam,
transformando-se
em brasas e cinzas.
— Jigo! — Fumaça queimava a garganta do capitão
enquanto ele corria em meio aos arbustos
emaranhados. — Harison!
Árvores estavam em chamas por toda a sua volta.
Ele não conseguia mais ouvir a água — nem a chuva
nem a batida das nadadeiras pelo mar —, só o
crepitar das chamas enquanto engoliam as árvores
antigas e os brotos tenros.
Ele quase tropeçou em Jigo no caos. O velho
estava no chão tentando fazer uma tala na perna
com um galho molhado. À luz do fogo, ele apertou
os olhos para o capitão. Eles estavam vermelhos
devido à fumaça.
— Caí — resmungou. — Esse maldito quadril.
Com dedos rápidos, o capitão amarrou a tala.
— Onde está Harison?
O velho apontou para o alto do morro com um
dedo nodoso.
— Disse que não podia deixar que todos
morressem.
Reed praguejou.
— Vá para casa. Vou encontrar o garoto.
Enquanto Jigo mancava na direção da praia,
Reed penetrou mais fundo no interior das árvores.
O ar tremeluzia. Chamas saltavam de uma árvore
para outra, acendendo as coroas de folhas. Galhos
se partiam e caíam, levantando nuvens de fagulhas.
— Harison!
— Capitão!
O garoto estava parado no centro de uma
clareira, com seus cachos escuros sujos de cinzas.
Nos braços, levava o chapéu como se estivesse
carregando algo precioso em seu interior. Havia
um saco de aniagem vazio jogado sobre ele.
O capitão Reed segurou a mão de Harison,
ignorando o grito de alarme do garoto com o
movimento súbito, e o puxou para fora da clareira.
O fogo lambia suas mãos e antebraços. Eles saíram
correndo das árvores em meio a explosões de
fumaça e fagulhas. Quando emergiram da mata em
campo aberto, raios riscavam as nuvens.
Juntos, Reed e Harison correram aos tropeções
pelo campo. A encosta estava escorregadia com o
capim molhado, e eles tropeçaram e deslizaram, os
pés escorregando. Quando chegaram à praia, toda a
ilha sacolejava de maneira enjoativa embaixo deles.
Mais da metade da carga tinha sido embarcada,
mas as ondas estavam crescendo, e o Corrente
tensionava os cabos que o mantinham ancorado. A
tripulação corria pela praia, carregando os barris
de água e as sacas de legumes e verduras para bordo.
— Eu me lembrei do que o senhor falou — disse
Harison com voz rouca, puxando para trás o pedaço
de aniagem que cobria seu chapéu. Quatro pares de
olhos pequenos e brilhantes reluziram nas sombras,
e houve um adejar suave de penas.
Aves. Harison estava recolhendo filhotes de
aves.
— Eu não podia simplesmente deixá-los, senhor.
A ilha tornou a arquejar. Estavam embarcando a
carga o mais depressa possível, mas não eram rápidos
o bastante. Até Camey e Greta, incomumente
silenciosos, faziam sua parte. Carregando e
movimentando-se. Empacotando e amarrando.
Os sacolejos da ilha pioravam à medida que o fogo
se aproximava.
De repente, ouviram o imediato gritar acima da
tempestade:
— É hora de soltá-lo!
Não se discutia com o imediato quando o
assunto era o Corrente. Eles pegaram o que quer
que conseguissem carregar
e escalaram os cabos de abordagem até o navio.
Reed foi o último homem a embarcar. Enquanto
saltava a amurada, o navio pendeu de lado. O
último cabo de ancoragem se rompeu. Eles foram
arrastados para longe, os ventos empurrando o
navio em uma direção, a tartaruga nadando para
outra, mergulhando de lado nas águas para aplacar
as chamas em seu casco.
O capitão apertou os olhos na chuva. O convés
estava um caos. Alguns membros da tripulação
estavam nos mastros, colhendo as velas, outros
abaixo. Será que todos tinham conseguido
embarcar?
Como se em resposta, o imediato surgiu ao seu
lado. Água corria por seus olhos cinzentos e
turvos e, quando falou, sua voz estava oca.
— Jigo não está aqui.
Reed se jogou contra a amurada, procurando por
sinais de seu tripulante nas ondas. A última vez
que vira Jigo, o velho era uma silhueta curvada
mancando para o interior de arbustos em chamas.
Ele devia ter conseguido voltar. Ele devia estar
ali.
Mas não estava.
A ilha já estava desaparecendo na chuva, os
esqueletos de árvores fumegando contra o céu. Na
água, os animais perdidos remavam com suas
patinhas e procuravam por terra, mas, um a um, eles
afundavam.
Jigo estava lá fora em algum lugar. Afogando-se
na água ou abandonado na ilha. Talvez naquele
exato momento ele estivesse observando o
Corrente se afastar, com um nó no estômago e
cheio de medo, sabendo que iria morrer lá sozinho,
sem ninguém para queimá-lo ou se lembrar de seu
nome.
Harison estava chorando. Ele ainda segurava o
chapéu com as quatro pequenas aves no interior.
Reed esfregou os olhos.
— Eu o vi. Eu o mandei de volta para o navio. Eu
o vi.
Um raio atingiu o céu e iluminou o mar
encapelado, mas Jigo não estava ali, e a água nada
revelou.
— Ela me avisou — disse Reed.
Capítulo 23
Assassino no navio
–E u nunca deixaria você para trás. – Sefia pôs a pena verde entre as
páginas e fechou o livro.
Arqueiro tocou a ponta da cicatriz e, sob a luz fraca do lampião, um
sorriso atravessou seu rosto como um sopro de fumaça.
Ainda faltavam algumas horas para o amanhecer, e o ar estava frio e
calmo, cheio dos sonhos de homens adormecidos. Logo, o cozinheiro iria
mandar o grumete até o compartimento de carga buscar uma saca de arroz ou
um pedaço de porco. Sua aproximação significava que era hora de Sefia e
Arqueiro apagarem o lampião, se arrumarem outra vez dentro do caixote e se
obrigarem a dormir até que a noite chegasse. Tinham vivido assim por cinco
dias e estavam determinados a continuar o máximo que pudessem. Nenhum
deles reclamava. Era melhor que a morte ou a escravidão.
Arqueiro puxou a tampa do caixote para o lugar e se acomodou. No espaço
apertado, eles ficaram deitados face a face, com os joelhos se tocando.
Sefia alisou as bordas do livro, passando os dedos pelas folhas que se
projetavam das páginas, até encontrar a lâmina macia da pena que Arqueiro
lhe dera. Uma pena verde como a que Harison pegara para a mãe na ilha
flutuante.
Sua própria mãe não tinha nenhum interesse em colecionar o que quer que
fosse – nem conchas nem botões nem pedras brilhantes. Não, sua mãe amava
coisas vivas. Costumava passar muitas horas no jardim, arrancando ervas
daninhas e semeando, capinando e colhendo, o pescoço formando um arco
elegante como o de uma ave, com o cabelo negro solto sobre o rosto. Ela
cheirava a terra escura, úmida e fértil.
Certa vez, quando Sefia perguntara por que ela amava tanto a jardinagem,
a mãe dera um suspiro e sentara de cócoras. Seus ombros caíram, como se ela
estivesse cansada, embora tivessem se passado poucas horas desde o
amanhecer. Depois de algum tempo, respondeu:
– Há morte suficiente neste mundo. Quero ajudar as coisas a crescer. – Por
um instante, seus olhos castanhos ficaram radiantes em sua tristeza. Então ela
sorriu e esfregou o rosto de Sefia, sujando-a de terra.
Fazia onze anos desde a morte dela, e às vezes Sefia não conseguia se
lembrar de seu rosto, mas se lembrava da textura das linhas das suas mãos,
finas como agulhas, e do cheiro de terra.
Ela esfregou os olhos e alisou a extremidade da pena até ficar com uma
ponta afiada. O livro sempre mexia com ela por dentro, revolvendo suas
lembranças. Ele as trazia de volta. Tornava-as reais.
Enquanto a mente divagava, ela começou a tremer. Estava com frio; a
pele, grudenta. Sua respiração se acelerou. Havia algo errado. Seus dedos
tatearam na escuridão; as pernas se retorceram. Tudo em seu interior estava
gritando: Corra! Corra! Corra!. De repente, ela se sentiu pequena e com
medo.
Porque podia sentir o cheiro maligno de metal quente.
Um cheiro forte e pungente que zunia entre seus dentes. Ela viu imagens
do dia em que Nin foi levada: a mulher de preto, a sombra de uma voz, Nin
encarando-a através das folhas.
Não, disse a si mesma. Eu não estou aí. Estou em um navio. Estou com
Arqueiro. Posso senti-lo ao meu lado. Estou com Arqueiro. Quando as
imagens desapareceram em seu interior, ela abriu os olhos e se sentou.
Arqueiro também estava acordado, sentado ereto, tenso e alerta. Mas ele
não sabia. Não estivera lá. Ela enfiou o livro na mochila, afastou-o do
caminho e saiu para o compartimento de carga. O cheiro estava pior e lhe deu
dor de cabeça. A luz amarela de um lampião tremeluzia nas vigas. Havia uma
pessoa murmurando na escada.
– Se não é manteiga, é bacon. – Era o grumete. – Bacon. Bacon. Bacon.
Ele não conseguia sentir o cheiro? Não conseguia sentir aquela presença?
Alguém ia morrer.
Mas Sefia podia impedir. Tinha de tentar.
Ela sacou a faca e saiu correndo de trás dos caixotes a tempo de ver o
grumete ao pé da escada, segurando um lampião, os olhos se arregalando ao
vê-la, e então a forma negra atrás dele, o brilho de uma lâmina.
– Não! – ela gritou.
O grumete virou – tarde demais. Um grito estrangulado, cortado no fim.
Sangue jorrou no chão.
Ele se dobrou como um pedaço de papel.
Atrás dele, na escada, estava a mulher de preto.
A espada curva.
O rosto cheio de crateras.
Os feios olhos cor de água suja.
Ela.
A mulher sorriu ao reconhecê-la e abriu os braços, chamando Sefia com a
mão esquerda enluvada.
Sefia apertou a faca. Faça isso, disse a si mesma. Por Nin.
Mas, enquanto hesitava, o grumete jazia no chão apertando a lateral do
pescoço, sangue vazando entre seus dedos como água de uma represa
rompida.
Matar ou morrer.
Ele ou ela.
Uma escolha que você não tinha como desfazer.
Sefia caiu de joelhos e puxou o lenço do cabelo, apertando-o contra o
pescoço do garoto. Ele segurou suas mãos e engoliu em seco. Seus olhos
estavam arregalados e assustados.
Arqueiro passou correndo por Sefia, sacando a faca. Quase alcançou a
mulher, mas a espada dela surgiu repentinamente. Ele saltou para trás,
sangrando.
Sefia podia ouvi-los se mover, os impactos rápidos de seus braços e mãos.
Mas as facas não faziam som. O sangue se empoçava no pano, entre seus
dedos.
– Meu nome é Sefia – disse. A boca dele se moveu, mas não saiu nenhum
som. O sangue veio mais rápido. – Shh – ela disse. – Está tudo bem. Estou
aqui com você.
O ritmo da luta mudou. Ela olhou para cima. Entre as pilhas de caixotes e
barris, os movimentos eram tão rápidos que pareciam uma dança, um bailado
acelerado e complicado de esquivas e contragolpes, as lâminas brilhando
como fagulhas entre eles.
Houve um grito vindo de cima, algo ininteligível, uma espécie de berro
animal cheio de raiva e medo, então havia alguém ajoelhado ao lado dela. Ele
cheirava a ervas e gordura de cozinha.
– Aperte com força, garota – disse. O homem arrancou seu avental e o
embolou sob as mãos dela. – Mais forte.
Ela estava apertando com tanta força que temia estrangular o garoto, mas o
sangue estava saindo rápido demais.
– Ele precisa da doutora. Fique com ele.
Então o homem desapareceu. O vermelho era absorvido pelo avental. Ela
apertou com mais força.
– Está tudo bem – disse, olhando no fundo dos olhos vidrados e
amedrontados do garoto. Ela podia ver ondas douradas de luz se acumulando
ao redor dele. Elas escorriam do canto dos olhos sobre o rosto, vazavam
através das dobras do pano em seu pescoço. Ela piscou e começou a
visualizar rapidamente os capítulos da vida dele. As espirais turbulentas de
lembranças a deixaram enjoada, mas não importava. O que importava era que
alguém o conhecesse, o entendesse, estivesse com ele.
Sua infância passou diante de Sefia, sua adolescência nas Ilhas Paraíso
velejando em esquifes e caçando com lança com os amigos, as aves piando
na varanda da mãe, e então…
Ela soube quem ele era.
Por um segundo, ela se perguntou se tinha entrado no livro, se ela e
Arqueiro agora estavam seguindo na direção da Borda do Mundo e de dias
estranhos e famintos.
Ela sacudiu a cabeça.
O grumete estava mais velho do que no livro, mas tinha os mesmos cachos
negros, os mesmos olhos afastados de cachorrinho. Só que aquilo não era o
livro. Aquilo era real. E ele estava morrendo. Então ela viu algo mais
sombrio, mais frio, com luzes vermelhas piscando no fundo. Algo que
assomou da vida dele como a sombra de um prédio caindo sobre você em
uma tarde fria – um prédio em que você não quer entrar, embora saiba que
deve. O garoto estava com medo. E ela estava com medo por ele, com medo
do escuro, do frio e das luzes vermelhas. Ela piscou e saiu arquejante de sua
visão.
O grumete olhava fixamente para ela. Os cantos de seus olhos estavam
molhados.
– Não morra. – Ela aproximou a boca de seu ouvido e desejou que o
sangue parasse de escorrer dele, que voltasse, ficasse em seu interior, onde
era seu lugar. – Não morra, Harison. – Então até o sangue ficou dourado e
brilhante, cheio de pequenos pontinhos de luz, como estrelas, desacelerando,
gotejando como o movimento das constelações pelo céu. Ela observou cada
gota de luz despencar preguiçosamente dele, com uma lentidão dolorosa.
Cada gota de sua vida.
MUNDO E
Capítulo 24
SUA VIDA
Capítulo 25
PARECERÁ
O lugar dos descarnados
E m Kelanna, quando você morre, eles colocam seu corpo em uma balsa
flutuante. Eles o colocam em uma pilha de troncos, carvão e arbustos
secos e o mandam em chamas para o oceano.
Não acendem velas. Não queimam varetas fragrantes de incenso nem
pilhas de papel para mandá-lo embora. Não colocam moedas em seus olhos
para que você possa pagar pelo barqueiro. Não acreditam em um barqueiro.
Em Kelanna, não há vida após a morte para onde ir de barco.
Em Kelanna, quando você morre, é o fim. Eles não acreditam em almas.
Não acreditam em fantasmas. Não acreditam em espíritos tranquilizadores
que caminham ao seu lado depois que seu amigo, sua irmã ou seu pai
morreram. Não acreditam que você recebe mensagens dos mortos. Os mortos
não existem mais.
Em Kelanna, quando você morre, eles não fazem orações por você, pois
não têm um paraíso nem deuses para quem rezar. Não há reencarnação; você
não vai voltar. Sem corpo, você não é mais nada, exceto uma história.
Em Kelanna, quando estão de luto, eles contam histórias – como se as
histórias fossem manter você perto deles. Acreditam que, se as contarem com
muita frequência, por tempo suficiente, você não vai ser esquecido. Esperam
que as histórias o mantenham vivo, mesmo que apenas na memória.
Mas alguns deles, alguns poucos esperançosos e tristes, falam de um mar
morto. No oeste distante, nas águas selvagens além de todas as correntes: o
lugar dos descarnados. Dizem que à noite, quando o céu está mais escuro, as
ondas brilham como rubis. Dizem que são os mil olhos vermelhos dos mortos
– embora haja mais de mil, e eles nem sempre estejam mortos.
isto é um livro
Capítulo 26
Navios na neblina
TOTALMENTE INVISIVEIS
As letras eram tão precisas que deviam ter sido necessários anos de prática
para aperfeiçoar. Então havia outros escritores. Outros leitores.
Sefia sentiu-se fraca. Os arranhões que eles ouviram nas docas – alguém
havia entalhado aquelas palavras na madeira enquanto ela e Arqueiro
estavam no interior.
Ela teve uma sensação repentina de que havia algo errado com o caixote –
ou não, não exatamente errado, mas estranho, de modo que ele aparecia e
sumia de sua visão como se fosse feito de algo mais que madeira e pregos de
ferro. Ela estendeu a mão para se firmar, assegurar a si mesma de que a caixa
ainda estava ali.
Puxou a mão. Era isso que o imediato estava fazendo, passando os dedos
no caixote porque não conseguia vê-lo. O objeto era totalmente invisível para
ele, que conseguia ver tudo no Corrente. Mas como? Eram as palavras que
tinham feito aquilo?
Enquanto ela explicava o que diziam as palavras, o capitão Reed olhou
para o imediato, que franziu ainda mais o cenho, aprofundando as rugas em
seu rosto vincado.
– Mas eu não sabia que palavras podiam fazer isso – ela acrescentou.
Reed abriu um canivete com um movimento.
Sefia ficou tensa e olhou para o imediato, mas seu rosto carrancudo estava
impassível.
O capitão lhe ofereceu a faca, com o cabo virado para ela, e estendeu um
pedaço de madeira.
– Vamos ver se você consegue fazer alguma coisa desaparecer.
Ela hesitou por apenas um instante antes de pegar a faca e começar a
entalhar. Contara tudo a ele na noite anterior, tudo o que sabia sobre o livro e
o símbolo, seus pais e os impressores, Arqueiro e Serakeen, o que significava
ler, e como ela aprendera sozinha a escrever. Então enfiou a ponta da faca na
madeira, raspando e recortando as curvas das letras, até que a madeira pálida
mostrou.
TOTALMENTE INVISIVEL
Fez uma careta para sua própria escrita imperfeita, as letras tortas e
diferentes.
– Então? – perguntou o capitão.
O imediato arrancou o bloco de madeira das mãos de Sefia e passou os
dedos sobre as letras entalhadas apressadamente.
– Não – ele disse.
Reed pegou a faca de volta, soprou as últimas farpas da lâmina, a dobrou e
guardou no bolso outra vez. Tamborilou os dedos no peito, pensativamente, e
parecia prestes a falar quando algo na água chamou sua atenção. Ele se
apertou contra a amurada, o olhar indo de um lado para outro das ondas,
traçando suas formas.
Sefia reconheceu aquela expressão assim que a viu. Ele estava lendo.
Talvez não soubesse ler palavras, mas sabia ler a água. Podia navegar por ela
sem esforço, como se os oceanos estivessem se abrindo em estradas líquidas
e reluzentes para ele. Ninguém conhecia o mar como ele.
– Tem alguma coisa aí fora – ele murmurou.
– O barco de onde veio aquela mulher? – perguntou o imediato.
– Não sei.
Sefia olhou do alto da escada para o convés principal. Se mais pessoas
estivessem vindo atrás do livro, eles precisavam fugir. Arqueiro estava na
enfermaria; o livro, na cabine grande. Ela não partiria sem eles.
– Vela à vista a estibordo! – gritou Meeks do cesto da gávea.
Reed olhou fixamente para a neblina.
– Que tipo de barco?
– Não sei, capitão. Desapareceu antes que eu conseguisse ver.
Atrás deles, o imediato perguntou:
– É hoje?
Sefia olhou para o capitão, que sacudiu a cabeça.
– Hoje, não – ele disse.
Com marias-chiquinhas voando às suas costas, a camareira do navio, Aly,
correu até eles e entregou uma luneta a Reed. Ele a levou ao olho. Por todo o
convés, marinheiros olhavam atentamente para a neblina. Por um momento,
nada se mexeu, exceto a névoa turbulenta.
Sefia se dirigiu para a escada, pronta para correr.
O imediato a pegou pela nuca. Ela lutou brevemente, mas as mãos dele se
apertaram como um torno e ela ficou imóvel.
– Acho que não, garota.
Ela lançou um olhar furioso para ele.
Do alto, Meeks chamou:
– Lá está ela outra vez, capitão!
Um navio surgiu na neblina, pouco mais que uma sombra com ramos de
névoa rodopiando ao redor do casco. Reed passou a luneta para Aly.
– Preciso de seus olhos, garota. Quem está lá fora?
A camareira alta ergueu a luneta. Após um instante, tornou a baixá-la e
sacudiu a cabeça.
– Tem neblina demais para dizer, senhor.
Reed praguejou.
Os dedos rígidos do imediato beliscaram a nuca de Sefia.
– Você disse que podia ver coisas, garota.
Ela tentou escapar, mas ele a segurou. Sefia olhou na direção do navio,
preparando-se contra a dor e a náusea. Então piscou, e torrentes de luz
dourada ondularam a partir do barco nas sombras. Ela viu uniformes, costas
rochosas onde evericanos antigamente lutaram contra evericanos, antes de
serem unidos pelo rei Darion contra seus colonizadores oxscinianos.
Cambaleou para a frente, piscando.
O imediato a ergueu outra vez.
– Qual o problema, garota?
– É de Everica. – Ela fez uma careta ao ser tomada por vertigem. – A
Marinha.
Um músculo se retorceu na mandíbula do imediato.
– Tem certeza?
Ela esfregou as têmporas.
– Tenho certeza.
Ela ouvira que ataques a rotas de navegação estavam ficando cada vez
mais frequentes. Muita gente estava com medo de deixar os próprios reinos.
Mesmo foras da lei como o capitão Reed evitavam as zonas de batalha no
Mar Central.
Meeks soltou outro grito do alto:
– É um navio da Marinha Azul, capitão! Está vindo em nossa direção!
Os olhos de Reed se arregalaram de surpresa.
– Isso foi um truque e tanto, garota.
– É de lá que veio a mulher? – perguntou Sefia.
– A Marinha Azul não produz assassinas assim – murmurou Reed. – Pelo
menos, não costumava fazer isso.
Sefia olhou para o oceano. O navio estava se aproximando, crescendo cada
vez mais na neblina como uma sombra ao anoitecer.
De repente, fogo surgiu. Duas explosões laranja iluminaram a névoa como
fogos de artifício.
– Abaixem-se! – gritou Reed.
Sefia foi jogada no convés. O corpo do imediato aterrissou em cima dela,
protegendo-a do golpe. Os sons de canhões distantes os alcançaram, mas não
houve estilhaços de madeira, nenhum barulho de ferro caindo na água. Ela
saiu de baixo do imediato e o ajudou a se levantar.
O capitão já estava na amurada, observando o oceano.
– Esses tiros não eram para nós.
A névoa recuou e desvelou um segundo navio, seu contorno indistinto,
suas cores esmaecidas. O navio da Marinha evericana alterou seu curso para
enfrentá-lo.
– Consegue ver quem é, Aly?
A camareira levou a luneta ao olho.
– Desculpe, capitão.
Sefia correu até a amurada.
– Foi de lá que veio a mulher de preto?
Reed deu um aceno.
– Talvez.
Ela aprumou os ombros e estreitou os olhos. Os dois navios estavam se
atacando como cavaleiros em uma justa com lanças pontudas, a neblina
flutuando suavemente ao seu redor enquanto se preparavam para a batalha.
Se aquele fosse o navio da assassina, ela podia descobrir de onde ele tinha
vindo. Quem mais estava nele. Sefia piscou e sua Visão se encheu de ouro.
Ela viu canhões. Barris de pólvora. Balas encadeadas. Depois um espelho.
Corredores ecoantes de mármore e uma porta de cofre redonda, de aço
polido. Uma fechadura em formato de estrela, com extremidades pontiagudas
e pássaros em pleno voo gravados ao redor.
Ondas de luz cascatearam por sua Visão, perturbando seu foco. A neblina
estava se fechando sobre os dois navios, cobrindo suas popas e velas. Ela viu
tempestades, chuvas, gotas de água se formando e caindo e se desfazendo ao
atingir a superfície do mar. Ela se debateu na Visão à procura do navio, mas
ele tinha desaparecido. As correntes de ouro passaram sobre ela, empurrando-
a mais fundo nas profundezas da luz e da memória. Faixas de azul. Calor. O
disco branco do sol. A luz girava em espiral ao seu redor, arrastando-a cada
vez mais longe de seu próprio corpo, até que ela pôde sentir as bordas de sua
consciência começando a se desfazer, dissolvendo-se no mar infinito de luz.
E então…
Alguém a agarrou. Ela o sentiu de forma distante. Mãos apertando seus
braços. A dor se espalhou para os cotovelos e subiu até os ombros, desceu
para as mãos e o interior de seu peito. Ela se sentiu ser puxada de volta para o
interior de seu corpo, atravessando os mares de ouro até se encontrar outra
vez.
Sefia piscou, mas não conseguia ver nada além de massas densas de
névoa.
Então começou a tossir, engasgar, e debruçou-se sobre a água com os
braços de Arqueiro ao seu redor, as feridas dele sangrando através dos
curativos enquanto tentava segurá-la.
Sefia estremeceu de raiva e exaustão.
– Não…!
Mas o navio tinha desaparecido. Eles ouviam o trovejar abafado de
canhões, viam chamas na neblina.
Ela desmoronou sobre Arqueiro.
– Eram eles, eu sei que eram!
Farpas de madeira espetaram suas mãos quando ela socou a amurada.
Arqueiro tomou as mãos dela e as pressionou contra a amurada,
prendendo-as, quentes e machucadas, em suas próprias mãos.
Ela se virou e afundou a cabeça em seu peito.
– Desculpe – disse. – Eu tentei.
A doutora estava parada junto da escada, na extremidade do tombadilho.
– Ouvimos os canhões – ela comentou. – Ele não me deu atenção quando
eu disse que você estava em segurança com o capitão e o imediato.
Atrás deles, o imediato murmurou:
– O Crux não pode ter chegado aqui tão cedo. Acham que era o Beleza
Negra?
– Ela não vai arrumar briga com a Marinha Azul quando quer esse tesouro
tanto quanto nós – respondeu Reed, tamborilando os dedos na fivela do cinto.
– Não vou ficar esperando para ver qual deles sai disso vivo. Ponha os
homens nas vergas.
– Esperem! – Sefia escapou das mãos de Arqueiro enquanto o imediato se
dirigia ao convés principal, gritando ordens. – Eles podem saber onde está
minha tia. Ela pode até estar naquele navio!
O capitão sacudiu a cabeça.
– Não vale o risco, garota.
– Eles mataram meu pai! Eles mataram Harison!
– Você acha que eu não sei disso? – ele retrucou bruscamente. – Aquele
garoto era minha responsabilidade. Sou eu quem vai ter de contar à mãe dele
que seu bebê está morto. Não vou fazer o mesmo para mais ninguém de
minha tripulação. Hoje, não.
Ele deu as costas para ela, e Sefia ficou em silêncio enquanto os
marinheiros começavam a subir no cordame. Houve um grande rangido de
cordas e velas, e o Corrente ganhou velocidade. A doutora puxou Arqueiro
de volta para a enfermaria para refazer seus curativos, e Aly se afastou tão
silenciosamente que Sefia nem percebeu que ela tinha sumido. Então Sefia
ficou sozinha com o capitão.
O estrondo distante do fogo de canhões mergulhou em silêncio,
substituído pelo sibilar do navio nas ondas. Eles estavam parados junto da
amurada, Sefia lutando contra a ânsia de despejar o conteúdo de seu
estômago no mar.
– O que aconteceu? – perguntou o capitão.
Ela segurava a cabeça latejante entre as mãos.
– Achei que era minha chance de conseguir as respostas que tenho
procurado.
– Você parecia estar morrendo.
Ela mordeu o lábio.
– Acho que estava.
– E seu garoto a salvou.
– Ele não… – A frase morreu. – É. Ele me salvou.
Os olhos azuis do capitão brilharam na sombra sob seu chapéu.
– Vocês têm sorte.
Sefia delineou o na amurada.
– Eu não diria sorte.
Reed ficou em silêncio enquanto estudava o mar cinza como aço.
– Você disse que estavam indo para Jahara – ele disse por fim.
– Era para onde Machada estava indo. Achei que encontraríamos o
símbolo outra vez lá.
Reed olhou para ela. Uma penetrante investigação azul.
– Você já esteve em Jahara, garota?
Ela sacudiu a cabeça.
– Não, senhor. Tia Nin sempre disse que era perigoso demais.
– Ela estava certa. – Ele examinou as ondas e tamborilou os dedos no
peito. – É melhor você esquecer isso. Machada é uma coisa, mas você não
quer cruzar o caminho de um homem como Serakeen.
O vento fustigou o cabelo dela, aguilhoando seu pescoço e seu rosto
enquanto eles deslizavam sobre a água encapelada com as cristas brancas das
ondas.
– Eu preciso salvar Nin.
– Se ela ainda estiver viva.
– É.
– E depois?
– Detê-los. Para sempre. – Ela olhou para trás, na direção da escotilha
principal e da enfermaria abaixo dela. – Ou ninguém de quem eu goste jamais
estará em segurança.
Reed tamborilou os dedos.
– E se você falhar?
Sefia se voltou para o caixote e enfiou as unhas nas letras, arrancando
lascas e as jogando no mar.
– Eu já falhei – ela disse.
Ele traçou o círculo vazio em seu pulso. Havia um redemoinho em seu
cotovelo, seguido por um esqueleto comendo seus próprios ossos e árvores
no casco de uma tartaruga: todas as histórias sobre como eles chegaram à
Borda Oeste do mundo, mas nenhuma história sobre a própria Borda.
– Às vezes você consegue o que quer – ele murmurou. – E, às vezes, você
deseja não ter conseguido.
– Talvez. – Enquanto dizia a palavra, ela se espetou em uma farpa de
madeira. Uma gota de sangue formou-se na ponta de seu dedo, e ela a sugou
e cuspiu no oceano. – Mas preciso tentar.
REDUZIDA
Capítulo 27
A CIDADES
Harison salva o mastro principal
–É ocastanhos
mesmo com as histórias e as pessoas – disse Meeks, seus olhos
brilhando à luz minguante do pôr do sol. – Elas ficam
melhores à medida que envelhecem. Mas nem toda história é lembrada, e
nem todas as pessoas envelhecem:
“Fazia trinta e dois dias que tínhamos deixado a ilha da tartaruga, e a noite
estava imóvel como a morte. Lembro-me de que as estrelas tinham um brilho
especial, como flocos de neve sobre uma mesa preta. Você podia ver a droga
do céu inteiro refletido na água, e nós também, todas as nossas velas e as
luzes do quarto, como se estivéssemos em dois lugares ao mesmo tempo: a
bordo do Corrente singrando o mar, e abaixo da superfície, de cabeça para
baixo e famintos por ar.
“Sentimos a brisa primeiro, e corremos para recolher as velas, mas fomos
lentos demais. O vento estava soprando forte do nordeste, e as ondas
quebravam contra a proa, batendo no casco como mãos de gigantes se
erguendo do mar.
“Daí o céu se abriu, todo serrilhado nas bordas, e a luz simplesmente
penetrou por ele, clara como o amanhecer. Que alvoroço! Estávamos
pendurados no cordame, e os ventos nos agitavam como folhas. Não havia
tempo para olhar para aquele buraco no céu como a
capitã Cat e sua tripulação canibal, ou todas as nossas velas iam ser rasgadas
em farrapos e os mastros se quebrariam em dois.
“Então veio a trovoada, e o mundo ficou escuro. O som expulsou todo o
barulho de nossos ouvidos, e ficamos trabalhando em silêncio absoluto – não
conseguíamos ouvir o vento, não conseguíamos ouvir nem o capitão, nem
Jules nem Theo chamando, não conseguíamos ouvir nada.
“O navio estava mergulhando nas depressões entre as ondas, uma depois
da outra, as velas se abrindo e rasgando ao vento. A vela
de estai foi feita em pedaços; a vela de mezena principal rasgou de um lado a
outro. Estávamos todos correndo na direção do gurupés ou subindo o mastro
principal, o vento nos fustigando, rugindo, embora não pudéssemos ouvi-lo.
Eu tinha certeza de que a droga do navio ia ser chacoalhado e arrebentado, e
que cairíamos nas ondas como isca de peixe.
“Daí a vela principal, do mastro real, se soltou de suas gaxetas, sacudindo
e fazendo o mastro tremer como um pé de feijão.
“O capitão estava gritando ordens. Eu podia ver sua boca aberta e seus
olhos alucinados. O mastro principal ia se partir se alguém não recolhesse
aquela vela real ou a cortasse.
“Em algum lugar no meio de todo esse caos, Harison era o único que sabia
o que fazer. Ele subiu correndo e começou a juntar a vela com seus braços
compridos. Às vezes, o vento ficava tão ruim que ele quase era derrubado do
mastro, mas seguiu em frente. Através do balanço das águas e do silêncio
impossível da noite. Por conta própria, ele baixou a verga. Salvou o mastro
principal, salvou o navio, tudo sozinho.
“Foram gestos ousados assim que nos permitiram sobreviver àquela noite,
até que os ventos perderam a força e as águas se acalmaram. Tínhamos
trabalho para as semanas seguintes: consertar todos os estragos provocados
por aqueles ventos. Mas, graças a Harison, tínhamos mais algumas semanas
para fazer isso.
“Aquele garoto conquistou mesmo seu lugar entre nós naquela noite.”
Capítulo 28
Isto é escrito
O imediato a fez praticar por horas: mergulhar na Visão e girar para fora
dela, estudar o cabrestante, os canhões de proa, o anel de âmbar que ele
usava no dedo mínimo da mão direita. Ela precisava de uma marca. Uma
depressão, rachadura ou arranhão. Algo em que focalizar sua Visão para não
ser levada. Quando os quatro sinos tocaram, Sefia estava exausta, mas podia
brandir a Visão com a precisão de uma faca de trinchar. Se quisesse, podia
ver a história dos canhões de dezesseis libras nas canhoneiras, do navio, até
do céu, do mar, do próprio ar que se agitava a sua volta.
– Ainda não, garota – resmungou o imediato. – Ainda falta muito.
Ela riu.
– Vá embora. Vá perturbar outra pessoa. – Ele a dispensou com um gesto
rápido, e ela recolheu o livro e seguiu para o convés principal.
Tropeçando de leve no último degrau, Sefia acenou para Airoso. Um
homem magro de cinquenta anos, o timoneiro nunca deixava o convés. Não
importava o clima, ele estava lá em cima com peles e capas impermeáveis,
abandonando seu posto apenas por algumas horas toda noite para dormir em
um pequeno compartimento no tombadilho, a poucos metros do timão. Ele
nunca fizera mais que grunhir ao ser saudado por ela, e ninguém da
tripulação gostava muito de sua companhia, mas ele sabia conduzir um navio
melhor que qualquer um em Kelanna.
No convés principal, ela se jogou em meio às cordas sobressalentes e
baldes de alcatrão que Cavalo e Arqueiro tinham deixado para trás.
Apertando o livro aquecido pelo sol junto ao peito, ela se encostou na
amurada.
Arqueiro estava no mastro principal, e o sol brilhava através dos fios
eriçados de seu cabelo, deixando-os dourados como feixes de trigo. Ela o
observou por um instante, pintando o cordame de negro, o pincel se movendo
rápido e com firmeza sobre as cordas enquanto as sombras mudavam sobre
seus braços.
Havia muita graça em seus movimentos. Ela se perguntou por que não
havia percebido aquilo antes.
Com um sorriso, abriu o livro.
Seus marcadores de página estavam empilhados entre duas páginas; suas
histórias, perdidas. Ela pegou a pena de Arqueiro, verde e fúcsia iridescente,
e a passou pelo rosto antes de enfiá-la no cabelo.
As letras estalavam com a sensação de possibilidade. O que ela iria ler em
seguida? Que grande aventura iria encarar? Debruçando-se sobre o livro,
começou a ler.
Quando mergulhou na página e submergiu nas palavras, tudo o que viu de
início foi neblina – neblina densa como neve, abafando os sons do mundo
cotidiano. Os ruídos do vento e as ondas pareceram se distanciar ao seu redor.
Ela estremeceu, contente, quando as palavras começaram a formar
imagens na névoa. Estacas de cercas. Sombras indistintas de barris e
carrinhos de mão. Ela imaginou grama molhada de sereno batendo em seus
sapatos e em suas pernas.
A luz do sol pareceu diminuir enquanto ela penetrava cada vez mais no
mundo silencioso do interior do livro. Um arrepio subiu por suas costas
quando uma casa surgiu acima dela. No início, era apenas uma sombra na
neblina, mas quando ela se aproximou, identificou a forma obscura de uma
colina gramada, uma fundação de pedra e paredes brancas. Dos dois lados da
casa, erguia-se uma chaminé do telhado íngreme.
Sefia engasgou em seco. Ela sabia onde estava – onde o livro a levara. E
sabia o que iria encontrar dentro da casa. Sabia o que iria ver e ficou gelada
no momento em que a porta se abriu e ela se deparou com o silêncio frágil no
interior.
Mas parte dela, bem no fundo, uma parte que ela não conseguia subjugar
completamente, queria ver. Queria vê-lo outra vez, embora na verdade não
fosse ele, deitado no chão da cozinha.
Ela continuou a ler. Não conseguia parar. Observou a casa se quebrar em
pequenos pedaços e começar a se desfazer. Observou a menina no livro
entrar, tremendo, os sapatos molhados deixando lama e capim no carpete.
Observou-a passar pela sala de estar e pela sala de jantar – os tapetes
descosturando, a mesa se esfacelando e as pinturas nas paredes virando pó.
Ela chegou à cozinha, e era exatamente como se lembrava: os armários
caiados, lascados nos cantos; a bancada de azulejos; a tábua de corte de
madeira riscada e marcada com a idade. Até os farelos no chão eram os
mesmos, da torta de ovo com legumes que tinham comido na noite anterior.
Ela estava ali.
Ali na página e ali na memória, vendo aquilo duas vezes, vendo tudo outra
vez. Querendo olhar para longe e precisando desesperadamente continuar a
ler, precisando vê-lo de novo. Mas ela sabia que era ele sem precisar olhar de
perto. Ela não conseguia olhar de perto. Soube que era ele pelos chinelos de
pele de carneiro, pela forma da calça, pelo suéter puído grande demais. Soube
sem ter de ver seu rosto, porque não conseguia mais ver seu rosto. Não
havia…
Sefia agarrou um balde de alcatrão ao seu lado no convés. Ela mal
conseguia enxergar. Seus olhos ficaram encobertos de lágrimas. Ela ergueu o
pincel.
…nenhum rosto.
Ela passou as cerdas pela página, eclipsando as palavras.
Os assassinos de seu pai tinham feito mais que matá-lo.
Cada palavra.
Eles o destruíram.
Cada imagem.
Eles tinham arrancado suas unhas, as rótulas, os lóbulos das orelhas, os
olhos e a língua.
Cada lembrança.
As frases ficaram escuras e indecifráveis sob o pincel. O cheiro de fumaça
enchia seu corpo. Ela empurrou o balde para longe e ele se derramou sobre o
convés, negro e grudento. Ela largou o pincel. Gotas de alcatrão salpicavam
sua roupa, suas mãos, seus braços e seu queixo.
Aquilo eram passos? Ela estava retornando à sala de estar, à lareira e à
escada secreta?
Alguém a segurou. Eles a tinham encontrado! Não era assim que tinha
acontecido. Ela se debateu em suas mãos. Não conseguira chegar ao túnel a
tempo. Eles iam levá-la embora. Eles iam matá-la. Já tinham matado seu pai e
agora iam matá-la também. Ela gritou.
– Qual o problema, Sef? – Uma voz como os foles de uma forja. Braços
grandes e mãos como martelos a seguravam por trás. – O que aconteceu?
Outra pessoa se ajoelhou diante dela, segurando suas mãos. Dois dedos
cruzados, fortes como cordas. Ela piscou. O rosto de Arqueiro se
materializou a sua frente. Arqueiro. Sim. Ela estava com Arqueiro, e Cavalo
estava atrás dela, perguntando o que havia de errado. Ela estava no navio.
Estava ao vento. Não houvera vento naquele dia. Com muita delicadeza,
Arqueiro afastou uma mecha de cabelo da testa dela, passou-a por sua
têmpora e a enfiou por trás da orelha. Arqueiro. Ela se agarrou aos braços
dele.
– Eu estou no livro – sussurrou.
Ela olhou para a página desfigurada, com suas marcas negras horrendas, e
as palavras começaram a saltar sobre ela, de olhos vazios e bocas abertas. Ela
foi pega. Estava sendo sugada com elas, para o interior do livro, para dentro
daquela escuridão, daquele cubo frio e sombrio que era o seu quarto no
porão, onde se agachava chorando sobre o chão frio de argila.
Seu pai estava morto. Ele estava morto. Para sempre.
DE PAPEL
Capítulo 29
Hoje um beijo,
E A MARES
Capítulo 30
O livro de tudo
Q uando Sefia acordou, ela se viu em uma cama. Fazia tanto tempo que
não dormia em outro lugar que não no chão, em árvores ou
balançando em uma rede nos porões do navio, que passou um minuto inteiro
sentindo a firmeza do colchão, o espetar do travesseiro de penas. Se
mantivesse os olhos fechados, quase podia enganar a si mesma imaginando
que tinha nove anos outra vez e estava enroscada na cama com seu crocodilo
de pano.
Lágrimas escorreram por seu rosto.
Seu pai.
Ela abriu os olhos, apertando-os contra a luz filtrada pelas vigias.
A sua volta, vidros de remédio, potes de unguento e velas semirremen-
dadas se alinhavam na parede. Maços de ervas secas pendiam do teto,
enchendo o ar com um aroma misto de tanaceto e laranja-da-terra.
– Veja quem está acordada.
Ao som da voz de Reed, Sefia se sentou. Sentia o corpo pesado e frio,
como se tivesse dormido na neve. Ela esfregou o rosto com as costas das
mãos.
– O que aconteceu?
– Você que me conte. – O capitão estava equilibrado em um banco ao pé
do beliche, o braço tatuado jogado sobre o joelho. Ele estendeu uma caneca
de lata na direção dela. – A doutora disse que você devia beber isso quando
acordasse.
Sefia levou a caneca aos lábios. O líquido era acre e cítrico, mas assim que
o engoliu, ela se sentiu menos vazia, menos congelada por dentro.
O capitão se encostou na parede e traçou dois círculos sobre a curva do
joelho, que entravam e saíam um do outro, como cobras.
– Seu garoto está em serviço, mas vai descer aqui aos oito sinos. Ele
praticamente não saiu do seu lado.
Sefia bebeu da caneca de lata que segurava nas mãos entorpecidas.
– Quanto tempo estive dormindo?
– Meio dia. O que quer que tenha visto, abalou muito você.
Ela desviou o olhar, e foi quando percebeu o livro no aparador. Alguém o
havia fechado, confinando todas as eras da história entre duas fivelas de ouro.
Era uma maravilha ele não ter naufragado o navio, levando todo mundo para
o fundo do mar.
– Eu me vi – ela murmurou. – No dia em que meu pai foi
assassinado.
Reed moveu o corpo para a frente, os olhos azuis em chamas.
– Você está no livro?
Sefia confirmou com a cabeça.
– Nós todos estamos no livro. Deve ser por isso que eles o querem tanto,
as pessoas que fizeram isso. Acho que o livro contém tudo o que aconteceu
ou vai acontecer. Toda a história. Todo o conhecimento. Tudo.
As sobrancelhas de Reed subiram além da aba de seu chapéu.
– Achei que você tinha dito que eram só histórias.
– Achei que fossem. – Ela deu outro gole. – Mas agora acho que são um
registro. De tudo o que fizemos e ainda vamos fazer.
– Eu?
– Você. Eu. Todo mundo.
– Eu estou no livro. – Ele piscou algumas vezes e passou a mão pelo rosto,
repetindo: – Eu estou no livro. Você pode me mostrar?
Sefia inclinou-se para a frente, pousou a caneca e puxou o livro até ele cair
em seus braços, uma sensação familiar e estranha ao mesmo tempo. Se ela
usasse sua Visão agora, sabia o que veria: um feixe de luz tão denso que seria
como olhar para o sol, todas as correntes ofuscantes da história girando em
espiral umas sobre as outras.
Esse momento também estava no livro. Por um segundo, ela hesitou, com
medo de que, quando o abrisse, ela estivesse ali, bem ali, olhando para si
mesma enquanto lia. Ela podia imaginar aquilo repetidas vezes, como se
refletido entre dois espelhos, em um corredor sem fim.
Ler sobre si mesma no livro.
Ler sobre si mesma lendo sobre si mesma no livro.
Ler sobre si mesma lendo sobre si mesma lendo sobre si mesma…
Talvez alguém a estivesse lendo naquele exato momento, e se ela erguesse
os olhos, veria seus olhos encarando-a, seguindo cada movimento seu. Talvez
alguém estivesse lendo a leitora.
Ela sentiu um calafrio.
Mas, quando abriu os fechos, nada peculiar aconteceu. Ela folheou as
páginas, à procura do nome de Reed em meio aos parágrafos empoeirados e
às frases desconexas, mas as histórias tinham desaparecido.
– Desculpe. É grande demais. Eu podia passar a vida inteira procurando
sem nunca achar o senhor.
O capitão deu um suspiro e se encostou na cadeira.
– Acho que era bom demais para ser verdade.
– O que você quer dizer com isso?
– Se eu estivesse no livro, permanentemente, sabe, e houvesse um lugar
onde pudesse descansar, onde eu pudesse existir mesmo depois de morto…
talvez não tivesse que fazer tudo isso.
– Tudo o quê, senhor?
– Tudo. – Ele deu de ombros. – A caça ao tesouro em que Dimarion me
meteu. O Tesouro Perdido do Rei.
Pilhas de ouro tão altas que você podia escalá-las como montanhas e
escorregar de volta para baixo, produzindo sons tilintantes e lampejos de luz.
– Então é por isso que você vai para Jahara – ela disse.
Ele deu um sorriso triste.
– Prometeram-me uma boa história.
Sefia fechou o livro. Da capa, o piscou para ela como um olho com
catarata.
– Aprender para que serve o livro – ela murmurou. – Resgatar Nin. – Ela
fez uma pausa, a ponta do dedo na borda do círculo. – Eu tinha as respostas
que procurava o tempo todo.
– Sef…
– Se você soubesse usá-lo, poderia saber o que alguém faria antes mesmo
de eles terem a ideia de fazê-lo. Poderia encontrar a localização de tesouros
ou os segredos de reis. Poderia até saber onde encontrar seus inimigos, e
como matá-los. – Quando ela ergueu o rosto, seus olhos escuros estavam
brilhando de desespero. – Eles estão aqui em algum lugar. Se eu os encontrar,
vou saber quem são. Vou saber onde eles estarão, e então vou poder…
– Sefia?
– O quê?
– Você mesma acabou de dizer que podia passar a vida inteira procurando.
No interior de sua mente, Sefia se viu debruçada sobre o livro, ficando
frágil e míope à medida que os anos se acumulavam e as chamas de sua vida
queimavam até sumir. Ela enfiou as unhas nas páginas, como se elas fossem
gritar sob seus dedos.
– Depois do redemoinho… – O capitão olhou pensativamente para o livro,
embora não se mexesse para pegá-lo. – Depois de descobrir como ia morrer,
eu podia ter parado de navegar – ele disse, ainda traçando aqueles círculos
interconectados no joelho. – Eu sabia o que ia acontecer no mar. Poderia
viver para sempre se ficasse em terra.
– Por que não fez isso?
– Jurar obediência a senhores e senhoras que não davam a menor
importância a mim? Retirar minha sobrevivência de árvores e pedras? Não
era assim que eu queria viver. – O capitão Reed olhou para ela de igual para
igual. – Você tem uma escolha, Sefia. Controle seu futuro ou deixe que ele
controle você.
No alto, o sino do navio começou a badalar. Uma, duas vezes… oito
vezes. Os sons ecoaram no interior do peito gelado de Sefia.
Então Arqueiro apareceu na porta, suor brilhando no rosto, o cabelo e as
roupas úmidos, e ela sorriu – um sorriso de verdade. Ele parecia irradiar
calor.
E não pareceu perceber quando Sefia passou o livro para Reed, os fechos
de ouro reluzentes implorando para serem abertos.
Ela quase o pegou de volta.
Mas Reed o soltou com delicadeza de seus dedos e, conforme ele se
afastava pelo corredor, Sefia sentiu a influência do livro sobre ela ficar cada
vez mais fraca, até que mal conseguia percebê-lo.
Arqueiro se ajoelhou ao lado dela, traçando os contornos de seu rosto com
a ponta dos dedos.
Todo lugar onde ele tocava parecia brilhar com calor, e rachaduras
surgiram no frio desolador de seu coração. Ela tomou a mão dele nas suas e
as levou ao seu rosto, pele contra pele.
– Eu vi meu pai – ela murmurou.
DE TINTA.
“O garoto do mar”
A Guerra Vermelha
VOCÊ SABE
Capítulo 32
Foras da lei
QUEM VOCÊ
Capítulo 33
Jahara
Era tão pequeno que você não iria percebê-lo se não estivesse procurando,
mas Sefia o conhecia tão bem que podia vê-lo mesmo quando fechava os
olhos.
Duas curvas para seus pais. Uma curva para Nin. A linha reta para si
mesma. O círculo pelo que tinha de fazer. Aprender para que servia o livro,
resgatar Nin das pessoas que mataram seu pai. E conseguir sua vingança.
– Vejam – ela disse, apontando.
Arqueiro fez um aceno solene.
– Bom, eu vou… – murmurou Cavalo. Então abraçou os dois junto a seu
peito maciço como um barril. – Se virem Serakeen, se sequer ouvirem um
murmúrio de que ele está por perto, fujam, ouviram?
– Sua voz trovejou contra a bochecha de Sefia. – Corram o mais rápido e para
o mais longe que puderem.
Ela o abraçou mais apertado.
– Eu quero ouvi-la dizer. Diga que não vai se meter com Serakeen.
– Sim, Cavalo.
Depois que o enorme carpinteiro os soltou, dando mais tapinhas nas costas
dos dois, Meeks olhou para eles com ansiedade.
– Está com a varinha que o imediato lhe deu?
Sefia tocou no cinto.
Meeks os abraçou, primeiro Arqueiro, depois Sefia.
– Sei que quer respostas, Sef – ele murmurou em seu ouvido. – Você as
quer como eu quero histórias, e se você for como eu, vai fazer qualquer coisa
para consegui-las.
Ela concordou com a cabeça.
– Use a varinha se precisar. Mesmo que tenha de usá-la esta noite.
Enquanto ele e Cavalo seguiam pelo beco, não paravam de olhar para trás,
para os dois jovens, até que, finalmente, viraram uma esquina e
desapareceram.
Sefia passou os dedos pela varinha que o imediato havia lhe dado.
– Eu acho que é isso.
Arqueiro acenou a cabeça e empurrou a porta, mas ela não abriu.
– Trancada?
Sefia levou a mão ao interior do colete, pegou as gazuas e começou a
trabalhar. Em um minuto, os dentes clicaram e a porta abriu. Havia pouca luz
no interior, mas eles puderam identificar um chão sujo, mesas redondas nas
sombras e fileiras após fileiras de garrafas marrons empoeiradas alinhadas na
parede a sua direita. Não se via o balconista em lugar nenhum.
Eles entraram furtivamente, com medo de uma emboscada, mas o local
estava vazio. Respirando o ar bolorento, Sefia sentiu-se tonta. Ela conhecia
aquele lugar.
– Palo Kanta deveria ter vindo aqui também – ela sussurrou.
Arqueiro olhou bruscamente para ela.
– Aqui. – Ela parou no canto do bar e olhou para a taberna vazia. Em
seguida desceu um passo. – E aqui.
Por toda a volta do salão, ela podia captar vislumbres do homem alto com
um corte no queixo: rindo, a boca aberta, os molares à mostra. Os dedos
acariciando um mai de ouro. Sujeira sob as unhas.
Ela caminhou desviando-se das mesas, sentindo como se estivesse
caminhando pelos passos dele, e parou do outro lado do salão. Pensou ter
ouvido alguns gritos distantes.
– E aqui – murmurou.
Arqueiro se aproximou e parou ao seu lado.
– Ele deveria ter estado aqui… e aqui embaixo. – Ela se ajoelhou, tateando
o chão até que as mãos encontraram uma alça de metal redonda na forma do
.
– Achei que esta taberna estivesse em uma balsa flutuante como as outras
– ela sussurrou.
Com a ajuda de Arqueiro, ela abriu o alçapão, revelando uma estreita
escadaria de pedra iluminada de baixo. Os sons de gritos, que ela pensou ter
apenas imaginado, agora vinham nítidos – empolgados e agitados.
– Palo Kanta deveria ter descido por aqui. – Da mochila, Sefia tirou um
pincel e um pequeno vidro de tinta que Cavalo lhe dera como presente de
despedida. Ela escreveu com cuidado o nome de Palo Kanta no interior da
portinhola, perto da dobradiça. Soprou as palavras para secá-las e sussurrou:
– Você sente muita falta de um homem.
Os olhos de Arqueiro pareciam grandes e brilhantes sob a luz mortiça.
Enquanto colocava a tampa no vidro de tinta e o guardava de volta na
mochila com o pincel, Sefia lembrou-se outra vez do que os homens de
Machada tinham dito: Ele parece um gato. Um daqueles grandes, com os
olhos dourados.
Juntos, eles desceram a escada. Quanto mais avançavam, mais claro e
barulhento ficava, e a cada passo Sefia sentia Arqueiro mais tenso às suas
costas, até que ele pareceu duro e quebradiço como vidro.
– Qual o problema? – Ela estendeu a mão, mas não o tocou, com medo de
que ele quebrasse sob seus dedos.
Ele apenas sacudiu a cabeça.
Quando chegaram ao final da escada, se viram em um aposento baixo de
pedra com um grupo grande, barulhento e fedorento de pessoas amontoadas
no centro. Elas estavam gritando – números, apostas, probabilidades – e
gargalhando furiosamente. As paredes de pedra estavam molhadas com
condensação, e o ar quente e úmido cheirava a suor, ferro e bebida.
A respiração de Arqueiro se acelerou. Ele tornou a sacudir a cabeça,
agarrando o cabo da espada tão apertado que os nós dos dedos ficaram
brancos. De algum lugar no centro do salão veio um som alto: Bang! Bang!
Bang! Metal sobre madeira. Arqueiro se encolheu.
– Oh, não… – O coração de Sefia se afundou em seu peito. – É um ringue
de lutas.
É DE VERDADE,
Capítulo 34
A Jaula
OU VOCÊ
Capítulo 35
O custo da imortalidade
FOI ENGANADO?
Capítulo 36
Matar ou morrer
VOCÊ É
Águas vermelhas
Antes do Duas Barras, antes de Sefia e Arqueiro,
antes da busca pelo Tesouro Perdido do Rei, o
capitão Reed e o Corrente da Fé fizeram uma
jornada à Borda Oeste do mundo. Eles passaram
pelo rasgo no céu que condenara Cat e sua
tripulação, mas o vento amainara logo depois. O
navio patinhava. As velas pendiam das vergas como
cortinas manchadas. Só o capitão Reed os fazia
avançar, encontrando correntes morosas na água
parada, mantendo o curso apesar da luz cegante e
do calor calcinante do oeste.
O sol tinha eclipsado quase metade do céu,
ofuscando toda a sua cor. Reed esfregou a fronte
seca. O calor o oprimia e o torcia, embora não
restasse nada nele para suar.
Ele tinha passado a noite inteira andando pelo
compartimento de carga, tocando cada um dos
barris e caixotes, um depois do outro. Subindo e
descendo pelas passagens. Fazendo a volta nos
estoques cada vez menores. Um, dois, três,
quatro… contando-os repetidas vezes, como se isso
fosse repor os barris de água vazios e as peças magras
de carne salgada.
Mas, pela manhã, nada havia mudado. A
tripulação recebeu uma refeição parca de uma
bolacha, uma fatia de carne seca e um copo de água.
Poucos tinham sequer energia para reclamar. Seus
corpos estavam se consumindo lentamente,
murchando até ficarem enrugados e secos como
passas, a pele esticada sobre os tendões e os ossos.
O capitão Reed se apoiou no gurupés,
esforçando-se para ficar de pé. Passara horas ali,
traçando círculos interligados nos ramos da
figura de proa, mas, por mais cálculos que fizesse, o
resultado era o mesmo: eles tinham provisões
exatamente suficientes — se os ratos não as
pegassem e a navegação fosse tranquila — para uma
viagem de volta. Se voltassem hoje, poderiam
sobreviver.
O sol estava mergulhando no mar, acendendo-o
como um lampião. Eles estavam perto. Mas quanto?
A luz era algo sutil e cambiante. Eles podiam
passar além da Borda do Mundo hoje, ou amanhã,
ou na semana seguinte.
Ou nunca.
Talvez o oceano continuasse para sempre, e não
houvesse nada para ele encontrar por lá. Nada
além de água vazia e infinita.
Ao lado dele, Meeks apertava os olhos para ver
ao longe, à procura de sinais de mudança nos mares.
Sombras bocejavam no fundo de seus olhos. Todos
tinham começado a ficar parecidos — esqueletos
ambulantes usando máscaras horrendas, como a
capitã Cat e o último marinheiro do Sete Sinos.
Reed esfregou os olhos doloridos.
— Por que você me seguiu até aqui, Meeks?
O contramestre fez uma careta.
— Você se lembra do que Cat disse, antes de
morrer?
Ele se lembrava. Aquelas sete palavras não
paravam de voltar para ele, circulando ao seu
redor à noite.
— Quem vai se lembrar da sua tripulação? — ele
repetiu.
— Ela estava certa, não estava? Todas essas coisas
que estamos fazendo, todas as aventuras em que
estivemos… mais cedo ou mais tarde, as pessoas vão
se esquecer que fomos nós. Não você, você é o
capitão. Mas a tripulação? Uma hora, eles vão se
esquecer de mencionar nossos nomes. Vão se
esquecer inclusive de que estivemos aqui.
— Então por que…
— Porque você não vai. — Meeks abriu um sorriso
para ele, afastando os lábios rachados. — Eu vi você
entrar naquele fogo na ilha flutuante. Vi você
abrir mão de rações para que a tripulação pudesse
ter mais. Alguns homens, sabendo quando vão
morrer, poderiam correr menos riscos. Mas não
você. Saber que não vai morrer faz você lutar mais
ainda para proteger aqueles que podem.
Reed pôs a mão no ombro estreito do
contramestre e apertou. Talvez ele pudesse
finalmente fazer o que a capitã Cat queria: salvar
a tripulação — todos eles, não apenas seus corpos,
mas suas mentes também, de modo que, quando
deixassem aquele lugar, ele não ficaria marcado em
suas lembranças do mesmo modo que as experiências
da capitã Cat tinham ficado nas dela. Eles podiam
se ver livres daquela maldita luz infinita, e nunca
mais teriam de pensar naquilo outra vez.
As palavras se agitaram profundamente nas
trincheiras de seu coração: Nós vamos para casa.
Elas se ergueram, atravessando-o
em torvelinho como fumaça, subiram pela sua
garganta e pararam ali, atrás do portão de seus
dentes. Nós vamos para casa.
Palavras que significavam derrota. E fracasso.
E sobrevivência.
— Capitão… — Meeks levou os punhos aos olhos e
exibiu os dentes.
Reed olhou no rosto enrugado do contramestre
e praguejou:
— A doutora nos alertou sobre isso.
Distorções. Pontos cegos. Dor.
Meeks tentou piscar, mas não conseguia mais
abrir os olhos.
— Desculpe, capitão. Eu queria ajudar.
— Vamos levá-lo à doutora. — O capitão Reed
tomou o contramestre pela mão e começou a
conduzi-lo na direção da escotilha principal.
O que mais seria tirado deles, antes do fim? Se
houvesse um fim. A extensão reluzente de água se
espalhava infinitamente por toda a sua volta, se
misturando ao brilho branco do sol.
Uma explosão abafada, como pólvora, atingiu o
gurupés. Reed se virou. Pedaços do sol estavam se
rasgando e flutuando na direção deles, deixando
longas trilhas de luz. Onde quer que acertassem,
eles fervilhavam e explodiam como nuvens de
poeira, salpicando o casco com partículas de luz.
O Corrente estava adentrando o sol poente.
Gritos de alarme se ergueram da tripulação.
— Isso não está certo! — gritou alguém. — Nós
não vamos mais longe!
Meeks virou a cabeça bruscamente na direção da
voz. Suas mãos procuraram suas armas.
— Camey, aquele filho da…
Um sopro de luz percorreu o pescoço e o rosto
de Reed.
A sensação era quase nada, ainda mais leve e menos
substancial que um floco de neve. Ele passou a mão
pela gola da camisa, mas a luz já havia desaparecido.
Eles tinham conseguido. Ele teria gritado isso,
se não estivesse tão rouco.
Ele empurrou Meeks para trás do mastro de
proa.
— Fique aqui até eu avisar. Não vou perder você.
— Mas capitão…
— Faça isso. — Sem esperar resposta, ele saiu
cambaleante pelo convés, sacando a Senhora da
Misericórdia. Estava tão fraco que as tábuas do
chão pareciam deslizar sob seus pés.
— Alguém viu Aly? — Cuca perguntou pela
camareira, enfiando a cabeça para fora da cozinha.
Reed passou cambaleando por ele e parou no canto
da escotilha principal.
Depois do mastro principal, Airoso se agarrava
ao timão, onde Greta o segurava pelo pescoço com
uma mão forte.
A outra apertava o cano de um revólver contra a
sua cabeça. Camey estava parado ao lado deles, com
o nariz adunco e olhos vermelhos, e armas
apontadas para o imediato, que estava parado na
porta da cabine principal.
— Isso é o bastante, capitão. — Camey apontou
a cabeça para a Senhora da Misericórdia. — E
largue isso.
Para enfatizar a mensagem, Greta apertou o
revólver contra Airoso. O timoneiro tossiu e
tentou cuspir para o lado, mas não saiu nada.
O cabelo de Greta tinha começado a cair,
deixando áreas escamosas de pele visíveis entre os
fios negros. Ela e Camey não haviam emitido uma
reclamação, nem em forma de piada, em semanas.
Reed devia ter percebido. Mas estivera tão
concentrado em chegar à Borda do Mundo que não
notou. Ou não tinha ligado.
Agora ela ameaçava Airoso, embora não estivesse
muito firme sobre os pés, um pouco desconfiada dos
próprios membros. Reed podia sacar mais rápido do
que Camey; talvez até conseguisse matá-lo antes
que ele disparasse. Mas não se isso lhe custasse sua
tripulação.
O capitão soltou a Senhora da Misericórdia. O
revólver de prata caiu no convés enquanto Cavalo
e a doutora saíam da escotilha principal.
O quarto de bombordo saiu aos tropeções do
abrigo do castelo de popa, piscando com a
claridade.
Jules veio na direção deles.
— Camey, o que…
Ele atirou a seus pés. Lascas de madeira voaram
do convés. O imediato se encolheu.
— Agora — disse Camey. — Solte o cinto do
revólver e se livre dele também.
O cano do revólver de Camey olhava fixamente
para Reed. Lembrando-se do javali na ilha
flutuante — que levara um tiro bem entre os olhos
— ele obedeceu, desafivelando os coldres e os
deixando cair — com o Executor e tudo — ao lado
da Senhora da Misericórdia.
— Vire a gente para o outro lado — rosnou Greta
para Airoso.
O timoneiro resmungou. Suas mãos se
flexionaram sobre o timão, mas ele não o virou.
Sopros de luz atingiram as velas e o convés.
Gritos abafados ergueram-se da tripulação. O sol
assomava cada vez mais alto, cada vez mais perto do
navio, enquanto nuvens de luz quebravam sobre os
mastros e o cordame.
— Camey, isso não é perigoso… — começou Reed.
— Você não sabe disso. Não sabe o que tem aí
fora. Colocou a gente numa situação ruim depois
da outra nesta viagem maldita, e isso não está
certo. Nós já aguentamos o suficiente.
— Se você tivesse feito isso um minuto antes,
talvez eu tivesse concordado — disse Reed. — Mas
não agora. Não consegue sentir? — A Borda do
Mundo esperando logo depois do círculo do sol.
Seus dedos tamborilaram uns nos outros. Uma
história digna de ser contada.
Camey sacudiu a cabeça.
— Eu não vou entrar aí.
Greta puxou o cão de seu revólver.
— Vai ser mais fácil com sua ajuda, Airoso, mas
vamos fazer sem você se for preciso — ela disse.
— Não! — Cavalo saltou para a frente.
Camey atirou nele. A bala entrou em seu ombro
carnudo e saiu pelo outro lado. Ele caiu no
convés. A doutora correu até ele.
Houve um burburinho entre o resto da
tripulação.
Um por um, eles levantaram as mãos — braços
erguidos, mãos espalmadas — e se afastaram de
Reed. Nenhum deles, nem mesmo Jules, a doutora
ou o velho Goro, olhou para ele.
Um sorriso se abriu no rosto de Camey.
— Harison, pegue as armas dele.
O navio penetrou no sol, envolto em nuvens de
luz. Uma fumaça brilhante cobria o gurupés. Reed
praguejou. Meeks estava lá na proa.
O grumete olhou de Camey para Reed, e de
volta. Ele sacudiu a cabeça.
— Vamos, Harison — disse Greta. — Você é um de
nós. — A luz brilhava tão forte que os olhos dela
estavam praticamente fechados. Reed a observava
com cuidado. Ela não sabia onde Harison estava,
para onde dirigir a voz. Estava tão cega quanto
Meeks, embora tentasse esconder isso. — Você é de
casa — disse ela.
— Não — disse Harison, cambaleando pelo convés.
—
Eu estou em casa.
A determinação dela se esvaiu enquanto seus
olhos sem visão moviam-se perdidos de um lado para
outro. Ela tinha certeza de que ele ia ajudá-los.
Tanta certeza que Reed quase sentiu pena dela.
Luz engoliu a vela de giba, a vela de estai.
Os olhos amarelados de Camey saltavam de suas
órbitas enquanto ele berrava:
— Vire!
Airoso exibiu os dentes.
— Apodreça na terra. Você não vai tomar este
navio.
A proa agora estava coberta de luz, que se
elevava no
ar acima da oficina e se derramava sobre a amurada.
Eles já haviam passado quase um terço do caminho.
— Ajudem-me! — gritou Camey para os outros. —
Vamos todos morrer se vocês não ajudarem!
Jules e Theo avançaram hesitantes, as mãos
estendidas, sem estarem muito seguros de si.
Reed podia sentir a luz lambendo seus ombros, a
parte de trás de sua cabeça. Ela flutuava na
periferia de sua visão.
— Hoje não — ele murmurou.
Ele foi tomado pela luz. Ela rodopiava e
sussurrava ao seu redor, explodindo em nuvens de
poeira onde tocava sua pele. Ele estava tão
iluminado que sentia que seria explodido ao seu
toque.
Os outros gritavam. Alguém choramingou.
Um tiro cortou o ar.
Alguém caiu no chão, gemendo.
Reed se abaixou, olhando para a luz, mas tudo o
que viu foi aquele clarão.
Alguém tropeçou sobre ele. Outra pessoa estava
gritando. Ele ouviu os ruídos de uma briga:
grunhidos, arrastar de pés, xingamentos, pancadas
de cotovelos e joelhos sobre madeira, batidas de
carne contra carne.
Uma arma caiu no chão.
Ele procurou os revólveres que soltara. Seu
cinto. Qualquer coisa.
— Capitão? — A voz de Harison junto de seu
ombro.
— Fique abaixado — murmurou Reed.
A luz desapareceu tão abruptamente que ele
sentiu como se tivesse sido jogado em um poço. Ele
tateou à procura das armas, mas suas mãos não
encontraram nada. Tudo estava negro e frio.
Depois do calor calcinante do outro lado do sol,
aquele frio penetrava nos ossos. Era triturante.
Ele encontrou o cinto e o afivelou. Quando sua
visão começou a voltar, viu o céu negro e o disco
branco do sol, que emitia pouca luz e nenhum
calor. Seu hálito congelava no ar.
Greta estava deitada no chão, a mão no peito e a
respiração acelerada e dolorosa. Sangue se
espalhava por sua camisa, em torno de suas mãos.
Acima dela, Airoso se agarrava ao timão, sua camisa
salpicada de sangue.
Harison estava de joelhos ao lado do chiqueiro
de porcos vazio. Reed o segurou pelo cotovelo e o
ergueu.
— Meeks está atrás do mastro de proa. — O frio
entrecortava suas palavras.
O grumete assentiu com a cabeça e partiu
apressado, quase colidindo contra Cuca, que saía
aos tropeções da cozinha chamando Aly.
A tripulação estava de quatro ou se agarrando à
amurada, tremendo no frio repentino. Cavalo se
curvou de maneira protetora sobre a doutora, que
tentava estancar seu ferimento.
O imediato estava lutando contra Camey. Os
dois grunhiam e se agarravam, cada um tentando
conseguir vantagem sobre o outro. Um dos
revólveres de Camey tinha sido arremessado para
longe, do outro lado do convés, mas ele apertava o
outro com os nós dos dedos brancos de tanta
determinação. O imediato segurou seu pulso e
bateu sua mão várias vezes na amurada, tentando
fazer com que ele o soltasse, mas os dois
continuaram firmes.
Camey tropeçou. Ele não conseguia enxergar.
Seus braços se abriram e se debateram.
Mas o imediato nunca estava cego no Corrente
da Fé.
Ele arrancou a arma da mão de Camey, virou-a
para ele e puxou o gatilho.
Sangue jorrou no convés. Camey caiu.
O navio estava em silêncio enquanto a
tripulação atônita recuperava a visão. O céu
estava escuro como breu — não havia sequer os
pontos das estrelas na escuridão — e a iluminação
leve do lado de trás do sol era fraca e fria, mais
como uma névoa que luz.
Na imobilidade súbita, Aly desceu do mastro de
proa, seu rifle pendurado às costas. Ela parou ao
lado do corpo de Greta. Sua respiração fumegava.
De trás da cozinha, Harison surgiu conduzindo
Meeks pela mão.
— O que aconteceu? — perguntou o
contramestre, sua
voz soando alta em meio ao silêncio. — Ajude-me,
Harison. —
O grumete se inclinou para sussurrar em seu
ouvido.
Reed estreitou os olhos na direção do cesto da
gávea e caminhou até Aly.
— Eu estava me perguntando aonde você tinha
ido.
Ela estremeceu.
— Eu não podia deixar que eles tomassem o
Corrente, capitão.
O frio estava penetrando em seus ossos. Doía
respirar. Reed envolveu os ombros de Aly e
esfregou seu braço. Ela estava tremendo. Os
outros estavam amontoados perto das amuradas,
apontando para a escuridão assustadora diante do
navio.
A água era tão negra quanto o céu. Não era
natural. Assim que qualquer luz tocava a água, ela
afundava sob a superfície e desaparecia, engolida
pela escuridão. Até o som das ondas quebrando
contra o casco era errado, como o bater de dentes.
O fundo dos olhos de Reed ardia. Sua respiração
estava presa na garganta. Aquela escuridão
profunda e fria fez algo uivar no interior de seu
âmago, chorando e gritando para sair dali.
Os outros também deviam ter sentido aquilo,
porque Aly logo começou a chorar.
Cavalo também choramingava como um bebê.
Luzes vermelhas surgiram no fundo do oceano,
mas elas absorviam mais luz do que emitiam, não
iluminando nada. Milhares e milhares delas,
multiplicadas várias vezes até onde a vista
alcançava no mundo sombrio atrás do sol.
O imediato girou, mas não conseguiu ver as luzes
vermelhas. Ele só conseguia sentir o frio, a
inquietação perturbadora que penetrava em suas
entranhas, seu coração e seus pulmões.
Então o som avançou da escuridão.
Rolou sobre o Corrente como neblina no cume
de montanhas, enchendo os espaços entre eles,
uivando — ou seria gemendo? Sussurros, falatórios
e risos loucos. Vozes ou o badalar de sinos, ou
geleiras se partindo em duas, ou encostas de
montanhas se desfazendo em pó. O último suspiro
trêmulo dos moribundos. Era o som mais terrível
em um mundo de sons terríveis, o tipo de som que o
assombra tarde da noite quando a escuridão o
envolve e o frio penetra em você pelas fendas.
Quando, de repente você é tomado pela sensação
inabalada de que já está morto — e desaparecido
para sempre.
Eles tinham chegado às águas vermelhas na
Borda do Mundo — o lugar dos descarnados.
Capítulo 37
Respostas
MESMO
Corredores
O LEITOR
Capítulo 39
Escolhas
OU VOCÊ
Capítulo 40
É LIDO?
Agradecimentos
Twitter
Mensageira da sorte
Nia, Fernanda
9788592783839
426 páginas
Marin deixou tudo para trás. A casa de seu avô, o sol da Califórnia, o
corpo de Mabel e o último verão agora são fantasmas que ela não
quer revisitar. O retrato de uma história em que já não se reconhece
mais. Ninguém nunca soube o motivo de sua partida. Nada se sabe
sobre a verdade devastadora que destruiu sua vida. Agora, ela vive
em um alojamento vazio e está sozinha no inverno de Nova York.
Marin está à espera da visita de sua melhor amiga e do inevitável
confronto com o passado. As palavras que nunca foram ditas
finalmente se farão presentes para tirá-la das profundezas de sua
solidão. Estamos bem é um sussurro íntimo embalado por um soco
indelével. Nina LaCour retrata a elaboração do sofrimento de forma
bela e dolorosamente sincera, provocando um desejo pungente de
atravessar qualquer distância para se reconectar com quem ama.