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CIP-BRASIL.

CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

L149y

Lacour, Nina
Yerba buena [recurso eletrônico] / Nina Lacour; tradução Luisa Geisler. – 1. ed. –
Rio de Janeiro: Record, 2023.
recurso digital

Tradução de: Yerba buena


Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5587-826-4 (recurso eletrônico)

1. Romance americano. 2. Livros eletrônicos. I. Geisler, Luisa. II. Título.

23-86015 CDD: 813


CDU: 82-31(73)

Meri Gleice Rodrigues de Souza – Bibliotecária – CRB-7/6439

YERBA BUENA by Nina LaCour


Copyright © 2022 by Nina LaCour
Publicado originalmente por Flatiron Books.
Publicado mediante acordo com Pippin Properties, Inc., através da Rights People, Londres.

Texto revisado segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de


quaisquer meios. Os direitos morais da autora foram assegurados.

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente para o Brasil adquiridos


pela
EDITORA RECORD LTDA.
Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: (21) 2585-2000, que se reserva a
propriedade literária desta tradução.

Produzido no Brasil

ISBN 978-65-5587-826-4
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sac@record.com.br
À minha esposa, Kristyn, que chegou e me deixou sem fôlego.
Veja só a vida que construímos juntas.

E ao meu pai, Jacques, que generosamente me deu permissão


para usar detalhes de sua juventude em Los Angeles nesta
história.
SUMÁRIO

Uma tarde de primavera


Paraíso
A floricultura e o estúdio
Venice
O cânion e o apartamento na garagem
A floresta e a cama
Long beach
Uma tempestade e o rio
Yerba Buena
Agradecimentos
UMA TARDE DE PRIMAVERA

Juntas, subiram de ônibus o morro. Lá fora, borrões de árvores e céu,


o rangido dos freios, uma ligação entre elas. Com cada curva da
estrada, o contato dos ombros nus, até que o ônibus desacelerou e
parou.
As portas se abriram, elas saltaram na rua. A Armstrong Drive
terminava ali — um estacionamento, o posto da guarda florestal, a
entrada do bosque. Sara abriu o zíper da mochila e pegou uma
garrafa térmica, tirou a tampa e tomou um gole. Os dedos delas se
tocaram quando Annie pegou a garrafa, e Sara ficou observando
Annie pressionar os lábios na borda de metal e beber.
Isso sempre impressionava Sara — a forma como o ar mudava
quando ela entrava na floresta. Fresco, úmido, cheirando a terra
molhada, até dias ensolarados como aquele ficavam mais amenos,
mais suaves.
— Será que a gente devia arrumar um mapa? — perguntou
Annie, mas Sara fez que não com a cabeça. Ela conhecia bem a
floresta, não era um problema se perder nem encontrar o caminho de
volta.
Ela pegou a mão de Annie e a guiou até depois do posto da
guarda florestal. Um grupo de turistas passou rápido por elas, os
rostos voltados para cima. Como era bom se sentir pequeno. Era por
isso que sua mãe a trazia àquele lugar quando ela era mais nova, era
por isso que Sara continuava vindo depois da morte da mãe.
Elas tomaram a trilha favorita de Sara — a mais íngreme, a mais
silenciosa — e subiram até ficar sem fôlego, os galhos antigos de
sequoia na altura dos olhos, o mais perto que poderiam estar do céu.
— Lá? — perguntou Annie.
Sara acompanhou o olhar dela até um pequeno bosque fora da
trilha. Ela fez que sim com um aceno de cabeça, o coração acelerou.
Atravessaram o chão de terra e folhagem com o maior cuidado
possível até um círculo de sequoias jovens com um tronco oco no
centro. Ali, abriram as mochilas, tiraram delas uma manta e dois
suéteres e os estenderam na caruma das árvores.
A floresta estava silenciosa. Não havia ninguém por perto.
— Posso te beijar agora? — perguntou Sara.
— Ainda não — respondeu Annie. Ela tirou a camiseta e abriu o
sutiã.
— E agora?
Annie fez que não com a cabeça.
— Sua vez.
Então Sara também tirou a camiseta, e Annie correu para beijá-la
antes que Sara pudesse perguntar de novo.
O alívio depois das horas de espera.
A emoção: a paixão secreta de duas garotas de quatorze anos.
Sara afundou na manta, Annie em cima dela. Elas beijaram as
curvas de pescoços e clavículas. Seguraram seios nas palmas das
mãos. Sorriram, coraram, se beijaram mais intensamente.
Depois de um tempo, descansaram juntas, a cabeça de Annie na
curva do pescoço de Sara.
— Olha — sussurrou Annie, e Sara viu uma lesma-banana,
amarela brilhante, emergindo de uma samambaia. Ela vinha se
aproximando de Sara, que se encolheu diante daquela coisa fria,
estranha e deslizante, tentando não rir. A lesma foi subindo por sua
barriga pálida e depois pela de Annie. Demorou uma eternidade.
Elas eram três criaturas na floresta. As garotas ficaram bem quietas.
A lesma deixava uma trilha de gosma brilhante em suas peles.
Em seu rastro, uma onda de pesar: os pequenos losangos de um
avental hospitalar. O esmalte rosa-flamingo com que Sara tinha
pintado as unhas da mãe em pinceladas cuidadosas. Olhos
amarelados, lábios brancos rachados. As expressões preocupadas
das enfermeiras, os chiliques do irmãozinho de Sara, o pai no canto
durante as visitas, com as mãos juntas nas costas. Ao longo das
semanas no hospital — a sensação de que Sara pairava sobre um
abismo. Então sua mãe se foi, e ela mergulhou nele.
— Ei — murmurou Annie, e Sara estava de volta ao bosque de
sequoias, o coração batendo forte. — No que você está pensando?
— Em nada, na verdade.
Uma brisa agitou os galhos acima delas.
— Me conta uma coisa que eu não sei ainda — pediu Annie. —
Sobre você.
A voz dela estava perto da orelha de Sara, seu corpo macio
pressionado na pele de Sara. O que Sara poderia dizer que agradaria
Annie? Nada dos últimos dois anos, nem dos meses anteriores. Nada
da escola porque, embora às vezes parecesse que tinham acabado de
se conhecer, elas estudavam juntas desde meninas. Precisaria ir mais
longe... e, então, ela encontrou.
— A minha família costumava jogar um jogo. Um jogo de
desenhar. A gente se sentava à mesa, e uma pessoa começava.
Normalmente era o meu pai. Ele desenhava uma rua, ou um trem,
ou uma montanha. E aí a próxima pessoa acrescentava alguma coisa
no desenho. Pessoas, ou carros, ou o céu. Quem quer que fosse a
última pessoa completava o desenho, e, a essa altura, a folha já
estava toda tomada. Eu adorava essa brincadeira. Ficava esperando
para ver o que iam desenhar, pensando em alguma coisa que
pudesse surpreender todo mundo. Às vezes a gente passava horas
brincando disso.
Ela esperava que fosse suficiente, sentiu Annie a puxar para
perto.
O sol estava baixo no céu àquela altura, e elas precisavam voltar
— Annie para a irmã gêmea e os pais, Sara para o irmãozinho, para
garantir que ele comesse alguma coisa. Ele devia estar na bicicleta
agora, saindo da casa do amigo dele, voltando para casa. Talvez o
pai deles estivesse em casa hoje à noite. Talvez não. De qualquer
forma, Sara precisava pegar o ônibus de volta para a cidade antes de
o sol se pôr do outro lado das cabanas caindo aos pedaços, dos
chalés rústicos para aluguel de temporada e do grande rio
lamacento. Do outro lado do Bar Appaloosa, do Salão de Beleza
Wishes & Secrets e do campanário da igreja branca do pai de Lily.
Mas, antes, só mais uns minutinhos aqui, pensou ela.
Outro beijo.
Outro pássaro lá no alto.
Outra brisa refrescando a pele.
Como era fácil esquecer todo o resto apequenadas e em segurança
na floresta.

Do outro lado da Califórnia, Emilie colocava uma nova planta no


jardim de sua escola católica. As folhas eram familiares. Ela correu os
olhos ao redor e, sim... havia mais delas, do outro lado do muro de
contenção.
— É a mesma planta, não é? — perguntou ela, e a Sra. Santos fez
que sim com a cabeça.
— Se encontrar um espaço vazio num jardim, olhe o que já está
crescendo em volta. Existem boas chances de se aproveitar algo que
já está ali.
A escola tinha esvaziado fazia poucas horas. Agora eram só eles
três — Emilie, seu amigo Pablo e a mãe de Pablo — cuidando do
pequeno lote de terra que separava a escola da rua. A Sra. Santos
havia se oferecido para deixá-lo tão lindo quanto útil. Algumas
flores, a maioria ervas.
— Qual o nome dela? — perguntou Emilie. Estivera aprendendo
os nomes das plantas, mas de alguma forma essa havia escapado,
crescendo na sombra.
— Yerba buena.
— Engraçado — disse Emilie. — É o nome do restaurante favorito
dos meus pais. Pablo, você lembra? Aquele no Sunset que a gente
foi.
— O chique?
— Ã-hã.
Pablo largou num balde as ervas daninhas que tinha arrancado e
se juntou a ela em frente à planta. Ele arrancou um galho,
chacoalhando-o na cara de Emilie.
— Eu estou com um galhinho de hortelã e não tenho medo de
usá-lo. Passa toda a grana.
Os dois riram, a Sra. Santos também.
— Então é um tipo de hortelã? — perguntou Emilie, esfregando
uma folha entre os dedos.
— É, fica gostoso no chá — disse a Sra. Santos. — A maior parte
dessas plantas fica. É fácil manter um canteiro de ervas para chá.
Tisana, tecnicamente. Plantas pequenas. Não dá trabalho. Vou juntar
umas folhas para você. Para que veja do que gosta.
Verbena. Hortelã-pimenta. Camomila. Sálvia. Yerba buena.
— É um buquê — disse Emilie quando a Sra. Santos passou as
folhas para ela.
— Use frescas. Prove algumas quando fizer o dever de casa hoje à
noite.
Eles recolheram as coisas e começaram a fazer o caminho de volta
para suas casas, uma de frente para a outra, a seis quadras da escola.
— E Colette, como está? — perguntou a Sra. Santos.
— Ela está bem. Está me ensinando a tocar violão. Sente os meus
dedos.
A Sra. Santos tocou os calos de Emilie.
— Você andou praticando.
— Sente só — disse Emilie para Pablo enquanto esperavam para
atravessar uma faixa de pedestres.
— Uau.
O sinal ficou verde e eles atravessaram, e Emilie pensou em
Colette posicionando seus dedos, dizendo quando mudar o acorde.
Elas duas na cama de Colette, aprendendo músicas. Porém, com
mais frequência nas últimas semanas, Emilie andara praticando
sozinha no seu quarto enquanto a irmã ficava sozinha no dela. A
cena de algumas noites anteriores voltou: Colette gritando com ela,
batendo a porta.
Estavam quase em casa.
— Depois me conta o que achou do chá — dizia a Sra. Santos. —
Só água quente e umas poucas folhas. Mel também, se quiser.
Emilie acenava enquanto subia os degraus da entrada de casa.
— Até amanhã.
— Dá um pulo aqui em casa depois e me passa as respostas do
dever de álgebra — gritou Pablo para as costas dela. A Sra. Santos o
repreendeu de brincadeira, e Emilie chegou à porta, destrancou e
entrou em casa.
Não tinha ninguém lá, então ela cortou um pedaço de queijo para
comer com uma maçã e levou o prato para o deque lá fora. Poucos
meses antes, seu pai, Bas, e seus dois primos haviam desmontado o
deque antigo e convidado Emilie e Colette para ajudar a construir
um novo.
— É uma tradição da família — disse Bas na época. — Nós
ajudamos os nossos pais a construir casas, deques e todo tipo de
coisa.
— E, lá em Nova Orleans — disse Rudy, o primo mais velho, o
único que nasceu antes de as famílias se mudarem para Los Angeles
—, os nossos pais ajudaram os pais deles.
Colette revirou os olhos. Tinha acabado de terminar o ensino
médio, ainda que aos trancos e barrancos — quando as notas do
segundo semestre chegaram à universidade em que ela queria
estudar, estavam tão pavorosas que revogaram a aprovação dela.
— Os meus amigos estão me esperando na praia — disse ela. Mas
parecia algo empolgante para Emilie. As pilhas de madeira, os
primos que mal via, mesmo morando em cidades vizinhas.
— Vamos lá, mana — disse Emilie. — Vai ser legal.
Colette se apoiou na casa. Ela parecia quase ser de outro planeta
para Emilie, com seus três anos e quatro centímetros a mais. O
cabelo dela era mais longo que o seu, o short jeans mais curto, e
Colette inclinou a cabeça e deixou todos esperando por uma
resposta. Então, deu de ombros e disse:
— Por que não?
Colette ajudou por cerca de uma hora antes de dizer que tinha
que ir embora. Mas Emilie passou o dia todo na rua com eles,
ouvindo as suas histórias, rindo das suas piadas mesmo quando não
entendia, martelando pregos onde mandavam. Eles a ensinaram a
usar a lixadeira elétrica e ela colocou máscara e óculos de proteção e
lixou os corrimãos até ficarem lisos.
Agora, ela estava apoiada naquele corrimão, observando um lote
vazio no jardim, onde uma roseira havia morrido e nunca fora
substituída. Talvez ela pudesse transplantar um punhado de
lavanda. Ou talvez começasse seu próprio canteiro com plantas para
fazer chá. Ela notou movimento pela porta de correr — alguém
devia ter chegado. Seus pais não tinham uma jornada de trabalho
comum. Bas era empreiteiro; Lauren, advogada especializada em
direito do entretenimento. Eles chegavam e saíam e deixavam as
filhas fazerem o mesmo.
Chá, pensou Emilie. Não lavanda. Ela pediria ajuda à Sra. Santos
para começar. E então ouviu um baque dentro de casa, botas
correndo escada abaixo, ouviu o grito de Bas pedindo ajuda.
— Chama uma ambulância. É a sua irmã.
Ela agarrou o telefone e discou para a emergência, seguindo-o
escada acima enquanto o telefone chamava e a operadora pedia que
ela explicasse qual era a emergência, mas Bas estava bloqueando a
porta do banheiro.
— Não olha, querida. Fala para mandarem uma ambulância
agora. Fala que foi uma overdose, diz para virem imediatamente. Não
olha, Em, espera por eles na porta.
Então Emilie desceu de volta e a ambulância chegou, em silêncio,
sem sirenes, e estacionou em frente à casa. Dois paramédicos
correram para dentro e ela apontou para as escadas, então Lauren
chegou também, e não havia nada que Emilie pudesse fazer
enquanto os paramédicos carregavam sua irmã, inconsciente, mas
viva, porta afora e ambulância adentro, Bas subindo atrás deles.
Lauren catou as chaves do carro.
— Vou seguir eles até o hospital — disse ela para Emilie.
— Eu vou também.
— Não, não, você fica. — Lauren tomou o rosto de Emilie nas
mãos. — Minha filha forte, minha boa garota. Você fica bem aqui
enquanto a gente estiver fora.
Pela janela, Emilie observou a ambulância ir embora, a mãe atrás,
tudo aquilo de alguma maneira passando despercebido pelo resto do
mundo. Alguns minutos depois, do outro lado da rua, na casa dos
Santos, as luzes foram acesas. Ela poderia ter atravessado, contado
tudo a eles, jantado com eles. Mas não fez nada disso. Ficou sozinha
em casa enquanto a noite se estendia. Encarou o dever de casa,
esqueceu-se de comer. As ervas do jardim da escola murcharam na
bancada da cozinha. Ela se enfiou na cama, se manteve o mais
parada que conseguia. Ficaria ali até tudo ter terminado.
PARAÍSO

Dois anos depois, Sara acordou com o barulho da porta do quarto


abrindo.
— O telefone ficou tocando — disse Spencer do batente, um lado
do cabelo amassado, cansaço nos olhos. — É o irmão da Annie.
Sara pegou o telefone e o pressionou na orelha.
— Dave?
— A Annie está com você?
— Não está, não. — Ela viu que era uma e meia da manhã, e o
coração bateu forte. Spencer se sentou ao seu lado e apertou a
bochecha na dela para escutar.
— Tem certeza de que ela não está com você? — perguntava
Dave.
— É claro que tenho certeza — disse Sara.
— Quando foi a última vez que vocês se viram?
— Quando a aula acabou. Quando dei tchau para vocês dois. Aí
fui trabalhar e depois vim para casa.
— Os meus pais precisam do telefone. Vou desligar. Eu te ligo
quando a gente descobrir alguma coisa.
Sara fez que sim com a cabeça, sem conseguir falar, com o
telefone no colo até Spencer pegá-lo e colocá-lo na cama.
— Espera aí — disse Spencer. — Ele não consegue descobrir onde
ela está? Tipo, se fechar os olhos e se concentrar?
— Do que você está falando? — perguntou Sara.
— Achei que gêmeos conseguiam fazer isso — disse Spencer.
— Ah. — Sara tomou a mãozinha dele na sua. — Acho que não
funciona assim.
De manhã, como sempre, Sara fez ovos mexidos para Spencer,
apesar de se sentir enjoada demais para comer.
Ela pegou os pratos da mãe, a essa altura lascados nas bordas, as
estampas florais desbotadas. Depois de um tempo, tinha superado
um pouco o luto, mas agora Annie havia sumido, e ela sentia a
angústia pairando ao seu redor de novo. Aquela terrível leveza, a
falta de âncora, algo cavernoso abaixo.
Spencer foi para a mesa do café da manhã no canto da cozinha.
Quando ela levou o prato dele, viu um papel em branco e um lápis
na mesa. A brincadeira de desenhar, agora adaptada para dois.
— Você começa — disse Sara, então Spencer se pôs a desenhar.
Ela se sentou de frente para ele, a luz atravessava as cortinas de
algodão fino, a panela esfriando na pia amarelada. Perto da janela,
um desenho da família de anos antes, ainda colado na parede.
Spencer desenhava um céu nublado, borrando os rabiscos de
lápis com os dedos. Ele passou a folha para Sara quando terminou.
Ela desenhou a copa das árvores.
— A gente tem que sair — disse ela. — Podemos terminar mais
tarde?
— Tá bom — disse ele, e prendeu o papel na geladeira com um
ímã. — Ou quem sabe o papai termina.
— Quem sabe — disse ela.
Juntos, na varanda, colocaram os sapatos antes de sair em
direções opostas, cada um para a sua escola.
Sara não carregava muita coisa na mochila, caso precisasse sair
direto sem passar em casa. Ao saltar do ônibus do outro lado da rua,
esperava ver Annie em frente à escola — o cabelo castanho cacheado
e a jaqueta jeans, a postura de garota rebelde desfeita pela doçura do
rosto. Você me deu um susto, gritaria Sara, e Annie a agarraria pela
cintura, e elas tentariam parecer só amigas. Sara se imaginou
puxando o passador de cinto de Annie. Não desaparece de novo, diria
ela. Promete para mim.
Eu prometo, responderia Annie.
Mas ela viu Dave e Lily reunidos com Crystal e Jimmy na
entrada. Annie não estava lá.
— O que a gente deveria fazer? — perguntava Crystal.
— Sair daqui — respondeu Dave. — A gente devia se separar e
procurar a Annie. É uma maluquice os meus pais terem me deixado
aqui.
— Eu procuro no centro — disse Crystal. — Mas estou um pouco
assustada. A gente não devia ir em dupla?
Jimmy fez que sim com um aceno de cabeça.
— Eu vou com você.
— Vocês dois podem procurar juntos — disse Sara a Dave e Lily.
— Eu não tenho problema de ficar sozinha.
— Tem certeza? — perguntou Lily, e Sara disse que sim.
— Eu estou de carro. A gente pode ir a Monte Rio — disse Lily a
Dave, que concordou.
Sara sentiu a leveza da mochila, sentiu uma esperança ferrenha e
agoniada.
— Tenho que pegar no trabalho às quatro. Se alguém encontrar a
Annie, liga para o Vista, tá bom? — Os amigos assentiram com a
cabeça. — Eu vou para a floresta.

Ela tomou o ônibus até a Armstrong Drive, correu passando pelo


posto da guarda florestal, para a trilha delas. Sara confiava na
floresta. Todas aquelas tardes que passaram ali. Mas, ainda assim...
Ela se preparava para o momento em que encontraria Annie,
machucada ou inconsciente, sangrando ou toda quebrada. Ou pior.
Estava enevoado e fazia frio. Ela havia chamado por Annie, mas só o
silêncio respondeu. Avançou mais e mais até sair da trilha, então
encontrou o bosque delas. Não tinha ninguém lá. Ela desceu até a
rota principal, descobriu outras trilhas.
Sara a encontraria — tinha certeza disso. Passou mais de seis
horas procurando e, para se acalmar, imaginava Annie aparecendo
de pernas cruzadas, encostada na madeira suave de um tronco,
sorrindo ao vê-la. Imaginava o beijo, a voz rítmica de Annie ao
perguntar qual era o problema. Annie estaria ali, perfeitamente bem,
e o mundo voltaria para o eixo, e Sara não perderia outra pessoa que
amava.
E então o relógio marcou três da tarde. Ela teria que sair da
floresta para chegar a tempo no trabalho. Então disse a si mesma que
o telefone estaria tocando quando chegasse ao escritório do Vista
Motel. Seria Dave, e eles diriam que a tinham encontrado. Sara
deixou a sombra da floresta e esperou ao sol pelo ônibus que a
levaria a Monte Rio.

O Vista Motel ficava a uma cidade de distância, e não era nem


melhor nem pior que os outros hotéis baratos de beira de estrada. A
recepção tinha um almoxarifado nos fundos. O prédio todo — vinte
quartos para uma pessoa e três suítes com minicozinhas — era
térreo. Dava para os visitantes estacionarem em frente à porta do
quarto. E nos fundos dos quartos havia um gramado particular para
hóspedes, com acesso ao rio. Eles se sentavam em espreguiçadeiras
debaixo de guarda-sóis brancos e bebericavam qualquer coisa que
tivessem trazido, e, quando estava quente o suficiente, desciam a
escada para a praia pedregosa e nadavam.
— Alguém me ligou? — perguntou Sara a Maureen ao chegar.
Maureen, fazendo palavras cruzadas, balançou a cabeça sem
erguer os olhos.
— Tem certeza?
— Estou aqui desde as oito da manhã. Periquito — disse ela e
preencheu as letras. Então, pegou uma prancheta e a passou para
Sara. Havia hóspedes em apenas seis quartos, a alta estação tinha
passado.
— Estou esperando uma ligação. É importante. Se ligarem
enquanto eu estiver limpando, você me chama?
Maureen fez que sim.
No almoxarifado, Sara colocou um par de luvas de látex.
Encontrou a lixeira rolante com uma rodinha quebrada. Catou um
balde com limpa-vidros Windex, esponjas, produto de limpeza e
sacos de lixo e equilibrou um rolo de papel-toalha em cima. Sara
empurrou tudo pelos fundos e foi para o Quarto 5. Tirou os lençóis e
o cobertor. Esvaziou a lixeira do banheiro e a do lado da cama. Catou
garrafas de cerveja vazias da cômoda e folhas de jornal do chão.
Annie sempre sugeria que elas invadissem um quarto um dia e o
usassem por umas horinhas.
— Não parece uma boa ideia? — sussurrou na orelha de Sara
então. — Uma porta trancada? Uma cama.
— Confia em mim — disse Sara. — Não tem nada de atraente em
nenhuma daquelas camas.
— Por que não?
— São nojentas.
— São só pessoas — falou Annie. — Só corpos. Qual o problema?
Então, poucas semanas atrás, na tarde do aniversário de dezesseis
anos de Annie, Sara havia limpado o Quarto 12 — um dos
melhorezinhos, com vista para o gramado — o máximo que pôde.
Comprou seis velas na farmácia e recolheu cuidadosamente os
quadros de Jesus e da Virgem Maria antes de espalhá-las: uma em
cada mesinha de cabeceira, três na cômoda, uma no rack da
televisão. Tinha trazido o aparelho de som com o álbum mais recente
da Alicia Keys porque Annie sempre balançava a cabeça e se sacudia
quando tocava “No One”.
Naquela noite, Annie se encontrou com ela a algumas quadras do
hotel para tomarem sorvete e, depois disso, Sara disse:
— Esqueci uma coisa no trabalho. Vem comigo?
Assim que chegaram à calçada, longe dos olhares de outras
pessoas, Sara agarrou sua mão.
— Pronta para o seu presente? — perguntou ela.
Annie enrubesceu.
Maureen já tinha lhe dado a chave do quarto, então Sara levou
Annie direto para a porta e a deixou entrar. Acendeu as velas. Pôs
música para tocar. Abriu o frigobar, onde meia garrafa de vinho rosé
deixada na suíte por um casal naquela manhã esperava por elas, e
dividiu o conteúdo em duas tacinhas de plástico que o hotel
providenciava para os hóspedes. Então, ela se virou e viu Annie
olhando-a, os olhos brilhando, e Sara ficou completamente
emocionada. Ser olhada daquela forma. Ser amada por essa garota linda.
Teria perdido a compostura se Annie não tivesse dado um passo à
frente, passado as mãos pelos seus cabelos e a beijado.
A noite foi perfeita. Bem... quase perfeita. Houve um momento
em que Sara foi beijar a dobra do braço de Annie e viu uma marca lá.
Sentiu o coração bater mais forte por um instante, ficou à beira das
lágrimas, até dizer a si mesma que não era nada. Não tinha a ver
com as coisas do pai dela ou dos amigos dele, nem nada com a mãe
dela. Era um arranhão, talvez. Não significava nada.
Onde ela estava? Sara passava o aspirador de pó pelo quarto. Dave
deveria ter ouvido alguma coisa a essa altura. Ela tiraria o lixo e
depois iria falar com Maureen. Talvez tivesse recebido a ligação
enquanto estava ocupada com um hóspede. Ou talvez Maureen não
tivesse levado a sério quando ela disse que era importante. Sara deu
a volta na quadra até a caçamba de lixo e tomou um susto. Havia um
garoto ali dentro — poucos anos mais velho que ela, parado com lixo
na altura do joelho.
Ele ficou paralisado, olhando-a com cautela. Tinha cabelo oleoso
que batia na altura dos olhos. Estava com roupas esfarrapadas, mas
num estilo meio grunge no fim das contas, então isso não revelava
nada a respeito dele.
— Oi — disse ele.
— Que nojo — disse ela.
Ele sorriu, relaxado agora. Ela notou que o canto de seu dente da
frente estava lascado.
— Essas revistas estão em perfeito estado — disse ele, mostrando-
lhe o que tinha encontrado.
Ela revirou os olhos e despejou o conteúdo da lixeira. Ele foi até o
lixo novo.
— Nada de bom nesse — disse ela, e voltou para conduzir a
lixeira de volta.
— Epa, espera — chamou ele. Ela se virou, sem paciência,
enquanto ele se erguia da caçamba de lixo. — Eu estava me
perguntando... alguma chance de eu tomar banho num dos quartos
que você não limpou ainda? Rapidinho.
Num primeiro impulso, ela pensou em negar, mas via esperança
no rosto dele, o que acendeu a esperança dela. Ela o deixaria usar o
chuveiro. Esperaria do outro lado da porta. E, enquanto ela fazia
essa boa ação, enquanto ajudava alguém necessitado, Dave ligaria
para dizer que a havia encontrado.
Entretanto, mesmo depois da boa ação, depois que o garoto
agradeceu, de cabelo molhado e rosto limpo, Dave não ligou. E ele
ainda não tinha ligado quando ela conferiu uma hora depois.
Quando os lençóis estavam secando e ela retornou para a recepção,
Maureen deu a volta no balcão.
— Querida — disse ela. — Eu te conheço. Você não me diria que
uma coisa é importante se não fosse mesmo. Se alguém ligar para
você, vou atravessar essa porta correndo, gritando o seu nome antes
mesmo de terminarem o alô. Entendido?
— Tá bom — disse Sara.
— Você quer falar sobre isso?
— Não — disse ela. — Mas obrigada.
Não conseguia colocar em palavras. Ainda não. Queria manter
Maureen do jeito que ela era — o cabelo pintado de preto e as blusas
decotadas, uma mistura de profissionalismo e gentileza, o tipo de
chefe que duas semanas antes tinha lhe dado a chave do Quarto 12
sem fazer perguntas. Ela não queria ouvir o que Maureen pensava
ou ver a preocupação estampada no seu rosto. Só queria que a
espera acabasse. Queria aquele medo fora do corpo.
Por isso, quando viu o garoto de novo, pela janela do Quarto 20
— desta vez ele estava deitado descaradamente numa das
espreguiçadeiras debaixo de um guarda-sol branco, folheando uma
revista —, disse a si mesma que, se ele ainda não tivesse ido embora
quando ela terminasse a última cama, iria até lá se sentar com ele.
Quando ela se aproximou, ele ergueu a mão num aceno.
— O que está fazendo?
Ele deu de ombros.
— Não é isso que se faz por aqui?
— Se você é um hóspede pagante, é.
— Veio me expulsar?
Ela fez que não.
— Então senta aqui comigo.
Ela se sentou na espreguiçadeira ao lado dele, não sem antes
afastá-la um pouco. Ela era loira e bonita. Alta como o pai.
Costumava levantar a guarda para que garotos e homens não
tivessem a impressão errada. Mas havia algo nesse menino que lhe
dizia que ele era tranquilo.
— Esse lugar é legal — disse ele. — Não acredito que tem gente
que chega a morar aqui. Parece um paraíso.
— Não exatamente.
— Está de brincadeira? Quer dizer, olha só isso.
— Não, eu sei — disse ela. — É lindo. Eu sei. — Ela entendia por
que as pessoas vinham e se sentavam onde os dois estavam. Os rios,
as sequoias... também ficava impressionada com eles. — O que é que
você está fazendo aqui? — perguntou ela.
— Estou a caminho de Los Angeles, mas preciso de uma vela de
ignição nova.
— Tem uma oficina a umas quadras daqui.
— Eu sei. Disseram que podem consertar em uma hora, mas
estou meio sem grana no momento. Tem ideia de onde posso
arrumar um bico? É só um Civic. É barato arrumar.
Sara deu de ombros.
— Não sei, não.
— Bom, aqui — disse ele. Rabiscou algo no canto de uma folha de
revista, rasgou e dobrou. — Se souber de alguma coisa, me avisa?
— Tá bom. — Ela revirou os olhos, enfiando o papel no bolso.

Ela não soube o que sentir quando viu os carros parados em frente à
sua casa. Se seria melhor mais um jantar apenas com ela e Spencer,
ou se as vozes altas do seu pai e dos amigos dele poderiam abafar
seu pavor.
Apesar de estarem na sala de estar quando ela entrou, havia
silêncio na casa. Passava na televisão o jornal local, o volume baixo.
Dois caras, irmãos cujos nomes ela sempre confundia, estavam
sentados na janela jogando cartas. Desviaram o olhar da partida
quando ela entrou, mas logo se voltaram para as cartas que tinham
nas mãos. Nunca falaram com ela. Mas Eugene estava no sofá.
— Oi — disse ele. — Oi, Sara. Senta com a gente.
Ele deu uma batidinha ao lado no assento, e Sara afundou no
sofá, notou como o corpo estava cansado de tanto procurar e limpar.
Ela se inclinou para a frente, apoiou a cabeça nas mãos.
— Mal tenho te visto ultimamente. Cresceu e ficou ocupada
demais para mim, foi isso?
Ela conhecia Eugene desde sempre. A mãe dela e a esposa dele
foram melhores amigas, mas então sua mãe morrera, e a esposa de
Eugene o largou.
— Uma amiga minha desapareceu — disse Sara, enterrando
ainda mais a cabeça, os olhos ainda fechados.
— Desapareceu — disse Eugene. — Eita.
A sala silenciou de novo, tensa com algo, mas não tinha nada a
ver com Sara. Ela estava exausta demais para se importar.
— A gente procurou por todo canto.
Ela sentiu uma mudança de peso no sofá. Quando abriu os olhos,
Eugene ainda estava ali, uma cerveja nova na mão.
— Bem. — Ele bebericou. — Ela vai aparecer. — Outro momento
passou. — Você sabe que pode falar comigo se precisar de alguma
coisa, não sabe?
Ela olhou para ele. Fez que sim com a cabeça.
— Bom — disse Eugene. Deu um tapinha nas costas dela.
Naquele instante, as luzes de uma viatura iluminaram a parede.
— É a porra do Larry — disse da janela um dos jogadores. Sara
ouviu a porta do carro bater e os passos de Larry na calçada. Os
homens ficaram tensos como sempre ficavam quando ele aparecia.
Tinham crescido juntos, mas a farda de Larry os dividia.
O pai de Sara abriu a porta, mas não o convidou para entrar.
— Como posso ajudar?
— Oi, Jack. Estamos procurando uma amiga da sua filha. Tenho
algumas perguntas para ela.
— Para a Sara?
— Ela está em casa?
O pai deu um passo para o lado para dar espaço para ela no
batente.
Sara respondeu às perguntas do policial — a última vez que viu
Annie, se lembrava de que roupas Annie estava usando. Ela se
lembrava de tudo, é claro, ainda não tirava os olhos dela, mesmo
depois de mais de dois anos juntas. Se Larry tivesse perguntado a
natureza do relacionamento delas, teria dito a verdade. Ela não sabia
ao certo por que estavam escondendo. Teve gente na escola que saiu
do armário e não foi terrível para eles. Mas ela e Annie se
acostumaram ao segredo. Uma coisa sagrada entre as duas. Queriam
guardá-lo só entre elas.
— Você sabe de alguma atividade perigosa em que Annie poderia
estar envolvida?
Annie à luz de velas, a marca no braço. Talvez devesse contar.
Mas poderia não ser nada, e Sara não tinha como ter certeza.
— Não — disse ela, e esperou que Jack acreditasse.
— E drogas?
Não era nada de mais. Sara fez que não com a cabeça.
Larry se virou para Jack.
— Você tem algum motivo para discordar?
O rosto do seu pai, impassível. Seu tom firme como sempre.
— Por que caralhos eu ia saber qualquer coisa a respeito disso?
— Só me certificando.
Larry foi embora, e o pai dela, Eugene e os outros caras abriram
outra rodada de cervejas. Sara verificou como Spencer estava, no fim
do corredor, dormindo pesado na cama. Ela pegou as chaves reserva
na gaveta da cozinha e parou na sala de estar.
— Preciso pegar a caminhonete emprestada. Tudo bem?
O pai lhe deu um único aceno de cabeça.
— Toma cuidado na rua — disse ele.

Ela dirigiu um quilômetro e meio pela escuridão até o Pink Elephant.


Eles eram novos demais para entrar, mas, mesmo assim,
encontravam-se sob o letreiro de luz neon quase toda noite. Ela iria
até lá e esperaria os amigos, que teriam novidades, e ficaria tudo
bem de novo.
Ao se aproximar, viu Dave sentado no meio-fio, a testa apoiada
nos joelhos. O braço de Lily o envolvia, e Jimmy estava falando sem
parar, o que sempre fazia quando ficava nervoso.
— Vão fazer uma dragagem do rio — disse Dave quando Sara
chegou.
Num primeiro momento, tudo o que ela registrou foram seus
olhos inchados, a cara de doente, a forma como uma pessoa podia
definhar no curso de poucas horas. E então: a boca, no formato da de
Annie, tão suave quanto. Sara pensou que talvez pudesse fechar os
olhos e beijá-lo, abrir os olhos e ver que ele havia se transformado na
irmã.
E então ela disse:
— Quê?
E ele repetiu:
— Vão fazer uma dragagem do rio.
Ela pressionou os olhos com as mãos até doer bastante. Todos eles
ainda estavam lá, sob a luz neon cor-de-rosa do letreiro.
— Não estou entendendo — disse ela.
— Parece cedo demais, não parece? — disse Jimmy. Ele enfiou as
mãos nos bolsos. — Ela sumiu nem tem tanto tempo assim. Não sei
por que fariam isso tão rápido. Deve ser algum erro, não deve? Quer
dizer, por que saltar logo para a pior conclusão? Será que os
hospitais não erraram?
— Vão fazer uma dragagem do rio — repetiu Sara.
Lily secou os olhos e olhou para Sara. Ela assentiu com a cabeça,
solene.
Jimmy repetiu:
— Tem que ser um erro. Como é que todo mundo tem tanta
certeza de que ela não está num hospital em algum canto?
— Porque a gente tem certeza pra caralho, tá bom, Jimmy? —
disse Dave. — A gente ligou para cada hospital. A gente procurou
em tudo que é canto. A gente tem cem por cento de certeza.
— Foi mal — disse Jimmy. — Tá bom. Foi mal.
Lily juntou as mãos e baixou a cabeça em oração.

Depois que a mãe de Sara morreu, eles voltaram para casa, apenas
três agora. Um garotinho que mal havia deixado de ser criancinha,
que mesmo as menores das tristezas deixavam inconsolável: o leite
estragado no copo jogado fora, um buraco na meia, um brinquedo
desaparecido. Um homem que fazia piada e ria com os amigos, mas
que chorava tão alto no quarto à noite que acordava os filhos. Uma
garotinha de doze anos, cada parte dela ainda tenra e irregular. Doía
comer e doía sentir fome. Estar acordada era estar em desespero,
mas seus músculos doíam pela inércia.
Então, uma noite, Spencer entrou no quarto e se aninhou nela. Ela
estava acostumada a estar próxima dele, fazer carinho no cabelo
quando ele chorava, beijar sua testa. Mas naquela noite foi diferente.
Ele descansou o rosto entre as omoplatas dela. Ela sentia o abdômen
dele subir e descer nas suas costas. Ela sentiu o bater contínuo de
seus corações.
Ele precisa de mim. Ele precisa de mim. Ele precisa de mim.
Eu preciso dele. Eu preciso dele. Eu preciso dele.
Ele a trouxe de volta à vida.
Ao voltar para casa do estacionamento do Pink Elephant, os
amigos do pai já tinham ido, ela foi para o quarto de Spencer e subiu
na cama.
— Oi — resmungou ele.
— Posso dormir aqui? — perguntou ela. O rio. Ela não conseguia
tirar da cabeça.
Ele fez que sim com a cabeça, e ela se virou. Ela ajeitou o corpo
até sentir a barriga dele nas costas. Esperou pela respiração dele.
Esperou para sentir o coração batendo. Esperava que ele ainda
tivesse o poder de curá-la. Mas seu medo era uma coisa selvagem e
perigosa. O corpo dela tremia com ele. Spencer não notou. Assim
que ele pegou no sono de novo, ela voltou para o próprio quarto.
Um avental hospitalar com estampa de losangos. A lesma e as
sequoias. A sensação de ser abraçada, e a sensação depois disso. A
esperança, esvaziando.
O pânico foi tão poderoso que ela achou que ia ser esmagada por
ele, não sabia como ficar imóvel. O quarto parecia grande demais
para ela, cheio demais de ar. Ela precisava ser contida. Tirou algumas
caixas do closet para abrir espaço, levou as cobertas para dentro.
Fechou a porta e gritou no travesseiro. Ficou deitada no escuro,
camisas e vestidos pequenos demais pendurados acima dela. Queria
ficar lá, se sentia mais segura, mas ouviu uma batida à porta.
Encontrou o pai à espera. Ele olhou para o quarto além dela: a
cama desfeita, os cobertores escapulindo do closet.
— Estava dormindo ali? — perguntou ele.
Ela estava em carne viva de medo e ali estava o pai, e ela queria
contar a verdade.
— Estou com medo — disse ela.
Ele colocou a mão no seu ombro. Ele não a tocava havia muito
tempo. Sara sentiu o tremor da memória, algo enterrado muito
tempo atrás — um tempo anterior a Spencer, anterior à morte,
quando ela era uma garotinha que ria com os pais à luz brilhante do
sol no banco de um rio.
Muito tempo antes de ela saber que um rio poderia engolir uma
pessoa inteira.
Ela disse:
— Vão fazer uma dragagem do rio de manhã.
Quando olhou para ele de novo, as bochechas do pai estavam
molhadas, os olhos fechados.
— Pai — disse ela. — Vamos procurar por ela, tá bom? Vamos sair
de carro e encontrar a Annie.
Ela sentiu o calor da mão dele, sabia que ele poderia ajudá-la. E
então ele apertou o ombro dela e soltou.
— Olha só — disse ele. — Garotas da sua idade... elas não
desaparecem do nada. Ela foi embora e fim da história.
— A Annie não.
Ele inspirou, lançou um olhar para o corredor escuro. Ela queria
que ele a encarasse. Sentia que poderia desaparecer se ele não
estivesse olhando. Fica comigo, queria dizer. Me ajuda a passar por isso.
— Eu moro aqui nessa cidade há muito tempo — disse ele. —
Também perdi amigos. Você segue em frente. Você aprende.
Mas a boca de Annie beijando a sua, a cabeça de Annie
descansando no seu pescoço...
— A gente é mais que amiga — disse Sara, e os olhos dele
dispararam para ela, surpresos.
Ela tentou de novo.
— Me ajuda a achar a Annie.
Ele deu meia-volta e foi até a frente da casa. Ela disse a si mesma
que ele estava procurando as chaves. Talvez preparando café para
ficar acordado durante a viagem. Ele estava procurando os sapatos e
voltaria e diria “Vamos lá”. Ela esperou, imaginando como seria a
sensação de não estar sozinha.
Ela foi ao banheiro, voltou para o quarto, com a certeza de que ia
encontrar o pai esperando por ela, pronto para sair. Mas ele não
estava lá. Ele também não estava na sala de estar.
Ele tinha partido.
Ela foi apagar a luz da cozinha e viu algo familiar sobre a mesa.
As nuvens borradas de Spencer, as sequoias de Sara. E agora um rio
também, com uma garota — Annie — boiando com o rosto virado
para a água. Sara tomou um susto, largou o desenho, não quis olhar.
Mas a imagem ficou com ela mesmo assim. O cabelo cacheado de
Annie, a jaqueta jeans, tudo nas linhas cuidadosas do pai.
Ela voltou para o closet e se fechou.

Cedo na manhã seguinte, eles se reuniram no deque de Annie —


Sara, Dave, Crystal, Jimmy e Lily. O barco partiu de Monte Rio,
avançando devagar. Nenhum deles tinha dormido. Não havia nada a
ser dito.
Já tinham visto isso antes. Todo verão, turistas vinham aos
montes, a maioria deles estudantes universitários com botes e boias
infláveis e álcool demais. Os turistas lotavam as ruas, deixavam lixo
nas praias e, ano sim, ano não, um deles se afogava. Sara tinha visto
corpos sendo retirados por ganchos da água lamacenta, mas nunca o
corpo de alguém que conhecesse.
Lily se sentou ao lado de Dave, segurando sua mão. Crystal e
Jimmy ficaram juntos, dividindo um cobertor. Sara ficou atrás dos
outros, roendo as unhas até sangrar. E então o barco apareceu ao
longe, lançando o gancho, erguendo-o de volta. Os pais de Dave e
Annie estavam a bordo, e Sara não sabia o que seria pior — se
esforçar para enxergar longe ou que tudo acontecesse perto demais.
Esperaram o barco passar por eles, mas não passou. Parou a
várias casas de distância, perto o suficiente para que vissem as
pessoas reunidas num lado, olhando para algo além da amurada.
O gancho gigante baixou, e Dave resmungou, começando a se
embalar para a frente e para trás. Lily disse “Shhh, está tudo bem,
está tudo bem”. Vieram gritos do barco, que viajaram a distância que
os separava, e o gancho ergueu Annie da água.

Os rostos dos seus amigos, vermelhos, molhados, inchados. O


pânico no olhar de Dave, o vazio no de Crystal. O quanto Jimmy e
Lily tentaram acalmar os outros antes de Jimmy correr para a lateral
do deque e vomitar, e Lily entrou para ligar para casa, mas se
esqueceu do próprio número de telefone. Sara ficou parada
enquanto tudo se agitava ao seu redor. O choro que atravessava o
rio. O arco do corpo pendurado de Annie, água escorrendo das
roupas e dos cabelos.
Sara sentiu gosto de sangue na boca, se deu conta de que estava
mordendo o dedo de novo e o enfiou de volta no bolso.
Dentro dele, encontrando a ponta dos seus dedos, um papel
dobrado ao meio. Ela o tirou, desdobrou-o. Viu o nome do garoto
pela primeira vez: Grant.
Grant com seu carro que precisava de conserto. O carro que a
levaria para longe dali. Da voz do pai de Lily orando naquele
instante. Das arfadas de Dave, tentando respirar, cada fungada uma
facada no peito. Do abismo que a engoliria inteira da mesma
maneira que fez quando ela perdeu a mãe.
Ela viu o pai, o olhar dirigido ao corredor escuro.
O desenho que tinha deixado para ela encontrar — horrível
demais para ser compreendido.
Não podia ficar lá. Não naquela cidade que roubava as pessoas.
Atravessou a casa até a porta da rua.
Ainda era de manhã cedo. Pegou o ônibus até o hotel. Viu um
Honda Civic na beira da estrada e, quando chegou perto o suficiente
para ver o interior do carro, soltou o ar que prendia. Ele estava lá,
ainda dormindo, as pernas dobradas feito uma boneca de papel, a
boca aberta.
Ela bateu na janela. Ele tomou um susto, viu-a, sentou-se.
— Estava no meu sono de beleza.
— Vou com você — disse ela. — A gente precisa partir hoje.
Ela esperou na calçada com a mochila enquanto Grant falava com o
mecânico.
— Eles têm que terminar um serviço antes, então vai demorar
umas horas — disse ele ao sair.
Ela não tinha algumas horas, sentia o ímpeto de ir agora, mas
havia lhe prometido dinheiro, e tinham que buscá-lo. De início,
pensou em Maureen. Sabia que a chefe lhe daria o dinheiro se
precisasse, mas também sabia que Maureen tentaria fazer com que
ela ficasse. Lily sempre tinha um pouco de dinheiro do trabalho na
igreja, mas Sara não suportaria rever os amigos tão rápido, os rostos
manchados pelas lágrimas, a dor que ela própria sentia, refletida. Era
possível, pensou, que nunca mais conseguisse olhar para eles.
Então era isso. Só restava uma pessoa.
Sara levou Grant pela rua principal e depois por uma mais
estreita. Fazia muito tempo desde a última vez que tinha ido
andando até a casa de Eugene. Esperava que ele estivesse falando
sério quando disse que a ajudaria.
Quando Sara era criança, sua família passava fins de semana
inteiros lá, os pais dela bebendo cerveja no deque com vista para o
rio, Sara segurando a mão de Spencer enquanto o guiava pelos
degraus de madeira da casa até a costa de cascalho. Mesmo antes de
Spencer nascer, às vezes Sara e sua mãe se deitavam na doca de
Eugene, o sol banhando a pele delas.
Ela se lembrou de tudo isso enquanto se aproximava da casa — as
bandejas de lanchinhos que a ex-mulher de Eugene preparava para
eles, salgadinhos e fatias de melão — e se perguntou para onde ela
foi depois da morte da mãe de Sara, por que ela não seguira como
parte de suas vidas. Eles estavam quase no rio agora, e Sara não
queria olhar. Ficou contente por mal conseguir vê-lo atrás das
árvores.
A porta se abriu de uma vez e lá estava Eugene, sozinho, como
ela esperava.
— Sara. — Ele semicerrou os olhos.
— Preciso de ajuda — disse Sara.
— Entra — disse ele. — Você também, seja lá quem for.
Entraram, e Eugene fechou a porta. As paredes de sequoia, o
carpete felpudo, as portas de correr para o deque. Sara sabia que
seria familiar, mas era muito mais que isso. Quase conseguia ouvir a
voz da mãe. Quase se encolheu de dor por causa disso.
— Agora me fala. O que está acontecendo?
— Preciso ir embora. Vou partir hoje e preciso de dinheiro.
— Vai partir para onde?
— Não importa. Só preciso de dinheiro para chegar lá. Quanto
você puder me emprestar. Vou arrumar um emprego e mando de
volta.
Ele se encostou na porta fechada e olhou para os dois.
O que aconteceu naquele instante? Que imobilidade particular,
que luz particular? Subiu poeira do carpete quando Sara mudou o
pé de apoio, resplandecente, dispersa. Ela observou o olhar de
Eugene deixar o seu corpo e parar em Grant. Os cantos da sala se
ergueram, o chão afundando no meio. Quase imperceptível, mas
Sara sentia.
E então, sim, ali estava.
— Dinheiro é algo que precisa ser conquistado, Sara.
Ele estava olhando para o corpo dela de novo, não tentava
esconder. Havia se acostumado com olhares como aquele de
homens, mas não esperava isso de Eugene. Ele olhou nos olhos dela
e abriu o cinto. Virou-se para Grant e puxou o cinto, atravessando os
passadores um a um.
— Que porra é essa, Eugene?
— Ei — disse ele. — Você veio até mim. Eu deveria era estar
ligando para o seu pai. A escolha do que fazer é sua. Eu vou me
deitar um pouco. — Ele jogou o cinto sobre a cadeira e se dirigiu
para o corredor. — Vou deixar a porta aberta, por via das dúvidas.
Eles ficaram sozinhos, então, na sala de estar com aquele chão
afundado de merda, e estava escuro e empoeirado, mas a luz que
atravessava as venezianas tortas era brutal no seu brilho diurno. Não
tinham onde pousar o olhar.
Ela se virou para Grant.
— Vou topar — disse ela. — A gente precisa do dinheiro.
Grant engoliu em seco e fez que sim com a cabeça.
— Tá bom.
— “Tá bom” significa você vai também?
— Vou. — Os olhos dele estavam assustados, mas havia mais que
medo ali, alguma coisa que ela não conseguia identificar.
— Eu não quero que o Eugene... Não quero parte nenhuma dele
dentro de mim — disse ela.
— Talvez a gente possa estabelecer limites, dizer o que vai fazer.
— Tá bom — disse ela.
Eles olharam para o corredor, a porta do quarto escancarada. De
alguma forma, o piso havia ficado plano de novo, a luz que
atravessava as venezianas, apenas luz. Ela seguiu em frente, e Grant
foi atrás. Eugene estava sentado na cama, ainda vestido, e ela se deu
conta de que ele não tinha certeza se topariam. Ele não quis parecer
idiota.
— Eu bato uma para você — disse Sara. — Mas você não pode me
comer.
— Está se guardando para alguém especial?
Sentia Grant tremendo atrás dela, e o medo dele a fortaleceu.
— É pegar ou largar — disse ela.
— E você? — disse ele para Grant.
— Eu acho... — disse Grant. — Acho que eu faço qualquer coisa.
— Trato feito, então — disse Eugene. — Tenho trezentos dólares
em dinheiro.
— Mostra.
— Fiquem aí.
Ele voltou com o dinheiro, e ela contou.
— Tudo certo, então? — disse ele.
— Tudo — disse ela. — Tudo certo.

Ela não conseguia pensar, não se permitia pensar. No pai na noite


anterior e na coisa horrível que havia deixado para ela. No gancho e
no rio, nos amigos, no que aconteceu na casa de Eugene.
Tudo o que importava era o dinheiro no bolso, o carro que tinha
voltado a funcionar e Grant, dirigindo rápido o bastante para que ela
alcançasse Spencer na volta da escola para a casa do seu amigo
Henry, onde ele passava toda tarde. E lá estavam os dois ao longe:
dois meninos, pedalando na rua.
— Encosta aqui — pediu ela a Grant, e se debruçou na janela para
chamar Spencer. Ele a ouviu e parou a bicicleta. Ela quis abrir a porta
e sair, mas se deu conta de que não conseguia, as palmas das mãos
de repente suadas, um nó na garganta. Ela percebeu que Spencer
tentava entender quem era Grant enquanto carregava a bicicleta,
enquanto Henry esperava mais à frente na rua.
— Preciso falar com você — disse ela.
— Tá bom.
Como ela não se mexeu nem fez nada, ele abriu a porta do carro,
e ela saiu.
— A gente tem que ir.
— Para onde?
— Los Angeles.
Ele sorriu, e ela sentiu uma onda de alívio atravessá-la, até que
ele disse:
— Rá. Que engraçado.
— Não estou brincando — disse ela. Não queria dizer as palavras,
mas tinha que falar alguma coisa. — Encontraram a Annie.
Ela tentou respirar. Viu que ele entendeu.
— Não posso voltar para casa.
Ele fez que sim com a cabeça.
— Mas a gente não tem dinheiro.
— Eu tenho um pouco. Tenho o suficiente para algum tempo.
— Onde é que a gente vai morar?
— A gente dá um jeito.
— E o papai?
— O que tem o papai?
— Sara.
— Spencer. Não tem nada para a gente aqui. Por favor.
As mãos dela tremiam. Tentou impedi-las de tremer, mas não
conseguiu, então as escondeu nas costas.
— Spencer, por favor. Só entra no carro.
Ele olhou para o guidom. Com gentileza, bateu na campainha
com o dedão, e tocou tão baixo que ela mal conseguiu ouvir. Ele
repetiu, de novo e de novo, enquanto um minuto se estendia, e então
outro.
O que estava acontecendo? Todas as refeições que havia preparado
para ele. Todas as vezes que o tinha colocado para dormir, beijado
sua testa e dito que o amava.
Mas ele não estava dizendo sim. Ele não iria com ela.
— Tá bom — disse ela por fim. Sentiu o choro subir pela garganta,
mas se virou para o concreto e o suprimiu. — Eu ligo para você
quando chegar lá. Assim que tiver um número de telefone, eu te
passo. Pede para a mãe do Henry deixar você jantar na casa deles
toda noite, tá bom? E fala com ela se precisar de alguma coisa,
qualquer coisa.
Spencer fez que sim, mas ela notou que ele não entendia.
— Fica longe do Eugene — disse ela. — Está me ouvindo?
— Por quê?
— Só me promete.
— Tá bom.
— Promete.
— Eu prometo.
Mas dava para dizer que ele não entendia o que estava
acontecendo, embora ela mesma mal compreendesse. Só que ela não
podia ficar ali. Não queria que Spencer a visse chorar, mas como
poderia evitar? Tinha certeza de que ele iria com ela, e agora ele não
ia. Tinha certeza de que jamais o deixaria, e agora, ela o estava
deixando. Deu um abraço forte em Spencer enquanto seu peito
arfava, então se encolheu de volta no carro. Conseguiu fechar a
porta. Grant deu a partida, voltou para a rua, e Spencer ficou parado
olhando, a testa franzida, enquanto passavam por ele e seguiam em
frente.
— Seria difícil fazer isso com uma criança ao lado — disse Grant.
— Provavelmente é melhor assim.
Sara se virou para a janela traseira. Lá estava o seu irmão, onde
ela o tinha deixado, encarando o carro que desaparecia. Eles
seguiram pela River Road, passando pelas lojinhas que ela
frequentara a vida toda. Passaram pela loja de bebidas e pela igreja
do pai de Lily, e então Grant dirigiu rumo à ponte.
Ela pressionou os olhos com as mãos quando cruzaram o rio.
A estrada mudou, ficou mais lisa sob eles.
— E lá vamos nós — disse Grant. — Adeus, paraíso.

Incrível quão pouco dinheiro eram trezentos dólares no fim das


contas, depois de quase cem gastos no mecânico. Eles prenderam a
respiração enquanto o tanque enchia no posto de Forestville.
— Posso dirigir, se quiser — disse Sara. Em pouco tempo,
escureceria, e a jornada era de quase oitocentos quilômetros. Ela
nunca tinha viajado tão longe na vida. Estendeu a mão para as
chaves. Por favor, diz que sim. Ela precisava se ligar a algo. Queria a
responsabilidade de mantê-los numa pista, de seguir as placas da
autoestrada e virar quando devia.
Ele pareceu aliviado ao lhe passar as chaves e se jogar no banco
do carona, e ela sentiu como eram compatíveis, dizendo a si mesma
que era um bom sinal. Mas, assim que colocou o cinto de segurança,
se sentiu de volta ao quarto de Eugene. Os dentes dele nos seus
mamilos, o rosto áspero nas suas costelas. Havia tentado satisfazê-lo
com as mãos, sem reparar em como ele observava o que ela fazia.
— Se manda daqui — disse ele por fim, então ela foi para o
banheiro, onde os sons de Eugene e Grant foram abafados, e depois
para o deque, onde não conseguia ouvir nada.
Mas mais que isso — pior que isso — foi a confusão de Spencer, a
campainha da bicicleta, a sensação de deixá-lo para trás. O que foi
que ela fez?
Ficou enjoada ao dar a partida.

***

Quando chegou à Highway 5, nada era familiar. Tinha deixado a


casa para trás e sentia que poderia deixar o próprio corpo também,
fosse lá o que isso significasse. Sem dúvida, quando chegassem a Los
Angeles, sentiria que era uma nova pessoa. Grant não disse uma
palavra sequer por dezenas de quilômetros. A noite caiu. A exaustão
chegou sorrateira, e ela piscava rápido para se manter acordada.
Precisava que Grant dirigisse. Achava que ele estava dormindo, mas
então ouviu algo, olhou de relance e viu na escuridão como ele
cobria o rosto com as mãos, como seu corpo tremia.
Ele estava chorando, o que significava que estava acordado.
— Grant — disse ela. — Preciso parar um pouco.
Ele não disse nada, então ela continuou. Ajeitou a postura. Abriu
bem os olhos. Tentou achar uma boa estação de rádio, mas era
estática na maior parte do tempo. Eles estavam no meio do nada.
Quando deixou a autoestrada na saída seguinte, Grant chorava
tanto que não olhou pela janela para ver por que tinham
desacelerado e feito uma curva, as rodas no cascalho, a porta do
motorista sendo aberta e fechada.
O atendente do hotel de beira de estrada pediu para ver a
identidade de Sara.
— Tive a carteira roubada — disse ela.
Ela entendeu que essa seria sua vida então, até completar dezoito
anos. Não ofereceu nenhum detalhe, só olhou nos olhos dele e
esperou.
O atendente a analisou.
— Não posso deixar ficar sem identidade — disse ele por fim.
— Quanto é o quarto? — perguntou ela, como se não tivesse
ouvido.
— Setenta e nove dólares.
Ela pegou o dinheiro de Eugene do bolso e contou. Passou para o
atendente e ele suspirou.
— Tá bom — disse ele.
Tão fácil.
Grant ainda chorava. Ela abriu a porta do carona e se inclinou
sobre ele para soltar o cinto. Não podia oferecer nenhuma palavra de
conforto. Partiria ao meio se fizesse isso. Mas o quarto era para ele.
Ela poderia ter estacionado em algum lugar, ido para o banco de trás
e dormido até conseguir dirigir de novo.
— Vamos para dentro — disse ela. — Vamos tomar banho.
Ela o deixou ir primeiro. Ele demorou bastante. Quando ele saiu
do banheiro, ela sentiu o corpo todo coçando, se sentia coberta pela
saliva de Eugene mesmo nos lugares em que ele não tinha tocado.
Levou um susto com a sombra de alguém passando lá fora. O som
fraco de risadas de claques numa televisão no quarto ao lado a
faziam estremecer.
No banho, ela esfregou e esfregou, a água quente, a pele cor-de-
rosa, cada parte dela que poderia ser lavada agora estava limpa.
Ela saiu enrolada numa toalha.
— A gente deveria dormir aqui hoje? — perguntou ele.
— A gente pagou pelo quarto — soltou Sara. — Então, é, eu acho
que deveria. — Ela se sentou na cama.
— Tá bom — disse ele.
Havia um fio do lençol solto. Ela agarrou a ponta e puxou.
— Eu lavei as minhas roupas no banho. Não estou tentando ser
esquisita.
Ele atravessou o quarto e abriu a bolsa de viagem, encontrou uma
camiseta limpa e passou para ela.
— Obrigada. — Ela colocou a camiseta. Olhou de relance para
baixo e viu um desenho do Mickey Mouse escondendo um buquê de
rosas vermelhas nas costas. — Qual é a dessa camiseta?
— A minha prima comprou na Disney — disse ele. — Foi
presente.
Ela arregalou os olhos, quase riu. Apagou a luz, e os dois
pegaram no sono.

O hotel foi um erro. Ainda não sabiam disso de manhã, quando


acordaram, ou quando gastaram quatro dólares em Egg McMuffins e
um copo de café para dividir. Mas, pouco depois do meio-dia, eles
precisavam de gasolina.
— Mas já? — disse Sara, tentando calcular. Era cedo demais para
estarem sem combustível.
— É, mas está tudo bem. Foram trinta dólares em Forestville e a
gente só gastou mais cinco.
— Não — disse Sara.
— Ah, certo. — Eles ficaram em silêncio enquanto paravam ao
lado da bomba de gasolina. Grant desligou o motor e se virou para
ela. — Quanto foi o quarto?
— Oitenta.
Ele apertou a mandíbula.
— Eu estava cansada demais para continuar. Pedi ajuda, mas
você não ajudou. — Mas ela sabia que os dois estavam em
frangalhos... os dois. Havia achado que era por ele, mas estivera
errada. Os dois precisavam daquilo.
— Tá bom — disse ele. — Talvez se a gente não ligar o ar-
condicionado. Talvez se a gente dirigir em ponto morto o máximo
que conseguir.
— Talvez — disse ela.
Mas custou trinta e cinco dólares encher o tanque e, ao longo dos
trezentos quilômetros seguintes, eles observaram a gasolina acabar
rápido demais. Quando o tanque esvaziou, estavam na base da serra
que separava o vale central de Los Angeles, e Sara se deu conta de
que Los Angeles não significava nada de qualquer forma. Eles não
tinham aonde ir, mesmo quando chegassem lá, e nenhum dinheiro
para se cuidar.
Grant saiu da autoestrada e estacionou na rua.
— Estou com uma fome do caralho. Não como nada de verdade
tem uma semana. Não sei se gasto em gasolina ou em comida. Se a
gente nem dinheiro suficiente tem para chegar a Los Angeles...
Sara olhou pela janela: uma rua principal. Dois postos de
gasolina. Um hotel de beira de estrada. Uma lanchonete. Uma longa
fileira de caminhões.
— Vamos comer — disse ela. — Quero bater um pratão.
Eles dirigiram até o estacionamento da lanchonete para que Grant
pudesse deixar as coisas dentro do carro enquanto comiam.
Escolheram uma cabine perto da janela e se sentaram, receberam
cardápios e pediram café. Aquele conforto. Aquela normalidade. Ela
talvez não soubesse como pagariam, nem o que lhes aconteceria em
seguida, se eles atravessariam a serra ou o que esperava por eles se
atravessassem. Mas podia comer ovos, hashbrowns e panquecas com
manteiga e xarope de bordo. Podia beber uma xícara de café que
seria enchida sem parar.
Annie tinha partido, e Sara não entendia como o mundo ainda era
mundo. Como ela podia estar sentada numa lanchonete com esse
prato de comida, como seus pés podiam se apoiar no piso, como ela
poderia desenrolar o guardanapo de papel e encontrar um par de
talheres limpos?
Mas ela já passara por esse choque em particular uma vez, então
sabia que não significava nada quando deu uma mordida e era
gostoso. Teria o mesmo sabor quer Annie estivesse viva, quer não.
Eles ficaram na cabine sem falar por muito tempo depois de
terminar as refeições. A garçonete trouxe a conta e eles ficaram
aliviados ao ver que tinham dinheiro para pagar e até dar gorjeta,
apesar de isso significar que não sobraria nada. Ficaram tanto tempo
que ela voltou depois de escurecer.
— Acabou de sair do forno uma torta de nozes — disse ela.
Grant fez que não com a cabeça.
— Alguma chance de vocês estarem precisando de ajuda com a
louça hoje?
Sara notou que ela olhou de relance para a conta e ficou aliviada
ao ver que tinham pago.
— A gente está com a equipe toda hoje, mas acho que o Bruce no
Quality Inn falou que precisava de uma ajuda. Vocês podem conferir
lá.
Sara agradeceu.
O hotel não era charmoso como o Vista, nem de perto, mas ainda
era uma experiência familiar. Bruce disse que só precisava de uma
pessoa e escolheu Sara porque ela tinha experiência. Perguntou se
ela estava procurando trabalho fixo ou se estava só de passagem, e
Sara lhe disse a verdade.
— Vem de manhã às nove — disse ele. — Mas, se eu arrumar
alguém que puder ficar, o acordo termina.
Sara fez que sim.
— Alguma chance de ter um quarto livre? Eu limpo tão bem que
você não vai nem notar que a gente esteve aqui.
— Claro, tem um quarto livre — disse ele, mas, justo quando ela
estava começando a agradecer, acrescentou: — por sessenta e cinco
dólares a noite.
Ela ignorou o sorrisinho de escárnio dele, disse a si mesma que
uma noite ou duas no carro de Grant não seriam tão ruins assim.
— A gente se vê às nove, então.
— Estarei aqui.

Na manhã seguinte, Sara bateu a uma porta e prestou atenção. Nada.


Destrancou o primeiro quarto disponível e entrou. Uma cama, duas
mesinhas de cabeceira, uma cômoda com gavetas, um banheiro com
banheira. Era muito menor que as suítes a que estava acostumada,
não demoraria muito. Já havia terminado três quando abriu a porta
de um quarto, fechou depois de entrar, baixou o cesto com produtos
de limpeza e suspirou. Tinha outros nove além deste, mas estava
indo rápido.
— Bom dia, querida — ouviu Sara, e pulou de susto. Ela se virou
para ver quem tinha falado. Era uma mulher magra, sentada na
cama de camiseta preta e com um colar com um pingente prateado.
Cabelo bagunçado, maquiagem borrada sob os olhos.
— Ai, meu Deus, me desculpa — disse Sara.
— Não se preocupa. Eu estava dormindo que nem morta. Não
ouvi bater.
— Volto mais tarde.
— Não, espera. Nunca vi você por aqui antes. Eu me chamo
Vivian. — Ela se inclinou apoiada na cabeceira da cama e olhou para
Sara de cima a baixo. — Que desperdício de beleza. O que está
fazendo aqui?
Sara não sabia como responder. Queria seguir para o próximo
quarto, para longe disso. Mas nenhuma mentira lhe ocorreu.
— O meu amigo e eu estamos a caminho de Los Angeles.
— E ficaram sem dinheiro?
Sara fez que sim com a cabeça.
— Quanto o Bruce está pagando por isso?
Ela se deu conta de que não tinham fechado um preço.
— Provavelmente quase nada — continuou Vivian. — Posso
conseguir esse dinheiro para você muito mais rápido. O seu amigo é
bonito que nem você?
Ela quis dizer que não estavam interessados. Mas a lata de lixo, as
luvas, o material de limpeza, arrancar cabelo de estranhos de ralos
de pias e chuveiros... Era tão familiar que a assustava. E se nunca
fosse além disso? Ela se via congelada no tempo, presa do lado
errado das montanhas Tehachapi, limpando quarto após quarto, de
manhã até a noite. Precisava chegar a Los Angeles, não importava o
que a cidade pudesse oferecer. Se essa era a rota de fuga, então eles
aceitariam. Eles já haviam aceitado uma vez.
Sara terminou o turno, foi paga pelo dia de trabalho e encontrou
Grant encostado no carro lendo um exemplar da revista People
manchada de óleo. Ela contou sobre Vivian.
— Ela tem tudo planejado. Ela faz bastante isso, eu acho. Disse
que ninguém liga. Ninguém vai pegar a gente. E, se a gente ficar
uma semana, vamos ter dinheiro suficiente para começar a vida em
Los Angeles.
— E você quer fazer isso? — perguntou Grant.
Ela o encarou.
— Está falando sério?
— Só estou dizendo...
— Eu quero dar o fora daqui — disse Sara. — Quero chegar em
Los Angeles.
— Sei lá — disse Grant. — Quer dizer, eu entendo o que você está
dizendo, mas não compreendo por completo. Você foi paga, não foi?
— Quinze dólares.
— Você trabalhou por quatro horas por quinze dólares?
— Quanto dinheiro você arrumou? Ou estava ocupado demais
lendo?
— Eu procurei em tudo que é canto hoje de manhã. Nos postos de
gasolina, nos fast-foods e naquele outro hotel. Não tem ninguém
contratando. Mas, se você limpar amanhã de novo e a gente não
comer hoje, vamos ter trinta dólares, e isso é suficiente para chegar
lá.
— Mas e depois?
— Depois a gente vai estar em Los Angeles.
— E a gente vai continuar sem dinheiro nenhum. Olha. Vai ser só
uma semana. Vamos usar camisinha. Vivian vai lidar com tudo para
a gente.
A fila de caminhões assomava intimidante diante deles, fileiras de
caminhões e motoristas solitários. Ela não colocaria limites desta vez.
Faria o que Vivian mandasse, e Grant também. Podiam ser
pragmáticos, não precisavam ser o tipo de gente que chora no carro
depois, ou que esfrega a pele até ficar em carne viva.
— A gente faz só por uns dias — disse ela. — E aí finge que
nunca aconteceu.
— Foi mal. Você pode fazer isso se quiser, mas eu não consigo.
Ela fechou os olhos.
— Trinta dólares não são o suficiente — disse ela. — A gente tem
que comer. A gente precisa de pelo menos uma noite num hotel em
Los Angeles, mesmo que seja só para tomar banho. Se não, quem é
que vai contratar a gente?
— Tem que ter outro jeito — disse Grant.
Mas ela estava revirando a cabeça, as fileiras de caminhões, a
linha do horizonte, o céu aberto.
— Consegue pensar em um? — perguntou ela.
Ele não respondeu.
— Vou fazer por nós dois, então — disse ela.

***

Passaram outra noite no estacionamento, e o sol nasceu, e Sara saiu


do carro tremendo com uma fome que tentou ignorar, duas moedas
de cinquenta centavos no bolso. Levou o dinheiro até a cabine
telefônica, se fechou nela e ligou para casa.
— Sou eu — disse ela quando Spencer atendeu.
— Oi. — Ela tinha a expectativa de ouvir alguma coisa diferente
em sua voz, tristeza ou raiva ou alívio de ter notícias dela, mas não
conseguiu distinguir nenhum sentimento. — Você está bem? —
perguntou ele.
— Estou — disse ela. — E você?
— Tô. Já chegou?
— Ainda não — disse ela, mas não quis preocupá-lo. — Quase. —
Eles ficaram na linha, respirando juntos. A rua estava quase deserta.
Um caminhão parou no estacionamento. Ela vislumbrou o motorista,
lembrou-se do que o futuro lhe guardava e se virou para o lado da
montanha, onde havia uma mulher empoleirada numa rocha alta,
puxando algo do chão e colocando num copo. Percebeu que era
Vivian.
— Tenho que ir para a escola — disse Spencer.
— Tá bom. Vou ligar de novo logo, logo.
A cabine telefônica ficou em silêncio. Ela escutou a própria
respiração. Lá estava. Ela ainda era parte do mundo.
Sara se inclinou sobre o painel de vidro da cabine. Vivian, ao
longe, levou o copo aos lábios e bebeu. Como seria o dia delas?
Quantos homens Vivian arrumaria para ela? Quanto dinheiro
conseguiria? O suficiente, ao menos, para que atravessassem a serra.
Então eles poderiam procurar algum abrigo onde dormir por um
tempo. Ela arrumaria algum emprego de faxina. Começaria uma
vida nova.
Saiu da cabine telefônica e atravessou o estacionamento para a
base da montanha, onde o asfalto virava grama.
— Bom dia, flor do dia — disse Vivian do alto da rocha.
— Vi você da cabine telefônica. O que colocou no copo?
— Vem cá que eu te mostro.
Sara subiu com cuidado, testando o chão debaixo dos pés para se
certificar de que aguentaria. Sentia as pedrinhas e os galhos sob as
solas finas dos tênis de lona. Ela se sentou ao lado de Vivian numa
rocha.
— Aqui — disse Vivian, arrancando um galho de um
emaranhado de folhinhas verdes. — É a erva boa. Yerba buena. Ela
cura. Pega isso e coloca num copinho com água quente. A Sue no
mercadinho te dá o copinho e a água de graça.
— Ela cura o quê?
Ela apaga memórias, imaginou Vivian dizendo. Ajuda a
desapaixonar. Ela conta o futuro, para que possa aguentar com mais
facilidade os dias até lá.
— O que quer que precise ser curado. É tudo uma questão de
intenção.
— Certo — disse Sara. — Tá bom. — Era só uma graminha que
cresceu no chão. Ela sentia uma dor bem no baixo-ventre.
— Você pode escolher não acreditar. É por sua conta. Mas um
olhar otimista te leva longe nessa vida. Esteja aberta às
possibilidades, esse é o meu melhor conselho para você. Então, já
está pronta para o dia? A que horas começa no hotel?
— Nove.
— Passo lá com o nosso primeiro cliente às onze. Limpa os
quartos o mais rápido que puder nessas duas horas. Toma banho
num dos quartos para estar perfumada. Vai dar tudo certo. Eu julgo
bem o caráter e vou escolher os mais simpáticos para você. Mas, se
alguma coisa parecer esquisita, dá o fora o mais rápido possível. A
maior parte deles é só solitária, mas alguns são cruéis.
Sara fez que sim, engolindo o pavor. Ela se levantou, o galhinho
de yerba buena na mão, e foi até o mercadinho onde, como Vivian
disse, uma mulher chamada Sue a deixou sair com um copinho de
água quente sem cobrar nada.
Grant ainda se estendia no banco de trás. Ela abriu a porta do
carona e entrou, acordando-o ao bater.
— Oi — disse ele, sentando-se e sorrindo, feliz de vê-la. Isso fez
com que ela sentisse, por um instante, como se sua vida nova já
estivesse começando. Exceto pelo dia inteiro pela frente. Havia
passado a noite inteira tentando não pensar no que aconteceria,
como os homens seriam e o que poderiam querer dela. Tarde da
madrugada, quando enfim pegou no sono, sonhou com Annie. Ela
estivera sussurrando algo para Sara, sussurrando ao pé do seu
ouvido, mas Sara não conseguia decifrar o que era.
Ela se perguntou se as palavras poderiam vir a ela agora que
estava desperta. Em vez disso, ouviu “Alguns são cruéis”. Precisava
de outras palavras.
— Me diz por que você estava chorando.
— Quando?
— No carro, depois da coisa toda com o Eugene.
Ele se mexeu no banco, esfregou o pescoço.
— Não quero falar disso, na verdade.
— Não, tá bom. Aqui, eu fiz isso para você. Encontrei crescendo
no pé da montanha.
Ele pegou o copinho descartável das mãos dela e ela desejou
poder continuar com o calor que a deixava. Mas agora o copinho
esquentava as mãos dele, e isso era bom também. E ele lhe contaria
algo que ela queria saber.
— Está tentando me matar?
— É yerba buena — disse ela. — Parece que é curativa.
Ele deu um gole.
— É bom — disse ele. — Nunca tomei um chá assim.
— Me conta.
— Deus do céu, Sara. Eu ainda estou acordando. Tá bom. Eu fui
para Russian River porque queria conhecer um cara.
— Um cara específico?
— Não, só... ouvi dizer que muitos gays frequentavam a área.
— Ah — disse ela. — É verdade. Mas no verão, na maior parte do
tempo.
— Ouvi dizer que era uma cidade pequena e pensei que poderia
ser mais fácil encontrar alguém lá do que em São Francisco. Ou
menos apavorante, acho.
Seu rosto estava rosado. Os olhos dele evitavam os dela. Quis
facilitar para ele.
— Espera aí — disse ela. — Você foi para Russian River para
transar e levou uma camiseta do Mickey Mouse?
Ele sorriu.
— Qual é o problema da merda do Mickey Mouse?
— Tem razão — disse ela. — Todo mundo sabe que se deve usar
uma roupa do Mickey Mouse para transar.
— Talvez esse tenha sido o meu erro — disse Grant.
Ele deu uma piscadela, mas parecia triste apesar disso. Tomou
outro gole. Ela esperou.
— Mas eu não conheci ninguém. Ou talvez tenha conhecido, sim,
mas... Fui a um bar e um cara tentou falar comigo, e fui embora. Não
consegui. Não sei por quê.
— E eu te levei para a casa do Eugene.
— Pois é. E foi esquisito. Quer dizer, eu não estava procurando
nada daquele tipo. Mas o grande motivo de eu acabar lá foi que não
queria ser virgem quando chegasse a Los Angeles. Eu não queria
que fosse todo um lance quando enfim conhecesse um cara que
quisesse namorar. Eu queria saber o que estava fazendo. Mas você
foi esperta de não deixar ele te comer. Eu deixei e mesmo assim não
sei o que estou fazendo. Sou só nojento agora.
— Você não é nojento — disse ela.
— Aliás, de onde você conhecia aquele sujeito?
Ela pegou o copo das mãos de Grant e deu alguns goles. Aquilo a
aqueceu, e ela se sentiu grata pelo perfume, cobrindo o cheiro
rançoso de corpos num ambiente fechado por tanto tempo.
— Ele é amigo do meu pai — disse ela. — Ele me conhece desde
que nasci.
— Ai, cara. Sinto muito.
— É... Quer dizer, não importa — disse ela, tentando não pensar
em quando esteve de mãos dadas com Spencer a caminho do rio ou
sentados no tapete felpudo, a mãe fazendo carinho nos seus cabelos.
— São todos uns cuzões. Eu já sabia disso. — O sol brilhava através
das janelas naquele momento, o brilho da manhã, e logo ela teria que
ir para o hotel. — De qualquer forma, acho que ninguém sabe de
verdade o que está fazendo.
— Obrigado — disse Grant.
— E provavelmente vai ser muito especial da próxima vez —
disse ela. — Para você.
Ela se encostou no interior da porta do carro e o avaliou. O cabelo
caía sobre os olhos, o jeito como inclinava a cabeça para enxergar
melhor. Ele tinha maçãs do rosto salientes e uma bela mandíbula. O
dente lascado era surpreendente e fofo. Sem dúvida, um dia, a
confiança que havia demonstrado na espreguiçadeira com sua
revista voltaria, com certeza encantando um monte de caras. Talvez
só precisasse de fileiras de palmeiras e brisa marinha, e então ele
recuperaria seu sorriso.
— Por que Los Angeles? — perguntou ela, e, enquanto formulava
a pergunta, se deu conta de que poderia estar errada. Ele poderia
conhecer alguém lá. Eles poderiam ter um sofá onde dormir, enfim,
um prato de comida.
— Quero ser ator — disse ele.
Ela fez que sim com a cabeça, tentou esconder a frustração.
— Tá bom — disse ela. — Vou começar o meu turno. — Mas não
se mexeu.
— Você sabe que não precisamos fazer isso. Não desse jeito. Você
pode só limpar os quartos. Eu posso falar com aquela senhora, se
quiser. Eu desmarco tudo, e a gente pode só ir. Talvez com quinze
dólares dê para chegar lá.
Ela olhou para a cadeia de montanhas pela janela: parecia se
estender para sempre.
— Não — disse ela. — Está tudo bem. Eu consigo.
Ela parou na recepção para pegar o molho das chaves.
— Voltou — disse Bruce.
— Aqui estou. — Ela carregou os produtos e puxou o cesto de
lençóis escada acima antes de fazer o mesmo com o lixo. Toc-toc na
primeira porta. Esperou. Sem resposta. Ela entrou e agiu rápido,
como Vivian tinha mandado. Não limpou tão bem quanto
costumava no Vista, nem mesmo tão bem quanto no dia anterior. Só
bem o suficiente para não perder o emprego antes do final da
semana. A cada quarto que terminava, vinha um pavor que só
piorava até suas mãos começarem a tremer e ela achar que ia
vomitar num vaso sanitário ao esfregá-lo. São só pessoas, tinha lhe
dito Annie uma vez. Só corpos. Ela havia recuperado essas palavras
pelo conforto, mas elas a faziam pensar no próprio corpo de Annie
— nu no chão da floresta, à luz de velas na cama do Vista, sendo
erguido do rio num gancho — e sabia que um corpo tinha que ser
mais que isso.
Às dez e meia da manhã ela tinha limpado todos os quartos
exceto um. Estava com a respiração pesada de tanto esforço, de subir
e descer escadas para enfiar lençóis sujos na lavanderia e esvaziar a
lixeira na caçamba dos fundos. Uma hora e meia atrás, onze horas
parecia muito distante, mas agora Sara ficava conferindo o relógio,
esperando os minutos avançarem de repente e a pegarem de
surpresa. E ela não conseguia tirar Annie da cabeça, o jeito como a
havia tocado, como impelira seus dedos para dentro dela, como
deslizara a língua pelas meias-luas onde os seios encontravam as
costelas. Como aquilo, antes, parecia certo. Como tudo isso, agora,
parecia errado.
Sara enfiou bem os lençóis lavados embaixo do colchão. O hotel
estava silencioso, Vivian e seu primeiro estranho a meia hora de
distância.
Ela tomaria um longo banho no banheiro que tinha acabado de
limpar. Um pequeno conforto para combater o pavor crescente.
Enquanto se despia, imaginou Annie chegando ali, na base das
montanhas, na porta desse hotel de merda usando sua jaqueta jeans
e dizendo: “Como é que você chegou a pensar em deixar alguém
além de mim encostar em você? Qual é, vamos embora.” Ela puxaria
o braço de Sara e elas correriam escada abaixo para o carro de Grant,
e eles três sairiam em disparada.
Sara abriu a água, entrou no chuveiro. Fechou os olhos e sentiu o
calor. Lavou os cabelos e os enxaguou. Quando abriu os olhos de
novo e olhou para baixo, viu vermelho na água.
Colocou a mão entre as pernas.
Ah.
Tinha absorventes internos na mochila. Desembrulhar um era tão
familiar quanto voltar para casa. Seu corpo, confiável, apesar de
tudo que tinha dado errado. E ali estava: a resposta que buscara mais
cedo, não do céu, ou dos caminhões, ou do horizonte, no fim das
contas. Ouviria com mais atenção dali em diante.
Ela se vestiu rápido, certificou-se de que o banheiro estava limpo
e devolveu os produtos para os seus devidos lugares. Enquanto
Vivian já devia estar batendo às portas à espera de que Sara abrisse
uma delas, Sara estava exigindo trinta dólares de Bruce em vez dos
quinze do dia anterior. Eles fecharam em vinte e cinco, e, com o
dinheiro em mãos, ela correu as quadras até o Civic, passando pelas
fileiras de caminhões, passando pelos estranhos que continuariam
estranhos para sempre afinal de contas. Grant havia encontrado para
eles uma caixa de batatas fritas, frias, mas quase intocadas, e um
pacote de ketchup. Ele tinha posicionado os dois no painel do carro
para quando ela voltasse.
Ela bateu na janela, muito mais cedo do que o esperado. Ele se
sentou empertigado, olhou pelo vidro. Pôs a mão no peito ao vê-la.
A FLORICULTURA E O ESTÚDIO

Emilie no calor do verão de Los Angeles. Calça jeans cortada para


virar um short, a pele no tecido do banco do seu Toyota Tercel,
estacionando na casa dos pais para um brunch. E lá estava a Sra.
Santos, cuidando do jardim da frente e acenando.
— Senti saudades — gritou Emilie, atravessando a rua até ela.
Emilie trabalhara como recepcionista na imobiliária dos Santos
até o mês anterior. Era uma tarde normal no escritório. Havia
acabado de repor canetas e clipes de papel nas mesas quando
despencou uma quietude. Ela se virou e viu o Sr. e a Sra. Santos e
Randy, o filho mais velho deles, parados na recepção com um bolo.
— Feliz aniversário de cinco anos! — disse o Sr. Santos, e todos
celebraram e foram até ela.
Randy deixou o bolo na mesa, inhame de um roxo brilhante e
coco bem branco, um dos pratos filipinos que ela comera ao longo da
infância na casa deles.
— Ube — disse ela. — O meu preferido.
Mas mal conseguiu proferir essas palavras. Cinco anos? Era para
ter sido um bico no verão, algo para pagar o aluguel entre o primeiro
e o segundo ano da faculdade. Emilie encarou as pequenas chamas
das cinco velas e começou a chorar, e a Sra. Santos disse “Está tudo
bem, está tudo bem”, enquanto o Sr. Santos fingia receber uma
ligação e se fechava no escritório.
— Você sabe que ele é péssimo com emoções — disse Randy. —
Mas nós entendemos.
— Estou sendo mal-educada. Vocês fizeram um bolo para mim.
Têm sido tão bons comigo.
E tinham sido. Suas responsabilidades consistiam em atender
ligações, passar café e falar com o Sr. Santos sobre receitas e
observação de aves (apesar de Emilie não cozinhar nem observar
aves), e, nos melhores dias, Pablo dava um pulo ali e girava na
cadeira de escritório de Randy e fazia Emilie girar na dela e eles
ficavam tontos e olhavam para o teto amarelado do escritório como
se fosse o céu, maravilhados com músicas que adoravam ou filmes
que tinham visto. Às vezes, Pablo mostrava fotos das suas últimas
colagens e desenhos no computador do escritório para que ela
analisasse. Às vezes, ele lia trechos dos ensaios dela, e todos
aprovavam totalmente até que ela os imprimia, cada nova versão,
páginas e mais páginas com espaçamento duplo.
— As impressões contam como gasto da empresa — diria o Sr.
Santos, estendendo o braço para a impressora como se concedesse a
Emilie seu pequeno reino de papel e tinta.
Tinha sido tão fácil ficar. Os anos passaram despercebidos. Havia
sido bom, mas seu momento tinha acabado, e a Sra. Santos disse:
— Vamos comer bolo enquanto decidimos o que você vai fazer
depois daqui. — E Emilie havia parado de chorar, grata por ser
compreendida.
Agora, em seu jardim, a Sra. Santos disse:
— Colette chegou faz poucos minutos. Brunch em família?
Emilie ergueu a garrafa de suco de laranja que havia sido
instruída a trazer ao confirmar que viria.
— Como ela está? — A mesma pergunta, feita tantas vezes ao
longo dos anos. Emilie deu de ombros.
— Nunca se sabe com a Colette.
— Pobre menininha.
— Mulher — lembrou Emilie. — Ela já está com vinte e oito.
— Vocês são todas tão jovens ainda. Mas, sim, ela é uma mulher
agora. Pobrezinhos dos seus pais. E você também, Emilie. É bom
descansar. Terminar os estudos. Sempre vamos ter um lugar para
você no escritório se precisar de umas horas aqui e ali. Randy está
adorando trabalhar como corretor...
— Papelada demais. Me conta dessas flores. Parecem papoulas-
californianas, mas são cor-de-rosa.
— Uma híbrida. Não são lindas?
Dentro de casa, Emilie colocou o suco de laranja na bancada e deu
um beijo na bochecha da mãe e depois na do pai. Os dois usavam
aventais listrados, o cabelo de Lauren elegantemente fora do rosto,
Bas gingando ao som de Neville Brothers. A máquina de waffle
soltava vapor, o bacon estalava. Café pingava no bule.
— Será que vamos ser nós um dia? — perguntou Colette,
surgindo atrás dela, falando baixo perto do ouvido. — Presas para
sempre à música da nossa juventude?
Emilie inclinou a cabeça um pouco mais perto, sentiu a
empolgação de receber a atenção de Colette.
— Não seria um problema para mim. Desde que a gente não use
avental combinando.
Colette jogou a cabeça para trás e riu, e Emilie foi inundada pelo
amor, com um toque de arrependimento. Como ela podia se
esquecer do quanto se divertiam quando estavam juntas?
O bairro de uma terminava onde o da outra começava, mas, ao
longo dos anos, elas estabeleceram uma distância hesitante. Às
vezes, elas se esbarravam em cafés ou restaurantes.
— Eu não sabia que você vinha aqui — diria uma delas.
— Fica a, tipo, três minutos da minha casa — responderia a outra.
Quando estavam com amigos, os encontros acidentais eram mais
breves e mais agradáveis. Quando estavam sozinhas, Emilie se sentia
culpada por não ligar com mais frequência, não conferir como
Colette estava ou se precisava de algo. Uma vez, na fila de uma
cafeteria, Emilie vislumbrou Colette sozinha a uma mesa, lendo, e
deu meia-volta e saiu. Era muito difícil saber a coisa certa a fazer.
Sentar-se em outra mesa seria reconhecer a distância entre elas.
Poderia ter se sentado na cadeira vazia ao lado para ficar lendo ao
lado de Colette, mas isso seria um fingimento grande demais. Elas
não eram esse tipo de irmãs. Não havia silêncios familiares
confortáveis. Falavam ao telefone quando necessário, se faziam
favores, se juntavam para reuniões familiares, mas nunca se sentiram
bem na presença uma da outra.
Pelo menos não desde a adolescência.
— Me ajuda a pôr a mesa — disse Colette.
Pegaram o jogo americano azul e os guardanapos que
combinavam, os talheres e os copos e os levaram para fora, para a
mesa no deque que haviam ajudado a construir uma década antes.
Colette entrou de volta, e Emilie fechou os olhos e ficou parada,
ouvindo o oceano. Estava a apenas quatro quadras de distância, mas,
com o trânsito e as pessoas, era fácil o som se perder. Colette voltou
com água com gás e suco de laranja e os potes de pimenta e sal em
forma de pássaros.
— Tá na mesa! — disse Lauren, agora sem avental, indo para o
deque com uma travessa de frutas.
— Nossas meninas lindas — disse Bas, indo atrás de Lauren com
os waffles e o bacon. — Contem todas as novidades.
Colette começou. Estava dando uma tutoria voluntária onde sua
melhor amiga trabalhava: uma organização sem fins lucrativos que
havia começado em São Francisco e agora tinha uma sede em Los
Angeles.
— Você entra e é essa loja engraçada, onde tudo é temático de
viagem no tempo.
— Não sei se entendi — disse Lauren, servindo café.
— É quase como uma daquelas lojas com fantasias e coisas para
pregar peças, e as coisas são bem legais. Mas isso não importa
tanto... As aulas acontecem nos fundos. Eu vou algumas tardes por
semana quando as crianças saem da escola e ajudo com o dever de
casa.
— Você sempre foi boa com crianças — disse Bas.
— Foi mesmo — disse Lauren. — Parece perfeito para você.
Emilie não conseguia se lembrar de uma única ocasião em que
viu a irmã interagindo com uma criança. Mas era possível que
tivesse deixado isso passar. Era provável que tivesse deixado isso
passar. Mesmo que Emilie não tivesse se mudado para muito longe,
apenas de Long Beach para Echo Park, ela conseguia se desligar da
família de tempos em tempos. Ela os via de novo depois de algumas
semanas e sempre havia uma história nova entre os três. Um jantar
ou uma visita a um museu, algo que não tinham contado, mas que
não estavam exatamente escondendo.
Uma vez, depois de ouvir sobre uma viagem de fim de semana
para o Parque Nacional de Joshua Tree, Emilie pediu licença para ir
ao banheiro e se sentou no vaso, rolando o chat da família,
certificando-se de que não havia perdido o convite.
— Eu sempre quis ir a Joshua Tree — disse ela ao retornar para a
mesa.
— Você devia ter vindo junto — disse Lauren.
— Ninguém me falou nada.
— Bas, você falou para ela, não falou?
— Achei que você ia falar. É claro que estava convidada, Em... A
gente achou que você estaria ocupada.
— Talvez na próxima me convidem — disse Emilie, encarando o
prato.
Mas estavam juntos agora, e era a sua vez de compartilhar as
novidades.
— Bom, vocês sabem que deixei a imobiliária.
— Já era hora — disse Lauren. — Quer dizer, os Santos são
maravilhosos, mas você não podia trabalhar para eles para sempre.
— Tenho que decidir o que fazer em seguida, mas tenho algumas
ideias. E semestre passado fiz uma aula de estudos de gênero que se
concentrava em escritoras, e nós lemos umas peças e romances
incríveis. Decidi que é isso que quero estudar. Literatura. Então mexi
numas coisas no currículo e...
— Não — disse Lauren. — Não. Emilie.
Emilie sentiu o rosto esquentar.
— Eu sei, parece loucura, mas tenho bastante certeza dessa vez.
Eu me matriculei para as aulas e elas parecem incríveis.
— Eu perdi a conta — disse Colette. — Primeiro foi estudos
étnicos, depois de gênero?
— Teve design no meio — disse Bas. — Se não me engano.
Emilie fez que sim com a cabeça.
— Teve. Teve design no meio.
— Então essa é a quarta vez que você muda de especialização. —
Lauren suspirou, empurrando o prato para longe. — E você está
chegando no seu... sétimo ano de faculdade?
Era a quinta especialização, na verdade. Ela ficou aliviada por
eles terem se esquecido de botânica. Ela encheu o copo de água de
novo. Ficou grata quando a conversa seguiu em frente.

***

O brunch tinha terminado, e ela estava dirigindo de novo, a poucas


quadras do seu conjugado, quando viu a mulher pendurando a
placa de contrata-se na janela da floricultura. Destino, pensou ela,
encostando o carro.
A conversa da faculdade ficou agarrada nela por mais que
tentasse afastá-la, dizendo a si mesma que não importava, que
estavam apenas preocupados. A maioria das pessoas ia para a
faculdade atrás de um diploma, ela disse a si mesma. Ela ia atrás de
educação. E, então, quem se importava se demorasse muito? Ia
deixar toda aquela conversa de lado. Lá estava o sol da tarde do
verão, o calor da calçada, a floricultura ali perto. O suficiente para
aliviar aquela fustigada por um tempinho.
Era o oposto do escritório da família de Pablo: tudo era
desavergonhadamente lindo. Os verdes brilhantes e profundos das
plantas da calçada contra a fachada azul-quase-preto. O brilho dos
vasos de metal, o calor dos vasos de argila. No interior, cheiro de
terra molhada e velas.
A mulher que havia pendurado a placa pouco antes agora estava
atrás do balcão.
— Oi — disse Emilie, e estendeu a mão.
Ela fez a entrevista naquele exato momento. Jamais havia
trabalhado para uma florista antes, mas tinha feito um curso de um
fim de semana de design floral, armara muitas guirlandas, até
montara as flores para o minicasamento de uma amiga da faculdade.
E, é claro, havia as lições que a Sra. Santos havia lhe dado ao longo
dos anos. A reverência que tinha transmitido.
Meredith, a dona da loja, pediu que ela preparasse alguns
arranjos de amostra e Emilie se pôs a trabalhar.
Ela queria esse emprego. Sentia que era a coisa certa. Pensou que
a beleza daquilo poderia atrair alguma parte dormente dentro dela e
acordá-la num choque.
— A florista que você vai substituir cuidava das contas dos
restaurantes — disse Meredith. — Olive, The Grant Club, Yerba
Buena, Silverado...
— Eu adoro o Yerba Buena — disse Emilie. — Bebi o meu
primeiro drinque legalmente lá quando completei vinte e um anos.
— Uma escolha sofisticada para uma garota de vinte e um.
— É o restaurante favorito dos meus pais. Eles se agarram a
qualquer oportunidade para ir lá. Na verdade, eu já notei os arranjos
florais deles. Um monte de galhos e folhas, não é? Umas flores
grandes: Proteas, Leucadendrons. Nada muito tradicional.
— É verdade, mas eu queria que você trouxesse a sua própria
visão. Se for boa e os arranjos complementarem o espaço, os donos
vão ficar felizes.
A minha própria visão, pensou Emilie. A sua fase de flores fora
tanto tempo atrás, mas, mesmo assim, ela voltou, o cheiro
amadeirado de galhos cortados, picadas de espinho e dedos
doloridos.
Meredith esticou o pescoço para ver o que Emilie estava fazendo.
— Pode tomar o tempo que precisar. Me avisa quando terminar.
Emilie poderia ter passado horas modificando e acrescentando,
mas sabia que Meredith apreciaria velocidade, então, depois de
apenas alguns minutos, ela deu um passo atrás, fez algumas
mudanças e declarou os arranjos completos. Meredith os admirou,
impressionada.
— Pode nomear essas flores? — perguntou ela.
Emilie olhou para a parede forrada com baldes cinza. Nomeou
todas as flores que conseguia e prometeu que estudaria as restantes.
Queria uma oferta de emprego no ato. Sabia que pagaria quase nada,
mas ela daria um jeito.
— Anota os seus dados aqui — disse Meredith, passando um
bloquinho de notas e um lápis. — Eu retorno logo.
Emilie deu um sorriso fingido e esperou que parecesse genuíno.
— Ótimo — disse ela. Quando chegou à porta, ela se virou. — Eu
adoraria trabalhar para você. Sua loja é linda.
Então fechou a porta às suas costas e sentiu o peso do dia.
Ela dirigiu até o lago de Echo Park e andou pelo perímetro, ainda
não estava pronta para voltar para casa. Os pedalinhos de cisne
estavam na água, a silhueta dos prédios do centro da cidade ao
longe. Tentou prestar atenção apenas no que conseguia ver e ouvir,
na sensação dos pés no chão e do sol na pele.
Mas Emilie seguia pensando em sua família. Como era horrível
para ela ser uma decepção. E pensou em Olivia também. A ex-
professora-depois-namorada-secreta havia terminado com ela seis
meses antes pelo mesmo motivo: porque Emilie ainda era aluna da
graduação. Apesar da pouca diferença de idade, a administração
poderia ter demitido Olivia se descobrisse, e Emilie tinha que aceitar,
sabia que só podia culpar a si mesma.
Ela chegou à metade do lago, parou em seu lugar favorito. Olhou
para os juncos, os peixes reluzindo na água.
Talvez sua família tivesse razão de azucriná-la. Talvez estivesse
errada em continuar como estava. Mas já estava matriculada nas
aulas, era tarde demais.
Emilie desejou a vida de um peixe. Nadando dentro e fora dos
juncos. Só cor, movimento e monotonia.

Ela dirigiu o resto do caminho até em casa, subiu as escadas para o


conjugado e abriu a única janela que não estava pintada de preto.
Esperou por uma brisa. Sentou-se na cama e olhou para fora. Além
da calçada coberta de lixo, do hotel detonado, da fileira de casas e
das palmeiras na serra além dele, havia o céu azul com uma única
nuvem branca.
Precisaria arrumar algo para jantar.
Abriu a geladeira. Meia caixa de ovos, um frasco de ketchup, um
pote de geleia. Um pouco de suco que havia vencido no dia anterior
e uma caixa de café gelado. Ia comer um burrito numa lanchonete a
poucas quadras dali. Pegou a bolsa e o telefone e viu que havia
chegado uma mensagem. Era Meredith.

Por que adiar algo bom?


Ligou para sua amiga Alice, que sempre atendia as suas ligações,
mesmo tendo um emprego de verdade como designer para
fotógrafos e cineastas e ignorasse quase todas as outras pessoas.
— Tenho boas notícias — disse Emilie.
— Contanto que não tenha nada a ver com a Olivia. — Emilie
conseguia ouvir música e conversas ao fundo, imaginou Alice numa
das festas para as quais sempre a chamavam, ou esperando alguém
se juntar a ela num happy hour em algum canto.
— Não é sobre a Olivia — disse Emilie. Afastou o telefone da
orelha para fazer o pedido do burrito, e então, escolhendo uma mesa
no pátio coberto nos fundos cheio de palmeiras e cores brilhantes,
disse: — Arranjei um emprego naquela floricultura na esquina do
Sunset com a North Vermont. — As duas nunca tinham falado da
floricultura, mas Emilie sabia que Alice teria reparado nela. Alice se
movia pelo mundo reparando em coisas bonitas.
— Aquele lugar é lindíssimo. E você vai fazer arranjos de novo!
Você sempre foi tão boa nisso.
— Obrigada.
Tentou ver o elogio como ele era — verdadeiro e simples —, sem
se sentir mal com a possibilidade de estar andando para trás, com
vinte e cinco anos e recebendo salário mínimo, sem de fato buscar
algo, sem avançar em direção a uma vida maior.
— Acho que vai ser bom — disse ela. — Por enquanto, pelo
menos.

Emilie passou duas semanas treinando com a florista antes de ser


enviada nas entregas matutinas para os restaurantes, o carro cheio
de flores, folhas e galhos desabrochando. Nas terças-feiras, ela
visitava um restaurante de comida japonesa no centro, tudo branco e
impecável. Nas manhãs de quintas-feiras, ela montava arranjos para
cada mesa de um restaurante grego de azulejos azuis, famoso pelo
chef de oitenta e dois anos. E, duas manhãs por semana, fazia
arranjos de flores para o Yerba Buena.
O restaurante entre o Sunset e a Selma era uma instituição de Los
Angeles, revitalizado na década passada por Jacob Lowell, um chef
que havia conquistado fama ao longo da última década no French
Laundry, seguido por uma série de restaurantes pop-up depois de se
mudar para Los Angeles.
O restaurante que ocupava o espaço antes era conhecido pelas
carnes e pelo pato, pelo serviço formal e pela arquitetura
extravagante, pelos clientes regulares leais havia décadas e pela
multidão de turistas. Tinha tetos abobadados, cabines com bancos de
couro, diversos salões de jantar separados e uma estrela Michelin —
embora todo ano circulassem rumores de que estavam prestes a
perdê-la.
Com a ajuda de alguns investidores, Jacob Lowell comprou o
lugar e o fechou por seis meses. Quando reabriu, muitas das paredes
haviam sido demolidas, tons de branco e pêssego claro aplicados ao
gesso novo e antigo. Uma nova placa pendurada na porta, as letras
talhadas na madeira: yerba buena.
Desenhos brilhantes substituíram as antigas pinturas a óleo. Os
tetos abobadados permaneceram, assim como as cabines com bancos
de couro, mas agora havia dois bares e dois salões de jantar grandes,
e o menu estava irreconhecível. Os clientes antigos reclamavam que
era barulhento demais. Eles se recusavam a sentar ao lado de
estranhos a uma das mesas comuns. Mas a nova clientela elogiava o
menu mais leve, as massas artesanais e as carnes macias, os peixes
delicados e as saladas colhidas de fazendas da região, a atmosfera
menos espalhafatosa. As garçonetes usando vestidos de verão, como
se fossem elas que estivessem saindo para jantar; o sommelier, que
visitava a mesa com ar de velho amigo ansioso para colocá-lo a par
do que todos andavam bebendo; os bartenders deslumbrantes que
sorriam de verdade quando falavam com você... Tudo isso era
irresistível.
Emilie aparecia às nove nas manhãs em que trabalhava lá,
quando o restaurante estava vazio a não ser por ela e pelos dois
chefs na cozinha, o eco metálico da música deles sempre que a porta
da cozinha era aberta. Achava que conhecia bem o restaurante de
tantas comemorações de aniversário e aniversários de casamento
passadas ali com a família. Sua cabine favorita estava lá, no meio da
parede mais distante. Seus pais haviam aprendido o número — 48 —
e a pediam toda vez que faziam uma reserva. Mas agora ela a via
num novo ângulo, com a luz matinal entrando pelas janelas, a
imobilidade, o silêncio. Emilie reunia os arranjos da sua última visita
e embrulhava as flores antigas em jornal. Lavava vasos e urnas e
estendia os novos cortes pela mesa comum até encontrar um ponto
para começar. Um galho ou uma flor. Um tema cromático, ou uma
textura que a tocasse. Gostava de trabalhar em diversos arranjos ao
mesmo tempo. Às vezes, colocava fones de ouvido, mas na maior
parte do tempo desfrutava do silêncio, dos sons distantes da
cozinha, do farfalhar das folhas, do som dos próprios passos ao dar a
volta na mesa, escolhendo o galho seguinte.
E também havia os passos de Jacob às dez e meia, quando a
maioria das flores já estava em suas urnas e não mais na mesa.
— Bom dia — dizia ele.
— Bom dia — dizia ela.
Ele era generoso nos elogios, tanto que ela começou a se
perguntar se ele tinha um incomum apreço por flores. A maneira
como se demorava por ali, como se inclinava para perto e fazia
perguntas sobre cores e nomes — tudo isso não poderia ser por
causa dela. Quando não tinha mais o que perguntar, ele ia até a
cozinha ou voltava para o salão, mas se sentava numa cabine
distante, de um jeito que ela conseguia ver que era o seu lugar de
costume, e, com a cara enfiada numa pilha de papéis, comia o café
da manhã. Ela sentia sua presença atravessar o restaurante enquanto
posicionava os vasos grandes e pequenos nos devidos lugares,
enquanto limpava a sujeira e tirava suas tesouras da mesa comum e
passava um pano. Ela nunca sabia se devia ou não se despedir — ele
parecia tão absorto —, mas, sempre que ela chegava à porta e se
virava, ele levantava a mão e ela acenava também.
Então, numa manhã, depois de um mês dessas perguntas e
respostas hesitantes, ele desejou seu bom-dia usual e passou por ela
correndo para a cozinha.
Era agosto, e a mesa estava repleta de dálias e peônias. Os
perfumes eram fortes — o suficiente para deixá-la tonta —, mas ele
mal as olhou.
Ela colocou três peônias vermelhas num vaso pequeno e
acrescentou galhos para dar verticalidade. Deu um passo para trás
para ver se estava funcionando. E então a porta da cozinha se
escancarou e ele reapareceu. Carregava dois pratos até ela.
— Com fome? — perguntou ele.
Havia fatias grossas de pão recém-saído do forno, ovos caipiras
cozidos cortados ao meio com gemas de um tom de laranja
profundo, além de frutas vermelhas e geleia.
— Estou — disse ela. — Estou morrendo de fome. — E era
verdade.
Ele voltou com um bule de chá e duas xícaras de cerâmica.
Ele escolheu outra mesa de café da manhã, a que ficava bem na
frente da mesa comum, cheia de galhos e equipamentos espalhados.
Agora, ele se sentava ali durante as manhãs em que ela trabalhava
lá.
Sempre que ela terminava, eles comiam juntos. Ele trazia junto
suas pilhas de papel — recibos das fazendas de onde compravam
carnes e vegetais, cópias das escalas para aprovar —, e Emilie tirava
um livro da bolsa e escrevia uma resenha para a aula mais tarde
naquela manhã.
Eles dividiam a mesa como se suas manhãs começassem com um
beijo, com ela tomando banho e lhe contando sobre um sonho da
noite anterior enquanto ele fazia a barba na pia. Como se tivessem
discutido os afazeres do dia enquanto iam de carro juntos para o
restaurante e já soubessem quem iria ao mercado e quem prepararia
o jantar. Quando chegavam ao estacionamento, já estavam fartos de
falar e de saber um do outro e agora podiam se sentar em silêncio,
juntos em suas tarefas separadas.
Isso durou semanas, e era o suficiente para ela. Não era uma das
garçonetes jovenzinhas dele que ficavam emocionadas com o seu
toque em suas cinturas quando passava por elas nas portas. Não
queria fofocar com as amigas sobre como ele era na cama. Todo
mundo sabia que ele era casado. Ele e a esposa eram queridinhos do
mundo gastronômico, apareciam em revistas, eram convidados para
casamentos e aniversários de celebridades. Emilie tinha quase
certeza de que ele tinha um filho... talvez mais de um. Ela passou a
ficar cada vez mais tempo, até perto do meio-dia, quando suas aulas
começavam. Trazia o laptop e escrevia artigos com ele do outro lado
da mesa. Ela se deu conta de que trabalhava melhor quando estava
com ele. Poderia estar absorta num poema, os dedos voando pelo
teclado, e então ela terminaria o parágrafo, se recostaria na poltrona
e ele estaria sorrindo para ela.
A equipe começava a chegar. A gerente, Megan; Ken, o
recepcionista, para supervisionar as reservas antes de voltar mais
tarde; a equipe de garçons, para provar os vinhos novos e o cardápio
em constante mudança. Uma manhã, a equipe do bar chegou cedo
para uma reunião e um bartender colocou o capacete da bicicleta na
mesa de café da manhã deles.
— O Jacob e a Emilie sentam aí de manhã — disse Megan. —
Vamos mais para o fundo.
Uma empolgação percorreu Emilie ao ser reconhecida dessa
forma, ao ser mencionada pelo nome mesmo que a maioria das
pessoas ali nem soubesse que a mulher que estava fazendo os
arranjos de flores em silêncio era por quem eles estavam mudando
de lugar.
Então uma voz que ela não reconheceu disse:
— Na verdade, a gente pode ir direto para o bar. Posso apresentar
tudo lá.
Emilie se virou para a voz, mas a estranha já estava saindo do
salão de jantar principal com os outros. Emilie passou por eles mais
tarde, a caminho do lixo com o primeiro punhado de galhos
descartados e hastes cortadas. A mulher — alta e magra com cabelo
loiro curto, tão atraente que Emilie corou — estava em pé sozinha ao
balcão do bar enquanto os outros a observavam misturar e servir.
Algumas pessoas faziam anotações.
Quando voltaram para o salão principal, a mulher parou ao lado
de Emilie.
— Nunca vi samambaias usadas desse jeito — disse ela. — Ficam
tão estranhas com as peônias. Estranhamente lindas, quero dizer. Eu
jamais pensaria em colocar essas duas juntas. Você se importa se eu
encostar nelas?
— Nem um pouco — disse Emilie.
— Isso aqui crescia por todo lado lá de onde eu venho.
Ela observou a mulher passar os dedos pela beirada das folhas e
sentiu uma proximidade sufocante, como se aquilo não se tratasse de
samambaias, como se ela estivesse tocando em Emilie em vez disso.
Como era íntimo: aquele único fato sobre a vida dela. A curva das
maçãs do seu rosto, tão perto. As pontas loiras dos seus cílios. Sardas
minúsculas pelo nariz, como as partículas de pólen que Emilie às
vezes encontrava em suas roupas depois do trabalho.
Ela se voltou para Emilie.
— O meu nome é Sara.
Emilie sentiu o rosto corar, denunciando-a, mas conseguiu
estender a mão.
— O meu é Emilie. — O aperto de mão de Sara era firme, sua
mão, suave, mas havia alguma outra coisa. Algo na forma como as
mãos se encaixavam, palma com palma, que fazia Emilie querer
continuar segurando.
— Ah — disse Sara. — A Emilie que se senta com o Jacob. — Elas
soltaram as mãos.
Emilie quis negar, mas não pôde. Quis dizer que não era bem
assim, não significava nada, mas o que significava de fato?
— Está tudo bem, eu entendo — disse Sara.
Emilie ficou observando Sara se despedir dos outros. Viu-a rir
com Megan sobre alguma coisa, pegando um envelope de Jacob. Ela
passou rápido por Emilie, mas então parou na porta.
— Prazer conhecer você, Emilie — disse ela, levantando a mão
para acenar.
Emilie se sentiu corar de novo, quis a mão de Sara na sua,
conseguiu ter um vislumbre de tatuagens no lado interno do
antebraço de Sara — palavras, pensou ela — e quis saber o que
estava escrito.

— Ela é nova aqui? — perguntou a Jacob mais tarde, enquanto


comiam seus costumeiros ovos, torradas e geleia.
— Quem dera. Ela é só uma consultora. Eu estou tentando roubar
a Sara do Odessa há meses, e enfim consegui contratá-la para
planejar a nossa nova carta de drinques. Aliás, quer provar algum?
Sei que tem que ir para a aula, mas só um golinho. Diz o que achou.
Ando procurando um drinque autoral com a nossa cara. O Yerba
Buena. Esse é o que ela inventou.
Emilie o acompanhou até o bar, onde ele conferiu uma receita
num papel e mediu e serviu com cuidado. Ela esperava que ele
tivesse confiança em tudo o que fazia, mas os bartenders dele se
moviam tão mais rápido, eram tão mais casuais, enquanto ele era
focado e preciso. Enfim, ele lhe passou uma taça cupê. Ela tomou um
golinho. Tinha um gosto amargo como o de algo nutritivo, mas
ainda era um pouco doce.
— Amargo demais para você? — perguntou Jacob.
— É amargo, sim. Mas não amargo demais. — Ela tomou outro
gole. — Nunca provei nada assim antes, mas isso parece familiar de
alguma forma.
— Ela é um gênio — disse ele.

***

As coisas continuaram assim por tanto tempo — as manhãs com café


e torrada, as conversas silenciosas — que Emilie pensou que seria
assim para sempre. Mas então, poucas semanas depois, ele terminou
sua papelada e apoiou as costas na cadeira.
— Eu gostaria de ver onde você mora — disse ele.
O que ela poderia responder? Por um átimo, Emilie se perguntou
se isso era algo que ele fazia, tipo um projeto pessoal, observar as
pessoas em seu habitat natural. Ela adorava isto — estar na casa de
outras pessoas, ver as cores com as quais pintavam suas paredes e os
objetos que guardavam nas estantes. Mas, quando Emilie encontrou
os olhos de Jacob, seu desejo era evidente.
— Está bem — disse ela. — Vou te dar o endereço.
— Vejo você mais tarde, então — disse ele enquanto ela ia
embora.
Ela foi para a aula e correu para casa. Não sabia se ele queria
dizer mais tarde naquele mesmo dia, ou mais tarde como uma
promessa de algum momento futuro. Achou melhor se preparar
para o caso de ele estar se referindo ao dia de hoje. Revirou as pilhas
de cartas e colocou os catálogos e o lixo para reciclagem. Lavou a
louça que havia passado tempo demais na pia e até passou o
aspirador de pó pela casa, a primeira vez em algum tempo. Não via
seu conjugado como um lugar para receber visitas; suas expectativas
para o espaço, ao se mudar, desvaneceram rapidamente até ele não
passar de um espaço para estudar e dormir. Deixava a maior parte
da alimentação e socialização para outros lugares. As únicas visitas
eram amigos para quem ela não precisava mais fingir nada. Tinha
IPAs na geladeira para Pablo e folhas secas de erva-cidreira no
armário para Alice, e isso bastava para eles.
Agora estava parada no batente da porta e se perguntava que
impressão seu canto causaria em Jacob se ele de fato aparecesse ali,
fosse mais tarde naquele dia ou num futuro mais distante. Era
pequeno. Desinteressante. As paredes eram brancas, da cor da
primeira demão de tinta, e ela se viu ressentida com o proprietário,
que ou foi muito mão de vaca ou muito indeciso para terminar a
obra. Metade dos seus pratos descasados estava lascada nos cantos e
os lençóis com elástico não combinavam com os de cima. As janelas
da cozinha foram pintadas de tal forma que não abriam — o mero
ato de ferver água para chá fazia o vidro embaçar. Em algumas
noites, ela ia para a cama às nove porque nenhuma das lâmpadas era
forte o suficiente e ficar acordada um minuto a mais a entristecia.
E também: a janela para o lado leste não tinha cortina. Quando
Emilie estava nua, tinha que se agachar ao passar por ela. Quando
estava escuro na rua, todo mundo conseguia vê-la fazer o que quer
que estivesse fazendo, e, quando ela tentou pendurar um varão de
cortina, o reboco se desfez.
Ela se deu conta de que o conjugado não estava equipado para
impressionar ninguém. Ela deveria se concentrar em si mesma.
Então tomou banho e depilou as pernas. Escovou os dentes e
passou óleo de coco na pele. Deixou o cabelo secar naturalmente. Era
longo, chegava até a metade das costas, e ela achava que nunca o
havia usado solto no restaurante, pelo menos não quando estava lá a
trabalho. Colocou calças um pouco mais largas que Alice trouxera de
uma viagem ao Marrocos, cor de esmeralda com sinos
pequenininhos na altura dos tornozelos. Ao colocar uma regata
preta, Emilie olhou para o próprio reflexo e notou que estava se
perguntando se realmente queria isso.
Sim, a atenção dele a fazia se sentir especial.
Sim, ela apreciava as manhãs dos dois juntos.
Na verdade, ela as apreciava até demais. Ansiava pela ideia de
mais manhãs com ele, mas, compreendia agora, não ansiava pela
realidade daquilo. Nem sequer sabia se queria voltar a transar com
homens — seus últimos relacionamentos foram com mulheres.
Enquanto procurava um par de brincos dourados na caixinha de
joias, ela se lembrou de como tudo começou com Olivia. Emilie
sempre se sentava na primeira fileira. Passou a admirar Olivia de
imediato — encantava-se com suas pausas reflexivas, a facilidade
com que usava jargões acadêmicos era algo a se aspirar. Olivia usava
camisas sociais e calça jeans, o cabelo mantido natural e curto nas
laterais e atrás. O piercing no nariz mudava com frequência. Em
forma de losango um dia, um aro no outro. Emilie a observou,
admirou, fez perguntas na aula, encheu os cadernos com o que
Olivia lhe ensinava, sublinhou passagens de bell hooks e Angela
Davis, escrutinizou Foucault.
Mas começou de verdade numa tarde quando foi ao escritório de
Olivia, durante uma sessão de atendimento de alunos para falar de
um ensaio que estava escrevendo.
— É sobre a liminaridade da identidade creole — disse ela,
falando rápido ao se sentar do outro lado da mesa de Olivia, sem
querer roubar muito tempo da professora. — Como existimos numa
zona cinzenta. E estou me perguntando se você acha que tem espaço
para interseccionalidade. Tipo, se eu poderia falar sobre
passabilidade branca e passabilidade hétero. Ou talvez seria melhor
só me concentrar em raça, eu não sei. — Emilie estivera revirando a
bolsa atrás de caderno e caneta. Abriu o caderno, posicionou a
caneta e se inclinou para ouvir o que Olivia pensava.
— Então, você fica com mulheres? — perguntou Olivia.
— Fico.
— Claro — disse Olivia, um novo interesse na voz. — É claro.
Você poderia escrever sobre isso.
Elas esperaram o semestre acabar.
Era sempre Emilie quem ia para a casa de Olivia porque,
enquanto Emilie dividia um apartamentozinho de dois quartos com
uma colega na época, Olivia tinha a própria metade de uma casa
geminada. Ela a recebia de calça de ioga, a estação de rádio pública
tocando ao fundo. Transavam ou jantavam e ficavam acordadas até
tarde vendo séries sem parar e as analisando. Era a parte mais
fascinante do meio acadêmico, pensou Emilie, que até mesmo o pior
da televisão pudesse ser significativo se você olhasse sob certo viés.
Emilie achava que a forma como se conheceram não deveria ter
sido uma questão — Olivia era apenas cinco anos mais velha —, mas
Olivia se preocupava por causa do trabalho.
— Estou chateada também. Não sei o que você está fazendo —
disse ela quando estavam terminando. — Você não deveria estar
aqui. — Emilie sabia que era culpa sua. O que é que ela estava
fazendo, ainda indo para a faculdade?
Depois do término, Emilie assinou o contrato de aluguel para ter
o seu próprio canto — o conjugado —, que parecia, à época, um
passo em direção à vida adulta. Mas logo se tornou apenas outro
lugar qualquer para escrever os trabalhos da faculdade, deixar a
correspondência acumular e se preocupar com a própria vida.
E então Jacob poderia chegar a qualquer momento. Ela havia se
alimentado da tensão entre eles, mas nunca pensara que ele
atravessaria a sua porta, e, conforme as horas corriam, notou que
esperava que ele não chegasse. Tentou estudar, mas não conseguiu.
Sentiu náusea, e então ficou cada vez mais enjoada. Se ele não viesse
naquela noite, ela pediria demissão da floricultura, nunca voltaria ao
Yerba Buena, suas manhãs juntos evanesceriam como sonhos, num
eterno estado de “poderia ter sido”. Quando o relógio marcou oito
da noite, ela disse a si mesma que ele não viria e sentiu o alívio
percorrê-la. Colocou água para ferver, pôs duas folhas de erva-
cidreira numa xícara. Ouviu a água aquecer, observou a fumaça
começar a subir, e logo a chaleira estava apitando. Justo quando ela a
tirou da boca do fogão, veio a batida à porta.
Lá estava ele, na soleira, ocupando mais espaço do que ela
imaginava que ocuparia, seus olhos cor de mel brilhando de
nervosismo e, na luz sombria do conjugado, as mechas de cabelo nas
têmporas puxando mais para o cinza que para o prata. Até mesmo
sua voz soava diferente sem o eco do restaurante. Ele mal havia
entrado e já estava andando em círculos pelo perímetro do
conjugado, tocando em todas as suas coisas e fazendo perguntas. Ela
tinha coleções de pedras preciosas e conchas e livros com lombadas
verdes.
— Você lê esses livros?
— É claro.
Ele riu.
— Livros verdes são melhores?
— Não são melhores, só mais bonitos — disse ela. — Eu leio
todos os livros. Mas só fico com os verdes.
Ele puxou um do meio da estante. Colocou-o de volta. Encontrou
uma foto de família emoldurada: Emilie, Colette, Bas e Lauren,
arrumados e sorrindo.
— Isso é na frente do meu restaurante.
— A gente vai lá desde que eu estava no ensino médio.
— Caralho, eu tô velho. Então esses são os seus pais? Sua irmã?
— Isso.
— Vocês são próximos?
Emilie deu de ombros, sentiu o olhar dele sobre ela.
— Minha irmã é viciada em drogas. Ela está num vaivém de
clínicas de reabilitação desde que a gente é adolescente, então...
— Ah. Isso complica as coisas. Quantos anos você tinha quando
começou?
— Quinze. Ela melhora, mas nunca dura muito tempo. É mais
fácil para mim só meio que me... desconectar. — Ela ouviu a própria
voz contando a velha história: a irmã viciada em drogas, a
adolescência complicada. Ela se perguntou se algum dia superaria
essa história. Era tão patético deixar uma pessoa que ela mal via
controlar a sua vida.
Poucos minutos haviam se passado e ela já estava exausta com as
perguntas de Jacob, tentando bolar respostas. Quando ele assumiu a
conversa, ela sentiu os ombros relaxarem, o estômago desapertar. Ela
relaxou dentro das palavras dele. Ela acenava que sim com a cabeça
de uma forma que estava acostumada, para mostrar que estava
ouvindo, mostrar como estava interessada.
— Parece que você gosta mesmo das aulas — disse ele.
— Gosto. Mas mal posso esperar para terminar. Estou na quinta
mudança de especialização. Todos os meus colegas são crianças.
Crianças espertas, mas, ainda assim, tão novinhos.
— Eu gostei da faculdade por um tempo. Até arrumar um
emprego num lugarzinho que servia tapas, me apaixonar
perdidamente pela cozinha e me dar conta de que estava só
perdendo tempo, sentado em salas de aula todo dia, quando poderia
estar na cozinha.
Jacob falava e o céu escurecia na janela atrás dele. A placa
luminosa de temos vagas do hotel acendeu. Ela se perguntou se
deveria oferecer alguma bebida, e desejou ter pensado em comprar
comida. Mas ele não estava ali, de qualquer forma. Ele estava na
Espanha, onde, de alguma forma, tinha acabado trabalhando numa
fazenda — ele tinha chegado a falar, mas ela não havia
acompanhado — e agora seus olhos se enchiam de lágrimas e ele
balançou a cabeça.
— Quando penso naquela terra nas minhas mãos... Aquele solo.
Nunca encostei em nada parecido com aquilo desde então. Eu adoro
todas as fazendas parceiras do restaurante, mas a maioria é nova.
Crias da cidade de saco cheio, procurando alguma coisa nobre,
achando que vão se encontrar com umas sementes e uns hectares
fora de Santa Bárbara. Solo como o de Marta e Xavi? Esse solo
precisa de tempo.
— Parece incrível.
— Foi incrível.
O céu estava escuro a essa altura, e ela estava morta de fome,
perguntando-se o que iria acontecer.
— Quero preparar um jantar para você — disse ele, de repente de
volta com ela, em pé e alongando os ombros. — Vi aquela vendinha
mexicana lá embaixo.
Ela espiou o relógio.
— Fecha em cinco minutos.
— Merda, então vamos lá.
Ela ficou contente em sair do apartamento e entrar na noite.
Abriria a janelinha do quarto quando voltassem. Acenderia umas
velas para a mesa que costumava usar para estudar e poria
guardanapos de pano, raramente usados. Ela partiu para a seção de
temperos atrás de pasta de chili enquanto ele escolhia as verduras,
atrás dos abacates mais maduros e dos limões mais brilhantes. Ela
parou no caminho de volta para olhá-lo, porque ele era uma visão e
tanto, colocando laranjas e abacates nas palmas das mãos,
descascando espigas de milho, cheirando o coentro e a hortelã, as
luzes fluorescentes do letreiro lá fora se apagando e ele ainda lá,
encarando-a sem vê-la, colocando pimentões vermelhos finos num
cesto.
Ele fatiou as laranjas e os abacates e fez um molho de salada
rápido. Ela só tinha uma frigideira de ferro. Ele tostou milho e
pimentas nela, selou camarões. Foi uma das melhores refeições que
ela já comeu na vida.
Ela achou que, talvez, isso seria tudo. Um mergulho no seu
passado, compras no mercadinho, velas, guardanapos de pano e
uma refeição.
Mas é claro que não era.
Eles estavam se beijando havia poucos minutos quando ele tirou
a blusa dela. Ele estava atrapalhado com a fivela do sutiã e ela quis
perguntar o que eles estavam fazendo. O que seria aquilo. O sabor
da boca dele era novo. E tinha a questão da esposa, que de súbito
pareceu real para ela, e os filhos. Eram dois, sabia agora. Meninos.
Ele havia tirado a calça, soltado o cordão que prendia a cintura da
dela. Estava dizendo como ela era linda. Estava dizendo o quanto
queria isso. E havia uma camisinha em sua mão, e ele a abriu, e ela
pensou num momento diversas horas atrás, na fração de segundo
entre o silvo da chaleira e a batida à porta. Ela se perguntou por
quanto tempo ele havia planejado aquilo, e quando exatamente ela
se deixou levar. Calma, quis dizer. O que estamos fazendo? Mesmo
enquanto o beijava, mesmo enquanto deixava a calça escorregar até
os seus pés, ela não sabia.
Era quase uma da manhã quando ele foi embora.
A mãe de Emilie fez sessenta anos, e seu pai fez a reserva de
aniversário de sempre no Yerba Buena para o sábado à noite. De
manhã, o celular de Emilie soou com o bipe de uma mensagem de
Colette.

Me busca?

Se não se importar com um desvio em Long Beach, respondeu ela.

Antes do jantar, Bas e Lauren estariam visitando amigos perto do


restaurante e pediram que Emilie buscasse a avó. Outra mensagem
no telefone.

Sem problema.

Então, às seis, Emilie dirigiu os quase dois quilômetros do seu


conjugado em Echo Park até o apartamento em Silver Lake que
Colette dividia com a melhor amiga. Era quase inverno, mas o sol
brilhava intenso e quente. Em vez de mandar uma mensagem ao
chegar, ela parou ao lado de um carro já estacionado e foi até a porta,
um sorriso imenso atrás dos óculos de sol quando Colette abriu a
porta.
Colette ficou parada na soleira, pés descalços, usando um longo
vestido vermelho, apertado na cintura magra.
— E aí, mana — disse Emilie.
— Chegou cedo — disse Colette, voltando-se para dentro do
apartamento, mas, quando reapareceu na porta com a bolsa, sorriu
também. — Espero que o ragu esteja no cardápio.
— Ai, meu Deus — disse Emilie. — Eu também.
Naquela noite, ao entrar no carro, abrir as janelas e dirigir para a
casa da avó em Long Beach, Emilie teve a sensação de estar
observando as duas pela janela de um veículo ao lado. Elas pareciam
irmãs, não importava como se sentissem. Os cabelos escuros e
volumosos e os lábios carnudos. Os óculos de sol, os vestidos. Emilie
estava acostumada a se sentir amorfa perto de Colette, mas agora
tinha um segredo. Ela sentia isso na corrente sanguínea, deixando-a
mais ousada.
Estava radiante com aquilo.
Claire estava na varanda quando chegaram a Long Beach. Oitenta
e nove anos, usando um terninho e meias-calças pretas
semitransparentes, uma bolsa cheia de strass brilhante, um olhar de
expectativa. A mera imagem dela fez Emilie querer chorar. Ambas as
irmãs saíram para ajudá-la a entrar no carro.
— Olha só esses vestidos — disse ela. — A cor do batom. — Ela
tocou o cabelo de Colette, e então o de Emilie. — Sempre me deixa
de coração quentinho ver vocês juntas.
Emilie amava a avó, o sotaque de Nova Orleans, a pele marrom-
clara, a forma de se apegar a detalhes, o olhar sem nenhum pudor
em busca de beleza. Seus talheres com bordas douradas e guarda-
roupa extenso, o papel de parede floral em todo quarto da casa. Ao
longo dos seus anos na faculdade, Emilie havia entrevistado Claire
para uma dúzia de trabalhos finais. Era uma fonte de fascínio sem
fim para ela — como seus avós foram parte de um êxodo creole da
Louisiana depois da guerra, uma pequena parte da Grande
Migração. Como fizeram tudo o que podiam para recriar seu lar na
região de South Central, em Los Angeles, abrindo barbearias,
padarias e restaurantes, formando clubes de jantares e bailes. Eram
católicos fervorosos. Dançavam atrás dos desfiles. Aperfeiçoaram as
receitas de gumbo e jambalaia. Os filhos cresceram fluentes nos
triunfos e nos arrependimentos dos pais, num orgulho de sua
cultura deslocada, mas então, a maioria dos negócios creoles havia
fechado e sua história ia se apagando.
Claire era a mais velha de três irmãs: Claire, Adele, Odette. Eram
famosas pela beleza. Nunca deixavam a tristeza transparecer. As
cinturas eram tão finas que Adele andava com uma fita métrica no
bolso caso visse uma mulher com quem pudesse competir. Nunca
moraram a mais de dez quilômetros de distância entre si. Emilie e
Colette eram como elas no nome, nas cinturas finas e nas pernas
musculosas, nos cabelos escuros e nas disputas da infância. Eram
como elas nos telefonemas frequentes, mas não nos sentimentos por
trás deles; na proximidade, mas não nos segredos.
Como este.
Emilie carregava o segredo consigo enquanto levava Colette e
Claire para o Yerba Buena. Sentiu-o subir pela garganta enquanto
estacionava.
Colette ajudou a avó a descer do banco do carona, e Emilie tomou
o outro braço de Claire. As duas a flanqueavam, sentindo seus
cotovelos frágeis mesmo sob a blusa e o blazer.
Claire segurava com mais força o pulso de Emilie, e ela ficou
preocupada com a possibilidade de a avó sentir seus batimentos
acelerados e perguntar qual era o problema. Queridinha, diria Claire,
você está nervosa com alguma coisa? Mas elas chegaram até a porta e
entraram, o segredo de Emilie incógnito.
Bas estava no bar, mas Lauren estava na entrada, esperando por
elas.
— Você montou esses arranjos, Emilie? — perguntou ela quando
entraram.
Emilie fez que sim.
— Claire, você lembra que Emilie faz os arranjos florais desse
restaurante, não lembra?
— Ah, mas que adorável — disse Claire. — Agora, como se
chama essa flor?
— É uma flor de papoula-coral — disse Emilie.
E então Ken estava lá, os olhos brilhando de surpresa por vê-la.
Ele vasculhou a lista de reservas.
— A família Dubois — disse ele. — Sejam bem-vindos.
— Você se lembra de nós! — disse Lauren.
— É claro — disse ele, lançando um olhar para Emilie. — Tenho
uma mesa para os senhores bem aqui, se estiverem prontos.
Assim que chegaram à mesa, Colette pegou a folhinha de papel
com o cardápio do dia.
— Ragu! — disse ela.
— Oba! — disse Emilie.
— A minha vontade é de pedir dois pratos só para mim.
— É tão bom.
— É mesmo, e as porções são tão pequenas.
Emilie sentia os olhos da família recaindo sobre elas, sentiu de
novo como pareciam irmãs naquela noite. Ela entrou no jogo,
estimulada pelo próprio nervosismo, pela surpresa de Ken, pelo jeito
como a gerente, Megan, tinha acabado de passar por trás dela e
tocado no seu ombro numa saudação particular. Qualquer pessoa
que não soubesse de nada pensaria que ela estava apenas passando
atrás da cadeira, que não significava nada.
— A gente pode pedir três e dividir. Aí daria para pedir outras
coisas também — disse Emilie.
— Dividir — disse Colette. — Que fofinho. Vamos fazer isso.
Megan apareceu na mesa com uma garrafa de Prosecco. Um
garçom, alguém que não trabalhava de manhã, parou ao lado dela
com taças.
— Queríamos oferecer alguma coisa para os senhores enquanto
olham o cardápio — disse Megan, servindo.
Lauren se voltou radiante para Bas.
— Você avisou a eles que era meu aniversário — disse ela. Ela se
virou para Megan. — Quanta gentileza sua. Obrigada.
Bas balançou a cabeça.
— Bom, na verdade, deve ter sido...
Ele olhou para Colette, e Emilie sentiu aquela pontada familiar de
irritação. É claro que ele pensaria que foi Colette, mesmo que fosse
Emilie quem fizesse os arranjos de flores do restaurante. Mesmo que
Colette não fosse nem sequer capaz de chegar ao restaurante
sozinha, muito menos pensar em ligar antes para avisar de uma
ocasião especial.
Colette fez que não com a cabeça.
— Eu não — disse ela.
— Um passarinho deve ter nos contado. — Megan pousou uma
taça diante de Emilie. Gustav apareceu com azeitonas e o pão da
casa, apenas servido a amigos do restaurante.
— De Jacob — disse ele.
— De Jacob? — disse Lauren, surpresa. — Há quanto tempo
frequentamos esse lugar, Bas? Uma década?
— Mais que isso, eu acho.
— Ele comprou isso aqui tem doze anos — disse Emilie, e ficou
vermelha logo em seguida, mas ninguém notou.
Lauren olhou bem nos olhos de Bas.
— Hoje nós chegamos ao círculo íntimo.
— Um brinde a isso.
— Gente do céu — disse Colette. — Emilie praticamente trabalha
aqui. É por causa dela que a gente está ganhando comida grátis.
— Você só fica aqui de manhã, não é? — perguntou Lauren. —
Você não conhece essas pessoas, conhece?
Emilie sentiu o rosto ficar mais vermelho ainda.
— Só algumas delas — disse ela. Levantou a taça. — Feliz
aniversário, mãe.
Eles brindaram. Colette aproximou a taça dos lábios e então riu
pelo susto em seus rostos.
— Quem quer a minha? — perguntou ela, sem beber.
— Só deixa com a da sua irmã, querida. Alguém vai pegar. Quer
que peça uma tônica para você?
— Claro, pai.
Ele acenou para chamar o garçom.
— A minha filha gostaria de uma tônica da casa — disse ele. — E
vamos acrescentar uma rodela de limão extra.
— A gente vai mesmo pedir três porções de ragu? — perguntou
Colette, e Emilie respondeu:
— A gente vai mesmo pedir três porções. — E pediram, e o garçom
da mesa ergueu uma sobrancelha e disse:
— Muito bem.
Depois de fazerem os pedidos, Emilie pediu licença para ir ao
banheiro. Sentiu alívio por ficar sozinha por um instante,
ziguezagueando até os fundos do restaurante, passando pela
cozinha e entrando no corredor, quando uma porta foi escancarada e
lá estava Jacob, puxando-a para dentro do escritório. Ele a empurrou
contra a parede e a beijou, depois disse ao pé do ouvido:
— Está me enlouquecendo você estar aqui e eu ter que fingir que
não te conheço.
— Mas você me conhece — disse ela, sorrindo. — Eu sou a moça
que faz os arranjos de flores.
— Está certo — disse ele. Correu o polegar pelos lábios dela.
Beijou-a de novo. — A moça que faz os arranjos de flores. — Sentiu
que a voz dele parecia triste, mas não queria tristeza, não naquele
momento. Não depois de ele ter mandado presentes para a mesa
dela. Não depois de ele lhe dar um segredo para carregar, tão
ardente e incandescente que a fazia brilhar. Então ela pressionou seu
corpo ao dele, sentindo-o duro, e perguntou:
— Você pode vir hoje à noite?
— Porra, sim — disse ele.
— Tenho que voltar para a mesa.
— Mas já?
— Vão suspeitar de alguma coisa.
— Você vai me matar — disse ele. — Já estou morrendo agora
mesmo.
Ela retocou o batom no banheiro, uma tarefa não muito fácil
quando não conseguia parar de sorrir. Tentou forçar uma expressão
neutra no rosto enquanto voltava para a mesa.
— Tinha fila? — perguntou Colette.
— Ã-hã — mentiu ela.
— Eles não param de trazer comida grátis.
Comeram entre histórias de Bas sobre o leilão de um edifício
chique que ele conquistara e de Lauren sobre as últimas cagadas do
sócio da firma e o acordo que tinham acabado de fechar. Bas pediu
outra garrafa de vinho, e Emilie queria um Yerba Buena, mas não
pediu. Recusou mais vinho quando a garrafa chegou. Não entendia
por que seus pais, sempre obcecados com a sobriedade de Colette,
nunca seguravam a onda da bebida na presença dela. Emilie tomava
uma taça ou duas de algo, mas depois bebia água com gás, mesmo
depois de Colette dizer que não se importava.
Bas pegou fotos das plantas-baixas do edifício no celular, e Claire
se importava bem pouco com os desenhos em si e mais com o como
daquilo. Como a imagem tinha chegado ali na tela do celular? Será
que poderiam, por favor, explicar a internet de novo? Emilie riu e se
compadeceu: quem é que entendia a internet? Mas o tempo todo, ela
estava revivendo o momento no escritório de Jacob: o ímpeto de
luxúria, então vazio e mais vazio. O desespero a tomou de surpresa,
ela o afastou e se concentrou na primeira parte. Ímpeto de luxúria,
ímpeto de luxúria. Sobremesas chegaram, e eles gemeram com a
indulgência antes de terminar cada mordida.

***

— Vovó está parecendo mais forte, não? — perguntou Colette depois


de darem seus beijos de despedida nos pais e na avó e voltarem
sozinhas para o carro de Emilie.
— Ã-hã — disse Emilie, mas não tinha certeza. Claire tinha
passado por muitas rodadas de quimioterapia ao longo dos anos e
era difícil saber se sua fragilidade era por causa dos tratamentos ou
da idade. — Ela pareceu feliz, pelo menos.
Colette fez que sim com a cabeça, abriu a janela, relaxou no banco
e se voltou para Emilie.
— Então... — disse ela com um sorrisinho. — O que foi tudo
aquilo?
— Tudo o quê?
— O champanhe. As azeitonas, e a polenta, e as sobremesas
extras.
Emilie deu de ombros.
— Além disso, todo mundo que trabalha lá. Todo mundo
conhecia você, mas fingiu não conhecer.
— Eu faço os arranjos. Você mesma disse isso.
— Por favor. Eles tinham um ar de conspiração.
— Eu não faço ideia do que você está falando — disse Emilie, mas
não conseguiu conter um sorrisinho.
— É óbvio que você está dormindo com alguém de lá.
— Alguém poderia tirar essa conclusão.
— A única pergunta é por que é um segredo. Você tem vinte e
cinco anos. Pode dormir com as pessoas.
— Não é simples assim — disse ela, e na hora soube que havia
falado demais.
A sobrancelha de Colette se arqueou, mas ela não perguntou mais
nada, e Emilie aumentou o volume do rádio para ouvir música pelo
resto da viagem.
***

Isso foi no começo de outubro. Poucas semanas depois, a casa de


Jacob apareceu num blog de design de interiores em que ela entrava
todo dia. Ela se refestelava passeando dentro das casas — as pilhas
de pratos em prateleiras de cozinha expostas, as estampas dos
papéis de parede, as coleções obscuras dos donos. Como tudo aquilo
era fascinante. As casas de campo em regiões de vinícolas, os lofts
urbanos, as cabanas de praia com pranchas de surfe apoiadas em
ripas desbotadas de sol.
Mas, naquela tarde, ela clicou na manchete: a craftsman da
família de um chef em los angeles; e lá estava o nome dele na
primeira frase, ao lado do nome da esposa. A visão de Emilie
escureceu... então a tela entrou em foco de novo e ela seguiu lendo.
Eles haviam comprado a casa de estilo American Craftsman dez
anos antes e vinham fazendo melhorias desde então. A maior parte
das obras de arte nas paredes, pinturas grandes, alguns rascunhos
emoldurados, era feita por amigos.
Ela clicou nas fotos. Viu a cozinha deles, as estantes de livros e a
cama. Viu o banheiro principal com pequenos azulejos hexagonais e
uma banheira com pés de leão, e o alpendre com um balanço, e uma
cama elástica nos fundos. Ela viu quatro pares de botas enfileirados
na entrada. Viu um bilhete, escrito à mão pela esposa: O que mais
gosto do meu lar é compartilhá-lo com as pessoas que amo.
E, por último, havia uma foto dos quatro com o cachorro. Todos
sorriam, todos pareciam adoráveis. O braço dele envolvia a cintura
dela.
Emilie começou a olhar de novo, do começo, passando pelas fotos
rápido e então devagar, escrutinizando os detalhes. Ela se
perguntava se os quartos realmente tinham essa aparência, o quanto
tinham liberado de espaço, se poderiam mesmo ser tão perfeitos.
Buscou pistas nas imagens. Deu zoom nos rostos, atrás de sinais de
tensão ou desespero. Analisou as botas de caminhada atrás de
evidências de uso. Ela se forçou a levantar e ir até a cozinha, mas,
uma vez que estava com o chá na mão, voltou para a mesa e olhou
de novo.
Caiu a noite, ela não comeu. Sentia dor de cabeça, mas mal
notava.
Continuou lendo livros e escrevendo artigos para as matérias da
faculdade. Continuou preparando arranjos de flores e tomando o
café da manhã com Jacob. Atendia o telefone sempre que ele ligava,
e ela estava em casa sempre que ele queria dar um pulo lá. De vez
em quando, Emilie entrava no site e olhava as fotos. Às vezes,
porque tinha certeza de que o encontraria — o detalhe que
denunciaria o caso —, e, às vezes, apenas pela dor que causava.

E então era novembro, e Los Angeles se esforçava ao máximo para


ser festiva de mangas curtas e com sol. Emilie enchia os arranjos
florais de vermelho, laranja e branco. Ela via menos Jacob fora do
restaurante e sabia que devia ser por causa das festas de fim de ano e
das obrigações familiares, apesar de ele ser delicado demais para
mencioná-las.
Se não fosse pelo blog de design de interiores, e pelo fato de que
sempre era ele quem ia à casa dela, e sempre ia embora antes do
amanhecer, ela quase conseguia fingir que o relacionamento deles
era como outro qualquer. Ele chegou a conhecer Pablo e Alice uma
noite no começo do outono depois de Emilie reunir coragem para
convidá-lo.
— Os dois são de Long Beach — disse ela. — Eu conheço Pablo
desde criança. Alice, desde o meu primeiro ano de faculdade. Eles
não são da cena gastronômica nem nada do tipo.
Estava puxando fios soltos do jeans rasgado, preocupada de estar
pedindo demais. Convidar Olivia para acompanhá-la a uma festa da
família foi o começo do fim.
— Como você vai me apresentar? — perguntou ela. — Como sua
ex-professora? Não quero ser essa pessoa.
Emilie sabia o que estava em jogo, mas não podia continuar
dividindo a vida em Jacob e não Jacob. Desejava uma única vida,
uma vida completa.
Quando ergueu os olhos do buraco rasgado no joelho, ela o viu
sorrindo.
— Eu adoraria conhecê-los. Vamos cozinhar para eles aqui.
Ela só tinha a mesinha redonda e duas cadeiras, então foi a uma
loja de artigos para casa cujo catálogo recebia todo mês pelo correio e
sentia enorme prazer folheando devagar, página por página,
imaginando que tinha uma casa para decorar em algum lugar.
Escolheu duas cadeiras dobráveis cor de amêndoa e então foi para a
seção de cozinha e jantar para ver se tinham um jogo americano e
guardanapos de que gostasse. Tinham, além de pratos de salada e de
jantar, um jogo de talheres para seis pessoas e taças de vinho com
bocas largas e hastes finas. Ela nunca gastava dinheiro assim, sempre
pensava que esperaria até ter um apartamento de verdade, um
motivo para ter coisas boas, mas teve um estalo parada na loja:
talvez fosse isso. O motivo suficiente. Talvez já estivesse no meio
daquilo e só não tivesse se dado conta.
Emilie gastou mais de setecentos dólares naquela tarde, e sua
mesa estava perfeita, e ela tentou não compará-la com o restante do
conjugado, que tinha a aparência de sempre — aborrecido e cansado,
um lugar temporário de descanso para o momento antes de sua vida
começar.
Jacob trouxe uma truta inteira e dois sacos cheios de legumes e
macarrão fresco, três garrafas de vinho e um pão de fermentação
lenta ainda quentinho. Quando os amigos chegaram, o apartamento
já cheirava a vinho branco e alho no forno, estava tão quente e feliz
que ela ficou com medo de que Pablo e Alice a envergonhassem de
propósito, denunciassem Emilie como a fraude que ela era. Ela
jamais havia oferecido um jantar, jamais tivera talheres ou
guardanapos combinando.
Mas eles foram gentis. Eles também estavam no seu melhor.
Pablo tinha boas notícias: uma galeria em Culver City receberia o seu
trabalho, com uma exposição programada para fevereiro. E Alice
havia saído com um cara e a noite tinha sido um completo desastre,
que ela descreveu para todos com detalhes dolorosamente
engraçados.
No fim da noite, estavam todos jogados na cama, as velas baixas
cintilando e as barrigas cheias, os lábios manchados de roxo do
vinho. Todos estavam exatamente onde queriam estar, e aquele
lugar, seu conjugado pavoroso, de repente parecia quase lindo por
causa deles. Eles sequer se importaram com o jogo americano ou
com as taças de vinho — ela sabia disso. Para eles era suficiente que
a casa dela fosse um lugar onde podiam tirar os sapatos, se esticar na
cama e contar histórias vergonhosas e de esperança, enquanto
ficavam um pouco bêbados. Ela queria que eles ficassem ali para
sempre.
Agora, enquanto se vestia sozinha para a festa anual de Natal dos
pais, temia que nenhuma noite fosse tão perfeita de novo. Eles
prometeram que teriam outro jantar juntos logo, mas as semanas
foram se passando, e era difícil marcar qualquer coisa devido à
forma como Jacob entrava e saía da sua vida sem muito aviso. Só
vocês, então, mandou para eles. E eles disseram sim, mas dois meses
se passaram e eles nunca definiram uma data. Ela estava tentando
alcançar o botão na parte de trás do vestido, perguntando-se se tinha
usado aquele mesmo vestido na festa do ano anterior, ou até mesmo
na festa do ano anterior àquele, quando houve uma batida à porta
que ela reconheceu.
Jacob, sem aviso prévio, um presente embrulhado nas mãos.
Ele estava quente e feliz, olhos brilhando, beijando-a apartamento
adentro.
— Aqui — disse ele, e a girou para abotoar os dois botões finais.
— Abra.
Então ela desfez o laço, abriu a caixa e encontrou um cachecol.
— É da loja de tecidos recém-aberta na quadra do restaurante. —
Emilie fez que sim com a cabeça. Ela havia entrado lá um dia, tocou
a lã fiada artesanalmente e quis saber tricotar. — É tingido com
frutos de sabugueiro. Dá para acreditar?
Ela ergueu o cachecol da caixa. Isso a fez pensar em asas de
borboleta, abajures e vitrais. Coisas preciosas que a luz atravessa. Ela
nunca havia tido algo tão bonito.
— Sabugueiro! — disse Jacob. Ela envolveu o pescoço com ele. —
Qual a sensação?
Ela o desejava tanto.
— A sensação é de você — disse. Com isso, ela queria dizer que
era a sensação de algo miraculoso, mas tênue. Algo precioso demais
para pertencer a ela para sempre, mas algo a que ela se prenderia
pelo máximo de tempo que podia.
Ela sentia quase que não pertencia àquele mundo, entrando na
casa dos pais com o cachecol no pescoço. Apenas Alice e Pablo
sabiam que estava apaixonada, e, ainda assim, ela tinha certeza de
que reluzia de amor. Achava que qualquer um que visse o cachecol
saberia que era presente de alguém que ela amava. Mas a casa estava
cheia de gente, e todo mundo estava arrumado e festivo, e ela estava
nervosa e com calor, então tirou o cachecol e o dobrou, com cuidado,
antes de guardá-lo na bolsa.
O cheiro de camarão, linguiça e temperos do gumbo de Bas
enchiam a casa. Colette estava parada na frente do fogão, de meias-
calças, o pé apoiado na panturrilha oposta como se estivesse numa
aula de ioga, mexendo sidra de maçã e canela.
— Oi, mana — disse Emilie.
— Oi, mana — disse Colette. — Mamãe e papai passaram o dia
todo discutindo. Eles têm que ficar longe um do outro, me ajuda.
— Vou fazer o meu melhor.
Colette sorriu, e Emilie viu um borrão de batom no seu dente da
frente.
— Aqui, peraí — disse Emilie, e o limpou com o dedo.
— Nenhum acompanhante? — perguntou Colette.
— Nada. Você?
— Não estou com ninguém no momento — disse ela. — Mas você
está, não está?
— Vou ajudar o papai a servir o gumbo.
— Muito bem — disse Colette, como o garçom lhes tinha dito
naquela noite no restaurante, e Emilie queria que essa conexão
durasse, que fosse normal. Quis tanto que os seus olhos se encheram
de lágrimas, e ela se virou rápido. Porque conhecia a irmã, sabia que
não ia durar.
Ela ajudou Bas a servir arroz em tigelas, estendeu-as enquanto ele
derramava o caldo e os frutos do mar, concha após concha
perfumada. Como queria poder respirar aquilo a noite toda, parada
ali com um propósito claro. Mas é óbvio que a tarefa acabou, e ela
levou as tigelas numa bandeja para os convidados, todos aqueles
membros da família estendida e velhos amigos, fazendo as mesmas
perguntas vergonhosas, fazendo a vida dela parecer tão pequena
quando na verdade não era, não era.
Sua prima Margie e o marido, George, passaram a noite atrás dos
gêmeos pequenos que mal andavam, trocando fraldas. Mais tarde na
festa, Emilie viu Jasper, o gêmeo mais gorducho, bambolear perto
demais da lareira e estender a mão.
— Ai, queridinho, toma cuidado — ouviu-se dizer, então ele
gritou e deu um berro. Margie correu para confortá-lo. George
surgiu com gelo enrolado num pano de prato. Emilie se afastou,
reconhecendo a fraqueza da própria voz. Perguntando-se por que
não havia gritado: “Para!”
Sempre silenciosa e educada. Incapaz de urgência ou pânico. O
que tinha de errado com ela?
Margie embalou seu menino choroso, a testa enrugada. George
fez o melhor que pôde para manter o gelo na queimadura, mas
Jasper ficava agitando a mão livre para olhar a pele formar bolhas na
ponta dos dedos.
Emilie ficou observando do outro lado do cômodo. Parecia fazer
tão pouco tempo que os dois eram um casal bêbado no próprio
casamento e George havia derramado uísque no vestido de Margie,
ela jogara a cabeça para trás e rira, e a noite estava turva e a lua
quase cheia. E agora lá estavam eles: tão sérios, tão adultos. Nem
olhavam para Emilie. Ela era a principal testemunha, poderia ter
impedido aquilo.
— Ele vai ficar bem — disse Margie a George, a boca de George
uma linha tesa. George tirou o gelo por um instante, e Emilie
conseguiu vislumbrar um vergão vermelho ardente antes de se virar.

Mais tarde naquela noite, no seu conjugado, ela ficou pensando


naquilo. Tadinho do Jasper com a mãozinha estendida. Ai,
queridinho, toma cuidado. Ela havia sido pior que comedida; havia
sido hesitante. Como se o perigo não existisse de verdade, como se a
vida fosse apenas algo a ser cruzado. Como se todos fossem atores
dizendo suas falas. A sala de estar: três paredes, luzes de palco e um
teatro escuro. A comida: plástico. O vinho: suco de uva. O fogo:
papel celofane laranja e vermelho e um ventilador.
Ela existia fora da própria vida e sabia disso. Quando confrontada
com o perigo, não conseguiu nem gritar. Não ouvia nem uma
palavra do que as pessoas diziam, ocupada demais fazendo o rosto
fingir interesse, balançando a cabeça e dizendo: “Que interessante.”

No começo do ano-novo, Emilie entrou numa lanchonete em Echo


Park e lá estava Colette. Estava com um amigo, Emilie notou,
decepcionada. Achou que aquele poderia ser o momento delas. Mas
o sanduíche de Colette estava intacto, o que significava que tinham
acabado de chegar, e Emilie pensou que talvez pudesse se juntar a
eles. Tinha trazido um livro, estivera imaginando um sanduíche e
uma cerveja na cabine larga do canto, porque já havia passado da
hora do almoço e era cedo demais para o jantar, e ela sabia que
haveria um monte de mesas livres. Mas talvez pudesse se sentar à
mesa deles em vez disso.
Colocou a mão nas costas da irmã, e Colette se encolheu e então
viu quem era.
— Ah. É você. — O cabelo de Colette estava oleoso e os olhos
pareciam cansados. Ela fungou e esfregou o nariz, e Emilie soube.
— Só vim fazer um pedido para viagem — disse Emilie.
— Senta com a gente. Esse é o Kyle.
— Oi — disse Emilie, subitamente tonta. — Tenho que ir.
Queria que Jacob fizesse comida para ela. Queria o vazio do
ombro dele.
— Na verdade, eu nem deveria estar aqui. Não percebi que já era
tão tarde.
Colette revirou os olhos.
— Não quis te assustar.
Emilie se perguntou quanto esforço Colette precisava fazer para
que a voz soasse tão leve, para fingir que não era nada de mais.
Ela também tentou fingir normalidade. Talvez ela estivesse limpa,
pensou Emilie. Talvez fosse só uma virose.
— Não, o problema é comigo mesma. A minha vida só anda
meio, sabe... bagunçada como sempre.
Kyle disse:
— Tomara que a gente se veja por aí de novo.
Quem caralhos é você?, quis gritar Emilie na cara dele. Deu uma
olhada na cabine vazia no canto, onde teria desfrutado a cerveja e o
sanduíche.
— É — disse ela. — Seria uma boa.

Mais tarde, tudo em que Emilie conseguia pensar era numa noite
quando tinha dezenove anos, morando com Alice no seu primeiro
apartamento. Ela e Alice dividiam as contas de água e luz. Faziam
listas de compras e cozinhavam panelas enormes de chili nas noites
de domingo para os outros universitários do prédio. Ela se sentia
capaz e confiante — motivada pela responsabilidade da vida adulta
—, quando Colette voltou da terceira passagem pela reabilitação.
Ela e Alice pensaram que seria divertido recebê-la, beber chá e se
sentar no sofá surrado delas. Só passar um tempo. Mas Emilie e
Colette não haviam passado tempo juntas por escolha em anos, e
tudo pareceu desencaixado desde o momento em que Emilie abriu a
porta e convidou Colette para entrar. Emilie só conseguia pensar em
como Colette estava morando na casa de infância delas, passando os
dias no quarto de infância enquanto o do lado, o quarto de Emilie,
ficava vazio.
Alice trouxe alguns biscoitos, serviu-os na mesinha de centro
manchada de água que tinham encontrado na rua. Emilie estava
ciente das imperfeições do apartamento, da simplicidade, do mau
estado da mobília resgatada das ruas. Mas, pela primeira vez,
naquele momento, estava contente em tê-lo. Como se os buracos de
prego nas paredes, a tinta irregular no teto, o tecido surrado do sofá,
tudo aquilo pudesse suavizar o sentimento terrível de que ela havia
ultrapassado sua irmã mais velha.
Colette estava linda, sentada no sofá de suéter, embora não
estivesse frio. Ela sempre parecia linda para Emilie, mesmo nos seus
piores momentos com as drogas. Mas, depois da reabilitação, Colette
preenchia melhor as roupas, o branco dos seus olhos estava mais
claro, a pele, em seu adorável marrom-claro, um rosado nas
bochechas de novo.
Na exuberância das tarefas domésticas, Emilie havia plantado
ervas num longo vaso retangular que mantinha no peitoril da janela.
Ela ofereceu erva-cidreira, hortelã, ou uma mistura dos dois.
— Ficam muito bons juntos — disse Alice. — Ainda mais com
mel.
— Pode ser — disse Colette. — Vou provar.
Emilie sentia tamanho orgulho, servindo chá para Colette numa
xícara azul-marinho que ela própria havia comprado, num
apartamento com seu próprio nome no contrato. Mas também a
culpa, como se os fatos de sua vida fossem atos de traição. Ela não
conseguia coordenar os dois sentimentos.
Ela iria se concentrar no que estivesse mais à mão — seria melhor
assim.
— Então, quais são os seus planos? — perguntou ela a Colette. —
Está procurando emprego?
Colette se apertou mais no suéter.
— O café Portfolio está contratando baristas. Eles mesmos
treinam. Eu me candidatei.
— Vai ser ótimo — disse Alice. — A gente vai lá estudar às vezes.
Você pode preparar os nossos lattes.
— Bom, eu nem fiz a entrevista ainda — disse Colette. — Mas,
com sorte, seria legal.
— Você chegou a pensar em transferir os seus créditos da
faculdade comunitária para a de Long Beach? É uma faculdade e
tanto. A gente adora. Você não adora, Em?
Emilie fez que sim com um aceno de cabeça. Ela de fato adorava.
Adorava o anonimato, tantos alunos, todos correndo de um lugar
para o outro. Adorava como o Jardim Japonês era distante disso,
como era silencioso. Com frequência, ela se sentava num banco nele
à sombra, para ler, fazia pausas para observar as carpas nadando sob
as vitórias-régias. Ela adorava as aulas, o conhecimento esotérico dos
professores. Adorava, em especial, quando saíam do personagem,
faziam menções a suas famílias ou campos de estudo. Quando
colocavam de lado o manual e revelavam suas paixões: ela vivia
para esses momentos. Emilie sabia que ela, também, se apaixonaria
por algo um dia.
Ela havia ido à cozinha esquentar mais água, voltou e encontrou
Colette com ar de cansada, esfregando o espaço entre as
sobrancelhas. Puxar assunto sobre o futuro tinha sido má ideia,
Emilie se deu conta. Deveria ter mantido todas elas no presente.
Deveriam ter falado de música ou televisão.
— Olha só — disse Emilie, sentando-se ao lado de Colette. —
Sabe, esquece tudo que a gente andou falando. Você está em casa
agora, então só precisa se permitir descansar. Tem bastante tempo
para começar a estudar ou arrumar um emprego ou qualquer coisa
mais tarde.
Ela pousou a mão no joelho de Colette, que se afastou de pronto.
— Você está me tratando que nem criança. Pode parar, por favor?
Emilie ficou sem fôlego. Vários meses se passaram sem que as
duas se vissem, e, quando se reencontraram, Emilie tomou cuidado
de não falar demais por medo de dizer a coisa errada.
Ela ainda tomava cuidado agora, tantos anos depois.
Olhou pela janela, o letreiro de vagas do hotel do outro lado da
rua brilhando forte.
A minha vida adulta inteira, pensou ela, eu fiquei esperando que a
minha irmã me amasse de novo.
Ela não diria nada a Colette ou aos pais sobre o que tinha acabado
de ver. O vício de Colette era dela própria, suas escolhas, também. O
papel de Emilie não era, nunca fora, se meter.

Algumas semanas depois, Emilie e Alice foram juntas de carro até a


exposição de Pablo, as duas de vestido preto. Assim que
atravessaram as portas de vidro da galeria, elas o viram. Ele usava
um terno novo, uma gravata preta fina e Nikes de uma brancura
impecável. Ele estava tão orgulhoso, em pé com sua família, a Sra.
Santos secando lágrimas com um lenço de mão cor-de-rosa, o Sr.
Santos visivelmente desorientado com sua mostra de emoção. E os
trabalhos em si: desenhos imensos, a maioria grafite em papel
algodão grosso branco, com blocos ocasionais de cores, como
pêssego, azul ou verde.
Mal conseguiram falar com ele, mas estavam contentes em ver as
pessoas ocupando o espaço, e o diretor da galeria conduzia Pablo
pelo braço, apresentando-o a colecionadores enquanto a garota da
galeria marchava pelo salão, colocando adesivinhos vermelhos ao
lado das peças vendidas. E, então, um desenho em particular,
pendurado um pouco afastado dos outros, capturou a atenção de
Emilie. Ela ziguezagueou entre os convidados para se aproximar.
Parou diante dele, absorveu-o.
Figuras traçadas em um lado, tão cruas que não tinham detalhe
algum, reunidas. Um talho irregular preto partia a obra ao meio.
Uma única figura do outro lado, estendendo-se para alcançar o
grupo de gente.
Do talho crescia uma planta — as folhas de um verde profundo, a
única cor na obra. Emilie olhou para o cartãozinho com o título
pendurado ao lado.
yerba buena.
Ela prendeu a respiração.
Era assim que ele a via?
Ela se sentiu brutal e subitamente exposta. As pessoas sabiam da
sua relação com o restaurante — quantas manhãs havia passado
trabalhando nele, como sempre que levava alguém para jantar lá os
garçons lhes davam uma atenção especial e era tudo por conta da
casa.
Yerba Buena era uma fantasia, sim, mas era também um abismo.
Era algo que a separava das outras pessoas, pessoas que viviam
vidas sem segredos.
Quando Alice apareceu atrás dela, Emilie estava tremendo.
— Você sabia disso? — perguntou ela.
Alice fez que sim.
— Pedi um catálogo da galeria semana passada. Está vendo
aquela belezinha do outro lado? Ela vem para a minha casa quando
a exposição acabar. — Ela apontou para o outro lado do salão, mas
Emilie não olhou.
— Você não me avisou.
— Avisar o quê?
— É só que... sei que Pablo usa a vida dele no trabalho, mas não
acho que seja pedir demais que ele fique fora da minha. Da minha
vida particular. — Ela estava lívida, lágrimas ardentes escorrendo.
— Emilie. Do que você está falando?
— Disso. — Ela apontou veementemente para o talho. — Eu. —
Ela apontou para a figura solitária. — Não viu o nome? É Yerba
Buena.
— Ah — disse Alice. — Tá bom, certo. Dá para ver por que você
pensaria que é sobre você.
— Pensaria?
— Bom, não é. É sobre a ruptura dele com o catolicismo. Eles
plantavam yerba buena no jardim da escola. Você não costumava
ajudar?
Emilie olhou para o desenho.
— Olha aqui, tem uma cruz. — Alice apontou para o canto
superior.
O jardim da escola, limpar ervas daninhas e plantar. A Sra. Santos
lhes ensinando os nomes, dando a Emilie um buquê de ervas. Emilie
escondeu o rosto nas mãos.
— Ai, meu Deus. Alice, eu sou um desastre. — Alice envolveu a
cintura de Emilie com o braço. — Estou morta de vergonha.
— Ninguém nunca vai saber. Se alguém viu a gente tendo essa
conversa, vamos dizer que você estava revivendo a sua própria
ruptura com a fé.
— Me promete que vai esquecer que eu cheguei a pensar isso.
— Prometo.
Apenas um minuto depois, Pablo apareceu atrás delas — enfim
livre por um instante — e os três se abraçaram.
— E aí, o que acharam? — O rosto dele estava tão animado, ele
estava chapado com a emoção da noite. Seu velho amigo havia feito
tudo aquilo. Ela imaginava como teria sido entrar ali sem conhecê-lo
e ver o desenho e o título. Como experimentaria uma sensação
insólita de ser compreendida.
— É deslumbrante — disse ela. — É, tipo... a melhor coisa que a
arte pode fazer. É sobre você, mas me vejo nas peças. Imagino que
todo mundo aqui dentro se veja.
— Em — disse ele, abraçando-a de novo. — Esse é o melhor
elogio que recebi a noite toda.
E ela lhe deu um abraço forte, ciente de quão perto estivera de
deixar um mal-entendido tomar conta dela. Quão perto estivera de
arruinar a noite. Alice piscou para ela, e Emilie soltou Pablo,
totalmente aliviada antes que o amigo fosse levado para longe.
VENICE

Sara e Grant atravessaram as montanhas, passaram por parque de


diversões e subúrbios estendidos e entraram em Los Angeles.
Dirigiram pelo Sunset Boulevard, onde as lindas palmeiras eram
mais altas e exóticas do que haviam se permitido imaginar e as
estrelas na calçada estavam sujas e amontoadas, nem um pouco
glamorosas. Havia um monte de crianças em situação de rua, e Sara
e Grant acabaram entre elas por um breve período, mas a dupla não
se encaixava. Não eram punks nem anticapitalistas. Queriam
empregos e apartamentos, ser as pessoas que largavam moedas em
copinhos. Sara e Grant ouviram falar de um abrigo para jovens com
chuveiros e um programa de inserção profissional, e logo Sara estava
servindo mesas num restaurante chique em Venice, até que o gerente
viu o seu potencial e a contratou como recepcionista.
— Uau, parabéns — disse Grant quando ela lhe contou. Estavam
vasculhando sacos de roupas doadas no salão comum do abrigo.
— Preciso de algo arrumadinho — disse Sara. — Recepcionistas
sempre se vestem bem.
— Aqui, isso vai servir. — Grant ergueu uma regata azul
transpassada nas costas, e Sara agradeceu e a pegou.

Pouco depois, Chloe, uma das garçonetes, pediu a Sara que


assumisse o aluguel do seu conjugado. Era escuro e pequeno, mas
bem na saída do Abbot Kinney Boulevard, a apenas três quadras do
restaurante.
— Não sei se consigo pagar — disse Sara, parada na porta da
cozinha estreita.
Chloe bateu suas unhas vermelhas na bancada laminada.
— Você acabou de ser promovida. Pode ser apertado, mas você
pode jantar no restaurante toda noite em que trabalhar. Você dá um
jeito.
Sara fez que sim, querendo acreditar.
— Olha só, eu entendo se não tiver dinheiro guardado para isso.
Posso ajudar com a caução... Você me devolve quando puder. O meu
namorado já deu a entrada para o nosso cantinho novo, então não
estou preocupada com isso.
Sara fez que sim com a cabeça. A caução. Ela não tinha nem
pensado nesse gasto.
— Essa região está ficando uma loucura — disse Chloe. — É uma
boa ideia pegar um lugar agora, enquanto ainda consegue. Já viu
quantos restaurantes estão chegando?
— Eu topo — disse Sara.
Chloe ergueu a palma da mão e elas trocaram um toca-aqui.
— Sua primeira casa — disse ela.
— Pois é. — Sara riu com descrença. Ela havia conseguido. Longe
do rio e atravessando o vale Central, passando pelas montanhas e
agora, em breve, fora do abrigo.
— Vamos comemorar — disse Chloe. Ela abriu a geladeira
amarelada e tirou uma garrafa. Abriu um armário suspenso e pegou
duas tacinhas minúsculas: coisinhas decorativas, delicadas. Em
seguida, veio um limão de um cesto e uma faquinha. Ela serviu a
bebida nos copos, deixou a garrafa na bancada. Com cuidado, cortou
a casca do limão, uma tira fina seguida de outra, que ela colocou
dentro das taças.
Sara segurou uma taça pela haste.
— Salud — disse Chloe.
Elas brindaram e tomaram um gole: ao alívio de Chloe e ao
primeiro apartamento de Sara.
E então outra coisa aconteceu. Sara sentiu a visão aguçar, a mente
clarear. Ali estava a beleza do vidro trabalhado. Fatia de limão.
Líquido dourado. Ali estava o sabor daquilo — um pouco amargo,
um pouco doce, algum brilho cítrico, talvez mel. E ali estava
significado. Um lar, só dela.
Ela virou a garrafa para ler o rótulo. Lillet.
— Isso é vinho? — perguntou.
— Um aperitif.
— Desculpa, o quê?
Chloe riu.
— Eu esqueci por um instante que você é praticamente uma
recém-nascida. Aperitif. Tipo Aperol, Campari... Você bebe antes das
refeições, em geral. Só um pouquinho. Por isso as tacinhas.
— Adorei — disse Sara. — Parece tão... especial.
— Não é? Eu sei. Também adoro. Sempre tenho uma garrafa na
geladeira. — Chloe se apoiou na bancada e terminou o drinque. —
Quantos anos você tem? — perguntou ela.
O rosto de Sara esquentou. Achava que Chloe soubesse.
— Dezoito — disse ela.
— Mentira.
— Quase dezoito — disse Sara. — Talvez alguém no abrigo
pudesse ser cossignatário para mim. — Ela sabia que isso não
aconteceria, mas esperava que lhe desse algum tempo.
— Não, não tem problema — disse Chloe. — A propriedade é
gerenciada por alguma imobiliária imensa que coordena todos os
complexos de merda dessa área. Eles não vão ligar, desde que sejam
pagos. Só coloca o número do apartamento e o endereço no cheque.
Não vou mudar o contrato nem nada. — Ela ergueu a garrafa. —
Mais?
Sara balançou a cabeça. Ainda havia metade no copo, e ela queria
apenas aquele único drinque. Uma coisa simples e preciosa.

Os vizinhos mal notariam uma garota que morava sozinha


substituindo outra, certamente não se importariam a ponto de ligar
para a imobiliária. Mas um garoto e uma garota morando juntos —
seus passos subindo a escada, suas conversas pelas paredes, os dois
tão jovens —, isso poderia bastar para levantar suspeitas. No abrigo,
Sara passou a noite se revirando de um lado para o outro pensando
nisso. Seria simples, perguntou-se, seguir em frente sozinha? Seria
natural e esperado? Afinal de contas, ela e Grant se conheciam havia
pouquíssimo tempo. Ela o tinha ajudado tanto quanto ele a ajudara.
Enfiada no beliche, a garota na cama de cima roncando de leve,
Sara fez um cálculo mental. Ela deixara que ele revirasse o lixo. Ela
deixara que ele tomasse banho no hotel. Ela havia feito faxina no
hotel durante aqueles dois dias e estivera prestes a fazer até mais
que isso.
Ainda assim, ele era a pessoa com carro. E tinha a história com
Eugene, o suficiente para desfazer tudo de bom que ela havia lhe
dado. Mas por que sequer estava pensando desse jeito? Grant era
seu amigo. Ela conseguia visualizá-lo com tanta clareza naquela
manhã, as batatas fritas frias no painel do carro, o brilho do sol
atingindo a janela, a alegria no seu rosto quando ele a viu lá, como
havia colocado as mãos sobre o coração.
Ela falaria do apartamento, e, se ele pedisse para morar junto, ela
diria que é claro. Seria mais arriscado, óbvio, mas eles tomariam
cuidado.
No dia seguinte, ele já tinha ido trabalhar no lava-rápido. Ela saiu
para o turno no restaurante antes de ele voltar, e ele estava
dormindo quando ela retornou. Foi só no início da noite seguinte
que se viram. Ela estava lendo um romance na sala de estar quando
ele passou pela porta.
— Oi! — disse ela. — Tenho uma coisa para te contar.
— Oi — disse ele. — Legal. Deixa só eu me limpar antes, tá bem?
E eu tenho que tomar algum remédio. Estou morrendo de dor de
cabeça.
— Beleza, tá bom. Mas corre porque é uma boa notícia.
Ele hesitou antes de passar por ela.
— Me fala de uma vez.
— Não, vai lá. Eu espero.
— Mas agora fiquei curioso.
— Tá bom. Bem, a Chloe me pediu...
— Quem é Chloe?
— Uma das garçonetes no restaurante.
Grant suspirou.
— Beleza, a Chloe pediu para você...
— Ela vai morar com o namorado. Eles acabaram de conseguir
um lugar, mas o proprietário queria que começassem a pagar o
aluguel agora, e ela ainda tinha uns meses no contrato de aluguel
dela, então ela me perguntou se eu queria assumir.
— Como assim?
— Ela me ofereceu o apartamento dela.
— Você vai dar uma olhada?
— Já fui.
— Quando?
— Uns dias atrás.
— Uns dias atrás — repetiu Grant.
Ela notou o quanto ele estava queimado de sol, o quanto estava
cansado. Notou a tensão nos ombros e o jeito como se encolhia com
alguma sensação antes de alongar o pescoço com cuidado para o
lado. Sabia que ele invejava o seu trabalho no restaurante — a forma
como ela se arrumava para trabalhar, ficava até tarde e voltava
satisfeita dos jantares que a brigada comia antes de fechar para a
noite.
— Quer que eu pegue uma aspirina para você? Posso contar mais
depois.
— Não, vai em frente — disse Grant. — Então você foi ver o
apartamento. Vai ficar com ele?
— Vou — disse ela.
— Legal. Quando você se muda?
— Ela vai tirar as coisas de lá amanhã, então...
— Você não precisa de dinheiro para a caução?
— Ela não me cobrou.
— Incrível — disse ele, sem olhar para ela. — Parabéns. Vou lá
tomar aquele banho agora.
Ele já estava na metade do corredor quando ela se deu conta de
que ele estava de saída. Pensou em segui-lo para contar que poderia
morar lá com ela, se quisesse. Mas, em vez disso, ela o deixou
desaparecer na curva do corredor.

— Tchau — disse ela dois dias depois, a bolsa de lona no ombro.


Grant estava sentado ao lado de uma conselheira, Monica, os dois
tomando o café da manhã no refeitório. Monica se levantou para dar
um abraço em Sara.
— Você ainda pode vir para comer se precisar. E, se qualquer
coisa der errado, estamos aqui por você, está bem? Você tem o meu
número, não tem?
— Tenho — disse Sara.
Grant ficou parado. Sara não tivera certeza se ele iria. Ele lhe deu
um abraço e se sentou de novo.
— A gente se vê em breve — disse ele, mas ela sabia que ele não
falava sério. Ele analisou sua tigela de cereal. Ela olhou para o teto,
as luzes embutidas apenas um borrão por entre as lágrimas.
— Tá bom — disse ela. E se virou. E foi embora.

Só se reviram cinco anos depois, na calçada agitada do Abbot


Kinney. Todos os restaurantes novos haviam aberto, assim como um
punhado de novos bares e cafés. Lojas de luxo se alinhavam nas
ruas. Sara havia crescido mais quatro centímetros, num estirão final
triunfante da adolescência. Tinha cortado o cabelo num pixie loiro,
havia ido de garçonete a bartender. Grant se parecia mais com o
garoto que ela havia conhecido perto do rio do que com o que ela
tinha deixado no abrigo: encantador e jovem, andando com um
gingado fácil, de mãos dadas com um homem mais velho bronzeado
de camisa de linho.
Grant talvez não a tivesse reconhecido se Sara não tivesse se
sobressaltado quando o viu. E Sara teria dito oi se não fosse pelo
lampejo de pânico no rosto de Grant. Que mentiras ele havia
contado a esse homem, perguntou-se ela, para ter ficado tão abalado
com a visão dela? Ela desviou o olhar — sabia que ele queria que
fizesse isso —, mas desejou poder puxá-lo para a beira da calçada,
colocar os lábios em sua orelha. Eu jamais te entregaria, sussurraria
ela. Queria que ele a chamasse por outro nome, inventasse uma
história diferente, para que pudessem se abraçar como os amigos
que foram um dia.
O calor do sol, os motores dos carros passando, uma explosão de
gargalhadas de algum lugar mais adiante na calçada.
Passaram um pelo outro em silêncio, ombro a ombro na calçada.
Sara deu a volta na quadra até o apartamento que tinha, ao longo
do tempo, tornado seu. Passou pela enorme caixa de correio cinza
com buracos de carta para cada apartamento do prédio, o seu nome
colado por cima do de Chloe. Havia levado um ano para reunir
coragem de fazer aquilo, de se expor daquela forma. Abriu a porta
para o hall compartilhado e subiu as escadas até o segundo piso. O
sujeito do outro lado do corredor que estivera visivelmente com uma
doença horrível desde que ela passou a morar lá estava saindo pela
porta, o cachorrinho debaixo do braço.
— Oi — disse Sara.
Ele levantou a mão, acenou com a cabeça. Ela entrou.
Era fim de tarde, o único momento em que sua sala de estar era
banhada por luz natural. De cima vinha o baque de passinhos de
criança, o choro de uma bebê, sons tão familiares que mal eram
registrados. Ela pegou um copinho do armário, notou que as mãos
tremiam. Serviu uma dose de uísque e foi até a janela. Parada,
bebendo, observando a rua.
Na sua primeira noite naquele apartamento, fantasmas vieram
assombrá-la. Fazia meses que havia deixado Russian River e eles a
deixaram em paz todo aquele tempo. Mas, assim que fechou a porta,
eles se apressaram para dentro, como se tivessem esperado
pacientemente até encontrá-la sozinha.
Spencer ficando cada vez menor até sumir. Eugene abrindo o
cinto como uma cobra. Annie encharcada e pingando água do rio.
Seu pai fazendo um desenho para ela. Sua mãe na cama do hospital.
Ela se encolheu, tentou voltar a respirar. Ela se levantou e olhou
para as paredes brancas vazias. Sentiu os pés no carpete. Disse a si
mesma que viveria com fantasmas se fosse preciso. Nenhum motivo
para ter medo.
Pouco a pouco, ela deixou de ser assombrada. E agora tinha visto
Grant, o que trouxe tudo de volta.
Ela terminou o uísque, sentiu-o descendo pela garganta. Baixou o
copo.
Tá bom, disse a si mesma. Basta.
Sara demorou bastante para pegar no sono naquela noite. Ela se
revirou de um lado para o outro, e enfim desistiu e foi para a sala de
estar. Ela leu até os olhos pesarem e os mundos se confundirem. Por
fim, quase às duas da manhã, pegou no sono apenas para acordar
três horas depois com o som de um alarme no prédio. Ela se agitou.
Ouviu outro, e mais outro. Logo, o prédio estava repleto de alarmes
soando, pessoas se movendo e gritando, e ela saiu da cama em
disparada. Catou um casaco e sandálias enquanto saía.
No patamar da escada, estava a mãe com seus dois pequenos do
andar de cima.
— O que está acontecendo? — perguntou Sara. Ela não sentia
cheiro de fumaça.
— Deve ser monóxido de carbono — disse a mãe. — A gente
precisa sair agora.
Sara deu uma pancada na porta do vizinho, caso ele não estivesse
acordado ainda, mas, depois que saiu, viu que ele já estava lá,
segurando seu cachorrinho.
Logo estava todo mundo na calçada. O velho que morava no
terceiro andar, usando o fedora cinza de sempre. O garoto hipster
com coque samurai loiro e jeans apertados, a namorada de robe. A
mulher de quarenta anos com cachos malucos e óculos de aro azul.
Um veículo de emergência da prestadora de serviços chegou, e os
trabalhadores se espalharam com um propósito. Uma ambulância e
um caminhão de bombeiros pararam em seguida, mas, depois de se
certificarem de que não havia restado ninguém no prédio e que
todos se sentiam bem, os bombeiros e os paramédicos voltaram para
os veículos, fecharam as pesadas portas de metal e foram embora.
Então eram só eles de novo, os residentes da Riviera Avenue, na
calçada juntos. Esperando. Todos de pijama e robe, com bafo e cabelo
bagunçado.
O hipster de coque samurai loiro conferiu o celular, disse algo
para a namorada, que revirou os olhos. Ele correu pelo quarteirão e
voltou com uma bandeja de cafés grandes e copos descartáveis. Ele
alinhou os copos menores na calçada e começou a enchê-los com o
maior. A namorada se apoiou na parede e o ignorou, então Sara se
ofereceu para ajudar.
— Spencer — disse ele, e estendeu a mão. Ela quase riu. Primeiro
Grant, agora isso. Ele não era o Spencer dela, mas o nome o tornava
familiar. Terminaram de servir e passaram os copos para os vizinhos.
— Obrigado — disseram para ela.
— Não agradeça a mim — respondia ela. — Agradeça ao Spencer.
Ela sentira saudade de pronunciar o nome dele em voz alta.
A bebê começou a chorar, e o irmãozinho puxou a minúscula
meia cor-de-rosa e disse em sua vozinha minúscula:
— Tá tudo bem! Eu tô aqui!
O céu se iluminou com a manhã. As pessoas que passavam de
carro reduziam a velocidade e encaravam o grupo, que não fazia
nenhum sentido, e, ainda assim, ali estava, reunido, bebendo café em
copos descartáveis e esperando a autorização para voltar para o
prédio.
— Eu me mudei para cá tem muito tempo — disse o velho de
chapéu. — Mais tempo do que você está viva — acrescentou ele,
apontando para Sara. Ela achou que ele continuaria, que contaria
uma história. — Eu me mudei tem muito, muito tempo — disse ele,
mas foi só isso. Enfim, ele falou: — Nunca aconteceu nada assim.
No silêncio que se seguiu, ela se deu conta do quanto queria que
alguém lhe contasse uma história. Ansiava por um arco dramático,
começo, meio e fim. Desejava uma moral, um sentido, algo para
refletir no escuro.
A calça do pijama da mãe tinha um buraco do tamanho de uma
moeda, e ela tinha olhos cansados e rosto bonito. A namorada de
Spencer deixou o robe afrouxar, o que quase revelou seus pequenos
seios perfeitos. O homem do outro lado do corredor era mais jovem
do que imaginava, e ela sentiu uma pontada de angústia por ele. O
que o havia deixado magro que nem um esqueleto? O cachorro
ganiu e então lambeu o rosto dele. A mulher com óculos de aro azul
tinha o sorriso mais reluzente, e ela fechava os olhos ao beber o café.
O Spencer que não era o Spencer dela conferiu o celular de novo e
suspirou.
— Spencer — disse ela.
— Oi?
— O café está bom.
— É daquela loja de donuts.
Ela fez que sim. Só queria dizer o nome dele de novo.
Depois de um tempo, receberam a liberação e a autorização para
voltar aos apartamentos. Eles se enfileiraram na escada juntos, se
despediram nas portas. Sara se surpreendeu com o fato de que
encontrou seu apartamento exatamente como o havia deixado,
pensou que algo deveria ter mudado. Eram quase sete da manhã. Só
tinha que estar no trabalho ao meio-dia.
Tomou um longo banho.
Ela se arrumou para o dia. Passou um café, do jeito que faziam no
restaurante onde trabalhava agora, um dos mais novos e mais caros
de Venice.
Tomou o café perto da janela e, quando terminou, foi ao armário
de arquivo de metal que tinha comprado num brechó de uma casa.
Todas as suas contas e documentos pessoais estavam
meticulosamente separados, por isso ela levou apenas um minuto
para encontrar o contrato antigo, assinado por Chloe, de quase cinco
anos atrás, guardado junto com os avisos de modestos aumentos de
aluguel que chegavam anualmente, endereçados a Chloe, aumentos
que Sara acrescentava aos cheques de aluguel mensais que ela
sempre enviava dentro do prazo.
Ligou para o número no alto do documento e explicou havia
quanto tempo morava ali e que queria um contrato novo com o
próprio nome. A mulher ao telefone fez perguntas, mencionou a
possibilidade de uma verificação de score de crédito e um aumento
de preço.
Sara havia desejado uma moral da história do velho. Mas, em sua
ausência, ela criou uma para si: ela pertencia àquele lugar tanto
quanto qualquer um deles ali.
Todos eles trabalhavam e pagavam aluguel. Usavam roupas
imperfeitas e tinham bafo de manhã. Sabiam como era acordar com
um susto, sair correndo para a calçada escura. Imaginaram
monóxido de carbono enchendo seus pulmões, envenenando-os
enquanto dormiam. Um prédio de apartamentos cheio de gente que
jamais acordaria. Mas não foi isso que aconteceu. O que aconteceu é
que todos sobreviveram.
— Está bem — disse Sara para a mulher ao telefone. — O que for
preciso.
***

Passadas algumas semanas, pouco depois das dez da manhã, o


telefone de Sara tocou com um número desconhecido. Ela estava no
fogão, acrescentando laranjas-quincã a um xarope simples que
estava preparando. O bartender-chefe havia lhe pedido que criasse
um drinque para o cardápio de verão, e ela andava testando
algumas receitas havia alguns dias, tentando acertar.
— Estou falando com Sara Foster? — perguntou uma mulher.
— Está, sim — respondeu Sara, mexendo o drinque.
— O meu nome é Leah Stevenson. Sou a assistente social
designada no caso do seu irmão.
Sara desligou o fogão.
— Ele está bem?
— Ele está bem, sim. O pai dele... seu também? Ele foi preso
ontem. Fiquei sabendo por Spencer que você tem mais de vinte e um
anos.
— Tenho vinte e dois — disse ela. — Tenho o meu próprio
apartamento. Só me fala aonde ir.
— Você está disposta e é capaz de recebê-lo?
— Estou, sim — disse Sara. Sentiu o impulso de chorar, tentou
reprimir. — Estou, sim — repetiu ela. — Estou.
— Quando pode buscar o menino?
— Onde ele está agora?
— Em Guerneville.
— Preciso fazer algumas ligações e pedir para alguém cobrir os
meus turnos.
— Ajeite o que precisar ajeitar e me avise. Nós vamos designar
Spencer a uma família adotiva, uma excelente família com a qual
trabalhei por anos. Ele está em boas mãos.
— Eu também... Eu deveria arrumar uma cama para ele. Umas
coisas para o apartamento.
— Deveria, mas também quero alertar que pode não ser por
muito tempo. A audiência do seu pai vai ser daqui a três semanas e
vamos saber mais depois disso.
Mas Sara já estava catando as chaves e saindo do apartamento,
abandonando o xarope que esfriava no fogão. Todo dia, na sua
caminhada para o trabalho, Sara passava por uma loja japonesa com
colchonetes ou futons exibidos na vitrine — era onde havia
comprado o seu. Arranjaria alguma coisa para Spencer dormir, uns
lençóis e uma boa manta. Era verão, então ele não precisaria de mais
que isso.
— Posso buscá-lo amanhã — disse ela, descendo a escada.
— Você vai conseguir ficar na região?
— Na região dele?
— Tentamos causar o mínimo de mudanças possível.
Ela parou na calçada do seu prédio. Não conseguia falar. Sentiu o
peso daquilo tudo, a forma como havia jurado nunca mais voltar. O
apartamento dela estava limpo e organizado e cheio de comida.
Sabia que caberia uma cama no nicho que servia de espaço de jantar.
Era mais uma reentrância, uma alcova que uma sala por si só, e Sara
já a havia medido uma vez, num período particularmente solitário.
Ela o queria ali com ela. Não queria voltar para ficar.
— Nós entendemos se não conseguir tirar a folga — disse Leah.
— Ele está de férias de verão, então não seria uma ruptura tão
grande.
Sara expirou, seguindo para a loja de colchões.
— Eu trabalho num restaurante — disse ela. — Não posso mesmo
me dar ao luxo de ficar fora. Se não tiver problema.
— Claro — disse Leah. — Deve ficar tudo bem.

***

Ela saiu às quatro da manhã no dia seguinte. Uma garrafa térmica


cheia de café, um pêssego, dois folheados do restaurante: um para
ela, um para ele. Foi uma agonia escolher o sabor. Cinco anos. Ela não
o conhecia mais. Decidiu por um croissant de chocolate e um
cinnamon roll. Deixaria que ele escolhesse, ou lhe daria os dois.
Nunca dirigira para o norte, e, assim que deixou Los Angeles e
atravessou as montanhas, descendo pela autoestrada onde passaria
os próximos seiscentos e cinquenta quilômetros, viu a placa para a
parada de descanso onde ela e Grant haviam passado aqueles dias.
Sentiu a potência do seu próprio carro, a carteira cheia de dinheiro, o
dinheiro na sua conta bancária — não era muito, mas o suficiente
para lidar com um conserto de carro ou uma passagem de trem, o
suficiente para tirá-la de qualquer enrascada. Acelerou ao passar
pela saída.
Ao se aproximar de Russian River, o pavor foi se instalando no
seu estômago. Nutriu a fantasia de manter o motor ligado e buzinar,
de Spencer sair correndo do lar temporário direto para o banco do
carona. Os dois disparando para longe juntos.
Ainda assim, é claro que ela desligou o motor. Atravessou um
portão e bateu à porta. A mãe adotiva a recebeu numa sala de estar
com uma estante cheia de brinquedos para os mais novos, quebra-
cabeças e livros para os mais velhos.
E ali estava Spencer, sentado numa cadeira. Seu irmão e seu não
irmão. Ele se levantou quando a viu.
Impossível, como seus braços e pernas eram longos. A acne no
maxilar. Até mesmo o formato do rosto tinha mudado.
— Você está diferente — disse ele em sua nova voz, mais grave, e
ela se deu conta de que isso valia para os dois.
Nove para quinze.
Dezesseis para vinte e dois.
No começo, se falavam ao telefone de vez em quando. Ela sempre
se certificou de que ele tivesse o número mais recente. Mas,
conforme os anos foram se passando, ele havia ligado cada vez
menos. Certa manhã, ela ligou para casa, na expectativa de falar com
ele antes da aula, mas foi seu pai quem atendeu. O som da voz dele a
paralisou. Não disse nada. Apenas respirou.
— Sara? — perguntou ele, e ela desligou.
— Você está diferente também — dizia ela a Spencer agora.
Ele sorriu.
— Bom, acho que sim.
A mãe adotiva havia desaparecido, deixando os dois a sós, e Sara
ficou grata por ninguém estar ali para testemunhar aquela reunião
desajeitada. Nas fantasias dela, eles não hesitavam. Eles corriam um
para o outro, como se os anos não tivessem sido nada.
Ela tentou. Abriu os braços, e Spencer foi até ela.
Eles se abraçaram, soltaram rápido.
— Olha só para você — disse ela, e passou a mão pela bochecha
dele. Ele enrubesceu, não conseguia encará-la.
Será que ele se lembrava da forma como ela se lembrava? Será
que ele se lembrava de que ela havia implorado para que a
acompanhasse e que ele tinha recusado?
A mãe adotiva voltou com a bolsa de lona de Spencer, e Leah
chegou em seguida, fazendo perguntas de uma lista para Sara e
conferindo a identidade. Sara assinou uma papelada e então os
irmãos estavam livres para ir.
— Está com fome? — perguntou Sara quando entraram no carro.
— Podemos parar em Sebastopol para almoçar, se quiser. Um café ia
me cair bem.
Ela deu a partida no carro e Spencer olhou para o relógio no
painel.
— Ainda são onze horas — disse ele.
— Temos uma viagem longa pela frente.
— A gente vai agora? Você acabou de chegar.
— Tenho que trabalhar amanhã.
— Uau. Tá bom. — Ele se virou para a janela, e ela se permitiu
olhar com mais atenção. Para aqueles ombros largos sob a camiseta
fina. Os ossos do maxilar cerrado. Spencer nunca tinha feito isso
quando criança. — Só tenho que pegar umas coisas em casa antes.
Estavam a uns poucos quilômetros do rio. Ela não queria cruzar a
ponte, mas faria isso pelo irmão.
— Claro — disse ela.
Mesmo depois de tanto tempo, ela sabia que curvas pegar. Mal
precisou pensar. O silêncio entre eles pressionava enquanto ela
dirigia.
— Quer ligar o rádio? — perguntou ela.
— Não serve de nada.
— Ah — disse ela. — Claro. — A estática tocava em todas as
estações.
E então lá estava — o rio. Ela fecharia os olhos se pudesse. Em
vez disso, prendeu a respiração até atravessar. Mesmo assim, ao
virar à esquerda na River Road e passar sob os arcos que davam as
boas-vindas à cidade, respirar foi difícil. Sara tentava não olhar pelas
janelas, apenas para a rua à sua frente, a linha amarela que a dividia.
Logo ela estaria do outro lado, e eles estariam partindo.
Ela saiu da avenida principal e entrou na rua deles, um aperto na
garganta, o coração batendo forte. Reduziu a velocidade na esquina.
Só estaciona em frente, disse ela a si mesma. Não tinha por que entrar;
não tinha nem por que olhar. Mas ao longe, a caixa de correio se
projetando na beirada da propriedade entrou no seu campo de visão.
Vermelho brilhante em contraste com folhas verdes, como havia sido
por toda a sua vida. Estacionou duas casas depois. Desligou o motor.
Spencer inclinou a cabeça.
— Desculpa — disse ela. — Eu só... — Tão suave que ele mal
pôde ouvi-la.
Ele abriu a porta.
— Vou ser rápido — disse ele, e ela fez que sim com a cabeça.
Ela esperou no carro, na sombra das sequoias, os olhos fechados,
as mãos apertadas em punhos, até ele sair de casa.

Pararam para almoçar em Sebastopol como Sara havia planejado, e


ela viu como a cidade tinha mudado. Sentia-se em casa no
restaurante que tinha escolhido para eles, contente por estarem
sentados a uma mesa iluminada perto da janela.
— Se tiver alguma pergunta, é só avisar — disse ela, analisando o
cardápio. — Eu trabalho num restaurante muito parecido com esse.
Spencer fez que sim, mas baixou o cardápio depois de passar os
olhos.
— Pode pedir por nós. Eu não faço ideia do que tem nesse lugar.
— Quer que eu explique?
— Não precisa — disse ele, e tirou um celular do bolso.
— É o seu celular? — perguntou Sara. Ela tentou manter a voz
firme. Ele tinha um celular e não havia passado o número para ela?
Mas ele balançou a cabeça.
— Do papai. Ele deixou para mim.
— Ah. Ele foi preso em casa?
— Foi.
A garçonete apareceu na mesa, e Sara pediu crudités e homus, a
tábua de frios, a frittata. Ela perguntou a Spencer se ele queria algo
para beber.
— Coca — disse ele.
— Não temos Coca, mas temos um refrigerante de groselha da
casa. Ou aceita chá gelado?
— Pode ser água — disse Spencer.
— Água para mim também.
A garçonete acenou com a cabeça e levou os cardápios.
— Por que ele deixou o celular com você? — disse Sara. — Ele
não pediu para você fazer nada para ele, pediu?
— Ele queria que eu pudesse ligar para as pessoas.
Sara fez que sim.
— Entendi.
Ela sentia o pai entre os dois na mesa. Durante a refeição, quis
lembrar a Spencer tudo o que tinha feito para ele. Teve que se conter
e não perguntar se ele se lembrava de como ela havia feito ovos
mexidos para ele toda manhã, como ela cortava fora a parte verde
dos morangos dele.
Ela via flashes do irmão, em suas expressões, mas não em seu
rosto mais fino, mesmo que o rosto novo lhe fosse familiar do seu
próprio jeito. Quantas horas ela tinha passado on-line, só para
conseguir vê-lo? Ela havia conferido toda noite, procurando fotos
novas, observando-o crescer. Ela dava o máximo de zoom nas
imagens, encarava as semelhanças pixeladas.
Ela nunca havia postado nada, entrou nas redes sociais com um
nome falso e sem foto. Não queria ser encontrada por ninguém.
Além de se certificar de que Spencer sempre soubesse que podia
encontrá-la, ela havia desaparecido da forma mais completa que se
poderia. Até onde sabia, uma vez que ela e Grant cruzaram a ponte,
ninguém nunca foi atrás dela.
Mas Spencer estava do outro lado da mesa. Ela o levaria para sua
casa. Não havia por que pensar naquela tarde. Não havia por que
pensar no rosto de Spencer quando ele estava sentado na bicicleta;
não havia motivo para pensar em nada.
— Está pronto? — perguntou ela quando terminaram de comer.
Ele fez que sim com a cabeça, e se levantaram ao mesmo tempo e
deixaram o restaurante.

Estava escuro quando chegaram ao bairro de Venice, o ar ainda


quente. Ela parou no estacionamento e pegou a bolsa mais pesada de
Spencer, mesmo que, depois de tanto tempo, ele tivesse a altura dela.
— Pensei em pizza — disse ela quando pararam em frente à
grande caixa de correio, e ela destrancou a primeira porta do prédio.
— O que acha?
— Pode ser.
— E depois, se quiser, podemos dar uma caminhada. A orla está
bem perto. É bem louco por lá, um monte de gente andando de
patins e se apresentando. Sempre tem alguma coisa para ver. — A
porta fechou atrás deles, e ela os conduziu escada acima. — Ou
podemos ficar no apartamento se estiver cansado. O que quiser. É só
me dizer.
Ela abriu a porta do apartamento e o deixou entrar primeiro.
— Aqui — disse ela. — Vou mostrar onde você vai ficar.
Tinha retirado a mesa de jantar da alcova perto da cozinha e a
apoiado na parede da sala de estar. No lugar dela, agora havia um
futon, arrumado com lençóis e travesseiros novos. Havia colocado ao
lado do colchão sua própria mesinha de cabeceira e um abajur.
Fazendo as vezes de porta, tinha pendurado uma barra com uma
cortina: azul, a cor que costumava ser sua favorita.
— Acho que vou conseguir fazer caber uma cômoda aqui — disse
ela.
— Se eu ficar por tempo o bastante — disse Spencer.
— Se você ficar por bastante tempo — disse Sara —, eu arranjo um
apartamento de dois quartos.
Ela mostrou o banheiro e o quarto dela, pediu que ele fizesse uma
lista de tudo de que precisava que ela compraria no dia seguinte. Ele
pegou alguma coisa da mochila. Ela queria saber o que era, mas não
ia perguntar. Ele não era um garotinho, tinha direito a ter
privacidade. Mas ele estendeu a mão para mostrar.
O desenho emoldurado de um desfile, tirado da parede da
cozinha.
Sara, mamãe, papai, Spencer
Ele estava sorrindo para ela. Estendendo para que ela pegasse.
Era um presente.
— Obrigada — disse ela. Mas parecia perigoso tomar isso nas
próprias mãos. Não queria.
— Que horas são? — perguntou ele.
— Quase nove.
Ele tirou o celular do bolso.
— Pode ser que o papai ligue. O horário de ligações vai acabar
logo.
Lá estava ele de novo, pairando entre os dois. Ela quase
conseguia vê-lo em sua jaqueta surrada, a calça de veludo cotelê
marrom.
— Você fica aqui, então — disse Sara, pousando o desenho na
mesinha de centro, dirigindo-se à porta. — Vou buscar a nossa janta.
— Vou dizer que você mandou lembranças se ele ligar — disse
Spencer. Ele a observava, a cabeça para cima e o queixo erguido, de
olhos semicerrados, esperando a reação dela.
Ela desviou o olhar, pegou as chaves, guardou a carteira no bolso
traseiro. Ele ainda estava esperando. Ela se virou para a porta.
— Tá bom? — disse ele.
Ela passou pela soleira, olhou para ele antes de fechar a porta.
— Pode falar o que quiser para ele — disse ela. — Pode dizer que
mandei lembranças, se é isso que você quer.
O CÂNION E O APARTAMENTO NA GARAGEM

Um dia na primavera, uma mensagem.

Me diz que está livre hoje à noite. Faz uma mala.

Jacob nunca passava a noite no conjugado de Emilie, e ela nunca


havia lhe pedido isso. Estava na lista de coisas que permaneceriam
não ditas. Eles pegavam no sono, como se ele fosse ficar, mas um
tempo depois ele partia em silêncio. Nas piores noites, Emilie fingia
dormir enquanto ele deixava a cama de fininho e abria a torneira do
banheiro. Quanto mais tempo a água corria, mais profunda a dor.
Ele estava lavando o cheiro dela.
Ele estava colocando as roupas de volta.
Ele estava abrindo a porta do apartamento bem devagar e
fechando-a ao sair.
O vazio inundava tudo.
Nas melhores noites, ela estava num sono pesado quando ele se
levantava e ela seguia assim até de manhã. Agora, enquanto fazia
uma mala com um vestido sensual e tênis de caminhada, perfume e
protetor solar, uma escova de dentes e um livro de poesia com
lombada verde, tudo em que ela conseguia pensar era em como os
dois acordariam juntos pela primeiríssima vez.
Ele a buscou de carro. Enquanto deslizava para o banco do
carona, era fácil fingir que este era um carro deles dois. Era um
aniversário de casamento, talvez. Ou aniversário dele. Talvez um
deles tivesse recebido uma notícia boa que merecesse uma
comemoração, e eles se entreolharam e disseram “Vamos sair da
cidade hoje à noite”, e ali estavam eles, saindo da cidade.
Ela se agarrou à fantasia por quilômetros, por todo o caminho de
Los Angeles até a costa, até que foi baixar o vidro e viu um adesivo
no apoio de braços — uma baleia azul com glitter, algo que algum
dos filhos deve ter metido ali — e a frase voltou. O que mais gosto do
meu lar é compartilhá-lo com as pessoas que amo.
Ele não era dela.
— Me fala aonde a gente vai — disse ela.
— Estamos chegando. Você não quer uma surpresa?
— Você já me surpreendeu. — Ela o observava dirigir, se sentia
ousada, estendeu-se e passou os dedos pelo cabelo e pelo rosto dele.
— O cânion de Topanga — disse ele, inclinando-se para seu
toque. — Mas isso é tudo o que vou dizer.
— Nunca estive lá.
— Nunca? Nem para passar um dia?
— Nunca. Mas eu trouxe tênis de caminhada.
Emilie entendeu então que não deveria ter trazido o vestido. Ele
não a levaria a nenhum lugar público. Estariam se escondendo como
sempre faziam. Mas, ainda assim, era algo. Algo que ele havia
planejado só para os dois.
Era uma casinha rústica. Remota, como ela esperava. Ela o seguiu
por uma entrada na rua estreita e para uma rota anexa, atravessando
um jardim verdejante até a porta. Esta dava diretamente para a sala
de estar com pouca mobília, apenas uma mesinha de centro e um
sofá de frente para um forno a lenha. Havia uma janelinha com uma
saliência que dava para a cozinha. Jacob disse que lhe mostraria o
restante quando voltassem, mas precisavam sair para aproveitar a
luz do dia.
Colocaram os tênis para caminhada, e Jacob a levou para uma
trilha que ficava a poucas casas de distância. Pegou a mão dela. Ela
gostava de como os tênis deles ficavam juntos, passos lado a lado,
conforme seguiam para a trilha.
Terra vermelha e árvores verdes. Flores silvestres brancas
crescendo por entre as pedras. Artemísias e manzanitas.
— Espera só — repetia Jacob. — Só mais uns minutos. — Como se
tudo não fosse lindo. Como se ela precisasse de um ângulo melhor
para compreender. Tudo aquilo era lindo para ela. Tudo aquilo. Eles
poderiam estar em outro país; fazia tanto tempo que ela não deixava
a cidade, e, quando saía, era sempre para a praia, nunca para a
floresta. Emilie se esquecera da forma como a luz atravessava as
folhas. Esquecera-se do cheiro de terra e chuva, dos inúmeros tons
de verde, das texturas dos troncos e da pista de obstáculos que eram
as raízes de árvores e pedregulhos.
— Quase lá. Logo depois dessa curva.
Ela ouviu vozes vindo de onde quer que ele a estivesse levando e
se sentiu desapontada. Esperava que os dois pudessem
ziguezaguear pela floresta na trilha particular por horas, mas ela o
seguiu depois de uma curva, chegando a uma luz forte de um sol
que se punha, e ali, como se caídos do céu, havia meia dúzia de
policiais conversando. E uma mulher de terno. E dois sacos para
cadáveres em macas.
— O que houve? — perguntou Jacob.
— Duas pessoas fazendo caminhada — disse um dos policiais.
— Caíram?
— Uma pessoa caiu. Parece que a outra tentou descer para ajudar
e ficou presa. Morreram de fome, parece.
Jacob secou a testa.
— Meu Deus — disse ele. Olhou para Emilie. Olhou para os sacos
de cadáveres.
— Ninguém estava procurando os dois? — perguntou Emilie.
— Estavam a passeio — disse o policial. — A julgar pelo que
tinham nas mochilas. Recebemos a denúncia de uns observadores de
pássaros que viram os corpos. — Ele se virou para os colegas.
O casal ficou parado, os dois perfeitamente imóveis, até que Jacob
colocou a mão nas costas de Emilie.
— A gente ainda pode olhar o cânion — disse ele. — A gente veio
até aqui.
O sol estava maravilhoso, e ela sabia que a vista seria espetacular,
mas agora estava tingida de terror. Suas pernas se recusavam a levá-
la mais perto da beirada. Emilie imaginou Jacob caindo. Imaginou o
desamparo de vê-lo cair. Ele iria atrás dela? Aqueles corpos. Deviam
estar apaixonados, para que um fosse atrás do outro daquele jeito.
Ela pensou em ossos, carne e pedra. O estalo de uma coluna
vertebral, o jorro de sangue. Frio e fome.
— Quero voltar — disse ela.

Quando voltaram para casa, ele acendeu a lareira antes de abrir a


porta no fim de um corredor curto com uma cama macia e cobertores
quentes. Ela estava tentando não chorar.
— Ei — disse Jacob. — Quer conversar?
— Ninguém saberia onde encontrar a gente — disse ela. —
Ninguém sabe onde a gente está. — Ela se surpreendeu com as
palavras. Não sabia que estava pensando nelas.
Ele se sentou ao lado dela na cama. Tomou a mão dela e a beijou.
— Aconteceu uma coisa terrível com aquelas pessoas — disse ele.
— Acho que significa alguma coisa.
— Eles não são nós.
— Mas estavam passeando pelas montanhas, como nós.
— Não exatamente como nós.
— Bem parecido.
Mas não era isso também.
Havia perigo em todo lugar, o tempo todo, e eles o pioravam.
Aquela baleia com glitter, a arte acima da cornija, a forma como a
água da pia corria e corria logo antes de ele a deixar. Estavam
fazendo algo terrível. Algo estava destinado a alcançá-los, mesmo
que fossem apenas eles mesmos.
— Me deixe servir vinho para você. Você pode ficar sentada lá
fora, ou ler... Só descanse um pouco e eu faço o jantar. Tá bom?
— Tá bom — disse ela.
Pela janela, ela viu Jacob ir até o carro e abrir o porta-malas. Ele
ficou lá parado, olhando o interior, pelo que pareceu muito tempo.
Então pegou um cooler e o equilibrou no quadril antes de fechar
tudo e voltar.
Ela foi ao banheiro fazer xixi, e só se deu conta de que estava
tirando a roupa quando terminou. Os azulejos da banheira eram de
um verde opaco, como musgo, quase suaves, mas ela escolheu tomar
uma ducha em vez disso: um boxe envidraçado com dois chuveiros.
Abriu os dois na temperatura mais alta. O banheiro ficou cheio de
vapor, e ela fechou os olhos e tentou se sentir longe, muito longe, em
algum lugar tropical onde nem o seu nome era o mesmo.
No fim das contas, colocou o vestido. Ela secou o cabelo e o
prendeu para trás. Aplicou rímel e batom e passou um pouquinho
da cor nas bochechas. Quando voltou para o cômodo principal e
Jacob a viu, deu para ver o alívio atravessando seu rosto.
Ele lhe passou uma taça de vinho e se serviu um pouco mais.
— Saúde — disse ele.
Eles brindaram. Ela se sentia completamente sozinha.
Ele selou truta e a serviu com um macarrão artesanal que havia
feito no restaurante antes de buscá-la. Tomaram a garrafa de vinho,
depois abriram outra. Ele lhe contou sobre os verões que passava na
casa do avô, e ela fez o que fazia melhor: saiu de si mesma e foi para
dentro da história dele. Emilie fez todas as perguntas certas para
fazê-lo lembrar com mais vividez. A varanda envidraçada onde
passavam as noites: móveis de vime, vaga-lumes batendo nas
janelas, luas minguantes e John Denver no rádio.
— Consigo visualizar vocês — disse ela.
Ouvir daquele jeito a alegrava.
Alimentava-a.
Permitia que ela se esquecesse das pessoas fazendo trilha durante
o jantar, a sobremesa e pelo tempo que ele demorou para despi-la.
Mas, depois de falar e do silêncio e de sua boca na dela, quando
estavam nus e ele a tocava, perguntando: “Está pronta?”, ela
balançou a cabeça e respondeu:
— Me beija mais forte.
Estavam perto da lareira, no chão, as costas apoiadas no sofá. As
mãos dele nos cabelos dela. Ele a beijava do jeito que ela havia
pedido, e ela tentava chegar àquele lugar aonde o corpo dela a
conduzia, onde ela não pensava tanto. Em vez disso, havia uma fita
isolante, os sacos com cadáveres. O peso no estômago, o aperto na
garganta.
— Agora? — perguntou ele.
— Sim.
Ela tentou imaginá-los naquele lugar tropical conforme a noite
esfriava.

Manhã silenciosa.
Café preto, ovos, torrada.
Eles se sentaram lado a lado na mesa da cozinha, com vista para o
cânion. À tarde, deram uma longa caminhada, passeando pelas
trilhas mais seguras, sem menção de voltar ao lugar que ele queria
que ela visse. Voltaram para casa para comer sanduíches e então era
hora de ir.
Fazer a mala foi fácil. Ele apagou todos os vestígios dos dois.
Quando abriu um armário e tirou um saco plástico de lixo foi que ela
se deu conta: esta casa era dele. Uma casa de férias, que não era
grande o suficiente para a família de quatro pessoas, mais
confortável para dois. Emilie se perguntou se Jacob e a esposa
deixavam as crianças com amigos e iam até lá para fins de semana
românticos. Ela se perguntou se ainda dormiam juntos ou se esse era
o motivo pelo qual ela estava ali. Ou talvez eles trepassem o tempo
todo; talvez ela servisse para outra coisa.
Ele disse que conhecia um lugar ótimo para pegar café para a
viagem de volta. Estacionou em frente e soltaram os cintos de
segurança. Ela conseguia vislumbrar um espaço bem claro e
aconchegante.
— Já volto — disse ele.
— Vou entrar também.
— Acho que é melhor se só eu for.
— Ah.
Ele olhou para ela:
— Podemos deixar para lá.
— Não. Café é uma boa ideia.
Observou-o entrar e depois sacou o celular. Tinha sinal ali; não
tinha no cânion. Digitou o endereço da casa. Vendida seis meses
antes para Jacob Lowell e Lia Michaels, por pouco mais de um
milhão de dólares. Ele estava conversando com o barista naquele
momento. Parou um instante a uma mesa perto do balcão para
colocar as tampas nos cafés e ela viu que ele estava sorrindo.
Ninguém saberia onde encontrar a gente. Ninguém sabe onde a gente
está.
Quão idiota foi por dizer isso. Era a casa de Jacob. Se algo desse
errado, sua esposa saberia exatamente onde procurar. Eles
provavelmente tinham feito aquela mesma caminhada juntos, com
os filhos. Visto a beleza do cânion e não o terror.
Era apenas Emilie que ninguém saberia onde encontrar.
Apenas Emilie, que não pertencia àquilo.
Caía café no pulso dela durante a viagem pela estrada esburacada
até a autoestrada e ela não fez nada, mesmo que queimasse, como se
tentar impedi-lo fosse inútil, como se ela fosse forçada a tolerá-lo até
que uma quantidade suficiente transbordasse e ele esfriasse o
suficiente para beber. Jacob estava falando, mas ela não conseguia
ouvi-lo. Em algum momento, ele ligou o rádio.
Estavam na autoestrada, viajando rápido. Ele descansou a mão na
coxa dela por alguns quilômetros, mas depois tirou. A última música
acabou e então tudo ficou silencioso.
Ela disse:
— Eu me pergunto que desculpa vou dar para o meu professor
amanhã de manhã quando não puder entregar um ensaio que vale
metade da minha nota.
Ela olhava para a frente, fingiu não notar o olhar dele.
— Eu estava sabendo desse ensaio? — perguntou ele.
Ela deu de ombros.
— Andei falando dele. Talvez você não tenha prestado atenção.
— Não — disse ele. — Já sei. Aquele livro que você estava lendo
no café da manhã. De passagem.
Ela se surpreendeu, mas não quis lhe dar crédito. A estrada ficava
mais estéril à frente deles, nada além do cinza.
— Talvez eu deva contar para o meu professor que o homem com
quem tenho um caso de meses me convidou para uma viagem com
ele pela primeira vez na história.
— Você poderia ter me lembrado. Você poderia ter escrito o
ensaio lá.
— Hum. — Ela tentou imaginar a situação. Perdida digitando no
laptop enquanto ele cozinhava. Tentando decifrar as próprias
anotações ao se sentar diante da lareira. Nada de se vestir para o
jantar, nada de se despir depois. — Não consigo imaginar.
Ele suspirou. Estava exasperado com ela. Conseguia ouvir na voz
dele. Pela primeira vez em meses, ela se lembrou de como Olivia
havia se cansado dos fatos simples de sua vida. Que ela dividia o
apartamento, que ainda estava na faculdade. Ele suspirou de novo.
— O quê? — perguntou ela.
— O que você está fazendo?
— Não sei — disse ela.
Foi tão difícil com Olivia no fim. Emilie se perguntava se seria
mais fácil desta vez.
Passaram o restante da viagem em silêncio. Saíram da
autoestrada, e a esterilidade cedeu lugar a um pôr do sol elétrico de
Los Angeles. As janelas estavam fechadas e ela pensou em como o ar
que ela respirava havia, momentos antes, preenchido os pulmões
dele.
— Acho que a gente devia falar sobre isso.
— Falar sobre o quê?
— Vamos só ser honestos com o que estamos fazendo. Você vai
para casa para a sua esposa agora. Lia. E os seus dois meninos que eu
não sei o nome, mas que têm nove e seis anos.
Jacob desligou o motor do carro e ficou quieto de súbito, mais
quieto do que a rua jamais havia estado.
— Sete — disse ele. — James acabou de completar sete.
— Qual o nome do mais velho?
Jacob pigarreou. Emilie olhou para a mão dele, esfregando um fio
solto no volante com o dedão. Olhou para o rosto dele.
— Liam — disse ele.
— Que nome bonito — disse ela, sentindo-se amolecer. — Os dois
são.
— Essa foi uma péssima ideia. Viajar. Eu cometi um erro.
— Foi, acho que foi. Acho que você deveria ir para casa agora.
Para James e Liam. E ensinar os dois a não fazer escolhas péssimas.
A nunca se esconder.
O céu estava um cor-de-rosa quente, brilhante de poluição, e
Emilie precisava sair do carro.
— Deixa eu te acompanhar — disse ele.
Ela abriu a porta do carro e ele fez o mesmo, seguindo-a escada
acima até o apartamento dela. Ele deixou a bolsa dela no chão, ela
largou as chaves na mesa, e eles pararam, encarando-se.
— Sinto que acabou — disse ele. — E não sei como isso
aconteceu. — Ele passou a mão pelo rosto. Ela viu que ele estava
chorando.
Ela nem sequer desejara isso com ele, lembrou. Não de início.
Estava contente em apenas se sentar à mesa grande, trabalhar junto,
com café. Não, não contente. Exultante. Ela não precisava de nada
além daquilo.
A mesa de Jacob e Emilie.
Durante todo aquele tempo, ela só queria se sentir especial. Mas
ver a vida dele — com seu restaurante, seu chalé e sua família, com
seu carro, sua casa de férias e o café onde com certeza ele parava
toda vez que visitava o cânion — mostrava como ela tornara a
própria vida menor. Tinha muito pouco quando começaram. Agora,
de alguma forma, tinha ainda menos.
Emilie cruzou os braços até que por fim — depois de ele a abraçar
e soltar, depois de dizer que não precisava ser o fim, depois de
perguntar se tinha alguém que ele poderia chamar para cuidar dela,
depois de olhar a hora de novo e de novo, dizendo que precisava ir
— ela fez que sim, e ele a deixou.

Ela achava que a sua vida estava à beira de uma mudança, mas não
estava. Achava que era uma pessoa completa, e descobriu que estava
errada. A incompletude pairou e se expandiu até que ela mal
conseguia abrir os olhos. Até mesmo fazer os arranjos de flores por
dinheiro lhe pesava muito, depois que Meredith deixou que ela
trocasse o Yerba Buena por um bistrô em Echo Park. Toda a força de
que precisava para cortar os galhos. A energia de sorrir e
cumprimentar pessoas. A tristeza estranha de olhar para a beleza
que não a emocionava mais. O calor de outro verão, dia após dia
implacável.
Emilie quis mudar de ideia de novo, mudar a especialização de
literatura para outra coisa, mas fazer isso seria cair na própria
armadilha, a que ela seguia armando para si. Não podia mudar de
curso de novo — até mesmo ela sabia isso.
Marcou uma reunião com um conselheiro acadêmico.
— Eu nunca vi um histórico como esse — disse ele, maravilhado,
encarando o computador. — Você está a exatamente três créditos de
distância de um diploma em estudos de gênero, estudos étnicos,
design ou literatura. Botânica é outra questão... você precisaria de
mais umas aulas de ciências para essa. Você sabe no que quer o seu
diploma?
Ela deu de ombros.
— Tá bom — disse ele. — Quem sabe não olhamos a programação
de cursos para o outono e você pode escolher a aula que funciona
melhor?
— Pode ser.
Ele lhe deu tantas escolhas, mas todas pareciam terrivelmente
chatas, ou terrivelmente difíceis. Ele leu as descrições de cada uma,
perguntando a preferência de horário, como se ela tivesse uma vida
para planejar ao redor das aulas.
— E se fosse literatura estadunidense, ou alguma coisa assim? —
disse ela por fim. Assim, tudo que ela precisaria fazer seria ler e
escrever uns artigos.
— Literatura estadunidense? Claro — Ele abriu uma nova janela,
rolou um pouco. — Terças e quintas às três da tarde?
— Ótimo — disse ela.
E então ela leu Frank O’Hara.
Zora Neale Hurston.
Sylvia Plath.
Ela leu peças de Tennessee Williams e ensaios de James Baldwin.
Ela releu Gatsby pela sexta vez — aquela cópia muito amada com sua
capa verde desbotada — e, entre as aulas e as páginas, ela se
arrastava até a cama e dormia.
Emilie se recusou a participar da pompa de formatura, mas
concordou em deixar a mãe emoldurar o diploma. Surpreendeu-se
com o sentimento de conquista que sentiu ao abri-lo.
Estava terminado. Ela saiu da floricultura. E então não havia mais
nada para ela fazer.
Bas ligou para ela uma noite, compartilhando as notícias dos
médicos de Claire. Agressivo demais desta vez, nada a ser feito.
Claire queria voltar para casa — ficar em casa até o fim —, então ele
estava ligando para ver se Emilie poderia ajudar.
— Você ia precisar morar com ela, mas as enfermeiras vão estar lá
todo dia para cuidar dela — disse ele. — A gente pode cobrir os seus
gastos, já que isso significaria não arrumar outro emprego. Posso
cobrir o aluguel do seu apartamento também. Você poderia ficar no
apartamento do segundo andar da garagem. Assim, teria alguma
privacidade.
— Não preciso ficar com o meu apartamento — disse ela, o
telefone pressionado forte na orelha. Ela correu os olhos pelo espaço
triste. Ele havia se tornado uma lembrança de todos os seus
fracassos. Como ela o tinha achado especial naquela noite com Jacob,
Alice e Pablo?
— Nós sempre podemos contratar uma cuidadora — continuou
Bas. — Não queremos que faça nada que não queira.
Mas ela queria fazer isso. Sem dúvida. Emilie ansiava por
propósito, e ali estava.
Deixou o apartamento num sábado. Pablo a ajudou a descer seus
poucos móveis pela escada, deixando tudo na rua para alguém
pegar, exceto pela poltrona verde e pela estante. Grátis para um bom
lar, escreveu Pablo no verso de uma folha de um dos ensaios de
Emilie. Ele colocou com fita adesiva na mesinha de cabeceira.
— E se a pessoa que quiser essas coisas morar num lar ruim? —
perguntou Emilie.
— Aí estão sem sorte, eu acho — disse ele.
— Talvez os móveis estejam amaldiçoados. E se o lar da pessoa
for bom, mas depois de pegar essas coisas tudo ficar ruim?
— Em — disse ele, e colocou a mão no seu ombro.
— Era só brincadeira.
Ela olhou para o outro lado da rua, para o hotel. O letreiro de
vagas estava como sempre.
— Tchau, hotel — disse ela. — Já vai tarde essa porra. — Ela deu
a volta e ergueu a cabeça para suas janelas. — Só faltam umas caixas.
Você se importa de pegar?
Pablo balançou a cabeça.
— Nem pensar. É você quem precisa dar um ponto-final nisso.
Então marcharam juntos escada acima. Pablo empilhou as duas
caixas e as levantou.
— Vou deixar você aqui — disse ele. — Fica o tempo que precisar.
Faz sua despedida.
Vazio, o conjugado não parecia tão ruim. Ela quase conseguia se
lembrar da primeira vez que o vira, quando o vazio dele era cheio de
promessas e ela tinha planos de pintar as paredes com alguma cor
vibrante. Ela se lembrou — de súbito — de que tinha dito ao
proprietário que ele poderia deixar as paredes da cor que estavam,
só com a primeira demão de tinta. Alice tinha acabado de voltar do
Marrocos, e Emilie vira fotos de hotéis, lojas e casas, maravilhada
com as cores.
Poderia ter pintado as paredes de rosa-choque. Poderia ter
enchido o conjugado de plantas incontroláveis e preparado saladas
toda tarde com vegetais de cores vibrantes e molhos fortes. Poderia
ter consertado o toca-discos e colocado música alta. Poderia ter
arrancado a tinta preta das janelas e dado festas e jantares
barulhentos, se bronzeado na escada lateral da saída de incêndio.
Emilie poderia ter sido o tipo de pessoa que não se importa de ser
observada pela janela à noite — ela poderia ter vivido esse tipo de
vida.
Onde ela havia errado?
Agora seu tempo havia acabado e tinha que se despedir de uma
forma que significasse algo. Sabia que Pablo estava pensando em
Jacob quando disse “ponto-final”. Havia uma quantidade muito
limitada de luto possível quando se terminava com alguém que
nunca fora dela de fato. Disseram isso para ela naquela noite, bem
ali, quando foram visitá-la sem aviso prévio para jogar verdades na
sua cara.
— A gente está com saudade — dissera Alice.
— Tipo, muita — acrescentara Pablo.
Mas ela não tinha mais nada a dizer, então colocou as chaves na
bancada e fechou a porta.
Emilie tinha lembranças da infância do apartamento na garagem. Ela
e Colette ficaram lá algumas vezes porque era novidade, os avós
trazendo o jantar, colocando vídeos no videocassete portátil. Mas
fazia anos que ela não entrava lá. Nem ninguém, ao que parecia. O
piso de linóleo estava rachado e descascando, teias de aranha por
todo lado. Os quartos fediam a molhado, mas ao menos era um
lugar novo.
— Vamos deixar a porta aberta — disse Pablo. — Deixar arejar.
Carregaram a poltrona pelo quintal, rasgaram caixas e encheram
a estante com lombadas verdes. Tiraram os lençóis das camas e os
lavaram. Enquanto Pablo varria as teias de aranha, Emilie colocou
seus cristais no peitoril das janelas.
— Você devia tirar a poeira disso antes — disse Pablo, mas ela só
deu de ombros. Não conseguia acreditar que havia conquistado
tanto num único dia. Já sentia a derrota se apressando para voltar.
— Você poderia morar na casa, não?
— Acho que nós duas queremos ter o nosso próprio espaço —
disse ela.
Com um cabo de vassoura, ele bateu numa porção descolorida do
teto.
— Tenho um pouco de medo de que isso possa colapsar.
— Duvido que isso me mate.
— Bom, claro — disse ele. — Eu também duvido. Mas, mesmo
assim, é inverno. Se chover, não vai ter infiltração?
— Vocês estão aí dentro?
Alice apareceu no portal, recém-saída do trabalho, chegando com
tacos, como prometido, e Emilie se sentiu grata pela interrupção.
— Vou fazer o tour — disse ela. — Vai levar trinta segundos. Aí a
gente pode falar de decoração durante o almoço.
Alice fez que sim e deixou a bolsa do lado de fora.
— Aqui está o banheiro — disse Emilie, e Alice entrou.
— Só tem esse toalheiro? — perguntou ela, apontando para um
plástico quebrado.
— Só. Aqui está a sala de estar.
Alice notou a mancha no teto e ficou boquiaberta.
— O quê? — disse Emilie.
Alice apontou.
— Apavorante, né? — disse Pablo.
— A gente já discutiu isso. Aqui tem a cozinha. É só um frigobar,
mas eu devo cozinhar na casa na maior parte do tempo, de qualquer
forma. Não que eu cozinhe. E aqui está o quarto.
Alice atravessou o quartinho até a única janela. Ela moveu a
cortina dura para o lado: barras de metal, uma cerca.
— Vamos comer — disse Pablo. — Estou morrendo de fome.
Eles se sentaram a uma mesinha plástica verde no pátio do lado
de fora do apartamento. Havia uma cerca parcial que os separava do
jardim mais espaçoso de Claire, buganvílias de cores vivas em pleno
desabrochar.
— Esse quintal é bem legal, não é? — disse Emilie. — Eu podia
comprar uma espreguiçadeira ou algo assim.
— Talvez você pudesse colocar as latas de lixo em outro lugar —
disse Pablo.
— Bom, é óbvio. Ninguém vem aqui tem uns quinze anos, pelo
menos. É só por isso que as latas estão aqui. — Ela se virou para
Alice. — Então, decoração — disse ela. — Andei pensando num
monte de cores brilhantes e plantas.
— Está de brincadeira, né? — disse Alice.
— Não — disse Emilie. — Estou falando sério.
— Você não pode se acomodar aqui. Já é difícil para mim te
imaginar ficando aqui temporariamente.
— Mas eu quero tirar o máximo da experiência.
— Em — Alice abaixou seu taco. Sua testa se franziu de
preocupação. — Em. Eu sinto muito. Mas você não pode morar aqui.
Emilie empurrou o prato para o lado. Baixou o rosto sobre a
mesa, o plástico quente na bochecha.
— Vocês sabem a sensação de, tipo... de andar por uma neblina?
Só que é mais densa, é mais uma massa que uma neblina? Mal dá
para sair da cama. Formar palavras é difícil.
— Acho que sim — disse Pablo. — Acho que já me senti assim
algumas vezes.
— Do que você está falando? — perguntou Alice.
— É assim que me sinto o tempo todo.
— Desde quando?
— Não sei. Desde sempre? Não lembro.
— Emilie — disse Alice. — Você está falando sério?
— Eu só quero paredes brilhantes, tá bom? Preciso de alguma
coisa que me tire disso.
Então Alice e Emilie foram à loja de materiais de construção
comprar tinta enquanto Pablo dirigia até em casa para buscar rolos e
pincéis. Elas voltaram com cor-de-rosa para a cozinha, amarelo para
o quarto, verde para a sala de estar.
— Puta merda — disse Pablo quando o primeiro toque da tinta
tocou a parede do quarto. — Qual é o nome dessa cor? Na verdade,
deixa para lá... não importa. O nome verdadeiro dessa cor é Amarelo
Para Alegrar a Porra Toda.
Passaram o restante do dia pintando.
— A gente se esqueceu de comprar fita-crepe — disse Emilie, e os
três inclinaram a cabeça para olhar as linhas onde as paredes
encontravam o teto amarelado e então, do outro lado do teto, para as
rachaduras e os pontos escuros.
— Que bom que nunca chove — disse Alice. Eles olharam para a
moldura das portas, um pouco afastadas das paredes, pregos
expostos fazendo o melhor que podiam.
— Ah, bom — disse Emilie, subindo na escada que tinha
encontrado na garagem, e tentou pintar linhas retas perto das
quinas.

Emilie havia romantizado a morte. É claro que tinha imaginado


Claire ficando mais fraca, dormindo por mais tempo, precisando de
ajuda para ir ao banheiro — tudo isso ela sabia. Mas também tinha
pensado que haveria conversas francas, tardes juntas ao sol ameno
de janeiro.
Em vez disso, havia uma necessidade eterna de separar
comprimidos. Discussões para tomá-los. A animação forçada dos
seus pais, que entravam e saíam como brisas rápidas. As quedas, os
cortes e os machucados. O jeito como Claire passava o dia todo na
cama, recusando a água que Emilie oferecia, sua respiração tão fraca
que Emilie se preparava para o fim, chorava enquanto lavava a louça
e falava com a cuidadora — apenas para descobrir na manhã
seguinte ao entrar pela porta dos fundos que Claire já estava na
cozinha, vestida e lendo o Los Angeles Times do dia à mesa.
E então houve o dia em que Claire mandou Emilie ligar para a
irmã. Emilie abriu a porta quando Colette tocou a campainha,
demorou um instante olhando para ela pelo portão de metal antes de
abri-lo também.
A escolha de Emilie de não dizer nada um ano antes, depois do
encontro na lanchonete, de alguma forma tinha dado certo. Colette
havia se recuperado por conta própria, ou em segredo, ou talvez não
tivesse se recuperado, mas conseguia esconder. Emilie não sabia, não
queria perguntar.
— Eu adoro quando posso ignorar os meus problemas e eles
simplesmente vão embora — brincara ela com Alice um dia numa
caminhada à beira da praia.
Mas agora, ao abrir a porta, tudo que ela sentia era incerteza.
Colette parecia nervosa, mas poderia ser por inúmeros motivos. A
morte do avô havia sido súbita, não uma questão que se estendera.
Nenhuma conversa no leito de morte como elas teriam agora.
As irmãs trocaram um abraço.
— Faz tempo — disse Colette.
— Faz — disse Emilie. — Por onde você andou?
Colette deu de ombros.
— Trabalhando, na maior parte do tempo. — Ela jogou o cabelo
para trás do ombro, e o mero gesto tinha tamanha graça que Emilie
quis ter passado batom, queria ter vestido algo melhor que a legging
e a camiseta, uniforme que vinha usando todo dia, mesmo que fosse
apenas para se sentir um pouco mais segura na presença da irmã.
— É muita gentileza sua fazer isso pela vovó — disse Colette. —
Quer dizer, não é gentileza. É de fato...
E Emilie fez que sim com a cabeça.
— Sei o que quer dizer — disse ela, e por um instante conseguiu
se ver do jeito que Colette a via: capaz, generosa e boa. Elas trocaram
um abraço, e Emilie sentiu que seu coração poderia partir, então se
afastaram.
— Ela está no quarto — disse Emilie. — Quer falar com a gente,
nós duas. Não tenho muita certeza do que se trata.
Claire se sentia forte naquele dia, o que significava que estava
sentada ereta na cama, apoiada em travesseiros. Colette correu para
lhe dar um beijo na bochecha, e Emilie tentou ver a avó através dos
olhos de Colette. Claire estava frágil, a pele, macia e fina. Colette se
sentou na beira da cama e tomou a mão dela com gentileza.
— Posso? — perguntou ela. — Não quero machucar a senhora.
— Não tem problema — disse Claire. — Não dói.
Ela suspirou e uma lágrima correu pela bochecha. Quando
Colette fez menção de secá-la, Claire balançou a cabeça.
— Meninas — disse ela. — Escutem. Quero deixar tudo para
vocês. Tudo o que tenho. O pai de vocês não precisa. Eu queria
poder dividir tudo ao meio, mas Colette... você sabe que não posso.
Colette ficou em silêncio.
— É porque quero que você viva — disse Claire. — Não porque
eu não te ame ou porque não torça pela sua felicidade. Não é que eu
pense que você não merece.
Colette tentou dizer algo, mas parou. Acenou com a cabeça.
Emilie não conseguia decifrar o que Colette estava sentindo.
Decepção ou arrependimento, vergonha ou raiva — poderia ser
qualquer uma dessas coisas. Sua irmã era um mistério.
— Emilie, promete que vai ajudar a Colette. Você vai achar
maneiras de facilitar as coisas para ela. Pagar a caução quando ela
encontrar um apartamento novo. Ajudar com a mensalidade, se ela
quiser estudar.
— Prometo — disse Emilie, mesmo que pensar nisso a deixasse
nauseada: Colette precisar se voltar para ela para esse tipo de ajuda.
Talvez Emilie não fosse generosa ou boa, afinal de contas. Talvez ela
não merecesse gratidão.
Emilie pediu licença para ir ao banheiro e não voltou. Em vez
disso, ficou na cozinha. Poucos minutos depois, Colette veio do
quarto.
— Ela está cansada — disse ela. — Eu a ajudei a se deitar.
— Obrigada — disse Emilie.
— Sem problema. Acho que vou embora.
— Beleza. — Emilie fechou as tampas da bandejinha de remédios,
uma depois da outra, para cada dia da semana. — Eu não sabia —
disse ela quando terminou.
Colette lançou um olhar para o teto.
— Está tudo bem — disse ela. — Quer dizer, ela não tem motivo
para confiar em mim.
— Colette.
— Tô falando sério. Está tudo bem.

Naquela noite, Emilie ficou na casa principal madrugada adentro.


Sentada à mesa de jantar, bebericando água. O coração batia rápido e
forte — respirar fundo não poderia acalmá-lo.
Ela não podia continuar daquele jeito, os dias com Claire tão
silenciosos e tensos, cheios de regras e ordens das enfermeiras.
Emilie havia pisado em ovos em torno da morte como se fosse um
segredo. Forçando-a a tomar remédios como se Claire pudesse
melhorar. Todo mundo sabia que ela estava morrendo. Era por isso
que Emilie estava ali. Claire havia sido franca com Emilie e Colette,
então Emilie seria também.
Na manhã seguinte, Emilie levou o copo de água, a torrada e os
remédios para Claire em sua bandeja de café da manhã. Quando
Claire tomou apenas os remédios que ajudavam a passar a dor,
Emilie fez que sim e recolheu o restante. Voltou da cozinha e se
sentou na beirada da cama da avó.
— Eu tenho lidado do jeito errado com isso — disse ela. — Me
desculpa. O que posso fazer pela senhora? O que posso oferecer à
senhora?
— Deus te abençoe — disse Claire. O sotaque arrastado de Nova
Orleans, os olhos escuros, tremulantes ao se fechar aliviados. — Leia
cartas para mim — disse ela. — Me mantenha limpa. Não faça nada
para estender isso aqui. Se é o fim, não vamos fingir que não é.
Emilie pressionou a bochecha na mão da avó.
— Está bem — disse ela.
Claire lhe indicou uma chave na caixa de joias que abria o baú
branco ao pé da cama. Emilie abriu a tampa. Tantas cartas, tantas
fotos.
— Por que a senhora guarda isso a chave?
— Não sei bem. Doloroso demais, talvez. São de um tempo
diferente.
— Por onde devo começar?
— Por qualquer uma — disse Claire. Ela descansou a cabeça no
travesseiro, e Emilie sacou um punhado de cartas, desdobrou uma
no topo.
A letra cursiva elegante do avô — não via a caligrafia dele havia
muito tempo.
— Essa daqui é de 29 de novembro de 1942 — disse ela, sentando-
se de verdade na cama, não empoleirada na lateral como sempre. —
“Minha queridíssima esposa. Hoje, como de costume, é meu
domingo de trabalho. Estou bastante cansado agora, mas escrevo, ou
começo a escrever, antes de ir aos trabalhos.” — Emilie fez uma
pausa. — Onde ele estava?
— Na Europa. Para a guerra.
Emilie se lembrou das histórias do avô. A praia da Normandia no
dia depois do massacre. Ele e os outros membros da sua tropa de
homens negros foram enviados para buscar identificações nos
corpos. Vovô já tinha perdido boa parte das memórias na época em
que morreu, mas essa permanecia, e ele contava a história de novo e
de novo. O horror de tudo que permanecia.
— E a senhora ainda estava em Nova Orleans?
— Na casa da mãe dele. Nós nos casamos pouco antes disso.
Continue lendo.
Emilie mergulhou nas pilhas de cartas. Encontrou anúncios de
nascimentos e cartões de orações. Um recorte de jornal sobre o
casamento dos avós. “O altar foi decorado com palmeiras altas,
samambaias e cachos de gladíolos brancos. A noiva estava radiante
em um vestido de cetim marfim com renda.” Passaram a lua de mel
em Baton Rouge.
Havia álbuns lotados de fotos, mas a visão de Claire estava tão
ruim que Emilie as descreveu. Um piquenique em Nova Orleans.
Claire com as irmãs em vestidos brancos. Havia outra carta do avô,
solta da pilha. “Como sinto saudades de seu gumbo no fogão. Como
sinto saudades de cada momento seu.” Ao longo de três páginas em
letra cursiva elegante, ele recontou o primeiro encontro dos dois.
“Eu beijei você. Estava apaixonado por você, mas também era um
tolo.”
Todo dia Emilie lia em voz alta por horas. Terminava todas as
cartas e as colocava em ordem. Recomeçava, desde o início, cada
uma agora em seu lugar. Ela separava as fotos soltas. Tinha um
carinho especial pelas fotos dos avós juntos, às vezes com Bas
menino, parado na frente das casas deles. Emilie passou semanas
lendo em voz alta, andando pelo piso do quarto da avó. Sentada,
pernas esticadas, ao lado dela na cama. Leu por cima de gemidos e
respirações fracas. “Minha queridíssima esposa”, lia ela, de novo e
de novo. “Estou bastante cansado agora.”
E, depois de três semanas e cinco dias de leitura — à medida que
o quarto da avó se desvanecia e o passado desabrochava em seu
lugar, enquanto Emilie lia sobre a saudade de casa do seu avô e o
anseio da sua avó, sobre cozinhar, e primos, e romance, sobre bailes
em Nova Orleans e piqueniques em Los Angeles, sobre as dores e os
prazeres do amor —, sua avó morreu.

A família se reuniu na casa. Lauren tomou Colette nos braços. Bas


falou ao sussurros com a cuidadora e a funerária. Secou lágrimas.
Emilie ficou de pé em silêncio, envolvendo-se com os próprios
braços. Por fim, todos foram para a varanda da frente. Lauren e Bas
partiram de carro, e Emilie esperou Colette fazer o mesmo, mas ela
ficou sentada no balanço enferrujado da varanda.
— Vou viajar — disse ela a Emilie.
— Para onde?
— Para um lugar que acho que pode me ajudar.
— Uma clínica? — Colette tinha parecido limpa para Emilie, mas
como ela poderia saber de verdade? Estava exausta. Estava
dormente. Havia se esforçado tanto para dar uma boa morte para
Claire que não tinha espaço dentro dela para outras pessoas, nem
mesmo Colette.
— Não, não é uma clínica de reabilitação. É só um... lugar. Um
grupo de pessoas. Perto de Mendocino, no mar. Elas deixam as
É
pessoas morarem lá com elas. É algo que tenho bastante curiosidade
há algum tempo, mas dizem que é realmente... intenso.
— Então é tipo um culto?
— Não. É mais uma terapia que um culto. Pelo que ouvi.
— Quando? — disse Emilie.
— Amanhã.
— Mas o memorial vai ser em breve. Daqui a poucas semanas.
— Eu sei, Em — disse ela. — Eu sei. Só que eu não posso.
E então Emilie se lembrou da conversa que teve com a avó.
— Precisa de dinheiro? — perguntou ela, odiando como isso
soava. Não tinha pedido nada disso.
— Não — disse Colette. — Estou bem. — Ela se levantou,
pendurou a bolsa no ombro. — Não tem sinal de celular lá. E a gente
não devia usar celular, de qualquer forma. É um papo de não nos
distrairmos da vida real ou algo assim. Mas eu ligo para você.
Emilie arregalou os olhos. Balançou a cabeça.
— Tá bom — disse ela.
Colette lhe deu um abraço, então um carro chegou e a levou
embora.

Emilie sentia falta do restaurante. Não dos dias e das noites com
Jacob, mas do lugar. Da comida.
O luto a fazia desejá-lo ainda mais.
Estava preparando a venda da propriedade de Claire, sentada à
mesa de jantar com o rádio sintonizado na estação pública, e lá
estava a voz de Jacob, um dos chefs numa mesa-redonda que
discutia segurança alimentar num congresso em Nova York. Ela
passou um tempo prestando atenção, enquanto organizava uma
caixa de joias de Claire, e, no fim do programa, o apresentador
anunciou que o painel inteiro estaria num importante restaurante de
Manhattan naquela noite para um evento beneficente. Ela trocou de
estação e seguiu para a caixa de bijuterias seguinte com diamantes e
rubis falsos.
Ele estava do outro lado do país.
Emilie pensou nos drinques, nas saladas, no pão quente.
Cederia aos seus desejos e se daria o presente de um jantar mais
tarde para uma pessoa só no bar.
Naqueles dias finais da vida de Claire, ela havia dormido na casa,
no sofá-cama do antigo escritório do avô. Mas, agora que Claire
havia partido, a perda parecia próxima demais. O vazio, as cartas, as
fotos. Melhor voltar para o apartamento na garagem com a sala de
estar amarelo brilhante. Melhor pensar em Pablo e Alice ajudando-a
a pintar do que pensar nos últimos dias de Claire.
Em geral, ela não se importava com os problemas do apartamento
da garagem, mas naquela noite, debaixo do chuveiro, refletiu sobre
os defeitos dele. As paredes plásticas do boxe se soltando nas
beiradas, o mofo no teto, o chuveiro tão baixo que ela tinha que se
inclinar para a frente para molhar o cabelo.
Enrolada numa toalha, Emilie foi até o quarto, o carpete
misteriosamente úmido embaixo dos pés. Escolheu um vestido
verde-floresta que tinha havia anos, sem manga, com um decote em
V profundo e, ao fechar os botões, imaginou paredes brancas e pisos
brilhantes e limpos, um armário com perfume de cedro e um espelho
de corpo inteiro sem distorções.
Foi dirigindo até o Yerba Buena com a sensação de que visitava
um velho amigo que a adorava. O tempo tinha passado, e eles não
telefonavam um para o outro tanto quanto deveriam, mas ainda se
conheciam bem.
A recepcionista era uma estranha, amigável do jeito que toda a
equipe do Yerba Buena era, um sorriso para Emilie, uma esperança
sincera de encontrar uma cadeira no bar para ela sem uma reserva e
então... A-há! Sucesso! Venha comigo. Emilie a seguiu, passou pela
mesa onde havia ficado tantas manhãs, passou pelas urnas de flores
arranjadas por outra pessoa, passou pelo bar da frente e foi para o
principal, nos fundos do restaurante, onde havia ornamentos de
vidro soprado artesanalmente suspensos em fila, brilhando
dourados, acima do bar de mármore polido. Mais uma vez foi
arrebatada pela beleza do restaurante. E se sentiu aliviada ao ver
tantos rostos desconhecidos. Além de um sorrisinho esperto de um
chef júnior que casualmente estava a uma mesa cumprimentando
amigos e um beijo rápido na bochecha de Megan, Emilie poderia ser
qualquer pessoa.
Ela pendurou a bolsa no gancho sob o bar e se sentou.
Então — um farfalhar de movimento. Sara voltando-se para ela,
cardápio e copo de água na mão. Emilie viu braços fortes e magros,
as tatuagens na parte interna de um deles, palavras ainda pequenas
demais para serem decifradas. O rosto: olhos de um azul profundo,
cílios loiros, desaparecendo, mais claros, nas pontas.
— Oi — disse Sara. Uma covinha quando sorria, dentes brancos e
um pouco tortos. — Já volto. — Tec-tec com a mão no cardápio, como
se estivesse batendo a uma porta. Virou-se rápido, pegou uma
garrafa no alto. Na curva do quadril, uma lasquinha de pele entre
blusa e cinto. Emilie a observou, o rosto em chamas.
Ela se lembrou de quando se conheceram — de como roubou
uma espiada de Sara no trabalho bem naquele bar, no restaurante
naquela manhã. Da sensação da mão direita de Sara na sua quando
se cumprimentaram. E de como Sara tinha ouvido falar da mesa de
café da manhã, feito a suposição lógica e parado o que poderia ter
começado.
Emilie se perguntava se Sara se lembrava dela também. Esperava
que não, para terem outra chance de se conhecerem.
Ela se voltou para o cardápio, mas Sara estava na sua visão
periférica, era tudo o que Emilie conseguia ver. Minutos se passaram
enquanto tentava não encará-la. Sabia que deveria ler o cardápio
para que Sara pudesse anotar o pedido ao voltar. Mas o retorno de
Sara agora parecia impossível; Emilie queria tanto isso. Havia dois
bartenders. Cada um era responsável por metade dos bancos.
Sempre funcionou dessa forma e, mesmo assim, Emilie se viu com
uma preocupação irracional de que mudassem de lugar.
Precisava se concentrar. Escolheria uma bebida. Melhor ainda,
escolheria duas e pediria a opinião de Sara para que ela ficasse mais
tempo na sua frente. Para que Emilie ouvisse mais sua voz. Talvez
elas se apresentassem, e Emilie tomaria a mão dela na sua mais uma
vez.
Mas, quando Sara reapareceu na frente de Emilie, ela se apoiou
no bar e perguntou:
— Quando você parou de fazer os arranjos?
Ah, pensou Emilie. Tá bom.
— Faz um tempo — disse ela. Quanto tempo fazia de fato? —
Quase um ano atrás.
Quis dizer: “Sou uma pessoa diferente agora.” Queria listar como
era diferente. O lance com Jacob tinha terminado. Havia concluído a
faculdade. Tinha saído do seu conjugado de merda — e ido para um
lugar ainda pior, isso é verdade, mas, mesmo assim, tinha saído de
lá. Havia acompanhado o declínio e a morte de uma pessoa que
amava. “Eu sou diferente. Eu sou diferente.”
— Então, o que vai querer? — perguntou Sara.
Emilie sorriu, baixou os olhos numa tentativa de esconder seus
pensamentos.
Sara riu.
— O quê?
Emilie balançou a cabeça.
— Nada — disse ela. — Eu só... — Ela apontou para a primeira
salada no cardápio sem ver o que era. — Isso — disse ela. — E um
Yerba Buena.
— Pode deixar.
Emilie não se importava mais com a comida; só queria um motivo
para ficar. Mas, quando Sara reapareceu com a tacinha cupê, o
Chartreuse até a borda, o raminho de hortelã que não fazia parte do
drinque antes, Emilie bebericou avidamente. Tinha sido bom quando
Jacob o preparara. Agora era extraordinário.
— Como está a bebida? — perguntou Sara, parando pouco
depois.
— Deliciosa — disse Emilie. — Eu adoro a hortelã também. — Ela
notou Sara analisando o copo. — No que está pensando? —
perguntou ela, sabendo que era uma pergunta íntima para uma
quase estranha.
— Que é hortelã — disse Sara. — Yerba buena seria melhor.
Emilie sorriu.
— Hortelã é mais intensa, mais dura. Yerba buena é um pouco
mais delicada. — Sara deu de ombros como que para afastar a ideia.
— É também mais difícil de encontrar. Então que seja hortelã.
Em seguida, veio com um prato de cerâmica com queijo de cabra,
ervilhas e rabanetes, trazidos por um garçom. Emilie comeu uma
garfada e então outra. Tinha se esquecido de quão deliciosa a comida
poderia ser. E comê-la a lembrava de um momento anterior a Jacob,
quando ele era apenas o dono famoso do restaurante favorito da sua
família, e ela era apenas ela mesma.
Terminou a salada e olhou para o cardápio de novo. O ragu não
estava nos pratos do dia, então ela teve que escolher outra coisa.
Achava que ainda estavam no inverno, mas lá estavam alcachofras,
cebolinhas, alho verde e damascos. O tempo havia passado e ela mal
notou. Escolheu um macarrão com favas, azeitonas e ricota salgada.
Sara voltou, cada retorno um milagre, e Emilie fez o pedido.
— Quer outro? — perguntou Sara, recolhendo a taça de Emilie.
— Quero. Mas alguma coisa diferente dessa vez.
— Vou pegar a carta de drinques.
Emilie balançou a cabeça. Esperou tempo suficiente até Sara ter
que olhar para ela, então disse, com franqueza:
— Quero o que você quiser me dar.
Observou o rosto de Sara mudar, e, quando o convite foi
registrado, ela deixou um breve sorriso escapar. Emilie não desviou
o olhar, mesmo quando se sentiu ruborizar, e o rubor apenas fez o
sorriso de Sara aumentar.
— Está bem — disse Sara, e esperou mais um instante antes de se
virar, ainda olhando para Emilie como se para garantir que era o que
ela pensava que era, e então sorriu de novo e disse mais uma vez: —
Está bem.
Em vez da estação de trabalho a alguns passos, Sara voltou para o
banco de Emilie com as garrafas que tinha escolhido. Sara não
olhava para ela, mas Emilie estava decidida a assistir. Havia algo
marrom espesso com um rótulo dourado. Algo mais leve numa
garrafa menor. Sara mediu o primeiro, então o segundo, mexeu-os
com uma longa bailarina de cobre num mixing glass cheio de gelo.
Emilie conseguiu vislumbrar as tatuagens dela outra vez enquanto
Sara media, ainda longe demais para conseguir ler. Queria perguntar
a Sara o que estava escrito, mas não confiava em si mesma o
suficiente para parar em apenas uma pergunta. Sentia a própria
insaciabilidade, sabia que precisava contê-la. E sabia que Sara devia
ouvir essa pergunta o tempo todo, dezenas de pessoas por turno nas
noites em que ela deixava os braços à mostra, e Emilie não queria
estar entre dezenas de pessoas. Ela então se forçou a manter a
pergunta em silêncio e confiou na esperança de que, mais tarde
naquela noite, teria a chance de ver por conta própria.
E lá vinha uma garrafinha de bitter — dois dashes. Sara abriu a
tampa de um frasquinho prateado, pegou uma pitada do conteúdo.
Mexeu de novo. E então, com uma faquinha perigosamente perto do
polegar, cortou uma fatia perfeita de casca de laranja e a deixou cair
no drinque. Colocou a bebida na frente de Emilie, encontrou seu
olhar e sorriu. Emilie tinha noção de quão próximos os dedos de
Sara estavam dos seus; ela poderia ter roçado no peito de Emilie se
estendesse o braço só uns centímetros a mais.
Então, Sara partiu para a ponta do bar para atender outra pessoa,
e Emilie se sentiu sozinha sem ela. Mas ali estava a bebida, um
verdadeiro presente. Ela o levou aos lábios e tomou um gole. Era
forte. Não estava decepcionada. De alguma forma, cada vez que
bebia, sentia algo diferente. Chá preto, ou cereja, ou cravo. Era difícil
não consumi-lo rápido demais; tinha ao menos mais umas horas ali;
precisava se conter. Ao mesmo tempo, ela se perguntava se Sara
seria atraída de volta para ela se esvaziasse a taça. Emilie a observou
ir de um cliente a outro, raramente observando o bar, de alguma
forma intuindo quem poderia precisar dela. Quando a bebida de
Emilie estava na metade, o casal ao lado dela foi embora e um novo
chegou. Deveriam ter mais ou menos a sua idade, ainda de terno
depois do dia no escritório. Ele usava gravata listrada; ela, meia-
calça. Emilie tomou um gole. Anis-estrelado desta vez. Sara desfilou
na sua frente para deixar os cardápios dos seus novos vizinhos. A
antecipação do seu retorno beirava o insuportável.
— Posso preparar uns drinques para vocês? — perguntou Sara ao
casal ao lado dela. Emilie sentiu a ligação entre elas, sabia que Sara
sentia também.
Os vizinhos de Emilie no bar eram de bater papo, fizeram
perguntas a Sara que Emilie ficou contente de entreouvir. Descobriu
que Old Tom era o gim favorito de Sara, que ela era de uma cidade
ao norte, mais ao norte que Bay Area, mas não disse o nome, e
Emilie sentiu uma necessidade esmagadora de saber tudo sobre ela.
Manteve a cabeça baixa, bebeu outro gole. E então as mãos de Sara
apareceram na beira da taça.
— Quero fazer outro para você, mas não quero te embebedar. —
Ela estava inclinada tão perto, aquela interação só entre as duas.
Emilie mordeu o lábio. É hoje, pensou ela. — Por outro lado... —
disse Sara. — Ainda tenho pelo menos mais uma hora de
expediente. Mais um?
Então foi decidido. Então Sara entendeu.
— Claro — disse Emilie. — Mais um.

Megan foi embora uma hora antes de fechar, seguida pela brigada de
garçons, um por um, conforme as mesas eram liberadas. E então os
últimos pedidos de sobremesa foram anotados e servidos, e os chefs
jogaram seus aventais na pilha de coisas para lavar e comeram a
comida que haviam feito para si mesmos, e, depois que eles também
foram embora, restavam apenas as máquinas de lavar louça, a
garçonete do turno de encerramento, Sara e Emilie e uma mesa de
amigos numa quina que havia pago a conta, mas não queria que a
noite acabasse.
— Eu moro a poucas quadras daqui — disse Sara. Emilie fez que
sim e a acompanhou, sem se importar de ter deixado o carro para
trás.
As ruas estavam silenciosas e elas não falaram. Ouviram os
próprios passos na calçada, um alarme de carro ao longe, a própria
respiração. No ponto em que o Sunset e a Marmont se cruzaram,
Sara, como se sem pensar, pegou a mão de Emilie. Os dedos delas se
entrelaçaram. A luz mudou.
Atravessaram e andaram mais, passando algumas quadras
sinuosas, cruzando um arco coberto por heras, atravessando um
pátio com um chafariz no centro.
— Por aqui — disse Sara, e Emilie a seguiu por um lance de
escada e entrou numa sala de estar espaçosa com vista para o pátio.
Sara acendeu a luz.
A decoração era esparsa e simples, com uma mesa de madeira
cercada de cadeiras. Perto da janela havia um sofá.
— Quer alguma coisa? — perguntou Sara, tirando a jaqueta com
um movimento dos ombros. Emilie passou os dedos pelas lombadas
dos livros. Tocou a manta estendida no braço do sofá, teria enterrado
o rosto no tecido se pudesse. Estava ávida por saber tudo sobre ela.
— Faz um tour da casa para mim? — pediu ela.
Sara se serviu de um copo de água da pia da cozinha. Apoiou-se
na parede do corredor.
— Não tem muito o que mostrar — disse ela. — Mas, claro, eu
faço o tour.
Emilie a seguiu para a cozinha, notou o trabalho intricado dos
azulejos e luminárias originais estilo art déco. Viu o padrão
entalhado na madeira que ia até o corredor. Parou no portal do
primeiro quarto escurecido, composto de uma cama de solteiro e
uma escrivaninha.
— Alguém mora com você?
— O meu irmão — disse Sara. — Mas só de vez em quando. Com
menos frequência ultimamente.
Emilie esperou para ouvir mais.
— Ele tem dezoito anos e está apaixonado.
Emilie sorriu.
Seguiram por um corredor menor, passaram pelo banheiro de
azulejos cor-de-rosa até a porta no fim.
Sara a abriu, e Emilie acendeu a luz. Queria ver tudo.
Um quarto quase vazio. Uma cama semifeita com lençóis limpos
e um edredom branco numa plataforma de madeira baixa.
Camisetas e calças jeans dobradas numa cadeira no canto. Uma
bandeira da Califórnia, velha, rasgada e com buracos de alfinetes nas
beiradas, era o único adorno. Uma pilha de livros na mesinha, e
Emilie soltou a mão de Sara para aprender sobre as outras partes
dela. Havia um punhado de romances, uma coletânea de ensaios de
James Baldwin, uma coletânea de poesia de Adrienne Rich. E então
bateu o olho em De passagem, de Nella Larsen. Ela o pegou por
impulso, abriu numa página aleatória.
— Adoro esse livro — disse ela.
— Eu também — disse Sara.
— Não conheço muita gente que leu.
Sara se sentou na beirada da cama.
— Eu comecei a trabalhar em restaurantes quando tinha dezesseis
anos — disse ela. — Nunca fiz faculdade nem nada, mas queria
aprender sozinha. Por uns anos, dava uma olhada na ementa dos
semestres da UCLA e ia lendo sozinha. Foi assim que encontrei.
— De que aula foi essa?
— As mulheres da Renascença do Harlem.
— Essa deve ter sido uma boa lista.
Sara fez que sim com a cabeça.
— Então — disse ela. — Isso é um problema para você?
— O que é um problema?
— Eu nunca ter feito faculdade.
— Claro que não.
— Você parece que vem de uma família em que todo mundo faz
faculdade.
— Você se surpreenderia.
— Eu também não terminei o ensino médio — disse Sara.
— Isso é uma confissão? Você também foi criada como católica?
— Não mesmo. Só quero deixar tudo isso às claras. Evitar
decepções futuras.
— Não é tão fácil assim me assustar — disse Emilie. Ela se voltou
para o livro que segurava. Era uma edição que não tinha visto antes,
o título em vermelho brilhante, desenhos a lápis embaixo. Pensou
em como havia virado a noite escrevendo o ensaio depois da viagem
para o cânion. Todo o sentido que encontrou naquelas páginas
quando sua vida parecia vazia. Queria saber o que significava para
Sara. — Sobre o que é esse livro, para você?
Sara se inclinou para trás.
— Acho que é sobre como duas pessoas vêm do mesmo lugar,
mas terminam em vidas completamente diferentes. Só baseado em
suas escolhas. É fascinante. E para você?
— Acho que é... tipo, quando se é uma pessoa com alguma
passabilidade, as outras pessoas acreditam no que quiserem a seu
respeito. No que for mais fácil ou melhor para elas. Elas veem o que
querem ver em você. Então, se não se sabe realmente o que quer... ou
se sabe o que quer, mas é ruim para você... você pode acabar indo
para a direção errada. — Emilie fechou o livro, devolveu-o à estante.
— Mas se sabe, então, acho, você tem muita liberdade.
Quando se virou, viu que Sara a estava observando, e, antes que
Sara pudesse desviar o olhar, Emilie começou a abrir o vestido.
Agonia, o engolir lento de Sara, seus olhos focados nos dedos de
Emilie, abrindo botão após botão, por todo o caminho até o fim. O
vestido de Emilie caiu no chão. Ela saiu da meia-calça, abriu o sutiã.
Nunca havia sentido um desejo tão puro e simples por outra pessoa.
Sara, ainda de blusa e jeans, balançou a cabeça e abriu um sorriso.
Levantou-se da cama. Atravessou o quarto até ela.
A FLORESTA E A CAMA

Quando Sara abriu as portas do Yerba Buena naquela manhã e


encontrou Emilie na mesa comum, preparando arranjos de flores, ela
não estava procurando nada.
Dois anos tinham se passado desde que ela havia comprado uma
cama para Spencer e transformado a alcova num quarto para ele. Ele
havia ficado com ela pouco mais de um mês, até o celular tocar alto
uma manhã, acordando-os. O pai deles, chamando-o para casa.
Sara levou Spencer para um último café da manhã e então até a
estação de trem, onde um bilhete para Healdsburg o aguardava. Ela
esperou com ele na plataforma, observou-o embarcar, acenou em
despedida.
Então ela se sentou no banco da estação. Esperou passar o ronco e
o tremor dos trens se aproximando. Temia o silêncio entre eles.
Queria uma dor física para combinar com o sofrimento. Queria ser
marcada, mudada para sempre.
Enfiou as unhas na parte interna do antebraço, macia. Forçou
tanto que poderia ter rasgado a pele. E então se levantou do banco,
enfim sabendo o que fazer.
Tinha deixado o desenho emoldurado escorado numa estante de
livros na sala de estar, nunca quis aquilo ali, mas não diria isso a
Spencer. Enfiou o desenho numa bolsa e encontrou na internet um
estúdio de tatuagem nas redondezas, ligou e ouviu que poderia ser
atendida imediatamente.
A porta estava trancada quando chegou à vitrine. Ela bateu,
espiou pelo vidro. Uma mulher acenou do lado de dentro antes de
destrancar a porta.
— O meu nome é Mindy. Você é a Sara? Me dá só um minuto. —
A voz dela era rouca e grave, o corpo inteiro envolto num vestido
bordô, coberto de contas brilhantes e franjas. — Pode se sentar —
disse Mindy. — Aqui, pode olhar essas.
Sara se sentou na cadeira oferecida, aceitou o fichário cheio de
desenhos de tatuagens.
— Sou mais conhecida pelas minhas borboletas — disse Mindy,
levantando os fichários e acendendo as luzes superiores. Sara abriu a
primeira página. Tantas borboletas, tantos padrões e cores.
— Dá para ver por quê — disse ela. E era uma sensação boa dizer
isso com sinceridade, oferecer uma gentileza a alguém mesmo
quando ela própria se sentia vazia.
Mindy estava preparando a estação de trabalho, e Sara fechou o
fichário, perguntando-se como seria ter uma borboleta tatuada no
corpo. Escolher algo lindo.
— Já sabe o que quer?
Sara fez que sim.
— Eu trouxe comigo.
— Traz para cá. Vamos dar uma olhada.
Então Sara pegou a moldura e a levou até Mindy.
— Não a foto toda, eu quero só...
— Deixa eu dar uma olhada primeiro — disse Mindy. — Na coisa
toda. E aí você pode me dizer o que quer fazer.
Ela pegou a moldura e acendeu outra luz. Sara analisou a
imagem junto com ela, lembrando-se de como tinham desenhado
juntos na mesa da cozinha perto da janela, a luz do sol filtrada pelas
sequoias lá fora, vapor subindo da cafeteira. O pai deles havia
começado enquanto os outros três observavam. Ele desenhou uma
linha embaixo e então outra.
— Uma rua! — disse Spencer.
Em seguida, vieram os degraus e os pilares do banco antigo da
avenida principal. Eles se inclinaram para perto, ansiosos para ver o
que viria em seguida. O pai moveu o lápis, linhas fracas que se
transformaram, como num passe de mágica, em lugares e coisas
reconhecíveis. No canto esquerdo do papel, apareceu um homem
girando uma batuta e marchando.
— Um desfile! — disse Sara, e o pai piscou para ela, passando o
lápis para a mãe.
A mãe desenhou uma banda marcial e um carro alegórico. Sara
desenhou a família nos degraus do banco, aplaudindo. Spencer
desenhou um sol contente no canto direito, hesitou, e então
acrescentou uma nuvem feliz. Quando terminou, eles assinaram seus
nomes: Sara, mamãe, papai, Spencer.
— Então que parte você vai fazer? — perguntou Mindy.
— Só as assinaturas — disse Sara.
Mindy fez que sim com um aceno de cabeça.
— Mas só Sara, mamãe, Spencer — disse Sara.
— Ah — disse Mindy. — Entendi.
Então o trabalho começou. As palavras seriam pequenas — não
maiores do que eram no papel, e as letras seriam imperfeitas,
exatamente como estavam escritas. Mindy limpou o antebraço de
Sara com álcool. Sara se ajeitou na cadeira reclinável, o coração
batendo forte, pronta para a agulha perfurar a pele. Ela deu as boas-
vindas ao som da máquina de tatuagem sendo ligada, ao zumbido
que fazia.
— Pronta? — perguntou Mindy.
— Pronta — disse Sara.
Doía do jeito que Sara queria que doesse. Não de um jeito terrível,
mas o suficiente. Fechou os olhos e se lembrou do café da manhã dos
dois. Levara Spencer a um lugar que sabia que ele gostaria, a uma
lanchonete. Eles escolheram uma cabine perto da janela, com vista
para a manhã. Palmeiras balançavam na brisa. Pombos bicavam
restos nas calçadas. Ela havia empurrado as duas últimas fatias de
bacon para o canto do prato, um presente para o irmãozinho, que
tinha quinze anos e não era um bebê. Que não era dela, afinal de
contas.
Ela abriu os olhos. Sangue na pele. Tinta preta. Três nomes.
— Vou só reforçar um pouco as letras — disse Mindy. — Quero
que fiquem perfeitas.
— Obrigada — disse Sara, e, ao fechar os olhos de novo, alegrou-
se por ainda não ter terminado.
Dois anos depois, a tatuagem era tão familiar quanto qualquer
outra parte do corpo. Ela era bartender-chefe no Odessa, um
restaurante novo em Venice, onde preparava drinques para
celebridades e cineastas e um fluxo constante de pessoas glamorosas.
Suas receitas eram publicadas em revistas ao lado de fotos suas,
dando uma sugestão de sorriso para a câmera do outro lado do
balcão do bar. Ela era conhecida por suas tinturas, seus xaropes e
seus shrubs, seus cubos de gelo do tamanho de punhos e suas
decorações extravagantes, ainda que discretas. Um raminho de
pimenta-rosa. Uma casca de laranja caramelizada. Gengibre
cristalizado com uma pincelada de páprica. Ela recusava oferta após
oferta de donos de restaurantes de toda a Los Angeles que queriam
roubá-la, mas nenhum era tão persistente quanto Jacob Lowell.
Yerba Buena.
Cada vez que ele a chamava e usava o nome do restaurante numa
frase, ela sentia o passado ressurgir ao seu redor. Sentia sua
juventude — a leveza do corpo na água do rio, sua boca na de
Annie, a escuridão do closet do quarto, a manhã na montanha
quando o sol aquecia sua pele e Vivian arrancava os galhos e os
colocava em sua mão.
— Monte uma carta de drinques para nós. Não precisa trabalhar
para mim. Só me faz uma lista de bebidas incríveis e ensine a minha
equipe a preparar.
— Não, obrigada — dizia Sara de novo e de novo. Até que, enfim,
disse sim.
Começou a desenhar o cardápio como sempre fazia, visitando o
espaço. Jacob a deixou entrar numa segunda-feira, dia em que o
restaurante estava fechado. Ele começou a contar a ela o que tinha
em mente, mas ela o interrompeu.
— Preciso passar um tempo aqui. Sentar às mesas. Explorar um
pouco. Aí podemos conversar — disse ela.
Jacob ergueu as mãos e sorriu.
— Justo — disse ele. — Vou deixar por sua conta.
Ela precisava fazer mais que explorar, mas não gostava de
explicar. Mesmo quando jornalistas gastronômicos a entrevistavam,
ela mantinha os comentários breves. Não divulgava que precisava
estar no espaço, sozinha, em silêncio. Que observava como a luz se
movia e pensava em cor. Que o nível de dulçor podia ser
determinado pelo som dos seus passos no chão enquanto andava
pelo estabelecimento, pela arte nas paredes, pelo formato e pelo
tamanho das janelas.
O Yerba Buena era espetacular — isso era inegável. O gesso em
diversos tons — branco suave numa parede, pêssego em outra. Os
arcos, as reentrâncias e as janelas antigas com molduras pretas. O
couro suave, bege, das poltronas e dos bancos. As palmeiras em
vasos quando se entrava, como uma versão onírica de Los Angeles.
E os arranjos florais: explodindo com flores que nunca tinha visto
antes. Algumas delas perfeitamente simétricas, da cor de ameixas;
outras brancas, com pétalas que disparavam em todas as direções
como fogos de artifício. Tantos tons de rosa e verde. Florezinhas com
detalhes intricados, botões prestes a explodir abertos. Buquês como
jardins, transbordando. Deu a volta em cada arranjo devagar. Voltou
para absorver a beleza deles de novo. Nunca tinha visto flores numa
combinação como aquela.
Havia um pequeno bar ao lado da entrada, com bancos
suficientes para acomodar clientes cujas mesas não estavam prontas
ainda, ou que tinham terminado a refeição e não queriam partir.
Tinha azulejos vermelhos profundos em contraste com as cores mais
claras nos salões de jantar principais. Cardamomo, pensou ela.
Conseguia sentir o sabor, sabia que era o certo. No extremo oposto
do espaço, onde os salões de jantar convergiam, havia um amplo
corredor curvado — ela não conseguia ver aonde ele levava. Andou
pelas mesas, fez outra parada perto das flores de novo, foi até o
corredor e o viu.
Outro bar, dessa vez longo e reto. Bancada de mármore branco
com ornamentos dourados de vidro soprado artesanalmente, como
uma fileira de sóis em miniatura. Mais palmeiras, mais flores. Sentiu
um pouco de tontura por um instante, removida do tempo. Sentiu
como se tivesse tropeçado e caído em outra vida.
— Já está com umas ideias? — perguntou Jacob do corredor. Ela
não sabia quanto tempo ele havia ficado ali, queria que a deixasse
em paz. Mas, ao se voltar para responder, ela também sabia que
aceitaria a oferta de emprego dele um dia. Então ela se acomodaria,
como se em casa, atrás desse bar.
Flores de laranjeira.
Limão-taiti.
Defumado.
Cereja.
— Já — disse ela, dando outra olhada nas flores. — Estou sim.
Gostaria de usar a cozinha.
— Claro.
Ele lhe mostrou os sacos de açúcar, os cítricos e os temperos.
— Sementes de cardamomo? — perguntou ela.
— Gosto do que você está pensando — disse ele, passando-lhe
um punhado.

Depois daquela segunda-feira no Yerba Buena, Sara fez um xarope


atrás do outro, aperfeiçoando as proporções de cada ingrediente. Fez
shrub de cereja, provou mescais para encontrar o nível certo de
defumação. Escolheu um Amaro e um Green Chartreuse. Fez água
com infusão de flor de laranjeira, planejou decorações. Uma tarde,
antes de abrir o restaurante, ela mostrou o cardápio para Jacob,
Megan e o chef principal, apresentando cada drinque antes de deixar
que provassem. Sabia que era o seu melhor trabalho.
Então, quando Sara chegou naquela manhã para treinar os
bartenders, estava confiante. Estava satisfeita. E foi aí que viu Emilie,
primeiro de costas — cabelo escuro e volumoso passando das
omoplatas, ficando na ponta dos pés para colocar uma samambaia
alta num vaso —, e prendeu a respiração.
Enquanto Sara mexia, provava e fazia anotações sobre as
proporções, pensou nas flores com frequência. Em como elas a
cativaram, a surpreenderam. Em como quanto mais perto olhava,
mais cores e texturas notava. Havia ecoado a complexidade nos
sabores. Nada era simples, nada era completamente familiar. Se as
flores fossem outras, Sara talvez não tivesse planejado aquele
cardápio.
E ali estava a pessoa que as arranjava. Ali estava ela, perdida no
trabalho.
A brigada do bar estava chegando também. O bartender principal
passou pela porta e por Sara em silêncio, sem cumprimentá-la. Sara
não ficou surpresa — ela havia substituído o cardápio dele, afinal de
contas. Ele colocou o capacete da bicicleta numa mesa perto da
entrada.
— O Jacob e a Emilie sentam aí de manhã — disse Megan. —
Vamos mais para o fundo.
É claro, pensou Sara. Jacob se sentaria com uma mulher que não
era sua esposa toda manhã. Ela havia esbarrado em Lia algumas
vezes, serviu-lhe drinques no Odessa.
— Na verdade, a gente pode ir direto para o bar. Posso apresentar
tudo lá.
Ela passou pela mulher preparando os arranjos de flores, notou-a
espiando. Sara esperava que ela ainda estivesse ali quando
terminassem.
E estava.
Parada a uma mesa, outra vez concentrada no trabalho, cuidando
das folhas das samambaias. As folhas tinham o formato e a cor de
muito tempo atrás, como se aquela mulher as tivesse colhido da
floresta da infância de Sara a caminho do trabalho.
Sara as desejava. Queria tocá-las, perguntou se poderia, foi
autorizada.
As folhas, seu brilho, suas beiradas curvadas, fazia tanto tempo.
Voltou-se para a mulher. Trocaram nomes, e Emilie então lhe
estendeu a mão.
Um aperto de mãos, e Sara desejou mais dela. Notou o rubor de
Emilie, inegável, e sabia que poderia ter mais dela. Mas então se
lembrou do que Megan tinha dito quando chegaram.
— Ah — disse Sara. — A Emilie que se senta com o Jacob.
Será que havia entendido errado o rubor, a forma como Emilie a
havia observado? Talvez não, mas não importava. Os lábios de
Emilie eram rosados e suaves, Sara imaginou colocar a bochecha
dela na palma da sua mão, puxando o rosto dela para perto para
beijá-lo. Mas ela a havia soltado. Emilie agora parecia
desconfortável, envergonhada, e Sara não tinha a intenção de fazê-la
se sentir assim.
— Está tudo bem, eu entendo — disse ela.
Sara levou uma mulher para casa naquela noite, algo que quase
nunca fazia, apesar das ofertas virem aos montes a cada noite no bar.
Tinha prática na arte de ser amistosa apenas o suficiente, da rejeição
gentil, do não absoluto quando necessário. Mas a fantasia de segurar
a bochecha de Emilie e puxá-la para perto não deixou Sara
descansar. Então, quando uma mulher ficou até tarde, depois de os
seus amigos irem embora, depois de todo mundo, Sara cedeu.
Transaram no sofá da salinha de estar de Sara. A mulher gozou
rápido, e Sara sentiu uma explosão de ternura por ela — Christa, ou
será que era Christina? O som estava alto no bar quando ela se
apresentou —, mas logo o vazio voltou. O sentimento inevitável. O
motivo pelo qual nenhum relacionamento durava muito.
Sara se deitou de barriga para cima, olhos fechados, aceitando o
toque da pessoa estranha. O seu corpo respondia, mas seu maxilar
apertava.
No fim, o inchaço familiar de perda.

Quando ela enfim aceitou a oferta de Jacob para se tornar a


bartender-chefe do Yerba Buena, no começo do seu primeiro dia de
trabalho, ela roubou um galho grande de hortelã da cozinha. No
silêncio da manhã, sob a fileira de ornamentos dourados, o brilho do
sol refletido no bar de mármore, ela preparava Yerba Buena. Green
Chartreuse e gim Old Tom, limão e xarope simples, bitter de cereja.
Adicionou o galhinho como decoração.
Tomou um gole. Percebeu que a bebida precisava disso desde o
começo. Não estivera completa até então. Ela nunca bebia chá de
hortelã, nunca usava hortelã como ingrediente. Mas, agora que
servia o drinque toda noite, preparando-o pessoalmente, precisava
que estivesse perfeito.
Bebeu de novo — o brilho frondoso, o herbal, o amargo e o doce.
Está bem, pensou ela, jogando o restante do drinque ralo abaixo,
voltando para a cozinha em busca de um balde de hortelã para
manter atrás do bar. Era bom que algo tão curativo tivesse uma
pontada de tristeza também.
Ela andou pelo restaurante vazio e olhou as flores. Estavam
diferentes. Mais simples. Não eram mais fruto do trabalho de Emilie.
— Não sei bem o que houve — disse Megan quando Sara
perguntou. — Um dia, ela estava aqui, e aí nunca mais voltou. Acho
que as coisas com o Jacob... sabe como é.
Sara fez que sim, e Megan partiu para sua tarefa seguinte. Ela
estava sempre concentrada, era sempre discreta. Sara a respeitava
por isso.
Sara ficou decepcionada, mas talvez fosse melhor assim,
raciocinou ela, não se sentir atraída pela mulher com quem o chefe
tinha dormido.

***

Mas ali estava Emilie, na sua cama.


Os cabelos escuros em ondas pelo travesseiro branco.
Ali estava ela. Uma estranha e não estranha. Despida, dormindo,
com a coberta jogada para longe. Sara observou o peito de Emilie
subir e descer com a respiração. Não conseguia dormir, mas não se
importava de estar acordada daquele jeito, com Emilie ao lado. Sara
enfim havia beijado a boca de Emilie, depois de esperar mais de um
ano. Devagar, havia colocado as costas dela contra a parede do
quarto, se ajoelhado.
Chupar Emilie levou Sara de volta ao chão da floresta. Tinha
catorze anos de novo, tudo era novidade. O sentimento a desarmava
— como cair dentro de uma memória. Conseguia sentir a terra e as
folhas sob os joelhos. E ainda assim queria mais daquilo, queria mais
de Emilie. Suas mãos encontraram os quadris de Emilie, puxando-a
para perto. E, quando Emilie puxou Sara para que ficasse em pé de
novo, beijando-a vorazmente, e a levou para a cama, quando Emilie
puxou a camisa de Sara, deslizou para tirar os jeans dela e a tocou, a
mente de Sara ficou em silêncio.
Sentiu o sol na pele, mesmo no quarto escuro. A brisa passando
pelos galhos enquanto o estrado da cama batia na parede. Lençóis
brancos e musgo. Um travesseiro. Samambaias.
Ela estava na cama com Emilie. Estava na floresta com Annie.
Devia estar sonhando — só num sonho isso faria sentido —, mas não
estava.
Seus olhos se mantiveram abertos ao longo de tudo, o maxilar
relaxado, sentiu o prazer enfim como uma sensação prazerosa, pela
primeira vez em anos. A primeira vez desde que era adolescente,
desde antes de fugir.
E, ainda assim, assustou-se quando acabou. Nenhum vazio.
Assustou-se com o quão aberto estava seu coração.
Emilie dormia pesado, e Sara a observou por muito tempo.
Estava tentando entender o que tinha acabado de acontecer. Estava
tentando aceitar o que tinha acabado de acontecer.
Ela se levantou e colocou a camiseta, abriu gavetas da cômoda
atrás de um short e o vestiu. Foi usar o banheiro e buscar um copo
de água.
Estava desperta demais, assustada demais, para voltar para a
cama.
A bateria do celular havia acabado mais cedo naquela noite.
Colocou para carregar na cozinha escura. O aparelho levou alguns
minutos para ligar de volta, e, quando voltou, havia quatro
mensagens de voz, uma do celular de Spencer, as outras de um
número desconhecido de Los Angeles.
Tocou a primeira mensagem, ouviu a voz de Spencer. Sara, acho
que eu fiz uma cagada. Eu... err... entrei numa briga. Acho que, err... Acho
que machuquei feio alguém.
Com o coração batendo forte, Sara tocou a mensagem seguinte:
um estranho ligando da delegacia. Spencer estava lá.
Deixou cair o copo de água, mal notou quando ele se espatifou.
Procurava as chaves, tocando as mensagens no viva voz, colocando
os sapatos, tateando no escuro atrás da carteira.
E, então, uma voz no corredor.
— Sara, você está bem?
Emilie apareceu, enrolada num lençol. Ia até ela, mas parou e
gritou de dor.
Foi só então que Sara pensou em acender a luz. A mensagem
seguinte tocando, Spencer de novo: Sara, onde você tá? Preciso de você
pra caralho agora. Emilie, nua, um caco de vidro do copo de Sara
despontando do seu pé.
Sara estava observando quando Emilie o arrancou. Jorrou sangue.
Essa não.
— Ai, meu Deus — disse Emilie. — Acho que preciso de um
médico.
Outra mensagem da delegacia. Sara impediu que tocasse, não
queria que Emilie ouvisse. Vidro quebrado no chão. Emilie na
cozinha agora, na pia, pedindo um pano. Sangue no chão, sangue no
pé dela.
Sara passou por cima do vidro e pegou numa gaveta um pano de
prato limpo. Ajoelhou-se no chão, amarrou-o com força. Tentou
ignorar o sangue que atravessava o pano. Tentou não pensar em
Annie nem na floresta. Nem na própria Emilie, na hora anterior.
Seu irmão precisava da sua ajuda e ela não estava lá.
— Tenho quase certeza de que preciso de um médico — disse
Emilie de novo. — Você pode me levar?
Sara estivera certa em ter medo. Certa em desconfiar de algo que
causava tanto prazer. Como punição: sua vida antiga, os desgostos
antigos, seguindo-a para essa nova vida, para arrastá-la de volta.
— Vou chamar um carro para você — disse Sara.
Foi até o quarto para pegar o vestido e a roupa íntima de Emilie e
os trouxe de volta para a cozinha. Pesquisou no celular o hospital
mais próximo.
— Hospital da UCLA? — Ela desviou o olhar, não conseguia
encarar a reação de Emilie.
Silêncio.
— Tá bom — sussurrou Emilie.
Sara confirmou a localização delas. Sentia muito, mas não podia
explicar.
— Impala vermelho a três minutos — disse ela. Emilie abotoou o
vestido, calçou uma sandália, estremeceu quando foi colocar a outra.
O rosto de Emilie estava pálido; ela tremia.
— Foi só um cortezinho — disse Sara.
LONG BEACH

Uma hora na primavera, sentados na primeira fila da Igreja de Santo


Antônio. Emilie entre os pais, Colette perceptivelmente ausente. O
tom baixo e monótono da voz do padre.
Ajoelharam-se. Levantaram-se. Cantaram.

Que Deus esteja convosco


Ele está no meio de nós.
Rosas no cemitério, lápide gravada com os nomes dos avós para
os túmulos lado a lado. Ao espalhar as flores pelo chão, ela sentia
dor — não apenas no coração mas também nos pulmões e nos
ombros. Uma dor profunda, que não estava preparada para
enfrentar.
E então, no bufê oferecido depois do enterro, a noite diante deles,
o sol baixo no céu. Os convidados de sempre reunidos na casa dos
pais dela: os Santos, os inúmeros primos, os amigos de uma vida
inteira. Alice e Pablo, trazendo copos de água e taças de vinho.
Depois de algumas horas, os primeiros convidados começaram a ir
embora. O priminho Jasper correu para o lugar dela no jardim.
— Olha! — disse ele. — Lagarta. — Ele a estendeu para que visse.
Verde e branca, agitando-se pelas costas da mão do menino.
— Uau — disse ela. — Que coisinha mais fofa. — A lagarta
chegou à beira da mão de Jasper, dando a volta para a palma. Emilie
prendeu a respiração enquanto ele virava a palma da mão para cima
devagar. Ela estava observando a ponta dos dedos dele naquele
momento. Cada uma delas perfeita, sem nenhuma marca da noite da
festa de Natal, quando ele havia encostado no fogo. Formigar de
lágrimas, aperto na garganta.
— Encontrei no chão — disse ele. — Tenho que soltar ela logo.
Ela acalmou a respiração.
— Incrível — disse ela.
Adeus para Margie, George e os gêmeos. Adeus para o Sr. e a Sra.
Santos. Adeus para Rudy, Maurice e os primos distantes, cujos
nomes ela nunca soube ao certo.
Emilie voltou para o deque, aninhou-se numa espreguiçadeira
diante de Alice e Pablo, que conversavam juntos no sofá. Estava
exausta, mas mais relaxada agora que a maioria dos convidados
tinha partido.
— Quero contar uma coisa para vocês. — Ela não esperava dizer
isso, não sabia se contaria a alguém. Mas o bufê havia terminado, e
ela estava afastada num canto com as pessoas que melhor a
conheciam. As pessoas, ela se deu conta, em quem mais confiava.
Os dois fizeram que sim, na expectativa.
— Dormi com uma pessoa umas semanas atrás.
— Um estranho? — perguntou Alice.
— Mais ou menos. A gente até se conheceu, mas tem muito
tempo.
— E como se encontraram dessa vez? — perguntou Pablo.
— Ela trabalha no Yerba Buena. É a bartender de lá.
— E exatamente quando você foi ao Yerba Buena? — perguntou
Pablo.
— Umas semanas atrás. Mas não foi nada do que está pensando.
Eu sabia que o Jacob não estava na cidade.
Alice bebericou da taça de vinho.
— Justo — disse ela.
— É que... tem alguma coisa nela. Eu sabia que era certo. A
sensação era certa. E aí... aconteceu uma coisa. Sabe quando cortei o
meu pé?
Alice se inclinou para mais perto, baixou a taça.
— Sei — disse ela, o rosto nublando.
— Foi quando eu estava na casa dela, no meio da noite. Eu estava
dormindo, e aí ouvi uma barulheira. Aí fui pelo corredor no escuro e
pisei num caco de vidro... Acho que foi o barulho de vidro
quebrando que me acordou. A gente tinha tido uma noite incrível.
Mas alguma coisa aconteceu, eu não sei bem o quê, e ela não me
levou para o hospital. Não pegou o meu número. Ela só me mandou
embora.
— Deus — disse Pablo. — Eu sinto muito, Em.
Emilie sentiu lágrimas nas bochechas. Ela as secou, balançou a
cabeça.
— Está tudo bem — disse ela. — De verdade. Não é nem disso
que estou querendo falar. — Ela levantou a cabeça, notou que
algumas lâmpadas do cordão de luzes acima deles haviam
queimado.
— Estamos prestando atenção — disse Alice.
Emilie fez que sim.
— Todo esse tempo, eu andei tão perdida. Nem sei por que vocês
dois ainda são meus amigos.
— O quê? — disse Pablo. — Não seja...
— Pablo — disse Alice. — Só deixa a Em falar.
— Eu só não sabia direito o que queria. Mas, enfim, eu soube
naquela noite. E sei outra coisa agora, também, mas parece
impossível. Parece grandiosa demais para mim. E não sei como
fazer.
— Conta para a gente — disse Alice. — Adoro coisas grandiosas.
Adoro coisas impossíveis.
Então, mesmo que Emilie se sentisse boba, ela falou:
— Quero restaurar a casa da minha avó. Vou precisar de ajuda, eu
sei, mas quero fazer tanto quanto puder sozinha. Deve parecer
loucura.
Alice balançou a cabeça.
— Não — disse Pablo. — Não parece loucura nenhuma.
Ficaram sentados mais tempo na noite quente, escondidos em seu
canto do deque.
— Claire ficaria tão contente — disse Alice, e Emilie esperava que
sim.
Estava muito tarde quando Emilie chegou à casa da avó, mas, em
vez de dormir no apartamento da garagem, ela abriu a porta dos
fundos.
Entrou na casa e a atravessou até o quarto de Claire. Ficou onde
havia prometido que cuidaria de Colette e se perguntou como era
possível que poucas semanas antes aquele quarto — aquela casa
inteira — estivesse cheio de mobília, e papéis, e cacarecos, poeira e
tapetes, suportes para televisão, imagens de Jesus, eletrônicos
antiquados, e agora tinha apenas ela.
Emilie não podia refazer nada. As escolhas que Claire tinha feito,
ou deixado que fossem feitas por ela, haviam se esgotado, estavam
acabadas. Mas ali estava a casa da sua avó, pronta para ser
restaurada. Ali estava a voz dentro dela, dizendo-lhe o que queria.

Bas concordou em ajudar.


Ele chegou às oito da manhã naquele sábado. Ela lhe entregou
uma xícara de café que tinha passado no apartamento da garagem, e
começaram uma lista de tudo que precisaria ser feito.
— Qual você acha que é o tamanho desse quarto? — Bas deu um
passo para trás para dar uma olhada melhor. — Oito por dez? Nove
por dez?
— Deixei uma fita métrica na mesa do apartamento — disse
Emilie.
Ela notou uma lasca na vidraça. Fez uma anotação a esse respeito
no telefone enquanto Bas ia para os fundos.
— Aquelas cores! — disse ele pouco depois, correndo ao voltar da
garagem, fita métrica na mão. — Eu não tinha entrado lá desde que
você se mudou. Aquilo lá está uma tenda de circo!
Ela riu.
— Ah, claro — disse ela. — Eu precisava me animar.
— Ah — disse ele. — Tinha alguma coisa acontecendo que eu não
sabia?
Ela observou a expressão dele — preocupação, curiosidade.
Como ela poderia ter mudado de especialização tantas vezes prestes
a se formar, não ter nenhuma reclamação sobre se mudar do seu
conjugado com uma semana de aviso prévio e, até onde eles sabiam,
não ter vida amorosa alguma nos últimos três anos e nada disso
causar nenhuma preocupação? Talvez para eles, ela fosse uma
pessoa satisfeita em dar caronas e aparecer para jantares. Talvez
pensassem que não fizesse diferença para ela, quer estivesse
preparando arranjos de flores, quer estivesse separando
comprimidos, contanto que continuasse ocupada.
— Você está melhor agora, pelo menos? — perguntou Bas.
Ela considerou a pergunta e se imaginou contando tudo, cada
esperança inocente e erro terrível. Ela lhe contaria das pessoas no
cânion, aquela tarde estranha que ainda a assombrava. Contaria de
Sara, como ela a havia afastado. Juntos, desvendariam o significado.
Talvez fizesse isso, pensou ela, ao longo das próximas semanas ou
meses. No entanto, por enquanto, olhou nos olhos dele e disse:
— Estou.

Fizeram obra na casa todo dia ao longo da semana seguinte. Uma


tarde, depois de horas arrancando o carpete, ondas de poeira
subindo com cada pedaço, eles escaparam para o jardim para
respirar. Emilie massageava as mãos, primeiro a esquerda, depois a
direita. Ela sabia que a dor em tantos músculos pequenos — mãos,
antebraços, pernas e costas — significava que estava ficando mais
forte. Sentia um orgulho pouco familiar, diferente da satisfação que
um dia viera de completar um arranjo floral, porque isso nada tinha
a ver com arrumar o que já era lindo, mas com como ela se sentia ao
quebrar paredes, desnudar pisos e aprender que ferramentas usar e
o nome delas.
— Me fala dos outros lugares em que você morou quando estava
crescendo — disse Emilie. — Vi todas as fotos e cartas com a vovó.
Adoro como várias foram tiradas do lado de fora das casas.
Bas tomou um gole de cerveja, apoiou-se nos cotovelos.
— Bom, teve uma em Compton. Foi a primeira deles, depois de
deixar moradias populares. Então, a gente se mudou para
Inglewood, bem do lado dos meus primos. Boas casas, mas bem
debaixo de uma rota de voo. O som fazia as janelas chacoalharem.
Os adultos odiavam, mas, como eu era criança, era divertido às
vezes. Os meus primos e eu nos deitávamos no quintal e
esperávamos os aviões. Os aviões voavam bem em cima da gente. O
vento, o barulho. Era emocionante.
Emilie sabia que tinham terminado o trabalho do dia. Bas não
estava acostumado com boa parte do trabalho — fazia anos, na
verdade, desde que tinha feito qualquer coisa do tipo — e, apesar de
o prazer com o que estavam fazendo ser evidente, ela via que ele
estava cansado.
Mas este momento, este tempo com ele... ela não queria que
acabasse. Ao longo do dia, ela se pegava se perguntando se
poderiam ter tido esse tipo de coisa todo esse tempo. Será que ele
sempre estivera disposto a passar horas e dias com ela? Será que ele
estava só esperando o projeto ou o motivo certos? Será que poderia
ter ligado para ele, digamos, dois anos antes, quando ainda estava
trabalhando com flores para ornamentar restaurantes, antes de Jacob
ter mudado sua mesa de trabalho para ficar ao lado dela? Se ela
tivesse pedido, será que Bas a teria ajudado a transformar seu
apartamento num espaço mais alegre? Um lugar que a enchesse de
confiança, para que, quando Jacob dissesse “Quero ver onde você
mora”, ela tivesse sido uma pessoa completa o suficiente para ser
mais esperta, para poder dizer: “É claro, traz a sua esposa, eu quero
conhecer ela tem tempo.” Será que Bas teria aparecido na casa dela
com seu cinto de ferramentas e uma caixa de azulejos para o frontão
da pia, blocos de madeira para bancadas, varões para cortinas e todo
o equipamento para reboco? Mas, mais do que isso, depois, quando
tudo estivesse terminado e Emilie se sentisse em casa, será que ele
apareceria de mãos abanando, subiria a escada e se sentaria com ela,
sem fazer nada além de beber café e ouvi-la falar, contando do seu
dia, sem pedir nada dela?
Talvez ele tivesse feito isso. Ela jamais saberia. Mas agora ela faria
durar o máximo que podia. Ele estava terminando a cerveja,
pensando no passado. Seu rosto havia ficado melancólico. Então ela
disse:
— A casa de Inglewood. Você lembra onde era?
— Eu lembro exatamente.
— Vamos lá então.
Ele pegou as chaves na bancada, mas então parou.
— Espera.
Abriu a porta lateral da garagem. Vasculhou uma gaveta e então
sacou um chaveiro antigo.
Emilie balançou a cabeça.
— Não vai ligar mesmo.
— A gente faz uma chupeta — disse ele. — Vamos lá.
A porta da garagem foi aberta pela primeira vez em anos —
poeira subindo até o céu, umidade e calor —, e lá estava o antigo
Coupe de Ville, marrom com teto branco e bancos de couro preto, e
Bas teatralmente ficou de joelhos bambos ao vê-lo.
— 1974 — disse ele. — Um sábado de março. Papai passou o fim
de semana todo trabalhando numa casa. Mamãe estava de terninho
branco e foi ela quem pegou no estacionamento da loja.
— Você foi junto?
— Ela disse que precisava de ajuda para negociar, mas não me
deixou pronunciar uma palavra.
Emilie sorriu.

Precisaram de mais do que uma chupeta para fazer o carro ligar —


precisaram de algumas horas e da ajuda de um amigo de Bas, até
que enfim conseguiram. Emilie foi para o banco do carona e Bas
dirigiu pela cidade de Long Beach até entrar em Los Angeles,
mantendo-se fora de autoestradas e rodovias, porque, mesmo que
Bas dissesse que o carro funcionava tão bem quanto quarenta anos
atrás, quem saberia quanto tempo isso duraria.
Fizeram um desvio passando pela casa de Compton onde Bas
tinha morado quando criança. Ela a reconheceu da foto, pensou nos
avós, comprando a primeira casa em Los Angeles.
Deram a volta em Normandie, e Bas reduziu a velocidade.
— Então, acho que era... Não, não é essa aqui, talvez nessa
quadra... Aqui!
Ele estacionou. Uma casa modesta. Roseiras. Um jardim verde.
Emilie a reconheceu de uma das fotos. O corte de cabelo curto de
Claire e calças de cintura alta. Os óculos e o sorriso largo do avô.
— A gente vai descer? — perguntou Emilie.
— Com certeza — disse Bas. — Tenho grandes planos para nós.
A brisa da noite estava ficando mais forte, e ela a apreciava.
Fecharam as portas do carro, e Bas os conduziu até a porta da casa,
onde tocou a campainha e, um minuto depois, bateu à porta.
Ouviram uma chave girar e então a porta foi escancarada, e lá estava
um homem negro num uniforme de segurança, uns poucos botões
da camisa abertos. Ele tinha um copo de água gelada na mão e se
apoiou na soleira, bloqueando a visão do interior da casa quando
Bas, em sua ansiedade de ver algo do seu passado, ergueu a cabeça
para espiar.
— Perdão — disse ele, e riu consigo mesmo. — Bas Dubois.
— Michael — disse o homem, que olhou para a mão estendida de
Bas e o cumprimentou.
— A minha família morava nessa casa nos anos sessenta. Essa é a
minha filha. Eu queria mostrar a casa para ela.
— Ah, é? — Michael tomou um gole de sua água gelada.
— Ainda tem um jasmim nos fundos? Crescendo por cima do
muro?
— Cada dia mais forte. Tem um perfume muito bom nos fundos.
— E os aviões, eles ainda voam por essa rota?
— Às vezes o dia todo.
— Você já se deitou e ficou olhando?
Michael semicerrou os olhos.
— Não sei se estou te entendendo.
— Eu costumava me deitar no quintal, esperar passarem por
cima. Já fez isso?
— Não — disse ele. — Nunca.
— Bem, então... O que você acharia de deixar a gente ir até o
quintal? Só por um minutinho? Quero mostrar para a minha filha
como é.
— Acho melhor não.
Bas fez que sim.
— Não tem problema — disse ele. — Eu entendo. — Ele hesitou.
— E a frente da casa? Você se importa se a gente se deitar aqui por
um instante?
— Na frente da casa? — Michael riu.
— É.
— Fique à vontade. — Ele riu de novo.
A porta se fechou, e Emilie olhou para o pai. Ele estava falando
sério? Bas saltitou até o meio do jardim, virou a cabeça para o céu.
— Está silencioso agora, mas espera só.
Ele se sentou, e então se deitou de barriga para cima, os braços
retos ao lado, as palmas das mãos para cima. Um carro passou e
diminuiu a velocidade; ela viu o carona encarar de olhos
semicerrados, então o carro acelerou de novo. Ela se sentou do lado
dele. Não achava que se deitaria, mas então um avião apareceu ao
longe, e ele disse:
— Acredita em mim, você não quer perder essa. Bem aqui, bem
aqui.
E deu batidinhas no chão ao lado dele, então ela se deitou ali,
sentiu a umidade do mato se infiltrar pela camiseta, a coceirinha da
grama no pescoço, e ela se perguntou quando havia sido a última
vez que se deitara na grama, pensou na irritação na pele que coçava
que ela às vezes tinha quando criança depois de passar o dia rolando
ladeira abaixo no Griffith Park. O avião se aproximava, estava mais
alto do que ela havia imaginado.
— Tá bom — disse Bas. — Tá bom. Se prepara.
Mas não tinha como ela estar preparada; nada poderia prepará-la.
A terra embaixo deles tremeu. A barriga do avião era um meteoro.
Devia ter algo de errado. Um acidente. Uma explosão. Bas gritava,
sua boca a centímetros da orelha dela, e ainda assim Emilie mal
conseguia ouvi-lo por cima da barulheira do avião. Tentou manter os
olhos abertos, mas não conseguia, não conseguia. E então acabou, e
Bas estava com as mãos na cabeça.
— Meu Deus do céu — dizia ele várias vezes. Suas memórias
eram impressionantes, mas o real era muito mais grandioso, ela não
concordava? Não era? E agora tudo estava silencioso, os ouvidos
zuniam, outro carro passava pelo mundo ainda existente.
Ela se sentou de novo, coçou o pescoço, perguntando-se se estava
cor-de-rosa e em carne viva do jeito que ficava quando era criança, e
ela, Colette, Pablo e Randy subiam até o alto da ladeira verde,
deitavam de lado e rolavam e rolavam, às vezes rápidos, às vezes
tortos, sempre rindo, sempre tontos.
— Vamos esperar — disse Bas. — Quem sabe quando vamos
fazer isso de novo? Vamos esperar mais um; não vai demorar.
E então esperaram, e era o que ela queria, só ficar ali com ele sem
dizer nada importante, e pouco depois uma mancha apareceu ao
longe, e eles a viram crescer. Já eram oito horas, e o céu estava cinza
cintilante, e as luzes do avião brilhavam vermelhas e brancas.
Deitaram-se na grama e lá vinha de novo — aquele vento, aquele
barulho — e, desta vez, Emilie ficou de olhos abertos quando o avião
trovejou acima deles, e ela não pensou em nada, e a barriga do avião
era grande feito um planeta, e, depois que começou, terminou num
instante.
Eles se levantaram, limparam a grama da roupa, entraram no
Coupe de Ville e voltaram para casa.

Ao fim da segunda semana de obra, tinham terminado de arrancar o


carpete, exposto a madeira velha em alguns quartos, o contrapiso em
outros. O papel de parede fora arrancado e agora as paredes estavam
descoloridas, mas lisas. O linóleo da cozinha havia sido arrancado
para revelar mais linóleo. Depois de um fim de semana exaustivo de
remoção de azulejos, faltavam ainda alguns pedaços da parede do
banheiro. O vaso sanitário havia sido arrancado, assim como a
banheira, assim como o chuveiro triste com a cortina de vinil.
Toda aquela destruição denotava o que era — apressada,
passional —, e agora estava concluída, e eles ainda não tinham
planos para o que viria em seguida.
— Essa é a parte divertida — era o que Bas dizia desde que
começaram. — Melhor fazer o trabalho pesado primeiro, e então
deixar a casa falar com a gente.
Emilie acreditou nisso, que a casa lhes diria o que era certo; então,
apesar da sua mente costumar vagar para as cores dos novos
azulejos e para como eles poderiam brincar um pouco com a planta
da casa e que tom escolheriam para os pisos de madeira, ela tentava
se impedir e se concentrar na tarefa seguinte e em como o seu corpo
se sentia em relação a isso.
Que sofrimento novo. Que força nova.
A casa falaria com eles quando terminassem. Cada marretada e
cada picaretada, cada prego arrancado e cada azulejo jogado no chão
aproximava os dois de a ouvirem.

Numa tarde, enquanto Emilie trabalhava sozinha na casa, Lauren fez


uma rara visita, mandando uma mensagem antes, e Emilie se
preparou para receber más notícias sobre Colette.
Mas o que sentiu por Lauren quando ela apareceu no quintal dos
fundos foi incomum. Um nervosismo, um tremor. Emilie saiu para
cumprimentá-la.
— Está com fome? — perguntou Emilie. — Preciso passar no
mercado, mas tenho amêndoas. Quer chá?
— Senta comigo — disse Lauren. Emilie foi com ela para a mesa
com cadeiras debaixo das buganvílias.
— Vou ferver uma água.
— Só senta comigo.
Emilie se sentou.
— Vou deixar o seu pai. — Ela pegou a mão de Emilie. — Contei
para ele hoje de manhã. Vou ficar uma semana em Nova York e pedi
que ele encontrasse um lugar para morar nesse meio-tempo.
O rosa das buganvílias era uma explosão, quase brilhante demais
para ser encarado. Emilie notou que estava contemplando o peso
delas, como se pudessem ser pesadas demais para a cerca que
haviam invadido, como se pudessem colocar tudo abaixo. E então
Emilie voltou a atenção para a mãe, para aquele momento.
— Então isso é, tipo, uma separação? — perguntou ela.
— É. Uma separação permanente.
— Um divórcio?
— Isso.
— Por quê?
Lauren respirou fundo.
— Eu já sabia fazia muito tempo. Tentei fazer funcionar, mas
nunca vai funcionar. — Ela continuou, as mãos tremendo,
gaguejando palavras ensaiadas. Emilie nunca a havia visto dessa
forma, tão insegura. Ela estava tentando justificar a decisão.
Emilie estava desarmada. Não queria ser a razão do desconforto
da mãe. Apertou a mão de Lauren.
— Você não tem que se sentir culpada — disse ela.
— Eu não me sinto culpada. — Lauren riu, e Emilie se
arrependeu de ter dito qualquer coisa. — É o melhor para nós dois.
Emilie ouviu a mãe em silêncio pelo resto da visita.
Quando Lauren foi embora, Emilie voltou para dentro da casa.
Notou espinhos nos dedos, sujeira que não havia se dado conta de
que estava sob as unhas curtas. Ela queria Colette, mas a irmã estava
em algum lugar no litoral sem telefone. Pablo estava ocupado com
uma exposição que se aproximava. Ela ligaria para ele mais tarde
aquela noite. Tentou entrar em contato com Alice em vez disso, mas
ela estava no trabalho e não atendeu. Quando esses calos se
formaram em suas mãos? De onde eram os arranhões? Ela precisava
arrumar luvas.
Emilie se forçou a se levantar e preparar um bule de chá. Talvez
devesse saber que isso estava para acontecer, talvez devesse ter
prestado mais atenção. Quando pescou o saquinho quente de chá do
bule e o largou, fumegante, dentro da pia foi que se deu conta do
que isso poderia significar para eles. O quanto tudo aquilo
importava. A festa de Natal, os brunches, até mesmo os jantares no
Yerba Buena. Eles quatro — por mais distantes que fossem uns dos
outros. Eles quatro, do jeito que sempre foram.

Bas apareceu mais tarde, de olhos vermelhos e inchados, a barba


geralmente feita agora por fazer. Ela lhe deu um abraço, e até o
cheiro dele era pouco familiar.
— Eu não sabia que ela ia contar para você — disse ele, andando
de um lado para o outro. — Achei que ainda estávamos vendo se
conseguíamos resolver.
Tinha uma garrafa de vinho tinto. Abriu-a sem perguntar se
deveria. Encheu duas taças e estendeu uma para ele.
— Ah — disse ele. — Obrigado. — Ele foi tomar um gole e se
impediu. — Um brinde a... — A cabeça balançando em confusão, a
taça estendida.
— Pai — disse ela —, a gente não precisa brindar.
— Merda.
— Eu sei.
— Merda. O que foi que ela te disse?
— Que ela ia para Nova York e que você vai sair de casa.
— Vou sair daquela casa porra nenhuma. Fui eu que construí a
merda daquela casa.
— Você vai brigar por ela?
Ele tomou o último gole de vinho e se levantou para encher de
novo a taça.
— Vou ficar na casa dos Davis.
— É uma boa ideia. — Ela odiava pensar nele sozinho em algum
lugar. Mas os Davis estavam entre seus amigos mais antigos, então
isso era bom. Mas eles eram amigos de Lauren também, não eram? A
mente dela pululava, tentando decifrar como isso tudo iria se
desenrolar.
— Olha só — disse ele. — Emilie. Eu acho que eu... que eu vou ter
que dar uma parada no serviço.
Serviço?
Então a ficha caiu, pesada feito uma bola de boliche. Ele estava
falando da casa. Das horas juntos. Ele estava falando de martelar, e
de medir, e das viagens de carro. Estava falando dos aviões
passando lá no alto. Ele não queria ouvir o que a havia deixado
triste, ou já havia se esquecido por completo. Estava tudo terminado.
Ele a puxou para um abraço.
— Só preciso de um tempo para me reorganizar. Espero que
entenda.
— É claro — disse ela.
— Venho conferir como estão as coisas logo — disse ele ao soltá-
la. — Eu vou voltar. Até lá, você fica bem aqui, tá bom? — Ele abriu
o portão dos fundos, hesitou. — Ei, Em — disse ele. — Me faz um
favor e não conta para a sua irmã se ela te ligar? Vai ser melhor se ela
souber por mim.
— Claro — disse Emilie.
O céu estava escurecendo. Bas tinha ido embora. O jardim com
grama alta demais agora parecia ter menos promessas.
E, ainda assim, havia algo se agitando dentro dela.
Fica bem aqui.
O pai dizendo que não olhasse. Colette numa maca. A mãe dela
dizendo o tipo de garota que ela era, lhe dizendo o que ela ia fazer.
Havia esperado tanto tempo. Estivera esperando todo esse tempo,
dando a Colette a chance de alcançá-la. Não fazia sentido nenhum —
por que ela faria isso consigo mesma. E, ainda assim, lá estava ela,
sozinha de novo. As mesmas palavras, na voz do pai dela desta vez.
Fica bem aqui.
Colette estava lá longe, cuidando de si mesma. Era hora de Emilie
fazer o mesmo. Hora de continuar com a casa de Claire, com ou sem
a ajuda do pai.
Voltou para dentro. Parou sob as vigas expostas onde o teto
costumava estar.
Talvez no começo ela tivesse imaginado uma escavação em vez
de uma demolição. Como se, ao atravessar a reforma dos anos
setenta, ela fosse encontrar a glória dos anos vinte: pisos de madeira
e detalhes antigos, alguma mensagem secreta gravada numa soleira.
Mas haviam arrancado tudo, e a casa estava nua. Nada encantador,
nada encantado. Fios das paredes que arrancaram estavam presos
por fita nas vigas. As paredes que restaram eram de uma casa mal-
assombrada: raspadas e descoloridas. Grampos e pregos cobriam os
pisos irregulares, e o quintal estava lotado de escombros, além dos
dois vasos sanitários abandonados, uma banheira e duas pias com
pedestal, uma delas com o pedestal quebrado.
O que foi que eles fizeram?
Apenas mais um numa série de corações partidos.
Mas não, pensou ela. Não precisava ser o fim. Eram só elas duas
então — ela e a casa —, enquanto a noite caía e a brisa ficava mais
forte, batendo na porta telada, agitando as folhas de magnólia. Havia
uma intimidade naquele momento, não uma solidão.
— Fala comigo — disse ela.

As semanas se passaram e seus pais brigaram um com o outro e


foram até ela, cada um com suas queixas, suas necessidades e sua
raiva. Ela ouviu, acenou com a cabeça e, quando foram embora, ela
pegou as fotos de Claire, espalhou-as com cuidado pelo piso. Claire
garotinha em Nova Orleans. Claire noiva, um buquê de gladíolos
nas mãos. Claire dando uma festa de Natal, servindo uma taça de
vinho.
Esta casa seria uma homenagem a ela.
Emilie usou as fotos, usou as memórias dela.
Dourado, pensou ela.
E flores.
E luz.
Tinha estampas de papel de parede para escolher, pilhas de
maçanetas de cristal para revirar no mercado de pulgas. Tinha uma
banheira de duzentos quilos para mover e restaurar, tinha que testar
cores de tinta nas paredes.
Então essa era a sensação — receber uma pancada, fazer uma
pausa, continuar em frente apesar disso. Não começar de novo, mas
continuar.
Os Santos recomendaram um empreiteiro para orientar Emilie,
um amigo da família, também das Filipinas. Ele tinha quase setenta
anos, perto de se aposentar, um pouco sentimental. Ele viu o Coupe
de Ville na primeira visita que fez e pediu a Emilie que o levasse
para dar uma volta. O verão estava começando. Ela baixou o teto
solar, levou-o para passear na beira do mar.
— Então você quer restaurar casas — disse ele.
— Casas? — disse ela. — Não sei.
— Você tem muito a aprender — disse ele. — Mas consigo ver por
que adora isso.
— Adoro — disse ela. — Adoro mesmo. Ô Ulan, o que fez você
deixar a sua casa, quando veio para os Estados Unidos?
— Oportunidade — disse ele. Uma única palavra definitiva. Tanta
certeza naquilo.
— Você precisou abrir mão de muito para vir para cá?
— Quase tudo. Mas é assim que as coisas são. Perdi quase tudo,
então construí algo melhor.
Ulan passou a ligar para ela oferecendo conselhos — não apenas
para a casa de Claire, mas para uma carreira que conseguia
vislumbrar para ela.
— Preciso de uma protegida — disse ele.
Cada vez que ela via o nome dele no telefone, parava o que
estava fazendo e pegava o caderno para anotar tudo o que dissesse,
palavra por palavra. Ela contratou a equipe dele para tarefas que
iam além das suas habilidades. Aprendeu o resto sozinha.
Uma noite, quando a banheira foi instalada no banheiro principal
e um fogão Wedgwood recondicionado na cozinha contra uma
parede de azulejos brancos, o telefone dela tocou. Era Colette.
— Mana! — disse Colette quando Emilie atendeu. — Ah, como é
bom ouvir a sua voz. Estou com saudade.
E mesmo que, quando pensava na irmã, sentisse uma pontada de
rejeição — a decisão resoluta de Colette de deixar todos eles, de não
oferecer um número de telefone para contato, de desaparecer de
tudo nos seus próprios termos —, Emilie sentiu uma onda de alegria,
de amor, ao ouvir a voz de Colette.
— Também estou. Como é aí?
— Tem sido difícil. Tem sido bom. Encontrei novas maneiras de
lidar.
— Com o quê?
— Com tudo. Vício, vergonha, frustração. Tudo isso.
— Que tipo de maneiras?
— Um monte de maneiras. Comecei a fazer aquarelas.
Emilie sorriu.
— Aquarelas? — perguntou ela.
— Pois é. — Colette riu. — Consigo me perder dentro delas. Não
me importar muito com a aparência das coisas, só fazer essas
pocinhas de água, acrescentar cor, ver a mudança. É uma lembrança.
Lembrança de quê?, queria perguntar Emilie, mas não perguntou,
porque outro pensamento surgiu.
— Já falou com a mamãe ou o papai?
— Tem bastante tempo.
— Mas você está bem? Posso te contar uma coisa, mesmo que seja
difícil?
— Pode — disse ela. — O que foi?
— Eles estão se divorciando — disse Emilie. — A mamãe está
deixando o papai. — Ela esperou, mas Colette não disse nada. — O
papai não queria que eu te contasse. É só que... eu não queria que
você voltasse para casa e descobrisse. Pensei que talvez fosse
melhor...
— Não — disse Colette. — Quer dizer, claro. Assim é melhor.
Nossa.
— Pois é.
— Eu nem sei o que perguntar. Ou dizer.
— Você não tem que dizer nada — disse Emilie. — Só queria que
soubesse. — Mas os sentimentos antigos voltavam se arrastando.
Colette em seu lugar distante. Emilie no meio da bagunça toda.
— Quem ficou na casa?
— Mamãe.
— Onde o papai está?
— Na casa dos Davis.
— Ah. Bom, isso é bom, pelo menos.
— É — disse Emilie.
— Andei pensando numa coisa — disse Colette. — Para quando
os meus meses aqui acabarem. Eu posso escolher ficar, ou posso
voltar para casa. E eu estava pensando... talvez, só se você quisesse...
eu estava pensando que talvez pudesse morar com você.
— Sério? — disse Emilie, e, com a mesma velocidade que ele
havia invadido, o ressentimento foi varrido.
— É sério. Eu poderia ficar na casa da mamãe e do papai. Ou da
mamãe agora, acho, já que ela ficou com a casa. Mas só fiquei
pensando nisso. A gente tem muitas visões aqui, sabe? Tipo, de qual
é o nosso caminho certo. E, sempre que eu faço uma dessas
meditações, ela me leva a você. Não quero pressionar, de jeito
nenhum. Mas pensei em perguntar.
Emilie abriu a porta, saiu na noite.
— Estou reformando a casa da vovó. Você sabia disso?
— Está? Não sabia, não falei com ninguém.
A noite estava quente, a magnólia totalmente desabrochada. De
centenas de quilômetros de distância, Emilie conseguia ouvir a irmã
respirar.
— Você se lembra daquela vez que eu fiquei com dor de cabeça e
pensei que estava tomando paracetamol, mas era a sua codeína?
— Quando a gente era adolescente?
— Isso. Você tinha guardado codeína no pote de paracetamol que
a gente tinha no banheiro.
— Lembro — disse ela. — Eu me lembro disso, sim.
— Eu fiquei com tanto medo... não sabia por que estava com a
cabeça tão fodida. Aí eu fui pedir a sua ajuda. — A caminhada do
seu quarto para o de Colette havia sido como caminhar pela neblina.
Estava segurando o potinho de remédio, pronta para que Colette
explicasse, a confortasse. — Eu bati na sua porta. Você gritou
comigo.
— Eu estava muito mal, Em. Quanto tempo depois eles me
mandaram para a clínica? Talvez uns poucos dias, não foi?
Colette, olhos arregalados e furiosa, balançando o pote. “Isso aqui
é meu! Não encosta em nada meu!”
Emilie fez que sim com a cabeça, mesmo que Colette não pudesse
ver.
— Eu sei — disse ela por fim.
— Mas eu sinto muito, de verdade — disse Colette. — A gente era
tão próxima antes disso. Eu quero isso de novo. Lembra, pouco antes
de as coisas ficarem muito ruins, eu estava te ensinando a tocar
violão?
— Claro que lembro — disse Emilie. — Eu me lembro de tudo.
Silêncio de novo.
— Espera um instante — disse Emilie.
Ela estivera encarando uma magnólia num galho baixo, grande e
branca na noite. Pousou o telefone no degrau e cruzou o jardim até
ela. Enfiou o rosto nas pétalas, sentiu o perfume. Quando terminou,
pegou o telefone de novo.
— Oi — disse ela.
— Oi.
— Acabei de deixar você esperando na linha para cheirar uma
flor.
Colette riu.
— Como é o cheiro?
— É uma das magnólias.
— Meu Deus, eu adoro essa árvore.
— Está bem, então, olha, eu não sei se ainda vou estar aqui.
Depois de terminar os pisos, tudo o que me falta é o papel de parede
e a tinta. E, depois de terminar, não vou ficar. Mas falei de coração, é
claro, quando prometi para a vovó que ia te ajudar. Por isso, seja lá o
que precisar, é só me falar.
— Não é uma questão de dinheiro — disse Colette. — Eu vou
trabalhar. A gente pode dividir o aluguel. Ou a hipoteca, o que for.
Só pensa nisso. Entendo se não quiser. Mas pensa nisso e me avisa.

Por um tempo, Emilie havia presumido que ficaria com a casa.


Mas, mesmo que a sala de jantar a lembrasse de brunches de
Natal e a cozinha trouxesse de volta memórias dos seus avós
preparando gumbo, embaralhando cartas e a ensinando a jogar, ela
descobriu que não queria morar ali. Não para sempre. Com cuidado,
ela prendeu uma fileira de fotos na parede do quarto. Alfinetes
dourados contra o rosa brilhante da parede, posicionados nas
beiradas das fotos, para não danificá-las. Em cada foto, os seus avós
posavam na frente de uma casa que haviam alugado ou comprado.
Ela as organizou em ordem cronológica, da casa da família em Nova
Orleans para a habitação popular em South Central, para o duplex
em Compton, para a casa em Inglewood onde Michael agora
morava, para o bangalô em Watts, até a casa de estilo American
Craftsman em Long Beach, onde ficaram até morrer.
Emilie queria escolher uma casa para ela agora. Queria continuar
o caminho que haviam começado.
Bas reapareceu a tempo de ajudar nos detalhes finais. Ela não lhe
contara tudo o que havia feito — nem metade — e ela o viu absorver
tudo.
— Ah — disse ele. — Ah. — Ele balançou a cabeça, sem palavras,
andando por todos os quartos. — Não era isso que eu...
Ela se apoiou numa parede, permitindo que ele buscasse as
palavras certas. Ela não precisava da aprovação dele. Já sabia que
estava linda, já havia escutado de Ulan, Alice, Pablo e Randy, que
estava colocando a casa à venda.
Ela era boa nisso. E ela adorava isso.
— Isso é... — começou Bas, mas ela recebeu uma ligação naquele
instante e ergueu a mão.
— Preciso atender — disse ela. — Mas fico feliz que tenha
gostado.
Ela recebeu catorze ofertas na casa em dois dias do anúncio.
— Vamos comemorar — disse Randy. — Vou chamar o Pablo.
Convida a Alice se quiser.
Eles se encontraram naquela noite num restaurante novo de tapas
saindo de Belmont, mais descolado do que qualquer coisa que
tivessem em Long Beach quando estavam crescendo. Os quatro se
sentaram a uma mesa brilhante, pediram uma sangria, uma paella e
uma dúzia de pratinhos para compartilhar.
— E o que você vai fazer agora, Emilie? — perguntou Alice.
Emilie tomou um gole de vinho.
— Quero fazer isso de novo — disse ela.
— Você tem um lugar em mente? — perguntou Pablo, e Randy
fez um gesto teatral de colocar a mão do lado da orelha para já ficar
atento. Todos riram.
— Acho que eu deveria perguntar para você, Randy. Tem algum
diamante bruto para mim?
O rosto de Randy mudou.
— Ah, puta merda — disse ele. — Eu conheço, sim, um lugar. Eu
não sei se é... Quer dizer, está detonado. Mas poderia ficar espetacular.
— Caro? — perguntou Emilie.
— Bastante, fica na Ocean Avenue. Quer dizer, é uma mansão.
Tipo, de verdade. Mas, com o que você acabou de lucrar, daria para
arcar, sem problema. A gente poderia dar uma olhada juntos.
Emilie fez que sim com a cabeça.
— Amanhã — disse ela.
— Com licença — disse Randy, chamando a garçonete —, posso
pedir outra rodada para a minha melhor cliente?
— Ah, não — disse Emilie. — O que foi que eu fiz?
— Cuidado com esse sujeito — disse Pablo. — Ele vai te fazer
comprar Long Beach inteira se não tomar cuidado.
Mas Alice não riu junto. Seus olhos estavam fixos em Emilie, que
inclinou a cabeça, refletindo.
— Em — disse ela. — Olha só você. E só está começando.
— Vocês são gentis demais comigo. É só uma casa. — Mas ela
sabia que era mais que isso.
Depois do jantar, Alice e Emilie voltaram para o bangalô de Alice.
O quarto de hóspedes de Alice era um santuário — paredes azul-
marinho e detalhes brancos. Uma cama macia, uma cômoda com
gavetas agora cheias de roupas dobradas de Emilie. Uma poltrona
de veludo coral com um apoio para pés posicionada sob a janela,
perfeita para leitura. Era um presente ficar ali enquanto vendia a
casa de Claire e buscava o seu próprio canto.
Ela e Alice se deram boa-noite, e Emilie se acomodou no quarto.
Ela se sentou na poltrona e olhou o celular. Quase dez horas.
Tirou as sandálias e esfregou a cicatriz na sola do pé esquerdo.
Curada agora, mas ainda doía ao ser pressionada em certa posição,
com certa pressão. Na última visita ao médico, ele lhe disse que
poderia permanecer dolorida assim por muitos meses. Talvez para
sempre.
— Corpos são um mistério — dissera o médico.
Naquela noite, meses antes, Emilie desceu sozinha a escada e
atravessou o pátio, passando pela fonte e pelo arco coberto de heras
até chegar à calçada, com sangue escorrendo do pé atado,
encharcando a sandália.
Lá estava o motorista parando, faróis acesos, acelerando para
levá-la ao hospital.
A enfermeira da triagem comprimindo os lábios, fazendo Emilie
atravessar apressada uma porta.
A preocupação na expressão do enfermeiro da emergência
quando ela desatou o pano de prato encharcado de sangue. A picada
da seringa dentro do corte.
— Isso dói — disse ele. — Mas os pontos iam doer muito mais
sem isso.
Ela passou bastante tempo esperando o médico. Quando ele
empurrou a cortina para o lado, a anestesia já tinha passado. A
ardência do álcool, a pressão do algodão. Ela se encolheu de dor, e
ele disse:
— Ah, me desculpe. Isso vai doer. Pode ir em frente e segurar o
meu braço se precisar.
A picada da agulha, o fio por dentro da pele, doze vezes. Ela
havia se concentrado numa cicatriz na orelha dele. Viu seu maxilar
tensionar e relaxar a cada ponto. Lágrimas descendo pelas
bochechas. Ela apertou o próprio braço em vez do dele. Hematomas
apareceriam depois, no formato da ponta dos seus dedos, num tom
roxo-azulado.
— Isso vai resolver — disse o médico. — Está se sentindo bem? —
Ele olhou para ela. Ela queria a espetada e o puxão, a pontada, a
consciência de que estava sendo costurada. Então ele foi embora, e
havia uma mulher com um computador sobre rodas, perguntando o
plano de saúde e o endereço.
Ela voltou de carro para West Hollywood, e o motorista a deixou
em frente ao próprio carro. Mas, em vez de voltar para casa, ela
dirigiu devagar pela vizinhança, tentando se lembrar exatamente de
onde tinham virado, desejando ter prestado mais atenção. O pé
latejava, estava dolorida entre as pernas. A cabeça formigava com
fadiga, e, pior ainda, ela se sentia perdida de uma forma familiar
demais. O tempo todo, ela usava entradas de garagens para dar a
volta e começar de novo. Estava olhando para cima, para janelas,
perguntando-se se seriam de Sara, mesmo sabendo que as janelas de
Sara davam para um pátio e para outros prédios, e não para a rua.
Ela se lembrava de ficar parada do lado de fora sob um poste,
sangue gotejando do pano de prato enquanto esperava o carro, mas
qual poste? Havia tantos.
E o que faria se encontrasse o apartamento de Sara?
Ela havia sido desejada e então expulsa. Não sabia por quê.
Talvez ela entendesse se tivesse uma lembrança mais clara. As
estantes de livros, o azulejo. O vestido dela caindo no chão. A
respiração de Sara no seu pescoço. Os dedos de Sara pulsando bem
fundo dentro dela, e o sabor dela na sua boca. Dormir, mas muito
pouco, sob uma manta surrada com a janela aberta. E então o som de
algo se quebrando. Longe, mas não tanto. E Sara não estava lá. O
corredor e a luz. O caco de vidro depois que ela o arrancou.
E Sara, uma camada de pedra no rosto. Não, pedra não: resina.
Logo abaixo da superfície dura havia uma dor tão profunda que
fazia o peito de Emilie doer só de pensar. Pouco claro se ela havia
sido levada para o pátio (o pátio errado, ela se dava conta, sem fonte,
silencioso) por luxúria, amor ou raiva. Curiosidade ou desespero.
Não importava. Tinha que ir para casa.
Nunca havia dirigido tão cansada, mas de alguma forma chegou
à garagem e ao apartamento em cima dela, onde se jogou na cama,
puxou a coberta e dormiu sob o pesado teto amarelo.
Ela havia conseguido se perder no trabalho, pensar um pouco
menos sobre aquela noite enquanto restaurava a casa de Claire. Mas,
agora que tinha terminado, as memórias estavam voltando.
Aquela manhã de verão. Ouvir a voz de Sara. Erguer a cabeça das
flores e vê-la pela primeira vez.
Como as mãos delas se encaixaram quando se apresentaram e se
cumprimentaram com um aperto.
E então aquela noite. Sara aparecendo atrás do bar.
E como Sara havia encarado a taça de Emilie. “Hortelã é mais
intensa, mais dura. Yerba buena é um pouco mais delicada.”
À noite, pouco mais tarde.
“Quero fazer outro para você, mas não quero te embebedar.”
Sara segurando os quadris de Emilie, puxando-a para perto.
“Foi só um cortezinho.”
Emilie saiu da poltrona rosa sob a janela e foi para a cama. Pouco
depois das dez. Pegou o telefone do Yerba Buena no celular.
Ela havia passado tempo suficiente cuidando da ferida. Ligaria e
pediria para falar com Sara. Combinariam de se encontrar para
tomar um café ou só falariam ao telefone. O que aconteceu naquela
noite deve ter sido um acidente, um erro ou um mal-entendido. Uma
conversa esclareceria tudo, e depois, independentemente do que
acontecesse entre elas, Emilie ao menos entenderia.
Ligou.
— Boa noite, aqui é Richard, do Yerba Buena. O que posso fazer
por você esta noite?
— Oi, Richard — disse Emilie, aliviada ao ouvir um nome que
não conhecia. — Estou ligando para falar com Sara. Ela está
trabalhando hoje?
— Sara Foster?
— Essa.
— Ela não trabalha mais aqui.
— Ah — disse Emilie. — Me desculpe. Obrigada.
Ela desligou. Esfregou a cicatriz no pé.
Está tudo bem, disse a si mesma, ainda que parecesse impossível
suportar a dor.
Está tudo bem.
Emilie comprou a mansão na Ocean Avenue. Tinha cinco quartos e
três banheiros, uma sala de estar, uma sala de visitas, um salão, um
escritório e uma cocheira. Tinha uma cozinha com um forno antigo e
um salão de jantar com uma série de janelas com vista para videiras
de amoras, uma minipalmeira e um bordo morrendo. Estava caindo
tanto aos pedaços que o anúncio a colocava numa lista de “para
empreiteiros” e não a mostrava para o público em geral.
Ela, Randy e Ulan passaram três horas examinando a fundação,
as rachaduras no gesso, os canos e o teto. Precisaria de um sistema
elétrico e um encanamento inteiramente novos. Precisava de telhas
novas, e precisava ser aparafusada à fundação para prevenir contra
terremotos.
Por sorte, a fundação estava firme, exceto por algumas
rachaduras, o esperado para uma construção tão antiga. Havia
camadas de tinta descascando e papel de parede danificado, mas
estava familiarizada com esse tipo de problema. Os pisos de madeira
estavam arranhados e manchados. Os banheiros haviam sido
reformados nos anos oitenta. Mas não estava podre. Não ia tombar.
— Eu estou maluca? — perguntou Emilie a Ulan.
— Você consegue — disse Ulan.
Pediu um empréstimo para empreiteiros: curto prazo, juros altos,
quatrocentos mil dólares de entrada. O restante do dinheiro da casa
de Claire iria para a restauração, e então ela venderia.
O dinheiro era importante, é claro, mas a emoção que corria
dentro de Emilie vinha da estrutura da casa, da visão que tinha para
ela. Das colunas de madeira entalhada e do pé-direito alto. De toda a
luz natural. Da grande escadaria em curva. Tantos quartos, alguns
amplos, outros pequenos e escondidos.
Ela já conseguia ver o que se tornaria.
Chamou Alice e Pablo, e eles circularam pelos corredores dizendo
“Ai, meu Deus, ai, meu Deus”, e Alice abriu a porta do quarto
principal, testou a varanda para se certificar da estabilidade, e juntos
os três amigos foram para lá desfrutar da vista do oceano.
— Você vai ganhar tanto dinheiro — disse Pablo.
— Vai ficar espetacular — disse Alice.
— Eu sei — disse Emilie. — Eu sei.
Ela não tinha muitos pertences, mal tinha se acomodado na casa
de Claire, então o dia da mudança terminou poucas horas depois de
começar. Escolheu uma área pequena da mansão para morar — um
quarto no andar de cima perto de um banheiro comum e funcional.
Enfiaram sua mesa redonda num canto do grande salão de jantar
onde ela não parecesse ridiculamente pequena.
Tudo naquilo era temporário. Emilie desfrutaria da ruína
magnífica que era a casa enquanto durasse. Faria com que ela
brilhasse. Deixaria que ela partisse.
Emilie e Ulan fizeram um planejamento. Ele estava oficialmente
aposentado agora, mas cantarolava quando se sentavam juntos à
mesa, bebendo chá, discutindo tudo que precisava ser feito.
— Em todos os meus anos — disse ele —, nunca peguei uma casa
dessas.
Com um mês de trabalho — quando a parte da demolição estava
concluída e a poeira havia baixado —, Colette voltou para Los
Angeles. Seu cabelo estava mais claro pelo sol, sua pele, um marrom
mais escuro. Não usava maquiagem. Até seu sorriso tinha mudado.
Estava maior agora.
Ela estava radiante.
— Oi, mana — disse ela, parada na calçada.
— Oi, mana — disse Emilie. — Bem-vinda de volta.
Bas carregou as caixas de Colette, uma por uma, mansão adentro,
para o quarto de baixo, que Colette havia escolhido. Emilie sabia que
era arriscado se permitir esperar por uma proximidade duradoura.
Mas Colette havia escolhido a irmã no lugar de outros, mesmo que
significasse morar numa casa inacabada e cavernosa, e Emilie,
apesar dos seus medos, estava contente.
Elas estabeleceram uma espécie de rotina, uma forma de estar
juntas. Colette se levantava às cinco da manhã para fazer preparação
de texto para uma revista on-line. Sua amiga Rachel tinha arrumado
o emprego para ela, e Colette tomava o cuidado de fazer tudo certo.
— O horário é péssimo — dissera Emilie.
— Eu não tenho muita escolha.
Emilie entendia. Colette era inteligente e comprometida, mas não
tinha educação formal, nenhuma experiência de trabalho
significativa. Então, depois dessa conversa, Emilie sempre apoiou os
horários da irmã, a meticulosidade dela. A primeira coisa que fazia
ao se levantar de manhã era café para Colette, mesmo acordando
algumas horas depois da irmã, e, após o término do primeiro turno
do dia de Colette, elas andavam juntas pela pista de caminhada à
beira-mar.
Quanto mais Colette explicava o lugar onde havia estado, menos
Emilie o entendia. Será que era um culto? Um retiro? Um centro
terapêutico? Uma comuna? Não havia uma palavra que definisse o
lugar, decidiu ela por fim. Simplesmente era o que era.
Colette havia se apaixonado enquanto estava lá. O nome dele era
Thom, morava em São Francisco no momento, mas vinha visitá-la de
vez em quando nos fins de semana. Era dez anos mais velho, tinha
uma filha de sete anos chamada Josephine. Emilie ficou um pouco
cética de início, mas começou a gostar dele com o passar dos meses.
E ela gostava ainda mais de Josephine. Quando os dois vinham
juntos, Emilie tomava o cuidado de guardar bem as ferramentas
elétricas. Numa visita, para dar a Colette e Thom uma tarde a sós,
Emilie levou Josephine ao aquário de Long Beach. Emilie observou a
garota fazer carinho gentilmente numa estrela-do-mar com a ponta
do indicador.
Logo, eu poderia ser tia dela, pensou ela.
Emilie polia as luminárias originais de cobre, retocava a tinta em
medalhões. Aplicava gesso novo à cozinha — não valia a pena salvar
nenhum dos armários. Escolheu azulejos verde-escuros para o
frontão da pia, tão ousados e dramáticos que Ulan balançou a cabeça
quando os viu chegar em caixas.
— Você tem que escolher detalhes de que todo mundo vai gostar —
disse ele mais tarde ao telefone. — Se for ousado demais, o
comprador não vai sentir que é dele.
— Eu entendo — disse Emilie. — Mas a casa me disse que queria
verde!
— Faça o que quiser. Me ligue quando acabar.
Ela se sentia mal por desapontar Ulan, mas ao mesmo tempo
Emilie sabia que tinha razão, e, quando ele apareceu de novo depois
que os azulejos foram instalados, ele parou, deu um passo para trás
para absorver tudo, então enfim assentiu em aprovação.

E então, certa noite, saindo para jantar com Alice, Pablo e Randy
num restaurante que Alice tinha escolhido, Randy começou uma
palestra sobre as tendências do mercado imobiliário, e Emilie se
encostou na cadeira, observando o ambiente enquanto ele falava.
Cortinas pesadas de veludo cobriam trechos da parede para dar uma
sensação de intimidade ao lugar. Ela gostava das cores — vermelhos
profundos e verdes. Grande parte da clientela tinha a idade deles.
Mais tranquilo que a maioria dos restaurantes de Los Angeles e mais
visivelmente queer também. Viu uma mesa de mulheres num canto,
as duas de costas para ela estavam de mãos dadas. E então ela notou
que uma das mulheres olhava para ela. Emilie evitou os olhos dela
— não queria ser pega encarando-a — até que uma compreensão se
enraizou devagar, e ela olhou também, e Sara levantou a mão em
saudação.
— Já volto — disse Emilie para os amigos. Levantou-se da mesa
em busca do banheiro. Entrou. Seu corpo inteiro tremia. Ela se olhou
no espelho, o rosto ruborizado e quente. Mas seus olhos cor de mel
estavam claros, e seu batom estava bem aplicado, e o cabelo estava
bonito, caindo pelos ombros em ondas. Estava tão pronta quanto
poderia estar.
Abriu a porta.
Sara estava ali, esperando.
— Oi — disse ela.
— Oi — disse Emilie.
Era mais forte do que nunca — a ligação entre elas.
Sara disse:
— As minhas amigas estão indo embora. Mas eu estava me
perguntando se poderia esperar por você, se estiver livre depois
daqui. Se você quiser. Imagino que esteja com a mulher do seu lado
na mesa. Não quero me meter. Eu só queria... Eu realmente gostaria
de me explicar. Pedir desculpa. Eu queria falar com você, se você
quiser.
— Ã-hã — disse Emilie. — Eu quero.
— Tá bom — disse Sara. — Bom. — Ela correu a mão pelo cabelo.
Um gesto de alívio, Emilie imaginou. — Vou esperar no bar. Não tem
pressa.
Ela começou a se virar, e Emilie disse:
— É a minha melhor amiga, Alice, na mesa.
Sara sorriu.
— Isso não quer dizer que vou para casa com você — disse
Emilie.
— Ah, eu sei — disse Sara. — Se eu fosse você, também não iria
para casa comigo.

Era tarde quando terminaram o jantar, mas Emilie conhecia um bar a


poucas quadras dali onde ela e Sara poderiam beber algo antes de
fechar.
Já fazia meses desde a noite que passaram juntas, mas sair do
restaurante com Sara, andando por algumas ruas, trouxe tudo de
volta. O desejo, a pressa, a confusão. Emilie respirou fundo, tentou
desanuviar a cabeça.
— Esse lugar está bom? — perguntou ela quando chegaram ao
bar.
— Está — disse Sara. — Esse lugar está ótimo.
Elas encontraram uma mesa num canto e se sentaram de frente
uma para a outra. Emilie manteve as mãos no colo. Entrelaçou os
dedos.
Sara fez o pedido para elas no bar, voltou com dois Old
Fashioned. Emilie bebeu dois goles de imediato, sem sequer provar.
Mas Sara girou o copo de novo e de novo na mesa, por tanto tempo
que Emilie se perguntou se ela sequer planejava beber.
— Não sei nem dizer quantas vezes já pensei nisso — disse Sara.
— Eu me imaginei pedindo desculpa para você de tantos jeitos.
— Você chegou a tentar me procurar?
Sara ergueu a cabeça da bebida, surpresa.
— Eu não sabia como te encontrar. Perguntei a Megan, mas ela
não tinha o seu telefone. Pensei que você voltaria. Procurei você toda
noite.
— Eu não vou mais lá — disse Emilie. — Só fui naquela noite.
— Eu acabei pedindo demissão.
— Eu sei. Liguei para você uma vez, uns meses atrás.
— Ligou?
Emilie fez que sim.
— Foi demais para mim. Toda noite. Esperando você voltar. —
Sara enfim bebeu um gole, baixou o copo e olhou para Emilie. Emilie
viu a sinceridade no rosto de Sara. Viu que ela estava contando a
verdade.
— Eu posso explicar — disse Sara.
Mas Emilie não queria uma explicação — não naquele momento.
Ela havia colocado um ponto-final no passado, não queria ficar lá.
Queria continuar em frente.
— Me diz uma coisa que você quer — disse Emilie.
— Além de outra chance com você?
— Isso — disse Emilie, o coração batendo forte. — Além disso.
— Está bem. — Sara se recostou na cadeira, girou o copo com o
drinque, tomou um golinho. — Tem uma loja vazia no Hollywood
Boulevard, a poucas quadras do Yerba Buena. Eu passo por lá todo
dia. É pequena, clássica. Dá uma sensação de Hollywood antiga.
Tem uns pisos de madeira extraordinários. — Ela baixou o copo. —
Meio assim — disse ela, juntando a ponta dos dedos para que as
mãos formassem uma ponta.
— Espinha de peixe?
— Isso! E um lustre absurdo... Tipo alguma coisa que se veria
num Chateau Marmont. Está vazio há anos. Quero transformar num
bar.
Emilie sorriu, tocada pelo brilho no rosto de Sara, a energia dos
seus movimentos ao descrever o lugar.
— Parece perfeito — disse ela. — Já falou com o dono?
— Não tem placa em lugar nenhum. É só uma fantasia. Nunca
contei para ninguém, na verdade. Até agora. E você?
Emilie não estava pronta para voltar o assunto para si mesma,
mas Sara se inclinava para a frente, ansiosa para ouvir o que ela
tinha a dizer, então Emilie pôs para fora a primeira coisa que lhe
ocorreu:
— Estou renovando uma casa agora. Uma casa absurdamente
grande e extravagante. No começo, o plano era vender, mas talvez
eu fique com ela.
— Onde fica?
— Aqui em Long Beach, bem na Ocean Avenue.
Sara inclinou a cabeça.
— Tipo... uma das mansões? Na avenida principal?
— É.
— E você comprou sozinha?
— Com um empréstimo para empreiteiro. Estava caindo aos
pedaços.
— Você é empreiteira?
Emilie riu.
— Eu reformei a casa da minha avó depois que ela morreu e
vendi. Comecei o projeto logo depois daquela noite com você, na
verdade. E aí comprei essa casa nova com o dinheiro da venda.
Quero continuar fazendo isso. Trazendo essas casas antigas de volta
à vida. Mas dizer adeus depois de todas as decisões, de todo o
trabalho...
— Quanto do trabalho você faz sozinha?
— Bastante. Está vendo isso aqui? — Emilie mostrou as mãos
para Sara, as palmas para cima, e Sara as tomou. Ela se perguntou se
Sara se lembrava das mãos dela como suaves e macias, como
costumavam ser. As unhas continuavam bem-feitas, limpas e curtas,
mas as palmas estavam mais fortes, mais duras.
— Tudo isso começou depois daquela noite? — perguntou Sara.
Emilie fez que sim.
— Tão rápido — disse ela.
— Eu sei.
O bartender anunciou que iam fechar, mas, antes de se
levantarem, Emilie esticou a mão e tocou o braço de Sara.
— Eu esperei tanto para ouvir sobre as suas tatuagens — disse
ela. — Desde que te vi pela primeira vez.
Então Sara lhe mostrou.
— Sara, mamãe, Spencer — leu Emilie, passando o dedo debaixo
dos nomes. Sentiu a importância deles, sabia que não deveria tocá-
los. — Spencer é o seu irmão?
Sara fez que sim com um aceno de cabeça.
— Ele mora com você agora, né? — Ela se lembrou da cama de
solteiro e da mesinha. Mas ela viu Sara hesitar antes de falar.
— Ele foi preso naquela noite em que a gente estava junta — disse
ela.
— Ah — disse Emilie, sendo pega de surpresa pela menção à
noite delas. Pensou que iriam evitá-la, deixar ser esquecida.
— Eu teria levado você para o hospital e ficado com você, trazido
você de volta depois de terminar — disse Sara. — Não era só um
cortezinho. É claro que não era.
Emilie sentiu um nó se desatar no peito. Ela estava certa. A forma
como flertaram no bar, como foram andando de mãos dadas para o
apartamento, a forma como mutuamente uma fez a outra gemer e
arquejar quando estavam na cama — tudo aquilo foi real. O que
aconteceu foi terrível, mas foi um erro.
— Ficou tudo bem? — perguntou ela. — Com o Spencer?
— Ele vai passar um tempo preso. — Emilie queria que Sara
olhasse para ela, mas ela ainda estava encarando o chão.
— Sinto muito por isso — disse Emilie.
— A pena dele termina em seis semanas. Então, pelo menos tem
isso.
Emilie fez que sim com a cabeça. Sara se levantou. Era hora de ir.
Na calçada, no escuro, Sara disse:
— Então, o que você acha? Quer o meu telefone?
E Emilie disse:
— Quero.
Ela passou o celular para Sara, observou-a digitando. Mas não era
o suficiente, essa promessa de uma ligação, de outra noite como essa.
Quem se importava com decoro, com não apressar as coisas? Emilie
não, não naquela noite. Deu um passo à frente, colocou a mão na
nuca de Sara para puxá-la para perto com gentileza.
A boca de Sara estava quente e macia na sua. Ela não queria que o
beijo acabasse.
— Vem para casa comigo — disse Emilie.

O sol nasceu na manhã seguinte, passou pelas janelas do quarto de


Emilie. Ela estava acordada já havia algum tempo, o edredom jogado
para o lado, a brisa pelas portas da varanda na sua pele quando Sara
se agitou. Emilie viu quando ela cobriu os olhos com o braço para
protegê-los.
— Vou mandar fazer cortinas — disse Emilie. — Nessa cor ocre
incrível e profunda. Mas acho que não adianta de nada dizer isso
agora.
Sara sorriu, e Emilie acabou olhando para ela por muito tempo.
Sua pele macia, seus ombros nus. Seus dentes de baixo levemente
tortos.
— Bom dia — disse Emilie.
Sara moveu o braço, semicerrou os olhos.
— Dia — disse ela. Um cílio perdido foi parar em sua bochecha, e
Emilie resistiu ao impulso de pegá-lo com os dedos.
— Eu passo um café se você puder ficar.
— Posso — disse Sara. — Posso, sim.
No andar de baixo, Emilie pegou três xícaras da prateleira. Moeu
café e esquentou água. E então encontrou Colette à mesa.
— Você trouxe alguém para casa — disse Colette sem desviar os
olhos da tela.
— O nome dela é Sara.
— Pelo que ouvi, Sara é muito boa de cama.
Emilie olhou para o teto.
— Hum — refletiu ela. — Então imagino que o som viaje mesmo
pelos dutos de ar.
Colette riu.
Emilie terminou de passar o café, levou a xícara de Colette.
— Vou voltar para o quarto.
— Divirtam-se — disse Colette. — Faz a Sara ajudar a gente com
a casa depois.
— Vou tentar.
Emilie subiu a escadaria em curva para o quarto com uma
bandeja nas mãos. Descobriu que Sara já estava vestida, na varanda,
olhando para fora.
— Esse lugar — disse Sara.
— Eu sei.
— Faz um tour comigo?
Emilie assentiu. Colocaram leite nas xícaras e Emilie a conduziu
pela casa. A altura do pé-direito, os caixilhos, os detalhes e os
batentes ornamentados, as reentrâncias em curva. Os medalhões no
teto e as maçanetas de bronze. Os padrões incrustados nos pisos de
madeira. A maioria das pessoas ficava impressionada, mas poucas
queriam ver todos os detalhes. Sara queria, ficava pedindo mais.
Terminaram seus cafés, voltaram a encher as xícaras. Emilie fez uma
apresentação rápida, se sentiu aliviada com o oi casual de Colette.
— Emilie já te falou o que a gente vai fazer hoje?
— Não — disse Sara.
— Vamos arrancar o papel de parede do saguão — disse Colette.
— Quer ajudar?
— Claro — disse Sara. — Com prazer.
Logo estavam juntas na cozinha comendo ovos, e Sara estava
procurando roupas de trabalho que servissem no meio das coisas de
Emilie.
Emilie reuniu rolos de tinta, raspadores e lonas. Na cozinha,
deixou a água correr na pia até estar quente e encheu um balde até a
metade. Misturou um copo de vinagre. O novo álbum da Lorde, que
ela e Colette andavam ouvindo, começou a tocar na frente da casa.
Ela ouvia as vozes de Colette e Sara, mas não conseguia distinguir o
que diziam. Ruborizou com a visão de Sara nas suas roupas.
O trabalho levou horas. Faziam pequenos cortes no papel com
um vincador, molhavam as paredes um trecho por vez, arrancavam,
celebravam quando grandes seções caíam sozinhas. Algumas áreas
eram mais teimosas e tinham que repetir o processo. Mais água, mais
raspagem. Emilie se preocupou de início que Sara se sentiria presa
ali, mas viu a concentração no seu rosto ao se focar num trecho perto
da porta. Como Sara mordia o lábio e semicerrava os olhos, o
cuidado com que trabalhava na beira do papel preso até soltar.
Elas pegaram burritos do Super Mex para o almoço e comeram
nos degraus do grandioso alpendre da entrada. Voltaram ao trabalho
até que, no fim da tarde, as paredes do saguão estavam nuas.
— O que vem agora? — perguntou Sara.
— Amanhã vou preparar as paredes, me certificar de que estão
lisas. E então vou aplicar o papel de parede novo.
— Qual a estampa?
— Eu te mostro.
Colette se despediu, ela estava saindo para encontrar uma amiga,
e Emilie levou Sara até a sala de estar, com o perímetro coberto de
caixas de luminárias, rolos de tecido para estofamento e bandejas
com ferramentas.
— É um pouco doido — alertou Emilie, então rolou o papel pelo
chão nu. Palmeiras e flores. Pássaros tropicais voando. Verdes e azuis
profundos, vermelhos e amarelos.
— É lindo — disse Sara.
— Quero que as pessoas entrem e saibam na mesma hora que
estão num lugar extraordinário.
Ela sentiu Sara observando-a enquanto rolava o papel de parede
de volta e o devolvia à caixa. Sentiu seu olhar como uma luz quente,
queria que durasse. O dia já estava escapando, então o que as
aguardaria? Queria que Sara ficasse mais e mais.
— Posso te fazer uma bebida? — perguntou Emilie.
Sara inclinou a cabeça, surpresa.
— Com certeza.
— É ousado da minha parte, eu sei.
A noite estava quente, então, depois de terem se ajeitado e se
livrado das roupas de trabalho, Emilie disse a Sara que a encontraria
no jardim.
— Eu tenho vergonha demais de preparar na sua frente.
Emilie mandou remover o bordo assim que fechou a venda da
casa, mas a palmeira ainda estava ali no centro do jardim. Amoras
cresciam numa moita debaixo da janela do salão de jantar e Sara
estava ali quando Emilie saiu. Sara tinha amoras nas mãos, ofereceu-
as para Emilie.
— São deliciosas, não são? — disse Emilie. — A escolha óbvia
seria arrancar essas videiras antes de vender a casa, mas não consigo
me convencer a fazer isso. — Ela passou uma taça a Sara. — Gim-
tônica com um toque extra de limão. O único drinque que eu sei
preparar.
Elas brindaram, sentaram-se lado a lado na sombra.
Sara provou.
— Está muito bom — disse ela.
— Está decente.
— É o drinque perfeito para esse momento.
— Tá bom, vou aceitar essa. — Ela deu o primeiro gole. — Então,
onde você está trabalhando agora?
— Tenho feito consultoria. Preparado a carta de drinques de
alguns lugares. Dei alguns treinamentos.
— Esperando para comprar o seu bar?
— Talvez — disse ela, o joelho encostado no de Emilie. — Mas me
conta mais sobre isso. Como você acabou aqui, assumindo tanto
trabalho.
— Já dei a versão resumida.
— Me dá a estendida.
— Atravessa gerações.
— Melhor ainda.
— Todo homem da minha família por parte de pai era construtor.
O meu avô e os dois irmãos dele. Os irmãos da minha avó também.
Todos eles deixaram Nova Orleans para vir para Los Angeles depois
da guerra. Vieram se seguindo, um atrás do outro, naqueles carros
antigos, o caminho todo. Precisavam parar quando um deles
quebrava. Faziam consertos eles mesmos na beira da estrada.
Sara se recostou, prestando atenção. E Emilie gostava da sensação
de ser ouvida. Gostava do som da própria voz contando uma
história. Era novo para ela, tudo aquilo. Essa confiança, essa
abertura. Contou mais a Sara.
— Eles queriam fazer casas novas juntos, com as próprias mãos
— disse ela. — Pelo menos é assim que gosto de pensar. Na verdade,
eu tenho umas fotos incríveis... Quer ver?
— Quero — disse Sara.
Então Emilie correu para dentro, voltou com a caixa de cartas,
fotos e recortes de jornal que havia guardado das coisas de Claire.
— Olha aqui — disse ela. — Aqui tem uma carta de amor que o
meu avô escreveu. “Eu beijei você. Estava apaixonado por você, mas
também era um tolo.”
— Ah — disse Sara.
— Eu adoro tanto isso. Eles eram tão, tão jovens. Olha essa letra!
E aqui estão as fotos.
Ela as passou para Sara, cada casa em sua ordem de propriedade.
Casas modestas, despretensiosas. Uma casa de onde tinham se
mudado durante os levantes de Watts. A casa em cujo jardim ela e
Bas haviam se deitado poucos meses antes, a foto tirada décadas
atrás.
— E agora você está aqui — disse Sara.
— É, estou — disse Emilie. Ela sabia o que Sara queria dizer,
sentiu como o elogio que era, regozijou-se por um instante antes de a
vergonha tomar as rédeas. — Pelo menos por enquanto. Mas me
conta de você — disse ela. — Eu nunca estive em Russian River.
— Lindo à primeira vista. Mais complicado se olhar muito de
perto — disse Sara.
Emilie esperou que ela dissesse mais, mas Sara balançou a cabeça.
O sol estava baixo no céu agora, seus copos, vazios.
— Não tem muita coisa para contar — disse ela.
Emilie ia pressioná-la, fazer uma pergunta mais específica, mas
Sara se levantou, espreguiçou os braços acima da cabeça.
— Estou com fome — disse ela. — Posso te levar para jantar?

Uma semana se passou. Era sábado, as três com a mão na massa de


novo. Emilie soltando os parafusos dos espelhos de latão das
maçanetas e as próprias maçanetas, Colette e Sara estendendo um
pano numa mesa colocada nos fundos da casa. Emilie havia
preparado uma pasta de bicarbonato de sódio, trouxe trapos que
usariam para esfregar tudo.
Todas começaram a trabalhar e, depois de um tempo, Sara disse:
— Então, Colette, notei que você não bebe. É isso mesmo?
— É — disse Colette. — Estou limpa.
— Há quanto tempo?
— Um ano e meio.
— Isso é bastante tempo — disse Sara. — Parabéns. — Emilie viu
que ela inspirou para falar mais, então hesitou. Por fim, Sara
perguntou: — O meu trabalho te incomoda?
Colette balançou a cabeça.
— Álcool é o menor dos meus problemas.
— Ah — disse Sara. — Tá bom.
— Eu usava heroína. Parei e voltei muitas vezes. Em, você não
contou para ela?
Emilie meneou a cabeça.
— Ela costumava contar para todo mundo.
— Não todo mundo.
— Ah, não — disse Colette. — Você parece chocada.
— Não — disse Sara. — Não, não estou chocada. Não é o que
você está pensando.
Mas Emilie notou também. Sara baixou o trapo e o espelho da
maçaneta que estivera polindo.
— O meu pai vendia. A minha mãe usava.
O mundo ficou silencioso. Emilie sentiu o sol atravessar as folhas
das palmeiras, viu as mãos de Sara no colo. Pensou em como Sara
fugia de todas as perguntas que fazia sobre sua infância.
— Isso deve ter sido difícil — disse Colette. — Ela conseguiu
parar?
— Conseguiu, sim. Mas o coração dela estava afetado demais.
Acabou morrendo disso.
Sara, mamãe, Spencer. Emilie achava que tinha entendido quando
Sara havia lhe mostrado. Mas não tinha entendido, não mesmo. Ela
se aproximou para colocar a mão nas costas de Sara, mas Sara ficou
em pé de súbito.
— Merda — disse Sara —, foi mal. Estou me sentindo meio... Só
preciso de um minuto.
Emilie a observou entrar.

Mais tarde, Emilie e Sara no quarto. Uma vela acesa, Emilie tirando
as roupas e colocando uma camisola. Sara estendida no colchão,
folheando as páginas do seu livro. Emilie sabia que podia escolher
deixar para lá. Mas não queria que fosse assim com Sara. Queria
conhecê-la.
Ela se ajoelhou no chão ao lado do colchão.
— Posso te fazer uma pergunta?
Sara baixou o livro.
— Claro.
— Por que você contou para a Colette sobre a sua família, mas
não para mim?
Sara se sentou na cama.
— Eu contei para vocês duas.
— Sim, mas estou falando das vezes que perguntei antes.
— Não é o tipo de coisa que eu costumo contar. Quer dizer, quem
quer ouvir essas coisas?
— Eu quero — disse Emilie. — Eu nem sabia que você tinha
perdido a mãe. Imaginei que ela ainda estivesse lá na sua cidade.
— Me desculpa.
— Você não precisa pedir desculpa. Não estou pedindo para me
contar tudo. Só quero conhecer você.
Sara fez que sim com a cabeça.
— Quantos anos você tinha quando ela morreu?
— Doze.
Emilie pegou a mão de Sara e a aproximou dos lábios. Pressionou
a boca na mão dela. Via a dor nos olhos de Sara, conseguia sentir o
quão fundo aquilo doía. Deixou Sara voltar para o livro. Não fez
mais nenhuma pergunta naquela noite.

Elas ficavam juntas o máximo que conseguiam. Emilie, empoleirada


num banco no apartamento de Sara, observando-a cortar as fatias de
laranja para mergulhá-las em açúcar. Sara na casa de Emilie,
ajudando-a a correr massa, pintar e lixar, segurando firme a escada
para Emilie subir.
Emilie provava as novas receitas de Sara, e Sara opinava sobre
tons de tintas e tipos de madeira. Liam em voz alta uma para a
outra. Iam aos seus restaurantes favoritos. Tiravam as roupas, de
novo e de novo.
Uma quarta-feira à noite, Colette, Alice e Pablo se juntaram a elas
no jardim e projetaram um filme de Hitchcock na lateral da casa.
Durante o resto da semana, trocaram mensagens sobre o figurino e
os cenários, as tomadas longas e a iluminação melancólica. Vamos
fazer isso toda semana, escreveu Alice, e todo mundo concordou.
Então, toda tarde de quarta, Emilie preparava o jardim. Fazia
muito tempo que ela conhecia os prazeres de reparar nas bebidas e
nos lanches favoritos dos amigos, oferecendo-lhes na oportunidade
certa. Agora, ela também tinha um jogo de copos gravados, uma
pilha de pratos brancos esmaltados feitos de um tipo de argila
francesa especial, candelabros de cobre — objetos raros que havia
encontrado passando um pente-fino pelo mercado de pulgas à
procura de equipamentos e candeeiros específicos.
Pablo apareceria no portão do jardim, Alice atrás dele. Colette
emergiria da casa ou voltaria de alguma incumbência na rua, cabelo
preso num coque, vestida para relaxar.
E, então, Sara no saguão, entre as folhas e os pássaros tropicais do
papel de parede, tirando a jaqueta, cumprimentando Emilie com um
beijo.
A pizza chegava. Eles se sentavam no escuro, luzes brilhando
acima enquanto Grace Kelly lançava longos olhares por uma janela e
Tippi Hedren tomava um barco atravessando Bodega Bay.
— Ah, não! — gritou Pablo. — Os pássaros vieram e Cathy ficou
sem bolo!
Quanta sorte Emilie sentia que tinha de estar quietinha no meio
deles, de se certificar de que todos tinham mantas macias em suas
cadeiras para quando a brisa ficasse um pouco mais forte.
Depois de terminar os filmes, entravam, sentavam-se no chão
porque não havia mobília suficiente para todos. Colette e Emilie
tinham herdado dos pais a coleção de discos e um toca-discos, uma
das baixas da separação. Numa noite, Colette colocou The Neville
Brothers para tocar.
— A música da época dos nossos pais — explicou Emilie.

Na manhã do dia em que Spencer foi liberado, Emilie passou café


como sempre na grandiosa cozinha de azulejos verdes. Deixou uma
xícara para Colette, que estava fazendo revisões na sala de jantar.
— Humm — disse ela —, obrigada. — Seus olhos fixos na tela do
computador.
Nos últimos tempos, o emprego tinha ficado ainda mais
importante para ela, porque conseguiria fazê-lo se estivesse
morando em Long Beach ou em São Francisco com Thom.
Emilie buscou as duas outras xícaras e subiu a escada curva para
o quarto, onde Sara estava acordando.
Elas se sentaram no colchão no piso, encarando a janela que dava
para o oceano.
— Como está se sentindo? — perguntou Emilie. — Nervosa?
— Um pouco. Mas mais feliz.
Emilie viu que era verdade — havia uma sensação de leveza em
Sara. Ela bebia o café mais rápido, parecia mais acordada. Emilie
queria estar contente por ela — estava contente por ela, é claro —,
mas havia um pensamento que não conseguia afastar. Uma memória
de Colette a ensinando a tocar violão antes de fechar a porta do
quarto. De Bas derrubando paredes com ela e então indo embora.
Emilie sabia que as coisas poderiam ser boas — até mesmo belas —,
e então, sem aviso, poderiam acabar.
Sara havia sido dela por aquelas semanas. Sim, ela ainda criava
receitas e treinava bartenders. Sim, ela via seus amigos. Porém, mais
do que qualquer outra coisa, ela estivera com Emilie.
E agora o irmão dela estava voltando para casa. Emilie se munia
para isso, decidida a estar pronta.
— Sei que talvez a gente não fique mais tão juntas — disse ela. —
Por um tempinho.
Sara se inclinou para perto dela, beijou sua clavícula.
— Eu ainda vou estar por perto.
E ela esteve. Sim, um pouco menos, mas não tanto quanto Emilie
havia temido. E às vezes trazia Spencer junto. Emilie quase riu
quando viu os dois juntos na soleira pela primeira vez. Os mesmos
corpos esguios, o mesmo cabelo loiro curto, os olhos de um azul que
combinava. Sara os apresentou, e Spencer disse oi e sorriu. A mesma
covinha única na bochecha esquerda.
Ele andou pela mansão, maravilhado.
— A sua casa é muito massa — repetia ele. E Emilie ria.
— Eu sei — disse ela. — Eu queria poder ficar com ela.
Spencer era menos reservado que Sara, de longe menos protetor
do passado dos dois. Uma tarde, Colette colocou um disco de
Johnny Cash, e Spencer disse:
— Ei, Sara. O papai sempre colocava essa para tocar, lembra?
Outra noite, eles decidiram jogar pôquer.
— Cinco cartas? — sugeriu ele. Todos concordaram, e ele disse: —
O Dave e o Jimmy me ensinaram depois que você foi embora. Eu já
te contei que a gente tinha noites de pôquer? Começaram quando eu
tinha uns doze anos.
Sara balançou a cabeça.
— Não, acho que você não me contou isso.
Emilie a observava, buscando mais, desejando que ela dissesse
algo, pensou em quando se conheceram, quando Sara pediu para
tocar na samambaia. “Isso aqui crescia por todo lado lá de onde eu
venho”, dissera ela. Ela se perguntava quando Sara lhe confiaria
mais.
Semanas se passaram, o aniversário de Sara se aproximou.
— Quero oferecer um jantar — disse Emilie. — Sei que a gente
mal tem móveis, mas vamos dar um jeito. Tem problema se eu fizer
isso?
— Não — disse Sara. — Não tem problema nenhum.

No dia anterior à festa, Colette e Emilie se sentaram juntas na sala de


jantar ao lado das organizadas pilhas de livros de culinária da
família.
Emilie sabia de qual precisavam. Era um livrinho branco.
Simples. Sem fotos, só receitas. Abria fácil na página certa.
— A gente pode só seguir a receita, não é? — perguntou Emilie.
— Você não acha que é um problema nenhuma de nós saber
cozinhar? — Os joelhos delas se tocavam ao passar as páginas. A
receita específica tomava cinco páginas de texto do livrinho.
— Acho que a gente consegue.
Emilie correu o dedo pela longa lista de ingredientes, as
anotações cuidadosas na caligrafia do pai delas preenchendo as
margens.
— Bom — disse ela, dando de ombros. — Não importa o que
aconteça, Sara vai saber que tentamos.
— E, mesmo se ficar mais ou menos, os amigos dela vão ser
obrigados a respeitar. É a comida do nosso povo.
Emilie riu, mas ela acreditava nisso. “Como sinto saudades de seu
gumbo no fogão, como sinto saudades de cada momento seu”,
escrevera o avô. E quantas datas comemorativas os pais delas
passaram na cozinha, cortando e misturando até a casa estar com
cheiro de ervas e frutos do mar, até servirem a mistura escura sobre
arroz e levar as tigelas para a mesa?
— No que eles estavam pensando quando nos deram tudo isso? —
disse Emilie, apontando para os livros. — Só porque estão se
divorciando eles nunca mais vão fazer gumbo, ou scones, ou
jambalaia de novo?
— Pois é — disse Colette. — Que loucura.
Elas percorreram corredores de supermercados, juntando tudo de
que precisavam, verificando as listas duas ou três vezes. Bas fez uma
visita mais tarde para ajudar a preparar o caldo. Tiraram a casca do
camarão, removeram a carne do siri. Em seguida, vinham as coxas
de frango e a linguiça andouille.
— Cortem em pedacinhos pequenos que caibam bem numa
colher de sopa e na boca dos convidados — disse ele.
— É exatamente o que você escreveu na margem — disse Colette.
— O que posso dizer? Sou consistente.
Emilie o observou se mover pela cozinha, de avental e mais
magro do que costumava ser. O mesmo pai com sua nova vida. Ela
se lembrou da sensação de quando ele a deixou na casa de Claire, as
paredes derrubadas. Como haviam se abraçado, como o sol havia se
posto para ela depois de ele ir embora. Ainda doía, mas ela tentaria
deixar de lado. Ele estava ali agora.
Juntaram as carnes numa tigela, cobriram e a colocaram na
geladeira. Largaram os ossos e as cascas numa panela grande com
água e a deixaram para ferver no fogão com cascas de cenoura,
verduras e cebola.
Na manhã seguinte, Emilie e Colette fizeram café e torrada e
então se puseram a trabalhar. Demoraram uma hora só preparando
os ingredientes. Cortando aipo e cebolas, pimentões e alho.
Misturando os temperos nas proporções certas. Elas queimaram a
primeira leva de roux.
— Será que usamos mesmo assim? — perguntou Emilie.
— Vou mandar uma mensagem para o papai — disse Colette. Um
momento depois: — Ele disse que de jeito nenhum.
Então elas jogaram fora a farinha temperada preta e começaram
de novo. O fogo mais baixo desta vez, Emilie mexendo tanto que
levou uma eternidade para ganhar cor. Mas, uma vez que pegou cor,
o perfume encheu a cozinha e elas sabiam que estava certo. Colette
colocou numa tigela e deixou de lado.
— Hora da santíssima trindade — leu Emilie. — Essa parte é fácil.
A gente só mistura o aipo, a cebola e os pimentões.
Cozinharam as carnes em etapas. Selaram a santíssima trindade
na mesma panela, certificando-se de que havia gordura suficiente da
carne. Elas raspavam o fundo de tempos em tempos, como Bas
instruíra nas margens. Misturaram o restante dos temperos,
baixaram o fogo. Emilie virou uma lata de tomates pelados e Colette
trouxe a tigela com o roux. Alternaram, mexendo tomates, mexendo
a mistura, mexendo tudo junto até formar uma pasta.
Emilie colocou a panela em fogo alto para ferver o caldo. Colette
acrescentou a pasta de pouquinho em pouquinho enquanto Emilie
misturava. Quando a massa estava misturada, baixaram o fogo e
tamparam.
— A gente deixa ferver por vinte minutos agora — disse Colette.
— Está bem — disse Emilie. — Vamos pôr a mesa.
A sala de jantar era seu cômodo favorito da casa. Um lado estava
coberto com as janelas originais — deixavam entrar correntes de ar,
mas eram lindas demais para tirar —, com vista para o jardim. Tinha
portas-balcão que abriam por completo, e Emilie havia encontrado
um lustre gigantesco no mercado de pulgas em Pasadena que agora
estava suspenso do centro do teto.
Sob o candelabro, havia duas mesinhas dobráveis e uma pilha de
cadeiras de madeira de uma empresa de aluguéis para eventos que
Alice disse que lhe devia um favor.
Emilie passou toalhas de mesa de linho. Colette estendeu os jogos
americanos e os guardanapos azuis, verdes e rosas, alternados. Elas
alinharam as velas cônicas (verde-escuro, a cor favorita de Sara) e
puseram a mesa para onze pessoas.
Elas tinham talheres e pratos que combinavam, também de um
aluguel para eventos, além de taças de vinho.
Um lugar para Sara, um para Spencer. Emilie, Alice, Pablo,
Colette. E cinco amigos de Sara, dos quais Emilie só tinha conhecido
dois.
O timer tocou, e elas voltaram para a cozinha. Juntaram o frango,
a linguiça e o camarão na panela e puseram para ferver. Baixaram o
fogo, acrescentaram as ostras e os siris.
Emilie jogou fora os restos do preparo e lavou as tigelas vazias,
virou-se para ver Colette mexendo a panela, o pé direito
descansando na panturrilha esquerda, exatamente como ela havia
feito na casa dos seus pais naquele Natal. Parecia fazer tanto tempo;
quanto cada um deles havia progredido.
— Vamos tomar banho — disse Colette. — Aí voltamos e
provamos.
Emilie lavou o cabelo na água quente do seu banheiro recém-
azulejado. Depilou as pernas. Fechou o chuveiro, passou hidratante.
Colocou jeans e camiseta e voltou para a cozinha.
Colette estava ali, esperando, folheando o livro de culinária.
Emilie tinha a sensação de que o livro poderia ter respostas para ela,
como se fosse mais que uma coletânea de receitas. Um manual de
como existir, talvez. Um passo a passo para como se mover pelo
mundo. A irmã dela passou outra página.
— Você já pensou sobre a sua origem creole? — perguntou Emilie.
— Tipo, isso é uma coisa que te ocorre?
À
— Às vezes — disse Colette.
— Eu escrevi tanto ensaio sobre isso. Durante toda a faculdade.
Estava tentando entender o que isso significava. Como eu me
encaixava.
— Eu queria ler esses ensaios. Você deixa?
Emilie balançou a cabeça.
— Encontrei uma pilha quando estava me mudando do
apartamento. Eram tão íntimos. Me deu vergonha só de passar o
olho. Tive que jogar fora.
— Ah. — A testa de Colette se franziu. — Mas você só estava
aprendendo.
Emilie deu de ombros, mas a compaixão da irmã a desarmava.
Talvez ela precisasse ser mais gentil consigo mesma.
Pensou em Colette na noite em que ela e Alice a receberam, tantos
anos atrás. Como tudo poderia ter sido diferente se a conversa não
tivesse dado uma volta. Se Emilie não tivesse agido com ar de
superioridade, se Colette não tivesse brigado também. Talvez Emilie
tivesse mostrado para Colette os ensaios. Talvez tivessem ficado
acordadas até tarde, perdidas em longas conversas sobre identidade.
— Lembra quando a gente era criança e ia àquelas festas enormes
com primos e dançava atrás do desfile? — perguntou Emilie.
Colette se apoiou na bancada, ávida.
— As tias com as sombrinhas.
— A vovó me disse que nos bailes creoles em Nova Orleans os
seguranças ficavam na porta, conferindo o pulso dos garotos. Se
fosse escuro demais, não podiam entrar.
— Mas que merda, hein — disse Colette. — Não faz sentido
nenhum. Eles se mudaram para cá porque eles sofriam
discriminação.
— Eu sei.
Colette balançou a cabeça.
Emilie disse:
— Ninguém mais segue os desfiles. As senhoras, as tias, foram
embora. Tentei aprender todas as histórias, mas tanta coisa foi
perdida.
— Mas a gente tem isso — disse Colette, indicando a panela com
a cabeça. — Pronta?
— Nervosa. Mas estou, tá bom. Pronta.
As duas mergulharam as colheres na panela. Assopraram para
esfriar, colocaram na boca.
— Ai, meu Deus — disse Colette.
Emilie balançou a cabeça.
— Como a gente fez isso?
— É gumbo! — disse Colette.
As duas olharam para a panela.
— Eu achava mesmo que era mágica — disse Emilie. — É muito
esquisito que isso me deixe meio triste? O sabor é quase igual.
— Não — disse Colette. — Não é esquisito.
— Nada mais de festas de Natal — disse Emilie.
— Mas a gente pode fazer as nossas.
Emilie fez que sim com a cabeça. Talvez pudessem.
Prepararam sanduíches e foram comê-los no jardim. Ficaram
sentadas em silêncio juntas, na sombra da antiquíssima palmeira.
Uma hora antes daquela em que os convidados chegariam,
Colette preparou o arroz enquanto Emilie alinhava garrafas de vinho
tinto e fileiras de taças, colocava garrafas de Pellegrino num balde de
gelo. Preparou tábuas com azeitonas, queijo, mel e frutas, uma para
o centro da mesa emprestada e outra para a pequenina no canto.
Emilie subiu para o quarto enquanto Colette foi para o seu. Pouco
depois, de volta ao andar de baixo, pararam uma de frente para a
outra. De batom e vestido. O cabelo de Colette preso num coque, o
de Emilie caindo pelos ombros.
— Você está linda — disse Colette.
— Você também.
Colette acendeu velas pela casa enquanto Emilie escolhia quais
discos tocar. Colocou Where Did Our Love Go do Supremes, querendo
começar a festa num tom para cima e contente. The Temptations
para os aperitivos, Joni Mitchell para o jantar. Uma amiga de Sara
traria o bolo. Ela escolheria o disco da sobremesa mais tarde,
dependendo se a festa estivesse barulhenta ou íntima a essa altura.
— Tudo bem — disse Colette, descansando a caixa de fósforos na
bancada da cozinha.
— Tá bom — disse Emilie, baixando a agulha no toca-discos. —
Acho que estamos prontas.
E cruzaram o salão, a sala de estar e o saguão, pelas portas
amplas e pesadas até os degraus da escadaria, para esperar os
convidados.

Algumas horas mais tarde, Colette estendia tigelas de arroz


enquanto Emilie servia conchas de gumbo sobre elas e Pablo corria,
indo e voltando da sala de jantar. Sara se enfiou na cozinha.
— Só quero fazer uma coisinha rápida — disse ela, e pegou
algumas jarras e copos de uma bolsa que tinha trazido. Quando as
últimas porções de gumbo foram servidas, Sara colocou um copo na
frente de Colette, um na frente do seu amigo Erik e um na frente de
Spencer.
— O que é isso? — perguntou Erik.
— Vão ter que me dar a opinião de vocês. Shrub de toranja, água
tônica, xarope de alecrim... Estou ampliando a minha lista de
mocktails.
— A sua lista de quê? — perguntou Spencer.
Colette riu.
— De drinques não alcoólicos.
— Ahhh. Mas de que adianta um drinque se não tem álcool? E
você sabe que eu bebo, né?
— Sei — disse Sara. — Mas você ainda é menor de idade. E vou te
dizer para que serve... Tem uma história toda por trás... Mas tenho
que comer uma colherada disso aqui primeiro.
Vieram murmúrios de satisfação de todo lado da mesa.
— Está incrível, meninas — disse Alice. — Está igualzinho ao do
Bas.
Emilie comeu sua primeira colherada com arroz, achou-a ainda
mais deliciosa do que a prova mais cedo.
— Bom trabalho, mana — disse ela para Colette.
— Idem — disse Colette.
Emilie observou Sara do outro lado da mesa. Ficou observando
sua boca enquanto provava uma colherada de gumbo, seus olhos se
fechando para saborear. Sua mão ao pegar a taça de vinho e dar um
gole.
A mesa ficou em silêncio, todos esperando Sara para começar.
— A maioria de vocês sabe que eu saí de casa quando era muito
nova. Tinha dezesseis anos e vim para Los Angeles com um garoto
chamado Grant. Eu não conhecia o Grant quando a gente partiu,
mas, quando chegamos aqui, já tínhamos nos tornado amigos.
Spencer estivera comendo com voracidade, mas então baixou a
colher.
— A gente não conhecia ninguém aqui. A gente não tinha
dinheiro nenhum. Encontramos um abrigo em Venice que nos
acolheu e nos ajudou a conseguir emprego. O meu foi num
restaurante. A mulher que me treinou perguntou se eu assumiria o
aluguel do apartamento dela. E, quando concordei, ela pegou uma
garrafa de Lillet da geladeira e duas taças de cristal trabalhado. Ela
cortou um pedaço de casca de limão e tudo. Nós brindamos. Nós
bebemos. Aquilo me deixou de queixo caído.
— Acho que nunca provei isso — disse Spencer. — Como é que é
o nome?
— Lillet — disse Sara. — Mas não é disso que quero falar. Era
bom. Eu adoro Lillet, é delicioso. Mas, mais do que isso, é uma
questão do momento. De pausar e reconhecer algo como significativo.
O foco era reconhecer tudo aquilo, mais do que a bebida em si.
— Então aí está a sua resposta, Spencer — disse Erik, erguendo o
copo e dando um gole. — É quase tão bom quanto o de verdade,
Sara.
Sara sorriu.
— Fico feliz.
— Tá bom, então agora continua contando a história — disse Erik,
acenando para que prosseguisse.
— Então eu estava ganhando uma boa grana como garçonete.
Mas o que eu queria mesmo era trabalhar no bar. Eu era nova
demais, mas prestava atenção nos nomes das garrafas de destilados,
fazia perguntas para os bartenders. Eu era muito dedicada. Chegava
mais cedo, sem ser paga, para aprender como faziam xaropes
simples e tônicas. Um dos bartenders me dava umas garrafas que
estavam quase acabando e umas receitas para testar no meu
apartamento. E então, no meu aniversário de dezoito anos, eu podia
legalmente servir vinho. Finalmente. Todo mundo brindou a isso no
jantar dos funcionários do restaurante naquela noite, o chef e os
cozinheiros, as garçonetes e os garçons, a recepcionista, o gerente,
todo mundo suado depois de uma longa noite, olhando para mim e
erguendo os copos.
Emilie observava Sara do outro lado da mesa, a luz das velas em
seu rosto.
— Foi um dos melhores momentos da minha vida.
Mas Emilie sabia que havia mais naquela história.
— O que houve com o Grant? — perguntou.
Sara meneou a cabeça. Levou o copo de água à boca. Bebeu,
engoliu. Todo mundo estava imóvel.
— Eu sabia que ele ia querer dividir o apartamento comigo. Só
tinha um quarto, mas a gente daria um jeito. A gente tinha dormido
num carro por um tempo. Era um luxo comparado àquilo. Mas eu
caguei tudo quando falei de alugar o lugar. Eu só... eu não saquei o
Grant direito. Pensei nele o tempo todo depois disso. Guardei uma
garrafa de Lillet na minha geladeira, sempre, e me servia um pouco e
me perguntava por onde ele andava. Naquela noite, no meu
aniversário de dezoito anos, depois de chegar em casa, eu queria que
ele estivesse lá. Eu queria contar tudo para ele.
— Descobriu o que aconteceu com ele? — perguntou Colette.
— Ã-ã — disse ela. — Nada.
— Conta alguma coisa sobre ele — disse Emilie.
— Não — disse Spencer. — Conta algumas coisas.
— Está bem. Ele tinha um dente da frente lascado. Só uma
lasquinha, no canto de baixo... supercharmoso. Ele era de Idaho. Os
pais deles botaram ele para fora de casa quando ele contou que era
gay. — Ela se recostou, olhou para o teto. — A gente teve que fazer
umas coisas meio merda para chegar aqui — disse ela. — Ele sofreu
mais do que eu. — Ela se inclinou para a frente de novo, balançou a
cabeça. — Mas, de qualquer forma... eu queria fazer uma coisa
especial para nós hoje à noite. Estou muito feliz de estar aqui com
todos vocês. Obrigada, Emilie e Colette, por essa festa incrível.
Obrigada a todo mundo por vir. E, Spencer, estou tão grata de ter
você de volta.
Ela ergueu a taça e, pela mesa, todos ergueram as suas, e Emilie
sentiu que via Sara com mais clareza quando suas taças brindaram e
desejou, como sempre, conhecê-la ainda melhor.

***

Os convidados ficaram até meia-noite.


— Acho que vou ficar um pouco mais — disse Sara a Spencer. —
Quero ajudar a limpar. Você pode ir dirigindo para casa... eu chamo
um carro mais tarde.
— Ajudar a limpar — disse Spencer, e piscou para ela. — Ã-hã, tá
bom. Feliz aniversário. — Ele abriu os braços e Emilie observou o
abraço dos dois. Seus corpos altos e magricelas, os cabelos loiros
curtos e o abraço breve.
— Vejo você de manhã, então — disse Spencer. — Obrigado de
novo, Emilie. Boa noite, Colette.
Ele foi embora e Colette disse:
— Ele parece um garoto muito bom.
Sara fez que sim com a cabeça.
— Ele é.
— Estou tão feliz por ele estar em casa com você.
— É. Eu também.
— Certo — disse Colette, bocejando. — Sei que tem uma tonelada
de louça, mas estou tão cansada. Por favor, deixem tudo. Eu não
tenho nada para fazer amanhã. Não me importo de lavar.
Elas desejaram seus boas-noites e Colette foi deitar, e ficaram
apenas Sara e Emilie no meio da cozinha.
— A gente vai limpar tudo mesmo? — perguntou Emilie.
— Vai, a gente vai, sim — disse Sara. — Não posso deixar a sua
cozinha desse jeito.
— Mas é o seu aniversário.
— Vai ser divertido — disse Sara.
— Tá bom, eu lavo. Você seca.
Elas se levantaram, de pés descalços, lado a lado na cozinha. As
mãos de Emilie mergulharam na água cheia de sabão, Sara secando
com um pano de prato branco.
— Ah — disse Sara depois de alguns minutos. — Você me avisa
se o Spencer algum dia tentar alguma coisa com a Colette. Vender
alguma coisa, ou...
Emilie fechou a torneira.
— Ele está vendendo? — perguntou ela.
— Ele diz que não. Mas sei lá.
Emilie queria entender o que estava acontecendo. O que Sara
sabia e por que ela suspeitava. Mas a expressão de Sara estava
fechada, seus olhos baixos.
— Se Colette quisesse drogas, ela saberia onde conseguir — disse
Emilie. — Mas, claro, eu conto.
Sara fez que sim com a cabeça. Virou o rosto para Emilie de novo
e sorriu, e Emilie sentiu a respiração dela voltar, o coração estável.
Era tudo de que precisava. Tinha Sara de volta. Não tinha que
entender tudo.
Abriu a torneira de novo, correu os olhos pela cozinha de azulejos
verdes e pela sala de jantar.
— Essa casa é tão bonita — disse ela. — Não quero abrir mão
dela.
— É maravilhosa — disse Sara. — Mas o que você faria com ela? É
que é... tanta coisa.
— Eu sei — disse Emilie. — Eu sei.
Lavaram e secaram a louça e ouviram discos. E, de vez em
quando, paravam para se beijar, até que os beijos não pararam, e
Sara largou o pano e Emilie fechou a torneira. As mãos de Sara
encontraram a barra do vestido de Emilie, os dedos de Emilie
abriram os botões da blusa de Sara, e elas deixaram o resto da louça
para o dia seguinte.
UMA TEMPESTADE E O RIO

Numa noite, poucos meses depois do seu aniversário, o telefone de


Sara tocou. Uma mulher, a capelã de um hospital, direta, mas gentil.
Sara saltou do sofá, foi até o quarto de Spencer. Ficou parada sob o
batente da porta e colocou o telefone no viva voz enquanto Spencer
se sentava na cama para ouvir.
O pai deles estava morto.
Ele havia passado uma semana no hospital, estivera lúcido até o
fim, não havia tentado contatá-los. Deixara um testamento e a
instrução de ser cremado. Já estava pago.
— Me avisem quando puderem vir — disse a capelã, e Sara
concordou.
Sara precisava se sentar. Foi até o sofá e baixou o telefone.
Spencer ficou de costas para ela olhando pela janela para o próprio
reflexo, ou para a fonte, ou para a noite — ela não saberia dizer.
Pensou em quando Spencer veio ficar com ela pela primeira vez e ela
lhe mostrou o futon do apartamento de Venice, e ele ficou esperando
a ligação do pai. Em como o pai havia aparecido para ela, um
fantasma na sala de estar. Mas agora ele realmente tinha partido.
— A gente tem que voltar — disse ela.

Depois de Spencer pegar no sono, Sara foi dirigindo até a casa de


Emilie. Ela lhe fez chá e levou Sara para o jardim. Sara bebeu, sentiu
o chá quente na garganta, então chorou tanto que precisou arquejar
para respirar. O peito subindo e descendo, as lágrimas correndo pelo
rosto, pouco familiares. Ela não chorava havia dez anos. Agora: uma
tempestade.
Mais tarde, no quarto de Emilie, Sara queria conversar. A porta da
varanda estava aberta, as cortinas afastadas para deixar a escuridão
passar. Madeira sob seus pés nus enquanto andava pelo quarto. A
batida estável do coração. Ela era elemental. Abriria a boca e algo
verdadeiro sairia. Tinha que fazer aquilo — não podia mais conter
tanto dentro de si.
— A última coisa que ouvi o meu pai dizer foi o meu nome. O
meu nome como uma pergunta. Pelo telefone, antes de eu desligar.
Emilie se sentou no colchão, cruzou as pernas e apoiou as costas
na parede. Sara sentia que ela esperava, mas não sabia o que dizer.
— Ele maltratava você? — perguntou Emilie. — Foi por isso que
você fugiu?
— Não costumava maltratar. Era mais ausente. Mas, antes de eu
fugir, ele fez uma coisa... que ainda não entendo.
Mas como ela contaria para Emilie do desenho sem lhe contar
tudo? Precisava achar um ponto de partida.
Lá fora, um carro passou acelerando, o motor roncando alto.
Tá bom, disse ela para si mesma. Comece.
— A minha mãe foi viciada em heroína por boa parte da minha
vida, mas eu não sabia. Eles encontraram um equilíbrio, de alguma
forma. O meu pai sabia quanto exatamente dar para ela. A minha
mãe sabia como usar e ainda conseguir cuidar da gente. Então ela
passou um tempo numa clínica de reabilitação. Eu cheguei em casa
da escola... estava no sexto ano... e ela estava de volta e explicou
tudo. Como funcionava um vício, o quanto ela queria ficar limpa. E a
minha vida começou a fazer mais sentido. As marcas nos braços dela
fizeram sentido. Por que ela se trancava no banheiro fez sentido. A
coisa toda também... as pessoas que apareciam na porta da nossa
casa no meio da noite procurando o meu pai. Por que a viatura
sempre passava por lá, por que às vezes o meu pai tinha que sumir.
Quando terminou de explicar tudo, ela estendeu os braços e foi,
tipo... tipo como se eu fosse um órgão que faltava para ela, e agora
eu estava de volta no corpo dela. E parecia que nós duas íamos
conseguir sobreviver, desde que a gente ficasse junta.
Sara fechou os olhos, concentrou-se na madeira sob seus pés,
precisava ficar ancorada. Apenas assim poderia viajar de volta para
a sala de estar da sua casa da infância. Para a casa com a sua mãe. Os
anéis prateados em todos os dedos, puxando Sara para perto,
acariciando o seu cabelo. “Estou aqui agora”, disse ela para Sara. E
disse de novo e de novo.
— Ela ficou limpa, mas adoeceu mesmo assim. Provavelmente já
estava doente na época, só não sabia. Ou talvez soubesse e só não
quisesse me contar. Não tenho certeza. Mas ela passou muito tempo
no hospital e eu fiquei lá com ela até o fim. E então eu era um órgão
sem um corpo. Uma coisa que ia morrer. Mas Spencer só tinha cinco
anos, e o nosso pai mal conseguia olhar para a gente. Acho que foi
assim que ele encarou a situação. Ele passava o tempo com os
amigos, começou a passar noites fora de casa. Então eu fiz tudo o
que a minha mãe fazia. Eu cozinhava, ia ao mercado e colocava
Spencer para dormir. Eu garantia que ele tivesse roupas limpas.
Escovava os dentes dele.
Incrível como esses fatos que ela jamais havia verbalizado saíram
em frases coerentes. Durante toda a sua vida eles pareceram terríveis
demais para serem descritos. Como se falar deles os tornasse reais.
Como se não tivessem sido verdade todo aquele tempo.
— Ele te dava propósito — disse Emilie.
Sara fez que sim.
— Dava, sim. E aí eu me apaixonei.
Emilie sorriu.
— Me conta.
— O nome dela era Annie. Eu tinha crescido com ela, a gente
sempre foi amiga.
— Quantos anos você tinha?
— Catorze.
— Catorze. Que fofa.
Essas não eram as palavras que Sara esperava. Para ela, tudo a
respeito de Annie estava sob uma luz de perda, mas agora via por
um novo ângulo. Num momento anterior, ainda inocente. Ela e
Annie na floresta, seus corpos jovens, sua avidez. Tão fofo — de fato.
Mas então:
— Quando a gente tinha uns dezesseis anos, eu notei uma marca
no braço dela. Reparei que era igual à da minha mãe. Pensei que, se
ignorasse, não seria real. A gente podia só continuar em frente. —
Ela engoliu em seco. Nunca tinha contado a ninguém, havia mentido
para o policial, não havia se permitido lembrar. A garganta dela
parecia fechar com o pesar. Mas, ainda assim... era melhor verbalizar.
— Então ela sumiu. E foi encontrada no rio.
— Ai, não. Ah, Sara.
— Depois da minha mãe, depois da Annie, eu só me importava
em sobreviver. Eu fugi no dia em que encontraram a Annie. Tentei
convencer o Spencer me acompanhar e, quando ele não quis, fui
embora mesmo assim. E aí, por um tempo, eu só pensava em
arrumar um emprego e um apartamento. Depois de uns anos,
comecei a sair com outras mulheres, mas nunca me apaixonei de
novo. E então vi você no restaurante naquela manhã. Você tinha
umas folhas nas mãos. Eu tinha que falar com você. E aí, depois de
tanto tempo, você apareceu no bar. E levei você para casa, e, na
minha cama, aconteceu uma coisa. Eu estava com você... Eu sempre
estive com você, mas eu também estava com a Annie. Como se
estivesse vivendo dois momentos da minha vida ao mesmo tempo.
Eu estava com vocês duas, de alguma forma, é o que estou dizendo.
Parece maluquice, eu sei. Parece doideira.
— Não — disse Emilie. — Não parece.
— Não consigo explicar.
— Não precisa explicar.
— O meu pai... na noite antes de encontrarem a Annie... ele
desenhou um retrato dela para mim. Eu ainda acreditava que a gente
podia encontrar a Annie. Eu não tinha desistido. Mas ele desenhou a
Annie morta no rio.
Ela observou o rosto de Emilie — a ficha caindo, a confusão.
— Espera. Não entendi. Ele desenhou o cadáver?
Sara fez que sim com a cabeça.
— E eu simplesmente nunca... nunca entendi. Por que ele faria
isso.
— Você chegou a perguntar?
O piso de madeira não bastava — ela o sentia sob os pés, mas
tudo o que conseguia ver era o desenho dele, deixado para ela na
mesa. Ela cobriu os olhos com as mãos, pressionou as palmas nas
pálpebras até doerem. Abriu-os quando a pressão era demais.
Colchão no chão. Cômoda com gavetas. Pilhas de livros verdes.
Luminária. Um risco de céu escuro entre as cortinas.
Ali estava ela, no quarto de Emilie, na casa de Emilie.
— Não — disse ela. — Nunca cheguei a perguntar.

A manhã veio. Ela precisava voltar.


Mas ainda não. Lá estava Emilie ao seu lado, o sol quente. Emilie
se agitando, acordando. O coração de Sara batia forte, um desespero
que a assustava, o pânico de precisar de algo, de não saber o que era.
E então Emilie abriu os olhos, tocou o rosto de Sara, e Sara soube.
— Volto em um minuto — disse Emilie, e ela saiu do quarto.
Em sua ausência, Sara viu como as coisas se desenrolariam.
Me leva com você, diria Emilie, e Sara esperaria Emilie fazer as
malas.
Spencer estaria acordado e pronto para ir quando chegassem a
West Hollywood, e encheriam o carro de Sara com malas e mochilas
e estariam a caminho. Um longo dia na estrada juntos, eles três. Ela
conseguiria fazer isso desta vez — estacionar na frente de casa, ir até
a porta, entrar — se Emilie estivesse com ela.
Seria terrível, sim, mas ela aguentaria.
As batidas do seu coração pareciam estáveis de novo. Como era
bom acordar no quarto de Emilie. Saber que amanhã de manhã, a
oitocentos quilômetros de distância de onde estava, acordaria com
Emilie de novo.
E ali estava Emilie, aparecendo na porta com duas xícaras de café.
Emilie, que tanto lhe havia oferecido, sua atenção, seu corpo, sua
gentileza, as alegrias diárias da vida com ela, era tanto que Sara mal
conseguia compreender.
Emilie passou a xícara para Sara, se abaixou e se sentou no
colchão ao lado dela. Ela iria acompanhá-la, Sara tinha certeza.
— A que horas vocês vão? — perguntou Emilie.
— Não sei. No fim da manhã?
Me leva com você, Sara esperou que ela dissesse.
Emilie ajeitou o cabelo atrás da orelha e Sara notou sua mão
tremendo. Sara não entendia — por que ela estaria tremendo?
Sentiu um aperto no peito de novo. Disse a si mesma que ficaria
tudo bem.
— Pode ser que eu fique fora por um bom tempo. A gente tem
que revirar a casa toda. Decidir o que fazer com as coisas. Preparar
para vender...
Ela tomou um gole de café. Engoliu. Agora, pensou ela.
Mas houve apenas silêncio.
— Eu adoraria ajudar — disse Emilie. — Como puder.
Sara esperou. Havia tantas formas que Emilie poderia dizer. Mas
Emilie não estava olhando para ela. Estava cruzando as mãos no
colo.
— Eu poderia cuidar do seu apartamento. Molhar as plantas.
— Não. Não preciso disso. O meu vizinho me deve uma.
Emilie fez que sim com a cabeça.
— Está bem — disse ela, e Sara ouviu uma leveza forçada na sua
voz. Uma ruga se formou entre as sobrancelhas de Emilie. Sara quis
alisá-la, mas manteve a mão enroscada na xícara.
— Você pode me acompanhar, se quiser. — Não eram as palavras
certas. Ela soube assim que as disse. Mas, ainda assim, eram algo.
Eram tudo o que ela conseguia.
— Ah — disse Emilie. — Obrigada. Mas eu não quero ficar no
caminho. Você vai estar lá com o Spencer...
O coração de Sara, que batia forte, foi tomado por um vazio.
Emilie estava dizendo algo sobre preparar um almoço para levarem.
Sobre ligar quando chegassem.
— O celular não pega lá. Não sei se o telefone fixo funciona.
Certo, dizia Emilie, então não se preocupe em ligar, e Sara estava se
vestindo, e diante dela havia a longa viagem até a casa, o portal que
ela seria forçada a cruzar de novo, as cinzas do pai, o rio um corpo
de água que ainda a aterrorizava.
Logo estavam do lado de fora nos degraus da frente.
Atravessando o rosto de Emilie havia uma distância que Sara não
entendia. Sara a beijou, sentiu sabor de sal.
Doía demais. Sara deu as costas. Ela se lembrou de como tinha
sido contar para Colette e Emilie sobre os seus pais naquele dia no
jardim. Precisara correr para o banheiro do térreo. Água fria no
rosto, uma longa olhada no espelho para se trazer de volta. Isso era
muito pior.
Ali, diante dela, havia a rua larga. O oceano além dela, azul e
brilhante. Ela só precisava dar um passo, descer o primeiro degrau, o
segundo, um por vez.
Na calçada agora, chaves na mão, a porta do carro aberta, o motor
ligado.
Viu de relance Emilie no espelho retrovisor. Ainda ali. Ainda
observando. Ainda com tempo, talvez, para Sara dar a volta. Em
algum lugar na última hora houve um mal-entendido, mas ela não
entendia. Como se recuperar dele, impossível dizer. O rosto de
Emilie, impossível de ler. Atrás dela, a casa se erguia com
grandiosidade na rua. Havia sido um presente e tanto ser
cumprimentada por todos aqueles pássaros sempre que chegava ali.
Havia sido uma alegria e tanto beijar Emilie, abraçá-la forte, ficar de
pés descalços no piso de madeira, compartilhar refeições, lavar
louça. E como era solitário agora, como era horrível dirigir para
longe.

***

Eles deixaram Los Angeles, dirigiram pelas montanhas, passaram


por campos e placas pintadas à mão sobre Jesus e a seca, ranchos de
gado com um cheiro péssimo. Terreno pantanoso. Orquidários.
Dirigiram ao lado de caminhoneiros, famílias e pessoas solitárias
fazendo a jornada através da vastidão do centro da Califórnia.
Depois de sete horas, Spencer ergueu o telefone.
— Sem sinal — disse ele. — Devemos estar em casa.
Dirigiram pela ponte verde e entraram na River Road. Lá estava a
placa para Armstrong Woods. Sara sentiu um desejo intenso e súbito
de entrar na floresta. Agora. Antes de entrar em casa. Em vez disso,
pegou a primeira rua à direita, e então a esquerda por uma rua
estreita, até onde haviam morado.
Lá estava a caixa de correio vermelha. Dirigiu até ela dessa vez.
Estacionou em frente à casa. A picape do pai estava na garagem.
— Não acredito que ele ainda tinha esse carro — disse ela.
— Ele adorava esse treco.
Levaram as malas para a varanda da frente. Spencer sacou uma
chave que tinha guardado e destrancou a porta. Entrou primeiro.
Sara esperou.
Respirou fundo.
Seguiu.
Era exatamente como ela se lembrava. O cheiro, primeiro — de
umidade, de madeira, de cigarros.
Ela deu um passo para dentro. O sofá cinza na sala de estar, a
mesa de café da manhã no canto, o corredor escuro. Spencer largou
suas coisas na sala de estar e pegou um dos telefones sem fio.
Desapareceu no quarto e ela foi rumo ao próprio quarto antigo,
hesitou diante da porta fechada, parada onde seu pai havia estado
na última vez que ela o vira. O que ele estava pensando quando
olhou para o corredor? Quando desenhou aquele retrato, o que ele
quis dizer? Ele nunca tentou encontrá-la. Nunca ligou para ela,
mesmo que pudesse ter conseguido o número com Spencer. Assim
que fez dezoito anos, ela parou de se esconder. Pensou na voz dele
ao telefone. Sara? Ele poderia ter retornado a ligação. Poderia ter
tentado. Mas ela havia escolhido fugir, e ele, a deixado desaparecer.
Assim como Spencer fez ao ficar parado na bicicleta, Grant
quando ela se mudou para o apartamento e agora Emilie também,
despedindo-se dela nos degraus de casa. Era algo que a dilacerava
— era tão fácil deixá-la partir.
Ouviu a voz de Spencer no quarto, falando com alguém ao
telefone.
Ela abriu a porta. Duas bicicletas. Algumas caixas empilhadas.
Olhou mais de perto, encontrou as caixas rotuladas com a letra do
pai: Coisas da Sara.
Fechou a porta de novo. Ele não a havia apagado. Tudo bem,
pensou ela. Tudo bem.
Spencer saiu do quarto.
— Tem um amigo meu que trabalha no Tino’s. Ele pode trazer
uma pizza para a gente.
A pizza chegou. Comeram na sala de estar, assistindo à TV.
Quando ficaram cansados, Sara pegou um cobertor e um travesseiro
no armário do corredor.
— Pode ficar com o quarto do papai, sabe — disse Spencer
quando ela carregou as roupas de cama para o sofá.
— Prefiro dormir aqui — disse ela.
— Tá bom — disse Spencer. — Boa noite.

O cheiro da casa a manteve acordada. A umidade, o mofo. E ela


sentia uma espécie de murmúrio — algum significado pressionando-
a enquanto tentava dormir. Ela sentia falta de Emilie, ainda não sabia
o que havia acontecido entre elas. Pensou em ligar, mas não ligou.
Quando voltasse a Los Angeles, em seu próprio apartamento, na
vida que havia construído, ela descobriria o que tinha dado errado.
Consertaria, se pudesse. Agora, neste lugar, ela tentaria dormir.
Atravessar cada dia até que os dias ali terminassem.
Pensou em Spencer no fim do corredor. Havia tanto a respeito
dele que ela não sabia. Ele a havia levado para tomar o café da
manhã no aniversário dela. Tinha escolhido um dos restaurantes
favoritos dela. Não foi barato. Havia arrumado um emprego para ele
lavar pratos num restaurante, mas só pagava um salário mínimo, e
ela ficou calculando quantas horas ele teria que trabalhar para pagar
a conta quando vislumbrou as notas na carteira dele: um monte.
Quis desviar o olhar, fingir que não tinha visto. Mas desta vez não
faria isso. Ele não podia voltar para a prisão, ela não podia continuar
perdendo Spencer de novo e de novo.
— Quanto custa um grama hoje em dia? — perguntou ela.
Spencer congelou.
— Um grama de quê?
— Heroína? Coca? Me diz você.
Ele olhou para ela.
— Por que caralhos eu ia saber qualquer coisa a respeito disso?
Era o pai dela, do outro lado da mesa.
— Spencer — sussurrou ela. — Por favor.
Ele suspirou, parecendo-se mais com ele mesmo agora.
— Não é nada — disse ele. — Não precisa se preocupar comigo.
— Isso é muito dinheiro.
— Falei para não se preocupar.
Ela o havia levado à casa de Emilie naquela noite para a festa e
ele encantou todo mundo. Ela o viu como os outros o viam — tão
mais jovem que eles, bonito em sua camisa social e jeans, fofo com
um leve toque de malandragem, a ânsia de levantar da cadeira e
ajudar. Quando o viu num canto conversando com Colette entre um
prato e outro, disse a si mesma que não tirasse nenhuma conclusão.
Seu irmão poderia conversar com a irmã de Emilie — deveria
conversar com ela. Mas aqueles tênis novos que ele estava usando, a
pilha volumosa de notas.
Ela achava que teria algum significado maior — voltarem juntos
de carro para o rio —, mas deitada no sofá, acordada, ela percebia a
distância entre eles.
Perto da meia-noite, Sara desistiu de dormir. Pegou as chaves do
carro, fechou a porta silenciosamente. Dirigiu alguns quilômetros até
uma rua arborizada com muito vento, saindo de Guerneville, indo
para Monte Rio, onde parou no estacionamento de cascalho do Pink
Elephant. O letreiro do bar estava apagado, o estacionamento, vazio.
Desceu do carro e tentou abrir a porta para confirmar sua suspeita.
Tinha fechado de vez.
Que bobagem, de qualquer forma, pensar que seus velhos amigos
iriam encontrá-la ali.
Ela havia desaparecido. Uma década tinha se passado, e ela
nunca ligou. Era raro pensar neles, para ser sincera. Tivera que cortar
seus laços com aquele lugar da maneira mais definitiva possível.
Havia sido uma questão de sobrevivência.
E agora ali estava ela, achando que eles ainda poderiam vir
encontrá-la se ela aparecesse num estacionamento sem aviso prévio
no meio da noite.
Voltou para casa. Ficou rolando de um lado para o outro
enquanto as horas avançavam.

***
A capelã havia ligado para o telefone fixo duas vezes nas primeiras
duas semanas em que estavam em casa. Sara ignorou as ligações nas
duas ocasiões, teve que se forçar a ouvir as mensagens.
— Aqui é Alison Tarr, do Hospital Geral de novo, ligando de
volta para saber quando vão poder vir.
— A gente devia conferir tudo — disse Sara a Spencer. — Colocar
numa caixa tudo o que quiser guardar.
— Tá bom, ã-hã.
— E a gente precisa ir ao hospital também.
— Já, já, ã-hã. Eu preciso me encontrar com umas pessoas.
Era comum ele dormir até o meio-dia, então saía para encontrar
uns amigos. Um dia, ele esvaziou o armário lotado do corredor, o
conteúdo jogado por todo lado. Sara imaginou que estivesse
começando a fazer a limpeza, mas não era o caso — ele estava
procurando alguma coisa. O capacete da bicicleta, contou a Sara
quando ela perguntou. Ela queria acreditar nele, mas ele vinha
guardando segredos. Ele sequer havia lhe contado a história toda
por trás da sua prisão. Ela tentou perguntar de novo e de novo, de
tudo que é forma possível.
Quem estava lá?
Só Spencer, a namorada e uns conhecidos deles.
E esse homem que ele machucou, ele era um amigo?
Não, nenhum deles tinha visto o cara antes.
E o quanto ele se machucou?
Levado às pressas de ambulância, sangrando com um talho na
cabeça.
— Ele me desrespeitou — disse Spencer.
— Certo — disse Sara. — Mas como?
Ele nunca lhe deu uma resposta, e a namorada de Spencer
terminou com ele, não o viu de novo depois daquela noite, e tudo
aquilo parecia pouco satisfatório, errado.
Ela se levantou e foi para a janela, viu-o sair de bicicleta, sem
capacete e sem preocupações. Seu irmãozinho, um estranho.
Ela se mantinha enfurnada dentro de casa, esperando para
descobrir onde começar. Esquecia até mesmo por que estava ali. O
motivo por ter voltado, quando a casa dela ficava a quase mil
quilômetros dali. O que exatamente pretendia fazer?
Na terceira segunda-feira, quando Alison Tarr ligou de novo, Sara
enfim atendeu. Ã-hã, disse Sara. Ela iria no dia seguinte.
Esperou Spencer voltar para casa naquela noite. Ouviu as chaves
na porta, a porta sendo destrancada. Ele entrou, e ela disse:
— Temos hora marcada para as onze amanhã no hospital.
— Para quê?
— Para falar com a capelã.
— Certo — disse Spencer. — Beleza.
Mas, de manhã, ele emergiu do quarto. Serviu-se de uma xícara
de café que ela tinha passado.
— Você se importaria se eu ficasse em casa? — perguntou ele.
E Sara pensou que talvez fosse por isso que estivessem juntos. Ela
lidaria com tudo pelos dois e talvez isso compensasse a maneira
como ela o havia deixado um dia. Talvez, se ela se saísse bem o
suficiente agora, as visões que tinha dele, cada vez menor no espelho
retrovisor, tão pequeno olhando para ela, desapareceriam.
— Tá bom — disse Sara. — Sem problema.
Sara deixou o carro no estacionamento, o mesmo onde haviam
parado quando a mãe dela estava morrendo. Entrou no hospital e foi
levada a um escritório pequeno com uma Bíblia, uma Torá e um
Corão. Pouco depois, Alison Tarr assumiu a cadeira à sua frente.
Tinha uns sessenta anos, rosto gentil e usava camisa social fechada
até a gola. Sara conseguia ver que era uma pessoa com prática em
ouvir, confiava em suas intenções. Mesmo assim...
— As cinzas do seu pai estão guardadas na funerária. Fica só a
umas quadras daqui. Podemos ir andando até lá quando
terminarmos — disse Alison. — Ele pediu que dissesse a você e ao
seu irmão Spencer que ele quer que sejam espalhadas no rio perto de
casa. Bem, não tenho certeza de que isso seja legal, então aconselho
que verifiquem. Mas saibam que essa era a vontade dele.
Sara fez que sim com a cabeça.
— E este — disse ela, tirando uma folha de uma pasta — é o
testamento dele. Escreveu aqui no hospital. Fez uma hipoteca
reversa na casa, mas ainda dá para tirar um pouco de lucro dela se
vender. Ele a deixou para você e para Spencer dividirem igualmente.
Ele também tem uma caminhonete Ford 1993, pelo que entendo.
Deixou para você.
— Para dividir com Spencer?
— Não. Só para você.
Sara fechou a mão com mais força.
— Agora — disse a capelã. — Se eu puder perguntar, tem alguém
com você durante esse momento, para te apoiar?
Sara fez que sim.
— O meu irmão está em casa. — Mas ela teve uma visão de
Emilie levando-a para o jardim, colocando uma manta nas suas
costas, dando-lhe chá.
— Quero que fique com o meu cartão — disse Alison. — Se
qualquer pergunta surgir, se houver qualquer coisa que queira saber
a respeito dos últimos dias do seu pai, por favor, me ligue a qualquer
momento. Tivemos muitas conversas antes de ele partir.
— A gente estava afastado.
— É — disse ela. — Às vezes isso faz com que a perda seja mais
difícil.
Sara olhou pela única janela do escritório, que dava para o
estacionamento dos funcionários.
— Por que ele deixou a caminhonete para mim? — perguntou ela.
— Ele não me contou. Sinto muito. Não sei.
De volta ao estacionamento, Sara pousou as cinzas do pai no piso
do banco do carona. Ela ligou o telefone pela primeira vez desde que
tinha voltado. Ela o deixava desligado em Guerneville; tudo o que
ele fazia lá era procurar sinal. Esperou o telefone voltar à vida, e logo
apareceram na tela: mensagens de texto de amigos de Los Angeles,
e-mails de restaurantes e uma mensagem de voz com o nome de
Emilie.
Ela queria ouvir. Morria de vontade de ouvir. O coração
disparava ao pensar nisso — imaginando a voz de Emilie dizendo
que sentia a sua falta, que a queria de volta, que estava tudo bem
entre elas. Mas essa dor era familiar demais. Seu desespero, como
um aviso. Não, pensou ela. Aqui não. Ela faria o que precisava ser
feito. Voltaria para casa. E então ouviria.
Voltou dirigindo para casa e encontrou Spencer na sala de estar
assistindo à televisão.
— Estou com as cinzas do papai no carro. Ele queria que a gente
jogasse no rio. Podemos fazer isso agora?
— Agora? — perguntou Spencer.
— É o que eu quero — disse Sara. — Se não é o que você quer, a
gente pode esperar.
Spencer desligou a televisão. Sentou-se imóvel.
— Vou só me aprontar, um minuto.
Ela se sentou no degrau da frente enquanto ele se preparava, e
então os levou para a River Road, passando o Safeway, até uma rua
pequena, onde estacionou. Eles andaram por um beco sem placas
entre uma fileira de casas, descendo degraus estreitos até a margem
do rio. Sara carregava as cinzas porque seu irmão não queria tocar
nelas.
Esse era o lugar favorito deles no rio, antes de tudo dar errado.
Ela sentia que estava deslocada do tempo, nos ombros do pai, a mãe
sorrindo para ela. E então no deque de Dave, vendo o corpo de
Annie ser içado da água. E então de volta ao presente.
— Seria bom que a gente encontrasse um lugar fundo — disse
Sara.
Spencer apontou.
— Vamos naquele deque ali.
Atravessaram as pedras, estabilizaram-se na superfície irregular
do deque. Sara baixou a caixa.
— Não sei como fazer isso — disse ela. — Tem alguma coisa que
você queira dizer?
Mas Spencer estava chorando, balançando a cabeça em negativa.
— A gente pode esperar, se você quiser.
— Não — disse ele. — Vamos fazer isso de uma vez.
Sara tirou a tampa. Dentro, havia cinzas e pequenos fragmentos
de ossos. Ela pôs a mão dentro da caixa, apanhou o máximo que
conseguiu e lançou no rio. Um pouco caiu, um pouco foi levado pela
brisa. Pegou outro punhado, e mais outro. Spencer colocou a mão na
caixa também, jogou. Quando a caixa estava vazia, voltaram para o
carro.
— Vou encontrar uma amiga — disse Spencer quando Sara
destrancou a porta.
— Tá bom — disse Sara. — Quer uma carona?
— Não, ela está perto. Vou a pé.

***

Sara estava na cozinha, limpando a geladeira, quando ele voltou


apenas uma hora depois. Ela ficou feliz em ouvi-lo — achou que ele
queria ficar com ela, afinal de contas —, mas então viu que tinha
uma garota com ele. Cabelo ruivo, sardas, mais ou menos da idade
dele.
— Tina, essa é a minha irmã, Sara — disse ele. Sua voz estava
fraca e baixa, como se fosse difícil fazer as palavras saírem.
— Oi — disse Sara. — Muito prazer.
— Muito prazer. Sinto muito pelo seu pai.
— Obrigada. — Ela observou Spencer parar no corredor, notou
suas olheiras, seu torpor, reconheceu aquilo tudo. Ele atravessou o
corredor e foi para o quarto, e Tina foi atrás dele. Sara concluiria o
que estava fazendo e então o deixaria para ser confortado da forma
que ela própria estava sendo antes de viajarem. Pensou em amoras,
nos filmes projetados na parede. Pensou em Emilie, levando-a para a
cama. Foi algo que lhe ocorreu numa única onda — a dor na pélvis,
molhada no meio das pernas. As mãos de Emilie, sua boca e o calor,
dormindo profundamente quando acabava.
Revirou a bolsa até encontrar o telefone. Sem sinal.
Lavou o último Tupperware. Limpou a pia. Olhou pela janela,
pelas cortinas de algodão abertas, o tronco grosso de uma sequoia e
as samambaias embaixo.
Pegou o telefone de novo e enquadrou uma foto. A pia da
cozinha, a janela, as paredes ao redor. Encontrou o número de Emilie
e selecionou enviar. Observou a linha azul começar e então parar no
meio.
Ouviu um gemido vindo do quarto de Spencer, lembrou-se da
garota. Ela lhes daria um pouco de privacidade.
Uma década havia se passado desde que ela andara pela cidade.
Novos empreendimentos com placas municipais e fachadas luxuosas
se espremiam entre os antigos estabelecimentos familiares. O Juicy
Pig ainda estava lá, ocupando uma quadra inteira, e, logo ao lado, o
Bar Appaloosa, aonde seu pai e os amigos iam beber. O banco que
estivera fechado por anos agora anunciava sorvetes, tortas e doces
caseiros. Havia uma mercearia com queijos caros e kombucha. Era
novembro, mas os turistas estavam lá mesmo assim. Antes, vinham
só no verão.
Mas, apesar das tentativas de se transformar, a cidade ainda era a
cidade. Ainda não era bem um paraíso. Sara saiu da avenida
principal e foi a uma igrejinha branca onde o pai de Lily pregava. As
janelas da capela estavam fechadas com tapumes. Sara deu a volta
na esquina para ver se o apartamento anexo onde moravam estava
ocupado. Cortinas grossas penduradas nas janelas. Impossível de
saber. Andou por algumas quadras até onde Annie e Dave cresceram
com seus pais, mas havia crianças brincando no jardim da frente, um
homem que não era Dave brincando com elas. As flores sob a janela
que eram cuidadas pela mãe deles haviam sumido, e a porta antiga
tinha sido trocada por uma moderna com um painel de vidro fosco
no centro. Era a casa de férias de alguém agora. Eles não moravam
mais lá.
La Tapatia tinha uma placa na janela que dizia fechados para o
inverno. O Salão de Beleza Wishes & Secrets ainda estava ao lado,
mas o bar descendo a quadra era novo. Sara olhou o cardápio na
janela. Tequila e mescal, laranja e gengibre. Nada assim estivera ali
antes. Entrou no bar, em parte local, em parte turista, sem saber
como se sentir. Mas uma bebida parecia uma boa ideia, assim como
uma mesa silenciosa num salão escuro onde ninguém a
reconheceria.
Pediu o drinque da casa ao jovem bartender e escolheu um
assento onde poderia olhar pela janela. Em outra mesa, havia um
grupo de turistas amontados de chapéus e ponchos, celulares
prontos para tirar fotos. Uma das garotas tinha a voz rouca, alta de
uma forma que mostrava o quanto gostava de se ouvir falar.
Sara analisou o papel de parede — flores coloridas e estrelas
metálicas — e se perguntou se Emilie gostaria dele. Bebericou o
drinque sem provar. Voltou-se para a janela para ver uma mulher da
idade dela passando do lado de fora devagar, olhando para ela. A
mulher ergueu a mão em cumprimento, e Sara semicerrou os olhos,
revirando a memória, demorando tempo demais para encaixá-la em
algum lugar. Crystal, pensou ela, mas Crystal já tinha ido embora
quando o nome lhe ocorreu.
Conferiu o celular. A linha azul do envio, ainda travada no
mesmo lugar. Deu zoom na foto. A pia de esmalte manchado. As
cortinas sujas. Sara se perguntou o que estava fazendo ao mandar
isso.
Deixou o bar e voltou andando para casa. Ir até lá era a coisa certa
a fazer. Pegar as cinzas e lançá-las no rio era a coisa certa a fazer. Mas
ela não queria ficar.
Havia carros estacionados em frente de casa. Lá dentro, os amigos
de Spencer lotaram a sala de estar. Será que ele estivera esperando
que ela saísse esse tempo todo? Alguém fez uma piada e todo
mundo riu. Fumaça de maconha, janelas fechadas.
— Opa, galera, opa. Essa é a minha irmã. Sara.
— Oi — disse Sara para os garotos no sofá e a garota na poltrona.
Tina estava servindo uma garrafa enorme de Coca-Cola em copos
plásticos vermelhos, completando-os com uísque.
— Ela é bartender em Los Angeles — acrescentou Spencer.
— Quer um? — perguntou Tina.
— Não — disse Sara. — Não, obrigada.
Ela observou Tina servir, se sentiu exposta.
Não um símbolo de celebração. Não havia nada de bonito nisso.
Talvez tivesse se enganado todo esse tempo, achando que o que fazia
era especial. Talvez ela fosse uma versão glorificada daquela garota.
Talvez fosse que nem o pai, vendendo drogas. Só que ela ajeitava o
produto, deixava mais doce.
Sara seguiu pelo corredor em direção ao quintal, mas parou em
frente à porta do quarto. Tudo aquilo a confundia. Os sons da sala de
estar. O fato de ela estar de volta ali. Seus pés no carpete marrom
felpudo, a mão na maçaneta e a forma como a girava. Por que ela
estava entrando?
Mas lá estava ela. A pilha de caixas com o nome dela na letra do
pai. A bicicleta que Spencer não usava apoiada na janela. Carpete
exposto onde costumava estar a sua cama. Foi até o closet, abriu a
porta. A cômoda antiga estava lá dentro. Abriu a primeira gaveta.
Nada. Abriu a gaveta ao lado.
Tão leve quanto a primeira, mas com um desenho dentro.
No que ele estava pensando ao deixar a caminhonete para ela, ao
deixar aquilo para ela encontrar? Sara encarou o papel no closet
escuro por alguns minutos antes de pegá-lo. O desenho a havia
assustado na noite em que o encontrou pela primeira vez. Não quis
olhar por muito tempo. Mas agora estava parada no meio do quarto
sob a luz do teto para vê-lo com a maior clareza possível.
Ele havia desenhado rochas na margem e ondas na água.
Desenhara o cabelo cacheado de Annie. A calça jeans com uma
sugestão de rasgo no canto de um joelho. A parte de trás dos tênis de
cano alto desaparecendo dentro da água. Desenhara-a de camiseta,
esboçara as listras. Havia a dobra interna do cotovelo e, logo acima,
onde uma agulha entraria, uma única marquinha.
Sara viu tudo dobrado, sentiu uma forte dor no peito.
Enfiou o papel de volta na gaveta, fechou-a com uma batida.
Veio a jato: a sala de estar silenciosa na noite em que ela chegou a
casa. A tensão dentro dela. Eugene dizendo que se sentasse com ele.
Os dois irmãos jogando cartas. O pai à porta. Por que caralhos eu ia
saber qualquer coisa a respeito disso?
Ele sabia de tudo.
Ela ouviu a porta de casa ser aberta do outro lado do corredor,
mais vozes se juntando ao restante. E então a voz de Tina fora do
quarto.
— Sara — disse ela —, os seus amigos estão aqui.
— Meus amigos? — A cabeça dela latejou, uma dor súbita.
Tina fez que sim.
— Vem cá.
Sara a seguiu pelo corredor e pela sala de estar lotada até chegar à
porta da frente aberta.
Seus amigos logo ali fora.
Ela deu um passo para fora e fechou a porta.
— Puta merda — disse Dave.
Lily, o cabelo numa trança caindo sobre um ombro, deu um passo
à frente.
— É você mesma? — perguntou ela.
— Pois é — disse Sara. Esfregou a têmpora, tentou acalmar a dor.
— Sou eu.
— Deixa eu olhar para você. — Lily se aproximou mais, tocou a
orelha de Sara, sorriu. — Olha o seu cabelo curto.
— Ouvi dizer que você enfim fez uma tatuagem — disse Dave. —
Você sabe que eu assumi o Stick and Poke, né?
— Não — disse Sara. — Não fiquei sabendo. Mas como você
soube?
— Você vai mostrar para a gente ou não? — perguntou Dave.
Sara levantou a manga do suéter.
— Sara, mamãe, Spencer — leu Lily. Ela olhou para o rosto de
Sara. — No fundo, é uma tatuagem para a sua mãe.
— Não — disse Dave. — É para o Spencer. É sempre, sempre para
o Spencer.
— Mas qualquer coisa para o Spencer é na verdade para a mãe
dela. Você se lembra da cama do hospital.
— Ah, é. Lembrei agora.
— Como assim? — perguntou Sara. — O que tem a cama do
hospital?
— Aquilo que a sua mãe disse — lembrou Dave.
— Mas o que ela disse? — Sara havia passado anos tentando se
lembrar das conversas das duas no hospital, mas as únicas memórias
eram do rosa-flamingo, dos lençóis com estampa de losango, da
palidez do cabelo da mãe no travesseiro. As pálpebras rosadas, os
olhos amarelados, os lábios embranquecidos rachados.
Lily a encarou.
Dave a encarou.
Lily disse:
— Ela falou para você cuidar dele.
— O que mais? — perguntou Sara.
— Está falando sério? — disse Dave.
Lily disse:
— Ela disse para levar o Spencer para longe do seu pai. Falou que
você tinha que roubar o menino, se fosse preciso.
— Foi a coisa mais foda que qualquer pai nosso já disse. Você
lembra, não lembra?
Sara não lembrava. Ela se imaginou no quarto do hospital, mas
nada lhe ocorreu. Será que a mãe realmente teria dito isso? O que
mais ela havia esquecido, ou escolhido não ver?
— É isso que acontece quando as pessoas vão embora. — Lily
desenhou um coração com o dedo na janela coberta de poeira,
perfurou-o no meio. — Elas se esquecem.
Dave disse:
— Eu sabia que você ia aparecer de novo. E aqui está você.
— Eu achei que você ia estar apaixonada — disse Lily. Ela se
aproximou ainda mais de Sara, colocou as mãos no rosto dela.
Esperou Sara olhar nos seus olhos. Ela fez que sim. Olhou nos olhos
dela. — Tadinha — disse ela. — Vamos sair daqui. Spencer e essas
festas. A gente tentou manter ele na linha, Sara, juro.
— Mas tinha um limite do que a gente podia fazer — disse Dave.
— Vamos lá. Vou fazer chocolate quente para a gente.
Apareceu uma picape preta. O motor continuou ligado, mas os
vidros foram baixados. Crystal e Jimmy.
— Encontraram ela — disse Crystal, olhando para Dave e Lily e
não para Sara.
— Foi mal por mais cedo — disse Sara. — Eu levei um minuto
para lembrar, aí você já tinha ido embora.
— Faz muito tempo — disse Crystal, dando de ombros, mas Sara
conseguia ver que ela não estava perdoada.
— Mesmo assim — disse Sara. — Você não mudou nada. Eu
devia ter me dado conta. E oi, Jimmy.
— E aí, Sara?
— Estamos indo para a minha casa — disse Lily a eles.
— Certo — disse Jimmy. Subiram os vidros e viraram a
caminhonete.
— Estão casados agora — disse Lily. — Têm uma filha. A mãe
dela mora com eles, cuida da neném.
Sara balançou a cabeça, não sabia o que dizer. Todos cresceram
sem ela. Ela havia desaparecido, e ali estavam eles.
Lily e Dave entraram num velho Cadillac branco, uma minibola
de discoteca e um pé de coelho pendurados no retrovisor.
— Vou só pegar as minhas chaves.
Ela se virou, mas então se deu conta. Entrou no carro de Dave em
vez disso.
— Ufa — disse Lily. — Por um segundo, achei que você tinha
esquecido tudo.
— Quem vai junto, fica junto — disse Dave.
— De onde é essa frase mesmo? — perguntou Sara. Um pouco de
terra se acumulava no piso do banco de trás, mas uma manta macia
estava enfiada para cobrir o estofado velho, e Sara se permitiu se
recostar e fechar os olhos enquanto ouvia seu velho amigo falando
bobagem. A voz dele soava tão bem. Grave e sempre alta, quase
anasalada. Ela queria que ele falasse sem parar, e ela se perguntou se
conseguia sentir aonde estavam indo mesmo de olhos fechados.
— Tudo bem com você? — perguntou Lily.
— Um pouco de dor de cabeça.
Um pote sendo agitado. Comprimidos tirados dele.
— Aqui — disse Lily, e Sara abriu os olhos para uma aspirina e
uma garrafa de água de alumínio com tampa cor-de-rosa. Ela tomou
o remédio e devolveu a garrafa. Fechou os olhos de novo. Desejou
que fosse só uma dor de cabeça.
— Olha só para ela ali atrás — sussurrou Lily. — Olha só para ela.
— Ainda tem gente morrendo por aqui? — perguntou Sara.
— Ummmm — disse Dave. — Não é por isso que você está na
cidade?
— Você sabe do que estou falando.
— Dois adolescentes no ano passado.
— Juntos?
— Não.
— No rio?
— Um deles no rio.
Sara abriu os olhos. A luz da bola de discoteca dançava no teto do
carro.
— Eu penso na Annie o tempo todo.
— Todos nós pensamos na Annie o tempo todo — disse Lily.
Ela sentiu o silêncio entre eles, um silêncio pesado. Fosse lá o que
tivesse acontecido com Annie, o pai dela estivera lá. Ele sabia.
O carro parou na rua da igreja branca com tapumes nas janelas e
o pequeno campanário que se erguia para o céu, mas não ia longe, a
lua e as nuvens acima, muito mais altas.
— Passei por aqui mais cedo. Me perguntando se vocês ainda
estavam aqui. E fui ao Pink Elephant uma noite também. Vocês não
vão mais lá?
— Para o estacionamento de um bar fechado? — Dave riu,
incrédulo. — A gente não é mais criança.
Os três tinham o rosto com traços mais marcados, vozes adultas;
havia uns poucos fios cor de prata adiantados nas têmporas de
Dave. Mas, para Sara, estar no carro com eles era como ter dezesseis
anos de novo — os prazeres e os desprazeres disso. Conseguia sentir
o sussurro da pulseira da amizade que Lily havia trançado para ela,
ver os seus fios cor-de-rosa, vermelhos e brancos. Apenas mais uma
coisa que havia abandonado.
Crystal e Jimmy estavam sentados nos degraus da igreja,
esperando, enquanto os três estacionavam. Os cinco entraram pela
porta do apartamento, subiram a escada. Sara se lembrava de como
era antes e, enquanto a estrutura continuava igual, ela via que
apenas Lily morava ali agora. Costumava estar coberto por bordados
e imagens de Jesus. Agora um sofá rosa-choque ocupava a maior
parte da sala, e pôsteres emoldurados de lugares distantes
decoravam as paredes. Jimmy e Cristal ocuparam o sofá, e Dave se
sentou no chão, apoiado na parede com as pernas estendidas. Sara
seguiu Lily por alguns passos até a cozinha adjacente. Havia uma
foto de Lily com um homem presa na geladeira.
— Quem é esse?
— Billy McIntire? Ele estava três anos na nossa frente na escola.
Está servindo no Alaska agora.
— Você deve sentir falta dele.
— O tempo todo — disse Lily.
— O que houve com a congregação do seu pai?
— Uma igreja nova em Forestville — disse Lily. — Atraiu todo
mundo. O meu pai se mudou para o Arizona com a esposa nova.
— Você passa um tempo na capela?
— Às vezes — disse Lily.
— Sempre gostei daqui — disse Sara. — Mesmo que a gente não
fosse religioso.
— Levem ela lá embaixo, gente — disse Lily. — Já encontro vocês.
Dave, Crystal e Jimmy guiaram Sara pelo corredor e desceram
outro lance de escadas estreitas até uma porta. Então, estavam na
igrejinha com seu pé-direito alto e o púlpito, suas fileiras de bancos.
Jimmy e Crystal se sentaram na primeira fila, Dave e Sara, nos
degraus que levavam até o palco, e logo Lily estava ali também,
cinco canecas de chocolate quente numa bandeja. Sara pegou uma,
sentiu seu calor entre as mãos.
Bebeu alguns goles. Quente e doce.
— Obrigada por me encontrarem — disse Sara. — Eu achava que
vocês não moravam mais aqui. Faz tanto tempo.
— Nem todo mundo vai embora — disse Crystal.
Seus amigos — eles ainda eram as mesmas pessoas. Ela pensou
neles, juntos no deque naquela manhã terrível.
Sara disse:
— Me contem da Annie.
Annie. O rabo de cavalo bagunçado, que chacoalhava a cada
passo. Sua voz suave e rouca e suas piadas bobas que acabavam
fazendo todo mundo gargalhar, se estivessem cansados ou bêbados
o suficiente.
— Por favor — disse Sara. — Eu preciso saber o que aconteceu.
Acabei de descobrir uma coisa... Sei que o meu pai teve parte nisso.
Jimmy segurou a mão de Crystal, girou o anel de casamento no
dedo, enquanto Crystal observava. Lily e Dave olharam um para o
outro. Lily fez que sim.
— O seu pai e os amigos dele — disse Dave. — Todos eles. É o
que as pessoas dizem.
— Tá bom — disse Sara. — Todos eles. — A aspirina não estava
fazendo efeito. Ela esfregou a têmpora. — Eu ainda não entendo.
— Acho que foi um acidente — disse Dave. — Ela foi comprar
drogas deles, e eles usaram um pouco na sua casa. Ela usou demais.
— Ela se sentia tonta. Inclinou-se para a frente, a cabeça apoiada nos
joelhos. — Dizem que eles tentaram ajudar, mas não conseguiram
salvar a Annie. Não chamaram ninguém.
— Eles sabiam que iam estar fodidos se fizessem isso — disse
Jimmy.
— Então esperaram até anoitecer — disse Dave. — E esconderam
o corpo no rio.
— Como vocês sabem? — perguntou Sara.
— Quando o seu pai foi preso um tempo atrás, um monte de
coisa veio à tona — disse Crystal. — O grupo deles se desmantelou,
as pessoas começaram a quebrar o silêncio. Mas nunca teve
evidência suficiente. Já tinha se passado muito tempo.
— E ninguém fez nada?
Lily disse:
— A gente falou sobre isso, mas o que se podia fazer? Ela estava
morta. A vida de todo mundo já tinha sido arruinada. John e Mark
estavam tão viciados àquela altura que nem os pais queriam saber
deles. Estavam tentando dar golpes em turistas, para arranjar
dinheiro, dormindo embaixo da ponte. Todo mundo só sentia pena
deles.
— E o Eugene? — perguntou Sara. — Por que ninguém foi atrás
dele?
— Eugene — disse Dave. — Aquele filho da puta. A gente ouviu
dizer que você foi na casa dele com um cara no dia em que foi
embora.
— Eu precisava de dinheiro. Ele disse que ia me ajudar.
Jimmy bufou.
— Eu estava desesperada — disse Sara. — Eu acreditei nele.
— Ele te deu o dinheiro? — perguntou Crystal.
Ela não precisava contar nada para eles. Mas descobriu que
queria.
— Ele pediu coisas em troca.
— Filho da puta — disse Dave de novo.
Quando Sara levantou a cabeça, Lily olhava para ela, esperando.
— Gente que nem o Eugene... — começou Lily, olhando nos olhos
de Sara. — Homens que nem o Eugene. É raro eles sofrerem pelas
coisas que fazem.
Sara fez que sim. Ela se recostou no chão. Sentia-se cheia de
chocolate quente. A cabeça ainda latejava. Acima dela pairava o teto
arqueado da igreja vazia do pai de Lily.
— Essa merda de cidade — disse ela.
Dave descansou a mão no joelho dela.
— Sentimos saudades suas — disse ele.

A casa estava silenciosa quando Dave a deixou na porta. Ela entrou e


descobriu que havia apenas Tina e Spencer agora. Tina dormia no
sofá, a cabeça no colo de Spencer.
— Ei — disse Sara em voz baixa.
— Oi — disse ele. — Você ficou fora até tarde. Vou liberar o sofá.
Tina parecia tão em paz. Era quase uma pena tirá-la dali. Ela
observou Spencer afastar um cacho ruivo do rosto dela. Ele se
inclinou para a frente para falar no ouvido de Tina.
— Temos que ir para a cama agora — disse ele, e ela se agitou e
concordou. Tina acordou com facilidade, se levantou sem oscilar. Ela
se espreguiçou e se virou.
— Ah — disse ela. — Oi, Sara. Boa noite.
— Boa noite — disse Sara.
— Já te encontro, um minutinho — disse Spencer para Tina, que
fez que sim com a cabeça.
Havia evidências da noite deles por toda a sala de estar. Caixas de
pizza, garrafas de cerveja, pilhas de copos plásticos.
— Foi mal por isso — disse Spencer.
— Não tem problema.
— Me dá só um minuto.
Ele deu a volta na sala, limpando as coisas, e Sara se juntou a ele.
Ela jogou cerveja quente ralo abaixo, passou água nos copos. Ao
jogá-los no lixo reciclável, Sara se deu conta de que havia se
preocupado por nada. Ela não era como o pai. Não era uma garota
de dezenove anos misturando Coca-Cola e uísque.
Pensou nas cinco canecas de Lily, equilibradas numa bandeja. A
caneca que havia escolhido e segurado.
Como era especial aquele primeiro gole, e cada gole que vinha em
seguida.
Como aquilo a havia aquecido e reconfortado, feito com que ela
sentisse que era bem-vinda.
Era isso que Sara fazia.
A casa estava decente de novo.
— Resolvo o resto amanhã — disse Spencer, e Sara concordou.
Estavam juntos na cozinha, e ele não estava se virando ou indo
embora. Então ela perguntou:
— Você se lembra da Annie?
— Lembro — disse ele. — Só um pouco, mas lembro.
Havia algo no jeito dele de estar parado ali que lhe dizia que
estivera esperando por isso. Ele estava imóvel, quase solene.
— Você sabe o que aconteceu? — perguntou ela.
Ele se apoiou na bancada.
— Sei.
— Por que não me contou?
Ela sentiu os olhos dele buscando os dela, tentando lhe dizer algo.
Por fim, ele sorriu com tristeza e disse:
— Eu tentei te contar sobre a vida aqui, mas você nunca quis
ouvir.
Ela pensou no retrato emoldurado quando ele era tão jovem. Os
comentários sobre Johnny Cash e as noites de pôquer. Ele sempre a
convidou para entrar, mas ela não quis ver.
— Não sei o que os seus amigos te contaram — disse Spencer. —
Mas o papai e esses caras... eles não mataram a Annie. Você sabe
disso, não sabe?
Ela balançou a cabeça.
— Ela quis drogas — disse Spencer. — Pagou por elas.
Sara se viu na casa de Eugene, tirando a roupa. Trezentos dólares
em dinheiro em suas mãos, exatamente a quantia que tinham
acordado.
— Ele poderia ter dito que ela fosse para casa. Poderia ter
pensado: “Essa é a melhor amiga da minha filha. Talvez seja melhor
não fazer isso.”
— Pois é — disse Spencer. — Ele poderia ter feito isso. Teria sido
melhor.
Não era o que ela esperava ouvir. Ela se deu conta do quanto
havia se preparado para se decepcionar, sem jamais saber quando ele
agiria como o pai deles. Mas ali estava Spencer, ainda ele próprio.
Ele estendeu a mão e pegou o braço dela, virou-o para colocar a
tatuagem para cima.
— Nunca foi assim — disse ele. — Nunca fomos só você, mamãe
e eu.
Ela fez que sim com a cabeça, os olhos se enchendo de lágrimas.
— Eu sei. — A omissão havia sido uma mentira que ela vinha
contando para si mesma, uma mentira que nunca a fizera se sentir
melhor.
— Ele cometeu muitos erros. Ele estava todo fodido. Você sabe
que eu sei disso... A gente nem estava se falando no fim. Mas ele não
era um monstro.
— Não sei se isso é verdade. — Estava ficando difícil respirar. —
Eu pedi ajuda a ele. Ele fez um desenho para mim. Era da...
— Eu sei do desenho. Não precisa descrever.
— Como se não fosse horrível o bastante o que ele já tinha feito.
— Ela arquejou tentando respirar, não conseguia encher os pulmões.
— Como se já não fosse terrível ele ter deixado outra pessoa que eu
amava morrer. Ele precisou me provocar.
— Não — disse Spencer. — Não, não, escuta. Você entendeu
errado.
Ele colocou as mãos nos ombros dela, deixou-as ali até ela
conseguir respirar de novo.
— Olha só — disse ele. — Ele sabia que você ia descobrir um dia.
Ele sabia que você nunca perdoaria ele. Ele estava deixando você ir
embora. Não era uma provocação, Sara. Sara, olha para mim.
Ela olhou. O rosto do seu irmão com tanta certeza e gentileza.
— Nunca foi uma provocação — disse ele. — Foi uma confissão.
Dois dias se passaram. Na terceira manhã, ela se levantou e foi para
a cozinha.
Abriu a geladeira, pegou uma caixa de ovos. Quebrou-os numa
tigela.
Spencer entrou na cozinha quando ela havia terminado de servir
os ovos nos pratos antigos da mãe e preparado uma xícara de café
para cada um. Eles se sentaram juntos e comeram.
— Precisamos falar sobre o que vai acontecer agora — disse ela.
Ele baixou o garfo.
— Certo.
— Não quero fazer isso. Não quero empacotar esse monte de
coisas. Prefiro pagar para outra pessoa vir e levar tudo.
Ele pegou o garfo de novo. Não disse nada.
— Vamos conseguir algum dinheiro com a venda da casa. Poderia
pagar por uma faculdade comunitária, se você quiser tentar isso. Ou
um curso técnico. Ou um apartamento só seu.
Ele mastigou. Ela esperou. O silêncio se estendeu. Ela sentia um
aperto na garganta, sabendo o que viria em seguida. Não estava
pronta para ouvir ainda.
— O que você se lembra do dia em que eu fui embora? —
perguntou ela.
Ele deu um gole no café, baixou a caneca, olhou para ela.
— Eu lembro que estava indo de bicicleta para a casa do Henry,
como sempre, depois da aula. E você parou num carro que eu nunca
tinha visto antes. Com um cara que eu nunca tinha visto. E você me
disse que tinha que ir.
— O que mais?
— Eu lembro que você estava com uma aparência péssima. Tipo,
assustadora de tão ruim. Eu nunca tinha visto você tão mal assim.
Ela estava esperando por uma coisa. Sara precisava saber. Sentia
um aperto tão forte na garganta que não achava que seria capaz de
arrancar as palavras, mas, de alguma forma, conseguiu.
— Você lembra que eu pedi que você viesse comigo?
Spencer fez que sim. Ele olhou pela janela. A sequoia, ainda lá,
depois de tudo.
— Lembro, lembro sim. Você pediu algumas vezes.
— Por que você não veio?
Lágrimas corriam pelo rosto dela agora, e Spencer pousou a mão
sobre as próprias lágrimas, secou os olhos. Deu de ombros, a
respiração entrecortada.
— A gente era só criança — disse ele. — Como é que qualquer
um de nós ia saber o que fazer?
Ela nunca havia pensado que seria perdoada. Não sabia se
merecia.
— Não foi terrível para mim depois disso — disse Spencer. —
Quer dizer, você cuidava melhor de mim, mas o papai deu um jeito.
Comida congelada para esquentar no micro-ondas, o que fosse, sabe.
Não tinha mais ninguém para cortar os cabos dos meus morangos,
mas ficou tudo bem.
Ela sorriu. Ele lembrava.
— Você quer ficar — disse ela.
— Eu só fui embora porque o papai e eu não nos dávamos. Mas
os meus amigos estão aqui. A Tina está aqui. Los Angeles é legal,
mas a minha casa é aqui.
Não era o que ela queria, mas entendia. Ele era o irmão dela, e ela
o amava, e a vida dele pertencia a ele mesmo.

Naquela noite, logo depois das seis, Sara revirou a gaveta de


quinquilharias atrás das chaves da caminhonete do pai. Encontrou.
A porta rangeu ao abrir. Ela sentiu o cheiro de ferrugem, guimbas
de cigarro e a colônia do pai, o único cheiro dele de que ela gostava.
Subiu no banco, lembrou como ele lhe ensinara a dirigir. Descendo
as estradas na sombra das árvores. O braço dele balançando para
fora da janela, perfeitamente confortável.
O cheiro estava velho, agora lhe dava náusea. Abriu a janela.
O Cadillac de Dave estava estacionado em frente ao Stick and
Poke quando ela chegou. Saiu da caminhonete e cruzou o
estacionamento.
Viu os olhos dele se iluminarem ao vê-la, cor de mel e grandes. Se
Annie tivesse crescido, seu rosto se pareceria com o dele agora. Sara
tivera razão em manter distância. Estar ali lhe partia o coração.
— Vem dar uma volta comigo — disse ela.
— Agora mesmo — disse Dave. — Já estou fechando.
Mas, quando saíram, ele encarou a caminhonete no
estacionamento de olhos semicerrados.
— Eu dirijo — disse ele.
— Não — disse ela. — A gente precisa da caminhonete.
— Sara. Não tem a menor chance de eu entrar nesse carro.
Ela queria convencê-lo. Mas lhe lançou outro olhar — o maxilar
duro, os olhos furiosos —, e entendeu que ele estava falando sério.
— Tá bom — disse ela. — Está bem.
Ela havia fugido, tinha ficado dez anos fora. Não passou por um
velório nem viveu numa casa enlutada.
— Desculpa — disse ela. — Não pensei direito no que estava
fazendo.
— Não — disse ele. — Não pensou não.
— Foi mal.
Ele acenou com a cabeça.
— Você me segue?
Dave a seguiu estacionamento afora no próprio carro, seguiram
pela rua principal. Viraram à direita e se aproximaram do rio. Ela
estacionou na quadra de Eugene, deixou espaço para Dave
estacionar atrás dela.
— O que é isso? — perguntou ele da janela. — Um tour por
homens péssimos?
— Algo assim.
Ele suspirou, foi até a porta do carona.
— Que se foda — disse ele, e entrou. Fechou a porta e inspirou.
Abriu o porta-luvas e mexeu nas coisas dentro, passou a mão pelo
painel. — Certo — disse ele, agora calmo. — A caminhonete de Jack
Foster.
Ela fez que sim com a cabeça. Não conseguia impedir o corpo de
tremer.
— Ei — disse Dave. Ele pegou a mão dela, e suas mãos não eram
nada parecidas com as de Annie. Ele tinha palmas amplas e quentes,
e ela se permitiu ser confortada.
— Eu estava apaixonada pela sua irmã — disse Sara. — Você sabe
disso. Eu ainda estou apaixonada por ela.
É
— É, eu sei. Aquele dia em que a gente se dividiu para encontrar
a Annie? Eu ainda me lembro da sua cara. O jeito como você ficou
parada enquanto a gente falava. Como você disse que ia voltar para
a floresta. Eu tinha certeza de que, se ela estivesse viva, era você
quem ia trazer a Annie de volta.
— Eu também tinha certeza — disse Sara. — Mal pude acreditar
quando ela não estava lá.
— A vida é só tristeza — disse Dave. Ele fungou, limpou os olhos
na manga. Pigarreou. — Tá bom, então me diz. O que a gente está
fazendo aqui?
— É só o Eugene que falta, não é?
— É — disse Dave. — O resto deles já morreu ou está preso.
— O que você faz quando vê o Eugene?
— Mudo de calçada.
— Eu fico me lembrando daquela tarde na casa dele, antes de
fugir. Ele deixou a Annie morrer e ainda quis mais. E a gente nem
sabe o que mais aconteceu com ela naquele dia. Me desculpa mesmo
por dizer isso, mas...
— Ah, pode acreditar — disse Dave. — O meu cérebro fodido já
imaginou de tudo.
— Ele não pode simplesmente se safar.
— Você quer confrontar ele?
— Não — disse Sara. — Não quero confrontar o Eugene. Quero
enfiar essa caminhonete no deque dele.
Dave arregalou os olhos.
— Ele vai saber que foi você.
— Bom, vai.
— Isso não te preocupa?
— Ele não vai procurar a polícia. Depois de tudo o que fez? Vou
largar essa caminhonete ladeira abaixo, e ele pode limpar se quiser.
Ou pode olhar para a caminhonete do amigo dele destruída toda vez
que sair de casa e ser lembrado de tudo.
Dave a encarava.
— Você está falando sério — disse ele.
— Claro que estou falando sério.
— Tudo bem então. Vamos fazer isso.
Ela dirigiu a caminhonete até o alto da quadra. Havia vários
carros estacionados no cascalho da entrada das garagens e na rua. A
noite começava a cair, mas não estava escuro ainda, e Sara e Dave
seriam fáceis de identificar se alguém se importasse. Mas por que
eles iriam se importar? Qualquer um que conhecesse Eugene saberia
que ele tinha merecido. Qualquer um que conhecesse Sara — a
garota que havia perdido a mãe, a mãe cujo marido arrumava drogas
para ela, a garota que tinha desaparecido e enfim voltado para casa
— faria vista grossa.
A casa do lado da de Eugene era alugada para períodos de férias.
Maçaneta com código na tranca da porta. Garagem vazia. Perfeita
para o propósito deles: um caminho fácil para empurrar uma
caminhonete, espaço suficiente para ajustar o ângulo. A porta de
Eugene estava aberta, apenas a porta telada fechada. Ele
provavelmente ouviria tudo. Ele sairia e os veria depois da batida.
— Pronto? — perguntou ela.
— Claro — disse Dave.
Ela soltou o freio de mão e eles se meterem atrás do carro e
empurraram. Devagar, o carro se moveu, e então começou a ficar
fácil empurrar, e as rodas se moviam sem a ajuda deles. A porta de
tela se escancarou num baque, Eugene correu para fora para
testemunhar. A caminhonete descendo pela beira da entrada,
estranhamente silenciosa, antes de atropelar os cepos e as moitas,
esmagando seu deque no meio. A caminhonete afundou na água.
Descansou. Afundou mais, até que boa parte dela estivesse
submersa, mas a traseira ainda estava para fora.
Eugene ficou boquiaberto. O rosto ruborizou. Sara pensou na sala
de estar dele naquela tarde. A luz inclinada pelas venezianas. Como
tinha parecido que o piso se inclinara sob seus pés.
Agora, abaixo dela, o chão estava parado.
Estavam a metros de distância, mas Eugene se virou para eles,
reconhecendo-os. Do outro lado, Sara conseguia ver como ele
envelhecera, sua barriga mais caída, o cabelo ausente. Seus olhos
eram venenosos, mas ela e Dave haviam crescido. Viviam suas vidas
apesar de tudo o que ele tinha feito. Estavam em pé, ombro com
ombro, cada um deles com vinte e oito anos. Poderiam quebrá-lo ao
meio com suas mãos, rasgá-lo com os dentes.
Mas isso teria que ser o suficiente.
Alguns vizinhos, atraídos pelo barulho, foram para as varandas e
ficaram olhando.
Enfim, Eugene disse:
— Que desperdício de uma caminhonete em perfeito estado.
Sara deu de ombros.
— Não quero ficar com ela.
As sequoias se erguiam acima deles. O rio corria abaixo deles. O
deque onde Sara costumava se deitar com sua mãe em dias quentes
de verão agora era uma confusão de madeira quebrada. A
caminhonete que seu pai dirigia pela cidade, destroços de metal
submersos.
Não restava mais nada a fazer.
Juntos, Sara e Dave seguiram a pé o restante da quadra
arborizada, passando pelos espectadores que já haviam dado as
costas para tanta coisa ao longo de suas vidas. Que dariam as costas
de novo, ela sabia, a esse evento menor.

— Eu te levo para casa — disse Dave.


— Está tudo bem. Quero andar.
— Vai escurecer logo.
— Eu sei.
— Tá bom. — Ele abriu a porta e entrou. — Ô Sara — disse ele. —
Eu precisava disso. Não sei por que não fiz algo assim anos atrás.
Ela fez que sim com a cabeça. Levantou a mão para acenar em
despedida.
Ele ligou o motor do Cadillac, acenou também e foi embora.
Depois que ele se foi, ela partiu logo atrás pelas esquinas da
vizinhança até a River Road. Lá estava a placa que apontava para a
Armstrong Woods.
Poderia ir andando até lá, ela se deu conta. E então ir até lá
pareceu a única coisa que poderia fazer.
Três quilômetros na leve subida da rua, ela caminhou. Passou
pela velha cafeteria e pela livraria até estar oficialmente fora da
cidade. Seus pés estavam cansados, mas não importava. Ela estava
indo para casa.
Chegou ao posto da guarda florestal, não precisava de mapa. E ali
estava — o momento em que o ar mudava. Sara inspirou o mais
fundo que pôde. Queria engolir aquilo, sentir a floresta dentro dela.
Seguiu pela trilha mais estreita. Subiu e subiu, tateando pelo escuro,
descansando em alguns momentos para recuperar o fôlego conforme
as horas se passavam.
Acima, a lua brilhava através dos galhos, e ela conseguia ver
melhor. Por mais que estivesse fora da trilha, queria adentrar mais
na floresta, queria que o musgo se espalhasse pelas árvores caídas.
Queria a gosma grudenta de uma lesma na palma da mão. Queria
samambaias no rosto e terra na pele. Andou e andou. E ali, diante
dela, havia um aglomerado de sequoias jovens, em volta de um
antigo tronco vazio. Lar, pensou ela, e entrou na clareira.
Cada parte sua doía de exaustão. Deitou-se numa cama de
carumas, encontrou uma superfície lisa e suave perto do tronco.
Descansou a cabeça em cima dele. Abraçou o próprio corpo para se
aquecer. Fechou os olhos, sentiu a bochecha de Emilie em seu peito,
sentiu a lesma deslizando pela sua barriga e pela de Annie, viu a
trilha brilhante que deixava nas peles nuas. Imaginou as duas ali.
Annie viva, ainda com dezesseis anos, dizendo: “É claro que estou
bem. Por que você ficou preocupada?” O cabelo escuro de Emilie
caindo pelas costas com suavidade, aproximando-se para um beijo.
Sara foi erguida para os ombros do pai, ouviu a correnteza do rio,
sentiu-se poderosa e destemida. “Vem cá”, disse Emilie e estendeu os
braços. “Estamos com você”, disse Annie. “Estamos aqui.” E Dave a
levou para passear de carro, as luzes da bola de discoteca dançando
pelo teto, e a mãe dela pegou sua mão e disse: “Eu lamento muito.
Você é perfeita. Eu devia ter te amado melhor.” O corpinho de
Spencer aninhado no seu. Grant a viu pela janela, pôs a mão sobre o
peito. E a respiração de Sara se estabilizou, seu corpo cedeu. Pegou
no sono no meio da floresta.
YERBA BUENA

Na noite depois que Sara foi embora, Emilie sonhou que estava em
Guerneville. Andava por uma longa rua no escuro, procurando por
Sara. Viu a luz acesa numa casa, viu o carro de Sara estacionado em
frente. Seguiu uma trilha cheia de musgo até a porta. Ficou imóvel.
Planejou bater à porta, mas mudou de ideia.
No sonho, ela dirigiu até um hotel de beira de estrada. Tirou a
roupa e nadou no meio da piscina. Ela boiou, olhos abertos para o
céu escuro.
O tremor de uma caminhonete cortava a noite — muito longe, e
então mais perto. Faróis, reluzentes, brilhando cada vez mais. Estava
sozinha e boiando na água. Precisava se mexer, mas não conseguia,
precisava gritar, mas não saía nenhum som. E então a caminhonete
estava perto dela, e sua boca estava escancarada, e começou a entrar
água.

Acordou assustada e tremendo, saltou do colchão como se ele


pudesse afogá-la.
Estava no meio da noite. Lampejos do sonho a sufocavam. A casa
de Sara. Piscina escura e céu escuro. Faróis. Água entrando na sua
boca.
Pegou um suéter da gaveta, colocou um jeans, enfiou o celular no
bolso. Apressou-se ao descer a escada em curva. Catou as chaves e a
carteira, calçou os sapatos no hall. Então estava fora, dentro da noite
silenciosa, entrando no carro e ligando o motor.
Ela parou na Ocean Avenue, o corpo tremendo. Não havia parado
de tremer desde a manhã anterior, não importava o quanto tentasse
se acalmar.
Sabia como a coisa funcionava, já havia passado por isso. Alguém
que ela amava a deixaria. Seu trabalho era ficar quieta e longe do
caminho. Esperar, não precisar de nada, confiar que voltariam.
Todas aquelas noites em que Jacob desaparecia enquanto ela
dormia, e então reaparecia nas manhãs no restaurante, ou nas noites
com a batida à porta.
Todos os anos em que pensara que Colette estava perdida para
sempre, até a manhã em que ela apareceu na sua porta com todos os
seus pertences.
A tarde em que ela acenou para se despedir do pai da casa da sua
avó, com a certeza de que tudo havia acabado, mas então se deparar
com ele de novo, meses depois, mexendo gumbo no fogão.
Até mesmo Sara, depois daquela primeira vez, que havia atraído
o olhar de Emilie do outro lado do restaurante, que encontrou um
momento para falar com ela a sós, que havia lhe dito que a queria de
volta.
Emilie seguiu os faróis pelas ruas de Long Beach até a
autoestrada 405, sentido norte.
O pai de Sara estava morto. Ela tinha questões a resolver. Não tem
nada a ver comigo, pensou Emilie. Mas, cada vez que dizia isso a si
mesma, os tremores pioravam.
Sara havia andado pela casa, contado sobre a sua vida para
Emilie, e por fim havia se enroscado no colchão, pegado no sono
profundamente. Emilie havia observado a respiração de Sara,
estável, seu peito subir e descer, havia sentido um amor tão vasto
que a apavorava. Precisava que Sara ficasse.
Mas seu trabalho era esconder o que precisava, para que, assim,
Sara estivesse livre para partir. Dessa forma, Sara não teria que
pensar nela ou se preocupar com ela, poderia fazer o que tinha que
fazer sem Emilie no caminho.
Para onde ela estava indo? Não para Russian River. Ela nem sabia
onde Sara morava. As estradas do seu sonho não eram reais. A casa
não era de Sara. Ela não estava se afogando de verdade.
Deixou a autoestrada, dirigiu algumas quadras e estacionou.
Sacou o celular do bolso. As mãos ainda tremiam. Eram duas da
manhã. Ela queria acordar Sara.
Mas a ligação foi direto para a caixa postal, e ela se lembrou de
Sara dizendo que não teria sinal no celular. Ela deixaria uma
mensagem, então, mas o que diria? Houve um sinal, sem tempo para
pensar.
— Eu me sinto egoísta por te ligar assim, com tudo pelo que você
está passando. Espero que entenda. — O coração acelerado, um nó
na garganta. — Eu não soube o que dizer quando você estava indo
porque tudo o que eu queria era que você ficasse. Eu achava que
precisava agir como se não tivesse problema você ir embora, e tudo
bem você não precisar de mim, mas eu quero que você precise de
mim. Eu não deveria estar dizendo nada disso agora... eu sei. O seu
pai morreu, você está de volta a um lugar que odeia, você tem um
monte de coisas horríveis para fazer e aqui estou eu toda
atrapalhada, mas não posso continuar sem te dizer isso. Tive um
pesadelo péssimo. Eu me levantei e entrei no carro como se pudesse
dirigir até você, como se soubesse onde você está ou se você sequer
ia me querer. Você falou sério quando disse que eu podia ir? Achei
que estava dizendo isso pelo meu bem, como se conseguisse ver que
eu estava com medo de ficar para trás. Eu estou com medo. Odeio
isso. Odeio você ter ido embora de carro ontem. Quero que você
precise de mim, mas você está bem sozinha.
Ela mal reconhecia a própria voz — alta e queixosa —, mas falar
cada palavra era um alívio. Por mais vergonhoso que fosse, por mais
patética que soasse, Sara sentia o desvelar de si. Como tirar a roupa
na noite em que foram para casa juntas pela primeira vez.
Ali estava ela, ela por inteiro.
— Eu me esforço tanto para ser boa. Para ser fácil de lidar. Para
não ser um problema. Mas talvez você não se importe se eu for um
problema. Se eu foder tudo e fizer tudo errado. Se eu me preocupar
comigo mesma quando você já está passando por tanta coisa. Ou
talvez você vá ouvir isso e pensar que sou feia, carente e egoísta. Não
sei. Eu queria poder pegar o carro e ir até você, mas não sei onde
você está, nem quando vai ouvir isso. Provavelmente, você não vai
receber essa mensagem até terminar tudo. Mas, quando você
terminar... por favor... volta pra mim.
Ela havia terminado de falar, mas não queria desligar. Segurou o
telefone, ficou sentada descansando o peso no banco, olhou ao redor.
Descobriu que estava no Sunset Boulevard, em Silver Lake. Sua
antiga casa ficava a só uma quadra de distância, o mercadinho
mexicano logo abaixo.
Ela deu uma risada.
— Eu dirigi até o meu apartamento antigo — disse ela. — Eu não
queria, só me meti na autoestrada, mas acabei aqui. — Ela conferiu o
espelho retrovisor, avançou um pouco na quadra para ver melhor. —
Ah — disse ela, a respiração presa na garganta. — Tem um
hotelzinho do outro lado da rua. Durante todo o tempo em que
morei aqui, tinha esse letreiro de “temos vagas” que sempre ficava
aceso. Mas hoje não tem vagas. Nunca vi a placa desse jeito antes. É
incrível. Eu... — Ela não sabia o que mais dizer. Precisava desligar ou
a ligação seria cortada. — Eu queria que você estivesse aqui comigo
— disse ela. E então encerrou a ligação.
Ficou sentada sob o semáforo. Em sua janela antiga, uma cortina
estava fechada. O letreiro de não temos vagas brilhava
constantemente, sem piscar.
Quando olhou para as mãos, elas não estavam tremendo.

De volta em casa, assim que o dia amanheceu, ela ligou para Randy.
— A casa está pronta — disse ela. — Preciso ganhar o suficiente
nessa venda para comprar uma para mim e outra para reformar. E
preciso de dinheiro suficiente para investir para a Colette também.
A luz do sol preenchia o quarto, lançando-se por cima do colchão
no piso e em sua cômoda simples, aquecendo a casa que nunca
deveria ser dela — ao menos não para sempre. Não podia pagar por
ela — não teria nada para um projeto seguinte, não teria nada para
Colette, teria que arrumar um investidor para continuar a reformar
casas. E, mesmo se fizesse isso, não faria sentido nenhum ter tanto
espaço para si.
Ainda assim, ela sentia que merecia aquele tipo de beleza se a
desejasse, em especial se fizesse para si mesma. Não se sentia
deslocada ali. Seus avós sabiam quanto valiam e continuaram indo
atrás. Usaram smoking e roupas de gala apesar de serem rechaçados
de restaurantes e empregos. Escreveram cartas de amor no meio de
uma guerra. Dançaram por corações partidos e mudanças.
Construíram vidas abastadas a partir do pouco que lhes foi dado,
posaram na frente de suas casas quando o obturador da câmera
clicou.
Ela continuaria o que tinham começado. Faria do seu próprio
jeito.
— Conheço um consultor financeiro — disse Randy. — Vou te
passar o número dele. Para as casas, você quer comprar à vista ou
pegar empréstimos?
— Empréstimos — disse ela. — Não estou louca.
Ele riu.
— Certo, bom saber. Vou falar com o corretor; vamos dar um
jeito. Não vai ser um problema.
— Ótimo — disse ela. — Então vamos pôr à venda.
Desceu a escada e preparou café como sempre. Levou as canecas
até a sala de jantar, colocou a de Colette ao lado do computador.
— Tenho uma coisa para falar com você — disse ela.
Colette ergueu a cabeça.
— O que foi?
— A casa.
Colette correu os olhos pelo cômodo e Emilie acompanhou seu
olhar. Cada acessório estava no lugar, cada maçaneta e cada vidraça.
A tinta estava brilhante e limpa ao redor de trabalhos intricados.
Tudo reluzia.
Colette sorriu.
— Ah — disse ela. — Terminou.

— O que você vai fazer? — perguntou Emilie na caminhada delas à


beira-mar mais tarde naquela manhã. — Pode ficar comigo de novo
depois que eu encontrar um novo lugar.
— Na verdade... — Colette deu um passo para o lado na pista de
caminhada para prender o cabelo. — Pode ser hora de ir para São
Francisco. Thom andou me perguntando.
— Por que você esperou?
Colette deu de ombros.
— Eu queria ir até o fim — disse ela. — Com você. Foi uma
aventura, não foi? Eu adorei fazer isso.
— Foi — disse Emilie. — Foi, sim. — Ela pensou na sensação de
esbarrar em Colette quando moravam em bairros vizinhos. A
conversa fiada dolorosa, as gentilezas forçadas de surpresa. Nunca
mais queria isso. — Vou sentir muito a sua falta — disse ela. — Mas
estou feliz por você também.
— Também vou sentir saudades, mana.
Depois, durante a tarde, Emilie estava trabalhando no jardim
quando sentiu uma batidinha no ombro.
— Tira os fones — dizia Colette de cima.
Emilie tirou uma luva enlameada, pausou a música.
— Tenho o plano perfeito — disse Colette. — Vou levar você para
o Yerba Buena. Fiz uma reserva para as nove.
Emilie queria rir. Yerba Buena. É claro.
Ela se perguntou que efeito o lugar poderia ter sobre ela se
atravessasse suas portas naquela noite. Galhos cortados e flores. Café
da manhã na mesa de Jacob. O primeiro vislumbre de Sara, o
primeiro olá delas, o momento em que seus olhos se encontraram e o
tremor que correu por ela. E, antes disso, com seus pais e sua irmã,
quando ela ainda acreditava na família deles, por mais que tivessem
falhas, como algo tênue. E Claire. Claire.
— Não quer ir? — perguntou Colette.
— Não, eu quero — disse Emilie. — É só que... Jacob Lowell. A
gente teve um caso. Por um tempo.
— Sabia!
— Então por que não perguntou nada?
— Achei que você não queria que eu soubesse. Mas a gente não
precisa ir lá hoje. A gente pode pegar uns Super Mex, ver um filme
aqui fora.
Mas fazia sentido ir. Parecia a coisa certa a ser feita. Já tinha
passado tempo suficiente, não tinha? Todo mundo seguiu em frente.
Não havia nada lá para ter medo.
— Não — disse ela. — Vamos lá.
Colette as levou de carro por West Hollywood, descendo o Sunset,
passando o Chateau Marmont. Lá estava o Yerba Buena, grande e
reluzente na esquina. Pareceu a coisa certa estacionar a algumas
quadras de distância e ir andando. A coisa certa entrar pelas cortinas
pesadas, esperar no meio das palmeiras em vasos sob o teto com pé-
direito alto.
— Colette Dubois — repetiu a recepcionista, analisando a lista. —
Aqui! Perfeito. Por aqui. — Mas, ao passarem pelo salão de jantar da
frente, Emilie viu Jacob de relance, sentado com a família. Não se
virou para olhá-lo enquanto a recepcionista as conduzia, passando
pela mesa deles para terminarem, felizmente, no salão de jantar
menor mais perto dos fundos.
— Você viu? — disse Emilie quando a recepcionista foi embora.
— Vi. Tem certeza de que não tem problema?
— Tenho — disse Emilie. — Acho que está tudo bem. Vamos só
curtir o jantar.
A sensação de estar de volta era boa. Ela pediu um Yerba Buena e
Colette pediu uma tônica com limão. Quando os drinques chegaram
e Emilie deu um gole, tinha sabor de algo desconhecido.
Esperava que Sara voltasse. Ainda queria conhecê-la, da forma
mais completa que pudesse.
Pediram azeitonas e pão, uma salada, duas porções de ragu.
— Vou ao banheiro — disse Emilie, e Colette fez que sim. Emilie
atravessou o salão de jantar até os banheiros, mas, quando saiu,
Jacob a estava esperando.
— Pode vir comigo? — disse ele, e a guiou até as portas da
cozinha, para dentro da câmara de refrigeração. — O que você está
fazendo aqui?
— Não achei que você fosse estar aqui.
— Deus do céu — disse ele. — Você está maravilhosa. Mas vou
ter que pedir que não volte mais aqui.
— Tá bom — disse Emilie. — É só que... eu realmente sinto falta
da comida.
Ele jogou a cabeça para trás e riu.
— Você se lembra do Zack? Ele abriu um restaurante em La
Cienega. Roubou metade dos meus pratos.
— Ele faz o ragu?
— Faz, aquele corno.
— Obrigada pela dica.
— Disponha.
Ele deu um passo atrás para vê-la antes de partir. Ela queria lhe
contar que tinha encontrado um amor, que tinha se apaixonado, que
cozinhava com frequência agora.
Ela se perguntou se qualquer parte disso era visível.
— Você ainda faz arranjos de flores?
— Não — disse ela. — Mas eu planto umas no meu jardim.
— Então você se mudou.
O conjugado minúsculo voltou à sua mente, as paredes sujas e
janelas nuas.
— Você achava que eu ainda morava lá?
— Eu não fazia ideia. A única coisa que soube de você nos
últimos anos é que uma vez você foi para casa com a minha
bartender.
— Alguém me dedurou.
— Bom, o restaurante é meu.
Ela fez que sim com a cabeça.
— Justo.
— Não te culpo. Todo mundo queria dormir com ela.
— Eu me apaixonei por ela — disse ela. — Ainda estou
apaixonada por ela. — Ela engoliu o choro, a mão correu para a
boca. — Olha só para mim. — Ela riu. — Anos depois e ainda estou
chorando.
Ele secou uma lágrima da sua bochecha. Será que ele sempre foi
tão gentil?
— Tenho que ir — disse ele. — A minha família...
— Eu vi.
— Bom te ver — disse ele. — Quer dizer, é apavorante te ver...
estou sentindo uma pontada no estômago agora... mas é bom
também. Você pode esperar aqui uns minutinhos? Não quero que
ninguém veja a gente junto.
Estavam cercados por queijo, leite e creme de leite, pedações de
carne, longas folhas de massa. Ela estremeceu de frio, conseguia ver
a respiração condensando no ar. O que estava fazendo, parada ali no
frio?
— Não. — Ela riu. — Não vou esperar numa geladeira. Você pode,
se quiser.
Ela destravou a porta pesada, entrou no calor da cozinha.
Passou pelos lavadores de pratos, pelos cozinheiros e pelos
garçons, pelo bar e pela curva do corredor, e então pela porta que
dava para os salões de jantar. Havia uma família na mesa favorita da
sua família, a número 48. Ela pensou em Claire, em seu terninho e
em suas joias brilhantes, perguntando a Emilie o nome das flores.
Viu o céu escuro pelas janelas. Viu a lua e as nuvens cinzentas, a
calçada por onde ela e Sara andaram juntas, na noite em que ela
descobriu como era ter certeza de alguma coisa. Viu o tremeluzir
dourado das velas nas mesas, as flores brilhantes dos buquês. E,
enfim, do outro lado do restaurante, Colette. Vendo-a e acenando.

A casa da Ocean Avenue foi colocada à venda numa quarta-feira de


manhã. Saiu do mercado na sexta-feira à tarde com um sinal tão alto
que Randy apareceu pessoalmente para dar as notícias a Emilie.
— O agente do comprador quer saber se você está trabalhando
em outras propriedades — disse ele. — Ele disse que nunca viu uma
restauração tão boa.
— Bom — disse Emilie. — Essa é uma ótima notícia.
Mas, primeiro, ela queria encontrar uma casa para ela própria,
para ficar.
Randy a levou por Long Beach e por Los Angeles em sua BMW.
Os dois reviraram as listas, tinham uma agenda longa o suficiente
para preencher um dia inteiro, organizada por vizinhança.
As casas de Long Beach foram as primeiras, mas, apesar de
Emilie adorar sua cidade natal, notava que começava a pensar nos
seus avós. No quanto eles tinham viajado, como tinham se mudado
de lugar para lugar até encontrar a casa que parecesse a mais
adequada. Long Beach era familiar demais, Emilie se deu conta,
parada no hall de uma casa com pé-direito alto e pisos originais —
uma casa adorável de verdade que ela não queria ter. Ela queria
estar em outro lugar.
Voltaram para o carro, seguiram a costa para o norte. Rolling
Hills oferecia casas brancas que pareciam ranchos com vista para
cânions. Propriedades com cavalos e piscinas. Exótico, mas tão
silencioso, tão longe de tudo.
Em Hermosa e Manhattan Beach, visitaram casas pequenas e
modernas com pequenos jardins na frente, a poucas quadras da
praia. Em Venice, uma casa de estuque de sessenta metros
quadrados saindo da Abbot Kinney a deixou encantada, mas ela
soube imediatamente que queria mais: mais janelas, mais quartos,
mais espaço para encher de tapetes e mais paredes para pendurar
arte. Ela precisaria de um lugar que a consolasse cada vez que
terminasse uma casa e a colocasse no mercado. Um lugar que
parecesse um sonho ao qual poderia retornar, noite após noite.
Seguiram em frente.
Viram alguns lugares em Santa Monica.
Passaram de carro por um deles sem entrar.
Foram para leste, afastando-se da praia.
O trânsito ficou mais lento em Pico, e Emilie deu uma olhada na
lista de endereços restantes. Uma delas em Beverly Hills, uma logo
na saída da Sunset Strip. Algumas poucas em Hollywood e diversas
em Silver Lake e Echo Park.
Esgotaram as conversas sobre os pais de Randy e Pablo e a prima
Marisol e sobre como os negócios da família Santos andavam e se
um dia se aposentariam. Falaram do divórcio de Lauren e Bas e de
como Colette e Thom estavam de férias em Tahoe naquele momento,
onde Emilie tinha certeza de que Thom faria o pedido de casamento,
em frente a um lago brilhante em algum lugar, um anel de
diamantes no bolso. E agora estavam em silêncio, o rádio ligado,
atravessando West Hollywood. Olharam mais algumas casas, uma
das quais parecia quase perfeita. E então voltaram para o carro e
viraram à direita no Sunset Boulevard. O trânsito se arrastava.
Emilie olhou pela janela.
Lá estava o Yerba Buena na esquina.
Avançaram. Emilie descansou a testa no vidro. Notou, diante
deles, uma loja vazia para alugar na esquina do Hollywood
Boulevard. Uma memória se agitou. O trânsito parou totalmente.
Logo em frente, um sinal ficou vermelho.
— Espera aí — disse ela, e abriu a porta.
Saiu do carro correndo, só por um instante, para olhar pela
vitrine. Pisos de taco em espinha de peixe. Uma luminária
ornamentada — cristal e bronze — imensa para um espaço tão
íntimo.
O bar de Sara.
Ela voltou correndo para o carro quando o sinal ficou verde.
— O que foi isso? — perguntou Randy enquanto pegavam a pista
da esquerda.
— Ela só me chamou — disse Emilie.
— É uma localização boa para alguma coisa. Interessada em áreas
comerciais?
— Talvez um dia — disse ela.
E então eles estavam virando a esquina no Sunset para a Laurel
Canyon Drive, subindo as montanhas, mais e mais alto, até
chegarem à Mulholland.
— Não sabia que a gente ia ver uma casa aqui — disse ela.
— Não está no mercado ainda. Uma corretora me falou dela.
Entra à venda semana que vem, mas já tem a chave e ela disse que a
gente poderia dar uma olhada.
Viraram numa rua estreita. Verdejante e silenciosa, com vista para
a cidade abaixo ao longe.
— Nunca que eu vou conseguir pagar por isso.
— Bom, é um bangalô, não uma mansão. E precisa de bastante
trabalho.
Ele parou no caminho de acesso para uma garagem e ela
vislumbrou a casa, escondida atrás de um jardim com tijolos
aparentes cobertos de musgo. Telhas verdes, janelas com painéis em
losango, palmeiras por todo lado.
Ela saiu do carro.

Naquela noite, o telefone de Emilie acendeu enquanto ela dormia.


Pela manhã, a primeira coisa que viu foi uma foto da cozinha de
Sara, enviada logo depois da meia-noite, sem nenhuma legenda.
Emilie se sentou na cama, segurando o telefone perto, dando
zoom para analisar cada parte com o máximo de clareza possível.
Viu uma pia manchada, imaginou Sara parada na frente dela.
Viu as cortinas surradas, a solidão, o luto.
Viu as samambaias e as sequoias pela janela.
Ela esperou por uma mensagem, mas não chegou mais nada.
Mesmo assim...
Emilie reconhecia uma carta de amor quando via uma.

***

No calor do verão de Los Angeles, suas pernas no couro do estofado


da caminhonete, Emilie parou em frente à vitrine familiar. Ainda
despudoradamente bela com suas plantas na calçada — mais cheias
e mais altas agora — de um verde surpreendente em contraste com a
fachada azul-escuro.
Mas a floricultura tinha mudado, Emilie notou, ao abrir a porta e
ouvir o sininho tocar. Naquele instante, dois homens estavam
saindo, então ela segurou a porta aberta. O primeiro homem
carregava uma figueira grande, os braços envolvendo o vaso, a
aliança de casamento refletindo a luz. E então o marido atrás dele
com um bebê num canguru, dormindo contra o peito.
— Obrigado — disse o segundo homem. Ele sorriu e ela notou
uma lasquinha faltando no seu dente da frente. Sentiu o peito se
encher.
— De nada — disse Emilie, e então ele foi embora.
Uma moça trabalhava na montagem de arranjos no balcão. Ela
cumprimentou Emilie, e Emilie disse um oi.
— Me avise se precisar de ajuda com alguma coisa — disse a
moça, antes de voltar ao trabalho.
Os fundos da loja foram empurrados para ampliar o espaço.
Além disso, haviam aumentado o catálogo; não era mais só uma
floricultura. Emilie passou os olhos por fileiras de cartões impressos.
Leu as etiquetas numa fileira de velas, pegou uma para sentir o
perfume.
— Emilie? — ouviu ela, e se virou para encontrar Meredith,
pousando uma planta de casa no canto.
Elas se abraçaram.
— A loja está incrível.
— Obrigada — disse Meredith. — Andei ocupada.
— Dá para ver.
— E você?
— Também andei ocupada. Na verdade, acabo de arrumar uma
casa.
— Parabéns! Onde fica?
— Em Hollywood Hills — disse ela. — Escondida atrás da
Mulholland Drive.
— Uau — disse Meredith. — Meus parabéns.
Emilie riu.
— Precisa de muita reforma — disse ela. — Mas é... estou feliz.
Meredith inclinou a cabeça e fez que sim. Emilie conseguia ver a
mente dela trabalhando.
— O que foi?
— É só que... você parece feliz mesmo. Você parece... satisfeita.
— Acho que não costumava demonstrar isso.
— Não exatamente — disse Meredith. — Estou feliz em ver
agora. Tenho que preparar esse pedido, mas você precisa de alguma
coisa? Ou só está aqui para dar uma olhada?
— Só dando uma olhada — disse Emilie.
— Fique à vontade.
Meredith desapareceu nos fundos, e Emilie se virou de novo para
as velas. Uma tinha perfume de mar — sal e coco. Outra, de floresta.
Ela avançou para uma variedade de colheres de madeira gravadas
artesanalmente. Com um estardalhaço, a garota atrás do balcão
derrubou a tesoura, se inclinou para pegá-la, levantou-se de novo.
Emilie passou pelas flores cortadas e foi até as prateleiras de
vasos. Muito mais do que a loja costumava ter. Vasos de vidro nas
prateleiras superiores, cerâmica no centro. No chão, pedra, concreto
e terracota. Todos os materiais esperando para serem preenchidos.
Eu era um vaso.
O pensamento lhe ocorreu enquanto observava a parede de
vasos. Ela havia sido um receptáculo; era verdade. Havia entrado
nessa loja, se apresentado, pedido um emprego, esperado que aquilo
a preenchesse.
E então, por um tempo, sentada com Jacob à mesa do café da
amanhã, ela havia sido uma flor. Cortada pela raiz, murchando
rápido, temporária. Existira para ser bonita e ser escolhida. Ninguém
esperava que durasse.
Mas ela não era uma flor quando fora morar com Claire, era?
Emilie foi mais para o fundo da loja. Estava na extensão agora, o
pé-direito mais alto, as filas de mesas lotadas de plantas para casa.
Água, decidiu ela. Era isso que havia sido quando estivera com
Claire. Sem forma, sem cor, mas necessária. Fizera o que tinha que
fazer. Estivera ali para a avó. Mantivera a família à tona.
Mas o que ela era agora?
Nos fundos da floricultura, havia portas de vidro modernas, que
se abriam para um pátio fechado. Atravessou a soleira. Vinhas
cresciam nos arames estendidos pelo espaço, formando um teto de
folhas e flores rosa-choque. Clientes andavam pelos mostruários de
plantas e conjuntos de mobília moderna para pátios.
— Sabe — disse Meredith, passando por Emilie com uma planta
debaixo de cada braço. — Fique à vontade para fazer o seu próprio
arranjo, se quiser. Em nome dos velhos tempos. Só avise para a
Mabel que eu disse que não tem problema.
A verdade é que Emilie tinha vindo comprar um buquê, mas
agora havia tanta coisa que ela não queria mais.
— Na verdade, vou escolher uma planta — disse ela. — Quero
alguma que cresça.
— E é exatamente por isso que eu expandi — disse Meredith. —
Você sempre entendeu. — E ela seguiu para o outro lado, entrando
de volta na loja.
Emilie examinou as árvores, as vinhas e as flores, viu-se num
canto onde plantas comestíveis ficavam expostas em prateleiras
feitas de calhas viradas para cima em apoios de madeira. Tomates,
abobrinhas e berinjelas. Rúcula e alface. Arbustos de amoras.
Variedades de mirtilos. Abaixo deles estavam as ervas: alecrim, erva-
cidreira, tomilho, verbena. E então ela viu uma plantinha com folhas
verdes delicadas. Sentiu o peito se encher, um desejo. Leu a
descrição para se certificar.

Yerba buena. “A erva boa.” Nativa da Califórnia,


especialmente em abundância na costa. Folhas aromáticas,
flores brancas da primavera ao verão.

Com cuidado, arrancou uma única folha e a colocou na boca. Era


sutil, doce e com um amargor muito suave.
Leu que crescia melhor como cobertura de solo, que suas plantas
companheiras eram o morango silvestre e a groselha florida.
Meredith também tinha essas duas na loja. Emilie as comprou,
acomodou as plantas no chão do banco do carona da caminhonete e
voltou para casa.
Encontrou um lugar para elas no jardim de imediato, na sombra
de um carvalho antigo, com galhos que se estendiam baixos e fortes.
Cavou buraquinhos com a espátula. Persuadiu as plantas a saírem
de seus vasos. Pressionou-as no lugar.

***

A yerba buena vingou.


E, quando a campainha tocou na casa nova de Emilie um mês
depois — a casa perfeita para Emilie, aninhada sob a placa de
Hollywood, hera crescendo nas laterais —, a planta havia formado
uma cobertura de solo macia e verde num trecho do jardim.
Do quarto, onde estava lendo, Emilie ouviu a campainha. Baixou
o livro e correu para a porta.
Lá estava ela. A curva das suas bochechas. As pontinhas loiras
dos cílios. Sardas minúsculas no nariz, feito pólen. O cabelo apenas
levemente mais comprido, caindo sobre os olhos. De suéter e jeans
na sua porta.
Ali estava Sara.
— Você vendeu a casa — disse Sara.
— Vendi. Como me achou aqui?
— Fui na outra casa primeiro. E aí pedi o seu endereço... para a
Colette.
— Você ligou para a Colette em vez de para mim?
— Queria ver você pessoalmente.
— Queria? — perguntou Emilie.
— Recebi a sua mensagem — disse Sara. Emilie fez que sim com a
cabeça, os olhos se enchendo de lágrimas.
— Recebi a sua também.
— Quero te contar tudo.
— Tá bom. — Mas ela já sabia. Via como Sara estava com a
postura mais ereta. Via o futuro das duas se desenrolando no céu
azul-claro.
Posso entrar?, pediria Sara, e Emilie abriria a porta e a levaria para
dentro de casa. Mostraria a ela os dois quartos, o quartinho de
visitas, a sala de jantar com vista para a cidade. Conversariam.
Tirariam a roupa. Elas se levantariam juntas de manhã, os dois
meses perdidos distantes delas.
Me explica o que você quis dizer com isso, diria Emilie, e abriria a foto
no celular, a pia da cozinha, as cortinas de algodão e as árvores.
Contaria a Sara o que havia compreendido e perguntaria se tinha
razão.
Sim, diria Sara.
E Emilie perguntaria: Você reparou na loja da esquina, antes de subir a
ladeira? Ainda está vazia.
E Sara teria reparado, é óbvio.
O bar seria íntimo, agradável. Sem cozinha. Bronze e mármore,
madeira e espelhos. Sara faria os drinques, provaria uísques
artesanais, prepararia os próprios bitters e shrubs. Emilie já conseguia
vê-la: servindo bebidas e rindo, apoiada na bancada sob a luminária
imensa.
Elas se entenderiam, dariam espaço uma para a outra. Cada uma
motivada, cada uma apaixonada.
Mas então alguma coisa daria errado. A dor dentro de Sara
aumentaria de novo. Emilie começaria a ficar em silêncio em vez de
brigar. Elas se perderiam por um tempo, e o que fariam, então? Sara
distante, atrás do irmão, lambendo as feridas. Emilie desejando algo
que fosse dela própria. Uma casa nova para reformar, talvez, e meses
perdidos nisso. Almoços com Alice e Pablo, uma viagem para São
Francisco para ver Colette, Thom e Josephine. Mãos no gesso, cabeça
nos planos. Um tempo só dela, ninguém para cuidar, até Sara
retornar e Emilie a aceitar de volta, e elas continuarem a dança.
Certo enquanto durasse. Tão doce e tão amargo.
Emilie já havia sofrido o suficiente. Sem dúvida, havia escolhas
mais sensatas. Sem dúvida, tinha experiência suficiente para fazer
escolhas melhores.
Mas ali estava Sara, agora, na soleira da sua porta, exatamente
como Emilie havia esperado.
Ali estava a mão de Sara, buscando a dela. Como era quente,
como era certo.
— Posso entrar? — perguntou Sara.
E Emilie abriu a porta.
AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha amiga e agente, Sara Crowe, que, livro após livro
e ano após ano, faz meus sonhos se tornarem realidade. E obrigada a
toda a equipe da Pippin Properties, em especial a Holly, Elena,
Cameron, Rakeem e Ashley, por serem uma alegria e uma força. Sou
imensamente grata também à minha agente de filmes e televisão,
Dana Spector, e às minhas advogadas, Diane Golden e Sarah Lerner.
Caroline Bleeke, eis aqui uma história: uma noite, logo no início
do processo de envio deste livro, um sentimento me invadiu. Tive
uma sensação extraordinária, transcendental, de que alguém estava
por aí lendo o meu romance — naquele exato instante — e se
apaixonando por ele. Na manhã seguinte, acordei com o e-mail que
você enviou para Sara, dizendo tanta coisa linda sobre a história.
Que prazer e que presente tem sido trabalhar com você a cada passo
do caminho. Obrigada por tudo isso.
Agradeço também a toda a equipe da Flatiron por sua paixão,
profissionalismo, criatividade e tremendo cuidado. Se aprendi
alguma coisa a respeito do mercado editorial ao longo dos anos é
que muitas pessoas trabalham incansavelmente nos bastidores para
que os livros cheguem às mãos dos leitores. Sou tão grata a todo
mundo, e em especial a Sydney Jeon, Megan Lynch, Malati Chavali,
Bob Miller, Nancy Trypuc, Jordan Forney, Amelia Possanza, Keith
Hayes, Kelly Gatesman, Erin Gordon, Donna Noetzel, Frances
Sayers, Vincent Stanley, Callum Plews e Talia Sherer.
Agradeço também a Joanne O’Neill, por capturar a essência do
meu romance com tamanha perfeição na capa, a Julie Gutin, por suas
revisões impecáveis, e a Deni Conejo, por seu excelente olhar
editorial para criar um ANÚNCIO.
Gostaria de agradecer a todos os livreiros, bibliotecários,
blogueiros e leitores que apoiaram meu trabalho ao longo dos anos.
Vocês são a razão de eu ter esta carreira que adoro.
Usei grande parte da história real da minha família nas seções de
Emilie, desde as casas em que meus avós viveram até as cartas de
amor que o meu avô escreveu para a minha avó durante a guerra.
Para meus primos, meu tio e minha tia e meu pai: espero que o amor
que pus na história transpareça. Também gostaria de reconhecer que
minha tia Joe foi a pessoa que cuidou dos meus avós em seus
últimos anos, permitindo que ficassem em sua casa na Cherry
Avenue, em Long Beach, até o fim. Palavras não podem expressar
quão especial foi esse presente.
Agradeço aos meus amigos Brandy Colbert, Eliot Schrefer, Nicole
Kronzer, Mandy Harris e Jessica Jacobs, que leram este livro em seus
estágios iniciais e me deram feedbacks inestimáveis. Gosto tanto de
todos vocês! Agradeço a Jandy Nelson, por nos convidar para viver
no Magic Circle; adorei saber que vocês estavam escrevendo no
andar de cima o ano todo. Obrigada ao meu grupo de escrita —
Carly Anne West, Teresa Miller e Laura Davis — que leu trechos
deste livro por mais de uma década e meia e me apoiou e conduziu
durante todo esse tempo. Sua amizade e apoio significam demais
para mim.
E obrigada, Elana K. Arnold, por me motivar a escrever o
primeiro rascunho completo durante o verão da pandemia, por
passar dezenas de horas ao telefone comigo discutindo pontos da
trama e fios temáticos, por ler mais rascunhos do que posso contar e
por sua crença inabalável e exuberante neste romance — isso me
ajudou a atravessar muitos períodos de insegurança e dúvida. Você
torna minha escrita mais ousada e corajosa. Sou muito grata por sua
devoção, generosidade e brilhantismo.
Obrigada à minha mãe por me levar a Russian River quando
criança, onde andamos pela Armstrong Woods e ficamos no hotel
que reimaginei para o emprego de Sara. São memórias que guardo
com carinho. Agradeço a Sherry, Robyn, Jeremy, Riley, Katie, Sophie
e Charlie, por serem minha família. Obrigada, papai e Raewyn, por
estarem sempre presentes para mim, por sua empolgação, sustento e
amor incondicional. Obrigada, Jules, por ser o melhor irmão que
alguém poderia ter. Espero que cozinhemos gumbo juntos até
ficarmos velhos. Amanda, todo mundo deveria ter a sorte de ter uma
melhor amiga como você. Obrigada por dizer que sou perfeita e por
dizer isso com sinceridade. Juliet, simplesmente ter você,
maravilhosa como você é, como minha filha é suficiente. Você me
inspira e me encanta todo dia. Kristyn, eu não poderia ter escrito este
livro sem você. Obrigada por compartilhar sua vida comigo, por
saber do que preciso e ser tão boa em me proporcionar isso, pelo
café, pelos drinques e pelos inúmeros e extraordinários momentos
de alegria.
Este e-book foi desenvolvido em formato ePub pela Distribuidora Record de Serviços de
Imprensa S.A.
Yerba Buena

Site oficial da autora:


https://www.ninalacour.com/

Instagram da autora:
https://www.instagram.com/nina_lacour/

Twitter da autora:
https://twitter.com/nina_lacour

Página da autora no Skoob:


https://www.skoob.com.br/autor/15708-nina-lacour

Página do livro no Skoob:


https://www.skoob.com.br/yerba-buena-122356769ed122363602.html

Página da autora no Goodreads:


https://www.goodreads.com/author/show/2889003.Nina_LaCour

Página do livro no Goodreads:


https://www.goodreads.com/book/show/57693648-yerba-buena
A penetra
Kinsella, Sophie
9786555878066
336 páginas

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Ela não foi convidada, mas vai fazer a festa. Em A


penetra, da autora best-seller do Sunday Times Sophie
Kinsella, Effie Talbot está passando por poucas e boas
e precisa resgatar um bem muito precioso durante a
maior festa que sua família já deu.

Effie Talbot não consegue superar o divórcio dos pais. E seu pai
também não ajuda. Nem ele nem a namoradinha nova e irritante
dele, que teve a cara de pau de postar fotos dos dois de roupão no
Instagram com as hashtags "sexo aos sessenta" e "viagra
funciona!". Completamente sem noção! E os dois ainda venderam
Greenoaks, a casa onde Effie e seus irmãos cresceram. Mas a gota
d'água foi a festa de arromba que resolveram dar para se despedir
do lugar. E para a qual Effie não foi convidada. Bem, na verdade, ela
foi desconvidada.

De qualquer forma, Effie não está nem aí para essa festa e não vê
sentido em comemorar a ruína de sua família. Mas então se lembra
de que suas bonecas russas ainda estão naquela casa. E ela não
pode correr o risco de ficar sem elas de jeito nenhum. O problema é
que só há uma forma de recuperar suas preciosas bonequinhas:
entrar na casa às escondidas durante a festa, quando todo mundo
estiver distraído se divertindo.

Ao colocar seu plano em prática, Effie espia seus parentes pelo


sótão e por baixo de mesas e acaba descobrindo que Greenoaks
guarda muito mais segredos do que aqueles que ela entreouviu. E,
como se as revelações comprometedoras sobre sua família já não
fossem o bastante, Joe — o amor da vida de Effie, que partiu seu
coração um tempo atrás e continua lindo e engraçado como sempre
— também está lá, e as verdades não param de aparecer.

Mas será que Effie fará algo com as informações que descobriu sem
querer? E, sinceramente, eram só suas bonecas russas que ela
esperava recuperar em Greenoaks mesmo?

"Sophie Kinsella está sempre antenada ao que acontece no mundo


e nos fazendo morrer de rir." — Jojo Moyes

"Ninguém escreve como Kinsella, e este livro é mais um sucesso


dela, com personagens brilhantes e situações inusitadas. Uma
história leve e engraçada, mas também profunda e emocionante.
Amei demais!" — Jill Mansell

"Com senso de humor e de uma forma leve, este livro nos ensina
que, no fim, o amor sempre vence." — Publishers Weekly

"A penetra tem a sagacidade, o senso de humor, o carisma e os


personagens incríveis que eu amo nos livros de Kinsella. Desde as
situações embaraçosas, nas quais fico morrendo de vergonha pelos
personagens, até a jornada maravilhosa na qual ela nos leva. Não
consegui parar de ler. Sem dúvida, queria ter ido a essa festa, e ia
ser a última a ir embora." — Jo Thomas

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Sr. Daniels
Cherry, Brittainy
9786555878370
336 páginas

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Dois corações despedaçados unidos por um amor


proibido no melhor estilo Romeu e Julieta, Sr. Daniels,
primeiro livro de Brittainy Cherry publicado no Brasil,
ganha uma nova edição com cena extra e inédita.

Depois de perder a irmã gêmea para a leucemia, Ashlyn Jennings


vê sua vida mudar completamente. Além de ter de aprender a
conviver sem parte de si mesma, ela precisa se adaptar a uma nova
rotina.

Enviada pela mãe para a casa do pai, com quem mal conviveu até
então, ela viaja de trem para Edgewood, Wisconsin, carregando
poucos pertences, muitas lembranças e uma caixa misteriosa
deixada pela irmã.

Na estação de trem, Ashlyn conhece o músico Daniel, um rapaz


lindo e gentil. A atração é imediata, e, depois de um encontro
romântico, os dois descobrem que compartilham não só o amor pela
música e por William Shakespeare mas também a dor provocada
por perdas irreparáveis.

Sem saber o que esperar de sua nova vida, mas com um pouco de
esperança, Ashlyn começa o ano letivo na escola onde o pai é
diretor. E não consegue acreditar quando descobre, no primeiro dia
de aula, que Daniel — o belo músico de olhos azuis com quem já
está completamente envolvida — é o Sr. Daniels, seu professor de
inglês.

Desorientados, os dois precisam manter seu amor em segredo, e


são forçados a conviver como dois desconhecidos na escola. E,
como se isso já não fosse difícil o bastante, eles ainda precisam
tentar de todas as formas superar os antigos problemas e sobreviver
a novos e inesperados conflitos.
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Tudo é rio
Madeira, Carla
9786555872316
210 páginas

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Tudo é rio é o livro de estreia de Carla Madeira. Com uma narrativa


madura, precisa e ao mesmo tempo delicada e poética, o romance
narra a história do casal Dalva e Venâncio, que tem a vida
transformada após uma perda trágica, resultado do ciúme doentio
do marido, e de Lucy, a prostituta mais depravada e cobiçada da
cidade, que entra no caminho deles, formando um triângulo
amoroso.
Na orelha do livro, Martha Medeiros escreve: "Tudo é rio é uma
obra-prima, e não há exagero no que afirmo. É daqueles livros que,
ao ser terminado, dá vontade de começar de novo, no mesmo
instante, desta vez para se demorar em cada linha, saborear cada
frase, deixar-se abraçar pela poesia da prosa. Na primeira leitura,
essa entrega mais lenta é quase impossível, pois a correnteza dos
acontecimentos nos leva até a última página sem nos dar chance
para respirar. É preciso manter-se à tona ou a gente se afoga."
A metáfora do rio se revela por meio da narrativa que flui – ora
intensa, ora mais branda – de forma ininterrupta, mas também por
meio do suor, da saliva, do sangue, das lágrimas, do sêmen, e Carla
faz isso sem ser apelativa, sem sentimentalismo barato, com a
habilidade que só os melhores escritores possuem.

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Obsessão fatal
Gerritsen, Tess
9786555877663
322 páginas

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Obsessão fatal é um thriller de tirar o fôlego, repleto de


mistério e sedução, e a primeira colaboração entre os
veteranos Tess Gerritsen e Gary Braver.
Taryn Moore era uma estudante universitária linda e inteligente, com
um futuro brilhante pela frente. Que motivos ela poderia ter para se
jogar da sacada de seu apartamento, num mergulho para a morte?
O corpo sem vida mal havia acabado de ser removido da calçada
pela perícia quando a detetive Frankie Loomis chega à casa da
jovem para investigar aquela fatalidade. Mas, em poucos minutos,
seu instinto lhe diz que há muito mais por trás daquele aparente
suicídio.

Conforme a investigação avança, Frankie descobre que muita gente


gostaria que Taryn saísse de cena por um tempo — ou até
morresse. O ex-namorado Liam não aguentava mais as investidas
dela para que os dois retomassem o relacionamento; o professor de
literatura Jack Dorian, que não está na melhor fase de seu
casamento, havia caído nos encantos da aluna mais brilhante e bela
de sua classe; o amigo fiel Cody Atwood simplesmente a venerava,
era capaz de fazer qualquer coisa por ela, mas não estava gostando
nada dos olhares que sua musa trocava com o professor preferido.
A admiração mútua entre discípula e mestre era visível em sala de
aula e estava começando a incomodar outras alunas também...

À medida que Frankie vai desvendando como a mente de Taryn


funcionava e descobrindo segredos de todos ligados a ela, fica cada
vez mais claro que Jack pode estar escondendo a verdade por trás
da morte de Taryn. Ele acabou se deixando levar pelos encantos da
jovem, mas será que seria capaz de cometer um assassinato?

"Dois autores de thriller experientes que ainda têm truques na


manga." — Toronto Star
"Em Obsessão fatal Tess Gerritsen e Gary Braver analisam como
diferentes pessoas reagem depois de terem sido traídas e
abandonadas." — Bookreporter

"Com personagens intrigantes e várias reviravoltas, este livro é


altamente recomendado para fãs de Tess Gerritsen e Gary Braver e
para quem adora suspense." — Library Journal

"Um thriller eletrizante do início ao fim, que faz com que o leitor fique
tentando adivinhar o que aconteceu." — Mystery & Suspense
Magazine

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A natureza da mordida
Madeira, Carla
9786555876475
240 páginas

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Depois dos arrebatadores Tudo é rio e Véspera, Carla


Madeira retoma seu interesse profundo pelos conflitos
humanos em A natureza da mordida.

"O que você não tem mais que te entristece tanto?" É com esta
pergunta que Biá, uma psicanalista aposentada, apaixonada por
literatura, aborda a jovem jornalista Olívia pela primeira vez ao
encontrá-la sentada à mesa de um sebo improvisado. A provocação
inesperada, vinda de uma estranha, capaz de ouvir "como quem
abraça", desencadeia uma sucessão de encontros, marcados pela
intimidade crescente e que aos poucos revelam as histórias das
duas mulheres. "Nossa amizade começou assim, enquanto nos
afogávamos", relata Olívia.

Com alternância entre as vozes, a força narrativa objetiva, descritiva


e linear de Olívia contrapõe-se às anotações esparsas de Biá, cujos
fragmentos de uma memória já falha e pouco confiável conduzem a
um ponto de virada na trama que irá revelar ao leitor eventos que
marcaram o passado de cada uma, evidenciando o paralelo entre as
diferentes formas de abandono sofridas (e perpetradas) pelas duas
amigas. Ao conhecer Olívia, o leitor é preparado para compreender
Biá e, finalmente, refletir sobre a pergunta: o que faríamos em seu
lugar?

Como nos outros romances da autora, as personagens parecem


saltar do papel para colocar o leitor diante de questões universais,
entre elas a incondicionalidade do amor, a força do desejo, a culpa e
o esquecimento, a memória e sua dinâmica inescrutável com o
perdão. É também um livro sobre amizade.

Com uma narrativa singular, potente e envolvente, Carla Madeira se


reafirma em A natureza da mordida como um dos maiores nomes da
literatura nacional contemporânea.
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