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ANTINOMIES I

A partitura perdida de Rogério Duprat

Durante o século XX, e especialmente entre os anos de 1950 e 1970, diversos


compositores propuseram mudanças na maneira de grafar os sons na partitu-
ra. Tornou-se quase uma necessidade adotar novas grafias quando aspectos
sonoros tais como a utilização de sons sem altura definida e procedimentos
aleatórios pouco explorados pelos compositores da tradição clássica europeia
foram incorporados às obras musicais.
Houve um embate, nos anos 1950 e 1960, entre as escolas da chamada Van-
guarda Europeia (Avant-garde) – representada por compositores como Pierre
Boulez e Stockhausen – e a da Música Experimental Americana (Experimental
Music), de compositores como John Cage e Morton Feldman. Nos dois casos,
novas sonoridades e princípios de organização não tradicionais estariam pre-
sentes, mas de forma diferente. Na Europa, essa experimentação seguiria um
eixo de racionalismo e formalismo alinhados ao discurso científico e proposto
a partir de rígidas análises estruturais. Nos Estados Unidos, as experimen-
tações seguiriam a vertente do esgotamento da racionalização e da ordenação
Foto - Acervo Rogério Duprat como gerador de novo princípio regulador da criação musical.

No Brasil, o início da utilização de experiências com diferentes grafias está associado ao nome do Grupo Música Nova, formado inicialmente
pelos compositores Rogério Duprat, Gilberto Mendes e Willy Corrêa de Oliveira, signatários do Manifesto Música Nova, de 1963. Essas
duas vertentes foram prontamente incorporadas pelos compositores do Música Nova e, colocadas no caldeirão antropofágico da tradição
cultural brasileira, influenciariam decisivamente vários movimentos artísticos subsequentes, entre os quais o Tropicalismo talvez seja o
de maior impacto popular.
Antinomies I
(...) fomos os primeiros compositores brasileiros – o nosso Grupo Música
Nova – a fazer música aleatória, microtonal, música estruturada parâmetro
por parâmetro seguindo os princípios do serialismo integral, não periódica,
não discursiva, música com a introdução do ruído no contexto sonoro (o ruí-
do elevado à categoria de som, de objeto musical, vale dizer, música concreta
e/ou eletrônica), com a utilização dos mixed media (como eram chamados
então, liquidificadores, aspiradores de pó, televisores etc.), do gesto e da ação
musical como teatro (a serem encarados e desenvolvidos como tal, como
teatro musical), de novos grafismos, abolindo a notação musical tradicional
(falávamos em designs para as nossas obras), música com a participação do
ouvinte na sua execução.

Gilberto Mendes

Foto do Grupo brasileiro por ocasião do curso de férias em Darmstadt, em 1962: da esquerda para a direita,
em pé, Gilberto Mendes, (?), Sandino Hohagen, Willy Correia de Oliveira, Felipe Silvestre e Norma Graça;
agachados, Eládio Perez Gonzales, Rogério Duprat e Júlio Medaglia.
Acervo Rogério Duprat (Gauna, R.)

Antinomies I , de 1962, foi concebida exatamente no fervilhar dessas influências e inquietações artísticas. Rogério Duprat havia escrito a
peça por ocasião de sua viagem à Alemanha para frequentar as aulas no curso de Darmstadt. Sua escrita grafista desconstrói totalmente
a notação musical tradicional. Não há pentagramas e a leitura pode ser realizada de acordo com várias possibilidades, contrapondo
precisas estruturas que, no entanto, podem ser acessadas em infinitas combinações e labirínticas sequências de direcionamento.
Ironicamente, assim que chegou à Europa, Duprat perdeu a partitura no Metro de Berlim e não pode mostrá-la nas aulas de Darmstad,
tendo que reescrevê-la quando voltou ao Brasil.
Antinomies I
A escrita arquitetada por Duprat controla as alturas, durações, intensi-
dades e timbres, embora decisões a respeito de alguns destes parâmetros
devam ser tomadas pelos próprios músicos. Cada círculo determina uma
estrutura autônoma, composta por uma sequência de sons que devem ser
executados por determinados grupos instrumentais nos quais sua orques-
tra se divide. As durações dessas sequências de sons são representadas pe-
los ângulos que dividem cada estrutura em setores circulares criando um
tempo relacional, assim como as intensidades são dadas pelo tamanho
do segmento que delimita a lateral do ângulo, consideradas as indicações
gerais de dinâmica sob as estruturas. Cada estrutura é trabalhada com a
combinação de três símbolos, intercalando, no interior dos círculos, de
uma a seis notas, contemplando no total dos conjuntos todos os doze sons
da escala cromática.
O título Antinomies I se refere a antinomias, que significa contradição en-
tre leis ou princípios, oposição recíproca, conflitos entre duas afirmações
demonstradas ou refutadas com igual rigor. Cada círculo representa uma
antinomia, e é permitido criar simultaneidades de segundo grau (exe-
cução simultânea de duas ou mais estruturas) ou ainda desenvolver al-
Fac-símile de Antinomies I - Pan American 1966 guma estrutura secundária particular.

Duprat divide a orquestra em quatro grupos, cada qual com uma afinação diferente e, exceto a percussão, representado por um sím-
bolo gráfico distinto. A disposição desses grupos no palco é determinada na partitura de maneira que fiquem separados entre si por,
no mínimo, dois metros, como se formassem orquestras independentes tocando ao mesmo tempo. A percussão, que não tem símbolo
especial, deve intervir em determinadas estruturas quando solicitado ou quando os músicos previamente decidirem. Dessa maneira o
autor coloca uma garantia de intervenção não regulada pela partitura, dotando a peça de uma espécie de imprevisibilidade inerente.

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