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XXVII Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música – Campinas - 2017

Antinomies I : a partitura perdida de Rogério Duprat

MODALIDADE: COMUNICAÇÃO

SUBÁREA: MÚSICA E INTERFACES

Itamar Vidal Junior


Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP

Resumo: Análise e montagem da peça Antinomies I de Rogério Duprat (1928 – 2006). A partitura
é uma das primeiras experiências de escrita grafista no Brasil e para sua montagem foi
desenvolvida uma programação visual sincrônica, unindo o design original ao material obtido pelo
processamento de áudio em softwares de análise de espectro sonoro por representações gráficas. O
intento é analisar o percurso entre a escritura e sua primeira montagem buscando revelar não
apenas sua virtual antecipação à tecnologia disponível atualmente, como também a força literária
de suas indicações de performance, ou seus meta-textos, que, por pretenderem assegurar a
singularidade da execução, conferem à obra características de atemporalidade.

Palavras-chave: Antinomies I. Rogério Duprat. Música Nova. Tropicalismo. Happenings.


Design de som.

Antinomies I: The Lost Score of Rogério Duprat

Abstract: Analysis and performance of the piece Antinomies I, composed by Rogério Duprat
(1928 - 2006). The score is one of the first experiences in graphic notation in Brazil and its
performance required the development of a synchronous visual programming, joining the original
graphics to the graphical representations obtained by processing the audio through an Audio
Spectrum Analyzer software. The intent is to analyze the path between its writing and first
performance, seeking to reveal not only its virtual anticipation of the technology available today,
but also the literary force of its performance indications and their meta-texts, which, designed to
ensure the singularity of execution, also assign the work characteristics of timelessness.

Keywords: Antinomies I. Rogério Duprat. Música Nova. Tropicalism. Happenings. Sound


design.

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1. Pesquisa
Em 2013, durante pesquisas para sua dissertação de mestrado, o percussionista
Ricardo de Alcântara Stuani encontrou, no acervo da família Duprat, a partitura de Antinomies
I, datada de 1966. O tema de seu trabalho era a escrita para percussão dos compositores
brasileiros de música experimental dos anos 1960. Devido à originalidade de sua grafia, a peça
se destacava entre os outros originais de Duprat dessa época, porém não havia uma notação
específica para a percussão. Após uma análise mais detalhada, no entanto, verificou-se que
mesmo sem um símbolo específico, ou talvez por isso, a percussão exercia um papel central na
obra e que sua análise seria de relevância para o tema que estudava. Stuani foi o primeiro
músico a analisar e descrever detalhadamente a obra, que está disponível na íntegra em sua
dissertação de mestrado, apresentada em 20151.
Antinomies I, para grupo de câmara de até 14 instrumentos2, foi escrita em 1962
por ocasião da ida de Rogério Duprat à Alemanha para frequentar o curso de verão de
Darmstadt daquele ano. Duprat, no entanto, declarou tê-la esquecido em um metrô europeu e
por isso não pôde mostrá-la durante o curso (Gaúna, 2002, p. 52). Em Darmstadt, Duprat
encontrou-se com Willy Correia de Oliveira (1938) e Gilberto Mendes (1922 – 2016), que
moravam em Santos e viajaram juntos para o curso. Havia ainda outros músicos procedentes
do Brasil: Eládio Perez Gonzalez (1926), barítono paraguaio radicado no Brasil desde 1947, e
o maestro e arranjador Júlio Medaglia (1928) que, na época, estudava em Friburgo (RJ).
Nesse ano, Damiano Cozzella (1929) não iria ao Festival, pois já havia participado no ano
anterior (Barro, 2009). Esse encontro estabeleceu as bases da criação do grupo Música Nova,
cujo manifesto, publicado em 1963, firmava um ―compromisso total com o mundo
contemporâneo‖ e continha propostas que incorporavam elementos advindos da recente teoria
da informática, da semiótica e das leis matemáticas associadas às técnicas de composição.
Também frequentou o curso de Darmstadt nesse mesmo ano o compositor François Bayle
(1932). Por influencia de Bayle, que em 1966 sucederia Pierre Schaeffer (1910 – 1995) na
direção do GRM, Duprat pôde permanecer ainda mais um mês em Paris estagiando, em
caráter informal, no laboratório da Radio Television Française (ORTF)3. No laboratório da
ORTF, Duprat trabalhou com pianos preparados e teve contato direto com as mais recentes
técnicas de manipulação sonora, com os processos de montagem, filtragens e outras alterações
de frequência e edições em fitas magnéticas. (Gaúna, 2002).

Já me esqueci de muita coisa, mas lembro-me de que as aulas de Stockhausen foram


as que mais me acrescentaram, ele não obedecia ao esquema de aula tradicional, o

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seu curso era sempre como um laboratório sonoro, passando noções de densidade,
volume, "técnicas dos parâmetros", como o próprio Stockhausen as chamava.
Quanto a Boulez, no dia em que almoçamos juntos no Brasil, ele nos falou sobre o
Festival e todos ficaram com vontade de ir. Ter ido para a Europa foi muito
importante, mas o mais curioso foi que, chegando lá, conheci os alunos americanos.
Eles se importavam muito pouco com o estruturalismo da vanguarda européia; para
eles a prioridade em estética musical estava em seu próprio país, encabeçada
musicalmente por John Cage. (Gaúna, 2002, p. 52 -53)

Iniciado nas obras de John Cage (1912 – 1992) por seu colega de curso Frank
Zappa (1940 – 1993), Duprat retorna da Europa com a intenção de promover happenings no
Brasil. Além disso, faz um curso de programação de dados e, em 1963, em parceria com
Damiano Cozzela, escreve uma obra pioneira para computador: a Klavibm II. Duprat recorda
que seus trabalhos nesse período se caracterizaram por ―uma alta elaboração matemática,
rigorismo cheio de estruturas abertas e acasos controlados, enfim, construtivismo aleatório‖
(Volpe, 2012, p. 214). A reconstituição de Antinomies I em 1966, a partir de alguns
rascunhos, é, portanto, posterior a esse período de intenso aprendizado e contato com as
vertentes experimentalistas europeias e norte-americanas.

2. Análise
Composta por 32 circunferências, a escrita concebida para Antinomies I
desconstrói totalmente a notação musical ocidental tradicional. Não há pentagramas e a leitura
pode ser realizada de acordo com várias possibilidades, propiciando uma infinidade de
decisões quanto aos timbres, durações e maneiras de os instrumentistas executarem as notas
(técnicas estendidas). Várias intervenções devem ser deliberadas pelos intérpretes a partir dos
ensaios ou como uma improvisação.
Cada círculo determina uma estrutura autônoma composta por uma sequência de
sons que devem ser executados pelos grupos instrumentais que, excetuando a percussão, estão
representados por símbolos específicos (tipos de preenchimento em cada setor que divide a
circunferência). As durações dessas sequências de sons são determinadas pelos ângulos que
dividem cada estrutura em setores circulares criando um tempo relacional. Da mesma
maneira, as intensidades são determinadas pelo tamanho do segmento que delimita a lateral
do ângulo, consideradas as indicações gerais de dinâmica sob as estruturas. Cada estrutura é
trabalhada com a combinação de até três símbolos, cada qual com a respectiva indicação de
afinação e altura.

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Figura 1 - Detalhe de Antinomies I. (Stuani, 2015).

O título Antinomies I se refere a antinomias, que significa contradição entre leis


ou princípios, oposição recíproca, conflitos entre duas afirmações demonstradas ou refutadas
com igual rigor. Cada círculo representa uma antinomia, e é permitido criar simultaneidades
de segundo grau (execução simultânea de duas ou mais estruturas) ou ainda desenvolver
alguma estrutura secundária particular. (Stuani, 2015).
Duprat divide a orquestra em quatro grupos: um deles composto pela percussão e
outros três grupos compostos cada qual por quatro instrumentos, cada um desses três grupos
com uma afinação específica. O grupo I, ao qual pertence o piano, manteria o padrão Lá 440
Hz enquanto o grupo II e grupo III forçariam, respectivamente, uma afinação mais baixa e
mais alta que esse padrão4. A disposição desses grupos no palco é determinada na partitura de
maneira que fiquem separados entre si por, no mínimo, dois metros, como se formassem
naipes independentes tocando ao mesmo tempo.
Antinomies I possui bula dupla, ou seja, se uma parte das instruções que
acompanham os gráficos se dedica à decodificação dos grupos e das relações entre os graus
que dividem as circunferências e as durações das notas, outra parte dos textos ocupa-se de
como essas circunferências se sucedem e se relacionam no tempo da performance. Duprat
previu uma espécie de roteiro de peregrinação entre as 32 circunferências, que ele chama de
―estruturas‖: blocos ou sequências de sons se sucedem e se conectam seguindo linhas e
conexões pré-determinadas, impostas por setas ou por indicações contidas nos textos das
bulas.

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Figura 2 – Detalhe das indicações de Antinomies I. (Stuani, 2015).

Algumas estruturas são repetidas e exploradas alterando-se as dinâmicas ou


intensidades, enquanto outras são executadas rapidamente, sem repetição e com os sons
internos atacados de forma simultânea por todos os grupos. Essa navegação entre as estruturas
obedece a uma organização que propositadamente se opõe ao próprio design da partitura, no
que se refere à leitura ocidental. As estruturas nunca são lidas da esquerda para a direita e de
cima para baixo como a nossa escrita tradicional. Há uma ordem sequencial expressa por
indicações gráficas nas quais a repetição e as superposições possíveis atravessam a partitura
em várias direções e sentidos.
Duprat parece sugerir que a própria ordem da execução altere o significado
musical de cada estrutura, e que essa lógica relacional, no decorrer da performance, modifique
e transforme determinados nexos arquetípicos de nossa memória musical. Um mesmo grupo
de notas que em determinado momento da peça, por exemplo, poderia parecer uma cadência,
em outro momento poderia ser percebido como uma textura ou uma harmonia adjacente.
A percussão, que não tem símbolo especial, deve intervir em determinadas
estruturas quando solicitada ou quando os músicos assim decidirem. Dessa maneira o autor
coloca uma garantia de intervenção não regulada graficamente pela partitura, dotando a peça
de uma espécie de imprevisibilidade inerente.

3. Montagem
Também signatário do Movimento Música Nova, o compositor Gilberto Mendes
escreveu, sobre sua série de composições Blirium de 1965, que perseguia a ideia de uma
música feita somente das instruções de como realizá-la, princípio similar ao que Karlheinz

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Stockhausen utilizaria em Aus den sieben Tage, escrita em 1968. Nos dois casos a música é
toda controlada pelo texto que a acompanha ou que a constitui. Mendes conclui que não fez a
música, mas a máquina de fazer música. Mendes alerta ainda que, nesses casos, a participação
do intérprete torna-se tão decisiva que Stockhausen chegou a ter problemas com músicos que
pleitearam direitos de coautoria. (Mendes, 1994).
O historiador e crítico de arte Walter Zanini (1925 – 2013) associou essa
―desmaterialização‖ às modernas concepções conceitualistas. Segundo Zanini, o
deslocamento da criação individual e isolada da arte para a atmosfera da criação eletrônica,
colaborativa e programada, constituiu uma inédita condição de ―transformabilidade‖.
Provocada pelas novas tecnologias, essa mutação estrutural teria como consequência uma
poética de fluxo ininterrupto que, numa perspectiva avançada de "obra aberta", desfaria a
noção de "cópia" (Zanini, 2003).
Artur Matuck (1949) docente em Artes na Escola de Comunicações e Artes da
USP, seguindo essa linha, criou o termo meta-autoria justamente para definir o design de
projetos artísticos que se desenvolvem e se modificam no tempo, nos quais a metodologia
escritural envolve mídias contemporâneas e configurações de rede. Isso porque, nas últimas
décadas, emergiu o conceito de expressão criativa centrado no projeto meta-textual como
linguagem artística autônoma, estratégia para investigar processos de coautoria e formas de
interação entre os sistemas humanos e digitais. A aplicação de metodologia da meta-autoria,
originalmente direcionada para elucidação desses processos textuais de criação colaborativa e
programação de sistemas, pode também, segundo Matuck, desempenhar função pedagógica
decisiva para a compreensão dos processos artísticos que relacionam atividades autorais em
diversas áreas. (Matuck, 2012).
Uma das grandes dificuldades oferecidas para a montagem de Antinomies I é o
fato de que, embora as circunferências não tenham um tempo exato de duração, suas divisões
internas sugerem uma proporção que necessita ser respeitada. Quando transformamos os
graus dos ângulos que dividem as circunferências em unidades de tempo e processamos essas
informações em gráficos animados, conseguimos alterar suas durações mantendo essas
proporções. Dessa forma, pudemos experimentar e testar várias alternativas de velocidade de
execução em estúdio respeitando a proporção exata dos setores circulares originais. Se fosse
montada em 1962, isso só seria possível com a utilização de cronômetros e tabelas
impressas — e provavelmente os músicos grafariam as alturas em notas nos pentagramas
tradicionais para facilitar a leitura. Mesmo que a peça mantivesse sua sonoridade de

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microafinação e seus timbres alterados pelos intérpretes, grande parte da escrita seria perdida
ou tornar-se-ia um código remoto entre o regente e os músicos.
Considerada pelo próprio Duprat como uma peça quase impossível de ser
executada (Volpe, 2012), um projeto para a primeira audição e gravação de Antinomies I foi
apresentado e aprovado junto ao Instituto Itaú Cultural em 2016. A primeira Audição Mundial
da obra realizou-se em 2 de junho de 2017, no Auditório Ibirapuera Oscar Niemeyer, com a
participação de instrumentistas dos mais importantes grupos orquestrais do estado de São
Paulo e obteve ampla repercussão na mídia paulista, com matérias nos principais jornais,
televisão e rádios.
Na montagem foram utilizados quatro grandes monitores de vídeo – um para cada
grupo – reproduzindo as sequências de estruturas nas velocidades planejadas nos ensaios e,
dessa maneira, pudemos prescindir da presença de um regente, radicalizando a proposta
contida no Manifesto Música Nova que preconizava a ―redução a esquemas racionais - logo,
técnicos - de toda comunicação entre músicos. música: arte coletiva por excelência, já na
produção, já no consumo.‖5
O áudio das estruturas gravadas em estúdio foi processado em softwares de
análise de espectro sonoro por representação gráfica para composição dos cenários, para a
edição das partituras animadas e para orientar o vídeo-mapeamento.
Após 55 anos de sua primeira escritura, a montagem de Antinomies I foi
concebida como um projeto multimídia que incluiu, além da primeira audição em concerto, a
gravação de todas as estruturas e sua disponibilização em uma plataforma interativa na
internet.

Referências:

BARRO, Máximo. Rogério Duprat: ecletismo musical. Coleção aplauso. Série música
Coordenador geral Rubens Edwald Filho. São Paulo : Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2009.
GAÚNA, Regiane. Rogério Duprat: sonoridades múltiplas. São Paulo: Editora Unesp, 2002.
MATUCK, A. Actamedia – Artemidia e Cultura Digital - Simpósio Internacional de

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Artemídia e Cultura Digital, 2012 < http://www5.usp.br/15319/especialistas-discutem-como-


redes-digitais-transformam-processos-criativos/> acesso 02 de abril de 2017.
MENDES, Gilberto. Uma Odisseia Musical: dos mares do sul expressionista à elegância
pop/artdecó. São Paulo: Edusp, 1994.
STUANI, Ricardo de Alcântara. A escrita para percussão dos compositores do Grupo Música
Nova: a busca pelo novo analisada a partir da notação. 192p. Dissertação: Mestrado em
Música. Universidade estadual Paulista – UNESP – São Paulo 2015.
VOLPE, Maria A., DUPRAT, Regis. Rogério Duprat (1932-2006): pós-pronunciamentos.
Revista Brasileira de Música. Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 209-217, Jan./Jun. 2012.
ZANINI, W. A arte de comunicação telemática: a interatividade no ciberespaço ARS (São
Paulo) vol.1 n.1 São Paulo, 2003.

1
STUANI, Ricardo de Alcântara Repositório UNESP.. A escrita para percussão dos compositores do Grupo
Música Nova: a busca pelo novo analisada a partir da notação. 192p. Dissertação: Mestrado em Música.
Universidade estadual Paulista – UNESP – São Paulo 2015. Disponível em
<https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/131847/000853765.pdf?...1> Acesso em: 16 jun. 2017.
2
Antinomies I foi escrita para os seguintes instrumentos: grupo I : piano, fagote, trombone, violino; grupo II:
violoncelo, viola, flauta e flautim, trompete; grupo III : violino, clarineta e requinta, oboé, trompa; grupo IV:
percussão (até 2 executantes).
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François Bayle dirigiu o GRM (Groupe de Recherches Musicales) entre 1966 a 1997. Em 1975 o GRM foi
incorporado ao INA (Institut National Audiovisuel). Entre os sistemas e ferramentas de criação e análise musical
desenvolvidos pelo Instituto, destacam-se o SYTER, o GRM tools e o Acousmographe.
4
Em nossa gravação e montagem alteramos o padrão para Lá 442 Hz.
5
Manifesto Música Nova, Revista Invenção, n" 3, p.28, 1963 (Fac-simile). Apud Gaúna, 2002, p. 88-89.

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