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Publicada em 1975, Partiels de Gérard Grisey é uma das peças mais analisadas e, bem
possivelmente, uma das mais canônicas dentro do espectralismo francês 1. Ela é a terceira do
ciclo Les Espaces Acoustiques (1974-1985). Ao por em cena o interesse por um fenômeno
sônico que é o espectro harmônico gerado pela nota E2 executada num trombone e analisada a
partir de um sonograma eletrônico, a peça traz esse mesmo espectro como um modelo para a
síntese orquestral. Partiels se utiliza do conceito de síntese aditiva do Teorema de Fourier para a
realização da síntese orquestral (ou instrumental) 2. Ela transporta para a orquestra a aplicação de
técnicas da música eletrônica, que são a modulação anel e a síntese aditiva 3, com uma estrutura
formal determinada por seções texturais.
O objetivo do trabalho será o de analisar as plásticas sonoras em cada seção de Partiels,
especialmente a partir de seus dados texturais. Ele se estrutura da seguinte maneira:
a) Grisey, elaboração e estreia de Partiels
b) O que é Música Espectral?
c) Análise da Estrutura Textural-Formal de Partiels
%C3%A9rard_Grisey , https://fr.wikipedia.org/wiki/G%C3%A9rard_Grisey.
5
Castanet, P.A. Gerard Grisey and the Foliation of Time. In: Spectral Music, vol. 2, 2000.
6
A Guide to Gérard Grisey, in: The Guardian,
https://www.theguardian.com/music/tomserviceblog/2013/mar/18/gerard-grisey-contemporary-music-guide.
Acesso em 29 de setembro de 2018.
e 1986, Grisey lecionou na Universidade da Califórnia em Berkley e foi professor de composição
no Conservatório Nacional de Música de Paris entre 1986 até o seu falecimento em 11 de
novembro de 1998, devido a uma ruptura do aneurisma, aos 52 anos.
A relação entre música e acústica é uma preocupação que remonta desde a antiguidade
grega, e ela foi se modificando no decorrer dos tempos, como também a relação entre o homem e
a natureza. A partir do século XIII, já vemos tratados que procuram estabelecer relações entre o
espectro sonoro e a prática composicional, tendo como um exemplo mais notório o Tratado de
Harmonia de Jean-Phillipe Rameau, escrito em 17227. A série harmônica, uma série infinita, foi
uma descoberta acústica que permitiu à humanidade a escolha de intervalos musicais que mais
lhe diziam respeito durante a sua história. Pode-se considerar, no entanto, com o advento das
pesquisas eletrônicas em torno das propriedades do som e da extração do espectro harmônico do
som, que a música espectral é, claramente, um produto da música do século XX.
A música espectral é uma nova atitude diante da série harmônica, da música e da
composição. Trata-se de uma música que trata o som como um fenômeno em primazia, em que
se busca uma ligação mais intrínseca entre a escrita e a experiência auditiva, em oposição às
ideias de permutação de parâmetros musicais e de estruturalismo formal de compositores que lhe
são antecessores8. É uma estética musical que encontra antecedentes tanto nos acordes
cromáticos de Wagner transmutados em espectros na textura 9, ou nos efeitos tímbricos
impressionistas de Debussy e Ravel e na Klangfarbenmelodie de Webern e Schöenberg, quanto
também em vanguardistas da segunda metade do século XX, como Messiaen, Stockhausen,
Scelsi, Ligeti ou Xenakis10. Entretanto, ela não deve ser entendida como um sistema de
composição tal como o é o serialismo ou o tonalismo, por exemplo. A música espectral é, antes
de tudo, uma atitude composicional que prioriza a percepção do som no tempo e na manipulação
acústica, com suas transformações sendo esculpidas durante o processo de sua escuta11.
7
Informação extraída a partir de COPINI, 2010, p. 5.
8
In: BARROS, 2013, p. 14.
9
BARROS (idem, ibidem) menciona Jonathan Harvey a respeito disso.
10
BARROS aponta esses compositores como os mais pertinentes como precursores para as atitudes composicionais
de Grisey. Na verdade, há outros compositores que também tiveram uma importância precursora desvinculada da
incipiência francesa nos anos 1970, tais como Per Nörgard ou James Tenney. O artigo de Joshua Fineberg, Spectral
Music (2000) cobre amplamente o assunto.
11
Ver FINEBERG, 2000, p. 2-3. Ele lembra que foi o crítico e compositor Hughes Dufort que cunhou o termo
“música espectral”, mas foi Tristan Murail que definiu essa estética muito mais como uma atitude composicional
do que como um sistema. Além do mais, segundo Fineberg, os espectralistas podem ter estilos abrangentemente
diferentes, ou rejeitar o termo, como o próprio Grisey.
Mesmo com a presença de precursores, Gérard Grisey é tido, junto com Tristan Murail,
como fundador dessa estética pelo musicólogo e compositor Jérome Baillet 12. Grisey, apesar de
rejeitar o termo “espectralismo” ou “música espectral”, não se limitou a compor dentro dessa
estética no ciclo Les Espaces Acoustiques, como também foi um atento teórico que enxergou em
seus Écrits quais seriam as principais consequências dentro do espectralismo, que seriam as
seguintes13:
Integração entre harmonia e timbre;
Reestabelecimento das noções de consonância, dissonância e modulação;
Estabelecimento de novas escalas e reinvenção melódica;
Atitude atenciosa à fenomenologia da percepção;
Integração do tempo como objeto da forma;
Exploração das formas de fusão e limites entre os diferentes parâmetros de som;
Jogo entre fusão e continuidade, por um lado, difração e descontinuidade, por outro;
Aplicação do processo em oposição ao desenvolvimento tradicional;
Sobreposição, faseamento, ou deslocamento de processos contraditórios,
incompletos, ou mesmo sugeridos, e de tempos radicalmente diferentes.
12
BARROS, 2013, p. 14.
13
GRISEY (2008, p. 122), apud BARROS, 2013, p. 15.
14
Vale mencionar uma fala do próprio Grisey nos Écrits (2008, p. 89, apud BARROS, 2013, p. 18) que é a seguinte:
“a eletrônica nos permitiu uma escuta microfônica do som. O próprio interior do som, que esteve fechado e oculto
por muitos séculos de práticas musicais essencialmente macrofônicas é, enfim, libertado para o nosso
maravilhamento.”
15
GRISEY, 2008, p. 135, apud BARROS, 2013, p. 16.
Para tal, Grisey adota uma atitude heterodoxa quanto ao material sonoro, “em busca de
um resultado que não se relaciona estritamente ao ‘espectro’ usado como origem e fonte de
material musical16”, usando de técnicas que são prioritariamente servas de seus propósitos
estético-composicionais. E um dos aspectos especiais na música de Grisey é o tratamento
textural, o qual é trabalhado na peça a ser analisada neste trabalho sobre Partiels (a terceira do
ciclo Les Espaces Acoustiques), e procuraremos perceber quais as técnicas empregadas para sua
elaboração formal a partir das propriedades mencionadas pelo próprio Grisey.
Segundo Copini18, “No ciclo Espaces Acoustiques é possível constatar o uso dos modelos
naturais por Grisey. Uma das aplicações se dá na articulação ternária do ciclo, articulação criada
segundo a metáfora do ritmo respiratório: inspiração – expiração – repouso”. Em Partiels, isso
não é diferente. A peça começa com uma textura verticalmente estática de tensionamento,
prolongamento e relaxamento (em uma fermata); há uma nota Mi sendo atacada e distendida
tanto por um trombone em f, quanto impulsionada por um contrabaixo, que ataca três vezes em
sffz e do alto sul ponticello (ASP) para o ordinario (ORD), para o advento posterior das cordas e
madeiras, de piano a fortíssimo (ff), que ressoam notas que, não por acaso, são parte do espectro
harmônico da fundamental mi0, conforme poderemos ver aqui abaixo:
16
BARROS, 2013, p. 16.
17
GRISEY, 1975, p. 1.
18
2010, p. 41.
3.1. Primeiro ciclo – ensaios 1 a 22
19
Ver ARRELL, 2002, p. 321, além de outros.
Trata-se de não somente a apresentação dos parciais harmônicos de maneira aditiva, mas
também a maneira como a síntese instrumental de Grisey começa a ser operada. Segundo o
compositor20, “Na síntese insrumental (...), é o instrumento que exprime cada componente do
som e, diferentemente da síntese eletrônica, estes componentes são complexos, e constituem em
si mesmos uma macrossíntese.”. E o resultado é uma viagem microscópica em torno da dilatação
do ataque do trombone em E2 (82,4Hz), na qual a harmonia emerge lentamente através do
timbre macroscopicamente21. O acorde consequente dessa emergida harmonia é variado e
prolongado 11 vezes durante esta primeira seção textural, conforme demonstrado aqui 22:
20
GRISEY apud BARROS, 2013, p. 101.
21
ARRELL, 2002, p. 321.
22
BARROS, 2013, p. 105
23
ARRELL, 2002, p. 321.
harmônica após o ritornelo, na segunda página, até o término desse grande gesto na 20ª página,
final do número de ensaio 1124.
24
Na partitura da edição da Ricordi, é notável o fato de que não há numeração de compassos, mas de números
ensaio, além das páginas. Isso enfatiza ainda mais a concepção gráfica da composição.
Página 11, final de número de ensaio 11
Nota-se que, durante esta seção do primeiro episódio, há microgestos tímbricos, através
das técnicas estendidas, que tornam ainda mais complexa a transformação textural dos tuttis,
além das impulsões e repousos ao nada, que rompem com a estaticidade da emergida harmonia.
Tomemos como exemplo as violentas variações de intensidade sendo gradualmente dosadas
entre piano, mezzo-forte e forte, com um vibrato irregular, que ocorre primeiro com a viola (no
quarto compasso de tempo 2/4 na página 11, ensaio 4) e perpassa por outros distintos
instrumentos (violino no ensaio 5, trompa no ensaio 6, tuba e violoncelo no ensaio 7, flauta 1 no
ensaio 8, flauta 1 novamente e violino no ensaio 9, cornes ingleses no ensaio 10 e flauta 2 e
clarinete baixo no ensaio 11). Isso é representado através da seguinte notação:
Outros exemplos de microtransformações texturais se dão quando surgem notas ruidosas
nas cordas em overpressure, em growl (ou frullato) nas madeiras ou com as surdinas nos metais,
que são mais pressionadas nos ataques e liberadas ad libitum, como nos seguintes trechos:
Ensaio 7, trombone
Violino no ensaio 8
E tudo isso culmina para uma ruptura final cuja textura é micropolifônica, durante os
últimos impulsos do contrabaixo, de sucessivos ataques nas cordas tocadas o mais rápido
possível, no seguinte trecho do ensaio 10:
A partir da segunda seção (ensaios 12 a 22) do primeiro episódio, toda aquela impressão
de centralidade na nota Mi vai se esvaindo através de uma diversa atividade textural. Esta seção,
de caráter mais flutuante, de exalação e repouso, é anunciada pelo tam-tam e um acorde
sustentado de fortíssimo (ff) a fortissíssimo (fff) nos sopros.
Página 11, início do ensaio 12
Nesta seção, há uma maior atividade percussiva, que, de alguma maneira, repercute o que
o contrabaixo na seção anterior prenunciava: a aperiodicidade rítmica:
É uma seção que começa rememorando o ruído a partir do ensaio 13, cuja tessitura vai
de um registro grave, com as cordas em overpressure:
E culmina até a flutuação das flautas em glissandi, contrapostas aos harmônicos nas
cordas, como uma meta de repouso com uma mínima tensão no ensaio 22:
Há uma sucessão de modulações tímbricas que são compostas por pares de notas em
distâncias microintervalares a partir do ensaio 14 ao 20, que tomam como referência o espectro
harmônico do trombone, com as notas em um quarto-de-tom. Trata-se da aplicação da
modulação em anel25 dentro do contexto orquestral, cuja complexidade é sentida quando se
justapõem notas com uma diferença intervalar em um quarto-de-tom. Grisey tem o cuidado de
por elas senza vibrato, para tal efeito, apesar de gradualmente trabalhar com tremolos e, por fim,
vibratos:
Ensaios 14-15
25
A multiplicação de uma onda portadora com uma moduladora. É expressa através da seguinte equação: f = (a * i)
+/- (b * i), onde f = frequência, a = gerador 1, b = gerador 2, i = índice de modulação. Maiores detalhes sobre como
ocorre o fenômeno em Partiels, ver ARRELL, 2002, p. 324. Copini (2010, p. 32) e Barros (2013, p. 57) fazem uma
explanação mais detalhada a respeito do uso das técnicas eletroacústicas aplicadas pelo espectralismo, explicando,
também, a modulação em anel.
Ensaios 16-17
Ensaios 20-21
Deixo claro, sobretudo que tal utilização de microintervalos não tem nada a ver
com uma extensão artificial e refinada do sistema temperado tal como propõem
as músicas ditas em terço ou em quarto de tom. Isto se trata, ao contrário, de
uma projeção por um espaço harmônico e melódico originado da estrutura
natural dos sons.26 (Trecho de Écrits, de Gerard Grisey)
26
GRISEY, apud COPINI, 2010, p. 27.
27
BARROS, 2013, p. 109.
3.2. Segundo ciclo – ensaios 23 a 33
Percebe-se até aqui que a plástica sonora emergiu da densidade à fluidez. E chegando ao
segundo episódio, que vai do ensaio 23 ao 33, têm-se isso de forma clara. Trata-se de duas
seções em que uma expressa tensionamento (inspiração, ensaios 23 a 27) e outra de repouso
(exalação, ensaios 28 a 33). A partir da primeira seção textural deste episódio, a estaticidade
cede lugar a uma micropolifônica movimentação flutuante das alturas.
Começo do ensaio 23
Ensaio 27
A respeito da referida seção, Arrell 28 nota que, após a atuação das cordas em harmonia
no ensaio 23, as adicionadas flautas no ensaio 24 atuam de modo a trabalhar como ondas
28
2002, p. 325.
geradoras em uma modulação em anel com notas em desarmonia. Os instrumentos ou sons
geradores estão demarcados como Hauptstimme, ao passo que os sons diferenciais são colocados
como Nebenstimme. A orquestração é sistemática com a gradual adição do dobramento do
clarinete no ensaio 25 (que incrementam ainda mais a inarmonicidade), de registros ainda mais
graves do que as flautas, com o contrabaixo, e o dobramento do clarinete com o corne inglês
(ensaio 26) e, por fim, o “rugido de leão” do tambor de corda e a aparição do clarinete baixo
(ensaio 27). Uma textura que evolui da leveza para a densidade nebulosa nesta seção.
29
Se a síntese aditiva é um processo cumulativo de soma de componentes tímbricos, a subtrativa faz uma filtragem
seletiva de parte das frequências que elimina ou atenua zonas do espectro sonoro, podendo dar ênfase
determinada faixa do espectro, criando ressonância.
30
ARRELL, 2002, p. 327.
Ensai
o 28
Ensaios 28-29
Ensaios 29-30, cordas em uníssono
31
ARRELL, 2002, p. 328
No ensaio 30, para contrastar com o canon espectral nas madeiras e no vibrafone, surge
um insólito uníssono entre as cordas de um fá# prolongado em três compassos que, em seguida,
se torna um dó meio-#. Trata-se de um raro momento em que uníssonos aparece nesta peça, para
rememorar a estaticidade em meio à micropolifonia. Com o cluster no acordeom e um rufo em
um pequeno chimbal, o ensaio 31 descreve uma rápida ascensão dessa espiral em voo tanto nas
cordas em glissandos cromáticos e harmônicos descendentes, quanto nas notas agudas
lepidamente executadas nas madeiras; ao passo que as cordas estão num accelerando rítmico
poco a poco, as madeiras estão num rallentando poco a poco. Aos poucos, as cordas também
entram num rallentando, ao passo que o cluster no acordeom se finaliza (ensaio 32). E a textura
se torna mais esparsa para (novamente) culminar nas duas flautas, em pianíssissimo dulcíssimo
(ensaio 33). Elas chegam a lembrar silvos distantes, que se reiteram indefinidamente em seu voo
contrapontístico.
Ensaios 30-31
Trecho do ensaio 31
Ensaio 32 (trecho inicial)
Ensaios 33-34
E assim se finalizou a filtragem sonora de uma síntese subtrativa, que foi desde o ruído,
passando pela micropolifonia, até chegar a um simples contraponto entre duas distantes vozes.
Mas o que vem a seguir é ainda mais vigoroso e surpreendente.