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UFBA – Universidade Federal da Bahia

Escola de Música da UFBA


MUS A76 – Literatura e Estruturação Musical VIII
Professor: Wellington Gomes
Aluno: George Cristian Vilela Pereira

Análise textural-formal de “Partiels” de Gérard Grisey

Publicada em 1975, Partiels de Gérard Grisey é uma das peças mais analisadas e, bem
possivelmente, uma das mais canônicas dentro do espectralismo francês 1. Ela é a terceira do
ciclo Les Espaces Acoustiques (1974-1985). Ao por em cena o interesse por um fenômeno
sônico que é o espectro harmônico gerado pela nota E2 executada num trombone e analisada a
partir de um sonograma eletrônico, a peça traz esse mesmo espectro como um modelo para a
síntese orquestral. Partiels se utiliza do conceito de síntese aditiva do Teorema de Fourier para a
realização da síntese orquestral (ou instrumental) 2. Ela transporta para a orquestra a aplicação de
técnicas da música eletrônica, que são a modulação anel e a síntese aditiva 3, com uma estrutura
formal determinada por seções texturais.
O objetivo do trabalho será o de analisar as plásticas sonoras em cada seção de Partiels,
especialmente a partir de seus dados texturais. Ele se estrutura da seguinte maneira:
a) Grisey, elaboração e estreia de Partiels
b) O que é Música Espectral?
c) Análise da Estrutura Textural-Formal de Partiels

1. GRISEY, ELABORAÇÃO E ESTREIA DE PARTIELS

O professor e compositor francês Gérard Grisey nasceu em 17 de junho de 1946, na


cidade de Belfort4. Ele manifestou desde os nove anos um interesse precoce pela música,
1
Foi o que inferimos a partir da profícua quantidade de estudos sobre a peça, como em considerações como as
expostas no jornal The Guardian (A Guide to Gérard Grisey, in: The Guardian,
https://www.theguardian.com/music/tomserviceblog/2013/mar/18/gerard-grisey-contemporary-music-guide.
Acesso em 29 de setembro de 2018.)
2
IRCAM. In: http://brahms.ircam.fr/works/work/8966/ . Acesso em 29 de setembro de 2018.
3
Idem, ibidem. Tal consideração também é encontrada em ARRELL, Chris. The Music of Sound: An Analysis of
Grisey's Partiels. In: https://issuu.com/chrisarrell/docs/arrellpartielsanalysis. Acesso em 29 de setembro de 2018.
4
Informações biográficas extraídas das seguintes páginas: SMCQ, in:
http://www.smcq.qc.ca/smcq/en/artistes/g/grisey_ge/; IRCAM, in:
http://brahms.ircam.fr/composers/composer/1492/ ; Wikipédia, in: https://en.wikipedia.org/wiki/G
começando seus estudos no acordeom com Ido Valli na mesma cidade onde nasceu. Inclusive,
Grisey chegou a ganhar um concurso de acordeom em Toronto em sua juventude. (Não é à toa,
portanto, a inclusão do acordeom em Partiels.)
Grisey ingressou no Conservatório de Trossingen em 1963, estudando lá por dois anos
antes de entrar no Conservatoire National Supérieur de Musique (hoje, simplesmente,
Conservatoire de Paris), recebendo uma educação formal e clássica a partir de 1965. Lá, ele foi
aluno de Olivier Messiaen de 1968 a 1972. Em paralelo, Grisey também chegou a estudar com
Henri Dutilleux na École Normale de Musique, em 1968, e com Jean-Étienne Marie aprendeu
eletroacústica em 1969. Grisey chegou a participar de seminários com conferências de Karlheinz
Stockhausen, Iannis Xenakis e Gyórgy Ligeti em 1972 na cidade alemã de Darmstadt.
Grisey foi premiado com um Prix de Rome, que lhe garantiu uma bolsa de estudos na
Villa Médicis em Roma, entre 1972 e 1974, onde ele descobriu a música de um importante
precursor para o Espectralismo, que foi Giacinto Scelsi. Foi durante esse período que ele formou
o grupo l’Intinéraire, junto com Tristan Murail, Roger Tessier, Michael Lévinas e Hugues
Dufourt (a posteriori). O l’Intinéraire tinha como missão a qualidade nas interpretações e a
defesa de um repertório contemporâneo. Foi justamente com esse núcleo de compositores-
intérpretes que Grisey formou a base para uma nova estética de composição, que procurava se
concentrar tanto nos aspectos culturais quanto físico-científicos do som 5. Um pensamento que
procurará criar uma nova maneira de estruturar os parâmetros da música ao explorar a série
harmônica6 – o que, mais tarde, se denominaria Espectralismo.
Partiels foi fruto de um período em que Grisey estudou acústica sendo tutorado por
Émile Leipp entre 1974 e 1975, na VI Universidade de Paris (ou Université Pierre et Marie
Curie, UPMC). Sendo ela parte de um ciclo de peças intitulado Les Espaces Acoustiques e
precedida por Prologue e Périodes, ambas de 1974, Partiels dá continuidade ao trabalho
instrumental de Périodes incluindo também 18 instrumentos. Ela foi publicada pela Editora
Ricordi em 1975 e estreada pelo Ensemble l’Intinéraire em 4 de março de 1976, sob a regência
de Boris de Vinogradov.
Desde então, Gérard Grisey chegou a ser estagiário pelo IRCAM em 1980, realizou uma
série de seminários de composição em diversas cidades europeias e em universidades norte-
americanas, teve composições encomendadas por diversas instituições internacionais. Entre 1982

%C3%A9rard_Grisey , https://fr.wikipedia.org/wiki/G%C3%A9rard_Grisey.
5
Castanet, P.A. Gerard Grisey and the Foliation of Time. In: Spectral Music, vol. 2, 2000.
6
A Guide to Gérard Grisey, in: The Guardian,
https://www.theguardian.com/music/tomserviceblog/2013/mar/18/gerard-grisey-contemporary-music-guide.
Acesso em 29 de setembro de 2018.
e 1986, Grisey lecionou na Universidade da Califórnia em Berkley e foi professor de composição
no Conservatório Nacional de Música de Paris entre 1986 até o seu falecimento em 11 de
novembro de 1998, devido a uma ruptura do aneurisma, aos 52 anos.

2. O QUE É MÚSICA ESPECTRAL?

A relação entre música e acústica é uma preocupação que remonta desde a antiguidade
grega, e ela foi se modificando no decorrer dos tempos, como também a relação entre o homem e
a natureza. A partir do século XIII, já vemos tratados que procuram estabelecer relações entre o
espectro sonoro e a prática composicional, tendo como um exemplo mais notório o Tratado de
Harmonia de Jean-Phillipe Rameau, escrito em 17227. A série harmônica, uma série infinita, foi
uma descoberta acústica que permitiu à humanidade a escolha de intervalos musicais que mais
lhe diziam respeito durante a sua história. Pode-se considerar, no entanto, com o advento das
pesquisas eletrônicas em torno das propriedades do som e da extração do espectro harmônico do
som, que a música espectral é, claramente, um produto da música do século XX.
A música espectral é uma nova atitude diante da série harmônica, da música e da
composição. Trata-se de uma música que trata o som como um fenômeno em primazia, em que
se busca uma ligação mais intrínseca entre a escrita e a experiência auditiva, em oposição às
ideias de permutação de parâmetros musicais e de estruturalismo formal de compositores que lhe
são antecessores8. É uma estética musical que encontra antecedentes tanto nos acordes
cromáticos de Wagner transmutados em espectros na textura 9, ou nos efeitos tímbricos
impressionistas de Debussy e Ravel e na Klangfarbenmelodie de Webern e Schöenberg, quanto
também em vanguardistas da segunda metade do século XX, como Messiaen, Stockhausen,
Scelsi, Ligeti ou Xenakis10. Entretanto, ela não deve ser entendida como um sistema de
composição tal como o é o serialismo ou o tonalismo, por exemplo. A música espectral é, antes
de tudo, uma atitude composicional que prioriza a percepção do som no tempo e na manipulação
acústica, com suas transformações sendo esculpidas durante o processo de sua escuta11.
7
Informação extraída a partir de COPINI, 2010, p. 5.
8
In: BARROS, 2013, p. 14.
9
BARROS (idem, ibidem) menciona Jonathan Harvey a respeito disso.
10
BARROS aponta esses compositores como os mais pertinentes como precursores para as atitudes composicionais
de Grisey. Na verdade, há outros compositores que também tiveram uma importância precursora desvinculada da
incipiência francesa nos anos 1970, tais como Per Nörgard ou James Tenney. O artigo de Joshua Fineberg, Spectral
Music (2000) cobre amplamente o assunto.
11
Ver FINEBERG, 2000, p. 2-3. Ele lembra que foi o crítico e compositor Hughes Dufort que cunhou o termo
“música espectral”, mas foi Tristan Murail que definiu essa estética muito mais como uma atitude composicional
do que como um sistema. Além do mais, segundo Fineberg, os espectralistas podem ter estilos abrangentemente
diferentes, ou rejeitar o termo, como o próprio Grisey.
Mesmo com a presença de precursores, Gérard Grisey é tido, junto com Tristan Murail,
como fundador dessa estética pelo musicólogo e compositor Jérome Baillet 12. Grisey, apesar de
rejeitar o termo “espectralismo” ou “música espectral”, não se limitou a compor dentro dessa
estética no ciclo Les Espaces Acoustiques, como também foi um atento teórico que enxergou em
seus Écrits quais seriam as principais consequências dentro do espectralismo, que seriam as
seguintes13:
 Integração entre harmonia e timbre;
 Reestabelecimento das noções de consonância, dissonância e modulação;
 Estabelecimento de novas escalas e reinvenção melódica;
 Atitude atenciosa à fenomenologia da percepção;
 Integração do tempo como objeto da forma;
 Exploração das formas de fusão e limites entre os diferentes parâmetros de som;
 Jogo entre fusão e continuidade, por um lado, difração e descontinuidade, por outro;
 Aplicação do processo em oposição ao desenvolvimento tradicional;
 Sobreposição, faseamento, ou deslocamento de processos contraditórios,
incompletos, ou mesmo sugeridos, e de tempos radicalmente diferentes.

Grisey é um compositor cuja atenção especial se concentra na escultura do som no


tempo e seus limites de percepção nas transições, com uma procura de elaboração tímbrica a
partir de referenciais microintervalares. Tudo isto devido a uma nova fronteira aberta, que é a
escuta microfônica do som com o advento das possibilidades tecnológicas no século XX 14. Em
Les Espaces Acoustiques, ele mesmo apontou nos Écrits15 as principais características de
linguagem empregadas no ciclo:
 Composição com sons, não com notas;
 Composição dos sons e da diferença que existe entre eles;
 Controle da transformação entre um som em outro;
 Aplicação dos fenômenos experimentados em estúdio eletrônico;
 Consideração do papel e da relatividade da percepção auditiva.

12
BARROS, 2013, p. 14.
13
GRISEY (2008, p. 122), apud BARROS, 2013, p. 15.
14
Vale mencionar uma fala do próprio Grisey nos Écrits (2008, p. 89, apud BARROS, 2013, p. 18) que é a seguinte:
“a eletrônica nos permitiu uma escuta microfônica do som. O próprio interior do som, que esteve fechado e oculto
por muitos séculos de práticas musicais essencialmente macrofônicas é, enfim, libertado para o nosso
maravilhamento.”
15
GRISEY, 2008, p. 135, apud BARROS, 2013, p. 16.
Para tal, Grisey adota uma atitude heterodoxa quanto ao material sonoro, “em busca de
um resultado que não se relaciona estritamente ao ‘espectro’ usado como origem e fonte de
material musical16”, usando de técnicas que são prioritariamente servas de seus propósitos
estético-composicionais. E um dos aspectos especiais na música de Grisey é o tratamento
textural, o qual é trabalhado na peça a ser analisada neste trabalho sobre Partiels (a terceira do
ciclo Les Espaces Acoustiques), e procuraremos perceber quais as técnicas empregadas para sua
elaboração formal a partir das propriedades mencionadas pelo próprio Grisey.

3. ANÁLISE DA ESTRUTURA TEXTURAL-FORMAL DE PARTIELS

O conjunto orquestral 17 da peça para 16 ou 18 músicos consiste no seguinte: 2 flautas (1ª.


também piccolo e flauta em Sol/ 2ª. também piccolo); 1 oboé (também corne inglês); 2 clarinetes
em Sib (1º. também clarinete em Mib, 2º. também clarinete em Lá); 1 clarinete baixo em Sib
(também clarinete contrabaixo em Sib); 2 trompas; trombone completo (ou tenor-baixo), com as
surdinas Plunger, Bol, Robinson, Wawa e Velvet; 1 acordeom de baixos cromáticos ou órgão
elétrico; 2 percussionistas; 2 violinos; 2 violas; 1 violoncelo; 1 contrabaixo. A partir disso,
podemos inferir que há uma certa maleabilidade na escolha instrumental, mesmo trabalhando
com direcionamentos técnicos muito detalhados e claramente definidos para cada instrumento.

Segundo Copini18, “No ciclo Espaces Acoustiques é possível constatar o uso dos modelos
naturais por Grisey. Uma das aplicações se dá na articulação ternária do ciclo, articulação criada
segundo a metáfora do ritmo respiratório: inspiração – expiração – repouso”. Em Partiels, isso
não é diferente. A peça começa com uma textura verticalmente estática de tensionamento,
prolongamento e relaxamento (em uma fermata); há uma nota Mi sendo atacada e distendida
tanto por um trombone em f, quanto impulsionada por um contrabaixo, que ataca três vezes em
sffz e do alto sul ponticello (ASP) para o ordinario (ORD), para o advento posterior das cordas e
madeiras, de piano a fortíssimo (ff), que ressoam notas que, não por acaso, são parte do espectro
harmônico da fundamental mi0, conforme poderemos ver aqui abaixo:

16
BARROS, 2013, p. 16.
17
GRISEY, 1975, p. 1.
18
2010, p. 41.
3.1. Primeiro ciclo – ensaios 1 a 22

Poderíamos dizer que há um primeiro episódio, ou primeiro ciclo respiratório, que


contém duas grandes seções texturais, que vai até o ensaio 22 19. A primeira seção, de 1 a 11, de
inspiração (ou tensionamento), varia em torno do primeiro gesto em ritornello que se apresenta
aqui, em que há uma primazia de notas sustentadas:

19
Ver ARRELL, 2002, p. 321, além de outros.
Trata-se de não somente a apresentação dos parciais harmônicos de maneira aditiva, mas
também a maneira como a síntese instrumental de Grisey começa a ser operada. Segundo o
compositor20, “Na síntese insrumental (...), é o instrumento que exprime cada componente do
som e, diferentemente da síntese eletrônica, estes componentes são complexos, e constituem em
si mesmos uma macrossíntese.”. E o resultado é uma viagem microscópica em torno da dilatação
do ataque do trombone em E2 (82,4Hz), na qual a harmonia emerge lentamente através do
timbre macroscopicamente21. O acorde consequente dessa emergida harmonia é variado e
prolongado 11 vezes durante esta primeira seção textural, conforme demonstrado aqui 22:

Depois do primeiro gesto em ritornello, impulsionado pelos ataques alto sulponticello no


contrabaixo, o que havia de estaticidade começa a tomar outros percursos tímbricos, com a
aparição de todos os naipes, mas com um amplo espectro de dinâmicas, entre o mezzo-piano
(mp) e o fortissíssimo (fff) e um colorido distinto. Gradativamente, sempre os timbres vão até o
nada, mas a permanência é açulada pelo baixo em Mi, alto sul ponticello. O compósito tímbrico
se torna ainda mais denso a cada invocação do contrabaixo, que, segundo Arnell 23, evoca os
transientes de ruído emitidos pelo trombone. E isso é regra desde a apresentação plena da série

20
GRISEY apud BARROS, 2013, p. 101.
21
ARRELL, 2002, p. 321.
22
BARROS, 2013, p. 105
23
ARRELL, 2002, p. 321.
harmônica após o ritornelo, na segunda página, até o término desse grande gesto na 20ª página,
final do número de ensaio 1124.

Página 2, número de ensaio 1

24
Na partitura da edição da Ricordi, é notável o fato de que não há numeração de compassos, mas de números
ensaio, além das páginas. Isso enfatiza ainda mais a concepção gráfica da composição.
Página 11, final de número de ensaio 11

Nota-se que, durante esta seção do primeiro episódio, há microgestos tímbricos, através
das técnicas estendidas, que tornam ainda mais complexa a transformação textural dos tuttis,
além das impulsões e repousos ao nada, que rompem com a estaticidade da emergida harmonia.
Tomemos como exemplo as violentas variações de intensidade sendo gradualmente dosadas
entre piano, mezzo-forte e forte, com um vibrato irregular, que ocorre primeiro com a viola (no
quarto compasso de tempo 2/4 na página 11, ensaio 4) e perpassa por outros distintos
instrumentos (violino no ensaio 5, trompa no ensaio 6, tuba e violoncelo no ensaio 7, flauta 1 no
ensaio 8, flauta 1 novamente e violino no ensaio 9, cornes ingleses no ensaio 10 e flauta 2 e
clarinete baixo no ensaio 11). Isso é representado através da seguinte notação:
Outros exemplos de microtransformações texturais se dão quando surgem notas ruidosas
nas cordas em overpressure, em growl (ou frullato) nas madeiras ou com as surdinas nos metais,
que são mais pressionadas nos ataques e liberadas ad libitum, como nos seguintes trechos:

Trecho do ensaio 10, violinos e viola

Ensaio 11, flauta

Ensaio 7, trombone

Há também microtransformações quando há rápidos glissandos com harmônicos nas


cordas, durante algumas invocações do contrabaixo, como nos seguintes exemplos:

Violino no ensaio 8

Violoncelo e violino no ensaio 9


Viola 2 e violoncelo no ensaio 10

E tudo isso culmina para uma ruptura final cuja textura é micropolifônica, durante os
últimos impulsos do contrabaixo, de sucessivos ataques nas cordas tocadas o mais rápido
possível, no seguinte trecho do ensaio 10:

Violinos 1 e 2, violas 1 e 2, violoncelo e contrabaixo, ensaio 10

A partir da segunda seção (ensaios 12 a 22) do primeiro episódio, toda aquela impressão
de centralidade na nota Mi vai se esvaindo através de uma diversa atividade textural. Esta seção,
de caráter mais flutuante, de exalação e repouso, é anunciada pelo tam-tam e um acorde
sustentado de fortíssimo (ff) a fortissíssimo (fff) nos sopros.
Página 11, início do ensaio 12

Nesta seção, há uma maior atividade percussiva, que, de alguma maneira, repercute o que
o contrabaixo na seção anterior prenunciava: a aperiodicidade rítmica:

Ensaios 14-15, clarinete-baixo e tambor de madeira

É uma seção que começa rememorando o ruído a partir do ensaio 13, cuja tessitura vai
de um registro grave, com as cordas em overpressure:
E culmina até a flutuação das flautas em glissandi, contrapostas aos harmônicos nas
cordas, como uma meta de repouso com uma mínima tensão no ensaio 22:

Há uma sucessão de modulações tímbricas que são compostas por pares de notas em
distâncias microintervalares a partir do ensaio 14 ao 20, que tomam como referência o espectro
harmônico do trombone, com as notas em um quarto-de-tom. Trata-se da aplicação da
modulação em anel25 dentro do contexto orquestral, cuja complexidade é sentida quando se
justapõem notas com uma diferença intervalar em um quarto-de-tom. Grisey tem o cuidado de
por elas senza vibrato, para tal efeito, apesar de gradualmente trabalhar com tremolos e, por fim,
vibratos:

Ensaios 14-15

25
A multiplicação de uma onda portadora com uma moduladora. É expressa através da seguinte equação: f = (a * i)
+/- (b * i), onde f = frequência, a = gerador 1, b = gerador 2, i = índice de modulação. Maiores detalhes sobre como
ocorre o fenômeno em Partiels, ver ARRELL, 2002, p. 324. Copini (2010, p. 32) e Barros (2013, p. 57) fazem uma
explanação mais detalhada a respeito do uso das técnicas eletroacústicas aplicadas pelo espectralismo, explicando,
também, a modulação em anel.
Ensaios 16-17
Ensaios 20-21

O uso dos microintervalos é uma das técnicas caras ao espectralismo, especialmente no


intuito de aproximação com os parciais que não têm correspondência na escala temperada.
Grisey, em sua música, explica o porquê disto dizendo:

Deixo claro, sobretudo que tal utilização de microintervalos não tem nada a ver
com uma extensão artificial e refinada do sistema temperado tal como propõem
as músicas ditas em terço ou em quarto de tom. Isto se trata, ao contrário, de
uma projeção por um espaço harmônico e melódico originado da estrutura
natural dos sons.26 (Trecho de Écrits, de Gerard Grisey)

A manipulação disso, presente desde o início de Partiels, evoca a palpabilidade das


infinitas possibilidades da harmonia, quando seu conceito se torna superado de modo a se
apresentar puramente como som, como timbre. E nesta seção em particular, dos ensaios 14 a 21,
elas são aplicadas com as seguintes alturas 27 (as indicadas em losango indicam diferenciais
abaixo de 20Hz):

26
GRISEY, apud COPINI, 2010, p. 27.
27
BARROS, 2013, p. 109.
3.2. Segundo ciclo – ensaios 23 a 33

Percebe-se até aqui que a plástica sonora emergiu da densidade à fluidez. E chegando ao
segundo episódio, que vai do ensaio 23 ao 33, têm-se isso de forma clara. Trata-se de duas
seções em que uma expressa tensionamento (inspiração, ensaios 23 a 27) e outra de repouso
(exalação, ensaios 28 a 33). A partir da primeira seção textural deste episódio, a estaticidade
cede lugar a uma micropolifônica movimentação flutuante das alturas.
Começo do ensaio 23

Essa movimentação é começada a partir do violino 2 e contamina desde as cordas até


todos os outros naipes; as notas aqui estão atacadas ligeiramente num fluxo contínuo e nebuloso
que é ressaltado pela ligação dos colchetes ultrapassam as barras de compasso, numa dinâmica
limítrofe entre o pianíssimo e o mezzo-forte, em cinco grandes frases (ensaios 23-27):
Cordas no ensaio 23

Ensaio 27

A respeito da referida seção, Arrell 28 nota que, após a atuação das cordas em harmonia
no ensaio 23, as adicionadas flautas no ensaio 24 atuam de modo a trabalhar como ondas
28
2002, p. 325.
geradoras em uma modulação em anel com notas em desarmonia. Os instrumentos ou sons
geradores estão demarcados como Hauptstimme, ao passo que os sons diferenciais são colocados
como Nebenstimme. A orquestração é sistemática com a gradual adição do dobramento do
clarinete no ensaio 25 (que incrementam ainda mais a inarmonicidade), de registros ainda mais
graves do que as flautas, com o contrabaixo, e o dobramento do clarinete com o corne inglês
(ensaio 26) e, por fim, o “rugido de leão” do tambor de corda e a aparição do clarinete baixo
(ensaio 27). Uma textura que evolui da leveza para a densidade nebulosa nesta seção.

A partir do ensaio 28 até o 33, temos a aplicação da síntese subtrativa 29 e a presença


mais intensa do ruído. Vemos dois planos claramente contrastantes, em que corne inglês,
clarinetes em Bb, clarinete-baixo e trompa se lançam num trinado intenso com oscilações de
dinâmica em decréscimo, interagindo com o tam-tam nesta mesma atividade dinâmica e com as
cordas em sul ponticello, irregularmente ricocheteando stacattos. Trata-se de uma textura
densamente micropolifônica, em que se executa nas cordas e nos sopros um cluster que é
particionado somente em um tom entre os naipes. É assim que o compositor trabalha a síntese
subtrativa no âmbito da orquestra, trazendo todas as frequências possíveis de modo a criar um
ruído branco para, em seguida, aplicar filtros para criar o timbre desejado 30. Com a seleção de
instrumentação, combinada com a execução, Grisey trabalha uma plástica sonora que vai da
intensidade ebuliente até ser interferida pelo contrabaixo com surdina em trinados que
progressivamente “contamina” fantasmagoricamente com um cânon o restante das cordas
(também em trinados e com surdina), passando pelo vibrafone (ensaio 29), até chegar às
madeiras (flautas, oboés e clarinetes), somada a uma pequena interferência microtonal da trompa
(ensaio 30).

29
Se a síntese aditiva é um processo cumulativo de soma de componentes tímbricos, a subtrativa faz uma filtragem
seletiva de parte das frequências que elimina ou atenua zonas do espectro sonoro, podendo dar ênfase
determinada faixa do espectro, criando ressonância.
30
ARRELL, 2002, p. 327.
Ensai
o 28
Ensaios 28-29
Ensaios 29-30, cordas em uníssono

Uma espiral em ascensão começou a ser formada desde o contrabaixo no ensaio 28 e


veio a ser paulatinamente progredida nos ensaios seguintes. O cânon descrito por ela é o
seguinte31:

31
ARRELL, 2002, p. 328
No ensaio 30, para contrastar com o canon espectral nas madeiras e no vibrafone, surge
um insólito uníssono entre as cordas de um fá# prolongado em três compassos que, em seguida,
se torna um dó meio-#. Trata-se de um raro momento em que uníssonos aparece nesta peça, para
rememorar a estaticidade em meio à micropolifonia. Com o cluster no acordeom e um rufo em
um pequeno chimbal, o ensaio 31 descreve uma rápida ascensão dessa espiral em voo tanto nas
cordas em glissandos cromáticos e harmônicos descendentes, quanto nas notas agudas
lepidamente executadas nas madeiras; ao passo que as cordas estão num accelerando rítmico
poco a poco, as madeiras estão num rallentando poco a poco. Aos poucos, as cordas também
entram num rallentando, ao passo que o cluster no acordeom se finaliza (ensaio 32). E a textura
se torna mais esparsa para (novamente) culminar nas duas flautas, em pianíssissimo dulcíssimo
(ensaio 33). Elas chegam a lembrar silvos distantes, que se reiteram indefinidamente em seu voo
contrapontístico.
Ensaios 30-31

Trecho do ensaio 31
Ensaio 32 (trecho inicial)

Ensaios 33-34
E assim se finalizou a filtragem sonora de uma síntese subtrativa, que foi desde o ruído,
passando pela micropolifonia, até chegar a um simples contraponto entre duas distantes vozes.
Mas o que vem a seguir é ainda mais vigoroso e surpreendente.

3.4. Terceiro ciclo – ensaios 34 a 46

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