Você está na página 1de 11

1

UFBA – Universidade Federal da Bahia


EMUS – Escola de Música da UFBA
MUS A89 – Introdução à Pesquisa II
Profa. Maria da Conceição Perrone
Aluno: George Cristian Vilela Pereira

Microtonalidade e técnicas estendidas na música de Georg Friedrich Haas

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho se propõe a apresentar um compositor contemporâneo ainda vivo e, até o


presente momento, pouco estudado no contexto acadêmico, que é o austríaco Georg Friedrich
Haas (b. 1953-). Procuraremos trazer um aspecto especial no trabalho dele que o torna distinto
na contemporaneidade num estilo de composição pós-espectralista, que é o da microtonalidade.
Como ele opera com isso em contextos tanto camerísticos, quanto orquestrais é o que interessa
ao presente estudo. O artigo procurará trazer as principais características do trabalho
composicional de Haas a partir de seus aspectos de exploração sonora e como o microtonalismo
nele é distinto em comparação com seus antecessores mais diretos no século XX e, assim,
expandindo as fronteiras da harmonia.
Haas é um compositor de renome mundial, cujo prolífico trabalho é célebre tanto por
incorporar aspectos cênicos (em particular, a escuridão) e exploração texturais diversas. Como
compositor vivo e ainda atuante, ele é prolífico, tendo escrito peças camerísticas (quartetos de
cordas, sobretudo) e orquestrais de diversas formações, como também óperas. Suas obras de
destaque chamam à atenção pela capacidade de trazer desafios tanto de execução instrumental,
quanto de escultura sonora da forma de maneiras bastante salutares e ricos de serem examinados
tanto na escuta, quanto na escrita sonora. Serão fornecidas algumas informações biográficas
que servirão de base para o entendimento dos rumos traçados pela música do autor. E, a partir
das partituras e das escutas de algumas de suas obras referenciais no campo da música de
concerto, procuraremos aspectos distintivos do uso de técnicas estendidas (tanto timbrística,
quanto textural) e o da microtonalidade em um estudo de caso.
2

2. GEORG FRIEDRICH HAAS – RESUMO BIOGRÁFICO E ESTILÍSTICO1

Compositor nascido em 1953 na cidade de Graz, ao leste da Áustria, Georg Friedrich


Haas passou a infância na região montanhosa da província de Vorarlberg, na fronteira com a
Suíça. Mas, ao retornar para Graz, estudou composição, com Gösta Neuwirth e Ivan Eröd, e
piano, com Doris Wolf na Universidade de Música e Artes Performativas de Graz. Em 1978,
ele começa a ensinar música pela mesma universidade, e, em 1989, se estabelece como
professor de contraponto, de técnicas de composição contemporânea, de análise e introdução à
música microtonal. Após 2 anos de estudos de pós-graduação, Haas estudou na Hochschule für
Musik em Vienna com o com o compositor Friedrich Cerha, participou do Darmstädter
Ferienkurse (1980, 1988 e 1990), e o curso de música computacional do IRCAM (1991).
Haas recebeu algumas láureas em sua carreira, e sua música já foi incluída no programa
de uma série de festivais e executada por uma variedade de ensembles e orquestras. Ele é
reconhecido internacionalmente como um dos compositores vivos mais importantes na
atualidade e sua peça orquestral in vain é considerada como uma das primeiras obras-primas do
século XXI pelo maestro Sir Simon Rattle2. Atualmente, ele leciona composição pela Columbia
University em Nova Iorque, onde reside desde 2013.
A obra de Haas é marcada pela profunda experimentação sonora com a expansão dos
usos acústicos, harmônicos e texturais, como também no pensamento estético. Sua música
trabalha com uma escrita textural cuja influência remonta tanto a György Ligeti, quanto à escola
francesa do espectralismo (Gerard Grisey, Tristan Murail), no uso da micropolifonia, dos
microintervalos e da série harmônica em seus efeitos tímbricos. Associado ao conhecimento da
escultura do som espectralista, Haas tem uma importante e decisiva incorporação do
microtonalismo na sua feitura musical, tendo já escrito sobre os compositores microtonalistas
Alois Hába ou Ivan Wyschnegradsky. Num artigo dele entitulado “Além dos 12 Semitons –
Tentativa de Sinopse de Técnicas de Composição Microtonal”, apresentado no Festival de
Salzburgo em 1999, ele escreveu o seguinte:

Micro counts as ‘tonality’ only in contrast with ‘normal tonality’ in its role as
a system of reference. Where this system of reference has become obsolete,

1
Informações obtidas em Wikipedia, https://en.wikipedia.org/wiki/Georg_Friedrich_Haas, e Universal Edition,
https://www.universaledition.com/georg-friedrich-haas-278. Acesso em 24 de novembro de 2019.
2
In: Berliner Philarmoniker – Digital Concert Hall, https://www.digitalconcerthall.com/en/interview/3849-2.
Acesso em 26 de novembro de 2019.
3

the notion of ‘microtonality’ has been replaced by the free decision of the
individual composer in his use of pitch as his material. 3

Ele trabalha com uma visão estética que é guiada pela missão de articular “as emoções
humanas e estados de alma de tal maneira que outros seres humanos consigam abraçar essas
emoções humanas e estados de alma como suas”, com peças de natureza soturna, com efeitos
de luz que são prescritos em suas partituras, a exemplo de in vain (2000), escrita em lamento
pela nova ascensão política do fascismo na Europa. O compositor disse em entrevista que, longe
de querer simbolizar na obscuridade o fascismo, ele procura expressar os medos e o desespero
perante a chegada de um novo fascismo4, além de trazer novos desafios à execução, tais como
a memorização do músico-intérprete. Em suma, um compositor com preocupações político-
humanistas, ainda que não-panfletário. E o microtonalismo conta como um reforço dramático
dentro da narrativa composicional de Haas.

3. MICROTONALISMO E TÉCNICAS ESTENDIDAS

Começaremos definindo dois conceitos básicos para este estudo. O microtonalismo é


o uso musical de intervalos menores que um semitom; há também práticas que exploram o
macrotonal. Não é necessariamente uma técnica de composição, muito embora possa ser se
implementado de maneira que a incorporação do microtom seja algo devidamente prescrito e
sinalizado dentro de uma composição. Compositores como Julián Carrillo, Harry Partch, Ivan
Wyschnegradsky ou Alois Hába empreenderam sérios estudos explorando diferentes sistemas
de afinação, como também criando escalas distintas. Vale lembrar que o microtonalismo é tão
antigo quanto a própria humanidade, tendo sido já devidamente explorado na cultura musical,
especial e sobretudo, do Oriente.
Já o espectralismo é mais uma atitude do que uma técnica de composição, pois trabalha
com a expansão da harmonia e da transformação sonora dos timbres a partir de estudos em um
espectrograma; neles, são extraídas a série harmônica que poderá definir tanto o conjunto de
notas a ser explorado pelo compositor, como também acordes, massas sonoras. O espectralismo,

3
Microtonal conta como ‘tonal’ somente em contraste com a “tonalidade normal” em seu papel como sistema
de referência. Onde este sistema de referência tem se tornado obsoleto, a noção de “microtonalidade” foi
substituída pela livre decisão do compositor no seu uso das alturas como seu material. (HAAS, apud Universal
Edition, https://www.universaledition.com/georg-friedrich-haas-278. Acesso em 24 de novembro de 2019.
Traduzido pelo autor.)
4
“A Few Moments with Georg Friedrich Haas”, in The Riot Ensemble: http://riotensemble.com/a-few-
moments-with-georg-friedrich-haas/. Acesso em 24 de novembro de 2019.
4

no entanto, trata o microtom mais como um “acidente” do que como uma nota real, apesar de
prescrito e parte da série harmônica.
Há duas maneiras básicas, segundo o compositor Alexandre Torres Porres, de se
trabalhar com o microtom na música, que fez um estudo comparativo entre Alois Hába e Gérard
Grisey no artigo Microtonalidade no Século XX: Duas Abordagens Composicionais5. Cita-se:

Na obra de Alois Hába, o uso de intervalos microtonais age na expansão de


conceitos e recursos como desenvolvimento atemático, melodia com
acompanhamento e centro gravitacional, agregando novas sonoridades e
coloridos. O trabalho de Hába também se enquadra na relação intervalar
discreta de microtons, no qual estes intervalos fazem parte de um sistema fixo.

No caso de Gérard Grisey, o sistema 12-DIO não satisfaz suas estratégias


composicionais, pois o mesmo torna-se limitado na construção de
ressonâncias naturais derivadas da série harmônica (intervalos justos) e na
geração de parciais inarmônicos num contexto de uma nova complexidade
espectral. A abordagem espectralista não busca elaborar um sistema
microtonal específico, pois vincula-se ao conceito de construção de um
continuum de freqüências.

Haas faz com que haja uma convivência entre essas duas abordagens, uma surgida pré-
II Guerra Mundial (Hába, microtonalista) e a outra no pós-II Guerra (Grisey, espectralista),
conforme demonstraremos a seguir. Ele traz uma nova atitude de liberdade de uso do microtom
dentro do contexto da música de concerto, conforme descreve-se a seguir.

3.1. Microtonalidade real

Haas já manifestou apreciação pelo uso do Justo Temperamento (Just Intonation)


como padrão de afinação em entrevistas, como também já escreveu sobre microtonalistas como
Wyschnegradsky ou Hába, além de admitir influências de La Monte Young ou Harry Partch.
Todavia, ele opta por uma abordagem livre da microtonalidade. E ela se dá de duas maneiras:
pela criação de afinações alternativas num dado conjunto instrumental e pela execução
deliberada de notas microtonais.
Um exemplo de criação de afinações de Haas se dá na peça Quartett für vier Guitarren,
cuja afinação distinta entre os 4 violões se dá da seguinte maneira:

5
PORRES, p. 7, 2005.
5

Conforme explica Haas6:


I have already requested in some of my earlier pieces that the strings of the
instruments should be deliberately detuned, so that simply by playing the open
strings an overtone chord can be produced. In the case of the guitar this is
relatively simply achieved: one has only to tune the bottom string a whole tone
lower, the third string slightly more than a semitone lower, and the second
string slightly more than a semitone higher. If the remaining strings are then
tuned accurately in pure fourths and fifths, the six open strings produce a chord
composed of the second, third, fourth, fifth, seventh and ninth partials of a low
D: D-A-d-f# (minus 1/12 tone), c’ (minus 1/12 tone), e’.

6
“Eu já pedi em algumas de minhas peças iniciais que as cordas dos instrumentos devessem ser
deliberadamente desafinadas, para que, simplesmente, ao tocar as cordas soltas um acorde harmônico
pudesse ser produzido. No caso do violão, isto é relativamente simples de se atingir: alguém tem de afinar a
corda de baixo um tom abaixo, a terceira corda um pouco mais do que um semitom abaixo, e a segunda corda
um pouco mais do que um semitom. Se as cordas restantes forem, então, afinadas apuradamente em quartas e
quintas justas, as seis cordas soltas produzem um acorde composto do segundo, terceiro, quarto, quinto,
sétimo e nono parciais de uma nota ré grave: D-A-d-f# (menos 1/12 de tom) e c’ (menos 1/12 de tom), e’”. In
Universal Edition: https://www.universaledition.com/georg-friedrich-haas-278/works/quartett-12954. Acesso
em 26 de novembro de 2019.
6

Outro exemplo está na obtenção de 72 notas em justo temperamento (72 com a


microafinação criada para os 6 pianos em Limited Approximations.
Já a execução real de notas microtonais em Haas pode-se dar tanto melodicamente (ou
em contraponto), como no Streichquartett no. 4 (2003):

Como também harmonicamente, como um centro gravitacional, neste exemplo da


mesma citada peça:

3.2. Microtonalidade espectral

A exploração gestual de técnicas estendidas (como nos glissandi vistos na peça acima)
é um recurso caro tanto a (pré-)espectralistas como Giacinto Scelsi, como também a Haas. Em
7

Limited Approximations isso é dado em larga escala, desde o início da peça, com a execução
das cordas individualizadas e expandidas. É notável também o glissandi microintervalar7 dos
pianos em tremolo durante a peça:

7
Maiores detalhes, ver BROOK, p. 19, 2018.
8

Outro exemplo no lento glissandi das cordas em in vain:

Observa-se no Quartett de violões que, apesar das notas escritas similarmente,


explorando uníssonos em diferentes cordas, tanto do próprio instrumentista, quanto do conjunto
em diálogo contrapuntal, essas mesmas notas trazem uma diferenciação de ressonância
microintervalar e um efeito espectral. Vale lembrar, inclusive, que a já mencionada
microafinação de Haas é resultante de uma pesquisa espectral da série harmônica da nota D2
(apesar de ele, declaradamente, não usar espectrograma)8.

8
Ver MASSOUD, p. 35, 2017.
9

4. CONCLUSÃO

Georg Friedrich Haas é um legítimo representante do pós-espectralismo no século XXI


trazendo uma rica abordagem em torno do microtonalismo e um mergulho ainda mais radical
nisso, mas dando continuidade, aos passos já trafegados por Ligeti, Grisey, Murail, entre outros.
O artigo intentou apenas demonstrar em poucos exemplos o quão rico e fértil pode ser um
10

estudo apurado de seu trabalho musical se praticado no cenário acadêmico baiano. Acreditamos
que Haas pode trazer algumas respostas a um permanente problema quanto à aplicabilidade do
microtonalismo no âmbito da composição erudita. Todavia, Haas não se considera um
microtonalista. Ele faz questão de salientar9:

I am not really comfortable with being pigeonholed as a “microtonal


composer.” Primarily I am a composer, free to use the means needed for my
music. There is no ideology regarding “pure” intonation, either as Pythagorean
number mysticism or as a notion of “Nature” determined by trivial physics. I
am a composer, not a microtonalist.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BROOK, Taylor. Synergy of Form, Rhythm, and Orchestration in Three Microtonal


Compositions. New York: Columbia University, 2018 (Tese de Doutorado).
MASSOUD, Michal Raymond. An Analysis of Georg Friedrich Haas’s in vain. Illinois:
Bienen School of Music, 2017 (Tese de Doutorado).
PORRES, Alexandre Torres. Microtonalidade na Música do Século XX: Duas Abordagens
Composicionais. São Paulo: UNICAMP, 2005. (Artigo para a ANPPOM, Décimo Quinto
Congresso.)

Universal Edition: https://www.universaledition.com/georg-friedrich-haas. Acesso em 26 de


novembro de 2019.

The Riot Ensemble: http://riotensemble.com/a-few-moments-with-georg-friedrich-haas/.


Acesso em 24 de novembro de 2019.

Partituras de Georg Friedrich Haas:

HAAS, Georg Friedrich. 4. Streichquartett mit Live Elektronik. Viena: Universal Edition,
2003.
_______. in vain für 24 instrumente. Viena: Universal Edition, 2000.
_______. Limited Approximations. Viena: Universal Edition, 2010.
_______. Quartett für Vier Guitarren. Viena: Universal Edition, 2007.

9
“Eu realmente não me sinto confortável em ser tachado como ‘compositor microtonal’. Primeiramente, sou
um compositor livre para usar os meios necessários para a minha música. Não há nenhuma ideologia acerca do
temperamento ‘puro’, seja no misticismo numérico pitagórico ou numa noção de ‘Natureza’ determinada pela
Física trivial. Eu sou um compositor, não um microtonalista”. HAAS, apud MASSOUD, p. 31, 2017. (T.A.)
11

Você também pode gostar