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06 AMPARO (SP) - FEVEREIRO DE 2017

MÚSICA DO SÉCULO XX - parte IV por


Lilia
as ideias de Cage, Boulez e Vinholes Rosa*

John Cage (1912-1992), Pierre Boulez (1925-2016) e, no Brasil, Luiz Carlos Lessa Vinholes (1933),
foram os primeiros a empregar novos procedimentos estéticos composicionais – indeterminação,
acaso e aleatoriedade – como citados nas matérias anteriores partes I, II e III.
O compositor pelotense Luiz teve seu primeiro uso ou estreia no
Carlos Lessa Vinholes, de 1952 a Centro de Cultura de Santos,
1957, estudou composição e flauta durante o X Festival Música Nova, organizado por Gilberto Mendes.
com H. J. Koellreutter (foto1) na
Escola Livre de Música da Pró- Partitura da Instrução 61
Arte, em São Paulo, tendo sido
inclusive seu secretário ou “braço Originalmente, a Instrução 61, para quatro instrumentos quaisquer,
direito”, e, a partir de então, foi publicada na Revista Design nº 37, Tóquio/Japão, em setembro de
intensificou a sua carreira de 1962, com textos em inglês e japonês. Para melhor compreensão,
compositor, escrevendo peças nas segue-se abaixo, a reprodução da partitura com tradução para o
técnicas composicionais: português (foto 3).
dodecafonismo, “tempo-espaço” e
aleatoriedade. 1
Na década de 1960, quando
residia no Japão, L. C. Vinholes respectivamente.
(foto 2) compôs a primeira peça Cada grupo de cartões foi
(ou “obra”) aleatória brasileira: entregue a quatro instrumentistas
Instrução, para quatro presentes (flauta transversal, violino,
instrumentos quaisquer (1961). piano e uchiwa-daiko, uma espécie
Vinholes foi convidado a participar de tambor budista sem caixa de
de uma reunião no estúdio do ressonância) e, outras quatro
Grupo de Música Nova do pianista pessoas participaram como
Tomohisa Nakajima, no bairro de colaboradores que ficaram em frente
Shibuya, em Tóquio, para aos instrumentistas manuseando os
comemoração da passagem do cartões. A experiência musical durou
ano de 1961 e 1962 e, sabendo por mais de meia hora, tendo sido
de antemão que outros músicos registrada por fotos, e fita
da vanguarda japonesa estariam magnetofônica com gravação de
presentes, aproveitou o encontro cerca de cinco minutos, cujo evento
para mostrar aos amigos uma se transformaria em um
coleção de 100 cartões. Os acontecimento histórico na vida do
cartões tinham um tamanho de compositor e da música brasileira.
doze centímetros de cada lado, e Em 15 de setembro de 1974, a peça
foram divididos em quatro grupos
de vinte e cinco cartões cada um
da seguinte maneira: sete cartões
riscados com uma linha longa,
sete com uma linha curta, sete com
um ponto bem no centro e quatro 3
em branco (silêncio). Explicou a
forma de manuseio dos mesmos
quanto à leitura relativa dos
gráficos desenhados e as Comentários analíticos página seguinte...
mudanças de posição das linhas
curta e longa: quando na
horizontal a leitura tratava-se de *Lilia Rosa: doutora em música e em artes, educadora musical com
um som curto e longo quaisquer, livros publicados na área. Contato: musicaintempo@hotmail.com – Obs:
e na vertical menor ou maior foto 5, ilustrativa, pianista José Renato Barzon, de Mogi Guaçu, e o
2 seu aluno como colaborador, Júlio Rovigatti).
aglomerado de sons/notas,
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Comentários analíticos incômoda posição


A partir do entendimento dos conceitos de indeterminação de Cage, passiva de
Boulez e Eco, buscamos compreender o pensamento musical de Vinholes ‘ o u v i n t e s /
sobre o tema ou, melhor, a aleatoriedade (como ele prefere). Resumindo: consumidores’ da
a maneira de conceber a relação entre ordem e liberdade no processo cousa música: o
de composição e, consequentemente, os questionamentos sobre a noção público. Claro que a
de música, de obra de arte e de estrutura, bem como da própria importância música aqui
da música e da arte, eram um pouco diferente do pensamento deles. pretendida não
Havia traços da influência werbeniana como a economia do material poderia ser afim
(pouco gráficos, notação, foto 4), a característica autônoma do som, a com a conhecida
valorização do silêncio e um intérprete colaborador. até então. E é
justamente no
manuseio dos
cartões que o 5
4 público é trazido
para o âmbito do ‘fazer música’. caso de Vinholes, as suas
Porém, as noções de liberdade de Vinholes, caracterizadas por Nasce aqui a figura do colaborador, “instruções” foram estruturadas
e estrutura são outras. Para uma escrita e estrutura de palavra que adotei graças a com base numa matemática de
Vinholes, a liberdade precisa ser vanguarda. E todas elas são sugestão do saudoso pianista “jogo de dados”, onde as rela-
plena em todos os sentidos, excelente material em aulas de Paulo Affonso de Moura Ferreira, ções e as operações entre os míni-
especialmente ao executante, que musicalização, pois proporcionam o por longos e frutíferos anos, mos elementos permitem combina-
poderá ser qualquer pessoa e de despertar e o desenvolver da presidente da Seção Brasileira da ções e permutações praticamente
qualquer idade (acessibilidade imaginação e da criatividade do Sociedade Internacional de Música infinitas, porém, mantendo-se no
irrestrita). Daí essa peça ser aluno. Os cartões podem e devem Contemporânea (SIMC) e partícipe objetivo maior: a busca da liber-
indicada para as aulas de ser utilizados em atividades de da primeira ‘utilização’ da Instrução dade plena de criação e expres-
musicalização com crianças, leitura musical ou solfejo (duração, 62 no Brasil, em 30 de março de são. Na Instrução 61, o composi-
jovens e adultos, ou ainda, com altura), iniciação à notação 1976, na Sala Martins Pena do tor criou um jogo musical com
portadores de necessidades contemporânea e percepção Teatro Nacional Cláudio Santoro, quatro tipos de cartelas contendo
especiais. No ato da criação ou musical (solfejo e escuta). em Brasília, tendo como em cada uma delas: uma linha
execução, não deve haver o Neste processo de libertação, o colaboradora a flautista Ingrid longa, uma linha curta, um ponto
julgamento do erro e do valor, compositor cria também a figura do Madson. Note que uso a expressão bem no centro e o ‘nada’ (em
pois, a “pretensão é”, segundo o colaborador. O colaborador (foto 5) ‘utilização’ e não ‘execução/ branco/silêncio) e, a partir desse
compositor, “superar o dualismo, é uma pessoa qualquer escolhida interpretação’. jogo, a música nasce, estrutura-se,
a dicotomia tradicional ‘autor’ entre o público para embaralhar e Interessante comentar que, onde tudo, ou seja, todos os
versus ‘intérprete’ “. manusear as cartelas que serão alguns anos depois, no começo da parâmetros são indeterminados, e
A noção de estrutura de lidas pelos executantes. No década de 1960, o compositor e o aluno escolhe o quê ou como
Vinholes opõe-se à noção de trabalho de musicalização, os pais educador italiano Boris Porena executar. A criação ou música é um
estrutura de Cage, pois significa dos alunos podem participar do publicou o seu livro Kindermusik, jogo musical ou atividade lúdica, um
o modo de construir relações ou trabalho, facilitando a integração cujas idéias assemelhavam-se às convite ao fazer musical
operações entre os objetos filho-pai. Como se fosse um jogo de Vinholes. Ou seja, Porena dizia despretensioso, de superação do
(sons), mas o som deve ser musical, o que na verdade é ! que as suas composições não eram indivíduo perante os conceitos e
entendido como uma entidade Sobre a criação do colaborador, composições e, sim, coletânea de preconceitos sobre a noção de obra
autônoma, como um campo de Vinholes comenta: “Mas eu quis ir propostas ou sugestões, e que de arte, como já foi citado
possibilidades. Esse modo de mais a fundo. Trazer para o âmbito cabia ao professor a responsabi- anteriormente. Aqui, a idéia do
usar e pensar os elementos do ‘fazer música’ aqueles que lidade de assumir o processo da projeto em si é mais significativa do
musicais e/ou sonoros norteou a foram afastados do palco, onde as criação quando aplicados em sala que os próprios elementos e es-
construção das três “instruções” cousas acontecem, e colocados na de aula, tornando-o co-autor. No truturas que possam vir a se juntar.

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