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Uma história de vida

Chovia a cântaros, e a noite estava fria. Aproximava-se o Inverno, e adivinhava-se que ia ser
daqueles rigorosos.
A lareira estava acesa, e toda a família estava reunida em volta do membro mais velho. Era um
velhinho de cabelos brancos, com olhos da cor do mel, e um sorriso que escondia uma vida de
sofrimento.
Sentado no seu banquinho de madeira, ele saboreava cada fumaça do seu cachimbo como se fosse
a ultima. Do seu baú de recordações, retirava sempre uma história de vida, que adorava contar aos
mais novos, e nessa noite, apesar do peso da idade e do cansaço da vida, mais uma vez jogou a mão
ao seu baú, e noite adentro se pôs a contar:

“…Era uma vez uma bela Sereia, que vivia junto com as suas irmãs, num belo castelo no fundo do
mar.
Ela e suas irmãs eram filhas de Neptuno – o rei dos mares.
Viviam felizes e alegres. Tinham tudo o que necessitavam. E tanto o pai como a mãe, lhes davam o
maior carinho e amor possível, e as ajudavam em tudo aquilo que podiam. Mas a nossa Sereia, não
vivia contente com a maravilhosa vida que tinha, queria mais, muito mais…
Todos os dias á noite, ela vinha á superfície, e ficava a observar os humanos. E dentro de si, nasceu
um enorme desejo de poder ser como eles, de ter pernas e poder caminhar na terra. Então, como
ela sabia que seu pai tinha poder para a ajudar, foi ter com ele e pediu-lhe que realizasse o seu
desejo, e transformasse sua cauda em pernas humanas.
Neptuno não queria, pois sabia que sua filha na forma humana, ficaria entregue á sua sorte, e não
a poderia proteger. Mas por amar tanto sua filha, e a querer ver feliz, entregou o pedido dela ao
Criador, pedindo que fosse concedido o seu desejo.
Assim foi, e o Criador transformou a cauda da Sereia em pernas humanas, e a colocou na superfície
em uma praia á beira do mar.
Feliz, ela seguiu seu caminho. E como humana, amou, foi amada, experimentou e viveu todo o tipo
de coisas normais da vida de qualquer ser humano. Mas ela nunca esqueceu sua origem, e sempre
que podia, ia á beira do mar, e falava para o mar, as saudades que tinha de seu pai, sua mãe, e suas
irmãs.
O tempo foi passando, e a felicidade inicial, deu lugar a um tédio e uma enorme tristeza. A vida
humana já não a satisfazia, e ela queria mais. E tanto passou a observar os pássaros, que começou
também a desejar ter asas e a poder voar como eles. Foi junto a uma rocha perto do mar, chamou
seu pai, e mais uma vez lhe contou seu desejo, e lhe pediu que o realizasse. Neptuno, apesar de
amar sua filha, primava pela disciplina, pelo rigor, e em especial pela justiça. E achando que sua
filha, estava a exagerar, falou, e disse:
- Filha, és parte de mim, e dou a minha vida por ti, assim como por qualquer uma de tuas irmãs.
Esse teu desejo, não o vou realizar. Primeiro, porque a lei divina, e o Criador não mo permite.
E segundo, porque eu entendo que te estás a deixar conduzir pela ganância, e estás a querer
ultrapassar os limites daquilo que mereces.
Entende filha, que por mais que tu peças, nunca alcançarás algo que não mereces.

Nesse momento, os olhos da Sereia encheram-se de uma enorme tristeza, que logo deu lugar a um
terrível ódio. E a partir desse momento, passou a odiar seu pai e sua família, revoltada por não
obter o que desejava.
Ela, que tanto amava seu pai, sua mãe, e suas irmãs, e que tantas belas canções fez, e cantou á
beira do mar em honra deles. Amaldiçoou e difamou seu pai aos sete mares.
Por sua vez, seu pai ao saber dos feitos de sua filha, magoado e revoltado, fez saber que sua filha
ficaria proibida de poder voltar á forma de sereia, e assim poder voltar ao seu reino. O tempo foi
passando, e apesar das saudades que a Sereia tinha de seu pai e de sua família, não era capaz de se
vencer a si própria e de lhe pedir perdão.
Seu pai, vivia cheio de saudades da filha, mas também não a perdoava, e não lhe levantava a
proibição de voltar a entrar no seu reino, e poder voltar novamente para a família.
A tristeza, a revolta, o ódio, e também as saudades, foram corroendo o interior da Sereia, que
começou a envelhecer prematuramente, e a gerar doenças dentro de si. Doenças essas, provocadas
pelos desgostos e pela frustração da vida, que agora tinha.
Então, certo dia, sentindo que já nada tinha a perder, e mesmo sabendo que morreria afogada, pois
ainda tinha a forma humana, decidiu atirar-se ao mar. Pois ao menos, e mesmo morrendo, voltava
ao seu lar, á sua família, que era o que agora mais desejava.
Mergulhou, e nadou para tão fundo, que perdeu os sentidos e se afogou.
Seu pai, vendo o sucedido, foi aflito em sua direcção e a amparou em seus braços. E foi tão grande
o seu grito de desespero, que ecoou pelos sete mares.
Dos olhos de Neptuno, correram tantas lágrimas que fizeram subir o nível do mar, ao ponto de
começar a inundar os Continentes. Então, o Criador, na sua enorme compaixão por toda a criação,
soprou novamente o sopro da vida, na direcção da Sereia, transformando seu corpo na forma
original, com a beleza e juventude de outrora, e devolvendo-lhe novamente a vida por breves
segundos.
Quando ela abriu os olhos, e viu que estava no colo do pai, ambos se olharam e sem quaisquer
palavras se abraçaram com ternura. Palavras para quê?!...ambos se tinham perdoado um ao outro.
Sua mãe e suas irmãs, os envolveram chorando de alegria.
Passados uns momentos, a Sereia sorriu e fechou os olhos, pela última vez. Estava novamente em
família. Tinha voltado ao seu lar.”

Depois da história contada, o velhinho sorriu, suspirou e fechou os olhos. Estava tão cansado, que
se deitou mesmo ali no chão, no meio de sua família.
Aconchegaram-no com uma velha manta. Ele adormeceu, e não mais acordou. Tinha voltado ao
seu lar…

Lisboa, 20 de Junho de 2010 © Paulo Lourenço “Ramiro de Kali”

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