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O Profeta
Al-Mustafa o Escolhido
UNIVERSALISMO
Sumário
Capítulo 28 — Despedida
CAPÍTULO 1
O regresso do navio
E no décimo segundo ano, no sétimo dia de Ailul, o mês das colheitas, ele subiu
a colina fora dos muros da cidade e olhou para o mar; e viu seu navio chegar
junto com a bruma.
“Como poderei partir em paz e sem tristeza? Não, não será sem ferir meu espírito
que deixarei esta cidade. Longos foram os dias de pena que transcorri entre seus
muros, e longas as noites de solidão; e como pode alguém dizer adeus à sua
pena e à sua solidão sem tristeza?
Demais foram os pedaços de meu espírito que espalhei nestas ruas, e muitos
são os filhos de minha saudade que caminham nus por entre estas colinas, e
não posso apartar-me deles sem ficar triste e deprimido.
Não é apenas uma veste que hoje lanço de mim, mas é a própria pele que
arranco com minhas mãos.
De boa vontade levaria comigo tudo o que está aqui. Mas como fazê-lo?
A voz não leva consigo a língua e os lábios que lhe deram asas. Ela deve buscar
o éter sozinha.
E é sozinha e sem seu ninho que a águia voará para o sol.”
E então, chegado ao sopé da colina, novamente olhou para o mar e viu seu barco
se aproximar do cais, os marinheiros na proa, os homens da sua terra.
“Filhos da minha velha mãe, que cavalgais as ondas, quantas vezes navegastes
em meus sonhos. E agora chegais no meu despertar, que é meu sonho mais
profundo.
Estou pronto para partir, e minha ansiedade está de velas abertas a espera do
vento.
Só mais uma volta dará este córrego, só mais um murmúrio nesta clareira,
E ouviu suas vozes chamando seu nome, gritando uns para os outros,
anunciando a chegada de seu navio.
Virá meu coração a ser uma árvore pródiga, cujos frutos possa colher para dar-
los?
E fluirão meus desejos como uma fonte com que possa encher-lhes os copos?
Serei eu uma harpa, tal que a mão do todo-poderoso possa tocar-me, ou uma
flauta que Seu sopro possa me atravessar?
E se de fato este for o momento de erguer minha lanterna, não será minha chama
a brilhar dentro dela.
Tais coisas ele expressou em palavras. Mas muito mais ficou sem ser dito dentro
de seu coração. Pois nem ele mesmo podia exprimir seu mais profundo segredo.
Não és um estranho entre nós, nem um hóspede, mas nosso filho e nosso bem-
amado.
“Não permitas agora que as ondas do mar nos separem, e que os anos que
passaste entre nós se tornem uma lembrança.
Caminhaste entre nós como um espírito, e tua figura tem sido uma luz para
nossas faces.
Muito te amamos, mas nosso amor foi sem palavras, encoberto por véus.
Mas agora ele grita alto por ti, e quer revelar-se a ti.
E sempre tem acontecido que o amor não conhece sua própria profundidade a
não ser na hora da separação.”
E outros também vieram ter com ele, e o suplicavam. Mas ele nada respondeu.
Apenas abaixou a cabeça; e aqueles que lhe estavam perto viram suas lágrimas
caírem sobre seu peito.
E ele, junto com o povo, caminhou para a grande praça, diante do templo.
E saiu do santuário uma mulher, cujo nome era Almitra. Ela era uma vidente.
E ele a olhou com infinita ternura, pois fora ela quem primeiro o procurou, e nele
acreditou, quando da sua chegada à cidade.
E ela o saudou dizendo:
“Profeta de Deus, em busca do extremo limite, por longo tempo procuraste o teu
navio na distância.
Profunda é tua nostalgia pela terra de tuas memórias, morada de teus maiores
desejos; e nosso amor não te prenderá, nem nossas necessidades te segurarão.
Isto porém te pedimos antes de nos deixares, que nos fale e que nos presenteie
com tua verdade.
E nós a transmitiremos a nossos filhos, e este a seus filhos, e ela não se perderá.
Em tua solidão velaste sobre nossos dias, e em tua vigília ouviste os lamentos e
os risos de nosso sono.
Agora pois, revela-nos a nós mesmos, e diga-nos o que te foi mostrado do que
está entre o nascimento e a morte.”
E ele respondeu:
“Povo de Orphalese, do que mais poderei falar-vos senão do que se move agora
dentro de vossas almas?”
CAPÍTULO 2
Sobre o amor
E ele levantou a cabeça, olhou para o povo, e um silêncio caiu sobre eles. E com
forte voz falou-lhes, dizendo:
Embora sua voz possa arrasar vossos sonhos como o vento do norte devasta o
jardim.
Pois assim como o amor vos exalta, também ele vos crucifica. E tanto ele age
em vosso crescimento como em vossa poda.
E assim como ele sobe até vossa altura e acaricia vossos ramos mais tenros que
balançam ao sol,
Assim também desce até vossas raízes e as sacode em seu abraço à terra.
E então vos destina a seu sagrado fogo, para que vos t torneis o pão sagrado do
sagrado banquete de Deus.
Todas essas coisas o amor fará convosco para que possais conhecer os
segredos do vosso coração, e com esse saber vos torneis parte do coração da
Vida.
Então será melhor para vós que cubrais vossa nudez e abandoneis a eira do
amor,
Para um mundo sem estações onde ireis rir, mas não todos os vossos risos, e
ireis chorar, mas não todas as vossas lágrimas.
O amor nada dá, a não ser de si mesmo, e nada recebe senão de si próprio.
Quando amais, não devei dizer “Deus está em meu coração”, mas dizei antes
“Eu estou no coração de Deus.”
E não penseis que possais dirigir o curso do amor, pois o amor, se vos achar
dignos, dirigirá vosso curso.
O amor não tem outro desejo que não chegar à própria plenitude.
De vos confundires e ser com um regato que canta sua melodia para a noite.
Acordar ao amanhecer com o coração alado, dando graças por mais um dia de
amor;
Sobre o matrimônio
Então Almitra falou novamente e disse: “E que nos dizes sobre o matrimônio,
Mestre?”
Deveis estar juntos quando as brancas asas da morte dispersarem vossos dias.
Deixai antes que seja um mar ondulante por entre as praias de vossas almas.
Cantai e dançai juntos e sêde alegres, deixai porém cada um de vós estar só.
Bem como as cordas da lira, que estão separadas, e no entanto juntas vibram
na mesma música.
Sobre os filhos
E uma mulher que trazia seu filho ao colo disse: “Fala-nos dos filhos.”
E ele disse:
Pois suas almas moram na casa do amanhã, que vós não podeis visitar nem
mesmo em vossos sonhos.
Podeis tentar ser como eles, mas não tentai fazê-los como vós.
Pois a vida não caminha para trás, nem se demora com o ontem.
Vós sois os arcos dos quais os vossos filhos são arremessados como setas
vivas.
O Arqueiro mira o alvo no caminho do infinito, e Ele vos tende com sua força
para que Suas setas possam voar ligeiras para longe.
Pois assim como Ele ama a flecha que voa, assim também Ele ama o arco que
permanece estático.”
CAPÍTULO 5
Sobre a dádiva
Pois o que são vossas posses senão as coisas que guardais por medo de virdes
a precisar delas amanhã?
E amanhã, o que trará o amanhã para o prudentíssimo cão que enterra ossos na
areia sem rastro, quando segue os peregrinos para a cidade santa?
E não é o temor da sede, quando vosso poço está cheio, a sede insaciável?
Há aqueles que doam pouco do muito que têm — e o doam para terem o
reconhecimento, e seu secreto desejo torna seu donativo sem valor.
Estes são os que acreditam na vida e na sua generosidade, e seus cofres nunca
estão vazios.
E há os que doam e não conhecem pena em doar, nem buscam alegria, nem
pensam na virtude;
Estes doam como o mirto, naquele vale, que exala seu perfume no espaço.
Através de suas mãos é Deus que fala, e por trás de seus olhos Ele sorri para o
mundo.
É bom doar quando solicitado, mas é melhor dar sem ser pedido, só por ter
compreendido;
E para quem é generoso, buscar a quem receberá é alegria maior que o próprio
dar.
Portanto, doai agora, para que o tempo da dádiva seja vosso, e não de vossos
herdeiros.
Muitas vezes dizeis: “Eu daria, mas apenas para quem merece.”
Certamente, aquele que é digno de receber seus dias e suas noites, é também
digno de tudo receber de vós.
E aquele que mereceu beber do oceano da vida, merece encher sua taça em
vosso pequeno regato.
E quem sois vós para que os homens devam mostrar seu íntimo e desvelar seu
orgulho, para que possais ver seu mérito exposto e seu orgulho aviltado?
Pois em verdade é a vida que dá à vida — enquanto vós, que vos tendes por
doadores, sois apenas espectadores.
E vós que recebeis — pois todos recebeis — não assumais o peso da gratidão,
para não deitar um jugo sobre vós mesmos e sobre aqueles que doaram.
Ao invés disso, alçai-vos junto com eles sobre suas dádivas, como sobre asas;
Mas uma vez que tendes de matar para comer, e roubar do infante o leite de sua
nutriz para saciar vossa sede, façais com que seja um ato de adoração.
E seja a vossa mesa como um altar sobre o qual os puros e inocentes do campo
e da floresta são sacrificados àquilo que é mais puro e mais inocente no homem.
Pelo mesmo poder que te imola, eu também serei imolado; e eu também serei
alimento para outros;
Teu sangue e meu sangue são apenas a seiva que alimenta a árvore do céu.
E quando triturardes uma maçã com vossos dentes, dizei-lhe dentro de vosso
coração:
Eu também sou uma vinha, e meu fruto será colhido para o lagar,
E que seja uma canção de lembrança dos dias de outono, do vinhedo e do lagar.
CAPÍTULO 7
Sobre o trabalho
“Vós trabalhais para poderdes manter a harmonia com a terra e com a alma da
terra.
Quando trabalhais sois uma flauta através da qual o sussurro das horas torna-
se música.
Qual de vós quereria ser um junco, surdo e silencioso, quando tudo em volta
canta em uníssono?
Mas eu vos digo que quando trabalhais realizais parte do mais distante sonho da
terra, que lhes foi confiado quando este sonho nasceu.
E amar a vida através do trabalho é ser íntimo do mais profundo segredo da vida.
Foi também dito que a vida é escuridão, e em vosso cansaço repetis o que foi
dito pelos cansados.
É tecer o pano com os fios retirados de vosso coração, como se vosso bem-
amado fosse quem vai vestir este tecido.
É construir uma casa com afeto, como se vosso bem-amado fosse habitá-la.
É semear as sementes com ternura e colher a messe com alegria, como se vosso
bem-amado fosse comer destes frutos.
E saber que todos os abençoados mortos estão à vossa volta e vos observam.
Muitas vezes vos o ouvi dizer, como se falásseis no sono: “Aquele que trabalha
no mármore, e encontra na pedra a figura de sua própria alma, é mais nobre que
aquele que lavra a terra. E aquele que apanha o arco-íris e o deita na tela em
figuras humanas, é superior àquele que faz sandálias para nossos pés.
“Mas eu vos digo, não no sono, mas na plena lucidez do meio-dia, que o vento
não fala com mais doçura para o grande carvalho do que para as menores folhas
de relva;
E se não puderes trabalhar com amor, mas apenas com desgosto, seria melhor
que deixasses teu trabalho, sentasse à porta do santuário a pedir esmolas
àqueles que trabalham com amor.
Pois se assardes o pão com indiferença, estareis assando um pão amargo, que
satisfaz apenas metade da fome do homem.
E mesmo que canteis como os anjos, mas vosso canto não tiver amor, estareis
tapando os ouvidos do homem às vozes do dia e às vozes da noite.
CAPÍTULO 8
E ele respondeu:
E aquele mesmo poço de onde surgiu vosso riso foi muitas vezes enchido com
vossas lágrimas.
Quanto mais fundo o pesar cavar teu ser, quanto mais alegria poderás conter.
A taça que contém teu vinho, não é a mesma taça que foi queimada no forno do
oleiro?
E a lira que abranda vosso espírito, não é a mesma madeira que foi lavrada pelo
ferro?
Alguns dizem: A alegria é maior que a tristeza; e outros dizem: Não, a tristeza é
maior.
Elas vêm juntas, e quando só uma sentar junto de vós à vossa mesa, lembrai
que a outra está dormindo em vossa cama.
Na verdade estais sempre oscilando como os pratos de uma balança entre vossa
tristeza e vossa alegria.
Quando o guardião do tesouro vos erguer para pesar seu ouro ou sua prata,
deve então vossa alegria ou vossa tristeza subir ou descer.
CAPÍTULO 9
“Erguei, com vossos sonhos, um abrigo no ermo, antes de construir uma casa
dentro dos muros da cidade;
Pois assim como retornais para casa em vosso crepúsculo, assim faz também o
nômade que há em vós, o sempre distante e solitário.
Ele cresce ao sol e dorme no silêncio da noite; e também tem sonhos. Não sonha
vossa casa? E sonhando, não deixa a cidade pelo bosque ou o alto da colina?
Em seu temor, vossos pais juntaram-vos perto demais uns dos outros. E este
medo durará ainda por um tempo. E por esse tempo, as paredes de vossas
cidades manterão separados vossa essência de vossos campos.
Tendes a beleza, que leva o coração das coisas feitas de madeira e de pedra
para a montanha sagrada?
Sim, e se torna domador que, com forcado e azorrague, reduz a bonecos vossos
maiores desejos.
Ele vos embala para dormirdes só para ficar junto de vosso leito e escarnecer da
dignidade de vossa carne.
Mas vós, filhos do espaço, do repouso inquieto, vós não sereis domados ou
presos em armadilhas.
Não será uma fita brilhante a recobrir uma ferida, mas uma pálpebra a proteger
o olho.
Pois aquilo que é ilimitado em vós, mora na mansão do céu, cuja porta é a bruma
da manhã, e cujas janelas são as canções e os silêncios da noite.
CAPÍTULO 10
Sobre as roupas
E ele respondeu:
“Vossas roupas escondem muito de vossa beleza, embora não escondam o feio.
Antes pudésseis encarar o sol e o vento com mais pele e menos vestimenta.
Pois o sopro da vida está na luz do sol, e suas mãos estão no vento.
Alguns dizem: Foi o vento do norte quem teceu as roupas que vestimos.
E quando não houver mais o impuro, que será a modéstia senão um grilhão e
uma nódoa na mente?
E não esqueçais que a terra se delicia ao sentir o peso de vossos pés descalços,
e que o vento anseia por brincar em vossos cabelos.”
CAPÍTULO 11
“A terra vos oferece seus frutos, e de nada mais precisareis se tão somente
souberdes como encher as mãos.
Todavia, se a troca não for feita com amor e benevolente justiça, levará uns à
cobiça e outros à fome.
Invocai o espírito mestre da terra para que esteja entre vós, e santifique as
balanças e os cálculos que avaliam valor com valor.
Venham conosco para os campos, ou ides com nossos irmãos para o mar e
lançai vossas redes;
Pois o mar e a terra vos serão generosos, como o foram para nós.
Pois eles também são apanhadores de frutos e incenso, e aquilo que eles
trazem, embora feito de sonhos, é vestimenta e alimento para vossa alma.
Pois o espírito mestre da terra não dormirá em paz sobre o vento até que as
necessidades do último de vós estejam satisfeitas.
CAPÍTULO 12
E por este mal cometido, devereis bater à porta dos eleitos e esperar até que
sejais atendidos.
Ele não conhece os caminhos das toupeiras, nem busca o covil das serpentes.
Pois é ele, e não vosso Eu-divino e nem o pigmeu na bruma que conhece o crime
e o castigo do crime.
Ouvi-vos muitas vezes falar de alguém que comete um delito como se não fosse
um de vós, mas um estrangeiro entre vós, um intruso em vosso mundo.
Mas eu vos digo que assim como o santo e o justo não podem elevar-se para
além do que há de mais alto em vós,
Assim também o mau e o fraco não podem descer abaixo do que há de mais
baixo em vós.
E assim como uma única folha não amarelece sem o silencioso conhecimento
da árvore toda,
Assim o malfeitor não pode fazer o mal sem o secreto consentimento de todos
vós.
E quando um de vós cai, ele cai para aquele que segue atrás dele, um alerta
contra a pedra de tropeço.
Sim, e ele cai para os que vão adiante dele que, apesar de mais ligeiros e com
os pés firmes, não removeram a pedra de tropeço.
E o que tem as mãos limpas não é isento de culpa nos atos do malvado.
Pois eles andam juntos diante da face do sol, bem como os fio brancos e pretos
que são tecidos juntos.
E quando o fio preto se rompe, o tecelão olha todo o tecido, e examina também
o tear.
Se qualquer um de vós quiser trazer em juízo a esposa infiel, que pese também
na mesma balança o coração do marido, e meça sua alma com cuidado.
E aquele que quiser vergastar o ofensor, que olhe para dentro do espírito do
ofendido.
Que sentença pronunciareis para aquele que, embora honesto na carne é ladrão
no espírito?
Qual penalidade imporeis àquele que é assassino da carne, embora ele próprio
seja assassinado no espírito?
Não será o remorso a justiça ministrada por aquela mesma lei que vos esforçais
por servir?
Não convidado, ele chamará na noite para que os homens despertem e encarem
a si mesmos.
E vós que quereis compreender a justiça, como o fareis sem olhardes para todos
os atos na plenitude da luz?
E que a pedra angular do santuário não é mais alta que a pedra mais baixa de
sua fundação.
CAPÍTULO 13
Sobre as leis
E ele respondeu:
Mas enquanto construís castelos de areia, o oceano traz mais areia para a praia.
E quando as destruís, o oceano ri convosco.
Mas o que dizer daqueles para quem a vida não é um oceano, e as leis humanas
não são castelos de areia,
Mas para os quais a vida é uma pedra, e a lei um cinzel, com o qual querem
esculpi-la à sua própria imagem?
E que dizer da rês que ama o próprio jugo, e considera o veado e o gamo da
floresta casos perdidos e vagabundos?
E que dizer da velha serpente que já não pode trocar sua pele, e chama todas
as outras nuas e impudicas?
O que direi então destes, a não ser que também estão na luz do sol, mas de
costas para ele?
Eles vêem apenas suas sombras, e suas sombras são suas leis.
E vós que caminhais encarando o sol, que imagens sobre o solo poderão deter-
vos?
E vós que viajais com o vento, qual cata-vento orientará vosso curso?
E que lei humana vos poderá deter se quebrardes vosso jugo, embora não à
porta de uma prisão humana?
Sobre a liberdade
E ele respondeu:
E meu coração sangrou dentro do meu peito; pois vós só podeis ser livres
quando até mesmo a busca da liberdade se tornar um empecilho para vós, e
quando cessardes de falar em liberdade como uma meta e uma realização.
Vós sereis livres de fato, não quando vossos dias estiverem sem cuidados e
vossas noites sem necessidades e sem tristezas,
Mas antes quando tais coisas cingirem vossa vida e, todavia, vos elevardes cima
elas, nus e sem amarras.
E do que é que quereis livrar-vos, para serdes livres, senão de pedaços de vós
mesmos?
Se é uma lei injusta que quereis abolir, esta lei foi escrita por vossa própria mão
em vossa própria fronte.
Não podeis apagá-la queimando vossos códigos das leis, nem lavando a fronte
de vossos juízes, mesmo que despejeis o mar sobre eles.
E se quiserdes destronar um déspota, cuidai primeiro que seja destruído seu
trono erguido dentro de vós.
Pois, como poderia um tirano dominar os livres e altivos, se não pela tirania que
está em sua própria liberdade e a vergonha em sua própria altivez?
E se é de um cuidado que quereis vos livrar, esta preocupação foi escolhida por
vós, mais que imposta a vós.
E quando a sombra se esvai e já não existe, a luz que se demora torna-se uma
sombra para outra luz.
E assim vossa liberdade solta suas amarras, torna-se amarra para a liberdade
maior.”
CAPÍTULO 15
Mas como o farei, a não ser que vós mesmos vos torneis pacificadores, ou antes,
amantes de todos vossos elementos?
Vossa razão e vossa paixão são o leme e as velas de vossa alma navegante.
Pois se a razão governar sozinha, será uma força limitadora; e uma paixão
ignorada é uma chama que arde até sua própria destruição.
Deixai, portanto, que vossa alma eleve vossa razão até a altura da paixão, para
que possa cantar;
E deixai que ela dirija vossa paixão com vossa razão, para que a paixão possa
viver através de sua própria ressurreição cotidiana, e que ressurja qual fênix de
suas próprias cinzas.
Eu gostaria que tivésseis para com vosso julgamento e vosso apetite o mesmo
tratamento que teríeis para com dois hóspedes queridos em vossa casa.
Certamente não honraríeis um hóspede mais que o outro; pois aquele que
tivesse mais apreço por um deles, perderia o amor e a confiança de ambos.
Por entre as colinas, quando sentardes à sombra fresca dos brancos choupos,
partilhando a paz e serenidade dos campos e prados distantes, deixai que vosso
coração diga em silêncio: “Deus repousa na razão.”
E quando vier a tempestade, e o vento impetuoso sacudir a floresta, e o raio e o
trovão proclamarem a majestade do céu, que vosso coração diga com
reverência: “Deus age na paixão.”
E uma vez que sois um alento na esfera de Deus, e uma folha na floresta de
Deus, vós também deveis repousar na razão e agir na paixão.
CAPÍTULO 16
Sobre a dor
E ele disse:
Como a semente do fruto deve ser quebrada para que seu coração possa se
expor ao sol, assim também deveis conhecer a dor.
É o remédio mais amargo com que vosso médico interior cura vosso Eu doente.
Pois sua mão, apesar de dura e pesada, é guiada pela mão suave do Invisível,
E a taça que vos traz, embora queime vossos lábios, foi fabricada com o barro
que o Oleiro umedeceu com Suas lágrimas sagradas.
CAPÍTULO 17
Sobre o conhecimento
de si próprio
Mas vossos ouvidos anseiam por ouvir o que vosso coração conhece.
E o tesouro de vossa infinita profundeza deve ser revelado aos vossos olhos.
Sobre o ensino
E ele disse:
“Homem algum pode revelar-vos nada, a não ser aquilo que jaz meio adormecido
no alvorecer de vosso conhecimento.
Se ele for de fato um sábio, ele não vos proporá entrardes na mansão de sua
sabedoria, mas antes vos conduzirá aos limites de vossa própria mente.
O astrônomo pode falar-vos de sua compreensão do espaço, mas não vos pode
dar sua compreensão.
O músico pode cantar para vós o ritmo que preenche o universo, mas não vos
pode dar o ouvido que o capta nem a voz que o repete.
E aquele que é versado na ciência dos números, pode falar-vos das regiões dos
pesos e medidas, mas não pode vos conduzir para lá.
Sobre a amizade
Ele é vosso campo, que semeais com amor e ceifais dando graças.
Quando vosso amigo expõe sua opinião, não temeis o “não” que está em vossa
mente, nem segurais o “sim”.
E quando se mantém em silêncio, vosso coração não pára de ouvir seu coração;
Pois aquilo que mais amais nele, ficará mais claro na sua ausência, como para
o alpinista parece mais clara a montanha vista do plano.
Pois o amor que busca outra coisa que não a descoberta de seu próprio mistério,
não é amor, mas uma rede armada, que apanha só o inaproveitável.
Pois o que seria vosso amigo se apenas o procurásseis para matar o tempo?
Sobre a conversação
E quando não mais podeis habitar na solidão de vosso coração, viveis em vossos
lábios e o som emitido é uma diversão e um passatempo.
Pois o pensamento é uma ave do espaço, que na gaiola das palavras pode de
fato estender suas asas, mas não pode voar.
O silêncio da solidão revela a seus olhos seu Eu desnudo, e eles preferem evitá-
lo.
E há aqueles que têm a verdade dentro de si, mas não a exprimem com palavras.
Pois sua alma guardará a verdade de vosso coração como é lembrado o gosto
do vinho,
Quando sua cor tiver sido esquecida e já não mais existir a taça.
CAPÍTULO 21
Medindo o tempo
E ele respondeu:
E que aquilo em vós que canta e contempla ainda habita os limites daquele
primeiro momento em que as estrelas foram espalhadas pelo espaço.
Qual dentre vós não sente que seu poder de amar é sem limites?
E todavia quem não sente que este amor, embora sem limites, circunscrito no
centro de seu próprio ser, não se move de um pensamento amoroso para outro,
nem de um ato amoroso para outro?
E ele respondeu:
Pois o que é o mal senão o bem torturado por sua própria fome e sede?
Em verdade, quando o bem está faminto, busca alimento até nos antros
tenebrosos, e quando está sedento bebe até das águas estagnadas.
Todavia, quando não estais identificados com vós mesmos, não sois maus.
Pois uma casa dividida não é um covil de ladrões; é só uma casa dividida.
E um barco sem leme pode vaguear à toa por entre perigosos recifes sem
afundar.
Vós sois bons quando vos esforçais para dar de vós próprios.
Pois quando vos esforçais atrás do lucro, sois apenas raízes que se agarram à
terra e sugam seu seio.
Certamente o fruto não pode dizer à raiz: “Sê como eu, madura e cheia, dadivosa
de tua abundância”.
Pois para o fruto dar é uma necessidade, assim como receber o é para a raiz.
Todavia não sois maus quando adormeceis enquanto vossa língua gagueja sem
propósito.
Vós sois bons quando caminhais para vossa meta com passo firme e intrépido.
Porém não sois maus quando para lá ides coxeando.
Mas vós que sois fortes e ligeiros, cuidai de não coxear diante dos mancos,
julgando isso uma amabilidade.
Vós sois bons de incontáveis modos, mas não sois maus quando não sois bons,
Em vossa ansiosa busca por vosso Eu gigante está vossa bondade; e essa ânsia
está em todos vós.
Mas em alguns de vós esta ânsia é uma torrente que corre impetuosa para o
mar, carregando os segredos das colinas e as canções da floresta.
Mas aquele que muito deseja não diga àquele que pouco deseja: “Por que andas
tão lento e atrasado?”
Pois aquele que é realmente bom não pergunta ao desnudo: “Onde está tua
roupa?” nem ao desabrigado: “O que aconteceu à tua casa?”
CAPÍTULO 23
Pois, o que é a oração senão a expansão de vosso próprio ser para o éter vivo?
E se não podeis segurar o pranto quando vossa alma vos convida à prece, esta
deveria vos espicaçar mais e mais, por entre as lágrimas, até que orásseis rindo.
Quando orais, vos elevais às alturas onde encontrais aqueles que estão orando
nessa mesma hora, e que talvez nunca encontrásseis a não ser pela oração.
Portanto, que vossa visita ao templo invisível tenha apenas por finalidade o
êxtase e a doce comunhão.
Pois se fordes entrar no templo sem outro propósito que pedir, não sereis
recebidos.
Ou mesmo que aí entrardes para mendigardes favores para os outros, não sereis
ouvidos.
Deus não escuta vossas palavras, a menos que Ele mesmo as pronuncie através
de vossos lábios.
E não posso ensinar-vos a prece dos mares, das florestas e das montanhas.
Mas vós que nasceste das montanhas, das florestas e dos mares, podeis
encontrar suas preces em vossos corações.
E se vós apenas escutardes na quietude da noite, os ouvireis a dizer em silêncio:
“Deus Nosso, que és nosso Eu alado, é Tua vontade que quer em nós.
É o Teu querer em nós que pode transformar nossas noites, que Te pertencem,
em dias que também são Teus.
Nada podemos pedir-Te, pois conheces nossas necessidades antes mesmo que
nasçam em nós.
Sobre o prazer e a
liberdade
Então um eremita, que visitava a cidade uma vez por ano, aproximou-se e disse:
“fala-nos do Prazer.”
E de bom grado ouviria-vos cantá-la de todo coração; todavia não gostaria que
perdêsseis vossos corações ao cantá-la.
Alguns de vossos jovens buscam o prazer como se ele fosse tudo, e eles são
julgados e repreendidos.
Sete são suas irmãs, e a última delas é mais bela que o prazer.
Eles deveriam lembrar de seus prazeres com gratidão, como lembrariam uma
colheita de verão.
E há dentre vós os que não são nem jovens para buscar, nem velhos para
recordar.
Pensais que o espírito seja um poço tranquilo que possas agitar com uma vara?
Muitas vezes, negando a vós mesmo o prazer, só fazei represar o desejo nas
profundezas de vosso ser.
Quem sabe se aquilo que parece omitido hoje, não espera pelo amanhã?
Mesmo vosso corpo conhece sua herança e seus direitos, e não pode ser
enganado.
Ide até vossos campos e vossos jardins, e aprendereis que o prazer da abelha
está em sugar o néctar da flor,
Mas também que o prazer da flor está em entregar seu néctar para a abelha.
Povo de Orphalese, que vosso prazer seja como para as flores e as abelhas.
CAPÍTULO 25
Sobre a beleza
E ele respondeu:
“Onde procurareis a beleza, e como podereis achá-la, a menos que ela própria
seja vosso caminho e vosso guia?
E como podereis falar dela, se ela própria não for a tecelã de vossa fala?
Como uma jovem mãe, meio acanhada em sua própria glória, que caminha entre
nós.”
Como a tempestade que sacode a terra abaixo de nós e o céu acima de nós.”
Sua voz cede aos nossos silêncios como uma tênue luz que tremula por medo
da sombra.”
Não é uma boca sedenta, nem uma mão que se estende vazia,
Não é a imagem que quereis ver, nem a canção que quereis ouvir,
Mas antes uma imagem que vedes com os olhos fechados, e uma canção que
ouvis com os ouvidos tapados.
Não é a seiva a correr sob a casca enrugada, nem uma asa presa a uma garra,
Mas antes um jardim eternamente florido e uma reunião de anjos sempre a voar.
Sobre a religião
E ele disse:
E o que não é nem ação nem reflexão, mas a maravilha e a surpresa sempre
surgindo na alma, mesmo quando as mãos lavram a pedra ou tendem o tear?
Quem pode separar sua fé de seus atos, ou suas crenças de seus afazeres?
Quem pode espalhar suas horas diante de si dizendo: “Esta é para Deus e esta
outra é para mim; esta é para minha alma, e esta outra para meu corpo?”
Todas as vossas horas são asas que pulsam através do espaço, de um Eu para
outro.
Aquele que veste sua mortalidade como sua melhor vestimenta, ficaria melhor
desnudo.
E aquele que define sua conduta pela ética, aprisiona seu pássaro canoro em
uma gaiola.
E aquele para quem a adoração é uma janela, para ser aberta e para ser
fechada, ainda não visitou a mansão de sua alma, cujas janelas estão abertas
de um amanhecer a outro.
Pois na adoração não podeis voar mais alto que suas esperanças, nem vos
humilhardes mais baixo que seu desespero.
Sobre a morte
E ele disse:
A coruja, cujos olhos noctívagos são cegos para o dia, não pode desvelar o
mistério da luz.
Pois vida e morte são uma só coisa, assim como o rio e o mar são um.
E como sementes sonhando sob a neve, vosso coração sonha com a primavera.
Vosso medo da morte é apenas como o tremor do pastor diante do rei, quando
este lhe estende a mão para homenageá-lo.
E o pastor não estará feliz, sob o seu tremor, por receber a distinção do rei?
E o que é cessar de respirar senão libertar o alento de suas marés agitadas, para
que possa se erguer e expandir e, desembaraçado, encontrar Deus?
Despedida
E já entardecera.
E Almitra, a vidente, disse: “Abençoado seja este dia e este lugar, e teu espírito
que nos falou.”
E ele respondeu: “Fui mesmo eu quem falou? Não fui também um ouvinte?”
Breves foram meus dias entre vós, e mais breves ainda foram as palavras que
disse.
E se esse dia não é a satisfação de vossas aspirações e de meu amor, que seja
ao menos a promessa de outro encontro.
Mudam as necessidades do homem, mas não seu amor, nem seu desejo de ter
suas necessidades satisfeitas pelo seu amor.
Na quietude da noite tenho caminhado por vossas ruas, e meu espírito entrou
em vossas casas,
Sim, conheci vossa alegria e vossa dor, e no vosso sono, vossos sonhos foram
meus sonhos.
E ao meu silêncio afluíram como torrentes os risos de vossos filhos, e como rios
as ânsias de vossos jovens.
Mas algo mais suave que o riso e maior que as ânsias veio a mim.
Ele, em cujo canto todas vossas canções são apenas um tímido pulsar.
Pois, que distâncias pode o amor atravessar que não estejam nesta imensa
esfera?
Que visões, que esperanças e que presunções podem ultrapassar este vôo?
Ele tem o poder de vos prender à terra, sua fragrância vos leva ao espaço, e em
sua longevidade, vós sois imortais.
Foi-vos dito que, como uma corrente, sois tão fracos como o mais fraco de
vossos elos.
E esta é apenas meia-verdade. Vós também sois tão fortes como o mais forte de
vossos elos.
Medir-vos pelo menor de vossos atos seria como avaliar o poder do oceano pela
fragilidade de sua espuma.
Julgar-vos por vossos erros, é como atirar culpa às estações por sua própria
inconstância.
Não penseis que digo tais coisas para que possais dizer um para o outro: “Ele
muito nos elogiou. Ele só viu o que há de bom em nós.”
O homem sábio vem até vós para dar-vos de sua sabedoria. Eu vim para tomar
de vossa sabedoria.
Sempre que passais pelos campos onde jazem vossos ancestrais, olhai bem à
vossa volta e vereis a vós mesmos e a vossos filhos dançando de mãos dadas.
Outros vieram até vós, e a estes, em troca de promessas douradas feitas à vossa
fé, destes riquezas, poder e glória.
Eu vos dei menos que promessas, e todavia fostes mais generosos comigo.
Pois sempre que vou à fonte para beber, encontro a água viva, ela própria
sedenta;
Sou de fato muito orgulhoso para receber paga, mas não presentes.
E embora tenha comido bagas entre as colinas quando vós me queríeis sentado
à vossa mesa,
E tenha dormido no pórtico do templo quando vós me teríeis com prazer dado
abrigo,
Não foi, contudo, vosso amoroso cuidado com meus dias e minhas noites que
tornou meu alimento suave à minha boca, e cingiu meu sono de visões?
E disseram: “Ele mantém reunião com as árvores da floresta, mas não com os
homens.
Ele senta-se sozinho no alto das colinas, olhando para baixo, para nossa cidade.”
“Estrangeiro, estrangeiro, que amas as alturas inatingíveis, por que habitas entre
os cumes, onde só as águias fazem seus ninhos?
Desce, e apazigua tua fome com nosso pão e sacia tua sede com nosso vinho.”
Fosse porém sua solidão mais profunda, eles saberiam que eu buscava apenas
o segredo de vossa alegria e de vossa dor,
Pois muitas de minhas setas deixaram meu arco só para encontrar meu próprio
peito.
Pois quando minhas asas estavam abertas no sol, sua sombra sobre a terra era
como tartaruga.
Vós não estais encerrados em vossos corpos, nem confinados em vossas casas
ou campos.
Não é uma coisa que rasteja ao sol para se aquecer, ou escava buracos na
escuridão para se proteger,
Aquilo em vós que parece mais fraco e perdido, é o mais forte e mais
determinado.
Não foi vosso alento que construiu e solidificou a estrutura de vossos ossos?
E não foi o sonho que nenhum de vós lembra de ter sonhado, que construiu
vossa cidade e modelado tudo o que está nela?
Pudésseis antes ver as marés dessa respiração, deixaríeis de ver tudo o mais,
O véu que tolda vossos olhos será levantado pelas mãos que o teceram,
E o barro que tapa vossos ouvidos será removido pelos dedos que o amassaram.
E então vereis.
Então ouvireis.
E todavia não lamentareis ter conhecido a cegueira, nem sentireis teres sido
surdos.
Pois nesse dia conhecereis o propósito oculto de todas as coisas;
E tendo dito estas coisas ele olhou à sua volta, e viu o piloto do seu navio, em
pé ao timão, olhando ora para as velas enfunadas, ora para a distância.
E ele disse:
E estes meus marujos, que têm ouvido o coro de mares mais vastos, também
me ouviram com paciência.
A torrente atingiu o mar, e mais uma vez a grande mãe aperta seu filho contra
seu peito.
Cantastes para mim em minha solidão, e eu construí, com vossa nostalgia, uma
torre no céu.
Mas agora nosso sono se foi e nosso sonho desvaneceu, e já não é o alvorecer.
O pleno meio-dia está sobre nós, e nossa sonolência tornou-se dia pleno, e
devemos nos separar.
Dizendo isso ele fez um sinal aos marujos, e logo estes levantaram a âncora,
soltaram o navio de suas amarras e rumaram para leste.
E quando todos se haviam dispersado, ela ainda estava lá, sozinha sobre o cais,
relembrando em seu coração as palavras de Al-Mustafa: