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UNIVERSIDADE FEREDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO


DEPARTAMENTO DE LITERATURA E LÍNGUA VERNÁCULAS

A ressignificação do mito
A Metamorfose de Narciso: Salvador Dalí (1936)

LLV 7406_Estudos de Teoria Literária I: vertentes críticas do Século XX_2010.1


Professora: Lucia de Oliveira Almeida
Aluno: Felipe José Martins Pereira
08/07/2010

A origem do mito de Narciso é desconhecida. Personagem que aparece pela primeira

vez nas Metamorfoses de Ovídio, em Botânica empresta seu nome a um gênero de plantas da

família Amaryllidaceae, originário do mar Mediterrâneo. Essas plantas florescem no início da

primavera e são geralmente encontradas em solo húmido, ao redor de pequenas lagoas. Não

são poucas as semelhanças entre as duas acepções: a flor de Narciso é caracterizada no reino

vegetal por sua auto-suficiência. Seu caule é inclinado e sua flor pende para baixo como se essa

estivesse olhando fixamente para a superfície da água; do Império Romano à Idade Moderna o

mito de Narciso foi freqüentemente adaptado, e por conseqüência ressignificado.

Desde os fragmentos da mitologia grega traduzidos para o latim por Ovídio passando

pelo o auge do romance realista - final do século XIX - até as Vanguardas no início do Século

XX, a presença da figura de Narciso tanto na literatura como nas outras formas de

manifestação artística tem fornecido perspectivas bem definidas para que se trace um paralelo

entre os percursos tomados pela arte ocidental durante esse período e as formas de recepção

desses objetos de arte.

É inegável a grande influência que exerceu o estudo de Freud sobre o "inconsciente"

em A interpretação dos sonhos, tanto na literatura como nas artes plásticas durante as

primeiras décadas do Século XX. - O método psicanalítico relatado na obra de Freud é

interpretativo e o material de trabalho é o sonho individual do paciente analisado. Os

surrealistas e dadaístas aderiram ao conceito de "conteúdos inconscientes" para, além de

extravasar os limites formais do realismo, dissolver as fronteiras entre as formas de produção

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artística.
"Em 1939 Salvador Dalí vai a Londres para conhecer Freud, que lá

se encontrava exilado. Dalí mostrou ao psicanalista e escritor seu

quadro A metamorfose de Narciso, a reação de Freud à pintura foi

assinalar o artificialismo da tentativa surrealista de resgatar e recriar

artisticamente as condições do inconsciente." (BRADLEY, p. 32.

2001)

A crítica que faz o Surrealismo ao racionalismo francês e por conseqüência ao método

científico - pela sua redução analítica na busca da atribuição de identidade a seus objetos - é

uma influência confessa no discurso da crítica pós-estruturalista.

No seu ensaio "A morte do autor" Roland Barthes confirma a contribuição do grupo

surrealista para o processo de dessacralização da figura do autor, que na crítica

desconstrutivista dos anos 60 do último Século, "tomou corpo como movimento depois da

célebre conferência proferida por Derrida na Johns Hopkins University em 1966..."[1] De fato

é possível enxergar o embrião do pensamento pós-estruturalista em procedimentos do

surrealismo como a proposta do automatismo psíquico ou "a experiência de uma escrita

coletiva", retomando o mesmo ensaio de Barthes.

O ensaísta francês, estruturalista por seus estudos em Semiologia, define o surrealismo

como "uma pré-história da modernidade" e sugere a leitura dos procedimentos do grupo no

sentido de uma subversão ilusória dos códigos - "aliás ilusória, pois um código não pode se

destruir, pode-se apenas jogar com ele" -, jogo esse que influencia a filosofia de Derrida no

ensaio "A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas"[2] e que contribui para

a formação de toda uma geração da crítica literária e de uma tradição de estudos acerca das

formas de recepção dos objetos da literatura. A tensão moderna entre a bagagem da tradição e

o movimento de fuga dos centros para as periferias muito caro ao pós-estruturalismo, desloca

o lugar do gênio Autor da obra para o lugar da mão do escritor moderno, "para ele, a mão,

dissociada de qualquer voz, levada por um gesto de inscrição (e não de expressão), traça um

campo sem origem - ou que, pelo menos, outra origem não tem senão a própria linguagem,

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isto é, aquilo mesmo que continuamente questiona toda origem." (BARTHES, p. 61. 1968)

Conferência pronunciada por Salvador Dalí

na Sorbonne: 17 de dezembro de 1955.

"França é o país mais inteligente do mundo (aplausos); França é o

país mais racional do mundo (ruidos diversos), por outro lado,

venho da Espanha que é o país mais irracional do mundo e o país

mais místico do mundo... A inteligência conduz ao coeficiente

gastronômico de incerteza super-gelatinosa." (DALÍ, p. 40. 1977)

"A consequência da 'arte moderna' hoje, é termos chegado ao

máximo da racionalização e do ceticismo... resulta que

quando não se acredita em nada se termine por não pintar quase

nada... Este é o caso de toda pintura moderna." (DALÍ, p. 40. 1977)

A literatura problematiza a origem e a criação, de Nietzsche a Roland Barthes. A crítica

que Salvador Dalí faz na Sorbonne à arte moderna é também uma crítica ao ceticismo dos

métodos acadêmicos. No que diz respeito à literatura esse ceticismo se reflete no esvaziamento

da noção de autoria e na idéia de capacidade singular de um gênio criador no domínio de sua

linguagem particular (ler o formalismo russo). Em favor à Crítica, na modernidade a literatura

torna-se um espaço neutro onde não há reivindicação de um sujeito que narre o que já esta

dito pela palavra, "a escritura é a destruição de toda voz"(BARTHES, p. 57. 1968) e só a linguagem

pelo exercício do símbolo, pode ligar o passado ao presente que é a constante configuração do

universo literário.

No desenvolvimento de alguns comentários acerca do livro Psysichologie de l'Art do

escritor francês André Malraux, Maurice Blanchot define o conceito de Museu Imaginário

como uma experiência moderna que imita a experiência da arte, "por colocar a prova um

contato entre a arte e a sua história, num movimento cuja vivacidade nos torna sensíveis à

sucessão histórica das obras e a sua presença simultânea no Museu de onde a cultura, hoje, as

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reúne." No volume referido por Blanchot, Marlaux trabalha com a noção de imagens da arte,

para propor um teoria geral da arte.

De qual maneira se pensar na recepção do objeto de arte neste Século? O que Blanchot

diria sobre a democratização de um veículo cujo espaço estivesse parcialmente preenchido

pelas reproduções virtuais de todos os objetos de arte já catalogados durante a história da

humanidade? A Internet, ou melhor, o grande banco de imagens da Internet pode ser

compreendido nesse sentido como um desdobramento real de natureza comunitária do

Museu Imaginário idealizado por Blanchot.

Nesse Museu imaginário a obra de arte não se constitui de nada senão a partir dela

mesma, numa eterna transformação que se dá no interior do universo artístico, sempre. Por

essa concepção de obra, a figura do autor se existe deve ser parte da obra, e não o contrário.
“Para recordarlo más rápidamente, el Museo imaginario representa,

ante todo, este hecho: que nosotros conocemos todas las artes de todas

las civilizaciones que se han entregado a las artes. Que las conocemos

práctica y cómodamente, no con un saber ideal que no pertenecería

más que a algunos, sino de una manera real, viva y universal (las

reproducciones). Que, finalmente, este conocimiento tiene sus

caracteres singulares: es histórico, es el de una historia, de un

conjunto de historias que admitimos y aceptamos sin someterlas a

valores diferentes de su propio pasado, pero, al mismo tiempo, no es

histórico, no se preocupa por la verdad objetiva de esa historia, la que

fue suya en el momento en que se ha realizado; al contrario, la

aceptamos y la preferimos como ficción.” (BLANCHOT, p. 22. 1971)

Esse conhecimento singular que segundo Blanchot, é "um conjunto de histórias que

aceitamos sem as submeter a valores diferentes aos do seu próprio passado", é também a

constatação do espaço que cabe às "técnicas de reprodução das obras de arte."[3] Não é por

acaso que o movimento surrealista se estende para o cinema. A fotografia ainda era uma

técnica revolucionária nos primeiros anos do Século passado. Sua capacidade de iludir pelo

movimento das imagens projetadas na tela do cinema, contribuiu para que obras como A

Traição das Imagens de René Magritte, colocassem em questão as aparências do que se mostra

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ao olhar. O recurso da imagem dupla, presente na Metamorfose de Narciso, também em

Magritte incita a dúvida.

"A imagem múltipla se apóia numa técnica minuciosamente

detalhada e 'realista', na qual uma imagem despercebida numa

primeira leitura é o pivô da transformação paranóica ." (BRADLEY,

p. 41. 2001)

O método paranóico-crítico de Salvador Dalí é descrito pelo próprio pintor como um

método pseudo-científico. O procedimento se baseia na capacidade delirante que o

observador deve possuir para que consiga detectar as formas que não se revelam por meio de

um olhar direto às obras de arte que as apresentam. A técnica tem como princípio a

exploração máxima de uma obsessão interior - simulação consciente de uma visão cujo

potencial paranóico induz ao equívoco na observação.

"Em 1930, Dalí decidiu simular uma paranóia e interpretar

equivocadamente, de propósito, tudo o que via, a fim de poder

utilizar-se dos equívocos resultantes como base para a pintura.

Freqüentemente, o paranóico está convicto de ter visto a mesma

coisa muitas vezes, em diferentes lugares, pois projeta no mundo as

próprias imagens mentais. A paranóia simulada de Dalí - 'o método

paranóico-crítico' - permitia-lhe reordenar o mundo conforme suas

obsessões interiores, tal qual um paranóico. Os limites entre o real e

o imaginário então se tornavam ambíguos, e seus quadros passaram

a representar o espaço do sonho ou do maravilhoso, um espaço

onde tudo que se vê é potencialmente outra coisa." (BRADLEY, p.

39. 2001)

Essa visão atribuída por Dalí àqueles que têm "una cebola en la cabeza" - expressão que

"em Catalão corresponde exatamente à noção psicanalítica de 'complexo'" - equivale à paixão

de Narciso por sua própria imagem refletida na superfície da água. Como uma ideia fixa, no

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quadro de Dalí é a obsessão de Narciso pelo próprio reflexo que irá fazer o seu corpo se

transformar em uma mão petrificada que segura um ovo - a semente da qual brota a flor

Narciso. "A semelhança entre a figura de Narciso e a imagem da mão de pedra e do ovo

leva-as a se fundir numa espécie de imagem dupla. Foi uma das contribuições de Dalí para o

surrealismo, resultante de seu famoso método 'paranóico-crítico'."[4]

No mesmo ano em que pinta A Metamorfose de Narciso, Dalí publica numa edição da

revista Éditions Surréalistes de Paris, seu Poema Paranóico, uma espécie de "discurso sobre o

método"[5] paranóico-crítico. Como introdução ao poema, Dalí oferece ao leitor um trajeto de

interpretação a ser seguido: "Maneira de observar visualmente o curso da metamorfose de

Narciso representada no meu quadro".

No texto transcrito da conferência proferida, que recebe o subtítulo de "Aspectos

Fenomenológicos do método paranóico-crítico", Dalí narra a sua obsessão pela forma espiral.

Em "A Rendeira" de Jan Vermeer van Delft, Dalí acredita enxergar essas formas no rosto da

jovem retratada; Dalí define as espirais que formam os girassóis da mesma maneira que define

as espirais que lhe aparecem em Vermeer, formas que para ele são idênticas aos contornos

perfeitos do chifre dos rinocerontes. Garante não haver regularidade rigorosamente científica

que possa medi-las. Contornos em formas de espirais que segundo Dalí eram a única forma

com que Rafael pintava.[6] "Freud e Lacan interessavam-se pelo quadro clínico da paranóia,

uma doença mental que induz o paciente a interpretar informações de modo incorreto - ele

começa então a 'ver coisas'." (BRADLEY, p. 39. 2001)

O que Salvador Dalí faz com o seu método foi proliferar as formas de significação em

torno de um mito: o momento em que se dá a metamorfose de Narciso. Como que contrário à

ideia de que a tela deva por si só encerrar as significações possíveis dessa transformação, Dalí

projeta sua obsessão por esse instante na pintura, num discurso pseudo-científico e na poesia.

O exercício que o pintor faz para reordenar no universo artístico um objeto de arte partindo

da projeção de uma única imagem mental interior, e estabelecer assim uma relação exterior

entre uma obra e uma forma da natureza, se aproxima do distanciamento e da frieza distraída

que Dalí afirma serem necessários para que se enxergue no seu quadro o "preciso momento

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em que se produz a metamorfose do mito".(DALÍ, p. 173. 1977) Nesse momento "a imagem de

Narciso se transforma subitamente na imagem de uma mão que surge de seu próprio

reflexo."(DALÍ, p. 173. 1977)

Se assemelha a essa noção de distanciamento que a pintura do momento da

metamorfose impõe ao espectador, a idéia que o escritor italiano Ítalo Calvino faz da

vivacidade e da mobilidade da inteligência - qualidades que pela linguagem econômica de

uma Crítica ágil, são capazes de alterar o ponto de observação de uma leitura. "Não se trata

absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional... As imagens de leveza que busco não

devem, em contato com a realidade presente e futura, dissolver-se como sonhos..." (Calvino, p.
19. 2007)

O trabalho da crítica literária, assim como o trabalho do curador de um museu -

instituição moderna por definição -, é essencialmente paranoico e impõe esse distanciamento.

Ao curador é atribuída a responsabilidade de gerir e liquidar uma sucessão vaga dentre o

infinito Museu Imaginário oferecido pelo universo artístico a sua disposição. A diferença

desses trabalhos é meramente física: enquanto o curador tem a responsabilidade de organizar

sua série dentro das três dimensões de uma galeria, o crítico deve tecer sua perspectiva no

limite do plano bidimensional da página; por outro lado, o que os une é a busca de relações

entre as obras do passado e realidade presente da ressignificação.

Na conferência de Ítalo Calvino na Universidade de Harvard em 1984 acerca de suas

"seis propostas para o próximo milênio", ao falar sobre a leveza, proposta pela qual define o seu

trabalho na literatura no sentido de um esforço em subtrair o peso à estrutura da narrativa,

Calvino faz referência às Metamorfoses de Ovídio como um ideal de economia na escrita:

"para Ovídio tudo pode assumir formas novas; seu mundo se compõe de qualidades, de

formas que definem a diversidade de cada coisa... mas não passam de tênues envoltórios de

uma substância comum que - se uma paixão a agita - pode transformar-se em algo totalmente

diferente ." (Calvino, p. 21. 2007)

A ruína do jovem Narciso se configura numa cena análoga à cena da vitória de Perseu.

Perseu decepa a cabeça da Medusa pelo uso de uma imagem capturada pelo seu escudo de

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bronze. O olhar de Perseu para o reflexo da medusa não vai em direção à Medusa, mas em

direção ao seu próprio escudo, no qual está contida a imagem do monstro, e é nessa diferença

entre o quê se oferece ao olhar e o quê se pode enxergar, que reside toda a potência da

paranóia.

"Perseu se sustenta sobre o que há de mais leve, as nuvens e o vento; e dirige o olhar

para aquilo que só pode se revelar por uma visão indireta, por uma imagem capturada no

espelho." (Calvino, p. 16. 2007) Olhar para o reflexo da medusa não significa olhar para Medusa.

"Perseu consegue dominar a pavorosa figura mantendo-a oculta, da mesma forma como antes

a vencera, contemplando-a no espelho." (Calvino, p. 19. 2007)

É a escolha pela visão indireta, ou seja, pelo distanciamento consciente que o método

paranóico-crítico propõe uma percepção dinâmica, múltipla e em movimento. A imagem

dupla de Narciso é simétrica, sua cisão se dá entre a figura do homem ajoelhado diante da

própria imagem refletida no espelho d'água e da mão petrificada que segura um ovo do qual

brota uma flor. É como se o espectador fosse convidado a fazer esse movimento.

Ítalo Calvino se vale de um mito para lançar uma ponte em direção ao que espera por

um ideal de leveza na escritura deste milênio. Assim como faz Dalí, Calvino lança mão de

várias imagens míticas que reúnidas num discurso, possam dar conta de uma única idéia.

Referência Bibliográfica:

BARTHES, Roland . O rumor da língua. São Paulo (SP): M. Martins, 2004.

BLANCHOT, M. "El museo, el arte y el tiempo" In: L’Amitié, Paris: Gallimard, 1971.

BRADLEY, F. Surrealsimo. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001.

BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. Brasília: UNB, 2000.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo:

Companhia das Letras, 2007.

DALÍ, Salvador. Sí. Barcelona: Editorial Ariel, 1977.

FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. São Paulo: Círculo do Livro, 1989.

TELES, Gilberto Mendonca. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro: apresentação

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dos principais poemas, manifestos, prefácios e conferências vanguardistas de 1857 a 1972.
Petrópolis: Vozes, 1983.

[1] Revista Cult: novembro de 1998.


[2] Idem.
[3] BENJAMIN, W.A obra de arte na Era de sua reprodutibilidade técnica. In: Obras escolhidas: magia e
técnica, arte e política.São Paulo: Brasiliense, 1994.
[4] BRADLEY, F. Surrealsimo, São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001.

[5] Em referência ao título da obra do filósofo francês René Descartes.


[6] pintor italiano Rafael Sanzo1483-1757.

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