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A ressignificação do mito
A Metamorfose de Narciso: Salvador Dalí (1936)
vez nas Metamorfoses de Ovídio, em Botânica empresta seu nome a um gênero de plantas da
primavera e são geralmente encontradas em solo húmido, ao redor de pequenas lagoas. Não
são poucas as semelhanças entre as duas acepções: a flor de Narciso é caracterizada no reino
vegetal por sua auto-suficiência. Seu caule é inclinado e sua flor pende para baixo como se essa
estivesse olhando fixamente para a superfície da água; do Império Romano à Idade Moderna o
Desde os fragmentos da mitologia grega traduzidos para o latim por Ovídio passando
pelo o auge do romance realista - final do século XIX - até as Vanguardas no início do Século
XX, a presença da figura de Narciso tanto na literatura como nas outras formas de
manifestação artística tem fornecido perspectivas bem definidas para que se trace um paralelo
entre os percursos tomados pela arte ocidental durante esse período e as formas de recepção
em A interpretação dos sonhos, tanto na literatura como nas artes plásticas durante as
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científico - pela sua redução analítica na busca da atribuição de identidade a seus objetos - é
No seu ensaio "A morte do autor" Roland Barthes confirma a contribuição do grupo
desconstrutivista dos anos 60 do último Século, "tomou corpo como movimento depois da
célebre conferência proferida por Derrida na Johns Hopkins University em 1966..."[1] De fato
sentido de uma subversão ilusória dos códigos - "aliás ilusória, pois um código não pode se
destruir, pode-se apenas jogar com ele" -, jogo esse que influencia a filosofia de Derrida no
ensaio "A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas"[2] e que contribui para
a formação de toda uma geração da crítica literária e de uma tradição de estudos acerca das
formas de recepção dos objetos da literatura. A tensão moderna entre a bagagem da tradição e
o movimento de fuga dos centros para as periferias muito caro ao pós-estruturalismo, desloca
o lugar do gênio Autor da obra para o lugar da mão do escritor moderno, "para ele, a mão,
dissociada de qualquer voz, levada por um gesto de inscrição (e não de expressão), traça um
campo sem origem - ou que, pelo menos, outra origem não tem senão a própria linguagem,
que Salvador Dalí faz na Sorbonne à arte moderna é também uma crítica ao ceticismo dos
métodos acadêmicos. No que diz respeito à literatura esse ceticismo se reflete no esvaziamento
torna-se um espaço neutro onde não há reivindicação de um sujeito que narre o que já esta
dito pela palavra, "a escritura é a destruição de toda voz"(BARTHES, p. 57. 1968) e só a linguagem
pelo exercício do símbolo, pode ligar o passado ao presente que é a constante configuração do
universo literário.
escritor francês André Malraux, Maurice Blanchot define o conceito de Museu Imaginário
como uma experiência moderna que imita a experiência da arte, "por colocar a prova um
contato entre a arte e a sua história, num movimento cuja vivacidade nos torna sensíveis à
sucessão histórica das obras e a sua presença simultânea no Museu de onde a cultura, hoje, as
De qual maneira se pensar na recepção do objeto de arte neste Século? O que Blanchot
Nesse Museu imaginário a obra de arte não se constitui de nada senão a partir dela
mesma, numa eterna transformação que se dá no interior do universo artístico, sempre. Por
essa concepção de obra, a figura do autor se existe deve ser parte da obra, e não o contrário.
“Para recordarlo más rápidamente, el Museo imaginario representa,
ante todo, este hecho: que nosotros conocemos todas las artes de todas
las civilizaciones que se han entregado a las artes. Que las conocemos
más que a algunos, sino de una manera real, viva y universal (las
Esse conhecimento singular que segundo Blanchot, é "um conjunto de histórias que
aceitamos sem as submeter a valores diferentes aos do seu próprio passado", é também a
constatação do espaço que cabe às "técnicas de reprodução das obras de arte."[3] Não é por
acaso que o movimento surrealista se estende para o cinema. A fotografia ainda era uma
técnica revolucionária nos primeiros anos do Século passado. Sua capacidade de iludir pelo
movimento das imagens projetadas na tela do cinema, contribuiu para que obras como A
Traição das Imagens de René Magritte, colocassem em questão as aparências do que se mostra
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observador deve possuir para que consiga detectar as formas que não se revelam por meio de
um olhar direto às obras de arte que as apresentam. A técnica tem como princípio a
exploração máxima de uma obsessão interior - simulação consciente de uma visão cujo
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Essa visão atribuída por Dalí àqueles que têm "una cebola en la cabeza" - expressão que
de Narciso por sua própria imagem refletida na superfície da água. Como uma ideia fixa, no
transformar em uma mão petrificada que segura um ovo - a semente da qual brota a flor
Narciso. "A semelhança entre a figura de Narciso e a imagem da mão de pedra e do ovo
leva-as a se fundir numa espécie de imagem dupla. Foi uma das contribuições de Dalí para o
No mesmo ano em que pinta A Metamorfose de Narciso, Dalí publica numa edição da
revista Éditions Surréalistes de Paris, seu Poema Paranóico, uma espécie de "discurso sobre o
Fenomenológicos do método paranóico-crítico", Dalí narra a sua obsessão pela forma espiral.
Em "A Rendeira" de Jan Vermeer van Delft, Dalí acredita enxergar essas formas no rosto da
jovem retratada; Dalí define as espirais que formam os girassóis da mesma maneira que define
as espirais que lhe aparecem em Vermeer, formas que para ele são idênticas aos contornos
perfeitos do chifre dos rinocerontes. Garante não haver regularidade rigorosamente científica
que possa medi-las. Contornos em formas de espirais que segundo Dalí eram a única forma
com que Rafael pintava.[6] "Freud e Lacan interessavam-se pelo quadro clínico da paranóia,
uma doença mental que induz o paciente a interpretar informações de modo incorreto - ele
O que Salvador Dalí faz com o seu método foi proliferar as formas de significação em
ideia de que a tela deva por si só encerrar as significações possíveis dessa transformação, Dalí
projeta sua obsessão por esse instante na pintura, num discurso pseudo-científico e na poesia.
O exercício que o pintor faz para reordenar no universo artístico um objeto de arte partindo
da projeção de uma única imagem mental interior, e estabelecer assim uma relação exterior
entre uma obra e uma forma da natureza, se aproxima do distanciamento e da frieza distraída
que Dalí afirma serem necessários para que se enxergue no seu quadro o "preciso momento
Narciso se transforma subitamente na imagem de uma mão que surge de seu próprio
metamorfose impõe ao espectador, a idéia que o escritor italiano Ítalo Calvino faz da
uma Crítica ágil, são capazes de alterar o ponto de observação de uma leitura. "Não se trata
absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional... As imagens de leveza que busco não
devem, em contato com a realidade presente e futura, dissolver-se como sonhos..." (Calvino, p.
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infinito Museu Imaginário oferecido pelo universo artístico a sua disposição. A diferença
sua série dentro das três dimensões de uma galeria, o crítico deve tecer sua perspectiva no
limite do plano bidimensional da página; por outro lado, o que os une é a busca de relações
"seis propostas para o próximo milênio", ao falar sobre a leveza, proposta pela qual define o seu
"para Ovídio tudo pode assumir formas novas; seu mundo se compõe de qualidades, de
formas que definem a diversidade de cada coisa... mas não passam de tênues envoltórios de
uma substância comum que - se uma paixão a agita - pode transformar-se em algo totalmente
A ruína do jovem Narciso se configura numa cena análoga à cena da vitória de Perseu.
Perseu decepa a cabeça da Medusa pelo uso de uma imagem capturada pelo seu escudo de
direção ao seu próprio escudo, no qual está contida a imagem do monstro, e é nessa diferença
entre o quê se oferece ao olhar e o quê se pode enxergar, que reside toda a potência da
paranóia.
"Perseu se sustenta sobre o que há de mais leve, as nuvens e o vento; e dirige o olhar
para aquilo que só pode se revelar por uma visão indireta, por uma imagem capturada no
espelho." (Calvino, p. 16. 2007) Olhar para o reflexo da medusa não significa olhar para Medusa.
"Perseu consegue dominar a pavorosa figura mantendo-a oculta, da mesma forma como antes
É a escolha pela visão indireta, ou seja, pelo distanciamento consciente que o método
dupla de Narciso é simétrica, sua cisão se dá entre a figura do homem ajoelhado diante da
própria imagem refletida no espelho d'água e da mão petrificada que segura um ovo do qual
brota uma flor. É como se o espectador fosse convidado a fazer esse movimento.
Ítalo Calvino se vale de um mito para lançar uma ponte em direção ao que espera por
um ideal de leveza na escritura deste milênio. Assim como faz Dalí, Calvino lança mão de
várias imagens míticas que reúnidas num discurso, possam dar conta de uma única idéia.
Referência Bibliográfica:
BLANCHOT, M. "El museo, el arte y el tiempo" In: L’Amitié, Paris: Gallimard, 1971.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo:
FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. São Paulo: Círculo do Livro, 1989.