Você está na página 1de 6

Introdução

Rir é uma ação natural do ser humano. Fazer os outros sorrirem é uma prática
comum para ganhar amigos, se enturmar e ter uma boa convivência com as pessoas
dentro da sociedade. Desde a Grécia Antiga, quando surgiu o gênero da comédia no
teatro, levar o riso a grandes plateias e usá-lo para o entretenimento é uma prática
comum. Hoje em dia, com a proliferação dos meios de comunicação em massa, o humor
chega facilmente a qualquer pessoa que tenha acesso à televisão ou ao cinema, através
das mais diversas formas e formatos.
Seguindo a linha de pensamento de Barthes, é perceptível a inexistência de um
discurso que possa ser dito neutro. Todo discurso é construído de uma determinada
maneira por um determinado motivo, e o discurso humorístico não escapa disso. O
humor pode ser usado para transmitir mensagens, realizar críticas sociais e naturalizar
ou contestar hábitos, crenças, preconceitos e ideologias. Quando se cria um personagem
humorístico, mesmo que da maneira mais inocente possível, não se pode deixar de
pensar todo o meio de produção material em que se encontra o seu criador e que o levou
à criação do mesmo. Não chega a ser uma questão de existirem bons ou maus usos do
humor, mas há de se reconhecer toda a relação de forças que se manifesta por de trás do
discurso humorístico.
Um personagem criado, uma cena montada e uma divulgação em massa podem
gerar diferentes reações no público, que, como o autor Stuart Hall cita em seu texto
Notas sobre a desconstrução do popular (2003), não pode ser considerado como uma
massa passiva. Qualquer tipo de humor que consegue adesão popular contém elementos
de identificação comuns a esse povo.
Essa “verossimilhança”, esse “efeito de real” que se cria na construção do
personagem geralmente não parte do nada. Parte-se, geralmente, ou de construções
anteriores que foram criadas ou de personagens reais observados. Apropria-se de
determinada forma (significante) para trabalhar um conteúdo (significado) que se
estabelece não apenas pela forma em si, mas por todo o contexto sociocultural no qual
aquilo se insere. Gruzinski trabalha essa questão das relações e apropriações existentes
entre diferentes formas e conteúdos em seu livro A guerra das imagens (1990),
trabalhando, mais especificamente, em cima da colonização mexicana, trabalhando em
cima da ideia de uma “guerra de imagens” entre as imagens da cultura local e da cultura

1
dos colonizadores espanhóis, baseando-se não apenas nas relações significante-
significado, mas em todo o fundo histórico desses impasses.
Inspirado na análise desenvolvida por Gruzinski (1990) e também a de Dorfman
e Mattelart (1978), o objetivo deste trabalho é analisar os elementos constitutivos do
personagem humorístico “Nerso da Capitinga”, interpretado pelo ator Pedro Bismarck.
Não cabe nenhum julgamento a cerca do personagem, apenas uma análise de como ele
se constrói e de quais discursos correm por de trás dele.

Nerso e o histórico do caipira na cultura brasileira

Mineiro de Muriaé, cidade onde se localiza a comunidade rural da Capetinga,


que dá nome a seu personagem, Bismarck criou Nerso aos dezoito anos, após mudar-se
para Juiz de Fora para servir ao exercito. Desde então ganhou destaque com suas apre-
sentações e foi para a TV, participando do extinto programa A escolinha do professor
Raimundo e, até hoje, do humorístico Zorra Total. Ambos os programas são programas
voltados à um humor leve e fácil, popularesco e com uso recorrente de bordões, visando
um entretenimento leve e fácil, apesar de muitos questionarem sua qualidade pela
maneira como o programa estereotipagem constante de figuras populares.
Nerso da Capitinga, personagem mais famoso de Bismarck, é construído sob o
típico estereótipo do caipira. Por não ser o primeiro personagem construído sob esse
estereótipo, já carrega consigo diversas construções previamente estabelecidas do que é
o caipira, para garantir o reconhecimento do personagem logo à primeira vista. Para a
análise, me baseio no conceito de Barthes que diz que a imagem nos propõe três
mensagems: “uma mensagem linguística, uma mensagem icônica codificada e uma
mensagem icônica não codificada” (Barthes, 1982).
A primeira mensagem, a Linguística, buscarei expressar pela fala do persona-
gem, a escolha de vocabulário e o sotaque empregado. A segunda mensagem, a icônica
não codificada (ou denotativa), buscarei mostrar pela maneira como é construída a apa-
rência do personagem, como ele se porta e no cenário dado a ele apresentado na série de
quadros onde se vê a relação dele com a personagem Rosinha, interpretada por Myrian
Martin. A terceira mensagem, a icônica codificada (ou conotativa), trabalharei anali-
sando os possíveis significados latentes e interpretações do personagem através de suas
relações com o ambiente e os demais personagens, buscando analisar o que esse discur-

2
so carrega consigo em termos de ideologia, e como ajuda na construção do que, seguin-
do o conceito de mito de Barthes (1993), poderíamos considerar o Mito do Caipira.
Começando pela analise denotativa, além de seu andar desajeitado e sua postura
introvertida e tímida, tipicamente associada a quem vêm do interior, o vestuário do per-
sonagem usa elementos ligados ao tipo caipira por suas construções anteriores. Sua
camisa é xadrez ou listrada, como as que Amácio Mazzaropi utilizava em seus filmes
para interpretar seus personagens (caipiras famosos, como Jeca e o Lamparina), as cal-
ças de Chico Bento (Personagem criado por Maurício de Souza para representar o caipi-
ra) e utilizada também na representação do caipira no quadro O violeiro (Almeida Ju-
nior, 1899). Apesar disso, cores extravagantes são escolhidas para as roupas, provável-
mente para um efeito cômico com o modo de se vestir do personagem, adotando um
estilo que mistura elementos do que geralmente se considera “brega” numa mistura que
brinca com uma ideia de que os caipiras não saberiam se vestir.
Na ausência do chapéu tipicamente associado ao estereotipo, o personagem tem
um ralo cabelo lambido na testa, reforçando a ideia de sua ingenuidade. O suspensório
para prender as calças e não deixar que elas caiam é essencial, uma vez que, devido ao
costume do reaproveitamento de roupas de parentes que existe no interior, nem sempre
a calça será na medida certa, e para o trabalho no campo, não é interessante que as
calças fiquem caindo. Nos pés, botas de couro, afinal, não se entra no barro da fazenda
sem o calçado adequado para não sujar os pés e ser facilmente limpo depois. No cenário
de seu esquete ao lado da personagem Rosinha, prevalece o verde da grama, o amarelo
das flores e o azul do céu, referenciando as três cores da bandeira nacional brasileira,
além disso há a cerca que separa Nerso de Rosinha, que sempre aparece nua.
No que diz respeito à fala do personagem, nota-se o sotaque mineiro. Ele fala
fazendo constantes abreviações, como vemos aos 0:57 do vídeo Nerso da Capitinga –
Mudei de casa, quando ele fala de comer um “torresmin” e “Microonis”, em seguida, ao
se referir a um micro ônibus. A fala também segue um ritmo acelerado muito típico,
além de erros na fala, como a troca do “L” por “R”, ou até mesmo momentos em que o
“R” é ignorado, e também a utilização de expressões tipicamente associadas ao falar
mineiro, como “trêm”, “oia”, “cruz”, “nossinhora”, entre outras. A ingenuidade do
personagem também é reforçada pela sua fala, já que ele sempre leva as coisas pelo
sentido literal, como vemos no vídeo Escolinha do professor Raimundo – Nerso da
Capitinga, reforçando essa ideia no personagem.

3
Nesse ponto já temos o personagem delimitado. Uma vez que já foram citados
os principais elementos para o reconhecimento e identificação do personagem, entramos
na análise conotativa do personagem. É de se ressaltar que o tipo caipira é, tipicamente,
a representação do povo brasileiro, uma vez que o Brasil é um país cuja industrialização
começou tarde e onde, até o fim dos anos 20, reinou a política do café com leite. Mesmo
na cidade brasileira contemporânea, ainda existem muitas pessoas que viveram o êxodo
rural da época da ditadura (como crianças ou como adultos) e têm enraizadas em si a
origem no campo, além dos filhos dessas pessoas, que ainda tem o contato com o campo
diretamente através de seus país e, na maior parte dos casos, no máximo, através de seus
avós. Ou seja, o campo ainda está muito próximo do cidadão brasileiro.
Uma representação do caipira para representar o povo brasileiro, por esses
fatores, não é incomum, como vemos em exemplos como os de Mazzaropi, ou o per-
sonagem Bento Carneiro (o vampiro brasileiro de Chico Anysio). Reforça-se essa ideia
com o próprio cenário dado a Nerso, que é formado pelas mesmas cores da bandeira na-
cional. Sendo então uma representação do povo brasileiro, e com todos os elementos de
reconhecimento do estereótipo do caipira já citados anteriormente, o personagem
carrega uma forma muito forte para se trabalhar significados e transmitir ideias.
Nem tudo é previamente e maquiavelicamente planejado. As vezes são coisas
tão cravadas na mentalidade popular, que são reproduzidas pelo estereótipo apenas para
fins de reforça-lo com aquilo que já se espera ver ali. É o caso da ingenuidade de Nerso,
por exemplo. Geralmente atribui-se essa característica ao “caipira”, ao homem do
interior, considerando-o até mesmo bobo, uma presa fácil.
Apesar disso, Nerso se mostra muito esperto em tentar buscar soluções para as
situações que enfrenta. O problema é que suas ações sempre acabam gerando problemas
maiores do que os anteriores. Quando ele enterra vivos os políticos do ônibus que
capotou, por exemplo, acreditando que não se deve confiar em políticos mesmo quando
eles dizem estarem vivos, ele gera problemas com a policia, além das diversas soluções
que ele tenta buscar para tirar Rosinha de trás da cerca e poder vê-la nua, que sempre
acabam com o objetivo não alcançado.
Sendo assim, tomando Nerso como a representação do povo brasileiro, temos
então em vista um povo ingênuo, que pensa ser esperto e busca soluções “alternativas”
para os problemas, mas que acaba por nunca conseguir solucioná-los de fato, e as vezes
até geram mais problemas com isso. É um povo atrapalhado e até mesmo infantil e que,
considerando as esquetes com Rosinha, têm de encarar sempre uma barreira entre ele e

4
aquilo que quer. Rosinha, alias, representa todo um padrão de beleza estabelecido pela
mídia brasileira: loira, magra, bronzeada e com as curvas do corpo bem definidas.
Sempre nua, é objeto de desejo de Nerso, que nunca passa da promessa de “um dia
ainda pulo essa cerca”, e representa todo o desejo em si contido no povo brasileiro, que
acabam nunca sendo alcançados, pelos tropeços das próprias estratégias adotadas por
esse povo. É um povo incapaz de fazer algo que leve a algum resultado desejado, pois
mesmo quando se têm o resultado de tirar Rosinha de trás da cerca, nunca é da maneira
como se desejou, pois sempre há algo cobrindo aquilo que se desejava ver. Essa
incapacidade reflete resquícios e acaba por reforçar à expressão criada por Nelson
Rodrigues do “Complexo de vira-latas” do povo brasileiro, mesmo este já estando em
vias de ser superado. O discurso latente no personagem Nerso, então, acaba por reforçar
e naturalizar um discurso corrente de inferioridade do povo Brasileiro, em relação à
incapacidade de atingir seus próprios objetivos expressos através da figura do caipira.

Conclusão

Há muitas formas de se construir um discurso, e se ele se dá de uma determinada


maneira, seja intencionalmente ou não, não é por mero acaso. Ao se criar um
personagem humorístico muito entra em jogo em termos ideológicos, mas isso tudo se
dá de maneira oculta, às vezes ao próprio humorista que não percebe o que há por trás
daquilo que ele faz. Para a mídia que escolhe o conteúdo a ser exibido, essa ideia de que
nada é por acaso se reforça, uma vez que o que vai para a TV, por exemplo, é escolhido
a dedo pra isso, e nesse caso, a escolha mais obvia é por aquilo que diga o que a
emissora quer dizer da maneira menos obvia possível, afinal de contas, se todo esse
posicionamento fosse explicito, o jogo não funcionaria.
Não se pode julgar a maneira como se constroem tais sentidos, afinal de contas,
as vezes é algo “espontâneo” dentro daquilo que se enraíza no criador do personagem.
Apenas há de se constatar que esses sentidos latentes existem e considerar que, hoje em
dia, o humor é um dos maiores meios de transmitir ideias, fixar ideologias e naturalizar
relações historicamente construídas. Apesar da banalização do “estranho” na mídia, que
vêm fazendo que seja cada vez mais difícil para os humoristas gerar algo novo e
surpreendente em cima do que já foi criado. Mas independentemente dos rumos que
tome o humor, essas relações sempre continuarão a se estabelecer.

5
BIBLIOGRAFIA

BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 9ª. Edição,
1993
BARTHES, Roland. Retórica da Imagem. In: BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso.
Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1982.
CHAUI, Marilena. “O que é ideologia”. 13 ed. São Paulo: Brasiliense, 1983.
GRUZINSKI, S. Introdução. In: GRUZINSKI, S. A guerra das imagens: de Cristovão
Colombo a Blade Runner (1492-2019). São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 13-
21.
GRUZINSKI, S. A guerra. In: GRUZINSKI, S. A guerra das imagens: de Cristovão
Colombo a Blade Runner (1492-2019). São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 54-
111.
HALL, Stuart. Notas sobre a desconstrução do popular. In: SOVIK, Liv. Da Diáspora,
identidades e mediações culturais. Belo Horizonte e Brasilia: UFMG/UNESCO, 2003.
Origem da comédia na Grécia Antiga. Recanto das Letras. 1, jul. 2012. Disponível em:
<http://www.recantodasletras.com.br/teorialiteraria/3755021 >. Acesso em 05 dez. 2013

Você também pode gostar