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José de Paula Ramos Jr.

Mário de
Andrade
e a lição do
modernismo

REVISTA USP • São Paulo • n. 94 • p. 49-58 • JUNHO/JULHO/AGOSTO 2012 49


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dossiê Semana de Arte Moderna

RESUMO

Na célebre conferência “O Movimento Modernista”, proferida em 1942,


Mário de Andrade traça um histórico do modernismo para chegar a uma
avaliação do legado do movimento para a arte e para a cultura nacional.
Realizada na biblioteca do Ministério das Relações Exteriores, no Rio de
Janeiro, em celebração dos vinte anos da Semana de Arte Moderna, essa
conferência serve de emblema para a assimilação oficial do modernismo,
no momento em que seu esgotamento é assinalado por um de seus re-
presentantes máximos.

Palavras-chave: modernismo, Mário de Andrade, teoria, história e crítica


literária, arte e realidade.

ABSTRACT

In his famous 1942 lecture entitled “The Modernist Movement”, Mário de Andra-
de outlines a history of modernism, and finishes off with an assessment of the
legacy of the movement for the national art and culture. Held in the library of
the Ministry of Foreign Affairs in Rio de Janeiro, on the occasion of the celebra-
tion of the twentieth anniversary of the Modern Art Week, that lecture serves
as a symbol of the official assimilation of modernism in a moment when its
exhaustion was pointed out by one of its chief representatives.

Keywords: modernism, Mário de Andrade, theory, history and literary criticism,


art and reality.

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N
oventa anos pas- sobre a minha cidade [São Paulo]” (p. 233).
sados desde a Se- Revela, então, o episódio da briga doméstica
mana de Arte Mo- deflagrada pela “Cabeça de Cristo”, de Vic-
derna, o que diria tor Brecheret, “gatilho que faria Pauliceia
Mário de Andrade Desvairada estourar” (p. 233). A família, ao
sobre o movimento ver o bronze nada convencional de Breche-
que, segundo sua ret, indignou-se, armou celeuma e provocou
própria avaliação, mudou o Brasil e que, a fúria seminal de Mário de Andrade. Assim,
segundo se diz, está morto? Jamais sabere- de modo anedótico, desenha-se o choque do
mos. Mário, há muito tempo, tornou-se pai velho espírito acadêmico contra o novo es-
de vivos, tal como o herói Macunaíma, e pírito, que se objetivaria coletivamente na
brilha inútil no céu. Porém, é possível ima- Semana de Arte Moderna, entendida como
ginar que ele confirmasse o óbito, reafirman- marco do movimento que “foi uma ruptura,
do o que dissera na célebre conferência “O foi um abandono de princípios e de técnicas
Movimento Modernista” (Andrade, 1974a). consequentes, foi uma revolta contra o que
Esse ensaio, de 1942, parte de um históri- era a Inteligência nacional” (p. 235).
co do modernismo para chegar a uma avalia- Voltando ao discurso generalizante, o
ção de seu legado para a arte e para a cultura autor admite que, no primeiro momento, “o
nacional. Observando mais de perto o texto, espírito modernista e as suas modas foram
constata-se que ele pode ser dividido em qua- diretamente importados da Europa” (p. 236).
tro partes notáveis. A primeira, com valor Rejeita, entretanto, as acusações de antinacio-
de introdução, define o movimento como nalismo e antitradicionalismo. Polemicamen-
“o prenunciador, o preparador e por muitas te, pondera que o modernismo só se poderia
partes o criador de um estado de espírito realizar em São Paulo, pois, “pela sua atua-
nacional” (p. 231) e considera os primeiros lidade comercial e sua industrialização, [en-
modernistas “altifalantes de uma força uni- contrava-se] em contato mais espiritual e mais
versal e nacional muito mais complexa que técnico com a atualidade do mundo” (p. 236).
nós. Força fatal, que viria mesmo” (p. 231). Mário de Andrade reconhece que “o
Entende-se essa “força fatal” como a expan- movimento modernista era nitidamente aris-
são do mundo industrial moderno, que, no tocrático. Pelo seu caráter de jogo arriscado,
início da década de 1920, já atingira o Brasil, pelo seu espírito aventureiro ao extremo, pelo
impondo “a criação de um espírito novo” e seu internacionalismo modernista, pelo seu
exigindo a “reverificação e a remodelação da nacionalismo embrabecido, pela sua gra-
inteligência nacional” (p. 231). tuidade antipopular, pelo seu dogmatismo
A segunda parte evoca a história do prepotente, era uma aristocracia de espírito”
modernismo. Ao narrar a constituição do (p. 236). Esse espírito aristocrata foi adotado
movimento, o autor assinala a formação de e protegido pela aristocracia paulista tradi-
um “grupinho de intelectuais paulistas” (p. cional, sintetizada na figura de Paulo Pra-
232), que transitara da pré-consciência à do, “fautor verdadeiro da Semana de Arte
convicção de uma arte nova, primeiramen- Moderna” (p. 235). A burguesia “não podia
te revelada pela exposição da pintora Anita encampar um movimento que lhe destruía o
Malfatti em 1917. Fechando o foco em sua espírito conservador e conformista” e “pro- JOSÉ DE PAULA
experiência pessoal, Mário de Andrade se testou e vaiou” (p. 237). RAMOS JR.
refere às suas “leituras desarvoradas” (p. O movimento modernista é, então, divi- é professor do
Departamento
233) de autores futuristas e à descoberta do dido em três fases. A primeira dura cerca de de Jornalismo
e Editoração da
poeta belga Émile Verhaeren (1855-1916), seis anos e se inicia com a exposição de Ani- ECA-USP e autor de
especialmente de Les Villes Tentaculaires ta Malfatti. É o chamado “período heroico”, Leituras de Macunaíma:
Primeira Onda
(1895), obra que o levara a conceber “um em que um pequeno grupo de modernistas se (1928-1936)
livro de poesias modernas, em verso livre, formava em São Paulo. “Durante essa meia (Edusp/Fapesp).

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dúzia de anos, fomos realmente puros e livres, Mário de Andrade pressupõe que “os
desinteressados, vivendo numa união ilumi- movimentos espirituais precedem sempre as
nada e sentimental das mais sublimes. Isola- mudanças de ordem social” (p. 242) e, assim,
dos do mundo ambiente, caçoados, evitados, vê o espírito “verdadeiramente modernista”
achincalhados, malditos, ninguém não pode como “preparador; o criador de um estado
imaginar o delírio de grandeza e convenci- de espírito revolucionário”, que redundara na
mento pessoal com que reagimos” (p. 237). Revolução de Outubro, em 1930. Nesse ano,
A primeira fase se encerra com a rea- extinguem-se os salões, e o modernismo en-
lização da Semana de Arte Moderna, “co- tra na terceira fase, de construção, que já não
roamento dessa arrancada gloriosamente corresponderia ao “verdadeiro modernismo”.
vivida” (p. 238). Dá-se, então, o que Mário O que se pode considerar terceira parte
considera o “período realmente destruidor” da conferência consiste na caracterização das
(p. 237) do modernismo. O movimento se conquistas do movimento modernista. Mário
concentra nos salões em que a arte moderna de Andrade reafirma: “O espírito modernista
era largamente discutida (Rua Lopes Chaves, que avassalou o Brasil, que deu o sentido his-
Avenida Higienópolis, Rua Duque de Caxias tórico da Inteligência nacional desse período,
e Alameda Barão de Piracicaba). É, também, foi destruidor. Mas essa destruição não ape-
a fase de descoberta da realidade brasileira. nas continha os germes da atualidade, como
Nesse período, os modernistas eram ata- era uma convulsão profundíssima da reali-
cados e perseguidos pelos burgueses de espíri- dade brasileira” (p. 242). Segundo Mário, o
to e pela própria burguesia endinheirada, mas modernismo impusera à realidade nacional
encontravam apoio, decisivo para a imposição a “fusão de três princípios fundamentais:
do modernismo, na aristocracia paulista. Tal o direito permanente à pesquisa estética, a
apoio se nutria de certos valores compartilha- atualização da inteligência artística brasi-
dos pelo espírito modernista e o espírito da leira e a estabilização de uma consciência
aristocracia paulista: o internacionalismo, a criadora nacional” (p. 242). Nada disso era
modernidade, o interesse pela cultura brasi- novo: “A novidade fundamental, imposta
leira e, especialmente, a gratuidade: “Numa pelo movimento, foi a conjugação dessas três
fase em que ela não tinha mais nenhuma normas num todo orgânico da consciência
realidade vital, como certos reis de agora, a coletiva” (p. 242).
nobreza rural paulista só podia nos transmitir O autor, então, põe em destaque cada
a sua gratuidade” (p. 238). Mas, se essa elite uma das três normas. Quanto à primeira,
prestigiava o modernismo, também provocava Mário observa que, exceto o romantismo e
a dissolução dos modernistas, ao envolvê-los o modernismo, “todos os movimentos his-
nos “favores da vida” (p. 238). “A aristocracia tóricos das nossas artes […] sempre se ba-
tradicional nos deu mão forte, pondo em evi- searam no academismo” (p. 243), expressão
dência mais essa geminação de destino “tam- do colonialismo cultural. Assim como todas
bém ela já então autofagicamente destruidora, as escolas artísticas, o romantismo e o mo-
por não ter mais uma significação legitimável” dernismo, de início, também se teriam com-
(p. 241). Aqui, Mário se refere ao esgotamento portado academicamente, com a importação
histórico da aristocracia cafeeira, que se en- de modelos europeus, mas o espírito revolu-
contrava em acelerado estado de decadência. cionário dessas duas escolas, imbricado nas
É insistente a declaração do caráter des- respectivas formas estéticas, possuiria um
truidor do modernismo, que Mário considera conteúdo antiacadêmico, que, no Brasil, ha-
“o seu sentido verdadeiramente específico”, veria resultado, no primeiro caso, na Incon-
nessa fase de sua história. “Destruidor de nós fidência Mineira, na independência política e
mesmos, porque o pragmatismo das pesqui- na formação do “instinto de nacionalidade”,
sas sempre enfraqueceu a liberdade de cria- nos termos de Machado de Assis não usados
ção” (p. 240). por Mário, mas que bem poderiam ser; no

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segundo caso, o antiacademismo redundara mo que teria ultrapassado o “amadorismo
na Revolução de 30, na consciência coletiva nacionalista” e o “segmentarismo regional”
da nacionalidade enfim constituída e na ne- (p. 247). O modernismo teria conquistado a
gação do colonialismo cultural. descentralização intelectual, que encontrara
As pesquisas estéticas do romantismo e expressão significativa na proliferação de
do modernismo, considerados movimentos “editoras cultas de província” (p. 248) “Glo-
“necessários” porque teriam valorizado as bo, Nacional, Martins” e de núcleos culturais
“fontes do povo”, embeberam-se na reali- como o de Cataguases, em Minas Gerais,
dade nacional. No primeiro caso, de modo entre outras caixas de ressonância espalha-
episódico e mais individualista; no segundo, das pelo Brasil, a evidenciar a consolidação
apesar dos “despautérios individualistas” (p. nacional da cultura brasileira, que implica-
243), na forma de um espírito atualizado e ria a noção de uma nacionalidade brasileira
orgânico, “que pesquisava já irrestritamente enfim constituída, mas sempre em processo
radicado à sua entidade coletiva nacional” (p. de transformação.
243). Nos dois casos, “o estandarte mais co- O pressuposto da consciência da realida-
lorido dessa radicação à pátria foi a pesquisa de nacional seria o reconhecimento de uma
da língua brasileira” (p. 244), sobre a qual tradição própria, compartilhada nacional-
Mário de Andrade realiza uma longa digres- mente, que expressaria a particularidade do
são. Nesse aspecto, assinala que a diferença homem brasileiro, portador de uma identi-
entre as duas escolas se encontraria no fato dade peculiar: “Não há dúvida nenhuma que
de que, no tempo do modernismo, a realidade nós hoje sentimos e pensamos o quantum sa-
brasileira estava “mais forte e insolúvel que tis brasileiramente” (p. 244). O nacionalismo,
nos tempos de Alencar ou de Machado de porém, prestara-se a “muita falsificação”,
Assis” (p. 244), mas a “ausência de órgãos disfarce de um espírito conformista, acomo-
científicos adequados” (p. 244) fizera com datício e acadêmico “que não raro tornou-se
que a “verificação de nosso instrumento de um porque-me-ufanismo larvar” (p. 244), em
trabalho” (p. 244) fosse reduzida a “mani- tudo contrário ao autêntico espírito moder-
festações individuais” (p. 244), de modo que nista, cuja “verdadeira consciência da terra
“hoje, como normalidade de língua culta e levava fatalmente ao não conformismo e ao
escrita, estamos em situação inferior à de cem protesto” (p. 244).
anos atrás” (p. 245). Não obstante isso, Mário Retomando a aproximação entre roman-
concede que a “radicação de nossa cultura ar- tismo e modernismo, o conferencista assina-
tística à entidade brasileira” (p. 247) compen- la que a diferença fundamental desses dois
saria a suposta falha no plano da linguagem. movimentos, em confronto com as outras
Segundo Mário de Andrade, o antiacade- escolas de arte brasileiras, estaria no fato de
mismo teria levado à fixação da “lei estético- que estas seriam “superfacções culturalistas,
-técnica do fazer melhor” (p. 249). Por outro impostas de cima para baixo, de proprietário
lado, o experimentalismo antiacadêmico, a propriedade, sem o menor fundamento nas
com seu pressuposto de inserção consciente e forças populares” (p. 250), o que indiciaria
coletiva da arte moderna no seu lugar social, a base desumana dessas escolas. Já o ro-
cultural e histórico, exigiria do artista a res- mantismo é entendido como um movimento
ponsabilidade de um “diarismo profissional” “absolutamente necessário” (p. 250), porque
(p. 246), em que “ficar no aprendido não é ser suas pesquisas estéticas possuiriam aquela
natural: é ser acadêmico; não é despreocupa- base popular e humana requerida, identifi-
ção: é passadismo” (p. 246). cável, por exemplo, na proposta de “retorno
O espírito antiacadêmico das pesquisas coletivo às fontes do povo” e na criação da
formais se articularia com a “estabilização ciência do folclore.
de uma consciência criadora nacional”, en- Também no modernismo se apresenta-
tendida como uma conquista do modernis- riam “essas mesmas bases populares e hu-

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manas” (p. 250) cuja presença Mário de An- individualismo, procuro em vão nas minhas
drade distingue “no verso livre, no cubismo, obras, e também nas de muitos companhei-
no atonalismo, no predomínio do ritmo, no ros, uma paixão mais temporânea, uma dor
super-realismo mítico, no expressionismo” mais viril da vida. Não tem. Tem mais é uma
(p. 250) e, de modo especial, no primitivis- antiquada ausência de realidade em muitos
mo. Na atitude estética representada pelas de nós” (p. 252).
postulações do primitivismo, o autor vê a Aquela quadra histórica, “integralmente
possibilidade de se restabelecer a rompida política da humanidade” (p. 255), exigiria
conexão entre arte e vida, mediante o proces- uma mudança de comportamento do artista,
samento culto dos “instintos e formas fun- no sentido de levá-lo a expressar uma “maior
cionalmente populares, que encontramos nas revolta contra a vida como está” (p. 253). Se
mitologias cíclicas, nas sagas e nos Kalevalas grande parte dos modernistas se acomodara
e Nibelungos de todos os povos” (p. 251). ao nacionalismo conformista e acadêmico,
Ainda a propósito do “direito permanente os que mantiveram o espírito verdadeiro do
de pesquisa estética”, Mário enfatiza que o modernismo “antiacadêmico, inconformista
modernismo “não era uma estética, nem na e criticamente enraizado na realidade nacio-
Europa nem aqui. Era um estado de espírito nal”, a despeito do esforço para dar a suas
revoltado e revolucionário que, se a nós nos obras um caráter combativo, teriam errado o
atualizou, sistematizando como constância real alvo a ser atacado. Por meio de imagens
da Inteligência nacional o direito antiacadê- que evocam a ideia de molecagem ou de dile-
mico da pesquisa estética, e preparou o esta- tantismo inconsequente e irresponsável, Má-
do revolucionário das outras manifestações rio pondera que, em vez de “pegar a máscara
sociais do país, também fez isto mesmo no do tempo e esbofeteá-la como ela merece”,
resto do mundo, profetizando estas guerras de os modernistas foram “quebrar vidros de ja-
que uma civilização nova nascerá” (p. 251). nelas, discutir modas de passeio, ou cutucar
Encerrando a terceira parte do discurso, os valores eternos, ou saciar nossa curiosi-
na divisão que propusemos, Mário de Andra- dade na cultura” (p. 253). A sua obra e a de
de adverte que a “atualização da inteligência companheiros de viagem estariam marcadas
artística brasileira” não se deve confundir por aquilo que ele chama de “insuficiência do
com “liberdade de pesquisa estética, pois esta abstencionismo” (p. 253).
lida com formas, com a técnica e as represen- O modernismo destruidor fora ultrapas-
tações da beleza, ao passo que a arte é muito sado, mas o novo espírito que se formara de
mais larga e complexa que isso, e tem uma seu legado, embora mais atento às dores do
funcionalidade imediata social, é uma pro- mundo, não se livrara daquilo que Mário de
fissão e uma força interessada da vida” (pp. Andrade identifica como a razão do engano
251-2). Mário destaca que “dentro da fun- que amesquinharia a sua obra e, também,
cionalidade humana da arte é que o assunto a de seus companheiros: o individualismo.
adquire um valor primordial e representa Como superá-lo?
uma mensagem imprescindível” (p. 252). Perante os horrores do tempo vivenciado
Com essa reflexão sobre a importân- — “a ditadura do Estado Novo e da Segunda
cia da mensagem na arte, Mário retoma a Guerra Mundial”—, “os abstencionismos e
questão das relações entre arte e vida, que os valores eternos podem ficar para depois”;
sempre ocupou lugar central em seu pensa- a atitude correta da arte seria a participação
mento, para articular a quarta e última parte decidida no processo de “amilhoramento
da conferência, em que recupera o discurso político-social do homem” (p. 255), prática
pessoal como estratégia para encetar uma entendida como “a essência mesma de nossa
áspera crítica ao modernismo. A autocrítica idade” (p. 255).
severa não disfarça o intuito de estender a Mário de Andrade considera que o mo-
censura a todo o movimento: “Vítima do meu dernismo não deveria ser um exemplo, mas

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Caixa Modernista, Edusp/Editora UFMG/Imprensa Oficial, São Paulo, 2003

Capa de Pauliceia
Desvairada, 1922

uma lição. A consciência crítica dos proble- berdade sobre as forças que a cerceavam: “A
mas suscitados pelo movimento poderia con- vida humana é que é alguma coisa a mais que
duzir a arte à participação no necessário pro- ciências, artes e profissões. E é nessa vida
cesso de “amilhoramento” do homem, missão que a liberdade tem um sentido, e o direito
que o autor estende às ciências e aos ofícios. dos homens. A liberdade não é um prêmio, é
Mário encerra seu discurso transbordan- uma sanção. Que há de vir” (p. 255).
do da arte para a política explícita, valen- A nota política final da conferência con-
do-se até mesmo de linguagem panfletária tém uma implícita, embora veemente, conde-
­“Marchem com as multidões” (p. 255), diz nação do regime político em vigor no Brasil
ele para, em seguida, vaticinar a vitória da li- naquele momento, a ditadura do Estado Novo,

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que de certo modo patrocinava o evento. Afi- do movimento, nenhuma análise. Recordei
nal, a conferência foi realizada na biblioteca coisas e dessas coisas, com os meus senti-
do Ministério das Relações Exteriores, no mentos de agora, saíram conclusões que
Rio de Janeiro, em 1942, em celebração dos nem eu mesmo esperava e umas confissões
vinte anos da Semana de Arte Moderna. bastante cruéis” (Andrade, 1982, p. 201). Em
A efeméride da primeira década moder- 20 de março de 1942, dizia ao amigo Pau-
nista passara em branco, como Mário de An- lo Duarte que a conferência seria “talvez a
drade assinala na abertura do ensaio “Luís minha coisa mais discutível e mesmo erra-
Aranha ou a Poesia Preparatoriana”, de 1932: da. O que importa é o pretexto para o que
“Faz dez anos que se realizou em São Paulo quero dizer” (Duarte, 1977, p. 227); e em 20
a Semana de Arte Moderna. Ninguém cele- de abril, a Manuel Bandeira, Mário revelava:
brou essa data e não era mesmo possível cele- “Agora vou me botar na escritura definitiva
brá-la” (Andrade, 1974c, p. 47). Na avaliação da conferência do dia 30, de que talvez você
do autor, além dos participantes da Semana, não goste nada. Ando muito desequilibrado,
poucos seriam capazes de aceitar as conquis- numa espécie de sofrimento esquisito que
tas modernistas naquele momento. Todavia, não consigo discernir bem” (Andrade &
a conferência de 1942, nas circunstâncias em Bandeira, 2001, p. 662).
que se deu, serve de emblema para a assimi- O que Mário temia das pessoas “oficiais”?
lação oficial do modernismo no momento em Estaria imaginando represálias políticas? É
que seu esgotamento era assinalado por um possível, pois vigorava o Estado Novo e seu
de seus representantes máximos. discurso se encerrava com uma exortação ao
Mário de Andrade envolvera-se passio- engajamento político e à ação libertária. O
nalmente na produção do texto da conferên- crítico João Luiz Lafetá (2000, p. 221) bem
cia, arrebatado por um estado de angústia assinalou que o final da conferência “ultra-
que o atormentara desde o convite para passa a literatura e penetra na área da ação”,
pronunciá-la até muito tempo após proferi- acrescentando que a aparente intenção de
-la. Há na correspondência de Mário várias Mário era a de “fazer com que os proble-
alusões à inquietude sentida nos pródromos mas políticos do momento fossem discutidos
do evento, realizado em 30 de abril e pre- pela juventude, que esta se colocasse frente
sidido por Carlos Drummond de Andrade, à situação mundial e tomasse partido ativo”
na condição de representante do então mi- (Lafetá, 2000, p. 202). Não houve retaliação
nistro da Educação Gustavo Capanema. Na política. Entre as pessoas “oficiais” presentes
condição de amigo, Drummond cita trechos à conferência estavam amigos como Carlos
de duas cartas de Mário a Newton Freitas, Drummond de Andrade, que registrou não
que ajudam a compor o quadro. Datada de 21 haver sucedido “nada de anormal, durante
de março de 1942, a primeira diz: “[…] es- a conferência e depois dela, nas repercus-
tou todinho entregue a uma conferência que sões impressas” (Andrade, 1982, p. 201).
aceitei fazer no Rio, na Casa do Estudante, Decerto, haveria outro motivo para as
sobre o Movimento Modernista de 22, vin- apreensões de Mário, e não seria propria-
te anos passados. Aliás é pretexto pra dizer mente político, mas artístico, embora im-
umas coisas muito brabinhas, tou com certo pregnado de tensões políticas e éticas, con-
receio do que vai suceder. Principalmente se forme demonstrado por João Luiz Lafetá
tiver pessoas ‘oficiais’ na conferência. En- (2000, pp. 219 e seg.).
fim será o que Deus quiser” (Andrade, 1982, No momento em que compunha o texto
p. 201). Na segunda, de 8 de abril de 1942, da conferência, Mário de Andrade se en-
lê-se: “Estou com o pé no estribo do avião contrava em seu ápice intelectual, mas, após
(será estribo?) voando pro Rio, onde vou tantos anos de estudo, de reflexão e de ação,
fazer uma conferência sobre o Movimento não conseguira resolver numa síntese teórica
Modernista… Não fiz nenhum estudo crítico satisfatória as contradições entre arte e vida,

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que sempre estiveram no núcleo de seu pen- já assinalado, que não deve ser confundido
samento e de sua prática, como intelectual e com uma suposta postulação de arte engaja-
como artista. A razão dessa precariedade tal- da, que nem arte seria se os pressupostos es-
vez se explique pelo choque de sua formação téticos fossem subsumidos na práxis política.
cristã com o seu pensamento social propenso Ao contrário, na arte socialmente interessada
ao marxismo. Conforme a síntese crítica de de Mário, os pressupostos psicológicos, so-
Telê Porto Ancona Lopez (1972, p. 71): ciais, culturais, éticos e políticos é que de-
veriam ser incorporados e elaborados este-
“Toda a trajetória ideológica de Mário de ticamente, de modo que a realidade exterior
Andrade nos mostra o conflito resultante da se tornasse interior da obra de arte. Porém,
ânsia de querer domar seu destino em função Mário de Andrade considerava deformadora
do compromisso que escolhe e da importân- da pureza artística essa inclusão da exteriori-
cia que dá à participação e à coerência. O dade. Em suas próprias palavras, “não há dú-
compromisso, que nascera na identificação vida nenhuma que o assunto não tem a menor
humanitária de cristão em 1917, continua importância para a inteligência estética” (p.
motivado em grande parte pela mesma iden- 252); mas aquele compromisso ético sempre
tificação, que vai adquirindo com o correr do pressuposto conduz o autor à valorização da
tempo maior objetividade de análise e maior funcionalidade social da mensagem: “Defor-
informação. Pensa ser marxista e pensa ser mei, ninguém não imagina quanto, a minha
católico, ao mesmo tempo em que reconhece obra […]. Mas eu decidira impregnar tudo
não ser verdadeiramente nenhum dos dois”. quanto fazia de um valor utilitário, um valor
prático de vida, que fosse alguma coisa mais
Telê observa que a solução encontrada terrestre que ficção, prazer estético, a beleza
por Mário de Andrade para acomodar as divina” (p. 254).
contradições entre cristianismo e marxismo Em síntese, a conferência de 1942 estuda
fora a aceitação do ecletismo, inspirado em o movimento modernista segundo a convic-
Jacques Maritain, mas adverte: “a partir de ção de que a “inteligência estética” se expres-
1943 [portanto num momento bem próximo sa por meio da arte, entendida na condição
da conferência], apesar de haver encontrado de fenômeno estético e de função social in-
o caminho justo em Maritain, não o segue e teressada e eticamente comprometida, sendo
continua em conflito” (Lopez, 1972, p. 70). que os polos dessa dualidade mantêm uma
Mesmo dilacerado pelas contradições relação contraditória, teoricamente não re-
entre materialismo e espiritualismo, Mário solvida (Bosi, 1972, p. 33).
de Andrade chegara, já antes de 1942, a uma A angústia sentida por Mário de Andrade
compreensão crítica da arte como linguagem, em relação à conferência é, sem dúvida, ma-
que pressupõe o domínio técnico dos mate- tizada por inúmeras razões, algumas talvez
riais, o conhecimento da tradição e o “esfor- tão íntimas que jamais as conheceremos. No
ço constante de pesquisa” (Lafetá, 2000, p. entanto, é evidente que a inquietude derivava
214) da realidade. Para ele, a especificidade sobretudo de sua preocupação com o papel
da arte está nas formas, criadoras de beleza, da arte, do artista e do intelectual perante os
mas isso não esgota o fenômeno artístico, horrores do mundo em guerra e do seques-
que se configura como função social interes- tro da liberdade no Estado Novo brasileiro.
sada e participante, criadora também de uma Discorrer sobre o movimento modernista foi,
humanidade melhor. Para além da estética, a como vimos, “pretexto pra dizer umas coisas
arte implica o imperativo ético de “amilho- muito brabinhas”, divulgar conclusões ines-
ramento político-social do homem” (p. 255). peradas e “confissões cruéis”, resultantes de
Ao cravar em fermata essa nota final da “nenhum estudo crítico do movimento, ne-
conferência de 1942, Mário de Andrade dá a nhuma análise”, mas da recordação do pas-
seu depoimento o inequívoco caráter político sado misturada com “os meus sentimentos

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dossiê Semana de Arte Moderna

de agora”. Não é bem isso o que se verifica representava a vitória oficial e, também, a
na leitura atenta da conferência. Trata-se, decretação oficial do fim do movimento.
propriamente, de um ensaio em que a nota A conferência é um esforço de entendi-
pessoal, a divagação, o dado de memória, a mento desse paradoxo, no momento em que
intuição, os afetos e paixões se relacionam as conquistas modernistas se diluíam em no-
com a razão crítica. Há, sim, estudo e análi- vos caminhos ou eram negadas por correntes
se, que se apresentam misturados aos senti- literárias que se articulavam segundo condi-
mentos pessoais do autor naquela quadra. A ções diversas daquelas em que o movimento
articulação do raciocínio crítico manifesto se desenvolveu. E a consciência crítica dos
com a expressão de afetos (ou desafetos) é perigos implícitos nessas tendências artísticas
construída segundo o método digressivo, em ação — academismo e conformismo —,
num esforço de compreensão nascido da- gestadas no interior do próprio modernismo,
quele “sofrimento esquisito”, que Mário de davam a Mário de Andrade um sentimento de
Andrade não conseguia “discernir bem”, mas medo (Andrade, 1974b, p. 171). Daí o empe-
que pode ser associado ao senso de compro- nho com que se lançou à tarefa de, por meio
misso transparente em toda a sua obra. da história do modernismo, da caracterização
Decerto, Mário de Andrade viu na ce- de suas conquistas para a cultura nacional e
lebração oficial dos vinte anos da Semana da crítica ao movimento, articular uma li-
de 22 a institucionalização do modernismo, ção que pudesse orientar as novas gerações
e percebeu o paradoxo dessa situação, que perante o abismo que se abria à sua frente.

B I B LI O G R AFIA

ANDRADE, Mário de. “O Movimento Modernista”, in Aspectos da Literatura Brasileira.


5a ed. São Paulo, Martins, 1974a.
.“A Volta do Condor”, in Aspectos da Literatura Brasileira. 5a ed. São Paulo,
Martins, 1974b.
. “Luís Aranha e a Poesia Preparatoriana”, in Aspectos da Literatura Brasileira.
5a ed. São Paulo, Martins, 1974c.
. A Lição do Amigo: Cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade,
Anotadas pelo Destinatário. Rio de Janeiro, José Olympio, 1982.
ANDRADE, Mário de; BANDEIRA, Manuel. Correspondência Mário de Andrade & Manuel
Bandeira. Oganização, introdução e notas de Marcos Antônio de Moraes. 2a ed. São
Paulo, Edusp, IEB, 2001.
BOSI, Alfredo. “O Movimento Modernista de Mário de Andrade”, in Colóquio/Letras,
no 12, Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1972.
DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por Ele Mesmo. 2a ed. São Paulo, Hucitec, 1977.
LAFETÁ, João Luiz. 1930: A Crítica e o Modernismo. 2a ed. São Paulo, Duas Cidades,
Editora 34, 2000.
LOPEZ, Telê Porto Ancona. Mário de Andrade: Ramais e Caminho. São Paulo,
Duas Cidades, 1972.

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