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Ciência&Cultura REPORTAGEM

(Fonte: “Homens Trabalhando”, de Zina Aita. Reprodução)

Zina Aita, pintora nascida em Belo Horizonte, foi decisiva no modernismo brasileiro.

O Modernismo além de São Paulo


Para além de São Paulo, o modernismo se espalhou por
todas as regiões do Brasil, revolucionando a arte, a cultura e
a sociedade do país

* Leonor Assad

O Modernismo no Brasil Prado, membro da oligarquia e Graça Aranha, que emprestou


costuma ter data de nascimento: cafeeira paulista; René Thiollier, seu nome para conferir prestígio
os três dias de fevereiro de 1922 sobrinho da proprietária do ao evento. Entre os palestrantes,
da Semana de Arte Moderna no Vale do Anhangabaú, criador nomes como Menotti del Picchia,
Teatro Municipal de São Paulo. da Revista da Academia Paulista Plínio Salgado e Cândido Motta
O dia 13 foi dedicado à pintura de Letras e em cujo nome Filho estiveram ao lado de
e à escultura; o dia 15 à literatura está no recibo de aluguel do Mário de Andrade e Oswald de
e o dia 17 à música. Não resta Teatro Municipal; Alfredo Pujol, Andrade no dia 15 de fevereiro,
dúvida que foi um evento da deputado em São Paulo por estes considerados os grandes
elite paulistana. Afinal, entre os sete legislaturas; o empresário precursores do modernismo
patrocinadores citam-se Paulo Antônio da Silva Prado Júnior; brasileiro.
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Mas em 1922 já existiam dentre os quais se destaca
intelectuais e escritores, como
“O Modernismo é o modernismo diretamente
o paraense Bruno de Menezes, um processo” derivado da Semana de Arte
o sergipano Silvio Romero, Moderna.
o baiano Sosígenes Costa, o Quem afirma é Cid Seixas Seja como for, a
fluminense Euclides da Cunha Fraga Filho, escritor e jornalista classificação de elementos
e o gaúcho Augusto Meyer, nascido em Maragogipe, Bahia, da cultura como modernos
e artistas plásticos, como que acrescenta: “Nada veio do está sempre provocando
os irmãos pernambucanos nada. Sempre que temos esse controvérsias. Cid Seixas, por
Joaquim e Vicente do Rego tipo de recorte, devemos no exemplo, considera que Cruz e
Monteiro, que se afastaram de mínimo desconfiar”. Souza, autor de “Missal” e de
influências europeias por meio Nesse processo, muitos “Broquéis”, lançados em 1893,
de abordagens que valorizavam especialistas consideram foi ultramoderno, ainda que seja
a cultura nacional. Outros, como que temos inclusive um pré- considerado por muitos como
a pintora mineira Zina Aita, que modernismo, noção cristalizada pertencente ao simbolismo
participou da exposição que por Tristão de Athayde que, com o naturalismo e o
se instalou no Foyer do Teatro (pseudônimo de Alceu Amoroso realismo, constitui uma das
Municipal com oito obras, é Lima, crítico literário, professor, fases do pré-modernismo.
raramente mencionada. Foi um escritor e líder católico brasileiro) Doutor em Literatura pela USP e
evento da elite paulistana. que cunhou em 1939 esse termo professor titular aposentado da
Ou seja, há quem afirme para denominar o período entre Universidade Federal da Bahia
que o Modernismo no Brasil não 1916 e 1920. Anos depois, Tristão (UFBA), Seixas acrescenta: “A
teve início em 1922; São Paulo de Athayde reviu esta delimitação Semana foi mitificada, colocada
não é sua terra natal; e Mário de e considerou o Pré-modernismo num patamar de relevância
Andrade e Oswald de Andrade como sendo o período entre estética, cultural, econômica e
não são propriamente seus 1875 e 1925. Posteriormente, política em razão de um interesse
fundadores. Tão importantes o Alfredo Bosi, professor da da elite paulista de colocar São
quanto eles em matéria de Universidade de São Paulo Paulo acima do Brasil”.
poesia modernista são Manuel (USP), adotou o termo em sua Maria Teresa Boaventura,
Bandeira, pernambucano “História Concisa da Literatura no texto “Semana de arte
radicado no Rio, e Carlos Brasileira”. Atualmente, já não moderna: o que comemorar?”,
Drummond de Andrade, poeta se fala em pré-modernismo publicado em 2013, aponta que
mineiro. O primeiro com seu livro versus modernismo e sim numa a Semana foi apenas uma festa
modernista “Libertinagem” e o pluralidade de modernismos, que consolidou e ampliou a
segundo com “Alguma Poesia”, atuação de um grupo formado
livros de 1930 em que reuniam por volta de 1917, depois do
sua produção esparsa dos anos “Há quem afirme impacto da Exposição de Anita
20. Anelito Pereira de Oliveira, Malfatti, e agilizou o lançamento
poeta, professor da Universidade que o Modernismo de obras, como o romance
Estadual de Montes Claros no Brasil não teve cinematográfico “Alma” de
(Unimontes) e professor visitante Oswald de Andrade, lançado
de Literaturas Africanas na início em 1922; em outubro, e “Pauliceia
Universidade Federal de Minas São Paulo não é Desvairada”, de Mário de
Gerais (UFMG), aponta que a Andrade, e “O Homem e a
centralidade do modernismo sua terra natal; e Morte”, de Menotti del Picchia,
tantas vezes atribuída a São Mário de Andrade lançados em novembro. E mais, a
Paulo é “decorrente da cultura Semana contribuiu para deslocar
urbana de uma elite branca, e Oswald de o centro dos acontecimentos
em que Mário de Andrade, Andrade não são culturais da então capital do país
um sujeito negro, disfarçou sua para São Paulo.
negritude do mesmo modo que propriamente seus
Machado de Assis”. fundadores.”
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que usufruíam do privilégio de
O Modernismo Brasil “A centralidade receber notícias da vanguarda
Afora do Modernismo europeia antes dos portos do
Sudeste, criaram os “Vândalos do
Em debate sobre atribuída a São Apocalipse” — posteriormente
centenário da Semana de Arte Paulo abafou “Academia do Peixe Frito — cujo
Moderna de 1922, promovido expoente era o poeta Bruno de
pelo jornal Folha de São Paulo por muitas Menezes e que tinham na Casa
em 07 de dezembro de 2021, décadas obras e da rua João Diogo, 26, talvez o
o jornalista e escritor Ruy mais importante endereço do
Castro criticou os discursos que inciativas culturais primeiro Modernismo paraense
valorizam o evento paulista em importantes.” (Figura 1).
detrimento da efervescência Em Cataguases (MG),
cultural no Rio de Janeiro. Afinal, Humberto Mauro apresentou
já em 1909 Lima Barreto lançava Rio, publicado originalmente
em 1926 “Na Primavera da
“Recordações do Escrivão Isaías em 1911, Giovanna Deltry
Vida”, sua primeira produção
Caminha”, romance sobre a cita também Gilka Machado,
cinematográfica, que buscava
trajetória de um jovem mulato que lançou seu primeiro livro
uma linguagem no cinema
do interior que sofre sérios de poesias em 1915 e que
nacional desvinculada da
preconceitos raciais no Rio e, em se destacou pela produção
tradição francesa. É também
1915, publicou em livro sua obra- poética de temática erótica,
em Cataguases que surge
prima “O Triste Fim de Policarpo em uma época extremamente
em 1927 a “Revista Verde”,
Quaresma”, sobre os ideais e as conservadora.
periódico mensal de arte e
frustrações de um funcionário Autor de livros como
cultura do Movimento Verde,
público metódico e nacionalista “Metrópole à Beira-mar e As
que contava com a participação
fanático. Vozes da Metrópole”, que
do romancista e poeta Rosário
“Com toda a certeza, mostram o dinamismo e a
Fusco e dos poetas Ascânio
podemos afirmar que a busca modernidade da produção
Lopes e Enrique de Resende,
por uma nova consciência cultural da capital do Brasil
todos considerados modernistas.
cultural e artística brasileira já nos anos 1920, Ruy Castro
Rosário Fusco, por exemplo, é
estava em curso antes de 1922 afirmou no debate promovido
considerado o menino-prodígio
e em outras cidades, fora de pela Folha que é necessário
do Modernismo brasileiro,
São Paulo. O Rio de Janeiro discutir a ideia de que o resto
precursor do suprarrealismo
teve um papel central nesse do Brasil vivia um atraso cultural
literário. A “Revista Verde” foi
momento, e cidades como São monumental e que tenha sido
editada entre 1927 e 1929, e
Luís, Recife e outras também necessário “que dois gênios,
contou com a colaboração de
estavam buscando formas de Mário e Oswald de Andrade,
poetas, escritores e ilustradores
discutir o país republicano e pós- viessem nos salvar daquele
modernistas do Brasil. A pintora
escravagista”. Quem aponta abismo de soneto parnasiano
mineira Zina Aita participou
é Giovanna Deltry, professora e pronome bem-colocado, que
da exposição que se instalou
de Literatura Brasileira na é o que nós fazíamos, segundo
no Foyer do Teatro Municipal
Universidade do Estado do Rio de eles, o tempo todo aqui”. E
com oito obras e é raramente
Janeiro (UERJ), que acrescenta: ironizou: “os modernistas de
lembrada (Figura 2).
“no Rio de Janeiro, o jornalista, São Paulo fizeram a Semana não
Na Bahia, três grupos
cronista, tradutor e teatrólogo para atualizar o Brasil, mas para
são considerados precursores
João do Rio (pseudônimo de atualizar a si mesmos”.
do Modernismo em Salvador.
João Paulo Emílio Cristóvão A centralidade do
Um deles é a Academia dos
dos Santos Coelho Barreto) é Modernismo atribuída a São
Rebeldes, criada provavelmente
considerado um pioneiro da Paulo abafou por muitas décadas
em 1927 e da qual faziam parte
crônica-reportagem iniciada em obras e inciativas culturais
Jorge Amado, Pinheiro Viegas,
1903”. Organizadora do livro importantes. Em Belém de
Sosígenes Costa, Guilherme
“Vida Vertiginosa”, de João do 1921, um grupo de intelectuais
Dias Gomes, Walter da Silveira,
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argumentando que este não
mais representava a deriva, ou
o caminho, da sua pesquisa
estética”. Para Cid Seixas,
trata-se de um exemplo de
auto apagamento de escritores
baianos no início do século, em
contraposição aos escritores de
Pernambuco na época.
Ou seja, vários autores,
muitas cidades e vários ramos
da cultura, como pintura, dança,
literatura e música, foram
eclipsados por São Paulo.

Os esquecidos da
festa do Modernismo
paulista eram negros
e pobres
Para Anelito de Oliveira,
“é necessário pensar a Semana
de 22 no bojo de um processo
histórico”, cujas raízes são a
Abolição da Escravatura em 1888
e a Proclamação da República em
1889. A partir daí observa-se uma
modernização do país, com início
de desenvolvimento industrial e
(Reprodução) construção de estradas de ferro,
mas com a economia ainda
Figura 1. Os Vândalos do Apocalipse e outras histórias: Arte e
dependente da agricultura e com
Literatura no Pará dos Anos 20, de Aldrin de Moura Figueiredo.
a população negra mantida à
margem da sociedade brasileira.
Autor de “Três Festas:
entre outros. Outro é o da Samba”, que teve apenas quatro A Love Song As Monk”, livro
revista Arco & Flexa: mensário números. lançado em 2004 e que discorre
de cultura moderna, liderado Um caso emblemático sobre o conflito entre o mundo
por jovens cujas idades variavam é o de Godofredo Filho, com exterior e o eu interior, Anelito
entre 16 e 22 anos, lançada “Samba Verde”, coletânea de de Oliveira destaca que não
em novembro de 1928. E um 13 poemas escritos em 1925. se pode avaliar o papel que é
terceiro, também liderado Cid Seixas, em seu livro “A conferido a Mário de Andrade,
por jovens que se reuniam na Literatura na Bahia: tradição Oswald de Andrade e tantos
“Baixinha”, localizada entre as e modernidade”, aponta que outros escritores no Modernismo
ladeiras do Pelourinho, do Passo “depois de ter visto as primeiras brasileiro sem considerar a
e do Carmo, e a faixa que liga o provas, em 1928, Godofredo questão racial. Anelito se apoia
Taboão à Baixa dos Sapateiros, recolheu a edição do seu no geógrafo Milton Santos para
e que lançou em 1928 a “Revista livro antes do lançamento, afirmar que fatos são relações:
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São Paulo em 1917, depois
de morar quatro anos em
Belo Horizonte. Em São Paulo
conheceu Mário de Andrade,
Oswald de Andrade e Menotti
del Picchia e integrou o grupo
que planejou as atividades da
Semana de Arte Moderna no
Teatro Municipal de São Paulo.
Embora esquecido, no Programa
oficial Agenor Barbosa aparece
no segundo dia como integrante
do grupo que fez o recital de
poesias após a palestra de
abertura de Menotti Del Picchia.
E mais: foi o único a receber
aplausos naquela sessão. Talvez
porque seus versos não fossem
ainda tão modernistas.
Para Giovanna Deltry,
entre a diversidade cultural e
artística da época, “não há como
compreender a modernidade
do início do século sem estudar
a importância da caricatura
— veloz, ágil e popular —
e a presença dos cronistas
e colunistas nas revistas e
jornais cariocas”. E ressalta
(Reprodução)
“a importância dos jornais do
Figura 2. Capa de uma edição da “Revista Verde”, de Cataguases período por onde passaram
(MG). cronistas e caricaturistas, como
Kalixto Cordeiro (K.Lixto) e Raul
Pederneiras, que recriavam com
“levo em consideração as amor. Negros, como o escritor precisão cenas de capoeiragem
relações entre história, estética carioca Lima Barreto, o poeta e bailes populares e festas, como
e ideologia”. E acrescenta: “eu mineiro Agenor Barbosa, o o carnaval e a Festa da Penha”.
vejo no sujeito Mário, na sua escritor carioca Lima Barreto, o A musicalidade negra do Rio de
subjetividade, todo um conjunto poeta paulista Lino Guedes, os Janeiro carrega um elemento
de conflitos que só se explica pintores cariocas João e Arthur indelével de uma modernidade
pela sua negritude”. Timótheo da Costa, e o poeta que, apesar do racismo da
Modernistas negras e catarinense João da Cruz e Sousa sociedade, não é capaz de
negros estão por todo país. No ficaram esquecidos na narrativa apagá-la, aponta Giovanna
Pará, o poeta e folclorista Bruno que se faz em torno de um Deltry que acrescenta: “numa
de Meneses, foi uma espécie Modernismo Paulista (Figura 3). perspectiva contemporânea,
de anunciador do modernismo O poeta mineiro Agenor não é mais possível colocar os
em Belém, com sua poesia que Barbosa é um exemplo desse paulistas, ou nenhum outro
evoca a raça negra, a cidade que esquecimento. Ele nasceu em grupo de intelectuais, como
o tempo levou, as tradições e o Montes Claros e mudou-se para “descobridores” dos músicos
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negros”. Pixinguinha, “Os


Oito Batutas”, João da Baiana,
Hilário Jovino, Tia Ciata e
Donga são alguns dos nomes
que inauguraram uma presença
musical negra no Rio de Janeiro
e que, mais tarde, ganharam o
mundo.
E mais, apesar de
trajetórias diversas, Lima Barreto
— considerado por Octávio Ianni
um dos fundadores da literatura
afro-brasileira — e João do Rio
— um grande tradutor de Oscar
Wilde que em 1902 foi recusado
pelo Itamaraty por ser “gordo,
amulatado e homossexual” —
têm em comum a observação
crítica da vida urbana. Giovanna
Deltry complementa: “Sem
aderirem por completo às
expressões culturais populares,
como acontece a partir de 1922,
ambos são precursores por
escreverem sobre o carnaval, a
favela, os subúrbios, a modinha
etc. Em suma, os aspectos que o
Estado desejava apagar de uma
vez por todas, devido às origens
negras e pobres”.

* Leonor Assad é engenheira


(Reprodução) agrônoma, doutora em Ciência do Solo,
especialista em divulgação científica,
Figura 3. Lino Guedes - Poeta moderno nascido em Socorro-SP professora titular aposentada da
e que lançou seu primeiro livro, “Luiz Gama e sua individualidade Universidade Federal de São Carlos, e
literária”, em 1924. apaixonada por trabalhar e escrever
sobre Ciência.

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