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O ANTI-ÉDIPO E A OBRA DE DELEUZE

O presente trabalho parte da pressuposição que O anti-Édipo é ponto de


inflexão na obra de Deleuze. Dizer isso não equivale a pensar numa ruptura com a
construção filosófica anterior, mas refere-se a adoções de novas perpectivas por parte de
Deleuze. O texto está dividido em duas partes. Na primeira, discutiremos acerca da
hipótese de leitura da obra deleuzeana apresenta por Zizeck na obra Órgãos sem corpo.
Na segunda parte, analisaremos uma seção do quarto capítulo de O anti-Édipo.

Júlia Almeida, na obra Estudos deleuzeanos da linguagem (2003),que é


resultado de sua tese doutoral, defende a existência de certa ruptura na obra de Deleuze,
que pode ser compreendida como tentativa de reversão do “imperialismo do signo
linguístico” (ALMEIDA, 2003, p. 22) a favor de uma linguística dos fluxos. Nesse
sentido, a produção deleuzeana, anterior a Mille Plateaux1[Mil Platôs] (1980),
sobretudo Logique du Sens [Lógica do sentido] (1969), estaria atrelada a uma linguística
do significante e do significado, embora, no dizer de Zourabichvili (2016), já
inaugurasse uma nova época da filosofia, a qual não mantinha ligação com a ideia de
identidade, mas estaria baseada na ideia de imanência. Sendo assim, mesmo que
Deleuze não estivesse ocupado com as relações de designação, significação ou
manifestação, atrelada à ideia de referência e representação, tendo construído um
pensamento filosófico baseado na ideia de Acontecimento (Événement), do devir, do
paradoxo etc., sua produção filosófica anteriores à década de oitenta [década da
publicação de Mil Platôs] ainda estaria atrelada a uma linguística do significante. Assim
sendo, segundo Almeida, a partir do Mil Platôs (1980) haverá, na produção deleuzeana,
dessa vez em parceria com Guattari, uma espécie de “virada” na produção filosófica, a
chamada “virada pragmática”. A partir de tal virada, a opção de Deleuze e Guattari será
por uma linguística dos fluxos, ancorada na formulação de Hjmslev da expressão-
conteúdo (ALMEIDA, 2003).

A crítica que fazemos a Almeida considera que a emergência de uma nova


fase no pensamento de Deleuze de fato é perceptível. Contudo, ao que parece, aquela
autora errou o ponto em que essa mudança ocorre. Apesar de que, a partir de Mil Platôs

1
Os títulos das obras de Deleuze serão apresentados em francês apenas uma vez, adotando-se,
portanto, no desenrolar do texto, a grafia em português.
2

(1980) teremos uma diminuição na utilização da noção de cadeia significante, isso não
se dá, ao que parece, em virtude da adoção de uma linguística dos fluxos de Hjmslev,
mas em virtude de uma nova concepção de inconsciente, de uma nova formulação do
desejo como positividade e de uma adoção da gênese dinâmica, que já fora apresentada
na Lógica do sentido e que agora dará a tônica dos textos posteriores.

O que nos leva a essa compreensão são alguns pontos sutis. Em primeiro
lugar, a consideração que a própria Almeida faz de que, na obra Lógica do sentido, o
sentido não representa nada, mas estabelece-se como fronteira incorporal. Ao que
parece, Almeida não considerou suficientemente a teoria estoica dos incorporais que
Deleuze está utilizando naquela obra. Talvez a compreensão mais apurada da noção
estoica de acontecimento incorporal levasse Almeida a outras conclusões. Em segundo
lugar, a leitura dos textos citados anteriormente mostram um movimento que, ao que
parece, estaria surgindo por volta de 1967, como uma reflexão de Deleuze acerca do
estruturalismo com uma crítica à psicanálise o qual culminará na produção de O anti-
Édipo. Nesse sentido, se a hipótese aqui aventada estiver correta, a grande mudança não
se dará com o Mil Platôs, mas terá lugar já na obra O anti-Édipo ou bem antes, se
considerarmos que antes mesmo de escrever Lógica do sentido tais formulações já
estavam sendo ensaiadas, como atesta o escrito Em que se pode reconhecer o
estruturalismo, datado de 1967. Partindo de tais premissas, nem mesmo a parceria com
Guattari poderiam explicar a mudança de tom de Deleuze, uma vez que, mesmo nos
textos que escrevera sozinho, o filósofo já antecipara algumas teses que desenvolverá na
obra O anti-Édipo. Nesse sentido, defendemos a tese de que há uma continuidade na
obra de Deleuze sendo as obras Lógica do sentido e O anti-Édipo os pontos de
inflexão.

Mas é preciso formular melhor e o fazemos a partir da compreensão do


campo transcendental. Deleuze, na Lógica do sentido, postula que é preciso criar um
campo transcendental. Ali ele apresente tal campo a partir de dois caminhos: a gêneses
estática e a gênese dinâmica. Nesta segunda, vale-se da psicanálise para formular as
bases de tal campo. Contudo, será preciso construir uma psicanálise sem Édipo para que
tal campo seja formulado, o que fará na obra O anti-Édipo. Porém, o resultado só ficará
mais evidente com o Mil Platôs.
3

Uma segunda tese acerca da leitura da obra deleuzeana é apresentada por


Zizek na obra Órgãos sem corpos: Deleuze e consequências (2008). Já na introdução, o
autor apresenta a premissa inicial da obra, a saber, que por trás do “Deleuze (da imagem
popular de Deleuze baseada na leitura de livros escritos em co-autoria com Felix
Guattari) existe outro Deleuze, muito mais próximo da psicanálise e de Hegel, um
Deleuze cujas consequências são muito mais devastadoras” (ZIZECK, 2008, p. 12).
Dito de outro modo, a pressuposição do autor é de que é possível distinguir a produção
que Deleuze faz sozinho, a qual seria mais próxima ao hegelianismo e à psicanálise, da
produção em parceria com Guattari. Considerar essa distinção é, na visão de Zizeck um
ponto que pode provocar consequências “mais devastadoras”, isto é, provocar rupturas
mais profundas com determinadas visões, muito mais do que aquelas provocadas pelas
obras de Deleuze em parceria com Guattari. Nesse sentido, o autor justifica que o “livro
começa discernindo a tensão interna no pensamento de Deleuze entre O anti-Édipo e a
Lógica do sentido, entre o Deleuze que celebra a multitude produtiva do devir contra a
ordem reificada do ser e o Deleuze da esterilidade do devir incorpóreo do Sentido-
Acontecimento” (Id., 2008, p. 12). Este é, a nosso ver, o ponto principal dessa segunda
tese acerca da leitura de Deleuze: compreender a tensão interna que existe, de modo
especial, entre O anti-Édipo (obra escrita em parceria com Guattari) e a Lógica do
sentido (obra produzida apenas por Deleuze). Tal tensão, no dizer de Zizeck, pode ser
formulada em termos de um devir produtor contra um devir estéril e incorporal. Ao que
parece, Zizeck mostra que a existência de uma tensão entre obras de períodos e formas
de composição diferentes revela que os conceitos e os problemas de ambas se
relacionam e assim, mais do que pensar que uma obra supera a outra, importa perceber
o modo como se dá a relação entre as obras e, consequentemente, entre os períodos de
composição de Deleuze.

A tensão acima aludida, pode ser compreendida quando analisa-se, segundo


Zizeck, a noção de realidade virtual em Deleuze. De acordo com Zizeck, Deleuze é “o
filósofo do virtual” (Id., 2008, p. 17). Nesse sentido, acrescenta o autor, “o que importa
para Deleuze não é a realidade virtual, e sim, a realidade do virtual (que, em termos
lacanianos, é o Real)” (Id., 2008, p. 17). E como distinguir a “realidade virtual” da
“realidade do virtual”? Zizeck responde: “a realidade virtual por si mesma é uma ideia
pobre: a de imitar a realidade, de reproduzir sua experiência em um meio artificial. A
realidade do Virtual, por outro lado, representa a realidade do Virtual em si, de seus
4

efeitos e suas consequências reais” (Id., 2008, p. 17). Dito de outro modo, existe uma
realidade que pode ser dita do “Virtual em si”, a qual não apresenta-se como uma
representação, reprodução ou imitação de uma determinada realidade, mas por si
mesma, torna-se a própria realidade. Como vimos, Zizeck relaciona esta realidade do
“Virtual em si” ao conceito lacaniano de “Real”. Será esta realidade do “Virtual em si”,
a chave para a compreensão da tensão entre as obras de Deleuze e mesmo o
desenvolvimento de seus conceitos.

Para Zizeck, a compreensão do “Virtual em si” é possível quando considera-


se a noção de “empirismo transcendental”. Em suas palavras,

A genialidade de Deleuze consiste em sua noção de “empirismo


transcendental”: diferenciando-se da concepção padrão do
transcendental que o entende como a rede conceitual formal que
estrutura o rico fluxo de dados empíricos, o ‘transcedental deleuzeano
é infinitamente MAIS RICO que a realidade 2 - ele é o infinito campo
potencial de virtualidades a partir do qual a realidade é atualizada
(ZIZEK, 2008, p. 18-19).

Como vimos, a compreensão da noção de transcendental em Deleuze é


diferente da apreensão comum do termo na filosofia. Para Abbagnano, no Dicionário de
filosofia, com transcendental “ou com transcendente, começaram a ser denominadas, no
fim do século XIII, as propriedades que todas as coisas têm em comum, que por isso
excedem ou transcendem as diversidades de gêneros em que as coisas se distribuem”
(ABBAGNANO, 2012, p. 1158). Contudo, para Kant, segundo Abbagnano, o termo
“consiste em: 1º. Considerar o Transcendental como condição da possibilidade da coisa,
ou seja, como conceito a priori ou categoria; 2º. considerar a coisa, cuja condição é o
Transcendental, como fenômeno, e não como ‘coisa em si’”(Id., 2012, p.1158). Dito de
outro modo, se o transcendental, na filosofia medieval referia-se às propriedades
comuns das coisas, em Kant, apresenta-se como possibilidade da coisa ou categoria da
mesma, embora não se confunda com ela, uma vez que a coisa em si, em relação ao
transcendental que é sua condição, apresenta-se como fenômeno.

Dito isso, como compreender o empirismo transcendental de Deleuze? Para


Zizeck, a compreensão deleuzeana de empirismo transcendental é bastante diferente
2
Grifos do autor.
5

tanto da noção medieval quanto da noção kantiana de transcendente uma vez que, em
Deleuze, o transcendental apresenta-se como “o infinito campo potencial de
virtualidades a partir do qual a realidade é atualizada” (ZIZECK, 2008, p. 19). Nesse
sentido, a noção deleuzeana de transcendental apresenta-se com uma riqueza
“infinitamente” maior uma vez que engloba o campo das virtualidades que, para
Deleuze, segundo Zizeck, é infinito. São as virtualidades que constituem a realidade e
aqui está a riqueza, segundo Zizeck, da noção deleuzeana.

Mas como entender a noção de “empirismo transcendental”? De acordo com


Zizeck, o termo “transcendental” deve ser compreendido “como as condições a priori
da possibilidade de nossa experiência da realidade constituída” (Id., 2008, p. 19). Assim
sendo, “a junção paradoxal de opostos (transcendental + empírico) aponta para um
campo de experiência além da (ou, mais propriamente, sob a) experiência da realidade
constituída ou percebida” (Id., 2008, p. 19). Trata-se de permanecer no “campo da
consciência” de modo que “Deleuze define o campo do empirismo transcendental como
‘uma pura corrente de consciência a-subjetiva, uma consciência pré-reflexiva impessoal,
uma duração qualitativa da consciência sem eu” (Id., 2008, p. 19). A leitura de Zizeck
permite-nos perceber que, em Deleuze, o transcendental não pode ser resumido às
condições de possibilidade da existência da coisa em si, mas refere-se às condições de
possibilidade da experiência da realidade, isto é, ao modo como apreendemos e
experimentamos o que é real. Na leitura de Zizeck acerca da obra deleuzeana o
empirismo transcendental refere-se ao campo da consciência, mas uma consciência
impessoal, pré-reflexiva, sem eu. Trata-se, como vimos, de um campo de experiência
que vai além da experiência da realidade constituída ou está sob a experiência da
realidade constituída ou da realidade percebida. Dito de outro modo, o campo do
empirismo transcendental trata-se de um campo virtual da consciência que, de certa
forma, antecede à constituição do eu, sendo, de algum modo, aquilo que permite a
construção das subjetividades, isto é, trata-se dos mecanismos de produção de
subjetividades. Aquilo que será compreendido como consciência do eu, nessa acepção
deleuzeana, emerge como produto de uma consciência pré-reflexiva, impessoal, a
priori. É justamente essa consciência, o modo como ela é produzida e os seus efeitos de
produção que ocuparão a produção filosófica de Deleuze.

Para compreender isso, na visão de Zizeck, faz-se necessário discorrer


acerca da noção de devir para Deleuze. Zizeck diz que a base da concepção deleuzeana
6

de virtual é “a oposição ontológica entre o Ser e o Devir” e esta oposição “é radical no


sentido em que sua referência suprema é o devir puro sem o ser (em oposição à noção
metafísica de puro ser sem devir)” (Id., 2008, p. 26). Nesse sentido, diz Zizeck, “esse
devir puro não é um devir particular de alguma entidade corpórea, a passagem dessa
entidade de um estado para outro, mas um devir de si mesmo a si mesmo, extraído
completamente de sua base corporal” (ZIZEK, 2008, p. 26), isto é, um devir que não
apresenta-se como consequência da passagem de um estado de matéria corpórea a outro
estado de matéria corpórea. Ele é puramente virtual e sua passagem é de uma
virtualidade a outra virtualidade, sem nenhuma relação necessária com a dimensão
corpórea. Desse modo, “visto que a temporalidade predominante do Ser é a do presente
(sendo o passado e o futuro seus modos deficientes), o puro devir-sem-ser significa que
se deve evitar o presente” uma vez que, desse modo, “ele nunca ‘ocorre de verdade’,
está ‘sempre por vir e já findo’” (Id., 2008, p. 26). Nesse contexto, “o paradoxo é, então,
o fato do devir transcendental se inscrever dentro da ordem do ser positivo, da realidade
constituída, sob a forma de seu próprio oposto3”(Id., 2008, p. 27). Segundo essa visão, o
devir, para Deleuze, seria apenas virtual, nunca atualizando-se num tempo presente, mas
constituindo a tensão, enunciada na Lógica do sentido que o devir “está sempre por vir e
já passado” (DELEUZE, 2015, p. 83), o que exige pensar o devir como paradoxo.

Dito isso, importa ressaltar que Zizeck levanta a seguinte questão: “não é
verdade que o edifício conceitual de Deleuze baseia-se em duas lógicas, em duas
antíteses conceituais, que coexistem em sua obra?” (ZIZECK, 2008, p. 41). E
acrescenta:

Em Deleuze isso significa A lógica do sentido versus O anti-Édipo. Ou o


Sentido-Acontecimento, o fluxo do Devir Puro, é o efeito imaterial (neutro,
nem ativo nem passivo) do emaranhado de causas materiais-corpóreas ou as
entidades corpóreas positivas são, elas mesmas, o produto do puro fluxo do
Devir. Ou o infinitito campo de virtualidades. Em A lógica do sentido o
próprio Deleuze desenvolve essa oposição sob a forma dos dois modos
possíveis de gênese da realidade: à gênese formal (o surgimento da realidade
a partir da imanência da consciência impessoal como puro fluxo do Devir) é
adicionada a gênese real, onde esta última esclarece o surgimento do próprio
acontecimento-superfície imaterial a partir da interação corporal (Id., 2008, p.
43).

3
Grifos do autor.
7

Como vimos, para Zizeck, o empirismo transcendental de Deleuze, pode ser


formulado em termos da oposição entre o “fluxo do Devir-Puro” [como efeito que
sobrevém a ordem do ser reificado] (que seria o tema da Lógica do sentido) versus
[como o devir-puro produzem a ordem do ser reificado nas] “entidades corpóreas
positivas” (que constituiria o tema central da obra O anti-Édipo). Tal oposição, segundo
Zizeck, pode ser apreendida nas duas gêneses apresentadas na Lógica do sentido, a
saber, a gênese estática e a gênese dinâmica.

Pois bem, ao que parece, a tese de leitura deleuzeana formulada por Zizeck,
diverge daquela apresentada por Júlia Almeida. Enquanto Almeida defende uma “virada
pragmática” na obra deleuzeana, formulada em termos da substituição de uma
linguística do significante por uma linguística dos fluxos, Zizeck percebe uma tensão
entre duas lógicas, formuladas em termos de duas gêneses que, embora já apresentadas
na Lógica do sentido será desenvolvida a partir da obra O anti-Édipo. Dito isso, é
possível, a partir das considerações de Zizeck, compreender uma tensão nos momentos
distintos da produção de Deleuze que, longe de oposição, indica uma possível opção
empreendida por Deleuze acerca de determinado modo de compreender o real, mais
voltado para uma gênese dinâmica. Desse modo, observa-se que um elemento comum
tanto à Lógica do sentido quanto às produções posteriores é a crítica à psicanálise que
engendrará a esquizoanálise. Tal crítica pode ser formulada em termos de compreensão
do desejo como produto e produção e não como falta. Na obra O anti-Édipo, Deleuze
afirma: “acreditamos no desejo como no irracional de toda racionalidade, e não porque
ele seja falta, sede ou aspiração, mas porque é produção de desejo e desejo que produz,
real-desejo ou real em si mesmo” (DELEUZE, [O anti-Édipo], 2011, p. 502). Esse mote
de Deleuze, ao que parece, pode ser visto como o elo de ligação entre a fase de
produção anterior à década de 70 e os textos que vieram a partir da obra O anti-Édipo.
Nesse sentido, é preciso compreender, inicialmente, duas coisas, a saber, o modo como
Deleuze pensa a criação do campo transcendental e o lugar da psicanálise nesse
contexto. Assim sendo, como dissemos no início do texto, discutiremos agora acerca da
noção de campo transcendental e o modo como a crítica à psicanálise insere-se nesse
contexto.

Assim sendo, passamos à segunda parte do nosso trabalho. Nessa parte,


procuramos discutir acerca da última subseção do quarto capítulo da obra O anti-Édipo.
A subseção traz como título Relação da esquizoanálise com a política e com a
8

psicanálise e condensa, de certa forma, as principais discussões do capítulo, servindo


como síntese do mesmo, daí nossa opção em analisá-lo no dia de hoje.

O texto em questão está dividido em duas subseções. Na primeira, Deleuze


discorre acerca de três possíveis críticas acerca da esquizoanálise; na segunda, trabalha
a relação entre a esquizoanálise e a política e da esquizoanálise com relação à
psicanálise.

Na seção intitulada Relação da esquizoanálise com a política e com a


psicanálise, Deleuze discute acerca de três justificativas relativas às possíveis críticas ao
seu pensamento, partindo do pressuposto de que as críticas provém de uma “má leitura”,
mesmo considerando-se não saber “o que é pior: se uma má leitura ou se leitura
alguma” (DELEUZE, 2011, p. 502). Quais seriam essas críticas?

Aqueles que nos leram até aqui teriam talvez muitas censuras a nos
fazer: acreditar em demasia nas puras potencialidades da arte e até da
ciência; negar ou minimizar o papel das classes e da luta de classes;
militar por um irracionalismo do desejo; identificar o revolucionário
com o esquizo; cair em todas estas conhecidas armadilhas, demasiado
conhecidas (DELEUZE, 2011, p. 502)

Estamos no final do quarto capítulo que traz como título Introdução à


esquizoanálise e, certamente, Deleuze antecipa-se aqui às objeções feitas aos que lerão
o seu texto. Nesse sentido, pode-se perceber, nessas possíveis objeções, uma síntese do
que fora proposto pelo filósofo na obra em questão. Cumpre observar que as objeções
partem de autores concretos os quais importa reconhecer e destacar aqui. Também é
importante destacar que as possíveis objeções relacionam às propostas deleuzeanas com
relação a pensamentos que já são discutidos academicamente, os quais também
precisam ser reconhecidos quando procura-se adentrar na problemática enfrentada por
Deleuze no Anti-Édipo.

Como vimos, Deleuze considera as possíveis objeções ao seu texto como


provenientes de uma “má leitura” e, nesse sentido, apresenta uma primeira justificativa.

1ª justificativa: arte e ciência como potenciais revolucionários.

Deleuze defende a tese de que a arte e a ciência são potencialidades


revolucionárias: “dizemos, em primeiro lugar, que a arte e a ciência têm uma
potencialidade revolucionária e nada mais” (Id., 2011, p. 502). Contudo, para o filósofo,
para que essa potencialidade revolucionária possa aparecer, precisa-se fazer a ruptura
9

com determinado tipo de leitura, feita por especialistas, que tendem a ver, na ciência e
na arte, certos significantes e significados. Nas palavras de Deleuze, “esta
potencialidade [revolucionária] aparece tanto mais quanto menos se pergunta pelo que
elas querem dizer do ponto de vista de significados, ou de um significante,
forçosamente reservados aos especialistas” (Id., 2011, p. 502). Desse modo, o filósofo
critica certa tendência estruturalista, baseada na linguística saussuriana, que estabelecem
determinado tipo de leitura do Acontecimento de forma prévia, o que impede o
potencial revolucionário, visto que o Acontecimento nunca pode ser lido de forma
apriorística. Aqui é possível perceber como o filósofo está preparando o terreno para a
crítica à psicanálise que virá em seguida. Da leitura de Deleuze, depreende-se que a
ciência e a arte devem ser lidas de forma livre, sem determinantes estruturais dados de
forma prévia. Desse modo, uma leitura única, tida como oficial serve como castração de
seu potencial revolucionário. Podemos, nesse contexto, relacionar o que aqui vai sendo
dito às idéias ventiladas em Lógica do sentido referentes ao caráter paradoxal do
Acontecimento que equivale ao non-sense, o qual não aparece como destituição do
sentido, mas como uma leitura que permite apreender os dois sentidos ao mesmo tempo,
uma leitura panorâmica, como o “sobrevôo” sobre o campo da batalha (DELEUZE, LS,
2015, p. 103.), alguma coisa (aliquid), que só pode ser apreendida depois de certo
tempo (cf. Id., LS 22, 2015, p. 1584).

O que a leitura e a ciência fazem? Em que consiste esse caráter


revolucionário da ciência e da arte? O filósofo responde: “elas [a ciência e a arte] fazem
passar pelo socius fluxos cada vez mais descodificados e desterritorializados, fluxos
sensíveis a todo mundo, que forçam a axiomática social 5 a complicar-se cada vez mais,
a saturar-se ainda mais”, desse modo, “o artista e o cientista podem ser determinados a
se juntarem a uma situação objetiva revolucionária como reação às planificações
autoritárias de um Estado essencialmente incompetente e castrador” (Id., 2011, p. 502).

Como vimos, o caráter revolucionário da ciência e das artes consiste em


fazer passar pelo campo social fluxos descodificados e desterritorializados, ou seja, uma
leitura do socius que não esteja determinada por códigos previamente estabelecidos,
mas que permitam apreendê-lo em sua desterritorialização. No Mil Platôs, Deleuze

4
“e eles não seriam suficientes por si sós se não cavassem, se não aprofundassem algo de uma outra
natureza e que, ao contrário, só é revelado por eles à distância e quando já é muito tarde: a fissura
silenciosa”.
5
CF. Derrida.
10

mostra que o verdadeiro momento revolucionário é esse momento em que não há um


código ou territorialidade definidas6. É o Acontecimento. Porém, ao que parece, quando
tem-se uma minoria, há o movimento de descodificação e desterritorialização, mas logo
este se torna codificado e territorializado. E o que é que engendera essa codificação e
reterritorialização? O Estado ou as “planificações autoritárias de um Estado
essencialmente incompetente e sobretudo castrador” uma vez que “impõe um Édipo
propriamente artístico, um Édipo propriamente científico” (Id., 2011, p. 502)

Como vimos, o texto aborda as planificações autoritárias que equivalem


ao processo de territorialização7. Tais planificações são o resultado da imposição do
“Édipo” tido como aquilo que é propriamente artístico ou científico, ou o qual
estabelece o código pelo qual a arte e a ciência devem ser interpretadas. Quando a arte e
a ciência são submetid,as a esse crivo interpretativo das “planificações autoritárias” do
Estado, elas perdem seu potencial revolucionário. A imposição do Édipo equivale à
imposição da leitura interpretativa do material proveniente da ciência e da arte. A
ciência e a arte, no texto, estão relacionadas ao processo de territorialização (quando
lidas a partir de um Édipo imposto pelo Estado, o que é feito por meio de especialistas
que vêem significantes e significados tidos como autênticos) e desterritorialização
(relacionados ao potencial revolucionário, o qual emerge de uma leitura que não está
determinada por significantes e significados interpretados por especialistas e impostos
pelo Estado)8. Interessante notar aqui uma crítica que Deleuze está endereçando à
instrumentalização linguística de significantes e significados o que seria feito por
aqueles que chama “especialistas” os quais servem ao Estado no sentido de impor um
Édipo tanto para a ciência quanto para a arte. Certamente essa crítica está endereçada a
Jacques Lacan.

2ª justificativa – acerca dos investimentos libidinais e do desejo

Deleuze discorre acerca da importância dos “investimentos pré-conscientes


de classe e de interesse que se fundam na própria infraestrutura” (Id., 2011, p. 503),
mostrando que, “de modo algum” buscou minimizar a importância de tais
investimentos. Contudo, acrescenta o filósofo francês, “a importância que atribuímos a

6
No Mil Platôs, Deleuze fala do devir minoritário: “o problema não é nunca o de obter a maioria, mesmo
instaurando uma nova constante” (DELEUZE, 2011, p. 56)
7
Cf. Mil Platôs.
8
Grande exemplo são as normas da ABNT as quais são seguidas pela comunidade acadêmica como
único caminho possível para a ciência no Brasil.
11

eles é tanto maior quanto mais eles sejam, na infraestrutura, o índice de investimentos
libidinais de outra natureza, que podem conciliar-se ou estar em contrariedade com
eles” (Id., 2011, p. 503). Como veremos, tais investimentos libidinais tanto podem ser
“investimentos paranoicos inconscientes”, (presentes nos grupos revolucionários e que
servem como traidores da revolução) ou investimentos do desejo, apresentado por
Deleuze “como instância revolucionária” (Id., 2011, p. 503). Aqui é importante destacar
a compreensão que Deleuze traz de paranoia e desejo. Certamente é uma compreensão
relacionada à psicanálise, mas não necessariamente atrelada a ela.

Ao dizer isso, Deleuze defende que a esquizoanálise não é negação de


“classe” e “interesse” de pessoas e grupos e que aparecem como investimentos pré-
conscientes, isto é, como aquilo que está no limiar do que é estabelecido como verdade
e que objetivam o lucro, a dominação, o consumo, a manutenção da divisão em classes
etc. No entanto, segundo o filósofo, a tarefa da esquizoanálise seria a de recordar que
esses investimentos pré-conscientes, de classe e de interesse, aparecem aí como
“índice”, isto é, como indicativo “de investimentos libidinais de outra natureza” (Id.,
2011, p. 503). É justamente acerca desses investimentos que é preciso debruçar-se. Tais
investimentos libidinais tanto podem conciliar-se quanto podem ser contrários aos
interesses de classe e de interesse. Aqui poder-se-ia perguntar que “investimentos
libidinais de outra natureza” seriam esses? Deleuze responde essa pergunta em termos
de investimentos libidinais que traem a revolução (que conciliam-se com os
investimentos de classe e interesse) e investimentos libidinais que são revolucionários.

Para Deleuze, a questão mais importante é a seguinte: “como a revolução


pode ser traída?” (DELEUZE, 2011, p. 503). A resposta possível para essa questão gira
em torno do aspecto revolucionário do desejo. Ao que parece, os investimentos de
classe e de interesse, que estão presentes na infraestrutura e que, por sua vez, são
perpassados pelos “investimentos paranoicos”, impedem a emergência do desejo como
potência revolucionária. É esse mecanismo que está atuando nos processos
revolucionários. De acordo com Deleuze, nos grupos revolucionários há a “permanência
de investimentos paranoicos inconscientes” e isso impede a verdadeira revolução. Tais
relações são, no entender de Deleuze, um modo de trair a revolução (Id., 2011, p. 503).
Ao que parece, é o mesmo entendimento que Deleuze apresentará em Mil Platôs quando
pressente o momento da revolução enquanto desterritorialização 9. Dito de outro modo, a
9
Cf. DELEUZE, Mil Platôs, 2011, p. 56)
12

verdadeira revolução é traída pelos “investimentos paranoicos” que impedem a


emergência do desejo que é a única força realmente revolucionária.

Segundo Deleuze, o desejo é a “instância revolucionária” uma vez “que a


sociedade capitalista pode suportar muitas manifestações de interesse, mas nenhuma
manifestação de desejo, que seria suficiente para explodir suas estruturas de base,
mesmo no nível da escola maternal” (Id., 2015, p. 503). Se houvesse investimento
libidinal do desejo, as classes e os interesses seriam superados. E o que seria, para
Deleuze, o desejo. Deleuze não percebe o desejo enquanto falta, como na psicanálise.
De acordo com David-Ménard,

A prática da psicanálise dramatizaria os inteditos do incesto apenas para


assentar a ideia da negatividade que abate os primeiros objetos – parentais –
de nossos desejos. Seria, portanto, um erro metafísico a propósito das
relações entre o desejo e o negativo, e oneraria a pertinência da psicanálise
como prática. Esse erro metafísico estaria acoplado a uma política
reacionária: ao desejo nada falta, pois seus objetos, longe de se limitarem aos
desejos parentais que encerram os seres vivos no familismo, estariam em
contato direto com a geografia, a cidade, a história, o que seria testemunhado,
de maneira certamente insatisfatória, mas no entanto portadora de verdade,
pelos psicóticos (DAVID-MÉNARD, 2014, p. 32)

Como vimos, o erro da psicanálise, ao que parece, é negar a potência


positiva do desejo por meio do romance familiar e da constituição das relações a partir
de um desejo como falta. No entanto, para Deleuze, o desejo é positividade. Em suas
palavras, “acreditamos no desejo como no irracional de toda racionalidade, e não porque
ele seja falta, sede ou aspiração, mas porque é produção de desejo e desejo que produz,
real-desejo ou real em si mesmo” (DELEUZE, 2011, p. 503). Dito de outro modo, o
desejo não pode ser compreendido a partir de categorias racionais (daí a questão já
abordada do Édipo da ciência e da arte como única leitura possível). O desejo é
paradoxal, é Acontecimento puro, é não senso. O desejo é produtor de desejo. Ele
produz o “real em si mesmo”10. Desse modo, fica clara a crítica à psicanálise. O desejo
não é algo que indica uma falta. A manifestação do desejo não é indicativo de algo que
não está presente. O desejo é o real e, desse modo, é o único que pode promover a
verdadeira revolução11.
10
No Mil Platôs, podemos apreender a questão do desejo como produto e produção na definição de
linguagem como discurso indireto: “a linguagem não é estabelecida entre algo visto (ou sentido) e algo
dito, mas vai sempre de um dizer a um dizer” (DELEUZE, Mil Platôs, 2011, p. 13).
11
Cf. ZIZÉK, Órgãos sem corpo: Deleuze e consequências, 2008, na parte em que distingue o virtual do
atual (p. 39 ss).
13

3ª justificativa – A distinção entre a produção do esquizofrênico e o polo


esquizóide.

Deleuze afirma não confundir o “revolucionário” com o “esquizofrênico”.


Em suas palavras, “de modo algum pensamos que o revolucionário seja esquizofrênico,
ou o inverso” (DELEUZE, 2011, p. 503). Para ele, o esquizofrênico, enquanto entidade,
pode ser definido “em relação às paradas, às continuações no vazio ou às ilusões
finalistas que a repressão impõe ao próprio processo” (Id., 2015, p. 503) enquanto que a
esquizofrenia, como processo, seria entendida como “polo esquizoide no investimento
libidinal do campo social” (Id., 2011, p. 503) o que, na visão do filósofo, deve evitar a
confusão entre o processo esquizofrênico (polo esquizóide) com a “produção de um
esquizofrênico” (Id., 2011, p. 503)12.

Esclarecidas as diferenças, Deleuze afirma que “o processo esquizofrênico


(polo esquizoide) é revolucionário, precisamente no mesmo sentido em que o
procedimento paranoico é reacionário” (Id., 2011, p. 503). Dito de outro modo, os
“investimentos paranoicos inconscientes” (Id., 2011, p. 503), que estão presente nos
grupos revolucionários e que atuam como traidores da revolução são investimentos
reacionários enquanto que o “polo esquizóide” ou a esquizofrenia enquanto processo
que, como vimos, distingue-se da “produção de um esquizofrênico” (Id., 2011, p. 503),
apresenta-se como revolucionário. Desse modo, pode-se dizer que relaciona-se ao
“desejo como instância revolucionária” (Id., 2011, p. 503) e à potencialidade da arte e
da ciência, libertadas, por sua vez, dos significantes e significados, lidos por
especialistas a partir de “planificações autoritárias de um Estado essencialmente
incompetente e sobretudo castrador” (Id., 2011, p. 502). Nesse sentido, pode-se dizer
que, enquanto as “planificações autoritárias”, ao impor determinado Édipo apresenta,
como saída, “investimentos paranoicos inconscientes” (Id.,, 2011, p. 503) que traem a
revolução, o desejo, enquanto processo esquizofrênico, é a recusa desse “Édipo”
imposto pelo Estado e, portanto, apresenta-se como revolucionário.

Para Deleuze “não são essas categorias psiquiátricas [investimentos


paranoicos e processo esquizofrênico] que devem nos levar a compreender as
determinações econômico-políticas, mas exatamente o contrário” (Id., 2011, p. 503).
Dito de outro modo, a leitura sociológica psicanalítica, que considera os processos
12
Quando Deleuze fala em produção do esquizofrênico, estaria referindo-se ao capitalismo, visto aqui
como produtor da esquizofrenia?
14

psicanalíticos na gênese dos processos sociais está equivocada. O processo correto é


perceber como a sociedade engendra os processos psicanalíticos pois, como vimos, “o
Estado impõe um Édipo” (Id., 2011, p. 502).

Na segunda subseção, que discutirá a relação da esquizoanálise com a


política e com a psicanálise, Deleuze apresenta uma quarta justificativa que não estava
mencionada no conjunto das anteriores e que, por sua vez, inaugura um novo
movimento no texto, a qual versa acerca da relação entre esquizoanálise e política. Tal
relação é trabalhada pelo autor em três pontos: a esquizoanálise não tem programa
político; a esquizoanálise não é um partido político; a esquizoanálise não pretende falar
em nome de ninguém.

Primeiro, a esquizoanálise não apresenta programa político: Deleuze afirma,


“além disso, e sobretudo, não procuramos esquivar-nos a nada quando dissemos que a
esquizoanálise, enquanto tal, não tem estritamente programa político algum a propor.
Se ela tivesse algum, seria ao mesmo tempo grotesco e inquietante” (Id., 2011, p. 503,
grifos do autor), ou seja, a esquizoanálise, apesar de relacionar-se com a política, não
apresenta nenhum programa político e isso é justificado, ao que parece, pela própria
natureza da esquizoanálise uma vez que, o modo como ela está estruturada tornaria
qualquer programa político “grotesco e inquietante” (Id., 2011, p. 503), uma vez que
trata-se de fluxos os quais, por sua vez são rápidos, dinâmicos, misturados etc.

Segundo, a esquizoanálise “não se toma por um partido, nem sequer por um


grupo, e não pretende falar em nome das massas. Não cabe elaborar um programa
político no quadro da esquizoanálise” (Id., 2011, p. 503). A esquizoanálise nem
confunde-se com programas políticos nem com partidos políticos. Também não é
próprio da esquizoanálise “falar em nome das massas”. Seu objetivo é apreender os
movimentos que acontecem à sociedade, sem apresentar respostas, propostas ou
sugestões, o que coaduna com o pensamento deleuzeano que afirma haver “mecanismos
paranoicos inconscientes” nos grupos revolucionários, os quais traem a revolução (Id.,
2011, p. 503) e ainda a ideia de que há um movimento revolucionário que depois se
transforma em reterritorialização. Ao que parece, a esquizoanálise serve para questionar
os processos que se dão nas relações entre reterritorialização e desterritorialização sem
propor nada e sem confundir-se com partidos, programas ou grupos.
15

Terceiro, a esquizoanálise “não é algo que pretenda falar em nome de quem


quer que seja [das massas, por exemplo], nem mesmo e sobretudo não em nome da
psicanálise: apenas impressões, a impressão que a coisa vai mal na psicanálise, e que
isso vai mal desde o início” (Id., 2011, p. 503, 504). De acordo com Deleuze e Guattari,
pelo fato de que a esquizoanálise, como vimos anteriormente, não pretenda apresentar
nenhum programa político, ela também não pretende ser representante de nenhum
movimento ou grupo. Ela não defende os interesses, valores, conceitos ou princípios de
nenhum grupo, apesar de refletir acerca dos mesmos. Seu papel é apenas o de propor a
discussão. Os autores deixam claro que essa é a posição com relação à psicanálise.
Nesse sentido, a esquizoanálise não pretende relacionar conceitos psicanalíticos à
sociedade. Contudo, com relação à psicanálise, há a apresentação da “impressão que a
coisa vai mal na psicanálise, e que isso vai mal desde o início” (Id., 2011, p. 504). E
aqui está o elemento central: a crítica à psicanálise, no sentido de constatar que a
psicanálise parte de um lugar incorreto, isto é, o lugar da falta como centro do desejo.
Os autores dizem: “somos ainda demasiado competentes [isto é, pensamos saber a
verdade], e gostaríamos de falar em nome de uma incompetência absoluta” (Id., 2011, p.
504). Este é o lugar de fala da esquizoanálise: o reconhecimento de que não é detentora
de um saber. Nesse sentido, a esquizoanálise não detém o lugar da fala quer por falar a
partir de sua “incompetência”, isto é, do não-saber quer por evitar impor-se àqueles que
acreditam saber algo. Dito de outro modo, ao que parece, os autores querem dizer que a
esquizoanálise nem pretende impor sua verdade àqueles que julgam saber algo nem
pretende saber algo. Segundo Deleuze e Guattari, “alguém nos perguntou se já tínhamos
visto um esquizofrênico; não e não, nunca vimos. Se alguém acha que isso vai bem na
psicanálise, não é para ele que falamos e para ele retiramos tudo o que dissemos” (Id.,
2011, p. 504). A crítica é severa: a psicanálise pretende saber o que é um esquizofrênico
e o faz a partir do romance familiar.

Aqui introduz-se a questão central a ser analisada nesta subseção: “qual a


relação da esquizoanálise com a política, de um lado, e com a psicanálise, de outro?”
(Id., 2011, p. 504). Os autores respondem que tal relação “gira em torno das máquinas
desejantes e da produção de desejo” (Id., 2011, p. 504). Nesse sentido, os autores
apresentam aquilo que a esquizoanálise não é para, em seguida, mostrar aquilo que ela
faz.
16

O que a esquizoanálise não é? O que a esquizoanálise não faz? Primeiro, “a


esquizoanálise enquanto tal não estabelece o problema da natureza do socius que deve
sair da revolução” (Id., 2011, p. 504), ou seja, não é tarefa dela dizer como a sociedade
deverá ser, findo o processo revolucionário [“somos ainda demasiado competentes, e
gostaríamos de falar em nome de uma incompetência absoluta” (Id., 2011, p. 504)]. Por
outro lado, a esquizoanálise não é a revolução, no dizer dos autores, “de modo algum
ela pretende valer pela própria revolução” (Id., 2011, p. 504).

Então, o que é a esquizoanálise? Qual sua relação com a política e com a


psicanálise? A esquizoanálise não é lugar de resposta. Como dito anteriormente, ela fala
a partir de uma competência que pretende transformar-se em “incompetência absoluta”,
isto é, ao invés de dar respostas a partir de um suposto saber, ser lugar de
questionamento, de escuta, de apreensão do acontecimento e assim, não pretender
impor-se àqueles que discordam de seus pressupostos. Sua tarefa é apenas a de
questionar. E o que ela questiona? O lugar da produção desejante em dada sociedade:

Dado um socius, ela somente pergunta pelo lugar que ele reserva à produção
desejante, que papel motor o desejo tem nele, sob que formas nele se faz a
conciliação do regime da produção desejante e do regime da produção social,
uma vez que, de toda maneira, é a mesma produção, mas sob dois regimes
diferentes ( DELEUZE & GUATTARI, 2011, p. 504).

A esquizoanálise questiona acerca da produção social e da produção do


desejo em dado socius. Os autores deixam claro tratar-se da “mesma produção”, porém,
“sob dois regimes diferentes”. Tais questionamentos podem ser traduzidos em várias
outras perguntas:

Primeiro, ela pergunta se, no socius, há possibilidades de passagem: “ela


pergunta, portanto, se nesse socius como corpo pleno há possibilidade de passar de uma
face a outra”, isto é, “ da face em que se organizam os conjuntos molares de produção
social a esta outra face não menos coletiva em que se formam as multiplicidades
moleculares da produção desejante” (Id., 2011, p. 504). Os conjuntos molares e
moleculares referem-se à paranoia e esquizofrenia13. A direção molar “que se volta para
os grandes números e para os fenômenos de multidão” (Id., 2011, p. 369) é a direção do
paranoico. Já a direção molecular, “que, ao contrário, embrenha-se nas singularidades,
nas suas interações e nas suas ligações à distância ou de ordens diferentes” (Id., 2011, p.
369), é a direção do esquizofrênico. O molar e o molecular refere-se à suposição de que

13
Cf. p. 368 ss.
17

“tudo se passa sobre o corpo sem órgãos” (Id., 2011, p. 369). Tal corpo, nesse contexto,
teria duas faces. Da relação com as faces tem-se a paranoia ou a esquizofrenia.

O que faz o paranoico? O paranoico organiza massas e “matilhas”. O


paranoico combina-as, opõe-nas, manobra-as. O paranoico maquina massas, é o artista.
O paranoico maquina massas, é o artista dos grandes conjuntos molares, das formações
estatísticas ou gregarismos, dos fenômenos de multidões organizadas. Ele investe tudo
sob a espécie dos grandes números (Id., 2011, p. 369)

Das duas direções da física, isto é “a direção molar que se volta para os
grandes números e para os fenômenos de multidão” e, por outro lado, “a direção
molecular” que, por sua vez, “embrenha-se nas singularidades, nas suas interações e nas
suas ligações à distância ou de ordens diferentes, o paranoico escolheu a primeira: ele
faz macrofísica” (DELEUZE & GUATTARI, 2011, p. 369), isto é, o paranoico está na
direção das massas, do que é dado no conjunto do socius. Por outro lado, “dir-se-ia que
o esquizo, ao contrário, vai na outra orientação, a da microfísica14, a das moléculas que
já não obedecem às leis estatísticas [...] linhas de fuga infinitesimais em vez de
perspectivas de grandes conjuntos” (Id., 2011, p. 369-370). Contudo, os autores
salientam que não se deve entender as duas direções como oposição entre “o coletivo e
o individual” (Id., 2011, p. 370), uma vez que, se, por um lado, o “microinconsciente”,
da direção molecular, “não deixa de apresentar arranjos, conexões e interações”
(dimensão coletiva), “por outro lado, como ele só conhece objetos parciais e fluxos, ele
não comporta a forma das pessoas individualizadas, que pertencem, ao contrário, às leis
de distribuição estatística do inconsciente molar ou macroinconsciente” (Id., 2011, p.
370).

Segundo, “pergunta se um tal socius pode, e até que ponto, suportar a


subversão de potência que faz com que a produção desejante sujeite a si a produção
social sem contudo destruí-la, visto que é a mesma produção sob diferença de regime
(Id., 2011, p. 504) e ainda “pergunta se há, e como, formação de grupos sujeitos
etc.”(Id., 2011, p. 504). Para os autores, “todo investimento é coletivo, todo fantasma é
de grupo e, neste sentido, posição de realidade” (Id., 2011, p. 370), contudo os
investimentos distinguem-se conforme incidam sobre as estruturas molares ou
moleculares. Nesse sentido, “enquanto um [investimento molar] é investimento de

14
Certamente a referência aqui é a Foucault.
18

grupo sujeitado15” o qual “reprime e recalca o desejo das pessoas” (Id., 2011, p. 370)
(paranoico), “o outro é investimento de grupo sujeito nas multiplicidades transversais
portadoras do desejo como fenômeno molecular, isto é, objetos parciais e fluxos, por
oposição aos conjuntos e às pessoas” (Id., 2011, p. 370) (esquizofrênico).

A partir de tudo o que foi dito até aqui, qual seria a relação da
esquizoanálise com a política? Os autores defendem a tese de “que a produção desejante
produz real, e que o desejo tem muito pouco a ver com o fantasma e com o sonho”16,
nesse sentido, “a esquizoanálise não faz distinção alguma de natureza entre a economia
política e a economia libidinal” (DELEUZE & GUATTARI, 2011, p. 504), ou seja, a
política e o desejo estão inter-relacionados.

O pressuposto básico é o de que “um esquizo é uma máquina”, nesse


contexto, dizem os autores, “a questão é saber se os esquizofrênicos são as máquinas
vivas de um trabalho morto, que assim se opõem às máquinas mortas de um trabalho
vivo, tal como é organizado no capitalismo” ou então, “se, ao contrário, as máquinas
desejantes, técnicas e sociais, se esposam num processo de produção esquizofrênica
que, se assim for, deixa de produzir esquizofrênicos” (Id., 2011, p. 505). Dito de outro
modo, os autores mostram que é possível pensar numa comunicação entre “a máquina
social, a máquina técnica e a máquina desejante”, de modo a não produzir
esquizofrênicos. Nesse contexto, dizem os autores, a questão é saber se a sociedade é
capaz de promover esta comunicação e, se não for capaz, qual o valor da sociedade.
Para Deleuze & Guattari,

é precisamente este o sentido das máquinas sociais, técnicas, científicas,


artísticas, quando são revolucionárias: formar máquinas desejantes de que já
são o índice nos seus regimes próprios, ao mesmo tempo que as máquinas
desejantes as formam no regime que é o seu e como posição de desejo (Id.,
2011, p. 505)

Nesse contexto, qual seria “a oposição da esquizoanálise” com relação “à


psicanálise, no conjunto das suas tarefas negativas e positivas?” (Id., 2011, p. 505). Para
Deleuze & Guattari, há oposição entre “dois tipos de inconsciente ou duas
interpretações do inconsciente” (Id., 2011, p. 505), que podemos dispor numa tabela17:

Primeiro tipo ou interpretação Segundo tipo ou interpretação


15
Cf.
16
Respondendo às possíveis acusações de que eles estão se amparando na preguiça, na
improdutividade, na produção de sonhos e fantasmas (DELEUZE & GUATTARI, 2011, p. 504).
17
Deleuze & Guattari, 2011, p. 505.
19

Esquizoanalítica; Psicanalítica;
esquizofrênica; neurótico-edipiana;
abstrata e não-figurativa; imaginária;
concreta; simbólica;
maquínica; estrutural;
molecular, micropsíquica e micrológica; molar e estatística;
material; ideológica;
produtiva; expressiva;

Nesse sentido, qual a tarefa da esquizoanálise com relação à psicanálise?


“desfamiliarizar, desedipianizar, descastrar, desfalicizar, destruir teatro, sonho e
fantasma, descodificar, desterritorializar” (DELEUZE & GUATTARI, 2011, p. 505),
porém, tudo isso deve ser feito ao mesmo tempo “pois, é ao mesmo tempo que o
processo se liberta” (Id., 2011, p. 505-506). E o que seria essa libertação? “processo de
produção desejante seguindo suas linhas de fuga moleculares 18 que já definem a tarefa
mecânica do esquizoanalista” (Id., 2011, p. 506). Desse modo,

a tarefa da esquizoanálise é, finalmente, descobrir em cada caso a natureza de


investimentos libidinais do campo social, seus conflitos possíveis interiores,
suas relações com os investimentos pré-conscientes do mesmo campo, seus
possíveis conflitos com estes, em suma, o jogo todo das máquinas desejantes
e da repressão de desejo. Efetuar o processo, e não estancá-lo, não fazê-lo
girar no vazio, não lhe dar uma meta (Id., 2011, p. 506).

Esta é a tarefa da esquizoanálise e o lugar da crítica à psicanálise.

Como vimos, a mudança de tom de Deleuze, dessa vez em parceria com


Guattari permite perceber a tensão existente entre uma gênese estática e uma gênese
dinâmica. Ao que parece, Deleuze opta por analisar as questões do campo
transcendental a partir da gênese dinâmica, contudo, numa perspectiva de uma
psicanálise sem Édipo, sem eu, sem romance familiar, como um corpo sem órgãos. A
partir daí, o incorporal muda de estatuto, não mais como lugar oposto ao corpo, mas
como puro-efeito de superfície, como linguagem que, como diz o Mil platôs, trata-se do
discurso indireto, formulado em termos de um dizer a outro dizer.

18
Cf. gráfico das páginas 372 e 373.

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