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©2018 Cleber Vinicius Do Amaral Felipe


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F353h

Felipe, Cleber Vinicius do Amaral


Heroísmo na singradura dos mares: histórias de naufrágios e
epopeias nas conquistas ultramarinas portuguesas/
Cleber Vinicius do Amaral Felipe. - 1. ed. - Jundiaí [SP]: Paco,
2018. 276p.; 21cm.

Prefácio, introdução, considerações finais,


ISBN 978-85-462-1505-8

1. Literatura - História e crítica. 2. Literatura brasileira - História e


crítica. I. Título.
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18-54126 CDD: 809
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Para o Heitor e para o Otávio, meus pequenos.
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus pais pelo amor incondicional; ao Thiago,
que presenteou-me com uma amizade que não se submete aos re-
vezes da fortuna; à Cláudia, companheira que escolhi para singrar
comigo o itinerário da vida; ao Heitor, meu pequeno, por compreen-
der que o papai precisava reservar alguns momentos para o estudo;
ao Otávio, que está prestes a tripular nossa família e será, na compa-
nhia do irmão, inspiração para trabalhos vindouros; ao Guilherme
Luz, autor do prefácio e amigo com quem muito aprendi; ao Paulo
Miceli, pela orientação no decorrer do doutorado; àqueles que pu-
deram ler versões parciais deste trabalho e enriquecê-lo com suas
sugestões: Adma Muhana, Alcir Pécora, André Voigt, Jean Abreu,
João Adolfo Hansen, Josianne Cerasoli, Leandro Karnal, Luiz Mar-
ques, Regma dos Santos; ao CNPq pelo auxílio financeiro.
SUMÁRIO
Prefácio 9
Introdução 15

I. Os lusíadas 21
O gênero épico 21
A epopeia lusíada 26

II. História Trágico-Marítima 45


O gênero histórico 45
A História de Bernardo Gomes de Brito 54

III. A experiência trágica 77


Lágrimas de Portugal 84
As tempestades 93
O Cabo das Tormentas 111
O Adamastor 111
O tipo gigante 114
O tempo da epopeia 121

IV. Prudência 125


Astúcias e enganos 140
O velho do Restelo 164
A cobiça e os remédios humanos 177

V. Caridade 185
As faces do amor 202
A bela morte 227
A máquina do mundo 245

Considerações finais 257


Referências 261
PREFÁCIO
Apresentar Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de
Naufrágios e Epopeias nas Conquistas Ultramarinas Portugue-
sas, de Cleber Vinicius do Amaral Felipe, é uma honra e uma
alegria. Parece clichê anunciar desta forma, mas de fato é as-
sim que se apresenta a tarefa para mim. Aliás, não só assim,
mas nesta ordem: honra e, depois, por acréscimo, alegria. É
uma honra por se tratar de um texto sofisticado, elegante e,
principalmente, digno. Não se trata de apenas mais um livro
formulado no acaso de uma descoberta pelo desbravador de
arquivos; muito menos de um exercício de erudição pedante,
cuja ludicidade oculta do leitor o vazio de pensamentos de
um intelectual apaixonado por si mesmo. Longe disso! Este é
um ensaio verdadeiramente crítico e aberto ao outro. Volta-se
a um material bastante conhecido da crítica literária e da his-
toriografia para interrogá-lo de maneira vigorosa e disposta
a arrancar dele o que há de mais resistente à inteligência do
leitor e à imaginação do intérprete: seus “sentidos históricos”.
Alegria, por ser livro “debutante” de um autor promissor e de
enorme talento.
Engana-se terrivelmente quem espera, a partir do expos-
to acima, um trabalho de tradicional “contextualização” das
fontes, à maneira do historiador socializante que supõe a his-
tória como palco das ações humanas e as suas “fontes” como
fragmentos de uma peça de teatro a ser reescrita. A metodo-
logia de Cleber Felipe pressupõe uma categoria de tempo
histórico sofisticada e inteligente, sensível às continuidades
e descontinuidades de memórias que navegam pelos “mares
de papel e tinta” da literatura épica, das poéticas do trágico e
das relações de naufrágio. A sua concepção de tempo permite
tomar a formulação de Pessoa sobre “as lágrimas de Portu-
gal” e retornar à genealogia das extensões do seu efeito poéti-
co, afinal, diria o autor: “muitos povos antigos prantearam, e
muitas destas lágrimas correram pelo mar Egeu, desemboca-
ram no mar Mediterrâneo, atravessaram o estreito de Gibral-

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Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

tar e chegaram, finalmente, à imensidão do Atlântico”. Assim,


quem quiser compreender os “itinerários” dos argumentos
presentes neste livro, prepare-se para marear distante.
Será, então, que o autor nos mente quando informa, nas
primeiras linhas de sua introdução, que pretende estudar as
“representações do súdito português em práticas letradas que
retratam, dentre outras coisas, as travessias marítimas, suas
dificuldades e desdobramentos na época das grandes nave-
gações”? Lendo o conjunto da obra este objetivo parece tão
pequeno. Ainda menor parece o seu recorte documental: “aná-
lise detida de dois objetos textuais: Os lusíadas (1572), de Ca-
mões, e a coletânea de relatos de naufrágio intitulada História
Trágico-Marítima (1735-1736), de Bernardo Gomes de Brito”. O
repertório do livro é muito mais amplo, com longas análises
de cânones do gênero épico (Homero, Virgílio, Dante, Tasso),
incursões pela épica latina anchietana e a Prosopopeia de Bento
Teixeira, escritos de Aristóteles, Cícero, Sêneca, São Tomás de
Aquino. Não lhe escapa a Bíblia, o Epicurismo, o Estoicismo,
a Escolástica, a Patrística. Mas não é mentira. “Só” mesmo o
que ele quer é aquilo que anuncia, com devida modéstia e cir-
cunscrição, consciente que cada fração do tempo histórico é
um universo aberto, no qual ecoam vozes dissonantes, ansio-
sas por alguma ordenação. É esta ordenação que busca Cleber
Felipe. Isso é o que ele produz como “sentidos históricos”.
Daí se pode compreender os elementos de sua metodolo-
gia de leitura das “fontes”. Ele mesmo a explica detidamente
na sua introdução. Primeiro, há o trabalho de leitura retórica,
analisando “os códigos linguísticos do texto” a partir de seu
“presente de enunciação”. Isto é, busca observar, nos textos es-
colhidos, bem aristotelicamente, as suas “tópicas de invenção,
partes da disposição e figuras de elocução em conformidade
com a verossimilhança e decoro próprios, propondo um es-
tilo conveniente à matéria tratada”. Em outros termos, ele se
preocupa com as “convenções ou artifícios retórico-poéticos
comuns aos gêneros em questão”. Junto a isso, alerta, em acor-
do com Alcir Pécora, cujo método não raro é mal compreendi-

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

do por historiadores, que “para ler bem os efeitos propiciados


pelos textos, é preciso considerar as marcas temporais que os
definem, ou seja, apreender os verossímeis textuais como pro-
dutos históricos”. Sua leitura retórica, portanto, não se separa
da leitura histórica, nem a antecedendo nem dela procedendo,
mas é leitura retórico-histórica, pois o tempo de enunciação do
texto e de seus repertórios não é nem passado nem presente,
mas as marcas daquele “itinerário” que os cruza.
Do método do trabalho advém a sua mais irônica con-
clusão. Diante daquelas leituras que postulam uma natureza
“antiépica”, “distópica” ou “pessimista” nos relatos quinhen-
tistas e seiscentistas de naufrágio, compreendendo-a como
reflexo de uma pressuposta “decadência” da expansão por-
tuguesa, a tese demonstra que, ao contrário, o “sentido his-
tórico” destas narrativas não se compreende no quadro de
“decadência” construído pela historiografia, mas na investi-
gação dos efeitos que elas produzem a partir da reinvenção
de lugares-comuns compartilhados com a poética do trágico,
presente também na tradição do gênero épico. A ironia está
no fato de que a incompreensão mais vulgar da “histórica trá-
gico-marítima” brota de um olhar excessivamente voltado ao
contexto presumidamente externo às obras. Ela apenas apa-
rentemente é uma abordagem mais “histórica” deste material.
De modo mais próprio, ela é uma incompreensão que nasce
da ignorância da história profunda destes textos, das suas re-
ferências (de temporalidade ampla) e do modo particular de
produzir efeitos (no presente e no devir) a partir delas.
Ao considerar a história profunda dos textos escolhidos
para “análise detida”, o autor não se furta de tirar suas con-
clusões sobre o “sentido histórico” que eles apresentam. Mui-
to objetivamente, afirma:

onde muitos contemplam uma contradição (epopeia/


antiepopeia), poder-se-ia observar a proposta de uma
harmonia cósmica centrada no reto direcionamento do

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Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

amor e sintetizada artificialmente no globo da etérea e


elementar máquina do mundo.

Ainda mais explícito:

as experiências ‘trágico-marítimas’ das quais nos ocu-


pamos, na maioria das vezes resultado de escolhas
malfeitas, devem ser compreendidas a partir de uma
concepção providencialista da expansão portuguesa.
No limite, é este providencialismo que ilumina a expe-
riência ‘trágica’, não se tratando, portanto, do incidente
como fim ruinoso e funesto, mas de um acontecimento
penoso acompanhado de uma promessa redentora em
meio a um mundo de provações e desventuras.

E arremata:

o trágico, neste sentido, também pode ser entendido


como uma poética capaz de provocar uma compreen-
são espiritual da expansão portuguesa nos quadros de
uma história salvífica, da qual os portugueses seriam
coautores.

Iluminando as histórias de naufrágio, uma “novidade”


dentre os gêneros médios das letras nos séculos XVI e XVII,
Cleber Felipe possibilita a compreensão também da velha e
prestigiosa poesia épica, reinventada na “época de Camões”.
Ao mesmo tempo, ilumina aquilo que estes gêneros procura-
vam: a educação ética do “bom súdito” do império português,
numa dimensão, a um só tempo, missionária/religiosa e po-
lítica. Sugere, a partir disso, o “retrato” de varões prudentes
e caridosos que, no serviço a Deus e ao Rei, colocam em risco
as suas vidas, provam, nos dissabores e peripécias, os limites
de suas virtudes e, por meio de suas quedas e infortúnios,
deixam visualizar, na história, o inefável da Providência. In-
vestiga o papel da mobilização das emoções nesta “pedagogia

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

política”, valorizando o papel das “lágrimas” como desobs-


trutivas da visão para os desenganos; do sofrimento como ca-
minho de entendimento reto para o agir.
Seria fácil criarmos para isto um rótulo com apelo de merca-
do, como “prudência barroca” ou algo que o valha. Felizmente
o presente livro não se contenta com isso. Sem menosprezar a
capacidade do leitor, não lhe entrega chaves prontas às quais
se agarrar, mas a aflição e as surpresas de um quebra-cabeças
de vinte mil peças, cada qual pacientemente colocada em seus
lugares diante de nossos olhos. Aqui termina o meu trabalho e
começa o seu.

G. A. Luz
Uberlândia, 10 de maio de 2016

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INTRODUÇÃO
Este é um livro sobre as representações do súdito portu-
guês em práticas letradas que retratam, dentre outras coisas,
as travessias marítimas, suas dificuldades e desdobramentos
na época das grandes navegações. Optou-se pela análise de-
tida de dois objetos textuais: Os lusíadas (1572), de Camões, e
a coletânea de relatos de naufrágio intitulada História Trágico-
-Marítima (1735-1736), de Bernardo Gomes de Brito. Pelo estilo
que cada gênero adota, não é de se estranhar que a epopeia seja
comumente associada à glorificação de Portugal e os relatos de
naufrágio à sua ruína. Essa polarização, no entanto, impede o
leitor de perceber alguns nexos entre as narrativas e torna acei-
tável a adoção de terminologias anacrônicas, utilizadas para
caracterizar e diferenciar as “literaturas” produzidas entre os
séculos XVI e XVIII, tais como: “oficial”, “marginal”, “eufóri-
ca”, “disfórica”, “positiva”, “negativa”, “crítica”, “acrítica”,
“imperial”, “anti-imperial”, “fictícia”, “realista”, “triunfalista”,
“pessimista”, “glorificante”, “decadentista”, “conformista”,
“reacionária”, “renascentista”, “maneirista”, “barroca”, dentre
outras. Alguns desses conceitos afirmam um suposto posicio-
namento ideológico ou político; outros buscam precisar as in-
tenções e inclinações do “autor” e/ou o teor de suas palavras;
uns poucos nomeiam a “estética” à qual os textos supostamen-
te estariam filiados. O problema não é a adoção desses termos,
mas a naturalização de conceitos posteriores aos objetos que
pretendem categorizar. O próprio termo literatura é problemá-
tico, pois significa, nesse caso, erudição, ciência, “notícia das
boas letras”. O letrado, portanto, seria um homem “de grande
literatura”, isto é, douto, discreto, versado nas letras, e não o
responsável por um registro ficcional dotado de autonomia es-
tética, o que já suporia a existência de Hegel, de Kant, etc.
Uma boa estratégia para evitar mal-entendidos seria anali-
sar as fontes mencionadas a partir de seus códigos linguísticos,
ou seja, levar em consideração o presente de sua enunciação.

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Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

A epopeia e a história propõem tópicas de invenção, partes da


disposição e figuras de elocução em conformidade com a ve-
rossimilhança e decoro próprios, propondo um estilo conve-
niente à matéria tratada. Além disso, a finalidade nuclear da
história é proporcionar instrução; da epopeia, por outro lado, é
o deleite. Um estudo com esse perfil deve levar a sério as pon-
derações que Alcir Pécora faz na introdução do livro Máquina
de gêneros, ao chamar nossa atenção para a necessidade de se
estudar a tradição dos gêneros aos quais os textos dos sécu-
los XVI-XVIII se vinculam, ou seja, perscrutar as convenções
ou artifícios retórico-poéticos comuns aos gêneros em questão.
Tal preocupação é relativa à necessidade de se entender as tó-
picas discursivas como instrumentos de adequação do texto à
audiência, gerando efeitos específicos, determinados historica-
mente. Trata-se de evitar qualquer possibilidade de naturalizar
os conceitos e lugares comuns, pois, apesar das possíveis seme-
lhanças, há uma grande variedade de recursos utilizados, de
efeitos produzidos, o que nos leva a insistir na dimensão his-
tórica do discurso. Pécora (2001) propôs três questões: inicial-
mente, reconheceu a importância da invenção textual e de seus
procedimentos genéricos para, em seguida, postular a irreduti-
bilidade do contexto a algo exclusivamente externo aos textos
ou aos constructos históricos. Em seguida, o autor afirmou que,
para ler bem os efeitos propiciados pelos textos, é preciso con-
siderar as marcas temporais que os definem, ou seja, apreender
os verossímeis textuais como produtos históricos.
Para ler historicamente Os lusíadas e a História Trágico-Ma-
rítima, o leitor deveria dominar vários repertórios de informa-
ção: a instituição retórica (preceituada por Aristóteles, Cícero,
Quintiliano), a tradição do gênero épico (desenvolvida por
Aristóteles, Horácio, Longino), informações históricas (forne-
cidas por João de Barros, Fernão Lopez de Castanheda, Pero
de Magalhães Gandavo, Diogo do Couto), referências poéti-
cas (retiradas de Homero, Virgílio, Horácio, Boiardo, Ariosto),
mitológicas (aludidas por Hesíodo, Ovídio), filosóficas (apre-
sentadas por Platão, Sêneca, Estrabão, Macróbio), éticas (ca-

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

talogadas por Aristóteles, Tomás de Aquino), cristãs (escritas


por S. Basílio, S. Gregório, S. Paulo, S. Dionísio Areopagita).
Além disso, é recomendável o conhecimento de cartas náu-
ticas, de conceitos próprios da marinhagem, de expressões
latinas, de categorias astrológicas e de tratados de geografia.
Mesmo supondo a possibilidade de fazer todas estas leituras
e refazer as escolhas de poetas e narradores dos séculos XVI-
-XVIII, não resta dúvida de que esse procedimento é sempre
parcial e provisório, pois discorrer sobre um mundo extinto
significa admitir a impossibilidade de reconstituí-lo em sua
completude. Logo, refazer os passos dos homens de outrora
não significa ressuscitar suas intenções ou vontades, mas re-
por suas escolhas narrativas, levantar hipóteses sobre seus en-
cadeamentos e propor uma forma verossímil de concebê-las.
Por outras palavras, admite-se a possibilidade de conhecer os
códigos linguísticos e as circunstâncias de sua produção sem,
no entanto, desconsiderar a enorme distância espaçotemporal
que nos separa desse mundo que não mais existe a não ser
pelas ruínas que atravessaram os séculos para chegar até nós.
O primeiro capítulo volta-se para a epopeia lusíada e ori-
ginou-se da seguinte inquietação: haveria, de fato, um Ca-
mões “repartido em pedaços” (Saraiva, 1980, p. 166), ou seja,
um poeta envolvido por uma forte “ideologia cavaleiresca”,
pautada nos costumes medievais, e inclinado ao “humanis-
mo”, o que justificaria, por exemplo, a adoção do plano mi-
tológico? Há algo que prejudique a unidade de seu poema,
tornando-o desarmônico ou contraditório? Nosso intuito,
portanto, é compreender características fundamentais de
seu poema, oferecendo ao leitor uma espécie de ponto de
partida ou de introdução à leitura d’Os lusíadas.
O capítulo seguinte é fruto de outro conjunto de incômo-
dos, decorrente da leitura de alguns trabalhos sobre a História
Trágico-Marítima. Poder-se-ia resumi-los utilizando o verbete
sobre essa coletânea escrito por José Cândido de Oliveira Mar-
tins. De início, o autor discorre sobre o gênero ao qual se afinam
os relatos de naufrágio, entendendo-o como um misto de “crô-

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Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

nica” e “reportagem jornalística”, de enorme circulação pela


sua “vivacidade” e “dramatismo”. Integrante da “literatura de
viagens”, esse gênero, marginal em relação ao “sistema literá-
rio instituído” e eivado por “uma mundividência maneirista
ou mesmo barroca”, apresentar-se-ia como contrário à “ideolo-
gia das descobertas”. Citando Antonio Tabucchi, Martins afir-
ma que a História britiana seria, por excelência, a antiepopeia
das descobertas”, o reverso da medalha das gestas heroicas dos
portugueses. A visão crítica e antiépica dessas narrativas, por-
tanto, aparece como reação à decadência que assolava Portugal
e como fundamento de uma “literatura anti-heroica e anti-im-
perial”. Vislumbra-se, portanto, uma “retórica da decadência”,
de tom mais realista, escuro e trágico, contraparte de uma
“retórica historiográfica ou ideológica”, vertente “acrítica” de
exaltação do empreendimento português.
É possível distinguir, em geral, três posturas recorrentes
no que se refere aos estudos da História Trágico-Marítima: uma
delas concebe-a como sendo um gênero novo, noticioso, mar-
ginal, híbrido, escrito com maior “liberdade” em relação aos
protocolos retóricos se comparado aos gêneros “canônicos”
(Lanciani, 1979; Madeira, 2005); outra costuma associar os rela-
tos de naufrágio à estética maneirista ou barroca para justificar
a presença de uma “retórica da decadência” (Custódio, 1992); a
última destaca seu teor “disfórico” e apreende os relatos como
sendo a contraparte “realista” da fantasiosa “euforia” épica
(Zurbach, 1996; Ideias, 1996). Sendo assim, os relatos de nau-
frágio são analisados (1) a partir de um suposto “realismo” e de
um compromisso em noticiar sem o uso de artifícios retóricos,
(2) por meio de categorias românticas que supõem termos ana-
crônicos como “estética”, “trauma”, “decadência”, e (3) como
gênero “crítico” e, por extensão, antiépico, por supostamente
ferir ou reagir à “ideologia” portuguesa tão bem empregada
na epopeia lusíada e na historiografia de João de Barros, por
exemplo. Parece-nos que esses três procedimentos partem de
três equívocos: o primeiro de um conceito tortuoso de retórica e
de uma leitura anacrônica do gênero histórico; o segundo bus-

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

ca filiar os exemplares desse gênero a movimentos literários do


século XIX, como se fosse possível “ajustar” suas particulari-
dades às teorizações românticas e psicologistas que supõem a
naturalidade de categorias como “literatura”, “estética”, “pes-
simismo”; o último utiliza pares de conceito como “euforia/dis-
foria”, “épico/antiépico”, “crítico/acrítico”, pressupondo uma
dicotomia (uma literatura “oficial” e outra “marginal”) que
dificilmente acomodaria a diversidade dos gêneros retóricos.
Como é muito frequente a leitura que associa os relatos
de naufrágio a uma literatura anti-imperialista e realista, de-
vido ao seu caráter “dramático” e “vivaz”, resolvemos ana-
lisar, no terceiro capítulo, a maneira como as “Lágrimas de
Portugal” foram entendidas à época das grandes navegações
e a forma como elas são retratadas nessas práticas letradas.
Estudamos, por exemplo, a forma como as tempestades eram
representadas em diferentes literaturas, demonstrando como
alguns lugares-comuns circularam entre elas. Investigamos,
ainda, a figura do Adamastor e o seu papel na epopeia de
Camões. Com isso, demonstrou-se que muito daquilo que foi
lido como “realismo”, “trauma” ou “pessimismo” baseia-se
em convenções antigas que integram o costume (ou tradição).
Os dois capítulos finais são os que, de fato, aproximam
Os lusíadas e a História Trágico-Marítima, demonstrando como
esses objetos textuais representam um modelo (ou éthos) de
súdito português e, em consequência, sugerem uma forma
correta de agir no que se refere à empresa ultramarina. Cha-
mamos de “retórica prudencial” o propósito comum que
permite a associação entre os gêneros estudados: trata-se da
promoção de uma forma de agir baseada nos princípios rei-
nóis e na ética católica. O capítulo quarto detém-se, sobretu-
do, na virtude da prudência, e demonstra, por exemplo, como
o elogio à fidelidade e à obediência e a censura à cobiça e ao
engano obedecem a essa lógica de orientação do súdito por-
tuguês. O último capítulo, voltado para a virtude teologal da
caridade, propõe o bem comum e o amor como orientações
necessárias à ação prudente. Os dois capítulos são, portanto,

19
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

complementares, já que se ocupam dos meios e dos fins con-


venientes à consecução da retórica prudencial.
Longe de se limitar aos capítulos finais, parece-nos que a
retórica prudencial também se encontra nos primeiros capí-
tulos, com a iniciativa dos letrados, que escrevem justamente
para orientar o leitor e, simultaneamente, servir ao rei. Su-
põe-se, assim, que eles dominam aquilo que suas narrativas
propõem, assumindo o papel de homens discretos da corte.
A experiência trágica só poderia fazer sentido, neste caso,
levando-se em consideração esse projeto de orientação do
súdito português e a concepção providencialista de história,
por meio da qual os homens que faziam boas escolhas eram
recompensados pela intervenção divina. Logo, recorrendo ao
reto agir (prudência) e movido pelo amor a Deus (caridade), o
homem poderia desempenhar seu papel de maneira a tornar-
-se exemplo para os pósteros.

20
I

OS LUSÍADAS
O gênero épico

Para pintar um retrato de Helena, Zêuxis teria solicitado


aos habitantes de Crotona a presença das cinco mais belas jo-
vens, para assimilar o que há de mais sublime em cada uma e,
assim, retratar um corpo digno dessa personagem homérica.
Este famoso pintor grego, por outras palavras, pretendia com-
por uma persona detentora de grande beleza, aproveitando-se
dos atributos admiráveis de figuras particulares, empíricas. A
anedota em questão, que se encontra na História natural de Plí-
nio, o Velho, ajuda-nos a compreender melhor os heróis épicos
que Homero empregou em seus poemas, sendo eles detentores
de atributos grandiosos (também baseados em características
particulares) que determinam seu caráter (ou éthos). Em seu
Tratado da imitação, Dionísio de Halicarnasso (1986, p. 67) cita
uma passagem em que Homero retrata o átrida Agamêmnon:
“Nos olhos e na cabeça é ele semelhante a Zeus que lança o
raio,/ Na cintura a Ares, no peito a Posídon”. Seu retrato figura
um éthos espelhado nas deidades, tamanha a nobreza de seu
porte. O tipo heroico figurado nas epopeias (assim como o tipo
belo retratado na pintura de Zêuxis) difere da personagem que
protagoniza uma narrativa histórica. Mas de que maneira?
Aristóteles estabelece, em sua Poética, uma distinção en-
tre poesia e história, supondo a superioridade da primeira
em relação à segunda: a poesia é composta e sistematizada
segundo os critérios da verossimilhança, ou seja, a matéria
poética não se ocupa somente do ocorrido, mas privilegiada-
mente de ações possíveis, plausíveis e/ou prováveis. Aristó-
teles (1985, p. 87) afirma que o mais conveniente seria optar
pelo “impossível verossímil”, e não pelo “possível incrível”,
pois “os assuntos poéticos não só não devem ser constituídos

21
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

de elementos irracionais, mas neles não deve entrar nada con-


trário à razão”. A história, por outro lado, é a narrativa sobre
os acontecimentos verdadeiros. Ela “estuda o particular”, di-
ferentemente da poesia que, sendo mais filosófica, atém-se ao
“universal”. Em suma, a história precisa assegurar uma su-
posta fidelidade à ordem natural dos acontecimentos, narran-
do verdades sem o uso de ornamentos excessivos. A poesia,
ao contrário, não se atém à sucessão cronológica da narrativa
e trata a matéria histórica de maneira elevada e verossímil.
No capítulo V da Arte Poética, Aristóteles (1985, p. 45-48)
define a epopeia retomando as características da tragédia. A
princípio, ambos os gêneros se aproximam quanto à opção
que fazem pelos objetos de imitação: homens superiores e
exemplares, merecedores de glória imorredoura. No entan-
to, a tragédia é dramática e a matéria que ela privilegia difi-
cilmente ultrapassa o intervalo de um dia. A epopeia, além
de dramática, é narrativa, o que lhe confere a possibilidade
de investir na variedade e “diversificação dos episódios”, de
modo a impedir a monotonia e, consequentemente, o tédio de
seu auditório. Para tanto, a epopeia recorre exclusivamente ao
verso heroico, por ser “o mais pausado e amplo”. A tragédia,
por outro lado, utiliza metros variados. Estes são alguns dos
aspectos que levam Aristóteles a afirmar a superioridade da
tragédia em relação aos outros gêneros poéticos.
Além de estilizar a narrativa histórica, o poeta épico dis-
põe os episódios de forma a garantir a coesão interna da obra.
Convém, portanto, que “as partes estejam de tal modo entro-
sadas que baste a supressão ou o deslocamento de uma só,
para que o conjunto fique modificado e confundido” (Aris-
tóteles, 1985, p. 45). Aristóteles complementa: é recomendá-
vel que as fábulas “encerrem uma só ação, inteira e comple-
ta, com princípio, meio e fim, para que, assemelhando-se a
um organismo vivente, causem o prazer que lhe é próprio”.
A recusa pela narrativa cronológica, portanto, não pressupõe
a incoerência da obra que, tal como um organismo, deveria

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

garantir que cada parte da narrativa cumprisse sua função de


forma a preservar a harmonia do todo.
O mais antigo retrato de Camões de que se tem notícia
foi mencionado numa portada do manuscrito d’Os lusíadas,
publicado graças ao apoio do conde de Vimioso. Pintado
pelo espanhol Fernão Gomes na década de 1570, desse retra-
to resta-nos apenas uma cópia feita por Luís José Pereira de
Resende na primeira metade do século XIX, a pedido do 3º
duque de Lafões. Ele figura um Camões de vestimenta pom-
posa e com o olho direito ferido. Existem várias represen-
tações posteriores, e muitas delas mostram-no coroado com
louros, munido com armadura e, eventualmente, em posse
de sua epopeia e/ou de uma pena. Todas essas “pinturas”
evidenciam não propriamente um homem, mas uma persona
discreta, versada nas letras e experimentada nas armas, que
se feriu em batalha e cantou com grandiloquência os feitos
memoráveis dos portugueses. Assim como a poesia, o retrato
pode mobilizar tópicas retóricas para dar a ver/ler, de forma
encomiástica ou não, uma determinada personagem.
As informações sobre a vida do poeta Luís Vaz de Camões
são escassas. A data de seu nascimento é incerta (provavel-
mente entre 1524 e 1525), bem como o local no qual nasceu
(Alenquer, Lisboa, Coimbra ou Santarém). Em 1549, começou
sua vida de viajante, embarcando para Ceuta na posição de
soldado raso, por lá permanecendo até 1551, um ano antes
de supostamente perder o olho direito na batalha contra os
sarracenos. De acordo com Manuel Severim de Faria, ele par-
tiu para a Índia em 1553 e de lá regressou em 1569, tendo em
mãos a versão manuscrita d’Os lusíadas. Faria afirma que Ca-
mões foi obrigado a aguardar até 1572 para imprimir o poe-
ma, devido às dificuldades impostas pela Grande Peste. O rei
D. Sebastião, a quem o poema foi dedicado, recompensou o
poeta com um soldo anual de quinze mil réis, quantia precá-
ria que ele usufruiu até o final de sua vida.
Foi na época em que esteve no Extremo Oriente que Camões
entrou em contato com A história do descobrimento e conquista da

23
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Índia, de Fernão Lopes de Castanheda, e com as duas primeiras


Décadas da Ásia, de João de Barros. De acordo com Paulo Miceli
(2012, p. 13-17), ele teve acesso, também, às anotações de Pe-
dro Nunes sobre o livro Tractatus de sphaera, escrito no século
XIII por Johannes Sacrobosco. João Adolfo Hansen lembra que
alguns aspectos de sua vida foram estilizados em sua poesia,
sobretudo por meio da lírica amorosa e elegíaca. No caso, Ca-
mões é retratado como tipo aristocrata, católico, letrado e sol-
dado. Ele pertencia a uma família galega da pequena nobreza
que se instalou em Portugal no século XIV, durante o reinado
de d. Fernando I. Trata-se de um “fidalgo pobre”, lembra-nos
Hansen (2005, p. 169), tipo letrado orgulhoso da nobreza e com
dificuldades de conceber a riqueza como critério definidor da
hierarquia. Não apreciava o comércio ou o trabalho manual,
mas valorizava a carreira das armas. Assim como Diogo de
Couto, ele vislumbra uma mudança de valores, afirmando que
“o ânimo guerreiro dos fidalgos do século XV foi trocado pela
vulgaridade dos mercadores” (Hansen, 2005, p. 169).
O poema épico que garantiu a Camões fama duradoura
pode ser dividido da seguinte maneira: proposição (canto I, est.
1-3), local em que se declara o assunto a ser tratado; invocação
(canto I, est. 4-5), na qual Camões recorre às imaginárias e inspi-
radoras ninfas do rio Tejo (localizado na Península Ibérica); de-
dicatória (canto I, est. 6-18), quando o poeta oferece a obra ao rei
D. Sebastião, seu contemporâneo; narrativa (canto I, est. 19, ao
canto X, est. 144), que se ocupa da exposição da fábula épica; e
epílogo (canto X, est. 145-156), no qual Camões exorta D. Sebas-
tião a tomar com prudência as rédeas do Império lusitano, em
tons de humilde finalização. Não se pode esquecer, também, do
alvará régio e do parecer inquisitorial, assinado por Frey Ber-
tholameu Ferreira, que acompanham a primeira edição da obra.
Nem todos aplaudiram o título que Camões escolheu para
sua epopeia, por não seguir de perto as escolhas de Homero
e Virgílio, que utilizaram o título para aludir ora ao nome do
herói/protagonista (é o caso da Odisseia e da Eneida) ora ao ce-
nário em que se deflagrou o conflito bélico (como ocorre na

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Ilíada). É o caso, por exemplo, de Luís António Verney (1991, p.


167). De acordo com o helenista Jean-Pierre Vernant (2002, p.
384), o herói cantado na épica greco-latina “é ao mesmo tempo
o representante das expectativas coletivas, o responsável pela
salvação comum e um indivíduo que coloca suas façanhas
pessoais acima de tudo”. Desta forma, nomear o protagonista
no título da obra indica que suas façanhas individuais favore-
ceram a sobrevida da coletividade de que faz parte. Quando
Camões inventa seu título, ele salienta a importância da har-
monia e da concórdia estabelecida entre os habitantes do reino
que, em uníssono, deveriam assegurar a unidade do Império.
A tomar, então, pelo caráter “corporativista” da política por-
tuguesa, é possível inferir que a referência a heróis, no plural,
poderia favorecer a recepção por parte dos leitores, que de-
veriam cogitar a possibilidade de conquistar reconhecimento
e fama, caso suas ações se ajustassem em alguma medida às
condutas heroicas retratadas no poema. Não é de se estranhar,
portanto, que o poeta tenha optado pelo título Os lusíadas, dis-
pensando o singular Vasco da Gama. O louvor épico salienta a
necessidade de harmonia do organismo social, independen-
temente do local ou do(s) herói(s) que a conduzem. A poesia
cristã canta a coesão do corpo místico e, concomitantemente,
o respeito às hierarquias. O que interessa, portanto, não é se o
poeta nomeia um ou mais heróis, mas se o seu canto assegura
a vitória da ordem sobre o caos. Esta é uma das condições para
a existência da concórdia: que o indivíduo, antes de lutar pela
ordem geral, ordene a sua própria vontade, aceitando e incor-
porando o lugar hierárquico que lhe é atribuído.
Ainda que pautado em uma proposta distinta, seu teor
não se distancia totalmente do epos homérico, no qual o he-
rói “não é separado do que realizou, efetuou, nem do que o
prolonga” (Vernant, 2002, p. 343). No caso do poema camo-
niano, que é destinado ao rei D. Sebastião, faz todo o sentido
referir-se aos lusitanos, pois o prolongamento do monarca
situa-se justamente nos súditos que o servem. A presença do
herói supria a falta “física” do rei, ao mesmo tempo em que

25
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

encarnava o “corpo político” dele, e é nesse ponto que ambos


se completavam. Não é o caso de o rei e o herói pensarem de
forma similar, mas de o rei pensar e agir por meio do herói
que, na poesia épica, não detém vontade própria que não es-
teja atrelada à vontade régia. O efeito de fazer-se presente é
fundamental na propagação das designações do rei, o que in-
dica que o pacto colonial transcende sua realidade dicotômica
restrita aos ciclos econômicos (Luz, 2007, p. 558-560).

A epopeia lusíada

Camões utiliza uma série de argumentos nas três primei-


ras estrofes de sua epopeia (que correspondem à proposição)
para introduzir a matéria, o gênero e o estilo de seu poema:

As armas e os barões assinalados


Que, da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas


Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte Libertando:
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar engenho e arte.

Cessem do Sábio Grego e do Troiano


As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Que eu canto o peito ilustre Lusitano,


A quem Netuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevante.
(Camões, 2005, p. 87-88)

Como convém à proposição, o aedo assinala o objeto de


seu canto: anuncia as “armas e os barões assinalados”, aludin-
do por sinédoque às façanhas militares, matéria privilegiada
da épica. João Adolfo Hansen (2008, p. 19) afirma que esse
trecho recupera um estilo alto e sublime, pois emula o pri-
meiro verso da Eneida: “Eu canto as armas e o barão primei-
ro”. Torquato Tasso (1998, p. 113), em sua Jerusalém Libertada,
recorre ao mesmo verso para principiar seu poema: “Canto
l’arme pietose e ’l capitano”. No entanto, Camões não reduz seu
louvor a um herói apenas, mas a um conjunto de barões que
não identifica de imediato, o que justifica o uso da terceira
pessoa do plural. Outro poeta que pluraliza o objeto de seu
canto é Ludovico Ariosto (2004, p. 51) em seu Orlando Furioso,
ao cantar “Le donne, i cavallier, l’arme, gli amori”. Mais adiante,
Camões salienta o caráter inédito das façanhas que vai cantar,
pois os navegantes singraram mares nunca dantes navega-
dos, ultrapassando a ilha de Ceilão (também conhecida como
Taprobana). O poeta adianta para o leitor que as ações que
vai narrar terminam com a edificação de um “Novo Reino”, à
maneira de Virgílio que, em seu exórdio, antecipa que a razão
última da trajetória de Eneias é a fundação de Roma.
Na segunda estrofe, Camões precisa e demarca os funda-
mentos de sua narrativa. O objetivo central que alicerça o seu
canto, afirma, é a ampliação da fé cristã e expansão do Impé-
rio português. Em razão desse propósito, o poeta pluraliza e
especifica os seus protagonistas: são objetos de seu elogio os
nobres “barões assinalados”, os “reis” e os homens de valor
que conquistaram memória perene em virtude de suas ações.
Quando contempla esse “corpo” de heróis, o aedo exalta a
importância de determinados integrantes do Império, que

27
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

deveriam atender ao modelo de conduta ensejado pela orto-


doxia católica. Se na primeira estrofe Camões faz menção às
“armas” para indicar, por sinédoque, a matéria alta que fun-
damenta seu canto, na segunda estrofe ele atribui ao poeta (e,
por extensão, a si mesmo) a responsabilidade de divulgar os
feitos que deveriam integrar a memória coletiva. Destaca-se
a matéria histórica e, na sequência, a arte que a torna atrativa
aos pósteros. Seguindo a preceptiva aristotélica que define a
poesia como imitação da ação (práxis), Camões concede-nos
uma prévia daquilo que está por vir.
Para finalizar sua proposição, Camões justapõe duas me-
mórias para julgar qual delas é a mais digna de canto e lou-
vor, mandando cessar as navegações e os feitos de Ulisses e
do troiano Enéias, bem como a fama de Alexandre o Grande,
e do imperador romano Trajano. Pela emulação da memória
do modelo, se amplifica a magnitude do canto que se quer
edificar, que contempla os feitos de um corpo português: cor-
po do qual faz parte o poeta e o(s) herói(s). Para reforçar a
superioridade portuguesa, Camões retoma a relação hierár-
quica estabelecida entre homens e deuses pagãos: se, como
versa o poeta antigo, os homens (mortais) deviam respeito às
deidades (imortais), laço que constitui a axiologia épica em
Homero, para os portugueses essa hierarquia se esvazia, o
que indica depreciação do modelo politeísta e amplificação
do lugar que se confere à religião cristã. Quando o poeta afir-
ma que Netuno – deus romano dos mares – e Marte – deus
romano da guerra – obedeceram aos nautas portugueses, ele
não apenas subverte as hierarquias pagãs como também am-
plifica as habilidades dos lusitanos, atribuindo-lhes perícia
nas artes da navegação e nos artifícios bélicos. À musa antiga
resta o silêncio, pois a narrativa camoniana lhe ofusca o can-
to. Assim, o exórdio de Camões tende a cumprir sua função:
tornar o auditório dócil, atento e benevolente.
Na invocação, o poeta/aedo conjura o auxílio competente
de uma ou mais divindades, com o objetivo de alcançar a ins-
piração poética. Em termos de disposição, a invocação pode

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

encontrar-se fundida à proposição, como no caso dos poe-


mas homéricos, ou pode sucedê-la, como ocorre na Eneida.
Os versos de abertura da Ilíada, por exemplo, além do apelo
à divindade, demarcam o tema do canto e denunciam a fra-
gilidade humana. Homero requisita o apoio da “Deusa” e in-
troduz sumariamente a matéria poética a ser tratada: a cólera
de Aquiles, inicialmente mobilizada contra o rei dos aqueus,
Agamêmnon. Neste caso, a invocação não guarda qualquer in-
dividualidade em relação à proposição, como ocorre, também,
na Odisseia, em que o aedo invoca os auxílios da “Musa” e des-
taca a virtude capital do herói que vai cantar: a astúcia. O au-
xílio divino busca oferecer fidedignidade aos feitos enredados.
Na Eneida, por fim, a proposição/invocação expõe suma-
riamente o teor da matéria e requisita os auxílios da musa. Di-
ferentemente de Homero, que invoca a deidade no primeiro
verso da obra, Virgílio anuncia o “seu” canto, adotando a pri-
meira pessoa do singular para divulgar a matéria poética. Só
então, o poeta pede o auxílio da “musa”, cuja sabedoria épica
lhe permitiria entender o ressentimento de Juno, que tantos
infortúnios lança sobre “um barão na piedade assinalado”.
Em todos os casos, o aedo é apresentado “como o depositário
humano de um saber que é originalmente divino, o saber das
Musas” (Pires, 2006, p. 243). Na medida em que a responsabili-
dade pela fidedignidade da narrativa recai sobre as deidades,
a opção por ceder ou não a “verdade” depende do arbítrio de-
las. Em outras palavras, o aedo não possui meios de investigar
a fidedignidade da narrativa ditada pelas Musas, restando a
ele reproduzir os desígnios e acreditar na boa intenção delas.
Tal como Virgílio, Camões separa a proposição da invoca-
ção. Ao invocar as Tágides, ninfas do Rio Tejo, ele requisita o
engenho ansiado:

E vós, Tágides minhas, pois criado


Tendes em mim um novo engenho ardente,
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi de mim vosso rio alegremente,

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Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Daí-me agora um som alto e sublimado,


Um estilo grandíloquo e corrente,
Porque de vossas águas Febo ordene
Que não tenham inveja às de Hipocrene.

Dai-me uma fúria grande e sonorosa,


E não de agreste avena ou flauta ruda,
Mas de tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;
Que se espalhe e se cante no universo,
Se tão sublime preço cabe em verso.
(Camões, 2005, I, 4-5, p. 88)

Com modéstia afetada, o aedo pede o auxílio das Tágides.


Ele invoca, em seguida, um “engenho ardente” e um “estilo
grandíloquo e corrente”, além de entonação e “fúria sonora”,
para o bom desempenho nos domínios da eloquência poética. O
recurso da invocação, que assume a necessidade de intervenção
competente de personagens divinas, confere confiabilidade aos
versos narrados, frente à incapacidade do poeta de dissimular,
e anuncia com autoridade e prudência os predicados que carac-
terizam o aedo. Aproveitando-se desse recurso, o poeta mede
seu engenho – inspirado pelas Tágides – remetendo à agude-
za poética dos antigos, que recorriam às águas inspiradoras da
fonte Hipocrene, criada por Pégaso no monte Hélicon. Se, por
um lado, Camões modestamente compromete-se com a verda-
de, por outro, ele mais uma vez engrandece seus versos.
Já a dedicatória é um lugar adequado para a explicitação
de uma espécie de “pacto” firmado entre poeta e homenagea-
do. Nela, o aedo esclarece sumariamente o teor do poema,
projeta medidas políticas, discorre sobre a nobreza do dedi-
catário e clama por sua benevolência. Não se trata somente do
elogio a um passado ilustre, mas também de exortação do ho-
menageado perante a possibilidade de um futuro que, como

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

sugere o poeta, pode ser ainda mais grandioso. Alcir Pécora


(2001, p. 141) nos esclarece que a épica de Camões

constrói efeitos tão desolados e contrários em tudo


ao que se esperaria de um canto de louvor à pátria.
Uma pátria, de resto, que, no presente da enunciação,
produz-se sem quase traço da antiga grandeza que
dera causa ao canto.

É nessa linha de descontentamento que a exortação se faz


necessária, sob a ótica de um projeto político que pretende
vencer as limitações impostas no presente da enunciação.
A dedicatória de Camões, portanto, é um discurso epidí-
tico/suasório, que apresenta sentenças lapidares, memórias
fundacionais e esperanças de um novo reino. Suas primeiras
estrofes louvam o homenageado e introduzem a qualidade de
seus feitos. Nelas, é possível localizar a conjugação de duas das
tópicas que fundamentam o canto: a dilatação do Império e o
“aumento da pequena Cristandade”, introduzindo D. Sebas-
tião, portanto, dentre os heróis que anuncia na proposição. O
aedo remete-se, ainda, à linhagem de seus antepassados e à ne-
cessidade de conter a “moura lança”. Para além da exposição
sumária dos caminhos da narrativa, o poeta exalta os seus pró-
prios versos na medida em que enaltece a figura do rei, o que
sugere que seus versos se tornam caros na medida em que são
aceitos por aquele que encabeça a hierarquia política e, portan-
to, é o detentor de maior poder dentre os membros do Império.
Em momento subsequente, Camões equaciona outras
duas tópicas em sua dedicatória: o lugar da amizade, quando
garante que o seu interesse é tão somente cantar as ilustres
proezas do rei, e o lugar da fidelidade, quando se dispõe a
seguir o homenageado cegamente, devido ao seu histórico
de ações, inclinações e em razão do próprio lugar hierárquico
que ocupa. É frente a estes méritos que o poeta espera tantas
outras medidas e resoluções por parte do monarca:

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Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Vós, poderoso Rei, cujo alto Império


O Sol, logo em nascendo, vê primeiro;
Vê-o também no meio do Hemisfério,
E quando desce o deixa derradeiro;
Vós, que esperamos jugo e vitupério
Do torpe Ismaelita cavaleiro,
To Turco Oriental e do Gentio
Que inda bebe o licro do santo Rio,

Inclinai por um pouco a majestade,


Que neste tenro gesto vos contemplo,
Que já se mostra qual na inteira idade,
Quando subindo ireis ao eterno templo;
Os olhos da real benignidade
Ponde no chão: vereis um novo exemplo
De amor dos pátrios feitos valerosos,
Em versos divulgado numerosos.
(Camões, 2005, I, 8-9, p. 91)

Ao mesmo tempo em que louva o histórico de feitos do


rei, o poeta busca persuadi-lo a realizar outros, e usa como
argumento a provável obtenção de fama em idade madura,
proporcional à grandeza de suas ações. Em consequência, o rei
D. Sebastião subiria ao “eterno templo”, metáfora que postula,
de um lado, a conquista da “imortalidade” por meio da me-
mória cantada que sobrevive ao tempo, e, de outro, a própria
salvação eterna, em resposta às nobres ações de alguém que,
para fazer uso de outra metáfora, cumpriu bem suas funções
como “braço” da Providência. Valendo-se da discrição, o aedo
demonstra um sutil descontentamento em relação ao tempo
presente e uma aguda ânsia por mudanças. Dissimulado, o
poeta confere tamanhos atributos ao rei que as ações sugeridas
– enfrentamento ao gentio, navegações ultramarinas, dilatação
do Império – aparecem como fruto das intenções do próprio
rei, e não do poeta, já que sua modéstia afetada não lhe provê
competência ou ousadia para tal intromissão. É preciso que se
tome o lugar da amizade como lugar da justiça que propaga,

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

dentre outras coisas, o respeito às hierarquias: a tópica da mo-


déstia afetada tende justamente a retomar as distâncias políti-
cas sob as quais se encontram as partes envolvidas no louvor.

Ouvi: que não vereis com vãs façanhas,


Fantásticas, fingidas, mentirosas,
Louvar os vossos, como nas estranhas
Musas, de engrandecer-se desejosas:
As verdadeiras vossas são tamanhas,
Que excedem as sonhadas, fabulosas,
Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro
E Orlando, ainda que fora verdadeiro.
(Camões, 2008, I, 11, p. 20)

O poeta refuta o apoio das musas, responsáveis pelo teor


“fantástico”, “fingido” e “mentiroso” da épica antiga. A verda-
de, neste sentido, negligenciada pelos poetas Ariosto e Boiar-
do, remonta à fidelidade da narrativa e ao verossímil histórico.
Na sequência, Camões continua com suas exortações:

E, enquanto eu estes canto, e a vós não posso,


Sublime Rei, que não me atrevo a tanto,
Tomai as rédeas vós do Reino vosso:
Dareis matéria a nunca ouvido canto.
Comecem a sentir o peso grosso
(Que pelo mundo todo faça espanto)
De exércitos e feitos singulares
De África as terras e do Oriente os mares.

Em vós os olhos tem o Mouro frio,


Em quem vê seu exício afigurado;
Só com vos ver o bárbaro Gentio
Mostra o pescoço ao jugo já inclinado;
Tétis todo cerúleo senhorio
Tem para vós por dote aparelhado,
Que, afeiçoada ao gesto belo e tenro,
Deseja de comprar-vos para genro.
(Camões, 2008, I, 15-16, p. 22)

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Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Mais uma vez movido pela prudência, o poeta exorta o


rei à ação, promovendo uma aliança entre várias temporali-
dades: menciona o histórico exemplar do rei, insufla seu âni-
mo no tempo presente por meio dos versos que entoa e, ao
mesmo tempo, busca convencê-lo a mobilizar seus exércitos
para, num futuro próximo, invadir e (re)conquistar territórios
africanos. Na estrofe seguinte, de maneira complementar, o
aedo se justifica ao fazer menção à facilidade com a qual o
rei consegue dominar os “gentios”, que se entregam ao jugo
perante uma figura tão admirável:

Em vós se vêem, da Olímpica morada,


Dos dois avós as almas cá famosas;
Uma na paz angélica dourada,
Outra, pelas batalhas sanguinosas.
Em vós esperam ver-se renovada
Sua memória e obras valorosas;
E lá vos tem lugar, no fim da idade,
No templo da suprema Eternidade.

Mas, enquanto este tempo passa lento


De regerdes os povos que o desejam,
Daí vós favor ao novo atrevimento,
Para que estes meus versos vossos sejam;
E vereis ir cortando o salso argento
Os vossos Argonautas, por que vejam
Que são vistos de vós no mar irado,
E costumai-vos já a ser invocado.
(Camões, 2008, I, 17-18, p. 22-23)

Faz-se, aqui, menção aos antepassados de D. Sebastião,


que conquistaram, à sua maneira, glória imorredoura. O aler-
ta do aedo parte do pressuposto de que o rei não poderia se
esconder na sombra de seus consanguíneos. Ele deveria, ao
contrário, amplificar (pela emulação) sua fama e, assim, con-
quistar seu lugar no templo da Eternidade. Por fim, no encer-
ramento de sua dedicatória, Camões afirma que o rei deveria

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

agir dessa maneira para merecer seus versos, ou seja, é justa-


mente por propor ações futuras que os versos serão mereci-
dos somente quando o projeto recomendado for cumprido.
Evidencia-se a cumplicidade entre presenteador e presentea-
do: se o rei não atendesse aos rogos, o mérito da obra seria
imerecido; contudo, se conseguisse atendê-los, a fama ecoaria
merecidamente pela eternidade.
Esse pacto estabelecido por meio da dedicatória fica níti-
do também no alvará régio que acompanha a edição de 1572.
Há um trecho no qual o rei afirma:

E este meu Aluara se imprimirá outrosi no principio


da dita obra, o qual ey por bem que valha & tenha for-
ça & vigor, como se fosse carta feita em meu nome, por
mim assinada (...) (Cidade, 1979, p. 21)

Há que se considerar tal alvará como parte da obra, uma


vez que se trata de um registro protocolar que autoriza o poe-
ma. Além de concordar com a impressão da obra, o rei diz que
o alvará deve ser recebido como uma carta assinada por ele:
com validade, força e vigor. Quando aceita a obra, o rei não
apenas admite e aprova os dizeres de Camões, como tende a
ampliar o interesse do leitor pela obra. Ou seja, com ganhos
recíprocos, o autor vale-se de uma estratégia tal que inviabi-
liza a recusa do rei e, como prova maior da fidedignidade do
poema, afirma que este deve ser impresso junto ao seu alvará,
que o autoriza. Poeta ganha proteção régia, o rei ganha um re-
trato primoroso: ambos, portanto, ganham prestígio relativo
e proporcional à posição que ocupam na hierarquia política.
No epílogo de Camões, os lugares da modéstia afetada e do
acúmulo de experiência articulam-se à tópica das letras e armas:

“Tomai conselho só de experimentados,


Que viram largos anos, largos meses,
Que, posto que em cientes muito cabe,
Mais em particular o experto sabe”.

35
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Mas eu que falo, humilde, baixo e rudo,


De vós não conhecido nem sonhado?
Da boca dos pequenos sei, contudo,
Que o louvor sai às vezes acabado.
Nem me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se acham raramente.

Para servir-vos, braço às armas feito;


Para cantar-vos, mente às Musas dada;
Só me falece ser a vós aceito,
De quem virtude deve ser prezada.
Se me isto o Céu concede, e o vosso peito
Dina empresa tomar de ser cantada,
Como a pressaga mente vaticina,
Olhando a vossa inclinação divina.
(Camões, 2008, X, 152-153, p. 324)

O aedo, dotado de “honesto estudo” e “longa experiência”,


presta serviço ao rei por meio do canto e das armas, da pena e
da espada. A interação entre ambos os atributos lega ao poeta
a possibilidade de ver, aprender e ensinar. Assim, sua fala pru-
dente requisita o apreço de homem experimentado que, apesar
da dissimulada rudeza, enseja o aceite e a aprovação real. Esta
tópica, comum à educação cortesã, prima pela possibilidade
de atender ao chamado do rei e, em seguida, a partir da ex-
periência adquirida, educar os homens discretos, ensinando-
-lhes a maneira adequada de servir ao reino. Como nos adverte
Alcir Pécora (2001, p. 151-152), “as armas apenas, sem a com-
panhia das letras, significam mais que a falta ou a perda da
arte: significam a impossibilidade de continuidade dos feitos
grandiosos”. Logo, a “falta de estima da arte não implica ape-
nas a rudeza dos heróis, mas a própria limitação de sua virtude
heroica, incapaz de atingir o verdadeiramente sublime”.

36
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Além do lugar da amizade, inscrito na afeição do mestre


pelo pupilo, há ainda a referência à idade avançada daquele,
que contrasta com a “tenra idade” deste. Ou seja: o mestre, ex-
perimentado nas proezas da vida, nas relações de corte e nos
hábitos educados e adequados às mais diversas circunstâncias,
orienta aquele que, ainda jovem, não viveu o suficiente para fa-
zer bom juízo das coisas. Não obstante seja o aedo mais versado
e experiente, não deixa de ocupar um lugar prudente, pois reco-
nhece a honra e notoriedade da família de seu pupilo. Trata-se
de uma conjunção de lugares aparentemente adequada, pois,
ajustada às hierarquias, a fala do velho não precisa remontar
aos padrões excelentes de corte. Ainda assim, sendo ele deten-
tor de larga experiência, poderia então narrar proezas e exem-
plos pouco conhecidos e distantes do convívio cortesão. Por fim,
usufruindo da confiança e da afeição decorrentes da amizade, o
mestre poderia sugerir condutas e modos de agir sem, contudo,
faltar com o respeito devido aos superiores hierárquicos.
Sabendo desta larga repercussão dos lugares comuns, que
são apropriados em diferentes gêneros discursivos, é preciso
lembrar, com Pécora, de outro aspecto ligado primordialmen-
te à exortação política: a arte em Camões deve ser apreendida
como publicidade de um passado ilustre e como figuração de
um futuro ainda mais grandioso, que está por vir. Os escritos,
neste sentido, são modelados segundo os costumes da educa-
ção cortesã. Pécora (2001, p. 162) nos lembra que

o feito histórico não atinge verdadeiramente a sua


plenitude heroica ou sublime antes que se produza o
canto que desempenha o seu valor, isto é, sem que se
acrescente aos sucessos das armas o espírito das le-
tras. Ao passado grandioso da pátria é necessário que
se ajunte a inteligência dele, pela arte, a fim de que
o acidental e particular dos feitos alcance o estatuto
necessário e universal de virtude e excelência, que co-
munica perfectibilidade aos seres.

37
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

O poeta/cortesão, portanto, deve dominar as habilidades


atribuídas a Marte e o engenho conferido a Apolo e ao seu sé-
quito de Musas. Ao invocar as ninfas do Tejo, Camões insiste:

Olhai que há tanto tempo que, cantando


O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,
A Fortuna me traz peregrinando,
Novos trabalhos vendo e novos danos:
Agora o mar, agora exprimentando
Os perigos Mavórcios inumanos,
Qual Cânace, que à morte se condena,
Nua mão sempre a espada e noutra a pena;
(Camões, 2008, VII, 79, p. 219)

O poeta emula a Heroides de Ovídio ao mencionar a per-


sonagem mitológica Cânace, filha de Éolo e de Enarete, que
teria sustentado uma relação incestuosa com Macareu, seu
irmão. Numa mão, encontra-se a espada com a qual come-
teria suicídio a mando de seu pai; na outra, segura a pena
que utilizou para escrever uma carta a Macareu. A analogia
não é despropositada, pois o lugar que o poeta desempenha
seria, afinal, o lugar do trágico.
Camões discorre, ainda, sobre o reconhecimento dos vas-
salos que, movidos pelo trabalho e pelo respeito à hierarquia
política, reproduzem os princípios reinóis:

E não sei por que influxo de Destino


Não tem um ledo orgulho e geral gosto,
Que os ânimos levanta de contino
A ter para trabalhos ledo o rosto.
Por isso vós, ó Rei, que por divino
Conselho estais no régio sólio posto,
Olhai que sois (e vede as outras gentes)
Senhor só de vassalos excelentes.

Olhai que ledos vão, por várias vias,


Quais rompentes leões e bravos touros,

38
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Dando os corpos a fomes e vigias,


A ferro, a fogo, a setas e pelouros,
A quentes regiões, a plagas frias,
A golpes de Idolatras e de Mouros,
A perigos incógnitos do mundo,
A naufrágios, a peixes, ao profundo!

Por vos servir, a tudo aparelhados;


De vós tão longe, sempre obedientes
A quaisquer vossos ásperos mandados,
Sem dar respostas, prontos e contentes.
Só com saber que são de vós olhados,
Demônios infernais, negros e ardentes,
Cometerão convosco, e não duvido
Que vencedor vos façam, não vencido.
(Camões, 2008, 147-148, p. 322)

O rei deveria, portanto, interceder pelos vassalos valoro-


sos, sobretudo os detentores de experiência:

Favorecei-os logo, e alegrai-os


Com a presença e leda humanidade;
De rigorosas leis desalivai-os,
Que assim se abre o caminho à santidade.
Os mais experimentados levantai-os,
Se, com a experiência, têm bondade
Para vosso conselho, pois que sabem
O como, o quando, e onde as cousas cabem.
(Camões, 2008, X, 149, p. 323)

O poeta exorta o rei a orgulhar-se de seus súditos. Não


apenas daqueles que servem com armas, mas também com as
letras, forma de reprodução e distribuição do poder. Refere-se,
também, ao sacrifício a que se submetem os súditos, em dife-
rentes circunstâncias: alvos de naufrágios, setas, fogo, fome.
Utiliza-se, assim, da argumentação com base na subserviência,
na preeminência, para justificar a benevolência do monarca,

39
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

que deveria favorecê-los e, assim, instigá-los a continuar com


a mesma conduta. Só assim, intercedendo pelo bem comum, é
que o rei consumaria a própria soberania de seu reinado. Note-
-se que o título da obra pode recobrar outro aspecto que não a
mera menção ao corpo do Estado: refere-se, talvez, à necessida-
de de reconhecimento da boa estirpe portuguesa, não somente
em relação aos guerreiros, mas também aos letrados, que re-
tratam com papel e tinta tipos exemplares dignos de imitação.
A proposição e a dedicatória podem ser lidas em conjun-
to, pois a segunda especifica aspectos do heroísmo coletivo
aludido na primeira. O epílogo pode, igualmente, ser lido em
analogia com as oitavas finais do canto V, em que há uma va-
lorização da arte e uma censura àqueles que a desvalorizam.
A princípio, o poeta recorda que seu poema se fundamenta na
verdade histórica e censura aqueles que se prenderam, como
Ariosto, a ficções e fantasias. Na sequência, ele afirma que as
ações portuguesas de fato ultrapassaram os feitos antigos,
como queria Vasco da Gama, mas deixa claro que é necessá-
rio valorizar as letras para que as ações gloriosas perdurem.
Reforça-se, no caso, a tópica das letras e armas, amplificada
por meio da figura de Júlio César:

Vai César sojugando toda França


E as armas não lhe impedem a ciência;
Mas, nüa mão a pena e noutra a lança,
Igualava de Cícero a eloquência.
O que de Cipião se sabe e alcança
É nas comédias grande experiência.
Lia Alexandro a Homero de maneira
Que sempre se lhe sabe à cabeceira.

Enfim, não houve forte Capitão


Que não fosse também douto e ciente,
Da Lácia, Grega ou Bárbara nação,
Senão da Portuguesa tão somente.

40
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Sem vergonha o não digo: que a razão


De algum não ser por versos excelente
É não se ver prezado o verso e rima,
Porque quem não sabe arte, não na estima.
Por isso, e não por falta de natura,
Não há também Virgílios nem Homeros;
Nem haverá, se este costume dura,
Pios Eneias nem Aquiles feros.
Mas o pior de tudo é que a ventura
Tão ásperos os fez e tão austeros,
Tão rudos e de engenho tão remisso,
Que a muitos lhe dá pouco ou nada disso.
(Camões, 2008, V, 86-90, p. 167-168)

Após dizer que os portugueses desvalorizavam a pena,


Camões menciona, como consequência, a ausência de poetas
do porte de Virgílio e Homero, estes sim valorizados nas cir-
cunstâncias históricas em que existiram. Até mesmo o prota-
gonista da epopeia camoniana não é poupado dessa mácula:

Às Musas agardeça o nosso Gama


O muito amor da pátria, que as obriga
A dar aos seus, na lira, nome e fama
De toda a ilustre e bélica fadiga;
Que ele, nem quem na estirpe seu se chama,
Calíope não tem por tão amiga
Nem as filhas do Tejo, que deixassem
As telas d’ouro fino e que o cantassem.

Porque o amor fraterno e puro gosto


De dar a todo o Lusitano feito
Seu louvor, é somente o pros[s]uposto
Das Tágides gentis, e seu respeito.
Porém não deixe, enfim, de ter disposto
Ninguém a grandes obras sempre o peito:
Que, por esta ou por outra qualquer via,
Não perderá seu preço e sua valia.
(Camões, 2008, V, 99-100, p. 171-172)

41
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Os antigos, portanto, tiveram seus feitos superados,


mas, quanto à valorização das letras, acabaram por superar
os portugueses.
Há uma coerência entre as oitavas finais dos cantos V, VI e
VII no que se refere aos juízos proferidos pelo poeta. No canto
V, quando Gama está concluindo sua narrativa ao rei de Me-
linde, há um momento de amplificação dos feitos portugue-
ses, que são sobrepostos às memórias antigas. Na estrofe 92, a
imitação dos antigos é utilizada para se fazer uma apologia à
valorização dos poetas. De acordo com Camões, os feitos por-
tugueses realmente superam os antigos, mas não há incentivo
para a divulgação desses feitos por meio da arte. Na ocasião,
ao mesmo tempo em que lança uma censura aos capitães que
não dominam as letras, o poeta coloca em evidência a tópica
da pena e da espada, que tão bem caracteriza o seu epílogo.
Como disse Pécora, o poeta retira do acontecimento ilustre o
que ele tem de sublime, para, assim, fundamentar seu canto.
No final do canto VI, Camões oferece um caminho para a
obtenção de glórias, reforçando o lugar comum da experiência
“trágica” enquanto terreno propício para a obtenção de fama.
Para tanto, o poeta afirma que o herói deve apoiar-se no tronco
ilustre dos antepassados para emular seus feitos, e reafirma as
tópicas da experiência e da recusa às honrarias decorrentes do
ócio e dos deleites, que “afeminam os peitos generosos”.
No canto VII, por fim, Camões invoca as ninfas do Tejo e do
Mondego, edifica para si um lugar melancólico, trata das injus-
tiças promovidas pelos heróis, reforça a necessidade de valori-
zação da arte, defende a harmonia do corpo místico e censura
a mentira e o roubo. Quando assinala virtudes merecedoras
de reconhecimento, Camões se define como portador delas e,
ao mesmo tempo, convence o leitor de que abraçá-las significa
tornar-se um súdito digno de canto épico e fama perene.
Vitor Aguiar e Silva (2008, p. 93-107) tem razão ao advertir
sobre os perigos de uma leitura antológica, isto é, que privi-
legia alguns episódios em detrimento de outros. As partes da

42
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

epopeia camoniana se entrelaçam, e parece ser deste entrela-


çamento que nasce a harmonia que lhe é própria.
Camões emulou os poemas greco-romanos, mas afirmou
que as circunstâncias históricas em que viveu não permitiram
que ele alcançasse o estatuto daqueles poetas. Ou seja, apesar
de reconhecer a matéria de sua epopeia como superior, sem o
incentivo à arte, não haveria a valorização do poeta, tampou-
co a perpetuação de feitos ilustres. Era a pena do poeta que
atribuía forma à história e retirava dela atributos para orien-
tar a conduta dos leitores. Sem essa orientação, não haveria a
reprodução de grandes feitos, e sem tais feitos, não haveria
mais razão para custear o labor poético. Não se tratava pro-
priamente de pessimismo, mas de um argumento que ampli-
fica o valor de sua epopeia, fruto do empenho solitário de um
poeta que perseverava na luta pelo bem comum.
Para reforçar a grandiosidade do conflito bélico que nar-
rou, Tucídides mencionou seu potencial trágico, que teria
superado a Guerra de Troia (Homero) e as Guerras Médicas
(Heródoto). Quando reconheceu a impossibilidade de novos
homeros e virgílios, Camões desenhou os reveses de seu pre-
sente para amplificar sua determinação, uma vez que agiu
privado do incentivo de seu tempo. Se a arte seria o veículo
para a promoção do heroísmo, na falta dela, heroico torna-se
o sacrifício daquele que a ela se dedica.

43
II

HISTÓRIA TRÁGICO-MARÍTIMA
O gênero histórico

Tucídides tratou da guerra entre atenienses e pelopo-


nésios, assegurando a grandiosidade desse evento. Em seu
proêmio, ele declara a ausência do teor mítico em detrimento
de uma escrita clara e útil, que teria serventia duradoura: kte-
ma es aiei, aquisição para sempre. Sua narrativa, baseada em
indícios e no exame apurado, na autópsia, denota uma busca
criteriosa pela verdade. Quando registra, por exemplo, os sin-
tomas e distúrbios causados pela peste que assolou Atenas,
Tucídides zelava por

legar aos homens vindouros o conhecimento informa-


tivo preciso que lhes capacitasse reconhecer, no futuro,
um eventual surto daquela epidemia que atrozmente
surpreendera seus contemporâneos. (Pires, 2012, p. 503)

Os remédios humanos mostraram-se inúteis contra essa


ocorrência: nota-se um estado de anormalidade no qual tam-
bém o médico perece, por manter contato com os pacientes
contaminados. É um fenômeno proteico, como indica Mura-
ri Pires, pois se manifesta de forma múltipla e contraditória,
variando em rápidas sucessões e metamorfoses que se esqui-
vam do entendimento humano. Mudança sutil do kléos épico
ao ktema tucidideano, que permite a persistência da figura do
herói: não mais por meio da métis de Ulisses ou da mênis de
Aquiles, mas da prudência de Péricles e da clarividência de
Temístocles (Magalhães, 2007, p. 13-43).
Políbio, por sua vez, propõe uma história “pragmática”:

nós que não buscamos tanto o prazer do futuro leitor,


mas a utilidade dos que desejam aprender, deixamos

45
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

de lado todo o resto para consagrar-nos a esta parte.


(Políbio, 2001, p. 121)

Ele segue os passos de Tucídides ao afirmar a centralida-


de da utilitas na escrita da história. A história pragmática é
composta por três partes: do estudo diligente de memórias
e de outros documentos, da análise de eventos políticos e do
reconhecimento de cidades, rios, lugares, lagos, distâncias,
enfim, da geografia. Não por acaso, Políbio considera Ulisses
o primeiro grande historiador, pois, em seu retorno a Ítaca,
ele viu, conheceu pessoalmente e passou por aflições. Como
afirma Hartog, a história, neste caso, deveria oferecer uma
“educação política mais eficaz”, “o melhor treino para a ação”
e ensinar “a suportar dignamente os reveses da fortuna”.
Somente a história contemporânea é factível, e que apro-
xima Políbio de Tucídides. Outro nexo é a valorização da ex-
periência política e militar. Para Políbio, era necessária a cria-
ção de uma história universal para, por meio de uma visão do
conjunto, entender-se melhor as vicissitudes da Fortuna. Se
Tucídides afirmou a grandiosidade da guerra do Pelopone-
so demonstrando sua superioridade em relação aos conflitos
passados, Políbio busca entender os trâmites da Fortuna, pois
esta, “ainda que inove e combate continuamente com a vida
humana, simplesmente jamais realizou obra nem combateu
combate como em nossos dias” (Hartog, 2001, p. 117).
Os oradores romanos também retomam as discussões
sobre a utilitas, implicada na tópica ciceroniana da história
exemplar, que é bem conhecida entre os historiadores: “a
história é testemunha dos séculos, luz da verdade, vida da
memória, mestra da vida, mensageira do passado” (apud Tei-
xeira, 2008, p. 557). Por isso, cabia ao orador prudente narrar
os eventos históricos, pois ele conhecia, simultaneamente, a
matéria a ser tratada e a forma adequada de dizê-la.
Se em Tucídides era necessário ver para crer, em Cícero o
ver relacionava-se à elocução narrativa, ou seja, ele afirma que
é por intermédio da palavra que se coloca a matéria “diante

46
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

dos olhos” dos leitores. Salústio, de forma parecida, busca pro-


duzir uma lição honesta a partir dos modelos de virtude que
apresenta. Em Guerra de Jugurta, além de reforçar a utilidade da
memória dos fatos passados, Salústio utiliza uma analogia que
esclarece a forma como concebe esta utilidade: os retratos dos
ancestrais (Hartog, 2001, p. 173). Já em Conjuração de Catilina,
parece predominar um elogio à prudência, entendida como a
principal das virtudes por articular a concórdia civil e o equi-
líbrio dos apetites. Ao amplificar as virtudes de César e Catão
e vituperar os vícios de Catilina, Salústio inventa um éthos vir-
tuoso e outro vicioso. Tal como Cícero, Salústio detém conheci-
mentos políticos e militares e insiste na centralidade do narrar.
Em Plutarco (apud Hartog, 2001, p. 175), a noção da histó-
ria como mestra da vida é reforçada pela metáfora do espelho:
ele se ocupa de escrever vidas para “organizar e conformar”
sua própria vida “às virtudes daqueles, como se olhando num
espelho”. Por analogia, o historiador é aquele que “hospeda”,
por meio da história, a memória de grandes homens, “tomando
de suas ações o que é mais forte e mais belo para conhecer-se”.
Em A Glória dos Atenienses, ele afirma que “a imagem da glória
alheia reflete e brilha dos empreendedores para os escritores,
aparecendo as ações, através das palavras, como num espelho”.
Como afirma Hartog (2001, p. 184-185), Plutarco concentra a
glória verdadeira nos homens de ação, sendo que a dos histo-
riadores é toda emprestada. No caso, o espelho seria o próprio
historiador, que reflete para o leitor a imagem da glória alheia.
Para Luciano de Samósata (2009, p. 199), assim como para
Políbio, o historiador é um homem de ação e a história deve
ser pragmática. Aproximando-se de Tucídides, a história deve
ser também “uma aquisição para sempre, mais que uma peça
de concurso, voltada para o presente”. Não se privilegia, por-
tanto, o interesse do historiador, mas tão somente a utilidade
futura da história escrita no presente. O propósito de Luciano
de Samósata, no entanto, não é negar o prazer decorrente da
história, mas associá-lo à utilidade: a história pode ser ornada,
mas de “figuras sem peso e que não pareçam artificiais, já que

47
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

estas tornam o estilo semelhante às sopas muito temperadas”


(Luciano de Samósata, 2001, p. 73). É necessário, portanto, “al-
gum sopro poético para inflar as velas com bons ventos e elevar
a nau sobre a crista das ondas” (Luciano de Samósata, 2001,
p. 73). O modelo de historiador, no caso, seria Xenofonte, res-
ponsável por uma história verdadeira, útil e, portanto, justa. É
preciso alcançar, ainda, a harmonia do texto, pois “tudo deve
ser homogêneo e da mesma cor, harmonizando-se o resto do
corpo com a cabeça”. Muitos historiadores, no entanto, “põem
a cabeça do Colosso de Rodes num corpo de anão. Outros, pelo
contrário, apresentam corpos acéfalos, sem proêmios, e entram
direto no assunto” (Luciano de Samósata, 2001, p. 55).
Embora a tópica historia magistra vitae tenha sido cunha-
da por Cícero, vimos que a ideia de a história ser um saber
privilegiado na orientação do agir é virtualmente tão antiga
quanto a invenção da historiografia grega. Marcelo Jasmin
(2005, p. 17) recorda que “a suposição das potencialidades
pragmáticas do conhecimento histórico era lugar comum na
consciência historiadora anterior” a Cícero. Ele continua:

A empresa historiográfica original, verdadeira “ope-


ração contra o tempo”, cuja pretensão era “salvar do
esquecimento” (Heródoto) as ações dignas por sua
grandeza para transformá-las numa “aquisição para
sempre” (Tucídides), sugeria entre suas finalidades
primordiais conhecer no passado as bases adequadas
para o agir presente. Conhecer a história, supunha-se,
poderia levar os homens a repetirem os sucessos an-
teriores sem incorrerem novamente em antigos erros.
Num contexto de pensamento em que a imitação da
experiência alheia era prescrita como remédio para a
ausência de experiência própria, e em que se consi-
derava o sucesso anterior dos grandes homens como
bom critério na avaliação do possível êxito das ações
contemporâneas, a história ganhou o estatuto de saber
indispensável à formação dos homens públicos.

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Marcelo Jasmin (2005, p. 19-20) destaca, ainda, a vocação


pedagógica, pragmática e paradigmática da história mestra
da vida: pedagógica porque orienta o agir no presente a par-
tir de lições extraídas do passado; ela é também pragmática,
com “seu conteúdo ético-político voltado para a ação indivi-
dual à qual se creditava a força impulsionadora da política e
se reservava o lugar primordial na narrativa”; por fim, ela é
paradigmática porque “seu método de ensino se consubstan-
ciava na difusão daquelas situações consideradas exemplares
e que serviam, por isso mesmo, como verdadeiros modelos
de conduta para todos os homens”. Considerada em sua lon-
ga duração, esse topos não é concebido de forma homogênea:
Heródoto investiu no relato dos costumes de gregos e “bár-
baros” para entender as guerras médicas. Para Tucídides, a
história deveria estar necessariamente ligada aos assuntos
políticos para assegurar sua validade. Em Cícero, a história
estava revestida de um teor moral, da mesma forma que a
historiografia cristã medieval, que pretendia “apresentar a
essência pecaminosa do homem e a alternativa paradigmá-
tica da santificação”. A chamada historiografia renascentista,
por sua vez, seguindo os cânones historiográficos antigos, foi
essencialmente política. Todos esses informes, muito simpli-
ficados, não pretendem outra coisa senão dar a entender que
a historia magistra vitae, além de longeva, é plural.
Pensemos, agora, nas especificidades da história cristã por-
tuguesa: em primeiro lugar, é preciso levar em consideração
que o tempo, nesse caso, é considerado criação de Deus. Sendo
assim, o conteúdo dos relatos de naufrágio inclui, necessaria-
mente, a presença de Deus, que se repete “em todas as diferen-
ças históricas”. Não há punição que não Lhe diga respeito, não
há acontecimento no qual Ele não esteja presente. Há, porém,
limitação humana, pois o homem não entende com clareza os
sentidos da justiça divina. Se todos os momentos históricos são
análogos, justamente por implicarem a identidade de Deus,
deduz-se que a história pode ensinar maneiras de agir confor-
madas à vontade da Providência. A história ensina a reta razão

49
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

e demonstra como aplicá-la ao agir, a partir dos erros ou dos


acertos alheios. Por outras palavras, ela ensina prudência.
O prólogo e a dedicatória da História da Província de Santa
Cruz (1576), de Pero de Magalhães Gandavo (1980, p. 70-75),
mobilizam lugares comuns recorrentes em exemplares do gê-
nero histórico. Muitos deles foram amplificados nos versos que
Camões dedica a esse historiador. O argumento central do poe-
ta, efetuado por meio de uma fábula onírica, conta com a par-
ticipação de três divindades do panteão greco-romano: Marte,
Apolo e Mercúrio. O deus da guerra, que brandia uma “lança
furiosa”, afirma, com voz “pesada e temerosa”, que uma obra
se torna famosa quando oferecida “a quem por armas resplan-
deça”. Apolo, ao contrário, assegura que somente o dedica-
tário sapiente/prudente poderia defender apropriadamente
uma obra, alegando que a “dureza das armas” é contrária à
eloquência. Mercúrio, portando seu caduceu, dissipa a conten-
da ao propor a possibilidade de aliar pena e espada, sinédoque
que indica, respectivamente, o uso das letras e das armas. O
deus mensageiro menciona os exemplos de Alexandre e César,
que portavam “nu’a mão livros, noutra ferro e aço”, e orienta
Gandavo quanto à escolha do dedicatário, indicando dom Lio-
nis Pereira. Dois argumentos da deidade justificam a escolha:
por um lado, ele foi educado pelas Musas, com quem apren-
deu as artes, a ciência, as virtudes morais e a inclinação divina.
Por outro, ele se tornou capitão “forte e maduro” devido às
experiências vivenciadas no Oriente, causando admiração por
parte dos amigos e temor por parte dos inimigos. Marte e Apo-
lo adiam a porfia e aprovam a escolha de Mercúrio. Gandavo
acorda desse sonho com sua decisão tomada. Na sequência,
Camões menciona o “claro estilo” e o “engenho curioso” da
História. Por fim, dirigindo-se ao dedicatário, o poeta faz uso
de uma analogia, dizendo que o historiador deve ser defendido
da mesma forma que o muro de Malaca, local onde Lionis Pe-
reira conquistou sua fama e consagrou sua memória.
Na sequência, o leitor encontra um soneto no qual Camões
discorre sobre a vitória de dom Lionis em batalha contra o rei

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

de Achém, em Malaca. Quando o aedo se silencia, o narrador


entra em cena. Inicialmente, com modéstia afetada, Gandavo
reconhece que detém um “fraco entendimento” e menciona
sua obrigação de pagar, mesmo que com limitações, “alguma
parte do muito que se deve” ao herói a quem se dirige. Sob a
máscara da rusticidade, a persona do historiador assume, nes-
se caso, duas posições: uma inferior, indicando suposta defi-
ciência ou incompletude em relação ao leitor discreto, e outra
superior e, portanto, apreciativa, indicando possuir a humil-
dade que falta aos historiadores vaidosos que, por intermédio
da adulação, buscam as glórias somente para si. O lugar de
humildade não é, portanto, um substituto para a falta de en-
genho, mas uma licença para o livre exercício da discrição.
Por outras palavras, desse lugar não é possível inferir a má
formação do narrador, pois se trata de um artifício retórico
adequado às liminares discursivas, já que o tipo humilde é
convincente, apto a captar a benevolência do leitor/ouvinte.
Em outro fragmento da dedicatória, Gandavo (1980, p. 75)
menciona o nobilíssimo sangue e a clara progênie da qual se
origina dom Lionis, sem deixar de referir os troféus decorren-
tes “das grandes victorias e casos bem afortunados que lhe hão
succedido nessas partes do Oriente em que Deus o quiz favore-
cer com tão larga mão”. No terceiro livro da Retórica a Herênio,
o autor alude à tríplice divisão dos elogios e vitupérios, que po-
dem ser dirigidos a coisas externas, ao corpo ou ao ânimo. As
coisas externas são aquelas que podem acontecer “por obra do
acaso ou da fortuna, favorável ou adversa: ascendência, edu-
cação, riqueza, poder, glória, cidadania, amizades”. Quanto
ao corpo, convém elogiar seus atributos vantajosos: “rapidez,
força, beleza, saúde”. Dizem respeito ao ânimo “as coisas que
comportam nossa deliberação e reflexão: prudência, justiça, co-
ragem, modéstia” (Cícero, 2005, p. 161). Nota-se, portanto, que
Gandavo atende essas recomendações ao elogiar a ascendência
de dom Lionis. Se tomarmos os versos de Camões como parte
integrante da dedicatória, é possível distinguir, também, elo-

51
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

gios à força desse “grande Capitão” e à coragem e prudência


com as quais enfrentou várias vicissitudes em Malaca.
Em vias de finalizar sua dedicatória, Gandavo (1980, p.
75) utiliza algumas tópicas que Camões já havia mobilizado
anteriormente: a valorização da conciliação entre letras e ar-
mas, a importância das lições advindas das escrituras, o uso
da brevidade como procedimento adequado à história e a be-
nignidade com a qual o dedicatário deveria acolher esta “bre-
ve história”. Além disso, o historiador afirma ter sido “teste-
munha de vista”, informação que deveria atestar a veracidade
da narrativa. Convém recordar, mais uma vez utilizando a
Retórica a Herênio, das três coisas que convêm à narração que
se ocupa do tratamento da verdade: clareza, brevidade e ve-
rossimilhança. A clareza, diz o anônimo, pode ser obtida, por
exemplo, seguindo a ordem cronológica dos acontecimentos.
A brevidade também contribui com a clareza do discurso,
pois se atém ao âmbito do necessário. O verossímil, por fim,
é viabilizado quando se fala “como o costume, a opinião e a
natureza ditam” (Cícero, 2005, p. 59-69).
Outro conjunto de tópicas foi utilizado no prólogo que
Gandavo dirige ao leitor. Mais uma vez com dissimulação
honesta, ele mobiliza o lugar da humildade, atestando que es-
creve por necessidade, tendo em vista que outros, com maior
engenho, não se interessaram pela matéria ou desconheciam
sua grandiosidade. Ele tece, então, um elogio às terras do Bra-
sil, aludindo à prática, consagrada entre os antigos, de perpe-
tuar a memória por meio da história. Gandavo retoma o topos
ciceroniano da historia magistra vitae e abre mão de epítetos
preciosos e de vocábulos eloquentes em prol de um estilo fácil
e chão (humilde), que propicia o deleite do leitor/ouvinte. Por
fim, ele se desculpa com os leitores discretos (doutos, pruden-
tes), que deveriam perdoar suas faltas, atitude que não espe-
rava dos idiotas (vulgares, néscios), que costumam maldizer
tudo sem nada perdoar (Gandavo, 1980, p. 76-77).
No livro IV da Retórica a Herênio (Cícero, 2005, p. 213-221),
quando o anônimo trata especificadamente da elocução, en-

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

contramos uma exposição sobre os três gêneros de figura:


grave, médio e baixo. À história convém justamente o gênero
médio, que se localiza entre as palavras ornadas do gênero
alto (que Gandavo negou em seu prefácio) e as palavras ate-
nuadas do gênero baixo. Em De Oratore, Cícero afirma algo
parecido ao alegar que, no caso da história, é preciso perse-
guir “um gênero oratório difuso e arrastado, que flua regu-
larmente com uma certa suavidade, sem essa aspereza pró-
pria ao tribunal e sem os aguilhões que as fórmulas têm no
fórum” (apud Hartog, 2001, p. 151). Prima-se por uma escrita
verdadeira e imparcial, mas também verossímil. Além disso,
quanto ao gênero de figura, requer-se algo difuso, arrastado,
humilde. A história, portanto, efetua o deleite e a instrução
dos auditórios: por ser útil, ela aproxima-se do gênero delibe-
rativo sem, no entanto, com ele confundir-se.
Em 1552 foi publicada a Primeira Década da Ásia. No pró-
logo, João de Barros (1778) retrata a diferença entre a “virtude
generativa” da Natureza, que é renovável, e os feitos huma-
nos, que dependiam da memória escrita, “Divino artifício”
que lega aos pósteros registros das ações e bons exemplos. A
“elocução artificial das letras” reúne um conjunto de “caracte-
res mortos” que contêm em si “espírito de vida”, afirma o au-
tor. No prólogo da Terceira Década da Ásia, publicada em 1563,
Barros emula, inicialmente, o Timeu de Platão, para ressaltar a
importância de se conhecer a antiguidade das coisas. Homens
que não valorizam as lições de história continuam sendo “mo-
ços”, com ânimo “sempre mancebo”. Mais adiante, o historia-
dor retoma a autoridade de Cícero para censurar aqueles que
menosprezam a História e voltam os olhos exclusivamente
para o presente, preocupados somente com seus afetos e dese-
jos. Ele mobiliza também os dizeres de Aristóteles, para quem
os exemplos do passado não apenas satisfazem o entendimen-
to, mas causam deleite. João de Barros faz uso de uma analo-
gia agudíssima ao apreender a História como campo onde se
encontra semeada toda a doutrina Divina, Moral, Racional e
Instrumental: quem “pastar o seu fruto” vai convertê-lo em

53
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

“forças de entendimento” e memória para a condução de uma


vida justa e perfeita, aprazível a Deus e aos homens. Barros
não para por aí, pontuando algumas das leis que deveriam ser
seguidas pelos historiadores: jamais desviar-se da verdade,
não escrever movido pelo ódio, não utilizar argumentos inve-
rossímeis, não desvalorizar a imitação, a eloquência, o decoro.
No prólogo de sua História do descobrimento & conquista da
Índia pelos Portugueses (1554), Fernão Lopez de Castanheda
menciona a utilidade da história, que ensina o que devemos fa-
zer e de que devemos fugir. No entanto, ele afirma que as lições
de história são muito mais úteis aos príncipes do que aos ho-
mens privados, pois o erro de um governante atinge todos que
ele governa, ao passo que o erro de um privado atinge somente
a ele. Por isso, o príncipe deve retirar da história a melhor ma-
neira de aperfeiçoar-se, pois ela instrui por meio da experiência
e dos exemplos. Castanheda utiliza, ainda, a amplificação, para
retratar a superioridade dos feitos portugueses em relação aos
feitos passados. Amplifica também a importância de se ver os
lugares sobre os quais discorre, para evitar equívocos muitas
vezes repetidos pelos historiadores que o precederam. No pró-
logo do livro três, salienta também o fato de ele ser homem
“experimentado”, que viu tormentas, batalhas no mar, navios
naufragando, tudo para amplificar a autoridade do seu relato
como fruto da visão ou da experiência.

A História de Bernardo Gomes de Brito

A História Trágico-Marítima, de Bernardo Gomes de Brito,


contou com o amparo da Academia Real da História Portu-
guesa, fundada a 08 de dezembro de 1720 por iniciativa do
clérigo D. Manoel Caetano de Sousa e do 4º Conde da Eri-
ceira, D. Francisco Xavier de Meneses. Não se pode dizer ao
certo se Bernardo Gomes de Brito chegou a fazer parte des-
sa instituição. As poucas informações biográficas sobre ele
foram fornecidas por Diogo Barbosa Machado, membro da
academia desde a sua fundação e contemporâneo do coletor.

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Sabe-se, por exemplo, o nome de seus pais (Domingos Gomes


e Mariana de Brito), o local e a data de seu nascimento (Lis-
boa, 1688) (Moniz, 2001, p. 11). Além disso, Machado (1741, p.
532) faz alusão à sua “feliz memória”, “boa compreensão” e
“estudiosa aplicação”. Nas licenças que acompanham a cole-
tânea, existem alguns epítetos que qualificam sua pessoa: no
caso, Brito é reconhecido como compilador e cultivador da
História que, com cuidado, diligência e curiosidade, coligiu
relações de naufrágio úteis e agradáveis.
A História de Brito divide-se em dois tomos, publicados
respectivamente em 1735 e 1736. Na editio princeps, o título é
apresentado em caixa-alta, com letras capitais: nomeia-se, no
caso, o gênero (histórico) e a matéria da coletânea (experiências
trágico-marítimas). O título é seguido de outras especificações:
“em que se escrevem cronologicamente os naufrágios que ti-
veram as naus de Portugal, depois que se pôs em exercício a
navegação da Índia”. Esse texto, que nesta edição se encontra
em itálico e com fonte consideravelmente menor, determina a
disposição da coletânea (organizada em ordem cronológica) e
especifica a matéria (naufrágio de naus portuguesas na Carrei-
ra da Índia). Na sequência, deparamo-nos com o número do
tomo, o nome do dedicatário (“Augusta Majestade do Muito
Alto e Muito Poderoso Rei D. João V”), o nome do coletor,
o selo real, o local em que a obra foi dada à estampa (Lisboa
Ocidental), a oficina que a imprimiu (da Congregação do Ora-
tório), a data (em algarismos romanos) e a afirmação de que o
exemplar segue com as licenças necessárias para impressão.
No tomo I, com um total de 479 páginas, encontramos a
dedicatória ao rei D. João V, as licenças (papal, episcopal e
real), um index e seis relações de naufrágio. No tomo II, que
soma 538 páginas, constam as licenças, o index e outras seis
relações. São, portanto, 12 relações de naufrágio escritas ao
longo de 50 anos (1552-1602).
Na dedicatória, Brito utiliza alguns argumentos que con-
ferem um lugar à coletânea, a si próprio e ao rei:

55
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Como V. Majestade, por sua real grandeza, se fez au-


gusto protetor da História, erigindo a sua preclara
Academia, parece que permitiu aos afortunados his-
toriadores deste século a glória de recorrer ao seu real
asilo, indulto de que agora me valho para pôr aos reais
pés de V. Majestade, nestes tomos, estes fragmentos
históricos, que já perdem o horror de lastimosos, na
fortuna de dedicados, conseguindo eu para aqueles
vassalos desta coroa (que agora o são de V. Majestade
com melhor estrela) nos seus naufrágios o mais feliz
porto, senão para as suas vidas, para as suas memó-
rias. O Céu dilate a vida de V. Majestade para felicida-
de desta Monarquia. (Brito, 1998, p. 1)

Na posição de historiador, Brito dedica os “fragmentos


históricos” que coligiu ao rei D. João V, “protetor da História”
e criador da Academia Real de História Portuguesa. Mas qual
seria a função do historiador no momento em que a Histó-
ria Trágico-Marítima foi impressa? Evocando uma passagem
de Cícero, o clérigo Raphael Bluteau (1712-1728, p. 41), que
também foi membro da referida academia, afirma que “his-
toriador” é o “escritor de alguma história”. A história, para
ele, é “narração de coisas memoráveis, que tem acontecido
em algum lugar, em certo tempo, e com certas pessoas, ou na-
ções” (Bluteau, 1712-1728, p. 39). Tais elementos estão impli-
cados na dedicatória de Brito, quando afirma que seu propó-
sito é conseguir para os vassalos da Coroa o mais “feliz porto,
senão para as suas vidas, para as suas memórias”. Bluteau
(1712-1728, p. 40), ao final, retoma a definição ciceroniana da
história: “testemunha do tempo, a luz da verdade, a vida da
memória, a mestra da vida, e a mensageira da Antiguidade”.
É possível encontrar alguns sentidos para a “história” na
primeira proposição da Academia Real da História Portugue-
sa, acompanhada de um estatuto (2009, p. 216-235) que define
os fundamentos da história que se queria produzir. A inten-
ção, no caso, era constituir duas histórias: uma eclesiástica e

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

outra secular. O proponente, Manoel Caetano de Sousa, com-


parou a história a um edifício, mencionando os muitos artífi-
ces responsáveis por sua construção e a necessidade de uma
“planta” a partir da qual se pudesse estabelecer as “regras da
arte” convenientes à empreitada. O fruto do trabalho conjun-
to, no caso, seria um “corpo proporcionado em todas as suas
partes”. O estilo deveria ser puro, claro, escrito em língua
portuguesa, não como anais, a não ser no que se refere à di-
visão por matérias, com narração sem interrupção e disposta
cronologicamente. A cronologia e a geografia foram conside-
radas os dois “olhos” da história. Dentre os assuntos que ela
trata, não poderiam faltar, claro, as guerras e descobrimentos,
temas contemplados pelos “fragmentos históricos” de Brito.
Os esforços dos acadêmicos foram mobilizados não ape-
nas para a escrita da(s) história(s), mas também para a reu-
nião de documentos nos quais os acadêmicos pudessem reco-
lher informes históricos. Essa busca, de acordo com Manoel
Telles da Silva, era dificultosa, talvez pela escassez de homens
capazes de efetuá-la. A(s) história(s) incluía(m) vários subgê-
neros, tais como as hagiografias, as genealogias, as crônicas,
as notícias, as relações, dentre outros. A “verdade” da história
mantinha laços estreitos com a virtude do homem português,
ou seja, a produção historiográfica estava atrelada a um tipo
característico de serviço prestado à Coroa. Uma das censuras
da obra de Telles da Silva (1727), realizada pelo Marquês de
Abrantes, propõe um enunciado que chamou nossa atenção:

Se qualquer História é testemunha do tempo, luz da


verdade, vida da memória, mestra da vida, e mensa-
geira da antiguidade, que será da História de Portu-
gal? Será testemunha do merecimento, luz da erudi-
ção, vida do entendimento, mestra da heroicidade,
mensageira da glória imortal?

Após fazer essa pergunta, o censor afirma que a mera


transposição de epítetos não seria o suficiente para explicar

57
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

seu parecer. O autor retoma a tópica ciceroniana da historia


magistra vitae e a propõe com novo formato, dessa vez ma-
tizando as prioridades da própria academia. No entanto, o
novo formato não refuta ou contraria o antigo: alude-se ao
mérito dos portugueses, à erudição e entendimento daqueles
que escrevem história, à heroicidade das ações e à fama decor-
rente delas. Faz-se, portanto, um exercício de particularização
da tópica em conformidade com os protocolos da academia,
que continua com o objetivo de propor a exemplaridade da
história portuguesa em suas dimensões eclesiástica e secular.
O texto em questão trata do que o censor chama de sucessos
e ações da “República das Letras”, o que justifica muitos dos
epítetos empregados. Aliás, o censor faz um deslocamento
muito interessante, para afirmar que a história então narrada
não perde em nada perante as histórias antigas, muitas vezes
conseguindo superá-la no que se refere não apenas aos exem-
plos elencados, mas também à escrita empregada.
As informações sobre os autores das relações de naufrágio,
no geral, são escassas, mas alguns deles gozam de fama, mui-
tas vezes em razão de outros escritos que lhes foram atribuí-
dos: é o caso de Diogo de Couto, por exemplo, que continuou a
escrita das Décadas da Ásia após a morte de João de Barros. João
Batista Lavanha, por sua vez, foi cosmógrafo-mor de Portugal
e, além de tratados sobre a arte da navegação, escreveu genea-
logias de reis. Manuel de Mesquita Perestrelo, que chegou a
ser capitão da fortaleza de Maluco por três anos, deixou-nos,
em 1576, um roteiro de viagem que orienta a viagem no trecho
situado entre o Cabo da Boa Esperança e o Cabo das Correntes
(Moniz, 2001, p. 16-21). Sobre outros narradores (caso de Hen-
rique Dias, Manuel Rangel, Gaspar Afonso, Melchior Estácio
do Amaral e Manuel Godinho Cardoso) pouco se sabe.
Dos doze relatos, quatro (III, VI, VIII e XI) focalizam a via-
gem de ida e sete (I, II, IV, V, IX, X, XII) apresentam-nos a tor-
na-viagem. O relato de número VII ocupa-se somente de uma
parcela do retorno (Brasil-Portugal). A extensão das narrati-
vas varia: o quarto relato, sendo o menor, soma 33 páginas. O

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

sexto conta com um total de 128 páginas. Dois dos relatos (I,
VII) apresentam um prólogo, e apenas um (XII) exibe uma de-
dicatória. Três deles (VI, X, XI), embora destituídos de prólo-
go, delimitam bem o exórdio, com informações introdutórias.
Em termos de invenção, disposição e elocução, os relatos
apresentam algumas características em comum: a adoção da
narrativa in ordo naturalis, a moderação dos encômios, a opção
por uma narrativa clara e verossímil, a valorização do sentido
da visão em detrimento da audição, o uso de digressões, exem-
plos, descrições e amplificações, a recorrência a um gênero hu-
milde ou tênue, a retratação de uma história de caráter provi-
dencialista, o domínio de termos náuticos, latinos, astrológicos,
a emulação de auctores consagrados pela tradição retórico-poé-
tica. No que se refere à disposição, Giulia Lanciani (1979) sugere
o seguinte arranjo: (1) antecedentes-partida, (2) tempestade, (3)
naufrágio-arribação, (4) peregrinação e (5) retorno-salvamento.
Os relatos devem ser lidos a partir das regras discursivas
de seu tempo: quando são apreendidos como exteriores à sua
própria história (reflexo da realidade, pessimismo, oposição
ideológica à empresa descobrimentista, prenúncio do Bar-
roco, originalidade estética e/ou ressentimento psicológico),
normalmente deixa-se de lado seu estilo. O estilo, no caso,
deve ser entendido como linguagem “fortemente regrada
por prescrições de produção e de recepção” (Hansen, 2004,
p. 32). Como disse João Adolfo Hansen (2004) em seu estudo
sobre as sátiras atribuídas a Gregório de Matos, termos como
“pessimismo”, “ressentimento”, “plágio”, “imoralidade”,
“realismo”, “oposição nativista crítica”, “libertinagem” e “re-
volução” podem até apresentar “algum valor metafórico de
descrição de um efeito particular de sentido produzido pela
recepção”, mas não dão conta historicamente do seu funcio-
namento como prática discursiva de uma época. As tópicas
retóricas não devem ser lidas como empiria, pois essa leitura
desconsidera as particularidades histórico-retóricas do dis-
curso e valoriza um vivido psicológico improvável.

59
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

No que se refere às suas características genéricas, a rela-


ção de naufrágio pode ser lida como subgênero das formas
historiográficas ou desdobramento do gênero histórico, como
é o caso das crônicas, notícias, tratados, panegíricos, anais, vi-
das, histórias e diários. Todos esses gêneros (ou subgêneros)
historiográficos utilizam lugares-comuns epidíticos, tratan-
do-se de uma “prosa imitativo-emuladora” e não de trans-
posição de realidades empíricas. A narrativa de naufrágio é
trágica, ou seja, determina-se o sentido das narrativas como
histórias que começam bem e, geralmente, terminam mal. A
experiência trágica, no caso, pressupõe e reafirma a existência
de Deus, ou seja, Deus continua atuando providencialmente
no tempo mesmo quando os episódios são dramáticos. Para
melhor compreender as condições de produção dos relatos de
naufrágio, é necessário estudar as particularidades do gênero
histórico e as tópicas retóricas antigas que continuam a fazer
parte de sua narrativa ao longo dos séculos XVI-XVIII.
Nos relatos de naufrágio existem duas grandes fórmulas
em se tratando da exemplaridade da história: em uma delas,
busca-se ensinar prudência por meio do relato das viagens e
dos erros ou acertos dos homens de outrora. Na outra, pre-
tende-se preservar a memória da intervenção providencial,
única realmente capacitada a livrar os nautas dos grandes ma-
les ocorridos no decorrer da viagem. Na carta dedicatória do
relato de naufrágio da nau Conceição (1627), por exemplo, João
Carvalho Mascarenhas declara a serventia de sua narrativa,
que é fundada “sobre uma matéria de pouca estima e baixo su-
jeito, por serem sucessos acontecidos entre escravos e cativos”,
o que não deixa de ter algum espírito e curiosidade, nem deixa
de “ser exemplar em história”. Quanto aos trabalhos mencio-
nados no relato, diz ele, “não perde nada sabê-los quem não
os experimentou”. A utilidade da matéria tratada fica ainda
mais evidente no trecho seguinte: “Não se isentando ninguém
por mais próspero que seja, de cuidar que lhe pode acontecer
o que tem acontecido a tantos, e o que tem notícia de coisas
semelhantes já sabe se há-de haver nelas” (Peres, 1937, p. 25).

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Padre Júlio Francisco, responsável pela licença do Ordiná-


rio que se encontra no primeiro tomo da coletânea, afirma que
Bernardo Gomes de Brito trata dos “lastimosos” e “infelices”
sucessos das naus da Carreira, reunidas em um livro cuja lição,
suave e agradável, não desagrada em nada os bons costumes
da Santa Fé. Ele é utilíssimo “para que os que houverem de na-
vegar, desenganados dos muitos e gravíssimos perigos de vida
a que se expõem, concebam um santo temor da morte”, e para

os que ficarem em terra compadecendo-se dos nave-


gantes os ajudem com fervorosas orações a escapar
de tamanhos perigos: e todos nas calamidades de su-
cessos tão lamentáveis aprendam a miséria e incons-
tância deste mundo.

Na licença do Paço, de agosto de 1729, Frei Lucas de Santa


Catharina é brevíssimo ao mencionar a dignidade do trabalho
do compilador, “útil aos cultivadores da Historia”. Frei Ma-
noel de Sá, na licença do Santo Ofício, afirma tratar-se de um
“teatro da História”, no qual é encenado um papel “verdadei-
ramente trágico” e exemplar (Brito, 1735).
Padre José Troyano, na licença do Santo Ofício do segundo
tomo da coletânea, insiste na necessidade de se relatar as ocor-
rências do naufrágio como paga pela salvação providencial,
citando a autoridade do Eclesiástico: “Qui navigant mare, enar-
rent pericula”. O fragmento em questão integra uma passagem
bíblica que diz o seguinte: “Os que navegam sobre o mar con-
tam os seus perigos; ouvindo-os, ficaremos arrebatados de ad-
miração” (Ec 43: 26). Só experimentando a braveza do mar e a
força da tormenta para “representar vivamente” uma tempes-
tade desfeita. O padre cita Virgílio para estabelecer uma analo-
gia entre a prática antiga de pendurar no Zambujeiro (espécie
de oliveira) os despojos do naufrágio e o livro de Brito, que
dá a conhecer os naufrágios portugueses. Como o fragmento

61
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

encontra-se em latim, segue a tradução para o português de


José Victorino Barreto Feio e de José Maria da Costa e Silva:

Sagrado, acaso, a Fauno um zambujeiro


De amargas folhas nesse campo havia,
Lenho outrora dos nautas venerado,
Que ao naufrágio escapando, vinham nele
Dons pendurar ao Nume de Laurente
E as devotadas vestes.
(Virgílio, 2004, p. 404)

Nota-se, portanto, que a serventia do livro é múltipla: é


obra que comove e incentiva o “agradecimento a Deus Senhor
Nosso” pelas misericórdias recebidas e é útil “aos que nave-
gam às partes da Índia, e continuamente cursam aquela Car-
reira, para que no perigo alheio aprendam a evitar o próprio”
(Brito, 1736). A censura do Frei José da Assumpção, Qualifica-
dor do Santo Ofício, diz que o livro deve ser apreendido como

espelho em que cada um dos que neste proceloso mar


deste mundo vivem, todos os dias se contemplem:
pois nada menos (proporcionadamente) em a terra se
encontra, do que em mar acontece: certo para a terra,
e mar he este livro útil, e proveitoso, porque dos infor-
túnios, que em hum e outro elemento se experimen-
tam, e das misericórdias de Deus, que tanto em uma
como em outra parte nos assistem, faz a expressam
que basta para todos crerem estas já mais não hão de
faltar a quem souber animosamente depreca-las: lo-
graram-na os invictos Varões dos quais esta presente
história nos faz especial menção.

O censor menciona a grandiosidade da história narrada e


dos nautas que a protagonizaram, pois “as adversidades não
puderam eximi-los do amor que à virtude tinham”. Ele cita
Lucano, que diz “Crevit in adversis virtus” (Sua coragem cres-

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

ceu com a adversidade) e um provérbio latino, “Felix, quem


faciunt aliena pericula cautum” (Feliz daquele que aprende com
os erros alheios), para conferir autoridade à seguinte assertiva:
“são ditosos para o mundo aqueles a quem os perigos alheios
fazem acautelados para em semelhantes não caírem”. Outra
utilidade do livro é a possibilidade de “aprender nele o como
se alcança de Deus a sua piedade, temendo a Divina justiça,
avisados de outros, antes que de si mesmos se valham”. Frei
José de Assumpção menciona o que disse Valerius Maximus:
“Lento gradu ad vindictam sui Divina procedit ira, tarditatemque
suplicii gravitate compensat” (A ira divina avança em passo len-
to para a vingança Sua, mas compensa com a gravidade o tar-
dio do suplício), e Provérbios, “Quem diligit Dominus corripit”,
fragmento do versículo “Porque o Senhor repreende aquele a
quem ama, assim como o pai ao filho a quem quer bem” (Pro
3: 12). Frei Xavier de Santa Tereza, responsável pela licença do
Paço, emula o relato de naufrágio narrado pelo cosmógrafo
João Baptista Lavanha ao dizer que o livro de Brito é o “me-
lhor Roteiro a todos os navegantes dos mares da Índia”, no
qual não se pode achar nada que se oponha ao espírito das
“prudentes Reais Leis” (Brito, 1736).
No exórdio no relato de naufrágio da nau Santo Alberto, o
narrador menciona como um texto pode orientar a partir da
prudência, pois o naufrágio

ensina como se devem haver os navegantes em outro que


lhes pode acontecer, de que remédios proveitosos usarão
nele e quais são os aparentes e danosos de que devem
fugir, que prevenções se farão para ser menor a perda no
mar e mais segura a peregrinação por terra, como com
menos perigo desembarcarão nela. E a causa da perdição
desta nau (que é o quase de todas as que se perdem), a
relação do caminho mostra qual devem seguir e deixar,
que apercebimentos farão para a sua grandeza e dificul-
dade, como tratarão e comunicarão com os cafres, com

63
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

que meios farão com eles o necessário comércio, e sua


bárbara natureza e costumes. (Brito, 1998, p. 375)

Na sequência, ele complementa:

E para que de cousas tão importantes e novas se tenha


o necessário conhecimento, escrevo este breve tratado,
resumindo nele um largo cartapácio que desta viagem
fez o piloto da dita nau, o qual emendei e verifiquei
com a informação que depois me deu Nuno Velho Pe-
reira, capitão-mor que foi dos portugueses nesta jorna-
da. (Brito, 1998, p. 375)

O “cartapácio” é um livro de mão, em que se escrevem


várias matérias. Por outras palavras, o narrador entra em
contato com as anotações do piloto, que confere e emenda
com a ajuda de Nuno Velho Pereira, capitão de Sofala (Mo-
çambique), que esteve nesta jornada. A posição do narrador,
na situação de “cosmógrafo-mor”, justifica a introdução e os
apontamentos sobre a utilidade dos relatos de naufrágio.
O mesmo pode ser dito sobre a conclusão do tratado das ba-
talhas que fecha a coletânea de Brito, que lega lição aos pósteros:

O verdadeiro partir de Lisboa há-de ser antes que o Sol


passe a Equinocial; bem de experiência há disso; e por-
que isto se não previne a tempo, arribam tantas naus,
como arribaram no ano de 1601, que de nove que par-
tiram arribaram cinco; e também se arriscam a muito
as naus que não partem da Índia dentro em dezembro,
para passarem o cabo de Boa Esperança no verão da-
quele polo em que então está o Sol. E finalmente, a feli-
cidade desta carreira, mediante Deus, está em as naus
não serem feitas de madeira verde, senão muito seca e
colhida na lua velha de janeiro, no último da minguan-
te e na minguante de dia, porque é verdadeira sezão
de ser cortada (como as uvas vindimadas em setem-

64
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

bro); tem então a madeira madurez, tem menos humor,


é leve, seca mais depressa, dura mais, e não revê nem
empena; e não só as naus de tal madeira serão mais
leves e mais duráveis, mas mais fortes e estanques, por-
que a pregadura nesta madeira colhida de vez, é fixa,
e fixo o calafetado. Consiste em serem as naus varadas
a monte, para que se enxuguem e não se conservem
úmidas; e bom é o conserto não ser de empreitada, nem
cortando, porque tudo se fará à provisão que nisto de-
sarma, e não convém. E as naus a que não for neces-
sário conserto é muito importante, em descarregando,
serem mui bem lavadas por dentro e muito bem esgo-
tadas, passado o lastro acima para isso, porque o lodo e
as águas chocas que trazem lhes apodrecem as quilhas
e picas. Consiste, finalmente, em partirem em março
de Lisboa antes do equinócio e da Índia dentro em de-
zembro e com carga ordinária, e não sobrecarregada;
e todas estas cousas são factíveis, e podendo-se fazer,
podia ser que não houvesse tantas perdas, que mago-
am até as pedras. (Brito, 1998, p. 542-543)

Há um sentido providencial que orienta a história, nesse


caso. Basta retomar a licença do padre José de Assunção, qua-
lificador do Santo Ofício, quando diz que se aprende, com as
relações, “como se alcança de Deus a sua piedade, temendo
a Divina justiça, avisados de outros, antes que de si mesmos
se valham”. Ou seja, aprende-se a navegar, mas também a te-
mer a justiça divina e os meios de se alcançar sua piedade. Na
sequência, ele diz que os castigos de Deus, “ensaios da sua
ira”, são também “prendas do seu amor”, e é nesse momen-
to que a ideia de “pessimismo” ou de “decadência” se torna
ineficaz. Não que a opinião de um censor venha a dirigir a
leitura de todos os relatos, mas essa é uma tópica presente em
Tomás de Aquino, que as retira da Bíblia para representar a
justiça insondável de Deus, que nem sempre é inteligível para
os homens. Deus testa o homem, como fica claro em algumas
passagens do livro sagrado, e pune com a intenção de fazê-

65
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

-los aliviar o peso dos pecados e, assim, alcançar a salvação.


É por isso mesmo que o leitor atual considera inverossímil a
atitude de Jorge de Albuquerque, que se mantêm firme na fé
mesmo frente aos mais terríveis infortúnios. A leitura do livro
de Jó, por exemplo, ajuda-nos a compreender como as obras
divinas, mesmo quando inconsistentes frente ao que espera o
homem, têm um sentido justo, salvífico.
No prefácio do relato de naufrágio da nau Conceição (1627),
João Carvalho Mascarenhas evidencia que pretende “contar
verdades”. Para tanto, afirma ter sido “testemunha de vista”
e abre mão de “adorno de palavras” e de “linguagem florea-
da”, que causam mais confusão que gosto. Além disso, afirma
que sua história atende aos critérios da clareza e brevidade,
atentando para as recomendações do decoro. Na sequência,
ele frisa mais uma vez o gosto decorrente da narrativa: “e
posto que o contentamento de contar trabalhos passados me
pode ficar por prêmio, o ser bem aceita o terei por tão gran-
de, quanto é o gosto com que a ofereço” (Peres, 1937, p. 28).
O narrador se aproxima da história pragmática de Tucídides,
Políbio e Gandavo, na medida em que dispensa o adorno e a
linguagem floreada e utiliza as tópicas da clareza e brevida-
de. Vimos, no início desse tópico, que este procedimento es-
tava previsto na Retórica a Herênio, sobretudo em se tratando
de obras fundamentadas na verdade. João Carvalho Masca-
renhas aproxima-se dos historiadores gregos da Antiguidade
mais uma vez quando afirma ter sido “testemunha de vista”
e quando informa sua posição política e militar, já que serviu/
militou na Índia em atenção aos ditames da Coroa. A superio-
ridade da visão é central para assegurar a verdade, como ocor-
re em Tucídides, por exemplo, que prioriza o sentido da visão
em detrimento da audição por julgar a memória muito frágil.
A mesma distinção é efetuada também por Políbio,
quando diz:

nós temos, por natureza, como que dois instrumentos


com os quais tudo aprendemos e investigamos, a audi-

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

ção e a vista, sendo muito mais verdadeira a vista, con-


forme Heráclito, pois os olhos são testemunhas mais
exatas que os ouvidos. (apud Hartog, 2001, p. 121)

Políbio utiliza esse argumento para censurar a abordagem


de Timeu, personagem de Platão, que prioriza a forma mais fácil
e menos fidedigna de narrativa, baseada no que se ouviu dizer.
O exórdio do relato de naufrágio da nau São Francisco le-
vanta elementos que, igualmente, reforçam a imprescindibi-
lidade da utilidade e do deleite. Ao fazer uso da tópica da
amizade, indicando que o relato foi escrito a pedido de outro
a quem devia obediência, o padre Gaspar Afonso efetua a cap-
tatio benevolentiae, ou seja, seu relato é produto mais da obri-
gação para com um superior do que necessariamente fruto
da vontade pessoal. Após mencionar o gosto que a narrativa
de infortúnios causava em seus pares, o narrador amplifica
sua “larga e trabalhosa peregrinação” ao afirmar que conhe-
ceu mais lugares do que Ulisses em sua empresa épica. Se
lembrarmos da opinião de Políbio segundo a qual o herói ho-
mérico representa convenientemente a função do historiador
ideal justamente por ter conhecido muitos lugares e passa-
do por muitos trabalhos, é possível entender o teor valorati-
vo dessa analogia. Na sequência, o narrador adverte sobre a
brevidade do seu escrito, lugar comum que, como veremos,
se faz presente na grande maioria dos relatos de naufrágio.
Para justificar seu empreendimento, ele destaca que escreveu
com “dobrado interesse”. Quando fala do seu interesse, ele
invoca dois auctores: Sêneca, que diz ser coisa natural folgar
cada um com o fim de seus males (Gandavo também utiliza o
termo folgar em sua dedicatória), e Macróbio, ao referir-se à
transmissão, por parte de pessoas que experimentaram gran-
des perigos e deles escaparam, de uma memória por meio da
palavra comunicada como pintura, de forma a “pôr diante
dos olhos alheios” o ocorrido. Nota-se que a vivacidade do
relato é tida como critério de verossimilhança, como meio de

67
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

transmissão de uma “pintura” por intermédio de palavras.


Trata-se do ut pictura poesis horaciano, que assegura a equiva-
lência entre os ofícios de poetas e pintores.
Quando o padre Gaspar Afonso fala da outra parte inte-
ressada, isto é, do leitor, ele requisita, desta vez implicitamen-
te, a autoridade de Sêneca ao referir-se a um episódio do seu
Hércules furioso envolvendo Anfitrião e Teseu:

Anfitrião. Deus, que tem o poder, favoreça o meu de-


sejo e assista minhas fraquezas. Ó magnânimo compa-
nheiro de meu grande filho, revela o elenco de suas vir-
tudes: quão longo é o caminho que conduz aos tristes
manes; como suportou duros grilhões o cão do Tártaro.
Teseu. Tu me obrigas a recordar ações horrendas mes-
mo para uma mente tranquila. A custo, ainda, há certe-
za da aura vital; turva-se a luz de meus olhos e minha
vista enfraquecida apenas suporta o desabituado dia.
Anfitrião. Vence, Teseu, por completo, tudo o que de
pavor resta no fundo de teu peito e não prives do me-
lhor fruto de teus trabalhos: o que foi duro de suportar
é doce de se lembrar. Conta as horrendas desventuras.
(Marchiori, 2008, p. 75-76)

O leitor do relato, no papel de Anfitrião, estaria pedindo


ao narrador, que ocupa posição análoga à de Teseu, “que o não
privasse do doce fruto” de seus trabalhos, “os quais quanto
mais duros foram de sofrer tanto mais docemente lembram”
(Brito, 1998, p. 427). O sofrimento, portanto, não impede a ob-
tenção de deleite, muito pelo contrário, o amplifica.
Também é esclarecedor o prefácio do relato de naufrágio da
nau Santo Antônio, capitaneada por Jorge de Albuquerque Coe-
lho, em que autor recorre à tópica tucidideana do ktema es aiei
(aquisição para sempre) em seu “breve sumário”. Alude-se, no
caso, a Hipócrates, mas para mencionar um procedimento que
também é o de Tucídides, isto é, o de insistir que o escrito deve
ter serventia, utilidade. Convém mencionar, mais uma vez, o

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

relato de Tucídides sobre a peste de Atenas, que apresenta uma


função similar à das tábuas de Hipócrates citadas por Estrabão.
O narrador faz referência à brevidade do relato e simula
modéstia ao dizer que depende da benignidade do leitor. Em
seguida, ele diz que seu escrito tem as mesmas razões de ser
que as tábuas de Hipócrates: primeiro, a função de notificar e,
portanto, de ser útil; a segunda, de legar aos pósteros remédio,
possível com base em “lágrimas, contrição e arrependimento”.
O uso da tópica do remédio, muito comum nas letras portu-
guesas dos séculos XVI, XVII e XVIII, se articula, neste caso, à
metáfora aristotélico-escolástica do corpo político. No caso, a
saúde de Portugal depende do bem comum, da concórdia en-
tre seus membros. Logo, a história propicia remédio para com-
bater as doenças do reino, sejam elas físicas, morais, políticas.
Na sequência, o narrador vale-se de uma informação cor-
relata àquela do relato de naufrágio da nau São Francisco, pos-
sivelmente inspirada em Sêneca: “ainda que nossa natureza é
sujeita aos trabalhos, todavia não agasalha bem a lembrança
deles”. A ideia é reforçada na sequência: “e quem diz que a
lembrança dos trabalhos passados dá gosto, não se viu nunca
nestes nem em outros semelhantes”, pois “o gosto que se re-
cebe da memória deles nasce do descanso em que se vê quem
os passou e não do lembrar-se de ver tão particularmente a
morte no olho, como dizem”. Lisa Voigt (2008, p. 208) nota
que esse prefácio apresenta algumas diferenças em relação ao
texto original. Na primeira edição, afirma-se:

assim como a memoria dos dias alegres, & felices, con-


forme a openião de alguns Philosophos, causa tristeza,
& dór em outros estados diferentes, assim a memoria
dos males, & dos trabalhos, fora delles, causa deleyta-
ção, & contentamento.

69
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

É possível que, dentre os filósofos que menciona, encon-


trem-se Aristóteles1 e Cícero.2
Faz-se referência, por fim, a Virgílio, grande poeta que
“pôs muito receio de contar os trabalhos passados, dizendo
que lhe fugia o entendimento da lembrança deles”. Assim, o
narrador alega que seu escrito veio à luz por duas razões: por-
que, de outra forma, teria sido ingratidão não contar as gran-
des mercês recebidas de Deus, e por não haver outra pessoa
disposta a fazê-lo (argumento similar é utilizado por Ganda-
vo em sua História). Com modéstia afetada, o narrador afirma
que contou com o apoio de Jorge de Albuquerque, principal
da nau, que recordou coisas que o escritor havia se esquecido,
o que não impediu a brevidade da narrativa. Como é de pra-
xe, a modéstia é requerida no desfecho do prefácio: “Pelo que
peço não olhem às palavras, que são as que são, mas o intento,
que é ser o Senhor louvado para sempre”.
Custódio (1992, p. 127) afirma que o heroísmo de Jorge de
Albuquerque é fruto dessa suposta intervenção da personagem
na escrita do texto. No caso, não negamos a possibilidade de ha-
ver uma tentativa de adular o protagonista, prática comum nes-
se momento como forma de obtenção de prestígio. No entanto,
o autor toma como “reais” duas tópicas discursivas igualmente

1. Inicialmente, Aristóteles (2011, p. 94) retomou a seguinte passagem


da Odisseia: “O homem, muito depois, experimenta o prazer mesmo
ao preço/ De recordar os sofrimentos, se houver muito suportado
e mourejado”. Na sequência, ele afirma que o “prazerosamente
memorável não é apenas o que, quando efetivamente presente, era
prazeroso, mas também algumas coisas que não eram, desde que seus
resultados posteriormente revelaram-se nobres e bons”. É prazeroso,
diz ele, “o simples estar livre do mal”.
2. Cícero (apud Voigt, 2008, p. 208) afirma: “nada, com efeito, é mais
conveniente ao deleite do leitor que a variedade das circunstâncias e
as vicissitudes da Fortuna. Ainda que, quando experimentadas, não
tenham sido desejáveis, serão todavia agradáveis de se ler: a recordação
livre da dor passada tem efetivamente seu prazer; com certeza, para os
que não passaram por nenhum dissabor e contemplam os males alheios
sem nenhuma dor, a própria piedade é agradável”.

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

recorrentes: o lugar da modéstia, perceptível no momento em


que o autor discorre sobre as limitações de sua memória, que foi
emendada pela intervenção do herói que os liderara, e o lugar
da amizade, a partir do qual o dedicatário toma para si o lugar
de amigo do presenteado, o que supõe a fidedignidade do rela-
to justamente pela confiança que deveria existir entre eles.
No relato de naufrágio da nau São Paulo, Henrique Dias,
com modéstia, afirma optar pela escrita concisa e verdadeira.
A grandiosidade da verdade, no caso, deveria compensar as
faltas de Henrique Dias, no que se refere ao seu “humilde”
engenho. Além disso, ele afirma que o agrado decorrente das
narrativas breves é preferível ao fastio causado pela prolixi-
dade. Assim, Dias refere-se àquilo que não fará parte de sua
narrativa por não ser matéria de seu entendimento, como
dados técnicos relativos ao caminho trilhado pela nau, que
é assunto dos “homens do mar”. Para ilustrar seu posiciona-
mento, ele retoma, provavelmente via Plínio, o Velho, e sua
História Natural, a anedota de Apeles e o sapateiro. Conforme
essa anedota, um sapateiro sugeriu ao pintor Apeles uma mu-
dança na maneira como retratou a sandália, orientação que o
pintor atendeu prontamente. No entanto, o sapateiro, entu-
siasmado, resolveu fazer outra crítica, dessa vez referente ao
rosto da gravura, ao que Apeles teria respondido: “Ne supra
crepidam sutor judicaret”, ou seja, um sapateiro não deve julgar
algo para além de seu ofício. Embora a frase presente no rela-
to seja outra, “que o sapateiro com o sapato e o barqueiro com
a barca”, o sentido é o mesmo: cada um deve ocupar-se com
aquilo que lhe diz respeito. No final, o narrador refere-se à
sua “história” e pede pela benevolência do leitor “mais enten-
dido”, isto é, discreto, para que, na ocasião de possíveis erros,
os recepcione com “bom ânimo e vontade, deitando tudo à
melhor parte” (Brito, 1998, p. 195-196).
Por último, gostaríamos de retomar um prefácio que não
se encontra presente na coletânea de Brito, mas que, original-
mente, encontrava-se agregado ao relato de naufrágio da nau

71
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

São Bento. Não se pode dizer, ao certo, o motivo da sua exclu-


são. Segue o prefácio:

Acha-se posto em memória por alguns escritores an-


tigos, que sabendo os moradores de Corinto Cidade
situada na garganta do Peloponeso, agora chamado
Morea, como El-Rei Filipe de Macedônia abalava com
grande poder de gente para os senhorear; e determina-
do eles em morrer antes pelejando que perder sua an-
tiga liberdade, para que melhor lhe pudessem resistir
se começaram de aperceber das cousas necessárias à
sua defesa. Pelo que uns recolhiam água e mantimen-
tos, outros reparavam os muros e torres, outros alim-
pavam e faziam prestes as armas, de maneira que cada
um por si e todos juntamente se ocupavam em fazer
alguma coisa em proveito da república: e como nestes
dias estivesse dentro da Cidade o Cínico Diógenes, a
quem a atenção de sua ciência libertava dos trabalhos
dos outros, vendo que a revolta do tempo o fazia estar
desocupado, por não haver quem então acudisse aos
estudos, tomou uma pipa [vaso grande de barro] em
que fazia sua habitação, e começou tombá-la de uma
parte para a outra: E sendo perguntado por que fazia
aquilo respondeu. Bulo com esta pipa, para que entre
tantos ocupados, eu só não seja visto estar ocioso. E
assim eu a exemplo de Diógenes vendo como os mais
dos que escaparam desta jornada se ocupam em es-
crever os trabalhos dela, posto que conheço de mim
que não irei mais ao propósito no pouco que posso di-
zer a respeito do muito que há para contar, porque só
não seja tachado de ocioso, quis ser companheiro nisto
como o fui nas outras coisas. E juntamente para que
se houver alguém que pesaroso de ver em tão poucos
dias gastada do esquecimento uma dor tão geral, e
acontecimento tão raro, queira levantá-lo deste abismo
eterno e perpetua-lo a pesar do tempo na memória dos
vindouros (empresa certo assaz devida a tão lastimoso

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

caso) ache neste trabalho de minha pena a verdadeira


informação dele. (cf. Moniz, 2001, p. 34)

A anedota de Diógenes pode ser encontrada também no


exórdio de Como se deve escrever a história (Luciano de Samósa-
ta, 2009, p. 35). Angélica Madeira (2005, p. 53) afirma que essa
anedota apresenta nenhuma relação com o naufrágio, funcio-
nando como “índice da cultura do narrador, recurso retórico,
exemplo de erudição, já que não há comparação entre ela e os
motivos que o levaram a iniciar esta tarefa a que se obriga”. De
fato, é um recurso retórico que, como se viu, encontra-se em
Luciano de Samósata. Difícil, no caso, é supor que não há rela-
ção entre o prólogo de Como se deve escrever a história e o relato
de naufrágio. Neste, é possível discernir a modéstia afetada do
narrador e argumentos que buscam assegurar a veracidade da
narrativa. A negação do ócio em detrimento da ação é outro
procedimento que o prefácio propõe, quando salienta a utili-
dade decorrente da escrita e o propósito de registrar a memó-
ria de um “acontecimento tão raro”. Todos estes argumentos,
juntos, efetuam a captatio benevolentiae. Com a historieta, no
caso, o narrador do relato de naufrágio evidencia a emulação
e estabelece uma analogia entre a atitude de Diógenes e a sua,
servindo inteiramente ao propósito de seu relato, que é legar
remédio aos pósteros, seja o remédio humano originado do
labor, seja o remédio divino, única razão de o narrador estar
vivo para registrar, por escrito, Sua misericórdia.
Na censura do Ordinário, de Júlio Francisco, encontra-se
presente a tópica horaciana que associa utilidade e deleite, no
momento em que ele diz que a “lição” que propõe a História
Trágico-Marítima é “suave” e “agradável”, o que fez com que a
lesse num curto espaço de tempo. Além disso, o censor adverte
que a narrativa é útil em diferentes aspectos: para os que forem
navegar, pois propõe o desengano em relação aos perigos que
existem no mar, para ensinar a importância do “temos da mor-
te”, para orientar aqueles que ficam em terra e que devem re-
zar pelos seus, e para evidenciar a “miséria e inconstância deste

73
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

mundo”. A tópica da inconstância do mundo, como se pode


ver, ao propor a contingência e suas dinâmicas, faz ver que a
“máquina do mundo” não é inteiramente previsível. A ques-
tão a se fazer é: como seria possível que estas lições, que foram
formuladas à custa de tantas vidas, pudessem deleitar? Como
a lição poderia ser “agradável”? Alguns autores entendem que
havia, nestas circunstâncias, um “gosto pelo trágico”, sintomá-
tico de um momento caracterizado pela emergência do Barroco.
Gostaríamos, no entanto, de investigar como a tradição (retórica
e poética) trata a relação entre a experiência trágica e o deleite.
Josiah Blackmore afirma que a dedicatória que Bernar-
do Gomes de Brito dirigiu ao rei D. João V e as licenças que
acompanham os dois volumes da HTM atenuaram ou mesmo
eliminaram o terror que caracterizava as narrativas de nau-
frágio, para somá-las à memória coletiva/oficial. A coletânea,
no caso, estaria reunindo e “domesticando” vozes dispersas e
dissonantes, integrando os relatos (trágicos) ao cânone histo-
riográfico e confirmando o passado heroico de Portugal. An-
tes de indagar sobre esta neutralização de um potencial nega-
tivo, é preciso investigar se ele de fato existia nestas narrativas
de naufrágio. Por outras palavras, não há dúvidas de que es-
tas relações se ocupam de episódios trágicos da história por-
tuguesa, mas não parece que Brito ou os censores precisassem
atenuá-los, pois sua matéria não nos parece “marginal” ou
“disfórica” em relação ao projeto imperial. Blackmore (2002)
apresenta uma tese interessante: a de que não há uma contra-
dição entre o projeto imperial e a experiência do naufrágio.
Ele chega a dizer que Camões concebe esta experiência trá-
gica no próprio tecido imperial, como algo que não pode ser
dissociado dele. A tese é profícua, mas parece-nos problemá-
tico conceber uma ambiguidade nesta associação, ou seja, de
fato não parece haver uma contradição, mas também não está
claro se há um potencial negativo que precisasse ser atenuado
para que estas narrativas integrassem a história portuguesa.
No prólogo da segunda edição da relação de naufrágio da
nau Santo Antônio, publicada em 1601, Antonio Ribeiro refere

74
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

um conjunto de tópicas que já mencionamos em outras oca-


siões: a da obrigação para com o dedicatário, o deleite prove-
niente de matéria trágica após sua ocorrência, a exemplaridade
das ações e, claro, a modéstia afetada, que exige benevolência
por parte do leitor discreto, em razão da precariedade do es-
crito que lhe é dado a ler. Além disso, Antonio Ribeiro (1601)
traça um breve retrato do dedicatário Jorge de Albuquerque,
detentor de engenho, urbanidade e liberalidade. Estes atribu-
tos foram mencionados após a descrição de situações das quais
participou o herói, como a luta contra o índio em Pernambuco
e a guerra contra o gentio no norte de África, na qual Jorge
de Albuquerque supostamente cedeu seu cavalo ao rei para
salvar-lhe a vida. Fica evidente, portanto, a tópica das letras e
armas e o tom encomiástico deste discurso preambular. Vale
lembrar que, após estes dizeres, há um soneto em que o herói
é comparado a antigos heróis, superando a todos.
Amaral segue de muito perto os passos de Antonio Ribei-
ro, como se pode ver na dedicatória a d. Teodósio e no capítulo
introdutório. De todas as relações de naufrágio, esta talvez seja
a que melhor define o gênero: assinala o valor do testemunho,
reforça a importância da experiência, indica que sua matéria
supera a dos filósofos, matemáticos e cosmógrafos, que mui-
tas vezes escreviam sobre o assunto sem tê-los vivenciado,
reformula a tópica do deleite decorrente das ações trágicas,
dizendo que o afeto resultante delas é a compaixão, amplifica
a importância das relações que colige em detrimento de todas
as outras, vale-se da modéstia afetada, menciona o teor instru-
tivo decorrente do seu tratado e chama a atenção do leitor para
a inconstância (ou desconcerto) do mundo, que exige prudên-
cia e, portanto, advertências provenientes da história.
Aqueles que dizem que o mar das tragédias marítimas fi-
gura metonimicamente as penas do Inferno se esquecem de
que as histórias trágico-marítimas não são meras transposi-
ções de fatos, como fica evidente em seus discursos pream-
bulares. Os autores que afirmam que o relato de naufrágio
representa o lado mais “realista” da empresa ultramarina se

75
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

esquecem de que a “verdade” histórica, neste caso, é escrita a


partir de um elenco de lugares comuns que buscam assegurar
este efeito de verdade, que é modelado retoricamente e, por-
tanto, não conhece o realismo e subjetivismo românticos que
surgem com a(s) literatura(s) do século XIX. Aqueles que to-
mam o naufrágio como metonímia de uma decadência portu-
guesa não se recordam de que incidentes marítimos abundam
em histórias e epopeias desde a Antiguidade, e que a fragilida-
de humana foi representada já nas mitologias greco-romanas,
não sendo atributo particular do que reconhecem como sendo
o “Barroco”. Por fim, aquele que lê o relato de naufrágio como
sendo o reverso da dimensão positiva da epopeia se esquece
de que epopeia não é apenas luz, e que história não é somen-
te penumbra. Para letrados católicos que creram em Deus e,
portanto, na orientação providencialista da história, seria im-
possível apreender um mundo no qual só existissem labores e
penúrias. Por isso mesmo, é difícil falar de “pessimismo” ou
de “decadência”, pois há uma retórica prudencial que une os
mais diversos gêneros em um mesmo projeto salvífico.

76
III

A EXPERIÊNCIA TRÁGICA
Por intermédio das musas, Homero canta a gesta de gran-
des heróis, inventando tipos como Aquiles e Ulisses, mas ver-
sa também sobre a fragilidade humana. A preservação do fei-
to ilustre só seria possível por intermédio do canto inspirado,
que anuncia a memória e celebra o kléos, a fama imorredoura.
Na proposição/invocação da Ilíada, depois de pedir o auxílio
da Musa, o aedo introduz o embate entre Aquiles, filho de Pe-
leu, e Agamêmnon, “rei dos homens”, que “aos Aqueus tan-
tas penas / trouxe, e incontáveis almas arrojou ao Hades / de
valentes, de heróis, espólio para cães, / pasto de aves rapaces”
(Homero, 2003, p. 31). Algo parecido ocorre nas liminares da
Odisseia, quando Homero menciona as dores que Ulisses pa-
deceu em seu retorno, “empenhado em salvar a vida e garan-
tir o regresso dos companheiros” (Homero, 2010, p. 13).
Francisco Murari Pires (2006, p. 162) nota uma “contrapo-
sição agonística” entre a Ilíada e a Odisseia: a primeira epopeia
discorre sobre um herói jovem que parte de casa para a guer-
ra, conquistando fama imorredoura em contrapartida à perda
do regresso (nóstos); a segunda canta um herói maduro que
da guerra retorna ao lar. A Ilíada aborda o antes, quando Troia
estava intacta e Aquiles com vida. Na Odisseia, presenciamos
o depois, a memória e a lembrança do luto e dos sofrimentos
passados. A Odisseia é, para Aristóteles, uma fábula complexa
porque lida com a memória e, em consequência, não poderia
fugir às peripécias ocorridas no decorrer dos 20 anos do itine-
rário de Ulisses. O contraste se pronuncia: “enquanto aquela
aponta o princípio da história do heroico, esta aponta o fim”.
Firma-se, portanto, a “axiologia épica”.
Em uma passagem presente no capítulo final da Ilíada,
Aquiles convida o rei troiano a cessar o pranto e a serenar a dor
do coração, já que um destino comum assola todos os homens:

77
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Assim os deuses urdem o fadário dos infaustos mor-


tais: um viver agoniado, sendo os numes incólumes;
pois há dois cântaros nos umbrais de Zeus, cheios de
dons que ele nos dá, um de ruins, de bons o outro.
Mescla-os Zeus fulmíneo e os versa: ora o mal, ora
o bem, deparará quem os receba; quando maldosos
opróbrios apenas colha, malsinado vagará pela terra
divina, famélico, menosprezado por mortais e deuses.
(Homero, 2003, p. 471)

Do épos homérico à história herodoteana, a mudança é sutil:


se a axiologia épica canta feitos que transitam pelas obras divi-
nas ou pelas sagas heroicas, a axiologia em Heródoto se ocupa
da memorização das realizações humanas. Ele renuncia às cer-
tezas do aedo para aproximar-se de um conhecimento verdadei-
ro, assumindo a tarefa de retardar o esquecimento dos grandes
feitos dos homens. Assim como o aedo, ele busca “domesticar a
morte, socializando-a” (Pires, 2006; Hartog, 2003; Dosse, 2012).
Tucídides, ao tratar da guerra entre atenienses e peloponé-
sios, pontua um rol de sofrimentos e infortúnios que caracte-
riza este episódio insigne, e também assegura a superioridade
desta guerra em relação aos conflitos anteriores. A guerra do
Peloponeso, que “acarretou para a Grécia, no seu decorrer, so-
frimentos como não houve outros”, proporcionou a captura
e despovoamento de cidades, exílios e assassinatos. Um con-
junto de outras ocorrências “coincidiu com esta guerra”, como
terremotos, eclipses solares, grandes secas e uma epidemia da
peste (cf. Hartog, 2001, p. 81-83). Sendo assim, os proêmios da

história nascente com Heródoto e Tucídides, reiteran-


do as convenções originalmente (im)postas pelo ‘épos’
homérico, reafirmam o princípio axiológico que deter-
mina a eleição do episódio historiado dada a sua gran-
deza trágica. (Pires, 2006, p. 179)

Entre os romanos cogitava-se que a narrativa de infor-


túnios poderia causar deleite, caso tratasse de matéria alta,
escrita com eloquência. É o caso de Cícero que, por meio de

78
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

uma carta, pede ao amigo e historiador Lucéio para escrever


e celebrar seu consulado: “nossas desventuras te fornecerão,
na escrita, uma grande variedade, cheia de um certo prazer
que pode veementemente reter os espíritos na leitura, graças
ao escritor que tu és” (cf. Hartog, 2001, p. 157). Ele continua:

Nada, com efeito, é mais conveniente ao deleite do lei-


tor que a variedade das circunstâncias e as vicissitudes
da Fortuna. Ainda que, quando experimentadas, não
tenham sido desejáveis, serão todavia agradáveis de se
ler: a recordação livre da dor passada tem efetivamen-
te seu prazer; com certeza, para os que não passaram
por nenhum dissabor e contemplam os males alheios
sem nenhuma dor, a própria piedade é agradável.

O procedimento aludido por Cícero difere dos demais ao in-


sistir no prazer decorrente das vicissitudes da Fortuna e tomar
a escrita eloquente como necessária à efetivação deste mesmo
prazer. Logo, a história encerra conflitos e dissabores, mas pro-
picia também o deleite, sobretudo por tratar de males alheios.
Tito Lívio, no prefácio de Ab Urbe Condita, diz que não
pretendia confirmar ou negar a tradição legada pelos poetas.
Ele registra uma paulatina queda dos princípios morais, dos
costumes, decadência esta que se mostra amplificada no seu
presente. “Não podemos mais suportar nem nossos vícios,
nem seus remédios”, ele diz, buscando luz em meio às som-
bras de seu tempo (cf. Hartog, 2001, p. 207).
Na posição de historiador romano não pertencente à aris-
tocracia senatorial, Tito Lívio valorizava sobremaneira os do-
mínios da retórica e, diferentemente de Heródoto e Tucídides,
que escreviam sobre ocorrências mais ou menos contemporâ-
neas, ele discorreu sobre um passado romano mais recuado.
Sem experiência político-militar, ele distancia-se de Políbio,
de Cícero e de outros que julgavam necessária a conciliação
entre a escrita da história e a atividade política. Seu inves-
timento nos exempla é recorrente, o que lhe permite diferen-

79
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

ciar um período áureo de outro consumido pela decadência


(cogita-se que o corte cronológico estipulado por Tito Lívio
seja o ano de 188 a.C.). Os exempla permitiriam não somente a
instrução dos leitores, mas também a compreensão da histó-
ria romana e o destacamento de valores morais e virtudes de
aceitação universal. De acordo com Breno Sebastiani (2007, p.
95), Lívio torna-se o

primeiro historiador a transformar em objeto de es-


tudo algo que era fruto do conhecimento indireto, se-
guindo a preceituação ciceroniana para a qual a histó-
ria era tarefa de oradores.

Tácito esclarece, no prefácio de suas Histórias, o teor de


sua narrativa: primeiramente, ele menciona, sem nomear, au-
tores que se deixaram mover pela ignorância da coisa pública,
pela vontade de bajular ou, ao contrário, pelo ódio contra os
dominantes, o que acabou “fraturando” a verdade que regis-
traram. Assim, uns se tornaram hostis, outros submissos, dei-
xando de lado a preocupação com a posteridade. A verdade,
no caso, deve ser proferida sem amor e sem ódio. Como nota
François Dosse (2012, p. 105), a “poética histórica” de Tácito
afina-se aos ensinamentos de Cícero, ou seja, acata o

respeito pela ordem cronológica, a difusão das infor-


mações geográficas necessárias, a explicação das in-
tenções dos autores, a narrativa dos acontecimentos
importantes e a busca de suas causas.

A obra de Tácito, que se ocupa do principado do “divino


Nerva” e do reinado de Trajano, é rica em desventuras, como
ele próprio admite:

Realizo uma obra rica em desventuras, atroz por seus


combates, dividida por sedições, selvagem mesmo na
própria paz: quatro príncipes assassinados a ferro; três

80
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

guerras civis, muitas guerras externas, muitas guer-


ras mistas; prosperidade no Oriente, adversidades no
Ocidente; perturbações na Ilíria, a Gália cambaleante,
a Bretanha completamente subjugada e logo perdida;
os povos dos sármatas e suevos levantados contra nós;
os dacos famosos por nossos mútuos desastres; e até as
armas dos partos postas em movimento pelo capricho
de um falso Nero. (cf. Hartog, 2001, p. 209-211)

Além disso, ele cita alguns desastres que subjugaram a Itá-


lia, como os incêndios ocorridos em Roma, que devastaram
santuários e o próprio Capitólio, a prática de adultérios, os exí-
lios, a selvageria das cidades e o levante dos servos contra seus
senhores. Após nomear todos estes infortúnios, ele pondera,
dizendo que o século “não foi tão estéril em virtudes que não
produzisse também bons exemplos”. Em seguida, ele diz:

jamais as mais atrozes desventuras do povo romano e


os indícios mais suficientes deram prova de que os deu-
ses não se encontram preocupados com nossa seguran-
ça, mas com o nosso castigo. (cf. Hartog, 2001, p. 2011)

Em outro momento, à maneira de um segundo prefácio,


Tácito alerta para a utilidade de sua narrativa, dizendo:

Nosso trabalho dispõe de espaço estreito e inglório:


com efeito, havia uma paz imóvel ou moderadamen-
te atacada, os negócios da cidade aflita e um príncipe
indiferente ao progresso do império. Entretanto, não
seria desprovido de proveito examinar essas coisas, à
primeira vista sem importância, nas quais está a ori-
gem do movimento que leva a fatos muitas vezes es-
senciais. (cf. Hartog, 2001, p. 2015)

Demarca-se um viés ruinoso, caracterizado por labores,


dissabores e reveses da fortuna. Este quadro proporciona
não somente o deleite, mas também a instrução decorrente

81
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

de lições morais. A memória, afinal, parece preferir tudo o


que foge ao corriqueiro, como lembra-nos o anônimo da Re-
tórica a Herênio (2005, p. 191).
O conceito de “trágico” está afixado no título da coletâ-
nea de Bernardo Gomes de Brito: História trágico-marítima. No
entanto, os estudiosos que dela se ocupam costumam insistir
no caráter pessimista de sua composição, que seria sintomáti-
ca de uma “crise” europeia. A alegação desta crise baseia-se,
normalmente, em muitas tópicas retóricas que mencionamos
no decorrer deste capítulo, que historiadores utilizavam por-
que a escrita da história assim o requeria. É preciso ter cautela
para não associar um lugar-comum à empiria. Entender as
narrativas como desdobramentos de uma “situação históri-
ca depressiva” acarreta vários problemas, sobretudo porque
tal procedimento não leva em consideração o caráter datado
e, portanto, histórico dos códigos linguísticos empregados.
Quando se concebe uma crise geral, textos escritos naquele
contexto acabam sendo apreendidos com um tom pessimista,
emergencial, às vezes reacionário e contestatório.
Os grandes males narrados nos relatos de naufrágio são,
na maioria das vezes, males naturais, como a tempestade que
devasta o navio e evidencia a limitação dos remédios huma-
nos. Por outro lado, estes mesmos eventos naturais podem
indicar castigo divino, para punir o orgulho e a cobiça dos
mareantes. O incidente pode ser uma oportunidade para uma
provação, em que os sobreviventes precisam demonstrar sua
fé na Providência. A ideia de que estas narrativas são pessi-
mistas é redutora, pois leva em consideração o sofrimento e
o fracasso humanos e deixa de lado a figura de Deus, que é
central na narrativa. Não podemos nos esquecer de que estas
narrativas afirmam o sentido transcendental da história, mes-
mo quando a experiência que retrata é denominada “trágica”.
De acordo com Lisa Voigt (2008), tanto os relatos de nau-
frágio quanto os de cativeiro não fogem à ideologia imperial
e católica, pois,

82
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

em vez de simplesmente mostrarem os perigos da via-


gem, incentivam a religiosidade e o comportamento
exemplar tanto dos que ficam, como dos que se lan-
çam à experiência ultramarina.

A autora menciona, posteriormente, as iniciativas de Giulia


Lanciani e Maria Alzira Seixo, que admitiram a presença da
ideologia imperial e, ao mesmo tempo, uma dimensão antié-
pica das relações, identificando nelas elementos contraditórios
e ambíguos. Voigt (2008) chega à conclusão de que estas nar-
rativas não podem ser separadas do contexto imperial, pois
não representam simplesmente uma “inversão” da ideologia
expansionista, “apesar da atração desta possibilidade para as
nossas sensibilidades pós-coloniais”. Em outras palavras, o
epíteto “antiepopeia dos Descobrimentos” tende a sugerir um
conjunto de equívocos quando associado aos relatos de naufrá-
gio, pois supõe uma reação contra a ideologia expansionista.
Numa das licenças do Santo Ofício que acompanham a
História Trágico-Marítima, Fr. Manoel de Sá menciona os “trá-
gicos sucessos” dos navios e galeões na Carreira da Índia e
a “heroicidade” dos espíritos magnânimos que enfrentaram
uma grande leva de infortúnios, como peregrinações por ter-
ras incógnitas e bárbaras, a ira dos mares, o descuido dos pilo-
tos, etc. (Brito, 1735). Fr. Francisco Xavier de S. Teresa, noutra
licença, acentua a gravidade das travessias relatadas, ampli-
ficando sua importância: fala das “viagens, que em diversos
tempos, e em diferentes mares antigamente se fizeram, nenhu-
ma semelhança tem com as que se leem neste livro, não só com
horror, mas com lástima”. Ele cita várias empresas antigas,
como as de Ulisses e Eneias, e afirma que “todas estas viagens
tão longas, tão perigosas, e por mares nunca dantes amansa-
dos, não tem, nem podem ter comparação com as que se con-
tam nestas funestas e melancólicas Relações” (Brito, 1736).
Convém recordar a contenda presente na historiografia grega
antiga, quando Heródoto realçou a grandiosidade das guerras
médicas em relação à matéria homérica, e Tucídides narrou a

83
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Guerra do Peloponeso para demonstrar como ela supera todas


que a antecederam. O censor, utilizando um argumento aná-
logo, afirma que os navegantes antigos descobriram terras e
ilhas novas, mas também conquistaram tesouros e riquezas, o
que amenizou os trabalhos passados e fez com que esqueces-
sem os grandes perigos. No caso da História Trágico-Marítima,
pelo contrário, as narrativas remetem a nautas que

deixavam os tesouros que traziam para a Pátria, ad-


quiridos, ou na guerra à custa da própria vida, ou na
paz à custa de impertinentes negociações, umas vezes
no coração vorás do Oceano, e outras nas desertas e
incultas praias da África, expostos à rapina da Bárbara
e ambiciosa Cafraria. (Brito, 1736)

Utiliza-se o critério “sofrimento” para amplificar não so-


mente as dificuldades, mas a grandiosidade das viagens por-
tuguesas. Não se trata de indícios empíricos que apontam
para uma época decadente, mas de argumentos, tópicas, figu-
ras e arrazoados que indicam ao leitor discreto as glórias que
os nautas lusitanos mereciam. Ao menos neste caso, o censor
não retrata um Portugal decadente, mas sim um Portugal que
se esforça “por mares nunca dantes navegados”. Se os traba-
lhos e dissabores da empresa ultramarina insinuam grandeza
e glória, realmente há algo de funesto nestas experiências?

Lágrimas de Portugal

Fernando Pessoa (1959, p. 58) inicia um de seus poemas


com a seguinte exclamação: “Ó mar salgado, quanto do teu sal
/ São lágrimas de Portugal!”. O poeta faz uso de uma proso-
popeia quando coloca Portugal a chorar, e de uma hipérbole,
quando dá a entender que uma boa parcela do mar correspon-
de às lágrimas que os portugueses derramaram. Estas duas fi-
guras ajudam a compreender melhor o título do poema, “Mar
português”, que indica uma relação de posse em dois senti-

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

dos: é português porque foi desbravado por iniciativa deste


Estado, e também porque é fruto de seu pranto. Resta, então,
identificar algumas das fontes que originaram estas lágrimas,
para traçar uma espécie de genealogia do “mar português”.
No entanto, convém antecipar que muitos povos antigos pran-
tearam, e muitas destas lágrimas correram pelo mar Egeu, de-
sembocaram no mar Mediterrâneo, atravessaram o estreito de
Gibraltar e chegaram, finalmente, à imensidão do Atlântico.
O Atreide Agamêmnon, contrariado com os primeiros
resultados da guerra, chorou e chegou a cogitar o retorno,
sentindo-se como que traído por Zeus, que lhe prometera a
vitória. Pátroclo pranteia copiosamente ao lado de Aquiles
que, afastado da batalha, prejudicava sobremaneira os gre-
gos. Aquiles, “pastor-de-povos”, comove-se perante as lágri-
mas do amigo e, em sua fala, vale-se de um símile que deixa
ver o estado em que se encontrava Pátroclo:

Que nem menina que corre atrás da mãe, querendo


colo, e às roupas dela se apega, e impede que cami-
nhe, enquanto ergue os olhos, chorosa, a pedir que
a carregue; choras que nem menina, meu Pátroclo.
(Homero, 2003, p. 137)

O curioso é que o próprio Aquiles, depois que Agamêm-


non toma sua cativa Briseida, chora por acreditar-se deson-
rado até receber conforto da mãe, a deusa Tétis, que “afaga-
va o filho em prantos” (Homero, 2003, p. 51). Vale recordar
que este foi um dos motivos decisivos que afastou o herói da
guerra. No entanto, Aquiles volta atrás quando fica sabendo
da queda de Pátroclo, morto pela espada de Heitor, príncipe
troiano. O herói emociona-se e protagoniza uma cena paté-
tica, na qual arranca seus cabelos e lança cinzas sobre o ros-
to, comovendo até mesmo Tétis e as Nereides. Aquiles chora
quando fica sabendo do ocorrido, no decorrer das homena-
gens fúnebres e quando se recorda do pai e do filho ainda
pequeno que deixou para trás quando decidiu integrar os

85
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

exércitos de Agamêmnon. Até em sonho ele soluça quando


Pátroclo lhe aparece e exige presteza no enterro. Nem mesmo
Hipnos, deus que proporciona e preside o sono, conseguiu
refrear seu pranto. Por fim, há o episódio no qual Aquiles é
convidado a abandonar sua ménis, sua ira, ao receber em sua
tenda o rei Príamo, pai de Heitor, que pretendia tomar de vol-
ta o corpo do filho para efetuar as honras fúnebres. Ambos,
após conversa inicial, caem em prantos: um pela morte do fi-
lho, o outro pelo amigo que morreu e pelo seu próprio pai,
deixado desamparado em sua pátria.
As lágrimas de Ulisses, Penélope e Telêmaco, por sua vez,
abasteceram o mar Jônico e suas adjacências. Penélope chora ao
longo dos anos a espera do marido, frente à possibilidade de
ter que unir-se a um dos pretendentes que ansiavam pelo trono
de Ítaca. Telêmaco, filho do casal, chora pela ausência do pai, e
parte para recolher informações sobre o seu paradeiro. Ulisses
derrama lágrimas quando contempla a possibilidade de sair da
ilha de Calipso, na qual foi feito prisioneiro por sete anos, e
chora ainda mais quando escuta o aedo Demódoco cantando a
Guerra de Troia. Vale lembrar que a Odisseia é a “epopeia do re-
torno”, do retorno “doloroso”, sendo habitada pela “ausência
e construída em torno da memória”. Quando chora perante a
“exatidão” do canto de Demódoco, Ulisses utiliza como crité-
rio sua experiência e vivencia, segundo Hartog (2003, p. 16-29),
um luto por si mesmo. No caso, as lágrimas do herói estariam
exprimindo a experiência do tempo, justamente porque lida
com a memória, diferentemente do que ocorre na Ilíada.
Todo este “mar de lágrimas” alcança, finalmente, o Mediter-
râneo, atingindo a costa africana e unindo-se ao pranto derra-
mado na antiga Cartago. Assim como Ulisses, comovido com o
canto do aedo, também Enéias chora diante das pinturas de um
templo cartaginês que rememorava a Guerra de Troia. Alguns
pesquisadores costumam distinguir na épica de Virgílio uma
faceta trágica, obscura, que configuraria o reverso da epopeia.
Quanto maior é a queda, diz-se, maior é a grandeza do feito que
dela decorre. Por outras palavras, há uma penumbra em meio à

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

luz do canto heroico, caracterizado pelo “duro aprendizado da


condição humana” (Grizoste, 2009; Carvalho, 2008).
Os poetas e narradores portugueses emularam os gregos e
romanos para cantar/narrar os episódios que arrancaram dos
portugueses as lágrimas que formaram o seu mar.
Para prosseguir, segue outro fragmento poético de Pessoa
(1959, p. 58): “Por te cruzarmos, quantas mães choraram, / Quan-
tos filhos em vão rezaram! / Quantas noivas ficaram por casar /
Para que fosses nosso, ó mar!”. Estes versos emulam a passagem
d’Os lusíadas que discorre sobre a partida de Vasco da Gama,
ocorrida a 8 de julho de 1497. Parentes, amigos, desconhecidos e
“mil religiosos diligentes” acompanharam a procissão que par-
tiu da antiga Ermida de Nossa Senhora, localizada à margem do
Rio Tejo. As mães, desamparadas, lamentavam a partida dos fi-
lhos, que as abandonavam para se tornarem alimento de peixes.
As esposas temiam a partida dos maridos por “caminho duvido-
so”, deixando de lado o amor, levado “com as velas” pelo ven-
to. Depois dos lamentos todos, o poeta utiliza uma prosopopeia
seguida de uma hipérbole para dar a ler o sofrimento dos que
ficavam: “Os montes de mais perto respondiam, / Quase mo-
vidos de alta piedade; / A branca areia as lágrimas banhavam, /
Que em multidão com elas se igualavam” (Canto IV, vv. 89-92).
Fernão Lopes de Castanheda e João de Barros insistiram, igual-
mente, no choro vertido na praia de Belém, conhecida também
como “praia das Lágrimas”, como bem lembra o narrador do
naufrágio da nau Conceição, Manuel Rangel (Brito, 1998, p. 97).
A designação “praia das Lágrimas” foi mencionada por João de
Barros (1778) na sua primeira Década, expressão utilizada pelos
que partiam, pois o caminho inverso, ou seja, de retorno, fazia
merecer outra expressão: “terra de prazer”.
Castanheda, Barros e Camões discorreram sobre o medo e
a dúvida em relação ao porvir, sobre as lágrimas derramadas
e sobre a piedade dos que permaneceram em terra firme. O
olhar enternecido que acompanhava da praia o avançar das
naus era correspondido pelo olhar lacrimoso dos nautas que
avançavam mar adentro, contemplando a segurança do lar.

87
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Outras tantas lágrimas a somar-se à imensidão azul, e a tripu-


lação sequer havia ultrapassado os limites do Tejo.
No decorrer do itinerário dos navegantes, sobretudo quan-
do a nau se encontrava à mercê dos ventos e das ondas, as
lágrimas e soluços eram abundantes. Luís Pereira (1588), no
sexto canto de sua Elegiada (1588), narra os infortúnios de Ma-
nuel de Sousa Sepúlveda e sua família a bordo do Galeão São
João. Durante uma tempestade, sua mulher, d. Leonor, encon-
trava-se debaixo da escotilha, com os filhos apertados contra
o peito e sem descansar “a bomba em botar fora / As saudosas
lágrimas que chora”. No entanto, como pode “pouco com a
tempestade” a “força do choro”, de nada adiantou bombear as
lágrimas, já que a nau corria às vistas do cabo, chamado “da
Esperança, / Por ser ditoso quem dobrá-lo alcança”. Ao final
do canto, depois de ocorrido o naufrágio e com o triste fim da
peregrinação, outra passagem de alto teor patético chamou-
-nos a atenção: Sepúlveda deixa a família por um instante para
conseguir alimento e, quando retorna, encontra sua mulher e
filhos sem vida. Depois de enterrá-los em completo silêncio e
sem derramar uma lágrima sequer, o capitão do desventurado
Galeão São João avança rumo às florestas, “com rouca voz mil
lástimas dizendo, / De mágoa enternecendo as pedras duras”.
Esta figura de prosopopeia aparece também em Camões,
justamente em uma das três oitavas dedicadas à experiência
trágica de Sepúlveda, que fez “as pedras abrandarem / Com
lágrimas de dor, de mágoa pura” (Camões, 2008, V, 48, p. 157).
Melchior Estácio do Amaral, no último relato de naufrágio da
História de Brito (1998, p. 543), termina a narrativa dizendo
que os inúmeros naufrágios que vitimaram naus portuguesas
“magoam até as pedras”. Alguns episódios dramáticos pode-
riam comover até mesmo os animais, tópica que nos remete
a Homero (2003, p. 211), que coloca os cavalos de Pátroclo a
chorar quando este tomba em batalha. Sem saber se recuavam
ou avançavam, eles ficaram “junto à biga pluribela, fronte para
o solo inclinada, lágrimas ardentes escorrendo das pálpebras”.
Em Camões (2008, II, 42, p. 60), no episódio que canta o destino

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

trágico de Inês de Castro, esta, defendendo-se contra os agres-


sores que a queriam morta, pede para ser colocada entre “liões
e tigres”, para ver se neles acharia a piedade que “entre peitos
humanos” não encontrou. No canto II, Vênus, banhada em lá-
grimas, pediu a Zeus que intervisse a favor dos portugueses,
oferecendo mostras de brandura “que moveram de um tigre
o peito duro”. Manuel de Mesquita Perestrelo, na relação de
naufrágio da nau São Bento, diz que a míngua e desamparo dos
nautas “a tigres e ursos moveriam a piedade” (Brito, 1998, p.
71). Em outro momento, ele afirma que nos cafres se encontra
menos piedade que em todos os “Tigres de Hircânia” (Brito,
1998, p. 55). Jerônimo Corte-Real (1783, p. 77), quando descre-
ve os perigos por que passou Sepúlveda, afirma que o mísero
espetáculo foi infeliz o suficiente para “demover Hircanos Ti-
gres”. Para ilustrar a crueldade humana, Shakespeare também
menciona estes tigres. A Hircânia ficava no atual território do
Irã, sendo muito referida pela literatura latina justamente pela
ferocidade dos tigres que lá se encontravam.
As experiências trágicas, como se pode ver, são volumo-
sas. Mas as lágrimas, que foram derramadas com tamanha
abundância, denotam necessariamente algo como pessimis-
mo ou decadência?
No último quartel do século XV, veio a lume o Malleus Ma-
leficarum, escrito pelos inquisidores James Sprenger e Heinrich
Kramer (1997). Na primeira parte do livro, especificadamente
na questão de número XII, os autores refletiram sobre a existên-
cia da bruxaria. Retomando, inicialmente, auctores da Sagrada
Escritura e filósofos “pagãos”, Kramer e Sprenger discorreram
sobre a responsabilidade do homem, quando recebe o dom da
vida, e sobre a existência do mal. Eles partem de uma concep-
ção providencialista para dizer que tudo o que existe deve pas-
sar, antes, pela aprovação de Deus, e que sua justiça permite
a prevalência do pecado, da culpa, do castigo, da perda. Deus
conhece as coisas na sua generalidade e na sua particularida-
de e, por isso, não há qualquer coisa fora da Providência. Em
outro momento, os autores afirmam que há, de um lado, o pro-

89
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

vedor particular, que deve afastar de si todo o mal que puder,


pois não é capaz de extrair bem do mal, e o provedor univer-
sal, Deus, capaz de extrair bem dos males particulares. Ou seja,
seria possível extrair bem da perseguição dos tiranos, pois foi
dela que teria surgido a paciência dos mártires. Os inquisidores
mencionam Santo Agostinho, que disse:

Tão misericordioso é o Deus Todo-Poderoso que não


permitiria que o mal atingisse as suas obras se não fos-
se tão onipotente e tão bom ao ponto de até mesmo do
mal extrair o bem.

Na sequência, Kramer e Sprenger dialogam sobre a pre-


valência do mal, do pecado e do sofrimento, iniciando com
duas proposições: toda criatura comete pecados, e isto é per-
mitido por Deus. Seria impossível, portanto, a transmissão
da impecabilidade às criaturas.
Na questão XV, tratam os autores do fato de inocentes so-
frerem punições pelos pecados das bruxas. Baseando-se em
Tomás de Aquino, os inquisidores dividem os castigos em três
categorias: (1) o homem ao homem pertence e, por isso, suas
ações podem acarretar em castigo para o outro; (2) o pecado de
uma pessoa pode ser transmitido a outra por imitação, quan-
do, por exemplo, a criança imita o pecado do pai, ou quan-
do um escravo usufrui dos bens ilícitos adquiridos por seus
donos, ou pode ser transmitido por consentimento, quando
por exemplo uma autoridade consente com o pecado, poden-
do afetar a outros; (3) o pecado é comunicado pela permissão
divina para a condenação da unidade da sociedade humana,
para que o homem cuide do próximo e este se abstenha do pe-
cado, e para que o pecado pareça ainda mais detestável, pois o
pecado de um redunda sobre todos, como se todos fossem um
só corpo. A punição tem o efeito esperado quando o homem
suporta pacientemente os males, pois castigo sem paciência
torna-se vingança. Assim, mesmo a bruxaria pode vir a causar
um grande bem: “quando a morte é aguardada com resigna-

90
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

ção e devoção, e oferecida na sua amargura a Deus, pode ad-


quirir de algum modo um caráter corretivo”. A morte violenta,
por exemplo, “de quem a merece ou não, é sempre corretiva,
quando suportada com paciência e na graça. Tanto mais para
os castigos infligidos por causa dos pecados dos outros”.
Para Sprenger e Kramer (1997, p. 178), o castigo divino

é de dois tipos, espiritual e temporal. No primeiro


caso, nunca há punição sem culpa notória. No segun-
do, por vezes a punição se faz sem que haja culpa, mas
nunca sem que haja uma causa.

Neste segundo tipo,

ora é infligido pelo pecado de outrem, ora sem que te-


nha havido qualquer pecado, pessoal ou de outra pes-
soa, mas pela existência de outra causa, ora ainda pela
existência de culpa pessoal, sem a participação do pe-
cado de outra pessoa. (Sprenger e Kramer, 1997, p. 178)

Logo, é por cinco causas que Deus castiga os homens em


vida: (1) para Sua glória, quando o castigo infligido é miracu-
losamente removido, como no caso do cego de nascença ou da
ressurreição de Lázaro; (2) para que se adquira o mérito pelo
exercício da paciência e também para que a virtude oculta se
manifeste aos outros; (3) para que a virtude possa ser preser-
vada mediante a humilhação pelo castigo. Essas três causas
justificam o castigo sem culpa. No caso da existência de culpa,
os homens são castigados (4) para que a danação eterna já
comece nessa vida e (5) para que possam ser purificados, pela
expulsão e neutralização da culpa por meio do castigo.
Pensando desta forma, o pranto nem sempre é consequên-
cia do pecado ou da culpa, já que é possível vivenciar males
particulares que propiciam um bem maior. Logo, a experiên-
cia trágica, quando lida em chave providencialista, não pode
ser entendida como pessimismo ou decadência, pois é condi-

91
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

ção da própria existência. Poder-se-ia acrescentar, ainda, que


chorar é uma atitude racional (e mesmo prudencial), uma vez
que o sofrimento é condição da existência humana.
O mundo seria mais digno de riso ou de lágrimas? Qual se-
ria o homem mais prudente: Demócrito, que sempre ria, ou He-
ráclito, que sempre chorava? Estas questões foram propostas em
uma academia romana no ano de 1674, ficando o padre Antônio
Vieira responsável por defender as lágrimas de Heráclito. Na
ocasião, Vieira (2001, p. 543) afirma que o pranto implica o uso da
razão, pois é fruto de um conhecimento verdadeiro do mundo.
Mundo que ele identifica como sendo um “mapa universal de
misérias, de trabalhos, de perigos, de desgraças, de mortes”, um
“teatro imenso”, trágico, funesto, lamentável. Quem não chora
perante tal cenário, diz Vieira, “mostra que não é racional”. Na
sequência, para provar que o riso de Demócrito não passava, na
verdade, de pranto, o jesuíta enumera três níveis de sofrimen-
to: com lágrimas (dor moderada), sem lágrimas (dor agravada)
e com riso (dor suma e excessiva). Note-se, portanto, que, para
desconstruir a hipótese segundo a qual o mundo é mais digno
de alegria, Vieira afirma que o sorriso pode ser consequência de
uma dor aguda. Logo, Demócrito sofria mais do que Herácli-
to perante o teatro do mundo e, em razão disso, ria sem cessar.
Além disso, da lágrima é possível extrair um efeito edificante,
pois “quem quer imprimir os seus afetos e a sua doutrina nos
corações, não deve endurecê-los, deve abrandá-los”. Tingir o
rosto alheio de lágrimas pode se converter, portanto, em um
eficaz instrumento de persuasão. Quem ri atenua os males; as
lágrimas, ao contrário, os amplifica. Pranto é natureza, diz Vieira
citando Plínio, pois o homem nasce chorando e fica condenado
ao eterno pranto, fruto do pecado original, que o privou da fe-
licidade na qual foi criado. Em seu último argumento, o jesuíta
contrapõe a situação inicial de felicidade plena, na qual a potên-
cia do chorar estaria ociosa, e a atual situação miserável, em que
seria verossímil a ociosidade da potência do sorrir.
O pranto é uma forma de tocar a alma do fiel, de persuadi-
-lo quanto ao caminho a ser percorrido. Sendo, portanto, efei-

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

to de dor e sofrimento, é comum que episódios dramáticos


apareçam aqui e acolá com finalidade edificante, isto é, como
meio de instrução moral que visa edificar um éthos. Mas ha-
veria algum desajuste entre o incidente marítimo e o canto
épico, como algumas vezes se alega? As lágrimas, ao que tudo
indica, podem muito bem ser a manifestação da sabedoria do
homem prudente e ajuizado, que apreende as misérias (ou
desconcertos) do mundo, mas também a graça misericordiosa
do perdão divino. Como falar de pessimismo, ou mesmo de
tragédia (no sentido corrente do termo) nestas circunstâncias?
Se, como diria Pessoa glosando Camões, o mar a Portu-
gal pertence devido ao pranto que os portugueses choraram,
não é de se estranhar que muitos deles tenham se afogado
nas próprias lágrimas.

As tempestades

A Odisseia é generosa em episódios que abordam dramas


marítimos. Com a ausência de Poseidon, que visitava a terra
dos Etíopes, Zeus envia Hermes à ilha de Calipso para libertar
Ulisses. O herói parte com vento propício, mas Poseidon o avis-
ta nas proximidades da terra feácia e planeja uma nova série de
infortúnios. Com o seu tridente em mãos, ele congrega as nu-
vens e agita o mar, iniciando uma tempestade. Os ventos Euro,
Zéfiro, Bóreas e Noto impedem o avanço da nau de Ulisses que,
frente ao quadro que se desenhava à sua volta, exclama:

Quão infeliz! Ai de mim! Que me falta passar de mais


grave? Pois bem receio que a deusa tivesse a verdade
anunciado, quando falou dos trabalhos que na água
eu passar deveria antes de a pátria alcançar. Ora tudo,
de acordo, se cumpre. Com quantas nuvens esconde
ora o céu Zeus Olímpico! As ondas como levanta, tam-
bém, suscitando furiosos remoinhos dos ventos todos!
É força que a Morte matura me colha. Três, quatro ve-
zes felizes os Dâneos que lá na planície da grande Tróia

93
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

morreram, por simples amor aos Atridas! Bem preferira


cumprir o Destino e morrer ali mesmo, naquele dia
em que os Teucros, visando-me lanças aêneas, inu-
meráveis jogavam, em torno do morto Pelida. Honras
fúnebres teria e aos Aqueus minha fama espalharam.
Ora é razão que pereça por modo assim mísero e escuro.
(Homero, 2001, p. 106)

Uma onda robusta precipita-se sobre a embarcação, obri-


gando o herói a abandonar o leme. O mastro parte-se em dois,
forçado por um “turbilhão tempestuoso de ventos num vórti-
ce unidos”. A deusa Ino (também conhecida como Leucotéia),
protetora dos marinheiros, interfere, aconselhando Ulisses a
abandonar a nau e seguir a nado até a costa da Esquéria. Na
sequência, Atena refreia os ventos:

Somente Bóreas ligeiro deixou, porque as ondas abrisse,


té que aos Feácios, amantes do remo, chegasse o guerreiro
filho de Zeus, e da Morte e do negro Destino escapasse.
Dessa maneira flutuou duas noites e dias nas ondas
encapeladas, a ver muitas vezes a Morte ante os olhos.
(Homero, 2001, p. 108)

Duas tópicas se destacam nestes fragmentos: o lamento


do herói, que receava uma morte mísera e escura, porque des-
tituída de honras fúnebres, e a “visualização” da morte como
forma de amplificar o teor trágico do episódio.
Emulando a epopeia homérica, Virgílio se constitui como
auctoritas do gênero com sua Eneida, poema cuja leitura tor-
nou-se imperativa no ambiente letrado do qual participou,
por exemplo, Luís de Camões. A tempestade, no caso, desen-
rola-se logo no primeiro canto. Planejando a queda de Eneias
e de seus homens, Juno desce à morada de Eolo, que impera
sobre “ventos e ruidosas tempestades, e com grilhões e cárce-
re os refreia”. A deusa pede-lhe que liberte os ventos e afunde
as naus troianas, oferecendo-lhe em troca a mais bela das nin-

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

fas, Deiopéia. Eolo atende ao pedido e, com sua lança, instiga


os ventos. Densas nuvens “o céu e o dia de repente ocultam
aos olhos dos Troianos”. Todo o ar “com crebros raios res-
plandece: tudo a morte apresenta aos navegantes”. Virgílio,
como se pode ver, mobilizou a tópica que Homero utilizou
para amplificar os perigos relativos à tempestade. O lamento
de Eneias em meio à procela é análogo ao de Ulisses:

Oh mil vezes, exclama, venturosos


Os que de Tróia junto aos altos muros
À vista de seus pais morrer puderam!
Oh de todos os Dâneos o mais forte,
Tidides, que eu a sorte não tivesse
De nos campos Ilíacos, pugnando,
Sucumbir do teu braço aos duros golpes,
E o espírito exalar! onde prostrado
Jaz o valente Heitor do Aquíleo ferro,
Onde o ingente Sarpédon, onde tantos
Escudos, capacetes, e robustos
Corpos d’heróis nas ondas volve Símois.
(Virgílio, 2004, p. 9)

Após proferir estas palavras, Aquilão rompe-lhe a vela, os


remos se despedaçam e a nau fica à mercê das ondas, que se
erguem como “um monte”, abrindo um “largo hiato” no mar.
Noto arremessa três embarcações contra “cegos penedos” e
Euro encalha outras três em “baixas Sirtes”. A nau dos Lícios,
após três redemoinhos, é devorada pelo mar, e as de Ilioneu,
Acates e Abas foram destroçadas pelo temporal: “abertas as
junturas dos lados, por mil rombos as inimigas ondas vão
bebendo”. João Manuel Nunes Torrão (2000, p. 648) diz que,
por meio das exclamações de Eneias, é possível inferir que
estivesse desejando a morte. Não seria, todavia, o kléos (ou
fama imorredoura) o objeto de desejo do herói? Parece-nos,
portanto, que Eneias valoriza a morte em campo de batalha

95
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

contra oponente ilustre, emulando a passagem homérica que


mencionamos há pouco.
Em outro momento, já nas proximidades da Itália (ou
Hespéria), outra tormenta afasta Eneias de seus intentos:

No alto-mar se engolfara toda a armada,


Já não se avistava terra alguma;
Tudo era mar e céu, quando atra nuvem
Por cima da cabeça me aparece,
Trazendo escura noite e grã tormenta,
E co’as trevas o mar se torna horrendo.
Os ventos o revolvem de contino;
Todo em serras se eleva o equóreo plaino:
Dispersos pela fúria da procela,
Na vastidão do pélago vagamos.
A cerração o dia envolve, e a noite
Chuvosa o céu nos rouba: uns após outros
Raios, rasgando as nuvens, se sucedem.
(Virgílio, 2004, p. 79)

Em Agamêmnon, Sêneca investe Euríbades de narrar os in-


fortúnios marítimos que recaírem sobre as tropas gregas após
a Guerra de Troia. A viagem começa com “aura suave”, sendo
as naus conduzidas pelo “mole Zéfiro”. Quando se afastam
da costa troiana,

(...) grave murmúrio,


prenhe de ameaças, cai do cimo das colinas
e longo tempo as praias e os rochedos gemem;
a onda infla agitada aos ventos que vão vir,
súbito a lua então se esconde, estrelas caem;
nem há somente noite: um denso nevoeiro
cobre as trevas e, extinta toda a luz, confunde
mar e céu.
(Sêneca, 2009, p. 63)

Os ventos interferem, agitando as ondas. Os efeitos são


drásticos:

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Era de crer que o mundo inteiro era arrancado


de suas bases e, aberto o céu, que os próprios deuses
despencavam, cobrindo a tudo um negro caos.
Resistem ao vento as ondas e o vento de volta
as faz rolar; o mar em si mesmo não cabe:
aos astros se ergue o pélago, perece o céu
e a borrasca e os refluxos mesclam suas águas.
Nem este alívio é dado, enfim, às desventuras:
ver e saber ao menos de que mal perecem.
As trevas lhes oprimem os olhos; do atro Estige
faz-se a noite infernal. Chamas caem, porém,
e, contraída a nuvem, fulge o raio atroz
e aos aflitos, tal é o dulçor dessa má luz,
que a pedem. Por si mesma a esquadra se avaria,
proas e flancos abalroam-se uns aos outros.
Aquele, o mar, ao entreabrir-se, arrasta abaixo,
engole-o e num outro mar o regurgita; (...)
Nada ousa o senso e a praxe: a arte cede aos males.
(Sêneca, 2009, p. 61-63)

Intervêm, logo, os lamentos dos moribundos, como de praxe:

(...) Pirro inveja o pai,


Ulisses, a Ájax, o mais jovem Atrida, a Heitor,
a Príamo, Agamêmnon; ao que jaz em Troia,
feliz o chamam, quem morrer logrou em luta,
quem a fama eterniza e o chão vencido cobre.
(Sêneca, 2009, p. 63)

José Eduardo Lohner (2009, p. 12) afirma que a narrativa


sobre a tempestade, em Agamêmnon, é uma mescla de rela-
to trágico e épico, “com o mensageiro assumindo a posição
de um narrador onisciente, cambiando o estilo indireto e o
direto, à maneira da narrativa heroica”. Além disso, Lohner
(2009, p. 187) percebe várias associações entre as tempesta-
des em Sêneca, Virgílio e Ovídio, embora, no caso específico
de Sêneca, ela seja evocada com um sentido muito particular,

97
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

alegórico, representando a ira de Clitemnestra contra o espo-


so. Na esteira de Isabelle Jouteur, Lohner nota uma tentativa
contínua de amplificar, em termos de extensão, a narrativa
imitada, ou seja, os versos de Virgílio superam os de Homero,
Ovídio duplica o número de versos de Virgílio, e Sêneca, co-
nhecedor que era da Eneida e das Metamorfoses, estende ainda
mais o episódio, apresentando-o com um total de 157 versos.
A tempestade é recorrente também em algumas passagens
bíblicas. O navio no qual viajava Paulo vagava nas proximida-
des da ilha de Chipre quanto Júlio, o centurião encarregado da
viagem, encontrou uma nau de Alexandria, na qual colocou
Paulo e os outros prisioneiros. A viagem seguiu lentamente,
e os ventos impossibilitaram à nau aportar em Cnido. Assim,
costearam a ilha de Creta até chegar a Bons Portos, nas vizi-
nhanças da cidade de Lasaia. A época não era propícia para a
navegação, e Paulo sabia bem disso, mas não lhe deram ouvi-
dos: o centurião preferiu escutar os conselhos do piloto e do
mestre. O vento estava brando e, por prudência, continuaram
costeando a ilha de Creta, mas não muito tempo depois uma
ventania tomou-lhes de surpresa e, sem poder resistir a ela, o
navio foi arrebatado e arrastado. Temendo encalhar em Sirte,
arriaram as velas e entregaram-se à mercê dos ventos. Devido
ao rigor da tempestade, os marinheiros jogaram fora a carga.
No terceiro dia, despojaram-se dos acessórios do navio. Com a
insistência do temporal, muitos perderam a esperança de sal-
vação. Paulo, perante as circunstâncias, convida-os a adquirir
coragem, afirmando que o navio tombaria sem baixas. Isto lhe
foi informado por um anjo de Deus, que apareceu durante a
noite e disse que ele deveria comparecer diante de César. A
coragem, portanto, é invocada com base na fé em Deus. Soma-
vam 14 dias de tormenta. Alguns, temendo o choque com um
baixio, buscaram fugir, mas foram contidos, pois a salvação
dependia da aquiescência e união de todos. Em seguida, Pau-
lo pediu a todos que se alimentassem e jogassem fora o trigo
restante, para aliviar o navio. Duzentas e setenta e seis pessoas
compunham a tripulação. O dia clareou e o navio aproximava-

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

-se de uma terra desconhecida. Os mareantes levantaram ân-


coras e rumaram para a praia, quando deram numa língua de
terra, ficando a proa encalhada e a popa aberta pela força com
a qual lhe batia o mar. Alguns nadaram, outros rumaram à
praia em cima do tabuado do navio, mas nenhum dos tripu-
lantes pereceu. Haviam chegado à ilha de Malta. Por sorte, os
indígenas que habitavam a ilha eram pacíficos, e o principal
da ilha, de nome Públio, era hospitaleiro, acolhendo-os por
três dias. Três meses depois, os náufragos tomaram um segun-
do navio, também de Alexandria, que invernava na ilha. Este
navio levava por insígnias os Dióscuros, ou seja, a imagem de
Cástor e Pólux, que ornavam a proa do navio. Deste ponto em
diante, a viagem correu sem grandes problemas.
Em De Gestis Mendi de Saa (1563), poema atribuído a José
de Anchieta, as metáforas topográficas também foram evoca-
das, como no momento em que o narrador afirma que o vento
Sul “se atira torcendo em vórtices as ondas/ e sacode em tur-
bilhões horrendos o mar tenebroso,/ que se enfurece ao peso
da borrasca, ergue em montanha/ as águas turvadas e as lança
raivoso às alturas” (Anchieta, 1986, p. 187). Na sequência, alu-
de-se à presença repetida da morte espectral: “o terror invade
a todos e a todos agita. Entra o medo, já tremem de horror e
o espectro da morte se agarra teimoso aos olhos espavoridos
da gente”. Os tripulantes, chorando “um rio de lágrimas”, ge-
miam: “Pai bondoso dos céus e tu, Cristo benigno,/ que nos
preparas? dizei-nos: permitirás que morramos/ no meio das
ondas, ó Pai? que sejamos vil pasto/ dos peixes vorazes”. Em
seguida, dizem todos em uníssono: “Vem auxiliar teus remi-
dos,/ Redentor nosso, não nos trague o negro abismo dos ma-
res”. Mais uma vez é lamentada a morte em alto-mar, em que
os corpos sem sepultura se reduziam a alimento de peixes.
Em Os lusíadas, o mestre da nau foi o primeiro a notar uma
nuvem negra e a mudança repentina dos ventos. A procela
iniciou-se subitamente. O responsável por ela foi Baco, que
pediu a Eolo a intervenção dos ventos. O mestre ordenou o
recolhimento das velas, mas os ventos não esperaram e “em

99
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

pedaços a fazem cum ruído que o mundo pareceu ser destruí-


do”. O céu “fere com gritos nisto a gente, cum súbito temor
e desacordo”. O mestre, depois de lançar o alerta e mandar
amainar, pede aos marinheiros para alijarem tudo ao mar e
trabalharem nas bombas, pois a nau estava alagada. Os nau-
tas atendem ao pedido com presteza, mas os “mares temero-
sos” os derribaram. A metáfora mobilizada para amplificar a
força dos ventos, desta vez, é bíblica:

Os ventos eram tais, que não puderam


Mostrar mais força de ímpeto cruel,
Se pera derribar então vieram
A fortíssima Torre de Babel.
Nos altíssimos mares, que cresceram,
A pequena grandura dum batel
Mostra a possante nau, que move espanto,
Vendo que se sustém nas ondas tanto.
(Camões, 2008, VI, 74, p. 192)

Em outra oitava, a amplificação repete o procedimento


metafórico há pouco aludido:

Agora sobre as nuvens os subiam


As ondas de Netuno furibundo;
Agora a ver parece que desciam
As íntimas entranhas do profundo.
Noto, Austro, Bóreas, Áquilo queriam
Arruinar a máquina do mundo;
A noite negra e feia se alumia
Cos raios em que o Pólo todo ardia.
(Camões, 2008, VI, 76, p. 192)

O quadro dramático estava desenhado e Vasco da Gama,


frente às intempéries, recorre a remédio “santo e forte” e la-
menta, como era costume, a morte em alto-mar:

Vendo Vasco da Gama que tão perto


Do fim de seu desejo se perdia,

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Vendo ora o mar até o Inferno aberto,


Ora com nova fúria ao céu subia,
Confuso de temor, da vida incerto,
Onde nenhum remédio lhe valia,
Chama aquele Remédio santo e forte,
Que o impossível pode, desta sorte:

“Divina Guarda, angélica, celeste,


Que os Céus, o Mar e Terra senhoreias:
Tu, que a todo Israel refúgio deste
Por metade das águas Eritréias;
Tu, que livraste Paulo e defendeste
Das sirtes arenosas e ondas feias,
E guardaste, cos filhos, o segundo
Povoador do alagado e vácuo mundo:

Se tenho novos medos perigosos


Doutra Cila e Caríbdis já passados,
Outras Sirtes e baxos arenosos,
Outros Acroceráunios infamados,
No fim de tantos casos trabalhosos,
Por que somos de Ti desamparados,
Se este nosso trabalho não Te ofende,
Mas antes Teu serviço só pretende?

Oh! Ditosos aqueles que puderam


Entre as agudas lanças Africanas
Morrer enquanto fortes sustiveram
A santa Fé nas terras Mauritanas!
De quem feitos ilustres se souberam,
De quem ficam memórias soberanas,
De quem se ganha a vida, com perde-la,
Doce fazendo a morte as honras dela!”
(Camões, 2008, VI, 80-83, p. 193-194)

Como se pode ver nestas oitavas, além da passagem dos


hebreus pelo Mar Vermelho, Camões faz menção à tempesta-

101
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

de bíblica que acometeu Paulo e ao dilúvio. Com o propósito


de amplificar o terror vivenciado pelos marinheiros, o poeta
imita a Eneida e uma ode de Horácio ao mencionar os mons-
tros mitológicos e descrever o movimento das ondas. Vênus
foi a responsável pelo abrandamento da fúria dos ventos, que
atacavam a nau como “touros indômitos”.
No Naufrágio de Sepúlveda, Corte-Real menciona “tene-
brosa, fria e muda noite”, tomada por um “silêncio geral”,
acalentada por “brando vento” e um “rumor surdo”. A tem-
pestade, também aqui, surge repentinamente. O piloto lê os
astros, manuseia o astrolábio, observa a agulha e faz os cál-
culos necessários para descobrir sua localização. Amphitri-
te, no canto anterior, havia persuadido Eolo a lançar contra
a embarcação de Sepúlveda uma tormenta sem precedentes.
O piloto foi o primeiro a perceber as mudanças do vento e a
pressentir o que estava por vir: tomado por um “intrínseco
medo”, ele perde a voz e se empalidece. Após experimentar
esta sensação de temor, ele visualiza um “vulto escuro” que
profetiza males e “mil calamidades e misérias”. O piloto, hor-
rorizado, observa novamente o céu estrelado, e contempla,
nas estrelas, os sinais do mau presságio.
O poeta retrata, na sequência, a investida dos ventos. O
uso da prosopopeia em relação à nau e aos ventos amplifica o
trabalho e as misérias pelos quais passaram os nautas:

A nau afadigada, abalançando-se


De ua para outra parte, arranca e quebra
Três encurvados ferros dos que o leme
Co’a popa ajuntam, cosem, prendem e ligam.
Vem Subsolano, indómito e furioso,
Com espantoso cenho e vista horrível.
Com grande ímpeto chega, leva e rompe
A vela com que a nau se sustentava.
Grita o piloto: “Arriba, arriba, cerra!”
E lança o leme à banda, mas isenta
Não lhe obedece a nau, nem dá por ele,

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

E já quase rendida se atravessa.


Acodem (mas em vão) piloto e mestre,
Acodem marinheiros e, tombando
Uns por cima dos outros sem poder-se
Suster nem dar remédio, se maltratam.
Noto com grande fúria ali arremessa
Três poderosas ondas, dão-lhe em cheio,
Rompem, quebram, destroçam e ao mar deitam
Os fortes, proveitosos aparelhos.
(Corte-Real, 1998, p. 118-119)

É comum, também, o uso de símiles para caracterizar a


amplitude da tormenta, que se torna ainda mais eficaz com o
uso de metáforas topográficas:

Como quando se vê, por estendido


Campo, grão multidão de grossas reses
E outros rebanhos mil de simples gado,
Fugindo, com clamor alto e tristonho,
Da fúria com que o rio, inchado e solto,
Por grandes invernadas vem cobrindo
Com grande estrondo d’água turva o campo,
Levando com rigor tudo o que alcança,
Empuxando-se vão, pelo castigo
Que o seu guardador rústico, afrontado
Do perigo evidente, com voz alta
E com duro aguilhão dá se atrás ficam;
Assim as soberbas ondas, constrangidas
Da força e do poder de Áquilo, bramam.
Tornadas em medonhas, altas serras,
Ameaçam esta nau triste e infelice.
O grão Bóreas raivoso ao céu levanta
Ua terrível onda, e com medonho,
Espantoso e cruel semblante, afronta
A nau rendida já ao vento imigo.
Dá-lhe na popa em cheio, quebra e rompe,
Desfaz e arromba o leme, e lá por cima

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Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Dos soberbos castelos, se arremessa


Ao grão convés e nele deixa um lago,
Onde a mesquinha, fraca, inútil gente
Quase afogada ao céu grita, dizendo:
“Ó poderoso Deus! Ó pai piedoso!
Ah senhor, ah senhor, misericórdia!”
(Corte-Real, 1998, p. 120)

Na sequência, o poeta mobiliza a tópica da “comoção de


feras” para dar a ler o caráter lastimoso do episódio:

O mísero espetáculo infelice,


Bastante a demover hircanos tigres,
Ver femininos gritos que apressados
Com acento afligido os ares rompem.
A nau sumida torna a oferecer-se
Ao trabalho e perigo de outro encontro.
Mostrando ali outra vez a submergida
Proa, dentro no mar a popa esconde.
(Corte-Real, 1998, p. 120-121)

Eolo, movido pela cólera, vai até o local da tormenta e co-


bra dos ventos maior eficácia, fazendo, como é costumeiro em
exemplares do gênero épico, um discurso que apela para a vai-
dade dos ventos e para a ousadia dos nautas. Após esta arenga,
os ventos recobram seu vigor e, com fúria e força, arrancaram
da tripulação gritos e clamores que “até às estrelas chegam”.
Em “A Conceição”, poema de Tomás António Gonzaga do
qual resta-nos apenas fragmentos, uma nau portuguesa passa
por apuros quando Vênus, que neste caso coloca-se contra a
empresa lusa, pede que Eolo intervenha com um temporal. Ela
oferece ao “rei potente” nove ninfas. No entanto, contrariando
a oferta, o rei diz que não são necessários presentes para que
devote à deusa obediência. Ainda assim, ele aceita uma das
ninfas, da escolha da deusa, não como paga pelo serviço, mas
com o propósito de estreitar os laços de amizade entre eles. A

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

deusa oferece-lhe Danopéia e, quando tenta narrar a afronta


dos portugueses, Eolo a interrompe, dizendo que o ocorrido
não lhe interessa porque não é juiz, cabendo-lhe tão somente
executar o que lhe é mandado. Vênus agradece e deixa clara a
sua sede de vingança, a ser executada com vagar. O rei move
o cetro, rompe um penedo e libera Noto, que sai bramindo
furioso. Ordenado a cumprir as ordens de Vênus, este vento
segue em seu encalço rumo ao Brasil, até avistar a nau. Noto

(...) alarga, e enche


as rugosas bochechas; curva o corpo,
põe na cintura as mãos: respira, e sopra.
As águas pouco a pouco se encapelam;
e dentro em pouco tempo está formada
a tormenta medonha. O bom piloto,
aocatavento firme, agora manda
que o leme se alivie: agora ordena
que se meta de encontro. Os joanetes
e mais as grandes gáveas já se arriam
para assim se quebrar do impulso a força.
(Gonzaga, 1995, p. 203-204)

Uma onda se levanta mais crescida


e se deixa cair com toda a força
na proa do navio. O grande beque
depois de levantar-se sobre as nuvens
desce ao profundo inferno: já vem outra
mais forte que a primeira, nele bate,
e o grande beque treme: já se enrolam
a terceira, e a quarta, e não podendo
o beque resistir a tanta força
um grande estalo deu e fez um rombo
apesar das cavilhas, que o sustentam.
(Gonzaga, 1995, p. 204)

A personificação dos ventos e a descrição das ondas são


novamente evocadas, desta vez emulando a epopeia lusíada.

105
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Os relatos de naufrágio mobilizam muitos dos lugares


comuns que referimos. A experiência de “ver a morte diante
dos olhos” a cada perigo que ameaça a integridade da nau foi
evocada no prefácio do relato de naufrágio da nau Conceição,
publicado na primeira metade do século XVII.

Não há coisa mais pesada de levar, e horrível para


temer, do que a morte, como bem disse o Filósofo
Aristóteles, e ainda melhor nos ensina a experiência;
porém com boa licença do Filósofo, e da mesma expe-
riência, o medo da morte ainda parece que é pior que
a mesma morte, como da guerra diz o provérbio, que
é pior o medo da guerra imaginada que experimen-
tada: a razão disto é, porque a morte levada em reali-
dade, nunca é mais que uma só; e morrer uma só vez
é dita, como disse Sêneca, mas a morte imaginada na
imaginativa por repetição de medos, é morte muitas
vezes repetida. Este entre outros males trás consigo o
naufrágio, porque quantas ondas conspiram contra a
embarcação, tantas mortes bebe o naufragante: e por
isto é pior castigo a morte muitas vezes temida, que
uma só vez sofrida, como bem disse S. Jerônimo, e em
consequência desta verdade, diz o mesmo Santo, que
merecendo Caim muitas mortes pela que deu a seu
irmão Abel, lhe pôs Deus um final para o não mata-
rem, e diz que isto mais foi lanço de justiça, que efeito
de misericórdia, porque ainda que o não quis matar,
deixou-lhe medo contínuo, para que cuidasse que to-
dos o queriam matar; e lançadas bem as contas, maior
castigo era o medo da morte repetida muitas vezes na
imaginação, que padecia uma só vez por efeito.
Não há em toda a natureza espetáculo mais horrível,
que um miserável naufrágio, quando indo os passa-
geiros mais descuidados, entregues à liberdade das
ondas, se vem de improviso assalteados de uma hor-
renda tempestade, ou de algum repentino tufão, no
qual os ares, e os mares, os raios, e os coriscos, e o

106
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Mundo todo parece que se conjura, e conspira em per-


dição dos tristes navegantes, obrigando-os com a fúria
do temporal a dar com a nau em través, e a desfazê-la
em rachas, entre infames cachopos. A vista de tão la-
mentável sucesso, e de tantas representações de morte
desastrada, se podem chamar três, e quatro vezes bem-
-aventurados os que morrerão à força do ferro violento
em terra, e não entre as ondas furiosas no mar irado;
porque aqueles morrem uma só vez, e acabam depres-
sa, como dizia Epaminondas; porém os que acabam
em algum naufrágio quantas ondas os não matam,
tantas lhe dilatam a vida, para os matar com a mesma
vida, que para eles é morte prolongada. (Rangel, s/d)

Embora seja imprecisa a data de publicação deste relato,


sabe-se, ao menos, que é posterior a 1616, devido às obras que
nele são mencionadas (a Vida do rei D. João III, de Francisco de
Andrade, foi escrita em 1613, e a Década Sétima de Diogo de
Couto foi publicada em 1616). Para o narrador, a ameaça da
morte e o medo de sua consecução causam mais lástima do
que a morte em si, que não ocorre mais de uma vez. Ao valo-
rar a morte “à força do ferro violento” em detrimento daquela
ocorrida “entre as ondas furiosas no mar irado”, ele utiliza a
tópica da morte no mar. O narrador do relato de naufrágio da
nau Santa Maria da Barca mobiliza o mesmo argumento, quan-
do reproduz o discurso de um dos marinheiros: “bem viam
que melhor era morrer às lançadas que morrer afogado”.
O uso de metáforas topográficas também é recorrente,
como no caso do relato de naufrágio da nau São Paulo. O nar-
rador amplifica, também, a iminência da morte ao dizer que
estavam metidos num “pau podre, tão perto da morte (se-
gundo a resposta do Filósofo sobre os que navegam) como a
grossura da tábua da nau sobre que vão” (Brito, 1998, p. 206).
Segue a descrição da tempestade:

107
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Os mares eram tão grandes, tão altos, como altíssimas


torres, tão furiosos e soberbos, que parece graça querer
pintar e escrever o que se não pôde crer senão de quem
o viu e passou; pois é como do vivo ao pintado, porque
como pode nenhum engenho, por mais sutil, delgado
e agudo que seja, segurar ou pintar uma tempestade
destas, em que acontecem mil desastres e mil inven-
ções de trabalho? (Brito, 1998, p. 210)

Henrique Dias amplifica os tormentos causados pela tem-


pestade ao mencionar que mesmo um pintor/narrador enge-
nhoso seria incapaz de retratá-los/descrevê-los com verossi-
milhança. Após assumir esta postura de modéstia afetada, o
narrador continua a descrever a tormenta:

Assim que os mares, pela antiga contenda que entre


eles e os ventos há, de que por derradeiro são vencidos
e domados, andando já levantados da noite passada, se
incharam e ensoberbeceram de maneira que pareciam
mui altíssimas torres, fazendo uns vales entre onda e
onda, de tanta baixeza e profundidade que a cada cair
da nau parecia cair nos abismos e quererem-na engolir
e sorver enfim de todo. (Brito, 1998, p. 219-220)

Na sequência, Henrique Dias imita Cícero: “em todas


as fortunas e males muito mais miserável cousa é o vê-los e
passa-los que ouvi-los ou conta-los” (Brito, 1998, p. 229-230).
Em outro momento, à maneira de Jerônimo Corte-Real, Dias
desloca a tópica da comoção das bestas, afirmando que a cena
trágica comoveria homens criados entre tigres da Hircânia e/
ou alimentados pelo leite de víboras. Há, por fim, a citação do
salmo 106, do profeta Davi, ao final do relato:

Os que descem ao mar nas naus, fazendo operações


nas águas muitas, esses viram as obras do Senhor e
as suas maravilhas no profundo. Determinou, e veio
logo o espírito da tempestade e levantaram-se suas

108
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

ondas, e sobem até os Céus e descem até os abismos, e


as suas almas em tais trabalhos pasmaram, turbaram-
-se e moveram-se, e como alienados do siso, pereceu
todo o seu saber. E nisto chamaram ao Senhor quando
estavam atribulados, e de todas as suas necessidades
os livrou, e tornou a tempestade em um vento fresco e
suave e abrandaram as ondas do mar; alegram-se por-
que cessou sua fúria; e enfim os pôs no porto de seu
contentamento. (Brito, 1998, p. 258-259)

Há, ainda, menções a tormentas bíblicas, como no rela-


to de naufrágio das naus Águia e Garça: “fez uma tão grande
tempestade de vento e chuva que parecia acabar-se o mundo
e soverter-se a terra com outro segundo Dilúvio” (Brito, 1998,
p. 137), e a representação da “morte diante dos olhos”, como
nos relatos de naufrágio das naus São Tomé e Santiago.
Outros textos mais ou menos contemporâneos aos relatos
de naufrágio utilizam estes lugares comuns, como é o caso da
carta que o padre Fernão da Cunha envia aos padres e irmãos
do colégio de Évora em 1562, ressaltando a grande dimensão
das ondas (“As ondas eram tão grandes que pareciam tocar
no céu, outras que desciam aos infernos”), a grandiosidade da
tormenta (“dizia o piloto que dezenove vezes passara esta car-
reira, mas que não se lembrava de ter visto coisa semelhante,
posto que havia visto outras mui grandes”) e a associação entre
a tempestade e a ação demoníaca (“O vento era tão grande que
não havia quem se pudesse ter direito e que os mesmos demô-
nios vinham com ele e chuveiros tão escuros que pareciam o
mesmo inferno, e assim as mais cousas”). A amplificação das
ondas é novamente evocada em uma relação de viagem anôni-
ma (“E o mar inchou de tal modo que parecia que subíamos ao
céu”) e em uma carta do padre Didacus do Soveral, datada de
1554 (“ondas tão grandes que pareciam serras mui altas, tão
brancas como neve e muitas vezes pareciam mais altas que o
mastro”). Há, ainda, a carta do padre Manuel Álvares aos con-
frades de Coimbra, de 1562, que atribui vida à embarcação (“a

109
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

nau arfava muito, e tomava muita água”) e assinala a distância


entre a narrativa e o ocorrido (“É mui diferente contar isto e
vê-lo como passou”) (cf. Lopes, 2009, p. 193-202).
Os lugares comuns percorrem os séculos e atravessam
mares para chegar até nós, por intermédio de diferentes gê-
neros discursivos. A licença destes narradores é convencional
e limitada, porque atende aos preceitos retóricos e poéticos
edificados, por exemplo, para o tratamento de tempestades.
A história é tempo e destruição. Sua matéria é, por excelência,
a contingência, a mudança. Esta é uma das razões por que
a melancolia de Camões e dos narradores de naufrágio con-
tinuam a comover, já que somos mortais e reconhecemos a
inevitabilidade da angústia, da tragédia, do sofrimento ou,
como diria Camões, dos desconcertos do mundo. Vasco da
Gama sofreu, os náufragos sofreram e também nós sofremos.
Ao final, o que nos resta? Letras e ruínas: palavras proferidas
e registradas para descrever o que outros já presenciaram ou
poderiam presenciar. Afinal, não era este o sentido da escrita:
orientar os pósteros por meio de um (nunca finalizado) caste-
lo de memórias? Enquanto o tempo passar, memórias novas
vão surgir. Mas a história não é mais o que foi até o século
XVIII, tampouco a poesia. Aproximamo-nos dos homens dos
séculos XVI e XVII porque continuamos a encarar a finitude,
mas nos distanciamos por ter conferido outro sentido à escri-
ta (histórica e/ou poética), atribuindo-lhe outras finalidades.
Àquela época, textos remetiam a outros textos, que, por sua
vez, remetiam a outros, num processo cumulativo a partir do
qual se conferia sentido às coisas do mundo, inclusive à tra-
gédia. Muito do que se concebe como melancolia em Camões
foi, antes, melancolia homérica. Muitos que ouvem a grita da
marinhagem portuguesa estão ouvindo, também, ecos do de-
sespero troiano. Muitas das aparições da morte que acome-
teram os nautas são colhidas de passagens bíblicas. O leitor
não peca ao supor que, nos séculos XVI e XVII, devido aos
naufrágios e demais infortúnios, havia angústia e melancolia.
Ele peca ao entender que estas tópicas afloram ou ganham

110
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

sentido somente ali, enquanto desdobramento de uma “cri-


se” que disseminava pessimismo. As tempestades, mesmo
as históricas, são tipificadas e, portanto, devem ser tratadas
como tal. Só é possível medi-la a partir das medidas inventa-
das pelos narradores e poetas e, levando-se em consideração
os procedimentos artísticos da época, a medida é feita com os
olhos voltados para a tradição.

O Cabo das Tormentas

O Adamastor

Américo da Costa Ramalho, em estudo de 1975, afirma


que Camões foi muitas vezes acusado de não dominar com
propriedade o grego, por ter atribuído ao gigante o nome
“Adamastor”, e não “Damastor”, termo este que aparece
na Gigantomaquia, do poeta romano Claudiano. No entanto,
Sidónio Apolinar, contemporâneo de Claudiano, utiliza o
termo “Adamastor”, bem como dicionários latinos do sécu-
lo XVI. Para Ramalho (1975, p. 43), este gigante anuncia (ou
prenuncia) os naufrágios da História Trágico-Marítima, “série
de catástrofes devidas a causas diversas, que foram para os
Portugueses como que o preço da glória que iam conquistar
por mares nunca dantes navegados”.
Tratar-se-ia, como queria Fernando Alves Pereira (2005,
p. 127), de um “desvio do gênero épico”, que “contradiz a
natureza épica ao condenar as ações dos navegadores e ao
vaticinar os nefastos destinos dos heróis, cuja ousadia é subli-
mada mas ao mesmo tempo condenada”? De acordo com este
autor, os sinais de pessimismo e mau augúrio que presidem a
fala do velho do Restelo são acentuados pelo gigante, espécie
de “hipérbole”, portanto, do excerto que encerra o canto IV.
Adamastor, no caso, precisa as catástrofes apenas implicadas
no discurso do velho do Restelo, como já haviam sugerido
Hernâni Cidade e Jorge de Sena.

111
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

De acordo com Massaud Moisés (1997, p. 92), o episódio


em questão contém a “mitificação das dificuldades que a Na-
tureza opunha à penetração lusa ‘por mares nunca dantes
navegados’ e do seu malogro ante a impavidez dos nautas
quatrocentistas”. Adamastor anuncia profeticamente os in-
fortúnios que recairiam sobre os portugueses que ousassem
trafegar uma nova rota marítima de acesso à Índia. Para Bian-
ca Morganti, trata-se de uma fábula repleta de ekphrasis que
recobre o episódio de uma atmosfera tensa e patética.
Ao tratar de personagens presentes em peças alegóricas,
David Quint (1992, p. 99) discorre sobre a figura do Gigan-
te Adamastor. Após uma breve introdução, o autor recorda
que um dos pressupostos adotados pelo poeta “moderno”
foi o de promover a invenção poética sem se desvencilhar
da matéria histórica. Em seguida, discorrendo sobre o arti-
fício da emulação, o autor menciona uma possível aproxi-
mação entre Adamastor e o ciclope Polifemo, indicando vá-
rias similitudes descritivas adotadas por Homero e Camões.
Quanto à descrição da figura do gigante camoniano e de seu
“passado”, Quint afirma que existem lugares comuns pre-
sentes nas Metamorfoses de Ovídio e em algumas éclogas de
Virgílio. Conclui, assim, que Camões combinou toda uma
sorte de representações antigas de Polifemo para esboçar a
figura de Adamastor. O autor chega a considerar, inclusive,
uma possível conotação entre a atitude de Dido, persona-
gem da épica de Virgílio, e Adamastor, sobretudo no que se
refere às imprecações vaticinais de ambos.
A associação entre figuras mitológicas não era desconhe-
cida pelos críticos camonianos dos séculos XVII-XIX. O censor
José Agostinho de Macedo afirma que Camões teria “furtado”
a ideia matriz do gigante Adamastor de Lucano. Ele descreve
uma sucessão de analogias que supostamente comprovariam
o roubo, e todas elas são avidamente recusadas por Saraiva,
que acusa Macedo de estar inventando analogias para detra-
tar o poeta. Para tentar diminuir o engenho camoniano, Mace-

112
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

do afirma que o poeta emulou Ariosto, quando este descreveu


a figura de Brunel no seu Orlando Furioso.3
Saraiva discorda, assegurando que Brunel não era um gi-
gante, tampouco tinha o semblante parecido com o de Ada-
mastor. No entanto, a emulação não seria de todo impossível,
a começar pelas similitudes: a “fronte crespa e cabeluda” de
Brunel e os cabelos crespos de Adamastor; os “olhos incha-
dos” do primeiro e os “olhos encovados” do segundo; a cara
“por demais barbuda” da personagem de Ariosto, e a “barba
esquálida” da figura camoniana; a cara “pálida” de Brunel e
a cor “pálida” de Adamastor. Por outro lado, há que se consi-
derar, também, que Camões e Ariosto adotam a etopeia como
procedimento do retrato epidítico, o que faz com que o leitor
“visualize” melhor o ethos das personagens mencionadas.
É muito apropriado o paralelo entre Adamastor e Polife-
mo, não apenas devido aos aspectos destacados por David
Quint, mas também em razão de outras analogias possíveis
de serem observadas, quando nos atentamos para a emulação
camoniana da Eneida. No terceiro livro desta epopeia, Enéias
desembarca na terra dos ciclopes e encontra um dos antigos
companheiros de Ulisses, de nome Aquemênides, filho de
Adamasto. Também neste livro, o grego acima referido narra
os infortúnios de Ulisses e de seus homens perante a figura
assombrosa de Polifemo, “monstro horrendo, disforme, des-
medido” (Virgílio, 2004, p. 98). Se voltarmos à descrição de
Adamastor como figura “robusta”, “disforme” e de “gran-
díssima estatura”, notaremos a aproximação entre os termos
utilizados. Não é curioso que a personagem camoniana, cuja
descrição remonta, em vários aspectos, à estatura do ciclope
homérico/virgiliano, apresente o nome de um grego referen-

3. “Sabe que nem seis palmos de estatura/ Tem ele, a fronte crespa e
cabeluda,/ Morena a pele, a cabeleira escura,/ Pálida a cara, por demais
barbuda,/ Olhos inchados, turva a catadura,/ Chato o nariz, a celha mui
peluda,/ E o trajo, porque a imagem saibas toda,/ Estreito e curto, de
correio à moda” (Ariosto, 2004, p. 110).

113
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

ciado justamente no momento em que Enéias é alertado/pre-


venido sobre a história do ciclope Polifemo?
Em Ovídio (2003, p. 277-280), as descrições de Polifemo de
fato assemelham-se ao perfil de Adamastor. De acordo com
a ninfa Galatéia, o ciclope apresentava um “rosto feio” e há-
bitos horrendos, como os de se barbear com uma foice e se
pentear com um ancinho. Quando devotou seu amor à ninfa,
ele abandonou o seu instinto assassino. Na canção de Polifemo
descrita por Ovídio, a personagem tece um elogio à amada,
pintando também sua conduta áspera que impedia o romance
de ambos. Por fim, o gigante enumera tudo aquilo que poderia
oferecer à Galatéia, chegando a louvar até mesmo o seu aspec-
to: “veja como sou grande”, exclama com orgulho. Como fez
também na Odisseia, Polifemo se vangloria alegando a suposta
inferioridade de Júpiter, que provavelmente não o excederia
em tamanho e força. O ciclope diz, por fim, que a ninfa ga-
nharia também um sogro portentoso: Poseidon, responsável
pela tempestade arremessada contra a embarcação de Ulisses
na Odisseia. Como se já não bastasse, Ovídio retrata, ainda, a
voz “forte e terrível” do grotesco Polifemo, quando ele “ruge
de raiva” e ataca o pretendente de Galatéia, Acis. Ovídio e Ca-
mões utilizam a écfrase para gerar efeitos visuais e sonoros.
Não seria estranho, por fim, que a transformação de
Adamastor em um rochedo como punição pelas suas trans-
gressões se equiparasse à transformação de Atlas em um ro-
chedo, devido à investida de Perseu que, em posse da cabe-
ça da Medusa, pune o titã pela falta de hospitalidade e pelo
desprezo perante suas glórias e a glória de seu pai, Júpiter.
O episódio era conhecido por Camões, que se refere a ele na
última estância de sua epopeia.

O tipo gigante

Ao ultrapassar as dez valas que integram o oitavo círculo


do Inferno, Dante avista o que parecia ser um conjunto de
torres altas e grandiosas:

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

e tal como na cerca arredondando


Montereggion de torres se coroa,
assi, do poço a margem circundando,
torrejava metade da pessoa
dos horríveis gigantes que ameace
Jove do céu ainda quando troa.
(Alighieri, 2005, p. 279)

Montereggion é uma das 36 comunas italianas da provín-


cia de Siena, situada na região da Toscana. Dante evoca a ima-
gem das torres que “coroam” esta comuna para remeter-se aos
titãs fulminados por Zeus, que estavam agrilhoados em poços
congelados e obstruíam a passagem do oitavo para o nono
círculo do Inferno. Quando avista Nemrod, um dos gigantes
acorrentados, Dante compara sua face ao “pino de S. Pedro em
Roma”. A construção mencionada não corresponde à estrutu-
ra da atual Basílica de São Pedro, que começou a ser edificada
na primeira metade do século XVI. É impossível restituir por
completo a bagagem cultural que compõe o mundo do poeta,
mas Dante consegue amplificar o porte físico da personagem
com uma analogia arquitetônica, ainda que o leitor não consi-
ga formular um retrato preciso do edifício em questão.
Em outro momento, quando o gigante Anteu ajuda Dante
e Virgílio a chegarem à entrada do nono círculo, o poeta uti-
liza outra analogia, desta vez para descrever o movimento da
enorme criatura:

Tal como se afigura a Garisenda,


quando passa uma nuvem, inclinada,
de modo tal que ao seu encontro penda,
me parecia Anteu, na atenção dada
a vê-lo a inclinar-se e foi nessa hora
quem bem quisera eu ir por outra estrada.
(Alighieri, 2005, p. 283)

A torre Garisenda, com aproximadamente 47 metros de


altura, encontra-se ao lado da torre Degli Asinelli, com seus

115
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

quase 98 metros. As Duas Torres, forma corrente de designá-


-las, foram construídas na Bolonha, Itália, no século XII. Ga-
risenda conta com mais de 3 metros de inclinação, o que jus-
tifica a analogia entre ela e a figura curvada de Anteu. Talvez
para amenizar uma metáfora muito rebuscada, o poeta tenha
adotado a similitude “tal como” para trabalhar com um efeito
hiperbólico. Ao discorrer sobre a ekphrasis enquanto exercício
de eloquência, Hansen (2006, p. 87) afirma que o “como se”
empregado pelo autor (que exerce um efeito análogo ao “tal
como”) é fundamental na ficcionalização da enargeia, da “vivi-
dez”, pois o “autor finge transferir para a enunciação do narra-
dor uma imagem pictórica com que compõe o enunciado como
se efetivamente fizesse as passagens entre pintura e discurso”.
A hipérbole é uma figura de linguagem que expressa uma
ideia de forma exagerada. Podemos encontrar outro exemplo
desta figura no canto V d’Os lusíadas, quando o poeta descre-
ve as feições do gigante Adamastor:

Tão grande era de membros, que bem posso


Certificar-te que este era o segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso,
Que um dos sete milagres foi do mundo,
Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,
Que pareceu sair do mar profundo.
Arrepiam-se as carnes e o cabelo
A mim e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!
(Camões, 2008, V, 40, p. 155)

A comparação entre o Adamastor e o Colosso de Rodes,


uma das sete maravilhas do mundo que chega a medir trinta
metros de altura, amplifica a estatura do gigante camoniano.
Hansen (2008, p. 81) afirma que o uso de períodos compostos e
extensos, com muitas orações longas, é “condição para a abun-
dância da magnificência”. Na estrofe acima, além de descrever
a grandiosidade do Cabo das Tormentas recorrendo à figura
da prosopopeia, Camões demonstra a reação aterrorizada dos

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

nautas frente à sublimidade do retrato poético. Por meio dos


monumentos evocados, Dante e Camões evidenciam ao leitor
o porte físico dos gigantes e a intensidade da surpresa dos pro-
tagonistas ao se depararem com estas criaturas.
A écfrase é figura destinada à produção de afetos por
meio da

descrição verbal viva e detalhada de uma pessoa, lu-


gar, acontecimento ou objeto que, produzindo um
forte efeito visual e sonoro, causasse um consequente
impacto emocional nos ouvintes daquele discurso”.
(Morganti, 2008, p. 1)

Seus artifícios tendem a exercer sobre o auditório um “efei-


to de realidade”, por meio do qual se pretende mover afeições
e estimular juízos retos. Trata-se de uma relação intrínseca
entre descrição (descriptio) e a vivacidade e clareza do que é
descrito (euidentia), o que confere a impressão de que o fato
está acontecendo diante dos olhos do leitor que, no caso, age
como “testemunha ocular”. Vejamos, então, como os nautas
portugueses foram subitamente surpreendidos pelo gigante:

Porém já cinco sóis eram passados


Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca de outrem navegados,
Prosperamente os ventos assoprando,
Quando ua noite, estando descuidados
Na cortadora proa vigiando,
Ua nuvem, que os ares escurece,
Sobre nossas cabeças aparece.

Tão temerosa vinha e carregada


Que pôs nos corações um grande medo;
Bramindo o negro mar de longe brada
Como se desse em vão nalgum rochedo.
“Ó potestade, disse, sublimada,
Que ameaço divino ou que segredo

117
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Este clima e este mar nos apresenta,


Que mor causa parece que tormenta?
(Camões, 2005, V, 37-38, p. 157-158)

A fortuna, até então próspera, ameaça voltar-se contra os


protagonistas. A narrativa inicialmente dá a entender o ad-
vento de uma tempestade. O aedo faz uso de imagens que
denotam perigo, descrevendo as nuvens “escuras” e o mar
“negro”, características que atribuem ao enredo um cenário
propício para a deflagração de catástrofes. Vasco da Gama,
em função da ocasião inesperada, recobra-se de incertezas e
de ansiedade: logo em seguida, clama pelo esclarecimento di-
vino. O leitor poderia questionar: esta demonstração de temor
não acaba prejudicando os propósitos da obra, na medida em
que o herói evidencia sua humanidade, suas fraquezas?
Não podemos nos esquecer de que, ao ser surpreendido,
Gama pede o auxílio divino, ou seja, ainda que sua postura
inicial seja perdoada pelo estoicismo de Sêneca, há que se per-
ceber também uma postura humilde, humana, de um súdito
devoto que busca esclarecimento divino. Os nautas logo per-
cebem que não se tratava de uma tempestade:

Não acabava, quando ua figura


Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura;
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má, e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.
(Camões, 2005, V, 39, p. 158)

Camões não poupa fôlego para detalhar a fisionomia do gi-


gante e precisar o seu aspecto pavoroso, o que permite a apre-
ciação visual da cena por parte do leitor. Neste caso, o efeito
de prosopopeia é conveniente, pois as formas descomunais e
disformes do Adamastor adiantam a dimensão e deformida-

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

de dos infortúnios que se queria anunciar. Devemos recordar


a passagem na qual também Ulisses e seus companheiros se
abismaram com a figura grandiosa de Polifemo: “O berreiro do
gigante nos quebrou o ânimo. A voz cavernosa daquele corpo
descomunal nos arrasou” (Homero, 2010, p. 129). Ulisses, as-
sim como Gama, foi o primeiro a dialogar com o gigante.
Como se não bastasse uma descrição tão detalhada, o gi-
gante, em tom “horrendo e grosso” de fala, dirige-se rude-
mente aos portugueses:

(...) “Ó gente ousada, mais que quantas


No mundo cometeram grandes cousas,
Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,
E por trabalhos vãos nunca repousas,
Pois os vedados términos quebrantas
E navegar meus longos mares ousas,
Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,
Nunca arados de estranhos ou próprio lenho;

Pois vens ver os segredos escondidos


Da natureza e do úmido elemento,
A nenhum grande humano concedidos,
De nobre ou de imortal merecimento;
Ouve os danos de mi que apercebidos
Estão a teu sobejo atrevimento,
Por todo o largo mar e pola terra
Que inda hás de sojugar com dura guerra.
(Camões, 2005, V, 41-42, p. 158-159)

Inicialmente, o aedo recorreu aos efeitos visuais: agora,


atribuiu voz profética ao gigante, que ressaltou a ousadia dos
portugueses, que desbravaram novas rotas marítimas. Frente
a tamanho atrevimento, Adamastor acusa os portugueses de
terem ultrapassado os limites impostos aos mortais, sejam eles
nobres ou não. Tal insolência, afirma, é passível de danos, de
punição. Isto nos remete a uma possível releitura da noção de
hybris grega, da imoderação, do excesso mundano. A transpo-

119
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

sição da fronteira que distanciava e diferenciava homens e deu-


ses, na tradição grega, teria despertado a ira dos deuses. A ou-
sadia lusitana despertou, na mesma medida, a ira do gigante:

Sabe que quantas naus esta viagem,


Que tu fazes, fizeram de atrevidas,
Inimigas terão esta paragem,
Com ventos e tormentas desmedidas!
E da primeira armada que passagem
Fizer por estas ondas insofridas,
Eu farei de improviso tal castigo,
Que seja mor o dano que o perigo!

Aqui espero tomar, se não me engano,


De quem me descobriu suma vingança.
E não se acabará só nisto o dano
De vossa pertinence confiança:
Antes, em vossas naus vereis, cada ano,
Se é verdade o que o meu juízo alcança,
Naufrágios, perdições de toda sorte,
Que o menor mal de todos seja a morte!
(Camões, 2005, V, 43-44, p. 159-160)

Os dotes proféticos de Adamastor, que prescrevem um


fim trágico às ousadias náuticas, não incluem Gama e sua fro-
ta. A censura do gigante nada tem de realmente profética, pois
sua narrativa versa sobre acontecimentos passados. Trata-se
do desaparecimento de Bartolomeu Dias, aquele que supos-
tamente descobriu o Cabo das Tormentas e que se perdeu du-
rante uma tempestade. Em contrapartida, o caráter de agouro
que se atribui à fala da personagem confere autoridade ao re-
lato: a personificação do Cabo das Tormentas anuncia os pe-
rigos iminentes com os quais se deparam aqueles que ousam
fazer parte da empresa ultramarina, movidos pela ambição e
pela vaidade. Se por um lado, aceitamos que Adamastor re-
presenta os perigos impostos pelo mar, por outro, ele exerce
o papel de um juiz prudente que, por meio da longuíssima

120
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

experiência adquirida, somada aos dotes proféticos, adverte


Gama e seus tripulantes sobre os castigos reservados àqueles
que imprudentemente abraçam a condição de pecador.

O tempo da epopeia

Gama reage frente aos perigos vaticinados pelo gigante


inquirindo: “Quem és tu? Que esse estupendo / Corpo, cer-
to, me tem maravilhado” (Camões, 2005, V, 49, p. 161). Neste
momento, ocorre uma reviravolta na narrativa e Adamastor
não mais assusta os nautas como antes. A partir do momen-
to em que ele se identifica como o “Cabo das Tormentas”,
passa então a ser conhecido, e deixa de ser exótico, de ser
novidade, como afirma Yara Vieira (1987, p. 235).
Adamastor conta sobre seus infortúnios do passado, quan-
do lutou contra “o que vibra os raios de Vulcano”, Zeus. Afir-
ma que se apaixonou por Tétis, “esposa de Peleu”, e que se
voltou contra todos os deuses olímpicos, recobrando para si o
império dos mares. Como não desconhecia a “grandeza feia”
de seu gesto, Adamastor determinou tomar a ninfa à força, mas
esta, astuta, lhe promete devoção ao término da guerra. Quan-
do ela termina, contudo, o gigante é enganado, pois visualiza
Tétis e, quando corre em seu encalço e lhe abraça, percebe que
está enamorado de um rochedo. Assim narra o desafortunado:

Converte-se-me a carne em terra dura;


Em penedos os ossos se fizeram;
Estes membros, que vês, e esta figura
Por estas longas águas se estenderam.
Enfim, minha grandíssima estatura
Neste remoto Cabo converteram
Os Deuses e, por mais dobradas mágoas,
Me anda Tétis cercando destas águas.
(Camões, 2005, V, 59, p. 165-166)

121
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Finda a narrativa, Adamastor se desfaz em lágrimas e logo


desaparece. Vieira (1987, p. 240) nota que o gigante “é simulta-
neamente a projeção do temor do futuro enquanto desconhe-
cido, e do passado, enquanto resíduo de experiências traumá-
ticas”. Em um primeiro momento, ele vaticina infortúnios; em
seguida, conta sobre seus infortúnios particulares. Adamastor
versa sobre os perigos do excesso e demonstra sua própria tra-
jetória como exemplo: por um lado, ele é guardião das terras
orientais e profeta das supostas calamidades futuras; por outro,
ele se apresenta, rompendo com o caráter de novidade, e conta
sobre sua própria hybris, que lhe legou uma punição exemplar.
As advertências e admoestações lançadas pelo gigante,
longe de ter o mero objetivo de aterrorizar os navegantes,
parece instruir os leitores sobre a necessidade de propósitos
virtuosos: ou seja, a procedência vaidosa na busca por fama é
condenável e, portanto, suscetível de castigos. As censuras do
gigante são direcionadas àqueles que agem em desconformi-
dade com as pretensões do Império português e/ou da Igreja
Católica. Por outro lado, aqueles que atendem, assim como
Gama, aos anseios de seu “tempo”, podem ser considerados
prudentes e, em consequência, conquistar a boa vontade da
fortuna: sendo assim, o caráter supostamente profético da voz
de Adamastor não passa de um artifício que não lesa os prin-
cípios da ortodoxia cristã, mas os serve, pois não retrata nada
além de eventos circunscritos no passado, dignos de memória
e integrantes da história providencial portuguesa.
Se o leitor/ouvinte “vir” o gigante e “ouvir” suas ponde-
rações, ele pode se deixar instruir e mover. Morganti (2008,
p. 11) afirma que

a produção da clareza e vivacidade por meio de recur-


sos técnicos fornecidos pela linguagem, que gera no
leitor a sensação de visão e audição da cena descrita,
permite, através de um procedimento exclusivamente
verbal, a manifestação ficcional de um afeto.

122
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

É necessário ponderar, assim, que a produção artificial de


um afeto ou de uma virtude se fundamenta na verossimilhança.
O auxílio visual e auditivo contribui para a edificação de uma
conduta prudente: neste caso, o apelo aos afetos – pela via do
infortúnio épico – tende a localizar as trágicas consequências de
atitudes ousadas e vaidosas, que não priorizam o bem comum.
Ao leitor, então, resta aprender a traçar o caminho oposto e se
deixar levar pelo exemplo legado por Vasco da Gama.
É no dilema de uma história exemplar de caráter provi-
dencialista que se coloca o Adamastor. Sua figura é oportuna
porque embaralha as temporalidades: suas previsões não pas-
sam de memórias que os leitores d’Os lusíadas provavelmente
dominavam. Trata-se de um mito (com raízes certamente ho-
méricas) que encerra um obstáculo natural. Com seus vaticí-
nios e rememorações fabulosas, o gigante instrui Gama no seu
presente, sendo o herói aquele a principiar a empresa coloni-
zadora e inaugurar rotas desconhecidas. O futuro que Ada-
mastor adianta aos nautas para o leitor já era passado, mas o
incerto futuro do leitor poderia ser devidamente trilhado caso
ele se apegasse à virtude. O destino infausto do gigante orien-
ta Gama, e o destino vitorioso do navegante lusitano ilumina
uma dimensão exemplar a ser trilhada no futuro.
Ampliar o império e difundir a ética cristã: estas eram as
intenções imediatas do herói. Júpiter profetiza logo no pri-
meiro canto da epopeia lusitana o sucesso da empresa portu-
guesa, tranquilizando Vênus. Ao final da obra, a ninfa Calíope
e a deusa Tétis cantam outros tantos sucessos portugueses, a
serem viabilizados num futuro que, para o leitor, já era pas-
sado. Esta estrutura se conforma à dimensão circular da epo-
peia, que começa e termina reafirmando a glória portuguesa.
Adamastor não é um oráculo feito Tirésias, que orienta Ulis-
ses apresentando-lhe o seu futuro. Suas profecias são, ao mes-
mo tempo, eficazes e ineficazes: realmente predizem o futuro,
levando-se em consideração que a fábula poética se ambienta
no momento da empresa liderada por Gama, da qual o leitor
encontra-se distanciado cerca de oitenta anos (portanto, um

123
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

vaticínio em retrospecto), e é ineficaz porque não impede a


consecução da jornada do herói, pois suas predições, em mo-
mento algum, colocam em xeque os propósitos que motiva-
vam Vasco da Gama. O gigante, transformado em rochedo
feito Atlante, cumpre sua pena eterna como Prometeu e chora
suas angústias tal como Édipo. Ele que, outrora, desejou avi-
damente o domínio dos mares a ponto de desafiar e enfrentar
os deuses olímpicos. Ambicioso, descomedido e, ainda assim,
escalado para censurar a cobiça e ensinar comedimento.

124
IV

PRUDÊNCIA
Em trabalho sobre a prudência nos escritos de Aristóteles,
Pierre Aubenque (2008) afirma que a existência do homem
prudente (phronimos) precede a determinação da essência/na-
tureza da prudência (phrônesis), isto é, o phronimos não é ape-
nas o intérprete da reta regra, mas o portador vivo da norma
e, portanto, a personificação da regra. Esta deve ser entendida
como critério definidor da justa medida que, por sinal, é dis-
cernível somente aos olhos do homem dotado de phrônesis. O
homem prudente é o único capaz de fornecer um julgamento
reto e, por esse motivo, consegue deliberar bem tendo em vis-
ta uma ação circunstancial e contingente. Por outras palavras,
não há prudência sem, antes, haver um modelo de conduta a
ser seguido. No entanto, não se deve perder de vista algumas
categorias caras às analises de Aristóteles: o homem pruden-
te pode priorizar os bens relativos ao âmbito particular ou
pode agir em prol dos homens em geral, em observância à
dimensão do bem comum. A vida feliz, finalidade última que
tangencia a ética aristotélica, envolve justamente a superação
das finalidades particulares e a priorização dos bens huma-
nos. Por esta razão, Aristóteles faz do homem o centro de sua
ética sem divinizá-lo, como nos lembra Aubenque.
Desta forma, a phrônesis é entendida como uma disposição
prática responsável pelo reconhecimento das virtudes morais.
A prioridade, no caso, é a adoção de meios oportunos capazes
de incidir na consumação de fins almejados. Felipe Charbel
(2008, p. 58) afirma que a escolha (proairesis) é central na defini-
ção do agir prudente em Aristóteles, pois é por meio dela que
se recorre aos meios adequados para se atingir o fim proposto.
Assim, não basta “saber o que é justo e nobilitante. É preciso,
acima de tudo, saber escolher o justo, transformá-lo em ação e
conduta”, o que é possível pela “ponderação de cada acidente,
de cada lance fortuito a que os homens estão sujeitos” (Char-

125
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

bel, 2008, p. 60). O phronimos deve se orientar de acordo com a


reta razão, de forma que a prudência se configura como facul-
dade intelectual atrelada à parte calculadora da alma racional.
O desejo de ser bom e de ocasionar o bem principia a resolução
acertada e o cálculo racional a ser aplicado perante a contin-
gência das coisas humanas. É de vital importância, portanto, a
consideração das ocasiões e das oportunidades (kairos).
A phrônesis é um dos atributos que caracteriza, também,
o sábio estoico. Guy Hamelin questiona a possibilidade de
aproximação entre a prudência aristotélica e a sabedoria es-
toica, desenvolvendo sua argumentação a partir de alguns
paralelos. A princípio, o autor percebe que a phrônesis consti-
tui uma habilidade para os estoicos. Aristóteles, ao contrário,
distingue habilidade e prudência. Outro argumento que sus-
tenta a hipótese de Hamelin (2010) é o de que, para os estoicos,
não há uma distinção categórica entre sophia e phrônesis, como
aquela elaborada por Aristóteles. Assim, o conhecimento do
sábio torna-se infalível, enquanto o prudente aristotélico não
consegue se livrar inteiramente do contingente, do fortuito.
Pierre Aubenque (2008, p. 294) julga haver uma grande
distância entre a noção de phrônesis aristotélica e a phrônesis
estoica, aproximando-se da tese de Hamelin. O autor lembra
que não há na definição estoica a divisão entre a parte “cien-
tífica” e a parte “opinativa” ou “deliberativa” (à qual estaria
ligada a prudência) da alma racional, tampouco a distinção
entre um bem absoluto, objeto da sabedoria (sophia), e um
bem para o homem, objeto da prudência (phrônesis). Não há,
portanto, a atribuição à prudência de “um campo distinto do
da sabedoria, que era para Aristóteles o contingente”.
Zenão (334 a.C. – 262 a.C.), considerado o fundador do
estoicismo, afirma que a phrônesis “coloca ordem nas paixões
e dá uma justa medida aos prazeres”. Desta forma,

quando a phrônesis dá a cada um o que lhe é devido,


ela é justiça, e quando nos indica o que é preciso evitar,
é temperança; quando nos ajuda a suportar a adversi-
dade, é coragem. (Aubenque, 2008, p. 194)

126
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

O estoico Crisipo (278-206 a.C.), na esteira de Zenão, assegu-


ra que as virtudes da coragem, da justiça, da prudência e da tem-
perança são inteiramente distintas, mas implicadas entre si: ou
possuímos todas as virtudes, ou não possuímos nenhuma delas.
O homem prudente, desta forma, contém em si todas as outras
virtudes. Areté (virtude) e eudaimonia (felicidade) são indissociá-
veis no sábio estoico: o homem virtuoso é necessariamente feliz.
Para ser virtuoso e, portanto, feliz, ele deve manter sua natureza
em sintonia com a natureza universal, que rege todas as coisas.
Em suma, a “reta razão aplicada ao agir” torna o homem feliz na
medida em que sua conduta atualiza o Logos universal.
De acordo com Markus Silva (2003, p. 74), a phrônesis em
Epicuro (341 a.C. – 270 a.C.) não deixa de ser uma “sabedoria
prática”, aproximando-se da concepção aristotélica. No en-
tanto, Epicuro distancia-se de Aristóteles

por atribuir à phrônesis a primazia sobre outros saberes,


definindo a filosofia como um “exercício” e definindo
a filosofia em seu sentido mais alto como phrônesis, ou
sabedoria no agir.

Nestes termos, a prudência concede ao homem a possibili-


dade de refletir acerca do que é natural e necessário saber, tanto
do ponto de vista prático quanto teórico. É da phrônesis que pro-
vém todas as outras virtudes, pois não é possível viver de modo
justo e prazeroso sem os seus auxílios. A prudência, portanto,
é o “exercício prático da sabedoria”, a “sabedoria no agir”, um
“requisito básico para o exercício da filosofia, mas não é por isso
mais importante ou mais precioso que a filosofia”.
Para Silva (2003, p. 74), há no mínimo três categorias que
devem ser revistas para se entender com clareza a abrangên-
cia da prudência em Epicuro: o logismós, a ataraxía e a autárkeia.
O logismós é uma “operação do pensamento”, um “cálculo ou
raciocínio que engendra uma medida, ou ainda uma capaci-
dade de medir, ponderar, dimensionar”. Phrônesis e logismós
são “elementos depuradores dos desejos e moduladores da

127
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

conduta”. A ataraxía designa o equilíbrio, a tranquilidade da


alma, a imperturbabilidade. Trata-se de um estado de alma
livre dos valores não naturais e desnecessários. Nesta direção,
a ataraxía é “a máxima expressão da phrônesis, enquanto sa-
bedoria de agir a partir de si mesmo” (Silva, 2003, p. 81). Por
fim, a autárkeia é o fundamento do éthos do sophós, e implica na
“independência”, na autossuficiência. É necessária uma ação
pautada na phrônesis e no logismós para que ela se ajuste à au-
tárkeia. Estes três conceitos

definem a possibilidade de ponderação, de se estabele-


cer uma medida para o agir e, através do exercício da
autárkeia, o sophós define por si mesmo o bastante para
a realização dos seus desejos naturais e necessários.
(Silva, 2003, p. 86)

José Américo Pessanha (2007, p. 104) afirma que, para


compreender a ética epicurista, faz-se necessário diferenciar o
“verdadeiro prazer”, que é estável, dos prazeres que resultam
“em pesares ou partem de carências, movendo-se entre insa-
tisfações”. O primeiro é um “prazer em repouso” (voluptas in
stabilitate) e o segundo um “prazer em movimento” (voluptas in
motu). O prazer verdadeiro, meta dos epicuristas, não consiste
em satisfazer uma necessidade, mas sim em eliminá-la, precei-
to que permite a efetivação da ataraxía. Uma persona pruden-
te deveria atender somente aos desejos naturais e necessários,
atingindo a ausência de dor (indolentia) e evitando a impulsivi-
dade instintiva. Nestes termos, o sábio epicurista é “um asceta
que utiliza a compreensão racional do mundo e da vida para
racionar os próprios desejos” (Pessanha, 2007, p. 106).
Para Epicuro, a “direção da vida moral é exercida pela
razão, pelo raciocínio e não pelos prazeres”. A phrônesis, no
caso, “é aquela que governa os prazeres e os ordena de ma-
neira a estabelecer os que podem e os que não podem ser
praticados” (Ferreira, 2000, p. 155). Isto indica uma forte in-
fluência da doutrina socrática, que “reduzia todas as virtu-

128
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

des à prudência, e esta à ciência ou sabedoria”. A ética epicu-


rista valoriza o tempo, o acúmulo de experiência, o passado,
a memória e, consequentemente, a velhice. O bem passado “é
jamais perdido: a memória se incumbe de mantê-lo vivo e fa-
zê-lo, com toda força, outra vez presente” (Pessanha, 2007, p.
109). O desvio no tempo, “na direção do passado (memória)
ou do futuro (esperança), permite a alegria em meio à adver-
sidade”. O sábio, portanto, deve exercer pleno domínio sobre
imagens, sensações e desejos, pleiteando condições de vida
adequadas e cogitando a possibilidade de buscar, por meio
da memória e/ou da previsão, elementos que orientam a reta
razão sempre em conformidade com a natureza. A prudência
é a virtude por excelência, o “bem supremo” a partir do qual
as outras virtudes se originam. Neste aspecto em particular,
estoicos e epicuristas entram em acordo.
Em vários de seus escritos, Cícero (2005, p. 87) tece um con-
junto de críticas a Epicuro, acusando-o de ser responsável por
uma doutrina na qual “o prazer sempre merece ser buscado
por si mesmo, pelo fato mesmo de ser prazer”. O autor afirma
que Epicuro, “que de filósofo só tinha a máscara”, apresenta
um julgamento que não difere “do instinto dos animais”. Cí-
cero (2001, p. 44) finaliza: “nada de nobre, grandioso e divino
está ao alcance de quem rebaixa de tal modo os seus pensa-
mentos a um assunto tão vil e desprezível”. Nas obras A vir-
tude e a felicidade e Da amizade, Cícero (2005, p. 18) demonstra
simpatia pela filosofia estoica ao considerar, por exemplo, que
a paixão é um “desregramento da nossa razão” e que a vida
feliz é o “quinhão de uma alma tranquila, na qual não irrompe
nenhum desses movimentos impetuosos que desordenam a
razão”. A virtude, que deveria levar o homem a seguir a razão
e a ordem da natureza, divide-se em quatro partes na filoso-
fia ciceroniana: prudência, justiça, constância e temperança. A
primeira, que mais nos interessa neste livro, é definida como
“o conhecimento daquilo que é bom, daquilo que é mau e da-
quilo que não é nem bom e nem mau” (Yates, 2007, p. 39).
Para Cícero, o

129
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

homem eloquente deve cultivar uma gama de virtu-


des morais sem as quais sua oratória é vazia; em con-
trapartida, suas qualidades morais não têm utilidade
para a cidade se não forem acompanhadas de eloqu-
ência. (Adverse, 2009, p. 126)

A retórica, para ele, não deve ser pensada à revelia da


filosofia, pois um sábio apenas é capaz de instruir, mover e
deleitar se unir ratio e oratio. Interessante notar que a melhor
forma de vida, para Cícero, é a vida pública. Para a doutrina
epicurista, ao contrário, o homem deve voltar-se para interior,
evitando sempre que possível participar dos assuntos polí-
ticos ligados à cidade. Não há felicidade na política, ensina
Epicuro. Alcançar o bem, neste caso, é um empreendimento
exclusivamente ético, pois implica na priorização da sereni-
dade espiritual, impossível de ser conquistada diante dos tor-
mentos da pólis. Sabe-se que os escritos de Cícero foram muito
importantes entre os humanistas, sobretudo por estimular o
aperfeiçoamento ético, filosófico e político por meio do par
sabedoria/eloquência (Adverse, 2009, p. 130-143).
Sêneca (2009, p. 34), por sua vez, afirma que a seita de Epi-
curo “tem má reputação, é difamada, mas sem razão”. Ela é
comumente criticada por eleger o prazer como requisito para
a felicidade. No entanto, como vimos anteriormente, o “pra-
zer” do qual fala Epicuro é específico. Sêneca afirma que “os
preceitos de Epicuro são veneráveis e retos”, pois o “prazer é
reduzido a proporções mínimas e exíguas” (2009, p. 33). Mui-
tos, no entanto, buscam em seus escritos “patrocínio e pretex-
to para suas paixões carnais” (Sêneca, 2009, p. 32).
Na sequência, Sêneca (2009, p. 21) aconselha o leitor: “que
sua confiança não seja desprovida de prudência, nem sua pru-
dência destituída de firmeza”. A felicidade, para ele, pertence
àquele que possui juízo reto e, em decorrência disso, “confia à
razão todas as situações da sua vida”. Nossa guia deve ser a
natureza: “a razão a observa e consulta”. A virtude, em con-
sonância com a natureza e com a razão, “aguça os ouvidos”,

130
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
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pesa os prazeres antes de admiti-los e “não dá valor aos que


aprovou; é verdade que os admite, porém se alegra não em
usar deles, mas em moderá-los” (Sêneca, 2009, p. 26). Apesar
de simpatizar com alguns escritos de Epicuro, Sêneca reafirma
constantemente sua afinidade com o estoicismo. Na esteira de
Cícero, ele destaca a importância da participação do homem na
vida pública. De acordo com Norberto Luiz Guarinello (1996),
esta dimensão política muitas vezes é negligenciada pela his-
toriografia, que costuma focalizar o caráter individualizante
do estoicismo romano sem matizar que parte significativa da
elite política romana recorria à ética dos estoicos para unificar,
no universo das relações humanas, a vida privada e a existên-
cia pública. Foi Sêneca, afinal, que atribuiu a Nero a imagem
do rei-filósofo, que “ocupa entre os homens, como coletivida-
de, a posição que a razão ocupa no homem como indivíduo”.
Convém retomar, após esta breve digressão com Sêneca,
uma passagem do livro Da amizade na qual Cícero (2001, p. 4)
elogia Quinto Múcio Cévola. O autor afirma: quando Cévola
“argumentava prudentemente ou emitia sentenças breves e
eloquentes, eu memorizava com cuidado suas palavras e tra-
tava de tornar-me mais douto graças à sua prudência”. Esta
passagem, que integra o preâmbulo da obra, destaca a centra-
lidade da prudência, ressalta a importância das sentenças pro-
venientes de homens experimentados e valoriza a memória.
Para Cícero, a prudência se divide em três partes: memória,
inteligência e providência. Ela se encontra associada necessa-
riamente à deliberação e à eloquência. Felipe Charbel (2008,
p. 63) afirma que, para Cícero, o aprendizado da prudência,
que depende sobremaneira da eloquência e do conhecimento
prático, “se dá pela observação atenta e respeitosa dos grandes
homens do presente e leitura sobre os grandes homens do pas-
sado”. Logo, esta virtude designa uma disposição intelectual

capaz de articular o entendimento do passado, a visão


do presente e a antevisão do futuro, de modo a pos-
sibilitar a urdidura de juízos honestos, desejáveis por

131
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

si mesmos e em acordo com a virtude e suas partes.


(Teixeira, 2008, p. 62)

Tomás de Aquino (2005, p. 156-171) também busca enten-


der o conceito de prudência. Em 2005, Jean Lauand editou um
tomo da Suma Teológica no qual o teólogo, em diálogo com
Aristóteles, discorre sobre o conceito em questão. Ele defi-
ne esta virtude como recta ratio agibilium (reta razão aplica-
da ao agir), uma forma de razão prática que leva o homem
a priorizar o bem comum em detrimento de suas vontades
particulares. Esta premissa afina-se aos dizeres de Aristóteles
(2009, p. 132-134) quando, em sua Ética a Nicômaco, afirma que
a sensatez é a capacidade de agir com prudência (phrônesis) e
temperança (sofrosyne), o que implica levar em consideração o
bem-estar geral. A valorização do bem comum, conceito que
integra a matriz das reflexões de Aquino sobre a prudência,
implica o abandono das vaidades, dos laços profanos e iní-
quos, e a total devoção ao corpo místico da Igreja que, em
tese, deveria ser regido organicamente, de modo a unir todos
os seus agregados/subordinados em torno de protocolos in-
teiramente cristãos. Tal como o corpo humano, que deve man-
ter seus membros em harmonia para não haver prejuízos no
seu funcionamento, também a Igreja deveria unir os fiéis e ex-
purgar ou expulsar os contrários. Pode parecer contraditório,
mas o livre-arbítrio, neste caso, deve servir à subordinação
voluntária do sujeito à conformidade do bem-estar humano.
Neste sentido, é preciso que a aproximação entre Aristó-
teles e Aquino não obscureça algumas reservas a serem feitas,
pois o primeiro escreve sobre um modelo de ação voltado para
a relativa suficiência do homem. A prudência em Aristóteles
seria uma virtude intelectual que possibilitaria a orientação
das ações humanas tendo em vista o seu teor incerto e, na
maioria das vezes, imprevisível. Tomás de Aquino, por sua
vez, afirma que a prudência é parte de um modelo de conduta
inteiramente afinado à vontade da Providência. Este modelo
reproduz os desígnios divinos ainda que pautado nas limita-

132
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

ções humanas, tratando-se, portanto, de um atributo que se


situa entre a virtude intelectual e a virtude moral. Embora
ambos concordem com a definição da prudência como “reta
razão aplicada ao agir”, é preciso quebrar com a noção anacrô-
nica segundo a qual Tomás de Aquino adequa-se inteiramente
à doutrina aristotélica. Caso contrário, ele haveria de negar a
própria doutrina cristã, à qual se agarrou com tanto fervor.
Em sua tese de doutoramento, Felipe Charbel Teixeira
questiona o conceito de prudência em Maquiavel (1469-1527)
e em Guicciardini (1483-1540), afirmando que, na acepção de
ambos os florentinos, esta virtude remonta a uma “reta ra-
zão”, ainda que sob novas vestes. No caso, a prudência tra-
duz-se em uma maneira de lidar com o contingencial, com
o incerto. Daí a metáfora que Teixeira faz alusão no título de
sua tese: “timoneiros”, tópica que remonta à arte da navega-
ção. Um bom navegante deveria ter bom juízo e ser capaz de
examinar as transformações e sutilezas das coisas humanas e
antever os acidentes. Convém lembrar, com Hansen (2005, p.
181), que Platão e os estoicos gregos

sistematizaram a alegoria do piloto que conduz o na-


vio a um porto seguro através do mar tempestuoso,
para significar o bom governante que conduz a cidade
com segurança através das dificuldades políticas.

A tomar pelos escritos de Maquiavel e Guicciardini, Tei-


xeira (2008, p. 17) destaca a possibilidade de conjugação entre
o cálculo preciso e a boa administração das práticas letradas,
que delineiam retoricamente categorias comuns e necessárias
à preservação de um padrão de prudência. Em outras pala-
vras, ser prudente implica poder estimar, conforme as cir-
cunstâncias e ocasiões, as possibilidades de agir com precisão
e sucesso, sem esquecer ou desvalorizar as práticas letradas
e os argumentos de outrora. Trata-se não mais da phrônesis
aristotélica, tampouco da prudentia tomista, mas de um novo
padrão de retidão: “uma prudenzia distanciada do quadro das

133
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

virtudes cardeais e dos imperativos éticos que a atrelavam à


justiça e às demais virtudes morais”.
Este atributo passa a ser concebido, então, como “dispo-
sição calculativa retoricamente vinculada ao decoro letrado
dos gêneros discursivos e à produção de efeitos persuasivos”
(Teixeira, 2008, p. 17). Para Teixeira (2008, p. 82), portanto, a
prudência em ambos os autores que estuda não deixa, em ab-
soluto, de ser uma recta ratio. O que se modifica, assevera, é o
que se concebe como “reta razão”, uma vez que Maquiavel e
Guicciardini se distanciam da filosofia segundo a qual esta re-
tidão associa-se a um imperativo ético de justiça. Desta forma,
ambos se aproximam da filosofia aristotélica ao conceber a
prudência como uma disposição prática, distanciando-se, por
outro lado, de Cícero, que considera a interdependência entre
prudência e justiça. Aproximam-se de Cícero, no entanto, ao
atribuírem à prudência um caráter de predição associada, so-
bretudo, aos assuntos políticos. Há, neste aspecto, uma relei-
tura das três dimensões da prudência ciceroniana: memória
– releitura do passado – inteligência – compreensão do pre-
sente – e previsão – antecipação das ocorrências vindouras.
Ao menos no caso de Maquiavel, podemos afirmar que o
homem prudente recorre necessariamente a modelos dignos
de imitação e, neste sentido, talvez haja outra possibilidade de
proximidade com Aristóteles, que, por sua vez, julga a necessi-
dade de existir o phronimos para, então, se prescrever e delimi-
tar um padrão de phronêsis. Além de se certificar da inconstân-
cia da natureza humana, Maquiavel assegura que o passado se
repete insistentemente no futuro, com algumas variações re-
lativas à contingência dos assuntos humanos. Por esta razão,
a imitação dos bons exemplos possibilitaria o cálculo mais ou
menos certeiro e a previsão de ocorrências futuras. Apesar de
não chegar a ser um antídoto preciso contra a fortuna, a pru-
dência é, ao menos, um paliativo que confere ao homem cer-
ta segurança, tornando-o menos vulnerável aos caprichos do
acaso. Assim, Maquiavel adverte que o homem que não possui
virtù pode aparentar tê-la, bastando repetir os passos de um ar-

134
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

queiro prudente que, ajustando a mira do arco, pode vencer os


vários obstáculos dispostos entre o ponto de disparo e o alvo.
Guicciardini não entendia a “imitação” superficial dos anti-
gos como uma solução e, por isso, não apreendia a virtù como
algo estável, muito pelo contrário: ele via a corrupção e a deca-
dência como dados inevitáveis, ainda que passíveis de atenua-
ção. Esta atenuação era devida especialmente à intervenção de
homens prudentes, dotados de rapidez e de meios adequados
para antecipar as ações e resoluções dos principais agentes po-
líticos. Para este autor, o homem prudente deve ser perspicaz,
unindo a “prudência natural” que lhe é comum à experiência,
sem desconsiderar o papel da “educação retórica”. Tal homem é
reconhecido pela sua flexibilidade e pela capacidade de adapta-
ção perante as “coisas do mundo”, sejam elas acidentais – atre-
ladas à fortuna – ou substanciais – e, portanto, imutáveis. Não é
o caso de Guicciardini desvalorizar os escritos antigos, mas de
considerá-los tal como Maquiavel, valendo-se de um juízo reto
que não abdique as circunstâncias históricas do presente.
As ações de Vasco da Gama muitas vezes reforçam a hie-
rarquia política e, portanto, as ambições de seu rei. Mas seria
lícito dizer que o éthos de Gama é absolutamente pautado na
virtude da prudência? Se seguirmos os passos de Hélio Al-
ves (2001, p. 449-511), a resposta a esta questão seria negativa.
Para ele, há um desajuste entre o retrato do protagonista pin-
tado n’Os lusíadas e as descrições dele presentes nas crônicas
históricas, que consideram Gama um homem prudente e sá-
bio. No caso da epopeia, estariam ausentes os qualificativos
necessários para a configuração de um herói que, pelo contrá-
rio, chega mesmo a reproduzir certas ações viciosas. Dentre
as imprudências que Hélio Alves encontra espalhadas pelo
poema, destaca-se a falta de tato diplomático do capitão, des-
cuidado a ponto de maldizer os turcos (com quem os povos de
Moçambique mantinham relações amigáveis) e contradizer a
crença do xeque. Assim, o ódio dos mouros seria devido não
ao cristianismo, mas à maneira como o capitão-mor se ma-
nifestou frente a eles. O poeta, portanto, teria desconstruído

135
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

o caráter e a conduta do herói, esvaziados da prudência que


cronistas como Fernão Lopes de Castanheda e João de Barros
lhe quiseram atribuir. A ingenuidade de Gama se faz presente
em outros momentos, como no episódio em que aceitou, sem
hesitar, o piloto enviado pelo xeque de Moçambique. Parecia
faltar a Gama, no caso, a capacidade preventiva. Muitas de
suas faltas, no entanto, acabaram sendo compensadas pela in-
tervenção dos deuses mitológicos, como Vênus e sua equipe.
Embora o poeta lhe atribua qualidades, as ações do protago-
nista, segundo Alves, não corresponderiam às virtudes que
Camões valorizava. Seria o caso do episódio em que o capitão
engana o Samorim, ao dizer que as pretensões do rei portu-
guês seriam travar amizade e acordos comerciais. Tratar-se-
-ia, portanto, de falsas promessas, como fica claro ao longo do
poema. É como se o capitão não pudesse emular as virtudes
que o poeta tanto valorizava.
Para alegar a falta de prudência demonstrada no modo
como Vasco da Gama conduziu suas ações, Hélio Alves disse
que mesmo uma conduta condenável pode reforçar um éthos
prudente, pela inversão. Por outras palavras, com a denúncia
de um falso herói, poder-se-ia reforçar o padrão ético encomia-
do pelo aedo. A prudência que faltou a Gama, a Sepúlveda, a
muitos dos navegantes que experienciaram um naufrágio, não
deixaria de reforçar uma determinada retórica prudencial.
Se há desajuste entre os dizeres e a conduta de Gama,
de fato falta-lhe prudência em algumas passagens, tendo em
vista que este conceito insinua a aplicação da reta razão ao
agir. Mas falar de um “falso herói” seria, contudo, exage-
ro. Se os deuses mitológicos intervêm para sanar as falhas
do protagonista, isto decorre do papel nuclear exercido por
Deus, que utiliza Gama como seu arauto. Camões precisou
incorporar o sentido providencial da história não apenas
para justificar o uso do maquinário mitológico, mas também
para retratar os limites do homem português. A experiência
singular da empresa ultramarina não pressupõe a “restaura-
ção” do cosmos, prioridade esta dos heróis antigos. O cam-

136
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

po de experiências, no caso da viagem de Vasco da Gama,


não daria conta das ações por ela inauguradas. Não se trata,
portanto, de restaurar uma ordem perdida, mas de trilhar
um caminho novo contando com o amparo divino.
A conduta de Gama não é impecável, mas sua subser-
viência à vontade providencial, refletida na virtude da cari-
dade, assegura seu amparo e o posterior sucesso da empre-
sa. Isto porque ele é um dentre os vários instrumentos que
Deus mobiliza para obrar em Seu nome. Mas isto não quer
dizer que a prudência não seja requerida, sobretudo em se
tratando das viagens ultramarinas.
Os relatos de naufrágio também indicam alguns cami-
nhos prudentes que poderiam impedir incidentes marítimos.
De acordo com Manuel Severim de Faria, o que mais causava
naufrágios era o tamanho da nau e o concerto mal feito com
uso inadequado da querena. Na época de D. Manuel, diz ele,
as naus não ultrapassavam 400 toneladas. No reinado de D.
João, as naus atingiram 800, 900 toneladas, tudo para atender
ao comércio. Poupar em não colocar outros vasos (navios ou
galés) e transportar mais pimenta, que pareciam duas van-
tagens, acabaram se mostrando desvantagens: a quantidade
muito grande de pessoas (700, 800 homens) acentuava a dis-
seminação de doenças, ocasionando um grande número de
baixas. Em segundo lugar, o grande número de pessoas esti-
mulava a sobrecarga, entulhando caixas e outros bens diver-
sos. Faria fala particularmente dos anos de 1591 e 1592, em
que partiram 22 embarcações do reino, e apenas duas volta-
ram, isto porque estas eram mais frágeis e vieram com pouco
carregamento. De acordo com o autor, houve um crescente
endividamento no reinado de D. João, e D. Sebastião busca
remediar a situação, imprimindo um regimento em 1570,
que limitava a tonelagem das naus em 450. No reinado de D.
Felippe, que, talvez por ironia, foi chamado de o prudente,
mais uma vez as naus são ampliadas. Como os custos eram
exorbitantes em termos de manutenção, resolveram utilizar
a querena italiana, que não era conveniente às naus da Car-

137
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

reira da Índia. De três naus que partiam, afirma Faria (1655,


p. 241-246), raramente chegavam duas, havendo um agrava-
mento dos naufrágios. O superficial concerto das naus, com
a querena italiana, é outro fator agravante. Ele menciona o
caso da relação de naufrágio da nau S. Alberto, atribuída a
João Batista Lavanha, e afirma que as naus pequenas eram
mais ágeis, recepcionavam melhor os ventos, se mostravam
mais eficazes em situações de peleja, pediam menos fundo, ao
contrário das naus maiores, e não se conformava com a cobiça
dos marinheiros portugueses, que excediam a carga e não se
atentavam para a disposição dela.
De acordo com João Batista Lavanha, as tormentas do
cabo da Boa Esperança não causaram o naufrágio da nau
Santo Alberto, mas sim a querena (ou carena, parte do navio
que fica abaixo do nível da água) e a sobrecarga, resultado
da “cobiça dos contratadores e navegantes”. Além disso, ele
relata a negligência dos artífices, a má escolha da madeira e a
imprudência dos marinheiros.
Em suma, a cobiça pode causar a perdição da nau: por
intermédio dos contratadores, que para poupar gastos recor-
riam à querena italiana, inapropriada à navegação portugue-
sa, por intermédio dos artífices, que, na construção e conserto
das naus, cortavam a madeira em tempo inapropriado ou re-
mendavam superficialmente as rachaduras, e por intermédio
dos próprios navegantes, que sobrecarregavam a nau e/ou
distribuíam a carga de maneira indevida.
João Batista Lavanha escreve alguns textos sobre arquitetu-
ra naval, na tentativa de orientar os arquitetos por meio de uma
arte criada a partir da “grosseira prática dos fabricantes de na-
vios”, enumerando e discorrendo sobre preceitos que pudes-
sem orientar a construção das naus. Vários conhecimentos são
requisitados: sabedoria, prudência, habilidade e competência
discursiva. Além disso, é preciso entender de astronomia, para
que o corte da madeira respeite às influências do céu; aritmé-
tica, para calcular os gastos e utilizar os recursos necessários;
geometria, para a projeção e a construção das partes da nau;

138
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

mecânica, para a criação de máquinas e aparelhos necessários


à navegação. Há, pelo menos, quatro etapas da construção de
uma nau: inicialmente, o navio toma forma na imaginação.
Esta forma é aperfeiçoada pelo entendimento e transposta para
a planta, por meio da qual se emenda as falhas da imagina-
ção. Não basta saber as medidas, é preciso também construir
um modelo, que possa servir de exemplo para as construções.
De acordo com Lavanha, engana-se aquele que acredita poder
construir uma nau conhecendo exclusivamente as medidas.
As melhores madeiras, afirma Lavanha, provêm da teca e
do angelim, naturais da costa do Malabar. Em Portugal, deve-se
priorizar o azinho e o sobro. Convém que a madeira seja rija,
para resistir ao ímpeto do mar; enxuta, para não apodrecer; de
sumo amargo e resinento, para evitar o busano (molusco que
ataca a madeira não apenas das naus, mas também dos cais e
embarcadouros); e branda, para não estalar depois de lavrada.
Além disso, é preciso observar os sinais da natureza: as folhas e
frutos muito comunicam sobre o interior das árvores, sua natu-
reza. Por isso, convém as árvores de casca áspera, folhas crespas
e fruto duro, pois oferecem uma madeira densa e forte. Melhor
as árvores que crescem devagar, pois são mais fortes. O corte no
momento certo, depois que dão fruto; e a observância da lua,
deve cortar nas minguantes da lua dos dois meses mais chega-
dos ao princípio do inverno, dezembro e janeiro, pois se acredi-
tava que a lua tinha a umidade por qualidade, e que sua maior
proximidade com a terra acarretava o levantamento de vapores
úmidos, umedecendo e amolecendo os corpos a ela sujeitos.
Melchior Estácio do Amaral também discorre sobre os
cuidados que se deve ter em relação à madeira e mencio-
na a impertinência da querena italiana, inadequada para a
Carreira das Índias. Quando trata da sobrecarga, Amaral
menciona várias naus (S. Lourenço, Reis Magos, Salvador, S.
Tomé, S. Francisco dos Anjos, S. Luís, Santo Alberto, Nazaré, S.
Cristóvão, S. Paulo, Nossa Senhora do Rosário) que naufraga-
ram entre os anos de 1585 e 1595. Foram 38 naus perdidas
num espaço de 20 anos (1582-1602). Algumas por desastres,

139
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

outras devido à cobiça decorrente da sobrecarga. Apontam-


-se duas grandes causas: partida tardia de Lisboa, causa da
arribada, e partida sobrecarregada da Índia, causa de perdi-
ção (ambas são remediáveis, alerta Amaral).
No caso da História Trágico-Marítima, menciona-se a parti-
da tardia dos galeões São João, que parte de Cochim em feve-
reiro de 1552, e São Bento, que desamarra da barra de Cochim
em fevereiro de 1554; e das naus Águia e Garça, que partem de
Cochim em janeiro de 1559. Embora não seja a causa funda-
mental dos incidentes ocorridos com as naus Santa Maria da
Barca, São Tomé e Santo Alberto, todas elas não conseguiram
partir de Cochim no mês de dezembro, por isso não consegui-
ram dobrar o cabo de Boa Esperança.
A enumeração das negligências cometidas ao longo da
travessia marítima e as censuras proferidas pelo velho na
praia de Restelo coadunam-se, ao que parece, num projeto
prudencial e providencial, pois valorizam a reta razão (na
mesma medida em que censuram a sua falta) enquanto cami-
nho conveniente na concretização da “política do céu”. Sacri-
ficar-se, tombar em campo de batalha por uma causa nobre,
hospedar o próximo, valorizar o bem comum em detrimento
das vontades particulares, navegar com prudência pelos ma-
res bravios, temer a Deus, crer em Sua divina misericórdia:
estas são algumas das ações associadas ao éthos prudente e ca-
ridoso sobre as quais poetas e narradores discorreram, como
forma de deixar entrever não somente a miserável condição
em que o homem poderia encontrar-se, mas também a pos-
sibilidade de se compreender as venturas e desventuras da
expansão portuguesa nos quadros de uma história salvífica
da qual os portugueses seriam coautores.

Astúcias e enganos

Do latim hospitium, hospitalidade designa o ato de hospe-


dar, o acolhimento afetuoso. Nas epopeias de Homero e Vir-
gílio, a palavra hóspede detinha um sentido duplo, pois de-

140
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

signava aquele que hospeda e aquele que é hospedado. Neste


caso, é possível distinguir uma espécie de pacto baseado na
philia, termo grego que nos remete tanto à noção de amizade
quanto à de amor. Philoi eram, por exemplo, os membros de
um genos, unidos não apenas pelo sangue, mas também por
um pacto de ajuda mútua que deveria ser sustentado entre fa-
miliares. Também eram philoi os aliados políticos, os cidadãos
de uma mesma pólis, os companheiros de armas e, o que nos
interessa aqui, os hóspedes. Em um episódio da Ilíada, Dio-
medes interrompe sua luta contra Glauco ao descobrir que
seus pais estavam ligados pela xenia, caracterizada pela troca
de dádivas e de respeito entre os “contratantes” (Silva, 2004).
A partir do momento em que Ulisses, sob as ordens de Aga-
mêmnon, parte rumo a Troia em respeito ao pacto existente en-
tre eles, a desventura começa a fazer parte de sua jornada. Dez
anos após sua partida, durante seu regresso, uma sucessão de
infortúnios lhe acomete: a oposição do deus Poseidon, em razão
do assassinato de Polifemo; o canto inebriante das sereias; a ação
dos Lotófagos, que oferecem a flor de lotos simulando os dons
da hospitalidade; a sedução de Calipso, que tenta imputar-lhe a
hybris (o excesso) ao oferecer-lhe o dom da imortalidade, atribu-
to divino. A imortalidade e o esquecimento, no caso, poderiam
desestruturar o cosmos: a perda da condição de homem (que
o deixaria deslocado, sem lugar, uma vez que não seria mais
humano, mas também não seria um deus) e o esquecimento da
frátria, do genos e de suas origens, poderiam impedir o seu re-
gresso. Após enfrentar todos estes contratempos, Ulisses ainda
encontra resistência em sua própria casa, onde se encontravam
alojados os pretendentes de Penélope, sua esposa.
Como afirmamos há pouco, Poseidon dificultou o retorno
do herói devido ao assassinato de Polifemo, ciclope que apri-
sionou Ulisses e doze de seus companheiros, alimentando-se
de meia dúzia deles. A falta de hospitalidade, neste caso, con-
trasta com as recepções afetuosas por parte de Nestor e Me-
nelau, quando Telêmaco, filho de Ulisses, visita-os para saber
do paradeiro de seu pai. De um lado, portanto, há os “homens

141
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

comedores de pão”, que se dedicam ao labor e se alimentam


da carne de animais sacrificados em homenagem aos deuses.
Este é, por definição, o espaço da sociabilidade, circunscrito ao
ambiente da pólis. Por outro lado, existem seres “marginais”,
cujos hábitos são estranhos e heterodoxos. Quando Ulisses se
depara com os Lotófagos, por exemplo, define-se aí um espaço
no qual a agricultura inexiste, assim como limites geográficos
precisos. Os habitantes ali são indiferentes à sociabilidade.
Nada de trigo, nada de pão, nada de hecatombes em homena-
gem às deidades. Este seria o caso de Polifemo que, além de
praticar a antropofagia, chega a zombar do “Zeus hospitalei-
ro”, quando acolhe os visitantes gregos com grilhões.
Em outra passagem, Ulisses, que havia chegado a Ítaca
disfarçado, recebeu os dons da hospitalidade a mando de Pe-
nélope. A governanta Euricléia, ao lavar os pés do herói, per-
cebe uma cicatriz na sua coxa e reconhece seu antigo senhor.
Ela é tomada por um alegre sobressalto, mas Ulisses a contém,
pois ainda não era o momento adequado para a revelação.
Auerbach (2002, p. 1) afirma que o ato de lavar os pés é “usual
nas velhas estórias como primeiro dever de hospitalidade”.
Escalado para cumprir os desígnios divinos, Eneias, no
livro IV da epopeia virgiliana, abandona Dido, sua anfitriã e
amante, e rompe com os laços de hospitalidade. Assim, o he-
rói segue o seu itinerário. Desiludida, Dido comete suicídio,
não sem antes conjurar uma reação por parte dos deuses, que
haveriam de vingá-la, haja vista a decepção por que passou.
Sabe-se que seus rogos não foram em vão, pois vários infor-
túnios dificultaram o itinerário de Eneias e sua tripulação.
Antes de cogitar as motivações de Eneias ao partir, convém
recordar que a primeira a romper com a fides foi Dido, que
teme consequências nefastas ao não cumprir o seu dever
para com Siqueu, a quem estava ligada por um pacto for-
te. A personagem se deixa levar pela paixão provocada por
Eneias. No entanto, persuadido por Mercúrio, porta-voz de
Zeus, o herói prepara sua partida em segredo. Dido, ao de-
votar ao troiano amor e fides, acaba abandonando seu povo,

142
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

o que alguns críticos apreendem como sendo um fracasso de


sua missão. Se Eneias parte quando vê sua Troia sendo con-
sumida pelo fogo, Dido também parte com parcela de seu
povo para fugir da tirania de Pigmalião, rei de Tiro e seu ir-
mão. Em outras palavras, Dido rompe com a fides devotada a
Siqueu, abandona sua missão (o que constitui a hamartia, isto
é, o grave erro) em prol da consumação de um amor; Eneias,
a pedido de Zeus, segue sua viagem e rompe com a hospita-
lidade oferecida por Cartago para consumar sua missão.
Talvez um bom caminho para se pensar a fides seja reto-
mando o conteúdo de uma carta, atribuída a Ovídio, na qual
são narradas as últimas palavras de Dido antes do suicídio.
Na carta, são vários os argumentos retóricos utilizados pela
personagem para deter Eneias em Cartago: como nos mostra
Márcia Regina de Faria da Silva (2006, p. 41-50), os versos são
fortes e demonstram a desilusão de Dido:

Contudo estás decidido a ir e abandonar a infeliz


Dido, / E os mesmos ventos levarão as velas e a fi-
delidade? / Estás decidido, Eneias, a soltar os navios
com a aliança, / A perseguir os reinos da Itália, que
ignora onde estejam?

O primeiro argumento, portanto, fundamenta-se no rompi-


mento da palavra do herói, do pacto entre as partes envolvidas.
Outro comentário, igualmente forte, tem por tema o paradeiro
dos penates, imagens de divindades adoradas geralmente em
âmbito privado, que Eneias salvara de Troia: “A onda submergi-
rá os deuses arrebatados dos incêndios?” (Silva, 2006, p. 41-50).
No desfecho da epopeia, o herói troiano enfrenta Teucro
em campo de batalha. Após vencer o duelo, o protagonista
poderia poupar seu adversário, que, desarmado, pedia cle-
mência. Para efetivar um antigo acordo de gratidão firmado
com Evandro, no entanto, o herói assassina seu oponente.
Evandro havia hospedado Eneias e concedido um batalhão
de soldados a ele, dentre os quais se destacava seu único filho,

143
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Palante, morto em combate pela destra de Teucro. O troiano,


atendendo aos rogos de um pai desconsolado que precisou
enterrar o próprio filho, não poupou seu oponente, sobretudo
ao visualizar o cinturão de Palante que Teucro vestia. Eneias,
neste momento, “arde em fúrias, e a ira o faz terrível” (Virgí-
lio, 2004, p. 410). Trata-se de um episódio enigmático, sujeito
às mais variadas indagações.
O termo latino pietate, utilizado para caracterizar Eneias,
não pode ser equiparado à piedade em sua conotação cristã. A
pietas romana consistia na obediência irrestrita aos deuses e aos
superiores hierárquicos. O adjetivo pius, proveniente de pietas, é
muito recorrente na Eneida: trata-se de um epíteto que “indica o
estrito cumprimento dos deveres para com os deuses, a família
e o Estado, cumprindo a vontade de Júpiter, em consonância
com o destino” (Vasconcellos, 2004, p. XII). Aristóteles (2005, p.
184-186) afirma que a piedade consiste numa certa pena causa-
da pela aparição de um mal destruidor e aflitivo que afeta quem
não merece ser afetado. O que é reforçado, aqui, é a ideia de
empatia (ou simpatia), que reforça o sentimento de reciprocida-
de na medida em que o observador apiedado calcula que o mal
que aflige o outro pode recair sobre si e sobre seus pares.
Quais são as implicações contidas num desrespeito delibe-
rado frente às asseverações dos deuses? O que se diria de uma
quebra do pacto entre amigos, e, portanto, entre iguais? Aca-
tar as vontades de Dido e poupar a vida de Teucro implicaria
nestes dois atos, que sugerem transgressão em duas direções:
em relação à fronteira estabelecida entre homens e deuses e
no rompimento da fides, que reforça um pacto de gratidão e
reciprocidade. Quanto à ira que move Eneias a eliminar seu
oponente, devemos recordar, com Aristóteles (2009, p. 73-74),
que existe uma relação possível entre a ira e a coragem: para o
filósofo, a ira “é o que há de mais arrojado para fazer alguém
atirar-se na frente do perigo”. No entanto, os corajosos “agem
por causa da glória, a ira apenas colabora com eles”. Esta co-
ragem “nascida da ira parece basear-se inteiramente numa
natureza instintiva. Quando se lhe acrescenta a decisão e o
fim em vista, então, pode valer como verdadeira coragem”.

144
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

O comportamento de Enéias revela três valores romanos


fundamentais: a pietas, a uirtus e a humanitas. Movido pela
uirtus, o herói pondera seu agir, não empreende uma busca
desenfreada pela areté (glória) guerreira e prioriza o bem-
-estar do grupo com valentia e retidão. A pietas, por sua vez,
reforça um senso de reciprocidade, sobretudo de dever em
relação aos deuses. Predestinado, Enéias foi incumbindo de
liderar uma empresa que repercutiria na fundação de Roma.
Ao recusar o amor de Dido, o herói reafirma a sua missão.
Quando clama por vingança, a rainha de Cartago é atendida:
os comentadores observam que o “vingador” reclamado pela
personagem “é o prenúncio de Aníbal” e, portanto, de uma
das Guerras Púnicas. Paulo Sérgio de Vasconcellos (2004, p.
XIII) acredita que não apenas Aníbal, mas também o guerrei-
ro Turno busca efetivar a vingança clamada por Dido em seu
embate final contra Enéias, mas sem sucesso.
Há inúmeras passagens bíblicas que levantam juízos so-
bre a hospitalidade. Lê-se, por exemplo, no livro dos hebreus:
“Não vos esqueçais da hospitalidade, pela qual alguns, sem
o saberem, hospedaram anjos” (Hebreus 13: 2). Em Levítico
há uma recomendação semelhante: “Se um estrangeiro vier
habitar convosco na vossa terra, não o oprimireis, mas este-
ja entre vós como um compatriota, e tu o amarás como a ti
mesmo” (Levítico 19: 33-34). Em uma passagem de Gênesis
(18: 1-15), Deus aparece a Abraão num dia de muito calor por
meio da figura de três homens. Abraão rapidamente prostra-
-se diante deles, dizendo-lhes: meus senhores, “se encontrai
graça diante de vossos olhos, não passeis avante sem vos de-
terdes em casa de vosso servo. Vou buscar um pouco de água
para vos lavar os pés”. Nota-se que o primeiro procedimento
seguido se assemelha àquele adotado para com Ulisses, quan-
do é acolhido em sua própria casa. Abraão continua:

Descansai um pouco sob esta árvore. Eu vos trarei um


pouco de pão, e assim restaurareis as vossas forças
para prosseguirdes o vosso caminho; porque é para
isso que passaste perto de vosso servo.

145
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

O procedimento de oferecer alimento antes da conversa-


ção também se faz presente na Odisseia, no episódio em que
Ulisses é acolhido na corte do rei Alcíno. Por fim, os três ho-
mens aceitam o convite de seu servo.
Abraão pediu a Sara, sua esposa, que cozesse alguns pães.
Em seguida, deu ao seu servo um novilho para ser abatido.
Por fim, pegou a manteiga e o leite, servindo os peregrinos,
que comeram sob a árvore. Quando todos estavam saciados,
um deles disse ao anfitrião: “Voltarei à tua casa dentro de um
ano, a esta época; e Sara, tua mulher, terá um filho”. Convém
mencionar que Abraão e Sara já eram velhos. Esta, ouvindo
por detrás da tenda, sorri em segredo, imaginando se aquilo
seria possível. O Senhor, então, diz ao anfitrião: “Por que se riu
Sara, dizendo: ‘Será verdade que eu teria um filho, velha como
sou?’ Será isso porventura uma coisa muito difícil pro Senhor?
Em um ano, a esta época, voltarei à tua casa e Sara terá um
filho”. Deus concede ao casal um dom, pois encontrou em seu
servo uma fides inabalável e um acolhimento atencioso.
Outra passagem (Gênesis 19: 1-29) apresenta as circuns-
tâncias a partir das quais Sodoma é destruída. Lot, antes da
destruição, acolhe em sua casa dois estrangeiros e oferece-lhes
abrigo. A princípio, eles se recusam, mas Lot insiste e os per-
suade. No entanto, a população de Sodoma se reúne para ex-
pulsar os forasteiros, mas o anfitrião protege seus hóspedes:

Suplico-lhes, meus irmãos, não cometeis este crime.


Ouvi: tenho duas filhas que são ainda virgens, eu vo-
-las trarei, e fazei delas o que quiserdes. Mas não façais
nada a estes homens, porque se acolheram à sombra
do meu teto. (Gênesis 19: 7-8)

A população não lhe dá ouvidos e avança sobre ele, mas


os dois estrangeiros salvam-lhe a vida. Ambos eram anjos,
enviados para destruir a cidade e aniquilar a população que
nela vivia. Antes, no entanto, eles pedem a Lot que reunisse
sua família e amigos o quanto antes. Todos eles seriam pou-
pados graças à postura assumida pela personagem.

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Uma passagem de Lucas (7: 36-50) trata de uma “peca-


dora perdoada” que, descobrindo que Jesus encontrava-se na
casa de um fariseu, vai até lá com um vaso de alabastro cheio
de perfume. Quando chega, ela chora na presença do Senhor,
derrama lágrimas em seus pés e enxuga-os com os cabelos,
beijando-os e ungindo-os com perfume. O fariseu, de nome
Simão, pensa: se aquele homem fosse de fato um profeta, sa-
beria que a mulher prostrada à sua frente era uma pecadora.
Jesus, então, conta-lhe sobre um credor que perdoou a dívida
de dois homens: um deles devia-lhe cinquenta denários e o
outro quinhentos denários. Jesus perguntou-lhe qual dos de-
vedores amará mais o credor, ao que Simão responde: “aque-
le a quem ele mais perdoou”. O Senhor concorda e, voltando-
-se para a mulher, diz: “Vês esta mulher? Entrei em tua casa
e não me deste água para lavar os pés; mas esta com as suas
lágrimas regou-me os pés e enxugou-os com seus cabelos”.
Mais uma vez este ritual se faz presente, como digno da pie-
dade do Senhor, que continua:

Não me deste o ósculo: mas esta, desde que entrou,


não cessou de beijar-me os pés. Por isso te digo: seus
numerosos pecados lhe foram perdoados, porque ela
tem demonstrado muito amor. Mas ao que pouco se
perdoa, pouco ama.

Afirmamos que a noção de pietas presente nas epopeias


de Homero e, sobretudo, na Eneida de Virgílio, não é similar
à piedade cristã. Esta talvez seja a oportunidade adequada
para discorrer um pouco mais sobre ela, utilizando as refle-
xões de Tomás de Aquino, para quem a piedade deve existir,
em primeiro lugar, em relação a Deus. Esta, diferentemente
de todas as outras, deve ser inquebrantável. No mais, deve
existir piedade em relação aos consanguíneos ou familiares,
aos concidadãos e aos amigos da pátria. Neste caso, a pie-
dade associa-se a uma situação de dever para com o outro.
É a posição de devedor que fortifica o pacto entre as partes

147
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

envolvidas, pois quem deve precisa pagar. O homem piedo-


so, em primeiro lugar, tem uma obrigação a cumprir: prestar
serviço às pessoas para as quais deve. Em segundo lugar, ele
precisa honrar seus acordos “dentro das devidas medidas”,
jamais colocando em segundo lugar a piedade em relação a
Deus. Há, portanto, uma diferença entre a piedade e o res-
peito: a primeira é devida ao Senhor e às pessoas próximas; o
respeito é devido às pessoas mais distantes, para as quais não
devemos muitas obrigações.
Podemos perceber na obra de Dante Alighieri um eco
desta intolerância frente à falta de hospitalidade. Dentre as
quatro zonas do Cocito, rio congelado que cruza o nono cír-
culo infernal, situa-se a Tolomea, que confina os traidores de
hóspedes. O apelido que recebe remete-nos a duas fontes: a
primeira referente ao faraó Ptolomeu que, parar agradar Júlio
César, envia-lhe a cabeça decapitada de Pompeu, seu hóspe-
de. Há, por outro lado, a personagem bíblica de Ptolomeu,
governador de Jericó, que matou Macabeu, seu cunhado, e
os filhos deste, durante um jantar em sua casa. Independen-
temente da versão adotada, o propósito de Dante mostra-se
claro. Interessante perceber que, diferente de todas as outras
almas danadas, a do traidor de comensais é lançada ao In-
ferno no mesmo momento do delito. No entanto, seu corpo
continua a viver, possuído por um demônio.
Dante encontra-se com Alberigo, da família Manfredi, um
dos chefes dos Guelfos em Florença. Ele mandou matar um ir-
mão e um sobrinho que tinha convidado para jantar. A puni-
ção que recebe é dura, a ponto de fazê-lo implorar a Dante e
a Virgílio o seguinte: “um de vós dois o viso me desvele,/ que
eu desafogue a dor que o peito emprenha/ um pouco, antes
que o pranto se enregele” (Aliguieri, 2005, p. 229). Mais adian-
te, o poeta avista Branca d’Oria, componente de uma família
ilustre de Gênova, cujo corpo ainda estava no mundo em 1300,
ano em que Dante teria feito sua viagem pelos três planos que
compõem a Comédia. Ele fez massacrar o cunhado, senhor de
Logodero, em 1275, o que justifica a punição que lhe é impu-

148
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

tada. A punição sofrida pelos traidores de hóspedes mostra-se


dolorosa: o “próprio pranto ali chorar não deixa” (Aliguieri,
2005, p. 297), pois as lágrimas logo congelavam. Enterrados no
lago congelado até a cabeça, não podiam retirar a crosta de gelo
que se formava sobre seus olhos. Dante usa uma similitude que
“faz ver” o estado das almas: “o começo das lágrimas ensopa/
e assim como viseiras de cristal/ já enche sob os cílios toda a
copa” (Aliguieri, 2005, p. 297). Dante não atende aos rogos de
Alberigo, mencionado no parágrafo anterior: “Não lhos abri,
reversos;/ e cortesia foi ser-lhe vilão” (Aliguieri, 2005, p. 301).
A tópica da hospitalidade é recorrente nos escritos por-
tugueses, inclusive nas relações de naufrágio. Após o in-
cidente ocorrido com o galeão São João, em 1552, o capitão
Manuel de Sousa Sepúlveda e os sobreviventes chegaram à
praia da Terra do Natal, na África. Depois de alguns meses
caminhando a esmo, os portugueses encontraram um velho
cafre, senhor de duas aldeias. Ele pediu a Sepúlveda e a seus
homens “que não passassem dali, que estivessem em sua
companhia, e que ele os manteria o melhor que pudesse”
(Brito, 1998, p. 14). Conta-nos o narrador:

Assim que este rei cafre apertou muito com Manuel de


Sousa e sua gente que estivessem com ele, dizendo-lhe
que tinha guerra com outro rei por onde eles haviam
de passar, e queria sua ajuda; e que se passassem avan-
te que soubessem certo que haviam de ser roubados
deste rei, que era mais poderoso que ele; de maneira
que, pelo proveito e ajuda que esperava desta compa-
nhia, e também pela notícia que já tinha de portugue-
ses por Lourenço Marques e Antônio Caldeira, que ali
estiveram, trabalhava quanto podia por que dali não
passassem; e estes dous homens lhe puseram nome
Garcia de Sá, por ser velho e ter muito o parecer com
ele e ser bom homem que não dá dúvida senão que
em todas as nações há maus, e bons; e por ser tal fa-
zia agasalhos, e honrava aos portugueses, e trabalhou

149
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

quanto pôde que não passassem avante, dizendo-lhes


que haviam de ser roubados daquele rei com que ele
tinha guerra. E em se determinar se detiveram ali seis
dias. Mas como parece que estava determinado acabar
Manuel de Sousa nesta jornada coma maior parte de
sua companhia, não quiseram seguir o conselho deste
reizinho, que os desenganava. (Brito, 1998, p. 14-15)

O velho cafre acolheu, alimentou e honrou os portugue-


ses como era devido. No entanto, vendo o rei que “o capitão
determinava de se partir dali, lhe pediu que antes que se par-
tisse o quisesse ajudar com alguns homens de sua companhia
contra um rei que atrás lhe ficara” (Brito, 1998, p. 15). Após o
pedido de ajuda, Sepúlveda e os portugueses sob seu coman-
do não puderam recusar, pois o cafre ofereceu-lhe mantimen-
tos e hospedagem. É possível falar de um “pacto”, de uma
conduta recíproca em retribuição à hospitalidade prestada?
Após o episódio acima relatado, o protagonista encontra
outros cafres que, diferentemente dos primeiros, simulam
cordialidade. Ao se encontrarem, os cafres perguntam aos
portugueses o que eles buscavam e oferecem mantimentos e
comida, contanto que os nautas os acompanhassem até onde
se encontrava seu rei, não muito distante.

Dali ao lugar onde estava o rei havia uma légua, e


como chegaram lhes mandou dizer o cafre que não
entrassem no lugar, porque é cousa que eles muito es-
condem, mas que se fossem pôr ao pé de umas árvores
que lhes mostraram, e que ali lhes mandaria dar de co-
mer. Manuel de Sousa o fez assim, como homem que
estava em terra alheia. (Brito, 1998, p. 18)

É notável que, à maneira de Abraão, os cafres convidam os


portugueses para descansar sob a sombra de uma árvore. Os
portugueses ficaram cinco dias sob o cuidado deles, até que
Sepúlveda pede a um deles uma casa para alojar sua mulher
e filhos. Seu pedido é atendido, mas os cafres afirmam que os

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

mantimentos locais se esgotariam caso ficassem ali todos os


seus homens. Como possibilidade, um dos cafres disse que os
portugueses deveriam se separar e seguir com ele para outras
aldeias, onde poderiam encontrar novos mantimentos. Esta
foi a primeira artimanha: dividir os inimigos. Em seguida, o
cafre pediu que entregassem as armas de fogo, prometendo
devolver assim que um navio português viesse buscá-los.
“Como Manuel de Sousa já então andava muito doente e fora
de seu perfeito juízo, não respondeu, como fizera estando em
seu entendimento; respondeu que ele falaria com os seus”
(Brito, 1998, p. 18). A segunda artimanha foi lançada:

o parecer de Manuel de Sousa e dos que com ele con-


sentiram não era de pessoas que estavam em si, porque
se bem olharem, enquanto tiveram suas armas consigo
nunca os negros chegaram a eles. (Brito, 1998, p. 19)

Assim, “mandou o capitão que pusessem as armas, em


que depois de Deus estava sua salvação, e contra a vontade
de alguns e muito mais contra a de d. Leonor, as entrega-
ram” (Brito, 1998, p. 19). Tão logo as armas foram entregues,
os cafres começaram a roubar as posses portuguesas, dei-
xando claras suas verdadeiras intenções.
É possível perceber vultos desta simulação também nas
epopeias portuguesas. Quando o deus olímpico Mercúrio
aparece, em sonho, para Vasco da Gama, a pedido de Júpiter,
ele lhe adverte:

Não tens aqui senão aparelhado


O hospício que o cru Diomedes dava,
Fazendo ser manjar acostumado
De cavalos a gente que hospedava;
As aras de Busíres infamado,
Onde os hóspedes tristes imolava,
Terás certas aqui, se muito esperas.
Foge das gentes pérfidas e feras,

151
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Vai-te ao longo da costa discorrendo,


E outra terra acharás de mais verdade,
Lá quase junto donde o Sol, ardendo,
Iguala o dia e noite em quantidade;
Ali tua frota alegre recebendo
Um Rei, com muitas obras de amizade,
Gasalhado seguro te daria
E, para a índia, certa e sábia guia.
(Camões, 2005, II, 62-63, p. 65)

Aludindo a Diomedes, antigo rei da Trácia, e Busíres, rei


egípcio reconhecido por sacrificar estrangeiros em suas ter-
ras, Mercúrio alerta Gama sobre as perversas intenções do rei
de Mombaça. Todavia, poderiam encontrar boa acolhida em
terras muito próximas, afeitas à boa hospitalidade. Mais uma
vez a hospitalidade é utilizada como critério de diferencia-
ção entre a constância dos justos e a inconstância dos injustos.
No decorrer da empresa de Vasco da Gama, Baco administra
sucessivos enganos recorrendo a diversos subterfúgios. Em
um deles, o deus aproveita da inconstância e indisposição dos
mouros para movê-los contra os portugueses:

Porém disto que o Mouro aqui notou


E de tudo o que viu, com olho atento,
Um ódio certo na alma lhe ficou,
Uma vontade má de pensamento.
Nas mostras e no gesto o não mostrou
Mas, com risonho e ledo fingimento,
Tratá-los brandamente determina,
Até que mostrar possa o que imagina.
(Camões, 2005, I, 69, p. 102)

Os mouros escondem, no íntimo, um ódio em relação às


ações, crenças e costumes dos portugueses. Contudo, eles
simulam simpatia e cordialidade, fator que certamente leva
o leitor discreto a condená-los. Por meio de conselhos vis e
enganosos, Baco procura convencer os mouros sobre a infâ-

152
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

mia dos navegantes. Como bons pupilos, os mouros utilizam-


-se também do engano para ocultar o que sentiam, que, no
momento, não poderia ser revelado. Ardiloso, o deus ainda
elabora um segundo engano, caso o primeiro falhasse. Disfar-
çado, ele aconselha o regedor dos mouros:

E também seu que tem determinado


De vir por água a terra, muito cedo,
O Capitão, dos seus acompanhado,
Que da tensão danada nasce o medo.
Tu deves de ir também cós teus armado
Esperá-lo em cilada, oculto e quedo,
Porque, saindo a gente descuidada,
Cairão facilmente na cilada.

E, se ainda não ficarem deste jeito


Destruídos ou mortos totalmente,
Eu tenho imaginada no conceito
Outra manha e ardil que te contente:
Manda-lhe dar piloto que de jeito
Seja astuto no engano, e tão prudente,
Que os leve aonde sejam destruídos,
Desbaratados, mortos ou perdidos.
(Camões, 2005, 80-81, p. 40)

Baco requisita um piloto que, no jeito, seja “astuto no en-


gano” e “prudente”. Ser “no jeito” significa parecer ser uma
coisa que não se é. Em outra estrofe, o deus reforça seu plano
afirmando que o piloto deve ser “sagaz”, “astuto”, “sábio em
todo dano” (Camões, 2005, I, 83, p. 41). De fato, Baco previu
bem: a emboscada para captura dos portugueses fracassou.
Tal como Polifemo, os mouros mostraram-se indiferentes à
hospitalidade. Em razão do fracasso, como que num pedido
de desculpas, eles enviaram o piloto “falso” e “instruído nos
enganos” (Camões, I, 97, p. 44), que tentou levar Gama e os
seus homens para Quiloa, para uma armadilha. Antes de de-
sembarcarem, Vênus interveio, desviando a nau portuguesa:

153
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

foi a partir desse desvio que chegaram a Mombaça, território


no qual Baco tramaria outra cilada.
Para convencer os portugueses de que aquela ilha era
habitada por cristãos, o deus Baco toma a forma de um,
para enganá-los:

Mas aquele que sempre a mocidade


Tem no rosto perpétua, e foi nascido
De duas mães, que urdia a falsidade
Por ver o navegante destruído,
Estava numa casa da cidade,
Com rosto humano e hábito fingido,
Mostrando-se Cristão, e fabricava
Um altar suntuoso que adorava.

Ali tinha em retrato afigurada


Do alto e Santo Espírito a pintura,
A cândida Pombinha, debuxada
Sobre a única Fênix, Virgem pura.
A companhia santa está pintada
Dos Doze, tão turvados na figura,
Como os que, só das línguas que caíram
De fogo, várias línguas referiram.
(Camões, 2005, II, 10-11, p. 51)

O artifício de antropomorfização não é atributo exclusivo


de deuses pagãos, podendo ser constatado também em en-
tidades angelicais, inclusive em poesias épicas contemporâ-
neas à obra de Camões. Para convocar Godefredo e instigá-lo
à guerra, por exemplo, Deus toma como emissário o Arcanjo
Gabriel e envia ao herói orientações. Para ser visto pelo desti-
natário da mensagem, o arcanjo toma a forma de um homem:

Como fosse invisível, disfarçou-se,


Tomou forma visível, de ar cercada;
Fingiu figura humana; mas ornou-se
Co’a majestade aos anjos facultada;

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Fez-se não bem mancebo inda na idade,


E a áurea como cercou de claridade.
(Tasso, 1998, p. 116)

Gabriel é o anjo da Anunciação: no Evangelho de Lucas (1:


26-38), ele é escalado para levar inúmeros desígnios divinos
aos mortais. É, por exemplo, aquele que revela à Virgem Maria
sobre o nascimento do filho de Deus, explicando-lhe sua mis-
são e instruindo-lhe quanto à intervenção do Espírito Santo.
Seria imprudente julgar que esta escolha do emissário tenha
sido feita ao acaso. Não obstante, Camões também se vale de
emissários, mas, quando o faz, invoca o deus Mercúrio, mensa-
geiro de Zeus. É esta personagem que, no canto II d’Os lusíadas,
aparece no sonho de Gama e o persuade a seguir rumo a Me-
linde, terra onde os portugueses seriam muito bem acolhidos.
Afora esta correlação, é preciso considerar que o ardil de
Baco, bem como a sua finalidade, em muito se diferenciava
dos propósitos de Ulisses, apesar de recorrerem a uma ação
mais ou menos compatível. O engano é malquisto e anunciado
com repulsa na épica de Camões, pois está sendo manejado
pelas mãos astutas e imprudentes de Baco. A astúcia à qual
nos referimos se assemelha àquela postulada por Tomás de
Aquino, que entende como sendo própria dela o empreendi-
mento por “caminhos inautênticos, tortuosos e simulados”,
com a finalidade de obter algum fim, seja ele bom ou mau. A
astúcia, como retratada no poema, vê-se destituída de qual-
quer prudência ou temperança; muito pelo contrário, a ânsia
de Baco pela perduração de sua fama e a ira que nutre contra
os portugueses tornam os seus gestos e ações inteiramente vai-
dosos e egoístas. O esquecimento lhe impõe verdadeiro terror:

Está do fado determinado


Que tamanhas vitórias, tão famosas,
Hajam os Portugueses alcançado
Das Indianas gentes belicosas.
E eu só, filho do Padre sublimado,

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Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Com tantas qualidades generosas,


Hei de sofrer que o Fado favoreça
Outrem, por quem meu nome se escureça?
(Camões, 2005, I, 74, p. 103)

Baco, deus pagão e representante dos mouros, engana os


portugueses se prostrando frente a um altar cristão, ou seja,
a personificação do paganismo simula o seu oposto para dar
vazão aos fingimentos arquitetados. Por outro lado, o deus
afirma ser filho do “Padre sublimado”, mas ainda assim é
aquele que deliberadamente o desrespeita, quanto à resolu-
ção em favor dos nautas. Se, no primeiro momento, Baco sim-
boliza o mais ávido dos enganos, no segundo ele demonstra
a cegueira causada pela vaidade e pelo consequente desdém
às hierarquias. Além de não ouvir os retos conselhos do pai,
Júpiter, ele se ocupa em dar falsos conselhos aos mouros, mo-
vendo-os contra os heróis lusitanos.
É justamente o ânimo irado que impossibilita o deus de
“aproximar futuro e passado”, ou seja, de prever os aconte-
cimentos vindouros. Desta maneira, o perfil de Baco se asse-
melha ao gênio de Agamêmnon que, colérico, consente com
a ausência de Aquiles na batalha contra Troia e, em outro
momento, recusa a um velho sacerdote troiano a devolução
de sua filha. No primeiro caso, os gregos correram o risco
de perder a guerra; no segundo, sendo o troiano um grande
devoto de Apolo, esta deidade enviou uma grande chuva de
flechas e abateu um bom contingente de gregos, o que quase
ocasionou o retorno destes à pátria. De acordo com Marcel
Dètienne e Jean-Pierre Vernant (2008, p. 24), o mesmo ocorre
na assembleia troiana que deveria definir os rumos da guerra:
enquanto Polidamas, o prudente, dirige aos partícipes sábios
conselhos sobre precauções e estratégias, Heitor atiça o ânimo
dos presentes, chamando-os para travar logo a batalha fora
dos muros de Troia. O herói se deixa domar pela raiva e pela
ingenuidade da juventude. A vaidade, portanto, converte-se
em um eficaz catalisador de imprudências.

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Gama e os tripulantes se livraram da cilada graças a uma


nova intervenção da deusa Vênus que, juntamente às Nerei-
das, desviou a nau, o que causou um grande rebuliço entre os
portugueses, que não estavam entendendo a voraz mudança
de direção. Os mouros, observando toda esta movimentação,
acreditam que o engano que arquitetavam havia sido desco-
berto e, amedrontados, saltavam da embarcação como “rãs”.
O piloto, que deixou o simulacro de lado e mostrou o seu
“eu” verdadeiro, também fugiu junto aos seus. Notando esta
movimentação repentina, Gama percebe a trama que haviam
tecido e agradece à intervenção “divina”. Neste momento,
fica claro que a proteção de Vênus equivale, alegoricamente, à
proteção celeste. Gama delibera:

Oh! Caso grande, estranho e não cuidado!


Oh! Milagre claríssimo e evidente!
Oh! Descoberto engano inopinado!
Oh! Pérfida, inimiga e falsa gente!
Quem poderá do mal aparelhado
Livrar-se sem perigo, sabiamente,
Se lá de cima a Guarda Soberana
Não acudir à fraca força humana?
(Camões, 2005, II, 30, p. 56)

Em outro momento, quando os portugueses já se encon-


travam nas Índias, Baco aparece disfarçado de Maomé no so-
nho de um sacerdote, advertindo-o sobre a má conduta dos
cristãos que ali faziam residência temporária:

(...) “Guardai-vos, gente minha,


Do mal que se aparelha pelo immigo
Que pelas águas úmidas caminha,
Antes que esteis mais perto do perigo”.
(Camões, 2005, VIII, 48, p. 236)

Tendo em vista a descrença do sacerdote, que não deu im-


portância ao sonho, Baco insistiu:

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Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Eu por ti, rudo, velo, e tu adormeces?


Pois saberás que aqueles que chegados
De novo são, serão mui grande dano
Da Lei que eu dei ao néscio povo humano.
(Camões, 2005, VIII, 49, p. 236)

Primeiramente, Baco inflama a má vontade dos mouros;


em seguida disfarça-se de cristão e adora o “Deus verdadei-
ro”, o que corrobora a inverossimilhança da sua própria exis-
tência; por fim, ele toma a forma de Maomé e indispõe um
sacerdote que, a princípio, nada tinha contra os navegantes. A
simulação, portanto, é um lugar comum na conduta de Baco.
Os mouros, em consonância com as vontades do deus do vi-
nho, se deixam manipular:

Diversos pareceres e contrários


Ali se dão, segundo o que entendiam;
Astutas traições, enganos vários,
Perfídias, inventavam e teciam;
Mas, deixando conselhos temerários,
Destruição da gente pretendiam,
Por manhas mais sutis e ardis milhares,
Com peitas adquirindo os regedores.
(Camões, 2005, VIII, 52, p. 237)

Vários termos, nesta estrofe, definem a astúcia dos mou-


ros: traição, engano, perfídia, manha, sutileza, ardil. O sonho
do maometano foi suficientemente persuasivo para indispor
todos que dele tomaram conhecimento contra os portugue-
ses. O Catual, frente aos pareces desfavoráveis, também se
indispôs e teceu uma traição para impedir o retorno dos nau-
tas. Gama pede por uma escolta que pudesse transportá-lo
até a nau. A reação do Catual, frente ao pedido, leva o herói a
desconfiar de seus propósitos:

Pouco obedece o Catual corrupto


A tais palavras; antes, revolvendo

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Na fantasia algum sutil e astuto


Engano, diabólico e estupendo,
Ou como banhar possa o ferro bruto
No sangue aborrecido, estava vendo,
Ou como as naus em fogo lhe abrasasse,
Por que nenhuma à pátria mais tornasse.
(Camões, 2005, VIII, 83, p. 244)

Mais uma vez o poeta se ocupa em definir a conduta dos


mouros: corrupção, sutileza, astúcia, engano “diabólico” e es-
tupendo. Gama desconfia de uma cilada:

Nestas palavras o discreto Gama


Enxerga bem que as naus deseja perto
O Catual, por que com ferro e flama
Lhas assalte, por ódio descoberto.
Em vários pensamentos se derrama;
Fantasiando está remédio certo
Que disse a quanto mal se lhe ordenava.
Tudo temia; tudo, enfim, cuidava.
(Camões, 2005, VIII, 86, p. 245)

O que nos mouros é corrupção, em Gama aparece como


discrição. Se o Catual se entrega a maquinar estratagemas
vis, trata-se de um engano diabólico; no caso de Gama, é
“remédio certo”. Não há uma disposição que, por si só, seja
má ou boa, pois depende de como é arregimentada e por
quem está sendo conduzida. A imprudência e indisposição
do Catual garantem, no corpo da narrativa, o seu fracasso. A
boa vontade e os princípios retos anunciados por Gama, que
tentava preservar o bem comum mesmo em terras estrangei-
ras, fizeram dele um exemplo:

Insiste o Malabar em tê-lo preso,


Se não manda chegar à terra a armada.
Ele, constante e de ira nobre aceso,
Os ameaços seus não teme nada;

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Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Que antes quer sobre si tomar o peso


De quanto mal a vil malícia ousada
Lhe andar armando, que pôr ventura
A frota de seu Rei, que tem segura.
(Camões, 2005, VIII, 90, p. 246)

No caso de um herói prudente, até mesmo a ira alcança


um estatuto “nobre”. Gama se sacrifica para garantir a segu-
rança de seus homens, a “frota de seu Rei”, mesmo sabendo
que, dentre os navegantes, era aquele que se situava em po-
sição mais avantajada na hierarquia social. O indivíduo pode
ser astuto ou prudente. Um bom chefe, por exemplo, apresen-
ta um perfil de homem prudente, como alerta Camões:

Tal há de ser quem quer, co dom de Marte,


Imitar os ilustres e igualá-los:
Voar co pensamento a toda parte,
Advinhar perigos e evitá-los;
Com militar engenho e sutil arte
Entender os imigos e enganá-los;
Crer tudo, enfim; que nunca louvarei
O Capitão que diga: “Não cuidei”.
(Camões, 2005, VIII, 89, p. 216)

O dom de Marte, ou seja, o engenho militar é um dos pré-


-requisitos na composição de um bom chefe. Não obstante, é
próprio de um homem prudente premeditar perigos e afastá-
-los, antes de recorrer às estratégias bélicas. O engano decorre
da premeditação da malícia alheia, ou seja, é para evitar um
conflito de proporções maiores que um bom general com-
preende o inimigo e se prepara para contê-lo. No caso da ine-
vitabilidade do conflito, o homem prudente deve saber utili-
zar o bom juízo também em campo. Quando Gama discorre
sobre a Batalha do Salado, a astúcia prudente portuguesa é
pormenorizada e medida com uma referência bíblica:

160
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Qual o membrudo e bárbaro Gigante,


Do Rei Saul, com causa, tão temido,
Vendo o Pastor inerme estar diante,
Só de pedras e esforço apercebido,
Com palavras soberbas, o arrogante
Despreza o fraco moço mal vestido,
Que, rodeando a funda, o desengana
Quanto mais pode a Fé que a força humana:
(Camões, 2008, III, 111, p. 107)

O poema nos remete ao famoso episódio no qual Davi der-


rota o gigante Golias que, vaidoso, conta com a vitória anteci-
padamente. Esta fábula, no contexto d’Os lusíadas, foi invocada
para simbolizar a presunção dos mouros que, contando com
um maior contingente de guerreiros, desprezava os cristãos
que lhe faziam frente. Os mouros não contavam com o apoio
da Deidade cristã, ou seja, com a “fé” que, em muito, supera a
natureza do que é “mundano”. A astúcia, quando relacionada
a um perfil prudente e discreto, em nada afeta a moral dos
heróis, que agiam de acordo com as circunstâncias, mas sem
perder de vista a ética cristã e a finalidade nobre que os movia.
A derrota frente à soberba é um lugar comum recorrente nas
tragédias. É o caso, por exemplo, da soberba dos titãs quando
enfrentaram os Olímpios. Como Prometeu recorda,

dei os mais sábios conselhos aos Titãs, sem conseguir,


porém, persuadi-los. Desprezando a astúcia, julgaram,
com o orgulho da sua força, que lhes seria fácil tornar-
-se os senhores pela violência (...) não era recorrendo à
força nem à violência mas à astúcia que os vencedores
alcançariam o império. Foi o que eu disse, mas nem
sequer se dignaram olhar-me. (Ésquilo, 1975, p. 114)

Por esta razão, Prometeu abandona os seus pares para se


aliar a Zeus, que ouviu e aproveitou-se da habilidade e astú-
cia do titã, pois ainda não ocupava o trono e precisava de alia-
dos competentes. O próprio Camões conta-nos o resultado:

161
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Cometeram soberbos os Gigantes,


Com guerra vã, o Olimpo claro e puro;
Tentou Perito e Téseu, de ignorantes,
O Reino de Plutão, horrendo e escuro.
Se houve feitos no mundo tão possantes,
Não menos é trabalho ilustre e duro,
Quanto foi cometer Inferno e Céu,
Que outrem cometa a fúria de Nereu.
(Camões, 2008, II, 112, p. 78)

Camões amplifica os feitos lusitanos aludindo a dois


episódios mitológicos: a empreitada dos gigantes contra os
deuses olímpicos e a tentativa de rapto da personagem Pro-
sérpina, que é sequestrada por Plutão (ou Hades) e, posterior-
mente, se casa com ele. Esta última empresa foi promovida
por Perito, rei de Lapitas, e pelo herói Teseu, responsável pela
vitória contra o Minotauro. Ambos vão até o submundo para
cumprir esta missão: Perito acaba morto e Teseu é capturado,
mas, posteriormente, é resgatado por Hércules. O aedo utiliza
estes dois episódios para engrandecer a empresa portuguesa
liderada por Vasco da Gama.
Voltando à narrativa de Prometeu, os titãs, assim como
Golias, são representados como arrogantes porque confiavam
na eficácia da brutalidade e da força física e desprezavam os
meios estratégicos e argutos. Dessa forma, Détienne e Vernant
(2008, p. 61) asseveram:

Explícito em Ésquilo, esse tema do dólos, ao mesmo


tempo, astúcia, armadilha e liame mágico, opondo-
-se à simples força e conferindo o êxito nas lutas pela
soberania, encontra-se em todas as narrativas míticas
dos combates que Zeus deve sustentar para erguer-se
e manter-se no topo do poder.

É desta forma que os portugueses, mesmo em menor


quantidade, venceram e garantiram sua soberania. Tal como
Zeus, que precisava manter-se no topo das deidades, também

162
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

os portugueses deveriam primar pela manutenção do Impé-


rio cristão. Já os mouros, tal como Golias e os titãs, movidos
pela vaidade e pela confiança na força física e nos números,
foram surpreendidos pela prudência dos oponentes.
Os valores são adequados às inclinações de quem os via-
biliza: se, para descrever a conduta dos mouros, fala-se de
“astuto engano”, “engano diabólico”, “perfídias”, “manhas”,
no caso dos heróis portugueses, trata-se de “discrição”, “sutil
arte” ou de “adivinhar perigos”. Todos os termos referem-se a
modos de agir: no primeiro caso, de uma astúcia desprovida
de prudência, pois movida com maus intentos; no segundo, de
prudência cristã. A prudência confere ao herói a capacidade de
saber agir com bom juízo, já que eles priorizam as ordens supe-
riores e a manutenção do bem comum. Os portugueses detêm
um “militar engenho”, como Marte, e os atributos necessários
para “enganar” os adversários corruptos, ou seja, a capacidade
de materializar o “desengano” à maneira de Davi. Necessário
lembrar, com o Cortesão de Castiglione (1997, p. 296-297), que o
bom príncipe, para ser justo, deve eleger “magistrados sábios
e homens exemplares, cuja prudência seja verdadeira prudên-
cia acompanhada de bondade, caso contrário não é prudência,
mas astúcia”. O caso do cortesão ideal segue de perto a dis-
tinção feita por Aristóteles e, mais tarde, por Santo Tomás de
Aquino: a prudência como atributo voltado para o bem comum
e a astúcia como artifício a priorizar as vontades privadas.
Juízos sobre a hospitalidade, como se pode ver, podem ser
encontrados em fontes de diferentes proveniências e, no caso
português, ajudam a definir um éthos prudente e a compreen-
der a natureza dos mouros e cafres. As interferências de Baco,
portanto, com seus enganos e astúcias, muitas vezes repre-
sentam as inclinações vis dos mouros. É como se o deus pa-
gão personificasse e potencializasse a natureza corrompida,
repondo atitudes e crenças que caracterizavam o tipo mouro.
Este procedimento poético não dista totalmente da iniciativa
de Henrique Dias quando, em seu relato de naufrágio, discor-
reu sobre a natureza dos marinheiros em geral:

163
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

É condição já mui velha de marinheiro contradizer


sempre o bem e aprazer-lhe o mal, por sua natural e
má inclinação, e não consentir nunca, nem admitir,
conselho nem coisa dita sobre seu ofício, ainda que
saiba muito certo, e tenha por averiguado, perder-se
a nau com quantos nela vão, se o contrário fizerem.
(Brito, 1998, p. 223)

A poesia apresenta alegoricamente o que a matéria históri-


ca informa, mas ambas participam de uma retórica prudencial,
definindo ou representando tipos dignos de encômios ou vitu-
périos. A ampliação do império (e, portanto, do corpo místico
português) e a divulgação da fé cristã dependiam do conhe-
cimento prévio desta natureza humana, para só então definir
um caminho no sentido de contê-la, direcioná-la, redefini-la.

O velho do Restelo

Muitos leitores e estudiosos se deixaram inquietar pelos


dizeres desta personagem camoniana. Faria e Sousa (apud
Aguiar, 2008, p. 117-118), um dos primeiros comentadores da
epopeia lusíada, afirmou que o velho do Restelo representava o
reino de Portugal. O filólogo alemão Wilhelm Storck o equipa-
rou ao coro das antigas tragédias gregas. Teófilo Braga (1911)
encontrou nas asseverações deste sábio um teor de protesto po-
lítico contra as iniciativas da monarquia portuguesa. Joaquim
Nabuco (1872) toma-o como descendente dos antigos heróis,
sendo ele o “vulto de uma idade vencida”, e/ou representan-
te do povo. Afrânio Peixoto (1947, p. 205) associa sua fala ao
“juízo da multidão”, interpretando-o como personificação do
“outro” Portugal, nortenho, agrícola, próspero, conservador e
terrestre. Hernâni Cidade (1975, p. 147) considera esta figura
um sintoma da “esquizofrenia” de Camões, dividido como es-
tava entre a condenação e a exaltação da empresa ultramarina.
Esta posição de Cidade foi amplificada por Sylmara Beletti e
Frederico Barbosa (2001, p. 61), que sugerem o “fim orgânico

164
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

dos lusíadas” justamente pela existência de um “Camões ideo-


lógico” e de um “Camões contra-ideológico”. Fernando Alves
Pereira (2005) refere também ao “conflito de ideias” pelo qual
estaria passando Camões, em uma época em que tudo “parecia
contraditório”, sendo a fala do velho do Restelo o desabafo de
um povo explorado, deixado à parte em sua pátria.
J. S. da Silva Dias (apud Aguiar e Silva, 2008, p. 122) não
toma o sábio como um porta-voz de Camões, mas o associa à

expressão do pessimismo histórico, ético e antropoló-


gico que alastrou em Portugal, desde o terceiro quartel
do século XVI, sobre a gesta nacional dos descobri-
mentos e sobre o império ultramarino, tanto em África
como no Oriente.

Esta forma de pensar seria corroborada, por exemplo, por


Beatriz Fiquer (2012), que igualmente associa as admoestações
do velho à situação decadente de Portugal. Massaud Moisés
(1993) aprecia seu discurso como texto medieval, heterodoxo,
contrário ao mercantilismo, um “contraponto dialético do arca-
bouço renascentista do poema”. José de Pina Martins estabelece
nexos entre os dizeres do velho do Restelo e de Sá de Miranda,
o que o leva a classificá-lo como uma espécie de “anti-herói”.
Analogias entre escritos de Antonio de Guevara e o episódio
camoniano foram observadas por Vítor Aguiar e Silva (2008, p.
128), para quem a personagem camoniana acabaria por efetuar
a “dilaceração do monolinguismo épico”, decorrente, quem
sabe, da “ambivalência indecidível com que Camões aprecia,
valora e julga a empresa dos descobrimentos”.
Os pareceres da fortuna crítica, como se pode ver, tomam
a fala do velho do Restelo ora como contraponto à glorificação
das navegações portuguesa, espécie de “anticlímax da epo-
peia”, para utilizar uma expressão de Alfredo Bosi (1993); ora
como expressão de um “outro” Portugal, medieval, campes-
tre, antigo; ora como desdobramento de um pessimismo histó-
rico, com indícios da decadência portuguesa. Muitas análises

165
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

apreendem o século XVI como um momento “contraditório” e


“decadente” da história portuguesa, no qual um poeta agudo
como Camões só poderia manifestar-se com “pessimismo” e
“ambiguidade”. Não é por acaso que o episódio continua a
despertar o interesse dos estudiosos, afinal, foi vítima de po-
lêmicas desde a primeira metade do século XVI. No entanto,
muitas análises acabam associando a fala da personagem às
intenções do poeta, como António Sérgio (1974), que supõe
uma simpatia do poeta pelo velho do Restelo. José Régio, além
de propor um Camões esquizofrênico, cogita uma solidarie-
dade do poeta para com este episódio. Esta hipótese também
agrada a António José Saraiva (1959, p. 147), que acredita tra-
tar-se do próprio poeta, manifestando-se pela boca de sua per-
sonagem, demonstrando reprovação pela matéria histórica de
que se ocupa. Hernâni Cidade (1953, p. 125) chega a associar o
tom de desalento do poeta à experiência não apenas do poeta,
mas também de outros contemporâneos seus, como aqueles
que escreveram as histórias trágico-marítimas.
As maneiras como o episódio camoniano é lido coinci-
dem, muitas vezes, com a forma como são tratadas as narra-
tivas de naufrágio. Também nesse caso supõe-se a existência
de informes mais “realistas”, espécie de “lado obscuro” da
epopeia. Fomes, naufrágios, pestes e outros elementos desta
natureza acabam sendo associados a uma situação de “deca-
dência”, que supostamente já teria sido indicada na epopeia
lusíada. Parece-nos que estas análises não são absurdas ao
propor analogias entre as experiências trágicas das navega-
ções e a polêmica fala do velho do Restelo: o que nos inquieta
são os elementos utilizados para propô-las. Será mesmo que o
velho do Restelo e as narrativas de naufrágio propõem o esti-
lhaçar da dimensão épica dos descobrimentos, tratando-se de
uma “indisfarçável metonímia da decadência”?
A personagem de Camões situa-se, historicamente, no
ano da partida de Vasco da Gama. Entre este momento e a
edição da epopeia lusíada há um intervalo de mais de 70 anos.
O futuro que o velho do Restelo “profetiza” corresponde a

166
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

episódios do passado, que o poeta e o leitor já conheciam. A


personagem é uma invenção camoniana que reúne em si a ex-
periência do poeta, e não propriamente de alguém que já con-
tava com idade avançada no crepúsculo do século XV. Quan-
do Camões confere voz ao sábio, o desfecho das navegações
já era sabido. Sendo assim, devemos partir do pressuposto de
que o leitor, ao deparar-se com este episódio, já conhecia os
resultados dos feitos portugueses que o poeta toma por ma-
téria. Logo, é preciso investigar a autoridade que a figura do
velho confere aos informes que o poeta lhe atribui.
É comum tomar o velho do Restelo como um tipo “me-
dieval”, “agrícola”, “nortenho”, “pessimista”, “contraditó-
rio”, “disfórico” e, portanto, contrário ao tipo “industrioso”,
“aventureiro”, “sulista”, “marítimo”, “otimista”, “eufórico”.
Antes de qualquer coisa, como salienta o próprio Camões, de-
vemos concebê-lo como tipo “velho” e “experiente” para, só
então, compreender algumas das implicações de seus dizeres.
A valoração da experiência aparece em diferentes epi-
sódios da Ilíada. Durante a homenagem fúnebre tributada a
Pátroclo, os aqueus se preparavam para uma corrida. As pa-
lavras abaixo foram proferidas por Nestor e direcionadas ao
seu filho, que se preparava para a competição:

Ainda que moço, meu filho, aprendeste de Zeus e Posido,


Que te são muito afeiçoados, as regras da equestre
corrida.
Não necessito, por isso, falar-te com muitas minúcias,
Que em torno à meta voltear te é bem fácil. Contudo,
são lerdos
Teus dois cavalos, razão por que temo qualquer des-
ventura.
Em recompensa, se os outros aurigas dispõem de parelha
Mais desenvolta, a eles todos excedes em férteis recursos.
Deves, portanto, meu caro, valer-te de todos os meios
Que te ditar o intelecto; a perder não me venhas o prêmio.
Na derrubada das árvores, mais vale o jeito que a força;

167
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

É a habilidade, somente, que em mar tempestuoso


permite
Ao timoneiro seu frágil batel conduzir com firmeza.
Com arte, assim, vence o auriga prudente os demais
contendores.
(Homero, 2002, p. 506)

O astuto Antíloco, que aprendeu as artes equestres com os


deuses, superava todos os seus oponentes no quesito habili-
dade. Para dizê-lo, o poeta evoca um símile, equiparando sua
perícia à de um timoneiro prudente que conduz seu frágil ba-
tel por um mar tempestuoso. Contudo, seus cavalos eram infe-
riores, o que poderia prejudicá-lo e legar a vitória a outro que,
menos habilidoso, contava com corcéis mais ágeis. Na corrida,
Antíloco utiliza-se de malícia astuta, e aproveita-se do kairos
(momento oportuno) para vencer o carro de Menelau, que se-
guia na dianteira. Devido às suas manobras desleais, Antíloco
é censurado por Menelau, detentor da “experiência do velho”
e, por isso, um herói que “pode explorar de antemão as vias
múltiplas do futuro, pesar os prós e os contra, decidir com co-
nhecimento de causa”, previsão que faltou ao filho de Nestor,
indicando “a falta de reflexão da juventude” e a impulsivida-
de que lhe priva do reto agir. Para enganar Menelau, a

astúcia prudente de Antíloco interpreta a loucura. O


jovem, calculando seu golpe e conduzindo reto seus
cavalos sobre a linha escolhida, simula a irreflexão e a
impotência, fingindo não ouvir Menelau gritando-lhe
para tomar cuidado. (Detienne; Vernant, 2008, p. 30)

Menelau desvia-se do caminho, pois acreditava que a ma-


nobra de Antíloco se devia à falta de experiência, mas o jovem
estava simulando, sem se preocupar com os resultados de sua
ação, mas voltando-se inteiramente para o imediato e para a
possibilidade da vitória seguida de glória.
Aristóteles (1980, p. 156) ocupou-se da tópica das idades
em sua Retórica. Aqueles que atingem a fase adulta, diz ele,

168
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

“não mostrarão nem confiança excessiva oriunda da temeri-


dade, nem temores exagerados, mas manter-se-ão num justo
meio relativamente a estes dois exemplos”. Alia-se, a um só
tempo, o belo, que atrai o jovem, e o útil, ambicionado pelo
velho. No caso dos velhos, o filósofo orienta:

como viveram muitos anos, e sofreram muitos desen-


ganos, e cometeram muitas faltas, e porque, via de re-
gra, os negócios humanos são malsucedidos, em tudo
avançam com cautela e revelam menos força do que
deveriam.

O acúmulo de experiência priva-os do ímpeto da juventu-


de, mas alimenta seu juízo e temperança, de forma a torná-los
bons conselheiros.
Em meio à multidão que assistia à partida das naus na praia
de Restelo, um velho se ergue, meneando a cabeça em claro sinal
de desaprovação, e adverte aos presentes em alto e bom som:

Ó glória de mandar, ó vã cobiça


Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
C’uma aura popular, que honra se chama.

Dura inquietação da alma e da vida,


Fonte de desamparo e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com que se o povo néscio engana.
(Camões, 2005, IV, 95-96, p. 145)

A fama, neste caso, significa glória movida pela vaidade,


desejo pela autorrealização. Esta motivação, afirma a perso-
nagem, é digna dos mais infames vitupérios. O “povo nés-

169
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

cio”, que muito facilmente se deixa enganar, concebe esta


cobiça como algo realmente “ilustre”. O velho, no entanto,
assumindo o papel de homem discreto, não se deixa levar pe-
las tentações da glória infame, julgando tal tendência como
desajuizada, como uma avaria à empresa no ultramar. Sarai-
va (1959, p. 124) acredita tratar-se de um desprezo pelo vulgo
decorrente da formação humanística do poeta. No entanto,
da forma como aparece no poema, estas palavras parecem su-
gerir a imprescindibilidade do desengano, pois homens sem
letras e/ou de experiência reduzida tendem a apreender as
coisas do mundo pela aparência.
Em outro momento, o velho do Restelo coloca em evidência
a dilatação do Império e, novamente, o propósito dos nautas:

Deixas criar às portas o inimigo


Por ires buscar outro de tão longe
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe!
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a fama te exalte e te lisonje
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!
(Camões, 2005, IV, 101, p. 148)

A incerteza do trajeto e das futuras consequências da via-


gem nos remete à novidade da empresa que estava por ini-
ciar. A ambição por “novos reinos”, diz o sábio, levaria ao
abandono de Portugal e desamparo da população. Em outra
estrofe, ele amaldiçoa aquele que inventou a primeira nau,
pois esta criação estimulou o anseio por descobertas e, em
consequência, por fama, comum àqueles que se alimentam
da cobiça. A estes, a personagem deseja a inglória e a perda
do nome, que é duplamente trágico: o nome se perde com o
corpo, que perece nos confins do mar, e a fama se esvai em
seguida, em decorrência do fracasso da empresa. Para estes, o
que a empresa lhes renderia?

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Que promessas de reinos e de minas


De ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
(Camões, 2005, IV, 97, p. 145)

De acordo com Alexei Bueno (1998, p. X), estas duras pa-


lavras com entonação profética poderiam muito bem decor-
rer da ansiedade causada pelos horrores de um naufrágio, ou
pelos perigos que assolavam a tripulação durante os árduos
momentos da viagem. Ou seja, tomando a estrofe acima como
referência, nada há de restar para aqueles que têm a fortuna
como obstáculo. Não haverá consolo, riquezas, mercês, his-
tórias, pois os propósitos, quando movidos pelo ímpeto par-
ticular, são desde a sua gestação perdidos. Não entendemos,
como quer Hernâni Cidade, a existência de um Camões favo-
rável e outro contrário à empresa no ultramar. As orientações
de conduta que o poema propõe, antes de qualquer coisa,
tendem a demonstrar um caminho acertado e moralmente
correto, e outros que, apesar de recorrentes, são imorais e en-
ganosos. Para isso, o poeta engenhosamente adota um proce-
dimento retórico apologético: anuncia uma postura favorável
e outra que lhe contradiz. Ao aedo, portanto, caberia divulgar
e alinhar as posturas possíveis, utilizando a desfavorável para
legitimar e amplificar as propriedades daquela julgada favo-
rável. Por outras palavras, como que numa balança, deveriam
ser pesados os prós e os contra da empresa ultramarina: na
equação final predomina a postura mais acertada e ajuizada.
Não há, assim, a omissão de posturas contrárias às que
o poeta canta, mas sim a refutação dialética dos argumentos
contrários à empresa ultramarina, o que confere maior impor-
tância à postura que se quer defender. Eleva-se o mérito da
ação ajuizada e, por inversão, desacredita-se o seu inverso em
prol de uma didática que ensina como não agir. Supor, por-
tanto, o “fim orgânico” do poema significa negar a unidade
épica e seu engenho retórico-poético. Em momento posterior,
Camões continua sua censura à cobiça:

171
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

E ponde na cobiça um freio duro,


E na ambição também, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro
Vício da tirania infame e urgente;
Porque essas honras vãs, esse ouro puro,
Verdadeiro valor não dão à gente.
Milhor é merecê-los sem os ter,
Que possuí-los sem os merecer.
(Camões, 2008, IX, 93, p. 276)

Anuncia-se o falso herói e, ao mesmo tempo, subtende-se


a necessidade do herói verdadeiro. É do primeiro que trata o
velho de Restelo e o movimento que Camões delimita para o
seu poema tende a valorizar Gama como herói prudente: ele
anuncia, a princípio, o alter vaidoso no ato da partida para,
no decorrer da trama épica, demonstrar que Vasco da Gama
e seus homens correspondiam justamente ao oposto. Postula-
-se o caminho tortuoso para, a partir dele, demarcar a justa
ação. O aedo define seus protagonistas como sendo o oposto
do que preconiza, com censuras severas, o velho sábio:

Quão doce é o louvor e a justa glória


Dos próprios feitos, quando são soados!
Qualquer Nobre trabalha que em memória
Vença ou iguale os grandes já passados.
As invejas da ilustre e alheia história
Fazem mil vezes feitos sublimados.
Quem valerosas obras exercita,
Louvor alheio muito o esperta e incita.
(Camões, 2008, V, 92, p. 169)

Quanto à empresa movida por “justa glória”, o velho de


Restelo nada tem a censurar. Este louvor “doce”, resultado
de trabalhos suados, é que ancora a matéria poética. No caso,
os artifícios retóricos utilizados não pretendem corroborar a
“organicidade” do poema, mas sim, contando com a discrição
do auditório, desconstruir uma postura “vulgar” e, sobre ela,

172
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

erigir uma justa e memorável. Se não existe, por um lado, con-


tradição e dubiedade quanto à postura assumida pelo poeta,
por outro, há a necessidade de julgar a melhor conduta de
forma prudente, evitando-se o seu oposto.
Como recorda Afrânio Peixoto, a figura de um velho é
conveniente nesta ocasião: a experiência, no caso, é requisito
de prudência. A comparação que Peixoto faz entre esta sábia
personagem e o coro de musas da tragédia grega é pertinen-
te: afinal, compete ao coro, dentre outras coisas, alertar o(s)
protagonista(s) e os leitores sobre os riscos ocasionados pela
desmedida, passível de finais trágicos. A figura do velho, à
maneira, por exemplo, de Nestor, conselheiro dos gregos na
empresa contra Troia, recobra para si o discernimento e a ex-
periência de alguém que viveu o suficiente para formar juízos
sobre a atitude de um homem e sobre as “coisas do mundo”.
Para utilizar, por fim, o exemplo que inaugura este tópico, o
juízo provindo da experiência pode ser associado à Menelau
que, frente às ousadias do oponente Antíloco, soube impor seu
bom juízo e censurar a dissimulada desconsideração do jovem.
Desconsideração que Tomás de Aquino (2005, p. 82) avalia
como sendo imprudente, pois denota “defeito no reto juízo”.
A experiência é categoria fundamental para se entender
o teor daquilo que diz o velho do Restelo. Como nos adverte
Pierre Aubenque (2008, p. 99), a experiência, em Aristóteles,
“supõe a soma do particular e está, pois, na rota do univer-
sal”. Em seguida, ele afirma:

A experiência não é repetição indefinida do particular,


mas já se introduz no elemento da permanência; é esse
saber antes vivido do que aprendido, profundo por-
que não deduzido, e que reconhecemos naqueles dos
quais dizemos que “têm experiência”.

Neste caso, a experiência é retratada não apenas como


requisito para a prudência, mas como parte dela. Já pensan-
do na leitura que São Tomás de Aquino (2005, p. 11) faz da

173
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

prudência, o papel central do homem que detém esta virtude


é “aplicar os princípios universais às conclusões particula-
res do âmbito do agir”. Aquino não restringe o conceito de
prudência à experiência, o que seria reduzir um termo ao
outro. Muito pelo contrário, a prudência que ele chama de
“verdadeira” ou “perfeita” depende também do ensino e de
outros elementos que ele divide em dois setores mais gerais:
a dimensão cognoscitiva, referente à memória, razão, inteli-
gência, docilidade e sagacidade, e a dimensão de comando,
relativa à previdência, circunspeção e prevenção.
Vociferando, o velho de Restelo termina sua arenga:

Oh! Maldito o primeiro que, no mundo,


Nas ondas vela pôs em seco lenho!
Digno da eterna pena do Profundo,
Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!

Trouxe o filho de Jápeto do Céu


O fogo que ajuntou ao peito humano,
Fogo que o mundo em armas acendeu
Em mortes, em desonras (grande engano!).

Nenhum cometimento alto e nefando


Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração.
Mísera sorte! Estranha condição!
(Camões, 2008, IV, 102-104, p. 144)

Estes trechos foram retirados das últimas três estrofes do


canto IV e nos levam a recordar outro lugar comum associado
ao caráter do velho. Aristóteles (1980, p. 154-155) afirma que
o acúmulo de experiência leva o homem a desenvolver certos
aspectos excessivos em seu caráter: se tornam, por exemplo,
desconfiados e suspeitosos, pois sofreram inúmeros desenga-
nos durante a vida. De acordo com o filósofo, eles “vivem de
recordações mais que de esperanças, porque o que lhes resta
de vida é pouca coisa em comparação do muito que viveram”.

174
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

O fato de amaldiçoar aquele que criou a primeira nau, desti-


nando-lhe o Inferno, a desilusão frente à humanidade, que se
utilizou do fogo cedido por Prometeu para provocar mortes e
desonras, e a tentação a que se submete a “humana geração”
fazem com que o velho, adornado de uma vasta experiência,
se atenha mais ao “útil”, deixando de lado a esperança e se
mostrando pouco propenso à espera. Como ele se pauta mais
nas recordações, significa que nenhum exemplo lhe despertou
esperança. Sua insatisfação, portanto, antecede a jornada de
Vasco da Gama. A possível conotação “pessimista” do velho
de Restelo pode soar como uma prova a ser vencida, uma vez
que o artifício apologético tende a conferir feições à postura vil
para que ela possa, em seguida, ser refutada com argumentos
que apelam para as ações nobres dos protagonistas.
Este aspecto pode ser apreendido, também, nos escritos
de Horácio quando, em sua arte poética, estabelece o éthos
das idades: o velho, para ele, age geralmente com temor e
frieza e apresenta um caráter descontente, tratando-se de um
homem “inerte e ávido do futuro”, e “louvador dos tempos
passados”. Por esta razão, Horácio (1985, p. 57) afirma que
ele “castiga e censura os que são mais novos”. Mais uma vez,
esta interpretação sugere que a inclinação do velho de Restelo
se dê mais pela idade e por esta desconfiança perante as ge-
rações que lhe sucedem do que necessariamente por “prever”
aspectos negativos referentes à empresa de Vasco da Gama.
Longino (1985, p. 113), seguindo os passos de Horácio, enfa-
tiza e generaliza o “pessimismo” dos homens em relação ao
seu presente, dizendo que é comum falar mal do seu tempo.
Para utilizar um exemplo mais ou menos contemporâneo
à obra camoniana, o éthos da velhice é retomando também por
Baldassare Castiglione (1997, p. 83). Seguindo os passos de
Aristóteles e de Horácio, ele afirma:

Não sem maravilha, várias vezes considerei onde sur-


ge um erro, que se acredita ser próprio dos velhos,
pois neles se encontra universalmente: é ele o de que
quase todos louvam os tempos passados e criticam o

175
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

presente, vituperando nossas ações, maneiras e tudo


aquilo que não faziam em sua juventude.

Castiglione não deixa de salientar os ganhos acumulados


com o passar do tempo, como prudência, juízo, moderação,
etc. Isto não impede, contudo, que os velhos se tornem crí-
ticos e pouco afeitos aos jovens, por entenderem que “todo
bom costume e toda boa maneira de viver, toda virtude, tudo
enfim, vai sempre de mal a pior”.
A reprimenda efetuada na praia de Restelo, portanto,
extrapola a empresa de Vasco da Gama, tratando-se de um
alerta ao leitor ambicioso que se deixa mover pela cobiça. O
velho, prudente e experimentado, olha para o presente com
pessimismo e sem esperanças, o que deixa o seu olhar turvo
perante as possibilidades de glória vindoura. O que falta a
ele, no caso, é o conhecimento da empresa de Vasco da Gama,
que, àquela altura, estava por iniciar.
O velho do Restelo é um retentor de memórias, que ele re-
vela como se fossem profecias. O lugar do qual fala esta sábia
personagem de fato coloca os dados que expõe num futuro
próximo, que para o leitor são acontecimentos passados e bem
conhecidos. A longa vivência deste experimentado súdito por-
tuguês lhe confere autoridade para falar com juízo e “prever”,
sem nenhuma implicação heterodoxa, fatores que confirma-
riam as suas proposições. Embora crítico, sua fala amplifica as
conquistas portuguesas que se iniciariam ali, com a partida de
Vasco da Gama. Suas profecias e imprecações, portanto, não se
mostram incapazes de deter o fluxo dos acontecimentos. Con-
juga-se, portanto, os atributos comumente associados ao lugar
destinado ao “velho”, como a experiência e o “pessimismo”
em relação ao presente, e uma postura instrutiva, pedagógica,
que orienta ao apontar para os erros a serem evitados. É como
se as advertências, que presumimos serem direcionadas aos
nautas portugueses, ultrapassassem este limite e, como profe-
cias, fossem direcionadas ao futuro, aos leitores, aos pósteros
que, ciente de todas aquelas memórias narradas pela persona-

176
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

gem camoniana, evitariam recair em erro semelhante. A uni-


dade da obra não apenas se mantém como também atende ao
decoro externo, adequando-se à recepção.
É verossímil que o velho, na situação de retentor de me-
mórias, signifique a personificação da memória compartilha-
da não necessariamente no momento da partida de Vasco da
Gama, mas dos leitores d’Os lusíadas. Estas memórias, cole-
tivas e anônimas, forjadas por meio do engenho poético, en-
contram no velho do Restelo subsídio e autoridade. De indi-
vidualidade caduca e “pessimista”, esta personagem passa a
simbolizar as aflições, as dores, o sofrimento, mas também os
anseios, as perspectivas, os sonhos e, sobretudo, os juízos que
assinalam uma conduta ética ao condenar a cobiça, a ambição
e as paixões em geral. A trajetória de Vasco da Gama nos leva
a entender o seu silêncio frente às admoestações do velho: não
é o silêncio de quem ignora o que foi dito, tampouco de quem
não apreende a pertinência daquelas palavras. Trata-se do si-
lêncio de quem não se identifica com o perfil pintado pela per-
sonagem. Um silêncio reflexivo que poderia denotar humilda-
de, atenção e aprendizado. As palavras do velho de Restelo,
que supomos serem direcionadas aos nautas portugueses, ul-
trapassam as naus lusitanas, trafegam pelos mares da poesia
épica camoniana para, finalmente, ancorar os juízos do leitor.

A cobiça e os remédios humanos

Segue abaixo uma das odes atribuídas a Horácio, traduzi-


da por Ariovaldo Augusto Peterlini:

Que a Deusa poderosa e senhora de Chipre,


que de Helena os irmãos, rutilantes estrelas,
e o pai dos ventos, tendo a todos prisioneiros,
mas não o Iápix (noroeste) favorável, a bom porto
te conduzam, ó nau, que me deves Vergílio,
que de ti confiei; suplico o restituas
são e salvo aos confins dos litorais da Ática

177
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

e me preserves a metade de minha alma.


Tinha carvalho e três de bronze duras lâminas
em volta ao peito o que, primeiro, ao mar bravio
ousado confiou uma frágil jangada;
o que não vacilou ante o vento Africano (sudoeste)
num vórtice veloz de encontro aos Aquilões (nordeste),
nem feias Híades temeu, nem fero Noto,
senhor maior que o qual não tem o Adriático,
quer queira encapelar, quer serenar as ondas...
De que aproximação da morte não tremeu
quem, sem lágrimas, viu esses monstros nadantes,
quem viu, primeiro, o mar nas fúrias da borrasca
e as fragas enfrentou de nome Acroceráunias.
Inutilmente um Deus sensato separou,
com o oceano divisor, as terras, se, contudo,
ímpios batéis os mares cruzam proibidos...
Audaz em tudo ousar, a raça humana vai
precípite rompendo as leis, em sacrilégios.
Atrevido e falaz foi o filho de Jápeto,
quando em nefasto ardil trouxe aos povos o fogo.
Com o fogo roubado à etérea morada,
sobre a terra tombou a desgraça da fome
e estranha multidão de doenças sem nome...
E o outrora moroso implacável da morte,
tão distante até ali, amiudou seu passo.
Foi com ímpias asas ao homem não dadas
que Dédalo o vazio do espaço esquadrinhou.
Hércules, num trabalho, o Aqueronte rompeu.
Nada para os mortais existe de difícil.
Pedimos com loucura o próprio imenso céu,
nem deixamos jamais, por nosso sacrilégio,
que Júpiter descanse a ira de seus raios.

O poeta, no caso, pede a Vênus, aos irmãos Cástor e Pólux


(constelação protetora dos navegantes) e a Éolo que guiem a
nau de Virgílio. Esta ode é entendida como exemplar do gê-
nero propemtikon\n, discurso de boa viagem recorrentemente

178
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

praticado por poetas “helenísticos”. Este poema foi alvo de


polêmicas, pois não há consenso quanto ao teor da ode (se sé-
rio ou irônico) ou à motivação do poeta (elogiar a audácia hu-
mana ou condená-la). A ode certamente mobiliza a tópica da
ousadia humana ao indicar feitos que desafiam os desígnios
“superiores”. Há quem a conceba como alegoria, por meio da
qual o aedo estaria elogiando as habilidades poéticas de Vir-
gílio, que teria navegado pelos mares da epopeia. Em outra
ode, Horácio utiliza a tópica da aurea mediocritas, que diz:

Feliz aquele que, longe dos negócios,/ como a antiga


raça de mortais,/ faz trabalhar seus bois nos campos
paternos,/ livre de toda usura,/ e não o acorda, qual a
um soldado, a cruel trombeta,/ nem teme o mar bra-
vio, / e evita o fórum e os soberbos limiares / dos pode-
rosos. (apud Fonseca, 1967, p. 80)

Passando ao lado das polêmicas relativas a estas odes, é


possível notar que Camões as emulou no canto IV de sua epo-
peia, justamente no episódio de velho do Restelo. Por outras
palavras, Camões imitou um gênero comumente utilizado em
discursos de boa viagem num momento decisivo do poema: a
partida das naus rumo à descoberta das Índias. Se o poeta lusi-
tano leu metaforicamente a ode, compreendendo-a como elo-
gio a Virgílio, talvez as imprecações do velho do Restelo, além
de orientarem os leitores quanto às condutas virtuosas, am-
plificariam a própria empresa poética de Camões, que estaria
singrando os mares da epopeia à maneira do poeta romano.
Henrique Dias, em seu relato de naufrágio da nau São
Paulo, de certa forma mobiliza estes tópicos retóricos ao dis-
correr sobre os perigos do mar e o conforto de quem perma-
nece em terra:

Pelo que a experiência nos ensina que quem o pode es-


cusar vive em mais tranquilidade de espírito de tanta
confusão, e antes, com menos na terra que atravessar

179
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

o mar por coisas tão transitórias, e de pouca dura; e


na terra viver como bom cristão, cumprindo a Lei de
Deus dentro no grêmio da Santa Madre Igreja de Roma
e multiplicando os talentos que o Senhor a cada um
de nós entregou, porque dando-lhe boa conta, mere-
çamos ouvir dele no porto de salvação aquela suave
voz: “Vem, bom servo e fiel, porque em pouco foste
fiel, sobre grandes cousas te porei; entra em o prazer
e contentamento de teu Senhor, que é a Glória”, a qual
ele por sua bondade nos queira dar. (Brito, 1998, p. 259)

Este desfecho da narrativa remete ao seu princípio, quando


o narrador afirma: “Acontece muitas vezes a voz do povo ser juí-
zo do Senhor e falar pela boca dele o que há-de vir” (Brito, 1998,
p. 193). Se podemos associar o “juízo do Senhor” à voz empres-
tada ao velho do Restelo, dificilmente se poderia crer que suas
asseverações fossem contrárias ao projeto de ampliação do im-
pério e divulgação da fé cristã. Antes de retomar a Parábola dos
Talentos e referir à tranquilidade de quem pode ficar no reino
e multiplicá-los, Henrique Dias havia citado o salmo 106, que
discorre sobre a experiência dos homens no mar e a reconhece
como obra do Senhor. Com duas passagens bíblicas, portanto, o
narrador alude à felicidade de quem permanece em terra e mul-
tiplica seus talentos e à prudência e temor necessários para fa-
zer cessar as tempestades. O vociferar do velho do Restelo, tipo
detentor de vasta experiência, não parece contradizer a empresa
ultramarina, mas ponderar sobre suas fortunas e fadigas. Mais
fácil seria não se colocar à prova, mas, como assevera Henrique
Dias, nem todos podem ser dar ao luxo de evitá-la.
Horácio toma por corajoso o primeiro que encarou o mar
bravio. O velho do Restelo condena-o pela mesma coragem,
já que oferece condições para a promoção da cobiça e ambição
humanas. Ambos mencionam as experiências de Prometeu,
Hércules e Dédalo para amplificar as implicações da empresa
navegadora e condenar os excessos, a hybris. Trata-se, neste
caso, de uma amplificação da arrogância e da promoção de
uma política do desengano.

180
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

O poeta Jerônimo Corte-Real (1783, p. 16) nos faz entender


o quão odioso lhe parece o pecado da cobiça:

Muito pode a cobiça, mas se imprime


Nos fracos corações baixos vulgares,
Não há torre, nem muro onde não suba:
Não há prisão tão forte, que não rompa
No que se mostra mais cerrado entra,
O que parece mais seguro escala,
Por demais é guardar, nem ter vigia
No que por qualquer preço fica fácil.

Tal como o velho do Restelo, o aedo, neste caso, associa o


poder destrutivo da cobiça ao vulgo (“fracos corações baixos
vulgares”). Os relatos de naufrágio também aludem à prá-
tica da cobiça, reproduzida ao longo das navegações, sobre-
tudo quando relacionada aos então chamados “homens do
mar”. No relato de naufrágio da nau São Bento, deparamo-
-nos com a seguinte narrativa:

Esta noite, porque fazia luar, foram três marinheiros


correr a praia com esperança da tormenta passada, e
acharam na boca do rio um tubarão lançado à costa, o
qual repartiram entre si, e cada dous dedos de posta
nos venderam por quinze e vinte cruzados; e a falta
doutros mantimentos fazia tanta sobejidão que com-
pradores que depois do corpo ser levado a este preço
não faltava quem desse pela metade da cabeça vinte
mil réis; de modo que bem se pudera comprar nesta
terra muito arrezoada quinta com o que aquele peixe
rendeu. (Brito, 1998, p. 63)

Para além da avareza e do interesse no lucro, há, em outra


passagem, desta vez localizada no relato de naufrágio da nau
São Paulo, uma alusão que ressalta a natureza vil desses homens:

E por certo cousa muito miserável e de contar a diversi-


dade das condições humanas; e muito mais para chorar

181
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

suas cobiças e misérias, porque, indo a nau caindo sobre


o ilhéu, em que apenas havia tocado, já a gente do mar
andava escalando arcas e arrombando câmeras, e fazen-
do fardos e trouxas, como se estiveram em terra habitada
e de muitos amigos, comarcãos e vizinhos de sua pátria
e natureza, e tivessem mui seguros e certos, caminhos e
direitas estradas por onde caminhassem, e embarcações
boas em que navegassem. (Brito, 1998, p. 233)

A descrição continua:

Desta maneira andavam, uns roubando e destruindo


tudo, assim os que estavam na nau como outros que
estavam em terra, abrindo barris, arcas e caixões, que
o mar já de si deitava; mas quem se espantará ou ha-
verá por novidade achar-se isto em gente do mar, tão
inumana, se os conhecer, e lhes souber das más incli-
nações, e quão pouca lei tem com Deus, nem caridade
com o próximo? (Brito, 1998, p. 233)

A crítica, no caso, não foi direcionada à obtenção de rique-


zas simplesmente, mas à maneira vil de se obtê-las: “foram
deitando todas as riquezas e louçainhas, de que a nau ia ri-
quíssima, ganhando tudo com tanto suor de uns, e com tanto
encargo de outros” (Brito, 1998, p. 345). Note-se, portanto, o
momento de desengano:

como homens pasmados, parecendo um sonho, verem


assim uma nau, em que havia pouco iam navegando,
tão carregada de riquezas e louçainhas que quase não
tinham estimação, comida das ondas, submergida de-
baixo das águas, entesourando nas concavidades do
mar tantas coisas, assim do que nela iam, como dos
que ficavam na Índia, adquiridas pelos meios que
Deus sabe. (Brito, 1998, p. 349-350)

Riquezas, tratadas com tanta estimação, acabavam se tor-


nando instrumentos de perdição:

182
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

e não foi também aqui pequeno o lugar que a infinidade


de perdidas fazendas ocupava, porque tudo quanto po-
díamos estender os olhos de uma e outra parte daquela
praia estava cheio de muitas odoríferas drogas e outra
infinita diversidade de fazendas e cousas preciosas, ja-
zendo muitas delas ao redor de seus donos, a quem não
somente não puderam valer na presente necessidade,
mas ainda a alguns, de quem eram sobejamente ama-
das na vida, com seu peso foram causa da morte; e ver-
dadeiramente que era uma confusa ordem com que a
desventura tinha tudo aquilo ordenado, e que bastava a
memória daquele passo para não ser a pobreza havida
por tamanho mal que por lhe fugir deixemos a Deus
e o próximo, pátria, pais, irmãos, amigos, mulheres e
filhos, e troquemos tantos gostos e quietações pelos so-
bejos que cá ficam. Enquanto vivemos nos fazem atra-
vessar mares, fogos, guerras e todos os outros perigos e
trabalhos, que nos tanto custam; mas por não contrariar
de todo as justas escusas que por si podem alegar os
atormentados das necessidades, cortarei o fio ao cató-
lico estilo, porque me ia e levava a memória e medo do
que ali foi representado, recolhendo-me a meu propó-
sito, que é escrever somente a verdade do que toca aos
acontecimentos desta história. (Brito, 1998, p. 39)

Após o naufrágio, já durante a peregrinação, a cobiça dos


“nativos” passava, igualmente, a trazer problemas aos portu-
gueses, então desamparados de quase todas as suas posses. Em
outro momento, a pobreza é tomada como um dos incentivos
à viagem, justificativa para o enfrentamento de mares bravios.
O narrador retoma a autoridade de Ovídio, dizendo “que
cresce o amor e cobiça do dinheiro, tanto quanto ele mais cres-
ce”, e que por isso as riquezas “enganam e atraem para si os âni-
mos mortais” (Brito, 1998, p. 221). As consequências, na maioria
das vezes, são dramáticas, como no episódio que segue:

rostos cobertos de tristes lágrimas e de uma amareli-


dão e trespassamento da manifesta dor e sobejo receio

183
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

que a chegada da morte causava, ouvindo-se também


de quando em quando, algumas palavras lastimosas,
sinal certo da lembrança que ainda naquele derradei-
ro ponto não faltava dos órfãos e pequenos filhos, das
amadas e pobres mulheres, dos velhos e saudosos pais
que cá deixavam. (Brito, 1998, p. 33)

O desengano, no caso, faz enxergar uma vida que a cobiça


não deixou ver. As lágrimas manifestaram-se como resultado
da purgação e da penitência, num reconhecimento derradeiro
da condição de pecador.

184
V

CARIDADE
De acordo com João Adolfo Hansen (1996, p. 135-136), a
“razão de Estado” pressupõe uma “ligação necessária e sacra-
lizada do Estado ao soberano”. Trata-se de um “imperativo
em nome do qual, alegando o interesse público, o poder ab-
soluto transgride o direito”. Há três argumentos que buscam
fundamentar esta transgressão: “as medidas excepcionais são
necessárias; um fim superior justifica os meios empregados; o
segredo deve ser mantido”. Nesta direção, a “razão de Estado”
seria uma “técnica de conquista, conservação e ampliação do
poder”, com vistas à “manutenção da unidade interna do rei-
no, entendido como corpo de ordens e estamentos fortemente
hierarquizados, garantindo sua soberania contra inimigos ex-
ternos”. Não se trata de um conceito homogêneo, muito pelo
contrário: os debates em torno dele se deram de forma acalo-
rada. Isto é perceptível, por exemplo, na postura assumida por
juristas católicos perante as convicções de Lutero e Maquiavel.
Para Antônio Vieira, a Providência Divina e a prudên-
cia humana harmonizam-se na “razão de Estado”, definida
como “possibilidade concreta de conciliação dos valores cris-
tãos com a eficácia a obter-se nas operações temporais em que
se joga a soberania do rei e Reino” (Pécora, 2007, p. 191). De
acordo com Alcir Pécora, a efetivação da “razão de Estado”
em Vieira requer prudência, uma vez que a razão deve aten-
der a um determinado fim, valendo-se da “ocasião” adequa-
da, que pode ser percebida por meio de um exame apurado
das circunstâncias. A “ocasião” propícia seria o momento no
qual a vontade histórica e a vontade divina se ajustam. Por
outras palavras, é neste intervalo que a “política de obras”
e a “política do céu” entram em sintonia. A “razão de Esta-
do” deve designar uma operação “que, ao admitir o justo fim,
considera imediatamente quais os meios capazes de atender
a ele tendo em vista o seu impacto sobre o ânimo corrompido

185
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

das gentes” (Pécora, 2007, p. 195). Uma finalidade jamais se-


ria atendida em sua totalidade se os meios empregados não
fossem orientados pela razão e iluminados pela Providência.
Para se pensar os pressupostos implicados nas versões ca-
tólicas de “razão de Estado”, é necessário retomar a metáfo-
ra do “corpo místico”. Esta tópica foi utilizada muitas vezes
por escritores e juristas da contrarreforma, que retomavam os
escritos de São Tomás de Aquino para pensar, por exemplo,
os fundamentos e as características da monarquia portuguesa
nos primeiros séculos da colonização. De acordo com Hansen
(2006), duas referências principais se unem na fórmula do cor-
po místico português: uma delas é teológica, e diz respeito à
república cristã. Dentre as práticas que representam bem o as-
pecto corporativo da Igreja, destaca-se o sacramento da Euca-
ristia, por meio do qual a hóstia banhada em vinho consagra a
comunhão do corpo e do sangue de Cristo. No momento da co-
munhão, todos os fiéis compartilham de um mesmo corpo e de
um mesmo Pai, o que concretiza um vínculo orgânico e filial.
A outra faceta do corpo místico é jurídica e sugere a har-
monia estabelecida entre a “razão política” e a “ética cristã”.
Esta harmonia é referida nos estudos de Ernest Kantorowicz
(1998, p. 132-137), que retomam o sistema teológico-político
medieval, doutrina que foi apropriada para legitimar as bases
monárquicas de Portugal, regulamentar sua hierarquia e jus-
tificar os atributos sacros do rei. A metáfora do corpo místico
subtende a necessidade e relevância de uma hierarquia arti-
culada com rigidez, entendida como reflexo da lei natural. O
Império português seria regido pelo rei, cabeça da hierarquia
política e, portanto, o responsável pela condução sadia de
seu reino. Aos súditos, integrantes do corpo político e subser-
vientes à vontade da cabeça, restaria o respeito incondicional,
fator que proporcionaria o bem comum. Ora, se Cristo guia
os fiéis tendo como fito a salvação deles, o rei, por analogia,
orientaria os componentes do seu reino devido à autoridade
sacra que detém, tornando-se o mediador entre o céu e a terra.
Desta forma, a subordinação implicava o bom uso do livre-ar-

186
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

bítrio, e o respeito aos superiores se tornaria legítimo porque


análogo à situação cristã, marcada pela submissão do corpo
de fiéis aos dogmas da Igreja Católica, encabeçada por Cristo.
O rei, portanto, apresentava uma natureza dupla, ao mes-
mo tempo humana e sagrada. Este revestimento místico de
sua imagem política permitiria a edificação de uma ideia de
“reino” que ele personificava e administrava, ainda que não
pudesse frequentar toda a extensão geográfica dele. Por ne-
cessidade, o sentido orgânico da sociedade de corte permitia
e promovia uma distribuição das responsabilidades entre os
súditos, como condição para seu bom regulamento. Como se
dava, portanto, esta distribuição de tarefas e o devido orde-
namento dos integrantes do reino? Como assegurar a organi-
cidade do corpo político português? Como suprir a inevitável
ausência física do rei? Questões como estas impulsionaram
uma renovação historiográfica considerável nas últimas dé-
cadas que, dentre os seus vários propósitos, pretendia vencer
as limitações impostas pelas análises reducionistas que, em
linhas gerais, atribuíam à metrópole portuguesa a função de
“centro administrativo” e às suas colônias um caráter “peri-
férico”, assinalado pela submissão irrestrita às necessidades
metropolitanas. O “pacto colonial”, sob a lente desta inova-
ção, fundamenta-se em práticas que ultrapassam o “exclusivo
metropolitano”, que subtendia a sujeição das colônias, toma-
das como polos economicamente complementares, à monar-
quia portuguesa, compreendida como centro de onde emana-
va toda e qualquer manifestação do poder.
Ao estudar os escritos jurídicos portugueses do Antigo
Regime, António Manuel Hespanha insiste na inconsistência
das teorias que se pautam na suposta uniformidade jurídica
do Império, alegando a inexistência de um modelo político
genérico que englobasse a expansão lusitana em sua totalida-
de. Conforme o autor, várias explicações buscaram delinear
as motivações imperiais na empresa colonizadora, como o
engrandecimento do rei, a expansão da fé cristã, finalidades
comerciais, dentre outras. Chamando a atenção para a insu-

187
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

ficiência destas hipóteses, Hespanha (2001, p. 169-175) nos


alerta para a “pluralidade de tipos de laços políticos”, que im-
pediam definitivamente o estabelecimento de uma regra uni-
forme de governo, fator este que poderia delimitar e enqua-
drar o alcance e as fronteiras do poderio português. Em razão
disto, o autor afirma ter existido, em Portugal e em suas co-
lônias, uma “estrutura administrativa centrífuga”, isto é, um
modelo de monarquia corporativa que admitia a existência
de diversas modalidades de laços políticos e de instituições
de poder, que detinham certa autonomia em relação à Coroa.
Esta relativa autonomia conferida às instituições portu-
guesas de outrora se traduzia em uma necessidade própria do
Antigo Regime, que não pretendia e nem poderia trabalhar
com a simbologia da dureza e da opressão. A historiadora e
antropóloga Maria Fernanda Bicalho (2005), na esteira de Hes-
panha, afirma que o pacto político firmado entre o rei e seus
subordinados não respeitava criteriosamente a relação man-
do-obediência. Muitas vezes, os reis praticavam a “liberalida-
de régia”, política ligada à suposta bondade do monarca para
com os seus súditos que, em troca, deveriam ser obedientes.
Este procedimento reforçava os laços de solidariedade, cati-
vando o ânimo dos súditos na medida em que se semeava
honra e glória entre eles. A condução do bem comum, desta
forma, não pressuporia necessariamente um rigor coercitivo.
No artigo Uma leitura do Brasil colonial – bases da materia-
lidade e da governabilidade do Império, João Fragoso, Maria de
Fátima Gouvêa e Fernanda Bicalho desenvolveram duas ca-
tegorias que são chaves de interpretação do que poderíamos
chamar de “mecanismos de poder” do sistema colonial. A pri-
meira é a “economia do bem comum”, forma de “reinvenção”
do Império português com base em um sistema hierárquico
excludente. Este pressuposto se baseia numa rede de recipro-
cidade, num “fornecimento de serventias” regulado conforme
diferentes estratégias adotadas pela sociedade colonial e suas
elites. A segunda categoria é a “economia política de privilé-
gios” que, complementando a “economia do bem comum”,

188
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

baseia-se na lealdade e na vassalagem enquanto forma de


“produção” de súditos ultramarinos. Trata-se da garantia dos
laços de sujeição e do sentimento de pertença dos vassalos às
estruturas sociopolíticas do Império. Promove-se, assim, uma
aliança entre o discurso da conquista e uma lógica de caráter
clientelar inscrita na economia de favores.
A legitimação da “razão de Estado”, por intermédio da
metáfora do “corpo místico”, pressupõe a “pluralidade dos
membros e a diversidade das funções, numa integração das
partes que é ordem” (Hansen, 1996, p. 139). Nesta direção, há
pelo menos três aspectos a serem considerados: o bem comum
é o fim último da “razão de Estado”; a desigualdade é natural;
a obediência é pressuposto de soberania e, por isso, uma das
primeiras virtudes que sustentam a “razão de Estado”, sendo
requisito para a harmonia do todo social. Nesta direção, os
conceitos de razão e de ordem se justapõem: para garantir a
harmonia do reino, os integrantes deveriam ordenar suas pai-
xões e condutas para obedecer aos seus superiores, ocupando
com prudência o seu devido lugar.
Contrariar as disposições hierárquicas, portanto, ocasio-
nava discórdias, como é possível perceber no relato de nau-
frágio da nau S. Bento. Vários homens a bordo deixaram de
respeitar Fernão D’Álvares Cabral, o capitão-mor, e resolve-
ram criar um “corpo, cuja cabeça (posto que não nestes maus
ensinos) era o contramestre” (Brito, 1998, p. 54). A desobe-
diência decorrente desta empreitada levou o capitão a formar
um conselho, para definir a melhor forma de agir perante o le-
vante: optaram por tentar dissuadir o contramestre, “que era
bom homem e sempre se mostrara seu amigo” (Brito, 1998, p.
55-56), o que funcionou, pois ele desenganou os rebelados e
demonstrou grande obediência ao capitão. Mas a fortuna, que
“não se contenta com pouco”, tomou a vida do capitão, que
usufruiu de uma bela-morte graças à sua prudência e condu-
ta em geral. No entanto, era necessário rearticular o “corpo”,
temporariamente apartado de sua “cabeça”.
A desordem anunciada é decorrente da desarticulação do
corpo. A reordenação dele dependeria de sua rearticulação,

189
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

agora encabeçada por um novo integrante, que ascende na


hierarquia para organizar o conjunto de suas partes. Algo pa-
recido ocorreu com os tripulantes da nau Conceição, quando o
capitão Francisco Nobre fugiu com alguns de seus homens e
deixou o navio à própria sorte. Como ainda restava esperan-
ça, o narrador relata que tentaram “pôr regra” nos mantimen-
tos e escolheram novo capitão: D. Álvaro de Ataíde.
O respeito (ou desrespeito) à hierarquia pode ser notado
também entre os deuses. Reunidos em concílio, os deuses
olímpicos deliberavam sobre o destino de Vasco da Gama e
de seus homens. Com entonação profética, Júpiter revela a vi-
tória dos portugueses em sua empresa no ultramar:

Prometido lhe está do Fado eterno,


Cuja alta lei não pode ser quebrada,
Que tenham longos tempos o governo
Do mar que vê do Sol a roxa entrada.
Nas águas têm passado o duro Inverno;
A gente vem perdida e trabalhada.
Já parece bem feito que lhe seja
Mostrada a nova terra que deseja.
(Camões, 2005, I, 28, p. 96-97)

O “Fado eterno” promete que os portugueses terão o go-


verno do mar. A conduta que lhes confere tal prestígio é con-
templada e legitimada pela “alta lei”, à qual todos os eventos
humanos se submetem. Esta graça, que assume diferentes co-
notações, será legada aos portugueses por diferentes razões:
bravura, persistência, sujeição a trabalhos contínuos, dentre
outras. A figura de Júpiter, com seus vaticínios e alegações,
pode ser entendida a partir de algumas chaves de leitura: por
ser aquele que preside o Olimpo, a autoridade de sua fala e as
suas resoluções são enunciadas com dignidade, como se ele
ocupasse o papel de causa segunda. Em outras palavras, as
ponderações de Júpiter apresentam alegoricamente a vontade
providencial. Em versos esclarecedores, Camões (2005, X, 83,

190
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

p. 240) admite esta analogia: “E também, porque a santa pro-


vidência / Que em Júpiter aqui se representa”. Por outro lado,
levando-se em consideração os seus intentos, a voz do deus
autoriza a fortuna favorável, pois recompensa os portugueses
com bons agouros. Sua fala, portanto, mostra-se ajuizada e
seus desígnios ecoam com entonação divina.
O deus Baco toma para si outra postura: sua oposição
frente aos “vaticínios” que favorecem os portugueses leva-o a
mobilizar um grande arsenal de infortúnios contra os nautas.
Além de ser um deus pagão, Baco exerce o papel de mentor
dos mouros, o que lhe rende duplo estigma – o de pagão e o de
infiel – e torna suas atitudes ainda mais reprováveis. Na épica
camoniana, é próprio desta deidade agir em dissonância com
os preceitos da ortodoxia cristã, utilizando-se da vaidade, do
engano, da ambição. Ao contrário de Júpiter, Baco age como o
antagonista da providência: aquele que trama obstinadamen-
te as desventuras, instrui astutamente sua prole de mouros e
corrobora a efetivação das peripécias.
Enquanto ornatos poéticos, Júpiter e Baco aprimoram o
estilo da épica e, em consequência, deleitam os leitores; me-
taforicamente, ambos mobilizam, figurativamente, a boa e a
má fortuna, respectivamente. Como alegorias, Júpiter remon-
ta à vontade providencial e encabeça as hierarquias celestes.
Baco, por outro lado, opõe-se às disposições hierárquicas e
aos desígnios divinos, representando o antípoda de Júpiter.
Esta leitura pode embasar-se, por exemplo, em uma das ver-
sões mitológicas na qual Baco fora expulso do Olimpo pela
enciumada Juno, uma vez que o deus é fruto do amor proi-
bido entre Júpiter e a mortal Sêmele. Quer se adote esta ou
outra interpretação, os deuses, na ordem da épica cristã, di-
namizam a narrativa e personificam o fado, a Providência, a
perdição, o pecado, o bárbaro, o cristão, etc.
A relutância de Baco, no que se refere às conquistas ul-
tramarinas lusitanas, decorre de sua vaidade, pois ele temia
ser esquecido. Temor este que se justifica pela sua fama no
oriente, local no qual é considerado o responsável pela difu-

191
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

são da civilização e pelo fabrico do vinho. Ou seja: a glória


dos portugueses, caso viessem a descobrir as rotas marítimas
de acesso às Índias, ofuscaria a sua, e a memória de uma di-
vindade olímpica sucumbiria nas águas do Letes mitológico
devido à ousadia dos mortais. O aedo desacredita as crendi-
ces pagãs – ao querer lançar as memórias de Baco nos confins
do esquecimento – e, ao mesmo tempo, valoriza e amplifica
a memória das conquistas lusitanas. Sepulta-se, de uma só
vez, um deus pagão (que representa as crenças heterodoxas)
e os feitos inverossímeis (em contraposição à vivacidade e
verossimilhança dos feitos portugueses).
Vênus e Marte apoiam Júpiter e defendem a vitória dos
portugueses. Frente aos argumentos de ambos, o deus patrono
mantém-se favorável ao sucesso lusitano e encerra o concílio,
mesmo sem o consentimento do ressentido Baco. Encerrada a
comitiva das deidades, o aedo se ocupa de Vasco da Gama e
sua frota que, a esta altura, velejavam em algum ponto entre
Madagascar e Moçambique. Gama, súdito do rei a quem a “for-
tuna sempre favorece”, ancora em uma ilha e se depara com os
mouros pela primeira vez. O encontro, que parecia fluir bem,
leva o descontente Baco a maquinar uma maneira de impedir o
avanço dos heróis. Resoluto, o deus maquina pensamentos so-
berbos que reafirmam o seu lugar entre as deidades olímpicas:

Está do Fado já determinado


Que tamanhas vitórias, tão famosas,
Hajam os portugueses alcançado
Das Indianas gentes belicosas.
E eu só, filho do Padre sublimado,
Com tantas qualidades generosas,
Hei de sofrer que o Fado favoreça
Outrem, por quem meu nome se escureça?
(Camões, 2005, I, 74, p. 103)

A vaidade é retratada como conduta vil que impede o res-


peito às hierarquias e, logo, a manutenção da paz pública. Na

192
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

narrativa camoniana, Baco desrespeita seu pai, crime grave e


passível de punição. O deus do vinho arquiteta seus pretensos
enganos à revelia do poder instituído, atitude indigna e fruto
da cobiça, da supervalorização das vontades particulares. Em
Tomás de Aquino (2005, p. 31-32), a vaidade conforma-se a
uma atitude imprudente, pois se baseia na “falta de governo
de si próprio” e na cega priorização do particular em detri-
mento do bem comum, o que incita o desrespeito às escalas
superiores da hierarquia. Os pensamentos soberbos de Baco
remontam às ações de Juno que, no contexto da Eneida, cogita
“no íntimo do peito” os seus privilégios, uma vez que precede
os imortais e é “de Jove esposa e irmã”. Baco se envaidece por
ser “filho do Padre sublimado” e se deixa dominar pela ira e
insanidade, à maneira de Juno. A postura de ambos os deuses
dista em grandes proporções da de Vasco da Gama e de seus
pares, apresentados como súditos fiéis ao rei:

Corrupto já e danado o mantimento,


Danoso e mau ao fraco corpo humano;
E, além disso, nenhum contentamento,
Que sequer da esperança fosse engano.
Crês tu que, se este nosso ajuntamento
De soldados não fora Lusitano,
Que durara ele tanto obediente,
Porventura, a seu Rei e a seu regente?
(Camões, 2008, V, 71, p. 163)

Se, de um lado, há um deus vaidoso que facilmente des-


respeita as ordens do pai/rei/deus, de outro agem os lusitanos,
homens que, mesmo submetidos aos mais graves infortúnios,
continuam a acatar as ordens e a respeitar a hierarquia. No
primeiro caso, situa-se a corrupção do bom juízo promovida
pela vaidade; no segundo, o juízo dos heróis traduzido em fi-
delidade. A estrofe acima afirma que a obediência é devida
não somente ao rei, mas também a Vasco da Gama, aquele que
representa e manifesta a vontade do rei em ocasião de sua au-

193
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

sência. Em outros termos, nas adjacências de sua nau, Gama


é aquele que mais detém voz de comando, devido ao lugar
privilegiado que ocupa na hierarquia política e por agir como
instrumento do rei, que se faz presente por seu intermédio.
Se o deus Baco, por meio de uma fala vaidosa, utiliza a
origem nobre como critério para justificar sua fama e con-
trariar a vontade providencial, Jorge d’Albuquerque Coelho
assume uma postura modesta ao afirmar que os incidentes
ocorridos com a nau Santo Antônio seriam devidos aos seus
pecados e faltas. Em um de seus discursos, após ter passado
por inúmeras provações, o protagonista admitiu a gravidade
dos vários trabalhos e danos sofridos, mas utiliza este mesmo
argumento para demonstrar que cada superação se deveu à
intervenção divina. Em seguida, ele afirma que os trabalhos
e provações são mimos do Senhor, e que Ele os deixaria vi-
ver para testemunhar seus milagres. Na conclusão, além de
invocar uma passagem do Evangelho, o narrador utiliza uma
metonímia e uma hipérbole para arrematar a ideia nuclear de
seu argumento: “Portanto, irmãos meus, postos neste estado
de fé e confiança neste Senhor, esperemos que neste pedaço
de pau nos livrará do profundo abismo do mar” (Brito, 1998,
p. 283). A postura de Jorge d’Albuquerque Coelho não dis-
ta muito da de Vasco da Gama e contraria os argumentos de
Baco. Enquanto o deus menciona sua estirpe nobre, seu po-
derio e seus direitos enquanto divindade do panteão grego,
o herói católico alude à sua condição de pecador, continua a
cumprir com seus deveres de súdito e admite que qualquer
poder provém de Deus e da sua providência.
O herói católico bem ajuizado, portanto, é aquele que prio-
riza o bem comum e se manifesta tal como o rei se manifesta-
ria caso estivesse presente, utilizando de seu discernimento e
ponderando bem o seu agir. Esta impossibilidade de o rei se
fazer presente fisicamente e, em contrapartida, a presentifi-
cação dele por meio da fidelidade de seus súditos é essencial
para a construção da ideia política de um reino, como nos ad-
verte Ana Paula Megiani (2004, p. 16): a ordenação do reino

194
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

dependeria do compromisso dos homens e de sua disposição


enquanto súditos atentos e benevolentes.
Dentre os lugares comuns presentes nesta passagem, si-
tuam-se a dignidade do agir, a importância do mérito e da
integridade dos costumes e a superioridade moral (que orien-
tam o agir) frente à pompa (aspiração de prêmios e mercês).
Por outras palavras, o homem deve se espelhar em um bom
rei, independente se integra ou não a realeza ou se ocupa uma
posição de destaque no corpo político do império. Como es-
tímulo, ele deveria “aspirar a coisas elevadas e substanciais”,
atento aos desígnios que partem da Providência.
Os homens que ocupam lugares privilegiados no corpo
social deveriam interceder pelos seus subordinados. A impor-
tância da posição que se ocupa é proporcional à gravidade das
responsabilidades adquiridas, o que faz do rei, representante
de Cristo na terra, o grande responsável pela administração do
império. Neste sentido, a vaidade é intolerável em um orga-
nismo que pretende manter sua coesão com base na prescrição
de lugares hierárquicos. Ela indispõe um indivíduo contra o
outro, ao mesmo tempo em que o leva a conferir primazia aos
seus interesses privados. Esta atitude intensifica o seu descaso
pelos seus pares e altera os seus interesses mais urgentes: a
prioridade passa a ser fruto da cobiça. Torna-se latente o dese-
jo por fama e glória, e não mais a submissão ao bem coletivo.
A vaidade leva o pastor terreno a querer se igualar e substituir
o verdadeiro “Pastor”, tutor das ovelhas: Cristo.
A fidelidade, que segue em direção contrária à vaidade,
ajuíza os homens quanto aos caminhos retos que devem ser
percorridos. Os súditos deveriam incorporar os desígnios que
partiam da Coroa portuguesa, e abraçá-los independentemen-
te da ocasião. Quando desembarca nas proximidades da cidade
de Melinde, por exemplo, Vasco da Gama é bem recepcionado,
mas, precavido, o herói opta por não desembarcar de imediato
e envia um emissário até o rei para justificar a sua conduta:

E não cuides, ó Rei, que não saísse


O nosso Capitão esclarecido

195
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

A ver-te ou a servir-te, porque visse


Ou suspeitasse em ti peito fingido;
Mas saberás que o fez, por que comprisse
O regimento, em tudo obedecido,
De seu Rei, que lhe manda que não saia,
Deixando a frota, em nenhum porto ou praia.

E, porque é de vassalos o exercício,


Que os membros têm, regidos da cabeça,
Não quererás, pois tens de Rei o ofício,
Que ninguém a seu Rei desobedeça (...);
(Camões, 2008, II, 83-84, p. 70-71)

Camões recorre à metáfora do corpo místico para dis-


correr sobre a função da “cabeça” do reino e de seus “mem-
bros”. É obrigação do súdito, portanto, cumprir o regimento
que lhe compete e manter-se fiel a ele. No caso, o emissário
afirma ao rei que Gama não nutria suspeitas em relação à
sua boa intenção quando se recusou a desembarcar, mas o
fez por respeito à cabeça do reino.
Após a deliberação do emissário, o rei de Melinde se mos-
tra impressionado com a fidelidade de Vasco da Gama:

(...) E o Rei ilustre, o peito obediente


Dos Portugueses na alma imaginando,
Tinha por valor grande e mui subido
O do Rei que é tão longe obedecido.
(Camões, 2008, II, 85, p. 71)

Apesar de desejar o desembarque imediato dos navegan-


tes lusitanos, o rei aceita a resolução do herói, pois reconhece
na postura de Vasco da Gama algo ilustre a ser preservado:

De não sair em terra toda a gente,


Por observar a usada preeminência,
Ainda que me pese estranhamente,
Em muito tenho a muita obediência.

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Mas, se lho o regimento não consente,


Nem eu consentirei que a excelência
De peitos tão leais em si desfaça,
Só por que o meu desejo satisfaça.
(Camões, 2008, II, 87, p. 71)

O rei de Melinde tem em alta estima a preeminência, ou


seja, o respeito às ordens superiores. Na sua posição de rei,
esta disposição de ânimo é essencial para a articulação e ad-
ministração de um Império. Ele, então, age de maneira con-
trária à de Baco: longe de criar qualquer ressentimento contra
os portugueses, ele coloca em segundo plano suas vontades e
prioriza a determinação dos visitantes estrangeiros. Mais uma
vez, a ausência de vaidade demonstra a boa disposição do rei,
ao contrário dos mouros que, até então, haviam travado co-
nhecimento com Gama e sua tripulação. É sobre a égide deste
juízo prudente que, posteriormente, o rei mouro e o herói lu-
sitano travariam amizade. Por outro lado, se o rei de Melin-
de mostra-se surpreendido, é por desígnio providencial que
ilumina seu entendimento. Nesta leitura, Vasco da Gama age
como instrumento que apresenta ao infiel a verdade por inter-
médio da Revelação. Não por acaso, o poeta deixa transpare-
cer a centralidade do papel desempenhado pelo rei de Melin-
de, referindo-se a ele como “Rei mais amigo”, “Sublime Rei”,
“Rei benigno”, “Rei ilustre”, “Rei Pagão”, e “Pagão benigno”.
O bem comum é apresentado como uma meta associada
aos interesses do Estado português. Ele nasceria, conforme
Hansen (2002, p. 27-28), “do controle que os membros desse
corpo deviam impor-se a si mesmos, reprimindo os apetites
particulares, para obterem e manterem a concórdia do todo,
como unidade pública da paz”. Frente a esta assertiva, deduz-
-se o seguinte: o todo depende de suas partes para concretizar
a “unidade pública de paz”; a parte necessita conter os “apeti-
tes particulares” em prol da coletividade. Por outras palavras,
a pessoa, para ser aceita e fazer parte do “corpo” em que vive,
deve agir e ser o que este corpo dela espera; em contrapartida,

197
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

o corpo precisa de “partes” comprometidas para proporcio-


nar a concórdia. Ser prudente, nesta chave escolástica, signifi-
ca se tornar a peça que a monarquia cristã portuguesa almeja
para o quebra-cabeça do bem comum.
A conduta dos heróis afina-se à noção de prudência polí-
tica adotada por Tomás de Aquino (2005, p. 52-53). Trata-se
de uma forma de “retidão de governo”, a partir da qual os
súditos, fazendo bom uso do livre arbítrio, deveriam “dirigir-
-se a si mesmos na obediência aos governantes”, evitando a
priorização de si em favor do bem coletivo. Nesta medida,
a pessoa deve governar a si mesma e, em consequência, se
deixar governar pelo rei ou superior hierárquico a quem deve
serviço. Como exemplo, há um trecho de Jerusalém Libertada
na qual os grandes heróis cristãos se dobram perante a inte-
gridade de Godefredo:

Os mais o aprovam. Cabe-lhe o comando


E o conselho também; leis á vontade
Impor aos que se forem sujeitando;
E escolher guerra e paz em liberdade.
Os dantes seus parceiros do seu mando
Se submetem agora à autoridade.
Isto feito, voando corre a fama,
E pela voz dos homens se derrama.

Godefredo aos soldados aparece,


Que o julgam digno do supremo posto;
E as saudações que a multidão lhe tece
E o aplauso aceita plácido, composto.
Depois de tantas mostras agradece
De obediência e amor, sereno o rosto,
Decide, mal o dia vindo seja,
Que a hoste pronta em largo campo esteja.
(Tasso, 1998, p. 121)

Antes desta aprovação, contudo, os guerreiros cristãos


ouviram uma máxima que lhes ergueu o ânimo, proferida por
um ancião de nome Pedro, o Ermita:

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Formai um corpo só, o qual sustenham


Todos os membros seus, como é preciso;
Um chefe nomeai-lhe; e que este o império
Exercite no sumo ministério.
(Tasso, 1998, p. 120)

É razoável supor que a conotação orgânica a que incorre tal


advertência ajusta-se à metáfora do corpo místico, pois cada in-
tegrante do exército cristão deveria agir conforme autoridade do
chefe que seria escolhido. É a partir deste conselho que todos
optam por se submeter à Godefredo, escolhido por Deus para
guiar as tropas cristãs rumo a Jerusalém. Com placidez, isto é,
sem afetação ou cerimônia demasiada, o herói de bom grado
acata a “obediência” e o “amor” de seus subordinados. Bela con-
junção esta, que equipara a obediência à liberdade da ação reta,
e o amor ao laço filial que transcende a pura serventia. O amor,
certamente com conotações platônicas, investe o súdito de um
ânimo que ultrapassa qualquer interesse ou vaidade. Só com
amor e obediência seria possível formar o tal “corpo”, encabe-
çado pelo chefe, nomeado pelos súditos e escolhido por Deus.
Decerto, os súditos nada fariam caso não houvesse uma
política de benefícios da qual pudessem usufruir. A fidelida-
de, na épica camoniana, é recompensada pela obrigação da
reciprocidade, isto é, o ato de servir pressupõe certos bene-
fícios àquele que serve, como, por exemplo, em ocasiões nas
quais o rei confia ao súdito uma grande responsabilidade. O
aedo d’Os lusíadas contempla este lugar comum, recorrendo
à tópica da amizade que se estabelece entre o rei português
e o nauta Vasco da Gama, no momento em que este último é
designado para liderar a empresa ultramarina:

E com rogo e palavras amorosas,


Que é um mando nos Reis que a mais obriga,
Me disse: “As cousas árduas e lustrosas
Se alcançam com trabalho e com fadiga;
Faz as pessoas altas e famosas

199
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

A vida que se perde e que periga,


Que, quando ao medo infame não se rende,
Então, se menos dura, mais se estende.

Eu vos tenho entre todos escolhido


Para uma empresa, qual a vós se deve,
Trabalho ilustre, duro e esclarecido,
O que eu sei que por mi vos será leve.”
Não sofri mais, mas logo: “Ó Rei subido,
Aventurar-me a ferro, a fogo, a neve,
É tão pouco por vós, que mais me pena
Ser esta vida cousa tão pequena.”
(Camões, 2005, IV, 78-79, p. 141)

Neste episódio, o rei D. Manuel menciona a bravura e a


experiência de Vasco da Gama e, por isso, lhe concede uma
missão ilustre. Antes disso, o rei disserta sobre a necessida-
de e o valor do “trabalho”, quando visa o bem-estar geral: é
esta motivação que, de fato, confere glória e fama aos homens
munidos de princípios, garante o rei. Este é um lugar comum
presente, por exemplo, nos escritos de Hesíodo (2010, p. 76-
77), quando este afirma: “A riqueza é sempre acompanhada
de mérito e glória. E seja qual for a tua sorte, trabalhar é o me-
lhor para ti”. Recorrendo ao lugar da amizade, o rei concede
ao protagonista trabalho “ilustre, duro e esclarecido”. Estas
instruções e o reconhecimento movem o herói que, animoso,
acata as designações prontamente. Ao final, o aedo recorre à
tópica da brevidade da vida, presente, por exemplo, nos tex-
tos de Homero, como no caso em que é retratado o ressenti-
mento de Aquiles perante a sua condição de mortal. Havia
uma fronteira intransponível que distinguia a condição hu-
mana da condição das divindades: o homem, na épica de Ho-
mero, apresenta vida curta, enquanto os deuses viviam eter-
namente. Em Camões, este lugar recobra outra dimensão: a
imortalidade da alma, possibilidade cristã de salvação e vida
eterna. Esta finalidade seria alcançada se o vassalo cristão se

200
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

dispusesse a cumprir seu legado, definido, legitimado e su-


gerido pelo rei, representante de Cristo na terra e detentor de
um lugar sacro e hierarquicamente sem equivalência.
O comprometimento dos súditos assegurava a possibili-
dade de premiações justas e dignas. A reciprocidade, neste
caso, é proporcional aos serviços prestados em favor da Co-
roa portuguesa, como é possível constatar no seguinte frag-
mento de Prosopopeia:

Mas quem por seus serviços bons não herda,


Desgosta de fazer coisa lustrosa,
Que a condição do rei que não é franco
O vassalo faz ser nas obras manco.
(Teixeira, 2008, p. 129)

A falta de franqueza por parte do rei que não valoriza a


fidelidade de seus súditos é entendida como indecorosa, pois
não cumpre com os protocolos da reciprocidade. A não pre-
miação, neste caso, seria um repelente contra qualquer boa
vontade que pudesse partir do leitor. São prudentes aqueles
que, ansiosos por ascensão social, servem ao rei; por outro
lado, é prudente o rei que estimula e incentiva a boa disposi-
ção de seus subordinados. Tomás de Aquino (2005, p. 51-52)
fala de uma modalidade de prudência muito particular, que
nomeia “prudência de reinar”, compatível com o modelo de
rei justo ao qual nos referimos. Para cogitar a possibilidade
de uma relação concorde, anseia-se pela manutenção de um
“pacto” político, a partir do qual uma das partes se dispõe a
servir perscrutando benesses e recompensas, e a outra conce-
de honrarias diversas para, assim, obter respeito.
O pacto político, entretanto, prescreve modos de agir con-
venientes ao poder vigente, de tal maneira que as prioridades
do monarca se confundem com as prioridades do herói anun-
ciado. O herói personifica, assim, a vontade do rei, agindo
como braço dele e, inversamente, na ausência do rei, ele en-
cabeça a hierarquia, sempre atento às prescrições reinóis, pois

201
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

anseia por reconhecimento e premiações. O poeta, à sombra


deste poder, dispõe lugares hierárquicos e instrui sobre a ma-
neira prudente de agir, pois se trata de um agir subserviente
à Coroa. Vislumbrar possibilidades de reciprocidade, neste
modelo de ação, é antever o que pode vir a ocorrer e perscru-
tar com perspicácia as boas oportunidades que, porventura,
surgirem (Luz, 2013, p. 33-56).
Caberia ao rei, enquanto administrador do Império, cati-
var e qualificar os seus súditos e movê-los na direção que lhe
convinha: já o súdito deveria ser fiel e grato ao rei:

Nem creiais, Ninfas, não, que fama desse


A quem ao bem comum e do seu Rei
Antepuser seu próprio interesse,
Immigo da divina e humana Lei.
Nenhum ambicioso, que quisesse
Subir a grandes cargos, cantarei,
Só por poder com torpes exercícios
Usar mais largamente de seus vícios;
(Camões, 2008, VII, 84, p. 221)

A estrofe acima trata do súdito que quebra o “pacto”, pois


retrata alguém que privilegia suas ambições e abandona o
bem comum e a lealdade ao rei. Em decorrência desta atitude,
este súdito se torna inimigo da lei divina e da lei civil. A fideli-
dade, portanto, é avaliada como escolha prudente e legítima.
A vaidade, por outro lado, é tratada como ilegítima e própria
daqueles que se encontram ou se colocam à margem do poder
legitimado. Como observa Camões, a vaidade leva o indiví-
duo a ser inimigo da “divina” e da “humana” lei.

As faces do amor

Um dos episódios mais conhecidos d’Os lusíadas trata das


desventuras pelas quais passou a personagem Inês de Castro,
amante do príncipe Pedro. Após a morte de seu pai, D. Afon-

202
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

so IV, Pedro tornou-se imperador de Portugal (1357). Quando


trata desta matéria, o aedo enumera as características do amor:

Tu, só, tu, puro amor, com força crua,


Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano.
(Camões, 2008, III, 119, p. 110)

O poeta prepara o leitor para uma narrativa de cunho


trágico e, por isso, relaciona o amor à tragédia, atribuindo a
ele adjetivos como “áspero” e “tirano” e chamando a atenção
para a sua dimensão irracional. Torquato Tasso, em Jerusalém
Libertada, retrata esta mesma dimensão ao dizer:

Debalde! Amor aconselhar que importa?


Para a prudência nunca ouvidos teve.
(Tasso, 1998, p. 226)

O amor pode atrelar-se, ainda, ao esquecimento: na Odis-


seia, o amor muitas vezes impediu a consecução do retorno de
Ulisses a Ítaca. Harald Weinrich retoma dois episódios signifi-
cativos a esse respeito: o primeiro, localizado no décimo can-
to, narra as aventuras de Ulisses e de seus homens nas terras
desconhecidas da deusa Circe. Antes de transformar os emis-
sários do herói em porcos, Circe deu a eles uma bebida enfei-
tiçada, que causava o esquecimento. Quando os emissários
bebem da “droga do esquecimento”, deixam de priorizar o
retorno e os laços de fides com seu comandante. Ulisses resiste
ao encantamento graças a um antídoto cedido por Hermes,
mensageiro dos deuses. Desta forma, ele pôde convencer a
deusa a conferir forma humana novamente aos seus compa-

203
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

nheiros. Não obstante tenha se livrado do encantamento das


drogas, Ulisses logo seria vítima de outro, mais eficaz e contra
o qual não há antídoto: o amor. O herói fica na companhia da
deusa durante um ano, período no qual deixa de priorizar o
retorno. O estímulo dos amigos é que confere ao amante novo
fôlego para consecução do nóstos.
No segundo episódio, Ulisses enamora-se de Calipso, nin-
fa repleta de artimanhas. Também neste caso, o amor separou
o herói do retorno durante sete longos anos. A ninfa chega a
oferecer a ele o néctar e a ambrosia, elementos associados à
imortalidade. Tornando-se imortal, Ulisses esqueceria todos
os laços terrenos. Mais uma vez Hermes, a mando de Zeus,
comunica a Calipso os intentos do deus patrono de deixar o
herói partir. Poseidon, desaprovando a intromissão de Zeus,
lança uma tempestade que destrói a balsa do herói. É assim
que Ulisses acaba chegando à terra dos feácios, local onde
narra estas duas peripécias aludidas.
Ora, o que é a vaidade senão a expressão corrente de um
amor próprio em demasia? O que é a paixão cega senão um
mal irracional e, portanto, destituído de comedimento? En-
tretanto, o que seria da fidelidade não fosse o amor nutrido
pelo outro? Haveria sacrifícios, não estivesse o amor presente
no peito dos heróis?
No Banquete, Platão (1999, p. 103) assegura que “às ações
vis e desonestas se liga a desonra e às boas ações está ligado o
amor”. Em seguida, ele assevera:

Se fosse possível formar, por algum modo, um Estado


ou um exército exclusivamente composto de amantes
e amados, assim se obteria uma constituição política
insuperável, pois ninguém faria o que fosse desonesto,
e todos, naturalmente, se estimulariam para a prática
de belas coisas (Platão, 1999, p. 104)

No primeiro caso, o amor institui a bondade. No segundo,


ele fundamenta uma constituição política adequada. Além dis-

204
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

so, há que se considerar o ato do sacrifício, pois, segundo Pla-


tão (1999, p. 104), “só o fazem os que verdadeiramente amam”.
Na Ética a Nicômaco, Aristóteles (2009, p. 180) discorre so-
bre a amizade, associando-a ao amor. Para tanto, ele escreve
sobre três espécies de amizades: duas delas são acidentais,
pois uma volta-se para a utilidade e a outra para o prazer.
A terceira modalidade, entendida como a mais perfeita, fun-
damenta-se em uma relação recíproca estabelecida entre ho-
mens igualmente dotados de virtude. Esta é a mais perfeita
relação porque se baseia no amor incondicional e durável.
Desta forma, “os inferiores serão amigos em vista do prazer
ou da utilidade”, ao passo em que os homens de bem “são
semelhantes entre si por serem bons”. Esta última modalida-
de deve reger e fundamentar um modelo político baseado na
monarquia. Aristóteles (2009, p. 190) afirma que o monarca

faz bem aos seus súbditos, na medida em que, sendo


bom, olha por que eles vivam bem, tal como o faz o
pastor com os seus rebanhos de cabras. Daí também
que Homero chame a Agamémnon “pastor de povos”.

A disposição do governante para com os seus governados


reflete uma relação baseada no amor. Ele se volta para o bem
comum ao contrário dos vaidosos, como preconiza o próprio
Aristóteles (2009, p. 210):

Nós criticamos as pessoas que se amam a si próprias


dizendo delas depreciativamente que estão “apaixo-
nadas por si próprias”. Também parece que o vil faz
tudo por paixão por si, e quanto mais depravado for,
tanto mais está apaixonado por si – há queixas contra
ele por não ser capaz de fazer nada que se desvie do
seu interesse. Mas o que é excelente age em vista da
nobreza da ação e quanto melhor for a pessoa, tanto
mais age com esse objetivo em vista. Age em vista do
si de outrem amigo, deixando o seu próprio si de lado.

205
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Não é por acaso que Camões associa a vaidade à tirania,


valendo-se da tópica do “desconcerto do mundo”:

E vê do mundo todo os principais


Que nenhum no bem público imagina;
Vê neles que não têm amor a mais
Que a si somente, e a quem Filáucia ensina;
Vê que esses que frequentam os reais
Paços, por verdadeira e sã doutrina
Vendem adulação, que mal consente
Mondar-se o novo trigo florescente.

Vê que aqueles que devem à pobreza


Amor divino, e ao povo, caridade,
Amam somente mandos e riqueza,
Simulando justiça e integridade.
Da feia tirania e de aspereza
Fazem direito e vã severidade.
Leis em favor do Rei se estabelecem;
As em favor do povo só perecem.

Vê, enfim, que ninguém ama o que deve,


Senão o que somente mal deseja.
Não quer que tanto tempo se revele
O castigo que duro e justo seja.
(Camões, 2008, IX, 27-29, p. 258-259)

Na primeira estrofe, o aedo afirma ao leitor que a vaidade


(Filáucia) encontra-se presente na maioria dos homens, que
acabam desprezando o bem público em prol de suas vontades
particulares. É conveniente lembrar que a adulação, atributo
comumente associado a tais homens, opõe-se à amizade ver-
dadeira que não se baseia em interesses acidentais. O amor
próprio mostra-se “um terreno de acesso inteiramente propí-
cio à investigação sobre nós” (Plutarco, 1997, p. 27); o adulador
encontra na vaidade alheia um convite para atuar. Na segun-
da estrofe, Camões refere-se à tirania como modelo de gover-

206
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

no que não se preocupa com as coisas públicas e, por isso, en-


contra-se apartada do amor divino, que incentiva a caridade e
a pobreza, e não o apego demasiado às riquezas e ao mando.
Há uma passagem digna de nota em Orlando Furioso
(1516), de Ludovico Ariosto. O protagonista, Orlando, passa
boa parte da narrativa perseguindo sua amada Angélica que,
no entanto, não lhe correspondia o afeto. A fúria de Orlando,
referida a princípio no título da obra, é a fúria de um amante
que se deixa afetar pela paixão e, por isso, afasta-se da guer-
ra e das obrigações conferidas aos súditos. No canto XXIII, a
loucura do protagonista fica mais explícita devido à revelação
de que sua amada havia correspondido a outro. Só ao final da
epopeia é que o amigo de Orlando, Astolfo, vai à lua para rea-
ver o juízo do companheiro. Quando devolve ao protagonista
sua sanidade, este se esquece da amada e, assim, retorna à
guerra contra os “infiéis”. O amor que leva Orlando a desviar-
-se da razão é similar à atitude de Eustáquio que, em Jerusalém
Libertada, desacata as ordens de seu superior para participar
da escolta de sua amada. É necessário lembrar que o alvo de
seu amor era, na verdade, uma mulher repleta de más inten-
ções, que queria desviar os soldados cristãos do caminho da
razão. O amor, neste caso mal direcionado, desorienta o herói
perante a hierarquia política e o cega, pois a prioridade que o
move é tão somente o bem-estar da amada.
Aludindo ao poder do amor, Camões salienta:

Mas quem pode livrar-se, porventura,


Dos laços que Amor arma brandamente
Entre as rosas e a neve humana pura,
O ouro e o alabastro transparente?
Quem, de uma peregrina formosura,
De um vulto de Medusa propriamente,
Que o coração converte que tem preso,
Em pedra não, mas em desejo aceso?
(Camões, 2008, III, 142, p. 116)

207
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Para pintar os efeitos irresistíveis do amor, Camões refe-


re-se à perícia destrutiva da Medusa. Na mitologia, o herói
Perseu é incumbido de trazer a Polidectes, rei de Sérifo, a
cabeça desta Górgona. Para fazê-lo, ele se vale de acessórios
e instrumentos que acentuam sua métis: um escudo “polido
como espelho” cedido por Atena, para revidar o olhar mortal
da personagem; uma “foice adamantina” fornecida por Her-
mes, para cortar-lhe o pescoço; sandálias aladas e o elmo da
invisibilidade de Hades, para facilitar-lhe a fuga posterior ao
embate; e um alforje especial para depositar a cabeça da opo-
nente. Como se sabe, antes de ser transformada em monstro
horrendo, a Medusa fora uma linda donzela que ousou com-
petir com Minerva (equivalente à deusa Atena), incorrendo
em hybris. Interessante o paralelo de Camões que, para pintar
o amor, recorre a uma personagem cujo destino trágico decor-
re de sua vaidade e do atrevimento em tentar se igualar a uma
deusa (ou mesmo de superá-la).
Vernant (1988, p. 105) afirma que encarar a face da Medu-
sa é lidar com o “outro”, com “nosso duplo”, completamente
estranho. Trata-se do exercício de uma “alteridade radical”,
efetivada ao “cruzar o olhar com o olho que por não deixar de
nos fixar torna-se a própria negação do olhar”. Ver e ser visto
pela Medusa inaugura uma relação de reciprocidade, na qual
direcionamos um olhar que retorna, ao depararmos com “nós
mesmos no além”. Insiste Vernant (1988, p. 103):

Ver a Górgona é olhá-la nos olhos e, com o cruzamento


dos olhares, deixar de ser o que se é, de ser vivo para
se tornar, como ela, Poder de morte. Encarar Gorgó é
perder a visão em seu olho, transformar-se em pedra,
cega e opaca.

Nesta circunstância da efetivação da alteridade extrema,


entramos em contato com “a maior das distâncias” e com “o
estranhamento mais completo”. O amor descrito por Camões
é igualmente fruto da reciprocidade, da alteridade vertical, isto

208
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

é, se o olhar fulminante da Górgona nos arremessa para baixo,


em direção à morada de Hades, o amor nos impele às alturas.
Se o olhar da Medusa nos apresenta a morte inevitável, o amor
concede-nos vida, daí a contraposição entre a “pedra”, fim da-
quele que encara a monstruosidade mitológica, e o “desejo ace-
so”, chama viva e densa que interpele o viver conjugal. Neste
caso, ser um “vulto de Medusa” significa apreender seus do-
tes inquebrantáveis, mas em um novo sentido, fundamentado
nos laços formosos e brandos do amor. Não seria o amor, neste
caso, fruto igualmente de uma “alteridade radical”?
Voltando ao caso de Inês de Castro, sua morte foi fruto
de um amor que, para a maioria de seus contemporâneos, era
proibido e prejudicial:

Tirar Inês ao mundo determina,


Por lhe tirar o filho que tem preso,
Crendo com sangue só da morte indigna
Matar do firme amor o fogo aceso.
(Camões, 2008, III, 123, p. 111)

Para impedir que o príncipe Pedro se casasse com uma


mulher castelhana, o que poderia colocar em risco a auto-
nomia de Portugal, o rei, seu pai, sugere a morte da perso-
nagem, insinuação prontamente aceita pela nobreza. No en-
tanto, a pedido da moribunda, o rei apieda-se e concede-lhe
clemência, mas os nobres não se refreiam e assassinam Inês.
É neste contexto que a estrofe acima retomada faz sentido: o
que se tenta fazer é tirar a vida de Inês para, assim, apagar o
fogo do amor que queimava no peito daquele que assumiria o
trono português. Na sequência, o príncipe Pedro torna-se rei e
se vinga dos malfeitores que causaram a morte de sua amada.
Quando é alertado sobre a morte de Pátroclo, Aquiles re-
torna à guerra em busca de vingança. O mais forte dos aqueus
enfrenta e aniquila o príncipe troiano, ultrajando seu corpo ao
redor do pátio de Troia. Do amor devotado ao companheiro
morto em batalha desdobra-se a indignação acompanhada de

209
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

uma necessidade de saciar o vazio com a atitude vingativa.


Príamo, rei de Troia, adentra com temeridade o acampamen-
to grego, encontra-se às escondidas com Aquiles e insiste na
devolução do corpo ultrajado de Heitor, para que as honras
fúnebres pudessem ser devidamente prestadas. Se não pôde
poupar a vida do príncipe troiano, Aquiles ao menos refreou
sua ira para apiedar-se do rei lacrimoso e conceder-lhe a pos-
sibilidade de enterrar seu filho e principiar o luto de maneira
adequada. Neste caso, a vingança associa-se à explosão apai-
xonada de Aquiles, que devotava fidelidade ao amigo por
meio de um pacto de convívio e de gratidão. Na epopeia ca-
moniana, trata-se de uma ação decorrente da injustiça come-
tida contra Inês, pretendente de Pedro.
O amor reforça a constância do agir, reaviva a fidelidade,
nutre os caprichos dos vaidosos, atiça a paixão e, por isso, re-
laciona-se com a prudência de formas variadas. Orlando ape-
nas retomou o caminho da constância quando se “esqueceu”
definitivamente da amada. Recobrou o juízo e, então, a fideli-
dade ao rei. A arte da prudência, nestes termos, pressupõe o
controle das paixões, o que inclui o amor. Este deve ser regido
pela mediania, pois tudo o que envolve excessos desdobra-
-se em uma atitude viciosa. É o amor prudente que reafirma
a boa intenção dos poetas quando, com modéstia, salientam
a reta intenção que os move a presentear o dedicatário. O
amor garante, portanto, a reciprocidade, assim como deve-
ria garantir a amizade. É a amizade perfeita que garantiria os
laços políticos necessários para o reforço do bem comum e,
portanto, o estabelecimento da harmonia entre os integrantes
do reino. A tópica da obediência, associada ao sentimento do
amor, justifica a boa conduta do súdito, que deveria mobilizar
seu livre-arbítrio em prol do bem comum.
É preciso repensar a afinidade entre razão e ordem, no
que tange à relação estabelecida entre amor e prudência. Não
há ordem sem a intervenção de homens prudentes. Por outro
lado, uma amizade forte não sobrevive sem amor, pois é por
meio deste sentimento que os homens obedecem sem hesitar.

210
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

O amor sustenta, portanto, a manutenção da ordem e a pro-


dução do bem comum. Se for desdobramento da imprudên-
cia, no entanto, o amor afasta-se da mediania e, por isso, re-
produz a discórdia. A amizade é uma chave de entendimento,
pois o amor ligado a ela deve ser necessariamente recíproco, e
é a reciprocidade que sustenta a concórdia estabelecida entre
o rei e os seus súditos. O amor, nesta direção, é ora agente
harmonizador, ora o responsável pela discórdia.
Recordemos a referência ao Cupido que Camões faz no
canto IX de sua epopeia. Esta personagem, conquanto utilize
de suas setas para atiçar e seduzir os homens, nem sempre
mira com a prudência devida:

Destes tiros assim desordenados,


Que estes moços mal destros vão tirando,
Nascem amores mil desconcertados
Entre o povo ferido miserando;
E também nos heróis de altos estados
Exemplos mil se vêm de amor nefando,
Qual o das moças Bíbli e Ciniréia,
Um mancebo de Assíria, um de Judéia.
(Camões, 2008, IX, 34, p. 260)

As alusões presentes neste trecho referem-se a persona-


gens emblemáticas: como é indicado nas notas da edição,
Bíbli apaixonou-se pelo irmão; Ciniréia pelo pai; Antíoco, o
“mancebo de Assíria”, pela madrasta; e Amnon, “de Judéia”,
filho de David, se apaixonou pela irmã. Admite-se, então,
uma faceta nefasta do amor, que propulsiona relações “contra
a natureza” e, portanto, heterodoxas.
Mais tarde, Camões vai tratar do episódio da Ilha dos
Amores, no qual Vênus, auxiliada pelo filho, atiça o amor das
ninfas e Nereidas, para que estas seduzissem os nautas portu-
gueses. Repleto de alegorias, o episódio evidencia o significa-
do de tal sedução, afirmando que estas entidades mitológicas
personificavam a fama e a honra dos nautas lusitanos que,

211
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

após a efetivação de ações heroicas, acabam sendo imortaliza-


dos na memória. Cupido atende aos apelos de Vênus: os lusi-
tanos unem-se às deidades e, assim, a memória de seus feitos
torna-se matéria poética legada à posteridade. No entanto,
para além desta faceta do amor evidentemente marcante na
epopeia, a deusa Tétis apresenta à Vasco da Gama a “máqui-
na do mundo”, tópica associada à cosmografia de Ptolomeu.
Gama tem uma visão privilegiada dificilmente concedida aos
mortais, testemunhando os fundamentos da revelação divina.
Camões, no entanto, assevera:

Vês aqui a grande máquina do Mundo,


Etérea e Elemental, que fabricada
Assim foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada,
É Deus; mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.
(Camões, 2008, X, 80, p. 302)

O discurso platônico estabelece uma hierarquia de dimen-


sões relativas ao amor: amor às formas físicas belas, à beleza da
mente, à ética, às instituições (relativas ao governo e ao modo
de governar), à ciência (responsável pela harmonia e ordena-
mento do universo) e, por fim, à beleza em sua essência (ligada
às realidades superiores do universo, à visão do sol tematizada
na alegoria da caverna presente no livro VII da República). É
nesta dimensão que o amor oscila entre a mortalidade e a imor-
talidade, daí o Eros platônico não poder ser nem homem, nem
imortal. Todas estas dimensões do amor devem ser considera-
das, pois o que Vasco da Gama encontra não é outra coisa se-
não o “sol” da alegoria platônica transmutada nas verdades da
revelação cristã. O amor com as ninfas, no caso, seria o primei-
ro estágio de um sentimento que ascende significativamente.
A ética cristã demarca a conduta dos portugueses durante
toda a narrativa. O amor pelas coisas perecíveis é substituído

212
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

pela caridade e, portanto, pelo desapego aos bens mundanos


e apego às coisas elevadas. É o bem comum que, dentre outras
coisas, guia os portugueses rumo ao estabelecimento da con-
córdia e da harmonia mística do corpo político. A trajetória
heroica leva, inevitavelmente, à ascensão do herói que, assim,
completa o percurso da vida e obtém a imortalidade que lhe é
devida, na forma não apenas de memória perene, mas salva-
ção, marcada pelo rompimento dos grilhões da caverna platô-
nica e acesso irrestrito às verdades providenciais.
Assim, seguindo mais ou menos a linha argumentativa
evidenciada no livro III e, sobretudo, no livro IV d’O Cortesão,
o amor pode ser entendido como um “móvel superior”, uma
medida de acesso à virtude. Neste caso, a importância não
recai necessariamente sobre o sentimento do amor, mas nas
motivações que o amor imputa às suas partes, que tendem à
superação e ao aperfeiçoamento das virtudes, sendo, por isso,
um “meio” adequado. O amor, ato da conquista e manuten-
ção do interesse recíproco, tende a mover a espécie humana
rumo à perfeição, sendo este sentimento devidamente orien-
tado por preceitos prudentes e, portanto, racionais, a integrar
a virtude cortesã. Manuel de Sousa Sepúlveda, de acordo com
um narrador anônimo, é um homem generoso e liberal, pois
se incumbe de alimentar e auxiliar seus homens. Seu destino
trágico e os vários trabalhos que experimenta, portanto, con-
trastam com seu perfil de fidalgo nobre e cavaleiro. O mes-
mo ocorre com Fernão d’Álvares Cabral, “fidalgo de muita
estimação” no reino, que enfrenta a desobediência de seus
homens e convida-os a voltar à razão. Jorge de Albuquerque
Coelho também é retratado como detentor de liberalidade e
generosidade, que protagoniza uma relação de naufrágio e o
poema de Bento Teixeira (Brito, 1998, p. 5). Estas duas virtu-
des partem da “cabeça” do organismo político, como se pode
ver no caso dos três capitães mencionados. Em meio às des-
venturas vivenciadas ao longo da travessia, encontra-se, por-
tanto, indícios de uma postura cortesã motivados pelo amor
às partes integrantes do corpo místico português.

213
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Entre os deuses, o amor costuma ser desmedido, destem-


perado. No Naufrágio de Sepúlveda, por exemplo, o Amor ocu-
pa, em algumas ocasiões, papel análogo ao de Baco na epopeia
lusíada, afinal, é ele o responsável pelo crime que justifica to-
dos os incidentes e infortúnios ocorridos com Sepúlveda e sua
família. De fato, ele seria a transposição semântica do estado
de espírito do protagonista, como adverte Hélio Alves (2001,
p. 668). Quando não consegue unir o protagonista e Leonor
de Sá em matrimônio, devido à intervenção do pai da preten-
dente, Amor recorre à sua mãe, Vênus, para enfrentar o “tor-
pe, vil, baixo interesse” (Corte-Real, 1594, p. 21) que acabou
por contrariá-lo. Quando descreve d. Leonor, o aedo toma sua
beleza como sendo artifício divino:

A branca cor do rosto acompanhada


De uma cor natural honesta, e pura
E a cabeça de crespo ouro coberta
Lembrança do mais alto céu faziam.
Praxitheles, nem Phidias não lavraram
De branquíssimo mármore igual corpo;
Nem aquele, que Zêuxis entre tantas
Formosuras, deixou por mais perfeito.
Não se igualava a este, antes ficava,
Abatido, e julgado e pouco preço.
Que mal pode igualar-se humano engenho
Com aquilo em que Deus tal saber nos mostra.
Da boca o suave riso alegra os ares
Mostrando entre Rubis, orientais Perlas,
E sobre tudo quanto a natureza
Lhe deu perfeito, a graça se avantaja.
No peito ebúrneo, as pomas que em brancura
Levam da neve o justo preço e a palma
Apartando-se, deixam de açucena
Alvíssima um florido, e fresco vale.
Quem pode (sem perder-se) louvar coisa
Onde não chega humano entendimento?
Oh fortuna cruel, que fim tão triste

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Guardaste para uma obra tão perfeita.


(Corte-Real, 1594, p. 5-6)

Para Hélio Alves (2001, p. 670), o poder do Amor paira os-


tensivamente sobre homens e deidades do poema de Corte-
-Real, não se tratando, porém, do amor “universal e benevo-
lente do cristianismo, mas o amor negativo, cruel e aniquilador
da linguagem do desejo sexualizado”. O aedo utiliza vários
termos vis para defini-lo: menino “cruel”, “bravo”, “sober-
bo”, “cego”, “tirano”, “injusto”, “malicioso”, “desleal”, “falso
amigo”, “vingativo”. Para perder sua aparência infantil, Amor
une-se a seu irmão, Anteros, e juntos partem rumo à ilha vin-
gativa. O intuito de ambos era proporcionar o assassinato de
Luis Falcão, que deveria desposar Leonor de Sá. Para descre-
ver a ilha em questão, o poeta esboça um locus horrendus:

Em torno era cercada de fragosa


Intratável, ferrenha penedia,
Ouvem-se em cada parte aves noturnas
Com funesto gemido, e voz carpida.
Lá na primeira entrada junto à praia
Se faz um aposento entre penedos:
Entre cavernas negras onde um fogo
Escuro, e negro lume, as carcomia.
E na côncava sombra um varão fero
Pesado, melancólico, e tristonho:
De semblante cruel, de aspecto duro:
De olhos sanguinolentos, residia.
Grão contrário de Amor, de Amor se aparta
Toda coisa amorosa lhe aborrece,
Um pestífero ardor lhe abrasa o peito
O rosto envolto mostra em cor sulfúrea.
(Corte-Real, 1594, p. 33)

Sendo guiados pelo “pesado, melancólico, e tristonho”


Ódio, Amor e seu irmão cruzam com a Ira:

215
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

(...) uma brava, fera e alta giganta


De semblante feroz e vista horrível
Mostra ânimo indignado, que mil casos
Pesados e cruéis empreenderia,
De bravo aspecto e olhos inflamados
Regando-os em veneno, arde em fúria.
Alterada, e frenética se move
Pela concavidade, e sítio estério,
E com uivos e gritos a caverna
Retumba com assento, e voz terrível.
(Corte-Real, 1594, p. 33-34)

Acompanhados da Ira, seguem rumo ao paço da Determi-


nação, que apresentava dois rostos, um de aspecto benévolo,
gracioso, humilde a afável, e outro duro, áspero, obstinado e
pronto para ocasionar males, trabalhos e perigos. Optando pela
segunda face, a comitiva completa-se e seguem rumo aos apo-
sentos de Raunusia. Antes da chegada, porém, um ancião de
aspecto grave e venerável intervém, e busca dissuadir o Amor:

(...) torna-te atrás ó cego moço,


Não leves mais avante tal intento,
Não vás aprisionado, que se fazes
As cousas com furor terás fim triste.
Não te entregues à cólera que induz
Arrebatados ânimos a males,
Olha que de tais obras, muitas vezes
Sucede vários casos infelizes.
O que contigo trazes deixa um pouco:
Ficar-te-á libertado, claro o juízo,
Que andar acompanhado de ódio e ira
Ou uma, ou outra vez corre perigo.
A determinação branda não deixes
Por essa que te leva a um ímpio caso
Olha que o movimento arrebatado
Em grandes males é sempre homicida
Com desapaixonados olhos anda,

216
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Tira deles o véu que a luz impede,


Vais por caminho escuro pedregoso:
Quem te leva, a um barranco te encaminha.
Que esperas de Ódio, e Ira? Que pretendes
Da determinação com que vais firme?
Pois vais furioso, e cego, já te obrigas
Passar pelo rigor de qualquer culpa.
(Corte-Real, 1594, p. 35)

O “sábio antigo”, no entanto, não consegue impingir-lhe o


bom juízo, pois o Ódio, a Ira e a Determinação apressavam o
Amor, afirmando que os dizeres de um varão caduco de nada
valiam. Deixando para trás os bons conselhos, logo chegam
aos aposentos da Fúria:

Os paços de Raunusia fabricados


Na boca estão de um longo escuro vale
Pelo qual vem correndo com bramido
Arrepiado, e medonho, um rio de sangue.
Traz a funesta veia cem mil corpos
E cem mil rostos pálidos tombando
Em represados lagos se sumia
Aquele objeto triste miserável.
Os altos aposentos rodeados
De armas, e vários modos de vingança,
Carregado, e mortífero era o sítio:
Com sombras e sinais de mau agouro.
(Corte-Real, 1594, p. 36)

Não há, na caverna, pintura de vivas cores, mas nódoas


tristes e “mil sinais horrendos” espalhados pelas paredes,
com memórias de vinganças já passadas. Ódio, ira, determi-
nação e fúria foram os ingredientes necessários para efetiva-
ção da vingança pela qual tanto ansiava o Amor. A morte do
pretendente de d. Leonor provocou murmúrios e causou in-
dignação, mas “o tempo avaro amigo de mudanças fez tratá-
vel, e brando o duro caso” (Corte-Real, 1594, p. 40). O poeta

217
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

utiliza uma tópica de Cícero para afirmar que nada resiste ao


tempo, nem mesmo os grandes males:

Aquilo que antes era espanto à gente,


E o que nos assombrou ontem, já hoje
Leve o faz parecer brando, e tratável.
Não há tristeza grande, que não cure:
Não há dor que com ele [o tempo] seja grave
Todo o mal, e rigor, toda aspereza
Este velho cruel nos torna fácil.
(Corte-Real, 1594, p. 41)

Tampouco os deuses conseguiam se livrar dos desatinos


do Amor. A cegueira da paixão acomete, por exemplo, o deus
Proteu, o primeiro a se deixar enfeitiçar pela bela Leonor.

Não basta longa idade autorizada


Por muita experiência e curso antigo:
Nem basta ser prudente para os laços,
Que o cauteloso Amor, cada hora inventa.
Já mil sucessos tristes, já mil mortes:
Já mil desventuras, e mil males
Profetizei a muitos, mas não soube,
Nem pude deste (ah mísero) guardar-me.
(Corte-Real, 1594, p. 62)

Prole de Tétis e do titã Oceano, esta divindade do panteão


grego integrava o Conselho dos Anciões, em virtude de sua sa-
bedoria e de suas habilidades proféticas. Como não era de seu
agrado revelar os vaticínios aos mortais, metamorfoseava-se,
adquirindo o aspecto de figuras que pudessem afugentá-los.
Em Prosopopeia, o deus pagão Lêmnio, epíteto que designa
Vulcano ou Hefesto, deus olímpico que assenhoreava o fogo
metalúrgico, ocupa papel análogo ao de Baco. Hesíodo (2006,
p. 157), em sua Teogonia, afirmou que Hefesto é “nas artes bri-
lho à parte de toda a raça do Céu”. Homero (s/d, p. 140) consi-
dera-o um “deus astucioso”. Ainda que habilidoso e “notável

218
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

artista”, este deus é retratado como sendo “coxo”. Détienne


e Vernant (2008, p. 249) nos lembram: “pernas tortas, andar
oblíquo, direção dupla e divergente”, todos estes traços “evo-
cam de forma insistente o mais famoso dos ferreiros”. Trata-se
de um deus cuja métis “se define em relação ao fogo”, e não à
agilidade. Eis como Bento Teixeira (2008, p. 138) o apresenta:

Porque Lêmnio cruel, de quem descende


A bárbara progênie e insolência,
Vendo que o Albuquerque tanto ofende
Gente que dele tem a descendência,
Com mil meios ilícitos pretende
Fazer irreparável resistência
Ao claro Jorge, varonil e forte,
Em quem não dominava a vária sorte.

Personificação da vileza, o deus da forja resiste ardilo-


samente às conquistas do protagonista e sua tripulação. En-
quanto pai e tutor da barbárie, Lêmnio move uma emprei-
tada contra a disseminação da fé cristã. Este deus pode ser
pensado de três maneiras distintas: como figura de ornato,
ele reforça o estilo épico; como metáfora, ele personifica e
simboliza o infortúnio, a astúcia vil; o sentido alegórico nos
possibilita algumas especulações: em uma das versões mito-
lógicas, o deus ferreiro foi arremessado do Olimpo pela mãe,
Juno, devido à sua aparência disforme, queda que lhe tornou
coxo. Essa deformidade, no texto de Bento Teixeira, pode in-
dicar uma natureza “coxa” dos pagãos, que manquejavam
por desconhecerem a fé cristã. Por outro lado, consta na tra-
dição cristã que Lúcifer e os anjos aliados sofreram queda
semelhante, por se rebelarem contra Deus: foram precipita-
dos para o Inferno. Reza uma das vertentes mitológicas, ado-
tada por Homero, que foi Zeus quem expulsou Hefesto do
Olimpo, por tê-lo desafiado: esta versão refina outra analogia
possível, frente à inveja e ao desafio que Lúcifer lança contra
Deus. Estas leituras não seriam absurdas em uma sociedade
fortemente cristianizada, como é o caso do Império portu-

219
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

guês nos séculos da expansão ultramarina. Nos versos que se


seguem, há indícios que se afinam a tal leitura:

Na parte mais secreta da memória,


Terá mui escrita, impressa e estampada
Aquela triste e maranhada história,
Com Marte, sobre Vênus celebrada.
Verá que seu primor e clara glória
Há de ficar em Lete sepultada,
Se o braço português vitória alcança
Da nação que tem nele confiança.
(Teixeira, 2008, p. 138)

Na Odisseia, quando Ulisses se encontrava em meio aos


feácios, o aedo Demódoco cantou os amores pérfidos entre
Ares e Afrodite, esposa de Hefesto. Este último, alertado sobre
o incidente pelo Sol, produziu uma “rede artificiosa”, cadeia
inquebrantável para aprisionar os amantes imortais. Após si-
mular uma partida para a ilha de Lemnos, Ares e Afrodite se
aventuraram a caminho do leito do deus ferreiro e foram cap-
turados pela armadilha. Os adúlteros, movidos pela paixão,
foram expostos diante de todo o Olimpo. Esta passagem foi
mencionada por Proteu na estrofe acima.
Em seguida, o poeta trata dos riscos que Lêmnio corria,
caso os portugueses conquistassem a glória: certamente, o
deus seria esquecido. Este esquecimento recobre-se de signi-
ficados: por um lado, a prole do deus pagão, conhecendo e
se submetendo aos portugueses, abraçaria o cristianismo; por
outro, entendendo que Lêmnio possa representar o demônio,
a investida lusitana, em sua conotação missionária, domina-
ria e amansaria aqueles que “têm nele confiança”, isto é, Jorge
d’Albuquerque ofereceria a palavra de Deus àqueles que só
conheciam a fama e os ardis do Diabo. O aedo recorre, ainda,
ao recurso da écfrase para descrever a aparência de Lêmnio,
possivelmente emulando o procedimento adotado por Ca-
mões na descrição do gigante Adamastor:

220
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

E com rosto cruel e furibundo,


Dos encovados olhos cintilando,
Férvido, impaciente, pelo mundo;
(Teixeira, 2008, p. 138)

O deus é retratado como um ser repugnante e desfigura-


do, justamente por personificar o antípoda do herói. As com-
pleições de Lêmnio podem simbolizar a essência vil e mor-
tificante do paganismo, do “outro”, daquele que não abraça
os preceitos da fé cristã. Por outro lado, como ocorre na des-
crição do Adamastor, estes detalhes certamente estimulavam
os afetos dos leitores, frente não somente ao deus mitológico
como também a tudo aquilo que ele representa: o pecado, o
paganismo, a barbárie, a heterodoxia. A écfrase permite que o
auditório memorize a devassidão dos vícios associados a esta
personagem, medida esta que presentifica o mal e delineia fi-
sicamente os seus contornos de imoralidade.
Ao tomar nota da empreitada de Jorge d’Albuquerque
contra sua prole de pagãos, Lêmnio se volta contra ele. Con-
victo de poder conter o avanço dos portugueses, que dizima-
vam e convertiam os seus “filhos”, o deus ferreiro, à maneira
de Baco, persuade o deus Netuno, senhor dos mares, requisi-
tando uma tempestade que pudesse conter a embarcação do
protagonista. Para alcançar seu intento, Lêmnio pede o auxí-
lio dos deuses marinhos, recorrendo a argumentos soberbos e
vaidosos que reafirmam sua posição entre as deidades pagãs:

E pôde Juno andar tantos enganos,


Sem razão, contra Tróia maquinando,
E fazer que o Rei Justo dos troianos
Andasse tanto tempo o mar sulcando?
E que vindo no cabo de dez anos
De Cila e de Caríbdes escapando,
Chegasse à desejada e nova terra,
E co latino rei tivesse guerra?

221
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

E pôde Palas subverter no Ponto


O filho de Oileu per causa leve?
Tentar outros casos que não conto
Por me não dar lugar o tempo breve?
(Teixeira, 2008, p. 139)

O primeiro canto remonta à Eneida, indicando os infor-


túnios que Juno moveu contra as embarcações de Enéias. No
segundo canto, ainda emulando o poeta latino, Bento Teixeira
recorre a um dos argumentos que compõem as conjecturas
de Juno, quando se utiliza de seu ardil contra o herói troiano:

(...) Mas não pôde


Palas queimar a frota dos Argivos,
Submergi-los nas ondas, pela culpa
E frenesins d’um só, do Ayax de Oileu?
Ela mesma de Jove dardejando
Lá das nuves o rápido corisco,
As naus destrói, co’o vento empola os mares:
E ao mísero que flamas vomitava
Do roto peito, n’um tufão o toma,
E na ponta o cravou de agudo escolho.
E eu, que rainha os imortais precedo,
De Jove esposa e irmã, há tantos anos
Co’um só povo guerreiro? Quem de Juno
Há de mais adorar a divindade,
Ou súplice ao altar vítima impor-lhe?
(Virgílio, 2004, p. 6-7)

O deus Lêmnio utiliza-se de uma argumentação similar,


quando reafirma sua “majestade” e seus atributos:

Eu por ventura sou deus indigete,


Nascido da progênie dos humanos,
Ou não entro no número dos sete,
Celestes, imortais e soberanos?
A quarta esfera a mim nãos e comete?

222
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Não tenho em meu poder os centimanos?


Jove não tem o céu, o Mar, tridente?
Plutão, o reino da danada gente?

Em preço, ser, valor, ou em nobreza,


Qual dos supremos é mais qu’eu altivo?
Se Netuno do mar tem a braveza,
Eu tenho a região do fogo ativo.
Se Dite aflige as almas com crueza,
E vós, ciclopes três, com fogo vivo,
Se os raios vibra Jove, irado e fero,
Eu na forja do monte lhos tempero?

E com ser de tão alta majestade,


Não me sabem guardar nenhum respeito?
E um povo tão pequeno em quantidade
Tantas batalhas vence a meu despeito?
(Teixeira, 2008, p. 139-140)

À maneira de Juno, os apelos de Lêmnio recorrem à vai-


dade, pois ambos requerem o direito que outro deus usu-
fruiu no passado.
O discurso deste deus, que apela tanto para a tópica da
amizade quanto para o recurso da dissimulação, consegue
convencer Netuno e o seu séquito marinho, que logo admi-
nistram uma tempestade contra a embarcação portuguesa. O
deus da água atende aos rogos do deus do fogo. É no mar,
mais uma vez, que os infortúnios se desdobram: local das
incertezas, do medo, do esquecimento. Sob o efeito de pro-
sopopeia, a voz do deus ferreiro, que invoca um fim trágico
para a nau de Jorge d’Albuquerque, personifica e manifesta
as pretensões do esquecimento. Nessa perspectiva, sua inten-
ção muito se assemelha ao intuito das sereias, que oferecem,
segundo Hartog (2004, p. 47),

o esquecimento de uma morte ignominiosa, sem se-


pultura, sem marca de lembrança. Ouvindo-as (como

223
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

se escutasse um aedo cantar depois de sua morte), o


herói perde tudo: o Kléos e o nóstos, a glória e o retor-
no. Já está morto.

Trata-se, portanto, de uma morte sem glória, avessa à


morte recoberta de glórias cantada pelas musas arregimenta-
das por Apolo.
Há uma estratégia comum, portanto, que equipara os dis-
cursos de Baco, de Lêmnio e de Juno. No entanto, este artifício
não remonta somente às alegorias mitológicas, podendo estar
presente em fábulas cristãs, como no caso da obra de Torquato
Tasso. No canto IV de sua obra Jerusalém Libertada, Plutão reúne
os demônios para, então, traçar um plano contra os cruzados
cristãos. Segue uma parte de sua palestra perante a comitiva:

E, inertes, nós os dias passaremos,


Sem que brioso fogo nos acenda?
Que mais se fortaleça sofreremos
Na Ásia o seu povo, e que a Judéia renda?
Crescer a sua honra deixaremos,
E que o seu nome se dilate e estenda?
Que soe em novos bronzes esculpido,
E em mais línguas e cantos repetido?

Que tombem nossos ídolos quebrados?


Que a ele quem nos segue se converta?
Que lhe sejam os votos consagrados,
E o incenso, e o ouro e a mirra haja em oferta?
Que dos templos sejamos expulsados,
Onde sempre tivemos porta aberta?
Que nos falte das almas o tributo,
E habite vosso rei um ermo bruto?

Porém não; que inda em nós não se extinguiu


Esse espírito forte e brio antigo,
Que de ferro e de fogo nos cingiu
Para atacar o céu, nosso inimigo.

224
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Se então tamanho esforço sucumbiu,


Foi o valor do grande empenho amigo;
Tocou nos mais felizes a vitória;
Do invencível arrojo a nós a glória.
(Tasso, 1998, p. 186)

O apelo à vaidade e ao passado lastimoso se faz presen-


te no discurso do príncipe que impera entre os anjos caídos.
Temendo o alargamento do nome de Deus, ele impele seus
subordinados contra os soldados de Cristo. Seus questiona-
mentos podem ser comparados à argumentação de Baco e de
Lêmnio, pois todos eles representam alegoricamente o “ou-
tro”: Baco representa o “mouro”, Lêmnio o “indígena” e Plu-
tão o “infiel”. Embora as alegorias encenem cenários distintos
e personagens variadas, há um sentido em comum, pois todas
elas buscam resistir à trajetória dos nobres heróis cristãos.
No Naufrágio de Sepúlveda, Amphitrite também age desta
maneira quando, enciumada, requisita a Eolo uma tempes-
tade contra a nau que transportava Leonor. Primeiro, o aedo
ressalta sua simulação:

No coração lhe ferve uma raivosa


Penosíssima dor, quase insofrível.
No tristonho semblante mostra claro
Avorrecer Lianor sem causa justa:
Todo seu pensamento era buscar-lhe
Morte, de que ficasse satisfeita.
O ódio tem secreto, outro mal finge
E com falso acidente a raiva encobre:
Fraco semblante mostra, mas no peito
Hum gusano cruel a consumia.
(Corte-Real, 1594, p. 72)

Em seguida, Amphitrite relata seu desgosto:

Saberás rei que a minha honra está posta


(ò Deus que ido consentes) em tal termo

225
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Com tal abatimento que me fora


Muito melhor morrer, que assim ter vida.
Das partes orientais no proceloso
Reino do meu Neptuno, entrou soberba
Uma vã mulherinha assim arrogante
Que cuida que em fermosa excede a todas.
Com desprezo tratou as minhas Ninfas,
E as princesas do mar tão veneradas
A mim nem cortesia, nem respeito,
Antes sinais mostrou de ter em pouco.
Cuidara por ventura ir se gabando
Ufana, e de levar de nós vitória
Como a leva do triste velho Protheo
Que caduca, e não sabe já o que escolhe.
Pois enganada está, que se se julga
Por mais fermosa, e mais que todas rara,
A somenos fermosa das marinhas
Ninfas, o He muito mais, muito mais que
Certifico-te rei que se não vingas nela.
Esta minha desonra que a mim mesma
Com minhas próprias mãos me tire a vida
Por sempre não viver com tanta mágoa.
(Corte-Real, 1594, p. 74)

O fato de Proteu ser renegado por d. Leonor causou indig-


nação em Amphitrite e, após testemunhar a beleza da preten-
dente, ela maquina toda uma sorte de artifícios para tirar-lhe
a vida. A deidade fica “torvada, muda, triste, e pensativa”, e
passa a alimentar uma dor secreta. Em seguida, fica inven-
tando e traçando remédio para tal afronta, sem repouso, nu-
trindo uma fúria injusta. Mais adiante, o poeta afirma que ela
“nunca hum’ora teve mais de repouso”, nutrida de raivosa
dor, “quase insofrível”. Ela guarda um ódio secreto, e planeja
sua morte. Ela mostra o “coração triste” e “fraco semblante”,
mas mantém a “alma invejosa” e a vontade de vingar-se. Re-
solve, então, recorrer a Netuno, “Rey soberbo” ao qual “foi
dado dos ventos o poder, mando, e governo”. Para tanto, faz

226
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

uma falsa acusação: diz que Leonor de Sá agiu com soberba,


presunção, tratando as ninfas sem as honras devidas. Após
evocar a comitiva de ventos, Amphitrite recorre a Éolo, que
nota seu abatimento, ao que ela diz:

Não te espantes Rei verme diferente,


Espantate de verme ainda com vida.
Se meu mal não te move a que vingança
Me des, eu ma darei de mim, que a honra
Perdida me restaure, pois mofina,
Mais que todas nasci, mais sem ventura.
(Corte-Real, 1594, p. 73)

Estes deuses manifestaram e reafirmaram seus atributos


no momento em que foram contrariados pela humanidade.
Todos eles requisitaram temporais, maquinando o fim da
ameaça de que foram vítimas. O amor próprio, portanto, foi
suficiente para estimular a prática da vingança, talvez um dos
desdobramentos mais vis do amor mal direcionado ou não
correspondido. Este retrato vicioso de um deus enciumado e
violento foi constantemente contrastado com o perfil humil-
de e leal do súdito que lhe causou aborrecimentos. Exposto o
vício, fica o aedo incumbido de evidenciar sua contraparte.

A bela morte

Dentre as histórias que um velho sábio narrou a Pantaleão


de Sá no Naufrágio de Sepúlveda, consta a de um herói que ele
descreve com os seguintes caracteres:

Um varão forte e leal, de qualidade,


De ilustre sangue e antiga geração.
No semblante mostrava gravidade,
No peito, honrada e alta opinião.
Dom Martinho de Freitas se chamava
Que a parte do rei Sancho sustentava.
(Corte-Real, 1998, p. 27)

227
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

O poeta ressalta a origem ilustre e menciona algumas vir-


tudes de Martim de Freitas para, em seguida, discorrer sobre
um episódio no qual ele defendia um castelo do rei Sancho
contra a investida do “Bolonhês valente”, D. Afonso III. De-
vido à longa duração do cerco, os partidários do herói come-
çaram a passar fome e a perder o ânimo. Martim de Freitas,
então, convence-os a recobrar a força, mas logo fica sabendo
da morte de Sancho. Em razão disso, ele abre os portões da
fortaleza à investida inimiga, e D. Afonso III, vitorioso, requi-
sita a presença do varão “tão forte, tão leal, tão valoroso” que
assim procedeu. Na sequência, o poeta expõe alguns juízos:

Quanto devem de ser aborrecidos


De todos, os que são mal inclinados!
Dos tais em nenhum tempo recebidos
Sejam os ímpios votos depravados,
Que de um humor diabólico movidos
Se mostram ao pior afeiçoados!
Se a víbora veneno dá mortal,
Os maus que podem dar se não for mal?

Os reis que feios casos cometeram


Em tempo antigo e lá noutras idades,
A causa principal foi porque creram
Corações de perversas qualidades.
Arrebatados ânimos moveram
A mil aborrecidos crueldades,
A sem-razões tirânicas, forçosas,
A injustiças cruéis e rigorosas.

Devem trazer os reis os mais prudentes,


Zelosos da justiça e caridade,
Longe deles aqueles que presentes
Com artifício fingem santidade.
Não devem de admitir os diligentes
Na triste execução de crueldades,
Que estes fazem os reis aborrecidos
Dos seus, e com mortal ódio temidos.

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Que os que grandes empresas acabaram,


Com sucessos heroicos gloriosos,
Não foi por desamor, antes ganharam
As vontades dos seus sendo amorosos.
Destes, altas empresas cá ficaram
Para exemplo dos bons e virtuosos.
Lede as antigas mais graves histórias
E dos passados reis vede as memórias.
(Corte-Real, 1998, p. 30-31)

Estes pareceres foram ditos após D. Afonso III ser aconse-


lhado a matar Martim de Freitas. Ele, claro, procede de forma
contrária, detentor que era de “ânimo real, justo e perfeito”.
O aedo não apenas ressalta a importância da história e dos
exemplos que ela dá a conhecer, como afirma que os reis de-
vem manter perto de si homens prudentes, justos e caridosos,
para agir com retidão e amor. Estes versos sobre o desconcer-
to do mundo fazem recordar três oitavas de Camões, dentre
as quais duas já foram mencionadas anteriormente:

E vê do mundo todo os principais


Que nenhum do bem público imagina;
Vê neles que não têm amor a mais
Que a si somente, e a quem Filáucia ensina;
Vê que esses que frequentam os reais
Paços, por verdadeira e sã doutrina
Vendem adulação, que mal consente
Mondar-se o novo trigo florescente.

Vê que aqueles que devem à pobreza


Amor divino, e ao povo, caridade,
Amam somente mandos e riqueza,
Simulando justiça e integridade.
Da feia tirania e de aspereza
Fazem direito e vã severidade.
Leis em favor do Rei se estabelecem;
As em favor do povo só perecem.

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Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Vê, enfim, que ninguém ama o que deve,


Senão o que somente mal deseja.
Não quer que tanto tempo se revele
O castigo que duro e justo seja.
Seus ministros ajunta, por que leve
Exércitos conformes à peleja
Que espera ter co o mal regida gente
Que lhe não for agora obediente.
(Camões, 2008, IX, 27-28, p. 258-259)

O velho sábio conta a Pantaleão de Sá, também, sobre


a investida de D. Sebastião na batalha de Alcácer-Quibir.
Como anteriormente, ele inicia pintando o caráter do res-
ponsável pela ação:

A Portugal virá um valoroso


Rei de ânimo constante e peito ardente,
Indómito guerreiro, belicoso,
Mui liberal, magnânimo e clemente.
(Corte-Real, 1998, p. 35)

D. Sebastião, segundo o poeta, apesar das virtudes aci-


ma apontadas, não contava com experiência suficiente para
julgar a malícia de seus conselheiros. Mais uma vez, alude-
-se àqueles que, ambiciosos, aconselham mal para benefício
próprio. No caso, foram justapostas duas tópicas: a juventude
cobiçosa e a ambição daqueles que almejam poder, como se
pode notar na passagem abaixo:

Olhai que faz a pouca experiência,


Olhai que faz um ânimo furioso,
Vede o que faz a indouta adolescência,
Sem prudente conselho proveitoso.

Poder-se-á bem julgar naquele dia


Com justa razão ser temeridade,
Não forte coração, não valentia,

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Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Mas uma cega e solta mocidade.


(Corte-Real, 1998, p. 38)

A derrota não justifica a ausência de memória gloriosa, e


o poeta recorre ao critério do “merecimento” para lamentar a
queda dos nobres guerreiros que tombaram em Alcácer-Quibir:

Não mereciam ser assim tratados


Varões tão nobres, fortes e guerreiros,
Pois os tempos antigos já passados
Nunca deram de si tais Cavaleiros.
Podem ser com razão sempre louvados
No mundo, podem ser sempre os primeiros
Que alcançarão famosa, honrada glória
E vivos ficam sempre por memória.
(Corte-Real, 1998, p. 41)

Por fim, o poeta afirma que o ocorrido afina-se à vontade


divina, sendo o castigo aplicado por Deus “justo” e “merecido”:

Aqui vistes, senhor, em este dia


O que se cumprirá como vos digo.
Perder-se-á tal e tanta fidalguia
E todos perdereis um Rei amigo.
E pois que nada enfim cá se desvia
Do justo, merecido, alto castigo,
Não se mostre nenhum ambicioso
Muito mais temerário que animoso.
(Corte-Real, 1998, p. 42)

Como já se viu anteriormente, as vítimas de um castigo


providencial nem sempre são punidas por seus pecados ou
falhas. Além disso, mesmo em situações “trágicas” como
esta, é possível vislumbrar ações nobres das quais ficam me-
mórias duradouras. É o caso, por exemplo, da ação de Jorge
d’Albuquerque Coelho relatada na Prosopopeia de Bento Tei-
xeira. Este nobre herói e seu irmão, que acompanharam o rei

231
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

D. Sebastião na peleja em Marrocos, deixaram em completo


desconforto o deus e narrador Proteu, que foi afetado pela
grandeza destes heróis:

Anteparou aqui Proteu, mudando


As cores e figura monstruosa,
No gesto e movimento seu mostrando
Ser o que há de dizer coisa espantosa.
E com nova eficácia começando
A soltar a voz alta e vigorosa,
Estas palavras tais tira do peito,
Que é cofre de profético conceito:
(Teixeira, 2008, p. 147)

A metamorfose de Proteu ocorria em momentos de aflição,


quando o deus era surpreendido por mortais que buscavam
suas revelações proféticas. Na Prosopopeia, sua angústia não
deriva de sua captura, mas sim da matéria que deveria narrar,
virtuoso e trágico ao mesmo tempo. Jorge e Duarte Coelho se
dispuseram a acompanhar o rei D. Sebastião em seu trajeto até
o norte de África, obedientes à hierarquia de valores e eficien-
tes no que se refere ao propósito de “dilatar” o Império portu-
guês. Em meio às peripécias da guerra, Jorge d’Albuquerque
testemunhou e protagonizou um episódio singular: a monta-
ria de seu rei tombou, entregue ao cansaço. O rei, igualmente
fatigado, mas inflado em meio à batalha, encontrou-se desa-
lentado, mas não indefeso, manejando sua espada com fúria
e precisão. O herói, solidário à condição de D. Sebastião, logo
cedeu o seu cavalo, e o rei, em contrapartida, prometeu-lhe
recompensas ao término do embate. Não houve retorno, ao
menos para o rei. Jorge, que sobreviveu não sem herdar sérias
sequelas, nada ganhou senão experiência e honra, pois, dentre
todos, fora o único a atender ao chamado do rei quando ele
mais precisou. O herói não evita que seu superior tombe, mas
cede sua vida para servi-lo. Esta peripécia, além de instigar a
compaixão do protagonista, tende a despertá-la também no

232
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

leitor. Jorge d’Albuquerque dirigiu ao rei português palavras


de afeto no momento em que lhe entrega a montaria:

Vejo-vos co cavalo já cansado,


A vós, nunca cansado, mas ferido,
Salvai em este meu a vossa vida,
Que a minha pouco vai em ser perdida.

Em vós do luso reino a confiança


Estriba, como em base só, fortíssimo;
Com vós ficardes vivo, segurança
Lhe resta de ser sempre florentíssimo.
Entre duros farpões e moura lança,
Deixai este vassalo fidelíssimo,
Que ele fará por vós mais que Zopiro
Por Dario, até dar final suspiro.
(Teixeira, 2008, p. 148)

Logo de início, duas tópicas saltam aos olhos: a fidelidade


e a aceitação da morte em favor das hierarquias. É notável a
brandura do herói, que dispensa um tratamento repleto de
afeição pelo rei, quando ressalta os seus dons bélicos e o seu
preparo físico. Esta característica é sintomática de um mo-
mento no qual as batalhas pela reconquista de territórios si-
tuados no norte da África detiveram ampla repercussão em
território português. É necessário salientar que o poeta escre-
ve num momento em que o destino trágico de D. Sebastião já
era sabido. Isto torna a atitude de Jorge d’Albuquerque ainda
mais nobre, pois sua tentativa de evitar a queda do rei tam-
bém procurou impedir, indiretamente, a perda de autonomia
do Império. Conscientemente, portanto, o aedo estabelece um
lugar de prestígio para o seu herói, que concedeu ao rei uma
oportunidade de conservar a coroa lusitana.
O protagonista se coloca em perigo em prol do corpo mís-
tico português, por meio de sua devoção à cabeça do reino, D.
Sebastião. Sua atitude, contudo, não livrou o rei de um futuro

233
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

desafortunado, mas este não parece ser o propósito do aedo:


antes, o realmente significativo é a presteza do “vassalo fide-
líssimo”, que lutaria pelo rei até o seu último “suspiro”. Jorge
hierarquiza a importância da vida em paralelo com a dignida-
de da posição política, quando julga sua vida de pouca valia se
comparada à do rei. Este trunfo atende aos requisitos retóricos
de instruir – por meio da conduta exemplar e incondicional –,
mover – valendo-se da compaixão frente a um ato de sacrifício
voluntário – e deleitar – por intermédio do ímpeto guerreiro
do herói. Ao final, em resposta ao feito ilustre do Albuquer-
que, o rei “promete, se de tal empresa / Sai vivo, o fará senhor
grandíssimo”, ou seja, a reciprocidade deve ser entendida
como resposta direta à lealdade dos súditos que, neste caso,
não foi atendida em razão do “desaparecimento” do monarca.
Sérgio Buarque de Holanda (1991, p. 34) observa que a
façanha de Jorge d’Albuquerque remonta a um lugar comum
proveniente das “lendárias gestas da luta dos povos ibéricos
contra o inimigo de sua fé”. O episódio protagonizado pelo
herói de Prosopopeia provavelmente não é verdadeiro, como
observa Holanda, mas justifica a atitude do rei, que promete
torná-lo “grande” na ocasião de seu retorno. Sendo verídico
ou não, esta passagem amplifica os feitos da personagem e se
mostra verossímil, na medida em que retrata o engrandeci-
mento decorrente de ações nobres e prudentes.
Como afirma Aristóteles (1985, p. 31), o mais belo dos
reconhecimentos é “o que sobrevêm no decurso de uma
peripécia”. A união entre peripécia e reconhecimento “ex-
citará compaixão ou terror” por meio de uma ação “que
produz destruição ou sofrimento”. No caso do episódio
mencionado há pouco, provoca-se a compaixão perante o
desamparo do rei e terror frente à possibilidade da mor-
te do herói, que opta pela manutenção do bem comum, e
não pelos temores relativos à vida passageira. Desta forma,
D. Sebastião não pôde efetivar seu retorno, ao contrário de
Jorge d’Albuquerque que, por tentar concedê-lo ao rei, con-
quista, ele próprio, o kléos e o nóstos.

234
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

A amizade e o amor são, portanto, dois dos pilares que


mantêm o corpo político harmônico e concorde. O relato de
naufrágio da nau Santiago menciona uma passagem interes-
sante: desesperados em busca de salvação, notaram os ma-
reantes que o batel no qual iam embarcados não suportaria o
peso de tantas pessoas, ao que decidiram lançar ao mar algu-
mas pessoas para, assim, possibilitar o salvamento da maio-
ria. O capitão Duarte de Melo, embora nutrido de “muito sen-
timento cristão”, não enxergava outra maneira de proceder
senão esta. Determinaram lançar fora dezessete pessoas, e um
dos sentenciados afirmou ser injusto salvar dois irmãos, Gas-
par Ximenes e Fernão Ximenes, homens honrados naturais de
Lisboa. Embora tivessem amigos presentes na nau, a delibe-
ração acabou privilegiando o argumento do nauta, ao que de-
cidiram lançar Gaspar Ximenes, o mais velho dentre os dois
irmãos. Fernão Ximenes, no entanto, saltou diante do irmão
e, “com o amor fraternal com que o amava”, o tirou das mãos
de todos, e não conseguindo dissuadir os companheiros do
veredito, tomou o lugar do irmão. “Foi esta fineza bem digna
de se perpetuar e nunca esquecer na memória dos homens,
onde no amor ficou mais levantada que na amorosa contenda
de Pílades e Orestes” (Brito, 1998, p. 313).
O episódio acima mencionado parte de uma possível re-
ferência a três tragédias antigas: Coéforas, de Ésquilo, Electra,
de Sófocles, e Electra, de Eurípedes. Nas três peças, é possível
perceber a grande amizade entre Orestes, filho de Agamêm-
non e Clitemnestra, e Pílades, filho de Estófilo e Anaxíbia, irmã
de Agamêmnon. A amizade só foi possível devido a uma tra-
gédia, na qual Clitemnestra e Egisto, seu amante, tramam e
promovem o assassinato de Agamêmnon, quando este retorna
da Guerra de Troia. No caso, Electra, irmã de Orestes, o en-
trega a um amigo, temendo maus tratos por parte da mãe e
do amante. Quando Orestes se torna um adulto, ele retorna a
Argos com seu amigo para vingar a morte do pai. Cada uma
das tragédias trabalha estes detalhes de maneiras distintas, o
que torna impossível saber a qual delas o relato de naufrágio

235
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

faz referência. Na versão de Ésquilo, Pílades é o primo mudo


de Orestes, tendo sido ambos criados como irmãos na corte de
Estrófio. Na obra de Eurípedes, Apolo ordena a vingança, e Pí-
lades manifesta, por meio de palavras, o valor de sua amizade.
O irmão arremessado ao mar resolveu nadar atrás do ba-
tel, o que fez durante cerca de três horas, e os mesmos que
decidiram arremessá-lo, apiedados de tanto esforço, resolve-
ram resgatá-lo. Esta atitude de um irmão para com o outro faz
recordar os dizeres de Sêneca (1985, p. 403) sobre a amizade:

Mas nada agrada tanto à alma como uma amizade fiel e


doce. Que felicidade a de encontrar corações aos quais
se possa sem temor confiar quaisquer segredos; consci-
ências, que nos temem menos do que a nossa; compa-
nheiros, cuja palavra acalma nossas inquietações, cujos
conselhos guiam nossas decisões, cuja alegria dissipa
nossa tristeza e cuja vista seja para nós um prazer!

Este alerta procura assegurar a tranquilidade da alma e a


concórdia da pátria, que deve ser estendida a todo o universo,
“a fim de oferecer à virtude o mais amplo campo de ação”
(Sêneca, 1985, p. 399). Cícero (1985, p. 337) entende a concór-
dia de maneira análoga. No caso da sociedade portuguesa
dos séculos XVI-XVII, a concórdia poderia ser pensada como
“coincidência da vontade de todos quanto ao fim do corpo
político” (Hansen, 2004, p. 267) e também como tranquilidade
da alma e regramento das vontades para que seja possível a
efetivação plena do amor (Luz, 2013, p. 39-40).
A bela morte é tópica recorrente desde os escritos antigos.
Na Ilíada, por exemplo, Aquiles alcançou uma morte heroica
e bela. Indignado com a sua condição de mortal, ele desejava
uma maneira de vencer a finitude e, antes de partir para o cer-
co de Troia junto aos aqueus, recebeu uma importante adver-
tência de sua mãe, Tétis: caso fosse para a guerra, conquistaria
a glória que tanto desejava, mas pagaria com a vida; se não
partisse com os gregos, viveria uma longa vida e seria vítima

236
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

do esquecimento. O herói optou pela guerra, diante da tenta-


ção de vencer a condição de mortal. Do ponto de vista huma-
no, Aquiles era reconhecido por portar uma força descomunal,
que o fazia se destacar nos conflitos bélicos; do ponto de vista
das deidades, no entanto, era um ser vulnerável, de vida bre-
ve. A condição de mortal foi o principal artifício e estímulo
para que Aquiles entrasse na guerra (Vernant, 2002, p. 10-12).
Heitor foi retratado como herói “defensivo”, que protegia
seus domínios e sua família. Ao contrário de Aquiles, varão
solitário que lutava para perpetuar sua fama, Heitor lutava
pelo pai, esposa, irmão, filho. Sua trágica derrota, conforme
Vernant (2002, p. 385), se deu a partir do momento em que
ele se isolou, lutando frente a frente com Aquiles. Sua heroi-
cidade dependia da união, da coletividade. Ao se colocar nas
mesmas condições que Aquiles, herói sem escrúpulos movido
pela sede de vingança, ele cavou sua própria sepultura. Hei-
tor, defendendo sua timé (honra), aceita o desafio, ao ser ludi-
briado pela deusa Atena que, assumindo a forma de um dos
filhos de Príamo, estimula-o a lutar, prometendo-lhe ajuda
no campo de batalha. Envergonhado pela morte de Pátroclo,
Heitor sela seu destino. Aquiles vence e, após a vitória, ata
o corpo de Heitor ao seu carro de guerra e arrasta seu corpo
para humilhar os troianos que assistiam ao duelo. Heitor só
obteve uma bela morte quando seu corpo foi recuperado pelo
rei. A morte de Aquiles, ao contrário, não se mostra trágica,
pois ele optou pela morte prematura por escolha própria.
Muitas vezes os soldados portugueses se deixavam do-
minar pelo medo, pela covardia e pela inconsideração, como
ocorre em um dos episódios de Os feitos de Mem de Sá, de
Anchieta (1970, p. 113):

Fossem mais crentes os colegas, mais viris os seus braços,


fervesse-lhes no peito um sangue mais quente,
acompanhassem sempre, lado a lado, o seu chefe,
e esse dia marcaria a ruína desses feros selvagens,
atirando-os para as sombras eternas do inferno.

237
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Mas, ai! que imensa é a humana inconstância!


Estes, mais aqueles começam de vacilar, vai-os pren-
dendo pavor covarde, cada vez maior, ao verem que
a onda dos índios cresce, já recuam e se furtam à luta,
esgueirando-se insensivelmente, esses covardes sem
nome.
Tornam às naus, desligando da margem as barcas.
Abandonam o chefe, que ignora esse ato de infâmia,
entre poucos companheiros, o furor da pele renhida.

O aedo, como que consternado, instrui-lhes com severidade:

Para onde fugis, desgraçados? que medo vil vos assal-


ta o coração sem brio? que inimigo estais perseguindo
tão à pressa? Já não vos movem os louros das duas
vitórias e as fortalezas que tomastes com a morte de
seus defensores? Apavorados de terror indigno, não
vos envergonha abandonar assim vosso chefe à fúria
dos bárbaros entre tantos perigos, ao peso de tantos
trabalhos. Para onde fugis? Sustai o passo! A maior parte
dos vossos sucumbe: voltai ligeiros e, ao lado do che-
fe, valentes destruí o arraial. Para que tanto amor pela
vida? (Anchieta, 1970, p. 113)

Temerosos frente à possibilidade da morte em batalha, al-


guns portugueses abandonaram o herói, movidos pelo apego
à vida e aos prazeres mundanos. Além do desrespeito à hie-
rarquia, os homens sob o comando de Fernão de Sá priorizam
o “eu” em detrimento do “nós”: perde-se, então, a harmonia
orgânica do corpo de súditos do rei que deveriam priorizar as
realizações do todo, e não as vontades individuais de suas par-
tes. O desequilíbrio afetivo leva à obliteração do bem comum
e, conseguintemente, coloca a empresa em risco. Este exemplo
tende a demonstrar que a instabilidade pode partir de indiví-
duos que já integravam o corpo místico do Império. Além dis-

238
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

so, ele auxilia na produção de afetos, na medida em que suge-


re que o leitor também pode se deixar levar pela inconstância.
Quando se dá conta da grande superioridade numérica
dos indígenas, Fernão de Sá recua com seus homens a cami-
nho das naus, mas percebem que os fugitivos tomaram-nas e
partiram. Recorrendo a outro símile, o aedo demonstra como a
conduta do herói distava daquela outra, própria dos covardes:

Os inimigos se apinham ao redor e o carregam com


gritos de terror e com flechas: não lhes dá a horda des-
canso, como caçadores à volta do leão que freme asse-
teado: ele a raivar ruge horrendamente e feroz ameaça
com o olhar torvo, ora este, ora aquele, impertérrito
rasga com a boca em sangue os corpos que alcança:
Eles o apertam, ficam-lhe lanças nas costas, nos flancos
à porfia, até que todo roto de feridas sucumbe e a ter-
ra treme ao baque dos membros robustos. (Anchieta,
1970, p. 117)

Depois de muita peleja, o filho de Mem de Sá tomba acos-


sado como um leão. O jovem herói conquista, então, a bela
morte, maior graça concedida aos cristãos:

Ó venturoso moço, prostrado na arena sangrenta


depois de devastar valente as hordas selvagens,
bela morte juncou teu sepulcro de mil setas e corpos.
Não te assediou o peito a fome do ouro nem da vaidade;
mas a paixão imensa da glória divina
e a honra imaculada de Cristo te imola
nesse altar, para que sejam tuas feridas a vida de muitos.
Vencido pelo amor da pátria e liberdade dos teus,
vergaste a cabeça ante a morte, sob a espada inimiga
tombando na juventude em flor, primavera da vida.
Sem tremer, desprezaste a terra pelo bem dos amigos,
deixaste escapar, pelas chagas abertas, a vida.
Grande jovem, eis tua glória! os séculos todos
saberão que preferiste morte cruel à desonra

239
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

de Deus, da pátria e do pai, e que, desconhecendo


o temor cobarde, expuseste a vida aos maiores perigos
e apagaste, com teu sangue o incêndio da guerra
que surgia ameaçador. Lembrar-se-ão os teus Lusos
e confessarão agradecidos dever-te tal benefício:
graças a tua morte, eles vivem e desfrutam da paz.
Venturoso Jovem, entre os felizes, nas alturas celestes
brilha a tua glória irmanada à glória divina.
Privado embora do sepulcro teu corpo, escondido
embora no seio da terra ou no ventre dos índios,
nada se te dá. Fica-lhes esta glória mesquinha,
depois que as hordas ferozes com sua imensa ruína
juncaram as fortalezas, e com o sangue selvagem
encheram o leito do rio, e dobraram as cervizes altivas
à força de golpes, e se lhes abrandaram as iras.
(Anchieta, 1970, p. 117-119)

Ao final do livro I, Mem de Sá se deixou consolar pelo fato


de que a morte do filho salvou a vida de vários súditos do rei.
O herói, à maneira de Deus, que enviou Cristo para redimir os
pecados da humanidade, sacrificou seu filho por uma causa
nobre (Luz, 2008, p. 35-40).
À maneira de Fernão de Sá, Duarte Coelho intercedeu pelo
bem comum. Ao avistar soldados lusitanos em fuga durante a
batalha de Alcácer-Quibir, o herói não poupa censuras:

(...) Donde vos is, homens insanos?


Que digo: homens, estátuas sem sentido,
Pois não sentis o bem que haveis perdido?

Olhai aquele esforço antigo e puro


Dos ínclitos e fortes lusitanos,
Da pátria e liberdade um firme muro,
Verdugo de arrogantes mauritanos;
Exemplo singular para o futuro
Ditado e resplendor de nossos anos,
Sujeito mui capaz, matéria digna

240
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

Da mantuana e homérica buzina.

Ponde isto por espelho, por traslado,


Nesta tão temerária e nova empresa;
Nele vereis que tendes já manchado
De vossa descendência a fortaleza.
Á batalha tornai com peito ousado,
Militai sem receio, nem fraqueza,
Olhai que o torpe medo é crocodilo
Que costuma, a quem foge, persegui-lo.
(Teixeira, 2008, p. 150-151)

Duarte faz alusão aos “exemplos” lusitanos do passado,


cuja memória tornou-se perene. Sendo um dos heróis de Pro-
sopopeia, Duarte Coelho anuncia a existência de outros mode-
los de conduta, que ele também procurava imitar. Em segui-
da, o herói censura os fugitivos, afirmando que eles deveriam
refletir a braveza e a coragem das personagens que prota-
gonizam a história de Portugal, cuja dignidade rendeu-lhes
reconhecimento póstumo. A fuga dos portugueses, portanto,
era recepcionada como um desrespeito às hierarquias: sendo
assim, o protagonista não apenas se manteve fiel às ordens
impostas, como também instruiu seus pares sobre o melhor
caminho a ser seguido. Estas advertências, de caráter didá-
tico, são direcionadas também aos leitores, ou seja, a passa-
gem elucida o quão indignos são a covardia e o desrespeito,
advertindo o leitor sobre as implicações de tais condutas e
sugerindo um caminho inverso, digno de imitação. O herói de
Prosopopeia continua suas asseverações:

E se o dito a tornar-vos não compele,


Vede donde deixais o rei sublime?
Que conta haveis de dar ao reino dele?
Que desculpa terá tão grave crime?
Quem haverá que por traição não sele
Um mal que tanto mal no mundo imprime?
Tornai, tornai, invictos portugueses,

241
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Cerceai malhas e fendei arneses.


(Teixeira, 2008, p. 151)

As orientações de Duarte Coelho indicam que o desacato


às hierarquias era crime grave e passível de castigos severos.
Conhecendo o desfecho trágico da batalha, o aedo se empenha
em retratar bons e maus súditos. As advertências sobre “um
mal que tanto mal no mundo imprime” sugere que a união
das coroas ibéricas, evento decorrente do desfecho da batalha
acima, se efetivou graças à traição e ao descompromisso por
parte de súditos que se acovardaram e desampararam o rei
desafortunado. Em Prosopopeia, estas sugestões não foram aca-
tadas (é preciso lembrar que o destino já estava selado para os
participantes desta empresa). O que se espera, por meio de um
movimento axiológico, é que a audiência pese na balança uma
e outra causa, se instruindo sobre as falhas impostas por uma e
as benesses colhidas por intermédio da outra. Tendo em vista
o insucesso de suas asseverações, Duarte conclui:

(...) Corações efeminados,


Lá contareis aos vivos o que vistes,
Porque eu direi aos mortos que fugistes.
(Teixeira, 2008, p. 152)

Duarte Coelho, assim como Fernão de Sá, mostrou-se


destemido perante a morte. A aceitação e, neste caso, a pre-
meditação da morte é tópica bastante recorrente, por exem-
plo, na épica homérica, na qual a boa morte se dá no ápice da
juventude, em razão de um duelo ou combate: Heitor, para
defender a sua honra (timé), aceita o desafio de Aquiles para
um duelo; Aquiles, por outro lado, mesmo frente às admoes-
tações da mãe, que lhe vaticina um final trágico em Troia, luta
por amizade à Pátroclo, vítima de Heitor. O renome, neste
momento, era um recurso para se combater a finitude huma-
na. Jean-Pierre Vernant (2002, p. 343) afirma que

242
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

o indivíduo não é separado do que realizou, efetuou,


nem do que o prolonga: suas obras, as façanhas que exe-
cutou, seus filhos, sua família, seus parentes, seus ami-
gos. O homem está no que faz e no que o liga aos outros.

Nos exemplos homéricos, bem como no de Duarte Coe-


lho, herói e morte se familiarizam. Frente ao trágico fim de
Duarte, Proteu lança os seguintes comentários:

Ó alma tão ditosa como pura,


Parte a gozar dos dotes dessa glória,
Donde terás a vida tão segura,
Quanto tem de mudança a transitória
Goza lá dessa luz que sempre dura;
No mundo gozarás de larga história,
Ficando no lustroso e rico templo
Da ninfa Galatéia por exemplo.
(Teixeira, 2008, p. 153)

O prudentíssimo Duarte, modelo exemplar de alma “di-


tosa” e “pura”, tem acesso irrestrito à bem-aventurança. Esta
premiação é o artifício último concedido àqueles que, em
vida, foram condutores justos e fiéis do corpo místico. As gló-
rias, neste caso, não garantem apenas uma “larga história”, na
qual o herói se converte em “espelho de virtudes”, mas tam-
bém acesso à “luz que sempre dura”, à glória celeste. Duar-
te lutou até cessar suas forças e ser feito cativo, garantindo a
presença de testemunhas (os soldados que se acovardaram) e
morrendo, trajeto trilhado também por Aquiles, que usufruiu
de “larga história” graças à sua participação na Guerra de
Troia. Produz-se, artificialmente, uma “boa morte” enquanto
finalidade última a ser almejada por homens prudentes: neste
caso, ornar a morte de uma personagem histórica e cogitar a
consequente salvação indica um efeito pedagógico, pois en-
sina que o destemor e o respeito às hierarquias evitam qual-
quer possibilidade de morte, enquanto fim, o que sugere um
novo início, medida providencial estipulada àqueles que são

243
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

merecedores. A aceitação da morte, por parte do herói, não


equivale, contudo, à aceitação dos seus pares:

Mas enquanto te dão a sepultura,


Contemplo a tua Olinda celebrada,
Coberta de fúnebre vestidura,
Inculta, sem feição, descabelada.
Quero-a deixar chorar morte tão dura
‘Té que seja de Jorge consolada,
Que por ti na Ulisséia fica em pranto,
Enquanto me disponho a novo canto.
(Teixeira, 2008, p. 153)

Sob o efeito de prosopopeia, Olinda, “coberta de fúnebre


vestidura”, chora a morte do herói. Sua aparência sugere so-
frimento, e a ausência de luz projeta escuridão sobre um in-
fortúnio digno de “pranto”. Esta personificação de um local
amplifica e universaliza o sofrimento do luto perante o afor-
tunado Duarte Coelho. O choro generalizado é proporcional à
universalidade do reconhecimento do herói sepultado. Algum
consolo será prestado apenas quando Jorge d’Albuquerque
ocupar o posto de donatário. O reconhecimento póstumo do
herói, portanto, é garantia de uma vida exemplar e prova a
consumação de sua bela morte.
Jorge d’Albuquerque usufruiu do kléos e do nóstos. Duarte
Coelho, seu irmão, não compartilha da mesma sorte, obtendo
a fama perene, mas não o retorno. As axiologias épicas que
contrastam a Ilíada e a Odisseia se coadunam na narrativa de
Bento Teixeira, sem deixar de encenar os destinos ruinosos
reservados aos heróis. Vasco da Gama, quando também atin-
ge o kléos na ilha dos amores, não é privado do retorno, mas
Fernão de Sá, assim como Duarte, não regressa ao lar. O aedo
católico não deixa de ressaltar, portanto, o destino trágico e
os sofrimentos decorrentes da finitude humana. Retornamos,
portanto, à condição ambígua da heroicidade, que eleva o ho-
mem a uma situação de destaque, mas, no final, nem mesmo

244
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

o herói escapa dos desígnios ruinosos reservados à humani-


dade: a diferença é que, no caso do herói cristão, há lugares
distintos pelos quais se pode seguir viagem.

A máquina do mundo

Eis o que disse Tétis a Vasco da Gama antes de apresentar-


-lhe a grande máquina do mundo:

Faz-te mercê, barão, a Sapiência


Suprema de, cos olhos corporais,
Veres que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.
Segue-me firme e forte, com prudência,
Por este monte espesso, tu cos mais.”
Assim lhe diz, e o guia por um mato
Árduo, difícil, duro a humano trato.
(Camões, 2008, X, 76, p. 301)

Convém assinalar, com Hansen (2005, p. 184), que Vasco da


Gama contempla a “forma invisibilíssima ou substância me-
tafísica do universo”, que não pode ser apreendida pela ciên-
cia humana. O herói é convidado a seguir, com prudência, os
passos de Tétis. Neste caso, a reta razão de Gama é iluminada
pela graça divina. A prudência, portanto, é possível na medi-
da em que a ação do protagonista se adequa aos desígnios da
Providência. O mato “Árduo, difícil, duro a humano trato”,
de acordo com Hansen (2005, p. 184), é uma “figuração que
encontramos em textos platônicos dos séculos XV e XVI”. No
caso, o mato alegoriza a vida sensível, que é temporariamente
deixada para trás. É possível notar uma aproximação entre este
episódio d’Os lusíadas e o terceto inicial da Divina Comédia: “No
meio do caminho em nossa vida,/ eu me encontrei por uma
selva escura/ porque a direita via era perdida” (Alighieri, 2005,
p. 31). De acordo com Vasco Graça Moura, a selva representa
os erros e desvios da condição humana. Há, portanto, um nexo

245
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

que comunica os dois fragmentos, pois os protagonistas Dante


e Vasco da Gama deixam para trás aquilo que é próprio da mí-
sera condição humana para participar de outro plano, inaces-
sível aos “errados e míseros mortais”. Ambas as personagens,
com “olhos corporais”, testemunham, graças à intervenção da
Providência, eventos que escapam à “vã ciência”.
A máquina do mundo é um artifício. O termo máquina,
do grego mékhané, designa “qualquer invenção produzida
com arte pela inteligência artificiosa, a métis” (Hansen, 2005,
p. 185). De acordo com Hansen (2005, p. 185), a

forma do universo revelada na máquina do mundo é ar-


tifício do engenho divino, que a gera com razão, doutrina
e ordem. A máquina do mundo é o universo fabricado
artificiosamente pelo engenho de Deus, o autor máximo.

Hansen (2005, p. 186) afirma que ela é

finita, como efeito e signo fabricados por artifício divino,


mas ilimitada (...) Sua racionalidade atesta que é divina a
arte inventada pelo Arquétipo, a pura esfera inteligível,
nua, pura e invisível de Deus. Absolutamente indeter-
minado e inacessível à razão humana, Deus a cerca com
seus nove coros de anjos, movendo-a com Amor.

A máquina reproduzida por Camões é etérea e elemental:


a parte etérea é celestial, feita da “quintessência imutável e lú-
cida”; a parte elemental, por sua vez, “corresponde aos orbes
compostos dos quatro elementos pitagóricos, ar, terra, água e
fogo” (Hansen, 2005, p. 186). Na sua epopeia, Camões retra-
ta os orbes planetários, indica a complexidade de seu curso,
afirma a imobilidade da Terra e discorre sobre os quatro ele-
mentos dos quais ela é feita.

Debaixo deste grande Firmamento,


Vês o céu de Saturno, Deus antigo;
Júpiter logo faz o movimento,

246
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

E Marte abaixo, bélico inimigo;


O claro Olho do céu, no quarto assento,
E Vênus, que os amores traz consigo;
Mercúrio, de eloquência soberana;
Com três rostos, debaixo vai Diana.

Em todos estes orbes, diferente


Curso verás, nuns grave e noutros leve,
Ora fogem do Centro longamente,
Ora da Terra estão caminho breve,
Bem como quis o Padre onipotente,
Que o fogo fez e o ar, o vento e neve,
Os quais verás que jazem mais adentro
E têm co Mar e Terra por seu centro.
(Camões, 2008, X, 89-90, p. 305)

Estes versos provavelmente foram emulados em Prosopo-


peia, pois também aqui são descritos os quatro elementos que
configuram o Universo e a configuração das Estrelas Fixas, tal
como foi preconizada por Ptolomeu:

O marchetado Carro do seu Febo


Celebre o Sulmonês, com falsa pompa,
E a ruína cantando do mancebo,
Com importuna voz, os ares rompa.
Que, posto que do seu licor não bebo,
À fama espero dar tão viva trompa,
Que a grandeza de vossos feitos cante,
Com som que ar, fogo, mar e terra espante.
(Teixeira, 2008, p. 125)

As luzentes estrelas cintilavam,


E no estanhado mar resplandeciam,
Que, dado que no céu fixas estavam,
Estar no licor salso pareciam.
Este passo os sentidos preparavam
Àqueles que d’amor puro viviam,

247
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Que, estando de seu centro e fim ausentes,


Com alma e com vontade estão presentes.
(Teixeira, 2008, p. 126)

Apropriando-se da cosmologia de Ptolomeu, Camões e


Bento Teixeira aderem-se ao geocentrismo, ou seja, a Terra,
esférica e imóvel, é situada no centro do universo. Em torno
dela giram os nove orbes materiais: Lua, Mercúrio, Vênus,
Sol, Marte, Júpiter e Saturno. Para Ptolomeu, os planetas não
reproduzem círculos perfeitos, mas trajetórias muito comple-
xas que podem ser matematicamente calculadas. Na sequên-
cia, encontra-se o Céu das Estrelas Fixas, mencionado por
Tétis na estrofe 88, e o Primeiro Móvel, que gira e faz mover
os outros orbes. Acima dele, por fim, localiza-se o Empíreo,
que é feito de éter imaterial e guarda as puras almas. A luz
que exala “cega o olhar sensível e a razão humana, incapazes
de vê-lo e entendê-lo” (Hansen, 2005, p. 187).
Camões (2008, X, 80, p. 302) afirma a impossibilidade de
definir Deus: “(...) o que é Deus, ninguém o entende,/ Que a
tanto o engenho humano não se estende”. Dante Alighieri
insistiu nesta propriedade indescritível do Artífice, quando
adentrou o último círculo do Paraíso. O Empíreo, no caso, “é
pura Luz intelectual – pois vem de Deus, Intelecto infinito –
plena de Amor infinito, verdadeira Alegria do Bem que trans-
cende toda doçura” (Hansen, 2010, p. 36). A figura circular que
chega aos olhos de Dante e de Camões repõe a antiga definição
de Deus como “círculo infinito e perfeito que tem o centro em
toda parte e a circunferência em nenhuma” (Hansen, 2005, p.
186). Dante, no caso, entende o enigma sem poder descrevê-lo
com palavras. Em Camões, Deus, que também é comparado
ao círculo infinito e perfeito, “desce pelos vários orbes circu-
lares e finitos como Amor da sua Forma invisibilíssima, que
neles participa analogicamente” (Hansen, 2005, p. 186).
Torquato Tasso (1998, p. 328-329) também menciona e
descreve o Empíreo, reafirmando a cosmologia ptolomaica e,
provavelmente, emulando a Comédia de Dante:

248
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

No empíreo se assentava; além do augusto


Orbe que são juízo não governa,
Donde tudo compõe e ordena, justo
E bondadoso com razão superna,
Da eternidade sobre o sólio augusto
Com três luzes fulgindo numa eterna.
Estão-lhe aos pés, com grande acatamento,
Natura, fado, tempo, movimento,

E o espaço, e aquela que aniquila e torna


Em fumo o ouro, as glórias, a conquista,
Como na altura apraz; nem a transtorna
A cólera dos homens; não na avista.
De resplendor tão vivo Ele se adorna,
Que da maior pureza ofusca a vista.
Imortais infinitos o rodeiam,
Que iguais desigualmente se recreiam.

Tasso menciona o orbe que o juízo humano não apreende,


pois é regido pela “razão superna”. As “três luzes” aludem
à trindade mencionada por Dante da seguinte maneira: “Ne
la profonda e chiara sussistenza/ de l’alto lume parvermi tre giri/
di tre colori e d’una contenenza” (Alighieri, 2005, p. 884-885).
O resplendor que orna o Criador “ofusca a vista”, afirma o
poeta. Nota-se que, tal como Dante e Camões, Tasso utiliza a
metáfora da luz para justificar a impossibilidade de descrever
aquilo que a razão humana não governa. Isto confirma o quão
privilegiado foi Vasco da Gama, ao contemplar as feições da
“máquina do mundo”, artifício supremo:

Aqui um globo vêem no ar, que o lume


Claríssimo por ele penetrava,
De modo que o seu centro está evidente,
Com a sua superfície, claramente.

Qual a matéria seja não se enxerga,


Mas enxerga-se bem que está composto

249
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

De vários orbes, que a Divina verga


Compôs, e um centro a todos só tem posto.
Volvendo, ora se abaixe, ora se erga,
Nunca se ergue ou se abaixa, e num mesmo rosto
Por toda a parte tem; e em toda a parte
Começa e acaba, enfim, por divina arte.
(Camões, 2008, X, 77-78, p. 301)

O único meio adequado de figurar a essência de Deus,


“que é absolutamente sublime, invisível, indizível e impen-
sável, é propor a indefinição da figura” (Hansen, 2010, p. 40),
como faz Dante, Camões e Tasso. Na estrofe 78 do canto X,
Camões adota a definição euclidiana da esfera como “super-
fície de revolução produzida pelo movimento da circunferên-
cia em torno do diâmetro, movimento que faz que os círcu-
los cresçam até o meridiano e depois diminuam” (Hansen,
2005, p. 186). Quando Deus se mostra a Dante e permite que
Vasco da Gama testemunhe a máquina do mundo, as luzes e
o esclarecimento são apenas “prefácios de sombra”, ou seja,
é impossível aos olhos mortais entender uma essência que a
razão humana desconhece. A luz absoluta, que se manifesta
surpreendentemente no canto XXXIII do Paraíso e se apresen-
ta a Dante como enigma, “ofusca a vista”, nas palavras de
Torquato Tasso, e em Camões “a vista cega”. O olhar humano
contempla somente aquilo que a razão consegue assimilar,
ou seja, é impossível que um homem consiga desmembrar o
artifício que fundamenta a máquina do mundo, pois “Quem
cerca em derredor este rotundo/ Globo e sua superfície tão
limada,/ É Deus” (Camões, 2008, X, 80, p. 302).
A organicidade da obra de Camões parece, em alguns
momentos, se explicar em retrospecto, ou seja, há passagens
iniciais que só entendemos com propriedade ao final da nar-
rativa. Após falar do Empíreo, Camões (2008, X, 85, p. 304)
discorre sobre Deus, “que por segundas/ Causas obra no
Mundo, tudo manda”. Esta causa segunda muitas vezes é in-
corporada pelos deuses pagãos. Tétis afirma que a encenação

250
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

das deidades mitológicas pretende somente deleitar a audiên-


cia. Para tanto, a deusa nega a si própria quando admite: “eu,
Saturno e Jano,/ Júpiter, Juno, fomos fabulosos,/ Fingidos de
mortal e cego engano” (Camões, X, 82, p. 303). A poesia está
para terminar, e a alegoria já não é mais necessária.
A máquina do mundo é finita, sendo um artifício da Pro-
vidência, mas é ilimitado por conter informações e revelações
que o “olho físico” não contempla a não ser em ocasiões mui-
to especiais. Virgílio, alegoria da Razão, e Beatriz, alegoria do
Amor, orientam Dante rumo à contemplação daquilo que o
ser vivo não pode apreender e, por isso, os enigmas são par-
cialmente compreendidos. Da mesma forma, a causa segun-
da representada pela deusa Tétis convida Vasco da Gama a
contemplar uma imagem artificiosa e, no entanto, invisível à
razão humana, que é passageira. A máquina do mundo, que
pode ser entendida como o maior de todos os artifícios da
epopeia de Camões, dissimula o verdadeiro aspecto da causa
primeira e, ao mesmo tempo, desengana aquele que a con-
templa. O Amor orienta os itinerários do protagonista, a ra-
zão ajuda o leitor a “ver” a partir do olhar prudente do narra-
dor e a ordenação/disposição dos quadros forja uma memória
e retrata os vários estágios da condição humana.
Camões, na esteira de Dante, adota a concepção ptolo-
maica, que

tinha sido desmentida pelas navegações do século XV


(...) quando Camões termina Os lusíadas, em 1567, as
inovações e a velha fidalguia já tinham sido substituí-
das pela Inquisição, pela censura intelectual, pela perse-
guição religiosa e pela mentalidade mercantil. O canto
presente faz a apologia do projeto imperial da conquis-
ta do mundo pela fé e pelas armas, e, simultaneamente,
o poeta afirma que vem cantar “a gente surda e endure-
cida”, na estrofe 145 do Canto X. (Hansen, 2005, p. 191)

A poesia camoniana precisou passar pela censura inqui-


sitorial e adaptar-se à ortodoxia então vigente. Os elemen-

251
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

tos teológicos e políticos que conferiam sentido à máquina


do mundo deveriam ser manuseados com prudência. Han-
sen (2005, p. 191) adverte:

A alegoria da máquina é, nesse sentido, um meio poéti-


co-metafísico com que Camões figura a alma portugue-
sa em estado de receptividade extática da unidade invi-
sível do divino. A união sexual dos navegantes com as
ninfas aquáticas e a de Vasco da Gama com Tétis alego-
rizam o casamento de Portugal com o mar. A visão da
máquina do mundo alegoriza seu contato extático com
o princípio metafísico, o Bem para além do movimento
aparente das esferas, que fundamenta e orienta provi-
dencialmente a união e a viagem por meio de Vênus,
seu instrumento ou causa segunda. Em outras partes,
o episódio da máquina do mundo fundamenta o domí-
nio físico do mar e das novas terras da África, da Ásia
e da América como domínio físico teológico-político da
monarquia católica sobre regiões e religiões gentias e
infiéis, divinizando a história de Portugal.

Quando contemplam o artifício divino por meio da máqui-


na do mundo, Dante e Vasco da Gama assimilam a verdade
sem poder dizê-la. Quando apreciam aquilo que a razão hu-
mana não pode inventariar, o leitor apreende a pintura poética
sem poder defini-la. Assim como Dante, Vasco da Gama ini-
cialmente presenciou trevas, infortúnios, labores e perigos. Ao
final da trajetória, ambos se afastam da “selva” que representa
a condição humana para participar de um plano Providencial
repleto de luz e esclarecimento. A finalidade que Dante atribui
à Comédia, em uma carta dirigida ao seu protetor Cangrande
della Scala, parece orientar também os itinerários d’Os lusía-
das: “remover os que vivem nesta vida do estado de miséria
e levá-los para o estado de felicidade” (Hansen, 2010, p. 11).
As revelações sobre a máquina do mundo só ocorreram
ao final da jornada do herói, depois de ter passado por gran-

252
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

des desventuras. De acordo com Corte-Real (1594, p. 86), a


Providência comumente age de forma misteriosa:

Quem poderá fugir futuros males,


Sucessos desastrados, fins ocultos?
Ou quem pode alcançar altos mistérios
Que a suma providência assim atribui?
Com vãos prometimentos nos engana
O mundo lisonjeiro, falso e breve:
Com fantásticos bens que num momento
Trazidos entre as mãos se nos consumem.
Enlevados andamos, prometendo
Sempre a nosso desejo ledo efeito,
E no meio de um mar profundo e largo
De pensamentos vãos nos engolfamos.
Com próspera esperança, um bem ditoso
Afirmamos, nas coisas mais incertas,
Sem nos lembrar já mais a ordem tão triste
Da nossa humana, fraca natureza.
Andemos sobre aviso, e vigiemos:
Que o sacro Redentor assim ensina,
Pois o dia cruel, e hora tão forte
Da furibunda morte não se alcança.

Priorizar os bens mundanos em prol dos bens duradouros


implica ignorar que, no fim, todos vão ser julgados a partir
dos mesmos critérios:

Vede os confusos montes dos defuntos


No mundo vede que tudo é possível,
Os vulgares, e os nobres vereis juntos
Com estrago espantoso, e mal terrível.
Neste dia cruel vereis transuntos
Desta vida mortal o caso horrível,
Que o pobre, o rico, e fraco, e o que é mais forte
São todos em geral iguais na morte.
(Corte-Real, 1594, p. 165)

253
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Após desenganar-se perante as aparências, o mais seguro


seria contar com a intervenção de Deus:

Incerto é o fim das coisas, e o sucesso


Do mal, ou bem futuro a nós oculto,
Pois temos, por passar tão vários casos:
Chamar sempre por Deus é o mais seguro.
(Corte-Real, 1594, p. 127)

Os mistérios podem ser apreendidos de formas variadas,


como deixa ver o poeta ao discorrer sobre a maneira como o
vulgo os concebe:

Assim no céu está determinado


Por um juízo altíssimo escondido,
Chamam-lhe os rudes estrela, ou fado,
Sorte, ou destino mísero influído.
Mas Deus é o que nos põe no ledo estado,
Nos abate também no avorrecido,
Como quer a sua alta providência,
Que nele está o saber, nele a potência.
(Corte-Real, 1594, p. 165)

Seria próprio do néscio, portanto, levar em consideração


as aparências e perder de vista o verdadeiro bem:

Ó fraca natureza, ó saber fraco


De todos os mortais, ó erro cego
Que por seguir um vício, perca o homem
O bem que só para ele está guardado.
Triste miséria humana, que não sente
Numa doce aparência, a morte amarga,
E em verdes frescas ervas, a serpente
Venenosa, e cruel, não vê escondida.
(Corte-Real, 1594, p. 64)

De um lado, há o altíssimo juízo de Deus, oculto aos olhos,


mas manifesto na história; de outro, a cegueira do vulgo, que

254
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

enxerga o que lhe apetece e despreza o bem duradouro. O sa-


crifício, a boa morte, a vaidade, a cobiça, a caridade. É pos-
sível elencar uma lista infindável de ações, virtudes e vícios
orientados pelo amor (próprio, pelo próximo, por Deus). A
poesia parece retirar dos exemplos históricos e/ou fabulosos
os fundamentos ou predicados deste sentimento. Com encô-
mios e vitupérios, proporciona-se o desengano do leitor. Onde
muitos contemplam uma contradição (epopeia/antiepopeia),
poder-se-ia observar a proposta de uma harmonia cósmica
centrada no reto direcionamento do amor e sintetizada artifi-
cialmente no globo da etérea e elementar máquina do mundo.

255
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Depois desta nossa demorada travessia por mares de pa-
pel e tinta, que está prestes a alcançar o seu término, é preciso
reforçar alguns pontos: há uma retórica prudencial que ampa-
ra/estrutura as epopeias e os relatos de naufrágio portugueses
e que busca orientar os leitores, propondo um conjunto de
ações e de situações nas quais um modelo de súdito é suge-
rido. O naufrágio, por exemplo, é retratado como efeito de
um conjunto de fatores: a inexperiência do piloto, o descum-
primento do regimento, a ausência de munição, a qualidade
da madeira, o atraso da viagem. Já a experiência do piloto,
a coragem do capitão, a diligência dos homens, a penitência
dos pecadores e a misericórdia divina poderiam impedir o
incidente marítimo. O uso e corte da madeira adequada, a
presença de uma guarnição, o respeito ao regimento, o aca-
tamento à hierarquia, a disposição apropriada das fazendas,
a viagem sem atraso, o conhecimento das monções, enfim, o
agir movido pela reta razão poderia revigorar a saúde da nau
conferindo-lhe força para chegar a seu destino. Como se pode
ver, a censura à atitude imprudente e o elogio à postura pru-
dente servem, igualmente, à “retórica prudencial”.
Neste caso, a ação prudente depende de uma escolha boa
movida pelo amor. No entanto, o amor não é garantia do reto
agir. Uma passagem situada no canto XVII do Purgatório de
Dante parece-nos esclarecedora: Virgílio orienta o protagonis-
ta sobre a essência do amor, afirmando que Criador e criatura
vivem deste sentimento. No entanto, Deus ama por sua pró-
pria essência, ou seja, seu amor é infalível. O amor humano,
por outro lado, é fruto de uma escolha e, como tal, é falível, já
que o objeto escolhido pode ser bom ou mau. É por esta razão
que Virgílio enumera algumas variações do amor decorren-
tes de escolhas erradas: o amor soberbo (quando desejamos
a humilhação de alguém e nossa elevação), o amor invejoso
(quando tememos perder posição pela honra alheia), o amor

257
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

iroso (movido pelo desejo de vingança, pela promoção do mal


alheio), o amor preguiçoso (amor desordenado e vagaroso). O
amor “prudente”, por outro lado, conduz à caridade, fruto de
uma escolha acertada que reúne criatura e Criador. Esta talvez
seja uma forma verossímil de se compreender os infortúnios
de Manuel de Sousa Sepúlveda que, movido pelo amor des-
medido, torna-se responsável pelo assassinato do pretendente
de Leonor, Luís Falcão, realizando uma escolha ruim que rom-
pe com as convenções e bons costumes e causa sua perdição.
As experiências “trágico-marítimas” das quais nos ocu-
pamos, na maioria das vezes resultado de escolhas malfei-
tas, devem ser compreendidas a partir de uma concepção
providencialista da expansão portuguesa. No limite, é este
providencialismo que ilumina a experiência “trágica”, não se
tratando, portanto, do incidente como fim ruinoso e funes-
to, mas de um acontecimento penoso acompanhado de uma
promessa redentora em meio a um mundo de provações e
desventuras. As lágrimas, por exemplo, entendidas sob uma
perspectiva católica contrarreformada, não são reflexo de um
pessimismo, mas muitas vezes a própria manifestação da sa-
bedoria do homem prudente e ajuizado, que percebe as misé-
rias do mundo e, concomitantemente, a graça misericordiosa
do perdão divino. Nestes termos, as lágrimas poderiam ser
apreendidas como tópicas de purgação, purificação, peni-
tência. O trágico, neste sentido, também pode ser entendido
como uma poética capaz de provocar uma compreensão espi-
ritual da expansão portuguesa nos quadros de uma história
salvífica, da qual os portugueses seriam coautores.
Muitas vezes concebido como manifestação do trágico, o
discurso do velho do Restelo é um topos da prudência antiga,
desafiada e inaceitável para os portugueses. Não há presença
de uma personagem similar na Ilíada, na Odisseia ou na Eneida,
pois sua fala, mais do que reminiscência, é a essência da épica
antiga. Se há semelhanças entre as tempestades de Homero,
Virgílio e Camões, o propósito ao qual elas servem são diver-
sos: a viagem do grego é uma forma de restauração da ordem;

258
Heroísmo na singradura dos mares: Histórias de Naufrágios e Epopeias nas
Conquistas Ultramarinas Portuguesas

a do português é a instauração de uma ordem nova. A pru-


dência antiga pode ser representada pela sabedoria que Sêne-
ca (1985, p. 5) felicita na atitude de Lucílio, na sua 2ª epístola:

não corras o mundo nem te inquietes com mudanças


de lugar. Tal agitação é própria de um ânimo enfermo.
A primeira prova de uma mente bem composta é, a
meu ver, poder conter-se e residir em si.

O que outrora caracterizava um “ânimo enfermo”, a hy-


bris, deixou de sê-lo para os portugueses, empenhados como
estavam em conquistar novas terras e ampliar a fé cristã.
Se por vezes falta prudência aos protagonistas, como fica
evidente no caso de Sepúlveda e mesmo em algumas atitudes
de Vasco da Gama, ela parece integrar o éthos do poeta/narra-
dor de forma incontestável. Se o narrador, por um lado, ajuíza
sobre a matéria da qual se ocupa e instrui a partir dela, o poe-
ta, por outro, “resolve” o feito na medida em que tira dele seu
predicado e o apresenta de forma verossímil e deleitosa. Não
seria de todo imprudente supor que a trama envolvendo as
personagens auxilia na promoção da prudência deste poeta/
narrador, que reúne em si qualificativos definidores de um
bom súdito. No caso, é possível distinguir um sentido edifi-
cante na experiência “trágica”, que, ao ser encenada histórica
e/ou poeticamente, proporciona o desengano, o que insinua
um desfecho positivo e amplifica o juízo do poeta/narrador.
A relação entre a virtude ético-política da prudência e a
virtude teologal da caridade parece ser uma chave de com-
preensão da inventio dos súditos portugueses nas práticas le-
tradas aqui estudadas, pois supõe, simultaneamente, a “polí-
tica do céu” e a “política das obras”, isto é, a presença de Deus
na história e a existência de homens capazes de obrar con-
forme Sua vontade. A prudência, que incita o homem a agir
de forma comedida, modera as paixões; a caridade, vínculo
baseado no amor verdadeiro, leva o homem a obrar conforme
os desígnios da Providência.

259
Cleber Vinicius Do Amaral Felipe

Depois de relatar os dramas da navegação portuguesa,


Fernando Pessoa afirmou: “Tudo vale a pena, se a alma não
é pequena”. Poder-se-ia complementar: a alma deixa de ser
pequena quando a pena ensina prudência. Resta-nos, por fim,
descansar a pena e refrear o ânimo, ao menos até que um le-
nho seco velas receba e proporcione novo itinerário.

260
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Título Heroísmo na singradura dos mares: Histórias
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Autor Cleber Vinicius Do Amaral Felipe
Coordenação Editorial Simone Silva
Assistência Editorial Carla Lima
Paloma Almeida
Capa Matheus de Alexandro
Projeto Gráfico Larissa Costa Vaz
Preparação Thais Fernanda Cezarino
Revisão Taíne Barriviera
Formato 14x21cm
Número de Páginas 276
Tipografia Palatino Linotype
Papel Alta Alvura Alcalino 75g/m2
1ª Edição Dezembro de 2018
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