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O IMAGINÁRIO DA INQUISIÇÃO
Desmitologização de Valores no Tribunal do Santo Ofício,
no Direito Inquisitorial e nas Narrativas do
Medo de Bruxa (Portugal e Brasil, 1536-1821)
RECIFE
2001
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
DOUTORADO
O IMAGINÁRIO DA INQUISIÇÃO
Desmitologização de Valores no Tribunal do Santo Ofício,
no Direito Inquisitorial e nas Narrativas do
Medo de Bruxa (Portugal e Brasil, 1536-1821)
Orientadora:
Dra. Rosa Maria Godoy Silveira.
Co-Orientadora:
Dra. Danielle Perin Rocha Pitta.
RECIFE
2001
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O IMAGINÁRIO DA INQUISIÇÃO
Desmitologização de Valores no Tribunal do Santo Ofício, no Direito
Inquisitorial e nas Narrativas do Medo de Bruxa (Portugal e Brasil, 1536-1821)
Capítulo III – O Sentido das Fontes no Direito Inquisitorial e nas Narrativas do Medo
de Bruxa...........................................................................................................................139
1-Em torno das Fontes Históricas: o Formal, o Material e o Teológico na Racio-
nalização do Direito.............................................................................................141
2-Para uma Crítica Documental: As Obsessões Formais nos Regimentos do Santo
Ofício e nas Amostras dos Processos Inquisitoriais............................................159
Conclusão – O Inquiridor-Mártir-Purificador............................................................184
Referências Bibliográficas..............................................................................................193
Listas de Fontes Documentais........................................................................................206
Documentos Histórico-Teológicos.......................................................................206
Documentos Históricos: Fontes Documentais Publicadas...................................207
Documentos Históricos: Fontes Documentais Não Publicadas...........................209
Documentos Históricos: Regimentos Inquisitoriais.............................................210
Vocabulário Teórico-Metodológico................................................................................211
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PROGRAMAÇÃO VISUAL
Sonaly Macêdo Cavalcanti
DESIGNER da LAMA PRODUÇÕES - Recife
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AGRADECIMENTOS
Cada uma destas pessoas contribuiu de forma singular para a realização deste
trabalho. Aqui, não compararei os méritos. Agradeço igualmente a todas elas.
Por isso, faço-o em ordem alfabética:
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RESUMO
O estudo sobre o Tribunal do Santo Ofício tem sido marcado por um paradoxo: à
riqueza da historiografia que se desenvolve, a partir de estudos de casos, opõe-se a limitação
dos trabalhos que buscam a análise do Tribunal em si. Este trabalho busca o caminho teórico-
metodológico para o desenvolvimento dos conceitos e noções pertinentes ao conhecimento do
próprio Tribunal, seu significado histórico e seu imaginário. Da noção de Tipo Ideal (Weber)
às noções do Imaginário (Durand), faz-se o trajeto que permite sistematizar e conceituar os
seguintes elementos: os valores do Tipo Ideal de Inquisidor Moderno, a especificidade do
Direito Inquisitorial e o significado das Narrativas do Medo de Bruxa em iconografias,
regimentos e processos, como fontes para a História da Inquisição. O cenário histórico que
permeia o trabalho está demonstrado na noção de Desmitologização de Valores. Nela, já se
antevê a tendência racionalizadora que inspirou a essência do Tribunal, representada pelo
Inquiridor-Mártir-Purificador.
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INTRODUÇÃO
―As Inquisições são estudadas, geralmente, não como um problema mas como um
tema consagrado de pesquisa, que se justifica por si próprio, permitindo todos os
cortes espácio-temporais e todas as apropriações discursivas.‖
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Quando o Abade ouviu aquela pergunta pela terceira vez, no mesmo mês, não se
conteve; com voz firme e peculiar sotaque sulista, vaticinou: – ―Este não é um assunto a ser
tratado aqui!‖. Naquela sala de aula, diante daquela turma, ele nunca mais tocou na questão. A
rispidez, incomum nas respostas daquele beneditino bem educado e extremamente culto,
trouxe curiosidade. Nas aulas de História, já no segundo grau, veio a resposta na voz da
professora: ―é tema difícil para a Igreja‖. Outro professor, pouco afeito aos ditames mais
rígidos do Vaticano, punha as duas mãos empalmadas ao lado das bochechas, como quem
conta um segredo, e ia dizendo em voz que começava baixa e normalizava-se no decorrer da
explicação: – ―Eu vou contar pra vocês, mas não contem pra ninguém: a Inquisição era um
Tribunal que julgava os crimes contra a fé....‖. E seguia explicando os processos contra
grandes vultos da Ciência, da Filosofia e das Artes. A explicação tornava-se demolidora: a
Igreja cometera um crime de séculos. O livro de História que havia sido adotado tinha poucas
linhas sobre o assunto. Assim, quem desejava mais informações dirigia-se à Biblioteca do
Colégio – o São Bento de Olinda –, que também não tinha quase nada a respeito. Depois, a
curiosidade foi tentar a Biblioteca do Mosteiro, onde não se podia entrar. Por fim, passou-se a
freqüentar a Biblioteca Pública, as livrarias e, mais tarde, os arquivos históricos. Deste
convívio, surgiu o interesse por uma História da Inquisição.
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Consta nos arquivos do Santo Ofício que o inquisidor Antonio Ribeyro de Abreu
mandou vir perante si a preta Marcelina Maria, filha de Antonio e Luzia, natural da cidade do
Rio de Janeiro. Corria o ano de 1734 em Lisboa: dia 24 de agosto. Marcelina chegou e viu a
Mesa reunida. Mandaram que colocasse a mão direita sobre o Evangelho e ouviu um primeiro
sermão: ―lhe foy mandado dizer verdade e ter segredo o que tudo prometeo cumprir‖. Disse
o próprio nome e percebeu que o notário parecia anotar tudo que era dito. Para ela, analfabeta,
era esta uma demonstração da importância daquele momento.
Marcelina informou serem seus pais escravos do Capitão Manoel Netto Barreto,
natural do Rio. Disse, ainda, pertencer a João Eufrázio, escrivão da Casa da Índia, sendo
―moradora nesta Corte ao Rocio de vinte e seis anos de idade‖. Saber-se-ia depois ser a ré
―solteyra e tem dous filhos Joaquina de quatro annos, e Joze de poucos meses e o pay de
Joaquina he Domingos Gonsalves de Lagos, e o Joze he filho de hû Dezembargador que foy
para o Rio ha pouco tempo‖.
Os inquisidores disseram, então, a Marcelina que se confessasse, pois, se trouxesse
todas as suas culpas à memória, sua consciência ficaria descarregada, sua alma ficaria leve e o
Tribunal trataria com benignidade a sua causa. Marcelina contou que era maltratada pela
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esposa de um seu ex-proprietário, João da Costa Sylva. Contou, também, ter procurado uma
moura chamada Antonia, que haveria de lhe ensinar uma poção para que sua senhora a
tratasse bem. A poção foi trazida em dois pequenos embrulhos de papel, que continham pó de
terra e de cravo. A moura ordenou-lhe ir à janela, à meia-noite, e fazer o sinal da cruz com os
pacotes. Também ordenou que Marcelina dormisse com os papéis ―metidos entre as pernas‖
para, ao acordar, metê-los no refego da saia. O feitiço não surtiu efeito, pois a sua senhora
ainda se exaltava, talvez por Marcelina não ter fé ―nestas couzas‖, como advertira Antonia.
Outro feitiço foi tentado. Marcelina colheu a raspa dos sapatos de sua senhora e
entregou a Antonia. A moura lhe devolveu tudo embrulhado em duas papeletas que foram
usadas para fazer três cruzes sob a luz do luar. Antonia ainda ensinou a preta como fazer para
fisgar para si um homem: no ato sexual com o pretendido, esta deveria por o dedo no ―seo
vazo natural‖ e fazer duas cruzes sobre os olhos, pois assim o amante zelaria pôr ela o resto da
vida. Já para forçar alguém a fazer algo, era bastante cozer um ovo, dormir com ele entre as
pernas e, na manhã seguinte, dar-lhe de comer à pessoa que se queria persuadir.
Certamente, por andar sendo vista com a moura Antonia, Marcelina foi procurada
por Catherina Ignacia, esposa de Frutuzo (sic) Gonsalvez, ―çapateyro‖, e amante de Martinho
Gonsalvez (parentes?), ―creado do Marquez de Marialva‖. A preta pediu mais uma vez ajuda
à moura. Esta lhe ensinou novo feitiço para que o marido deixasse a mulher em paz e ―lhe não
impedisse nem reparasse o deshonestasse com outros homês‖. Um punhado de raspas dos
sapatos do sapateiro foi entregue e embrulhado. Catherina meteu os papéis no refego da saia e
deu três pancadas sobre as costas do marido para a mandinga fazer efeito. Porém, ―lhe não
declarou se tivera, ou não effeyto‖.
A mulher de João da Costa o conveceu a vender a preta Marcelina. Foi comprada por
João Eufrazio. Marcelina estava grávida, mas não comunicou a gravidez para não atrapalhar a
transação. Seu novo dono a castigou duramente pela gravidez. Pretextando que ela estava de
namoro com outro negro da casa, juntou ―seis ou sette homês sendo hû delles o ditto seo
Senhor, e seo filho mais velho‖, a mandou despir-se, atou-lhe as mãos e surrou-a. Queria
saber quantas vezes tinha ―tido copula‖ com o preto, que também foi surrado.
―Exasperada pelo grande castigo que lhe deo‖ o seu novo senhor, ―chamou pello
demonio, rayvoza, e com animo de ser feyticeyra‖. Nas tarefas do dia-a-dia, Marcelina não
esquecia a humilhação que sofrera, ―o que socedeo havera quinze dias‖. Estava fazendo pão
quando invocou o demônio. A massa do pão começou a se mexer sozinha diante dos olhos
incrédulos da negra. Fazia o trabalho sobre sua própria cama, pois estava debilitada pela surra.
Quando batia a massa no alguidar, as tábuas da cama faziam barulho, mas quando o diabo
passou a fazer o serviço, a massa misturou-se em silêncio. Apavorada, pois ―bem conhecia
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que so por arte do demonio, se podia amaçar e levedar em tão pouco tempo‖, não comeu do
pão.
Naquele dia, desejando fazer logo o trabalho da casa, ouviu uma voz que dizia: ―Se
quizeres vay buscar ao Campo Grande que la te ensinarão o que has de fazer para tudo
obrares depressa‖. À meia-noite, quando todos dormiam, a porta da casa misteriosamente se
abriu e Marcelina caminhou pelas ruas desertas de Lisboa. Chegando no local combinado,
―ao pe de huâs cazas nobres que ficão a mao direyta, vio hû vulto muyto alto, e lhe parecia
que tinha mais altura do que ella na figura de hû bode‖. Arrepiou-se, a vista escureceu, fez
menção de correr e ainda ouviu aquele ser gritar: ―Aonde vaz‖? Disse-lhe que ia buscar umas
coisas.Um pé-de-vento espalhou-se com tal velocidade que ela caiu algumas vezes antes de
chegar em casa. Atrás dela a porta fechou-se por encanto e com grande estardalhaço. Por obra
do demônio, ninguém acordou. Daí em diante, os dias de Marcelina não seriam mais os
mesmos: passou a ouvir pancadas durante a noite, não conseguia mais dormir e resolveu ―a
levar para a sua cama a imagê de Christo Senhor Nosso na Cruz‖ para ―abraçarse com
ella‖.
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e penitências espirituais. As culpas se adequaram com perfeição aos preceitos demonológicos
da Inquisição.
Iniciamos nosso estudo com a narrativa paradigmática deste processo, para retornar
às suas temáticas ao longo do trabalho e em outros documentos inquisitoriais que visitaremos.
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A relação entre religião e vida econômica foi a essência das preocupações de Max
Weber para explicar a formação do Ocidente moderno. Procuraremos contextualizar a
Inquisição Moderna portuguesa neste quadro geral. Na tradição weberiana, o historiador
norte-americano John Patrick Diggins sistematizou de forma bastante didática o significado
deste período histórico para o mestre alemão. O breve lapso de tempo histórico em que a ética
calvinista tornou o trabalho algo moralmente recomendável tem paralelo nos primórdios da
era artesanal – na sociedade artesanal medieval – e marca indelevelmente a formação do
mundo moderno. Contudo, Weber viu neste processo o ―espírito da tragédia‖ da cultura
ocidental na medida em que o desencantamento do mundo do trabalho sucedeu à sua
valorização moral.
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Mott (1988, 1993). São trabalhos valiosos, leituras indispensáveis, fortemente influenciadas
por Carlo Ginzburg (1987, 1988 e 1991) e Mikhail Bakhtin (1987).
A própria Laura de Mello e Souza, contudo, admitiu que ―esta forma de fazer
história tem defeitos que podem até ser graves: é freqüentemente indistinta, retórica,
conceitualmente confusa. Mas, por outro lado, abre espaço à intuição e à sensibilidade, é
democrática na utilização heterogênea e não hierarquizada das fontes, permite ensaios.‖
(Laura Souza, 1993, p. 17). Neste caso, podem as virtudes transformarem-se facilmente em
defeitos, bastando que intuição, sensibilidade e democracia se confundam com a ―confusão
conceitual‖ anteriormente reclamada. Buscamos uma outra forma de fazer História, mais
atenta à construção conceitual e à crítica documental.
O capítulo I, seguindo os passos da análise científica proposta por Max Weber (1992,
p. 107 a 154, especificamente: p. 125 a 129), tratará de estabelecer um quadro geral do Santo
Ofício. Este quadro resulta de nossa concepção da História inquisitorial. Mesmo tratando-se
de conteúdo que tem fontes históricas especificadas no texto, a concepção analítica
apresentada ali vincula ―leis‖ e ―fatores‖ de maneira hipotética ou ―experimental‖. São
experimentações fundantes da análise. No primeiro capítulo percorremos os paradigmas
presentes na Historiografia, e no objeto de estudo, analisamos a nostalgia dos mitos
formadores do Tribunal e descrevemos os ritos e o cerimonial.
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aprofundadas que eram desconhecidas por Weber – nós as obtivemos em outros autores –,
mas que surgirão já nos dois primeiros capítulos deste trabalho. O fio condutor deste retorno
é, para nós, o Direito Inquisitorial, enquanto fundador do binômio
investigação/impessoalidade, que conta a história da mentalidade inquisicional com ótima
aproximação do cotidiano vivido por aqueles agentes históricos.
Os passos dados na introdução e nos três capítulos posteriores, nos permitem propor,
na conclusão, a noção de Inquiridor-Mártir-Purificador, arremate analítico final que pretende
repor a noção de Inquisição – objetivo central deste trabalho – enquanto ação vinculada ao
Tribunal do Santo Ofício.
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com noções de probabilidade e dinâmica. A antiga noção de que o universo seria um relógio
onde componentes ou peças teriam funções específicas e poderiam ser compreendidas
separadamente foi substituída:
As constelações que Weber indica parecem ser, para as ciências humanas, o caminho
de compreensão do todo. Já o imaginário de Durand, com seus regimes de imagem, mitos e
classificações estruturais, bem se aproxima deste esforço da Física por descobrir as relações
das partes com o todo.
Identificamos a problemática que aqui nos interessa através do quadro teórico que
está detalhado no capítulo I. Nesta introdução, abordaremos também a hipótese e seus
constituintes conceituais. O debate científico desta virada do século merece nossa atenção
maior, pois dele vem brotando um outro saber científico, no qual trabalhamos.
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para si o aparente alto grau de cientificidade de outras ciências. Todo este debate estaria
superado se seu legado não agisse tão profundamente até os dias de hoje.
É curioso notar que a busca de uma ―História sem teoria‖ bem como as diversas
tendências de procurar objetos de estudo alternativos em temáticas restritas, são processos
que emergem após evidenciar-se a inexatidão das ―teorias gerais explicativas da História‖.
História do Cotidiano, História das Mentalidades e Nova História, em princípio, permitem
livrar a ciência histórica do paradigma cientificista, mas deixam um enorme vazio teórico a
ser preenchido.... O ―segredo‖ da reestruturação do saber científico está na reposição do
critério de cientificidade. Já não se terá que exigir que as ―humanas‖ sejam espelho das
―exatas‖, pois a ciência de ponta já é cônscia de sua imponderabilidade, quer seja ―exata‖ quer
seja ―humana‖. Já não é aceitável que se suponha conhecer um arcabouço de leis naturais
universais e precisas. Na História, por exemplo, há, aparentemente, duas tendências
preponderantes: uns se fiam nos velhos preceitos de antigos quadros teóricos do modelo
cientificista; outros pensam extirpar a teoria (para não ter que pensar mais nisso?) de dentro
da seara histórica, ―resolvendo‖ a questão.
As diferenças epistemológicas entre estas duas formas de fazer ciência nos levam a
crer que são posicionamentos filosóficos atemporais que se colocam sob a denominação de
tais correntes. São diferenças que parecem ter oposição mútua permanente ao longo da
História, sendo que, ora uma, ora outra, prevalece sobre a oposta. Se assim for, esta dialética
científica estará compondo nos quadros da dança mítica das estruturas antropológicas do
imaginário de Gilbert Durand (1989). Max Weber (1992) encerrou sua última conferência
incentivando os estudantes presentes na platéia a ouvirem seu daimon interior. Trata-se de um
texto que é uma espécie de testamento filosófico do autor: A Ciência como Vocação. Noutro
escrito, o mestre alemão adiantou-se aos estudos contemporâneos do imaginário e percebeu a
existência de constelações de valores que permitiriam a compreensão da vida em sociedade e
a caracterização de tipos ideias. Nesse aspecto, ressalta Gilbert Durand:
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parâmetro, afinando-o com o dado ―concreto‖ para elaborar daí a conclusão científica. A
qualidade maior desta noção está na capacidade de manter sua cientificidade sem a ilusória
busca de uma determinante geral para os fenômenos históricos. Ou seja, Weber demonstra
que é possível o trabalho científico sem preconizar uma instância final determinadora com
suas respectivas ―leis universais‖:
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método traz de volta, por outro caminho, o objetivo universalista de nosso saber científico,
sem cair nas teorias gerais explicativas da História, com suas fracassadas escatologias (3).
Weber representa muito bem o espírito deste nosso trabalho, pois aqui vivenciamos
um sentimento antinômico, qual seja: percebemos que a mesma conduta do raciocínio
modernizador e desmistificador que nos trouxe a ciência histórica propiciou uma certa forma
de ação inquisitorial. Em outras palavras: o contato da Inquisição com as formas
racionalizadoras típicas do mundo moderno não significou a supressão da intolerância, mas
sim o contrário: seu fortalecimento. É isso que nos lembra René Gertz na apresentação do
livro Max Weber e a História, de Astor Antônio Diehl (1996, p. 9):
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para evitar grave reducionismo que poderia levar estudantes e colegas a imaginar aqui ou em
qualquer outra obra que um modelo novo seria apenas o anterior ―de cabeça para baixo‖. Este
reducionismo aplicado, digamos, com um quadro teórico materialista, suporia que, no lugar
de ―motivos econômicos‖ como explicativos de uma conjuntura histórica, um paradigma novo
escolheria a luta política como ―fator determinante em última instância‖. Porém, é preciso
estar despojado desta estrutura de pensamento baseada em instâncias, umas determinantes e
outras determinadas. O hábito de raciocinar com o modelo determinista pode ser facilmente
superado com a imagem das constelações de valores. Numa constelação, os valores que a
compõem – próximos entre si em constituição e significado – determinam-se mutuamente,
sem haver hierarquia ou precedência.
Na Física pode-se partir de uma noção interessante para o trabalho laboratorial: sabe-
se agora que o simples ato de medir uma partícula ou um movimento é suficiente para
interferir na própria partícula ou em seu movimento, influenciando-a a apresentar um
resultado distinto do que apresentaria na ausência dos instrumentos de medição. Sendo este
princípio válido para toda a produção científica, podemos conhecer um pressuposto básico: a
análise científica influencia o objeto.
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Ofício. Comparemos os mitologemas lusitanos com as obsessões ideais presentes nas fontes
históricas da Santa Inquisição: processos, regimentos e manuscritos. O resultado deste padrão
de análise está no nosso trabalho.
Assim, concluímos que uma nova forma de encarar o ―fazer científico da História‖ é
resultante da aproximação deste pressuposto básico do novo paradigma: as conclusões
científicas são restritas e relativas ao objeto de estudo. Não há a procura obcessiva de uma
―teoria geral explicativa da História‖. Não buscamos um conceito que substitua, por exemplo,
as tentativas analíticas da corrente materialista expressas nas idéias de ―modo de produção‖ e
―formação sócio-econômica‖. Acreditamos que uma ciência que se liberte desta busca
cometerá menor número de erros e imprecisões, podendo facilmente desmistificar equívocos
sem necessitar de uma escatologia para propor à humanidade. Veremos, então, que
procuramos estar distantes do ―ponto de vista cosmopolita‖ que inspira o modelo iluminista.
Weber (1992, p. 107 a 154) ressalta que a busca de ―leis‖ e ―fatores‖ gerais não precisa ser
abandonada. Uma vez localizados os ―fatores‖, devemos, então, iniciar a fase seguinte do
trabalho, de tal forma que, de um ―trabalho preliminar‖, viriam ainda quatro operações. Pela
importância desta noção em nosso estudo, impõe-se que seja transcrita esta citação:
―Supondo que alguma vez, quer por meio da psicologia, quer de qualquer outro modo, se
conseguisse decompor em fatores últimos e simples todas as conexões causais imagináveis da
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coexistência humana, tanto as que já foram observadas como as que um dia será possível estabelecer, e
supondo que se conseguisse abrangê-las de modo exaustivo numa imensa casuística de conceitos e de
regras com a rigorosa validade das leis, o que significa este resultado para o conhecimento, quer do
mundo cultural historicamente dado, quer de algum fenômeno particular, como o do capitalismo na
sua evolução ou no seu significado cultural? Como meio de conhecimento, não significa nem mais
nem menos que aquilo que um dicionário das combinações da química orgânica significa para o
conhecimento biogenético dos reinos animal e vegetal. Tanto num caso como noutro ter-se-á realizado
um importante e útil trabalho preliminar. Todavia, e, tanto num caso como noutro, tornar-se-ia
impossível chegar algum dia a deduzir a realidade da vida a partir destas ‘leis‘ e ‘fatores‘. Não por
subsistirem ainda, nos fenômenos vitais, determinadas ‘forças‘ superiores e misteriosas (‘dominantes‘,
‘entelequias‘ ou outras) – o que já constitui outro problema – mas simplesmente porque, para o
reconhecimento da realidade, só nos interessa a constelação em que esses ‘fatores‘ (hipotéticos) se
agrupam, formando um fenômeno cultural historicamente significativo para nós, e também porque, se
pretendemos ‘explicar causalmente‘ esses agrupamentos individuais, teríamos de nos reportar
constantemente a outros agrupamentos igualmente individuais, a partir dos quais os ‘explicássemos‘,
embora utilizando, naturalmente, os citados (hipotéticos) conceitos denominados ‘leis‘ ‖ (Weber,
1992, p. 126 e 127. Grifo nosso.).
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metade inicial do texto. O segundo e o terceiro capítulos, de elaboração meticulosa, intentam
realizar a segunda e a terceira operações da metodologia weberiana ao buscar a
individualização de fatores significativos no passado da Inquisição, relacionando-os entre si:
o medo e o direito, remontando o máximo possível ao passado de cada um em sua relação
com o Tribunal. Resulta, então, um ―agrupamento individual‖ dos fatores, deduzido a partir
dos documentos históricos analisados. As constelações possíveis no futuro, quarto passo,
surgem na conclusão, em que analisamos o legado inquisitorial.
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NOTAS DE REFERÊNCIA
(2) - Este e outros termos teóricos aparecem definidos no vocabulário teórico, ao final deste
trabalho.
(3) - A expectativa escatológica de que a História seria um saber capaz de levar a um mundo
melhor está presente em Kant (1986), quando o pensador alemão vincula o conhecimento à
criação de uma constituição perfeita. O pensamento marxista repetiu a fórmula escatológica
sob outra perspectiva. Nenhuma destas ―promessas de paraíso‖ realizou-se historicamente,
mas todas desempenharam papel importante na elaboração do conhecimento acadêmico sobre
sociedades humanas.
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CAPÍTULO I
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―Em nome da historicidade, dois mil anos de história são sacrificados no altar do
aggiornamento que está na moda –– dois mil anos de uma lenta sedimentação de
crenças, liturgias e dogmas. A antiga árvore de Jessé é anexada alegremente à
modernidade humanista. Não só se faz passar a fé antes das obras, como o fez a
Reforma, mas ainda liqüida-se ‗a religião‘, ‗o sagrado‘, o ritualístico, quem sabe
até ‗as crenças‘, em nome de uma curiosa ‗fé‘ que se limita, como exegese, ao
reducionismo da psicanálise ou da economia política...‖
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Este primeiro capítulo inicia-se percorrendo os paradigmas num caminho que diz
respeito, simultaneamente, ao objeto de estudo e à sua análise teórico-metodológica. Em
seguida, para a compreensão do conteúdo paradigmático da Inquisição, analisaremos uma
componente da mentalidade inquisitorial: a nostalgia do mito, numa referência ao abandono
ou instrumentalização dos mitos formadores da Inquisição por parte do Tribunal português.
Ilustramos este processo descrevendo, na última terça parte deste capítulo, os ritos e o
cerimonial do Santo Ofício. A representação da especificidade portuguesa aparece também no
estudo da etiqueta e do cerimonial inquisitoriais, que nos levará a entender o simbolismo de
poder do Tribunal.
********
Há uma inquisição quando se estuda a Inquisição. Mesmo que o estudioso ou analista façam
todo o esforço para abdicar do ato de ―inquisitoriar a Inquisição‖, o leitor, o ouvinte ou
mesmo o aluno estarão sempre predispostos ao julgamento. Esta atitude, enraizada entre
pessoas das mais diversas origens e interesses, é o principal obstáculo para a compreensão
histórica do Tribunal do Santo Ofício. Em dezenas de palestras, cursos, aulas e conferências
que pronunciamos sobre este tema nos últimos doze anos, vimos sempre aflorar, entre os que
estiveram conosco, a luta irreal entre dizer ―sim‖ ou ―não‖ ao Tribunal. Daí, termos a
convicção de que para a compreensão de um imaginário inquisitorial – como pretendemos
neste capítulo – precisamos, antes, enxergar da forma mais cristalina possível o próprio objeto
de estudo. Isto permite separar, até na mente do próprio leitor, as concepções vulgarizadas do
Santo Ofício do estudo que desenvolvemos aqui.
27
pelos direitos das chamadas ―minorias sexuais‖, marcadas pelo questionamento de valores
morais tradicionais. Há também a defesa da liberdade de expressão, conceito recente que, no
passado, teria sido deserespeitado com a prisão e morte de artistas nos cárceres inquisitoriais.
28
menor a ―autonomia‖ do juiz. Da mesma forma que buscamos os processos de feitiço, no
sentido de localizar com maior proximidade o discurso inquisitorial, vemos que a origem
religiosa ou os valores morais do pesquisador também não devem invadir o discurso/valores
do outro, no caso o inquisidor/agente histórico analisado.
Nosso corte temporal motiva-se por uma busca historiográfica e por uma
preocupação teórica. O campo teórico indica que, no tempo longo, definem-se os movimentos
do imaginário na transformação das mentalidades. Inspiramo-nos na terminologia de José
Carlos de Paula Carvalho (1987) para compreendermos o movimento histórico em que uma
nova ―bacia semântica‖ sobrepujou a anterior, levando o Tribunal do Santo Ofício às
mudanças estruturais características do período estudado. As ―bacias semânticas‖ são uma
imagem durandiana que interage muito bem com a teoria weberiana no que se refere aos
valores. As ―bacias‖ permitem visualizar como se fossem correntes ―hídricas‖ o surgimento
de novas ondas valorativas que formam nova ―hidrografia‖, num processo que costuma levar
um intervalo de tempo superior a um século. Para uma melhor compreensão desse movimento
de mentalidade, criamos há alguns anos a expressão ―Pedagogia do Desprezo‖, que
complementa a noção conhecida como Pedagogia do Medo (Carvalho, 1987), temas que
aprofundaremos no capítulo II.
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A busca historiográfica vem de nossa preocupação em resolver uma questão e um
problema históricos: houve ou não caça às bruxas na Península Ibérica? A caça às bruxas
integra-se no período que vai do início do século XVII à metade do século XVIII, quando
grande parte da Europa viveu um agravamento significativo no número de processos contra
bruxas e no número de execuções ao final de processos desse tipo. França, Alemanha e
Inglaterra viveram esta fase. No caso de Portugal, o principal historiador a analisar a
Inquisição, naquele país, considera que não existem dados que possibilitem afirmar a
existência do mesmo fenômeno na Península Ibérica (Bethencourt, 1987). Podemos estender
esta análise de Francisco Bethencourt para as colônias portuguesas, inclusive o Brasil.
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objeto. Como nas mais recentes descobertas da Física, entendemos que existe uma mútua
influência entre quem estuda e quem é estudado. Por isso, sugerimos revisar o tema
Inquisição, imaginando-nos – o autor e nossos leitores – num passeio por entre os meandros
da mentalidade e do imaginário inquisitoriais. O termo revisão tem sido caro à historiografia.
A revisão mais famosa teria sido a que se procedeu sobre a Revolução Francesa. Enquanto
tema para a História, a Inquisição carrega os pressupostos analíticos para uma nova incursão
do conhecimento, isso porque o assunto foi abordado, até agora, na maioria dos casos, de
forma pouco conceitual ou com ―compromissos‖ pessoais/historiográficos que deixaram em
aberto grande parte das possibilidades analíticas possíveis para os historiadores neste tema.
Se a curva do tempo nos levasse a alguma berlinda setecentista para escutar, sob
sorrelfa, a conversa dos inquisidores ou o grito de suas vítimas diante dos azorragues do
Tribunal do Santo Ofício, certamente reafirmaríamos o percurso analítico que estamos
apresentando nestas páginas. Este novo olhar que estamos propondo para a análise histórica
da Inquisição parte da constatação de que se tratou de um Tribunal de origens medievais, com
estruturação definitiva nos tempos modernos e que vivenciou, como agente histórico
privilegiado, todo o movimento de desmitologização da Cristandade – conceito que será
detalhado neste capítulo. Vamos às raízes históricas da intolerância cristã para podermos
propor uma nova concepção – ou uma nova noção – de Inquisição.
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Numa aproximação inicial, dizemos que a ―branca‖ supõe um Tribunal justificável
pela sua historicidade. Em outras palavras: na conjuntura histórica em que surgiu e se
desenvolveu, tratou-se de ―algo natural‖. É visão fatalista e determinista. Citamos duas
passagens que ilustram o posicionamento dos defensores da ―lenda branca‖, que, por estarem
―em baixa‖ nos dias de hoje, tornaram-se de pouco conhecimento, quase uma peculiaridade de
quem se dedica especificamente ao tema. Vamos a Herculano e a Tuberville, o primeiro sobre
a Inquisição portuguesa e o outro sobre a espanhola:
―Seria absurdo exigir do catolicismo que tolerasse o erro; que admitisse a possibilidade
teórica de qualquer ponto de doutrina contrária à sua; porque isso equivaleria a fazer descer a crença
católica das alturas do dogma ao nível das opiniões humanas; mas estas leis ferozes tornavam
necessariamente odiosa aos olhos das suas vítimas a causa remota e inocente de males que só, na
realidade, eram filhos de bruto fanatismo e, às vezes, de conveniências políticas‖ (Herculano, 1852, p.
27 - vol. I).
Não se pode dizer que estes autores tenham sido determinados em seus
posicionamentos apenas por sua época ou lugar: Herculano foi um intelectual português do
século XIX, tendo vivido num país diferente daquele dos tempos inquisitoriais. Tuberville,
que estudou em Oxford em 1909, foi professor da Universidade de Leeds até 1945, quando
faleceu. Os posicionamentos de ambos, ao que parece, se prendem a convicções religiosas ou
a posicionamentos políticos, sem deixar de lado uma evidente busca por encarar a História
sempre como algo natural.
32
vinha de Israel. As Igrejas ostentavam sempre, pintadas nas paredes, cenas do
Antigo Testamento. Para o cristão, o judeu se apresentava como um irmão mais
velho, a quem se ama e de quem se espera apoio, mas a resposta era
desconcertante, com cruel ruptura. O pior ódio é aquele que provém do amor.
De estas cifras tan terribles hay que hacer un ligero comentario relativo a los
conversos que fueron absueltos, tras haber sido examinados sus casos. Sabemos
que desde 1485 hasta 1500 lo fueron 43 y otros 112 vieron suspendidos sus
procesos. (...)
Ferocidade, terror e tentáculos: palavras que não deixam dúvida sobre a forma como
se vai encarar o tema. Entre os autores que se portam assim, há um consenso em torno de que
o Tribunal já não é um problema científico – talvez até isto não importe muito para eles – e a
sua explicação definitiva já é conhecida: tratar-se-ia de um crime perpetrado pela Igreja
Católica contra o povo hebreu. Restaria, então, alimentar libelos acusatórios com mais e mais
estudos de casos e estatísticas. Este modelo proliferou no século XX e vive hoje processo de
esgotamento.
33
Acreditamos que as duas ―visões‖ passam ao largo da problemática central, que é a
de buscar compreender o papel das inquisições na História da civilização cristã ocidental.
Essa mudança da expectativa que tem o pesquisador em relação à análise do tema leva a uma
modificação profunda na postura do cientista. As visões ―lendárias‖ garantem público,
alimentam a polêmica e fortalecem opiniões, egos e publicações. A nova visão sobre o tema
(revisionismo?) como todos os enfoques críticos que foram para livrarias e auditórios nos
anos recentes, irá encontrar a curiosidade e a expectativa do público em torno do debate sobre
o Tribunal.
O resultado destas voltas que o tema tem dado em torno de si mesmo, é que ficamos
restritos à soma de informações, pouco acrescentando ao conhecimento do Tribunal enquanto
agente histórico. Buscamos delimitar o nosso trabalho de maneira a tentar desfazer o nó
reducionista que leva os historiadores sempre de volta a uma das duas lendas: ou o Santo
Ofício fica caracterizado como obra do clero retrógrado ou como instituição ―natural‖ em sua
conjuntura histórica. Sugerimos ao leitor refazer conosco o caminho que escolhemos trilhar.
Por enquanto, o primeiro pensamento que nos vem à mente quando falamos em
Inquisição está, quase sempre, vinculado aos judeus e aos cristãos-novos. Parte da
historiografia desenvolveu este hábito: a ação inquisitorial fica restrita à questão judaica. Os
judaizantes foram realmente grandes vítimas do Tribunal e, ao contrário do que ocorreu com a
Inquisição espanhola, onde ―a perseguição massiva do judaísmo termina no início do século
XVI, mantendo-se depois como ‘crime‘ minoritário‖, em Portugal ―hoje sabe-se que cerca de
80% dos processos (...) dizem respeito a este ‘delito‘‖ (Bethencourt, in Centeno, p. 104). Se
levarmos em conta que vem de muito longe, no cristianismo, o escárnio contra os judeus,
vemos que a própria idéia de que cada judeu é um aldrabão disfarçado permanece forte entre
os povos cristãos e está, de uma forma ou de outra, presente em ondas intolerantes que geram
ódio contra os judeus até os dias de hoje. De tanto terem sido expulsos de uma lado para
outro, foi fácil para os adversários juntarem à noção de trapaçaria uma outra: de que cada
comunidade judaica era um punhado de bilhostres a serem expulsos ou expurgados na
primeira oportunidade. Ficou o judeu, então, como uma espécie de ―eterno estrangeiro‖.
Preconceitos idênticos foram usados contra outros grupos sociais, que vão nos
interessar mais detidamente. Basicamente, a justificativa exterior da intolerância inquisitorial
moderna, em Portugal, está no antijudaísmo, pois dentre todos os componentes intolerantes da
―tradição cultural cristã‖ este foi, sem dúvida, aquele que alavancou os demais, pelo menos
neste caso. A ―caça às bruxas‖, pertinente aos processos inquisitoriais que escolhemos
analisar, surge, devemos reconhecer, a reboque da ―caça aos judaizantes‖, tanto que seus
mitologemas só são plenamente perceptíveis no século XVI. Da mesma forma, se uma certa
34
concepção moderna de bruxa foi ―invenção‖ do clero – e muitos fatores levam a crer que foi –
o cristão-novo foi ―inventado‖ bem antes. Buscar tais primazias cronológicas, no entanto, é
apenas um exercício de análise histórica, mas não torna um grupo mais sofredor que outro.
É possível que existam, na História, exemplos de grupos que foram batizados com
uma alcunha e acabaram criando uma identidade derivada dela. Talvez os chamados
mamelucos, numerosos na colônia brasileira, sejam uma confirmação disto. O atrelamento
entre a alcunha e a repressão permitiu que Antônio Saraiva (1985, p.121) chamasse de
―fábrica de cristãos-novos‖ a própria Inquisição. Desta forma, o grupo cristão-novo jamais
existiu socialmente, tendo sido uma invenção da máquina inquisitorial (1). Tais grupos
consideravam-se judeus e, como tal, se reconheciam. A prática religiosa recôndita não passou
de uma estratégia de sobrevivência.
35
I. Sobel, presidente do Rabinato da Congregação Israelita Paulista, narrou assim este processo
histórico:
―Desde a era romana, muitos judeus tinham sido mercadores, uma ocupação
menosprezada nas sociedades agrícolas. Quando, porém, as Cruzadas abriram
novas rotas de comércio por toda a Europa e as atividades comerciais adquiriram
prestígio, muitos cristãos se apressaram a entrar no ramo e os judeus foram
forçados a sair. Neste mesmo período, a crescente hostilidade popular levou a
novas leis que proibiam os judeus de possuírem terra. As guildas de artesãos, que
estavam sendo organizadas, só admitiam cristãos. Assim, o único meio de vida que
restou aos judeus era o empréstimo de dinheiro a juros – a usura, como era então
chamada –, atividade proibida aos cristãos pela igreja. Ao realizarem operações de
empréstimo, os judeus enriqueceram e se tornaram ainda mais malvistos. Devido à
escassez de dinheiro, às incertezas inerentes à agricultura e aos grandes riscos do
comércio internacional, as taxas de juros eram forçosamente altas, resultando na
acusação de que os judeus eram exploradores que ‘sugavam o sangue cristão‘ ‖
(Sobel, 2000).
Talvez possamos admitir as Cruzadas como sendo o início de uma ação mais
sistemática contra os judeus. Tais ações sucediam antes, mas, naquele momento, os cruzados
atacaram no seu caminho para a Terra Santa quase todas as populações judaicas que
encontraram. O butim de tais batalhas era usado para financiar a marcha para o oriente. Em
Jerusalém os massacres se sucederam com aviltante expropriação de bens.
O primeiro grande ataque a uma judiaria (bairro judeu) parece ter ocorrido no século
XIV. Se pudermos encontrar a origem destas ondas intolerantes no século XIV, estaria por
36
certo no séquito de padres em torno de D. Leonor, mãe do rei Henrique III de Espanha. Partiu
daí, em 1391, a determinação de levar a população cristã a atacar o povo judeu. O massacre
veio com requintes de crueldade no dia 6 de junho, provocando assassinatos, ―justiçamentos‖,
estupros e.... fogueiras. Neste episódio, um grupo de judeus, pressionado pela turba, aceitou
ser batizado para não morrer. Teria surgido aí a denominação de ―nuevo cristiano‖, aquele
que aderiu há pouco – e sob pressão – à fé dominante, sendo duvidosa a sua conversão. Na
Alemanha, ainda em 1243, em Belitz, perto de Berlim, ―vários judeus e judias foram
queimados porque haviam sido acusados de ter cometido esse delito‖, qual seja o de
transpassar a hóstia e espalhar no chão o santo líquido do cálice (Delumeau, 1989, p. 293).
Em 1298, na Francônia, um caso de hóstia profanada leva um habitante de Rottingen a
levantar a população contra os judeus:
O ato de conversão abre dois importantes precedentes: (I) a partir dele já se poderia
impor ao converso a punição por erro de conduta religiosa, pois se tratava, agora, de um
católico, batizado na lei de Cristo, que devia obediência às leis da Igreja, que antes não se
aplicavam ao indivíduo enquanto judeu, membro de outra fé; (II) a comunidade judaica se
dividiu entre os que recusavam o batismo e preferiam morrer no martírio e os que anuíam à
imposição de uma fé alheia. O converso ficou ao alcance da Inquisição e os judeus
começaram a se acusar mutuamente de traição. O cristão-novo foi inventado para ser
perseguido e extorquido. Rapidamente, a alcunha passaria a ser aplicada indistintamente,
atingindo até pessoas que haviam nascido cristãs e que jamais tinham passado por alguma
conversão para reconhecer a autoridade católica.
37
Para o poder dos monarcas, a invenção dos cristãos-novos foi um grande negócio, já
que passaram a existir dois grupos a serem extorquidos. Para o poder da Igreja, cujo braço não
alcançava os judeus, os conversos eram campo aberto para o confisco de riqueza alheia. E
assim se fez. A ―base teológica‖ da perseguição foi buscada possivelmente em trechos da
Bíblia que teriam sido propositalmente interpretados neste sentido, dos quais destacamos os
seguintes:
―Se o teu irmão, filho de tua mãe ou teu filho ou tua filha, ou tua mulher que
repousa sobre o teu seio, ou o amigo a quem amas como à tua alma, te quiser
persuadir, dizendo-te em segredo: Vamos, e sirvamos a deuses estranhos (...), não
cedas ao que te diz, nem o ouças, nem teus olhos lhe perdoem (...), mas logo o
matarás; seja a tua mão a primeira sobre ele, e depois todo o povo lhe ponha a mão
(....)‖. ―Se ouvires alguns que dizem: Alguns filhos de Belial saíram do meio de ti,
e perverteram os habitantes da sua cidade, e disseram: Vamos e sirvamos aos
deuses estranhos, que vós não conheceis; informa-te com solicitude e diligência, e,
averiguada a verdade do fato, se achares ser certo o que se disse, e que,
efetivamente se cometeu uma tal abominação, imediatamente farás passar à espada
os habitantes daquela cidade, e destruí-la-ás com tudo que há nela, até aos gados.
Juntarás também no meio das suas praças todos os móveis que nela se
acharem, e queimá-los-ás juntamente com a cidade, de maneira que consumas
tudo em honra do Senhor teu Deus, e que seja um túmulo perpétuo, e não seja
mais reedificada, e não se te pegará às mãos nada deste anátema, para que o Senhor
aplaque a ira do seu furor, e se compadeça de ti (...)‖ (Deuteronômio, 13, 6-9 e 12-
17. Grifos nossos).
―E Balac, rei dos Moabitas, disse-lhe: Vem, e levar-te-ei a outro lugar, a ver se é do agrado
de Deus que tu de lá amaldiçoes o povo de Israel. E, depois de o ter levado ao cimo do monte Fogor,
que olha para o deserto, Balaão, o adivinho, disse-lhe: Levanta-me aqui sete altares, e prepara outros
tantos novilhos, e igual número de carneiros. Balac fez o que Balaão lhe dissera, e pôs um novilho e
um carneiro sobre cada altar‖ (Números, 23, 27 - 30).
38
(dizendo): Este é o caminho, andai por ele; e não declineis nem para a direita nem
para a esquerda‖ (Isaías, 30, 18 e 20 - 21. Grifo nosso).
A ―lenda negra‖ construiu seus argumentos partindo do sofrimento dos judeus, que acabamos
de resumir. Já a ―lenda branca‖ supõe poder contextualizar o Tribunal com análise tão
profunda que se tornaria capaz de justificá-lo. A intolerância católica não foi um processo
linear. Alguns papas até condenaram os excessos do Tribunal, que era na maior parte
independente da hierarquia da Igreja. O papa Sisto IV (1471-1484), por exemplo, condenou
os abusos do rei D. Fernando de Espanha contra os judeus, mas não retirou dele o título de
inquisidor-mor. Entre 1674 e 1681, o papa Clemente X suspendeu as atividades do Santo
Ofício em Portugal ao ler as Notícias recônditas do modo de proceder da Inquisição com os
seus presos (Lupina Freire, 1951), onde um ex-secretário do Tribunal, Pedro Lupina Freire,
denunciou as péssimas condições de carceragem e de trato dos réus, além de mostrar os
cerceamentos processuais impostos pelos inquisidores portugueses. Desde que o
protestantismo havia conquistado parte dos reinos europeus, os papas temiam pressionar os
monarcas para evitar ―perder‖ outro reino para a ―heresia luterana‖ ou similar. Por outro lado,
o direito inquisitorial, se estudado detidamente, apresenta abrandamentos nas punições
adotadas em relação a crimes semelhantes tratados pelo ―direito civil‖. A este respeito,
Francisco Bethencourt esclarece:
―A auto-legitimação do tribunal da fé na sua função de defesa da fé e da unidade da
igreja é reproduzida por diversos historiadores dos séculos XIX e XX com
objectivos de intervenção no debate político-religioso. Por sua vez, a crítica ao
tribunal como artifício ideológico e como instrumento de interesses sociais (ou
económicos), que já se encontra esboçada em numerosos testemunhos dos séculos
XVI e XVII, tendo assumido uma enorme importância no processo de
desestruturação da sociedade de Antigo Regime, contribuiu a longo prazo para uma
nova mitificação do tribunal, sobreavaliando o seu papel e as suas funções‖
(Bethencourt, in Centeno, 1993, p. 101).
As duas lendas se completam e sua análise só pode ocorrer com a noção deste
conjunto. Da disputa entre os que desejam condenar o Tribunal e alguns que querem absolvê-
lo, nasce uma historiografia marcada pelo comprometimento com posicionamentos alheios ao
estudo científico da História. É inevitável desqualificar esta noção negra de uma ―Inquisição
monstro‖, bem como a idéia branca de uma Inquisição ―em seu mundo‖, harmonizada com o
processo histórico e, portanto, justificável. Mesmo sem trabalhar a crítica historiográfica
como nossa preocupação central, notamos que, em relação à uma primeira ―corrente‖, passou
desapercebida a impossibilidade histórico-analítica de tudo que é tido como exótico ou fora de
propósito – como seria, por exemplo, um monstro; à outra faltou uma factível percepção do
39
conjunto da História. A nossa análise, ao fazer uso do conceito de Desmitologização de
Valores, busca antepor-se a uma certa vulgarização da visão iluminista da História.
―No caso do Peru, sabe-se que o vice-rei Lascal, um dos que mais combateu todos
os esforços pela independência do Peru e Bolívia frente à Espanha, não somente
era um leitor entusiasta destas obras supostamente proibidas, senão que, de sua
biblioteca, muitos dos líderes da independência peruana mais tarde, emprestaram
estes livros. Um caso extremo é o do Conselheiro da Inquisição, em cuja
biblioteca os livros da Ilustração francesa se encontravam e que eram
igualmente disponíveis para todo aquele que quisesse ter acesso a essas leituras‖
(Coggiola, 1990, p. 152. Grifo nosso).
A racionalização do mundo, tão cara à modernidade, contou, isto sim, com forte
influência da Igreja, inicialmente com o pensamento tomista. A Reforma Protestante nasceu
desta ―racionalização católica‖, inspiradora dos valores da Contra-Reforma. Esta, por sua vez,
buscou aprofundar a desmitologização de valores, adequando-se aos preceitos burgueses. Da
mesma forma, a Inquisição não foi uma ―imposição do clero regressista‖, mas um instrumento
racionalizador por excelência, como veremos na análise documental do capítulo terceiro.
40
esforço secularizador que pode chegar ao fim neste começo do século XXI, talvez com um
―renascimento‖ espiritual. As raízes mais distantes deste processo devem ser buscadas em
Gilbert Durand (1995), que será nosso guia nesta breve incursão ao passado da Cristandadade.
Do pensamento dele, captamos a composição do Tipo Ideal de Inquisidor Moderno, que
criamos para este trabalho. Para ele, que é mestre de grande parte dos Centros de Estudo do
Imaginário espalhados pelo mundo, a relação do cristianismo com a História é o centro de um
processo de afastamento da fé de sua mística original. Em A Fé do Sapateiro, Durand afirma
que a aproximação do clero católico com a História é um contra-senso:
―A liturgia cristã tem por missão fundamental contestar com o símbolo o tempo e a
história, em nome da Ressureição. Neste sentido, sua ação com o aparelho
simbólico de que se cerca não difere do ato constitutivo do ‘Eu‘, no curso da
individualização. A individualização é também uma vitória contra as disjunções, as
distrações, as dispersões temporais, inclusive os egoísmos e narcisismos. O mesmo
arsenal simbólico atua plenamente não só na liturgia cristã, contestando a morte,
como nas cerimônias iniciáticas de muitas outras religiões (...)‖ (Durand, 1995, p.
47).
Neste contexto, repetido ainda muito mais nos dias de hoje, em todos os
templos católicos, acredita-se num Deus que só tem sentido ao ―agir na
história, ao revelar-se nela‖. Há um ―fastidioso processo do aggiornamento
historicista, positivista e socializante que (...) reduz o divino a uma
epistemologia, para não dizer uma superstição, inteiramente humanista, a
da história‖ (Durand, 1995, p. 58). Cristo e sua religião – ou qualquer outra
– só possuem sentido próprio fora da História.
A ilusão reside em crer num Cristo que ―precisou‖ da História, fez-se homem para
ser compreendido. Sem a Providência Divina, o mundo cristão perde sentido: ―a história não
passa de um fantasma dos impulsos que movem o homem‖(Durand, 1995, p. 18). Hoje,
quando a desmitologização parece chegar ao seu ápice, pode ser surpreendente, à primeira
vista, o posicionamento científico durandiano. Talvez Max Weber o definisse como uma
41
tentativa de reencantamento do mundo, contra o medo que tem a cultura cristã de morrer de
desencantamento. A difícil compreensão poderia recobrir-se de certa estranheza, se o próprio
Durand não a tivesse respondido com uma fórmula pragmática apontando como ter uma
experiência simbólica, nos dias de hoje, marcados por uma inflação diária de imagens sem
controle ou significado claro. Num texto publicado em 1967, numa revista de formação
doutrinária cristã (Lumière et Vie), ele responde à questão da experiência simbólica hoje,
propondo que aquele que a desejar terá que fazer três recusas. A terceira delas, segundo ele, é
―a mais importante, a mais essencial para uma experiência simbólica autêntica‖ (Durand,
1995, p.41).
―(...) essa bifurcação catastrófica teria ocorrido desde a opção de Averroes pela
escolástica ocidental, contra Avicena. Vale a pena precisar: foi o magistério da
Igreja que impôs a recusa de um intermediário ‗psíquico‘ – ou melhor, ‗psicóide‘,
como diria Jung – entre o mundo acima da natureza, das idéias, e a natureza
humana. Para retomar uma linguagem dionisíaca, diríamos que foram as
hierarquias eclesiásticas que apagaram as hierarquias celestes. Estas últimas,
conforme Henry Corbin, formam um mundo ‗à parte‘, que não é nem o da fisis
nem o das puras intelectividades; um mundo precisamente ‗visionário‘, onde os
inteligíveis adquirem um corpo e os corpos se espiritualizam‖ (Gilbert Durand,
1995, p. 84).
42
agentes do desencantamento modernizador do mundo. Este tipo ideal que propomos apresenta
uma inovação em relação à noção weberiana clássica. Aqui, admitimos que a atuação das
incidências históricas, sociais e culturais (ver Durand, 1982, p. 59) dá-se no tempo longo e
pode promover inovações e substituições valorativas que, no entanto, permanecem dentro do
mesmo tipo ideal e referem-se ao mesmo ―contexto histórico‖. As componentes valorativas
deste tipo ideal estão apresentadas a seguir. As siglas colocadas após a denominação de cada
componente servirão, adiante, para a elaboração do quadro explicativo do tipo ideal.
43
A cultura se constrói sobre a concepção que se tem da morte. ―Cultura é, para
Weber, certamente, a capacidade especificamente humana de colocar a morte na fileira dos
mais significativos acontecimentos da vida‖ (Diehl, 1996, p. 134). O orgulho investigativo
dos inquisidores, de origem medieval, está no próprio significado da palavra inquisição. Nele,
apresenta-se com anterioridade uma prática jurídica cara aos juízes contemporâneos do
Ocidente, que é privilegiar a prova diante dos indícios, ou seja, compor os autos do processo
com a ―verdade‖ factual (2). Este valor de tipo ideal também poderia ser denominado como
ato racional-investigativo.
3-A Abjuração do Medo pela Imanência (AMI). Num processo que atingiu a
cultura cristã como um todo, a Inquisição venceu a era do medo (ver Delumeau, 1989) com o
conhecimento imanente do místico, desmistificando-o pela árvore do conhecimento. Após a
superação do medo sobreveio o desprezo pelo místico, numa expectativa tipicamente
iluminista de ser possível explicar o mundo desvendando-o na descoberta da regularidade de
suas leis. Quando uma componente cultural – o medo, neste caso – já não promove a sensação
de enfrentamento ou compreensão/aceitação da morte, torna-se sublimável para a cultura. O
clero, marcado pelo medo obsidional de tantos séculos, percebeu esta Abjuração como um
enfraquecimento da ortodoxia católica presente no Ascetismo Tradicional (descrito acima, na
primeira componente), mas a introjetou como um ―sinal dos tempos‖. Isto explica porque no
esquema que se apresentará no Quadro 1, estas duas componentes valorativas se excluem (a
ascensão de AMI é a superação/substituição de ACT).
44
perseguidos (5). Esta sobrevalorização do clero é componente de toda a hierarquização
religiosa. Em A Economia das Trocas Simbólicas, Pierre Bourdieu ressalta:
―É necessário que a profecia morra enquanto tal, isto é, como mensagem de ruptura
com a rotina e de contestação da ordem ordinária, para sobreviver no corpo
doutrinal do sacerdócio, moeda cotidiana do capital original de carisma (...)‖
(Bourdieu, 1992, p. 90).
Os valores do tipo ideal estão, assim, no tempo histórico. Isto lança um problema
para sua caracterização metodológica, pois a consolidação dos mesmos respeita o tempo, só se
dando em plenitude do século XVII para o XVIII, quando ficou composta sua ―constelação‖.
Aceitamos, então, que este tipo pode ser analisado na presença de três dos quatro valores, que
são suficientes para elucidá-lo, desde que um deles seja o Ascetismo Católico Tradicional.
O tipo ideal que demonstramos está implícito em todo este trabalho. Fontes
documentais que inspiraram a elaboração e delimitação dos valores aparecerão citadas ao
longo deste livro. Se apresentássemos este tipo em suas componentes superficiais, teríamos,
aproximadamente, as seguintes noções inspiradas nas idéias de raiz do cristianismo e na
atuação inquisitorial: busca da unidade de todos os homens em Cristo; moralização da vida
cotidiana; combate às heresias; cristianização/evangelização e progressivo desprezo pelos
mitos.
45
inclusive na análise documental. O tipo ideal é uma abstração teórico-metodológica que
permite aproximar o dado histórico através de comparações reflexivas. A construção deste
tipo ideal que acabamos de expor foi possível graças à nossa experiência e conhecimento do
tema.
46
―unem‖ em constelações, para usar um termo presente em Weber e Durand; c) a análise não
atribuiu hierarquia entre as componentes valorativas do tipo ideal apresentado, mas constatou
a atribuição hierárquica ―determinada‖ pelo próprio objeto; d) os valores não surgem nem
desaparecem, pois os mitologemas constituidores são universais e podem permitir a ascensão
de componentes semelhantes em outros períodos históricos. Assim, quando o ACT
―desaparece‖ nas curvas dos séculos XVII, XVIII e XIX, não significa que ele deixou de
existir, mas que teve seu valor diminuído pela ―evolução‖ da mentalidade inquisitorial.
Por outro lado, entendemos que a Desmitologização de Valores é uma das faces do
percurso histórico que transformou a cultura ocidental num ente secularizador e, como diria
Weber (1992, p. 439), desencantado. Este conceito é nossa contribuição para desvendar o
processo geral de intelectualização da cultura em sua especificidade dentro dos cárceres
inquisitoriais. Trata-se de conceito singular para o estudo da Inquisição Moderna, posto que,
nela, – por toda parte – houve um progressivo exílio ou afastamento do imaginário, que veio a
ser considerado fantasioso e ilusório. Também a nossa própria disciplina foi criada no mesmo
ambiente intelectualizante que permitiu a sistematização de todas as ciências. Admitimos a
validade histórica da concepção que vincula o próprio processo que engendrou o saber
científico ao período que marca o advento da intolerância inquisitorial.
47
capítulo terceiro, como narrativas que, somadas às narrativas regimentais, representam o
imaginário da Inquisição em sua face medo de bruxa.
48
O esforço desmitologizador tentou engessar os mitos e seu significado transcendente.
A História da desmitologização nos leva de volta ao período em que a Igreja aliou -se a
Constantino e Teodósio. As conseqüências políticas e teológicas levaram a uma inclinação da
cristandade para formas ―distanciadas‖ dos seus próprios mitos fundadores. Tentativas de
(re)mitologização resultaram em movimentos internos que buscavam compensar a influência
de uma divindade ―secularizada‖, onde um aspecto místico aparece escamoteado pelos
símbolos imanentes do exercício do poder temporal.
―A Igreja – que foi assumindo e pondo a seu serviço a filosofia grega, a ascese e a
moral estóicas, alguns ritos e festas pagãs – agarrou-se depois ao braço secular,
à força da espada e dos decretos imperiais (Grifo nosso).
49
o estudo de outros procedimentos inquisitoriais, mesmo ocorridos em outras nações européias.
Até nas nações onde não existiu o Tribunal, mas onde o Estado tomou para si a ação
inquisitorial, como na França, talvez seja possível obter bons resultados científicos com base
no conceito exposto.
50
Para uma primeira aproximação do tema, vemos que é preciso nos advertir a nós
mesmos quanto a uma armadilha que denominamos de ―História das obviedades‖, onde reside
aquela visão mecanicista do papel que a Inquisição representou para a evolução do processo
histórico. Por razões que se desenharão ao longo da leitura dos capítulos deste livro, vamos
desautorizar, a priori, alguns ―conceitos usuais‖ sobre o Tribunal do Santo Ofício e a
conjuntura histórica que o cercou, quais sejam: a) - O Tribunal teria sido o instrumento de
resistência de uma Igreja Católica atrasada que havia perdido o ―bonde da História‖ por causa
do advento do Mundo Moderno; b) o ato inquisitorial seria exclusivamente uma forma de
encobrir interesses outros, como o confisco de bens e as pressões da nobreza contra a
burguesia em ascensão; c) a Idade Moderna fora um período de grande esplendor cultural e
artístico, com o advento do Renascimento e com os ares renovadores da Reforma Protestante.
Ao contrário do que às vezes ocorre quando se analisa o Tribunal, tais idéias não serão aceitas
aqui como inquestionáveis.
Enquanto objeto de estudo da História, o tema Santa Inquisição vem sendo mal
compreendido e mal abordado, numa concepção reducionista com a qual buscamos romper.
Sendo assim, ao recolocar o olhar sobre o objeto, estamos reformulando o modelo com o qual
geralmente trabalha a historiografia que tem se dedicado ao assunto. A História sustenta ainda
fortemente o modelo mecanicista do mundo. A ciência que deu sustentação a esta antiga
concepção foi a Física, mas já a abandonou em seus centros mais avançados. É nas ciências
humanas que tal concepção ainda resiste. A ―História dos historiadores‖ é, quase sempre, uma
busca de sentidos ―naturais‖ para explicar o homem em sociedade.
51
seria o pulso do processo. Este modelo evolucionista da ciência histórica tem a pretensão de
tocar num ponto crucial da concepção de vida do homem contemporâneo: a dissimulação da
morte. Daí, a força que tem tido a ilusão evolucionista. É noção que vem do Iluminismo, mas
que está magistralmente elucidada por Max Weber. O mestre alemão a vinculou à idéia de
desencantamento do mundo, segundo a qual há um processo de crescente intelectualização da
vida. Após conjecturar sobre a imponderabilidade da vida financeira de um cidadão ocidental,
Weber, em um dos seus escritos mais importantes, esclareceu:
52
Esta temática interessa duplamente ao leitor deste trabalho. Além de servir para o
posicionamento teórico-metodológico, é indispensável para a compreensão do conceito de
desmitologização, sobre o qual se construiu nossa argumentação. No decorrer deste capítulo,
a intersecção ficará evidenciada. Dialeticamente, para explicar o processo desmitologizador,
precisamos de um cenário teórico que beba numa tradição não evolucionista e não
racionalista, daí a utilização e a junção das obras de Weber (1983 e 1992) e de Durand (1980
e 1995).
Sistematizando o tema, Kant elaborou oito proposições para sua demonstração. Delas
destacamos o projeto histórico ao qual se atribuiu a esperança de uma constituição política
perfeita de inspiração iluminista (Aufklärung), onde os homens teriam que conquistar a
felicidade, impossível na nossa condição natural. A Ciência da História vem inebriada pelo
papel de objetivadora deste projeto. Seguindo esta linha de raciocínio, a História deveria ser
capaz de indicar uma ordem social melhor e estaria, então, forçosamente levada a aquilatar o
nível de justeza e correção das sociedades humanas sobre as quais se debruça para análise. O
estudo de temas fortes como o Tribunal do Santo Ofício fica bastante comprometido por um
posicionamento baseado nestes princípios, já que o historiador julga conhecer o futuro e,
portanto, saberia o que é preciso estirpar ou manter para realizar tal objetivo escatológico
mais rapidamente.
O grande entrave para realizar o projeto histórico seria o próprio homem, em geral,
movido por desejos de autoproteção, pela ganância e pela cobiça. Isto levou Kant a uma outra
constatação importante: a liberdade humana é a liberdade de vivenciar os antagonismos.
Como as árvores, que disputam o direito de ter o sol batendo em suas copas superando-se
umas às outras em tamanho e força, os homens tornar-se-iam melhores e mais fortes à medida
que são impelidos pelo desejo de superar os demais.
53
Temos, então, os dois pilares da ―História dos historiadores‖: a)- trata-se de um saber
que tem uma missão para a humanidade, qual seja, a de realizar o ―projeto histórico‖ e b)- a
essência da vida em sociedade seria o antagonismo, a competição e o conflito entre os
homens. Podemos resumir assim os princípios que norteiam este modelo:
3- Uma nova ordem surgirá dos conflitos entre os homens e será uma ordem melhor.
4- Há uma teleologia da Natureza agindo nas transformações do mundo.
5- O historiador deduziria, do seu saber, valores éticos e morais, fundantes da nova ordem.
Com Michel Maffesoli (1988), vemos o esgotamento do que ele chamou de saber
paranóico. Maffesoli define a paranóia como uma busca obsessiva da grandeza desmedida, do
domínio do mundo e da explicação do todo. É uma metáfora com o próprio cientificismo, que
reivindica para si uma situação de superioridade. A este saber paranóico opor-se-á um outro
igualmente científico: a postura metanóica, que insiste ―na natureza, no sentimento, no
orgânico e na imaginação‖ (Maffesoli, 1988, p. 22). Max Weber já admitira que o desafio é
romper com o mecanicismo sem sair da seara científica, ou seja, continuando a buscar um
saber universalmente aceito. Para isso, é também preciso evitar ―uma idéia muito difundida
de que a ciência se tornou um problema de aritmética, que se realiza em laboratórios ou em
gabinetes de estatística, não pela ‗pessoa total‘, mas por uma razão fria e calculista, como algo
produzido numa fábrica‖ (Weber, 1992, p. 436).
Mesmo sem ainda dispormos de um novo modelo teórico próprio para redirecionar
plenamente o fazer da ciência histórica, sabemos já ser possível refazer a imagem do objeto
de estudo, abandonando conceitos comprometidos com o paradigma anterior e
redimensionando criticamente os diversos componentes disponíveis para a análise. Há uma
intuição imemorial da História, que é base para um outro paradigma. Grande parte das
sociedades humanas consolidam-se nesta intuição de unidade que tem nos laços do passado
conhecido apenas uma componente mais ―visível‖ aos olhos do cientista. Componentes
54
outras, presentes na linguagem, no imaginário e nas teofanias, estão fora de preocupações
usuais da História. Contudo, estas facetas aflorarão cada vez mais com o aprofundamento da
crise do cientificismo e sua substituição por um novo paradigma.
Além deste contexto ético, é preciso discernir o contexto histórico, pois há um tema
―delicado‖ que deve ser abordado: o significado do sofrimento humano. É certo que há uma
busca incessante da universalidade do saber científico para a compreensão do sofrimento.
Inegável, porém, é sua contextualização. Por exemplo: o século XX viu nascer conquistas
médicas que diminuem a dor física de forma impensável anteriormente. Esta conquista
tecnológica repercutiu diretamente no cotidiano dos ocidentais, que passaram a recusar
sofrimentos provenientes da dor, antes vistos como normais e inevitáveis. Por mais estranho
55
que possa parecer, algo semelhante ocorreu com as penas que o sistema judicial aplicava.
Contextualizar – não se diz justificar – é papel do historiador, que enriquece a análise e resulta
em honestidade científica. No capítulo II, voltaremos detalhadamente ao tema.
O homem do medievo convivia com situações onde a dor era vista com muito maior
naturalidade que em nossa sociedade do limiar entre os séculos XX e XXI. Claro que isso não
o tornaria mais condescendente em sofrer tais sensações só por desconhecer técnicas
modernas, como a anestesia e o laser (8). Há uma determinante universal inata, que aflora
quando da vitimização de um réu, por ação intolerante, em qualquer sociedade humana,
tornando-o digno da solidariedade alheia, segundo valores humanistas. Não há um quadro
valorativo que seja cultural e historicamente possível em que uma sociedade humana
aceitasse, de forma absoluta, a opressão e a conduta repressora danosa. Um ―totalitarismo‖,
para ser digno do significado ontológico da palavra, só é possível no ―laboratório‖ idealizador
das Ciências Sociais. No mundo vivido (Lebenswelt) permanece o espaço para a crítica e para
a revolta contra o opressor. Em função disto, há também, dialeticamente, o contrário da
atitude opressiva: valores éticos universais e atemporais de defesa da vida humana,
considerados válidos pela cultura ocidental a que pertencemos.
56
deste com a História da Inquisição. A ponte entre estas duas preocupações é a noção de
desmitologização, desenvolvida neste capítulo. Esta aproximação paradigmática é valiosa ao
demonstrar que, na origem do cientificismo, estão conceitos que inspiram processos
intolerantes. Isto permite recompor a relação conceitual entre dois temas aparentemente
conflitantes: Inquisição e Mundo Moderno.
A Inquisição não foi uma ―vontade do clero‖ contra a tendência geral da História,
mas enraiza-se na demonologia, na desmitologização, no desencantamento e até no
absolutismo. A perseguição às práticas mágicas é uma forma muito eficiente de impor a nova
ordem centralizada sobre os mais diversos grupos sociais. O absolutismo necessita introduzir
sua autoridade sobre o cotidiano das pessoas. Esta relação entre a Inquisição e o Direito
Divino precisa ser melhor explorada em análise histórica futura.
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Num período de rupturas e de transição como a Idade Moderna, a Santa Inquisição
pareceria uma teimosa continuidade, um ente permanente, que transmite a falsa aparência de
estagnação. Este alegado contraste com o ―tempo histórico‖ é a base argumentativa da lenda
negra. Vincula-se aí, quase inconscientemente, uma vaga noção escatológica de ―rupturas
que teriam propiciado à humanidade um futuro melhor‖. Neste sentido, somos todos,
queiramos ou não, marcados por um simplismo que vinculou longamente a idéia de fé com a
de alienação, bem como a idéia de razão com a de instrução/libertação. Deste simplismo,
passa-se para o falso dualismo Inquisição X Modernidade. Propomos substituí-lo por noções
agregadas a um dualismo universal e atemporal: imanência X transcendência. Ou, para
explicitar melhor o nosso caminho, proporíamos esta noção dual: desmitologização X
imaginário, onde a desmitologização estaria vinculada ao extremo impulso racionalizador que
busca negar toda e qualquer ―abstração do real‖, seja transcendente ou simbólica ou ambas as
coisas. Correndo-se um calculado risco redutor, imaginamos os dois últimos modelos
opositores como formas didáticas para se inserir o tema da nostalgia do mito.
58
desmitologização das culpas, que passaram de algo que inspira medo (século XVI) para algo
que inspira desprezo (século XVIII).
59
transformar ao mesmo tempo os estigmas visíveis (...) em sinais anunciadores da eleição
religiosa‖ (Bourdieu, 1992, p. 86). No final do século XVII e ao longo do século XVIII, o
Tribunal português – possivelmente também o espanhol – já não vivenciava qualquer
experiência simbólica qualitativa. É possível que tenha chegado a abster-se totalmente dos
seus símbolos e imagens inspiradoras, como podemos deduzir do processo de um prisioneiro
oitocentista que analisaremos adiante. No episódio do terremoto de Lisboa, os inquisidores
lusitanos podem ter vivido a última tentativa de recriação simbólica, prendendo e queimando
Gabriel Malagrida e o Cavaleiro de Oliveira (este último em efígie) numa inversão curiosa; os
réus eram acusados de terem atribuído o fenômeno do terremoto à fúria divina, quando – para
o Tribunal – tratara-se de um fenômeno natural.
A perda do paradigma fundante pode estar ligada à ascensão de uma certa corrente
teológica dentro da Igreja. Neste longo percurso de desencantamento e desmitologização, a
Inquisição bebeu da poderosa fonte tomista. Para se ter uma idéia da influência do
pensamento de Tomás de Aquino, buscamos o trecho de uma palestra de um seu seguidor
brasileiro, o jesuíta Francisco Fraga, proferida em 1747 no Colégio do Rio de Janeiro. Entre
suas conclusões metafísicas, há uma que ilustra bem a luta entre o místico e o imanente – ou
natural, no dizer da época – e que se intitula O Ser Divino enquanto considerado pela razão
natural, onde o religioso afirma:
Tentando conciliar a mística católica com uma visão ―natural‖ e racional do mundo,
o tomismo, da mesma forma que a Inquisição Moderna, favoreceu a consolidação das
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―hierarquias terrenas‖ – o clero – em detrimento das ―hierarquias celestes‖. O afastamento do
místico levou a um atribulado sentimento de nostalgia. A influência tomista auxilia-nos a
visualizar a desmitologização em sua faceta intolerante. Como estamos analisando um tema
da Idade Moderna, todo um pejo de preconceitos evolucionistas aflora para sustentar a idéia
mecanicista de que o moderno e, depois, a própria modernidade, teriam sido uma ―oposição‖
às trevas da fé. Vemos, entretanto, que a desmitologização modernizadora foi, ela mesma,
associada a diversas formas de intolerância, inclusive a Inquisição. Moderno e intolerante são
adjetivos muitas vezes confluentes.
Por outro lado, neste mesmo período, a Igreja conviveu com a manutenção de uma
tradição mística que se expressou na vida exemplar dos amigos João da Cruz e Tereza, do
século XVI. João participou da fundação da ordem dos carmelitas descalços e escreveu
famosos poemas místicos. Tereza, que foi carmelita, teve uma vida atribulada, mas fundou
dezenas de conventos, onde a vida pobre devia se prolongar com uma atividade de preces
mentais diárias. As freiras e os frades descalços tiveram forte resistência dos ―calçados‖ antes
de se firmar a divisão em dois ramos da mesma ordem. A própria divisão, aliás, é significativa
do papel secundário a que ficaram relegados os místicos católicos. Curioso notar que a vida
dos católicos místicos costuma acompanhar-se de uma opção pela pobreza, recusando-se,
assim, indiretamente, a aproximação da Igreja com o poder mundano.
Toda uma tradição epifânica foi sendo deixada de lado em troca de um hábito
racionalista da fé. O maior interesse neste processo nasce da própria hierarquia clerical, que
mantém forte controle da ortodoxia no ambiente intelectualizado do tomismo ou de formas
outras de desmitologização. Quando a fé tem inspiração mística, torna-se difícil impor
hierarquias rígidas num cotidiano que pode tornar-se pouco disciplinável. Um exemplo destes
saltos desmistificadores está na própria descrença em bruxas. A bruxa é uma inversão do culto
mariano: é a Virgem Maria às avessas! De forma semelhante, o sabat é a Missa invertida. Ao
recusar e desprezar o feitiço, o inquisidor está desqualificando a componente oposta deste
jogo dialético que vem a ser a própria fé católica. Desprezar a bruxa implica, por exemplo,
desprezar Maria, sua oponente. O fracasso da análise demolidora que faz a ―lenda negra‖ da
61
historiografia inquisitorial pode estar exatamente em não ter percebido esta
complementaridade.
********
A Igreja foi lentamente abandonando o seu lado místico ainda na Idade Média,
talvez pela influência tomista-aristotélica já citada. Mas foi com a contra-reforma que esta
tendência hegemonizou em definitivo o mundo católico. Como já vimos, isto não significa
que se tenha abandonado o enriquecimento simbólico. Pelo contrário: os símbolos de poder,
presentes no ritualismo que passamos a analisar agora, foram especialmente desenvolvidos
pela Inquisição Moderna.
62
final do século XV e o século XVI, toda a circunstância foi estabelecida como forma de fazer
obedecer, pelas autoridades locais, a determinação régia que estava apoiada em bula papal.
O conselho geral do Santo Ofício era composto por três a sete membros, dependendo
do período. Vinham logo abaixo na hierarquia os componentes de tribunais de distrito, com
dois ou três inquisidores no topo de cada um. Tais inquisidores de distrito estavam à frente de
uma estrutura burocrática que controlava a rede local (Bethencourt, 1994, p. 22). Na colônia
brasileira o agente polarizador era a figura do comissário, posto que aqui não havia Tribunal
local (Siqueira, 1978, p. 79). As visitas, então, revestiram-se de grande importância na
colônia, apesar de terem sido em pequeno número pelo que sabemos até agora. Ainda assim, o
Pe. Giraldo Abranches enfrentou forte desgaste no Pará durante a Visitação de 1763/1769,
pois, segundo Amaral Lapa, ―(...) a presença do Santo Ofício acaba entrando para a rotina
da vida paraense‖ (Lapa, 1978, p. 64).
O estabelecimento do Tribunal não foi consensual nem ficou distante dos conflitos.
O clero e a nobreza estabeleceram várias formas de resistência. A nobreza temia a perda de
poder e a disputa simbólica com o novo ente que poderia ganhar mais força no
aprofundamento do absolutismo. A imensa porção do clero católico que permaneceu fora da
Inquisição temia perder sua exclusividade sobre dogmas e sacramentos. Destes conflitos
surgiu a necessidade da ―(...) protecção activa da Coroa‖ e do ―(...) apoio dos outros poderes
imposto pela intervenção do rei (apoio que não significava, obviamente, a ausência de
conflitos)‖ (Bethencourt, 1994, p. 28). Os conflitos formaram uma tradição no Tribunal.
Havia muitos interesses em jogo: conflitos externos somente concorriam com aqueles que
aconteciam intramuros. O historiador A. S. Tuberville, que vimos ser ligado à ―lenda
branca‖, analisando a Inquisição espanhola escreveu:
63
―Por trás do inquisidor-geral e do Conselho da Inquisição estava a monarquia de
Espanha e a Cúria. Fernando foi o verdadeiro criador da moderna Inquisição
espanhola, ele é que lhe concedeu o seu aspecto nacional característico.‖ (...) ―Para
inquisidores só seriam nomeados indivíduos que fossem pessoas de sua confiança.
(...)
A contrapropaganda, porém, não venceu o tempo: nos dias de hoje, já ninguém mais
se refere aos mártires como forma de justificar a Inquisição. O Dicionário dos Santos, de
Donald Attwater (s/d), estranhamente, não se refere a este Pedro inquisidor (!). A imagem de
São Pedro Mártir que aparece na figura a seguir (Figuras 1 e 1a) está no Museu do Prado e
representa todos os seus componentes simbólicos: uma faca enterrada na cabeça, uma espada
que rasga o peito, a palma do martírio na mão esquerda e um livro – o Credo – sustentado
pela mão direita. As três coroas em volta da palma representariam a castidade, os predicativos
de Pedro e o seu martírio. O cabelo está tonsurado e há roupa de seda sob o elegante hábito
dominicano.
64
o dominicano exercia o cargo de Inquisidor Geral de Milão por nomeação papal. Conta-se
que, ao ver-se ferido de morte, ainda teria ele escrito no chão com seu próprio sangue: ―creio
em Deus‖. A morte de Pedro está na base de uma das mais importantes instituições da
Inquisição: os familiares. O incentivo para que os inquisidores investissem como auxiliares
seus, os clérigos e civis de confiança, iniciou-se em 1254, dois anos após o assassinato do
dominicano e um ano após sua canonização (Bethencourt, 1994, p. 89). Aliás, segundo Gredo
G. Merlo, a canonização de Pedro foi um processo muito rápido: assassinado em 6 de abril de
1252, já em 31 de abril teve a abertura do processo de santificação. Em 9 de março de 1253
foi proclamado santo com o nome de Pedro Mártir (nome original: Pedro de Verona).
―O Senhor lhe disse: ‘Passa pelo meio da cidade, pelo meio de Jerusalém; faze uma
marca na fronte dos homens que gemem e se lamentam por causa de todas as
abominações que se cometem no meio dela‘. Depois eu o ouvi dizer aos outros:
‘Passai à cidade no encalço dele e feri; que vossos olhos sejam sem compaixão e
vós, sem piedade. Velhos, moços e moças, crianças e mulheres, vós os matareis até
o extermínio; mas não vos aproximeis de quem tiver a marca‖ (Ezequiel, 9.4-6).
O incremento de confrarias pode ter sido uma reação dos inquisidores a estas vitórias
dos cristãos-novos e este crescimento coincide com o início do fortalecimento valorativo que
atribuímos ao Tipo Ideal de Inquisidor Moderno. De forma semelhante, no século XVIII,
quando se enfraquece o elo de ligação entre os familiares – pois o interesse da sociedade por
esta honraria foi diminuindo – o valor do tipo ideal entra igualmente em queda. Trata-se,
65
então, de uma entidade importantíssima, ainda que seus membros não fossem remunerados,
para a sobrevivência da Inquisição. A sua vitalidade veio do mártir fundador, eficiente
contrapropaganda num momento em que a autoridade real parecia mais pragmática para
assuntos de orçamento e menos ortodoxa na defesa da fé católica. O rei podia tomar decisões
que desagradavam inquisidores e conselheiros. Em Portugal, o poder real sobre o Tribunal era
ainda maior que na Espanha. O simbolismo inquisitorial, que guardava muitas semelhanças
com o absolutismo monárquico, revestia-se de maior importância quando os ―homens da fé‖
viam-se forçosamente impelidos a demonstrações de força diante da corte.
66
tribunal, encontrando um pretexto para reorientar os critérios de recrutamento
(―autorizar o ―Santo Ofício‖‖ é o novo slogan), ao mesmo tempo que se propõem
resolver a indisciplina interna e externa através da criação de um mecanismo de
controlo suplementar (os inquisidores são sempre designados como os fundadores
das confrarias, aos quais todos devem obediência)‖.
― ‘A feiticeira sobre sua fogueira não é nem a revoltada social que imaginava
Michelet nem a sacerdotisa inspirada de um culto secreto de fecundidade nem a
serva consciente e devotada do diabo. Ela é somente a vítima expiatória de um
afrontamento entre a modernidade conquistadora e a resistência camponesa‘ ‖ (in
Lopes, 1997, p. 70).
―‘a árvore não deve ocultar a floresta: menos religiosa que política, a caça às
feiticeiras não é senão uma pedra entre outras na obra de desencravamento dos
campos. A feiticeira cede seu lugar central ao padre. A vingança privada recua
diante da ordem pública. Os poderes exteriores progridem em direção ao centro da
aldeia ‘‖ (in Lopes, 1997, p. 71).
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Mesmo que tal argumentação fique presa à superficialidade de uma concepção
simplória dos fenômenos históricos – sem descer ao campo profundo dos valores –, acaba por
apresentar duas idéias interessantes que estão inter-relacionadas: a relação da modernidade
com a intolerância e a supressão da vingança privada graças aos processos inquisitoriais. A
Inquisição – ou inquisições, como aponta Bethencourt –, em sua fase medieval, não poderia
ter vivenciado este cenário. Da mesma forma que a modernização/desmitologização
modificou a idéia de bruxa que se tinha, os mártires também perderam um certo encanto e
passaram por um processo de instrumentalização. Há um reaproveitamento
caracteristicamente moderno dos mártires fundadores.
Tanto Pedro Mártir quanto Pedro de Arbués são instrumentos, também, da réplica
católica contra a argumentação dos protestantes que questionavam a matança de hereges nas
fogueiras inquisitoriais. Mesmo que processos inquisitoriais tenham ocorrido, também, nos
países reformados, o vulto da crítica ergueu-se em mão única: dos protestantes contra os
católicos. A busca da legitimação do Tribunal foi constante, mas aparenta ter-se aprofundado
quando do esvaziamento do significado vanguardista do termo inquisição . A sistematização
de argumentos em favor do Tribunal alcançou uma boa repercussão, tanto que, ainda hoje,
engendra o combate da ―lenda negra‖.
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encenada nos menores actos da instituição, desde a cerimónia da capela, realizada
cada manhã antes das sessões de interrogatório, até aos autos-de-fé mais solenes.
(...) A utilidade (ou melhor, a necessidade) do tribunal é evidente para os
inquisidores: sem eles toda a cristandade teria sido ―infectada‖ e o mundo seria
dominado pelo demónio. A utilidade social e política do tribunal é igualmente clara
para os seus membros: a heresia perverte os costumes e a sociedade, provoca a
inquietação e a perturbação das consciências, estimula a desobediência e a
rebelião‖ (Bethencourt, 1994, p. 308. Grifo nosso).
69
de milagres, foi consagrado ainda mais pele exposição dos sambenitos dos
culpados e das respectivas espadas‖ (Bethencourt, 1994, p. 93).
70
Podemos resumir a assertiva assim: o Santo Ofício propunha um deslocamento
místico para as expectativas pessoais e grupais (curas, casamentos, boas colheitas, etc.), que
se deslocariam de ortodoxias outras (judaica, protestante e moura, principalmente) e das
práticas mágicas (feitiçaria) para a ortodoxia católica. Daí propormos a noção de ascese
dentro do primeiro valor do Tipo Ideal de Inquisidor Moderno. O instrumento principal deste
deslocamento não foi, claro, o beato Pedro de Arbués. O papel precisava de uma instituição
que pudesse ser aceita e vivenciada em qualquer local. O auto-de-fé, com seu movimento
teatral e com sua estética escatológica, representou o alargamento e o controle momentâneo
do Tribunal sobre o espaço público:
―No início, o auto realizava-se durante a semana, sem uma sincronia clara com o
calendário religioso. O excepcional era procurado não apenas nas características da
cerimônia, mas também no tempo de celebração, pois o inquisidor impunha um dia
feriado com assistência obrigatória. Posteriormente, com a normalização e o
enraizamento do rito, constata-se um esforço para fazer coincidir o dia da
cerimônia com um domingo, cuja excepcionalidade é criada por uma série de
interditos: os padres da cidade não podiam celebrar missas cantadas, os sermões
não eram permitidos e as pessoas não podiam circular com armas nem ser
transportadas por cavalos, sendo toda a cidade colocada sob o controle da
Inquisição para a organização do espetáculo de fé‖ (Bethencourt, 2000, p.228).
Devemos somar este predomínio cíclico sobre a praça pública à presença dos
olheiros do Tribunal no cotidiano das comunidades. (Aliás, qualquer um poderia tornar-se um
destes olheiros, posto que a Inquisição aceitava denúncias de todos os reinóis.) O domínio do
espaço e a presença cotidiana tornaram o Tribunal, pelo menos num certo período, uma das
instituições fundantes, similar ao Estado, à família e à própria Igreja. O fundamento fundante
– para tomar emprestado o termo da Antropologia do Imaginário – irradia-se, neste caso,
graças ao inverso da moderna alteridade. Ou seja, o espectador que busca enraizar em sua
própria alma os valores desta ascese católica tradicional o faz para não ser o outro ou para
não tornar-se nem ser confundido com um herege. Esta alteridade invertida – ou
―desalteridade‖ – mereceria um estudo aprofundado para o caso da mística em torno de Pedro
de Arbués. Nesse aspecto, cabe questionar até que ponto o fiel que se entregava à louvação da
memória do inquisidor morto não estaria buscando recusar a própria morte ao identificar-se,
por precaução, com os valores inquisitoriais?
O rito em praça pública, que era o ápice do papel da Inquisição como agente
fundante de valores sociais, guarda semelhança com o teatro. Bethencourt chegou a comparar
os réus com atores (segundo ele, o único teatro capaz de mostrar ―acusados verdadeiros‖) e
caracterizou os inquisidores como ―os únicos atores permanentes‖, ―que acumulam esse
papel com o de diretores‖ (Bethencourt, 2000, p.227). Outras representações teatrais da fé
71
existiam na época: ―os autos sacramentales, os autos da paixão ou os quadros vivos de cenas
bíblicas incluídas nas procissões de Corpus Christi‖ (Bethencourt, 2000, p.227). A lógica da
cena teatral inquisitorial tem um roteiro aristotélico:
72
lado, o roteiro de ação do auto-de-fé é uma preciosa fonte histórica que analisaremos adiante,
à luz da História do Imaginário.
―(...) tenho visões e revelações, mas disseram-me no tribunal que era fingimento,
que ouço vozes do céu, mas explicaram-me que era efeito demoníaco, que sei que
posso ser santa como os santos o são, ou ainda melhor, pois não alcanço diferença
entre mim e eles, mas repreenderam-me de que isso é presunção insuportável e
orgulho monstruoso, desafio a Deus, aqui vou blasfema, herética, temerária,
amordaçada para que não me ouçam as temeridades, as heresias e as blasfêmias,
condenada a ser açoitada em público e a oito anos de degredo no reino de Angola‖
(Saramago, 1982, p. 50).
―Os heréticos merecem não somente ser excluídos da Igreja pela excomunhão, mas
ainda retirados do mundo pela morte.... Se os falsos moedeiros ou outros
malfeitores são justamente executados pelos príncipes seculares, com mais forte
razão os heréticos, desde que são convictos na heresia, podem não somente ser
excomungados mas ainda justamente mortos. Quanto à Igreja, como ela é
misericordiosa e procura a conversão dos culpados, não condena imediatamente o
herético, mas o exorta uma primeira e uma segunda vez ao arrependimento, e se ele
permanece obstinado e se ela desespera de sua conversão, ela pode na salvação
dos outros separá-lo dela pela excomunhão e pelo abandono ao juiz secular
73
para que extermine do mundo pela morte.‖ Santo Tomás de Aquino, Suma
Teológica (in Novinsky, 1992, pág 526. Grifo nosso)
―O herético deve ser punido de penas severas, numerosas, diversas, porque ele traz
prejuízo a todos, porque o que é cometido contra a divina religião é uma injúria
contra toda a comunidade: é um crime público, como está dito no Código: lei
Manichaeos... É, com efeito, muito mais grave ofender a majestade divina do que a
majestade temporal.‖
―A opinião geral, confirmada pela prática geral de todo o universo cristão, quer que
eles pereçam pelo fogo, conforme a lei que estipula que todos os heréticos, sejam
quais forem os seus nomes, sejam condenados à morte: ―Eles serão publicamente
queimados vivos, publicamente entregues ao julgamento das chamas‖ (Disposição
do imperador Frederico, e dos papas Inocêncio IV, Alexandre IV e Clemente IV).‖
―(...) uma literatura que extravasa as regiões protestantes e a rede internacional das
comunidades hebraicas, naturalmente solidárias com os perseguidos dos tribunais
da fé, para atingir um público católico muito vasto, em vias de sensibilização ao
problema da tolerância religiosa. Uma ruptura, portanto, do ciclo vicioso
perseguidor/perseguido em que se circunscrevia a polémica do século XVI a
propósito das práticas inquisitoriais, transferindo-se o debate para o plano geral de
uma opinião pública em processo de formação‖ (Bethencourt, 1994, pág 195) .
74
O auto-de-fé tem significado amplo e essencial para o imaginário inquisitorial. Se no
século XVII a polêmica da culpabilidade aflorou como uma forma de pôr os inquisidores em
xeque, hoje, temos diante de nós a ampla possibilidade de esclarecer o estatuto deste ato
solene para a sociedade de sua época.
75
trombetas, com muitos dias de antecedência, a realização de um auto-de-fé (Bethencourt,
1994, p. 197).
A procissão que antecede o auto traz, em ordem, os réus ladeados por familiares,
seus ―padrinhos‖. Quando o réu é chamado, faz-se a leitura do processo – que pode ser longa
– e leva-se o infeliz por um dos dois caminhos indicados no Quadro 2. À moda do juízo final,
os reconciliados seguem à direita dos inquisidores, e os relaxados (que serão executados pela
justiça secular) caminham à esquerda dos homens da fé.
76
assistia ao juramento da fé de pé, com a cabeça descoberta, pousando uma mão no missal e a
outra na cruz, diante do inquisidor-geral, que lia o formulário de cabeça coberta‖
(Bethencourt, 1994, p. 218).
―Esta parte do espetáculo é, talvez, a mais esperada pelos espectadores, não apenas
porque, finalmente, ao fim de meses (por vezes anos) de silêncio, podia-se
conhecer a matéria de acusação e a sorte do preso, mas também porque se podia
avaliar o estado de espírito do acusado pela sua postura e comportamento. Pode-se
falar de uma ritualização dos gestos do arrependimento, do protesto e da ofensa,
mas mesmo neste quadro constrangedor subsiste uma incerteza que mantém o
interesse no desenrolar da cerimônia. Contudo, o conteúdo dramático do auto-de-fé
não residia apenas nestes aspectos: existia sempre a possibilidade de um súbito
arrependimento dos relaxados, que podiam pedir uma audiência no local aos
inquisidores. A confissão era então ouvida numa sala interior do cadafalso por um
dos juízes, que procurava verificar a sua autenticidade. Depois do interrogatório, se
o inquisidor estava convencido da sinceridade do preso, chamava os outros
inquisidores para reverem a sentença‖ (Bethencourt, 1994, p. 219).
77
Resta-nos, então, perceber a ――saturação de um regime de imagens‖,
unidimensionalizado e obsessivo‖ que leva à ―irônica inversão/reversão do pólo oposto, (...)
exatamente do outro imaginário excluído(...)‖ (Carvalho, 1987, p. 68). Este outro, apesar de
excluído, vivenciou a mesma época. Carvalho nos lembra o ditado popular: ―O Diabo toma
água benta‖. A contribuição de José Carlos de Paula Carvalho ainda poderá resultar em
trabalhos que sigam especificamente os caminhos da abordagem que ele propôs. Num
aspecto, porém, pensamos diferentemente dele:
O próprio autor reconhece que todo estereótipo é fabricado, pois afirma que a
―anormalidade‖ do herege foi uma invenção inquisitorial. As patologias só são o que são
quando reconhecidas pela cultura que as ―criou‖. Não é possível falar em patologias sem que
os agentes que as vivenciaram sejam socialmente assumidos ou tidos como patológicos em
seu contexto histórico. A Inquisição não foi tida como patológica em seu contexto cultural.
Todas as culturas desenvolvem estereótipos. Partindo desta constatação, se pretendêssemos
contemplar este argumento de Carvalho, teríamos que pensar que todas as culturas são
patológicas. Além disso, se os modelos se complementam, no sentido de que a praxeologia
inquisitorial se parece com as ―anormalidades‖ que diz combater, isso não nos autoriza a dizer
que a primeira ‖fabricou‖ a segunda, pois antes seria preciso comprovar que o modelo
oponente tenha ―existido‖. Talvez jamais tenha se consolidado.
A análise pela trama teatral nos leva a outro dos conceitos da Teoria das Estruturas
Antropológicas, de Gilbert Durand (Durand, 1989). Trata-se da noção de estrutura heróica
do imaginário. Após classificar os regimes da imagem em noturno e diurno, o filósofo de
Grenoble sistematizou uma outra classificação, a das três dimensões das estruturas do
imaginário: a) as estruturas heróicas (1989, p. 124 a 134); b) as estruturas místicas (1989, p.
78
185 a 192); c) as estruturas disseminatórias (1989, p. 236 a 241). Procuraremos resumir o
funcionamento deste método para chegar àquela estrutura que nos interessa aqui.
79
valores e hábitos, aproximando o futuro personagem-réu do seu futuro espectador herói. A
frouxidão aparece representada pela seta distoante que aponta para a esquerda. O objetivo da
cristandade é a unidade. No momento do auto-de-fé, o espectador perceberá em si
(anagnórisis) este desvio de comportamento (harmatia).
A segunda etapa é uma busca de saída por parte do espectador que se viu, antes, ao
lado do herege. Uma distinção se impõe: os mais exaltados ressaltam esta distinção tratando o
herege com gritos de desdém e até atirando-lhe objetos. À queda do herege corresponde a
ascensão heróica do espectador. A verticalização está em todos os pontos da cena: no
alteamento hierárquico da tribuna de inquisidores, na subida do herege e de um representante
da Inquisição ao sobrepalco para a abjuração final e nos estandartes apostos ao lado do palco,
certamente entre este e a tribuna principal. Também o caráter diairético está confirmado: o
guerreiro inquisidor parte sobre o monstro para vencê-lo e dominá-lo: o espectador identifica-
se com o guerreiro e converte-se em coadjuvante do seu heroísmo (espectador herói). O
guerreiro tem suas armas: o fogo, a espada (no estandarte do Tribunal) e a cruz, com seu
indefectível significado de domínio e levantamento.
80
mediante a qual, pela liberdade, o homem, ―único animal ético‖, se autoconstrói a si próprio
e edifica seu mundo histórico-cultural.
Os mesmos mitos ascensionais estavam no Arco de los Familiares del Santo Officio,
que foi construído em Lisboa em 1619 para a entrada triunfal do rei Filipe III. A reprodução
do arco está no livro de João Baptista Lavanha publicado em Madrid em 1622 sob o título de
Viagem da Catholica Real Majestade del Rey D. Felipe II N. S. ao Reyno de Portugal (in
Bethencourt, 1994, p. 86). A gravura foi feita por Hans Schorckens sobre desenho de
Domingos Vieira Serrão. Na Figura 5, podemos ver uma reprodução do arco.
Construção ascensional por excelência, o arco era sustentado por quatro colunas
sobre as quais se erguia o corpo ornado por seis imensas figuras. A ascensão representa o
poder e a aproximação com Deus. Acima, no topo, há três escudos, sendo um central, maior,
ovalado, ladeado por outros dois, menores e redondos. O ápice de todo o conjunto está na
aposição, em vez do elmo imperial, da cruz dos dominicanos, cujo traçado horizontal tem as
mesmas dimensões do traçado vertical. A concepção ascensionista também está presente na
ordem das figuras. As seis iconografias estão dispostas em pares verticais (Bethencourt, 1994,
p. 86). O primeiro par representa o perdão e a inspiração do Espírito Santo, tendo como base a
frase lumen de lumine (luz da luz). O segundo par representa a soberania e tem em sua base a
frase vera corona (Verdadeira coroa). Sobre a frase ipsa conteret caput tuum (ela mesma
esmagará teu ser e tua atividade), ergue-se o último par à direita, que representa o castigo. Há
uma seqüência notória que explicitaremos na análise do arco. Há também uma seqüência
simbólica implícita que procuraremos compreender e analisar.
81
preceitos medievais de uma espada dupla que ora representava o poder superior da Igreja
sobre os impérios, ora queria indicar a igualdade de ambos. Assim, a aproximação entre
oliveira, cruz e espada indica uma tríade inquisitorial: purificação, ascensão e justiça. No
interior do escudo, lê-se a frase In hoc signo vinces, que significa (com este sinal vencerás),
frase histórica que marcou o cristianismo.
82
acordado em que o paciente inquieto declara: ‗Estou na luz, mas tenho o coração
completamente negro.‘. Do mesmo modo, as grandes divindades uranianas estão
sempre ameaçadas e por isso sempre alerta. Nada é mais precário que um cimo.
Essas divindades são, portanto, polémicas e Piganiol quer ver nesta divina
animosidade a origem histórica, para a bacia do Mediterrâneo, do mito da vitória
do cavaleiro alado contra o monstro fêmea e ctónico, a vitória de Zeus sobre
Cronos. O herói solar é sempre um guerreiro violento e opõe-se, por isso, ao herói
lunar que, como veremos, é um resignado. Para o herói solar são sobretudo os
efeitos que contam, mais que a submissão, à ordem de um destino. A revolta de
Prometeu é arquétipo mítico da liberdade do espírito. De boa vontade o herói solar
desobedece, rompe os juramentos, não pode limitar a sua audácia, tal como
Hércules ou o Sansão semita. Poder-se-ia dizer que a transcendência exige este
descontentamento primitivo, este movimento de mau humor que a audácia do gesto
ou a temeridade da empresa traduzem. A transcendência está sempre, portanto,
armada, e nós já encontrámos esta arma transcendente por excelência que é a
flecha, e já tínhamos reconhecido que o ceptro de justiça traz a fulgurância dos
raios e o executivo do gládio ou do machado‖ (Durand, 1989, p. 111).
As três figuras (Fé, Religião e Justiça) possuem uma das mãos sustentando a coroa
real e a outra com os respectivos símbolos: a Fé carrega a cruz (e tem aos seus pés um templo
católico); a Religião levanta o cálice com a hóstia e a Justiça, que não está vendada e leva um
adorno na cabeça, tem na mesma mão a espada e a balança. O rei está ajoelhado sobre uma
almofada e veste a armadura para a guerra. O conjunto da cena indica que a origem do poder
real está em Deus, que seria origem de toda soberania.
As duas figuras que fecham o arco, na vertical direita de quem observa, levam à ação
mais propriamente dita do Tribunal do Santo Ofício. O painel superior, longe de ser uma
inocente representação primitiva do fogo, trata de colocar a chama purificadora ao lado de
uma árvore, tendo um vale como cenário. Trata-se de uma representação idílica da natureza
83
purificada, anterior ao pecado original. Ou seja, indica-se assim a benignidade da Criação, de
onde sairá o fogo purificador e divino para queimar o herege. No imaginário cristão, o fogo é
um ente purificador ao qual podemos até entregar o nosso corpo:
―Mesmo que distribua todos os meus bens aos famintos, mesmo que entregue o
meu corpo às chamas, se me faltar o amor, nada lucro com isso‖ (1 Cor. 13, 3.
Grifo nosso.).
―Esta imagem é muito interessante, pois a Inquisição está disfarçada de São Jorge,
que mata o dragão da heresia empunhando na mão direita a espada e na mão
esquerda o escudo com as armas do tribunal, enquanto a armadura tem gravada a
cruz dos dominicanos. Mas o emblema não está completo sem a figura de um santo
mártir (vestido de dominicano e com a palma, mas sem os outros atributos de São
Pedro de Verona), que aponta para a hidra subjugada pela Inquisição. Esta imagem
final, colocada em baixo, à direita do observador, resume, de certa maneira, o
sentido de auto-glorificação do tribunal no seu papel de reparador das ofensas
perpretadas contra Deus, a Igreja e a Coroa‖ (Bethencourt, 1994, p. 86).
84
simbólica deste painel, lembramos que a morte do monstro na mitologia grega deu-se pelo
fogo: Hércules penetrou todos os pescoços com uma pequena estaca de madeira em brasa.
Para encerrar este capítulo, vemos o arco dos inquisidores em seu conjunto
simbólico. Mudamos o sentido do olhar e vemos as três imagens que compõem a base
ascensional do arco: à esquerda, a representação da luz do Espírito Santo; no centro, a
invocação cristã do poder soberano do rei; à direita, o uso da força contra a heresia. Se fosse
possível endossar o espírito do Tribunal com um ―resumo mítico‖, este seria o teor ideal: a
soma do poder da fé cristã com o poder temporal e a presença da força inquisitória. Além
disso, em termos simbólicos o lado esquerdo, onde foi representada a transcendência do
Espírito Santo, representa o passado e o lado direito, onde foi posta a força, representa o
futuro.
85
―mensagem‖ hierárquica presente no arco. Esta ―mensagem‖ é o significado político da
construção: o poder real alia-se ao poder inquisitorial na repressão à heresia apenas na medida
em que gravita em torno de sua origem religiosa. Quando este vínculo se quebrou, no final do
século XVIII, Portugal viu ―nascer‖ um tribunal subjugado pelo cetro monárquico. A inversão
está presente na Lei de 20 de maio de 1769, que ―eleva‖ o Santo Ofício à categoria de
Majestade, pretextando fortalecê-lo contra os jesuítas:
―EU ELREY. Faço saber aos que este Alvará virem: Que Eu fui informado, de que
ao mesmo tempo em que todos os Tribunaes de que se compõem a Minha Corte,
como depozitários da Minha Real Jurisdição (...) foram sempre, e são tratados por
Majestade (sic); e de que sendo o Conselho Geral do Santo Ofício hum dos
tribunais, mais conjuntos, e immediatos à Minha Real Pessoa, pelo seu instituto, e
ministerio; se introduzio o abuzo de se lhe dar o tratamento, que compete ao seu
Prezidente, como se pratíca com o Senado da Camara de Lisboa, que reprezenta o
Congresso do Povo; e isto sendo de mais a mais do Meu Conselho todos os
Deputados, que constituem o Corpo do mesmo Conselho Geral; exercitando nelle a
Minha Real Jurisdição, não só para os procedimentos Criminaes, e externos contra
todos, os que delinquem contra a Religião, mas também para a expedição das
Cauzas Civeis dos Privilegiados meios que gozam do seu foro; constando aliás, que
o sobredito foi hum dos meios como que as intrigas dos Denominados Jesuitas
pretenderam deprimir a authoridade do dito Tribunal do Santo Officio. E querendo
Eu abollir hum tão estranho abuzo: Hey por bem ordenar, que ao dito
Conselho Geral se falle, escreva, e requeira por Magestade; como se praticou
sempre inalteravelmente com os dous Tribunais da Meza da Consciencia, e Ordens,
e da Bulla da Cruzada pelo exercicio, e concurso de ambas as duas Jurisdicçoens: E
que sem este tratamento se não responda, nem defira a Carta, ou Requerimento
algum: Tendo entendido o mesmo Conselho Geral, que as Cauzas, e Negocios
pertencentes à Jurisdicção Temporal, de que lhes foi commetido o exercicio,
devem ser expedidos no Meu Real Nome, como o praticam os dous Tribunaes
assima referidos, e todos os mais de Minha Corte‖ (in Internet URL:
library.byu.edu/~rdh/eurodocs/port/inquiz.html) (Grifo nosso).
Pelo espaço de algumas décadas até a sua supressão, o Santo Ofício passou a
responder ao rei e a seus conselheiros. O movimento de mentalidade que ponteou esta
transformação será objeto do nosso próximo capítulo.
86
NOTAS DE REFERÊNCIA
(1) - Diferenciamos aqui o estigma social das noções correntes de identidade. O ―ser
cristão-novo‖ não representou uma atribuição de identidade, posto que sua caracterização
cotidiana foi impossível. O estigma precisou, para existir, das pesquisas genealógicas de
―pureza de sangue‖ e das pretensas condutas secretas captadas pela ―má fama‖ que
testemunhas atribuíam ao réu até ―por ouvir dizer‖.
(7) - Weber utiliza, nas duas citações que apresentamos em seqüência aqui, as
palavras selvagem e civilizado. Ressalte-se que, no estilo e no contexto da obra, o autor está
referindo-se ao discurso dos que acreditam que podem dominar e explicar o mundo pelo
cálculo e pela intelectualização/racionalização. É uma referência quase irônica à postura de
superioridade dos civilizados sobre os selvagens.
87
além de significar divisão e separação (diairéo), implica também fazer uma seleção e uma
escolha (aíreses)‖ (Chauí, 1994, p. 345. Grifo nosso.).
88
CAPÍTULO II
DA PEDAGOGIA DO MEDO À PEDAGOGIA DO DESPREZO
89
―A Inquisição foi motivada e mantida pelo medo desse inimigo sem cessar
renascente: a heresia que parecia perseguir incansavelmente a Igreja.‖
―Desmascarar Satã e seus agentes e lutar contra o pecado era, além disso, diminuir
sobre a terra a dose de infortúnios de que são a verdadeira causa. Essa denúncia se
pretendia, pois, liberação, a despeito – ou melhor por causa – de todas as ameaças
que fazia pesar sobre os inimigos de Deus desentocados de seus esconderijos.
Numa atmosfera obsidional, a Inquisição apresentou tal denúncia como uma
salvação. Esta orientou suas temíveis investigações para duas grandes direções: de
um lado, para bodes expiatórios que todo mundo conhecia, ao menos de nome –
heréticos, feiticeiras, turcos, judeus, etc. –; de outro, para cada um dos cristãos,
atuando Satã, com efeito, sobre os dois quadros, e podendo todo homem, se não
tomar cuidado, tornar-se um agente do demônio. Daí a necessidade de um certo
medo de si mesmo‖
90
A Pedagogia do Desprezo é uma forma histórica de desmitologização, que será
vista, aqui, na iconografia inquisitorial, presente ao final deste capítulo, e nas análises do
direito e de processos inquisitoriais no capítulo III. Neste segundo capítulo, além de
apresentar os conceitos que estão presentes no título, encontramo-nos com a argumentação de
Jean Delumeau em História do Medo no Ocidente (1989), onde o historiador francês
desenvolve a idéia de uma Cristandade ameaçada, pressionada externamente pelos
muçulmanos e internamente pelas heresias. Em Portugal, o medo obsidional e a ação
inquisitorial encontraram ressonância na estrutura do imaginário lusitano e seus mitologemas,
que marcaram a identidade mais profunda do Império Português. O conhecimento da
historicidade do medo levou-nos aqui a propor uma nova classificação para as formas da
intolerância e também nos fez analisar a desmistificação do terror e o riso sarcástico nas
gravuras de Goya.
****
1.MITOLOGEMAS LUSITANOS
Comecemos o estudo dos mitologemas lusos com um escritor que bem representa o
imaginário português, autor que mergulhou na alma do seu povo: Fernando Pessoa. Diz ele:
―O entendimento dos símbolos e dos rituais simbólicos exige do intérprete que possua cinco
qualidades ou condições, sem as quais os símbolos serão para ele mortos, e ele, um morto
para eles‖ (Pessoa, 1996, p. 5. Grifo nosso). As qualidades são:
a) Simpatia: ―Tem o intérprete que sentir simpatia pelo símbolo que se propõe
interpretar. A atitude cauta, a irônica, a deslocada – todas elas privam o intérprete da
primeira condição para poder interpretar‖ (Pessoa, 1996, p.5).
91
d) Compreensão: ―(...) entendendo por esta palavra o conhecimento de outras
matérias, que permitam que o símbolo seja iluminado por várias luzes, relacionando com
vários outros símbolos, pois que, no fundo, é tudo o mesmo‖ (Pessoa, 1996, p. 6).
e) ―A quinta é menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é a graça, falando a
outros, que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é o Conhecimento e
Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a
mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo‖
(Pessoa, 1996, p.7).
********
O período que escolhemos para analisar as culpas de práticas mágicas nos processos
do Tribunal português com réus do Brasil é dividido em duas fases conceitualmente distintas.
Na primeira fase, que datamos, ainda que de forma maleável, da fundação do Santo Ofício até
o Regimento de 1640, a ação inquisitorial norteou-se pelo princípio que José Carlos de Paula
Carvalho chamou de Pedagogia do Medo (Carvalho, 1987). A esta Pedagogia
corresponderam Narrativas do Medo, das quais citaremos algumas no capítulo terceiro. No
período seguinte, que vai de 1640 até a supressão do Tribunal, a ação inquisitorial foi
paulatinamente adotando outro princípio, que chamamos de Pedagogia do Desprezo, conceito
didático que nós criamos para compreender as mudanças havidas no período – tempo longo –
imediatamente posterior à era do medo.
―(...) pela instauração de uma pedagogia do medo... do outro, que libera as pulsões
de agressividade inquisitorial: desde a simbólica do ‘bode expiatório‘ à purificação
coletiva pelos autos-da-fé, o Outro é exorcizado, é ‘tratada‘ a alteridade/a diferença
como ameaça da Sombra Coletiva.‖ (Carvalho, 1987, p. 66).
92
À Pedagogia do Medo opôs-se lentamente uma Pedagogia do Desprezo. Os
processos de vítimas da Inquisição analisados no terceiro capítulo dizem respeito ao
Desprezo. Trata-se da descrença em magias e bruxas, resultante da tendência
desmitologizadora. Nos processos com a marca desta nova Pedagogia, os réus passaram a
receber um tratamento de distância e desinteresse por suas culpas, que seriam conseqüência
de ignorância e falta de conhecimento religioso. As condenações perderam o sentido, pois este
tipo de crime passou a ser encarado como algo superficial, difícil até de provar, na medida em
que envolvem atos humanamente ―impossíveis‖, como voar ou transformar a natureza
material das coisas. Para a própria fé dos inquisidores, a concepção de desprezo tem fortes
conseqüências: ao negar a mística em seu valor ontológico, o inquisidor estava fazendo-o não
só para o réu, mas sobretudo para si. A morte, cuja concepção específica determina a
singularidade de uma cultura, passou a receber uma expectativa ―terrena‖, perdendo sua aura
purificadora.
93
Português e as aspirações do Ocidente Cavaleiresco (Durand, 1986) que foi em parte lido
pelo mestre de Grenoble nas comemorações das grandes navegações na cidade portuguesa de
Tomar. Deste trabalho durandiano, forte até em seu contexto de produção, partimos para a
compreensão das especificidades lusitanas da Inquisição.
Uma noção que tem sido muito repetida na História dá como certa a relação entre
infra-estrutura e superestrutura, onde a primeira determinaria a segunda. Não precisaremos
buscar estas determinantes causais. Como já vimos anteriormente, esta busca não é pertinente
à teoria e ao método escolhidos. As narrativas cheias de imagens que compõem o imaginário
formador de um povo não são efeito ou causa: existem enquanto paradigma cultural. Porém,
mesmo que tais narrativas fossem apenas efeito de uma determinante ―infra-estrutural‖,
sabemos que ―eles são, de facto, persistentes – ‘coriáceos‘ como diria Roger Bastide – e que,
na ordem das induções, a permanência pode funcionar como causalidade‖ (Durand, 1986, p.
10. Grifo nosso).
―(...) nesta ‘légende dorée‘ das culturas, em que se repetem com monotonia os
‘mitologemas‘ (estruturas quase formais de um mito ou de uma sequência de
mitos) que, fora do seu contexto histórico-cultural adquirem o aspecto redutor
de estereótipos‖ é preciso ―saber de que modo uma cultura torna específico este
94
ou aquele tipo de narrativa, e constrói, por assim dizer, uma identidade sócio-
cultural imaginária‖ (Grifo nosso).
―Portugal não escapa, é claro, a este arquétipo do ‘fundador vindo de fora‘. Mas a
origem exterior e transcendente é aqui consideravelmente acentuada. Senão
vejamos: em primeiro lugar, um fundador pré-cristão – que Vasco da
Gama/Camões exalta nos Cantos I, II, III, VI e VIII de Os Lusíadas, e que figura
nas bandeiras que ornamentam o navio almirante no Canto VIII – Luso, portador
do tirso de seu pai, Baco, ele próprio um estrangeiro na Grécia: Luso tem aliás
como seu duplo outro herói epônimo, Lisa (Os Lus., Canto III), a que se segue de
imediato (Canto III, 25) uma redundância cristã: Henrique, ‘segundo filho de um
Rei de Hungria‘ (na realidade, Borguinhão), recebe do rei de Castela as terras
portuguesas e a própria filha do rei, Teresa. É o filho deste ‘húngaro‘ que conquista
Lisboa, Lisboa ela própria fundada por um estrangeiro (Os Lus., III,57), ‘facundo
por cujo engano foi Dardânia acesa‘, Ulisses. Mas é ainda de um modo mais
profundo que a sensibilidade imaginária de Portugal se enraíza, para lá desta
quádrupla fundação: o próprio Santo Fundador aquele que ‘Do Sacro Promotório
conhecido à cidade Ulisseia foi trazido‘ (III, 74) por Afonso, o conquistador de
Lisboa, é estrangeiro. É talvez necessário debruçarmo-nos um pouco sobre a figura
arquetípica deste santo espanhol (de Saragoça ou Valência), cujo corpo martirizado
foi trazido pelas ondas até ao ‘sacro Promontório‘. Trata-se de S. Vicente, o
‘vitorioso‘ diácono martirizado na época de Diocleciano, queimado numa grelha
como S. Lourenço, envolvido numa pele de boi com uma mó atada ao pescoço e
deitado ao mar, como S. Floriano, Santo Antonino de Pamiers ou S. Estanislau de
Cracóvia. Tal como o corpo de Santo Antonino é guardado por duas águias
brancas, o de S. Vicente, trazido pelo mar até ao Algarve, é guardado por dois
corvos gigantes – que irão figurar no brasão de Lisboa‖ (Durand, 1986, p. 12).
95
Este simbolismo engendra o espírito colonizador e fundador dos portugueses. Ser
salvo das águas é consagração iniciática das mais universais. Este ―mensageiro fundador
vindo do além absoluto, simbolizado pela navegação funerária com a proteção de aves
divinas‖ (Durand, 1986, p. 14) bem poderia ser função componente de uma mitanálise dos
navegadores portugueses modernos. O simbolismo das águas que foi desenvolvido por
Bachelard pode indicar o caminho da análise.
Para o estudo da Inquisição, este mitologema guarda uma certa distância. Mesmo
assim, observamos que a História da fundação e dos primeiros tempos da Inquisição está
ligada a uma tradição cristã de martírio. Um destes mártires, veremos ainda neste capítulo, foi
assassinado por ―hereges‖. Era, curiosamente, um forasteiro, mas não faremos análise por este
viés, pois demandaria mitocrítica (ver vocabulário teórico) de documentos da hagiografia
cristã, que fugiria ao propósito deste livro. Este primeiro mitologema nos serviu para entender
o cenário mais abrangente do imaginário lusitano. Os outros três mitologemas estarão ligados
a três valores do Tipo Ideal de Inquisidor Moderno.
96
A nostalgia que possam ter os portugueses de hoje pelo passado de glória do seu país
pode aparentar inserir-se nas banalizações da imagem, tão comuns na pós-modernidade. Para
não nos deixarmos influenciar no trabalho científico pelo ambiente desmistificado que nos
cerca nestes anos de transição nos quais se finda o segundo e inicia-se o terceiro milênio (2),
devemos buscar na História o valor do mito. A fidelidade ao impossível é ilustrada por
Durand nas histórias de amores inacessíveis que se tornaram clássicas: a história de Inês de
Castro e as narrativas sobre Soror Mariana. Camões, em Os Lusíadas, ―consagra uma parte
significativa do Canto III‖ (Durand, 1986, p. 15) ao drama do filho de um rei que teve sua
amada, Inês, assassinada pelo pai e, ―numa nostalgia inconsolável‖ (Durand, 1986, p. 15),
partiu para a vingança. Já Soror Mariana teve que amargar na reclusão de um convento a
impossibilidade de realizar seu amor pelo francês Chamilly.
―A identificação dos dois níveis de medo conduz (...) a assentar face a face duas
culturas das quais cada uma ameaçava a outra e nos explica o vigor com que não só
a Igreja, mas também o Estado (estreitamente ligado a ela) reagiram, num período
de perigo, contra o que pareceu à elite uma ameaça de cerco por uma civilização
rural e pagã, qualificada de satânica. Em suma, a distinção entre os dois planos de
temor será para nós um instrumento metodológico essencial para penetrar no
interior de uma mentalidade obsidional que marcou a história européia no começo
da Idade Moderna, mas que cortes cronológicos artificiais e o sedutor termo
‘Renascença‘ por muito tempo ocultaram‖ (Delumeau, 1989, p.33).
97
corresponde à perda do medo e à superação, neste campo, da vocação nostálgica do
impossível. Todos os mitologemas possuem a capacidade de marcar a alma de um povo,
mesmo que nem sempre mantenham uma influência posterior sobreposta a outros
mitologemas. Ao admitirmos que uma dessas formações míticas perdeu parte de sua força,
não estamos admitindo seu desaparecimento nem a impossibilidade de reencontrá -la
fortalecida em outro momento da História.
98
características religiosas, como demonstrou Jacqueline Hermann em No reino do Desejado
(Hermann, 1998).
Trata-se de mitologema universal presente, por exemplo, entre celtas, germanos e
persas (Durand, 1986, p. 16 e 17). Em Portugal, a presença deste mitologema não está restrita
a Dom Sebastião. Uma componente franciscana, ligada à vontade missionária, ao otimismo
transcendente e à sensibilidade fraternal – valores daquela Ordem – está associada à
divulgação, pelos frades, ―(...) das esperanças messiânicas do cirteciense calabrês Joaquim
de Flora. Pode mesmo falar-se, a propósito, do messianismo, de um ‘primeiro sebastianismo‘
– ‘avant la lettre‘! – veiculado pela espiritualidade franciscana.‖ (...) ―O próprio S.
Francisco era, para os seus discípulos – pelo menos... – o anunciador, o Segundo Precursor
dos novos tempos, da vinda do Espírito Santo‖ (Durand, 1986, p. 17).Dom Sebastião, jovem e
promissor rei da Nação portuguesa, um ―Rei Desejado‖ (Hermann, 1998, p. 73), desapareceu
no dia 4 de agosto de 1578, derrotado pelos muçulmanos na batalha de Alcácer-Quibir. O
corpo teria sido encontrado pelo monarca do Marrocos e enviado a Belém, onde está
sepultado. Mas o povo português não acreditou na morte trágica de alguém que havia sido tão
aguardado. A própria elite intelectual portuguesa vivenciou esta comoção em forma de
esperança, como no caso do Pe. Antônio Vieira, em sua História do Futuro (Vieira, 1998).
Vieira acreditava que ―Portugal é o reino que deve assumir a vinda do Reino de Deus‖
(Durand, 1986, p. 18).
99
sebastianismo, o milenarismo e a Inquisição pode ser imaginado para estudo futuro. Como
ainda não se trata de tema nosso, deixamos apenas a referência.
―É supersticioso esperar qualquer efeito de qualquer coisa, quando tal efeito não
pode ser produzido por causas naturais, por instituição divina ou pela ordenação ou
aprovação da Igreja‖ (in Thomas, 1991, p. 53).
―Portanto, não era supersticioso acreditar que os elementos podiam alterar suas
naturezas, depois de pronunciadas sobre eles as fórmulas de consagração: isso não
era magia, e sim uma operação efetuada por Deus e pela Igreja, ao passo que a
magia supunha o auxílio do Demônio‖ (Thomas, 1991, p. 53).
Devemos observar que estas crenças nas transformações da natureza das coisas não
são exclusivas de Portugal nem se iniciam por lá. A singularidade portuguesa parece ter
estado na politização e cotidianização deste mitologema. Já vimos que a missa passou por
mudanças na Idade Média. Um poder especial – até mágico e encantatório – foi atribuído aos
sacerdotes. Pelo menos entre os ingleses, que aderiram ao protestantismo, o processo de
desmitologização chegou mesmo a retirar do clero este atributo coletivo. Pensamos que
processo semelhante atingiu parte do clero católico na contra-reforma e influenciou a
Pedagogia do Desprezo entre inquisidores. Falta à nossa historiografia pesquisa documental
100
que possa comprovar esta hipótese. Para o mundo protestante, temos o depoimento do próprio
Keith Thomas, mesmo que claramente simpático à Reforma:
―Penso que é necessário dar a estas transformações o sentido que o hagiógrafo dava
à lenda de Isabel da Hungria e da Turíngia: ver rosas em lugar do pão, ver o sangue
de Cristo em vez do vinho, é ‘ver com os olhos da alma‘ – ‘per interiores oculos‘ ‖
(Durand, 1986, p. 20).
Para a História do Brasil, que teve uma Princesa Isabel que teria sido homenageada
como Santa no nome de um belo teatro situado no Recife, o mitologema da transubstanciação
permitirá enriquecer a análise processual inquisitorial que faremos no próximo capítulo.
Levantaremos a hipótese de que a inexistência de um significativo aumento do número de
101
processos contra práticas mágicas em Portugal, no século XVII, foi fruto da maior
aceitabilidade na cultura lusa diante de práticas ―transubstanciosas‖ equivalentes ao feitiço.
Isto poderá ajudar a entender a inexistência de uma ―caça às bruxas‖ no Império português,
enquanto boa parte da Europa ardia em fogueiras.
102
há um arremedo do discurso da vítima que está presente no que foi ―reescrito‖ com o fim de
tornar-se um processo do Tribunal.
Existem obras escritas fora do cárcere que são, provavelmente, muito mais próximas
da ―palavra da vítima‖ do que os próprios processos, como as do réu Hipólito José da Costa
(1974) e do ex-secretário do Santo Ofício Pedro Lupina Freire (in Vieira, 1951). Ao
estabelecer o quadro documental do trabalho, sabemos que vamos, por exemplo, determinar a
mentalidade inquisitorial quanto à culpa de feitiço e práticas mágicas. A menos que se trate de
um discurso muito singular, como o do moleiro estudado por Ginzburg (1987), a intervenção
de agentes entrepostos entre o que diz o depoente – muitas vezes sob tortura – e o depoimento
anotado torna os processos inquisitoriais no mínimo duvidosos para o conhecimento da
história de vida de cada réu e mesmo para o levantamento de uma História Social.
103
Para entendermos a lógica processual da Inquisição, desenvolvemos aqui um paralelo
simples que servirá ao leitor como introdução ao tema. O cidadão contemporâneo está
habituado a pensar numa justiça que segue a linearidade de evolução dos processos. O nosso
direito de tradição romana garante uma cronologia na construção do ato judicial. No caso, por
exemplo, do crime comum, primeiro abre-se o processo a pedido de uma autoridade pública
ou de um advogado; em seguida faz-se o levantamento das provas e dos indícios, partindo-se
de investigações. Só então, é possível caracterizar um cidadão como réu. Depois de tudo,
verifica-se, com o apoio de jurados em um ato público de julgamento, a culpabilidade ou não
do acusado. O réu cumprirá pena após o desfecho legal deste trâmite processual. Vê-se que há
– na letra da lei – uma evolução linear na qual se pode confiar para uma defesa civilizada do
acusado. Mesmo assim, estão no dia-a-dia da Justiça contemporânea diversas formas
disfarçadas de subverter esta neutralidade. Agora, vejamos o Tribunal inquisitorial.
No século XVIII, ainda se acreditava que a presença de uma outra religião poderia
enfraquecer o Estado. Portanto, a autoridade de um rei estava diretamente vinculada à
obrigatoriedade de seus súditos comungarem da mesma fé. O enfraquecimento da religião do
rei era assunto de Estado. A Inquisição atuou dentro desta crença durante toda a Idade
Moderna. Esta mesma noção provocou os mais diversos conflitos na Europa. As guerras de
religião na França do século XVII, a repressão dos luteranos sobre os anabatistas na
Alemanha do século XVI, os conflitos entre o Parlamento e os Stuart na Inglaterra moderna e
a imposição do protestantismo aos irlandeses são alguns episódios que carregam em si a idéia
de que a fé seria a base do poder.
104
econômico, esta imposição levou Portugal a um conhecido atraso em relação às potências
européias da época. Este fator trouxe milhares de judeus para o Brasil, pois aqui – ao
contrário do que ocorria na Corte – os cristãos-novos, e mesmo os judeus, podiam obter a
propriedade das terras. Como a terra era o principal símbolo de poder, ao lado da fé e do
sangue nobre, os judaizantes vieram para cá certamente em quantidade elevada. Com eles,
para impedir um poder paralelo nas distantes terras coloniais, veio a Inquisição.
105
ou sobre a testemunha era vista como uma forma de quebrar-lhes a resistência: um caminho
para se chegar à verdade. Os dilemas comprobatórios puseram fim à onda de caça às bruxas
na França quando magistrados ―modernizadores‖ venceram o longo debate jurídico em torno
da possibilidade ou não de se ―provar‖ a existência do crime de magia e correlatos (Mandrou,
1979). Nesse sentido, transcrevemos um trecho elucidativo de Francisco Bethencourt,
extraído de um texto pouco conhecido do autor:
Se os inquisidores orgulhavam-se de sê-lo, não era sem razão: abriam caminho para
um novo processo penal, antepassado do que se utiliza hoje em dia no Ocidente Cristão.
Bethencourt nos levou a desenvolver a nossa análise sobre o próprio termo que denomina o
Tribunal: Santo Ofício. O historiador português afirmou que ―os historiadores utilizam
descuidadamente esta designação sem a questionar‖ (Bethencourt in Centeno, 1993, p. 105).
Analisando uma ambigüidade de caráter soteriológico que está sob esta constatação,
aprofundaremos, na parte seguinte deste capítulo, o tema do medo, que permeia a busca do
significado desta utilização descuidada. O próprio termo Santo Ofício carrega em si o
paradoxo entre a purificação pela fé (Santo) e a prova investigativa (Ofício). O Tribunal viveu
estas duas faces de sua atuação tentando conciliá-las através da santificação e canonização de
seus mártires, na busca de impedir a desmitologização através de uma tentativa de ―overdose‖
simbólica.
********
106
soteriologia inquisitorial, que realiza à força a ascese católica tradicional. Segundo Aurélio
Buarque de Holanda, soteriologia é uma palavra que vem do grego sotérion, salvação,
significando ―parte da teologia que trata da salvação do homem‖ (Holanda, 1986, p. 1326).
Fazemos uso do termo para referir adequadamente o salvacionismo inquisitorial na lógica do
catolicismo. Talvez fosse possível afirmar que uma religião de Deus único e ―povo escolhido‖
– na influência judaica – teria que ser intolerante. Não entraremos no mérito desta questão,
que nos parece mais afeita à Teologia que à História, sendo que esta pode se utilizar da
primeira para a análise do dado. O posicionamento weberiano que nos inspira recusa todo
determinismo, principalmente aqueles que caem no generalismo. O ―cartesianismo‖ dos
teólogos, além do mais, não é objeto deste trabalho.
O movimento que vai do medo ao desprezo foi antecedido pela clássica luta que
marcou a História da Cristandade: entre as forças centrífugas que buscaram desagregar o
cristianismo e as variáveis centrípetas que lograram vencer e agregar a civilização. As
heresias medievais, cujas características reagregadoras – ou desagregadoras – nos abstemos
de comentar mais profundamente neste trabalho de temática outra, tiveram importante papel
na formação de uma mentalidade de medo obsidional defensivo que fortaleceu a Inquisição.
No Quadro 5, podemos ver a oposição entre as duas tendências.
Magno Máximo, general romano que usurpou o trono ao Imperador Graciano, teria
sido o responsável pela execução do primeiro herege na História do cristianismo no ano 385.
Porém, Prisciliano – o herege executado – foi decapitado ―por acusação de praticar a magia,
não por ser herege‖ (Frangiotti, 1995, p. 110) (3). Sacerdotes católicos que atuavam na corte
de Máximo teriam sido os responsáveis pelas acusações que levaram à pena capital um
homem que já tivera suas teses condenadas.
107
originalmente pela Igreja, buscam numa ―ortodoxia da palavra‖ as referências para a
contestação ao teor do paradigma tradicionalmente hegemônico; agarram-se em citações e
detalhes, geralmente de origem bíblica, para propor uma ―purificação dos atos‖. Dito assim,
tal conflito fica reduzido a uma luta ideológica, como as que Roque Frangiotti denominou, no
subtítulo de seu livro, como sendo ―conflitos ideológicos dentro do cristianismo‖ (Frangiotti,
1995). Para os padrões civilizatórios do mundo cristão, contudo, a vitória dos hereges teria
significado, na verdade, um profundo reordenamento social, que até poderia ser totalmente
desagregador. Não se tratou, portanto, de ―diferentes projetos de civilização‖, mas da
manutenção ou não do impulso civilizador que sucedeu ao do Império Romano.
A imagem das forças centrípetas, com as setas voltadas para o centro, bem representa
a busca de coesão que norteou os cristãos em seu sonho de unidade. O unitarismo (uma só
Igreja e um só cristianismo unindo todos os homens) é um desejo inerente a esta fé. Há,
porém, uma contradição sempre repetida na História da cristandade: dois tipos de soteriologia
são possíveis. A salvação do crente não está afeita apenas ao caminho ortodoxo. Nã o existe
uma ordem consensual em torno do caminho para a salvação: não há, por exemplo, uma casta
que se possa dizer descendente de profetas, como ocorre para muçulmanos. À soteriologia
unitarista cristã correspondem várias outras, particularistas, que se anunciam igualmente
cristãs.
Este tema está marcado por tabus, alguns dos quais vimos apontando ao longo deste
livro. Neste caso, o tabu está em associar a imagem dos inquisidores ao ato da salvação das
almas, tão caro ao Ocidente cristão. O tabu não resiste a uma equilibrada utilização de
método: apontar o papel do agente histórico e de ―seus‖ valores não significa julgá-lo positivo
– nem negativo – e também não deve nos levar a uma expectativa de julgamento. Ao ponto
que avançamos, o leitor terá notado que o método vai permitindo evitar julgamentos
exatamente por trabalhar com mitologemas e valores, o que o faz prescindir de colocar no
108
centro da análise as disputas e interesses em torno da ação soteriológica do Tribunal. Este
despojamento alivia parte das tensões do fazer científico e clareia o olhar.
109
embuste. Descartamos por completo um total esvaziamento místico, que seria não apenas
improvável como insustentável.
110
analisado pelo historiador em função de valores auto-atribuídos pelo próprio agente histórico.
A submissão do vencido ocorre aqui por sua inclusão/conversão para uma outra ordem mental
e valorativa – diversa e oposta à sua original –, onde aqueles que ingressam no ―novo‖ quadro
de valores são tidos eles mesmos como o ―botim‖ alcançado. É uma intolerância escatológica,
pois o seu projeto ―histórico‖ determina sua própria superação, tendo em vista que o objetivo
primordial é a conversão de todos os homens aos preceitos hegemônicos. Ao chamar à
obrigatoriedade disciplinar pessoas que fazem parte do mesmo grupo ou do mesmo universo
político-religioso, a intolerância busca legitimar-se no quadro de medo obsidional que
veremos adiante. Os processos inquisitoriais obedecem à lógica desta forma de intolerância,
posto que todos eles devem terminar – de uma forma ou de outra – na metáfora escatológica.
111
vemos o testemunho do medo de uma civilização que se sentiu cercada e molestada. O
próprio historiador francês teve essa percepção:
112
século XV, no Malleus Maleficarum, a heresia já aparecia identificada com a imaginação e
com a fantasia, um devaneio de espíritos soltos sem qualquer direcionamento cristão. Esta
curiosa identificação, em trecho que cita Aristóteles, São Tomás e o filósofo Avicena para
embasar a argumentação, admite a mesma antítese moderna: fantasia/imaginário X
consciência/razão. Àquela altura, o exílio do imaginário cristão e das origens místicas da
cristandade já tornara-se objetivo dos inquisidores. Vencer a heresia e o satanismo seria
derrotar os devaneios da fantasia e da imaginação, que são a morada do medo. Esta vitória foi
um ato desmitologizador por excelência. Para o entendimento desta relação entre medo e
imaginário, tão profunda para a mentalidade inquisitorial, é oportuno apresentar os
argumentos dos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger:
―A verdade é que nem todos são acordes neste ponto; a quem interessar ocupar-se
com esta questão cumpre atentar para o número e a função de cada uma das
percepções interiores. Segundo Avicena, em seu livro Sobre a Mente, são em
número de cinco: Sentido Comum, Fantasia, Imaginação, Pensamento e Memória.
Mas S.Tomás, na Primeira Parte da Questão 79, afirma serem apenas quatro, já que
a fantasia e a imaginação são uma mesma coisa. Para evitarmos maior prolixidade,
preterimos o muito que ainda se comenta a respeito desse assunto.
―Basta lembrar que a fantasia é o repositório das idéias, mas a memória parece ser
algo distinto. Pois que a fantasia é o repositório dos instintos que não são recebidos
através dos sentidos. Assim, quando um homem vê um lobo, foge não por causa de
seu aspecto ou de sua cor ameaçadores (que são idéias recebidas pelos sentidos
exteriores e conservadas na sua fantasia), mas sim porque o lobo é seu inimigo
natural. E isso o homem sabe, seja por instinto, seja por medo, elementos
diversos do pensamento, que reconhece o lobo como hostil e o cão como amigo.
No entanto, o repositório dos instintos é a memória. E recepção e retenção são duas
113
coisas distintas nos vivos, pois os de humor ou disposição úmida recebem
prontamente, mas retêm com dificuldade; o contrário se dá nos de humor seco‖
(Kramer, 1998, p. 126 e 127. Grifos nossos).
A Idade Moderna foi, por excelência, uma época propícia à insegurança e ao medo.
Devemos levar em conta que a concepção generalizada sobre o período é bem distinta desta
constatação, pois ―cortes cronológicos artificiais e o sedutor termo ‘Renascença‘ por muito
tempo ocultaram‖ (Delumeau, 1989, p. 33) os medos e as provas de insegurança coletiva.
Tanto o medo e a insegurança provocados pelos inimigos invasores – trata-se de uma era de
conflitos e guerras – quanto aqueles sentimentos provocados por feitiços, maldições e outras
forças misteriosas, causaram fortes reações e antagonismos. Jean Delumeau (1989, p. 14 e 15)
observa que o medo tem uma forte determinante social. À valentia individual dos nobres –
guerreiros ou não – corresponderia o medo coletivo dos pobres e das mulheres. E cita a
Eneida, de Virgílio: ―‘O medo é a prova de um nascimento baixo‘ ‖ (in Delumeau, 1989, p.
15). Ao longo da Idade Moderna, o orgulho nobiliárquico de coragem e destemor foi
tornando-se algo empolado, dando lugar às firulas da etiqueta e da diplomacia. Um trecho do
escritor e jornalista Gilles Lapouge ilustra este processo de transformação pelo qual passou a
nobreza. Em seu romance A Batalha de Wagram, que se passa nas guerras napoleônicas, um
dos personagens vê-se diante da galeria com os retratos dos patriarcas de uma família
nobiliárquica:
114
―Os aposentos da duquesa compreendiam vários salões inteiramente mergulhados
no escuro. Os criados precediam Otto, e as sutilezas da mansão desvendavam-se,
no clarão fulgurante das tochas, como se essas tochas tivessem fabricado aos
poucos os corredores, as mesas de carvalho, as lareiras de mármore. Otto viu
tremer, nas labaredas, vinte retratos de corpo inteiro que eram marcos da epopéia
dos Malhberg, desde o monge de Magdeburgo, na Idade Média, o ‘mandíbula de
lobo‘, até os barões Malhberg do séquito do polonês Sobieski, na época da guerra
contra os turcos, para terminar com os Malhberg efeminados da corte de Dresden,
no tempo de Augusto, o Forte, e finalmente, na época recente, aqueles gordos
corpos de tabeliães, iluminados com roupas rutilantes, nos escritórios da Hofburg‖
(Lapouge, 1986, p. 75 e 76).
Talvez até esta mudança de hábito tenha ocorrido também em função da ascensão da
consciência do medo. Antes, porém, cabe a pergunta levantada por Delumeau como base da
análise:
―Mas é preciso perguntar-se se a Renascença não foi marcada por uma tomada de
consciência mais nítida das múltiplas ameaças que pesam sobre os homens no
combate e em outras situações, neste mundo e no outro‖ (Delumeau, 1989, p. 17) .
É possível que esta tomada de consciência tenha sido de todas as classes sociais, pois
pode ter sido determinada por uma fusão de fatores que vão desde o avanço de algumas
noções medicinais que buscavam nos fluidos corporais a origem da dor, passam pela difusão
de relatos escritos sobre as ―aventuras‖ humanas (como nas obras de Camões, Cervantes e
Shaekespeare) e chegam até a proliferação de santos curativos que carregavam consigo as
promessas da diminuição dos sofrimentos humanos. Esta aproximação entre medo e lucidez
(Delumeau, 1989, p. 18) é antepassada da mentalidade atual. O medo é um dado cultural que,
no Ocidente, notabilizou-se no alvorecer da Idade Moderna.
―Refinados que somos por um longo passado cultural, não somos hoje mais frágeis
diante dos perigos e mais permeáveis ao medo do que nossos ancestrais? É
provável que os cavaleiros de outrora, impulsivos, habituados às guerras e aos
duelos e que se lançavam com impetuosidade nas disputas, fossem menos
conscientes do que os soldados do século XX dos perigos do combate, e portanto
menos sensíveis ao medo‖ (Delumeau, 1989, p. 18).
115
imutável: o de ser devorado. ‘Enquanto o medo humano, filho de nossa imaginação, não é
uno mas múltiplo, não é fixo mas perpetuamente cambiante.‘ Daí a necessidade de escrever
sua história‖ (Delumeau, 1989, p. 19). Outro autor citado, G. Ferrero, afirma que ―toda
civilização é o produto de uma longa luta contra o medo‖ (Delumeau, 1989, p. 12). Em um
ramo da Antropologia e em outro da Psicologia, o medo da morte é tido como impulso básico
do homem em sociedade e dos seres humanos enquanto indivíduos.
―O quadro trazido pelo libelo é: de um lado, nas bruxas, um desejo de prazeres sem
limites; do outro, nos inquisidores, a vontade de estender o sofrimento até o limite
do ser. Em termos psicanalíticos: nelas, o triunfo do id; neles, o do superego
castrador‖ (in Novinsky, 1992, p. 81).
Não discutiremos aqui o determinismo freudiano, mas a fragilidade de uma tal visão
para a análise histórica é patente, mesmo para um historiador preocupado com a riqueza
conceitual e teórica do próprio trabalho. Nesse caso, está Delumeau, que chega a afirmar que
foi ―(...) um erro de Freud ‗não ter levado a análise da angústia e de suas formas
patogênicas até o enraizamento na necessidade de conservação ameaçada pela previsão da
morte‘(...). O animal não antecipa sua morte. O homem, ao contrário, sabe – muito cedo –
que morrerá‖ (Delumeau, 1989, p. 19). Esta limitação da teoria psicanalítica torna-a de difícil
utilização pela História. Já a Teoria do Imaginário e a metodologia weberiana permitem
inserir a angústia da morte (presente no tipo ideal de inquisidor modermo) como variável
indispensável à análise do historiador sobre qualquer sociedade humana. A aparente
―determinante eros‖ talvez seja de uso restrito às sociedades urbanas ocidentais
contemporâneas.
Porém, sobre temas ligados ao medo, o historiador Peter Gay opina que há
historiadores que perceberam o valor da psicanálise ―quando falharam em descobrir causas
racionais para situações de pânico ou de motim, para irrupções de preconceitos ou
comportamentos autodestrutivos‖ (Gay, 1989, p. 165 e 166). Há um certo valor na
observação do historiador norte-americano, desde que não se faça da análise histórica uma
filial das restritas condicionantes psicanalíticas. O lado positivo da observação de Gay está em
que, na análise do mundo moderno, a ―fábrica‖ de culpas e culpados bem vale um paralelo
116
com a psique individual, pois verdadeiras ―patologias individuais‖ afloram em processos
inquisitoriais de diversos países. Lembramos, por exemplo, os processos das freiras
endemoniadas de Loudun, na França, que, entre crises histéricas, incriminaram um padre que
nunca tinham visto pessoalmente e o levaram à fogueira (Huxley, s/d). O medo coletivo
guarda semelhanças com o medo individual. Os medos podem vir de seres destruidores –
―fantasiosos‖ ou ―reais‖ – (monstros, demônios e animais perigosos), de fenômenos da
natureza (tempestades, tornados, etc.), de objetos tenebrosos (máquinas de tortura, urnas
funerárias, etc.) ou de pessoas cruéis (torturadores, assassinos, etc.). Em todos os casos, há
pulsões individuais em jogo.
Outro exemplo de pânico – desta vez oficial – está no terrível processo dos
Pappenheimers, na Baviera, estudado no belo livro de Michael Kunze (1989), A Caminho da
Fogueira. Os atos do processo, típicos do séculos XVII, refletem uma pulsão contra o medo:
o Duque da Baviera tentou, com estas e outras investigações, combater o crime e a heresia,
que assustavam os seus súditos. O medo obsidional levou a uma sordidez monumental, que
destacamos em um trecho do processo onde aparece o garoto mais novo, de dez anos, já sendo
encaminhado para a fogueira, quando vê o cortejo e comenta com o meirinho que o
acompanhava: ―‘Veja, veja! Que grande casamento para meu pai e minha mãe! Eles têm
tantos guardas armados – nem o próprio duque tem tantos!‘‖ (Kunze, 1989, p. 400). O
meirinho, como alerta Kunze, não viu meninice na exclamação. Julgando ser algo do
demônio, incluiu-a no seu relatório.
O ambiente místico era uma constante. Thomas afirma que ―a missa, em particular,
estava associada ao poder mágico, e deve-se dizer que a doutrina da Igreja foi pelo menos
indiretamente responsável pelo fato‖ (Thomas, 1991, p. 41). A valorização do sacramento da
eucaristia na efetivação do milagre da transubstanciação foi atacada pelos reformadores como
prova do misticismo católico. Não se trata de uma mera divergência de forma. A eucaristia é
importante para o clero católico, pois enobrece a atividade do sacerdote enquanto miraculoso
realizador ou veículo da transubstanciação. O Concílio de Trento, já tão distante no tempo,
dedicou atenção a este tema e concluiu, dentre outras coisas, que a ―vitória‖da eucaristia seria
o triunfo da razão e a vitória de Cristo sobre a morte:
―‘A eucaristia deve ser levada em procissões que representem a vitória e o triunfo
de Cristo sobre a morte... E a verdade, triunfando acima da heresia e das mentiras,
deverá celebrar esse triunfo de maneira que os seus adversários, humilhados
perante a visão de uma magnificência tão refulgente, e pelo harmônico júbilo da
Igreja, se quedem silenciosos, com o espírito submisso, ou, envergonhados, ouçam
a voz da razão‘‖ (in Fernández-Armesto, 1996, p. 113).
117
A eucaristia sempre foi polêmica no cristianismo. Desde os primórdios desta fé, o ato
de deglutir o pão que representa a divindade parece estranho à vista do significado heróico da
deglutição: o herói devora o monstro para matá-lo ou é devorado por ele. A Última Ceia foi
uma refeição pascal típica do judaísmo: ―‘um dia festivo para todas as gerações... um decreto
eterno‘(...)‖ (Fernández-Armesto, 1996, p. 105). Segundo Armesto e Wilson, o termo
transubstanciação deve ser entendido no ―contexto das idéias medievais sobre a física (...)‖,
onde admitir-se-iam duas formas para o ser: a essência e a incidência. A transubstanciação
seria uma mudança na essência do pão e do vinho, onde ―Cristo estava essencialmente
presente, sob as formas acidentais de pão e vinho‖ (Fernández-Armesto, 1996, p. 105 e 106).
O desconhecimento ou o desrespeito a este princípio, como veremos, levou a Inquisição à
abertura de muitos processos.
Outros medos existiram: medo do ―mar variável onde todo terror abunda‖
(Delumeau, 1989, p. 41), medo de fantasmas, medo da noite, medo da peste, medo de morrer
de fome e até medo do fisco que vem para cobrar impostos. Sônia Siqueira elencou outros
medos coloniais no Brasil:
118
268). Uma possível invasão muçulmana chegou a ser vista como parte do Juízo Final. O papa
Pio II resumiu o sentimento de medo difuso pela Europa:
―‘No passado fomos feridos na Ásia e na África, isto é, em países estrangeiros. Mas agora
somos atingidos na Europa, em nossa pátria, em casa. Objetar-se-á que já outrora os turcos passaram
da Ásia para a Grécia, os mongóis mesmo se estabeleceram na Europa e os árabes ocuparam uma parte
da Espanha após terem transposto o estreito de Gibraltar. Mas jamais havíamos perdido uma cidade ou
uma praça comparável a Constantinopla‘ ‖ (in Delumeau, 1989, p. 268) .
O Juízo Final, por sua vez, é um medo arquetípico. Quase onipresente na cultura
ocidental, o Juízo Final implica uma concepção de um tempo direcionado como uma reta,
com um destino a ser alcançado. Esta concepção, que está longe de ser exclusividade do
cristianismo, leva a uma expectativa de um fim justo para todos os homens e está presente
como inspiradora de correntes políticas escatológicas existentes em ideologias do século XIX.
O milenarismo foi a expressão mais forte da angústia que antecederia o fim dos tempos. A
lenda do ano 1000, segundo a qual a data fatal (1 de janeiro do ano 1000) teria sido aguardada
com terror, foi desenvolvida bem depois, pelo monge beneditino Trithemius, que nasceu em
1462. Mas há também a componente das profecias interpretadas do Antigo Testamento e do
Apocalipse, segundo as quais, após o Juízo Final, Cristo voltará à Terra para reinar por mil
anos. Em qualquer das versões, a expectativa associava-se ao medo e trazia um novo impulso
para a catequese, pois seria preciso converter todos os infiéis para antecipar o fim do mundo
ou para vivenciá-lo em paz. Joaquim de Fiore, ―um notário convertido em monge, e em
monge sempre mais rigoroso e santo, até a morte (+1202)‖, foi o criador da teoria das três
idades da História: a do Pai, a do Filho e a do Espírito Santo (Antoniazzi, 1999, p. 26). A
Idade do Espírito estaria próxima e seria uma época de espiritualização a iniciar-se em 1260.
Porém, esta concepção pacífica foi transformada em uma idéia conflituosa...
119
qualquer forma, citamos, no capítulo 1, que, após as mudanças introduzidas na missa com a
oficialização de um Cristo Poderoso, ―um clima de terror se espalhou entre as massas,
especialmente, no Oriente‖ (Frangiotti, 1995, p. 163. Grifo nosso). O medo e a heresia
nasceram juntos no imaginário cristão: talvez o primeiro tenha gerado o segundo.
O historiador H.-C. Lea esclarece que o converso era indagado pelos hereges se
queria ser um confessor ou um mártir: ―‗Se ele escolhia tornar-se um mártir, um travesseiro
ou uma toalha (chamada Untertuch pelos cátaros alemães) eram colocados sobre sua boca
enquanto se recitavam certas orações. Se desejava ser confessor, permanecia durante três
dias sem alimento, não recebendo senão um pouco de água como bebida. Num e noutro caso,
se ele sobrevivia, tornava-se um Perfeito. Essa ‘endura‘ era às vezes empregada como um
modo de suicídio, sendo freqüente a morte voluntária entre os cátaros‘‖ (in Gonzaga, 1993,
p. 110). O mesmo historiador opina que ―‗(...) a causa da ortodoxia era a da civilização e do
progresso. Se o catarismo se houvesse tornado dominante, ou pelo menos igual ao
catolicismo, não há dúvida de que sua influência teria sido desastrosa‘‖ (in Gonzaga, 1993,
p. 111).
A perseguição ao feitiço foi incrementada no final do século XII ―sob efeito de duas
causas interligadas‖ (Delumeau, 1989, p. 351):
120
de deposição, a perseguir e punir os heréticos de suas dioceses. Depois, enquanto
os cátaros eram vencidos no sul da França, Gregório IX nomeava em 1231 o
primeiro inquisidor oficial da Alemanha, Conrad de Marburgo (...)‖ (Delumeau,
1989, p. 351).
O fato dos inquisidores recolherem quase sempre provas que ratificam as mesmas
culpas só nos leva a duvidar do valor de certos documentos inquisitoriais como fonte para a
História social e para a História das mentalidades. Processos muito singulares, que ganham
intensidade e envolvem um grande número de pessoas – inclusive aquelas bem situadas
socialmente – possuem um teor investigativo amplo e uma diversidade de informações que
nos levam a aceitá-los como mantenedores da fidelidade dos depoimentos.
Mesmo assim, tais exemplos podem conter enormes falseamentos, como no caso das
freiras endemoniadas de Loudun, que foram induzidas a representar cenas de possessão. Lá,
uma conjunção de interesses levou vários personagens importantes a desenvolverem zelo
especial para que o processo fosse ―bem alimentado‖, garantindo a morte do padre Urbain
Grandier, que, na verdade, tinha como culpas verdadeiras a empáfia para com autoridades da
corte e do clero e o fato de ter engravidado a filha de um nobre local (Huxley, s/d e Mandrou,
1979, p. 215 a 231).
Se vemos com uma ótica crítica algum uso superficial dos documentos inquisitoriais
por historiadores, é porque acreditamos que o uso aprofundado pode trazer bons frutos. Não
podemos, porém, deixar de perceber uma espantosa semelhança. Vejamos, por exemplo, a
descrição das culpas localizadas por Conrad na Alemanha do século XII:
121
chamará de ‘sabá‘, e claramente colocada, diante do cristianismo, uma anti-religião
ameaçadora‖ (Delumeau, 1989, p. 351).
ANTIQUO (4)
―Ademais, quando as bruxas comungam, têm por costume receber a hóstia por
debaixo da língua, nunca sobre ela, para que nunca recebam qualquer remédio que
possa neutralizar o seu repúdio à Fé, seja pela Confissão, seja pelo Sacramento da
Eucaristia; e para que lhes seja mais fácil retirar da boca o Corpo do Senhor a fim
de usá-lo para outros fins, para maior ofensa do Criador.‖ (...)
―As bruxas têm sido vistas muitas vezes deitadas de costas, nos campos e nos
bosques, nuas até o umbigo; e pela disposição de seus órgãos próprios ao ato
venéreo e ao orgasmo, e também pela agitação das pernas e das coxas, é óbvio que
estão a copular com o Íncubo. Em raras ocasiões, ao término do ato, sobe ao ar,
como a despreender-se da bruxa, um denso vapor negro, cujas dimensões
equivalem à estatura de um homem‖ (Kramer, 1998, p. 245 e 240).
122
Há componentes, nestes documentos escritos, em tempo e espaço tão distintos que
são os mesmos: louvação ao demônio em forma de defunto; utilização, pelo herege, do nome
próprio do diabo para invocá-lo; profanação da hóstia consagrada e orgias sexuais diabólicas.
Parece-nos muito evidente – e esta evidência aumentará para o leitor nas análises
documentais diretas – que o clero católico criou uma fórmula para caracterizar o feitiço. Os
processos antes adequavam-se a ela do que eram alimentados por investigações. As
investigações existiam sim, mas eram feitas para corroborar a fórmula. Réus socialmente
importantes e/ou processos que interessassem politicamente aos inquisidores ou ao Estado, até
que poderiam receber uma conformação própria que servia para fortalecê-lo. Mesmo assim, as
culpas referentes ao judaísmo e à maçonaria estariam muito mais propensas a estas pressões,
pois o feitiço, em geral, envolvia pessoas de poucas posses e quase nenhum estudo.
b) Presença ou não, nas partes do processo que seriam referentes à fala do réu, de
palavras, termos, expressões e verbos distintos dos que eram usados pelos inquisidores no
mesmo processo, constituindo-se aí dois universos lingüísticos para a dedução.
123
linguagem escrita é sempre fonte para o entendimento da História do imaginário, mesmo que
o autor tenha ―criado‖ fatos e atos para incriminar alguém. Para o historiador, a conseqüência
da constatação da existência destas inverdades está nos critérios especiais que ele terá que
adotar para o uso destas fontes em seu trabalho.
Séculos de ação inquisitorial devem ter introjetado na cultura pelo menos uma parte
dos medos que o clero carregava. A iconografia inquisitorial reflete a ―troca cultural‖, em que
a concepção de um grupo tornou-se aceita de forma generalizada. Parte desta iconografia
demonstra a própria desmitologização. Toda a produção iconográfica reflete a mudança do
paradigma interior do Tribunal: do Medo ao Desprezo. Este será o tema da terceira e última
parte deste capítulo.
124
3.A TABULAÇÃO DAS METÁFORAS NA ICONOGRAFIA
SOBRE A INQUISIÇÃO
A análise que realizaremos nesta terceira parte do segundo capítulo soma-se àquelas
que estão nas duas partes do próximo capítulo: são exemplos ―práticos‖ da aplicabilidade e
consistência dos caminhos e noções propostos neste trabalho. Evidentemente, há muitas
outras possibilidades de aplicação nesta imensa temática inquisitorial. As razões que nos
levaram a escolher a iconografia, o direito e alguns processos coloniais estão explicitadas ao
longo de todo este trabalho.
125
vestidos e portando a mitra inquisitorial, vão sendo conduzidos por guardas aparentemente
comandados por dois senhores a cavalo. Os cavaleiros vestem boa roupa e seus animais estão
adornados. No fundo do quadro, à esquerda, vemos o desconfortável palanque dos réus, que
fica ao relento, pois o baldaquino que cobre as autoridades é símbolo de poder, estando
proibido seu uso para proteger cabeças menos prestigiadas.
Em outra iconografia, de autoria de Bernard Picart, vemos uma cena de execução dos
condenados pela inquisição portuguesa (ver Figura 7). Em pleno Terreiro do Paço, cujas
construções aparecem em seus fortes traços arquitetônicos à direita da iconografia, ladeado
pelas embarcações que surgem em águas mais distantes desenhadas à esquerda, ergue-se a
cena da execução. Na execução, dois hereges já queimam no fogo alto, enquanto um outro
aguarda, atado ao tronco, que a fogueira seja acesa. Há vários réus no primeiro plano da cena,
com seus ―padrinhos‖ apresentando-lhes o crucifixo na espera de uma retratação do
condenado. A dramaticidade aumenta quando se vê a multidão na praça: pessoas de todos os
tipos e origens, algumas com carruagens e cavalos. Tudo estaria perfeito não fosse um detalhe
que nos é indicado em História das Inquisições:
―Temos aqui uma novidade iconográfica, pois é a primeira vez que se representa
esta cena no décor do Terreiro do Paço, embora se saiba que o local de execução
não era ali mas na zona oriental, perto do chafariz dos cavalos, junto ao rio‖
(Bethencourt, 1994, p.328).
126
inquisitoriais. A figura humana que aparece na cena acima dos demais está sendo vítima da
polé, tortura em que o réu é içado por força humana com uma corda que se prende a ele e
passa por uma roldana no teto. Esta técnica aparece descrita em processos e regimentos
inquisitoriais. À direita da gravura, está o inquisidor, sentado em uma cadeira de braços, com
o notário à sua frente, sentado em um banquinho. Contudo, na parte central da cena, ao fundo,
e na parte à esquerda aparecem duas técnicas de tortura que coincidem com umas descritas
por Anita Novinsky, cuja análise do Tribunal baseia-se na ―lenda negra‖:
―Os tormentos variavam. Em Lisboa se retalhavam as plantas dos pés dos réus,
untavam-se de manteiga e em seguida os submetiam ao calor de um braseiro.‖ (...)
―Antes do auto-de-fé, aplicava-se o potro, mas depois da sentença proferida no
auto, voltando o réu para o cárcere, continuavam a aplicar qualquer tipo de
tortura.
―Na cena de tortura temos a sobreposição dos dois tipos já descritos, o potro e a
polé, tanto um como outro efetivamente utilizados pelas inquisições‖ (Bethencourt,
1994, p. 324).
―(...) apresenta diferentes tipos de tortura (que não coincidem, aliás, com as
informações documentais sobre esta prática) e inclui, finalmente, uma outra
sobre a execução dos hereges em Lisboa (também num local nunca utilizado, junto
ao palácio régio)‖ (Bethencourt, 1994, p. 324 e 328. Grifo nosso.).
127
Mesmo com inexatidões históricas, a iconografia inquisitorial permite uma
tabulação das metáforas culturais com as quais se formaram as diversas
concepções sobre o Tribunal do Santo Ofício, mas não deve receber uma
total credibilidade factual. Aliás, as inexatidões podem servir ao propósito
da análise histórica. Nesta iconografia podemos encontrar as já referidas
lendas branca e negra da historiografia sobre a Inquisição. Podemos,
também, elucidar o significado dos diversos olhares dos que se voltaram
para a ação inquisitorial para produzir tais documentos históricos
iconográficos.
A relação direta de Goya com a Inquisição parece ter começado quando o pintor foi
chamado a se explicar pela pintura das famosas Majas: a Vestida (Figura 10) e a Desnuda
(Figura 11). As imensas majas já possuem tradição polêmica. Existe versão de que se trataria
da Duquesa de Alba, que teria sido amante do pintor e pousado para ele. Na verdade, há
semelhanças entre o rosto daquela senhora mostrado em retratos oficiais e aquele que se
mostra na anônima (?) maja. Porém, não é crível que o pintor comercializasse quadros que
128
tivessem um significado tão pessoal, pois diversas de suas obras foram produzidas para ele
próprio. As majas, com suas dimensões enormes (1,90 cm) que podem ter alcançado o
tamanho natural da possível modelo, estavam nos aposentos do ex-primeiro ministro Manoel
Godoy quando este caiu em desgraça e foi processado pela Inquisição (Wright, s/d, p.36). Os
quadros foram apreendidos e seu autor chamado para explicações.
129
aguardam o último suspiro do pobre homem. É curioso notar que há duas versões para a
mesma cena: o pequeno quadro que pertence a uma coleção privada, já citado, e o imenso
trabalho de nove metros quadrados, cujo detalhe está na Figura 13a e que encontra-se na
Catedral de Valência. O jesuíta Francisco de Borja foi um ―típico santo aristocrata: humilde,
determinado, empreendedor, conquistando pessoas de todas as classes sociais pela sua
bondade e cortesia‖ (Attwater, s/d, p. 123).
A intensidade mística com que o autor trata esta pintura está, inclusive, no
posicionamento da mão esquerda do religioso: medianamente erguida, permanece longe da
boca, pois Borja, com sua espiritualidade, não precisa tapá-la para evitar que o demônio se
apodere dele – crença corrente à época –, como teve que fazer o homem que aparece
apavorado em O violentamente enfeitiçado (Figura 19), onde um personagem de uma peça
teatral, louco e tomado por superstições, considera-se obrigado a manter acesa a chama do
demônio para evitar a própria morte, mas quando se aproxima para fazer o trabalho, está
compelido a pôr a mão na boca para que o diabo não entre em seu corpo. ―O tema desta
pintura é derivado de uma peça de teatro cômica do século XVIII intitulada A lâmpada do
Diabo, do escritor espanhol, Antonio Zamora. Esta cena se refere a um ponto específico da
narrativa da peça, que Goya apropriadamente escolheu representar como se fosse num
palco. Abaixo, no canto direito da pintura, partes do texto são dispostas de forma a serem
lidas, como se fosse um roteiro‖ (Wright, s/d, p.30). Mais uma fina ironia do pintor aragonês.
Já o Enterro, pertence a uma série que nos interessa, como demonstrou José Gudiol:
130
Mesmo assim, ainda que denunciando a mística, nota-se um fascínio que nos faz lembrar até
mesmo alguns traços da obra de Hieronymus Bosch (século XV).
131
o observa. A negritude desta série nos remete a uma curiosa hipótese. Um dos fatores que
permitem associar o negro e o cinza a temas sérios e importantes, até tenebrosos, deve ter sido
a estética dos monumentos antigos que foram sendo reencontrados e revalorizados ao longo
dos últimos cinco séculos.
Hoje, sabe-se que muitas expressões artísticas gregas, por exemplo, eram
originalmente coloridas e até espalhafatosas para nossos padrões atuais, tendo perdido o
pigmento com o tempo. É o caso da escultura que aparece na Figura 36 em duas versões: da
forma como está hoje e, após um trabalho de descoberta de suas cores originais e coloração
por computador, da maneira como os gregos a conceberam e a viram realmente. O uso intenso
e belo das cores desfaz a impressão – que talvez tenha sido paradigmática – de que os antigos
prefeririam o cinza.
132
tipos devotos, Goya aproxima a Inquisição da flagelação, mostrando indiretamente que as
vítimas do Tribunal também eram flageladas, só que a contragosto. A disposição da imagem
da Santa em Flagelados ocorre no mesmo local da tela em que encontramos o réu inquisitorial
de Tribunal, uma ilação que pode significar a ―santificação‖ do réu. Isto pode indicar uma
proposital contraleitura da Inquisição. Aliás, estes quadros possuem as mesmas dimensões
medianas e pertencem, como já foi dito, à mesma instituição. Em ambos, a multidão está à
direita representadas em traços rápidos que aumentam a dramaticidade da cena. Já os
religiosos estão à esquerda. Enfim, a mitra pontuda ou chapéu cônico, que pode ser vista em
detalhe (Figura 16a), aparece nos dois trabalhos, garantindo um primeiro impacto para a
sensações de conjunto e movimento que o autor quis dar.
Em uma gravura famosa intitulada O sono da razão (Figura 17), Goya resume o que
pensa das criaturas e seres sobrenaturais usados pela Inquisição como provas em processos do
Tribunal. Para o pintor espanhol não há dúvida na antítese: é o sono da razão que provoca os
monstros terríveis representados por corujas e um gato. Aliás, no desenho preparatório para a
gravura (à esquerda, na Figura 17), o próprio Goya se desenhou vendo-se dormir ou orar,
talvez indicando que o homem deve ―acordar-se‖ a si mesmo pela força do pensamento
ilustrado. Esta gravura, marcada por um racionalismo que libertaria o espírito das ―trevas da
ignorância‖, é uma das que autorizam argumentações como aquela defendida pelo curador
Pablo Rico Lacasa, que considerou que a obra goyesca seria eminentemente moderna por
estar carregada de ―absoluta entrega e generosidade‖ (Lacasa, s/d, p.8). Esta argumentação
se consolida pela aparente dicotomia entre a posição filosófica do artista e a Santa Inquisição.
133
dos ápices de sua arte, aquela mais rigorosamente relacionada ao espírito popular e
que realmente o tornou internacionalmente famoso, devido ao seu caráter (tipo)
narrativo direto e espontâneo, mas também por causa da representação do
dramático, do absurdo e do estranho‖ (Gudiol, 1986, p.19).
Com esta série o pintor parece ter tentado uma ―arte testemunhal e comprometida,
de denúncia e protesto. Matando dois coelhos com uma cajadada. Lutando contra as
‗extravagâncias‘ e ‗embustes‘, e tensionando a ‗fantasia do artífice‘, sua própria capacidade
criadora‖ (Lopera, 1996, p.44). É o próprio Goya que escreve no texto de apresentação da
coleção:
134
Em No Te Escaparás (Figura 31) e No Hay Quien Nos Desate (Figura 32), volta-se
ao tema cobiça por mulheres X vida moralmente regrada. Em No Te Escaparás ocorre, mais
uma vez a disputa renhida pelos prazeres que só as mulheres podem oferecer, diferentes dos
prazeres da gula ou da riqueza, por exemplo. Notemos que os homens, representados em
figuras voadoras que lembram abutres, são guiados por um ser meio-coruja, que parece
remeter à crendice das corujas-vampiras. Já em No Hay Quien Nos Desate surge a luta entre a
manutenção dos laços amorosos – aqui representados materialmente por uma corda que
enlaça o casal – e a tentação demoníaca da coruja. As fixações sexuais e as afetações imorais
de comportamento, estão, para Goya, no mesmo quadro da loucura e das crendices.
Poderíamos até adentrar-nos pela Psicologia e pela Antropologia e supor que uma libido que
se exterioriza de uma forma considerada diabólica pela cultura está relacionada com outras
perversões, dando forte base de sustentação para esta intuição do pintor duzentos anos antes
do presente.
Mas, não faremos tal análise para não desviar o olhar da noção de Pedagogia do
Desprezo. Destacamos, porém, que é na imensa obra A Família de Carlos IV (Figura 26) que
estas variáveis aparecem juntas. Uma família real aparece com semblantes temerosos –
provavelmente numa referência à crise política que enfrentaram – e com atitudes moralmente
duvidosas: a Rainha, ao centro, tem no cabelo o grampo que lhe teria dado o amante Manoel
Godoy, seu protegido. A filha da Rainha, infanta Maria Isabel, aparece com o mesmo grampo,
numa referência a uma possível origem bastarda. O grampo reapareceria em As Velhas, já
analisado aqui. À esquerda, muito próxima, a noiva do Príncipe aparece com o rosto voltado
para trás, pois o noivado não havia sido anunciado. Uma figura de mulher velha e tenebrosa,
ao fundo e à esquerda, tem a expressão de uma bruxa. O próprio Goya – lembrando
Velásquez em As Meninas –se retratou neste quadro, na extrema esquerda, ao fundo, meio de
costas para a Família Real, observando tudo com um ar de serenidade. Aqui, a Corte devassa
e decadente serve para dar uma mostra do pensamento político-filosófico – e até moral – do
artista.
Além dos exageros e desvios da nobreza, Goya centrou suas baterias contra a loucura
que se impõe através da ignorância e do medo. Em Disparate Furioso (Figura 21), A Loucura
do Pateta (Figura 22) e O Temível Louco (Figura 23), vê-se o vazio do assombramento que,
no entanto, impera graças à fragilidade espiritual e intelectual dos homens. A primeira delas,
também conhecida como Loucura Cruel, mostra o contato, provavelmente inicial, do autor
com a loucura, no asilo de Saragoza. A cena, que deve ter sido presenciada por ele, varia da
alienação (figura à direita e figuras ao fundo) à enorme violência do personagem principal,
que está em movimento da esquerda para a direita após ter arpoado a cabeça do personagem
que está caindo. Parece que o pintor foi buscar nas crendices presentes nas outras duas
gravuras aqui citadas, o motivo da loucura. Em A Loucura e O Temível há gigantes horrendos
135
que são falsos monstros. O pateta seria Bobalicón (Wright, s/d, p.56), representando aqui a
adoração supersticiosa de imagens sagradas ou maléficas pela Igreja Católica. Um monge
tenta combater o pateta com outro falseamento: segura uma imagem envolta em panos para
atrair a atenção do bobo. Aliás, tudo se passa num clima de absurdo, pois os personagens
centrais – Bobalicón e a figura que o monge arrasta – são simplesmente irreais. Há distorções
de formas que aceleram a sensação de movimento.
O clero católico foi outro alvo para o gosto do artista. Em Contra o Bem Comum
(Figura 27), Qué Pico de Oro (Figura 30) e Ya es Hora (Figura 33), o clero aparece
preguiçoso, idólatra e ambicioso. A Figura 27 mostra um clérigo com asas de morcego
sentado sobre o globo e fazendo anotações. Na Figura 30 há uma cena de idolatria que tem
por centro, mais uma vez, a coruja, agora rodeada de religiosos católicos. Em Ya es Hora,
padres preguiçosos bocejam suas faces disformes horripilantes.
136
O desprezo dispensado, na Idade Moderna, pelos homens cultos às manifestações de
―crendices‖ e ―misticismo‖ foi um episódio da difícil relação entre as duas formas de
humanitas. Porém, aqui nos interessa uma conseqüência deste processo: o destino desta
tendência foi a desmitologização da cultura de uma forma geral e a abertura de uma nova
mentalidade para a aceitação de princípios cada vez mais laicos na aplicação do direito, como
veremos no próximo capítulo.
137
NOTAS DE REFERÊNCIA
(1) - Este paralelismo entre culpa, defesa e apenamento não gerou uma tradição
jurídica para os Estados Nacionais. Por outro lado, o princípio moderno de que a pena deve
ser capaz de regenerar o culpado – essencial à justiça dos estados ocidentais contemporâneos
– parece ter recebido forte influência da noção cristã de perdão, tão presente no imaginário do
Santo Ofício! Afinal, na justiça secular dos nossos dias, o provimento da pena pressupõe a
capacidade do Estado de promover a regeneração do preso, da mesma maneira que os réus
reconciliados eram tidos pelo Tribunal do Santo Ofício como reintegrados à fé cristã. Havia,
no Santo Ofício, até penas de (re)catequização do pecador com obrigatoriedades litúrgicas.
(2) - Referimo-nos aqui ao ambiente desencantado conceituado por Max Weber para
caracterizar a relação do homem contemporâneo com a fé e com a morte (Weber, 1992, p. 431
a 453). Esta ―nostalgia‖ mística do homem ocidental hodierno pode dificultar ao historiador a
visualização de facetas abstratas nas temáticas que aborda.
(3) - Esta diferenciação entre heresia e magia não é consensual. Evitamos fazê-la
com a contundência do autor, pois acreditamos ser preciso aprofundar os estudos para definir
se há diferenças claras entre o discurso inquisitorial quando este se volta contra a magia e
quando se dá contra a heresia.
(4) - De agora em diante, todas as citações que utilizem a língua portuguesa com
ortografia antiga serão precedidas pela palavra latina antiquo neste formato: ANTIQUO. Se a
citação ocorrer no corpo do texto principal, a mesma palavra aparecerá entre parênteses ao
final do trecho citado. Alguns poucos grafismos e pontuações foram atualizados para permitir
a compreensão. Há casos que se devem a erros do notário, mesmo se considerada a época do
documento.
(6) - A série de reproduções das obras de Goya, escolhidas para este trabalho,
encontra-se ao final do capítulo II, entre este e o capítulo III.
138
CAPÍTULO III
139
―Todo o processo penal e os meios mais rigorosos de obtenção da confissão ou do
arrependimento – incluindo a tortura e a execução – são considerados ―remédios‖
para a alma. Trata-se, antes de mais, de estimular a verdadeira contrição do
acusado e de lhe fornecer os meios para salvar a sua alma, mesmo se isso deva ser
feito contra a sua própria vontade e com o sacrifício da própria vida: os
inquisidores argumentam freqüentemente que os impenitentes podem renegar os
seus erros antes do último suspiro, rodeados pelas chamas, graças ao rigor da pena
capital.‖
140
1.EM TORNO DAS FONTES HISTÓRICAS: O FORMAL, O MATERIAL
E O TEOLÓGICO NA RACIONALIZAÇÃO DO DIREITO
Neste terceiro capítulo, assim como foi feito no estudo iconográfico da última parte
do capítulo anterior, buscaremos aplicar nas amostras do medo de bruxa o caminho teórico-
metodológico que propomos à luz da nova noção de Inquisição sistematizada como tarefa
principal deste trabalho. Aqui, faremos a busca em regimentos (análise da racionalização
formal) e processos (mitocrítica). Na conclusão, a noção de inquisidor-mártir-purificador
pretende ser a síntese conceitual deste nosso esforço. Antes, porém, é preciso caminhar em
torno das fontes e perceber suas origens e circunstâncias históricas. Principalmente, veremos
que os documentos inquisitoriais exprimem atos de direito com fortes raízes na forma como
se deu a relação entre fé cristã e poder secular na história ocidental.
141
querem os limites do direito quando estabelecidos em formato racional quanto a valores éticos
naturais. Entretanto, o próprio Weber acrescenta:
―(...) com execeção daquelas normas que são obrigados a reconhecer como
religiosamente sagradas e, por isso, absolutamente compromissórias. Para todos
eles constitui um obstáculo a contradição inevitável entre o formalismo abstrato da
lógica jurídica e a necessidade de cumprir postulados materiais por meio do direito,
pois o formalismo jurídico específico, ao fazer funcionar o aparato jurídico como
uma máquina tecnicamente racional, concede ao interessado individual no direito o
máximo relativo de margem para sua liberdade de ação e, particularmente, para o
cálculo racional das conseqüências e possibilidades jurídicas de suas ações
referentes a fins‖ (Weber, 1999, p.101).
A justiça, então, era o que se denomina de ―justiça popular‖: ―toda justiça popular
julga, e isto tanto mais quanto mais tem este caráter, segundo o ‗sentimento‘ concreto,
condicionado por convicções éticas, políticas — especialmente em Atenas, mas também hoje
em dia — ou político-sociais‖ (Weber, 1999, p.103). A hegemonia e unicidade desta ―justiça
popular‖ desapareceu. Aliás, o direito transformou-se ―por toda parte‖ (Weber, 1999, p.100):
partiu da irracionalidade formal-ritualista ligada a clãs, teocratas ou príncipes patrimoniais
para diversas formas de racionalização. Na Europa cristianizada, a racionalização deu -se, em
princípio, para atender a interesses econômicos, estratégicos e simbólicos do clero e da
nobreza. A racionalização acabaria por propiciar, mais tarde, uma separação entre um direito
para assuntos pertinentes à religião e outro ―para a resolução dos conflitos de interesses
religiosamente indiferentes entre os homens‖ (Weber, 1999, p.101).
O sociólogo faz estas ponderações para permitir sua argumentação propriamente dita.
A argumentação inicia-se com uma visão geral da história do direito, mas deságua em
exemplos que incluem a Inquisição:
142
eliminar meios processuais irracionais e a sistematizar o direito material, e isto
significava sempre também: a racionalizá-lo de alguma forma‖ (Weber, 1999, p.
100. Grifo nosso em negrito).
―O juiz não as obriga a fazer coisa alguma que elas próprias não peçam.
Precisamente por isso, o juiz não pode corresponder, naturalmente, à necessidade
de um cumprimento ótimo de exigências materiais dirigidas a uma justiça que
satisfaça o sentimento de conveniência e eqüidade concreto, em cada caso, quer se
trate nessas exigências materiais de pretensões motivadas por considerações
político-racionais referentes a fins, ou ético-sentimentais, pois aquela liberdade
máxima, concedida pela justiça formal, dos interessados na defesa de seus
interesses formalmente legais, já em virtude da desigualdade na distribuição do
poder econômico que por ela é legalizada, necessariamente leva sempre de novo ao
resultado de que os postulados materiais da ética religiosa ou da razão política,
parecem violados‖ (Weber, 1999, p. 102).
A peculiaridade interna está na própria origem histórica da religião cristã, que surgiu
na Antiguidade à parte do Estado ainda que referente a formas extintas de Estado, manteve tal
distanciamento em outras circunstâncias históricas, como nos dias de hoje – e, por isso
143
mesmo, teve com o direito uma relação de exterioridade. Poderíamos, para trabalho futuro,
investigar se a criação da Inquisição não se deveu a uma espécie de necessidade de mínimo
ordenamento do cotidiano dos cristãos, posto que o poder secular não teria tido sempre as
diretrizes da ética religiosa como base de sua ação judicial.
144
―I — Os sodomitas serão condenados a servirem nas galés de cinco até dez anos
com hábito particular que os distinga dos outros, e havendo o juízo secular
conhecer deste crime o Santo Ofício se não intrometerá‖ (In: Siqueira, 1996,
p.996. Grifo nosso).
―XVI — Não é crime duvidar da justiça e retidão do Santo Ofício, nem de outro
qualquer tribunal humano‖ (In: Siqueira, 1996, p.1001. Grifo nosso).
145
seu controle, em grande extensão, todo o direito, como é o caso particularmente na Índia‖
(Weber, 1999, p.105). Também na Pérsia: a respeito dela, aliás, Weber parecia premonir o
desfecho ocorrido décadas depois de sua morte, pois atribuiu à força do direito de origem
religiosa naquele país a ―legitimidade precária dos xás persas diante de seus súditos xiitas‖
(Weber, 1999, p. 116).
Naturalmente, surge a pergunta: por que foi diferente no Ocidente? Mesmo não
sendo uma preocupação nossa aqui, pensamos que a prática política da nobreza, desejosa de
manter uma certa distância em relação à classe sacerdotal, impediu o domínio ―total‖ do clero
sobre a justiça. Parece-nos evidente, porém, que não se imaginava, nos primórdios deste
processo de transformação de mentalidade jurídica, que um direito natural universal viria a
substituir o direito religioso ou de origem semi-religiosa. Em função disto, descartamos a
idéia de ―evolução‖ do direito, posto que não poderíamos atribuí-la com exatidão às intenções
dos agentes históricos que protagonizaram esta transformação. Uma tal transformação está
relacionada à desmitologização de valores. No direito, assim como no Tribunal como um
todo, a desmitologização possibilitou a crença em normas mundanas de estados seculares,
algo impensável, por exemplo, na Índia até sua independência, ou na Pérsia (Irã) até os nossos
dias – apesar das tentativas de modernização nas décadas de 1960 e 1970.
146
a de que o direito religioso basear-se-ia em irracionalidades místicas profundas (fanatismo
inquisitorial) e seria o aversso do direito contemporâneo. Na verdade, o direito de origem
religiosa cristã no Ocidente não só acolheu métodos racionais, como os animou e aplicou.
Desta forma, foi a busca teocrática de uma verdade absoluta que permitiu a adoção
da ação investigativa do processo inquisitorial. O formalismo ritualista antigo, vazio de
sentido investigativo, cedeu lugar a um formalismo investigativo-processual que levaria ao
direito natural em oposição ao direito ―materialmente‖ determinado. A análise acima tem um
resultado prático para o historiador. A recolocação de temas históricos é imprescindível para o
período que se convencionou chamar Idade Moderna. Um raciocínio habitual coloca em
campos opostos o nosso direito contemporâneo e o direito inquisitorial. Esta trilha de idéias
associativas começa com a ilusão que opõe luzes e trevas no Renascimento e no Iluminismo.
Daí se convencionou pensar que o mundo moderno fora construído ―heroicamente‖ ao vencer
as trevas medievais. Como se fosse possível uma ordem social totalmente nova, quase
impensável historicamente, onde os valores modernos nada teriam a ver com seus precedentes
e até se oporiam a eles. Vamos desenvolver nossa argumentação neste trecho do capítulo 3 no
sentido de contextualizar na história do direito os reflexos e inserções mútuas das imagens
que correspondem ao direito inquisitorial e ao direito moderno laico.
147
cultura ocorreu em um processo mais amplo, que influenciou decisivamente o direito, a
História e a expectativa das pessoas sobre o papel da religião em suas vidas. O caso da
Inglaterra na segunda metade da Idade Moderna é paradigmático para anteciparmos a direção
a que levou a secularização:
―Na historiografia, tornava-se cada vez mais antiquado, após os meados do século
XVII, explicar os acontecimentos em termos da Divina Providência. O conde de
Claredon não negava que se podia perceber o dedo de Deus na Grande Rebelião,
mas, ainda assim, ele preferiu se concentrar nas ‗causas naturais‘ que a geraram. A
maioria das pessoas reagia contra os fanáticos que prontamente identificavam as
sentenças de Deus na vida cotidiana, e mesmo as seitas dissidentes passavam a dar
menor relevo do que antes às providências. A Sociedade dos Amigos era o grupo
religioso que mais dera publicidade a tais ‗castigos divinos‘, mas quando o quacre
Thomas Ellwood lançou sua edição do diário de George Fox, em 1692-4, ele
omitiu prudentemente alguns dos ‗castigos‘ a perseguidores, originalmente
mencionados no livro. Em 1701, os quacres puseram termo ao seu costume de
exigir que se fizesse, em cada Reunião dos Amigos, um relatório anual dos
infortúnios enviados por Deus aos seus perseguidores nos últimos doze meses.
O fiel inglês da segunda metade do século XVII já não colocaria nas mãos de Deus a
realização de toda a Justiça. A mentalidade dos fiéis ingleses chegou a este ponto após todo
um processo desmitologizador que atingiu o cerne da própria fé. Tudo indica que a Península
Ibérica sofreu um processo secularizador diferente: através da Inquisição, a fé católica foi
agente desta tendência dentro da própria cultura.
148
―certeza‖ de que o governante ―olha pelos seus cidadãos ou súditos‖. Esta é uma característica
permanente na sustentação dos Estados. O Santo Ofício levava este olhar para o interior de
cada cômodo, rua ou navio. O sentimento da onipresença do olhar inquisitorial é uma ação de
Estado – mesmo não resultando da vontade momentânea de algum governante – que foi
possível graças à existência da rede de familiares do Tribunal. A consolidação da lógica do
direito inquisitorial só foi possível no Ocidente graças também a fatores outros, tais como: a
dureza do cotidiano urbano moderno na Europa; o poder de convencimento e mobilização dos
atos de intolerância religiosa e o caráter paradoxalmente imanente do olhar teológico da
cristandade. Vejamos estes fatores.
Já vimos que o mundo moderno renascentista não foi uma fortaleza de orgulho e
serenidade. Vemos agora que o direito refletiu o ambiente de medo obsidional. Da mesma
forma, as principais instituições passaram por grandes mudanças no período. Também a
estrutura social transformou-se num ritmo inusual para os antepassados recentes daqueles
europeus do período. As classes subalternas viviam em extrema penúria, mas a vida era dura
para todos. À penúria material somava-se o ambiente de medo. Muitas cidades eram cercadas
por muralhas. Pierre Bonassie refere-se a ―uma época de declínio urbano, caracterizado, a
partir do século XIII, por uma retracção muito sensível da superfície dos aglomerados, que se
amontoam no interior de muralhas exíguas‖ (Bonnassie, 1985, p. 51).
Uma vila portuguesa típica, estudada pelo historiador local Luis Vidigal, apresentou,
até o final do século XVIII, um maior número de domicílios na ―cidade velha intra-muros‖
que em qualquer outra das quatro áreas da cidade. Trata-se de Portimão, no Algarve, que
tinha, segundo dados de 1774, um total de 389 residências. Destas, 128 (32.9%) ainda
estavam para dentro das muralhas em 1774. As outras regiões da cidade eram assim
divididas: Porto da Serra, com 28.8%; Zona da Rua Direita, com 26.7% e Zona da Rua da
Barca, com 11.6% do total geral de domicílios. Somente os dados de 1822 apresentaram uma
modificação deste quadro (Vidigal, 1993, p. 66). Max Savelle, num trecho didático, resumiu
a situação das cidades européias no final da Idade Média:
149
em que o sol escassamente chegava a alcançar o leito do logradouro‘‖(citado por
Gonzaga, 1993, p. 51).
150
Porém, longe de utilizarmos tal visão como base da análise, interessa-nos aqui
ressaltar um anacronismo na importância que é dada por muitos autores aos ―setores críticos‖
como propulsores da História de uma sociedade. Nesta concepção, só seria possível entender
o Santo Ofício e o direito inquisitorial como agentes de dominação típicos das ―lutas sociais‖.
A conseqüência para a análise histórica é que a imensa manifestação de apoio popular
representada pela presença das massas no entusiasmo do auto-de-fé perderia uma parte do
sentido, pois não se poderia explicá-la. A rigor, uma concepção evolucionista da História é
inadequada para compreender a relação entre a Inquisição e a sociedade portuguesas. Tema
constrangedor para tantos quantos precisam ver no Tribunal do Santo Ofício uma
―monstruosidade histórica‖, a percepção desta aproximação harmoniosa entre ―povo‖ e
intolerância diluiria as ilusões e idealizações que imaginam o ―povo‖ como um agente de
recusa dos valores da ascese inquisitorial. As fontes históricas não nos permitem afirmar a
existência de um antagonismo generalizado entre o Santo Ofício e a ―vontade‖ popular.
―A teoria crítica da sociedade não possui conceito algum que possa cobrir a lacuna
entre o presente e o seu futuro; não oferecendo promessa alguma e não ostentando
êxito algum, permanece negativa. Assim, ela deseja permanecer leal àqueles que,
sem esperança, deram e dão sua vida à Grande Recusa. No início da era fascista,
Walter Benjamin escreveu: ‗Nur um der Hoffnungslosen willen ist uns die
Hoffnunggegeben‘.
Hannah Arendt também fez objeções que nos permitem refletir. Ela nos desvenda os
vínculos entre a intolerância, o totalitarismo do século XX e o discurso teórico da História,
aparentemente apartado dos primeiros fatores.
151
―A afirmação monstruosa e, no entanto, aparentemente irrespondível do governo totalitário é
que, longe de ser ―ilegal‖, recorre à fonte de autoridade da qual as leis positivas recebem a sua
legitimidade final; que, longe de ser arbitrário, é mais obediente a essas forças sobre-humanas que
qualquer governo jamais o foi; e que, longe de exercer o seu poder no interesse de um só homem, está
perfeitamente disposto a sacrificar os interesses vitais e imediatos de todos à execução do que supõe
ser a lei da História ou a lei da Natureza. O seu desafio às leis positivas pretende ser uma forma
superior de legitimidade que, por inspirar-se nas próprias fontes, pode dispensar legalidades menores
(...).
152
impulsos individuais em nome do convívio nas comunidades cristãs e da estabilidade
econômica das famílias. O esgotamento da Civilização Romana deixou espaços e clarões que
foram preenchidos pela cristianização.
Mesmo a ordem jurídica secular dos Estados absolutistas guarda semelhanças com a
Inquisição. Questionamos, até, se a ordem teria sido inversa: será que a Inquisição Moderna é
que teria se espelhado na ordem absolutista? Sem entrar neste mérito, percebemos que os
métodos e as justificativas de ambos são, muitas vezes, parecidos. Porém, o debate de fundo
que permite retornar às raízes desta questão – como requer a metodologia que escolhemos –
dá-se no campo da teologia. No nosso modo de entender, desmitologização e intolerância
estiveram associados. Em geral, o senso comum indica que a intolerância religiosa ocorreria
como resultado de um fanatismo místico exacerbado. Esta vinculação ilusória entre mística e
fanatismo não se vê na História da Inquisição. Na verdade, o cristianismo moderno da caça às
bruxas já estava bem mais ―secularizado‖ que aquele que o antecedeu. O cerne do ato
investigativo inquisitorial moderno – a inquirição – nada mais é que um ato que põe em
dúvida e tenta ―localizar‖, descrever e compreender componentes místicos que serviriam de
base aos processos.
―Depois de ter jejuado quarenta dias e quarenta noites, acabou sentindo fome. O
tentador aproximou-se e lhe disse: ‘Se és o Filho de Deus, ordena que estas pedras
se transformem em pães‘. Mas ele respondeu: ‘Está escrito: Não só de pão viverá o
homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus‘.
―Então o diabo o leva à Cidade Santa, coloca-o sobre a cumeeira do Templo e lhe
diz: ‘Se és o Filho de Deus, atira-te para baixo, pois está escrito: Ele dará a teu
respeito ordem a seus anjos e eles te carregarão nas mãos, para evitar que
contundas o pé em alguma pedra‘. Jesus lhe diz: ‘Também está escrito: Não porás
à prova o Senhor teu Deus‘. O diabo o leva ainda a uma montanha muito alta;
mostra-lhe todos os reinos do mundo e seu esplendor e lhe diz: ‘Tudo isso te darei,
se, prostrando-te, me adorares‘. Então Jesus lhe diz: ‘Retira-te Satanás! Pois está
153
escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás e só a ele prestarás culto‘. Então o diabo o
deixou, e eis que se aproximaram anjos e o serviram‖ (Mateus 4, 1-11).
Mateus antecipou esta vocação da Igreja na passagem que citamos há pouco, onde as
escolhas estão na encruzilhada metafórica à qual vemos chegar Jesus, levado pelo diabo. Jesus
vem vindo do jejum de quarenta dias quando três caminhos tentadores se lhe apresentam: a)
uma religião alienante/mágica expressa no desafio de transformar pedra em pão; b) uma fé
nas obras extraordinárias, onde tudo se resolveria pela ação milagrosa de Deus, que salvaria
Jesus na queda do alto do Templo ou c) a associação com o diabo, onde este lhe entregaria o
poder terreno de todos os governos, pois, diz o próprio demônio, ―a mim que ele foi entregue
e eu o dou a quem eu quiser‖ (Lucas 4, 5). Jesus renega os três e é ajudado pelos anjos. Esta
―leitura teológica‖ para uma passagem tão simbólica é muito elucidativa para o entendimento
do nosso argumento. Na primeira tentação, o diabo estaria propondo que Jesus fugisse da
difícil condição humana (conceito muito próximo da ciência) através de um passe de mágica.
A tentação seguinte objetivaria forçar Deus a confirmar a missão de Jesus na Terra através de
grandes obras. Enfim, a terceira buscaria levar Jesus a trocar a pregação de serviço pela
associação com o poder político dominador. A recusa em seguir qualquer destes caminhos
154
demonstraria a escolha pelo ―caminho longo‖ que conquista cada ser humano pelos exemplos
do amor e do bem servir.
Qualquer outra busca de formulação mística poderia, nesta perspectiva, levar a uma
mistificação alienante da fé. O ato religioso tornar-se-ia lento e extremamente regulamentado,
lembrando a rigidez cadavérica. Muitas denominações cristãs optam até hoje por este
paradigma desmitologizador. O aggiornamento a que se refere Durand (ver citação na
abertura do capítulo 1) nada mais é do que uma ilusão de movimento. Infecundo, este
reducionismo tem no agnosticismo seu mais radical representante, mas está presente
igualmente em um pensamento teológico que se pretende prenhe de dimensão mística. Vemos
Tomás, em sua Suma Teológica (1998), tentar unir Aristóteles – a quem chamaria o Filósofo
– com o princípio do Espírito Santo. Vemo-lo, também, em sua teologia que pretende clarear
a Revelação, tentar uma explicação ―lógica‖ para a graça que ―se dá interiormente nos
crentes‖ movida ―por um interior instinto‖.
―Diz o Filósofo que ‘cada coisa se denomina por aquilo que nela é o principal‘.
Pois bem, o principal na lei do Novo Testamento, e nisto está toda a sua virtude
(força), é a graça do Espírito Santo, que é dada pela fé em Cristo. Por conseguinte,
a lei nova principalmente é a própria graça do Espírito Santo que se dá aos fiéis em
Cristo....‖ (Summa Theologiae, I-II, q. 106, a. 1. Nota: a indicação bibliográfica
deste livro segue regra específica do mesmo.).
―Conforme fica dito, duas coisas a lei nova engloba: uma, a principal, é a graça do
Espírito Santo, comunicada interiormente, e enquanto tal, a lei nova justifica....
Como elementos secundários da lei evangélica estão os documentos da fé e os
preceitos, que ordenam os afetos e atos humanos, e quanto a isto, a lei nova não
justifica. Por isso diz o apóstolo na segunda carta dos coríntios: ‘a letra mata, o
espírito é o que dá vida‘... De onde também a letra do Evangelho mataria se não
tivesse a graça interior da fé, que sara‖ (Ibidem, I-II, q. 106, a. 2).
―A lei nova chama-se ‘lei de fé‘, enquanto que sua principalidade consiste na
própria graça que se dá interiormente nos crentes, que por isso se chama ‘graça da
fé‘...‖ (Ibidem, I-II, q. 107, a. 1 ad 3).
―Sendo a graça do Espírito Santo como um hábito interior infuso que nos move a
agir bem, faz-nos executar livremente o que convém à graça e evitar tudo aquilo
que lhe é contrário. Conclusão: a nova lei chama-se lei de liberdade num duplo
sentido. Primeiro, enquanto não nos compete a executar ou evitar senão aquilo que
por si é necessário ou contrário à salvação eterna, e que, portanto, cai sob o
preceito ou proibição da lei. Segundo, enquanto faz com que cumpramos
155
livremente tais preceitos ou proibições, já que os cumprimos livremente por um
interior instinto de graça. E, por estes dois motivos, a lei nova chama-se ‘lei de
perfeita liberdade‘, conforme a expressão de São Tiago‖ (Ibidem, I-II, q. 108, a. 1
ad 2).
156
―Suplicai ao Senhor a chuva tardia da primavera. É o senhor quem provoca as tempestades;
ele concederá chuvas copiosas a cada um dos produtos dos campos. Com efeito, os ídolos deram
respostas vazias e os adivinhos tiveram visões mentirosas, prodigalizaram sonhos vazios e consolações
ilusórias. Eis o que fez o povo ir-se como um rebanho, infeliz na falta de pastor.
―É contra os pastores que minha cólera se inflama, contra os bodes que vou
intervir. Sim, o Senhor de todo poder, visitará o seu rebanho – a casa de Judá. Dele
fará o seu glorioso corcel de combate. De Judá sairá a pedra angular, a estaca da
tenda, o arco da guerra; dele sairão todos os seus chefes. Juntos, à semelhança de
guerreiros, combaterão, calcando a lama das ruas. Lutarão, por que o Senhor estará
com eles, e os cavaleiros em suas montarias cobrir-se-ão de vergonha. Robustecerei
a coragem da casa de Judá e salvarei a casa de José. E os restabelecerei, porque
deles me compadecerei, como se nunca os houvesse rejeitado, pois eu sou o Senhor
seu Deus, e hei de ouvi-los‖ (Zacarias 10, 1 a 4).
A ―pedra angular‖ seria o líder que libertaria o povo. Neste caso, interpretamos que o
inimigo a ser derrotado encarna-se exatamente nos ―pastores e bodes‖ que admitem o lado
místico. A esses se poderia até fazer a guerra.... O aguerrido ataque aos princípios místicos
presente no texto bíblico tem origem na antigüidade grega. Com uma concepção muito
própria – que talvez apresente alguma proximidade com noções weberianas – o filósofo
Friedrich Nietzsche vê na superação da tragédia grega e de seus valores pagãos – anteriores às
noções cristãs de pecado e moral – a ascensão do ―racionalismo humanista‖ e de um
―humanismo moral‖, que valorizaria a fraqueza.
Não discutiremos aqui – até por não ser tema do corte temporal deste trabalho – o
mérito das famosas assertivas do pensador alemão ao considerar que ―valores humanistas‖
teriam retirado os homens do seu estado original e que seria desejável um retorno àquela
condição. Mas vemos nele um complemento para entender a tradição judaico-cristã, pois
destacou o papel de Sócrates como o iniciador desta trilha que afastou a cultura ocidental do
saber místico, similar aos passos dados pela teologia de inspiração aristotélica. Marilena
Chauí assim resume e pensamento de Nietzsche:
157
seus discípulos que se abstivessem dessas emoções ‘indignas de filósofos‘. (...).
(...) ‘enquanto que em todos os homens produtivos o instinto é uma força
afirmativa e criadora, e a consciência uma força crítica e negativa, em Sócrates o
instinto torna-se crítico e a consciência criadora‘. (...) Perdendo-se a sabedoria
instintiva da arte trágica, restou a Sócrates apenas um aspecto da vida do espírito, o
aspecto lógico-racional; faltou-lhe a visão mística, possuído que foi pelo instinto
irrefreado de tudo transformar em pensamento abstrato, lógico, racional‖ (in
Nietzsche, 1991, p. XI e XII).
―O asceta trata a vida como um caminho errado, que por fim é preciso desandar,
voltando para onde ele começa; ou como um erro, que se refuta – que se deve
refutar – pelo ato; pois ele exige que se vá com ele, ele impõe onde pode sua
valoração da existência‖ (Nietzsche, 1991, volume II, p. 94).
―De fato, um dos cuidados que mais a peito tiveram os filósofos do pensamento
clássico, foi purificar de formas mitológicas a concepção que os homens tinham de
Deus. Bem sabemos que a religião grega, como grande parte das religiões
cósmicas, era politeísta, chegando a divinizar até coisas e fenômenos da natureza.
158
As tentativas do homem para compreender a origem dos deuses e, nestes, a do
universo tiveram a sua primeira expressão na poesia. As teogonias permanecem,
até hoje, o primeiro testemunho desta investigação do homem. Os países da
filosofia tiveram por missão mostrar a ligação entre a razão e a religião.
Estendendo o olhar para os princípios universais, deixaram de contentar-se com os
mitos antigos e procuraram dar fundamento racional à sua crença na divindade.
Emboçou-se assim uma estrada que, saindo das antigas tradições particulares,
levava a um desenvolvimento que correspondia às exigências da razão universal. O
fim que tal desenvolvimento tinha em vista era a verificação crítica daquilo em que
se acreditava. A primeira a ganhar com esse caminho feito foi a concepção da
divindade. As superstições acabaram por ser reconhecidas como tais, e a religião,
pelo menos em parte, foi purificada pela análise racional. Foi nesta base que os
Padres da Igreja instituíram um diálogo fecundo com os filósofos antigos, abrindo a
estrada ao anúncio e à compreensão do Deus de Jesus Cristo‖ (João Paulo II, 1999,
número 36.).
********
Diante da concepção adotada no item anterior, partimos aqui para localizar aquele
tipo de formalismo racionalizador das práticas processuais a que nos referimos há pouco. Ao
invés do formalismo unicamente ritualista, soma-se ao ritualismo externo inquisitorial –
analisado aqui anteriormente – o caráter formal-investigativo do conteúdo dos regimentos e
processos. Naqueles, a dimensão teológica ganha as cores fortes da desmitologização.
159
Partindo do Tipo Ideal de Inquisidor Moderno, fazemos análises das amostras
processuais e regimentais pertinentes ao período de maior ascensão (entre meados do século
XVII e primeira metade do século XVIII) e, em seguida, de franco declínio (final do século
XVIII e início do XIX) dos valores daquele tipo. Os trechos de processos aqui apresentados
demonstrarão a ascensão da superação da morte (no desprezo por culpas místicas) e da
abjuração do medo pela imanência (no desinteresse em determinar as penas maiores para os
acusados). Já nos regimentos, principalmente no de 1774, e no projeto – jamais implementado
– que D. Maria mandou fazer, vemos a forma distorcida com que retornou, na fase final do
Tribunal, um valor que o caracterizara nos primórdios: a hierarquização/institucionalização
da fé.
O núcleo da ação interna do Santo Ofício era o formalismo. Por isto mesmo,
analisaremos a estrutura burocrática à luz das informações compiladas e publicadas por Sônia
Siqueira (1996). A burocracia refletiu a necessidade investigativa e serviu para a prática da
racionalização de tarefas e procedimentos com vistas à obtenção da verdade.
160
ao formalismo investigativo, onde o reconhecimento de culpa e a posterior condenação
obedecem a um padrão de linguagem sem o qual o Tribunal vê-se em ambiente desconhecido.
Não há motivo para crer que os processos inquisitoriais tenham escapado totalmente
desta fórmula. Também eles representam a soma das ―transgressões previsíveis‖. O direito
ocidental levaria séculos ―buscando‖ chegar ao atual estágio de objetividade dentro do
formalismo investigativo processual. Mesmo assim, quando os advogados de hoje dizem, com
irreverência, que ―aquilo que não está nos autos não existe‖ acabam por reconhecer, talvez,
que ainda se mantém um padrão desviante que pode excluir algo ―indesejado‖ ou evitar a
investigação adequada para fins racionais ligados ao direito natural, impedindo a verdade e o
conhecimento ótimo dos fatos em benefício do velho formalismo, oco a serviço, certamente,
de interesses materialmente definidos.
―Que não se julgue, portanto, a justeza de minha crítica segundo nossas idéias
particulares, pois, graças a Deus, nossa pátria nunca assistiu a essas lutas do
fanatismo contra a liberdade, das quais o ilustre Alexandre Herculano nos descreve
quadros tão comoventes em sua História do estabelecimento da inquisição em
Portugal e das quais os sábios Discursos acadêmicos de Varnhagen poderiam dar-
161
nos uma idéia exata; da mesma forma, ela jamais experimentou a ação dissolvente
do materialismo positivista (...)‖ (Américo, 1999, p. 3).
Em outro trabalho (Cavalcanti, 1990, p. 7), apontamos que Oliveira Lima chegou a
atribuir à presença dos jesuítas aquilo que seria ―certamente um bem: o estar limpa a nossa
história da mancha fúnebre da Inquisição pérfida e sangüinária (...)‖ (Lima, 1975, p. 20).
―O familiar caminhava, triste e tenso. Não era a primeira prisão que ele efectuaria,
foram muitas, até perdera a conta. Mas, para ele, prender alguém, era uma situação
desagradável, constrangedora. Pois ele, o familiar, tinha quase a certeza que, a
maior parte dos infelizes que vegetam nos cárceres secretos da Inquisição eram
vítimas de intrigas ou de maquinações diabólicas urdidas por inimigos. Esses
pobres diabos mofavam anos e anos nas masmorras, porque não sabiam se
defender. O que, então, eles iam confessar? Denunciar quem? A Inquisição exigia
que o réu confessasse as suas culpas espontaneamente, para descargo de sua
consciência e salvação da sua alma‖ (Azevedo, 1996, p. 18).
162
judiciária, o ‘segredo inquisitorial‘ talvez não lhe fosse tão exclusivo na Época Moderna. A
Ordenação francesa de 1670 também impossibilitava aos acusados conhecer o processo, a
identidade dos delatores, o exato teor dos testemunhos, etc., conforme a maioria dos países
europeus, exceto a Inglaterra‖ (in Novinsky, 1992, p. 146). Diga-se de passagem que
também ―(...) a tortura não era exclusiva da Inquisição. Era prevista nas Ordenações
Manuelinas e no Código Filipino, sendo, portanto, de uso corrente na Justiça Civil‖ (Vainfas
In: Novinsky, 1992, p. 143).
163
processos inquisitoriais passaram do medo ao desprezo porque os inquisidores assim o
desejaram em atendimento à sua cultura jurídica, que, como já vimos, estava em vias de
transformação em toda a Europa. Já fizemos, nós mesmos, análise das fontes processuais de
uma forma que não repetiríamos hoje (Cavalcanti, 1990). Consideramos que as
transformações e aperfeiçoamentos metodológicos são naturais à pesquisa e ao trabalho do
pesquisador, principalmente quando já decorre uma década.
MANOEL JOÃO foi preso em 1672. Foi acusado de portar bolsa de mandinga
contendo ossos de defunto, desenhos, galhinhos de arruda e um escrito com pinturas e nomes.
Pouco mais de um ano após sua prisão, o interrogatório do réu iniciava-se com a seguinte
abertura:
164
ANTIQUO (2)
―Aos dezoito dias do mez de outubro de mil seiscentos settenta e tres annos, em
Lisboa, nos esthaos, caza de despacho da Santa Inquizição, estando ahi em
audiencia de tarde o Senhor Pedro (...) de Magalhães, mandou vir perante si a
Manoel João, Reo prezo, conthendo nestes autos, e sendo prezente lhe foi dado o
juramento dos Santos Evangelhos, em que pos a mão sob cargo do qual lhe foi
mandado dizer verdade, e ter segredo, o que elle prometeo cumprir.
Perguntado se tem mais alguma couza declarar nesta Meza, e o quer fazer para
descargo de sua cinciencia, e seu bom despacho
Disse que tinha ditto toda a verdade, e não tinha mais que declarar.‖
ANTIQUO
―Perguntado se quando lhe appareceo a figura do São Miguel a vio tambem com os
olhos corporaes, ou se lhe reprezentou somente no interior.
Disse que vio com os olhos corporaes porque ainda que estava deitado, estava em
seu perfeito juizo.
165
Perguntado se lhe pareceo anjo bom ou mao.
Disse que lhe pareceo ser anjo mao e que era demonio, por não digno, nem
merecedor de que lhe apparecesse o anjo São Miguel.
Perguntado se lhe pareceo que era demonio, que razão teria para rezar e jejuar na
forma que elle lhe mamdou.
―(...) Perguntado se a ditta figura do anjo assim na dita ocazião, como no sabbado
seguinte em que lhe tornou a apparecer era na mesma forma, ou se tinha alguma
diferença.
Disse que em ambas as ocaziões lhe appareceo na mesma forma, a que tinha os pés
negros.
Perguntado se assim sucedeo, que razão teve, para declarar em sua confição que no
sabbado lhe apparecera com os pés mais impostos.
Disse que a verdade he a que agora tem ditto e se disse o contrario em sua confição
seria por não estar bem lembrado.‖
No trecho acima, Manoel admitiu ter dito algo que foi contradito por ele próprio.
Esta informação reforça a autenticidade do documento. O réu foi denunciado por muitas
testemunhas. Ao final dos interrogatórios, era admoestado, como praxe do Santo Ofício, para
que confessasse. Vejamos uma admoestação que é modelo para o final dos interrogatórios:
ANTIQUO
―Foilhe ditto que nesta Meza se não procura mais, que o remedio de sua salvação, e
em ordem a isso, e ao bom despacho de sua cauza, nenhuma outra cauza lhe
convem mais que dizer nella toda a verdade, não impondosi (...) outrem falso
testemunho (...) o admoestão com muita claridade da parte de Christo Senhor
Nosso queira confessar, e declarar toda a verdade de suas culpas, para assim
merecer que com elle se uze de mizericordia. E por tornar a dizer que não tinha
outra couza que declarar mais que o que ja tem feito, foi outra vez admoestado em
forma, e mandado a seu carcere, sendolhe primeiro lido esta sessão em prezença de
seu primeiro curador, com quem e com o ditto Senhor (Filippe) Barbosa o escrevi.‖
Tal admoestação não era tarefa fácil para o réu. O segredo do processo deixava-o
sem saber o que confessar. Vejamos este trecho em que se apresentam denúncias ao réu sem
que se tenha dito de nenhuma forma os nomes dos denunciantes:
166
ANTIQUO
―Foilhe ditto que nesta meza ha informação que em caza de certas pessoas houve
huns asombramentos, em que as pessoas que os padecião vião vizões e a alguma
dellas lhe foi ditto que a perseguião daquella sorte, por cauza delle declarante e que
se entendeo que os dittos asombramentos forão cauzados por elle declarante por
odio, e com raiva, que tinha a algumas das dittas pessoas, e que elle declarante
dissera que lhe aparecera o anjo São Miguel (...).‖
O colono brasileiro Manoel João foi condenado a cinco anos nas galés e a confessar-
se em certos períodos do ano (Assunção de Nossa Senhora, Natal e Páscoa), a rezar um terço
semanal, padre-nossos e ave-marias para as chagas de Cristo.
********
LUZIA PINTA era uma escrava alforriada natural de Angola. Foi presa em Sabará,
Minas, em 1742. Foi acusada de ser feiticeira calundureira, como vemos na abertura das
denunciações do seu processo, que é típica de quase todos eles.
ANTIQUO
―Pela denunciação inclusa consta que Luzia Pinta preta forra natural de Angola e
moradora junto a capella de N. Sra. da Soledade na vizinhança da Villa de Sabará
(hé) (...) por feiticeira, fazendo aparições diabólicas por meyo de humas danças, a
que chama calundu (...), com grande escandalo dos fieis catholicos, e por que hé
conveniente a justiça se faça (...).‖
Calundu é o ente que se apodera da pessoa para torná-la amoada, triste e de humor
ruim. Calundu também era a reunião em que a negra Luzia Pinta aparecia com roupas
específicas, contendo uma grinalda que devia esvoaçar ao dançar com os presentes – negros,
certamente. O som dos atabaques servia para levá-la ao transe e trazer as respostas para
dúvidas e questionamentos. Enquanto os outros deitavam no chão, Luzia atuava. Vejamos esta
confissão feita nos termos do formalismo processual inquisitorial a que se referiu Weber, em
estudo analisado anteriormente neste capítulo:
ANTIQUO
―(...) disse e confessou que de certo tempo a esta parte vindolhe a doença chamada
calandu(z), e os ventos de adivinhar por meyo destes sabia quaes erão os pretos que
trazião mandinga, ou outra couza diabolica, e uzava de feitiços as pessoas que os
padecião o que praticava vestindose de varias invenções com (...) na calcia e hú
alfange na mão, mandando preparar a moda de um docel e debaxo delle húa
167
cadeyra em que se sentava, metendo certos poz na sua boca, e dos mais
circunstantes que ali se achavão para serem curados, mandando a estas pessoas
cantar e tocar instromentos por algú tempo, e no fim lhe tirarão húa cinta que tinha
amarrada pella barriga fazendo varios tregeytos, e dizendo que naquella ocazião lhe
vinhão os ventos de adivinhar, e logo entrava a cheyrar todas as pessoas que ali se
achavão e aquellas que dizia tinha feitiços lhe atirava ella Re com cestos por que
trazia, mandando deytar no chão os doentes e passava por sima delles varias vezes,
e fazendolhes depois algúas unturas e outros mais factos, dizendo que tudo obrava
por virtude que Deos lhe dera.‖
Luzia Pinta foi degredada para o Couto de Castro Marim em 1744. Havia sido
acusada de estar ―apartada de nossa Santa Fe Catholica e ter pacto com o demonio por cuja
intervenção fazia curas com operações supersticiozas e improprias para os fins que pretendia,
jactandose ter virtude de Deos para obrar o referido‖( ANTIQUO). Observa-se aqui e em outros
textos um uso de termos finos da língua portuguesa, denotando a provável alta origem social
ou a boa escolaridade dos inquisidores. As acusações resultam na sentença:
ANTIQUO
―Mandão que a Re Luzia Pinta em pena e penitencia das dittas culpas va ao Auto
publico da Fe na forma costumada, nelle ouça sua sentença e faça abjuração de
leve sospeyta na Fe e va degredada por tempo de quatro annos para Castro Marins,
e não entrara mais na villa do Sabará. Será instruída nos misterios da Fe
necessarios para a salvação de sua alma e cumprirá as mais penas e penitencias
espirituaes que lhe forem impostas e pague as custas.‖
********
168
ANTIQUO
―Ao cuarto disse que a dita Luzia escrava delle testemunha fazia feitissos e uzava
delles (contra) a elle testemunha e a sua mulher Maria (...) da Sylva e a seu sogro
José da Sylva (Pinto) e a varios escravos delle testemunha de que morrerã alguns
cauzando a elle testemunha aos referidos dores por todo o corpo, fastio e com as
mesmas dores e pontadas morreram os ditos negros (...).‖
―(...) Ao quinto disse que a dita Luzia (preta) quando fazia os ditos feitissos estava
com seu juizo e nam tomada de vinho nem preocupada de paixam mas sim só os
fazia pela sua malignidade, como ella mesma confessava.‖
Luzia sofreu horrores nas mãos dos seus senhores (4). Antes de qualquer processo
inquisitorial, ela foi barbaramente torturada na propriedade dos Carvalho. Foi acusada de ter
―chupado‖ a vitalidade da filha do senhor ao entrar no quarto enfeitiçada como inseto; teria
desenterrado o feto e colocado braços e pernas no fogão da casa e feito um caldo com o resto
do corpo para a própria mãe tomar; além disso, teria tentado tornar o senhor sexualmente
impotente; enfim, foi acusada de enterrar pós, sapos e outros bichos por toda a propriedade
para fazer diminuir a produtividade da escravaria. Não é possível determinar se procedem
duas acusações (assassinato e desrespeito ao feto morto) consideradas criminalmente graves
ainda hoje.
Neste processo de forte carga dramática pela situação física lastimável a que foi
levada a ré pelas torturas dos proprietários, pontua a relação entre a aplicação aleatória do ato
de justiça e a ação racionalizadora da justiça inquisitorial, onde, aliás – no período moderno –
o tormento tinha regras próprias e limitava-se a duas formas: o potro e a polé. Esta limitação a
duas formas de tormento – igualmente terríveis, fisicamente falando – representa uma
indubitável formalização. Maria Jozé da Sylva, esposa de Carvalho, também conheceu os
interrogatórios e os comentou. Alegou em denúncia que Luzia Soares tinha poder de chamar o
demônio, que é típico do pacto demoníaco:
ANTIQUO
―(...) que chamava ao mesmo Demonio quando queria apelidando-o = por Seu Rey
Barbado = o qual lhe falava para fazer o que queria e que com os ditos feitisos
cauzava as dores e moléstias que tem dito e para isso enterrava (raizes) de paos,
sapos e bixos que foi desenterrar e se achavam vivos como ela testemunha vio e
que outrosi a cabeseira e pes da cama della testemunha e do dito seu marido tinha
enterrado (...) depois dezenterrado varias raizes, e penas de rabos de gallos
declarando que aquelles feitisos os fazia para que ouvesse discordia entre ella
testemunha e o dito seu marido e com efeito naquelle tempo nam viviam com boa
169
uniam nem gostando ella testemunha de ver o dito seu marido e sem que para isso
ouvesse cauza, contra si que estando a dita negra preza dissera queria desfazer os
feitisos e mandara vir hum alguidar dagoa e sobre elle estivera falando palavras que
ella testemunha nam perssebeo dizendo via no fundo dagoa ao Demonio com quem
falava e em quanto estava naquelle acto conhessia ella testemunha total milhora nas
queixas que padessia, porem que despois as tornavam a molestar o que tudo ella
testemunha sabe pelo (ver) e prezenssias.‖
O bode, a que nos referimos no capítulo segundo no ensaio sobre a obra goyesca,
aparece aqui na forma do rei barbado, que é o demônio. A tentativa de afastar o marido da
esposa é culpa de magia generalizada na Europa moderna.
ANTIQUO
Disse que muito bem lembrada estava de ter confeçado nesta Meza tudo o que se
conthem na pergunta porque assim passou na verdade‖ (Grifo nosso.).
170
documento de sentença que é um primor de racionalização investigativa e exigência de
impessoalidade para o bom andamento do processo:
ANTIQUO
********
171
ADRIÃO PEREIRA DE FARIAS foi preso no Pará. Em 1758 foi mandado para
auto-de-fé. Sua história tem conotações mistas entre o feitiço e a heresia, pois parece ter
desenvolvido alguma habilidade para o debate de temas teológicos (bem X mal) que emergem
em seu depoimento. Estas singularidades demonstram-se pela presença específica de termos
inusuais pelos inquisidores em alguns trechos do processo atribuídos à fala do réu. Além
disso, as culpas que o levam ao auto são uma simplificação evidente pela mesa inquisitória
que não tinha como classificar as idéias que, segundo o processo, devem ter sido expressas
por Adrião, a não ser pela alcunha de feiticeiro. Por outro lado, sempre nos resta uma ponta de
dúvida. Por exemplo: uma expressão fortemente inquisitorial aparece nos autos como tendo
vindo da boca do réu: ―o demônio é o inimigo comum da raça humana‖. Será que Adrião
pronunciou estas palavras? Estas expressões podem ter passado do Tribunal para o cotidiano
das pessoas, mas também podem aparecer nos processos, interpostas indevidamente pelos
notários.
A principal culpa de Adrião estava num papel que deixara no bolso de um calção na
casa de Manuel Pacheco. O papel foi entregue às autoridades, que o consideraram prova de
pacto com o diabo. O motivo de tê-lo consigo, segundo Adrião, era a vontade de ter em seus
braços qualquer mulher que desejasse. Quando perguntado, teria dito que (...) ―queria declarar
a verdade a qual era‖.
ANTIQUO
Que de certo tempo a esta parte encontrandosse com certa pessoa, com quem tinha
antigo conhecimento, elle Reo pedio que lhe procurasse hum remedio para que as
mulheres lhe quizessem bem, ao que a dita certa pessoa lhe respondeo que se elle
paqgasse, lhe daria huma oração boa para o dito fim e prometendolhe elle Reo a
satisfação lhe ofereceo passados alguns dias a mesma certa pessoa hum papel
escripto, dizendolhe que era bom não só para (atrahir) as vontades, mas (...) bom
para não ser ferido com ferro, chumbo ou bala, e para seus inimigos e a justiça o
não prenderem de modo algum, porem que era preciso ser assinado por ele Reo,
que logo o aceitou, assignou, recebeo com a clausula de o trazer consigo, como
com effecto trouxe sem o ler, conservando-o (...) athe certo tempo (...).‖
172
anos – tenha lhe dado a excessiva autoconfiança. Curioso é notar que Adrião não achou
eficientes os pretensos poderes do tal papel, como se deduz deste termo de confissão:
ANTIQUO
Adrião teria demonstrado uma certa cultura e declarado que esperava do demônio
vantagens no campo espiritual e também no campo temporal. Para ter as mulheres, foi-lhe
ensinada uma oração específica, dentro da lógica apontada pela demonologia, em que ritos e
palavras são invertidos para servir ao diabo, ao invés de servir a Deus. Esta tradição já estava
consignada nos escritos originais demonológicos e aparece em muitos processos
inquisitoriais. Também aqui fica difícil determinar se foi uma criação do clero ―passada‖ para
fora da Igreja nas trocas culturais típicas do conflito erudito X popular na Idade Moderna, ou
se teria sido uma tradição pré-cristã ou mesmo herética combatida pelo clero. Talvez uma
adequada conjunção de fontes e métodos seja suficiente para nos dar esta resposta. A oração é
a seguinte:
ANTIQUO
―(...) São Marcos (...) que Jesus Christo te confirme na minha vontade / declarando
qual era esta / glorioso São Marcos muito touro (...) com touro bravo, humildade na
vossa Santa Palavra, assim quero que me amances o coração de Fulana, amance
como manso cordeiro a arvore da Vera Cruz posto no cham que te parece em todo
que te parece emterra, e eu Adrião Pereira que te pareça perolas de ouro, o
Demonio fará com que tu não possas estar, nem comer, nem beber, nem dormir,
sem vires e falar comigo (...).‖
Orava-se com as mãos por debaixo dos braços, que é a postura inversa àquela
tradicional do catolicismo de orar com as mãos juntas na altura do peito. A oração era
173
oferecida ao demônio. Muitas outras inversões são conhecidas hoje, como a Missa ao
contrário, por exemplo. Dentre os processos aqui analisados para a mitocrítica que virá
adiante, este – mesmo não sendo o mais longo com suas 190 páginas – é o mais rico em
variações verbais obsessivas, tão caras à metodologia do imaginário. A sentença de Adrião foi
dura e detalhada:
ANTIQUO
―Recebem ao Reo Adrião Pereira Simões ao gremio união da Santa Madre Igreja,
como pede e mandão que em pessoa e penitencia das ditas culpas vá ao Auto da Fé
na forma costumada com carocha e rotulo de feiticeiro, nelle ouça sua sentença, e
abjure seos hereticos erros em forma, terá carcere e habito penitencial perpetuo,
será açoitado pelas ruas publicas dessa cidade (...) sanguiniz efusionem e
degredado por tempo de cindo anos para as galés de Sua Majestade aonde servirá a
remo sem soldo e não entrará mais na dita Villa da Vigia, será instruído para a
salvação de sua alma e cumprirá as mais penas e penitencias espirituaes que lhe
forem impostas. E mandão que da excomunhão mayor em que incorreo seja
absoluto (...).‖
****
ANTIQUO
174
Sendo um cristão batizado, Serra deveria, aos olhos do Tribunal, respeitar a Sagrada
Eucaristia em sua representatividade transubstanciosa do corpo e do sangue de Cristo. Sua
sentença é detalhada. Dela extrairemos curtos trechos. O réu teria cometido um erro para
quem deseja sair-se bem num processo inquisitorial: negou todas as culpas e se arrependeu de
fazê-lo em seguida, pedindo audiência para corrigir as declarações afetadas que havia feito e
falar a verdade. Este suposto ato falho pode indicar a autencidade do trecho do depoimento ou
a já prevista resistência dos réus em colaborar com a Inquisição.
ANTIQUO
―Achandose elle confitente em caza de certa pessoa sua conjunta, ali chegara outra
de que antão não tinha conhecimento e lhe perguntara pelo dono da caza‖ (...) ―que
não estava ali, dicera a tal pessoa, que lho trazia humas reliquias e logo lhe dera um
papel embrulhado, que recebendo-o, vira que nelle estava huma particula perfeita,
metida em algodão, e perguntando à dita pessoa se era consagrada lhe respondera
que sim (...).‖
(...) Consta na Meza do Santo Officio, que elle o fizera pelo contrario, e que de
certo tempo a esta parte, esquecido da sua obrigação‖ (...) ―trouxe consigo metidas
na algibeira por muitos dias, duas particulas consagradas, que lhe dera certa pessoa,
dizendolhe que as tinha roubado de hum sacrario.‖
(...) posto fez algumas declarações, nellas procurou encobrir as suas culpas, uzando
de varios subterfugios para evadir a pena, que por ellas merecia.
(...) Mandão que o Reo Salvador Carvalho Serra em pessoa, e penitencia de suas
culpas vá ao Auto publico da Fé na costumada, nelle ouça sua sentença e faça
abjuração de leve sospeito na Fé, e por tal o declarão, e o degradão por tempo de
dois anos para o Couto de Castro Marins.‖
175
********
Na classificação das imagens procedida por Gilbert Durand (1989, p.305), os temas
predominantes dizem respeito às estruturas por ele antes desvendadas. Para a atitude
inquisitorial, parece-nos razoável admiti-la dentre as ações humanas que simbolizam
negativamente, ou seja, elegem o negativo para valorizar. Vemos na busca de culpas e
culpados a escolha destes símbolos valorizáveis negativamente. A simbolização do mal é o
ato de dominá-lo.
176
processo, pois a desmitologização e sua conseqüência para o formalismo jurídico são
tendencialmente temporais e historicizantes. Porém, nos importa agora a lógica ―interna‖
própria do discurso inquisitorial que expressa o pavor pelo tempo mundano. Esta
ambigüidade, aliás, está em toda a cristandade. O simbolismo epifânico do Tribunal do Santo
Ofício era, por si só, suficiente para estabelecer esta dicotomia, da qual provém o pretexto
para a antítese de que fala Durand.
Há três grandes temas aos quais Durand vinculou esta valorização de símbolos
negativos estudada no capítulo O Ceptro e o Gládio (Durand, 1989, p.87 e seguintes): o
esquema ascensional, o arquétipo da luz uraniana e o esquema diairético. Estes temas se
interligam, mas há singularidades. O desafio está em estabelecer o posicionamento mais
adequado do Tribunal do Santo Ofício. Vemos, por exemplo, na análise simbólica dos
processos apresentados, que é rara a presença do vôo mágico tido como ―vôo divino‖ na
alegação da ré. ―O instrumento ascensional por excelência é, de facto, a asa (...)‖ (Durand,
1989, p.92). Em outro exemplo, advindo dos símbolos principais da mesma documentação
exposta aqui, vemos São Miguel, o anjo que tem a espada em mãos para matar o diabo a seus
pés, sendo invocado pelo réu. As igrejas em honra deste santo ―eram construídas no topo de
colinas ou montanhas‖ (Attwater, s/d, p.215), numa clara simbologia de ascensão. Na
Inquisição, a ascensão é ato de confronto. Quando vimos aqui, anteriormente, o Arco dos
Inquisidores (Figura 5), tivemos a oportunidade de destacar seu caráter ascendente. No
Quadro 2 (Auto-de-Fé: o significado da cena), fizemos a representação da tribuna dos
inquisidores com uma seta ascendente em seu interior, onde se lê: membros do Tribunal
sentados em ordem ascendente. Esta ascensão, contudo, não pode ser confundida: trata -se de
um imaginário marcado pelos símbolos diairéticos. No Quadro 3 (O domínio do tempo pela
morte purificadora) nos referimos à verticalização diairética durante a etapa II na
dramatização do auto. Citamos quadros analíticos e ilustração já vistos para demonstrar que
nossa argumentação começa antes da dedução classificatória a que chegaremos agora.
177
―De boa vontade o herói solar desobedece, rompe os juramentos, não pode limitar a
sua audácia, tal como Hércules ou o Sansão semita. Poder-se-ão dizer que a
transcendência exige este descontentamento primitivo, este movimento de mau
humor que a audácia do gesto ou a temeridade da empresa traduzem. A
transcendência está sempre, portanto, armada, e nós já encontrámos esta arma
transcendente por excelência que é a flecha, e já tínhamos reconhecido que o ceptro
de justiça traz a fulgurância dos raios e o executivo do gládio ou do machado‖
(Durand, 1989, p.111. Grifos nossos.).
Dividimos o conjunto dos verbos em três grupos, respeitando o sentido de tais grupos
nos documentos inquisitoriais. O grupo 1 é composto de verbos cujo significado remete à
crença transcendente com um caráter desmitologizador: crer, confessar, denunciar e abjurar. O
grupo 2 reúne verbos de ações imanentes: vencer, arrepender-se, abominar e apartar. O grupo
3 se compõe dos verbos que permitem o ato pessoal de repudiar/estigmatizar o antagonista ou
178
os atos judiciais que tornam realidade as exigências da sentença: degredar, pecar e delinqüir.
Os verbos utilizados nos processos de feitiço, em seu conjunto, revelam que a fé, no
antagonismo com o feitiço, passa a só ter sentido se vivida mundanamente, pois é uma
questão de poder e razão a aplicação conjunta de crença e punição com base investigativa. Ou
seja, para punir o feitiço é preciso – e acaba por ser o objetivo dos inquisidores – desacreditá-
lo.
179
componentes, presentes no cotidiano das pessoas, representaram seu vínculo profundo com as
componentes poderosas e sedutoras da intolerância religiosa.
―3.Quando a pessoa condenada por este crime, for nobre, ou de qualidade, que
pareça, que não deve ter pena de açoites, nem degredo para galés, será degredada
para Angola, S. Tomé, ou partes do Brasil; e se for Clérigo, ou religioso, terá a
pena de degredo dos §§ precedentes; e posto que haja de ir ao Auto ouvir sua
sentença, não levará carocha, mas será suspenso para sempre do exercício de suas
ordens, e privado de qualquer ofício, benefício, ou dignidade, que tiver; e sendo
religioso, será mais privado de voz ativa, e passiva; e tendo se respeito à qualidade
da pessoa, se lhe poderá comutar o degredo em reclusão, por outro tanto tempo, em
um dos mosteiros mais apartados de sua religião com alguns anos de cárcere nele‖
(In: Siqueira, 1996, p.855. Grifos nossos).
O mesmo imaginário heróico estava presente em 1484 numa das mais tradicionais
narrativas do medo de bruxa. Nela, aparece a posição de Santo Tomás de Aquino a respeito
do tema, numa tradição hagiográfica antifeitiço hoje ignorada pelos católicos:
―S. Tomás, no Segundo Livro das Sentenças, dist. 7 e 8, e no Livro IV, dist.34,
junto com quase todos os outros Teólogos, declara serem as bruxas capazes de,
180
com o auxílio diabólico, prejudicar os homens em todas as suas atividades, de todas
as formas imagináveis, como se o próprio Satanás estivesse a agir: desgraçando-os
em seus ofícios, em sua reputação, em seu corpo, em sua razão e em suas vidas.
Noutras palavras: todos os males causados tão-só pelos demônios podem também
ser causados pelas bruxas. E com muito mais facilidade, por muito maior ser a
ofensa assim praticada contra a Majestade Divina, conforme mostramos antes‖
(Kramer, 1998, p.274).
ANTIQUO
―Stabelecemos, que toda pessoa, de qualquer qualidade e condição que seja, que de
Lugar Sagrado, ou não Sagrado tomar pedra de Ara ou Corporaes, ou parte de cada
huma destas cousas, ou qualquer outra cousa Sagrada, para fazer com ella alguma
feitiçaria morra morte natural‖ (In: Gonzaga, 1993, p.164).
A inversão jurídica das narrativas do medo de bruxa veio no último quartel do século
XVIII. Somente no Regimento de 1774 surge um posicionamento ilustrado contrário ao medo
de bruxa e extremamente crítico com relação à demonologia (6). No projeto de regimento
encomendado por D. Maria após a queda de Pombal também não havia narrativas do medo de
bruxa. O texto de 1774 ganha um tom ―épico‖ ao anunciar (In: Siqueira, 1996, p.949) que já
não há motivo para acreditar que se possa transportar os corpos humanos pelos ares ou privar
as gentes da fazenda, da saúde ou da vida com o uso de tintas, carvão ou com o cozimento de
ervas.
181
―(...) foram invenções de outras pessoas aplicadas a estudos metafísicos e
matemáticos, que por ganharem o ádito aos Soberanos, e aos Ministros, para
fazerem com eles valer; e para outros fins humanos e carnais, procuraram
disseminar as especulações maravilhosas, e os fatos preter naturais, com que
abusando da inocência dos povos, e fomentando neles a ignorância, ascenderam no
público aquele ardente fanatismo que faz perder aos homens o uso da razão, como
o praticaram (por exemplo) na Alta Alemanha Fr. Henrique Institor, e Fr. Diogo
Sprenger pela publicação da obra intitulada — Malleus Maleficarum — na baixa
Alemanha o denominado Jesuíta Martinho do Rio, na outra obra intitulada-de
Magia-em Itália Fr. Jeronimo Savanarola; em França fr. Thomas Campanela: em
Portugal o outro famoso Jesuíta Antônio Vieira; abusando todos eles da escuridade
dos tempos em que se liam com grande atenção quantas imposturas sonharam
Nicolau Remigio, João Nider, Nicolau Jaqueiro, e outros muito sofistas e fanáticos
da sua mesma índole‖ (Siqueira, 1996, p.950).
182
NOTAS DE REFERÊNCIA
(1) -Estes últimos cinco processos citados foram apresentados e analisados anteriormente por
Laura Souza (Souza, 1986), a quem devemos a localização de tais documentos graças à
publicação dos códices em seu livro, em estudo que, há mais de uma década e meia, foi um
dos pioneiros na análise do feitiço no Brasil colonial dentro da História das Mentalidades. O
percurso analítico que buscamos aqui é metodologicamente diferente. Daí a utilização ser
válida para efeito comparativo entre visões distintas aplicadas sobre a mesma documentação.
(2) -Alguns poucos grafismos e pontuações foram atualizados para permitir a compreensão.
Há casos que se devem a erros do notário, mesmo se considerada a época do documento.
(4) -Laura Souza tenta imputar aos inquisidores algum tipo de aprovação em relação às
torturas privadas sofridas pela escrava. Diz ela: ―Em essência, a Inquisição não desaprovava
o procedimento que fora adotado com Luzia na fazenda de seus senhores; colocada na
posição de árbitro de si própria, viu-se compelida a tomar posição mais branda para
reafirmar a plenitude de seus poderes, que não poderiam ser usurpados por uma camada
social: senão, como justificar sua própria existência?‖ (Souza, 1986, p.351). Há uma
impossibilidade histórica nisto: em nenhum momento em todo o processo aparece qualquer
aprovação por parte dos inquisidores quanto às torturas realizadas. É, portanto, um raciocínio
hipotético da professora.
(5) -Citaremos os trechos do Regimento de 1640 no formato atualizado publicado por Sônia
Siqueira (1996). No volume que está depositado na Série Preta do Arquivo Nacional da Torre
do Tombo, por nós consultado (ver referência documental após a Bibliografia), as páginas que
tratam do Título XIV (―Dos feiticeiros...‖) são, na paginação da época, 180, 181 e 182.
(6) -A mudança jurídica enfrentou resistências. Prova disto foi a prisão e processo de Matias
Gonçalves Guizanda no Recife no início do século XIX, acusado de porte de bolsa de
mandinga (Cavalcanti, 1989).
183
CONCLUSÃO
O INQUIRIDOR-MÁRTIR-PURIFICADOR
184
―Está escrito: ‘no princípio Era o Verbo‖. E já me detenho.
Merece a palavra valor tão perfeito?
Não. É preciso que eu traduza de outra forma.
Se ao Espírito aprouver valer-me do seu favor insigne,
Escrito está: No começo Era o Sentido. Medita esta linha
E suspende a tua pluma por um momento.
É o sentido que cria e que faz viver?
Dizer seria preciso que no princípio
Era a força. Um sentido secreto
Em mim se enternece, induzindo-me a prosseguir,
E escrevo – me vem do espírito da intuição –
‘No princípio era a Ação‘ ...‖
(Fausto, de Goethe)
185
Há uma especificidade brasileira na ação inquisitorial contra o feitiço. Resta saber
por onde caminha esta especificidade. Chegamos a tocar no assunto anteriormente. Muito se
tem escrito sobre isto. Há aquela tentativa de descobrir que a singularidade cultural brasileira
reduzir-se-ia a um fator, incluindo-se aí o feitiço, naturalmente. Bethencourt, por exemplo, foi
taxativo ao afirmar que fatores como a distância da colônia, fazendo com que não houvesse
aqui tribunal próprio, e a ―fraqueza do ritmo repressivo‖ (Bethencourt, 1994, p. 279) geraram
um modelo completamente diverso de ação em nosso país. Para ele, a especificidade é
numérica. Destaca o professor português que apenas 407 processos estão levantados no Brasil
em dados provisórios e, destes, ―apenas‖ 48% eram de cristãos-novos de origem hebraica‖
(Bethencourt, 1994, p. 279). Retorna, assim, na historiografia, a idéia da fraqueza do Tribunal
em nossas terras. Mas a pergunta essencial fica em ainda em aberto: o que motivaria esta
reduzida presença? Propomos raciocinar, a princípio, com outra variável: a presença de
familiares e comissários vigiando a sociedade colonial (ver Siqueira, 1979), que é dado da
cultura que não pode virar estatística, provocava uma ―onipresença‖ tácita, sempre disponível
para uma ação que fosse solicitada numa sociedade fragilizada econômica e culturalmente,
pois éramos uma colônia pobre e sem maior poder político quando comparada ao fausto da
corte. O baixo número de casos no Brasil bem poderia ser explicado, de maneira inversa, por
um possível ―desinteresse‖ dos colonos pelo Tribunal. Assim, pensamos que nossa
singularidade imaginária permitirá compreender a especificidade inquisitorial. Tememos que
uma análise quantitavista fosse redutora. Peter Burke, aliás, identificou este quantitativismo:
―(...) a inquisição escancarou sobre nossa vida íntima da era colonial, sobre as
alcovas com camas que em geral parecem ter sido de couro, rangendo às pressões
dos adultérios e dos coitos danados; sobre as camarinhas e os quartos de santos;
sobre as relações de brancos com escravos – seu olho enorme, indagador‖ (Freyre,
1980, P.xvi).
186
Fernández-Armesto indica que, também na Espanha, a Inquisição ―passou a maior
parte do tempo desancando o relaxamento moral‖ (Armesto, 1999, p.336). Perceber a
história é mais que somar números. A estatística pode confundir o analista na medida em que
ela só se aplica como conclusão ao universo de dados utilizado. No caso específico, isto
equivale a dizer que o baixo (?) número de casos no Brasil não permite afirmar um
desinteresse dos inquisidores pelo que aqui sucedia. ―Mas voltemos a dizer, ainda uma vez,
que não devemos tomar a lupa pelo objeto que ela estuda, a lua pelo dedo que a aponta‖
(Gilbert Durand, 1995, p. 61). A Inquisição, ao seu modo, participou da empresa colonial.
Como nos lembra Rosa Godoy, ―o invasor do paraíso não consegue entendê-lo‖ e ―quer
organizá-lo, instaurar a autoridade, disciplinar o tempo (...)‖ (Godoy, 1997, p.256).
187
―Certamente, os conquistadores do Brasil não perderam nenhuma da sua
combatividade quando se instalaram, a pouco e pouco, no imenso subcontinente,
tendo como centro a cidade de São Salvador da Baía. A vigilância não podia
abrandar, com as incursões e os desembarques dos holandeses e dos franceses. No
entanto, os conquistadores portugueses, portadores de todos os valores da
Renascença – curiosidade intelectual, curiosidade científica, humanismo, etc. – iam
tornar-se o tal homo novus brasileiro e o seu imaginário sofreria uma
transformação radical‖ (Durand, 1997, p.49).
188
********
Arquétipo maior da justiça que se alia ao intelecto, Prometeu invocou o disco solar,
―‘que vê tudo‘‖ e que aparece em diversas culturas como o olho solar, que ―é ao mesmo
tempo o justiceiro‖ (Durand, 1989, p. 107). Vimos no terceiro capítulo que há vínculo entre o
herói uraniano e o cristianismo. Nos estudos de A. H. Krappe (La Genèse des Mythes), como
nos lembra Durand, o autor concluiu que ―se passa facilmente de ‘olho que vê os crimes‘ ao
que vinga os crimes‖ (in Durand, 1989, p. 107). O olho que vê o crime e faz justiça está
presente no imaginário inquisitorial. Pelo percurso prometeico, chega-se curiosamente a esta
aproximação entre o espírito justiceiro e a busca da liberdade de espírito, que chega a
justificar a revolta em seu nome. ―A revolta do Prometeu é arquétipo mítico da liberdade de
espírito‖ (Durand, 1989, p. 111). ―Um mitólogo (P. Diel) pôde escrever que o fogo ‘é muito
apto para representar o intelecto... porque permite à simbolização figurar por um lado a
espiritualização (pela luz) e por outro lado a sublimação (pelo calor)‘ ‖ (Durand, 1989, p.
121. Grifo nosso).
189
levou seus objetos e recebeu do pai uma interpelação: ir com muito dinheiro e sem sua bênção
ou sem dinheiro e com sua bênção. Pedro e José, os dois primeiros filhos, preferiram o
dinheiro. Pedro saiu e foi descansar na casa de uma velha que ofereceu guarita e pediu para
prender a espada, o cachorro e o cavalo com um fio de cabelo. O rapaz não desconfiou.
Quando entrou na casa a velha pediu para brincar de queda-de-corpo. Pedro achou graça, mas
aceitou. Quando viu que a velha tinha a força de muitos homens, chamou pela ajuda do
cavalo, do cachorro e da espada, mas os três foram vencidos pelos fios de cabelo que se
transformaram em cordas e correntes e impediram a ajuda. Pedro foi jogado num alçapão
onde já estavam outros homens. José notou que a árvore de Pedro estava murcha e resolveu ir
atrás para ver o que sucedia, mas acabou caindo na mesma armadilha da velha. Foi o irmão
mais novo, João, que preferiu a bênção em vez do dinheiro. Seguiu viagem e encontrou a
velha. Aceitou, desconfiado, o convite para entrar na casa dela, mas fingiu amarrar os cabelos
no cavalo, na espada e no cachorro. Quando a velha tentou vencê-lo, foi destroçada
rapidamente. Resolveram queimá-la, pois era uma feiticeira. O fogo rompeu suas entranhas e
de dentro do fígado dela surgiram três ovos que libertaram três princesas presas lá há mais de
cem anos. As princesas casaram com os irmãos, voltaram para a cidade onde o rei era o pai
delas e João veio a ser coroado rei anos depois. Nesta narrativa popular, o justo e o intolerante
estão harmonizados. Queimar feiticeiras é a regra para uma vida tranqüila. O imaginário
inquisitorial harmoniza estes opostos aparentes. A aproximação é possível para os valores
cotidianos do inquisidor graças à junção de imagens personificadas em personagens
universais para o cristianismo. A soma destes personagens na memória inquisitorial permite o
reconhecimento cultural dos inquisidores como agentes pertinentes ao mundo cristão.
Propomos e designação desta auto-imagem dos inquisidores modernos como Inquiridor-
Mártir-Purificador, cujo patrono é São Pedro Mártir, analisado anteriormente. Ressaltamos
que optamos pela palavra inquiridor (com ―r‖), que vem do verbo inquirir, e não inquisidor
(com ―s‖), substantivo que designa os homens da fé. Imaginamos ser possível admitir que o
próprio Pedro se considerava um pouco de cada um destes personagens-chave do catolicismo:
190
Moderno e nas componentes do imaginário português. Talvez estejamos aqui diante de um
primeiro estágio para o trabalho de designação do mito fundador do Santo Ofício. Para além
da figura individual de São Pedro Mártir, este Inquiridor-Mártir-Purificador reúne as
componentes ―puras‖ que inspiram admiração e veneração. Neste sentido, o personagem título
desta conclusão tentou ficar – e isso não significa que tenha conseguido – acima do tempo,
vivenciando a tênue condição atemporal dos valores místicos de uma religião em processo de
desmitologização. A linha da curvatura decadente do tipo ideal de inquisidor, que
curiosamente coincide com a decadência do número de processos ao longo do tempo (ver
Quadro 7 e seu Anexo)(1) ou ainda do número de familiares (ver Quadro 8)(2), não
interferem com a figura do inquiridor. Sua mensagem mítica permanece, tornando-o
instrumento precioso para trabalhos futuros.
191
NOTAS DE REFERÊNCIA
(1) - Realizamos os Quadros 7 e 8 sistematizando dados originais publicados em Bethencourt,
1994. O resultado visual e analítico é muito proveitoso. O Quadro 7 apresenta a média anual
do número de processos da Inquisição portuguesa entre 1536 e 1767. O período geral foi
dividido em quatro períodos específicos: 1536-1605; 1606-1674; 1675-1750; 1751-1767. O
ganho analítico está nas percentualizações presentes na coluna da direita: elas demonstram a
ascensão (+) e queda (-) da intensidade das atividades inquisitoriais. Para facilitar a
visualização, criamos o Anexo ao Quadro 7, onde os mesmos dados foram dispostos em plano
de linhas x e y, sendo apresentados no formato de equações matemáticas simples que se
referem sempre ao ponto/dado anterior (x,y,z,w).
(2) - O Quadro 8 debruça-se sobre o número de familiares e sua variação entre 1595 e 1796.
Tratando-se também de um plano x/y, permite avaliar os anos de 1595, 1646, 1695, 1745 e
1796, com seus contextos históricos pertinentes. A relação entre os dois Quadros (7 e 8)
demonstra que à maior intensidade de processos – e, portanto, à maior força política do
Tribunal – sucedeu um aumento progressivo do número de familiares, que teve seu pico um
século após o ápice do número de documentos processuais. Os dois gráficos (Quadros 7 e 8)
estão em harmonia com a linha de ascensão e queda do Tipo Ideal de Inquisidor Moderno
(Quadro 1).
192
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Para ser condizente com a opção teórica que seguimos, a bibliografia que segue foi
construída com a intenção de ser a mais pluralista e abrangente possível, de maneira a
oferecer ao leitor, seja qual for sua maneira de ver a história, as opções para localizar os
títulos e fazer outros estudos. Por outro lado, os autores e títulos que consideramos de maior
relevo foram citados no texto do livro em número mais elevado de vezes. Livros que tratam
especificamente da Inquisição como seu tema principal ou que a utilizam diretamente para
análise de tema muito correlato aparecem com o sinal ao final da referência. Enfim,
consciente de que esta bibliografia, na parte dos títulos específicos sobre a Inquisição – como
qualquer outra que se venha a fazer sobre o tema – terá incompletudes, destacamos as
palavras de João Bernardino Gonzaga:
193
1 9. ANTONIAZZI, Pe. Alberto. ―Milenarismo não é só Idade Média - O ano
2 1000 passou, mas o milenarismo continua como esperança dos
3 pobres‖, Ensaio in Revista Vida Pastoral, ano XL-206: 23-30.São
4 Paulo: Editora Paulus, maio/junho de 1999.
5 10. AQUINO, Tomás de. Summa Theologiae. Madrid, Espasa-Calpe, 1998.
6 11. ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo, Companhia das
7 Letras, 1989 (Primeira Edição: 1949).
8 12. ASLAN, Nicola. História da Maçonaria. Rio de Janeiro, Ed. Espiritualista,
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10 13. ASSIS, Machado de. O Alienista. São Paulo, Editora Ática, 1998.
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13 180. SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial. São
14 Paulo, Perspectiva, 1987.
15 181. SEVCENKO, Nicolau. O Renascimento. São Paulo, Atual, s/d.
16 182. SILVA, Antônio José da. Anfitrião ou Júpiter e Alcmena e Guerras do
17 Alecrim e Mangerona. Rio de Janeiro, Ed. A Noite, 1939.
18 183. SILVA, Severino Vicente da. A Primeira Guerra na Tribuna Religiosa.
19 Recife, Dissertação de Mestrado em História da Universidade Federal
20 de Pernambuco – UFPE, s/d.
21 184. SILVA, Silvia Cortez. Cultura Tutelada: Uma Visão Patrimonialista da
22 Cultura Luso-Brasileira. Recife, Dissertação de Mestrado em
23 História da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, 1987.
24 185. SIMON & BENOIT. Judaísmo e Cristianismo Antigo. São Paulo,
25 Edusp/Pioneira, 1987.
26 186. SIQUEIRA, Sônia. A Inquisição Portuguesa na Sociedade Colonial. São
27 Paulo, Ática, 1978.
28 187. . O Medo no Brasil dos Jesuítas – Imaginário e
29 Representações no Brasil do século XVI. In: Anais da XVI Reunião
30 da Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica - SBPH, Curitiba,
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32 188. . Pós-Graduação em História. In: Anais da XV Reunião da
33 Sociedade Brasileira de Pesquisa Histórica - SBPH, Rio de Janeiro,
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35 189. . A disciplina da vida colonial: Os Regimentos da Inquisição.
36 In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de
37 Janeiro, jul./set. 1996, a. 157, n. 392, p. 495-1020, p. 497 a 572.
38 190. SOBEL, Henry I. Dez Séculos de Segregação. In: Jornal O Norte, Caderno A
39 Grande Viagem II, p. 20, João Pessoa, 1 de janeiro de 2000.
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1 191. SOUZA, Jessé. O Malandro e o Protestante: a tese weberiana e a
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3 192. (org.). A atualidade de Max Weber. Brasília, UNB, 2000.
4 193. SOUZA, Laura de Melo e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo,
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9 Americas Review, número 2, outubro de 1965, p. 167-181.
10 196. TEJADA, Luis Alonso. Ocaso de la Inquisición. Madrid, Ed. Zero, 1969.
11 197. TENGARRINHA, José (org.). História de Portugal. São Paulo, Editoras
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13 198. THOMAS, Keith. Religião e o Declínio da Magia. São Paulo, Companhia
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15 199. TUBERVILLE, A. S. A Inquisição Espanhola. Lisboa, Vega, 1932.
16 200. VAINFAS, Ronaldo. O Sexo Nefando e a Inquisição, In: Revista Ciência
17 Hoje. SBPC, número 48, novembro de 1988, p. 16-19 (Encarte:
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19 201. . Trópico dos Pecados (Moral, Sexualidade e Inquisição no
20 Brasil). Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1989.
21 202. (org.). História e Sexualidade no Brasil. Rio de Janeiro,
22 Graal, 1986.
23 203. . A Heresia dos Índios – Catolicismo e rebeldia no Brasil
24 colonial. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
25 204. (dir.). Dicionário do Brasil Colonial (1500-1800). São Paulo,
26 Objetiva, 2000.
27 205. VEIGA, Gláucio. Da Racionalidade da Conduta Religiosa como Conduta
28 Política - Uma interpretação do Puritanismo. Recife, Ed. Mousinho,
29 1959.
30 206. VIEIRA, Antônio (Pe.). Obras Escolhidas. Vol. IV. Lisboa, Livraria Sá da
31 Costa, 1951. (Obs.: contém o texto ―Notícias Recônditas do Modo de
32 Proceder da Inquisição com os seus Presos‖, de autoria de Pedro
33 Lupina Freire).
34 207. . História do Futuro. Belém, Imprensa Oficial do Estado do
35 Pará, 1998.
36 208. VIDIGAL, Luis. Câmara, Nobreza e Povo - Poder e Sociedade em Vila Nova
37 de Portimão (1755-1834). Portimão, Câmara Municipal de Portimão,
38 1993.
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1 209. WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo,
2 Pioneira, 1983.
3 210. . Economia e Sociedade. Volume 1. Brasília, Editora da
4 Universidade de Brasília, 1991.
5 211. . Economia e Sociedade. Volume 2. Brasília, Editora da
6 Universidade de Brasília, 1999.
7 212. . Metodologia das Ciências Sociais. Partes 1 e 2. São Paulo,
8 Cortez Editora/Editora da Universidade de Campinas-Unicamp, 1992.
9 213. WEHLING, Arno e WEHLING, Maria José C. de. Formação do Brasil
10 Colonial. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1994.
11 214. WIZNITZER, Arnold. Os Judeus no Brasil Colonial. São Paulo, Pioneira,
12 1966.
13 215. WRIGHT, Patricia. Galeria de Arte Goya. Cingapura, Manole, s/d.
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205
1 DOCUMENTOS HISTÓRICO-TEOLÓGICOS
2
3 1. A Bíblia Teb. São Paulo, Paulinas e Loyola, 1995. (Nota: todas as
4 citações bíblicas foram retiradas desta edição)
5 2. Fides et Ratio - Encíclica do papa João Paulo II. São Paulo, Edições
6 Loyola, 1999.
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206
1 DOCUMENTOS HISTÓRICOS:
2 FONTES DOCUMENTAIS PUBLICADAS
3
4
5 1. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil – Denunciações
6 e Confissões de Pernambuco (1593-1595). Recife, Fundação do Patrimônio
7 e Artístico de Pernambuco – Fundarpe/Diretoria de Assuntos Culturais,
8 1984.
9 2. Notícias Recônditas do Modo de Proceder da Inquisição com os seus
10 Presos. FREIRE, Pedro Lupina. In: VIEIRA, Antônio (Pe.). Obras
11 Escolhidas. Vol. IV. Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1951.
12 3. Livro da Visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão-
13 Pará (1763-1769). Petrópolis, Vozes, 1978.(ver LAPA, J. R. do Amaral na
14 Bibliografia ).
15 4. O Último Regimento da Inquisição Portuguesa. Lisboa, Ed. Excelsior,
16 1971.(ver REGO, Raul na Bibliografia).
17 5. O Último Regimento e o Regimento da Economia da Inquisição de
18 Goa. Lisboa, Biblioteca Nacional, 1983 (ver REGO, Raul na Bibliografia).
19 6. Lei elevando o Santo Officio à categoria de Magestade. In Internet:
20 library.byu.edu/~rdh/eurodocs/port/inquiz.html Acessado em 11/02/2000.
21 7. Regimento da Santa Inquisição — 1552. In: Revista do Instituto Histórico e
22 Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, jul./set. 1996, a. 157, n. 392, p. 495-
23 1020, p. 573 a 614.
24 8. Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal recopilado
25 por mandado do ilustríssimo e reverendíssimo senhor Dom Pedro de Castilho,
26 Bispo Inquisidor-Geral e Vice-Rei dos Reinos de Portugal — 1613. In: Revista
27 do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, jul./set. 1996,
28 a. 157, n. 392, p. 495-1020, p. 615 a 692.
29 9. Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, ordenado
30 por mandado do ilustríssimo e reverendíssimo senhor Bispo dom Francisco de
31 Castro, Inquisidor-Geral do Conselho de Estado de Sua Majestade — 1640. In:
32 Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro,
33 jul./set. 1996, a. 157, n. 392, p. 495-1020, p. 693 a 884.
34 10. Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, ordenado
35 com o real beneplácito e régio auxílio pelo eminentíssimo e reverendíssimo
207
1 senhor cardeal da Cunha, dos Conselhos de Estado e do Gabinete de Sua
2 Majestade, e Inquisidor-Geral nestes Reinos e em todos os seus domínios —
3 1774. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de
4 Janeiro, jul./set. 1996, a. 157, n. 392, p. 495-1020, p. 885 a 972.
5 11. Regimento do Santo Ofício encomendado ao Inquisidor-Geral, D. Frei
6 Ignácio de São Caetano, do Conselho da Rainha, seu confessor e ministro
7 assistente no despacho. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico
8 Brasileiro, Rio de Janeiro, jul./set. 1996, a. 157, n. 392, p. 495-1020, p. 973
9 a 1010.
10 12. Autos de Devassa. In: Anais do Arquivo Público do Pará, Belém, v.3, t.1, p.
11 1-283, 1997, p. 9 a 212.
12 13. Traslado do Processo feito pela Inquizição de Lisboa contra Antonio Jozé
13 da Silva. In: Revista Trimestral do Instituto Historico e Geografico Brazileiro, Rio
14 de Janeiro, Companhia Typographica do Brazil, 1896.
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1 DOCUMENTOS HISTÓRICOS:
2 FONTES DOCUMENTAIS NÃO PUBLICADAS
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5 1.Processo de Manoel João. 1672. Arquivo Nacional da Torre do Tombo –
6 ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo 10.181.
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1 DOCUMENTOS HISTÓRICOS:
2 REGIMENTOS INQUISITORIAIS
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1 VOCABULÁRIO TEÓRICO-METODOLÓGICO
2
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1 origem desta distorção. O mito é uma narrativa culturalmente valorosa que atribui
2 significado às ações humanas e que permite estruturar o fundamento de valores e
3 comportamentos que servem de modelo para as relações sociais e para as relações
4 do homem com a natureza ou com o cosmos. A mitologia básica fundante da
5 Cristandade é também a mitologia básica deste trabalho e está consignada na
6 Bíblia Sagrada.
25 TIPO IDEAL: Weber criou este conceito para viabilizar a pesquisa histórico-
26 sociológica. Partindo da constatação que lhe era própria de que a ciência não
27 poderia representar o real de forma totalmente objetiva, o pensador buscou uma
28 conceituação possível. Um tipo ideal é a caracterização radical da tipologia de um
29 agente histórico: seus valores são identificados pelo cientista e postos numa
30 idealização com a qual se comparará o ―real‖. As conclusões advindas desta
31 aproximação entre o ―ideal‖ e o ―real‖ são restritas e específicas, não servindo
32 para universalizações ou terorizações explicativas de toda a história humana.
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1
9 ANEXO
10 Quadro de Cargos e Funções do
11 Tribunal do Santo Ofício
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19 ―Na Inquisição se haverão com tal moderação em tudo, e com tanta gravidade,
20 que possam aos outros ministros aprender deles o modo com que se devem tratar;
21 escusarão porfias nas matérias, que não tocam ao S. Ofício, e nas coisas, que em
22 serviço dele houverem de fazer, serão conformes quanto lhe for possível; e
23 acontecendo entre eles alguma inquietação ou diferença, a terão em segredo, e nos
24 darão conta para mandarmos prover no caso como for justiça.‖
25 Regimento de 1640
26 Título III - Dos Inquisidores
27 (In: Siqueira, 1996, p.702)
28
29 Nov 2008
213