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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA


DOUTORADO

O IMAGINÁRIO DA INQUISIÇÃO
Desmitologização de Valores no Tribunal do Santo Ofício,
no Direito Inquisitorial e nas Narrativas do
Medo de Bruxa (Portugal e Brasil, 1536-1821)

Carlos André Macêdo Cavalcanti

RECIFE
2001
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
DOUTORADO

O IMAGINÁRIO DA INQUISIÇÃO
Desmitologização de Valores no Tribunal do Santo Ofício,
no Direito Inquisitorial e nas Narrativas do
Medo de Bruxa (Portugal e Brasil, 1536-1821)

Carlos André Macêdo Cavalcanti

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História, da Universidade Federal
de Pernambuco, como requisito parcial para
obtenção do Grau de Doutor em História.

Orientadora:
Dra. Rosa Maria Godoy Silveira.
Co-Orientadora:
Dra. Danielle Perin Rocha Pitta.

RECIFE
2001

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O IMAGINÁRIO DA INQUISIÇÃO
Desmitologização de Valores no Tribunal do Santo Ofício, no Direito
Inquisitorial e nas Narrativas do Medo de Bruxa (Portugal e Brasil, 1536-1821)

Carlos André Macêdo Cavalcanti

Introdução – O Paradoxo da Inquisição............................................................................8

Capítulo I – O Exílio do Imaginário e o Tipo Ideal de Inquisidor Moderno..............25


1-Percorrendo os Paradigmas: A Nostalgia do Mito..................................................27
2-Rito e Cerimonial: O Imaginário da Inquisição......................................................62

Capítulo II – Da Pedagogia do Medo à Pedagogia do Desprezo....................................89


1-Mitologemas Lusitanos...........................................................................................91
2-Mentalidade Obsidional e Soteriologia.................................................................106
3-A Tabulação das Metáforas na Iconografia sobre a Inquisição............................125

Capítulo III – O Sentido das Fontes no Direito Inquisitorial e nas Narrativas do Medo
de Bruxa...........................................................................................................................139
1-Em torno das Fontes Históricas: o Formal, o Material e o Teológico na Racio-
nalização do Direito.............................................................................................141
2-Para uma Crítica Documental: As Obsessões Formais nos Regimentos do Santo
Ofício e nas Amostras dos Processos Inquisitoriais............................................159

Conclusão – O Inquiridor-Mártir-Purificador............................................................184

Referências Bibliográficas..............................................................................................193
Listas de Fontes Documentais........................................................................................206
Documentos Histórico-Teológicos.......................................................................206
Documentos Históricos: Fontes Documentais Publicadas...................................207
Documentos Históricos: Fontes Documentais Não Publicadas...........................209
Documentos Históricos: Regimentos Inquisitoriais.............................................210
Vocabulário Teórico-Metodológico................................................................................211

Anexo: Quadro de Cargos e Funções do Tribunal do Santo Ofício............................213


DEDICATÓRIA
A Ana, meu amor, esposa e companheira, que dividiu comigo os
momentos de decisão na realização do Doutorado e desta Tese.
A ela, também, um agradecimento especial pela enorme ajuda
na organização e levantamento da documentação histórica. Um
beijo!

A Davi, Romma e Daniel, nossos filhos, que foram pacientes


nos muitos momentos em que esperaram pela hora de estar
comigo, pois, no dizer deles próprios, “Papai estava escrevendo
um livro grande”. Um abraço apertado!

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PROGRAMAÇÃO VISUAL
Sonaly Macêdo Cavalcanti
DESIGNER da LAMA PRODUÇÕES - Recife

REVISÃO DE LÍNGUA PORTUGUESA


Félix de Carvalho
PROFESSOR do DLCV - UFPB

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AGRADECIMENTOS

Cada uma destas pessoas contribuiu de forma singular para a realização deste
trabalho. Aqui, não compararei os méritos. Agradeço igualmente a todas elas.
Por isso, faço-o em ordem alfabética:

Ana Paula Rodrigues Cavalcanti (professora de Letras);


António Camões Gouveia (professor da Universidade Nova de
Lisboa);
Antônio Montenegro (professor do PPGH-UFPE);
Ariosvaldo Diniz (professor do MCS-UFPB);
Armando Souto Maior (professor do PPGH-UFPE);
Carlos Machado (Diretor de Artes Cênicas da FUNESC);
Damião Ramos Cavalcanti (Presidente da FUNESC);
Danielle Perin Rocha Pitta (professora do MA-UFPE);
Félix Carvalho (professor do DLCV-UFPB);
Fernando Lébeis (contador de estórias);
Fernando Patriota (professor do DH-UFPB);
Gabriela Martin Ávila (professora do PPGH-UFPE);
Jean-Jacques Wunnenburger (mestre do Imaginário, França);
Lúcio Flávio de Vasconcelos (professor do DH-UFPB);
Maria Teresa Strôngoli (professora PUC-SP);
Martha Falcão (professora do DH-UFPB);
Rita Melo (professora da UFPB);
Rosa Maria Godoy (professora do DH-UFPB e PPGH-UFPE);
Rui Gomes Dantas (professor DF-UFPB);
Sonaly Macêdo (designer da Lama Produções);
Sônia Siqueira (professora da USP e UFRJ);
Yara Matos (professora do DCS-UFPB e diretora do CCHLA-
UFPB).

Aos meus pais, Carlos Severiano Cavalcanti e Teresinha Macêdo


Cavalcanti, um agradecimento especial pelo grande apoio para a realização
desta travessia. Este apoio incluiu, também, uma meticulosa leitura dos
originais, enriquecendo meu trabalho com a vasta cultura lingüística que ambos
possuem e da qual tento ser um herdeiro à altura.

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RESUMO

O estudo sobre o Tribunal do Santo Ofício tem sido marcado por um paradoxo: à
riqueza da historiografia que se desenvolve, a partir de estudos de casos, opõe-se a limitação
dos trabalhos que buscam a análise do Tribunal em si. Este trabalho busca o caminho teórico-
metodológico para o desenvolvimento dos conceitos e noções pertinentes ao conhecimento do
próprio Tribunal, seu significado histórico e seu imaginário. Da noção de Tipo Ideal (Weber)
às noções do Imaginário (Durand), faz-se o trajeto que permite sistematizar e conceituar os
seguintes elementos: os valores do Tipo Ideal de Inquisidor Moderno, a especificidade do
Direito Inquisitorial e o significado das Narrativas do Medo de Bruxa em iconografias,
regimentos e processos, como fontes para a História da Inquisição. O cenário histórico que
permeia o trabalho está demonstrado na noção de Desmitologização de Valores. Nela, já se
antevê a tendência racionalizadora que inspirou a essência do Tribunal, representada pelo
Inquiridor-Mártir-Purificador.

Palavras-chave: Inquisição, Desmitologização, Tipo Ideal, Imaginário, Direito Inquisitorial,


Feitiçaria, Iconografia Inquisitorial, Regimentos Inquisitoriais, Inquisição no Brasil,
Tribunal do Santo Ofício.

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INTRODUÇÃO

―As Inquisições são estudadas, geralmente, não como um problema mas como um
tema consagrado de pesquisa, que se justifica por si próprio, permitindo todos os
cortes espácio-temporais e todas as apropriações discursivas.‖

(Francisco Bethencourt, 1994, p. 9)

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Quando o Abade ouviu aquela pergunta pela terceira vez, no mesmo mês, não se
conteve; com voz firme e peculiar sotaque sulista, vaticinou: – ―Este não é um assunto a ser
tratado aqui!‖. Naquela sala de aula, diante daquela turma, ele nunca mais tocou na questão. A
rispidez, incomum nas respostas daquele beneditino bem educado e extremamente culto,
trouxe curiosidade. Nas aulas de História, já no segundo grau, veio a resposta na voz da
professora: ―é tema difícil para a Igreja‖. Outro professor, pouco afeito aos ditames mais
rígidos do Vaticano, punha as duas mãos empalmadas ao lado das bochechas, como quem
conta um segredo, e ia dizendo em voz que começava baixa e normalizava-se no decorrer da
explicação: – ―Eu vou contar pra vocês, mas não contem pra ninguém: a Inquisição era um
Tribunal que julgava os crimes contra a fé....‖. E seguia explicando os processos contra
grandes vultos da Ciência, da Filosofia e das Artes. A explicação tornava-se demolidora: a
Igreja cometera um crime de séculos. O livro de História que havia sido adotado tinha poucas
linhas sobre o assunto. Assim, quem desejava mais informações dirigia-se à Biblioteca do
Colégio – o São Bento de Olinda –, que também não tinha quase nada a respeito. Depois, a
curiosidade foi tentar a Biblioteca do Mosteiro, onde não se podia entrar. Por fim, passou-se a
freqüentar a Biblioteca Pública, as livrarias e, mais tarde, os arquivos históricos. Deste
convívio, surgiu o interesse por uma História da Inquisição.

********

Consta nos arquivos do Santo Ofício que o inquisidor Antonio Ribeyro de Abreu
mandou vir perante si a preta Marcelina Maria, filha de Antonio e Luzia, natural da cidade do
Rio de Janeiro. Corria o ano de 1734 em Lisboa: dia 24 de agosto. Marcelina chegou e viu a
Mesa reunida. Mandaram que colocasse a mão direita sobre o Evangelho e ouviu um primeiro
sermão: ―lhe foy mandado dizer verdade e ter segredo o que tudo prometeo cumprir‖. Disse
o próprio nome e percebeu que o notário parecia anotar tudo que era dito. Para ela, analfabeta,
era esta uma demonstração da importância daquele momento.
Marcelina informou serem seus pais escravos do Capitão Manoel Netto Barreto,
natural do Rio. Disse, ainda, pertencer a João Eufrázio, escrivão da Casa da Índia, sendo
―moradora nesta Corte ao Rocio de vinte e seis anos de idade‖. Saber-se-ia depois ser a ré
―solteyra e tem dous filhos Joaquina de quatro annos, e Joze de poucos meses e o pay de
Joaquina he Domingos Gonsalves de Lagos, e o Joze he filho de hû Dezembargador que foy
para o Rio ha pouco tempo‖.
Os inquisidores disseram, então, a Marcelina que se confessasse, pois, se trouxesse
todas as suas culpas à memória, sua consciência ficaria descarregada, sua alma ficaria leve e o
Tribunal trataria com benignidade a sua causa. Marcelina contou que era maltratada pela

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esposa de um seu ex-proprietário, João da Costa Sylva. Contou, também, ter procurado uma
moura chamada Antonia, que haveria de lhe ensinar uma poção para que sua senhora a
tratasse bem. A poção foi trazida em dois pequenos embrulhos de papel, que continham pó de
terra e de cravo. A moura ordenou-lhe ir à janela, à meia-noite, e fazer o sinal da cruz com os
pacotes. Também ordenou que Marcelina dormisse com os papéis ―metidos entre as pernas‖
para, ao acordar, metê-los no refego da saia. O feitiço não surtiu efeito, pois a sua senhora
ainda se exaltava, talvez por Marcelina não ter fé ―nestas couzas‖, como advertira Antonia.

Outro feitiço foi tentado. Marcelina colheu a raspa dos sapatos de sua senhora e
entregou a Antonia. A moura lhe devolveu tudo embrulhado em duas papeletas que foram
usadas para fazer três cruzes sob a luz do luar. Antonia ainda ensinou a preta como fazer para
fisgar para si um homem: no ato sexual com o pretendido, esta deveria por o dedo no ―seo
vazo natural‖ e fazer duas cruzes sobre os olhos, pois assim o amante zelaria pôr ela o resto da
vida. Já para forçar alguém a fazer algo, era bastante cozer um ovo, dormir com ele entre as
pernas e, na manhã seguinte, dar-lhe de comer à pessoa que se queria persuadir.

Certamente, por andar sendo vista com a moura Antonia, Marcelina foi procurada
por Catherina Ignacia, esposa de Frutuzo (sic) Gonsalvez, ―çapateyro‖, e amante de Martinho
Gonsalvez (parentes?), ―creado do Marquez de Marialva‖. A preta pediu mais uma vez ajuda
à moura. Esta lhe ensinou novo feitiço para que o marido deixasse a mulher em paz e ―lhe não
impedisse nem reparasse o deshonestasse com outros homês‖. Um punhado de raspas dos
sapatos do sapateiro foi entregue e embrulhado. Catherina meteu os papéis no refego da saia e
deu três pancadas sobre as costas do marido para a mandinga fazer efeito. Porém, ―lhe não
declarou se tivera, ou não effeyto‖.

A mulher de João da Costa o conveceu a vender a preta Marcelina. Foi comprada por
João Eufrazio. Marcelina estava grávida, mas não comunicou a gravidez para não atrapalhar a
transação. Seu novo dono a castigou duramente pela gravidez. Pretextando que ela estava de
namoro com outro negro da casa, juntou ―seis ou sette homês sendo hû delles o ditto seo
Senhor, e seo filho mais velho‖, a mandou despir-se, atou-lhe as mãos e surrou-a. Queria
saber quantas vezes tinha ―tido copula‖ com o preto, que também foi surrado.

―Exasperada pelo grande castigo que lhe deo‖ o seu novo senhor, ―chamou pello
demonio, rayvoza, e com animo de ser feyticeyra‖. Nas tarefas do dia-a-dia, Marcelina não
esquecia a humilhação que sofrera, ―o que socedeo havera quinze dias‖. Estava fazendo pão
quando invocou o demônio. A massa do pão começou a se mexer sozinha diante dos olhos
incrédulos da negra. Fazia o trabalho sobre sua própria cama, pois estava debilitada pela surra.
Quando batia a massa no alguidar, as tábuas da cama faziam barulho, mas quando o diabo
passou a fazer o serviço, a massa misturou-se em silêncio. Apavorada, pois ―bem conhecia

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que so por arte do demonio, se podia amaçar e levedar em tão pouco tempo‖, não comeu do
pão.

Naquele dia, desejando fazer logo o trabalho da casa, ouviu uma voz que dizia: ―Se
quizeres vay buscar ao Campo Grande que la te ensinarão o que has de fazer para tudo
obrares depressa‖. À meia-noite, quando todos dormiam, a porta da casa misteriosamente se
abriu e Marcelina caminhou pelas ruas desertas de Lisboa. Chegando no local combinado,
―ao pe de huâs cazas nobres que ficão a mao direyta, vio hû vulto muyto alto, e lhe parecia
que tinha mais altura do que ella na figura de hû bode‖. Arrepiou-se, a vista escureceu, fez
menção de correr e ainda ouviu aquele ser gritar: ―Aonde vaz‖? Disse-lhe que ia buscar umas
coisas.Um pé-de-vento espalhou-se com tal velocidade que ela caiu algumas vezes antes de
chegar em casa. Atrás dela a porta fechou-se por encanto e com grande estardalhaço. Por obra
do demônio, ninguém acordou. Daí em diante, os dias de Marcelina não seriam mais os
mesmos: passou a ouvir pancadas durante a noite, não conseguia mais dormir e resolveu ―a
levar para a sua cama a imagê de Christo Senhor Nosso na Cruz‖ para ―abraçarse com
ella‖.

Em dezembro de 1734, já se ia delineando o destino condenatório de Marcelina:


―Per que a Re não tem feito inteira, e verdadeira confissão de suas culpas, nem satisfatória
antes muito deminuta simulada e fingida, porque não declara a verdadeira tenção que teve
em as cometer prezumindose conforme (...) que a Re obrara todos o referido por sentir mal de
nossa Santa Fe Catholica, e viver apartada della, e ter feito pacto expresso com o demonio
reconhecendo somente nelle poder de ajudar, e favorecer‖.

Em 23 de dezembro de 1734, com rara celeridade no Santo Ofíco, saiu a sentença. O


inquisidor Ribeyra de Abreu considerou ser Marcelina obrigada a seguir os ditames da Igreja,
pois fora batizada na Santa Fé Católica; levou em conta que a ré havia sido castigada pelos
seu senhor antes de invocar o demônio e decidiu pela pena:

―(...) mandam que a Re Marcelina Maria em pena, e penittencia de suas culpas


ouça sua sentença na Meza do Santo Officio perante os Inquizidores, hum notario e
duas testemunhas, e nella faça abjuraçam de leve suspeita na Fe, e por tal declaram,
sera instruida nos misterios da fe necessarios para a salvaçam de sua alma, e
cumprirá as mais penas, e penetencias espirituais, que lhe forem impostas‖
(Inquisição de Lisboa, maço 25-proc. 156).

Culpas semelhantes poderiam ter levado Marcelina à fogueira em outra época. O


tradicional rigor racionalizador do Tribunal, neste caso talvez com alguma influência pré-
iluminista, apontou a ré como pessoa ignorante em assuntos religiosos e determinou -lhe penas

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e penitências espirituais. As culpas se adequaram com perfeição aos preceitos demonológicos
da Inquisição.

Iniciamos nosso estudo com a narrativa paradigmática deste processo, para retornar
às suas temáticas ao longo do trabalho e em outros documentos inquisitoriais que visitaremos.

********

No cerne da Cristandade, está a busca de intersecção entre eternidade e História.


Jesus seria este elo, em que a eternidade atuaria no mundo vivido dos mortais comuns,
interceptando o tempo histórico e agindo no destino terreno dos homens. Esta verdadeira
obsessão ocidental pode ter se originado da fusão entre a tradição filosófica grega e a cultura
judaica, ainda na antiguidade. A aplicação dos questionamentos gregos ao mundo judaico,
quando da helenização do oriente, parece ter gerado uma fé singular que admite a
individualidade e busca a integração de todos os homens.

Somaram-se a estas características iniciais os princípios católicos de confissão e


arrependimento. O cristianismo abriu-se a demandas introspectivas de busca da felicidade
terrena. Daí, mais tarde, também a abertura para romper com a tradição de julgamentos
irracionais baseados em fenômenos naturais e não na busca de pistas, provas e evidências. A
fé cristã permitiu a distinção entre o crime intencional e o ato casual, sendo necessário provar
a intenção criminal para poder condenar o réu. Na sua origem (século XIII), a Inquisição
inspirou-se neste princípio. Porém, o prosseguimento do ato inquisitorial e a formação dos
tribunais modernos serão analisados aqui como paradoxais, num fenômeno de desvirtuamento
e esvaziamento do significado original da fé e do ato investigativo.

Para chegar à concepção do julgamento justo, ou seja, com base em investigações e


testemunhos, foi preciso desmistificar e desmitologizar o cristianismo de suas origens
místicas. Nosso trabalho trata da relação entre estes três fatores: a desmitologização de
valores, o julgamento dos pecadores e a formação dos tribunais modernos. Numa perspectiva
histórica, buscamos reconceituar o Tribunal do Santo Ofício da Inqusição que atuou em
Portugal. Nesse sentido, a questão fundamental é compreender o significado da Inquisição
para a cultura: sua essência valorativa em relação ao quadro geral da História. Para isso,
buscamos o conhecimento deste quadro geral através de concepções históricas que ajudam a
responder nossa questão fundamental. Buscamos principalmente em Max Weber, e também
em Gilbert Durand, o desvendamento do cenário histórico que circundou a Inquisição
Moderna. Ambos serão citados e analisados ao longo deste estudo.

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A relação entre religião e vida econômica foi a essência das preocupações de Max
Weber para explicar a formação do Ocidente moderno. Procuraremos contextualizar a
Inquisição Moderna portuguesa neste quadro geral. Na tradição weberiana, o historiador
norte-americano John Patrick Diggins sistematizou de forma bastante didática o significado
deste período histórico para o mestre alemão. O breve lapso de tempo histórico em que a ética
calvinista tornou o trabalho algo moralmente recomendável tem paralelo nos primórdios da
era artesanal – na sociedade artesanal medieval – e marca indelevelmente a formação do
mundo moderno. Contudo, Weber viu neste processo o ―espírito da tragédia‖ da cultura
ocidental na medida em que o desencantamento do mundo do trabalho sucedeu à sua
valorização moral.

Nas palavras de Diggins, ―o capitalismo moderno, que teve suas origens na


disciplina moral, termina sendo pouco mais do que a gratificação de interesses e a busca da
felicidade. Como o trabalho gradualmente torna-se uma compulsão em vez de uma
‘vocação‘, o sucessor do espiritual torna-se um sensual sem sabê-lo, e finalmente o lazer
substitui o trabalho como sinal de sucesso‖ (Giggins, 1999, p. 24). O Tribunal do Santo
Ofício viveu o mesmo período histórico em que o trabalho foi considerado um valor moral
em si. Procuraremos demonstrar aqui que o Tribunal moderno buscou responder à ascese
calvinista com uma ascese própria, que aliava – ou tentava aliar – os valores tradicionais do
cristianismo quanto ao trabalho – onde este era excluído dos altos valores porque
―representava o pagamento do pecado, um ato de expiação que sugere necessidade, aflição e
miséria‖ (Diggins, 1999, p. 27) – com uma atitude de desencantamento místico típica do
mundo moderno, que demonstraremos adiante. Os inquisidores modernos tentaram aproximar
valores auto-excludentes. Deste paradoxo, surgiria, afinal, mais um impulso modernizador.

Estudar a Inquisição de forma cristalina ainda é tarefa difícil. Não pretendemos


embarcar numa historiografia pós-moderna que pouco valoriza teoria e método, firmando-se
quase que exclusivamente na narrativa. Consideramos importante a narrativa – nós a
utilizamos – desde que acompanhada de uma concepção analítica. Uma historiografia de
pequenos campos de estudo já começa a desencantar-se (1). Vemos o momento atual como
propício para reinserir a análise da Inquisição no debate acadêmico.

Este trabalho se tornou academicamente viável porque o estudo da Santa Inquisição


indica hoje novas abordagens. Há tendência a reformular o conjunto das noções usuais até
agora presentes, majoritariamente, na historiografia que analisou o Tribunal do Santo Ofício
de Portugal. No Brasil, o levantamento dos processos inquisitoriais referentes às práticas
mágicas, recebeu valiosa contribuição da chamada História das Mentalidades, onde se
destacam os trabalhos de Ronaldo Vainfas (1989, 1995), Laura Souza (1986, 1993) e Luís

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Mott (1988, 1993). São trabalhos valiosos, leituras indispensáveis, fortemente influenciadas
por Carlo Ginzburg (1987, 1988 e 1991) e Mikhail Bakhtin (1987).

A própria Laura de Mello e Souza, contudo, admitiu que ―esta forma de fazer
história tem defeitos que podem até ser graves: é freqüentemente indistinta, retórica,
conceitualmente confusa. Mas, por outro lado, abre espaço à intuição e à sensibilidade, é
democrática na utilização heterogênea e não hierarquizada das fontes, permite ensaios.‖
(Laura Souza, 1993, p. 17). Neste caso, podem as virtudes transformarem-se facilmente em
defeitos, bastando que intuição, sensibilidade e democracia se confundam com a ―confusão
conceitual‖ anteriormente reclamada. Buscamos uma outra forma de fazer História, mais
atenta à construção conceitual e à crítica documental.

O capítulo I, seguindo os passos da análise científica proposta por Max Weber (1992,
p. 107 a 154, especificamente: p. 125 a 129), tratará de estabelecer um quadro geral do Santo
Ofício. Este quadro resulta de nossa concepção da História inquisitorial. Mesmo tratando-se
de conteúdo que tem fontes históricas especificadas no texto, a concepção analítica
apresentada ali vincula ―leis‖ e ―fatores‖ de maneira hipotética ou ―experimental‖. São
experimentações fundantes da análise. No primeiro capítulo percorremos os paradigmas
presentes na Historiografia, e no objeto de estudo, analisamos a nostalgia dos mitos
formadores do Tribunal e descrevemos os ritos e o cerimonial.

O capítulo II busca tornar ordenada e ―concreta‖ a concepção do capítulo inicial.


Fazemos isso aprofundando três temas de fundo que são correlatos à Santa Inquisição: a
mentalidade de medo e ameaça que marcou a Cristandade; a estrutura do cárcere inquisitorial,
onde se dava a aplicação da tortura; a continuação da inquirição em forma de interrogatório e
a iconografia inspirada nas ações do Tribunal, fonte histórica até hoje pouco utilizada e que
apresenta rica abordagem do tema.

O capítulo III apresenta uma ampliação da proposta weberiana tradicional, graças ao


conceito de desmitologização de valores que desenvolvemos especificamente para este
trabalho, inspirados em referências apresentadas criticamente por Gilbert Durand (1995).
Durand recusa o termo desmitologização na forma como foi definido para ele. Construiremos
aqui uma outra conceituação, ―histórica‖. Em ―A Fé do Sapateiro‖, o pensador francês indica
o retorno ao passado num trajeto conceitual que nos levou a um novo olhar sobre a História da
Civilização Cristã. Weber também promove um tal retorno até o ―máximo possível‖ (Weber,
1992, p. 127), mas utiliza noções distintas. Durand nos leva a este retorno ao elucidar a
formação, dentro da Cristandade, de valores transformadores que foram estudados por outros
autores com variadas denominações: para Delumeau, eram valores ―disciplinadores‖ (1989);
para Weber, ―desencantadores‖ (1992) e para Fernández-Armesto e Wilson, ―reformadores‖
(1996). O ―retorno ao passado até o máximo possível‖ está, então, implícito no uso de noções

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aprofundadas que eram desconhecidas por Weber – nós as obtivemos em outros autores –,
mas que surgirão já nos dois primeiros capítulos deste trabalho. O fio condutor deste retorno
é, para nós, o Direito Inquisitorial, enquanto fundador do binômio
investigação/impessoalidade, que conta a história da mentalidade inquisicional com ótima
aproximação do cotidiano vivido por aqueles agentes históricos.

As amostras processuais e regimentais do terceiro capítulo desvendam uma


explicação histórica para as narrativas de perseguição ao feitiço, mas antes demonstraremos a
lógica do direito inquisitorial. Pela sua especificidade, resolvemos subdividir este capítulo em
duas partes. Há dois exercícios críticos: I- Em torno das Fontes Históricas no Direito
Inquisitorial: o Formal, o Material e o Teológico na Racionalização do Direito e II- Para uma
Crítica Documental: As Obsessões Formais nos Regimentos do Santo Ofício e nas Amostras
dos Processos Inquisitoriais. Destes estudos, emerge uma constelação de idéias e ações
obsessivas engendradas pelos inquisidores e dedutíveis através da análise documental. Tais
obsessões serviram à construção da ―lenda negra‖ de uma historiografia do tema.

Os passos dados na introdução e nos três capítulos posteriores, nos permitem propor,
na conclusão, a noção de Inquiridor-Mártir-Purificador, arremate analítico final que pretende
repor a noção de Inquisição – objetivo central deste trabalho – enquanto ação vinculada ao
Tribunal do Santo Ofício.

Também na conclusão, fazemos um duplo exercício para captar as ―constelações


possíveis no futuro‖ (Weber, 1992, p. 127. Ver vocabulário teórico). Há futuro em relação ao
final do nosso corte temporal. Para este, a República Velha vivenciou ainda a influência da
―herança inquisitorial‖ presente nas ações de delegados, policiais e juízes do Brasil
republicano. O outro exercício de futuro está na análise das ―presenças demonológicas‖ na
Cristandade dos nossos dias. Encerramos o trabalho com a demonstração desta presença e
com a indicação de caminhos para trabalhos posteriores.

********

O final do século XX trouxe o incremento de uma ruptura paradigmática pela qual


vem passando a Ciência desde que os preceitos do mecanicismo e da Física newtoniana foram
desmontados. O desmonte já vai longe no tempo. Para dizer o usual, podemos atribuir esta
ruptura ao advento da Teoria da Relatividade de Einstein, que colocou por terra a ilusão de
leis absolutas capazes de explicar os fenômenos físicos com uma associação mecânica de
variáveis baseadas nas noções de força, massa e tempo. Hoje, a Física trabalha, por exemplo,

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com noções de probabilidade e dinâmica. A antiga noção de que o universo seria um relógio
onde componentes ou peças teriam funções específicas e poderiam ser compreendidas
separadamente foi substituída:

―As moléculas e os átomos – as estruturas descritas pela física quântica –


consistem em componentes. No entanto, esses componentes, as partículas
subatômicas, não podem ser entendidos como entidades isoladas, mas devem ser
definidos por meio de suas inter-relações.

―No formalismo da teoria quântica, essas relações são expressas em termos de


probabilidades, e as probabilidades são determinadas pela dinâmica do sistema
todo. Enquanto que na mecânica clássica as propriedades e o comportamento das
partes determinam as do todo, a situação é invertida na mecânica quântica: é o todo
que determina o comportamento das partes‖ (Capra, 1999, p.42).

As constelações que Weber indica parecem ser, para as ciências humanas, o caminho
de compreensão do todo. Já o imaginário de Durand, com seus regimes de imagem, mitos e
classificações estruturais, bem se aproxima deste esforço da Física por descobrir as relações
das partes com o todo.

―De acordo com a visão sistêmica, as propriedades essenciais de um organismo, ou


sistema vivo, são propriedades do todo, que nenhuma das partes possui. Elas
surgem das interações e das relações entre as partes. Essas propriedades são
destruídas quando o sistema é dissecado, física ou teoricamente, em elementos
isolados‖ (Capra, 1999, p.40).

Identificamos a problemática que aqui nos interessa através do quadro teórico que
está detalhado no capítulo I. Nesta introdução, abordaremos também a hipótese e seus
constituintes conceituais. O debate científico desta virada do século merece nossa atenção
maior, pois dele vem brotando um outro saber científico, no qual trabalhamos.

As ciências humanas também estão convidadas a rever o paradigma. As


aproximações com as antigas ciências naturais marcaram muito fortemente o ―fazer
científico‖ dos humanistas. A ciência do século XIX dividiu nossas disciplinas em ―exatas‖ e
―humanas‖. Para melhor conceituação, podemos buscar a firmeza do alemão:
Naturewissenchaft (ciências da natureza) e Gestenwissenchaft (ciências do espírito). O apelo
cientificista relacionava as ―exatas‖ com maior firmeza dedutiva e maior nível de
previsibilidade. Às ―humanas‖ restou a pecha de possuir um alto nível de
imprevisibilidade/imponderabilidade. As tentativas de aproximação entre estas duas formas
do fazer científico marcaram fortemente os humanistas, que longamente buscaram introjetar

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para si o aparente alto grau de cientificidade de outras ciências. Todo este debate estaria
superado se seu legado não agisse tão profundamente até os dias de hoje.

É curioso notar que a busca de uma ―História sem teoria‖ bem como as diversas
tendências de procurar objetos de estudo alternativos em temáticas restritas, são processos
que emergem após evidenciar-se a inexatidão das ―teorias gerais explicativas da História‖.
História do Cotidiano, História das Mentalidades e Nova História, em princípio, permitem
livrar a ciência histórica do paradigma cientificista, mas deixam um enorme vazio teórico a
ser preenchido.... O ―segredo‖ da reestruturação do saber científico está na reposição do
critério de cientificidade. Já não se terá que exigir que as ―humanas‖ sejam espelho das
―exatas‖, pois a ciência de ponta já é cônscia de sua imponderabilidade, quer seja ―exata‖ quer
seja ―humana‖. Já não é aceitável que se suponha conhecer um arcabouço de leis naturais
universais e precisas. Na História, por exemplo, há, aparentemente, duas tendências
preponderantes: uns se fiam nos velhos preceitos de antigos quadros teóricos do modelo
cientificista; outros pensam extirpar a teoria (para não ter que pensar mais nisso?) de dentro
da seara histórica, ―resolvendo‖ a questão.

As diferenças epistemológicas entre estas duas formas de fazer ciência nos levam a
crer que são posicionamentos filosóficos atemporais que se colocam sob a denominação de
tais correntes. São diferenças que parecem ter oposição mútua permanente ao longo da
História, sendo que, ora uma, ora outra, prevalece sobre a oposta. Se assim for, esta dialética
científica estará compondo nos quadros da dança mítica das estruturas antropológicas do
imaginário de Gilbert Durand (1989). Max Weber (1992) encerrou sua última conferência
incentivando os estudantes presentes na platéia a ouvirem seu daimon interior. Trata-se de um
texto que é uma espécie de testamento filosófico do autor: A Ciência como Vocação. Noutro
escrito, o mestre alemão adiantou-se aos estudos contemporâneos do imaginário e percebeu a
existência de constelações de valores que permitiriam a compreensão da vida em sociedade e
a caracterização de tipos ideias. Nesse aspecto, ressalta Gilbert Durand:

―Quando Max Weber fala de Ideal types (sic) que os estudantes


compreendem tão mal porque têm uma informação positivista e um Ideal
type, como diz Weber não se vê nunca! Não se pode localizar aqui ou ali. É
um tipo semântico sobre o qual actuam as incidências históricas, sociais,
culturais, diversas; é um tipo ideal que tem uma realidade platónica, de certo
modo, em relação ao processo de experimentação, ao processo
empírico‖(Durand, 1982, p. 59).

Diante da imponderabilidade da análise e do ato científico, o tipo ideal (2) é um


―espelho‖ que reflete em si apenas a essência nuclear dos valores, sem as conjunturas e
variações do mundo vivido. A finalidade de um tal recurso teórico-metodológico é tê-lo como

17
parâmetro, afinando-o com o dado ―concreto‖ para elaborar daí a conclusão científica. A
qualidade maior desta noção está na capacidade de manter sua cientificidade sem a ilusória
busca de uma determinante geral para os fenômenos históricos. Ou seja, Weber demonstra
que é possível o trabalho científico sem preconizar uma instância final determinadora com
suas respectivas ―leis universais‖:

―Procuramos conhecer um fenômeno histórico, isto é, significativo na sua


especificidade. E o que há de decisivo é o fato de a idéia de um conhecimento dos
fenômenos individuais só adquirir sentido lógico mediante a premissa de que
apenas uma parte finita da infinita diversidade de fenômenos é significativa.
Mesmo com o mais amplo conhecimento de todas as ‘leis‘ do devir ficaríamos
perplexos diante do problema de como é possível, em geral, a explicação causal de
um fato individual, posto que nem sequer se possa pensar a mera descrição
exaustiva do mais finito fragmento da realidade. Pois o número e a natureza das
causas que determinam qualquer acontecimento individual são sempre infinitos, e
não existe nas próprias coisas critério algum que permita escolher dentre elas uma
fração que possa entrar isoladamente em consideração. A tentativa de um
conhecimento da realidade ‘livre de pressupostos‘ só conseguiria produzir um caos
de ‘juízos existenciais‘ acerca de inúmeras concepções ou pecepções particulares.
(...) Este caos só pode ser ordenado pelo fato de que, em qualquer caso, unicamente
um segmento da realidade individual possui interesse e significado para nós, posto
que só ele se encontre em relação com as idéias culturais de valor com que
abordamos a realidade. (...) Quando se trata da individualidade de um fenômeno, o
problema da causalidade não incide sobre as leis, mas sobre conexões causais
concretas. Não se trata de saber a que fórmula se deve subordinar o fenômeno a
título de exemplar, mas sim a que constelação deve ser imputado como resultado.
Trata-se, portanto, de um problema de imputação causal. Onde quer que se trate de
explicação causal de um fenômeno cultural (...), o conhecimento das leis da
causalidade não poderá constituir o fim, mas apenas o meio na investigação‖
(Weber, 1992, p. 128-129) (Grifos nossos).

As conexões causais interagem entre si, agrupam-se em uma afinidade rítmica e


valorativa, permitindo ao historiador a busca de uma outra universalidade, baseada nas
afinidades dos tipos ideias. Por exemplo: não é possível colocar numa mesma conceituação
histórica convencional o anti-semitismo nazista do século XX e o antijudaísmo inquisitorial
da Idade Moderna (séculos XVI a XVIII). Entretanto, a análise valorativa de tipos ideais pode
localizar as semelhanças e, associada à história do imaginário, desvendar os elos profundos
que levam à universalidade da intolerância, presente em ambas as realidades históricas. Este

18
método traz de volta, por outro caminho, o objetivo universalista de nosso saber científico,
sem cair nas teorias gerais explicativas da História, com suas fracassadas escatologias (3).

Weber representa muito bem o espírito deste nosso trabalho, pois aqui vivenciamos
um sentimento antinômico, qual seja: percebemos que a mesma conduta do raciocínio
modernizador e desmistificador que nos trouxe a ciência histórica propiciou uma certa forma
de ação inquisitorial. Em outras palavras: o contato da Inquisição com as formas
racionalizadoras típicas do mundo moderno não significou a supressão da intolerância, mas
sim o contrário: seu fortalecimento. É isso que nos lembra René Gertz na apresentação do
livro Max Weber e a História, de Astor Antônio Diehl (1996, p. 9):

―Como acontece com muitos grandes pensadores, também no pensamento de


Weber aparecem muitas antinomias. Para exemplificar: racionalização e
modernização estão estreitamente ligadas ao processo de desencantamento do
mundo. Weber, porém, tem plena consciência de que um mundo desencantado é
um mundo sem encantos e um mundo assim está fadado a morrer de morte térmica.
E, assim, o grande teórico da burocratização, da administração racional-legal e de
outros ligados à modernização é, ao mesmo tempo, o homem que tem um medo
enorme da jaula de ferro da submissão e de um mundo sem deuses nem profeta.‖

A religião tem um significado antropológico universal. A desmitologização, que


historiciza a fé, tornou-se ato de valor na Igreja Católica. Num processo milenar, chegamos a
um ponto que já foi denominado de ―a morte de Deus‖. A modernidade orgulha-se daquilo
que pode representar o seu próprio fim, na medida em que enfraquece a Cultura Ocidental que
a criou. A causalidade já não precisa ser o fio condutor da análise histórica, pois a
compreensão do devir histórico baseia-se nas constelações de valores presentes nos tipos
ideais (se se quiser uma análise nos moldes de Weber) ou no imaginário, conhecido pelo
trajeto antropológico (Durand). Aliás, vemos em Durand uma noção aproximada de
constelações – à qual retornaremos – ao analisar a formação dos símbolos: ―Veremos que os
símbolos constelam porque são desenvolvidos de um mesmo tema arquetipal, porque são
variações sobre um arquétipo‖ (Durand, 1989, p.31).Há, então, uma comprovada validade na
elaboração de um saber científico baseado em conclusões inicialmente restritas, mas que
apontam, hoje, para a reformulação da noção de universalidade, onde a análise está centrada
num trabalho que chamaríamos de Arqueologia dos Valores Fundantes, uma vez que o ideal
deste método é ser capaz de desvendar os valores essenciais que garantem a vida em
sociedade.

Sendo já um modelo com certa tradição, o novo paradigma – ou novos paradigmas –,


fértil em muitos autores e pensadores, não é uma reposição do modelo anterior com sinais
trocados, ou seja, não se troca, por exemplo, a conjuntura pela estrutura. Ressaltamos isso

19
para evitar grave reducionismo que poderia levar estudantes e colegas a imaginar aqui ou em
qualquer outra obra que um modelo novo seria apenas o anterior ―de cabeça para baixo‖. Este
reducionismo aplicado, digamos, com um quadro teórico materialista, suporia que, no lugar
de ―motivos econômicos‖ como explicativos de uma conjuntura histórica, um paradigma novo
escolheria a luta política como ―fator determinante em última instância‖. Porém, é preciso
estar despojado desta estrutura de pensamento baseada em instâncias, umas determinantes e
outras determinadas. O hábito de raciocinar com o modelo determinista pode ser facilmente
superado com a imagem das constelações de valores. Numa constelação, os valores que a
compõem – próximos entre si em constituição e significado – determinam-se mutuamente,
sem haver hierarquia ou precedência.

A metodologia weberiana e a teoria do imaginário de Durand abrem caminho para


interagir com a constante incompletude teórica da ciência e com a instabilidade do objeto de
estudo. Em outras palavras, é possível fazer ciência aceitando os limites e as restrições
espaço-temporais das conclusões a que chegamos e convivendo com a
―maleabilidade‖/polifonia do objeto. Além disso, tais limites poderão ser ultrapassados por
uma nova universalidade.

Na Física pode-se partir de uma noção interessante para o trabalho laboratorial: sabe-
se agora que o simples ato de medir uma partícula ou um movimento é suficiente para
interferir na própria partícula ou em seu movimento, influenciando-a a apresentar um
resultado distinto do que apresentaria na ausência dos instrumentos de medição. Sendo este
princípio válido para toda a produção científica, podemos conhecer um pressuposto básico: a
análise científica influencia o objeto.

Sendo a influência sobre o objeto uma característica constante e inarredável da


ciência, vemo-nos repondo também o conceito de objetividade. Este buscará a sua constância
e o seu paradigma em duas fontes: nos mitologemas (ver vocabulário teórico) formadores do
mundo luso-brasileiro e nos valores de tipo ideal de inquisidores que apresentaremos adiante.
Repõe-se a noção de objetividade sem negá-la, mas fortalecendo-a com uma maior
maleabilidade constitutiva. A objetividade não se restringirá à aplicação de um método
adequado à extração de conclusões objetivas. Além do método, o modo do objetivismo está
mesmo no quadro teórico adotado. Os quadros teóricos rígidos, coreáceos, são inobjetivos.
Isto amplia o leque de aplicações da análise científica. Trabalhar com objetividade já não mais
representa vestir uma armadura e engessar a mente, mas pode indicar a construção de um
permanente ―estudo comparativo‖.

Aqui, em nossa análise, estaremos espelhando, um diante do outro, o ―real‖ e aquilo


que foi concebido academicamente. Compararemos, por exemplo, o tipo ideal de inquisidor
com as ações inquisitoriais ―verdadeiras‖ presentes nos processos do Tribunal do Santo

20
Ofício. Comparemos os mitologemas lusitanos com as obsessões ideais presentes nas fontes
históricas da Santa Inquisição: processos, regimentos e manuscritos. O resultado deste padrão
de análise está no nosso trabalho.

Assim, concluímos que uma nova forma de encarar o ―fazer científico da História‖ é
resultante da aproximação deste pressuposto básico do novo paradigma: as conclusões
científicas são restritas e relativas ao objeto de estudo. Não há a procura obcessiva de uma
―teoria geral explicativa da História‖. Não buscamos um conceito que substitua, por exemplo,
as tentativas analíticas da corrente materialista expressas nas idéias de ―modo de produção‖ e
―formação sócio-econômica‖. Acreditamos que uma ciência que se liberte desta busca
cometerá menor número de erros e imprecisões, podendo facilmente desmistificar equívocos
sem necessitar de uma escatologia para propor à humanidade. Veremos, então, que
procuramos estar distantes do ―ponto de vista cosmopolita‖ que inspira o modelo iluminista.
Weber (1992, p. 107 a 154) ressalta que a busca de ―leis‖ e ―fatores‖ gerais não precisa ser
abandonada. Uma vez localizados os ―fatores‖, devemos, então, iniciar a fase seguinte do
trabalho, de tal forma que, de um ―trabalho preliminar‖, viriam ainda quatro operações. Pela
importância desta noção em nosso estudo, impõe-se que seja transcrita esta citação:

―No que diz respeito especialmente à intervenção de motivos ‘espirituais‘, esta, de


modo algum, exclui o estabelecimento de regras para uma atuação racional. Mas,
sobretudo, acontece que, ainda hoje, não desapareceu completamente a opinião de
que é tarefa da psicologia desempenhar, para as diversas ciências do espírito
(Geisteswissenschaften), um papel comparável ao das matemáticas para as
‘ciências da natureza‘. Para tal, ela deveria decompor os complexos fenômenos da
vida social nas suas condições e efeitos psíquicos, reduzi-los a fatores psíquicos
mais simples, e, enfim, classificar estes últimos em gêneros e analisar as suas
relações funcionais. Assim, ter-se-ia conseguido criar, senão uma ‘mecânica‘, ao
menos uma ‘química‘ da vida social nas suas bases psíquicas. Não nos cabe decidir
aqui se tais análises poderão algum dia contribuir com resultados particulares que
sejam valiosos e – o que é diferente – úteis para as ciências da cultura. No entanto,
isso não afeta de modo nenhum a possibilidade de se atingir a meta do
conhecimento sócio-econômico, tal como o entendemos aqui – ou seja, o
conhecimento da realidade concreta segundo o seu significado cultural e suas
relações causais – mediante a busca da repetição regular‖ (Weber, 1992, p. 126).

Weber prossegue no mesmo trecho questionando se haveria utilidade na descoberta


de pretensas leis gerais, cuja descoberta equivaleria à de um dicionário:

―Supondo que alguma vez, quer por meio da psicologia, quer de qualquer outro modo, se
conseguisse decompor em fatores últimos e simples todas as conexões causais imagináveis da

21
coexistência humana, tanto as que já foram observadas como as que um dia será possível estabelecer, e
supondo que se conseguisse abrangê-las de modo exaustivo numa imensa casuística de conceitos e de
regras com a rigorosa validade das leis, o que significa este resultado para o conhecimento, quer do
mundo cultural historicamente dado, quer de algum fenômeno particular, como o do capitalismo na
sua evolução ou no seu significado cultural? Como meio de conhecimento, não significa nem mais
nem menos que aquilo que um dicionário das combinações da química orgânica significa para o
conhecimento biogenético dos reinos animal e vegetal. Tanto num caso como noutro ter-se-á realizado
um importante e útil trabalho preliminar. Todavia, e, tanto num caso como noutro, tornar-se-ia
impossível chegar algum dia a deduzir a realidade da vida a partir destas ‘leis‘ e ‘fatores‘. Não por
subsistirem ainda, nos fenômenos vitais, determinadas ‘forças‘ superiores e misteriosas (‘dominantes‘,
‘entelequias‘ ou outras) – o que já constitui outro problema – mas simplesmente porque, para o
reconhecimento da realidade, só nos interessa a constelação em que esses ‘fatores‘ (hipotéticos) se
agrupam, formando um fenômeno cultural historicamente significativo para nós, e também porque, se
pretendemos ‘explicar causalmente‘ esses agrupamentos individuais, teríamos de nos reportar
constantemente a outros agrupamentos igualmente individuais, a partir dos quais os ‘explicássemos‘,
embora utilizando, naturalmente, os citados (hipotéticos) conceitos denominados ‘leis‘ ‖ (Weber,
1992, p. 126 e 127. Grifo nosso.).

Feitas estas constatações, Max Weber passa a enumerar os passos ou operações a


serem empreendidas na realização do trabalho científico, donde deduziremos que os fatores
estáveis se agrupam, modificando-se no tempo longo:

―O estabelecimento de tais ‘leis‘ e ‘fatores‘ (hipotéticos) apenas constituiria, para


nós, a primeira das várias operações às quais o conhecimento a que aspiramos nos
conduziria. A segunda operação, completamente nova e independente, apesar de se
basear nessa tarefa preliminar, seria a análise e a exposição ordenada do
agrupamento individual desses ‘fatores‘ historicamente dados e da combinação
concreta e significativa dele resultante. Mas acima de tudo consistiria em tornar
inteligível a causa e a natureza deste significado. A terceira operação seria remontar
o máximo possível ao passado e observar como se desenvolveram as diferentes
características individuais dos agrupamentos de importância para o presente, e
proporcionar uma explicação histórica a partir destas constelações anteriores,
igualmente individuais. Por fim, uma quarta operação possível consistiria na
avaliação das constelações possíveis no futuro‖ (Weber, 1992, p. 127).

Procuramos seguir este modelo na estruturação da própria tese. O capítulo primeiro


estabelece as leis e fatores que determinaram a História do Tribunal do Santo Ofício. O
estabelecimento é feito num estudo que consideramos amplo em sua preocupação temática e
temporal, onde o imaginário formador do Santo Ofício vai se tornando transparente já na

22
metade inicial do texto. O segundo e o terceiro capítulos, de elaboração meticulosa, intentam
realizar a segunda e a terceira operações da metodologia weberiana ao buscar a
individualização de fatores significativos no passado da Inquisição, relacionando-os entre si:
o medo e o direito, remontando o máximo possível ao passado de cada um em sua relação
com o Tribunal. Resulta, então, um ―agrupamento individual‖ dos fatores, deduzido a partir
dos documentos históricos analisados. As constelações possíveis no futuro, quarto passo,
surgem na conclusão, em que analisamos o legado inquisitorial.

Estes foram os passos que tivemos em mente ao escrever o presente trabalho.


Referimo-nos a essa seqüência de realizações por acreditarmos ter completado o trajeto
indicado por Weber. Isto nos permite pretender que este seja um trabalho conceitualizador,
servidor do debate científico, na medida em que permite relançar o tema para longe do
reducionismo simplista que o tem marcado. Se conseguirmos realizar este objetivo,
considerar-nos-emos realizado em nossa missão científica. Nosso objetivo é tentar abrir novo
caminho para a compreensão do Tribunal do Santo Ofício.

23
NOTAS DE REFERÊNCIA

(1) - Referimo-nos à chamada ―micro-história‖. De origem italiana, tem em Carlo Ginzburg


seu autor mais conhecido. A ―micro-história‖ tenta reconstruir o conhecimento histórico
através de pequenos relatos, notadamente baseados em histórias de indivíduos. O fracasso dos
grandes paradigmas permitiu o advento desta ―história sem teoria‖. Ver o excelente prefácio
de Jacques Revel para A Herança Imaterial, de Giovanni Levi (Levi, 2000).

(2) - Este e outros termos teóricos aparecem definidos no vocabulário teórico, ao final deste
trabalho.

(3) - A expectativa escatológica de que a História seria um saber capaz de levar a um mundo
melhor está presente em Kant (1986), quando o pensador alemão vincula o conhecimento à
criação de uma constituição perfeita. O pensamento marxista repetiu a fórmula escatológica
sob outra perspectiva. Nenhuma destas ―promessas de paraíso‖ realizou-se historicamente,
mas todas desempenharam papel importante na elaboração do conhecimento acadêmico sobre
sociedades humanas.

24
CAPÍTULO I

O EXÍLIO DO IMAGINÁRIO E O TIPO IDEAL DE INQUISIDOR


MODERNO

25
―Em nome da historicidade, dois mil anos de história são sacrificados no altar do
aggiornamento que está na moda –– dois mil anos de uma lenta sedimentação de
crenças, liturgias e dogmas. A antiga árvore de Jessé é anexada alegremente à
modernidade humanista. Não só se faz passar a fé antes das obras, como o fez a
Reforma, mas ainda liqüida-se ‗a religião‘, ‗o sagrado‘, o ritualístico, quem sabe
até ‗as crenças‘, em nome de uma curiosa ‗fé‘ que se limita, como exegese, ao
reducionismo da psicanálise ou da economia política...‖

(Gilbert Durand, 1995, p. 56)

―A ciência contentou-se em estender a mão à teologia, – com tal segurança, que a


teologia não soube enfim se devia crer em si ou na outra.‖

(Machado de Assis, O Alienista, 1998, p. 19)

26
Este primeiro capítulo inicia-se percorrendo os paradigmas num caminho que diz
respeito, simultaneamente, ao objeto de estudo e à sua análise teórico-metodológica. Em
seguida, para a compreensão do conteúdo paradigmático da Inquisição, analisaremos uma
componente da mentalidade inquisitorial: a nostalgia do mito, numa referência ao abandono
ou instrumentalização dos mitos formadores da Inquisição por parte do Tribunal português.
Ilustramos este processo descrevendo, na última terça parte deste capítulo, os ritos e o
cerimonial do Santo Ofício. A representação da especificidade portuguesa aparece também no
estudo da etiqueta e do cerimonial inquisitoriais, que nos levará a entender o simbolismo de
poder do Tribunal.

********

1.PERCORRENDO OS PARADIGMAS: A NOSTALGIA DO MITO

Há uma inquisição quando se estuda a Inquisição. Mesmo que o estudioso ou analista façam
todo o esforço para abdicar do ato de ―inquisitoriar a Inquisição‖, o leitor, o ouvinte ou
mesmo o aluno estarão sempre predispostos ao julgamento. Esta atitude, enraizada entre
pessoas das mais diversas origens e interesses, é o principal obstáculo para a compreensão
histórica do Tribunal do Santo Ofício. Em dezenas de palestras, cursos, aulas e conferências
que pronunciamos sobre este tema nos últimos doze anos, vimos sempre aflorar, entre os que
estiveram conosco, a luta irreal entre dizer ―sim‖ ou ―não‖ ao Tribunal. Daí, termos a
convicção de que para a compreensão de um imaginário inquisitorial – como pretendemos
neste capítulo – precisamos, antes, enxergar da forma mais cristalina possível o próprio objeto
de estudo. Isto permite separar, até na mente do próprio leitor, as concepções vulgarizadas do
Santo Ofício do estudo que desenvolvemos aqui.

Partindo do quadro teórico escolhido, vimos a necessidade de buscar um novo


conceito de Inquisição que, esperamos, englobe as preocupações expostas já na introdução.
Da mesma forma, a delimitação temática se impõe como uma escolha nossa para a
apresentação coerente do tema.

Escolhemos amostras de processos de bruxaria para consolidar nosso distanciamento


da dicotomia ―lenda branca‖ X ―lenda negra‖, da qual trataremos ainda neste capítulo. A
perseguição à magia desmonta a crença em qualquer papel de ―integrador social‖ que possa
ter sido atribuído ao Santo Ofício pela ―lenda branca‖. A disputa entre estas duas ―correntes‖
ocorre com os olhares voltados para questões outras, contemporâneas dos historiadores
envolvidos e que dizem respeito principalmente a uma problemática dos judeus e do anti-
semitismo. Nos nossos dias, acresceu-se, ainda, o engajamento de alguns com as difíceis lutas

27
pelos direitos das chamadas ―minorias sexuais‖, marcadas pelo questionamento de valores
morais tradicionais. Há também a defesa da liberdade de expressão, conceito recente que, no
passado, teria sido deserespeitado com a prisão e morte de artistas nos cárceres inquisitoriais.

Assim, percebemos que os processos que se valem de culpas judaicas


(criptojudaísmo e cristãos-novos), de culpas morais (bigamia, sodomia, etc.) e de culpas
políticas (maçonaria, crimes de lesa-majestade, etc.) atraem muito mais o sentimentalismo e o
envolvimento emocional dos pesquisadores que outros processos. Dentre os outros,
encontramos aqueles referentes à bruxaria. Weber lembra que a objetividade absoluta (total) é
impossível, estando sempre vinculada a uma ―objetividade pessoal dos valores‖ (Weber,
1992, p. 113 e 114). Porém, o próprio pensador de Heidelberg nos ensina, também, que ao
professor/pesquisador cabe demonstrar os valores notados em seu objeto de análise, que são
derivados de uma certa ―visão única e básica do mundo‖ (Weber, 1992, p. 450). Devem-se
demonstrar os valores notados no objeto sem fazer julgamentos e sem induzir a platéia ou
seus leitores a seguir as escolhas valorativas que dele emanam.

O estudo do judaísmo, dos crimes morais e das culpas políticas já marcou


indelevelmente a obra de muitos que se dedicaram (e dedicam-se) à análise do Santo Ofício.
O comprometimento valorativo e até ideológico permanecerá longe do nosso trabalho.
Certamente não teremos realizado este objetivo totalmente, mas estivemos (e estamos)
buscando-o à luz do conceito de objetividade científica. Percebemos que este distanciamento
pode ter ocorrido aos inquisidores e às suas vítimas. Qualquer pessoa letrada ou minimamente
informada que tenha vivido nos séculos XVII e XVIII saberia do peso social dos judeus.
Estes, inclusive, pressionaram papas e monarcas, obtendo perdões temporários e suspensão
momentânea da perseguição. Já as bruxas, em geral pessoas ―do povo‖, muitas vezes
iletradas, não tinham qualquer poder de pressão. Artistas presos, como Antônio José da Silva,
podiam contar – ou tentar contar – com a amizade de pessoas importantes e com sua própria
popularidade. Mesmo depois de mortos, exerciam, em alguns casos, o peso da memória, tendo
juízes e o próprio Tribunal, lidado com a presença ―inercial‖ de sua capacidade de influência,
traduzida em admiração pela vítima ou em revolta pela sua morte. Enquanto isso, os que
foram acusados de feitiço quase nada deixavam que mantivesse publicamente a sua
lembrança: contra a memória destes ergueu-se longa indiferença. Somente muito depois da
extinção do Tribunal é que os historiadores têm tentado o resgate destas histórias.

Estes fatores demonstram, fartamente, que os processos que se referem às culpas de


magia são documentos menos tensos que, por conseqüência, revelam com maior grau de
nitidez o imaginário inquisitorial, além de passarem ao largo de uma certa ―História engajada‖
em que existe quem confunda a própria origem religiosa ou seu próprio comportamento moral
com o trabalho de historiador. Quanto maiores as pressões e tensões em torno de um processo,

28
menor a ―autonomia‖ do juiz. Da mesma forma que buscamos os processos de feitiço, no
sentido de localizar com maior proximidade o discurso inquisitorial, vemos que a origem
religiosa ou os valores morais do pesquisador também não devem invadir o discurso/valores
do outro, no caso o inquisidor/agente histórico analisado.

Também a Maçonaria sistematizou sua crítica ao Santo Ofício. Hipólito José da


Costa (1811), por exemplo, após fugir das masmorras inquisitoriais, fez contundente crítica,
expressa em sua pormenorizada ―Narrativa da Perseguição‖. Não consta que os mágicos,
bruxas ou feiticeiras tenham conseguido organizar-se coletivamente para pressionar os
―homens da fé‖ ou deles reclamar. Liberados de tais condicionantes, os juízes ficaram mais
livres para forjar mentalidade específica alusiva a este tipo de culpa. A liberdade para criar
esta mentalidade levou à demonologia, verdadeira ―ciência‖ desenvolvida e aplicada ao longo
dos séculos para perseguir bruxas. Nem mesmo a perseguição aos judeus chegou a este nível
de sistematização. Os próprios regimentos inquisitoriais, que serviam para caracterizar o
campo de ação do Tribunal, inclusive para o judaísmo, não receberam – não poderiam? –
dezenas de edições nas mais diversas línguas, como ocorreu – e ainda ocorre – com os
manuais demonológicos. Na Europa Moderna, o anti-semitismo foi mentalidade restrita, bem
mais portuguesa que européia, e jamais obteve o destaque e a popularidade da demonologia.

Estamos convicto da preciosidade que representam os documentos processuais


envolvendo e acusando pessoas em casos de bruxaria e culpas correlatas. Optamos, neste
cenário, por narrativas referentes a processos ocorridos no Brasil num corte temporal amplo,
que vai do final do século XVII ao início do século XIX. O corte temporal deste trabalho
como um todo é, entretanto, ainda maior. Para captar o tempo longo do imaginário, vamos de
1536 a 1821.

Nosso corte temporal motiva-se por uma busca historiográfica e por uma
preocupação teórica. O campo teórico indica que, no tempo longo, definem-se os movimentos
do imaginário na transformação das mentalidades. Inspiramo-nos na terminologia de José
Carlos de Paula Carvalho (1987) para compreendermos o movimento histórico em que uma
nova ―bacia semântica‖ sobrepujou a anterior, levando o Tribunal do Santo Ofício às
mudanças estruturais características do período estudado. As ―bacias semânticas‖ são uma
imagem durandiana que interage muito bem com a teoria weberiana no que se refere aos
valores. As ―bacias‖ permitem visualizar como se fossem correntes ―hídricas‖ o surgimento
de novas ondas valorativas que formam nova ―hidrografia‖, num processo que costuma levar
um intervalo de tempo superior a um século. Para uma melhor compreensão desse movimento
de mentalidade, criamos há alguns anos a expressão ―Pedagogia do Desprezo‖, que
complementa a noção conhecida como Pedagogia do Medo (Carvalho, 1987), temas que
aprofundaremos no capítulo II.

29
A busca historiográfica vem de nossa preocupação em resolver uma questão e um
problema históricos: houve ou não caça às bruxas na Península Ibérica? A caça às bruxas
integra-se no período que vai do início do século XVII à metade do século XVIII, quando
grande parte da Europa viveu um agravamento significativo no número de processos contra
bruxas e no número de execuções ao final de processos desse tipo. França, Alemanha e
Inglaterra viveram esta fase. No caso de Portugal, o principal historiador a analisar a
Inquisição, naquele país, considera que não existem dados que possibilitem afirmar a
existência do mesmo fenômeno na Península Ibérica (Bethencourt, 1987). Podemos estender
esta análise de Francisco Bethencourt para as colônias portuguesas, inclusive o Brasil.

Partimos, entretanto, da recolocação do problema. Vemos que há especificidade no


imaginário dos processos coloniais. No Brasil, as trocas culturais geraram culpas específicas
ao campo mágico. Então, outra questão se imporia: poder-se-ia falar de uma onda de caça às
bruxas especificamente colonial? Os dados ainda não permitem uma resposta. No capítulo 2,
apresentaremos o quadro de mitologemas lusitanos: um deles ajudará a compreender a
―inexistência‖ da onda de intensificação de processos contra práticas mágicas que ficou
conhecida como ―caça às bruxas‖. Retomaremos este tópico na análise documental do terceiro
capítulo.

A superficialidade desta discussão está no exagerado valor que se dá às estatísticas.


Elas servem para demonstrar uma intensidade, porém as denominações conceituais de tempo
longo – típicas da História – não precisam depender dos números. Ora, a caça às bruxas
ocorre desde os primórdios da Cristandade; nada reduz sua importância, por exemplo, nos
processos civis que já localizamos para o período republicano brasileiro. Mais que estatísticas,
procuramos captar a mentalidade e o imaginário identificáveis na análise valorativa do tema.

O ―modelo‖ da intensa perseguição ao feitiço ocorrida na Idade Moderna européia


não se repetiu nem em Portugal nem no Brasil. A funcionalidade desta conclusão é muito
reduzida: diferencia histórias nacionais européias, mas deixa em aberto o conhecimento da
questão na História portuguesa. Para nós, o futuro da historiografia do tema será propor uma
periodização específica para a perseguição ao feitiço na História colonial brasileira. Ao
abandonar generalizações inúteis, abrimos caminho para uma visão mais límpida da Santa
Inquisição.

É preciso revisitar a Inquisição enquanto objeto de estudo da História. Em uma


ciência tão caudatária da visão mecanicista do mundo, o objeto ergue-se como se fosse um
―outro absoluto‖ para ser investigado. Pensamos para além desta concepção, partindo em
busca de novo paradigma metodológico, que admite a interação do historiador com seu

30
objeto. Como nas mais recentes descobertas da Física, entendemos que existe uma mútua
influência entre quem estuda e quem é estudado. Por isso, sugerimos revisar o tema
Inquisição, imaginando-nos – o autor e nossos leitores – num passeio por entre os meandros
da mentalidade e do imaginário inquisitoriais. O termo revisão tem sido caro à historiografia.
A revisão mais famosa teria sido a que se procedeu sobre a Revolução Francesa. Enquanto
tema para a História, a Inquisição carrega os pressupostos analíticos para uma nova incursão
do conhecimento, isso porque o assunto foi abordado, até agora, na maioria dos casos, de
forma pouco conceitual ou com ―compromissos‖ pessoais/historiográficos que deixaram em
aberto grande parte das possibilidades analíticas possíveis para os historiadores neste tema.

Se a curva do tempo nos levasse a alguma berlinda setecentista para escutar, sob
sorrelfa, a conversa dos inquisidores ou o grito de suas vítimas diante dos azorragues do
Tribunal do Santo Ofício, certamente reafirmaríamos o percurso analítico que estamos
apresentando nestas páginas. Este novo olhar que estamos propondo para a análise histórica
da Inquisição parte da constatação de que se tratou de um Tribunal de origens medievais, com
estruturação definitiva nos tempos modernos e que vivenciou, como agente histórico
privilegiado, todo o movimento de desmitologização da Cristandade – conceito que será
detalhado neste capítulo. Vamos às raízes históricas da intolerância cristã para podermos
propor uma nova concepção – ou uma nova noção – de Inquisição.

Na segunda metade do século XX, o estudo da Inquisição recebeu enorme


incremento com análises específicas em termos temáticos e geográficos (António Saraiva,
1985; Graça e José Sebastião da Silva Dias, 1980; e I. S. Révah, 1975; por exemplo). Período
de idêntica efervescência havia ocorrido na fase que vai do final do século XIX ao início do
século seguinte (João Lúcio de Azevedo, 1975; e António Baião, 1972) . Desde a década de
cinqüenta do século XX, quando os trabalhos de Antônio Saraiva iniciaram debate proveitoso
em Portugal, o estudo sobre o Tribunal do Santo Ofício tem avançado em termos quantitativos
e qualitativos. Tais análises sistemáticas só se iniciaram após a extinção do Tribunal, pois até
1821 quase ninguém arriscou publicar estudos sobre os homens da fé. O grande pioneiro foi
Alexandre Herculano (1852) com o clássico ―História da origem e estabelecimento da
Inquisição em Portugal‖. Hoje, século e meio após a dedicada pesquisa de Herculano, a
produção historiográfica continua atrelada a uma velha segmentação analítica, que foi muito
bem enfocada por Francisco Bethencourt (1987 e 1994), ao apresentar a classificação da
historiografia em dois grupos: os que defendem a ―lenda branca‖ da Inquisição e os que
acreditam numa ―lenda negra‖. As duas mitificações do Tribunal sobreavaliam seu papel na
História. Pode haver objetivo ideológico por trás deste processo de ataque/defesa do
Tribunal, que seria o de influir nos debates políticos contemporâneos a cada um dos muitos
autores que estudaram a Inquisição. A ―lenda branca‖ e a ―lenda negra‖ vão atravessar todo o
nosso trabalho.

31
Numa aproximação inicial, dizemos que a ―branca‖ supõe um Tribunal justificável
pela sua historicidade. Em outras palavras: na conjuntura histórica em que surgiu e se
desenvolveu, tratou-se de ―algo natural‖. É visão fatalista e determinista. Citamos duas
passagens que ilustram o posicionamento dos defensores da ―lenda branca‖, que, por estarem
―em baixa‖ nos dias de hoje, tornaram-se de pouco conhecimento, quase uma peculiaridade de
quem se dedica especificamente ao tema. Vamos a Herculano e a Tuberville, o primeiro sobre
a Inquisição portuguesa e o outro sobre a espanhola:

―Seria absurdo exigir do catolicismo que tolerasse o erro; que admitisse a possibilidade
teórica de qualquer ponto de doutrina contrária à sua; porque isso equivaleria a fazer descer a crença
católica das alturas do dogma ao nível das opiniões humanas; mas estas leis ferozes tornavam
necessariamente odiosa aos olhos das suas vítimas a causa remota e inocente de males que só, na
realidade, eram filhos de bruto fanatismo e, às vezes, de conveniências políticas‖ (Herculano, 1852, p.
27 - vol. I).

―Não é só à Igreja que compete apreciar a perversidade da heresia. Desde o código


Teodósio que o poder temporal tem o direito de sustentar que o indivíduo não deve
ser livre de discutir questões teológicas nem manter qualquer opinião que lhe
ocorra, pois as questões teológicas não são meramente académicas, antes respeitam
vitalmente ao organismo político, quanto mais não seja senão para ordenar a vida
da família, a qual é essencial ao bem-estar do Estado e dependente dos bons
princípios religiosos‖ (Tuberville, 1932, p. 123).

Não se pode dizer que estes autores tenham sido determinados em seus
posicionamentos apenas por sua época ou lugar: Herculano foi um intelectual português do
século XIX, tendo vivido num país diferente daquele dos tempos inquisitoriais. Tuberville,
que estudou em Oxford em 1909, foi professor da Universidade de Leeds até 1945, quando
faleceu. Os posicionamentos de ambos, ao que parece, se prendem a convicções religiosas ou
a posicionamentos políticos, sem deixar de lado uma evidente busca por encarar a História
sempre como algo natural.

Posicionamento aproximado aos de Tuberville e Herculano é o do brasileiro João


Bernardino Gonzaga, que realizou importante trabalho sobre a relação entre Inquisição e
Direito. Em livro recente, com apresentação de um beneditino, Estêvão Tavares Bettencourt,
que é estudioso do tema – tendo, por sinal, comparecido ao I Congresso Internacional sobre
Inquisição com a palestra Inquisição: Origem e Mentalidade (Lisboa e São Paulo, 1987) –
Gonzaga chega a afirmações justificadoras da perseguição aos judeus:

―Um grupo, entretanto, permanecendo fechado em si, repelia a Cristo,


precisamente o ―povo eleito‖. Os cristãos lhe tinham apego, sabiam que sua crença

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vinha de Israel. As Igrejas ostentavam sempre, pintadas nas paredes, cenas do
Antigo Testamento. Para o cristão, o judeu se apresentava como um irmão mais
velho, a quem se ama e de quem se espera apoio, mas a resposta era
desconcertante, com cruel ruptura. O pior ódio é aquele que provém do amor.

―A separação e o rancor foram inevitáveis. Os judeus permaneciam tenazmente


apartados, formando um grupo fechado. Conservavam estranho idioma, se
escondiam em ritos misteriosos, a que se acrescentou, por volta do século XII, a
―cabala‖, com estranha doutrina místico-teológica. Tudo isso produzia espanto,
medo e desconfiança. Em 1199, foi preciso que o papa Inocêncio III proibisse aos
cristãos não só de matar os judeus, mas também de molestá-los em suas festas
religiosas, com ofensas e pedradas. Nos mercados, encenavam-se peças teatrais de
escárnio aos judeus‖ (Gonzaga, 1993, p. 73).

Encontramos as componentes centrais da ―lenda branca‖: a inevitabilidade e a


naturalidade da Inquisição. Já a lenda ―negra‖, supõe a necessidade de julgar e condenar o
Tribunal, buscando inculcar ―cientificamente‖ discurso anticlerical típico do Iluminismo no
século XVIII. Vejamos o exemplo do texto emocional de Juan Blazquez Miguel:

―La ferocidad de los inquisidores se puso de manifiesto desde el primer momento.


En 1486 se celebraron seis autos de fe; el primero, el 12 de febrero, y en él salieron
750 penitenciados (...). Hasta 1501 fueron procesadas 2.792 personas más, de las
que se relajaron 196 en persona y 500 en estatua.

De estas cifras tan terribles hay que hacer un ligero comentario relativo a los
conversos que fueron absueltos, tras haber sido examinados sus casos. Sabemos
que desde 1485 hasta 1500 lo fueron 43 y otros 112 vieron suspendidos sus
procesos. (...)

Inmediatamente los tentáculos inquisitoriales se extendieron a las demás


localidades de su ámbito jurisdicional (...)‖ (Miguel, s/d, p. 106).

Ferocidade, terror e tentáculos: palavras que não deixam dúvida sobre a forma como
se vai encarar o tema. Entre os autores que se portam assim, há um consenso em torno de que
o Tribunal já não é um problema científico – talvez até isto não importe muito para eles – e a
sua explicação definitiva já é conhecida: tratar-se-ia de um crime perpetrado pela Igreja
Católica contra o povo hebreu. Restaria, então, alimentar libelos acusatórios com mais e mais
estudos de casos e estatísticas. Este modelo proliferou no século XX e vive hoje processo de
esgotamento.

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Acreditamos que as duas ―visões‖ passam ao largo da problemática central, que é a
de buscar compreender o papel das inquisições na História da civilização cristã ocidental.
Essa mudança da expectativa que tem o pesquisador em relação à análise do tema leva a uma
modificação profunda na postura do cientista. As visões ―lendárias‖ garantem público,
alimentam a polêmica e fortalecem opiniões, egos e publicações. A nova visão sobre o tema
(revisionismo?) como todos os enfoques críticos que foram para livrarias e auditórios nos
anos recentes, irá encontrar a curiosidade e a expectativa do público em torno do debate sobre
o Tribunal.

O resultado destas voltas que o tema tem dado em torno de si mesmo, é que ficamos
restritos à soma de informações, pouco acrescentando ao conhecimento do Tribunal enquanto
agente histórico. Buscamos delimitar o nosso trabalho de maneira a tentar desfazer o nó
reducionista que leva os historiadores sempre de volta a uma das duas lendas: ou o Santo
Ofício fica caracterizado como obra do clero retrógrado ou como instituição ―natural‖ em sua
conjuntura histórica. Sugerimos ao leitor refazer conosco o caminho que escolhemos trilhar.

Por enquanto, o primeiro pensamento que nos vem à mente quando falamos em
Inquisição está, quase sempre, vinculado aos judeus e aos cristãos-novos. Parte da
historiografia desenvolveu este hábito: a ação inquisitorial fica restrita à questão judaica. Os
judaizantes foram realmente grandes vítimas do Tribunal e, ao contrário do que ocorreu com a
Inquisição espanhola, onde ―a perseguição massiva do judaísmo termina no início do século
XVI, mantendo-se depois como ‘crime‘ minoritário‖, em Portugal ―hoje sabe-se que cerca de
80% dos processos (...) dizem respeito a este ‘delito‘‖ (Bethencourt, in Centeno, p. 104). Se
levarmos em conta que vem de muito longe, no cristianismo, o escárnio contra os judeus,
vemos que a própria idéia de que cada judeu é um aldrabão disfarçado permanece forte entre
os povos cristãos e está, de uma forma ou de outra, presente em ondas intolerantes que geram
ódio contra os judeus até os dias de hoje. De tanto terem sido expulsos de uma lado para
outro, foi fácil para os adversários juntarem à noção de trapaçaria uma outra: de que cada
comunidade judaica era um punhado de bilhostres a serem expulsos ou expurgados na
primeira oportunidade. Ficou o judeu, então, como uma espécie de ―eterno estrangeiro‖.

Preconceitos idênticos foram usados contra outros grupos sociais, que vão nos
interessar mais detidamente. Basicamente, a justificativa exterior da intolerância inquisitorial
moderna, em Portugal, está no antijudaísmo, pois dentre todos os componentes intolerantes da
―tradição cultural cristã‖ este foi, sem dúvida, aquele que alavancou os demais, pelo menos
neste caso. A ―caça às bruxas‖, pertinente aos processos inquisitoriais que escolhemos
analisar, surge, devemos reconhecer, a reboque da ―caça aos judaizantes‖, tanto que seus
mitologemas só são plenamente perceptíveis no século XVI. Da mesma forma, se uma certa

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concepção moderna de bruxa foi ―invenção‖ do clero – e muitos fatores levam a crer que foi –
o cristão-novo foi ―inventado‖ bem antes. Buscar tais primazias cronológicas, no entanto, é
apenas um exercício de análise histórica, mas não torna um grupo mais sofredor que outro.

Judaizante é a designação genérica para os indivíduos das comunidades judaicas. A


palavra adjetivou, também, uma categoria surgida ao longo da Idade Média e no início da
Idade Moderna. Trata-se dos cristãos-novos. O cristão-novo simplesmente não existiu, a
priori, enquanto ―grupo para si‖. Ou seja, aqueles que eram considerados cristãos-novos não
se auto-identificavam plenamente assim. Em termos antropológicos, os cristãos-novos
desconheceram esta identidade. O termo cristão-novo era uma alcunha, com inequivocado
significado pejorativo, feito para excluir os que assim foram denominados.

É possível que existam, na História, exemplos de grupos que foram batizados com
uma alcunha e acabaram criando uma identidade derivada dela. Talvez os chamados
mamelucos, numerosos na colônia brasileira, sejam uma confirmação disto. O atrelamento
entre a alcunha e a repressão permitiu que Antônio Saraiva (1985, p.121) chamasse de
―fábrica de cristãos-novos‖ a própria Inquisição. Desta forma, o grupo cristão-novo jamais
existiu socialmente, tendo sido uma invenção da máquina inquisitorial (1). Tais grupos
consideravam-se judeus e, como tal, se reconheciam. A prática religiosa recôndita não passou
de uma estratégia de sobrevivência.

Ao ―inventar‖ os cristãos-novos enquanto uma ―identidade inquisitorial‖, o clero


estava sistematizando uma série de experiências e observações, realizadas durante séculos. A
figura social do indivíduo que abjurou do judaísmo em público, mas que continuava a
professá-lo às escondidas, só se tornou possível após o amadurecimento de tais experiências e
observações. Uma velha superstição cristã, a de que os judeus mataram Jesus porque
estavam mancomunados com o demônio, somou-se à luta pelo controle e expropriação de
riquezas. Estes fatores consolidaram o processo de invenção do cristão-novo. Outros fatores,
menos racionais e evidentes, porém igualmente importantes, impulsionaram a criação do
cristão-novo.

A tradicional cultura popular medieval expandiu o riso sarcástico na direção de todos


os grupos sociais (Burke, 1989); a ascensão do tomismo dentro da Igreja desmistificou os
conflitos e consolidou as diferenças dos católicos com outros grupos sociais, induzindo o
clero à intolerância; a formação de uma nobreza mais portentosa – típica da Baixa Idade
Média – levou ao aumento da cobrança de impostos, tarefa impopular que estava, muitas
vezes, em mãos judias. O empréstimo de dinheiro a juros também era muito impopular. Henry

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I. Sobel, presidente do Rabinato da Congregação Israelita Paulista, narrou assim este processo
histórico:

―Desde a era romana, muitos judeus tinham sido mercadores, uma ocupação
menosprezada nas sociedades agrícolas. Quando, porém, as Cruzadas abriram
novas rotas de comércio por toda a Europa e as atividades comerciais adquiriram
prestígio, muitos cristãos se apressaram a entrar no ramo e os judeus foram
forçados a sair. Neste mesmo período, a crescente hostilidade popular levou a
novas leis que proibiam os judeus de possuírem terra. As guildas de artesãos, que
estavam sendo organizadas, só admitiam cristãos. Assim, o único meio de vida que
restou aos judeus era o empréstimo de dinheiro a juros – a usura, como era então
chamada –, atividade proibida aos cristãos pela igreja. Ao realizarem operações de
empréstimo, os judeus enriqueceram e se tornaram ainda mais malvistos. Devido à
escassez de dinheiro, às incertezas inerentes à agricultura e aos grandes riscos do
comércio internacional, as taxas de juros eram forçosamente altas, resultando na
acusação de que os judeus eram exploradores que ‘sugavam o sangue cristão‘ ‖
(Sobel, 2000).

Talvez possamos admitir as Cruzadas como sendo o início de uma ação mais
sistemática contra os judeus. Tais ações sucediam antes, mas, naquele momento, os cruzados
atacaram no seu caminho para a Terra Santa quase todas as populações judaicas que
encontraram. O butim de tais batalhas era usado para financiar a marcha para o oriente. Em
Jerusalém os massacres se sucederam com aviltante expropriação de bens.

Em diversos momentos históricos, monarcas europeus expulsaram populações


judaicas de suas cidades ou de seus feudos para expropriá-las e, mais tarde, cobrar novo
tributo ao permitir que retornassem para ficar sob proteção dos mesmos nobres que lhes
haviam roubado. Ilustrativa deste processo foi a atitude de Bernardo de Claraval (1090-1153),
hoje santo católico, que intercedeu junto às comunidades judaicas para que retirassem os juros
dos empréstimos tomados ―inadvertidamente‖ pelos nobres cristãos. Aqueles judeus que
retiravam os juros recebiam a garantia de que não seriam atacados. Com ―prêmios‖
financeiros deste tipo, foi se dando um exercício de busca de caminhos e maquinações, de
como retirar e transferir riqueza em poder de pretensos ou verdadeiros judeus. Tais
mecanismos de exploração acabaram consagrados pela História, ao ponto de terem sido
utilizados largamente pelo nazismo, já no século XX.

O primeiro grande ataque a uma judiaria (bairro judeu) parece ter ocorrido no século
XIV. Se pudermos encontrar a origem destas ondas intolerantes no século XIV, estaria por

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certo no séquito de padres em torno de D. Leonor, mãe do rei Henrique III de Espanha. Partiu
daí, em 1391, a determinação de levar a população cristã a atacar o povo judeu. O massacre
veio com requintes de crueldade no dia 6 de junho, provocando assassinatos, ―justiçamentos‖,
estupros e.... fogueiras. Neste episódio, um grupo de judeus, pressionado pela turba, aceitou
ser batizado para não morrer. Teria surgido aí a denominação de ―nuevo cristiano‖, aquele
que aderiu há pouco – e sob pressão – à fé dominante, sendo duvidosa a sua conversão. Na
Alemanha, ainda em 1243, em Belitz, perto de Berlim, ―vários judeus e judias foram
queimados porque haviam sido acusados de ter cometido esse delito‖, qual seja o de
transpassar a hóstia e espalhar no chão o santo líquido do cálice (Delumeau, 1989, p. 293).
Em 1298, na Francônia, um caso de hóstia profanada leva um habitante de Rottingen a
levantar a população contra os judeus:

―Todos os judeus da cidade são massacrados. O bando de matadores vagueia em


seguida de cidade em cidade na Baviera e na Francônia, executando todos os
judeus que não se convertem. Nunca antes os israelitas de toda uma região tinham
sido considerados responsáveis pelo ‘crime‘ imputado a um só. Foi o primeiro
genocídio de judeus na Europa cristã. Assassinatos coletivos de judeus,
consecutivos a supostas profanações de hóstias, eclodiram ainda em Deggendorf,
na Baviera, em 1337-1338, em Segóvia em 1417, em Berlim em 1510. Nessa
última cidade, a acusação levou à execução de 38 israelitas e foi seguida da
expulsão dos judeus de Brandemburgo‖ (Delumeau, 1989, p. 293).

O ato de conversão abre dois importantes precedentes: (I) a partir dele já se poderia
impor ao converso a punição por erro de conduta religiosa, pois se tratava, agora, de um
católico, batizado na lei de Cristo, que devia obediência às leis da Igreja, que antes não se
aplicavam ao indivíduo enquanto judeu, membro de outra fé; (II) a comunidade judaica se
dividiu entre os que recusavam o batismo e preferiam morrer no martírio e os que anuíam à
imposição de uma fé alheia. O converso ficou ao alcance da Inquisição e os judeus
começaram a se acusar mutuamente de traição. O cristão-novo foi inventado para ser
perseguido e extorquido. Rapidamente, a alcunha passaria a ser aplicada indistintamente,
atingindo até pessoas que haviam nascido cristãs e que jamais tinham passado por alguma
conversão para reconhecer a autoridade católica.

A galhofa e a ironia presentes no riso sarcástico da cultura popular medieval (Burke,


1989) voltaram-se fortemente contra uma vítima já conhecida: o personagem do judeu rico,
gordo e orgulhoso. Este passou a compor o teatro de rua e os folhetos populares, agora sendo
convidado a fazer como seus colegas conversos: abjurar o judaísmo e receber Jesus Cristo.

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Para o poder dos monarcas, a invenção dos cristãos-novos foi um grande negócio, já
que passaram a existir dois grupos a serem extorquidos. Para o poder da Igreja, cujo braço não
alcançava os judeus, os conversos eram campo aberto para o confisco de riqueza alheia. E
assim se fez. A ―base teológica‖ da perseguição foi buscada possivelmente em trechos da
Bíblia que teriam sido propositalmente interpretados neste sentido, dos quais destacamos os
seguintes:

―Se o teu irmão, filho de tua mãe ou teu filho ou tua filha, ou tua mulher que
repousa sobre o teu seio, ou o amigo a quem amas como à tua alma, te quiser
persuadir, dizendo-te em segredo: Vamos, e sirvamos a deuses estranhos (...), não
cedas ao que te diz, nem o ouças, nem teus olhos lhe perdoem (...), mas logo o
matarás; seja a tua mão a primeira sobre ele, e depois todo o povo lhe ponha a mão
(....)‖. ―Se ouvires alguns que dizem: Alguns filhos de Belial saíram do meio de ti,
e perverteram os habitantes da sua cidade, e disseram: Vamos e sirvamos aos
deuses estranhos, que vós não conheceis; informa-te com solicitude e diligência, e,
averiguada a verdade do fato, se achares ser certo o que se disse, e que,
efetivamente se cometeu uma tal abominação, imediatamente farás passar à espada
os habitantes daquela cidade, e destruí-la-ás com tudo que há nela, até aos gados.
Juntarás também no meio das suas praças todos os móveis que nela se
acharem, e queimá-los-ás juntamente com a cidade, de maneira que consumas
tudo em honra do Senhor teu Deus, e que seja um túmulo perpétuo, e não seja
mais reedificada, e não se te pegará às mãos nada deste anátema, para que o Senhor
aplaque a ira do seu furor, e se compadeça de ti (...)‖ (Deuteronômio, 13, 6-9 e 12-
17. Grifos nossos).

―E Balac, rei dos Moabitas, disse-lhe: Vem, e levar-te-ei a outro lugar, a ver se é do agrado
de Deus que tu de lá amaldiçoes o povo de Israel. E, depois de o ter levado ao cimo do monte Fogor,
que olha para o deserto, Balaão, o adivinho, disse-lhe: Levanta-me aqui sete altares, e prepara outros
tantos novilhos, e igual número de carneiros. Balac fez o que Balaão lhe dissera, e pôs um novilho e
um carneiro sobre cada altar‖ (Números, 23, 27 - 30).

―O Senhor espera o momento em que terá misericórdia de vós (filhos de Israel), e


ele exaltará a sua glória, perdoando-vos, porque o Senhor é um Deus de eqüidade;
ditosos todos os que esperam nele. (...) E (antes desse tempo feliz) o Senhor vos
dará o pão da angústia e a água da tribulação; porém, (depois) fará com que
nunca se afaste de ti o teu doutor; e os teus olhos estarão vendo sempre o teu
mestre. E os teus ouvidos ouvirão a sua palavra, quando clamar atrás de ti

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(dizendo): Este é o caminho, andai por ele; e não declineis nem para a direita nem
para a esquerda‖ (Isaías, 30, 18 e 20 - 21. Grifo nosso).

A ―lenda negra‖ construiu seus argumentos partindo do sofrimento dos judeus, que acabamos
de resumir. Já a ―lenda branca‖ supõe poder contextualizar o Tribunal com análise tão
profunda que se tornaria capaz de justificá-lo. A intolerância católica não foi um processo
linear. Alguns papas até condenaram os excessos do Tribunal, que era na maior parte
independente da hierarquia da Igreja. O papa Sisto IV (1471-1484), por exemplo, condenou
os abusos do rei D. Fernando de Espanha contra os judeus, mas não retirou dele o título de
inquisidor-mor. Entre 1674 e 1681, o papa Clemente X suspendeu as atividades do Santo
Ofício em Portugal ao ler as Notícias recônditas do modo de proceder da Inquisição com os
seus presos (Lupina Freire, 1951), onde um ex-secretário do Tribunal, Pedro Lupina Freire,
denunciou as péssimas condições de carceragem e de trato dos réus, além de mostrar os
cerceamentos processuais impostos pelos inquisidores portugueses. Desde que o
protestantismo havia conquistado parte dos reinos europeus, os papas temiam pressionar os
monarcas para evitar ―perder‖ outro reino para a ―heresia luterana‖ ou similar. Por outro lado,
o direito inquisitorial, se estudado detidamente, apresenta abrandamentos nas punições
adotadas em relação a crimes semelhantes tratados pelo ―direito civil‖. A este respeito,
Francisco Bethencourt esclarece:
―A auto-legitimação do tribunal da fé na sua função de defesa da fé e da unidade da
igreja é reproduzida por diversos historiadores dos séculos XIX e XX com
objectivos de intervenção no debate político-religioso. Por sua vez, a crítica ao
tribunal como artifício ideológico e como instrumento de interesses sociais (ou
económicos), que já se encontra esboçada em numerosos testemunhos dos séculos
XVI e XVII, tendo assumido uma enorme importância no processo de
desestruturação da sociedade de Antigo Regime, contribuiu a longo prazo para uma
nova mitificação do tribunal, sobreavaliando o seu papel e as suas funções‖
(Bethencourt, in Centeno, 1993, p. 101).

As duas lendas se completam e sua análise só pode ocorrer com a noção deste
conjunto. Da disputa entre os que desejam condenar o Tribunal e alguns que querem absolvê-
lo, nasce uma historiografia marcada pelo comprometimento com posicionamentos alheios ao
estudo científico da História. É inevitável desqualificar esta noção negra de uma ―Inquisição
monstro‖, bem como a idéia branca de uma Inquisição ―em seu mundo‖, harmonizada com o
processo histórico e, portanto, justificável. Mesmo sem trabalhar a crítica historiográfica
como nossa preocupação central, notamos que, em relação à uma primeira ―corrente‖, passou
desapercebida a impossibilidade histórico-analítica de tudo que é tido como exótico ou fora de
propósito – como seria, por exemplo, um monstro; à outra faltou uma factível percepção do

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conjunto da História. A nossa análise, ao fazer uso do conceito de Desmitologização de
Valores, busca antepor-se a uma certa vulgarização da visão iluminista da História.

Façamos um paralelo entre uma visão ―iluminista/materialista‖ e esta em que


trabalhamos com a noção de desmitologização de valores. Uma certa vulgarização da
concepção de História, vinda do Iluminismo, não corresponde à atual visão de muitos
historiadores, mas está presente no ensino de História e nos eventos da área, onde vimos
aflorar tal concepção repetitivamente. Nela, por exemplo, resiste uma idéia ainda muito forte,
mesmo no meio acadêmico: a de que a Igreja Católica teria sido apenas uma barreira ao
progresso da História e à ascensão dos valores renascentistas modernos. Vemos o mesmo
momento histórico com outro olhar. Realmente havia muito de arcaico nos valores da Igreja,
porém sua vitalidade esteve em adequar-se ao mundo moderno e influenciá-lo. Neste sentido,
ao historiador cabe ressaltar estas influências, que se traduziram em duradouras permanências
mentais. A mentalidade inquisitorial teve, em relação ao mundo moderno, uma proximidade
que pode passar insuspeitada pelos menos avisados. Um exemplo, para muitos
desconcertante, vem quebrar o mito da inacessibilidade dos ―livros proibidos‖.
Paradoxalmente, segundo Heráclito Bonilla, houve inquisidor que possuía e dava acesso às
obras da Ilustração Francesa e, até mesmo, que as possuía:

―No caso do Peru, sabe-se que o vice-rei Lascal, um dos que mais combateu todos
os esforços pela independência do Peru e Bolívia frente à Espanha, não somente
era um leitor entusiasta destas obras supostamente proibidas, senão que, de sua
biblioteca, muitos dos líderes da independência peruana mais tarde, emprestaram
estes livros. Um caso extremo é o do Conselheiro da Inquisição, em cuja
biblioteca os livros da Ilustração francesa se encontravam e que eram
igualmente disponíveis para todo aquele que quisesse ter acesso a essas leituras‖
(Coggiola, 1990, p. 152. Grifo nosso).

A racionalização do mundo, tão cara à modernidade, contou, isto sim, com forte
influência da Igreja, inicialmente com o pensamento tomista. A Reforma Protestante nasceu
desta ―racionalização católica‖, inspiradora dos valores da Contra-Reforma. Esta, por sua vez,
buscou aprofundar a desmitologização de valores, adequando-se aos preceitos burgueses. Da
mesma forma, a Inquisição não foi uma ―imposição do clero regressista‖, mas um instrumento
racionalizador por excelência, como veremos na análise documental do capítulo terceiro.

Portanto, Reforma, Contra-Reforma, Renascimento, Inquisição e Absolutismo


apontam para a mesma direção histórica, mesmo divergindo pontualmente entre si. Os
conflitos do período moderno tiveram como moto primeiro – essencial – o processo de
afastamento da cultura ocidental de seus mitos fundadores. Esta desconexão gerou o imenso

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esforço secularizador que pode chegar ao fim neste começo do século XXI, talvez com um
―renascimento‖ espiritual. As raízes mais distantes deste processo devem ser buscadas em
Gilbert Durand (1995), que será nosso guia nesta breve incursão ao passado da Cristandadade.
Do pensamento dele, captamos a composição do Tipo Ideal de Inquisidor Moderno, que
criamos para este trabalho. Para ele, que é mestre de grande parte dos Centros de Estudo do
Imaginário espalhados pelo mundo, a relação do cristianismo com a História é o centro de um
processo de afastamento da fé de sua mística original. Em A Fé do Sapateiro, Durand afirma
que a aproximação do clero católico com a História é um contra-senso:

―A liturgia cristã tem por missão fundamental contestar com o símbolo o tempo e a
história, em nome da Ressureição. Neste sentido, sua ação com o aparelho
simbólico de que se cerca não difere do ato constitutivo do ‘Eu‘, no curso da
individualização. A individualização é também uma vitória contra as disjunções, as
distrações, as dispersões temporais, inclusive os egoísmos e narcisismos. O mesmo
arsenal simbólico atua plenamente não só na liturgia cristã, contestando a morte,
como nas cerimônias iniciáticas de muitas outras religiões (...)‖ (Durand, 1995, p.
47).

Neste contexto, repetido ainda muito mais nos dias de hoje, em todos os
templos católicos, acredita-se num Deus que só tem sentido ao ―agir na
história, ao revelar-se nela‖. Há um ―fastidioso processo do aggiornamento
historicista, positivista e socializante que (...) reduz o divino a uma
epistemologia, para não dizer uma superstição, inteiramente humanista, a
da história‖ (Durand, 1995, p. 58). Cristo e sua religião – ou qualquer outra
– só possuem sentido próprio fora da História.

―O gênio de uma religião, e nomeadamente o ‗gênio do cristianismo‘, não pode


residir na aliança oportunista com as ideologias da moda, que são efêmeras. O
próprio da história é a dialética: o amanhã queima o que ontem foi adorado. Infeliz
a religião, a ética que aceita tal oportunismo! O gênio de uma religião está, ao
contrário, no aprofundamento hermenêutico das recorrências que, ultrapassando o
efêmero, marcam a eternidade e a universalidade do homem: Semper et ubique. A
esse gênio pertence a chave das estações e dos dias, a posse de um tempo que
desafia para sempre a destruição entrópica e a morte‖ (Durand, 1995, p. 77).

A ilusão reside em crer num Cristo que ―precisou‖ da História, fez-se homem para
ser compreendido. Sem a Providência Divina, o mundo cristão perde sentido: ―a história não
passa de um fantasma dos impulsos que movem o homem‖(Durand, 1995, p. 18). Hoje,
quando a desmitologização parece chegar ao seu ápice, pode ser surpreendente, à primeira
vista, o posicionamento científico durandiano. Talvez Max Weber o definisse como uma

41
tentativa de reencantamento do mundo, contra o medo que tem a cultura cristã de morrer de
desencantamento. A difícil compreensão poderia recobrir-se de certa estranheza, se o próprio
Durand não a tivesse respondido com uma fórmula pragmática apontando como ter uma
experiência simbólica, nos dias de hoje, marcados por uma inflação diária de imagens sem
controle ou significado claro. Num texto publicado em 1967, numa revista de formação
doutrinária cristã (Lumière et Vie), ele responde à questão da experiência simbólica hoje,
propondo que aquele que a desejar terá que fazer três recusas. A terceira delas, segundo ele, é
―a mais importante, a mais essencial para uma experiência simbólica autêntica‖ (Durand,
1995, p.41).

―Consiste na denúncia clara do evolucionismo histórico, relegado ao papel de


simples ‘mito‘ da nossa civilização. Ora, a redução evolucionista da história dos
homens é possivelmente o mito positivista mais incidioso, porque ele se defende,
justamente, de toda mitologia e capta a atribuição de sentido em benefício de uma
pretendida objetividade histórica, um factum que mais cedo ou mais tarde escapa à
decisão individualizante‖ (Durand, 1995, p. 41).

A idolatria da História levaria ao que Marcuse (1978) chamou de


unidimensionalização do homem. Contra este homem unidimensional, opõe-se o politeísmo
de valores e caminhos de que falam Weber e Durand. É, na verdade, questão de honestidade
científica, pois o aprofundamento científico desfaz a unidimensionalização acadêmica. Mas é
também uma ilusão antiga: segundo Henry Corbin, esta ilusão de tantas faces foi iniciada em
Córdoba no século XII, quando Averroes direcionou o caminho aristotélico do que é hoje a
ciência profana ocidental.

―(...) essa bifurcação catastrófica teria ocorrido desde a opção de Averroes pela
escolástica ocidental, contra Avicena. Vale a pena precisar: foi o magistério da
Igreja que impôs a recusa de um intermediário ‗psíquico‘ – ou melhor, ‗psicóide‘,
como diria Jung – entre o mundo acima da natureza, das idéias, e a natureza
humana. Para retomar uma linguagem dionisíaca, diríamos que foram as
hierarquias eclesiásticas que apagaram as hierarquias celestes. Estas últimas,
conforme Henry Corbin, formam um mundo ‗à parte‘, que não é nem o da fisis
nem o das puras intelectividades; um mundo precisamente ‗visionário‘, onde os
inteligíveis adquirem um corpo e os corpos se espiritualizam‖ (Gilbert Durand,
1995, p. 84).

Para desvendar os valores e as imagens que compõem o Tipo Ideal de Inquisidor


Moderno, partimos da constatação da tensão constante entre a opção ascética do Tribunal, que
imprimiu uma vitoriosa pedagogia de valores ―arcaicos‖ em plena era moderna, e,
paradoxalmente, sua ação desmitologizadora, que tornou os ―homens da fé‖ verdadeiros

42
agentes do desencantamento modernizador do mundo. Este tipo ideal que propomos apresenta
uma inovação em relação à noção weberiana clássica. Aqui, admitimos que a atuação das
incidências históricas, sociais e culturais (ver Durand, 1982, p. 59) dá-se no tempo longo e
pode promover inovações e substituições valorativas que, no entanto, permanecem dentro do
mesmo tipo ideal e referem-se ao mesmo ―contexto histórico‖. As componentes valorativas
deste tipo ideal estão apresentadas a seguir. As siglas colocadas após a denominação de cada
componente servirão, adiante, para a elaboração do quadro explicativo do tipo ideal.

1-O Ascetismo Católico Tradicional (ACT). Trata-se de um ―retorno‖ para o


campo católico de um valor que dele teria se afastado durante a Reforma Protestante, que o
reivindicou e acolheu: o ascetismo monástico medieval. A Inquisição, porém, em harmonia
com as ações da chamada contra-reforma, foi uma mantenedora desta ascese que recrudesceu
no catolicismo. Referindo-se à obra de Sebastian Franck, Weber lembra este processo ao
escrever que, depois da Reforma, ―todo cristão tinha que ser monge por toda sua vida‖
(Weber, 1983, p.84). Este ascetismo, na leitura católica, liga o fiel a Deus sem a concorrência
de valores imanentes (voltaremos a esta noção quando formos tratar do deslocamento místico,
ainda neste capítulo). O ideal ascético do cristão medieval pode ser percebido no cotidiano da
época: o dia-a-dia em torno de orações e promessas; a unidade monogâmica da família; o
apoio às ações da Igreja (missas, procissões, construções de templos, etc.) e o respeito à
autoridade do clero nas questões mundanas, além das teológicas. No século XVIII, o setor do
clero que atuava em ações inquisitoriais substituiu o Ascetismo Católico Tradicional pela
Abjuração do Medo pela Imanência.

2-A Superação da Morte (SM). A Inquisição Moderna, em seu paradoxo,


desqualificou paulatinamente a morte enquanto busca de purificação, na medida em que
buscou encontrar no Divino as componentes da Natureza. O aprofundamento do ato racional-
investigativo nos processos inquisitoriais levou, no tempo longo, ao abrandamento das penas
e à descrença no valor das práticas mágicas. A desqualificação da mística presente nas culpas
de magia e mesmo de judaísmo implica – e revela – a sua componente complementar:
investiga-se o ato humano em si e não seu caráter pecaminoso na relação com Deus. Isto fez
aflorar um senso de justiça que iria prescindir, mais tarde, das idéias de pecado e perdão pelas
de crime e reeducação. A investigação inquisitorial ergueu-se como um valor em si na busca
da verdade processual das provas. Nos processos inquisitoriais, a morte foi perdendo
lentamente o sentido que lhe dava a cultura tradicional, já que não mais seria uma purificação
para o pecador, mas uma pena baseada num senso moderno de proporcionalidade do crime e
de efeito pedagógico para a sociedade. Há uma conseqüência cultural profunda nesta
―secularização‖ da justiça: a substituição da idéia de pecado pela noção de crime é, sem
dúvida, uma das mais marcantes.

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A cultura se constrói sobre a concepção que se tem da morte. ―Cultura é, para
Weber, certamente, a capacidade especificamente humana de colocar a morte na fileira dos
mais significativos acontecimentos da vida‖ (Diehl, 1996, p. 134). O orgulho investigativo
dos inquisidores, de origem medieval, está no próprio significado da palavra inquisição. Nele,
apresenta-se com anterioridade uma prática jurídica cara aos juízes contemporâneos do
Ocidente, que é privilegiar a prova diante dos indícios, ou seja, compor os autos do processo
com a ―verdade‖ factual (2). Este valor de tipo ideal também poderia ser denominado como
ato racional-investigativo.

3-A Abjuração do Medo pela Imanência (AMI). Num processo que atingiu a
cultura cristã como um todo, a Inquisição venceu a era do medo (ver Delumeau, 1989) com o
conhecimento imanente do místico, desmistificando-o pela árvore do conhecimento. Após a
superação do medo sobreveio o desprezo pelo místico, numa expectativa tipicamente
iluminista de ser possível explicar o mundo desvendando-o na descoberta da regularidade de
suas leis. Quando uma componente cultural – o medo, neste caso – já não promove a sensação
de enfrentamento ou compreensão/aceitação da morte, torna-se sublimável para a cultura. O
clero, marcado pelo medo obsidional de tantos séculos, percebeu esta Abjuração como um
enfraquecimento da ortodoxia católica presente no Ascetismo Tradicional (descrito acima, na
primeira componente), mas a introjetou como um ―sinal dos tempos‖. Isto explica porque no
esquema que se apresentará no Quadro 1, estas duas componentes valorativas se excluem (a
ascensão de AMI é a superação/substituição de ACT).

4-A Hierarquização/Institucionalização da Fé (HIF). O Tribunal promoveu, para


usar terminologia de Durand, a substituição e a sobrevalorização das hierarquias celestes pelas
terrenas, num ato cujo simbolismo corre paralelo à consolidação das monarquias nacionais e,
mais tarde, do absolutismo. Houve a centralização até dos atos cerimoniais da vida
inquisitorial. Desta hierarquização surgiu uma ética pragmática em que os inquisidores agiam
atrelados a interesses seus ou de outrem, distantes do significado básico da ação inquisitorial.
A prática de uma ―ética de responsabilidade‖ (Verantwortungsethick) (3), que percebe a
conseqüência prática de seus próprios interesses acima dos valores religiosos esposados,
levou os homens da fé a admitirem situações de ―convívio‖ com o pecado ou com a heresia.
Os inquisidores viveram intensamente esta responsabilidade na medida em que seu principal
alvo – os judeus/cristãos-novos – tinha suficiente capacidade de articulação política para,
através de um jogo de pressão que chegou até a suspender a ação do Tribunal algumas vezes
(4), forçarem os ―homens da fé‖ a responderem, pelo menos em parte, pelo resultado de suas
ações. Por motivos diferentes, tanto no período inicial de consolidação do Tribunal quanto no
período final de desarticulação do Santo Ofício, a responsabilidade sobrepujou a convicção.
No final do século XVIII a ascensão da ética da responsabilidade deveu-se mais à
necessidade de adequar o Tribunal à ―luz do século‖ do que às pressões organizadas de grupos

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perseguidos (5). Esta sobrevalorização do clero é componente de toda a hierarquização
religiosa. Em A Economia das Trocas Simbólicas, Pierre Bourdieu ressalta:

―É necessário que a profecia morra enquanto tal, isto é, como mensagem de ruptura
com a rotina e de contestação da ordem ordinária, para sobreviver no corpo
doutrinal do sacerdócio, moeda cotidiana do capital original de carisma (...)‖
(Bourdieu, 1992, p. 90).

Numa primeira elaboração, podemos afirmar que os valores correspondem às fases


da História do Tribunal, revelando que o Tipo Ideal de Inquisidor Moderno só é perceptível
com uma visão do conjunto de tais etapas. O Ascetismo Católico Tradicional volta-se para
expressar o momento de fundação das inquisições ibéricas, em que a ―purificação das almas‖
e a ―pureza de sangue‖ eram as principais componentes legítimas do discurso inquisitorial.
Décadas depois, a vivência do poder abriu caminho para outro valor: a
hierarquização/institucionalização da fé, que representa uma Inquisição já amadurecida no
jogo de símbolos cerimoniais que valem como ato de dominação nas sociedades monárquicas
ou absolutistas. O século XVII viu surgir críticas mais sistematizadas contra o Santo Ofício.
Também nesta época surgiu a literatura que duvidava da credibilidade das culpas mágicas e
espirituais atribuídas aos réus: a morte deixou de ter um aspecto purificador (superação da
morte). Enfim, o aprofundamento do descrédito místico provocou a lenta diluição do medo,
abjurado pelo discurso iluminista que (re)hierarquizou a Inquisição, transformando-a em
braço do Estado.

Os valores do tipo ideal estão, assim, no tempo histórico. Isto lança um problema
para sua caracterização metodológica, pois a consolidação dos mesmos respeita o tempo, só se
dando em plenitude do século XVII para o XVIII, quando ficou composta sua ―constelação‖.
Aceitamos, então, que este tipo pode ser analisado na presença de três dos quatro valores, que
são suficientes para elucidá-lo, desde que um deles seja o Ascetismo Católico Tradicional.

O tipo ideal que demonstramos está implícito em todo este trabalho. Fontes
documentais que inspiraram a elaboração e delimitação dos valores aparecerão citadas ao
longo deste livro. Se apresentássemos este tipo em suas componentes superficiais, teríamos,
aproximadamente, as seguintes noções inspiradas nas idéias de raiz do cristianismo e na
atuação inquisitorial: busca da unidade de todos os homens em Cristo; moralização da vida
cotidiana; combate às heresias; cristianização/evangelização e progressivo desprezo pelos
mitos.

Há pouco, apresentamos estes mesmos princípios com uma terminologia


universalizada. Por isso, o Tipo Ideal de Inquisidor Moderno envolve um conceito
permanente (6). O uso da sua terminologia referencial aparece em diversos trechos do texto,

45
inclusive na análise documental. O tipo ideal é uma abstração teórico-metodológica que
permite aproximar o dado histórico através de comparações reflexivas. A construção deste
tipo ideal que acabamos de expor foi possível graças à nossa experiência e conhecimento do
tema.

Partindo do posicionamento weberiano, propomos – para além dele – uma forma de


compreensão da tipificação ideal da História. Ou seja, mesmo sendo uma abstração, pois
aceitamos a constatação de que nenhum personagem histórico ―real‖ contém todas as suas
características plenamente otimizadas, um quadro tipificador é construído partindo-se do
conhecimento empírico. Trata-se de uma associação de noções que percebem duplamente o
objeto através das aproximações reflexivas. Faremos as aproximações temporais e as
imagéticas. Mesmo que se cruzem permanentemente, é importante lançar aqui estas noções
para a compreensão do leitor: a) as aproximações imagéticas são feitas no paralelo entre os
personagens históricos (inquisidores, cujas obsessões de imagens encontram-se nos processos
do Tribunal) e a tipificação ideal acima descrita; b) as aproximações temporais são mais
profundas, pois permitem a compreensão do trajeto do tipo ideal antes e depois do ápice
constitutivo da realidade histórica referente àquela idealização. Ou seja, a tipificação é
conceitualmente estática, mas os valores que a formam foram sendo construídos no tempo
histórico e serão abandonados neste mesmo tempo. No uso do tipo ideal de capitalista
moderno, por ele criado, Weber indica que uma tal noção é feita por tornar-se ―absolutamente
necessária‖, pois ―sem isto (...), considerando-se a complexidade do material, uma
formulação clara seria quase impossível.‖ O cientista alemão reconhece, porém, que se trata
de um recurso irrecorrível que nos leva, ―em certo sentido, (a) violentar a realidade
histórica‖ (Weber, 1983, p. 178). Em outras palavras, o tipo ideal é um recurso que torna a
complexidade do objeto de estudo minimamente inteligível.

O quadro a seguir demonstra, através de uma elipse, a ascensão e a queda dos


valores. A tendência da elipse corresponde ao aumento progressivo e à posterior redução da
presença do Tribunal na vida do Império português. A variação foi mensurada com
informações apresentadas por Maria de Fátima Dias dos Reis, da Faculdade de Letras de
Lisboa, no Congresso Internacional sobre Inquisição (in Novinsky, 1992, p. 194). Notemos
que, no quadro, os valores vão sendo agregados uns aos outros na medida em que se tornam
hegemônicos, mas o inverso ocorre no processo seguinte: a desagregação.

É importante perceber que a curva representa os inquisidores modernos no tempo,


inseridos nos seus ―fatos históricos‖ ou na ―oscilação do real‖ em torno deles. Porém, não
chegam a se projetar – e nem mesmo a tocar – no tipo ideal, que paira sobre a História,
colocado que foi, pelo historiador. Há consequências nisto: a) o conceito não reproduz a
―realidade‖, mas apenas refere-se a ela; b) a associação dos valores não se dá graças a leis
gerais explicativas da História, mas a uma mútua atração entre eles, similar às estrelas que se

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―unem‖ em constelações, para usar um termo presente em Weber e Durand; c) a análise não
atribuiu hierarquia entre as componentes valorativas do tipo ideal apresentado, mas constatou
a atribuição hierárquica ―determinada‖ pelo próprio objeto; d) os valores não surgem nem
desaparecem, pois os mitologemas constituidores são universais e podem permitir a ascensão
de componentes semelhantes em outros períodos históricos. Assim, quando o ACT
―desaparece‖ nas curvas dos séculos XVII, XVIII e XIX, não significa que ele deixou de
existir, mas que teve seu valor diminuído pela ―evolução‖ da mentalidade inquisitorial.

Os valores tipificados referem-se especificamente aos inquisidores modernos. A


posterior continuidade da desmitologização, que estamos seguindo até hoje, onde a
componente inquisitorial teve papel relevante, não nos interessa aqui. As componentes
―duras‖ do Tipo Ideal de Inquisidor Moderno são exclusivas dele. Para explicar a
permanência da desmitologização nos séculos seguintes à extinção do Tribunal, é preciso
lançar mão da única universalidade possível: o mito. Reconhecemos que ainda não houve, na
ciência histórica, a sistematização teórica de uma visão tão aprofundada quanto seria uma
mitanálise histórica (ver vocabulário teórico). Reservamo-nos, então, a opção de um caminho
dentro da ciência compreensiva.

Por outro lado, entendemos que a Desmitologização de Valores é uma das faces do
percurso histórico que transformou a cultura ocidental num ente secularizador e, como diria
Weber (1992, p. 439), desencantado. Este conceito é nossa contribuição para desvendar o
processo geral de intelectualização da cultura em sua especificidade dentro dos cárceres
inquisitoriais. Trata-se de conceito singular para o estudo da Inquisição Moderna, posto que,
nela, – por toda parte – houve um progressivo exílio ou afastamento do imaginário, que veio a
ser considerado fantasioso e ilusório. Também a nossa própria disciplina foi criada no mesmo
ambiente intelectualizante que permitiu a sistematização de todas as ciências. Admitimos a
validade histórica da concepção que vincula o próprio processo que engendrou o saber
científico ao período que marca o advento da intolerância inquisitorial.

―O progresso científico é um fragmento, o mais importante indubitavelmente, do


processo de intelectualização a que estamos submetidos desde milênios e
relativamente ao qual algumas pessoas adotam, em nossos dias, posição
estranhamente negativa‖(Weber, 1992, p. 439).

Em segundo lugar, para que pudéssemos chegar ao conceito de Desmitologização de


Valores, rompemos com uma certa ―desordem explicativa‖ que tem marcado o tema. A
permanente análise de casos específicos pode encobrir uma armadilha: em plano inferior,
deixa-se o entendimento do movimento histórico que gerou a Inquisição, abrindo espaço para
explicações gerais de cunho emocional. Sobrepor o ―uso dramático‖ deve permitir uma nova
História Moderna. Os casos encontrados em processos inquisitoriais serão considerados, no

47
capítulo terceiro, como narrativas que, somadas às narrativas regimentais, representam o
imaginário da Inquisição em sua face medo de bruxa.

A Desmitologização de Valores de que tratamos aqui foi um movimento de


mentalidade que ocorreu dentro do Tribunal do Santo Ofício e compõe-se das seguintes
características: desmitificação das culpas de feitiço; secularização da processualística
inquisitorial; esvaziamento do mito formador da própria Inquisição. A desmitificação das
culpas de feitiço, bem como a secularização da processualística inquisitorial serão analisadas
em outra parte deste trabalho: no capítulo terceiro, enquanto o esvaziamento do mito
formador da própria Inquisição será visto ainda neste capítulo. A verificação destas três
componentes da desmitologização no Santo Ofício deverá permitir perceber que os objetivos
e ações investigativas inquisitoriais foram capazes de promover a desvalorização mítica dos
princípios ―teológicos‖ heréticos e das próprias noções teológicas católicas. Dialeticamente, o
Tribunal promoveu, ao final de três séculos de desmitologização, a sua própria superação.
Veremos no capítulo seguinte que os próprios inquisidores deixaram de ensinar o medo para
ensinar o desprezo.

Historicamente, a desmitologização foi aprofundada com a oficialização do


catolicismo como religião de Estado, ligada ao poder temporal. Ainda no século IV, operou-se
―a passagem do cristianismo de religião ilícita para religião lícita‖(Frangiotti, 1995, p. 161).
Há um cenário de lutas internas que define este processo. Santos mais espiritualizados, por
exemplo, continuaram a surgir ou a receber a veneração dos fiéis, como Bento, Antão e São
João da Cruz, mas a hegemonia dos setores hierárquicos próximos às autoridades seculares
tornou-se a marca da Igreja medieval. Bento, aliás, é tido por Daniélou e Marrou como ―santo
de tipo bem oriental: também ele é taumaturgo pneumático, carismático, segundo a tradição
inaugurada por Santo Antão‖(Daniélou, 1984, p. 434).

Os católicos vivenciaram intensamente a aproximação com o poder constituído. O


caminho de estruturação de um imaginário que se proporia libertar espiritualmente o homem
de todas as formas de opressão, terrenas e celestes, foi abandonado solenemente em nome de
um esforço hercúleo para oficializar toda e qualquer expressão de fé, contemporizando-a com
a oficialização do credo. É possível que este caminho tenha levado, séculos depois, à Reforma
Protestante, onde o exercício do poder temporal passou a ser visto com ainda maior
―naturalidade‖, levando Max Weber em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo a
dedicar nota específica a esta tendência, nela escreveu que há ―uma comum boa vontade‖ do
―clero luterano, em oferecer-se como colaboradores (sic) da política por simpatia geral à
autoridade, quando queriam condenar a greve como pecado e os sindicatos como promotores
de cupidez (...)‖ (Weber, 1983, p. 145).

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O esforço desmitologizador tentou engessar os mitos e seu significado transcendente.
A História da desmitologização nos leva de volta ao período em que a Igreja aliou -se a
Constantino e Teodósio. As conseqüências políticas e teológicas levaram a uma inclinação da
cristandade para formas ―distanciadas‖ dos seus próprios mitos fundadores. Tentativas de
(re)mitologização resultaram em movimentos internos que buscavam compensar a influência
de uma divindade ―secularizada‖, onde um aspecto místico aparece escamoteado pelos
símbolos imanentes do exercício do poder temporal.

―A Igreja – que foi assumindo e pondo a seu serviço a filosofia grega, a ascese e a
moral estóicas, alguns ritos e festas pagãs – agarrou-se depois ao braço secular,
à força da espada e dos decretos imperiais (Grifo nosso).

―Teologicamente, a conseqüência mais sentida é que, a partir do dogma de Nicéia,


declarando a igualdade substancial de Cristo com Deus, colocando-o no mundo
divino-celeste, ele se distanciou dos fiéis. Passou a ser tratado sempre como Deus,
como segunda pessoa da Trindade. Logo após o Concílio de Nicéia, apareceram as
primeiras imagens de Jesus Cristo vencedor, revestido da púrpura imperial. Mais
tarde, as figuras de Pantocrator, o Cristo todo-poderoso, dominador dos reinos, nos
traços e feições do imperador bizantino. Um clima de terror se espalhou entre as
massas, especialmente, no Oriente. O sacrifício da missa, a basílica, a mesa do altar
e outros objetos ‘sacros‘ receberam os adjetivos fríktos (temíveis) e féberos
(terríveis). A missa bizantina passou a ter uma entrada solene em que o coro
saudava o Cristo glorioso, triunfante, na pessoa do sacerdote, como rei da criação.
Os fiéis se prostravam à passagem do celebrante e uma nuvem imensa de insenso
invadia a nave da basílica. Por outro lado, o vazio deixado pela humanidade de
Jesus, pela afirmação exclusiva de sua divindade, começou a ser preenchido pelo
florescimento do santoral, da mariologia e das relíquias. Surgiram os novos
mediadores, entre o povo e Cristo-Deus.‖ (Frangiotti, 1995, p. 162 e 163).

A Inquisição impulsionou a desmitologização ao tentar banir os hereges, que


floresceram com vigor após a aproximação entre a Igreja e o Estado. De certa forma, a
imperiosa necessidade de uma Inquisição pode ter sido resultado do cansaço da própria
fórmula que uniu os reis e os sacerdotes cristãos, não só por necessitar combater as heresias
que se fortaleciam em virtude da oficialização do cristianismo como religião de Estado, mas
também para impor aos fiéis novos motivos de estímulo na vivência da fé.

O conceito de desmitologização de valores poderá ter aplicações múltiplas. Há


possíveis usos futuros para um nível histórico mais geral de análise da História Moderna
como um todo. Há a possibilidade de utilizá-lo como foi indicado anteriormente, ou seja, para

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o estudo de outros procedimentos inquisitoriais, mesmo ocorridos em outras nações européias.
Até nas nações onde não existiu o Tribunal, mas onde o Estado tomou para si a ação
inquisitorial, como na França, talvez seja possível obter bons resultados científicos com base
no conceito exposto.

A análise histórica situa os valores em ―seu mundo‖, em seu contexto. Justificativas


históricas sempre existirão para tudo; para o genocídio indígena americano; para o massacre
do Contestado; para o Golpe Militar de 1964. Nós não entraremos nesta discussão em relação
ao Tribunal, pois estamos convictos de que o falseamento analítico aí implicado, que
dramatiza e multiplica o caráter desumano dos sistemas intolerantes, faz a propaganda dos
algozes, presta desserviço às vítimas e embota um projeto civilizador que pretende vir a ser a
humanidade livre dos autoritarismos. Não sendo um ―xerife‖, como advertiu Marc Bloch
(1983), o historiador deve apontar a interação entre os agentes históricos e os interesses
envolvidos, além de suas conseqüências, como a exclusão de grupos sociais e a dominação,
resultantes destes movimentos no processo histórico.

Um estudo de História pode ter muitos significados. A própria palavra carrega em si


dois sentidos: História é o passado humano com seus ―fatos‖, que são o objeto de estudo de
que trata a ciência chamada História. Muito se tem debatido sobre isso. Nosso ponto de vista
científico, presente neste trabalho, é tão valioso quanto o de qualquer outro historiador.
Esperamos estar trabalhando coerentemente dentro do parâmetro que aceitamos como válido.
É mister, porém, expor um tal paradigma de forma clara e objetiva, pois se trata de um
caminho próprio, que lança um olhar específico sobre a Santa Inquisição, até de forma
curiosa, como já dissemos no início deste capítulo.

O trabalho com a História está delimitado pela hermenêutica científica, que se


vincula a um paradigma. No estudo da Inquisição Moderna é fundamental entender o
paradigma formador do mundo moderno, pois o mesmo modelo que inspirou a ciência
influenciou a Inquisição. Talvez até se possa propor um plural: paradigmas científicos. Hoje,
aquele paradigma que se erguia com o advento da Idade Moderna – e que influenciou tanto a
Inquisição quanto o pensamento científico – vive o seu lento declínio. Numa era como a
nossa, de ruptura dos valores tradicionais no saber, na ética e na moral, torna-se importante
abordar o tema paradigmas com precisão, pois não se trata aqui apenas do nosso marco
teórico, mas, em parte, do contexto de mentalidade que circundava o próprio Santo Ofício.
Evitamos esta difusa ―História sem teoria‖, que consideramos ser quase um gênero literário
baseado em fontes históricas, capaz, porém, de produzir textos importantes para serem
resgatados para o trabalho científico. A História ateórica (?) é incongruente com o trabalho
acadêmico. Procuramos, então, conceituar e até reconceituar a Inquisição do modo que nos
pareceu mais acertado.

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Para uma primeira aproximação do tema, vemos que é preciso nos advertir a nós
mesmos quanto a uma armadilha que denominamos de ―História das obviedades‖, onde reside
aquela visão mecanicista do papel que a Inquisição representou para a evolução do processo
histórico. Por razões que se desenharão ao longo da leitura dos capítulos deste livro, vamos
desautorizar, a priori, alguns ―conceitos usuais‖ sobre o Tribunal do Santo Ofício e a
conjuntura histórica que o cercou, quais sejam: a) - O Tribunal teria sido o instrumento de
resistência de uma Igreja Católica atrasada que havia perdido o ―bonde da História‖ por causa
do advento do Mundo Moderno; b) o ato inquisitorial seria exclusivamente uma forma de
encobrir interesses outros, como o confisco de bens e as pressões da nobreza contra a
burguesia em ascensão; c) a Idade Moderna fora um período de grande esplendor cultural e
artístico, com o advento do Renascimento e com os ares renovadores da Reforma Protestante.
Ao contrário do que às vezes ocorre quando se analisa o Tribunal, tais idéias não serão aceitas
aqui como inquestionáveis.

Estes três pontos já foram verdadeiros ícones intocáveis da História. Documentos e


estudos dados à luz nas últimas décadas impedem a continuidade de tais crenças. Lembramos,
por exemplo, o excelente trabalho de Derek Wilson e Felipe Fernández-Armesto (1996) sobre
a Reforma Protestante. Indicamos as pesquisas de Francisco Bethencourt (1987 e 1994) sobre
a Inquisição. Vemos incluído neste quadro o trabalho do brasileiro João Bernardino Gonzaga
(1993) sobre o Tribunal do Santo Ofício. Na origem desta reformulação do olhar histórico,
apontamos o clássico História do Medo no Ocidente, de Jean Delumeau (1989). Estas e
outras obras ajudam a livrar-nos de um mito renascentista que nos impregnou fortemente: a
dicotomia ―luz X treva‖. A força deste mito está na extrema simplicidade a que aparentemente
se consegue reduzir o complexo mundo da História. Nele, tudo pode ser explicado com a
elucidação de poucas variáveis.

Enquanto objeto de estudo da História, o tema Santa Inquisição vem sendo mal
compreendido e mal abordado, numa concepção reducionista com a qual buscamos romper.
Sendo assim, ao recolocar o olhar sobre o objeto, estamos reformulando o modelo com o qual
geralmente trabalha a historiografia que tem se dedicado ao assunto. A História sustenta ainda
fortemente o modelo mecanicista do mundo. A ciência que deu sustentação a esta antiga
concepção foi a Física, mas já a abandonou em seus centros mais avançados. É nas ciências
humanas que tal concepção ainda resiste. A ―História dos historiadores‖ é, quase sempre, uma
busca de sentidos ―naturais‖ para explicar o homem em sociedade.

Enfocamos o antigo paradigma para demonstrar sua confluência com a Inquisição


Moderna e para superá-lo no uso teórico-metodológico. Metaforicamente, como se fora um
relógio ou uma máquina que realiza tarefas em conseqüência de ações coordenadas, a
História seria compreensível através de modelos. Um tempo mecânico, com ritmo perfeito,

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seria o pulso do processo. Este modelo evolucionista da ciência histórica tem a pretensão de
tocar num ponto crucial da concepção de vida do homem contemporâneo: a dissimulação da
morte. Daí, a força que tem tido a ilusão evolucionista. É noção que vem do Iluminismo, mas
que está magistralmente elucidada por Max Weber. O mestre alemão a vinculou à idéia de
desencantamento do mundo, segundo a qual há um processo de crescente intelectualização da
vida. Após conjecturar sobre a imponderabilidade da vida financeira de um cidadão ocidental,
Weber, em um dos seus escritos mais importantes, esclareceu:

―A crescente intelectualização e racionalização não indicam, portanto, um


conhecimento maior e mais geral das condições sob as quais vivemos. Significa
antes, que sabemos ou acreditamos que, a qualquer instante, poderíamos, bastando
que o quiséssemos, provar que não existe, em princípio, nenhum poder misterioso e
imprevisível no decurso de nossa vida, ou, em outras palavras, que podemos
dominar tudo por meio de cálculo. Isto significa que o mundo foi desencantado. Já
não precisamos recorrer aos meios mágicos para dominar os espíritos ou exorcizá-
los, como fazia o selvagem que acreditava na existência de poderes misteriosos.
Podemos recorrer à técnica e ao cálculo. Isto, acima de tudo, é o que significa a
intelectualização‖ (Weber, 1992, p. 439). (7)

A conseqüência deste desencantamento intelectualizador, Weber


vai buscar em León Tolstói: para o homem civilizado, após este longo
processo cultural, a morte perdeu o sentido: ―(...) a vida individual do
civilizado está 'imersa‘ no 'progresso‘ e no infinito e, segundo seu sentido
imanente, esta vida não deveria ter fim. Com efeito, há sempre uma possibilidade
de um novo progresso para aquele que vive no progresso. Nenhum dos que
morrem chega jamais a atingir o pico, pois que o pico se põe no infinito‖ (Weber,
1992, p. 440). (7)

Segundo Durand, ―Nossos séculos orgulhosos da modernidade exigem justificação


do devenir, do envelhecimento, da morte, do mal que atinge sua soberba humanista‖
(Durand, 1995, p. 82). Para a História, a conseqüência é a adoção, nas entrelinhas, desta
sensação cotidiana de que as sociedades humanas estariam evoluindo inexoravelmente para
um destino que já é conhecido, pelo menos, em suas linhas gerais e que será melhor que o
presente. Esta noção é a negação aparentemente absoluta do nosso terror diante do tempo. O
horror do tempo força o homem a criar interpretações do mundo. Do horror do tempo
chegamos rapidamente ao horror da morte. A cultura do ocidente levou uma de suas mais
importantes expressões – a ciência – a ―resolver‖ este dilema com a ―mecânica do mundo‖.
Deste paradigma clássico, que já dá sinais de cansaço há tempos, beberam muitos pensadores.

52
Esta temática interessa duplamente ao leitor deste trabalho. Além de servir para o
posicionamento teórico-metodológico, é indispensável para a compreensão do conceito de
desmitologização, sobre o qual se construiu nossa argumentação. No decorrer deste capítulo,
a intersecção ficará evidenciada. Dialeticamente, para explicar o processo desmitologizador,
precisamos de um cenário teórico que beba numa tradição não evolucionista e não
racionalista, daí a utilização e a junção das obras de Weber (1983 e 1992) e de Durand (1980
e 1995).

Cremos que Immanuel Kant demonstrou o modelo evolucionista tradicional da


ciência histórica com a firmeza do filósofo e com o entusiasmo de quem o fazia numa época
bem anterior à sistematização científica da História. Num texto indispensável, chamado Idee
zu einer Allgemeinen Geschichte in Weltbürgerlicher Absicht (Idéia de uma História universal
de um ponto de vista cosmopolita), o filósofo teria desvendado o propósito da natureza na
determinação do devir histórico:

―Enquanto (os homens e os povos) perseguem propósitos particulares, cada qual


buscando seu próprio proveito, e freqüentemente uns contra os outros, seguem
inadvertidamente, como a um fio condutor, o propósito da Natureza (Naturabsicht),
que lhes é desconhecido, e trabalham para sua realização, e, mesmo que
conhecessem tal propósito, pouco lhes importaria‖ (Kant, 1986, p.10) (Grifo
nosso).

Sistematizando o tema, Kant elaborou oito proposições para sua demonstração. Delas
destacamos o projeto histórico ao qual se atribuiu a esperança de uma constituição política
perfeita de inspiração iluminista (Aufklärung), onde os homens teriam que conquistar a
felicidade, impossível na nossa condição natural. A Ciência da História vem inebriada pelo
papel de objetivadora deste projeto. Seguindo esta linha de raciocínio, a História deveria ser
capaz de indicar uma ordem social melhor e estaria, então, forçosamente levada a aquilatar o
nível de justeza e correção das sociedades humanas sobre as quais se debruça para análise. O
estudo de temas fortes como o Tribunal do Santo Ofício fica bastante comprometido por um
posicionamento baseado nestes princípios, já que o historiador julga conhecer o futuro e,
portanto, saberia o que é preciso estirpar ou manter para realizar tal objetivo escatológico
mais rapidamente.

O grande entrave para realizar o projeto histórico seria o próprio homem, em geral,
movido por desejos de autoproteção, pela ganância e pela cobiça. Isto levou Kant a uma outra
constatação importante: a liberdade humana é a liberdade de vivenciar os antagonismos.
Como as árvores, que disputam o direito de ter o sol batendo em suas copas superando-se
umas às outras em tamanho e força, os homens tornar-se-iam melhores e mais fortes à medida
que são impelidos pelo desejo de superar os demais.

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Temos, então, os dois pilares da ―História dos historiadores‖: a)- trata-se de um saber
que tem uma missão para a humanidade, qual seja, a de realizar o ―projeto histórico‖ e b)- a
essência da vida em sociedade seria o antagonismo, a competição e o conflito entre os
homens. Podemos resumir assim os princípios que norteiam este modelo:

1- A História é regida por leis imperceptíveis para o homem comum.


2- A História não pára, pois está evoluindo num certo sentido condutor.

3- Uma nova ordem surgirá dos conflitos entre os homens e será uma ordem melhor.
4- Há uma teleologia da Natureza agindo nas transformações do mundo.

5- O historiador deduziria, do seu saber, valores éticos e morais, fundantes da nova ordem.

Uma análise acurada da historiografia que estuda a Inquisição poderia identificar


naqueles autores os componentes listados do pensamento kantiano. Acalentados pelo próprio
Kant, por Marx ou por outros pensadores, tais conceitos impregnaram-se tenazmente na
História e se confundiram com ela. Para boa parte da cultura ocidental, o ―modus vivendi‖
desta ciência histórica atual é o evolucionismo cientificista.

Com Michel Maffesoli (1988), vemos o esgotamento do que ele chamou de saber
paranóico. Maffesoli define a paranóia como uma busca obsessiva da grandeza desmedida, do
domínio do mundo e da explicação do todo. É uma metáfora com o próprio cientificismo, que
reivindica para si uma situação de superioridade. A este saber paranóico opor-se-á um outro
igualmente científico: a postura metanóica, que insiste ―na natureza, no sentimento, no
orgânico e na imaginação‖ (Maffesoli, 1988, p. 22). Max Weber já admitira que o desafio é
romper com o mecanicismo sem sair da seara científica, ou seja, continuando a buscar um
saber universalmente aceito. Para isso, é também preciso evitar ―uma idéia muito difundida
de que a ciência se tornou um problema de aritmética, que se realiza em laboratórios ou em
gabinetes de estatística, não pela ‗pessoa total‘, mas por uma razão fria e calculista, como algo
produzido numa fábrica‖ (Weber, 1992, p. 436).

Mesmo sem ainda dispormos de um novo modelo teórico próprio para redirecionar
plenamente o fazer da ciência histórica, sabemos já ser possível refazer a imagem do objeto
de estudo, abandonando conceitos comprometidos com o paradigma anterior e
redimensionando criticamente os diversos componentes disponíveis para a análise. Há uma
intuição imemorial da História, que é base para um outro paradigma. Grande parte das
sociedades humanas consolidam-se nesta intuição de unidade que tem nos laços do passado
conhecido apenas uma componente mais ―visível‖ aos olhos do cientista. Componentes

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outras, presentes na linguagem, no imaginário e nas teofanias, estão fora de preocupações
usuais da História. Contudo, estas facetas aflorarão cada vez mais com o aprofundamento da
crise do cientificismo e sua substituição por um novo paradigma.

Num ponto convergem todos os paradigmas que transparecem no debate acadêmico


ocidental: o saber deve promover a felicidade humana. Uma História eternamente
―justificadora‖ das ―injustiças‖ e ―atrocidades‖ só contribuiria para propagá-las como se
fossem algo natural, inerente ao devir histórico. A maior virtude de uma análise através do
prisma do imaginário é poder perceber a universalidade dos mitos e, com ela, a universalidade
do ―sonho‖ de felicidade e paz que está presente até mesmo nas culturas mais ―atrozes‖.
Homens que viveram na mesma época e no mesmo ―mundo da Inquisição‖, fizeram fortes
críticas à crueldade dos homens da fé. Alguns, como o teatrólogo Antônio José da Silva, o
Judeu, pagaram com a vida por tais críticas (Alberto Dines, 1992). Devemos questionar: serão
estes críticos tão alienados do seu tempo e lugar que poderíamos, apressadamente, concluir
que o Tribunal do Santo Ofício seria uma ―exigência do momento histórico‖? Reconhecemos,
por exemplo, o valor historiográfico do trabalho de João Bernardino Gonzaga (1993), que
indicamos como leitura obrigatória para os que se interessam pelo assunto. Porém, seguimos
outro caminho da análise científica, com seus defeitos e com suas virtudes.

A duplicidade de significado do termo História, à qual já nos referimos, serve para


um paralelo. É a pluralidade e a vivacidade da História (História = passado das sociedades
humanas) que impede a exagerada simplificação da História (História = ciência). A Santa
Inquisição tem sido facilmente apresentada como o ―monstro opressor‖ cujas
monstruosidades estariam na alma dos inquisidores e na lógica do Tribunal. Procuramos
desmontar esta versão equivocada através da constatação de inspiração weberiana, em que a
História se faz com valores moralmente aceitáveis. Todo e qualquer ―processo histórico‖
depende de sua aceitação em termos qualitativos e éticos. Poderíamos simplificar este
princípio: não há sociedade humana que sustente secularmente uma instituição ou um poder
tido em seu próprio seio como nefasto. Tanto o ―grupo-Inquisição‖ (Carvalho, 1987) quanto a
quase totalidade da sociedade que o rodeava estavam ciosos de seu papel salvacionista e
convictos da correção ético-religiosa de sua ação.

Além deste contexto ético, é preciso discernir o contexto histórico, pois há um tema
―delicado‖ que deve ser abordado: o significado do sofrimento humano. É certo que há uma
busca incessante da universalidade do saber científico para a compreensão do sofrimento.
Inegável, porém, é sua contextualização. Por exemplo: o século XX viu nascer conquistas
médicas que diminuem a dor física de forma impensável anteriormente. Esta conquista
tecnológica repercutiu diretamente no cotidiano dos ocidentais, que passaram a recusar
sofrimentos provenientes da dor, antes vistos como normais e inevitáveis. Por mais estranho

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que possa parecer, algo semelhante ocorreu com as penas que o sistema judicial aplicava.
Contextualizar – não se diz justificar – é papel do historiador, que enriquece a análise e resulta
em honestidade científica. No capítulo II, voltaremos detalhadamente ao tema.

O homem do medievo convivia com situações onde a dor era vista com muito maior
naturalidade que em nossa sociedade do limiar entre os séculos XX e XXI. Claro que isso não
o tornaria mais condescendente em sofrer tais sensações só por desconhecer técnicas
modernas, como a anestesia e o laser (8). Há uma determinante universal inata, que aflora
quando da vitimização de um réu, por ação intolerante, em qualquer sociedade humana,
tornando-o digno da solidariedade alheia, segundo valores humanistas. Não há um quadro
valorativo que seja cultural e historicamente possível em que uma sociedade humana
aceitasse, de forma absoluta, a opressão e a conduta repressora danosa. Um ―totalitarismo‖,
para ser digno do significado ontológico da palavra, só é possível no ―laboratório‖ idealizador
das Ciências Sociais. No mundo vivido (Lebenswelt) permanece o espaço para a crítica e para
a revolta contra o opressor. Em função disto, há também, dialeticamente, o contrário da
atitude opressiva: valores éticos universais e atemporais de defesa da vida humana,
considerados válidos pela cultura ocidental a que pertencemos.

Sabemos que toda ética é transcendente. A transcendência, enquanto relação do


homem com o Universo e com Deus, recebe muitas denominações, mas se estabelece como
uma tentativa de vencer o tempo e, portanto, superar a morte. A morte, que está subjacente a
todo o imaginário humano, pode ser enfrentada, mas não vencida. Desta condição nascem
valores de harmonia, integração e superação de diferenças.

Há uma simbiose de vários fatores que apontam para o mesmo processo de


modernização da vida no Ocidente. Tal processo, dito desta forma genérica, pode não traduzir
com exatidão o caráter multifacetado que ganhou em nosso trabalho. No quadro teórico, os
ditames iluministas da modernidade aparecem como precursores antagônicos do paradigma
novo que abraçamos. No nosso objeto de estudo, a modernidade mostra-se duplamente
presente: como cenário histórico que emoldura o período estudado e como agente na
desmitologização da Cristandade. A mesma desmitologização do saber que a modernização
ajuda a impor à Cristandade é razão para rompermos com o paradigma científico dela
proveniente, em busca de uma ciência que (re)encante o mundo.

A aparente distinção entre o objeto de estudo e o conteúdo teórico-metodológico,


cada qual do seu lado, leva-nos ao hábito de encará-los como totalmente separados. Neste
trabalho sobre o Santo Ofício temos uma experiência prática que chegou singularmente a uma
aproximação: um único paradigma da História influenciou o processo de desmitologização da
Igreja Católica e, ao mesmo tempo, a consolidação da ciência histórica. Assim, percorremos o
paradigma com duplo objetivo: permitir o enquadramento teórico e compreender as relações

56
deste com a História da Inquisição. A ponte entre estas duas preocupações é a noção de
desmitologização, desenvolvida neste capítulo. Esta aproximação paradigmática é valiosa ao
demonstrar que, na origem do cientificismo, estão conceitos que inspiram processos
intolerantes. Isto permite recompor a relação conceitual entre dois temas aparentemente
conflitantes: Inquisição e Mundo Moderno.

Há uma complementaridade entre a ação do Tribunal do Santo Ofício e sua


conjuntura histórica moderna. O ―senso comum‖ acredita que a Inquisição opunha-se ao
moderno em nome do místico, pois teria sido um longo ato de defesa dos valores medievais
decadentes, representando forças que se opunham às transformações encarnadas pelo
Renascimento, pela Reforma, pelas Grandes Navegações, etc. Enxergamos nesta ―dialética‖
uma falsa dicotomia. A Inquisição, na verdade, se opôs ao místico em nome da racionalização
investigativa e da unidade teológica da fé cristã. Esta relação de complementaridade é anterior
ao mundo moderno: o cristianismo buscou, desde os seus primórdios, afirmar sua unidade e
combater particularismos e heresias. O espírito do mundo moderno está em sintonia com esta
busca, na medida em que, em linhas gerais, recusa o místico como alienante e retrógrado. Em
outras palavras: o cristianismo, seja católico ou protestante, buscou homogeneizar o mundo de
uma forma que se harmoniza com certos valores modernos.

Imaginamos até as possíveis relações que localizaríamos se invertêssemos todo este


raciocínio e dele tirássemos uma hipótese: a tradição unitarista e ortodoxa do cristianismo –
sempre às voltas com a repressão ou cooptação de hereges – levou à cultura ocidental os
valores da impessoalidade e a busca da homogeneização, que desaguaram em ―movimentos‖
modernos, tais como: o Renascimento e a Reforma. Esta hipótese não será desenvolvida neste
trabalho, posto que dele não faz parte. Porém, sabemos que o futuro da própria concepção da
História Moderna prender-se-á a uma inconteste reposição de sua visão geral, quebrando,
definitivamente, a mistificação renascentista do dualismo ―razão/luz X fé/trevas‖.

A Inquisição não foi uma ―vontade do clero‖ contra a tendência geral da História,
mas enraiza-se na demonologia, na desmitologização, no desencantamento e até no
absolutismo. A perseguição às práticas mágicas é uma forma muito eficiente de impor a nova
ordem centralizada sobre os mais diversos grupos sociais. O absolutismo necessita introduzir
sua autoridade sobre o cotidiano das pessoas. Esta relação entre a Inquisição e o Direito
Divino precisa ser melhor explorada em análise histórica futura.

O Tribunal serve até como a ―desculpa histórica‖ para o atraso português,


principalmente no século XVIII, mas esta desculpa não passa de mais um pretexto para afastar
o conhecimento e uma maior aproximação deste objeto de estudo. Partes da historiografia, da
intelectualidade e da própria cultura moderna, buscam, na Santa Inquisição, o motivo retórico
de sua ruptura com a Igreja Católica. A Inquisição é o ―inimigo-monstro-obscuro‖.

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Num período de rupturas e de transição como a Idade Moderna, a Santa Inquisição
pareceria uma teimosa continuidade, um ente permanente, que transmite a falsa aparência de
estagnação. Este alegado contraste com o ―tempo histórico‖ é a base argumentativa da lenda
negra. Vincula-se aí, quase inconscientemente, uma vaga noção escatológica de ―rupturas
que teriam propiciado à humanidade um futuro melhor‖. Neste sentido, somos todos,
queiramos ou não, marcados por um simplismo que vinculou longamente a idéia de fé com a
de alienação, bem como a idéia de razão com a de instrução/libertação. Deste simplismo,
passa-se para o falso dualismo Inquisição X Modernidade. Propomos substituí-lo por noções
agregadas a um dualismo universal e atemporal: imanência X transcendência. Ou, para
explicitar melhor o nosso caminho, proporíamos esta noção dual: desmitologização X
imaginário, onde a desmitologização estaria vinculada ao extremo impulso racionalizador que
busca negar toda e qualquer ―abstração do real‖, seja transcendente ou simbólica ou ambas as
coisas. Correndo-se um calculado risco redutor, imaginamos os dois últimos modelos
opositores como formas didáticas para se inserir o tema da nostalgia do mito.

O mito fundador da Inquisição católica está consolidado em dois componentes: um


primeiro, essência do cristianismo, é resumido no ideal de ―Purificação do Mundo‖, tendo
por base a necessidade de unificar a fé, derrotando os particularismos que a tornam
multifacetada e, às vezes, antítese dela mesma. Esta componente, que qualificaríamos de
teológica, complementa-se com outra, de ordem política, que vê a Igreja como uma instituição
governante. Denominamos a outra componente como ―Nova Processualística
Racionalizadora‖, que se inspira no mito da razão redentora, tão caro ao ocidente. O
historiador português Francisco Bethencourt nos lembra que os inquisidores orgulhavam-se
do nome Inquisição, pois a palavra carregava em si toda a expectativa do ―avanço‖
racionalizador da processualística de seu tempo, em oposição à tradicional justiça medieval. A
adoção da investigação impessoal, mesmo com o uso de critérios parcialmente recusados nos
dias de hoje (raça, origem social, credo religioso, etc.), foi um ―avanço‖ no sentido da criação
de um direito moderno.

A nostalgia do mito caracteriza os inquisidores que estiveram imersos no processo de


desmitologização de valores na Idade Moderna. A estes, homens dos tribunais ibéricos ou da
justiça estatal francesa, por exemplo, deve ter sido – tudo indica – cada vez mais difícil
sustentar, para eles próprios, a crença nos dois componentes fundadores do mito inquisitorial.
A propalada Nova Processualística foi sendo ultrapassada pelos avanços do direito, até ser
tida como retrógrada e antagônica à própria justiça pelos mais diversos críticos do século
XVIII. A Purificação do Mundo, por sua vez, deixou de ser crível a homens da fé que já não
tinham a certeza de estarem protegendo uma crença já tão desmitologizada. E, principalmente,
os inquisidores foram lentamente desacreditando em bruxas, realizando uma

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desmitologização das culpas, que passaram de algo que inspira medo (século XVI) para algo
que inspira desprezo (século XVIII).

Das raízes ao esgotamento, a ação inquisitorial viveu a lenta supressão de uma


mística original até a ascensão sobre ela do poder secular, traduzido em Portugal pela
transformação do Tribunal da Inquisição em mais um tribunal régio, durante o período
pombalino. Em boa parte da Europa, de ―rupturas‖ míticas semelhantes, surgiu a bruxomania,
pois o enfraquecimento mítico leva grupos humanos a uma ansiosa – às vezes desordenada –
―vivência do mito‖ que está ―enfraquecendo‖. Esta vivência intensifica os valores míticos,
mas, dialeticamente, antecede sua derrocada. A milenar crença em bruxas foi seriamente
abalada quando passou a ―onda‖ da bruxomania.

Se não se pode falar em caça às bruxas no Império Português, pelo menos um


movimento de mentalidades é inegável: o medo das bruxas cedeu lugar ao desprezo por elas,
num requintado exercício mental do qual falaremos mais aprofundadamente adiante. Este
movimento de mentalidade envolveu o próprio Tribunal, que funcionava de forma muito
distinta dos nossos tribunais atuais. Ou seja, não se tratava de uma ―terceira instância‖,
equilibradamente distante dos lados em conflito. No caso da Inquisição, os juízes são parte do
conflito, representam a instância julgadora e, ao mesmo tempo, portam-se como promotores.
Esta simbiose levou o Tribunal do Santo Ofício a entrar em derrocada junto com a crise de
suas duas principais fontes processuais: a acusação de criptojudaísmo e a crença em práticas
mágicas. Levando este raciocínio adiante, concluiremos que o fim do Tribunal esteve
diretamente ligado à sua desmitologização.

Note-se que a percepção deste movimento de mentalidade recoloca o próprio


―status‖ científico dos documentos processuais inquisitoriais, que passam, então, a ser fonte
para o estudo – possivelmente exclusivo – da própria mentalidade inquisitorial e não da
História social. A própria Inquisição imputou aos mágicos e feiticeiros os princípios
maniqueístas que ela criou. A intolerância, tida como civilizadora – no sentido de associada à
busca de predomínio da civilização cristã diante da heresia – na Idade Média, tornou-se
infamante na segunda metade da Idade Moderna. No ambiente de medo obsidional de que nos
fala Delumeau (1989), perseguir a bruxa é um ato de defesa e de resguardo civilizatório, mas,
com a mentalidade de desprezo que ascendeu no século XVII, a perseguição tornou -se
infâmia consciente ou, pelo menos, sabida.

Naquele momento – em plena Idade Moderna –, a Santa Inquisição já vinha


perdendo toda a sua original conexão com a função social da fé, típica de sua origem
medieval. Ao opor-se aos hereges, a instituição realizava um preceito essencial que é ―(...) a
transmutação simbólica do ser em dever-ser que a religião cristã opera, segundo Nietzsche,
ao propor a esperança de um mundo subvertido onde os últimos serão os primeiros, e ao

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transformar ao mesmo tempo os estigmas visíveis (...) em sinais anunciadores da eleição
religiosa‖ (Bourdieu, 1992, p. 86). No final do século XVII e ao longo do século XVIII, o
Tribunal português – possivelmente também o espanhol – já não vivenciava qualquer
experiência simbólica qualitativa. É possível que tenha chegado a abster-se totalmente dos
seus símbolos e imagens inspiradoras, como podemos deduzir do processo de um prisioneiro
oitocentista que analisaremos adiante. No episódio do terremoto de Lisboa, os inquisidores
lusitanos podem ter vivido a última tentativa de recriação simbólica, prendendo e queimando
Gabriel Malagrida e o Cavaleiro de Oliveira (este último em efígie) numa inversão curiosa; os
réus eram acusados de terem atribuído o fenômeno do terremoto à fúria divina, quando – para
o Tribunal – tratara-se de um fenômeno natural.

A perda do paradigma fundante pode estar ligada à ascensão de uma certa corrente
teológica dentro da Igreja. Neste longo percurso de desencantamento e desmitologização, a
Inquisição bebeu da poderosa fonte tomista. Para se ter uma idéia da influência do
pensamento de Tomás de Aquino, buscamos o trecho de uma palestra de um seu seguidor
brasileiro, o jesuíta Francisco Fraga, proferida em 1747 no Colégio do Rio de Janeiro. Entre
suas conclusões metafísicas, há uma que ilustra bem a luta entre o místico e o imanente – ou
natural, no dizer da época – e que se intitula O Ser Divino enquanto considerado pela razão
natural, onde o religioso afirma:

―Estabelecemos: 1. Que a existência de Deus é demonstrável pela razão natural, a


posteriori, como atesta qualquer criatura, contra a insânia dos ateus.
Estabelecemos: 2. Que tal existência pode ser demonstrada, não apenas a
posteriori, mas ainda quase a priori pela Idéia do Ser Ótimo ou sumamente
Perfeito‖ (in Campos, 1998, p. 42).

Em outro documento histórico, a Ratio Studiorum, a proximidade entre a lógica


cerceadora da Inquisição e a prática tomista proposta para disciplinar os estudos teológicos
em conventos católicos, fica patente em algumas regras didáticas para o dia-a-dia escolar
(Campos, 1998, p. 34 e 35): a primeira era de que os livros que estariam ao alcance dos
estudantes seriam apenas a Suma Teológica, de Santo Tomás, e a obra de Aristóteles,
proibindo-se os demais; uma segunda regra determinava que os autores que interpretassem
Aristóteles, utilizando fórmulas desaprovadas pela Igreja, ―não sejam lidos nem mencionados
na escola‖ e, enfim, mesmo que o professor discordasse em alguma questão do pensamento
tomista, ―antes defenda o professor a opinião de Santo Tomás ou omita a própria questão.‖

Tentando conciliar a mística católica com uma visão ―natural‖ e racional do mundo,
o tomismo, da mesma forma que a Inquisição Moderna, favoreceu a consolidação das

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―hierarquias terrenas‖ – o clero – em detrimento das ―hierarquias celestes‖. O afastamento do
místico levou a um atribulado sentimento de nostalgia. A influência tomista auxilia-nos a
visualizar a desmitologização em sua faceta intolerante. Como estamos analisando um tema
da Idade Moderna, todo um pejo de preconceitos evolucionistas aflora para sustentar a idéia
mecanicista de que o moderno e, depois, a própria modernidade, teriam sido uma ―oposição‖
às trevas da fé. Vemos, entretanto, que a desmitologização modernizadora foi, ela mesma,
associada a diversas formas de intolerância, inclusive a Inquisição. Moderno e intolerante são
adjetivos muitas vezes confluentes.

Tratamos aqui de uma disputa pela prevalência simbólica. A hegemonia de


―racionalistas mundanos‖, como Tomás, Alberto Magno e Francisco Sales não impediu a
existência de místicos como São João da Cruz e Santa Tereza d‘Ávila. Magno foi o mentor
intelectual de Tomás, tendo admitido a separação entre a esfera teológica e a esfera racional.
Já Tomás foi educado por beneditinos, mas tornou-se dominicano. Sua influência tornou-se
maior após a sua morte (1274). Em 1567 foi declarado doutor da Igreja pelo papa Pio V, em
plena contra-reforma. Em 1879, Leão XIII deu início a um forte movimento racionalizador ao
determinar em Encíclica o fortalecimento dos estudos e princípios tomistas.

Por outro lado, neste mesmo período, a Igreja conviveu com a manutenção de uma
tradição mística que se expressou na vida exemplar dos amigos João da Cruz e Tereza, do
século XVI. João participou da fundação da ordem dos carmelitas descalços e escreveu
famosos poemas místicos. Tereza, que foi carmelita, teve uma vida atribulada, mas fundou
dezenas de conventos, onde a vida pobre devia se prolongar com uma atividade de preces
mentais diárias. As freiras e os frades descalços tiveram forte resistência dos ―calçados‖ antes
de se firmar a divisão em dois ramos da mesma ordem. A própria divisão, aliás, é significativa
do papel secundário a que ficaram relegados os místicos católicos. Curioso notar que a vida
dos católicos místicos costuma acompanhar-se de uma opção pela pobreza, recusando-se,
assim, indiretamente, a aproximação da Igreja com o poder mundano.

Toda uma tradição epifânica foi sendo deixada de lado em troca de um hábito
racionalista da fé. O maior interesse neste processo nasce da própria hierarquia clerical, que
mantém forte controle da ortodoxia no ambiente intelectualizado do tomismo ou de formas
outras de desmitologização. Quando a fé tem inspiração mística, torna-se difícil impor
hierarquias rígidas num cotidiano que pode tornar-se pouco disciplinável. Um exemplo destes
saltos desmistificadores está na própria descrença em bruxas. A bruxa é uma inversão do culto
mariano: é a Virgem Maria às avessas! De forma semelhante, o sabat é a Missa invertida. Ao
recusar e desprezar o feitiço, o inquisidor está desqualificando a componente oposta deste
jogo dialético que vem a ser a própria fé católica. Desprezar a bruxa implica, por exemplo,
desprezar Maria, sua oponente. O fracasso da análise demolidora que faz a ―lenda negra‖ da

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historiografia inquisitorial pode estar exatamente em não ter percebido esta
complementaridade.

No próximo capítulo, iniciaremos a argumentação com uma descrição que se


relaciona com a temática que acabamos de enfocar nesta parte. Trata-se dos quatro grandes
grupos míticos que Gilbert Durand localizou como formadores do imaginário lusitano. Tais
mitos estão estreitamente ligados à mentalidade inquisitorial em seu movimento de idéias que
vai da Pedagogia do Medo à Pedagogia do Desprezo. Após a descrição, relacionaremos os
grupos míticos com as componentes do Tipo Ideal de Inquisidor Moderno.

********

2.RITO E CERIMONIAL: O IMAGINÁRIO DA INQUISIÇÃO

A Igreja foi lentamente abandonando o seu lado místico ainda na Idade Média,
talvez pela influência tomista-aristotélica já citada. Mas foi com a contra-reforma que esta
tendência hegemonizou em definitivo o mundo católico. Como já vimos, isto não significa
que se tenha abandonado o enriquecimento simbólico. Pelo contrário: os símbolos de poder,
presentes no ritualismo que passamos a analisar agora, foram especialmente desenvolvidos
pela Inquisição Moderna.

A obra de Francisco Bethencourt, História das Inquisições - Portugal, Espanha e


Itália (1994), representa um marco no conhecimento dos ritos, símbolos, etiqueta e
iconografia do Tribunal do Santo Ofício, além de trazer importantes estatísticas da atuação
inquisitorial. O historiador português, que também é autor de O Imaginário da Magia (1989),
demonstrou a importância de se estudar a Inquisição ―por dentro‖ dos seus meandros. Este
assunto tinha recebido pouca atenção até então. Em outros autores encontramos referências
que nos permitiram ter uma visão global: José Carlos de Paula Carvalho (Carvalho, 1987),
Sônia Siqueira (Siqueira, 1978), Amaral Lapa (Lapa, 1978), A. S. Tuberville (Tuberville,
1932) e Alexandre Herculano (Herculano, 1852).

Os ritos já estavam estabelecidos na própria fundação do Tribunal, quando havia


solene apresentação da carta de nomeação e Missa de publicação da Inquisição – ―com
procissão e hierarquização do espaço da igreja‖ (Bethencourt, 1994, p. 22) –, onde eram
obrigatórios um juramento para todas as autoridades civis presentes e a divulgação dos éditos,
que devia ocorrer em todos os templos. Quando os tribunais ibéricos foram instalados, entre o

62
final do século XV e o século XVI, toda a circunstância foi estabelecida como forma de fazer
obedecer, pelas autoridades locais, a determinação régia que estava apoiada em bula papal.

A nomeação do primeiro inquisidor português foi marcada pelo empolamento: o Dr.


João Monteiro, do Desembargo Régio, no dia 5 de outubro de 1536, apresentou-se ao bispo de
Ceuta, D. Diogo da Silva, um franciscano que era confessor do rei e do conselho real, levando
consigo a bula Cum ad nihil magis, que autorizava a implantação do Tribunal português. Em
nome de sua majestade, o Dr. João pediu a D. Diogo que aceitasse o cargo de inquisidor-
geral. ―O bispo agarrou então na bula, beijou-a com devoção, colocou-a sobre a cabeça em
sinal de obediência e leu-a. Em seguida, declarou que acatava os mandados apostólicos,
aceitando a comissão e garantindo o cumprimento do conteúdo da bula‖ (Bethencourt, 1994,
p. 22). Segundo Alexandre Herculano, que se inspira na ―lenda branca‖, o bispo de Ceuta era
―indivíduo que não fazia temer aos conversos as injustiças e violências‖ (Herculano, 1852, p.
89 - vol. III).

O conselho geral do Santo Ofício era composto por três a sete membros, dependendo
do período. Vinham logo abaixo na hierarquia os componentes de tribunais de distrito, com
dois ou três inquisidores no topo de cada um. Tais inquisidores de distrito estavam à frente de
uma estrutura burocrática que controlava a rede local (Bethencourt, 1994, p. 22). Na colônia
brasileira o agente polarizador era a figura do comissário, posto que aqui não havia Tribunal
local (Siqueira, 1978, p. 79). As visitas, então, revestiram-se de grande importância na
colônia, apesar de terem sido em pequeno número pelo que sabemos até agora. Ainda assim, o
Pe. Giraldo Abranches enfrentou forte desgaste no Pará durante a Visitação de 1763/1769,
pois, segundo Amaral Lapa, ―(...) a presença do Santo Ofício acaba entrando para a rotina
da vida paraense‖ (Lapa, 1978, p. 64).

O estabelecimento do Tribunal não foi consensual nem ficou distante dos conflitos.
O clero e a nobreza estabeleceram várias formas de resistência. A nobreza temia a perda de
poder e a disputa simbólica com o novo ente que poderia ganhar mais força no
aprofundamento do absolutismo. A imensa porção do clero católico que permaneceu fora da
Inquisição temia perder sua exclusividade sobre dogmas e sacramentos. Destes conflitos
surgiu a necessidade da ―(...) protecção activa da Coroa‖ e do ―(...) apoio dos outros poderes
imposto pela intervenção do rei (apoio que não significava, obviamente, a ausência de
conflitos)‖ (Bethencourt, 1994, p. 28). Os conflitos formaram uma tradição no Tribunal.
Havia muitos interesses em jogo: conflitos externos somente concorriam com aqueles que
aconteciam intramuros. O historiador A. S. Tuberville, que vimos ser ligado à ―lenda
branca‖, analisando a Inquisição espanhola escreveu:

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―Por trás do inquisidor-geral e do Conselho da Inquisição estava a monarquia de
Espanha e a Cúria. Fernando foi o verdadeiro criador da moderna Inquisição
espanhola, ele é que lhe concedeu o seu aspecto nacional característico.‖ (...) ―Para
inquisidores só seriam nomeados indivíduos que fossem pessoas de sua confiança.
(...)

―A mais alta autoridade sobre a Inquisição, como sobre todas as instituições


eclesiásticas, era a do Papa, mas tanto o rei como a Suprema faziam o possível por
(sic) evitar qualquer intervenção externa‖ (Tuberville, 1932, p. 38 e 39).

Os conflitos trouxeram, contudo, um ganho imponderável para o Tribunal: seus


mártires. Dois Pedros, Pedro Mártir e Pedro de Arbués, congregaram a emoção e a devoção
de milhares de pessoas em torno dos inquisidores na segunda metade da Idade Moderna
(antes, São Domingos teve papel preponderante, mas este aspecto não nos interessará tão
profundamente neste trabalho). Como verdadeiros mitos fundadores, suas histórias foram
contadas e repetidas tantas vezes quanto foi possível em confrarias, estandartes e nos púlpitos
católicos. A divulgação de seus martírios funcionava como contrapropaganda para os críticos
que consideravam o Santo Ofício desumano e excessivamente severo.

A contrapropaganda, porém, não venceu o tempo: nos dias de hoje, já ninguém mais
se refere aos mártires como forma de justificar a Inquisição. O Dicionário dos Santos, de
Donald Attwater (s/d), estranhamente, não se refere a este Pedro inquisidor (!). A imagem de
São Pedro Mártir que aparece na figura a seguir (Figuras 1 e 1a) está no Museu do Prado e
representa todos os seus componentes simbólicos: uma faca enterrada na cabeça, uma espada
que rasga o peito, a palma do martírio na mão esquerda e um livro – o Credo – sustentado
pela mão direita. As três coroas em volta da palma representariam a castidade, os predicativos
de Pedro e o seu martírio. O cabelo está tonsurado e há roupa de seda sob o elegante hábito
dominicano.

É importante compreender esta obra em seu contexto (in:


http://museoprado.mcu.es/prado/num/martir.num). Trata-se de pintura renascentista de Pedro
de Berruguete. O pintor nasceu em 1450 e foi, ainda jovem, provavelmente, para a Itália, onde
trabalhou na corte de Urbino. Usava o nome de Pietro Spagnuolo e trabalhava para o duque
Federico de Montefeltro. Recebeu, então, a influência do quatrocento italiano. A obra San
Pedro Mártir foi pintada para o convento de Santo Tomás de Ávila, onde aparece ao lado de
outra sobre São Domingos.

Pedro tornou-se mártir ao ser assassinado por um sicário, contratado, possivelmente,


por hereges que, segundo a tradição hagiográfica, eram combatidos por Pedro com
inteligência, utilizando fortes argumentos ortodoxos. O crime ocorreu numa estrada. À época,

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o dominicano exercia o cargo de Inquisidor Geral de Milão por nomeação papal. Conta-se
que, ao ver-se ferido de morte, ainda teria ele escrito no chão com seu próprio sangue: ―creio
em Deus‖. A morte de Pedro está na base de uma das mais importantes instituições da
Inquisição: os familiares. O incentivo para que os inquisidores investissem como auxiliares
seus, os clérigos e civis de confiança, iniciou-se em 1254, dois anos após o assassinato do
dominicano e um ano após sua canonização (Bethencourt, 1994, p. 89). Aliás, segundo Gredo
G. Merlo, a canonização de Pedro foi um processo muito rápido: assassinado em 6 de abril de
1252, já em 31 de abril teve a abertura do processo de santificação. Em 9 de março de 1253
foi proclamado santo com o nome de Pedro Mártir (nome original: Pedro de Verona).

O formato inicial dos grupos de familiares da Inquisição Moderna tomou corpo em


confrarias que tiveram seu funcionamento regulamentado pela bula Malitia huius temporis,
onde surge a designação dos escolhidos pelo uso da cruz de tau. Esta cruz é representada com
a linha vertical interrompida na altura em que cruza com a linha horizontal. O tau é a última
letra do alfabeto hebraico e tem o significado de plenitude, como o ômega para o alfabeto
grego (Lexikon, 1997, p. 189). A inspiração bíblica para esta escolha vem de Ezequiel:

―O Senhor lhe disse: ‘Passa pelo meio da cidade, pelo meio de Jerusalém; faze uma
marca na fronte dos homens que gemem e se lamentam por causa de todas as
abominações que se cometem no meio dela‘. Depois eu o ouvi dizer aos outros:
‘Passai à cidade no encalço dele e feri; que vossos olhos sejam sem compaixão e
vós, sem piedade. Velhos, moços e moças, crianças e mulheres, vós os matareis até
o extermínio; mas não vos aproximeis de quem tiver a marca‖ (Ezequiel, 9.4-6).

É no início do século XVII que se dá o maior impulso de crescimento de confrarias


sob a inspiração de São Pedro Mártir. Foi uma conjuntura difícil para o Santo Ofício:

―(...) depois da morte de Filipe II, em 1598, os cristãos-novos de origem portuguesa


apresentaram petições ao novo rei, Filipe III, pedindo a reforma dos ‘estilos‘ da Inquisição, a
autorização da livre circulação nos territórios ultramarinos e o perdão geral para os delitos da fé.
Apesar da oposição dos conselhos da Inquisição e mesmo dos organismos políticos mais responsáveis
(como o Conselho de Portugal), os cristãos-novos obtêm autorização para sair do Reino em 1601
contra um ‘serviço‘de 170 mil cruzados e, em 1604, obtêm o perdão geral do Papa, pedido apoiado
pelo rei contra um donativo de 1,7 milhões de cruzados‖ (Bethencourt, 1994, p. 91).

O incremento de confrarias pode ter sido uma reação dos inquisidores a estas vitórias
dos cristãos-novos e este crescimento coincide com o início do fortalecimento valorativo que
atribuímos ao Tipo Ideal de Inquisidor Moderno. De forma semelhante, no século XVIII,
quando se enfraquece o elo de ligação entre os familiares – pois o interesse da sociedade por
esta honraria foi diminuindo – o valor do tipo ideal entra igualmente em queda. Trata-se,

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então, de uma entidade importantíssima, ainda que seus membros não fossem remunerados,
para a sobrevivência da Inquisição. A sua vitalidade veio do mártir fundador, eficiente
contrapropaganda num momento em que a autoridade real parecia mais pragmática para
assuntos de orçamento e menos ortodoxa na defesa da fé católica. O rei podia tomar decisões
que desagradavam inquisidores e conselheiros. Em Portugal, o poder real sobre o Tribunal era
ainda maior que na Espanha. O simbolismo inquisitorial, que guardava muitas semelhanças
com o absolutismo monárquico, revestia-se de maior importância quando os ―homens da fé‖
viam-se forçosamente impelidos a demonstrações de força diante da corte.

Os cristãos-novos serviam plenamente a este ―jogo‖. Já as culpas de práticas mágicas


não se adequavam tão bem a esta luta pela hegemonia simbólica, disputada entre inquisidores
e monarca, posto que as vítimas (feiticeiras, principalmente) não possuíam a necessária
inserção social para justificar o prestígio da ―briga‖, nem tinham dinheiro para oferecer a
governantes e papas. Pedro Mártir não foi tanto um ―santo epifânico‖ quanto um ―herói da
igreja‖. Sua canonização foi ato político medieval de uma Inquisição ainda orgulhosa de sê-
lo, numa época em que a palavra inquisidor ainda não despertava repulsa, mas respeito, pois
se tratava de uma ação totalmente inovadora para a realização da justiça. O uso da imagem do
santo na Idade Moderna, denotada pela pintura de Berruguete e pela fundação de confrarias,
ocorre em outro contexto, onde a disputa simbólica entre inquisidores e autoridades civis já
era acirradíssima. Podemos atribuir este acirramento ao ―passar do tempo‖, ou seja, ao
enfraquecimento da Inquisição após tantos séculos. Entretanto, vemos um diferencial
importantíssimo entre as duas conjunturas: o aparecimento do absolutismo, que torna o poder
extremamente simbólico e ritualístico. Aliás, algumas honrarias inquisitoriais sobreviveram
ao absolutismo e até à extinção dos tribunais. Em meados do século XIX, por exemplo, o
artista plástico e filósofo Pedro Américo recebeu do papa Pio IX as insígnias da Ordem do
Santo Ofício. Américo havia refutado teses anti-católicas de Ernest Renan em Vida de Jesus
(Américo, 1999, p. XXI e XXII). O fortalecimento dos familiares e suas confrarias, porém,
gerou um espaço de descontrole, conforme acentua Bethencourt (1994, p.92):

―As primeiras constituições das confrarias de São Pedro Mártir explicitavam, no


seu preâmbulo, as razões da respectiva fundação: o desejo de aumentar, conservar e
honrar o ―Santo Ofício‖; de estimular a união, a paz e a concórdia entre os
ministros e os familiares dos tribunais. Portanto, encontramos o objetivo (...) de
reforçar a autoridade da Inquisição, mas também o propósito de assegurar uma
maior disciplina através desta nova organização. Conhecemos os conflitos de
jurisdição desencadeados pelos inquisidores frente às autoridades civis e
eclesiásticas, mas a micro-conflitualidade provocada pelos familiares revelou-se
bastante mais incontrolável e danosa para a imagem da Inquisição. Através da
fundação das confrarias, os organismos centrais procuram aumentar a reputação do

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tribunal, encontrando um pretexto para reorientar os critérios de recrutamento
(―autorizar o ―Santo Ofício‖‖ é o novo slogan), ao mesmo tempo que se propõem
resolver a indisciplina interna e externa através da criação de um mecanismo de
controlo suplementar (os inquisidores são sempre designados como os fundadores
das confrarias, aos quais todos devem obediência)‖.

Para Perry Anderson (1985), o sistema político típico da Idade Moderna se


caracterizava por possuir uma diversidade de pontos de partida e uma verdadeira teia que leva
a vários caminhos. Isto explica, por exemplo, a não linearidade do absolutismo, que ocorreu
em fases diversas nas diversas nações européias. Vemos a Inquisição entre estes pontos de
partida, pois a ordem absoluta e os Estados Nacionais convergem com os inquisidores na
direção da supressão de certas diferenças e desvios que podiam caracterizar a desordem. As
exigências de um poder central forte e repleto de atribuições mudaram as expectativas que as
autoridades tinham em relação ao comportamento dos súditos, favorecendo a atuação dos
inquisidores contra o feitiço. Porém, se reduzíssemos os processos incriminatórios de bruxas,
feiticeiras e mágicos a uma mera encenação absolutista, deixaríamos de lado toda a crença
que existia, de forma difusa, nas sociedades modernas, em torno do poder da magia. Somente
no século XVIII é que se pode garantir que tal crença tornou-se realmente frágil e foi
questionada amplamente.

Há até a argumentação – um tanto quanto empobrecedora – de que os interesses do


regime absoluto configurariam motivo único da perseguição às práticas mágicas. Se, no
entanto, tiramos deste ponto de vista a pretensão redutora da causa única, veremos que ele
carrega uma das características da concepção desencantadora do inquisidor moderno no
século XVIII: a abjuração do medo pela imanência, que já vimos como valor do Tipo Ideal de
Inquisidor Moderno. A feiticeira desmitologizada, que já não impõe o medo, é a mesma que
se tornaria apenas ―bode expiatório‖ de interesses alheios. Duas citações de R. Munchembled
estão reproduzidas aqui para ilustrar o argumento:

― ‘A feiticeira sobre sua fogueira não é nem a revoltada social que imaginava
Michelet nem a sacerdotisa inspirada de um culto secreto de fecundidade nem a
serva consciente e devotada do diabo. Ela é somente a vítima expiatória de um
afrontamento entre a modernidade conquistadora e a resistência camponesa‘ ‖ (in
Lopes, 1997, p. 70).

―‘a árvore não deve ocultar a floresta: menos religiosa que política, a caça às
feiticeiras não é senão uma pedra entre outras na obra de desencravamento dos
campos. A feiticeira cede seu lugar central ao padre. A vingança privada recua
diante da ordem pública. Os poderes exteriores progridem em direção ao centro da
aldeia ‘‖ (in Lopes, 1997, p. 71).

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Mesmo que tal argumentação fique presa à superficialidade de uma concepção
simplória dos fenômenos históricos – sem descer ao campo profundo dos valores –, acaba por
apresentar duas idéias interessantes que estão inter-relacionadas: a relação da modernidade
com a intolerância e a supressão da vingança privada graças aos processos inquisitoriais. A
Inquisição – ou inquisições, como aponta Bethencourt –, em sua fase medieval, não poderia
ter vivenciado este cenário. Da mesma forma que a modernização/desmitologização
modificou a idéia de bruxa que se tinha, os mártires também perderam um certo encanto e
passaram por um processo de instrumentalização. Há um reaproveitamento
caracteristicamente moderno dos mártires fundadores.

Enquanto fundador de uma tradição inquisitorial, Pedro Mártir foi recontextualizado


para servir aos interesses da Inquisição Moderna na disputa simbólica com outras autoridades,
seculares e religiosas. Em longas procissões na via pública ou em cortejos que podiam durar
horas, a imagem do santo aparecia em grandes estandartes, a justificar o prestígio público que
os inquisidores queriam demonstrar. Isto talvez explique a pompa com que foi pintada a
imagem do santo pelo mestre renascentista em quadro que analisamos há pouco. A
importância de se perceber esta mudança diz respeito à sua lógica extremamente
modernizadora: a manipulação simbólica típica dos atos de desvalorização mítica que se
iniciaram no ocidente moderno e permanecem até os nossos dias. Nestes atos
desvalorizadores, o símbolo perde o conteúdo, torna-se oco, vazio, e mantém-se como
fantasma dele próprio: um arremedo do mito inicial. A presença da imagem do martírio de
Pedro, nas cartas de nomeação da Inquisição italiana do século XVIII, mostra o esvaziamento
do mito (ver Figuras 2 e 3) em benefício de sua instrumentalização.

Tanto Pedro Mártir quanto Pedro de Arbués são instrumentos, também, da réplica
católica contra a argumentação dos protestantes que questionavam a matança de hereges nas
fogueiras inquisitoriais. Mesmo que processos inquisitoriais tenham ocorrido, também, nos
países reformados, o vulto da crítica ergueu-se em mão única: dos protestantes contra os
católicos. A busca da legitimação do Tribunal foi constante, mas aparenta ter-se aprofundado
quando do esvaziamento do significado vanguardista do termo inquisição . A sistematização
de argumentos em favor do Tribunal alcançou uma boa repercussão, tanto que, ainda hoje,
engendra o combate da ―lenda negra‖.

―Os argumentos maiores sobre a legitimidade do tribunal organizam-se em torno


da sacralidade da sua fundação, da inspiração divina da sua acção, da sua utilidade
espiritual, social e política. A invocação de São Domingos é constante nas
narrativas sobre a fundação do tribunal, pelo menos até ao século XVIII, enquanto
a invocação de São Pedro Mártir e de São Pedro de Arbués, dois inquisidores
mortos por hereges em diferentes épocas (...), consagra a função dos membros da
instituição. (...) A inspiração divina da acção inquisitorial, por seu turno, é

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encenada nos menores actos da instituição, desde a cerimónia da capela, realizada
cada manhã antes das sessões de interrogatório, até aos autos-de-fé mais solenes.
(...) A utilidade (ou melhor, a necessidade) do tribunal é evidente para os
inquisidores: sem eles toda a cristandade teria sido ―infectada‖ e o mundo seria
dominado pelo demónio. A utilidade social e política do tribunal é igualmente clara
para os seus membros: a heresia perverte os costumes e a sociedade, provoca a
inquietação e a perturbação das consciências, estimula a desobediência e a
rebelião‖ (Bethencourt, 1994, p. 308. Grifo nosso).

A função consagrada é o veículo de reprodução dos valores e da praxeologia do


grupo-Inquisição (Carvalho, 1987). Precisamos manter o foco neste ato de consagração. O
mito fundador contado fora do seu contexto cultural pode tornar-se sem sentido e até ridículo
(Durand, 1986, p. 10). O valor pode reverter para uma simples idéia, perdendo o significado
que está presente no tipo ideal. Pedro Mártir teve uma função paradigmática que acabou
sendo pulverizada na diluição desmitologizadora. Enquanto ainda não dispomos de teoria e
método adequados ao novo paradigma científico que surge, o sentido da referência mítica ou
valorativa deve ser percebido pelo cientista em sua vocação para a universalidade. Daí
buscaremos um quadro referencial específico para a Inquisição Moderna (ver capítulo 2).

Dentre os santos invocados pela Inquisição, citaremos com Bethencourt um outro


exemplo: o do espanhol Pedro de Arbués. Há uma impressionante semelhança simbólica entre
os dois Pedros: assassinados por hereges, ambos suscitaram ondas de adesão ao Tribunal do
Santo Ofício. Se se tratasse – as histórias de ambos – de lendas mitológicas, talvez a
semelhança não fosse tão grande....

―Cónego da catedral de Saragoça, foi nomeado inquisidor na mesma cidade a 4 de


Maio de 1484, quando da fundação do tribunal local. A oposição encarniçada das
elites locais ao funcionamento do ―Santo Ofício‖, estimulada pela forte presença de
cristãos-novos nas grandes famílias do governo da cidade, suscitou conflitos cada
vez mais violentos que conduziram ao assassinato do inquisidor na noite de 15 de
setembro de 1485 no interior da catedral. Subitamente, o movimento de simpatia da
cidade em relação aos opositores do ―Santo Ofício‖ inverteu-se: na manhã
seguinte, a população desceu à rua exigindo o castigo dos culpados de um tal
sacrilégio. A prisão e a execução dos conjurados constituiu, de certa maneira, o
acto de fundação do ―Santo Ofício‖ em Saragoça, tornando a sua presença
definitiva. Mas o homicídio do inquisidor teve outras conseqüências: o seu
sepulcro, construído na catedral justamente no local onde o crime tinha sido
cometido, atraiu, desde o início, os doentes e os infelizes, estendendo-se
rapidamente o rumor de milagres. O local do assassinato, transformado num local

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de milagres, foi consagrado ainda mais pele exposição dos sambenitos dos
culpados e das respectivas espadas‖ (Bethencourt, 1994, p. 93).

Esta encenação pública que envolveu a morte e o martírio de Pedro de Arbués é um


fenômeno de massa que vai marcar profundamente o Tribunal. Este Pedro só foi canonizado
antes no século XIX, quando seu longo processo chegou ao fim. Todavia, a beatificação
ocorreu 1664, ainda com as inquisições em pleno funcionamento.

Os inquisidores perceberam logo cedo a importância da encenação cerimonial. Desde


o início, os tribunais desenvolveram cerimonial e etiqueta singulares e pormenorizados. Na
Espanha, por exemplo, o uso de capas pretas pelos inquisidores era obrigatório: ―os familiares
podiam levar vestuários de cor, mas a capa devia ser negra‖. Já o barrete devia ser exclusivo
dos inquisidores, enquanto os demais funcionários deveriam se contentar com um gorro. Tudo
era disputado: o número de cavalos e coches que iriam às cerimônias públicas, quem poderia
utilizá-los, quem chegaria a pé, que autoridades ficariam sob os baldaquinos (ou baldaquins) e
qual a ordem das autoridades no cortejo, o lugar dos assentos no interior das igrejas, o tipo do
assento (―se bancos ou cadeiras, com almofadas ou sem elas‖), se o cônego poderia ou não
virar as costas aos inquisidores, etc. (Bethencourt, 1994, p. 95, 96 e 100).

Este universo de inúmeras variáveis, a que Francisco Bethencourt chamou de conflito


de etiqueta, tinha importância fundamental para o exercício do poder e para o tráfico de
influência que cada autoridade – seja nobre ou clérigo – conseguia efetivar. O conflito não era
de forma alguma uma ―afetação efeminada‖, como chegou a sugerir o historiador
oitocentista pernambucano Oliveira Lima (Lima, 1975, p. 89). Tratava-se aí do efetivo
usufruto do mando em uma sociedade que vivenciava estas regras. Os ―homens da fé‖ eram
meticulosos no respeito às regras da etiqueta. ―O conflito de etiquetas escondia,
evidentemente, um conflito político e institucional, pois a Inquisição não podia aceitar a
discussão alargada de um problema sob sua jurisdição (aliás, um problema que justificava,
em grande medida, a sua própria existência‖ (Bethencourt, 1994, p. 99).

O simbolismo não é estranho a nenhuma forma de poder. Mesmo em democracias


tidas como avançadas nos nossos dias, o mais despojado governante, quase obrigatoriamente,
terá que aceitar os símbolos do poder. Então, o fato de os inquisidores valorizarem os
símbolos não deve ser em si motivo de espanto. O ponto desta temática é o grau de
importância que estes ritos de poder chegaram a ter para uma instituição de perfil
inquisitorial. Passamos aí a vislumbrar o jogo temático do auto-de-fé, que foi a grande criação
do Tribunal para a apropriação simbólica na disputa com outras instâncias do poder. Nestas
procissões ao templo em que assassinaram Pedro em Saragoça, o povo da cidade estava
atribuindo ao ato inquisitorial uma demanda mística capaz de realizar as expectativas de cada
um. Este é um componente ainda não vislumbrado pela historiografia do tema.

70
Podemos resumir a assertiva assim: o Santo Ofício propunha um deslocamento
místico para as expectativas pessoais e grupais (curas, casamentos, boas colheitas, etc.), que
se deslocariam de ortodoxias outras (judaica, protestante e moura, principalmente) e das
práticas mágicas (feitiçaria) para a ortodoxia católica. Daí propormos a noção de ascese
dentro do primeiro valor do Tipo Ideal de Inquisidor Moderno. O instrumento principal deste
deslocamento não foi, claro, o beato Pedro de Arbués. O papel precisava de uma instituição
que pudesse ser aceita e vivenciada em qualquer local. O auto-de-fé, com seu movimento
teatral e com sua estética escatológica, representou o alargamento e o controle momentâneo
do Tribunal sobre o espaço público:

―No início, o auto realizava-se durante a semana, sem uma sincronia clara com o
calendário religioso. O excepcional era procurado não apenas nas características da
cerimônia, mas também no tempo de celebração, pois o inquisidor impunha um dia
feriado com assistência obrigatória. Posteriormente, com a normalização e o
enraizamento do rito, constata-se um esforço para fazer coincidir o dia da
cerimônia com um domingo, cuja excepcionalidade é criada por uma série de
interditos: os padres da cidade não podiam celebrar missas cantadas, os sermões
não eram permitidos e as pessoas não podiam circular com armas nem ser
transportadas por cavalos, sendo toda a cidade colocada sob o controle da
Inquisição para a organização do espetáculo de fé‖ (Bethencourt, 2000, p.228).

Devemos somar este predomínio cíclico sobre a praça pública à presença dos
olheiros do Tribunal no cotidiano das comunidades. (Aliás, qualquer um poderia tornar-se um
destes olheiros, posto que a Inquisição aceitava denúncias de todos os reinóis.) O domínio do
espaço e a presença cotidiana tornaram o Tribunal, pelo menos num certo período, uma das
instituições fundantes, similar ao Estado, à família e à própria Igreja. O fundamento fundante
– para tomar emprestado o termo da Antropologia do Imaginário – irradia-se, neste caso,
graças ao inverso da moderna alteridade. Ou seja, o espectador que busca enraizar em sua
própria alma os valores desta ascese católica tradicional o faz para não ser o outro ou para
não tornar-se nem ser confundido com um herege. Esta alteridade invertida – ou
―desalteridade‖ – mereceria um estudo aprofundado para o caso da mística em torno de Pedro
de Arbués. Nesse aspecto, cabe questionar até que ponto o fiel que se entregava à louvação da
memória do inquisidor morto não estaria buscando recusar a própria morte ao identificar-se,
por precaução, com os valores inquisitoriais?

O rito em praça pública, que era o ápice do papel da Inquisição como agente
fundante de valores sociais, guarda semelhança com o teatro. Bethencourt chegou a comparar
os réus com atores (segundo ele, o único teatro capaz de mostrar ―acusados verdadeiros‖) e
caracterizou os inquisidores como ―os únicos atores permanentes‖, ―que acumulam esse
papel com o de diretores‖ (Bethencourt, 2000, p.227). Outras representações teatrais da fé

71
existiam na época: ―os autos sacramentales, os autos da paixão ou os quadros vivos de cenas
bíblicas incluídas nas procissões de Corpus Christi‖ (Bethencourt, 2000, p.227). A lógica da
cena teatral inquisitorial tem um roteiro aristotélico:

―PRIMEIRA ETAPA – Estímulo da harmatia; o personagem segue o caminho ascendente


para a felicidade, acompanhado empaticamente pelo espectador.

Surge um ponto de reversão: o personagem e o espectador iniciam o caminho inverso da


felicidade à desgraça. Queda do herói.

SEGUNDA ETAPA – O personagem reconhece seu erro: ANAGNORISIS.


Através da relação empática dianóia-razão, o espectador reconhece seu próprio
erro, sua própria harmatia, sua própria falha anticonstitucional.

TERCEIRA ETAPA – CATÁSTROFE: O personagem sofre as consequências do


seu erro, de forma violenta, com sua própria morte ou com a morte de seres que lhe
são queridos.

CATARSE – o espectador, aterrorizado pelo espetáculo da catástrofe, se purifica


de sua harmatia‖ (Boal, 1983, p. 52).

A harmatia (em grego: erro, falta) interrompe o caminho da felicidade provocando a


queda. A anagnórisis – ou anagnwrisis – é o reconhecimento visual e a confissão do erro a
partir de um ato intencional de modificação do próprio pensamento (dianóia). A necessidade
deste ―opositor‖ como figura indispensável do teatro aristotélico nos leva ao paralelo com a
fome de hereges da Santa Inquisição. Façamos o paralelo: a) a primeira etapa relaciona-se
com a fase em que o herege ou a feiticeira esteve ―de bem com a ortodoxia‖, quando era tido
como um bom cristão, que é o padrão ascético aceito como correto nas sociedades católicas
modernas européias; b) o ponto de reversão e queda é o pecado da heresia ou das práticas
mágicas, narrado pormenorizadamente durante a leitura dos autos do processo de cada um
para a multidão que acompanha o auto-de-fé; c) a catástrofe desenrola-se diante dos olhos do
espectador: o culpado será condenado a uma das muitas penas da Inquisição; d) a catarse é o
resultado do ato inquisitorial para o convencimento – ou reafirmação – do fiel quanto à sua
própria fé.

Este ―roteiro teatral‖ tornou-se auto-alimentado com o passar dos séculos. No


capítulo terceiro, veremos que uma de nossas hipóteses para a análise crítica dos documentos
inquisitoriais modernos é a de que estes processos passaram a refletir a necessidade de se
―cumprir o roteiro‖ para alimentar a cena. Isto os tornou duvidosos para o conhecimento da
memória das vítimas, incluindo-se aí as crenças heréticas por elas representadas. Por outro

72
lado, o roteiro de ação do auto-de-fé é uma preciosa fonte histórica que analisaremos adiante,
à luz da História do Imaginário.

No romance Memorial do Convento, José Saramago ressalta o distanciamento entre a


―culpa‖ que uma ré revelou e aquela que lhe disseram. Sebastiana Maria de Jesus,
personagem cristã-nova do romance, assim se pronuncia:

―(...) tenho visões e revelações, mas disseram-me no tribunal que era fingimento,
que ouço vozes do céu, mas explicaram-me que era efeito demoníaco, que sei que
posso ser santa como os santos o são, ou ainda melhor, pois não alcanço diferença
entre mim e eles, mas repreenderam-me de que isso é presunção insuportável e
orgulho monstruoso, desafio a Deus, aqui vou blasfema, herética, temerária,
amordaçada para que não me ouçam as temeridades, as heresias e as blasfêmias,
condenada a ser açoitada em público e a oito anos de degredo no reino de Angola‖
(Saramago, 1982, p. 50).

É possível que o posicionamento materialista do escritor faça-o ver, antes,


simplesmente, a inexistência de provas para compor uma culpa mística. Este mesmo trecho
foi classificado como irônico pela historiadora italiana Carmen Radulet (in Novinsky, 1992, p.
665). Vemos, porém, outro componente presente nesta fala do personagem: o Tribunal
aparece como ente criador e reprodutor de certas culpas, ou seja, buscando alimentar o
processo através da repetição obsessiva das culpas que estão presentes nos próprios manuais e
regimentos. Isto coloca, para a análise documental, o problema da validade das obsessões
captadas na documentação processual produzida nestas circunstâncias.

O auto-de-fé sempre foi muito estudado pelos historiadores que analisaram a


Inquisição. Outros autores também o fizeram. No I Congresso Internacional sobre Inquisição
(São Paulo e Lisboa, 1987), vimos a apresentação do tema por Luiz Nazário (in Novinsky,
1992, p. 525). Na palestra intitulada O julgamento das chamas: autos-de-fé como espetáculos
de massa, o autor buscou trechos que justificariam e explicariam o auto:

―Os heréticos merecem não somente ser excluídos da Igreja pela excomunhão, mas
ainda retirados do mundo pela morte.... Se os falsos moedeiros ou outros
malfeitores são justamente executados pelos príncipes seculares, com mais forte
razão os heréticos, desde que são convictos na heresia, podem não somente ser
excomungados mas ainda justamente mortos. Quanto à Igreja, como ela é
misericordiosa e procura a conversão dos culpados, não condena imediatamente o
herético, mas o exorta uma primeira e uma segunda vez ao arrependimento, e se ele
permanece obstinado e se ela desespera de sua conversão, ela pode na salvação
dos outros separá-lo dela pela excomunhão e pelo abandono ao juiz secular

73
para que extermine do mundo pela morte.‖ Santo Tomás de Aquino, Suma
Teológica (in Novinsky, 1992, pág 526. Grifo nosso)

―O herético deve ser punido de penas severas, numerosas, diversas, porque ele traz
prejuízo a todos, porque o que é cometido contra a divina religião é uma injúria
contra toda a comunidade: é um crime público, como está dito no Código: lei
Manichaeos... É, com efeito, muito mais grave ofender a majestade divina do que a
majestade temporal.‖

Hortensis, teólogo da Inquisição, séulo XIII,


(in Novinsky, 1992, pág 526)

―A opinião geral, confirmada pela prática geral de todo o universo cristão, quer que
eles pereçam pelo fogo, conforme a lei que estipula que todos os heréticos, sejam
quais forem os seus nomes, sejam condenados à morte: ―Eles serão publicamente
queimados vivos, publicamente entregues ao julgamento das chamas‖ (Disposição
do imperador Frederico, e dos papas Inocêncio IV, Alexandre IV e Clemente IV).‖

Nicolau Eymerich e Francisco Peña, inquisidores,


(in Novinsky, 1992, pág 527)

As explicações feitas partindo-se do discurso inquisitorial – mesmo com o objetivo


de ―dramatizar‖ o tema – ocorrem aos historiadores mais interessados na crítica ao Tribunal e
acabam por criar uma singular cadeia cíclica que reproduz o próprio discurso como se este
bastasse para a análise histórica. Há historiador que chegou a transferir a sua própria função
para o inquisidor, considerando-o um verdadeiro analista social (ver capítulo 3, parte 1). A
descontextualização e a dramatização – já dissemos – comovem o público, mas não
colaboram muito com a História. Esta atitude teve um papel importantíssimo no passado.
Bethencourt ressaltou muito bem a importância da ―literatura polêmica‖, que ajudou a
desacreditar o Tribunal e abriu caminho para sua supressão:

―(...) uma literatura que extravasa as regiões protestantes e a rede internacional das
comunidades hebraicas, naturalmente solidárias com os perseguidos dos tribunais
da fé, para atingir um público católico muito vasto, em vias de sensibilização ao
problema da tolerância religiosa. Uma ruptura, portanto, do ciclo vicioso
perseguidor/perseguido em que se circunscrevia a polémica do século XVI a
propósito das práticas inquisitoriais, transferindo-se o debate para o plano geral de
uma opinião pública em processo de formação‖ (Bethencourt, 1994, pág 195) .

74
O auto-de-fé tem significado amplo e essencial para o imaginário inquisitorial. Se no
século XVII a polêmica da culpabilidade aflorou como uma forma de pôr os inquisidores em
xeque, hoje, temos diante de nós a ampla possibilidade de esclarecer o estatuto deste ato
solene para a sociedade de sua época.

―Exigência de uma sociedade sequiosa de representações fortes nas quais a palavra


não é suficiente, o auto da fé fornece hoje, paradoxalmente como no passado, o
suporte visual da argumentação vitoriosa‖ (Bethencourt, 2000, p.220. Grifo nosso).

Iniciamos a análise do auto-de-fé com a apresentação de duas estruturas: a planta


baixa idealizada de um auto-de-fé (ver Quadro 2) e o fluxo da ação teatral da cerimônia
(Quadro 3) em que buscamos o significado mítico da encenação, apresentando sua
representação social e, ao mesmo tempo, teológica. Inspiramo-nos nas imagens iconográficas
de autos-de-fé para propor uma compreensão analítica. Observamos que, no Quadro 2, o corte
lateral foi feito pelo ângulo do espectador, que vê os inquisidores à direita, os réus à esquerda
e o palco ao centro, com símbolos inquisitoriais no espaço entre o palco e a tribuna
inquisitorial.

A História do Imaginário, ou a análise histórica feita com o paradigma da


metodologia de estudo do imaginário, permite desencravar a lógica sob a cerimônia do auto
inquisitorial. O auto-de-fé faz parte de uma praxeologia inquisitorial. José Carlos de Paula
Carvalho chegou a elaborar um trajeto analítico completo para a Inquisição (Carvalho, 1987).
Como não houve continuidade para aquela análise que ele propôs no Congresso sobre
Inquisição, vamos utilizar uma parcela das noções propostas e, somando-as com nossa própria
percepção, faremos a análise dos autos-de-fé.

A praxeologia é uma ――lógica da ação‖ dentro de uma teoria formal do


comportamento racional que dispõe meios e fins visando à eficácia ótima da ação
(...)‖(Carvalho, 1987, p.65). Muito já se escreveu sobre a parte processual da praxeologia
inquisitorial, porém as cerimônias públicas atraíram muito mais a atenção dos inquisidores e
da sociedade. A construção desta praxeologia é totalmente consciente em sua objetividade.
Ao édito inquisitorial, publicado com leitura na missa dominical, segue o comunicado formal
ao rei – pelo próprio inquisidor –, ao bispo, ao cabido da Sé e aos prelados das ordens
religiosas instaladas na cidade. A presença do rei, quando possível, era desejada como forma
de reafirmar o prestígio do Tribunal. Em alguns casos, na Espanha, dezenas de familiares do
Santo Ofício em esquadrão de cavalaria, portando suas jóias honoríficas e vestindo uniformes
de gala, cruzam a cidade montados nos melhores cavalos, para anunciar, ao som de tímbalos e

75
trombetas, com muitos dias de antecedência, a realização de um auto-de-fé (Bethencourt,
1994, p. 197).

Mas o simbolismo principal que invocamos aqui está descrito no Quadro 2. O


primeiro plano apresentado é o corte lateral da praça em que se realiza o evento. Trata-se de
desenho baseado nas informações da historiografia e na iconografia restante do Santo Ofício.
Olhando de frente, com o ponto de vista do público que acorre ao local, à esquerda vê-se a
arquibancada dos réus. Erguida com uma estrutura simples e de pouco conforto, é facilmente
reconhecida por se opor ao canto direito da cena: a tribuna dos inquisidores, construção bem
maior e espaçosa marcada por baldaquinos. Ao centro aparece o palco onde se desenrola a
cena que definirá o desfecho. O tamanho dos palcos deve ter variado muito ao longo dos
séculos, mas podemos admitir uma estrutura média com dez metros de largura sobre a qual se
erguia um sobrepalco que é o altar da abjuração. Entre o altar da abjuração e a tribuna
inquisitorial, reserva-se um espaço para a colocação de cruz e estandartes (o brasão do
Tribunal e o estandarte – se houver – da confraria de São Pedro Mártir, por exemplo).

A procissão que antecede o auto traz, em ordem, os réus ladeados por familiares,
seus ―padrinhos‖. Quando o réu é chamado, faz-se a leitura do processo – que pode ser longa
– e leva-se o infeliz por um dos dois caminhos indicados no Quadro 2. À moda do juízo final,
os reconciliados seguem à direita dos inquisidores, e os relaxados (que serão executados pela
justiça secular) caminham à esquerda dos homens da fé.

Os membros do Tribunal ficam sentados em ordem ascendente, estando os mais


importantes acima. Se o rei comparecer, sentar-se-á acima de todos os presentes, para apreciar
a cena, de preferência da sacada do palácio ou de um outro prédio próximo. A cerimônia
inicia-se como uma missa. Tudo é semelhante: ―é rezado o início da missa, que é
interrompida imediatamente a seguir ao intróito‖ (Bethencourt, 1994, p. 217). Faz-se um
sermão inquisitorial onde é ressaltada a benevolência do inquisidor mais antigo, simbolizando
o Tribunal. Segundo Anita Novinsky, ―o sermão tinha uma importância toda especial, e o
pregador era sempre escolhido entre os mais distintos membros do clero‖ (Novinsky, 1986,
p. 66 e 67).

O povo e todas as autoridades presentes faziam o juramento inquisitorial. O


inquisidor recebia este juramento até da família real. Era uma forma de consolidar o
simbolismo da Inquisição: como pretensos emissários papais para a supressão das heresias, os
―homens da fé‖ exigiam a lealdade expressa de todos. A busca desta lealdade, pelo menos na
Espanha, chegou ao ponto de dar ao inquisidor o direito de tomar juramento ao rei, inclusive
apresentando-se diante do governante com a cabeça coberta – que era forte símbolo de
autoridade –, enquanto o monarca permanecia com cabeça descoberta. ―Desde 1560 que o rei

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assistia ao juramento da fé de pé, com a cabeça descoberta, pousando uma mão no missal e a
outra na cruz, diante do inquisidor-geral, que lia o formulário de cabeça coberta‖
(Bethencourt, 1994, p. 218).

Todos os presos eram chamados individualmente – podiam exceder uma centena –


para ouvir a sentença. O alcaide do cárcere conduzia o apenado até o altar da abjuração, onde
ele poderia renegar suas culpas se fosse instado a isso: era uma última ―chance‖. Os réus
faziam uma reverência à cruz e outra aos inquisidores. Os reconciliados recebiam uma vela
para carregar em prumo, mas os condenados à morte não tinham este direito.

―Esta parte do espetáculo é, talvez, a mais esperada pelos espectadores, não apenas
porque, finalmente, ao fim de meses (por vezes anos) de silêncio, podia-se
conhecer a matéria de acusação e a sorte do preso, mas também porque se podia
avaliar o estado de espírito do acusado pela sua postura e comportamento. Pode-se
falar de uma ritualização dos gestos do arrependimento, do protesto e da ofensa,
mas mesmo neste quadro constrangedor subsiste uma incerteza que mantém o
interesse no desenrolar da cerimônia. Contudo, o conteúdo dramático do auto-de-fé
não residia apenas nestes aspectos: existia sempre a possibilidade de um súbito
arrependimento dos relaxados, que podiam pedir uma audiência no local aos
inquisidores. A confissão era então ouvida numa sala interior do cadafalso por um
dos juízes, que procurava verificar a sua autenticidade. Depois do interrogatório, se
o inquisidor estava convencido da sinceridade do preso, chamava os outros
inquisidores para reverem a sentença‖ (Bethencourt, 1994, p. 219).

A tendência demonstrada pelo público de entediar-se com o espetáculo permite o


paralelo com o que foi chamado de ―limiar de discurso e ação persuasivos‖, onde a
Inquisição ―depara-se com a monotonia dos procedimentos obsessivos e irracionais‖ pelo
―cansaço e (...) desrazão dos procedimentos burocrático-inquisitoriais, ainda que cheguem às
crueldades, e a progressiva configuração – e esse é o valor de uma leitura interna dessa
abstrusa praxeologia – do estereótipo imposto e da velada ―resistência‖ cosmovisiva
emergente‖ (Carvalho, 1987, p. 65).

O estereótipo configura-se para dar lugar à ―resistência‖ ou ―resistências‖. O


problema está nas fontes históricas para perceber e configurar tais resistências. Vemos os
processos inquisitoriais como fontes problemáticas para captar as atitudes de divergência que
paulatinamente foram desaguando em oposição ao Santo Ofício. Câmara Cascudo nos permite
imaginar o universo destas crenças, ao captar, no Rio Grande do Norte do início do século
XX, padrões ambivalentes (resistência/integração) em narrativas – tardias? – do medo de
bruxa, como nas lendas da Moura Torta e de Pedro, José e João (Cascudo, 1998).

77
Resta-nos, então, perceber a ――saturação de um regime de imagens‖,
unidimensionalizado e obsessivo‖ que leva à ―irônica inversão/reversão do pólo oposto, (...)
exatamente do outro imaginário excluído(...)‖ (Carvalho, 1987, p. 68). Este outro, apesar de
excluído, vivenciou a mesma época. Carvalho nos lembra o ditado popular: ―O Diabo toma
água benta‖. A contribuição de José Carlos de Paula Carvalho ainda poderá resultar em
trabalhos que sigam especificamente os caminhos da abordagem que ele propôs. Num
aspecto, porém, pensamos diferentemente dele:

―‗O modelo duplo de personalidade modal‘ (...) inquisitorial permitiria evidenciar a


profunda fabricação do estereótipo da ‗anormalidade‘ (heresias e outras faces)
imputado aos ‗inquisitados‘, ao passo que, como o diabo está dentro da própria
Inquisição como ‗esquema mental‘ (‗dia-bolos‘e esquizomorfia), também
‗patológico‘ e ‗insano‘ é o profundo comportamento da praxeologia inquisitorial
como grupo-inquisição‖ (Carvalho, 1987, p. 67. Grifo nosso).

O próprio autor reconhece que todo estereótipo é fabricado, pois afirma que a
―anormalidade‖ do herege foi uma invenção inquisitorial. As patologias só são o que são
quando reconhecidas pela cultura que as ―criou‖. Não é possível falar em patologias sem que
os agentes que as vivenciaram sejam socialmente assumidos ou tidos como patológicos em
seu contexto histórico. A Inquisição não foi tida como patológica em seu contexto cultural.
Todas as culturas desenvolvem estereótipos. Partindo desta constatação, se pretendêssemos
contemplar este argumento de Carvalho, teríamos que pensar que todas as culturas são
patológicas. Além disso, se os modelos se complementam, no sentido de que a praxeologia
inquisitorial se parece com as ―anormalidades‖ que diz combater, isso não nos autoriza a dizer
que a primeira ‖fabricou‖ a segunda, pois antes seria preciso comprovar que o modelo
oponente tenha ―existido‖. Talvez jamais tenha se consolidado.

Da mesma forma que fabricou cristãos-novos, como afirmou António Saraiva


(1985), a Inquisição pode muito bem ter ―inventado‖ os processos. Tratar-se-ia, então, de um
estereótipo sobre si mesmo e não haveria o ―aguardar‖ da ascensão do pólo oposto, pois este
simplesmente não existiria. Se admitimos uma Inquisição ―quixotesca‖, que luta contra
moinhos como se fossem dragões, damos ao termo patológico toda a sua intensidade
limitadora e redutora. Uma redução que lembra as da Psicanálise.

A análise pela trama teatral nos leva a outro dos conceitos da Teoria das Estruturas
Antropológicas, de Gilbert Durand (Durand, 1989). Trata-se da noção de estrutura heróica
do imaginário. Após classificar os regimes da imagem em noturno e diurno, o filósofo de
Grenoble sistematizou uma outra classificação, a das três dimensões das estruturas do
imaginário: a) as estruturas heróicas (1989, p. 124 a 134); b) as estruturas místicas (1989, p.

78
185 a 192); c) as estruturas disseminatórias (1989, p. 236 a 241). Procuraremos resumir o
funcionamento deste método para chegar àquela estrutura que nos interessa aqui.

Aos símbolos místicos opõem-se os heróicos. O autor utiliza-se de imagens no


interior de narrativas míticas para caracterizar as atitudes humanas. O dilema humano
essencial ocorre diante da morte e de sua negação/aceitação. As culturas ―posicionam-se‖
sobre esta determinante antropológica de três formas ideais: a) usar armas para aniquilar o
monstro; b) admitir uma harmonia universal na qual a morte não pode entrar; c) repensar o
tempo, tornando-o cíclico, onde a morte antecede o renascimento. Estas proposituras são
intercambiáveis e movimentam-se freqüentemente.

a) Estruturas Heróicas: ―vai-se às armas para combater o monstro‖;

b) Estruturas Místicas: ―busca-se a harmonia universal na fusão das diferenças‖;

c) Estruturas Disseminatórias: ―constrói-se o diálogo cíclico entre os opostos‖.

Às estruturas heróicas correspondem várias constelações de imagens, dentre as quais


a da verticalidade diairética (9). Nela, as práticas transcendentes são ascensionais: montes e
elevadiços sacralizados, púlpitos e altares (como o do auto-de-fé). Os símbolos diairéticos
correspondem a uma separação total entre o bem (ortodoxia) e o mal (heresia). O combate é
uma atitude espiritualizante na medida em que os guerreiros são purificadores e possuem uma
função unidimensionalizada para a luta e vitória sobre o oponente caído. A palavra herói é
utilizada – diferentemente do uso cotidiano – para referir que o imaginário que corresponde a
este quadro sente-se pleno numa verdade absoluta e imponderável, como a de um herói. Neste
sentido, se falássemos em uma Inquisição heróica estaríamos nos referindo à sua dimensão
intolerante. No Quadro 3, podemos ver a pertinência deste conceito durandiano para a
compreensão do auto-de-fé.

A morte purificadora interrompe ou retarda a ascensão de valores mundanos (tempo)


e promove a supremacia dos valores ortodoxos. Este quadro busca captar as fases do
espetáculo encenado no auto-de-fé. A concepção aristotélica das três primeiras etapas está em
Augusto Boal (1983). Elaboramos estas quatro etapas aproveitando do autor a forma de
apresentar os valores sociais (o ethos) em setas que indicam a direção do pensamento
hegemônico (Boal, 1983, p. 52). O restante do esquema, criação nossa, parte do tempo linear
empírico: a primeira etapa antecede a segunda e assim por diante.

A etapa I refere-se ao tempo anterior ao do auto-de-fé em si. É um tempo em que o


herege, agora penitenciado, conviveu com o espectador na mesma sociedade. Muitos dos que
acabavam acusados eram tidos antes como bons e ―normais‖ cristãos. Na leitura dos autos há
referência a este tempo. É também o tempo do interregno entre os contatos que tem o cristão
com os exemplos inquisicionais de ortodoxia da Igreja. Neste interregno dá-se a frouxidão de

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valores e hábitos, aproximando o futuro personagem-réu do seu futuro espectador herói. A
frouxidão aparece representada pela seta distoante que aponta para a esquerda. O objetivo da
cristandade é a unidade. No momento do auto-de-fé, o espectador perceberá em si
(anagnórisis) este desvio de comportamento (harmatia).

A segunda etapa é uma busca de saída por parte do espectador que se viu, antes, ao
lado do herege. Uma distinção se impõe: os mais exaltados ressaltam esta distinção tratando o
herege com gritos de desdém e até atirando-lhe objetos. À queda do herege corresponde a
ascensão heróica do espectador. A verticalização está em todos os pontos da cena: no
alteamento hierárquico da tribuna de inquisidores, na subida do herege e de um representante
da Inquisição ao sobrepalco para a abjuração final e nos estandartes apostos ao lado do palco,
certamente entre este e a tribuna principal. Também o caráter diairético está confirmado: o
guerreiro inquisidor parte sobre o monstro para vencê-lo e dominá-lo: o espectador identifica-
se com o guerreiro e converte-se em coadjuvante do seu heroísmo (espectador herói). O
guerreiro tem suas armas: o fogo, a espada (no estandarte do Tribunal) e a cruz, com seu
indefectível significado de domínio e levantamento.

À etapa III liga-se a desumanização do herege, transformado em monstro demoníaco.


Não seria possível estabelecer a empatia do público, não fosse o ambiente de medo
obsidional, típico da época (ver o capítulo seguinte). Mas a desumanização do herege leva o
espectador ao reconhecimento da própria falha. Assim, se o auto impede uma comunicação
humana que levaria o espectador a ―entender/explicar/compreender/aceitar‖ a pessoa do réu,
proporciona, mesmo assim, uma interação indireta, onde um personagem não quer ser o outro
(o espectador não quer ser o herege). A morte purificá-lo-á, mas existem duas: uma física –
na fogueira – outra social, no estigma e nas humilhações que viverá o indivíduo saído da
prisão inquisitorial e retornado ao convívio público ou seus parentes que, após sua morte ou
partida, terão os olhos da vizinhança muito mais aguçados em busca de qualquer deslize.

A propalada reconciliação fica para o campo ―espiritual‖, pois, como vemos na


quarta etapa, os valores do imaginário heróico estão em oposição absoluta para a supressão do
personagem-réu-monstro que foi combatido e vencido. Na unidimensionalização do
movimento, vemos a Inquisição, paradoxalmente (10), buscando o domínio do tempo, ou a
tentativa deste domínio. O Tribunal do Santo Ofício, como os regimes intolerantes de nossos
dias, tenta controlar o tempo ―parando‖ a História, congelando as imagens (como se fazia no
século XVI) ou banalizando-as (como se faz nos dias de hoje).

Sabemos que a paralisia dos movimentos é a realização da morte, imagem do


cadáver. O final do esquema mostra as setas na mesma direção. É o retorno ao ethos social.
Ethos é palavra grega que significou a casa construída para habitação humana.
Posteriormente, através de um processo de metaforização, passou a significar a práxis,

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mediante a qual, pela liberdade, o homem, ―único animal ético‖, se autoconstrói a si próprio
e edifica seu mundo histórico-cultural.

Os mesmos mitos ascensionais estavam no Arco de los Familiares del Santo Officio,
que foi construído em Lisboa em 1619 para a entrada triunfal do rei Filipe III. A reprodução
do arco está no livro de João Baptista Lavanha publicado em Madrid em 1622 sob o título de
Viagem da Catholica Real Majestade del Rey D. Felipe II N. S. ao Reyno de Portugal (in
Bethencourt, 1994, p. 86). A gravura foi feita por Hans Schorckens sobre desenho de
Domingos Vieira Serrão. Na Figura 5, podemos ver uma reprodução do arco.

Construção ascensional por excelência, o arco era sustentado por quatro colunas
sobre as quais se erguia o corpo ornado por seis imensas figuras. A ascensão representa o
poder e a aproximação com Deus. Acima, no topo, há três escudos, sendo um central, maior,
ovalado, ladeado por outros dois, menores e redondos. O ápice de todo o conjunto está na
aposição, em vez do elmo imperial, da cruz dos dominicanos, cujo traçado horizontal tem as
mesmas dimensões do traçado vertical. A concepção ascensionista também está presente na
ordem das figuras. As seis iconografias estão dispostas em pares verticais (Bethencourt, 1994,
p. 86). O primeiro par representa o perdão e a inspiração do Espírito Santo, tendo como base a
frase lumen de lumine (luz da luz). O segundo par representa a soberania e tem em sua base a
frase vera corona (Verdadeira coroa). Sobre a frase ipsa conteret caput tuum (ela mesma
esmagará teu ser e tua atividade), ergue-se o último par à direita, que representa o castigo. Há
uma seqüência notória que explicitaremos na análise do arco. Há também uma seqüência
simbólica implícita que procuraremos compreender e analisar.

No interior do escudo ovalado do Santo Ofício, aparecem o ramo da oliveira, a cruz


latina e a espada. A proximidade entre a cruz e a oliveira pode lembrar a ―árvore-cruz‖ que
caracterizou uma porção do cristianismo medieval: galhos e frutos brotavam da cruz como a
simbolizar a superação da morte. Aqui, separados, o ramo e a cruz se aproximam em
significados. A cruz revela a aproximação entre os atos terrenos (horizontais, imanentes) e os
valores celestes (verticais, transcendentes). A oliveira representa a purificação espiritual (pelo
seu óleo, que tem grande poder de limpeza) e a fecundidade/perenidade (pela sua resistência e
durabilidade, sendo uma árvore que pode durar séculos), numa referência à desejada
longevidade do Tribunal. Para os cristãos, a oliveira é um sinal de paz e conciliação.

A anteposição à direita de uma espada desembainhada simboliza a permanente


disposição de luta do Santo Ofício contra as heterodoxias. Trata-se de uma arma de dois
gomos, capaz de separar o bem do mal. Na iconografia cristã, há exemplo de espada saindo da
boca do próprio Cristo, representando o Juízo Final. Quando a cristandade vincula a gládio à
Justiça, liga o poder mundano ao espiritual, tendo em vista que o exercício de uma tal Justiça
só pode ocorrer com a anuência ou apoio da autoridade temporal. Lembramos aqui os

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preceitos medievais de uma espada dupla que ora representava o poder superior da Igreja
sobre os impérios, ora queria indicar a igualdade de ambos. Assim, a aproximação entre
oliveira, cruz e espada indica uma tríade inquisitorial: purificação, ascensão e justiça. No
interior do escudo, lê-se a frase In hoc signo vinces, que significa (com este sinal vencerás),
frase histórica que marcou o cristianismo.

O duplo ladeamento do escudo inquisitorial com o emblema da pomba e a frase


columbae et simplices sicut (simples como as pombas) aponta para um episódio bíblico:
quando Noé, findo o dilúvio, soltou três pombas, uma retornou com um ramo de oliveira,
símbolo da reconciliação com Deus. Além de representar o Espírito Santo, a pomba simboliza
o batismo, a simplicidade e a natureza. Os inquisidores tinham na pomba o sentido purificador
da conversão e da reconciliação com a Igreja. A pomba também aparece numa das figuras do
arco, como veremos.

No conjunto vertical que fica à esquerda do observador, vemos duas figuras: ―a


superior mostra três penitentes descalços que entram de novo, reconciliados, na Igreja de
Cristo, conduzidos pelo inquisidor que ensina a doutrina (...)‖ (Bethencourt, 1994, p. 86).
Estar descalço indica humildade. O ambiente desta cena é anódino e bastante geométrico. Os
penitentes são semelhantes entre si e a roupa do inquisidor tem caimento perfeito para o lado
esquerdo. O painel inferior ―evoca a Igreja militante, uma mulher transportando a eucaristia
e a cruz, tendo diante de si o Espírito Santo e atrás a fachada de uma Igreja‖ (Bethencourt,
1994, p. 86). Marca esta figura a luz que emana do céu sobre a pomba que representa o
Espírito Santo. A mulher pode ser uma referência mariana. A luz que vem do alto é oposta às
trevas que residem nas profundezas. É a mesma oposição entre anjos e demônios, espírito e
matéria, masculino e feminino, típica de um imaginário heróico, onde, neste caso, o sentido
prometéico da vida está na vitória sobre o monstro (Durand, 1989, p.111). Daí a presença da
mulher ser uma atenuante ao formato clássico desta oposição simbólica.

―Esquemas e arquétipos de transcendência exigem um procedimento dialéctico: a


intenção profunda que os guia é intenção polémica que os põe em confronto com
os seus contrários. A ascensão é imaginada contra a queda e a luz contra as trevas.
Bachelard analisou bem este ‗complexo Atlas‘, complexo polémico, esquema do
esforço verticalizante do sursum, que é acompanhado por um sentimento de
contemplação monárquico e que diminui o mundo para melhor exaltar o gigantesco
e a ambição das fantasias ascensionais. O dinamismo de tais imagens prova
facilmente um belicoso dogmatismo da representação. A luz tem tendência para se
tornar raio ou gládio e a ascensão para espezinhar um adversário vencido. Já se
começa a desenhar em filigrana, sob os símbolos ascensionais ou espectaculares, a
figura heróica do lutador erguido contra as trevas ou contra o abismo. Esta
dicotomia polémica manifesta-se frequentemente nas experiências do sonho

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acordado em que o paciente inquieto declara: ‗Estou na luz, mas tenho o coração
completamente negro.‘. Do mesmo modo, as grandes divindades uranianas estão
sempre ameaçadas e por isso sempre alerta. Nada é mais precário que um cimo.
Essas divindades são, portanto, polémicas e Piganiol quer ver nesta divina
animosidade a origem histórica, para a bacia do Mediterrâneo, do mito da vitória
do cavaleiro alado contra o monstro fêmea e ctónico, a vitória de Zeus sobre
Cronos. O herói solar é sempre um guerreiro violento e opõe-se, por isso, ao herói
lunar que, como veremos, é um resignado. Para o herói solar são sobretudo os
efeitos que contam, mais que a submissão, à ordem de um destino. A revolta de
Prometeu é arquétipo mítico da liberdade do espírito. De boa vontade o herói solar
desobedece, rompe os juramentos, não pode limitar a sua audácia, tal como
Hércules ou o Sansão semita. Poder-se-ia dizer que a transcendência exige este
descontentamento primitivo, este movimento de mau humor que a audácia do gesto
ou a temeridade da empresa traduzem. A transcendência está sempre, portanto,
armada, e nós já encontrámos esta arma transcendente por excelência que é a
flecha, e já tínhamos reconhecido que o ceptro de justiça traz a fulgurância dos
raios e o executivo do gládio ou do machado‖ (Durand, 1989, p. 111).

O imaginário inquisitorial, aqui representado no arco, está, portanto, em permanente


ato de iluminar e catequizar a imanência pecaminosa que poderia cercá-lo e dominá-lo se não
estivesse em guarda. O conjunto vertical central representa a soberania (Bethencourt, 1994, p.
86). Acima, numa representação que fica abaixo do escudo inquisitorial colocado na cimeira
do arco, está o papa com sua tiara, portando a tripla cruz, tendo aos seus pés, à esquerda, no
chão, o escudo do Santo Ofício. Na hierarquização verticalizada da obra, é importante
ressaltar este paradoxo: o escudo do Tribunal aparece aos pés do papa, mas coloca -se,
também, acima de sua cabeça. Na peça que fica abaixo da do papa está a representação da
soberania monárquica, com o rei Filipe III sendo coroado pelas ―figuras alegóricas da Fé, da
Religião e da Justiça‖ (Bethencourt, 1994, p. 86).

As três figuras (Fé, Religião e Justiça) possuem uma das mãos sustentando a coroa
real e a outra com os respectivos símbolos: a Fé carrega a cruz (e tem aos seus pés um templo
católico); a Religião levanta o cálice com a hóstia e a Justiça, que não está vendada e leva um
adorno na cabeça, tem na mesma mão a espada e a balança. O rei está ajoelhado sobre uma
almofada e veste a armadura para a guerra. O conjunto da cena indica que a origem do poder
real está em Deus, que seria origem de toda soberania.

As duas figuras que fecham o arco, na vertical direita de quem observa, levam à ação
mais propriamente dita do Tribunal do Santo Ofício. O painel superior, longe de ser uma
inocente representação primitiva do fogo, trata de colocar a chama purificadora ao lado de
uma árvore, tendo um vale como cenário. Trata-se de uma representação idílica da natureza

83
purificada, anterior ao pecado original. Ou seja, indica-se assim a benignidade da Criação, de
onde sairá o fogo purificador e divino para queimar o herege. No imaginário cristão, o fogo é
um ente purificador ao qual podemos até entregar o nosso corpo:

―Mesmo que distribua todos os meus bens aos famintos, mesmo que entregue o
meu corpo às chamas, se me faltar o amor, nada lucro com isso‖ (1 Cor. 13, 3.
Grifo nosso.).

O último painel do arco é o mais rico de todos:

―Esta imagem é muito interessante, pois a Inquisição está disfarçada de São Jorge,
que mata o dragão da heresia empunhando na mão direita a espada e na mão
esquerda o escudo com as armas do tribunal, enquanto a armadura tem gravada a
cruz dos dominicanos. Mas o emblema não está completo sem a figura de um santo
mártir (vestido de dominicano e com a palma, mas sem os outros atributos de São
Pedro de Verona), que aponta para a hidra subjugada pela Inquisição. Esta imagem
final, colocada em baixo, à direita do observador, resume, de certa maneira, o
sentido de auto-glorificação do tribunal no seu papel de reparador das ofensas
perpretadas contra Deus, a Igreja e a Coroa‖ (Bethencourt, 1994, p. 86).

A utilização de São Jorge pode dever-se a um movimento de mentalidade que o


tenha projetado setorialmente no século XVII português. Mesmo assim, devemos lembrar que
se trata de um dos santos mais tradicionais da Igreja. Sua história é nebulosa, pois pouca
informação se tem. Ele viveu entre os séculos III e IV. Parece-nos que sua invocação neste
caso dever-se-ia ao formato monstruoso da hidra de sete cabeças, que lembra a lenda do
dragão que o santo abateu em Silene, Líbia, para salvar uma moça das garras do monstro.
Jorge foi cultuado como um soldado glorificado por Deus: alcançar esta imagem era o sonho
doce dos inquisidores. Enfim, Jorge foi um mártir, com imagem excelente para justificar a
ação inquisitorial: teria sido martirizado em Dióspolis (hoje, Lod), na Palestina (Attwater, s/d,
p. 178). Vítima da perseguição de Diocleciano, Jorge foi torturado e teve a cabeça decepada
devido à sua convicção cristã. Entre Jorge e Pedro de Verona, há enorme semelhança,
diferenciando-se apenas porque o segundo viveu já na era inquisitorial, enquanto o primeiro
encosta sua cronologia no frágil cristianismo primitivo. A aparência dos dois e a vitória sobre
a hidra levaram o artista a antever neste painel e inversão do mito: Pedro tem seus ferimentos
subitamente regenerados e está são para apontar a morte da criatura demoníaca.

A hidra, aliás, também é uma citação mítica: serpente monstruosa da mitologia


grega, representa dificuldades que se multiplicam quando são vencidas, pois, para cada uma
das nove ou sete cabeças que vai sendo destruída em luta, nascem outras duas no lugar.
Destruir a hidra é desafio de coragem e inteligência. Enfim, para corroborar a riqueza

84
simbólica deste painel, lembramos que a morte do monstro na mitologia grega deu-se pelo
fogo: Hércules penetrou todos os pescoços com uma pequena estaca de madeira em brasa.

Para encerrar este capítulo, vemos o arco dos inquisidores em seu conjunto
simbólico. Mudamos o sentido do olhar e vemos as três imagens que compõem a base
ascensional do arco: à esquerda, a representação da luz do Espírito Santo; no centro, a
invocação cristã do poder soberano do rei; à direita, o uso da força contra a heresia. Se fosse
possível endossar o espírito do Tribunal com um ―resumo mítico‖, este seria o teor ideal: a
soma do poder da fé cristã com o poder temporal e a presença da força inquisitória. Além
disso, em termos simbólicos o lado esquerdo, onde foi representada a transcendência do
Espírito Santo, representa o passado e o lado direito, onde foi posta a força, representa o
futuro.

Se também mudarmos o olhar e fizermos a leitura continuada das frases na seqüência


que aparece no arco, teremos um curioso conjunto que se encerra referindo todo o conteúdo
como uma mensagem do rei ou para ele:

―In hoc signo vinces


Columbae et simplices sicut
Lumen de lumine
Vera corona
Ipsa conteret caput tuum
Venisti tandem tuaquae expectata per annos.‖

―Com este sinal vencerás,


Simples como as pombas,
Oh! Luz da Luz,
Oh! Verdadeira Coroa,
Que machuca a tua própria cabeça.
Vieste, afinal, aguardado através dos anos!‖

Esta mensagem sintetiza o discurso e até o sentimento de inquisidores e monarcas: a


ação inquisitorial implicava uma difícil tomada de decisão, ―que machuca a própria cabeça‖,
mas é feita em nome da fé cristã, ―luz da luz‖. Trata-se, enfim, de um atributo ―aguardado
(por todos os cristãos) através dos anos‖. Estes mitemas correspondem-se com os valores do
Tipo Ideal de Inquisidor Moderno e com os mitologemas do imaginário lusitano. O sinal que
anuncia a aguardada vitória indica também sua própria impossibilidade enquanto projeto
histórico de supressão de todas as outras formas religiosas em benefício do catolicismo.
Compõe, assim, a vocação nostálgica do impossível, mitologema presente em várias culturas,
além da portuguesa. Já o paralelo entre luz e coroa (11) aproxima-se da
hierarquização/institucionalização da fé, permitindo ao historiador desvendar o significado da

85
―mensagem‖ hierárquica presente no arco. Esta ―mensagem‖ é o significado político da
construção: o poder real alia-se ao poder inquisitorial na repressão à heresia apenas na medida
em que gravita em torno de sua origem religiosa. Quando este vínculo se quebrou, no final do
século XVIII, Portugal viu ―nascer‖ um tribunal subjugado pelo cetro monárquico. A inversão
está presente na Lei de 20 de maio de 1769, que ―eleva‖ o Santo Ofício à categoria de
Majestade, pretextando fortalecê-lo contra os jesuítas:

―EU ELREY. Faço saber aos que este Alvará virem: Que Eu fui informado, de que
ao mesmo tempo em que todos os Tribunaes de que se compõem a Minha Corte,
como depozitários da Minha Real Jurisdição (...) foram sempre, e são tratados por
Majestade (sic); e de que sendo o Conselho Geral do Santo Ofício hum dos
tribunais, mais conjuntos, e immediatos à Minha Real Pessoa, pelo seu instituto, e
ministerio; se introduzio o abuzo de se lhe dar o tratamento, que compete ao seu
Prezidente, como se pratíca com o Senado da Camara de Lisboa, que reprezenta o
Congresso do Povo; e isto sendo de mais a mais do Meu Conselho todos os
Deputados, que constituem o Corpo do mesmo Conselho Geral; exercitando nelle a
Minha Real Jurisdição, não só para os procedimentos Criminaes, e externos contra
todos, os que delinquem contra a Religião, mas também para a expedição das
Cauzas Civeis dos Privilegiados meios que gozam do seu foro; constando aliás, que
o sobredito foi hum dos meios como que as intrigas dos Denominados Jesuitas
pretenderam deprimir a authoridade do dito Tribunal do Santo Officio. E querendo
Eu abollir hum tão estranho abuzo: Hey por bem ordenar, que ao dito
Conselho Geral se falle, escreva, e requeira por Magestade; como se praticou
sempre inalteravelmente com os dous Tribunais da Meza da Consciencia, e Ordens,
e da Bulla da Cruzada pelo exercicio, e concurso de ambas as duas Jurisdicçoens: E
que sem este tratamento se não responda, nem defira a Carta, ou Requerimento
algum: Tendo entendido o mesmo Conselho Geral, que as Cauzas, e Negocios
pertencentes à Jurisdicção Temporal, de que lhes foi commetido o exercicio,
devem ser expedidos no Meu Real Nome, como o praticam os dous Tribunaes
assima referidos, e todos os mais de Minha Corte‖ (in Internet URL:
library.byu.edu/~rdh/eurodocs/port/inquiz.html) (Grifo nosso).

Pelo espaço de algumas décadas até a sua supressão, o Santo Ofício passou a
responder ao rei e a seus conselheiros. O movimento de mentalidade que ponteou esta
transformação será objeto do nosso próximo capítulo.

86
NOTAS DE REFERÊNCIA

(1) - Diferenciamos aqui o estigma social das noções correntes de identidade. O ―ser
cristão-novo‖ não representou uma atribuição de identidade, posto que sua caracterização
cotidiana foi impossível. O estigma precisou, para existir, das pesquisas genealógicas de
―pureza de sangue‖ e das pretensas condutas secretas captadas pela ―má fama‖ que
testemunhas atribuíam ao réu até ―por ouvir dizer‖.

(2) - A instrumentalização da mística purificadora da morte pelos inquisidores pode


estar na base de uma tendência posterior do catolicismo, que vemos, por exemplo, no
formalismo vazio a que os estudantes dos colégios católicos acorrem para agradar padres e
freiras em suas exortações para o respeito à ortodoxia da fé. Referido amplamente na
literatura e no cinema, este esvaziamento está presente em outras faces do cristianismo
contemporâneo. Neste caso, o formal teria substituído o místico.

(3) - Weber definiu a ética de responsabilidade. Os organizadores do livro Política,


Ciência e Cultura em Max Weber assim sintetizaram o tema: ―Toda conduta eticamente
orientada pode ser guiada por duas máximas diferentes: a convicção ou a responsabilidade. A
convicção não é a marca do homem político, cuja ação é avaliada não por suas crenças, mas
por seu resultado. Neste sentido, a ética apropriada ao campo político é a ética da
responsabilidade, pela qual o ator responde pelos resultados da ação. Contudo, não se pode
abolir da política uma cota de convicção. Quanto mais objetivo e racional o político, e quanto
mais livre de emoções apaixonadas – de ira e de amor –, mais se aproxima da ética da
responsabilidade e se afasta da ética da convicção‖ (Coelho, 2000, p.14 e 15).

(4) - Bethencourt (2000, p.226) refere-se às ―rupturas produzidas pelos perdões e


isenções concedidos pelo papa aos cristãos-novos portugueses entre 1536 e 1563 (...).‖

(5) - Referimo-nos aqui, principalmente, à intensidade das pressões externas


exercidas sobre os inquisidores nos períodos de consolidação (no século XVI) e de declínio
(após meados do século XVIII) dos tribunais inquisitoriais modernos na Península Ibérica.

(6) - Ao procurar incorporar a terminologia do imaginário a um conceito de tipo


ideal, buscamos sua permanência metodológica, ou seja, que possa servir a outras pesquisas
que venham a trabalhar temas inquisitoriais com um mínimo de correlação histórica.

(7) - Weber utiliza, nas duas citações que apresentamos em seqüência aqui, as
palavras selvagem e civilizado. Ressalte-se que, no estilo e no contexto da obra, o autor está
referindo-se ao discurso dos que acreditam que podem dominar e explicar o mundo pelo
cálculo e pela intelectualização/racionalização. É uma referência quase irônica à postura de
superioridade dos civilizados sobre os selvagens.

(8) - Povos tradicionais estudados, principalmente pela Antropologia, já conheciam


ervas e outras técnicas anestésicas. Entretanto, para os europeus medievais e modernos, este
conhecimento passado havia sido ―esquecido‖. Daí podermos nos referir a esta cotidianidade
da dor.

(9) - ―Diaíresis - Na dialética descendente platônica, o método da divisão em gêneros


e espécies para chegar à idéia. Vem do verbo diairéo: dividir, separar em peças e pedaços,
separar uma coisa de outra, dividir em muitas partes; distinguir, determinar, definir; donde:
explicar com precisão, esclarecer. O método da divisão é aquele da definição de uma idéia
separando-a de outras e colocando-a em uma espécie e em seu gênero próprio. Neste sentido,

87
além de significar divisão e separação (diairéo), implica também fazer uma seleção e uma
escolha (aíreses)‖ (Chauí, 1994, p. 345. Grifo nosso.).

(10) - Aqui, o paradoxo mostra-se em dois fatores. Primeiro, o vemos na busca do


domínio do tempo com a destruição de valores místicos opostos à fé católica. Ocorre que o
ascetismo católico que deveria impor-se ao tempo mundano é, também ele, temporal, pois tem
a marca histórica da Igreja medieval. Segundo, percebemos o paradoxo na expectativa da
morte purificadora, uma vez que o Tribunal, neste período, está permeado pelo mitologema
superação da morte, onde a purificação foi obstaculizada pela consciência coletiva dos atos
investigativos racionais que precediam a execução do réu.

(11) - O simbolismo da coroa é muito significativo, tendo relação cultural, inclusive,


com a pomba, que também aparece nas inscrições do arco dos inquisidores. ―A Bíblia
menciona coroas de honra, de alegria e de vitória (...). A coroa da vitória da antiguidade
recebeu no cristianismo o significado de signo da salvação alcançada; neste sentido, aparece
também em sepulturas etc. às vezes ligada ao monograma do Cristo ou à pomba e ao
cordeiro‖ (Lexikon, 1997, p.65). A coroa é sempre expressão de dignidade, de poder, de
consagração ou de uma situação solene excepcional. Na maioria das culturas, é usada pelos
soberanos. No judaísmo, a coroa de ouro em forma de diadema é também um signo da
dignidade pontifical. As coroas de deuses e reis eram consideradas pelos egípcios como
entidades mágicas poderosas, às quais se consagrava um culto e canções litúrgicas próprias.
No budismo e no hinduísmo, e também no islamismo, a coroa é considerada (às vezes
relacionada com a lótus) uma insígnia da elevação do espírito sobre o corpo. A Bíblia fala por
vezes da coroa; por exemplo: da coroa da vida ou da coroa da imortalidade, que simbolizam o
estado da salvação eterna‖ (Lexikon, 1997, p. 66).

88
CAPÍTULO II
DA PEDAGOGIA DO MEDO À PEDAGOGIA DO DESPREZO

89
―A Inquisição foi motivada e mantida pelo medo desse inimigo sem cessar
renascente: a heresia que parecia perseguir incansavelmente a Igreja.‖

(Jean Delumeau, 1989, p. 22)

―Desmascarar Satã e seus agentes e lutar contra o pecado era, além disso, diminuir
sobre a terra a dose de infortúnios de que são a verdadeira causa. Essa denúncia se
pretendia, pois, liberação, a despeito – ou melhor por causa – de todas as ameaças
que fazia pesar sobre os inimigos de Deus desentocados de seus esconderijos.
Numa atmosfera obsidional, a Inquisição apresentou tal denúncia como uma
salvação. Esta orientou suas temíveis investigações para duas grandes direções: de
um lado, para bodes expiatórios que todo mundo conhecia, ao menos de nome –
heréticos, feiticeiras, turcos, judeus, etc. –; de outro, para cada um dos cristãos,
atuando Satã, com efeito, sobre os dois quadros, e podendo todo homem, se não
tomar cuidado, tornar-se um agente do demônio. Daí a necessidade de um certo
medo de si mesmo‖

(Jean Delumeau, 1989, p. 32)

90
A Pedagogia do Desprezo é uma forma histórica de desmitologização, que será
vista, aqui, na iconografia inquisitorial, presente ao final deste capítulo, e nas análises do
direito e de processos inquisitoriais no capítulo III. Neste segundo capítulo, além de
apresentar os conceitos que estão presentes no título, encontramo-nos com a argumentação de
Jean Delumeau em História do Medo no Ocidente (1989), onde o historiador francês
desenvolve a idéia de uma Cristandade ameaçada, pressionada externamente pelos
muçulmanos e internamente pelas heresias. Em Portugal, o medo obsidional e a ação
inquisitorial encontraram ressonância na estrutura do imaginário lusitano e seus mitologemas,
que marcaram a identidade mais profunda do Império Português. O conhecimento da
historicidade do medo levou-nos aqui a propor uma nova classificação para as formas da
intolerância e também nos fez analisar a desmistificação do terror e o riso sarcástico nas
gravuras de Goya.

****

1.MITOLOGEMAS LUSITANOS

Comecemos o estudo dos mitologemas lusos com um escritor que bem representa o
imaginário português, autor que mergulhou na alma do seu povo: Fernando Pessoa. Diz ele:
―O entendimento dos símbolos e dos rituais simbólicos exige do intérprete que possua cinco
qualidades ou condições, sem as quais os símbolos serão para ele mortos, e ele, um morto
para eles‖ (Pessoa, 1996, p. 5. Grifo nosso). As qualidades são:

a) Simpatia: ―Tem o intérprete que sentir simpatia pelo símbolo que se propõe
interpretar. A atitude cauta, a irônica, a deslocada – todas elas privam o intérprete da
primeira condição para poder interpretar‖ (Pessoa, 1996, p.5).

b) Intuição: ―Por intuição se entende aquela espécie de entendimento com que se


sente o que está além do símbolo, sem que se veja‖ (Pessoa, 1996, p.6).

c) Inteligência: ―A inteligência analisa, decompõe, reconstrói noutro nível o


símbolo; tem, porém, que fazê-lo depois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição,
como poderia no exame dos símbolos, é o de relacionar no alto o que está de acordo com a
relação que está embaixo. Não poderá fazer isso se a simpatia não tiver lembrado essa
relação, se a intuição a não tiver estabelecido. Então a inteligência, de discursiva que
naturalmente é, se tornará analógica, e o símbolo poderá ser interpretado‖ (Pessoa, 1996, p.
6. Grifo nosso).

91
d) Compreensão: ―(...) entendendo por esta palavra o conhecimento de outras
matérias, que permitam que o símbolo seja iluminado por várias luzes, relacionando com
vários outros símbolos, pois que, no fundo, é tudo o mesmo‖ (Pessoa, 1996, p. 6).

e) ―A quinta é menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é a graça, falando a
outros, que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é o Conhecimento e
Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas, que são a
mesma da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo‖
(Pessoa, 1996, p.7).

********

O período que escolhemos para analisar as culpas de práticas mágicas nos processos
do Tribunal português com réus do Brasil é dividido em duas fases conceitualmente distintas.
Na primeira fase, que datamos, ainda que de forma maleável, da fundação do Santo Ofício até
o Regimento de 1640, a ação inquisitorial norteou-se pelo princípio que José Carlos de Paula
Carvalho chamou de Pedagogia do Medo (Carvalho, 1987). A esta Pedagogia
corresponderam Narrativas do Medo, das quais citaremos algumas no capítulo terceiro. No
período seguinte, que vai de 1640 até a supressão do Tribunal, a ação inquisitorial foi
paulatinamente adotando outro princípio, que chamamos de Pedagogia do Desprezo, conceito
didático que nós criamos para compreender as mudanças havidas no período – tempo longo –
imediatamente posterior à era do medo.

A Pedagogia do Medo tem raízes na tradição inquisitorial medieval. José Carlos


Carvalho dedicou ensaio ao tema Inquisição apontando este e outros caminhos. Antes que
outros autores o fizessem com continuidade, ele lançou, no I Congresso Internacional sobre
Inquisição (Lisboa e São Paulo, 1987), a noção de Pedagogia do Medo, que servirá aqui de
abertura para o tema a ser estudado também com as noções presentes na obra de Jean
Delumeau. Após argumentação semelhante a esta que fazemos, onde afirma que ―todo o
alicerce da lógica tomista-aristotélica serve ao ‘colonialismo cognitivo‘ da/pela cristandade
ocidental via Inquisição‖ (Carvalho, 1987, p. 65), o autor indica que a ação dos homens da fé
ocorre:

―(...) pela instauração de uma pedagogia do medo... do outro, que libera as pulsões
de agressividade inquisitorial: desde a simbólica do ‘bode expiatório‘ à purificação
coletiva pelos autos-da-fé, o Outro é exorcizado, é ‘tratada‘ a alteridade/a diferença
como ameaça da Sombra Coletiva.‖ (Carvalho, 1987, p. 66).

92
À Pedagogia do Medo opôs-se lentamente uma Pedagogia do Desprezo. Os
processos de vítimas da Inquisição analisados no terceiro capítulo dizem respeito ao
Desprezo. Trata-se da descrença em magias e bruxas, resultante da tendência
desmitologizadora. Nos processos com a marca desta nova Pedagogia, os réus passaram a
receber um tratamento de distância e desinteresse por suas culpas, que seriam conseqüência
de ignorância e falta de conhecimento religioso. As condenações perderam o sentido, pois este
tipo de crime passou a ser encarado como algo superficial, difícil até de provar, na medida em
que envolvem atos humanamente ―impossíveis‖, como voar ou transformar a natureza
material das coisas. Para a própria fé dos inquisidores, a concepção de desprezo tem fortes
conseqüências: ao negar a mística em seu valor ontológico, o inquisidor estava fazendo-o não
só para o réu, mas sobretudo para si. A morte, cuja concepção específica determina a
singularidade de uma cultura, passou a receber uma expectativa ―terrena‖, perdendo sua aura
purificadora.

Ver-se-á, no capítulo terceiro, que nós consideraremos os documentos inquisitoriais


como sendo prioritariamente – salvo exceções pontuais – fontes para o estudo da mentalidade
inquisicional em si. Verificamos que, em sua maioria, os processos são fontes menos
credenciadas para o entendimento de uma mentalidade outra que não tenha ocorrido
intramuros do Tribunal. Portanto, no capítulo seguinte, aplicaremos implicitamente os
conceitos de Pedagogia do Medo e Pedagogia do Desprezo à luz dos documentos
inquisitoriais, que trazem em si as obsessões de ambas as pedagogias. No Regimento de 1640,
identificamos obsessões semelhantes às localizadas nos processos inquisitoriais. Já neste
segundo capítulo, descreveremos o cenário histórico e os mitologemas da identidade cultural
portuguesa que nos permitiram elaborar os conceitos pedagógicos com a configuração
anteriormente indicada. Analisaremos a noção de intolerância, a concepção do medo na
cultura ocidental moderna e a expressão do desprezo nas metáforas iconográficas das gravuras
de Goya.

O entendimento analítico da ―sombra coletiva‖ de que nos falou Carvalho é possível


através do percurso que estamos trilhando. A aceitabilidade acadêmica das análises baseadas
no imaginário já é inconteste após a vertiginosa ascensão de campos hoje tão comuns na
historiografia, tais como: mentalidade, vida privada, simbolismo e Nova História. Mesmo
para quem discorda destas abordagens recentes, é mister perceber que o caminho para uma
História do Imaginário vem se abrindo com firmeza por via paralela, desde que o próprio Max
Weber colocou em dúvida as principais ilusões racionalistas das ciências humanas.

Para a atuação do Santo Ofício, a identidade portuguesa funcionou com


especificidades que nos interessam no entendimento da mentalidade obsidional, o qual norteia
a análise documental no último capítulo. Buscamos um texto clássico de Gilbert Durand, em
que o filósofo francês debruçou-se sobre a realidade lusitana. Trata-se de O Imaginário

93
Português e as aspirações do Ocidente Cavaleiresco (Durand, 1986) que foi em parte lido
pelo mestre de Grenoble nas comemorações das grandes navegações na cidade portuguesa de
Tomar. Deste trabalho durandiano, forte até em seu contexto de produção, partimos para a
compreensão das especificidades lusitanas da Inquisição.

Em paralelo ao afastamento dos mitos formadores inquisitoriais, que inspiraram os


primórdios da Inquisição, devemos analisar o significado deste esvaziamento do Tribunal no
contexto da cultura portuguesa. Representamos este movimento de mentalidade com as
noções de Pedagogia do Medo e Pedagogia do Desprezo. Verificamos que três dos
mitologemas formadores do imaginário português possuem componentes que constelam com
três dos valores do Tipo Ideal de Inquisidor Moderno. A consolidação dos valores
inquisitoriais foi possível dentro da adequação semântica destes aos componentes do
imaginário lusitano. Perceber esta teia de relações permite trabalhar com a singularidade
portuguesa da ação inquisitorial.

Uma noção que tem sido muito repetida na História dá como certa a relação entre
infra-estrutura e superestrutura, onde a primeira determinaria a segunda. Não precisaremos
buscar estas determinantes causais. Como já vimos anteriormente, esta busca não é pertinente
à teoria e ao método escolhidos. As narrativas cheias de imagens que compõem o imaginário
formador de um povo não são efeito ou causa: existem enquanto paradigma cultural. Porém,
mesmo que tais narrativas fossem apenas efeito de uma determinante ―infra-estrutural‖,
sabemos que ―eles são, de facto, persistentes – ‘coriáceos‘ como diria Roger Bastide – e que,
na ordem das induções, a permanência pode funcionar como causalidade‖ (Durand, 1986, p.
10. Grifo nosso).

Há quatro grandes grupos míticos lusitanos: O Herói Fundador vindo de fora; A


Vocação Nostálgica do Impossível; O Salvador Rei que espera, escondido, a hora do
regresso e A Transubstanciação dos Atos. Os verdadeiros mitos são as ―narrativas ou
situações imaginárias que se distinguem pela sua persistente redundância, traço que,
segundo Lévi-Strauss, caracteriza o mito‖. Os verdadeiros mitos são também aqueles que
―acompanham, como um fio permanente, a alma de um povo, e nos quais se objectivam os
acontecimentos‖ (Durand, 1986, p. 10). Resultado analítico similar – talvez menos
aprofundado – pode-se, talvez, obter com noções concebidas por Toynbee e Spengler (espírito
nacional, por exemplo). A análise mítica merece os cuidados dos trabalhos mais finos. Nesse
sentido, enfatiza Durand (1986, p.10):

―(...) nesta ‘légende dorée‘ das culturas, em que se repetem com monotonia os
‘mitologemas‘ (estruturas quase formais de um mito ou de uma sequência de
mitos) que, fora do seu contexto histórico-cultural adquirem o aspecto redutor
de estereótipos‖ é preciso ―saber de que modo uma cultura torna específico este

94
ou aquele tipo de narrativa, e constrói, por assim dizer, uma identidade sócio-
cultural imaginária‖ (Grifo nosso).

De forma similar à formulação de um tipo ideal, o mitologema é proposto com o


conhecimento histórico empírico do objeto.

Primeiro Mitologema: O Herói Fundador vindo de fora. Na tradição de


caracterização mítica através da Antiguidade Clássica, poderíamos buscar o fundador no herói
troiano que retorna ou, como ressalta Durand (1986, p. 11), em Dionísio, Hermes e Apolo.
Entre os cristãos, lembra a transcendência geográfica da política das Cruzadas e o papel de
santos fundadores que vieram de longe, como Pedro, Paulo e Santiago. Este último veio em
viagem fúnebre cheia de simbolismo fundante. Mas é em Portugal, com sua quádrupla
fundação, que Durand se concentra para sua argumentação. Citamos um trecho, enriquecido
pela reconhecida erudição do autor, em que este delimita o mitologema luso:

―Portugal não escapa, é claro, a este arquétipo do ‘fundador vindo de fora‘. Mas a
origem exterior e transcendente é aqui consideravelmente acentuada. Senão
vejamos: em primeiro lugar, um fundador pré-cristão – que Vasco da
Gama/Camões exalta nos Cantos I, II, III, VI e VIII de Os Lusíadas, e que figura
nas bandeiras que ornamentam o navio almirante no Canto VIII – Luso, portador
do tirso de seu pai, Baco, ele próprio um estrangeiro na Grécia: Luso tem aliás
como seu duplo outro herói epônimo, Lisa (Os Lus., Canto III), a que se segue de
imediato (Canto III, 25) uma redundância cristã: Henrique, ‘segundo filho de um
Rei de Hungria‘ (na realidade, Borguinhão), recebe do rei de Castela as terras
portuguesas e a própria filha do rei, Teresa. É o filho deste ‘húngaro‘ que conquista
Lisboa, Lisboa ela própria fundada por um estrangeiro (Os Lus., III,57), ‘facundo
por cujo engano foi Dardânia acesa‘, Ulisses. Mas é ainda de um modo mais
profundo que a sensibilidade imaginária de Portugal se enraíza, para lá desta
quádrupla fundação: o próprio Santo Fundador aquele que ‘Do Sacro Promotório
conhecido à cidade Ulisseia foi trazido‘ (III, 74) por Afonso, o conquistador de
Lisboa, é estrangeiro. É talvez necessário debruçarmo-nos um pouco sobre a figura
arquetípica deste santo espanhol (de Saragoça ou Valência), cujo corpo martirizado
foi trazido pelas ondas até ao ‘sacro Promontório‘. Trata-se de S. Vicente, o
‘vitorioso‘ diácono martirizado na época de Diocleciano, queimado numa grelha
como S. Lourenço, envolvido numa pele de boi com uma mó atada ao pescoço e
deitado ao mar, como S. Floriano, Santo Antonino de Pamiers ou S. Estanislau de
Cracóvia. Tal como o corpo de Santo Antonino é guardado por duas águias
brancas, o de S. Vicente, trazido pelo mar até ao Algarve, é guardado por dois
corvos gigantes – que irão figurar no brasão de Lisboa‖ (Durand, 1986, p. 12).

95
Este simbolismo engendra o espírito colonizador e fundador dos portugueses. Ser
salvo das águas é consagração iniciática das mais universais. Este ―mensageiro fundador
vindo do além absoluto, simbolizado pela navegação funerária com a proteção de aves
divinas‖ (Durand, 1986, p. 14) bem poderia ser função componente de uma mitanálise dos
navegadores portugueses modernos. O simbolismo das águas que foi desenvolvido por
Bachelard pode indicar o caminho da análise.

Na História de Portugal, se for possível relacionar mitologemas e fases históricas,


percebe-se que o período que vai da formação do Estado português – o primeiro Estado
central forte da Europa, antecipando a Idade Moderna – até a expansão colonial, é marcado
pelo Herói Fundador. Os demais mitologemas parecem submeter-se a este. Pela natureza do
próprio mito fundador, sua fase hegemônica no imaginário lusitano coincide com o ápice
político e geográfico do Império Português, um feito, aliás, que a Nação portuguesa não mais
repetiria, remetendo-nos a outra possibilidade analítica: a Saudade do Impossível, mitologema
que pode ter estado presente na tardia política colonialista portuguesa do século XX, quando
se mantiveram colônias remanescentes na África e na Ásia no limite do que foi militarmente
sustentável.

Para o estudo da Inquisição, este mitologema guarda uma certa distância. Mesmo
assim, observamos que a História da fundação e dos primeiros tempos da Inquisição está
ligada a uma tradição cristã de martírio. Um destes mártires, veremos ainda neste capítulo, foi
assassinado por ―hereges‖. Era, curiosamente, um forasteiro, mas não faremos análise por este
viés, pois demandaria mitocrítica (ver vocabulário teórico) de documentos da hagiografia
cristã, que fugiria ao propósito deste livro. Este primeiro mitologema nos serviu para entender
o cenário mais abrangente do imaginário lusitano. Os outros três mitologemas estarão ligados
a três valores do Tipo Ideal de Inquisidor Moderno.

Segundo Mitologema: A Vocação Nostálgica do Impossível. A rápida queda da


hegemonia ultramarina portuguesa e a crise organizacional do Império marcaram uma fase
que reputamos como hegemônica deste mitologema associado a um outro, que veremos
adiante (o Salvador Rei que espera, escondido, a hora do regresso). Nesta fase, deu-se a lenta
derrocada da colonização do Brasil, passando pela crise do açúcar, pelo esgotamento das
minas de ouro e pelas revoltas nativistas e nacionalistas, até chegar à nossa Independência em
1822. Este relacionamento entre a História e o mito – percurso que propomos às análises de
origem durandiana e similares – abre a porta do tempo numa conceituação que, sem ele,
poderia parecer ―anistórica‖. Tratando-se de um ―tempo mítico‖, livra-nos do peso das
tradicionais periodizações históricas superficiais, que são cada vez menos úteis quanto mais
avançam os novos paradigmas da ciência e, como indica a própria condição de
superficialidade, são também pouco profundas.

96
A nostalgia que possam ter os portugueses de hoje pelo passado de glória do seu país
pode aparentar inserir-se nas banalizações da imagem, tão comuns na pós-modernidade. Para
não nos deixarmos influenciar no trabalho científico pelo ambiente desmistificado que nos
cerca nestes anos de transição nos quais se finda o segundo e inicia-se o terceiro milênio (2),
devemos buscar na História o valor do mito. A fidelidade ao impossível é ilustrada por
Durand nas histórias de amores inacessíveis que se tornaram clássicas: a história de Inês de
Castro e as narrativas sobre Soror Mariana. Camões, em Os Lusíadas, ―consagra uma parte
significativa do Canto III‖ (Durand, 1986, p. 15) ao drama do filho de um rei que teve sua
amada, Inês, assassinada pelo pai e, ―numa nostalgia inconsolável‖ (Durand, 1986, p. 15),
partiu para a vingança. Já Soror Mariana teve que amargar na reclusão de um convento a
impossibilidade de realizar seu amor pelo francês Chamilly.

A Vocação Nostálgica do Impossível teve sua superação com a posterior


desmitologização da própria idéia da morte purificadora e transcendente, ícone de redenção e
libertação espiritual que até então movera os inquisidores por séculos. Em obra clássica, Jean
Delumeau (1989) demonstrou o caráter coletivo do fenômeno do medo no seio da civilização
cristã na Idade Moderna. Do medo veio a atitude obsidional que levou a uma agressividade
defensiva. Mesmo que para nós – hoje em dia – pareça estranho vincular o ato inquisitorial ao
sentimento de medo da civilização que o pratica, devemos evitar o mecanicismo explicativo
da História, para compreender o que se passou. A concepção da Idade Moderna como um
período de Renascimento e esplendor é tão empobrecedora quanto o simplismo do seu
contrário, que seria conceber a Idade Média como tendo sido a ―idade de treva s‖ que a
antecedeu. A época moderna foi marcada pelo medo do herege e pelo medo do invasor
muçulmano. Para Delumeau, ―a Inquisição foi (...) motivada e mantida pelo medo desse
inimigo sem cessar renascente: a heresia que parecia perseguir incansavelmente a Igreja‖
(Delumeau, 1989, p. 22). Além do medo inquisitorial do herege, havia o medo do invasor
muçulmano. Delumeau viu dois planos de medo: os espontâneos e os refletidos.

―A identificação dos dois níveis de medo conduz (...) a assentar face a face duas
culturas das quais cada uma ameaçava a outra e nos explica o vigor com que não só
a Igreja, mas também o Estado (estreitamente ligado a ela) reagiram, num período
de perigo, contra o que pareceu à elite uma ameaça de cerco por uma civilização
rural e pagã, qualificada de satânica. Em suma, a distinção entre os dois planos de
temor será para nós um instrumento metodológico essencial para penetrar no
interior de uma mentalidade obsidional que marcou a história européia no começo
da Idade Moderna, mas que cortes cronológicos artificiais e o sedutor termo
‘Renascença‘ por muito tempo ocultaram‖ (Delumeau, 1989, p.33).

Na tipificação de inquisidor moderno, vimos a Abjuração do Medo pela Imanência.


No imaginário do inquisidor, a lenta aceitação da imanência desmitologizadora da morte

97
corresponde à perda do medo e à superação, neste campo, da vocação nostálgica do
impossível. Todos os mitologemas possuem a capacidade de marcar a alma de um povo,
mesmo que nem sempre mantenham uma influência posterior sobreposta a outros
mitologemas. Ao admitirmos que uma dessas formações míticas perdeu parte de sua força,
não estamos admitindo seu desaparecimento nem a impossibilidade de reencontrá -la
fortalecida em outro momento da História.

Ocorre que as fontes históricas inquisitoriais e a própria historiografia que estuda a


História Portuguesa mostram que uma grande mudança de mentalidade ocorreu ao longo da
Idade Moderna em Portugal. Poderíamos levantar uma hipótese: à diminuição dos impulsos
de ―vocação nostálgica‖ e de ―salvador que regressará‖ corresponderia a ascensão de um
mitologema que denominamos provisoriamente de ―encenação pragmática da vida‖, que
tentaria abarcar o cidadão português de hoje em seu raciocínio esquemático, com forte
enrijecimento da linguagem.

Para prosseguirmos em nossa trilha pelo mundo inquisitorial, devemos delimitar o


significado, exclusivamente didático, dos conceitos de Pedagogia do Medo e Pedagogia do
Desprezo. Tanto na terminologia quanto na superficialidade com que refletem a História,
estes conceitos são de uso apenas formal, posto que aplicam para a Inquisição portuguesa a
noção de fundo que está contida nos valores do tipo ideal que propusemos e nos mitologemas
durandianos que apresentamos. Pensamos vencer um certo ―contentamento com o superficial‖
que marca a História. Jean Delumeau tentou fazê-lo lançando mão de vetores da psicologia.
Para o historiador francês, o medo pode ser compreendido ―do singular ao coletivo‖, da
psicologia individual ao quadro conjuntural da sociedade:

―Ao mesmo tempo manifestação externa e experiência interior, a emoção de medo


libera, portanto, uma energia desusada e a difunde por todo o organismo. Essa
descarga é em si uma reação utilitária de legítima defesa, mas que o indivíduo,
sobretudo sob o efeito de agressões repetidas de nossa época, nem sempre emprega
com discernimento‖ (Delumeau, 1989, p.23).

Terceiro Mitologema: O Salvador Rei que espera, escondido, a hora do


regresso. A perda da soberania nacional para a Coroa espanhola após a morte de Dom
Sebastião, intuição coletiva que se tornou fato logo depois, somou-se à decadência imperial
ultramarina, a que já nos referimos. Aqui, nossa hipótese admite que este Mitologema,
associado ao anterior, representa a História portuguesa no tempo longo: da União Ibérica até o
período pombalino, quando a própria Inquisição passou por reformas profundas. O desespero
coletivo – inconsciente? – presente no fluxo místico induzido pela espera do rei tem fortes

98
características religiosas, como demonstrou Jacqueline Hermann em No reino do Desejado
(Hermann, 1998).
Trata-se de mitologema universal presente, por exemplo, entre celtas, germanos e
persas (Durand, 1986, p. 16 e 17). Em Portugal, a presença deste mitologema não está restrita
a Dom Sebastião. Uma componente franciscana, ligada à vontade missionária, ao otimismo
transcendente e à sensibilidade fraternal – valores daquela Ordem – está associada à
divulgação, pelos frades, ―(...) das esperanças messiânicas do cirteciense calabrês Joaquim
de Flora. Pode mesmo falar-se, a propósito, do messianismo, de um ‘primeiro sebastianismo‘
– ‘avant la lettre‘! – veiculado pela espiritualidade franciscana.‖ (...) ―O próprio S.
Francisco era, para os seus discípulos – pelo menos... – o anunciador, o Segundo Precursor
dos novos tempos, da vinda do Espírito Santo‖ (Durand, 1986, p. 17).Dom Sebastião, jovem e
promissor rei da Nação portuguesa, um ―Rei Desejado‖ (Hermann, 1998, p. 73), desapareceu
no dia 4 de agosto de 1578, derrotado pelos muçulmanos na batalha de Alcácer-Quibir. O
corpo teria sido encontrado pelo monarca do Marrocos e enviado a Belém, onde está
sepultado. Mas o povo português não acreditou na morte trágica de alguém que havia sido tão
aguardado. A própria elite intelectual portuguesa vivenciou esta comoção em forma de
esperança, como no caso do Pe. Antônio Vieira, em sua História do Futuro (Vieira, 1998).
Vieira acreditava que ―Portugal é o reino que deve assumir a vinda do Reino de Deus‖
(Durand, 1986, p. 18).

Estas características guardam paralelo com um dos valores do Tipo Ideal de


Inquisidor Moderno que nós vimos no capítulo primeiro: A Superação da Morte. O
esvaziamento progressivo do mitologema do Salvador Rei levou ao fortalecimento deste valor
de tipo ideal. O distanciamento no tempo e no espaço, o desmascaramento de impostores
travestidos de D. Sebastião e a ascensão de novos monarcas foram fatores de esmorecimento
da largueza e profundidade da presença do mitologema na sociedade portuguesa. Mesmo que
episódios históricos tidos como sebastianistas tenham ocorrido por muito tempo adiante, a
desmitologização da idéia de morte – presente em toda a cristandade moderna – favoreceu a
abjuração imanente do medo enquanto valor coletivo em ascensão.

O ato de esperar a salvação tem paralelo no milenarismo. Delumeau também


dedicou-se com maestria a este tema em Mil Anos de Felicidade – Uma História do Paraíso
(Delumeau, 1997). Afirmando que ―modernidade e milenarismo não são necessariamente
excludentes um do outro‖ (Delumeau, 1997, p. 13), o historiador abre caminho para uma
aproximação entre um mito moderno que poderíamos chamar de ―Paraíso Perdido‖ (dentro da
idéia weberiana de desencantamento do mundo) – representando a nostalgia mística do
homem contemporâneo – e o mitologema que analisamos aqui do rei salvador escondido.
Afinal, também o milenarismo teve rasgos intolerantes, pois só é possível alcançar os mil
anos de felicidade com a conversão dos infiéis. Um cenário de aproximações entre o

99
sebastianismo, o milenarismo e a Inquisição pode ser imaginado para estudo futuro. Como
ainda não se trata de tema nosso, deixamos apenas a referência.

Quarto Mitologema: A Transubstanciação dos Atos. Nos mais diversos setores da


pesquisa científica ligada à área das humanidades, é possível dizer que cada povo desenvolve
identidade diferenciada que seria chamada por alguns de ―espírito nacional‖, por outros de
―alma de um povo‖ e até de ―ideologia da nacionalidade‖. Durand (1986) afirma a
especificidade portuguesa dizendo que ―o imaginário português encontra-se, mais do que
qualquer outro, sob o signo do além‖ (Durand, 1986, p. 21). Este mitologema – também
denominado Transmutação dos Atos – é o mais significativo do aspecto transcendente do
imaginário lusitano.

O fundamento deste mitologema está num dado hagiográfico produzido e


amplamente difundido pela forte tradição franciscana em Portugal. A transformação
milagrosa da água em vinho e do pão dos pobres em rosas está entre os milagres franciscanos.
Duas santas da Ordem Terceira, Santa Isabel e Rosa de Viterbo, possuíam os poderes da
transubstanciação associados a dons taumaturgos. Há uma longa tradição católica que associa
tais poderes a milagres divinos. As tentativas de oficializar esta tradição como sendo algo da
ortodoxia católica desaguaram no Concílio de Malines, em 1607, que chegou à seguinte
conclusão:

―É supersticioso esperar qualquer efeito de qualquer coisa, quando tal efeito não
pode ser produzido por causas naturais, por instituição divina ou pela ordenação ou
aprovação da Igreja‖ (in Thomas, 1991, p. 53).

Ou seja, atribuía-se a Deus e à Igreja o poder de realizar a transubstanciação. Em


Religião e o Declínio da Magia, Keith Thomas concluiu a este respeito:

―Portanto, não era supersticioso acreditar que os elementos podiam alterar suas
naturezas, depois de pronunciadas sobre eles as fórmulas de consagração: isso não
era magia, e sim uma operação efetuada por Deus e pela Igreja, ao passo que a
magia supunha o auxílio do Demônio‖ (Thomas, 1991, p. 53).

Devemos observar que estas crenças nas transformações da natureza das coisas não
são exclusivas de Portugal nem se iniciam por lá. A singularidade portuguesa parece ter
estado na politização e cotidianização deste mitologema. Já vimos que a missa passou por
mudanças na Idade Média. Um poder especial – até mágico e encantatório – foi atribuído aos
sacerdotes. Pelo menos entre os ingleses, que aderiram ao protestantismo, o processo de
desmitologização chegou mesmo a retirar do clero este atributo coletivo. Pensamos que
processo semelhante atingiu parte do clero católico na contra-reforma e influenciou a
Pedagogia do Desprezo entre inquisidores. Falta à nossa historiografia pesquisa documental

100
que possa comprovar esta hipótese. Para o mundo protestante, temos o depoimento do próprio
Keith Thomas, mesmo que claramente simpático à Reforma:

―Em comparação, a Reforma é comemorada, com justiça, por ter privado o


sacerdote da maior parte das suas funções mágicas. Os seus poderes de exorcismo
foram-lhe retirados e suas fórmulas de bendição e de consagração foram bastante
reduzidas. O fim da crença na transubstanciação, o abandono das vestes católicas e
a abolição do celibato clerical foram diminuindo, de forma cumulativa, a mística
do clérigo na comunidade. Ao mesmo tempo, o crescimento dos meios para a
educação dos leigos enfraqueceu o monopólio do clero sobre a erudição que,
mesmo antes da Reforma, já estava desmoronando. A aparente diminuição da
participação do clero na magia popular deve ser atribuída a essas mudanças. Mas a
mudança foi gradual e a associação, na mente popular, entre a magia e o sacerdócio
demorou para ser erradicada‖ (Thomas, 1991, p. 231).

Na memória portuguesa ficou a imagem de Isabel, a ―Rainha Santa‖. É uma História


hagiográfica que funda longa tradição no catolicismo. Na verdade, são duas santas
homônimas: Isabel da Hungria foi tia-avó de Isabel de Portugal, que nos interessa aqui. Isabel
de Portugal nasceu em 1271, filha de Pedro III, rei de Aragão. Já aos 12 anos casou -se com o
rei Dinis, de Portugal, tendo sido mãe do rei Afonso IV, que comandou uma revolta contra o
próprio pai. Isabel passou para a memória popular como caridosa – fundou orfanatos e
―postos de defesa da mulher‖ (Attwater, s/d, p. 160) – e pacificadora, tendo realizado a paz
com Castela por sua simples presença no campo de batalha como mediadora. Faleceu em
1336, em Estremoz, quando retornava da ―batalha‖. Milagres lhe são atribuídos: o pão
transformado em rosas ou o inverso: as rosas que viraram pão para saciar a fome dos pobres e
―o milagre quase crístico – tendo-lhe o seu confessor aconselhado a temperar a sua
penitência bebendo um pouco de vinho – da água milagrosamente convertida em vinho‖
(Durand, 1986, p. 19). O próprio Durand questiona: ―Qual o sentido que poderemos dar a
esta insistência franciscana em fixar a taumaturgia das rosas e do vinho, e em atribuí-la à
Rainha Santa, Rainha de Portugal?

―Penso que é necessário dar a estas transformações o sentido que o hagiógrafo dava
à lenda de Isabel da Hungria e da Turíngia: ver rosas em lugar do pão, ver o sangue
de Cristo em vez do vinho, é ‘ver com os olhos da alma‘ – ‘per interiores oculos‘ ‖
(Durand, 1986, p. 20).

Para a História do Brasil, que teve uma Princesa Isabel que teria sido homenageada
como Santa no nome de um belo teatro situado no Recife, o mitologema da transubstanciação
permitirá enriquecer a análise processual inquisitorial que faremos no próximo capítulo.
Levantaremos a hipótese de que a inexistência de um significativo aumento do número de

101
processos contra práticas mágicas em Portugal, no século XVII, foi fruto da maior
aceitabilidade na cultura lusa diante de práticas ―transubstanciosas‖ equivalentes ao feitiço.
Isto poderá ajudar a entender a inexistência de uma ―caça às bruxas‖ no Império português,
enquanto boa parte da Europa ardia em fogueiras.

Os quatro mitologemas interagem em um foco único: ―a paixão do além, o absoluto


‘exotismo‘ do imaginário‖ (Durand, 1986, p. 20). O Salvador oculto ecoa o Fundador vindo
de fora, pois o retorno do rei fundaria uma ―nova ordem‖. A Nostalgia do Impossível
demonstra a crença no Além absoluto, fruto da transubstanciação do mundo, tendo em vista
que a crença no impossível ultrapassa o cotidiano deste mundo e aponta para o ―além‖. Este
inter-relacionamento é restrito aos mitologemas. Propomos um quadro maior para servir de
esteio à compreensão do Santo Ofício e à análise particular de cada processo inquisitorial
apresentado adiante.

A pergunta a ser respondida é: como repercutem, nas fases históricas do Tribunal, a


ascensão e queda dos mitologemas lusos e dos valores do Tipo Ideal de Inquisidor Moderno?
Antes de demonstrá-lo na análise histórica empírica, um quadro maior, que relaciona
mitologemas, valores de tipo ideal e fases da História do Santo Ofício, podemos construir
para congregar os diversos fatores (ver Quadro 4).

O ato inquisitório estava vinculado, então, de forma ampliada e em profundidade, ao


imaginário lusitano. Diversos grupos sociais enfrentaram o Tribunal do Santo Ofício. A ação
dos ―homens da fé‖ recaiu fortemente, também, sobre outros grupos sociais, além dos
judaizantes, e repercutiu longamente em dimensões outras do cotidiano das sociedades em
que atuou. A estranha busca da ―primazia estatística‖, ou mesmo da unicidade judaica como
forma de dramatizar ainda mais a vitimização deste grupo pelo Tribunal, é um mito que, no
Brasil, vem sendo derrubado pelas obras de Laura Souza (1986 e 1993), Ronaldo Vainfas
(1986, 1989 e 1995) e Luís Mott (1993). Ao analisar as culpas de feiticeiros, de índios e de
pessoas com condutas morais ―pecaminosas‖, estes estudiosos abriram caminho para uma
nova noção de Inquisição. Os judeus foram maioria entre os réus da Inquisição portuguesa,
mas isto não permite supor uma exclusividade nem justifica a análise do Tribunal apenas
como um fato derivado da oposição entre cristãos e judeus.

Iremos além da análise de processos inquisitoriais de não-judeus. Ao dedicar uma


parte do capítulo terceiro à análise das narrativas do medo de bruxa em processos e
regimentos, o fazemos na busca da mentalidade inquisitorial subjacente às papeladas
processuais produzidas por notários a mando dos inquisidores. Partimos do princípio de que
os processos não representam fielmente a mentalidade dos inquisitoriados, mas dos
inquisidores. Nem precisamos de uma crítica documental mais apurada para perceber o óbvio:

102
há um arremedo do discurso da vítima que está presente no que foi ―reescrito‖ com o fim de
tornar-se um processo do Tribunal.

Os historiadores ainda não demos a esta simples constatação a atenção devida.


Costumamos ver os processos como fonte para a análise do ―pensamento da vítima‖,
restringindo aos regimentos e a alguns outros documentos a função de fonte histórica para o
estudo da mentalidade inquisitorial em si, mas isto não é suficiente. Tomemos como exemplo
o corte temporal que utilizamos aqui: nele, somente dois regimentos surgiram em Portugal.
Como captar as filigranas do imaginário inquisitorial neste período longo, marcado por
transformações na ação do Tribunal? Só é possível perceber este movimento de mentalidade
se somarmos aos textos regimentais os próprios processos inquisitoriais como fonte do
―pensamento do algoz‖.

Existem obras escritas fora do cárcere que são, provavelmente, muito mais próximas
da ―palavra da vítima‖ do que os próprios processos, como as do réu Hipólito José da Costa
(1974) e do ex-secretário do Santo Ofício Pedro Lupina Freire (in Vieira, 1951). Ao
estabelecer o quadro documental do trabalho, sabemos que vamos, por exemplo, determinar a
mentalidade inquisitorial quanto à culpa de feitiço e práticas mágicas. A menos que se trate de
um discurso muito singular, como o do moleiro estudado por Ginzburg (1987), a intervenção
de agentes entrepostos entre o que diz o depoente – muitas vezes sob tortura – e o depoimento
anotado torna os processos inquisitoriais no mínimo duvidosos para o conhecimento da
história de vida de cada réu e mesmo para o levantamento de uma História Social.

O drama individual enfrentado diante da Inquisição deve-se, em grande parte, à


forma que o processo assumia perante o réu. Ao contrário do Direito Moderno, que garante
prerrogativas ao cidadão acusado do crime, o Direito Inquisitorial tratava o súdito como
previamente culpado. As três características do processo inquisitorial são: a culpa recôndita, a
defesa auto-acusatória e o apenamento prévio. A culpa recôndita era chamada pelos
inquisidores de ―segredo‖. Por este princípio, toda e qualquer acusação que chegasse à Mesa
inquisitorial seria mantida em sigilo diante do acusado. Os inquisidores poderiam, então,
simplesmente inventar uma culpa – como possivelmente fizeram com Antônio José da Silva,
no século XVIII, e com Matias Guizanda, no século XIX – ou retirar de uma pequena
denúncia um enorme processo. Quando o prisioneiro era chamado a confessar suas culpas,
buscava de todo modo coincidir aquilo que falava com o que certamente estaria nas mãos dos
inquisidores. Neste ―teatro de sombras‖, o réu sempre perdia, pois acabava por fazer uma
defesa auto-acusatória. A uma culpa inicial somavam-se outras que ele confessava de viva
voz. O Tribunal não trabalhava com a hipótese da inocência do acusado. Toda a ação dos
juízes inquisitoriais se fazia no sentido de alimentar a papelada processual com novas
confissões e acusações, das quais poderiam surgir outras prisões.

103
Para entendermos a lógica processual da Inquisição, desenvolvemos aqui um paralelo
simples que servirá ao leitor como introdução ao tema. O cidadão contemporâneo está
habituado a pensar numa justiça que segue a linearidade de evolução dos processos. O nosso
direito de tradição romana garante uma cronologia na construção do ato judicial. No caso, por
exemplo, do crime comum, primeiro abre-se o processo a pedido de uma autoridade pública
ou de um advogado; em seguida faz-se o levantamento das provas e dos indícios, partindo-se
de investigações. Só então, é possível caracterizar um cidadão como réu. Depois de tudo,
verifica-se, com o apoio de jurados em um ato público de julgamento, a culpabilidade ou não
do acusado. O réu cumprirá pena após o desfecho legal deste trâmite processual. Vê-se que há
– na letra da lei – uma evolução linear na qual se pode confiar para uma defesa civilizada do
acusado. Mesmo assim, estão no dia-a-dia da Justiça contemporânea diversas formas
disfarçadas de subverter esta neutralidade. Agora, vejamos o Tribunal inquisitorial.

Na Inquisição, a temporalidade linear não ocorre. Podemos lembrar que na justiça


comum daquela época tais princípios também eram pouco reconhecidos. Mas é preciso firmar
este raciocínio para que o leitor tenha clareza no entendimento dos documentos inquisitoriais.
Não havendo uma ―lógica de evolução do processo‖, a culpa, a defesa e o apenamento não
precisam vir nesta ordem. Da leitura dos processos, depreendemos que os três atos
processuais existem em paralelo desde o momento em que o infeliz adentra a prisão
inquisitorial até o momento em que recebe a sentença (1). No período de atuação do Tribunal
do Santo Ofício em Portugal prevaleceu a noção absolutista de que a fidelidade ao rei e à
religião era uma exigência política que tornava os dois princípios inseparáveis. Rei e Igreja
queriam que se mantivesse este princípio, benéfico para ambos. No século XIX, a Igreja
Católica pareceu muitas vezes atônita diante da necessidade de se separar dos Estados
Nacionais.

No século XVIII, ainda se acreditava que a presença de uma outra religião poderia
enfraquecer o Estado. Portanto, a autoridade de um rei estava diretamente vinculada à
obrigatoriedade de seus súditos comungarem da mesma fé. O enfraquecimento da religião do
rei era assunto de Estado. A Inquisição atuou dentro desta crença durante toda a Idade
Moderna. Esta mesma noção provocou os mais diversos conflitos na Europa. As guerras de
religião na França do século XVII, a repressão dos luteranos sobre os anabatistas na
Alemanha do século XVI, os conflitos entre o Parlamento e os Stuart na Inglaterra moderna e
a imposição do protestantismo aos irlandeses são alguns episódios que carregam em si a idéia
de que a fé seria a base do poder.

A supremacia simbólica da fé sobre o poder financeiro está no bojo de todos os


confiscos inquisitoriais. Neste ato, a elite política e religiosa de Portugal impunha
principalmente aos judeus – cuja riqueza não se originava da terra, mas do comércio e da
agiotagem – a dimensão religiosa do exercício do poder. De um ponto de vista estritamente

104
econômico, esta imposição levou Portugal a um conhecido atraso em relação às potências
européias da época. Este fator trouxe milhares de judeus para o Brasil, pois aqui – ao
contrário do que ocorria na Corte – os cristãos-novos, e mesmo os judeus, podiam obter a
propriedade das terras. Como a terra era o principal símbolo de poder, ao lado da fé e do
sangue nobre, os judaizantes vieram para cá certamente em quantidade elevada. Com eles,
para impedir um poder paralelo nas distantes terras coloniais, veio a Inquisição.

Outra decorrência do privilegiamento das perseguições inquisitoriais contra os não-


judeus é captar a pluralidade racial do que Darcy Ribeiro (1978 e 1997) conceituou como
Processo Civilizatório. Neste sentido, nosso corte espacial é, também, um corte analítico.
Analisamos o Brasil entre o Regimento de 1640 e o fim das atividades inquisitoriais. O estudo
de amostras de processos inquisitoriais será confrontado com o estudo dos Regimentos
inquisitoriais de 1640 e de 1774. O conceito de América Portuguesa, como já percebeu o
leitor, foi deixado de lado, preferindo-se admitir a especificidade da formação cultural
brasileira desde a colonização. Talvez o eurocentrismo presente na idéia de uma América
Portuguesa só se aplique a provisórios ―guetos‖ elitistas mantidos por reinóis que logo
retornaram ao Reino. É possível que se possa falar, por exemplo, de uma América Inglesa,
dado o imenso fosso que os colonizadores britânicos estabeleceram entre eles e o restante da
população de suas colônias. Para o Brasil, tal conceito seria empobrecedor. O domínio
político colonial que subjaz à idéia de ―América Portuguesa‖ não abarca o sincretismo sócio-
cultural-religioso que dominou a colônia. Mesmo marcados pelo seu formalismo ordinário, os
processos inquisitoriais oriundos do Novo Mundo tiveram alguma singularidade em função
desta origem.

Talvez nossas academias ainda se culpem pelos próprios arroubos de independência


mental em relação ao colonialismo eurocêntrico do nosso pensamento. A antiga definição do
Brasil como junção de três raças (brancos, negros e índios, nesta ordem) nada nos dirá se não
pensarmos nestes grupos como diversidades e não como unidades. A ação inquisitorial
investiu contra esta diversidade para suprimir e homogeneizar as diferenças sob os auspícios
da sua ortodoxia. A ortodoxia processual foi parte desta investida, impedindo que aflorassem
mais claramente as singularidades culturais coloniais. A desmitologização da Cristandade
trazida para estas terras pelos inquisidores parte da supressão dos particularismos como
forma de impor o unitarismo cristão. Na colônia brasileira este processo ganha especificidades
que esperamos ter desvendado parcialmente.

A desmitologização tem expressão cotidiana no ato investigativo, pois somente uma


justiça parcialmente laica ou ―mundana‖ desenvolveria seus processos tendo a investigação de
fatos comprováveis como base de sua ação. É imperioso admitir que, naquela época, a tortura
estava legal e oficialmente inclusa no ato investigativo. Por outro lado, a coação sobre o réu

105
ou sobre a testemunha era vista como uma forma de quebrar-lhes a resistência: um caminho
para se chegar à verdade. Os dilemas comprobatórios puseram fim à onda de caça às bruxas
na França quando magistrados ―modernizadores‖ venceram o longo debate jurídico em torno
da possibilidade ou não de se ―provar‖ a existência do crime de magia e correlatos (Mandrou,
1979). Nesse sentido, transcrevemos um trecho elucidativo de Francisco Bethencourt,
extraído de um texto pouco conhecido do autor:

―O processo por inquérito representa uma nova capacidade de iniciativa do poder


judicial, que deixa de estar limitado ao julgamento dos casos apresentados, para
proceder à averiguação dos factos. É neste contexto que surge igualmente a
substituição da ordália pela tortura: repudiada a primeira forma de resolução dos
casos graves e de prova difícil (v.g. adultério, homicídio ou heresia) como ‘tentar a
Deus‘, a tortura surge como a resposta possível, assente na transferência da noção
central de confissão, entretanto difundida ao nível da prática religiosa, para a
prática judiciária. Numa palavra, a insistência dos juízes da fé no termo
‟Inquisição‟ correspondia, entre os séculos XIII e XVI, à tentativa de reclamar
(ostentar) os desenvolvimentos mais recentes do processo penal‖ (Bethencourt,
in Centeno, 1993, p. 105. Grifos nossos).

Se os inquisidores orgulhavam-se de sê-lo, não era sem razão: abriam caminho para
um novo processo penal, antepassado do que se utiliza hoje em dia no Ocidente Cristão.
Bethencourt nos levou a desenvolver a nossa análise sobre o próprio termo que denomina o
Tribunal: Santo Ofício. O historiador português afirmou que ―os historiadores utilizam
descuidadamente esta designação sem a questionar‖ (Bethencourt in Centeno, 1993, p. 105).
Analisando uma ambigüidade de caráter soteriológico que está sob esta constatação,
aprofundaremos, na parte seguinte deste capítulo, o tema do medo, que permeia a busca do
significado desta utilização descuidada. O próprio termo Santo Ofício carrega em si o
paradoxo entre a purificação pela fé (Santo) e a prova investigativa (Ofício). O Tribunal viveu
estas duas faces de sua atuação tentando conciliá-las através da santificação e canonização de
seus mártires, na busca de impedir a desmitologização através de uma tentativa de ―overdose‖
simbólica.

********

2.MENTALIDADE OBSIDIONAL E SOTERIOLOGIA

A mentalidade obsidional que influenciou parte do medievo e toda a Idade Moderna


repercutiu no batismo do Tribunal como um santo ofício. Na santificação de um ofício
intolerante, está a busca de consagração de um caminho único para a salvação das almas: a

106
soteriologia inquisitorial, que realiza à força a ascese católica tradicional. Segundo Aurélio
Buarque de Holanda, soteriologia é uma palavra que vem do grego sotérion, salvação,
significando ―parte da teologia que trata da salvação do homem‖ (Holanda, 1986, p. 1326).
Fazemos uso do termo para referir adequadamente o salvacionismo inquisitorial na lógica do
catolicismo. Talvez fosse possível afirmar que uma religião de Deus único e ―povo escolhido‖
– na influência judaica – teria que ser intolerante. Não entraremos no mérito desta questão,
que nos parece mais afeita à Teologia que à História, sendo que esta pode se utilizar da
primeira para a análise do dado. O posicionamento weberiano que nos inspira recusa todo
determinismo, principalmente aqueles que caem no generalismo. O ―cartesianismo‖ dos
teólogos, além do mais, não é objeto deste trabalho.

O movimento que vai do medo ao desprezo foi antecedido pela clássica luta que
marcou a História da Cristandade: entre as forças centrífugas que buscaram desagregar o
cristianismo e as variáveis centrípetas que lograram vencer e agregar a civilização. As
heresias medievais, cujas características reagregadoras – ou desagregadoras – nos abstemos
de comentar mais profundamente neste trabalho de temática outra, tiveram importante papel
na formação de uma mentalidade de medo obsidional defensivo que fortaleceu a Inquisição.
No Quadro 5, podemos ver a oposição entre as duas tendências.

Magno Máximo, general romano que usurpou o trono ao Imperador Graciano, teria
sido o responsável pela execução do primeiro herege na História do cristianismo no ano 385.
Porém, Prisciliano – o herege executado – foi decapitado ―por acusação de praticar a magia,
não por ser herege‖ (Frangiotti, 1995, p. 110) (3). Sacerdotes católicos que atuavam na corte
de Máximo teriam sido os responsáveis pelas acusações que levaram à pena capital um
homem que já tivera suas teses condenadas.

―Poderíamos elaborar uma súmula de seu ensinamento, nos seguintes termos


conforme a condenação emitida pelo concílio de Braga: 1. O Filho de Deus não
existia antes de nascer de Maria; 2. Jesus Cristo não nasceu na verdadeira natureza
de homem; 3. os anjos e as almas humanas são emanações de substância divina; 4.
as almas humanas pecaram num lugar celestial onde habitavam e, por isso, são
precipitadas dentro dos corpos na terra; 5. o demônio não foi criado por Deus, nem
foi primeiramente um anjo de luz, mas saiu do caos e das trevas; 6. as almas e os
corpos humanos sofrem a influência dos astros; 7. a carne não ressuscitará e ela
não é a criação de Deus, mas dos anjos maus; 8. o matrimônio é mau e a procriação
dos filhos condenável, porque é o demônio quem forma o corpo no seio da mãe‖
(Frangiotti, 1995, p. 108).

O exemplo de Prisciliano nos permite ilustrar o caráter opositor entre as tendências


centrífugas e centrípetas. As heresias, movimentos inversos ao da unidade cristã propalada

107
originalmente pela Igreja, buscam numa ―ortodoxia da palavra‖ as referências para a
contestação ao teor do paradigma tradicionalmente hegemônico; agarram-se em citações e
detalhes, geralmente de origem bíblica, para propor uma ―purificação dos atos‖. Dito assim,
tal conflito fica reduzido a uma luta ideológica, como as que Roque Frangiotti denominou, no
subtítulo de seu livro, como sendo ―conflitos ideológicos dentro do cristianismo‖ (Frangiotti,
1995). Para os padrões civilizatórios do mundo cristão, contudo, a vitória dos hereges teria
significado, na verdade, um profundo reordenamento social, que até poderia ser totalmente
desagregador. Não se tratou, portanto, de ―diferentes projetos de civilização‖, mas da
manutenção ou não do impulso civilizador que sucedeu ao do Império Romano.

O catolicismo, por sua vez, agregou as experiências históricas, tornando-se – como


virtualmente o foi – um paradigma civilizatório. A purificação provinha, então, dos exemplos
e direcionamentos da hierarquia clerical. Não deixaremos de ressaltar, contudo, que o
paradigma foi tantas vezes esquecido quantas foi a hierarquia capaz de abandonar seu papel
pedagógico em nome de interesses menores. Na Idade Média, não se tratava, porém, de um
falseamento ou de um embuste, como chega a fazer crer uma ―análise histórica‖ maniqueísta
presente também nas artes (literatura e cinema, por exemplo). O movimento histórico que
levou à perseguição aos hereges teve significado em si, muito além da mera vontade de poder
da Igreja. Uma versão histórica simplória talvez faça o ―gosto da platéia‖, mas não é capaz de
explicar tendência tão profundamente arraigada na História ocidental.

A imagem das forças centrípetas, com as setas voltadas para o centro, bem representa
a busca de coesão que norteou os cristãos em seu sonho de unidade. O unitarismo (uma só
Igreja e um só cristianismo unindo todos os homens) é um desejo inerente a esta fé. Há,
porém, uma contradição sempre repetida na História da cristandade: dois tipos de soteriologia
são possíveis. A salvação do crente não está afeita apenas ao caminho ortodoxo. Nã o existe
uma ordem consensual em torno do caminho para a salvação: não há, por exemplo, uma casta
que se possa dizer descendente de profetas, como ocorre para muçulmanos. À soteriologia
unitarista cristã correspondem várias outras, particularistas, que se anunciam igualmente
cristãs.

Este tema está marcado por tabus, alguns dos quais vimos apontando ao longo deste
livro. Neste caso, o tabu está em associar a imagem dos inquisidores ao ato da salvação das
almas, tão caro ao Ocidente cristão. O tabu não resiste a uma equilibrada utilização de
método: apontar o papel do agente histórico e de ―seus‖ valores não significa julgá-lo positivo
– nem negativo – e também não deve nos levar a uma expectativa de julgamento. Ao ponto
que avançamos, o leitor terá notado que o método vai permitindo evitar julgamentos
exatamente por trabalhar com mitologemas e valores, o que o faz prescindir de colocar no

108
centro da análise as disputas e interesses em torno da ação soteriológica do Tribunal. Este
despojamento alivia parte das tensões do fazer científico e clareia o olhar.

A aplicação intolerante e excludente da soteriologia cristã por parte dos inquisidores


não nos autoriza a buscar a dramatização dos gestos inquisitoriais como forma de comover o
leitor e embasar alguma análise que necessite desta ―emoção‖ para validar-se. Se tomamos
este caminho, a própria intolerância aparece como um monstro disforme e incompreensível a
ser combatido pelo gládio e pela espada, como os que a psicologia infantil detecta nos
desenhos das crianças. Esta atitude em nada ajudaria, por exemplo, àqueles, dentre os leitores,
que desejarem combater a intolerância. A estes faz-se mister trilhar os complexos caminhos
que levam – ou levaram até hoje – a História a viver constantes ―espasmos‖ de intolerância.
Talvez este tabu caia por terra se o historiador admitir desde cedo que o ato intolerante é
ambíguo e, como no mito de Prometeu, carrega em si o anseio de justiça (ver conclusão).

No pluralismo de soteriologias que marcou a História cristã, a Inquisição foi, depois


da oficialização do cristianismo como a religião do Império Romano, o maior dos seus
movimentos agregadores e centralizadores. Num processo extremamente traumático, a
soteriologia inquisitorial ajudou a vencer e submeter uma concepção espiritualista tradicional
no cristianismo. Em sua fase medieval, bem antes de erguer-se como embuste na segunda
metade da Idade Moderna, teve papel evangelizador e até civilizador, enquanto partícipe,
como já vimos no capítulo anterior, da consolidação da Cristandade. Claro está que
poderíamos julgar negativa a civilização que adveio deste processo, bem como o método
intolerante para alcançá-la. Entretanto, não temos como negar que os inquisidores tiveram um
papel preponderante para o conhecimento e expansão de padrões comportamentais
minimamente homogêneos em todo o mundo ocidental, além de terem sistematizado uma
cultura jurídica singular, da qual já vimos falando e sobre a qual iremos aprofundar temas
específicos no capítulo seguinte.

Mesmo quando o ato inquisitorial foi sendo desmistificado, o valor do


aprimoramento jurídico permaneceu. Já a autenticidade da comunicação de padrões
comportamentais sucumbiu diante das críticas desferidas contra o Tribunal em função da
degradação por que passou o clero que o compunha, sempre em busca de ―fazer carreira‖ e de
exercer o poder ―simbólico‖ do Santo Ofício. Uma ―soteriologia histórico-temporal‖ filiada à
componente valorativa que denominamos de Abjuração do Medo pela Imanência, indutora de
projetos inconfessáveis de poder, tomou a cena à Ascese Católica Tradicional,
hegemonizando-a (ver capítulo 1). Esta ―soteriologia sem transcendência‖ é um embuste, pois
mantém a exterioridade do ato místico, mas restringe-se, agora, ao jogo simbólico do poder,
que retratamos no capítulo anterior. A questão que se impõe aqui é determinar os limites do

109
embuste. Descartamos por completo um total esvaziamento místico, que seria não apenas
improvável como insustentável.

A superação do medo obsidional levou ao desnudamento do ―medo de bruxa‖ e, por


conseguinte, à desvalorização do seu oposto cristão típico: o medo de Deus, grandemente
incentivado pelo clero depois que a Igreja se aproximou do Estado ainda na Idade Média.
(Esta aproximação com o Estado gerou um medo de Deus que difere do temor judaico-cristão
original – referente às hierarquias celestes ―universais‖ –, pois tenciona, pelo terror, impor o
respeito às hierarquias terrenas, clericais ou não.) Uma fé mais ―pensada‖ que ―vivida‖ foi o
cenário da Pedagogia do Desprezo. Ao mesmo tempo, no mesmo turbilhão crítico, a
intolerância deixou de ser aceita sem restrições pela grande maioria das pessoas em Portugal e
Espanha. A unanimidade ruiu e, com ela, o significado purificador da Inquisição. A atuação
inquisitorial no Brasil coincide com a transição do Medo ao Desprezo, daí a singularidade e a
riqueza dos processos aqui engendrados. O período do ―desprezo pelas crenças dos
ignorantes‖ demonstra uma mudança de sentido e significado na própria ação intolerante. Para
compreender esta afirmativa, lançamos mão de uma classificação dos tipos de intolerância,
esboço do que pretendemos, no futuro, propor como uma teoria geral da intolerância.

Partimos da constatação de que não se pode simplificar todas as formas de exclusão e


perseguição como se fossem um único fenômeno histórico ou social. Por exemplo, entre as
penas aplicadas pelo fundamentalismo muçulmano dos nossos dias e a Inquisição espanhola
do século XV, vão diferenças que se há de respeitar para a devida compreensão de ambos os
fenômenos. Buscamos, porém, o elo maior ou, se preferirem, as correntes mais profundas
deste movimento. Neste sentido, levamos em conta que a intolerância se estende ao longo da
História nas mais variadas formas e razões. Fosse a intolerância algo binário ou perfeitamente
antagônico a um conjunto de valores inspirados pela razão humana ou substantiva, para citar
terminologia weberiana consagrada (Rouanet, 1987, p. 12), seu combate seria fácil e os
argumentos para a controvérsia teriam um poder hercúleo. Mas não é isso que ocorre. Com o
objetivo de captar esta complexidade, propomos uma classificação que busca abarcar este
amplo leque das incursões da/na intolerância:

a) Intolerância Guerreira: Forma imemorial que se baseia na busca direta das


riquezas do adversário. Comum nas guerras, pode envolver as mais diversas acertivas,
justificá-la e dar-lhe sustentação moral e histórica. Mas seu objetivo central é a pilhagem e o
botim, com a conseqüente eliminação do perdedor por escravidão ou assassinato.

b) Intolerância Civilizatória: Para compreendê-la é preciso retirar o juízo de valor


da palavra civilizatória, pois, ao utilizá-la, nós não a conceituamos como melhor nem
superior. A Intolerância Civilizatória busca a supressão das diferenças pela imposição de um
paradigma que, em sua lógica interior, se considera e se diz superior e que só pode ser assim

110
analisado pelo historiador em função de valores auto-atribuídos pelo próprio agente histórico.
A submissão do vencido ocorre aqui por sua inclusão/conversão para uma outra ordem mental
e valorativa – diversa e oposta à sua original –, onde aqueles que ingressam no ―novo‖ quadro
de valores são tidos eles mesmos como o ―botim‖ alcançado. É uma intolerância escatológica,
pois o seu projeto ―histórico‖ determina sua própria superação, tendo em vista que o objetivo
primordial é a conversão de todos os homens aos preceitos hegemônicos. Ao chamar à
obrigatoriedade disciplinar pessoas que fazem parte do mesmo grupo ou do mesmo universo
político-religioso, a intolerância busca legitimar-se no quadro de medo obsidional que
veremos adiante. Os processos inquisitoriais obedecem à lógica desta forma de intolerância,
posto que todos eles devem terminar – de uma forma ou de outra – na metáfora escatológica.

c) Intolerância Totalitária: Típica do século XX, a Intolerância Totalitária marcou


os regimes de força do período com a aplicação de um princípio inverso ao da Intolerância
Civilizatória. A coesão social, neste caso, é tentada através da vivência de antagonismos
irreconciliáveis, onde não se privilegia a conversão nem qualquer forma da catequese. Ao
contrário da anterior, esta forma de Intolerância é tendencialmente unitarista e sua ―ideologia‖
é a da própria exclusão física do outro. No Nazismo, por exemplo, nunca ficou totalmente
claro se haveria um ―projeto de sociedade‖ que fosse possível sem a guerra, sem a censura,
sem os guetos e sem a rígida disciplina formal. No futuro, levantaremos a hipótese de que o
totalitarismo teria surgido de uma derivação do ato civilizatório, confundindo os meios com
os fins. Neste trabalho, porém, a definição de Intolerância Totalitária só nos interessa na
medida em que nos permite demonstrar que consideramos os episódios do século XX distintos
– ainda que assemelhados – dos episódios inquisitoriais.

Os dois últimos tipos de intolerância são teleológicos, pois, ao propor-se realizar um


―projeto‖, encaminha-se também para tentar ―congelar‖ a História, buscando dominar o tempo
e negar a morte. A dinâmica dos grupos humanos, de maneiras diversas, nega esta paralisia,
mas convive – às vezes longamente – com seu mito hegemônico. Desvendar possíveis
estruturas que determinam o estabelecimento das ações intolerantes seria papel da ciência que
permitiria, pelo menos, a caracterização clara do processo. Por enquanto, nem este, que seria
um instrumento de escolha para os indivíduos, está desvendado. No caso da Inquisição, o
fenômeno do medo obsidional será caracterizado a seguir como um agente detonador.

Como antecessora do processo de racionalização e desencantamento que marca o


mundo contemporâneo, a Inquisição foi veículo da expressão do medo. Levemos em conta
todos os significados amplamente conhecidos para o termo obsidiar: cercar, espiar, molestar e
causar obsessão. Entre os séculos XIV e XVII, nos mostra Delumeau (1989, p. 32), houve um
―acúmulo de agressões‖ contra as populações do Ocidente. Nas palavras e imagens da época,

111
vemos o testemunho do medo de uma civilização que se sentiu cercada e molestada. O
próprio historiador francês teve essa percepção:

―Constituiu-se ‗um país do medo‘ no interior do qual uma civilização se sentiu


‘pouco à vontade‘ e povoou de fantasmas mórbidos. Essa angústia, prolongando-
se, arriscava-se a desagregar uma sociedade, assim como pode fender um indivíduo
submetido a estresses repetidos. Podia provocar fenômenos de inadaptação, uma
regressão do pensamento e da afetividade, uma multiplicação das fobias; introduzir
uma dose excessiva de negatividade e de desespero. A esse respeito é revelador ver
com que insistência livros piedosos e sermões combateram entre os cristãos a
tentação do desencorajamento nas proximidades da morte: prova de que essa
vertigem do desespero realmente existiu numa escala bastante ampla e de que
muita gente experimentou um sentimento de impotência face a um inimigo tão
temível quanto Satã.‖ (...) ―Desmascarar Satã e seus agentes e lutar contra o
pecado era, além disso, diminuir sobre a terra a dose de infortúnios de que são a
verdadeira causa. Essa denúncia se pretendia, pois, liberação, a despeito – ou
melhor por causa – de todas as ameaças que fazia pesar sobre os inimigos de Deus
desentocados de seus esconderijos. Numa atmosfera obsidional, a Inquisição
apresentou tal denúncia como uma salvação. Esta orientou suas temíveis
investigações para duas grandes direções: de um lado, para bodes expiatórios que
todo mundo conhecia, ao menos de nome – heréticos, feiticeiras, turcos, judeus,
etc. –; de outro, para cada um dos cristãos, atuando Satã, com efeito, sobre os dois
quadros, e podendo todo homem, se não tomar cuidado, tornar-se um agente do
demônio. Daí a necessidade de um certo medo de si mesmo‖ (Delumeau, 1989, p.
32).

Segundo um dos maiores mitólogos do século XX, Joseph Campbell, ―a experiência


religiosa exige, como ponto de partida, que renunciemos ao controle sobre nossas próprias
vidas‖ (in Fernández-Armesto, 1996, p. 159).Isto nos leva a um ponto crucial para a
Inquisição: a propagação da ascese inquisitorial, que já foi referida no capítulo anterior,
necessita desenvolver em cada cristão o autodomínio ou domínio sobre si. Trata-se de um
ascetismo intramundano, típico da contra-reforma católica, se levarmos em conta a
classificação de Gláucio Veiga (Veiga, 1959) em Da Racionalidade da Conduta Religiosa
como Conduta Política. O ascetismo intramundano (innerweltlich) busca inserir-se no mundo
para ―modificá-lo com a sua operatividade‖, como fez, em linhas gerais, a Reforma
Protestante , enquanto o extramundano é o que ―foge do mundo‖ (Veiga, 1959, p. 10).

A ascese inquisitorial pretendeu ―denunciar o satanismo‖, o que a levou, em última


instância, a desmistificá-lo, pois para haver o medo é preciso que haja quem acredite nele. No

112
século XV, no Malleus Maleficarum, a heresia já aparecia identificada com a imaginação e
com a fantasia, um devaneio de espíritos soltos sem qualquer direcionamento cristão. Esta
curiosa identificação, em trecho que cita Aristóteles, São Tomás e o filósofo Avicena para
embasar a argumentação, admite a mesma antítese moderna: fantasia/imaginário X
consciência/razão. Àquela altura, o exílio do imaginário cristão e das origens místicas da
cristandade já tornara-se objetivo dos inquisidores. Vencer a heresia e o satanismo seria
derrotar os devaneios da fantasia e da imaginação, que são a morada do medo. Esta vitória foi
um ato desmitologizador por excelência. Para o entendimento desta relação entre medo e
imaginário, tão profunda para a mentalidade inquisitorial, é oportuno apresentar os
argumentos dos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger:

―Passemos agora a examinar de que modo o diabo é capaz de excitar, através do


movimento localizado, a fantasia e as percepções sensitivas interiores dos homens,
por aparições e por ações impulsivas. Convém lembrar a que causa atribui
Aristóteles (De Sommo et Uigilia) as aspirações em sonhos. Quando um animal
dorme, o sangue flui para a sede mais profunda dos sentidos, de onde manam
impulsos moventes ou impressões, originárias das impressões pregressas retidas na
mente, ou seja, na Fantasia ou na Imaginação, que, segundo S. Tomás, são uma
mesma coisa, como veremos.

―Por fantasia ou imaginação designamos uma espécie de repositório das idéias


recebidas pelos sentidos. E é através daí que os demônios excitam ou estimulam as
percepções internas, ou seja, as imagens conservadas nesse repositório, parecendo
que naquele momento são percepções novas recebidas do exterior.

―A verdade é que nem todos são acordes neste ponto; a quem interessar ocupar-se
com esta questão cumpre atentar para o número e a função de cada uma das
percepções interiores. Segundo Avicena, em seu livro Sobre a Mente, são em
número de cinco: Sentido Comum, Fantasia, Imaginação, Pensamento e Memória.
Mas S.Tomás, na Primeira Parte da Questão 79, afirma serem apenas quatro, já que
a fantasia e a imaginação são uma mesma coisa. Para evitarmos maior prolixidade,
preterimos o muito que ainda se comenta a respeito desse assunto.

―Basta lembrar que a fantasia é o repositório das idéias, mas a memória parece ser
algo distinto. Pois que a fantasia é o repositório dos instintos que não são recebidos
através dos sentidos. Assim, quando um homem vê um lobo, foge não por causa de
seu aspecto ou de sua cor ameaçadores (que são idéias recebidas pelos sentidos
exteriores e conservadas na sua fantasia), mas sim porque o lobo é seu inimigo
natural. E isso o homem sabe, seja por instinto, seja por medo, elementos
diversos do pensamento, que reconhece o lobo como hostil e o cão como amigo.
No entanto, o repositório dos instintos é a memória. E recepção e retenção são duas

113
coisas distintas nos vivos, pois os de humor ou disposição úmida recebem
prontamente, mas retêm com dificuldade; o contrário se dá nos de humor seco‖
(Kramer, 1998, p. 126 e 127. Grifos nossos).

Este embasamento filosófico serviu de sustentação para a ação inquisitorial e para


sua ascese. O homem europeu médio, mesmo sem os apetrechos intelectuais que
caracterizavam parte do clero católico, poderia facilmente entender a mensagem que
preconizava a sublimação da fantasia através de uma vida plena na ortodoxia católica. Ao
desconfiar e ter medo de si mesmo e de uma possível conduta desviante, o indivíduo
convertia-se num aliado dos inquisidores.

A concepção diairética do homem como um ser dividido em percepções interiores


tão distintas e até antagônicas – como sentido comum e fantasia – é uma classificação
racionalista profundamente desmistificada e reducionista. Este ―classificacionismo‖ teve
origem na Antigüidade Clássica e chegou à cristandade através dos estudos aristotélicos do
clero. Todo homem seria presa fácil do diabo, posto que ―qualquer homem, por si mesmo –
estando desperto e usando de sua razão –, é capaz voluntariamente de recolher de seus
repositórios as imagens lá retidas (...)‖ o que explica as ―(...) aparições que vêm ao homem
em sonhos (...)‖ (Kramer, 1998, p. 127) e que lhe fazem presa fácil para o demônio invadir-
lhe o espírito.

A Idade Moderna foi, por excelência, uma época propícia à insegurança e ao medo.
Devemos levar em conta que a concepção generalizada sobre o período é bem distinta desta
constatação, pois ―cortes cronológicos artificiais e o sedutor termo ‘Renascença‘ por muito
tempo ocultaram‖ (Delumeau, 1989, p. 33) os medos e as provas de insegurança coletiva.
Tanto o medo e a insegurança provocados pelos inimigos invasores – trata-se de uma era de
conflitos e guerras – quanto aqueles sentimentos provocados por feitiços, maldições e outras
forças misteriosas, causaram fortes reações e antagonismos. Jean Delumeau (1989, p. 14 e 15)
observa que o medo tem uma forte determinante social. À valentia individual dos nobres –
guerreiros ou não – corresponderia o medo coletivo dos pobres e das mulheres. E cita a
Eneida, de Virgílio: ―‘O medo é a prova de um nascimento baixo‘ ‖ (in Delumeau, 1989, p.
15). Ao longo da Idade Moderna, o orgulho nobiliárquico de coragem e destemor foi
tornando-se algo empolado, dando lugar às firulas da etiqueta e da diplomacia. Um trecho do
escritor e jornalista Gilles Lapouge ilustra este processo de transformação pelo qual passou a
nobreza. Em seu romance A Batalha de Wagram, que se passa nas guerras napoleônicas, um
dos personagens vê-se diante da galeria com os retratos dos patriarcas de uma família
nobiliárquica:

114
―Os aposentos da duquesa compreendiam vários salões inteiramente mergulhados
no escuro. Os criados precediam Otto, e as sutilezas da mansão desvendavam-se,
no clarão fulgurante das tochas, como se essas tochas tivessem fabricado aos
poucos os corredores, as mesas de carvalho, as lareiras de mármore. Otto viu
tremer, nas labaredas, vinte retratos de corpo inteiro que eram marcos da epopéia
dos Malhberg, desde o monge de Magdeburgo, na Idade Média, o ‘mandíbula de
lobo‘, até os barões Malhberg do séquito do polonês Sobieski, na época da guerra
contra os turcos, para terminar com os Malhberg efeminados da corte de Dresden,
no tempo de Augusto, o Forte, e finalmente, na época recente, aqueles gordos
corpos de tabeliães, iluminados com roupas rutilantes, nos escritórios da Hofburg‖
(Lapouge, 1986, p. 75 e 76).

Talvez até esta mudança de hábito tenha ocorrido também em função da ascensão da
consciência do medo. Antes, porém, cabe a pergunta levantada por Delumeau como base da
análise:

―Mas é preciso perguntar-se se a Renascença não foi marcada por uma tomada de
consciência mais nítida das múltiplas ameaças que pesam sobre os homens no
combate e em outras situações, neste mundo e no outro‖ (Delumeau, 1989, p. 17) .

É possível que esta tomada de consciência tenha sido de todas as classes sociais, pois
pode ter sido determinada por uma fusão de fatores que vão desde o avanço de algumas
noções medicinais que buscavam nos fluidos corporais a origem da dor, passam pela difusão
de relatos escritos sobre as ―aventuras‖ humanas (como nas obras de Camões, Cervantes e
Shaekespeare) e chegam até a proliferação de santos curativos que carregavam consigo as
promessas da diminuição dos sofrimentos humanos. Esta aproximação entre medo e lucidez
(Delumeau, 1989, p. 18) é antepassada da mentalidade atual. O medo é um dado cultural que,
no Ocidente, notabilizou-se no alvorecer da Idade Moderna.

―Refinados que somos por um longo passado cultural, não somos hoje mais frágeis
diante dos perigos e mais permeáveis ao medo do que nossos ancestrais? É
provável que os cavaleiros de outrora, impulsivos, habituados às guerras e aos
duelos e que se lançavam com impetuosidade nas disputas, fossem menos
conscientes do que os soldados do século XX dos perigos do combate, e portanto
menos sensíveis ao medo‖ (Delumeau, 1989, p. 18).

Esta progressiva consciência do medo coincidiu com a maior intelectualização da


vida, num período que está marcado, dentre outros fatores, pelo Renascimento e pelo
Iluminismo. Para R. Caillois, citado por Delumeau, a própria História seria uma busca do
―esquecimento‖ do medo: ―(...) o medo das espécies animais é único, idêntico a si mesmo,

115
imutável: o de ser devorado. ‘Enquanto o medo humano, filho de nossa imaginação, não é
uno mas múltiplo, não é fixo mas perpetuamente cambiante.‘ Daí a necessidade de escrever
sua história‖ (Delumeau, 1989, p. 19). Outro autor citado, G. Ferrero, afirma que ―toda
civilização é o produto de uma longa luta contra o medo‖ (Delumeau, 1989, p. 12). Em um
ramo da Antropologia e em outro da Psicologia, o medo da morte é tido como impulso básico
do homem em sociedade e dos seres humanos enquanto indivíduos.

Sem que pretendamos uma psico-História, pois levamos em conta o ―fracasso da


psicanálise para atrair a imaginação dos historiadores‖ (Gay, 1989, p. 33), vemos que os
esforços recentes da historiografia que analisa a Inquisição são, quase em sua totalidade, no
sentido de compreender as mentalidades e o imaginário. Aliás, no Congresso Internacional
sobre Inquisição, em 1987, tivemos a palestra da psicanalista Amina Maggi Piccini que
tentava conceituar o Malleus Maleficarum segundo a linha freudiana, chegando à seguinte
conclusão:

―O quadro trazido pelo libelo é: de um lado, nas bruxas, um desejo de prazeres sem
limites; do outro, nos inquisidores, a vontade de estender o sofrimento até o limite
do ser. Em termos psicanalíticos: nelas, o triunfo do id; neles, o do superego
castrador‖ (in Novinsky, 1992, p. 81).

Não discutiremos aqui o determinismo freudiano, mas a fragilidade de uma tal visão
para a análise histórica é patente, mesmo para um historiador preocupado com a riqueza
conceitual e teórica do próprio trabalho. Nesse caso, está Delumeau, que chega a afirmar que
foi ―(...) um erro de Freud ‗não ter levado a análise da angústia e de suas formas
patogênicas até o enraizamento na necessidade de conservação ameaçada pela previsão da
morte‘(...). O animal não antecipa sua morte. O homem, ao contrário, sabe – muito cedo –
que morrerá‖ (Delumeau, 1989, p. 19). Esta limitação da teoria psicanalítica torna-a de difícil
utilização pela História. Já a Teoria do Imaginário e a metodologia weberiana permitem
inserir a angústia da morte (presente no tipo ideal de inquisidor modermo) como variável
indispensável à análise do historiador sobre qualquer sociedade humana. A aparente
―determinante eros‖ talvez seja de uso restrito às sociedades urbanas ocidentais
contemporâneas.

Porém, sobre temas ligados ao medo, o historiador Peter Gay opina que há
historiadores que perceberam o valor da psicanálise ―quando falharam em descobrir causas
racionais para situações de pânico ou de motim, para irrupções de preconceitos ou
comportamentos autodestrutivos‖ (Gay, 1989, p. 165 e 166). Há um certo valor na
observação do historiador norte-americano, desde que não se faça da análise histórica uma
filial das restritas condicionantes psicanalíticas. O lado positivo da observação de Gay está em
que, na análise do mundo moderno, a ―fábrica‖ de culpas e culpados bem vale um paralelo

116
com a psique individual, pois verdadeiras ―patologias individuais‖ afloram em processos
inquisitoriais de diversos países. Lembramos, por exemplo, os processos das freiras
endemoniadas de Loudun, na França, que, entre crises histéricas, incriminaram um padre que
nunca tinham visto pessoalmente e o levaram à fogueira (Huxley, s/d). O medo coletivo
guarda semelhanças com o medo individual. Os medos podem vir de seres destruidores –
―fantasiosos‖ ou ―reais‖ – (monstros, demônios e animais perigosos), de fenômenos da
natureza (tempestades, tornados, etc.), de objetos tenebrosos (máquinas de tortura, urnas
funerárias, etc.) ou de pessoas cruéis (torturadores, assassinos, etc.). Em todos os casos, há
pulsões individuais em jogo.

Outro exemplo de pânico – desta vez oficial – está no terrível processo dos
Pappenheimers, na Baviera, estudado no belo livro de Michael Kunze (1989), A Caminho da
Fogueira. Os atos do processo, típicos do séculos XVII, refletem uma pulsão contra o medo:
o Duque da Baviera tentou, com estas e outras investigações, combater o crime e a heresia,
que assustavam os seus súditos. O medo obsidional levou a uma sordidez monumental, que
destacamos em um trecho do processo onde aparece o garoto mais novo, de dez anos, já sendo
encaminhado para a fogueira, quando vê o cortejo e comenta com o meirinho que o
acompanhava: ―‘Veja, veja! Que grande casamento para meu pai e minha mãe! Eles têm
tantos guardas armados – nem o próprio duque tem tantos!‘‖ (Kunze, 1989, p. 400). O
meirinho, como alerta Kunze, não viu meninice na exclamação. Julgando ser algo do
demônio, incluiu-a no seu relatório.

O ambiente místico era uma constante. Thomas afirma que ―a missa, em particular,
estava associada ao poder mágico, e deve-se dizer que a doutrina da Igreja foi pelo menos
indiretamente responsável pelo fato‖ (Thomas, 1991, p. 41). A valorização do sacramento da
eucaristia na efetivação do milagre da transubstanciação foi atacada pelos reformadores como
prova do misticismo católico. Não se trata de uma mera divergência de forma. A eucaristia é
importante para o clero católico, pois enobrece a atividade do sacerdote enquanto miraculoso
realizador ou veículo da transubstanciação. O Concílio de Trento, já tão distante no tempo,
dedicou atenção a este tema e concluiu, dentre outras coisas, que a ―vitória‖da eucaristia seria
o triunfo da razão e a vitória de Cristo sobre a morte:

―‘A eucaristia deve ser levada em procissões que representem a vitória e o triunfo
de Cristo sobre a morte... E a verdade, triunfando acima da heresia e das mentiras,
deverá celebrar esse triunfo de maneira que os seus adversários, humilhados
perante a visão de uma magnificência tão refulgente, e pelo harmônico júbilo da
Igreja, se quedem silenciosos, com o espírito submisso, ou, envergonhados, ouçam
a voz da razão‘‖ (in Fernández-Armesto, 1996, p. 113).

117
A eucaristia sempre foi polêmica no cristianismo. Desde os primórdios desta fé, o ato
de deglutir o pão que representa a divindade parece estranho à vista do significado heróico da
deglutição: o herói devora o monstro para matá-lo ou é devorado por ele. A Última Ceia foi
uma refeição pascal típica do judaísmo: ―‘um dia festivo para todas as gerações... um decreto
eterno‘(...)‖ (Fernández-Armesto, 1996, p. 105). Segundo Armesto e Wilson, o termo
transubstanciação deve ser entendido no ―contexto das idéias medievais sobre a física (...)‖,
onde admitir-se-iam duas formas para o ser: a essência e a incidência. A transubstanciação
seria uma mudança na essência do pão e do vinho, onde ―Cristo estava essencialmente
presente, sob as formas acidentais de pão e vinho‖ (Fernández-Armesto, 1996, p. 105 e 106).
O desconhecimento ou o desrespeito a este princípio, como veremos, levou a Inquisição à
abertura de muitos processos.

O europeu moderno temia, principalmente, quatro coisas: as heresias, o Juízo Final,


uma invasão muçulmana e a força de feitiços ou magias, sendo que estas últimas eram
consideradas instrumentos do demônio. Estes fatores podiam aparecer imbricados. Os judeus
também eram tidos como temíveis, mas o medo que eles instigavam estava muito relacionado
à existência de cristãos-novos, que eram classificados como hereges. Aos medos obsidionais
da Europa Moderna, correspondiam várias culpas inquisitoriais, às vezes com intersecção
entre elas (ver Quadro 6).

Outros medos existiram: medo do ―mar variável onde todo terror abunda‖
(Delumeau, 1989, p. 41), medo de fantasmas, medo da noite, medo da peste, medo de morrer
de fome e até medo do fisco que vem para cobrar impostos. Sônia Siqueira elencou outros
medos coloniais no Brasil:

―Medos preexistentes à sistematização da colonização: medo dos índios enquanto


índios. Medos que surgem diante do desconhecido, ao impacto da alteridade: medo
do jesuíta, enquanto padre. Aqui, o medo do desconhecido enquanto terra,
enquanto águas, enquanto matas, enquanto bichos, enquanto doenças. Medo do
índio, suporte de uma civilização satânica, medo do branco que fugia das lides
cristãs e aderia, pelos seus pecados, às hordas infernais. Como caminho de
superação dos temores, a crença inabalável dos jesuítas de cumprir uma missão
salvífica junto a um número expressivo de homens‖ (Siqueira, 1996, p.107).

A ameaça do Islão era real. Na batalha do Kosovo, em 1389, os sérvios foram


derrotados pelos turcos, abrindo aquela região para a presença muçulmana. A queda de
Constantinopla em 1453 e ―o desastre infligido em Mohacs (1526) aos cavaleiros húngaros e
a seu rei Luís, que ficou entre os mortos, a anexação metódica das ilhas do Egeu entre 1462
(Lesbos) e 1571 (Chipre) fizeram do sultão um augusto muçulmano‖ (Delumeau, 1989, p.

118
268). Uma possível invasão muçulmana chegou a ser vista como parte do Juízo Final. O papa
Pio II resumiu o sentimento de medo difuso pela Europa:

―‘No passado fomos feridos na Ásia e na África, isto é, em países estrangeiros. Mas agora
somos atingidos na Europa, em nossa pátria, em casa. Objetar-se-á que já outrora os turcos passaram
da Ásia para a Grécia, os mongóis mesmo se estabeleceram na Europa e os árabes ocuparam uma parte
da Espanha após terem transposto o estreito de Gibraltar. Mas jamais havíamos perdido uma cidade ou
uma praça comparável a Constantinopla‘ ‖ (in Delumeau, 1989, p. 268) .

O Juízo Final, por sua vez, é um medo arquetípico. Quase onipresente na cultura
ocidental, o Juízo Final implica uma concepção de um tempo direcionado como uma reta,
com um destino a ser alcançado. Esta concepção, que está longe de ser exclusividade do
cristianismo, leva a uma expectativa de um fim justo para todos os homens e está presente
como inspiradora de correntes políticas escatológicas existentes em ideologias do século XIX.
O milenarismo foi a expressão mais forte da angústia que antecederia o fim dos tempos. A
lenda do ano 1000, segundo a qual a data fatal (1 de janeiro do ano 1000) teria sido aguardada
com terror, foi desenvolvida bem depois, pelo monge beneditino Trithemius, que nasceu em
1462. Mas há também a componente das profecias interpretadas do Antigo Testamento e do
Apocalipse, segundo as quais, após o Juízo Final, Cristo voltará à Terra para reinar por mil
anos. Em qualquer das versões, a expectativa associava-se ao medo e trazia um novo impulso
para a catequese, pois seria preciso converter todos os infiéis para antecipar o fim do mundo
ou para vivenciá-lo em paz. Joaquim de Fiore, ―um notário convertido em monge, e em
monge sempre mais rigoroso e santo, até a morte (+1202)‖, foi o criador da teoria das três
idades da História: a do Pai, a do Filho e a do Espírito Santo (Antoniazzi, 1999, p. 26). A
Idade do Espírito estaria próxima e seria uma época de espiritualização a iniciar-se em 1260.
Porém, esta concepção pacífica foi transformada em uma idéia conflituosa...

―(...) quando os franciscanos ‘espirituais‘ se consideraram os representantes da


Idade do Espírito, e um deles, Gherardo de Borgo San Donnino, em 1254, publicou
algumas obras de Joaquim com uma introdução, em que não só previa para 1260
uma Igreja toda espiritual, mas também um papa demoníaco que, por pouco tempo,
ocuparia a cátedra de Pedro‖ (Antoniazzi, 1999, p. 26).

Temer a heresia é, ainda hoje, uma forma de aproximar-se da ortodoxia católica. O


europeu moderno sabia disso. Questionamo-nos até que ponto algumas demonstrações de
medo não tinham, talvez, sua gênese no desejo de ―mostrar serviço‖ e aparecer como bom
católico. Este não seria um medo obsidional, mas um ―medo‖ estratégico para ficar bem com
a Igreja. Trata-se de um processo que veio de longe: o medo da autoridade divina foi ensinado
pelo clero católico aos fiéis ainda na época da aproximação entre Igreja e autoridades
seculares, quando o cristianismo foi pela primeira vez aceito como religião oficial. De

119
qualquer forma, citamos, no capítulo 1, que, após as mudanças introduzidas na missa com a
oficialização de um Cristo Poderoso, ―um clima de terror se espalhou entre as massas,
especialmente, no Oriente‖ (Frangiotti, 1995, p. 163. Grifo nosso). O medo e a heresia
nasceram juntos no imaginário cristão: talvez o primeiro tenha gerado o segundo.

O herege, segundo Jacques Le Goff, foi, na Idade Média, ―freqüentemente indicado


como um louco‖ (in Gonzaga, 1993, p. 110). Já vimos antes o exemplo dos cátaros, famosos
mais pela repressão que sobre eles se abateu que por seu pensamento e ação. Essa hipótese
permite-nos entender o terror que se devia sentir diante deles e até o sentimento de repúdio
dos homens da época, para os quais o ato de ―crítica social‖ era algo tresloucado. Os cátaros
pregavam, por exemplo, contra a procriação humana (Gonzaga, 1989, p. 110).

O historiador H.-C. Lea esclarece que o converso era indagado pelos hereges se
queria ser um confessor ou um mártir: ―‗Se ele escolhia tornar-se um mártir, um travesseiro
ou uma toalha (chamada Untertuch pelos cátaros alemães) eram colocados sobre sua boca
enquanto se recitavam certas orações. Se desejava ser confessor, permanecia durante três
dias sem alimento, não recebendo senão um pouco de água como bebida. Num e noutro caso,
se ele sobrevivia, tornava-se um Perfeito. Essa ‘endura‘ era às vezes empregada como um
modo de suicídio, sendo freqüente a morte voluntária entre os cátaros‘‖ (in Gonzaga, 1993,
p. 110). O mesmo historiador opina que ―‗(...) a causa da ortodoxia era a da civilização e do
progresso. Se o catarismo se houvesse tornado dominante, ou pelo menos igual ao
catolicismo, não há dúvida de que sua influência teria sido desastrosa‘‖ (in Gonzaga, 1993,
p. 111).

Heresia e feitiçaria possuem inúmeros pontos de convergência. Um deles está na


origem da ―grande repressão à feitiçaria‖, que é, segundo Delumeau, ―um enigma histórico‖
(Delumeau, 1989, p. 350). Vimos que a intensidade da ―caça às bruxas‖ não aumentou tanto
na Península Ibérica quanto em outras partes da Europa. O tema, contudo, não está
consensualmente definido, restando-nos o interesse pelas singularidades históricas do período,
inclusive em Portugal.

A perseguição ao feitiço foi incrementada no final do século XII ―sob efeito de duas
causas interligadas‖ (Delumeau, 1989, p. 351):

―(...) de um lado, a afirmação da heresia com os valdenses e os albigenses; do


outro, uma vontade crescente de cristianização que os pregadores oriundos das
ordens mendicantes exprimiram e atualizaram. A escalada de inquietude clerical
aparece nos debates do IV Concílio de Latrão, que tornou obrigatórias a confissão e
a comunhão anuais, reforçou a segregação dos judeus e obrigou os bispos, sob pena

120
de deposição, a perseguir e punir os heréticos de suas dioceses. Depois, enquanto
os cátaros eram vencidos no sul da França, Gregório IX nomeava em 1231 o
primeiro inquisidor oficial da Alemanha, Conrad de Marburgo (...)‖ (Delumeau,
1989, p. 351).

A lenta construção de uma mentalidade persecutória dependeria de uma percepção


clara das culpas a serem imputadas àqueles que fariam – a contragosto, certamente –o papel
do inimigo sendo combatido. De ―dentro da Igreja‖ surgiu bem cedo, no próprio nascedouro
da Inquisição, a noção muito aproximada das bruxas e feiticeiras que seriam perseguidas por
quase seis séculos. Reafirmada nos regimentos inquisitoriais, nos processos do Santo Ofício e
no famoso Malleus Maleficarum, a noção prosperou lenta, mas firmemente, até gerar a ―caça
às bruxas‖.

O fato dos inquisidores recolherem quase sempre provas que ratificam as mesmas
culpas só nos leva a duvidar do valor de certos documentos inquisitoriais como fonte para a
História social e para a História das mentalidades. Processos muito singulares, que ganham
intensidade e envolvem um grande número de pessoas – inclusive aquelas bem situadas
socialmente – possuem um teor investigativo amplo e uma diversidade de informações que
nos levam a aceitá-los como mantenedores da fidelidade dos depoimentos.

Mesmo assim, tais exemplos podem conter enormes falseamentos, como no caso das
freiras endemoniadas de Loudun, que foram induzidas a representar cenas de possessão. Lá,
uma conjunção de interesses levou vários personagens importantes a desenvolverem zelo
especial para que o processo fosse ―bem alimentado‖, garantindo a morte do padre Urbain
Grandier, que, na verdade, tinha como culpas verdadeiras a empáfia para com autoridades da
corte e do clero e o fato de ter engravidado a filha de um nobre local (Huxley, s/d e Mandrou,
1979, p. 215 a 231).

Se vemos com uma ótica crítica algum uso superficial dos documentos inquisitoriais
por historiadores, é porque acreditamos que o uso aprofundado pode trazer bons frutos. Não
podemos, porém, deixar de perceber uma espantosa semelhança. Vejamos, por exemplo, a
descrição das culpas localizadas por Conrad na Alemanha do século XII:

―Tratava-se – acreditavam o inquisidor e seu pontífice – de uma sociedade secreta


em que os noviços beijavam o traseiro de um sapo e o de um gato preto, rendiam
homenagem a um homem pálido, magro e frio como o gelo. Em suas assembléias
diabólicas, adorava-se Lúcifer, as pessoas entregavam-se aos piores
desregramentos sexuais e, na Páscoa, recebia-se o corpo do Salvador para cuspi-lo
em seguida nas imundícies. Eis aí desenhada a tipologia daquilo que logo se

121
chamará de ‘sabá‘, e claramente colocada, diante do cristianismo, uma anti-religião
ameaçadora‖ (Delumeau, 1989, p. 351).

Agora comparemos com o Regimento da Inquisição portuguesa de 1640, quinhentos


anos depois:

ANTIQUO (4)

―Se constar que os actos de superstição, de que vzarão os feiticeiro,


aduinhadores, & sortilegos, são taes, que delles se colha heresia; pela grande
presumpção, que rezulta de andarem appartados de nossa santa Fê Catholica, serão
postos a tormento, & se nesse não confessarem atenção, hirão ao Auto publico da
Fé a ouuir sua sentença, & nelle farão abjuração de vehemente, quando em suas
feitiçarias, sortilegios, & adiuinhaçoens, vzarem de hostia consagrada, ou parte
della, ou do sangue de Christo nosso Senhor, ou de pedra de Ara tomada de lugar
sagrado, ou de Corporaes, ou de parte algúa destas couzas, ou de qualquer outra
sagrada, ou se expressamente inuocarem os espiritos diabolicos, & lhes pedirem
couza, que Deos sómente pôde fazer, ou inuocarem o demonio có preces, & lhe
fezeré sacrificios, ou algú outro culto de latria, ou dolia, ou bautizaré imagés, ou
algú cadauer, ou rebautizaré algúas criànças, sabendo q foraõ bautizadas, ou entre
os Santos chamarem tambem aos demonios por seus nomes, ou incensarem algúa
cabeça de defunto, ou a vngirem com oleo sagrado; por quanto destes actos, & dos
q foré semelhantes, nasce veheméte suspeita de heresia‖ (Regimento do Santo
Officio da Inqvisição dos Reynos de Portvgal, p. 180 - 1640, ANTT - Série Preta,
671).

Visitemos, também, dois trechos do Malleus Maleficarum, do século XV:

―Ademais, quando as bruxas comungam, têm por costume receber a hóstia por
debaixo da língua, nunca sobre ela, para que nunca recebam qualquer remédio que
possa neutralizar o seu repúdio à Fé, seja pela Confissão, seja pelo Sacramento da
Eucaristia; e para que lhes seja mais fácil retirar da boca o Corpo do Senhor a fim
de usá-lo para outros fins, para maior ofensa do Criador.‖ (...)
―As bruxas têm sido vistas muitas vezes deitadas de costas, nos campos e nos
bosques, nuas até o umbigo; e pela disposição de seus órgãos próprios ao ato
venéreo e ao orgasmo, e também pela agitação das pernas e das coxas, é óbvio que
estão a copular com o Íncubo. Em raras ocasiões, ao término do ato, sobe ao ar,
como a despreender-se da bruxa, um denso vapor negro, cujas dimensões
equivalem à estatura de um homem‖ (Kramer, 1998, p. 245 e 240).

122
Há componentes, nestes documentos escritos, em tempo e espaço tão distintos que
são os mesmos: louvação ao demônio em forma de defunto; utilização, pelo herege, do nome
próprio do diabo para invocá-lo; profanação da hóstia consagrada e orgias sexuais diabólicas.
Parece-nos muito evidente – e esta evidência aumentará para o leitor nas análises
documentais diretas – que o clero católico criou uma fórmula para caracterizar o feitiço. Os
processos antes adequavam-se a ela do que eram alimentados por investigações. As
investigações existiam sim, mas eram feitas para corroborar a fórmula. Réus socialmente
importantes e/ou processos que interessassem politicamente aos inquisidores ou ao Estado, até
que poderiam receber uma conformação própria que servia para fortalecê-lo. Mesmo assim, as
culpas referentes ao judaísmo e à maçonaria estariam muito mais propensas a estas pressões,
pois o feitiço, em geral, envolvia pessoas de poucas posses e quase nenhum estudo.

Antropologicamente, sabe-se que a magia é universal. Suas especificidades ficam


atenuadas por diversas universalidades. Isto nos dá a sensação inicial de uma permanente
autenticidade nos relatos mágicos, mas não podemos deixar de lado a necessária verificação
da origem autêntica da fonte. Criamos três critérios para verificar a autenticidade (5) em
relatos inquisitioriais:

a) Indistinção ou não das culpas relatadas no processo em relação àquelas presentes


nos documentos inquisitoriais internos ao Tribunal e à própria Igreja Católica (Ex.:
regimentos do Tribunal do Santo Ofício, manuais inquisitoriais, bulas).

b) Presença ou não, nas partes do processo que seriam referentes à fala do réu, de
palavras, termos, expressões e verbos distintos dos que eram usados pelos inquisidores no
mesmo processo, constituindo-se aí dois universos lingüísticos para a dedução.

c) Referências a contradições e atividades processuais por parte dos inquisidores


responsáveis pelo processo ou por parte dos próprios réus, tais como: determinação para que
se procedam a investigações, dúvida quanto à veracidade dos dados coletados, requerimentos
das partes, contradita de si próprio em interrogatórios diferentes etc.

Ou seja, quanto mais freqüentes certas inexatidões típicas do uso cotidiano de


fórmulas estabelecidas previamente, mais crível o documento. O falseamento costuma pecar
pelo perfeccionismo, difícil de encontrar na ―vida real‖.

A linearidade absoluta de um documento histórico é motivo de dúvida quanto à


confiabilidade das idéias e relatos apostos pelo autor, ainda mais quando se trata de um
processo judicial. Com os critérios acima, que aplicaremos na análise documental, esperamos
permitir a aferição de um grau mínimo de confiabilidade. Entretanto, ressaltamos que a

123
linguagem escrita é sempre fonte para o entendimento da História do imaginário, mesmo que
o autor tenha ―criado‖ fatos e atos para incriminar alguém. Para o historiador, a conseqüência
da constatação da existência destas inverdades está nos critérios especiais que ele terá que
adotar para o uso destas fontes em seu trabalho.

Na forma tradicional de encarar a documentação histórica, considerava-se que havia


uma confiabilidade ―interna‖ que era diferente da autenticidade ―externa‖. Esta distinção tem
o seu valor e não devemos abandoná-la. A primeira diz respeito ao significado que o agente
histórico quis que lhe fosse atribuído permanentemente. A segunda refere-se à validade do
documento enquanto pertencente a uma época. Não colocaremos em dúvida a autenticidade
dos documentos inquisitoriais depositados e reconhecidos pelos arquivos públicos:
evidentemente, são processos inquisitoriais originais.

Nosso questionamento aponta para o valor indicado pelos inquisidores e muitas


vezes aceito sem questionamento pelos historiadores para a veracidade das informações
contidas no interior da documentação. Em outras palavras: um autêntico processo inquisitorial
podia ser produzido culpando-se o réu por atos que ele não cometeu com o objetivo de
―alimentar a máquina inquisitorial‖ ou até para defender interesses inconfessáveis. Nestes
casos, o documento reflete apenas o imaginário do Santo Ofício e torna-se, aliás, excelente
fonte para a sua compreensão.

A soteriologia que aflora dos processos da Santa Inquisição origina-se na tendência


desmitologizadora que já analisamos anteriormente. Os inquisidores pretendiam salvar os fiéis
das tentações por eles próprios engendradas. Soteriologia obsidionada, a salvação que os
inquisidores propunham foi perdendo seu valor simbólico na Idade Moderna até tornar-se
arremedo de si própria, marcada que foi pelo avanço da desmitologização que paradoxalmente
também a compunha.

Séculos de ação inquisitorial devem ter introjetado na cultura pelo menos uma parte
dos medos que o clero carregava. A iconografia inquisitorial reflete a ―troca cultural‖, em que
a concepção de um grupo tornou-se aceita de forma generalizada. Parte desta iconografia
demonstra a própria desmitologização. Toda a produção iconográfica reflete a mudança do
paradigma interior do Tribunal: do Medo ao Desprezo. Este será o tema da terceira e última
parte deste capítulo.

124
3.A TABULAÇÃO DAS METÁFORAS NA ICONOGRAFIA
SOBRE A INQUISIÇÃO

A iconografia inquisitorial, conjunto de obras pictóricas que descrevem pessoas,


atos e cenários no ―teatro da inquisição‖, tornou-se referência constante para historiadores e
público interessados no tema. A produção desta iconografia acompanhou, por um lado, a
crítica ―negra‖ feita ao Tribunal e , por outro, os esforços inquisitoriais de autopromoção. A
iconografia tem sido instrumento de interesses: às vezes para ―justificar‖, às vezes para
―denegrir‖ o Tribunal. Tanto num caso como no outro, o historiador pode transformar a
própria instrumentalização da iconografia em um bom aliado para fins de análise histórica.
Neste trabalho, veremos que a maior parte das obras aqui analisadas representa uma expressão
da própria Pedagogia do Desprezo.

A análise que realizaremos nesta terceira parte do segundo capítulo soma-se àquelas
que estão nas duas partes do próximo capítulo: são exemplos ―práticos‖ da aplicabilidade e
consistência dos caminhos e noções propostos neste trabalho. Evidentemente, há muitas
outras possibilidades de aplicação nesta imensa temática inquisitorial. As razões que nos
levaram a escolher a iconografia, o direito e alguns processos coloniais estão explicitadas ao
longo de todo este trabalho.

Como todas as fontes históricas, a iconografia demanda a avaliação do seu


significado e da qualidade das informações nela contidas. Imagens de conhecimento público
merecem considerações históricas precisas para não passarem como ―verdades absolutas‖. Se,
por exemplo, pensamos na meticulosa pintura de Pedro Berruguete (ver Figura 6) que mostra
um auto-de-fé presidido por Santo Domingo de Guzmán, apontamos algumas inexatidões
históricas. A exemplo do que fez mais apropriadamente com São Pedro Mártir, a Inquisição
busca utilizar a imagem de Domingos como capital simbólico na afirmação da imagem de
piedade, ortodoxia e bondade que presidiria o Tribunal.

Na pintura de Berruguete, vemos Domingos no alto do palco ou palanque que está


montado para receber inquisidores e outras autoridades. A cadeira do santo tem espaldar
acima das demais e está posta sobre um pequeno degrau que o faz superior a todas as outras
pessoas na cena. O santo descansa a mão no ombro do rapaz que, à sua direita, sustenta
vistosa flâmula que tremula ao vento com as armas da ordem dominicana. À sua volta, em
ambos os lados, há outras autoridades eclesiásticas e civis. Abaixo, postado no último degrau
na escada que dá acesso ao palanque, está outro dominicano, que controla a entrada para os
que desejam subir. No pátio, na frente das autoridades inquisitoriais, ergue-se pequeno altar
onde dois homens seminus aguardam a hora da morte na fogueira, mas permanecem serenos,
apesar de já estarem atados ao tronco. À sua frente, dois outros hereges albigenses, ainda

125
vestidos e portando a mitra inquisitorial, vão sendo conduzidos por guardas aparentemente
comandados por dois senhores a cavalo. Os cavaleiros vestem boa roupa e seus animais estão
adornados. No fundo do quadro, à esquerda, vemos o desconfortável palanque dos réus, que
fica ao relento, pois o baldaquino que cobre as autoridades é símbolo de poder, estando
proibido seu uso para proteger cabeças menos prestigiadas.

O ―cenário histórico‖ da obra denota vários dados precisos. Porém, a informação


histórica essencial quanto aos fatos ocorridos está equivocada: trata-se de um ―imaginário
auto-de-fé‖ (Bethencourt, 1994, p.80. Grifo nosso.). Domingos, que viveu na primeira metade
do século XIII, parece ter se utilizado do método da pregação e convencimento para dissuadir
os hereges, mesmo quando o papa Inocêncio III determinou ―campanha militar contra o líder
albigense, o conde Raimundo de Toulouse‖ (Attwater, s/d, p. 91). Aliás, em torno da presença
de dominicanos na Inquisição, criou-se um mito que deve ser contestado:

―É preciso sublinhar que a presença dos dominicanos na Inquisição espanhola se


circunscreve ao período de fundação, seguindo-se a sua substituição por clérigos
seculares formados em Direito Canónico. No caso português, esta opção é tomada
praticamente desde o início, circunscrevendo-se a presença das ordens religiosas ao
corpo dos consultores, qualificadores e comissários do ultramar‖ (Bethencourt,
1994, p. 21).

Em outra iconografia, de autoria de Bernard Picart, vemos uma cena de execução dos
condenados pela inquisição portuguesa (ver Figura 7). Em pleno Terreiro do Paço, cujas
construções aparecem em seus fortes traços arquitetônicos à direita da iconografia, ladeado
pelas embarcações que surgem em águas mais distantes desenhadas à esquerda, ergue-se a
cena da execução. Na execução, dois hereges já queimam no fogo alto, enquanto um outro
aguarda, atado ao tronco, que a fogueira seja acesa. Há vários réus no primeiro plano da cena,
com seus ―padrinhos‖ apresentando-lhes o crucifixo na espera de uma retratação do
condenado. A dramaticidade aumenta quando se vê a multidão na praça: pessoas de todos os
tipos e origens, algumas com carruagens e cavalos. Tudo estaria perfeito não fosse um detalhe
que nos é indicado em História das Inquisições:

―Temos aqui uma novidade iconográfica, pois é a primeira vez que se representa
esta cena no décor do Terreiro do Paço, embora se saiba que o local de execução
não era ali mas na zona oriental, perto do chafariz dos cavalos, junto ao rio‖
(Bethencourt, 1994, p.328).

Citamos ainda um terceiro exemplo de dúvida histórica sobre documento


iconográfico (ver Figura 8). Também de autoria de Picart, vemos cenas de torturas

126
inquisitoriais. A figura humana que aparece na cena acima dos demais está sendo vítima da
polé, tortura em que o réu é içado por força humana com uma corda que se prende a ele e
passa por uma roldana no teto. Esta técnica aparece descrita em processos e regimentos
inquisitoriais. À direita da gravura, está o inquisidor, sentado em uma cadeira de braços, com
o notário à sua frente, sentado em um banquinho. Contudo, na parte central da cena, ao fundo,
e na parte à esquerda aparecem duas técnicas de tortura que coincidem com umas descritas
por Anita Novinsky, cuja análise do Tribunal baseia-se na ―lenda negra‖:

―Os tormentos variavam. Em Lisboa se retalhavam as plantas dos pés dos réus,
untavam-se de manteiga e em seguida os submetiam ao calor de um braseiro.‖ (...)
―Antes do auto-de-fé, aplicava-se o potro, mas depois da sentença proferida no
auto, voltando o réu para o cárcere, continuavam a aplicar qualquer tipo de
tortura.

―Na Espanha havia outros tormentos, como a garucha, chamado ‗tormento da


água‘. O réu era colocado em uma espécie de bastidor, a cabeça mais baixa que os
pés. Nos braços e pernas se amarravam cordas muito pesadas que lhes cortavam a
carne. A boca tinha de manter-se forçosamente aberta e metia-se um trapo na
garganta. Pingava-se sobre o trapo água de uma jarra, de maneira que nariz e
garganta ficavam obstruídos e produzia-se um estado de asfixia. Os tipos de
tortura variavam através dos séculos, mas até a segunda metade do século XVIII
ainda eram aplicadas sistematicamente em Portugal‖ (Novinsky, 1986, p. 60 e 61.
Grifo nosso.).

Desconhecemos se há possibilidade de torturas ―depois da sentença proferida no


auto‖. Desconhecemos, também, fonte histórica que referende estas afirmativas. No livro da
autora não aparece citada a origem de tais informações. Bethencourt, referindo-se à mesma
iconografia, faz a seguinte afirmativa:

―Na cena de tortura temos a sobreposição dos dois tipos já descritos, o potro e a
polé, tanto um como outro efetivamente utilizados pelas inquisições‖ (Bethencourt,
1994, p. 324).

Em outra passagem sobre as iconografias de Picart, reproduzidas aqui nas Figuras 7 e


8, o professor português é categórico:

―(...) apresenta diferentes tipos de tortura (que não coincidem, aliás, com as
informações documentais sobre esta prática) e inclui, finalmente, uma outra
sobre a execução dos hereges em Lisboa (também num local nunca utilizado, junto
ao palácio régio)‖ (Bethencourt, 1994, p. 324 e 328. Grifo nosso.).

127
Mesmo com inexatidões históricas, a iconografia inquisitorial permite uma
tabulação das metáforas culturais com as quais se formaram as diversas
concepções sobre o Tribunal do Santo Ofício, mas não deve receber uma
total credibilidade factual. Aliás, as inexatidões podem servir ao propósito
da análise histórica. Nesta iconografia podemos encontrar as já referidas
lendas branca e negra da historiografia sobre a Inquisição. Podemos,
também, elucidar o significado dos diversos olhares dos que se voltaram
para a ação inquisitorial para produzir tais documentos históricos
iconográficos.

A tabulação das metáforas está sobreposta ao trabalho iconográfico. O historiador


tem aí uma fonte extraordinária para a compreensão do imaginário inquisitorial através de
imagens. Qualquer imagem, em qualquer época histórica, relaciona-se com uma narrativa,
como demonstrou Roland Barthes (Barthes, 1984). A narrativa não está apenas nas imagens
seqüenciadas que contam histórias com começo/meio/fim, como se faz no cinema, no teatro
ou em algumas expressões das artes plásticas. Há também uma narrativa simbólica que é,
inclusive, mais profunda que as narrativas icônicas. Mesmo que a uma certa imagem não
corresponda uma narrativa claramente conhecida, na universalidade dos seus símbolos
encontramos o ―texto‖ a ser analisado e (con)textualizado, passível de mitocrítica.

No caso da iconografia inquisitorial, as obras sedimentam o uso de metáforas para


louvar ou condenar o Tribunal, dependendo da posição do autor. Escolhemos parte da obra do
espanhol Francisco Goya Lucientes (Figura 9) (6) como a principal análise iconográfica que
procederemos. As razões da escolha aparecerão ao longo do texto. Goya nasceu em 30 de
março de 1746 no vilarejo aragonês de Fuendetodos. Foi pintor desde muito cedo, mas
notabilizou-se internacionalmente pela pintura de temas polêmicos e denunciadores, típicos
do terço final de sua vida. Antes, após um casamento estratégico, iniciou-se na Corte como
criador de ilustrações para a tapeçaria real. Sua carreira o levaria a ser pintor da realeza, mas
não chegou a ter, neste campo, o prestígio de Velázquez. Faremos a apresentação das obras
escolhidas para demonstrar o olhar que temos sobre elas. Em seguida, analisaremos o
conjunto à luz de autor especializado e do nosso conceito de Pedagogia do Desprezo.

A relação direta de Goya com a Inquisição parece ter começado quando o pintor foi
chamado a se explicar pela pintura das famosas Majas: a Vestida (Figura 10) e a Desnuda
(Figura 11). As imensas majas já possuem tradição polêmica. Existe versão de que se trataria
da Duquesa de Alba, que teria sido amante do pintor e pousado para ele. Na verdade, há
semelhanças entre o rosto daquela senhora mostrado em retratos oficiais e aquele que se
mostra na anônima (?) maja. Porém, não é crível que o pintor comercializasse quadros que

128
tivessem um significado tão pessoal, pois diversas de suas obras foram produzidas para ele
próprio. As majas, com suas dimensões enormes (1,90 cm) que podem ter alcançado o
tamanho natural da possível modelo, estavam nos aposentos do ex-primeiro ministro Manoel
Godoy quando este caiu em desgraça e foi processado pela Inquisição (Wright, s/d, p.36). Os
quadros foram apreendidos e seu autor chamado para explicações.

O tema da sensualidade está muito presente em algumas obras de Goya. É provável


que o escândalo maior provocado pelas majas seja devido à presença dos pelos pubianos à
mostra na desnuda. Talvez esta tenha sido a primeira aparição de nu frontal ―completo‖ na
alta pintura espanhola. A maja era um personagem espanhol: a palavra designava uma forma
de ser e de vestir típica da Espanha de então. Majas e majos eram aquelas pessoas pobres que
tinham atitudes descaradas e algum cinismo, além de vestirem-se com estilo espalhafatoso. A
vestida, aliás, como se pode ver na reprodução, apresenta um roupa leve, colada ao corpo. Um
lenço envolve sua cintura e o braço esquerdo está adornado. O olhar incógnito se repete nas
duas pinturas, dando maior intensidade a uma refinada atmosfera sensual. A visualização
destes quadros nos servirá para contrapor com as chocantes cenas eróticas que o pintor
realizará em outras obras.

A obra goyesca sempre demonstrou a atração do autor pelas manifestações


populares. O Enterro da Sardinha elucida o espírito do artista quanto a estas manifestações:
apesar de um certo trato pictográfico cuidadoso, Goya considerava tais manifestações um
exemplo de ignorância e atraso. O Enterro (Figura 12) é um quadro de tamanho médio
contendo um carnaval de mascarados e figuras horrendas. Seria uma comemoração que
antecedia a Quaresma na quarta-feira de cinzas. As máscaras grotescas haviam sido utilizadas
na Espanha para o enterro do porco, depois substituído pela sardinha, a fim de simbolizar o
início da Quaresma. Porém, no tempo em que Goya viveu, já não se fazia carnaval (Wright,
s/d, p.45), o que denota um caráter de sátira e denúncia contra uma crendice popular de
origem medieval, talvez fazendo uso do próprio riso sarcástico originado na cultura popular
medieval. As duas moças de branco no centro da cena estão de máscara. Atrás da moça da
esquerda há um mascarado que lembra uma caveira. O estandarte traz um ser obscuro, de riso
macabro. À direita da cena, no primeiro plano para os que aparecem de frente, encontra-se um
homem dançando com passo largo e máscara que mostra um nariz enorme. O conjunto é, ao
memo tempo, cômico e macabro, paradoxalmente próximo ao riso irônico da cultura popular
medieval. Esta obra teria sido pintada entre 1803 e 1806, já no espírito das pinturas negras de
Goya.

Em São Franciso de Borja assistindo a um homem moribundo (Figura 13), trabalho


de 1788, figuras terríveis, quase alegóricas, devem representar a morte e o demônio, que

129
aguardam o último suspiro do pobre homem. É curioso notar que há duas versões para a
mesma cena: o pequeno quadro que pertence a uma coleção privada, já citado, e o imenso
trabalho de nove metros quadrados, cujo detalhe está na Figura 13a e que encontra-se na
Catedral de Valência. O jesuíta Francisco de Borja foi um ―típico santo aristocrata: humilde,
determinado, empreendedor, conquistando pessoas de todas as classes sociais pela sua
bondade e cortesia‖ (Attwater, s/d, p. 123).

A intensidade mística com que o autor trata esta pintura está, inclusive, no
posicionamento da mão esquerda do religioso: medianamente erguida, permanece longe da
boca, pois Borja, com sua espiritualidade, não precisa tapá-la para evitar que o demônio se
apodere dele – crença corrente à época –, como teve que fazer o homem que aparece
apavorado em O violentamente enfeitiçado (Figura 19), onde um personagem de uma peça
teatral, louco e tomado por superstições, considera-se obrigado a manter acesa a chama do
demônio para evitar a própria morte, mas quando se aproxima para fazer o trabalho, está
compelido a pôr a mão na boca para que o diabo não entre em seu corpo. ―O tema desta
pintura é derivado de uma peça de teatro cômica do século XVIII intitulada A lâmpada do
Diabo, do escritor espanhol, Antonio Zamora. Esta cena se refere a um ponto específico da
narrativa da peça, que Goya apropriadamente escolheu representar como se fosse num
palco. Abaixo, no canto direito da pintura, partes do texto são dispostas de forma a serem
lidas, como se fosse um roteiro‖ (Wright, s/d, p.30). Mais uma fina ironia do pintor aragonês.
Já o Enterro, pertence a uma série que nos interessa, como demonstrou José Gudiol:

―Um grupo extremamente interessante de trabalhos possivelmente pertencendo a


este período é o dos cinco painéis da Academia de São Fernando em Madri:
Flagelados, Hospício, Tourada, Tribunal da Inquisição e O Enterro da Sardinha.
Estas pinturas verdadeiramente notáveis têm em comum a turbulência da forma e
uma variedade institiva de novos conceitos plásticos, e Goya foi inspirado ao
introduzir soluções pictóricas em todos eles, e a dar uma unidade a cada pintura
através da organização e ritmo da composição. O resultado é uma série de obras-
primas de modernidade surpreendente. Algumas das pinturas descrevem verdadeira
‗pandemônia‘ e neles o Goya de ‗Caprichos‘ e cenas inventadas parece encontrar-
se em seu elemento novamente‖ (Gudiol, 1986, p.22. Tradução livre do inglês.).

A fascinação de Goya por temas místicos acompanha, em paradoxo, seu desprezo


pela ignorância e atraso que tais crendices teriam provocado na Espanha. Entramos aqui nas
componentes da Pedagogia do Desprezo que ele tão bem expressou e sistematizou. Para o
pintor, o mundo à sua volta carecia de valores morais e humanos. Por isso, decidiu denunciar
os abusos, distorções e imoralidades. A Igreja e, em menor monta, a nobreza retrógrada
teriam sido os agentes deste obscurantismo contra o qual o aragonês se voltará fortemente.

130
Mesmo assim, ainda que denunciando a mística, nota-se um fascínio que nos faz lembrar até
mesmo alguns traços da obra de Hieronymus Bosch (século XV).

Em O Sabbath das Bruxas (Figura 14), por exemplo, as diversas componentes da


reunião das maléficas estão notoriamente presentes: mulheres diversas trazem crianças para o
sacrifício ao demônio, representado por um bode altivo, mas de olhar enlouquecido. Tudo se
passa à noite. Criaturas demoníacas obscuras voam em formato de corujas: típico do
simbolismo da época. Além das mulheres, há figuras humanas envelhecidas e de difícil
caracterização sob a penumbra, ao fundo. O tom escuro azulado dá à atmosfera um ar
estranho, pois a lua não está cheia. À esquerda, uma das bruxas carrega uma vara com figuras
de recém-nascidos. A fina ironia de Goya está presente também quando se trata da
representação de crianças. Havia, então, a crença de que crianças que ainda não houvessem
passado pelo batismo seriam pretensamente demoníacas. Durante a Idade Média, os
sacramentos ganharam um significado místico direcionado para a realização material dos
objetivos pessoais dos fiéis. Esta utilização mística dos sacramentos ―os dirigentes da Igreja
nunca haviam alegado‖ (Thomas, 1991, p. 43).

―O batismo, que significava o ingresso do recém-nascido entre os membros da


Igreja, era necessário para converter o bebê num ser humano integral e, no século
XIII, esperava-se que fosse ministrado na primeira semana após o nascimento. (...)
Na cerimônia do batismo, portanto, a criança era exorcizada (com a óbvia ilação de
que antes estava possuída pelo Demônio, ungida com o óleo consagrado,
recebendo o sinal da cruz com água benta)‖ (Thomas, 1991, p. 43).

Também em O Encantamento (Figura 24), aparecem as crianças endemoniadas e as


bruxas. A atmosfera está mais uma vez azulada e um ser monstruoso voa, ao lado de corujas,
sobre as cabeças das bruxas trazendo algo que parece ser um osso humano. As corujas, ―no
folclore espanhol, eram supostamente vampiros que sugavam sangue‖ (Wright, s/d, p.31).
Aliás, a ―definição original de ‗bruxa‘ na língua espanhola era ‗um pássaro noturno
parecido com a coruja‘‖ (Wright, s/d, p.31). À direita da cena, um homem tenta resistir ao
encantamento da bruxa de amarelo que está no centro. Entre figuras cadavéricas ou
esqueléticas que seguram um cesto de crianças, um outro lê um livro que parece indicar os
passos do ritual.

O mesmo ritual parece ocorrer em O Grande Bode (Figuras 20 e 20a), com o


reaparecimento do animal na obra goyesca, aqui representado por uma cena extremamente
obscura, onde a silhueta negra do diabo-bode impera diante de uma pequena multidão de
rostos disformes reunidos para saudá-lo. Na mesma série de Pinturas Negras estará Dois
Velhos Comendo (Figura 34), onde um velho bruxo se alimenta, enquanto uma caveira amiga

131
o observa. A negritude desta série nos remete a uma curiosa hipótese. Um dos fatores que
permitem associar o negro e o cinza a temas sérios e importantes, até tenebrosos, deve ter sido
a estética dos monumentos antigos que foram sendo reencontrados e revalorizados ao longo
dos últimos cinco séculos.

Hoje, sabe-se que muitas expressões artísticas gregas, por exemplo, eram
originalmente coloridas e até espalhafatosas para nossos padrões atuais, tendo perdido o
pigmento com o tempo. É o caso da escultura que aparece na Figura 36 em duas versões: da
forma como está hoje e, após um trabalho de descoberta de suas cores originais e coloração
por computador, da maneira como os gregos a conceberam e a viram realmente. O uso intenso
e belo das cores desfaz a impressão – que talvez tenha sido paradigmática – de que os antigos
prefeririam o cinza.

Impressiona também, nestas imagens, a concepção que se tem das mulheres. Se


observarmos as Figuras 25 (Professora Bonita) e 28 (As Velhas ou Until Death) veremos
mulheres terríveis, mergulhadas em uma profunda vaidade ou no aprendizado dos truques e
feitiços com as mais velhas, numa referência à ida ao sabbath por via aérea. A comédia social
de Professora opõe, em última instância, dois temas do gosto do artista: jovens
sedutoras/velhas fofoqueiras. As Velhas apresenta uma caveira como a ama que segura o
espelho da vaidade e pergunta à sua senhora: que tal? No fundo da cena está uma figura
híbrida: tem asas de anjo, mas porta uma vassoura de bruxa. Seria a alegoria do tempo, mas
em vez de uma foice, segura uma vassoura.... A velhice está evidentemente ligada à opção
pela bruxaria entre as mulheres. A flecha de diamantes, que aqui simboliza o adultério,
atravessa o cabelo amarelo descolorido e é a mesma que aparece em outra pintura goyesca
(analisada adiante) na cabeça de Maria Luíza de Parma, esposa do Rei Carlos IV, Príncipe de
Astúrias. Há, evidentemente, a intenção de ironizar a Rainha como uma bruxa. Vemos que a
velha está em sua cadeira e veste seda clara com os panos encaixados à moda da Corte. Há
detalhes azuis em torno do pescoço. Grandes brincos e anéis realçam a vaidade, que é tanta
que, na verdade, além do espelho segurado pela ama há um outro nas mãos da própria
senhora. O filme documentário francês La Lettre, La Flèche et le Balai, de Alain Jaubert,
chama-nos a atenção para a luz do quadro: intensa e vinda de cima, contrasta com a escuridão
abaixo. Seria uma referência ao inferno? O quadro possui ainda a inscrição X 23, que pode ter
sido acrescentada à tela para designar as obras inventariadas após a morte da esposa do pintor:
o filho de Goya era Javier, que também se grafava Xavier. O quadro, como vários outros,
ficou para ele com o número 23.

Mas é em O Tribunal da Inquisição (Figura 15) e Flagelados (Figura 16) que o


pintor trata diretamente do tema. Estas obras mostram a ―Espanha Negra‖ que teria sido
denunciada com uma sátira evidente pelo pintor. Utilizando um estilo ―medieval‖ para retratar

132
tipos devotos, Goya aproxima a Inquisição da flagelação, mostrando indiretamente que as
vítimas do Tribunal também eram flageladas, só que a contragosto. A disposição da imagem
da Santa em Flagelados ocorre no mesmo local da tela em que encontramos o réu inquisitorial
de Tribunal, uma ilação que pode significar a ―santificação‖ do réu. Isto pode indicar uma
proposital contraleitura da Inquisição. Aliás, estes quadros possuem as mesmas dimensões
medianas e pertencem, como já foi dito, à mesma instituição. Em ambos, a multidão está à
direita representadas em traços rápidos que aumentam a dramaticidade da cena. Já os
religiosos estão à esquerda. Enfim, a mitra pontuda ou chapéu cônico, que pode ser vista em
detalhe (Figura 16a), aparece nos dois trabalhos, garantindo um primeiro impacto para a
sensações de conjunto e movimento que o autor quis dar.

Em Tribunal, os sambenitos mostram a natureza dos crimes cometidos. Em


Flagelados, ―Goya satiriza o aspecto grotesco dos rituais de penitência‖ (Wright, s/d, p.44).
Penitência e Inquisição possuem algo em comum: a punição do pecado. Qual teria sido
exatamente a intenção de Goya com esta fina crítica aos homens da fé? Desejaria ele integrar-
se aos que criticavam sistematicamente o Santo Ofício ou haveria uma pendenga pessoal ou
de amigo(s)? Não temos resposta para estas questões biográficas, mas, acima de tudo, a
atitude do pintor expressa uma mentalidade crítica já fortalecida naquele momento na
Espanha.

Em uma gravura famosa intitulada O sono da razão (Figura 17), Goya resume o que
pensa das criaturas e seres sobrenaturais usados pela Inquisição como provas em processos do
Tribunal. Para o pintor espanhol não há dúvida na antítese: é o sono da razão que provoca os
monstros terríveis representados por corujas e um gato. Aliás, no desenho preparatório para a
gravura (à esquerda, na Figura 17), o próprio Goya se desenhou vendo-se dormir ou orar,
talvez indicando que o homem deve ―acordar-se‖ a si mesmo pela força do pensamento
ilustrado. Esta gravura, marcada por um racionalismo que libertaria o espírito das ―trevas da
ignorância‖, é uma das que autorizam argumentações como aquela defendida pelo curador
Pablo Rico Lacasa, que considerou que a obra goyesca seria eminentemente moderna por
estar carregada de ―absoluta entrega e generosidade‖ (Lacasa, s/d, p.8). Esta argumentação
se consolida pela aparente dicotomia entre a posição filosófica do artista e a Santa Inquisição.

―O ano de 1799 viu a publicação de Caprichos, uma série de oitenta gravuras


precedidas pelo auto-retrato, o qual foi posto à venda no dia 6 de fevereiro. Quinze
dias depois, quando 27 peças haviam já sido vendidas, ao preço de uma onça de
ouro cada, a ediçãofoi retirada, possivelmente através da influência da Inquisição
ou por medo de sua intervenção. Vinte anos mais tarde, Goya, então um refugiado
em Bordeaux, escreveu para Joaquim Ferrer: ‗Os Caprichos... Eu dei para o Rei...;
e ainda assim eu fui denunciado à Santa (Inquisição)‘. Nesta série Goya alcança um

133
dos ápices de sua arte, aquela mais rigorosamente relacionada ao espírito popular e
que realmente o tornou internacionalmente famoso, devido ao seu caráter (tipo)
narrativo direto e espontâneo, mas também por causa da representação do
dramático, do absurdo e do estranho‖ (Gudiol, 1986, p.19).

Com esta série o pintor parece ter tentado uma ―arte testemunhal e comprometida,
de denúncia e protesto. Matando dois coelhos com uma cajadada. Lutando contra as
‗extravagâncias‘ e ‗embustes‘, e tensionando a ‗fantasia do artífice‘, sua própria capacidade
criadora‖ (Lopera, 1996, p.44). É o próprio Goya que escreve no texto de apresentação da
coleção:

―Coleção de gravuras de assuntos caprichosos, inventadas e gravadas à água-forte


por Dom Francisco de Goya. Persuadido o autor de que a censura dos erros e
vícios humanos (embora pareça peculiar da eloqüência e da poesia) pode também
ser objeto da pintura, escolheu como assuntos para sua obra entre a multidão de
extravagâncias e dasacertos que são comuns em toda sociedade civil e entre as
preocupações e embustes vulgares, autorizados pelo costume, a ignorância ou o
interesse, aqueles que acreditou aptos para fornecer matéria para o ridículo e
exercitar ao mesmo tempo a fantasia do artífice‖ (citado por Lopera, 1996, p.44).

Da crítica racionalista passamos para as conseqüentes cenas chocantes de Expelindo


Gases (Figura 18) e Todos Caerán (Figura 29). Em Expelindo, há repugnante pedofilia que
está envolta num clima de prazeres sádicos que são chocantes até para o apreciador atual da
obra goyesca. Um bruxo alto e magro tortura uma criança, que lhe serve de fole para uma
espécie de lampião à esquerda. Outro bruxo chupa o pênis de uma criança pequena, abaixo.
Figuras esqueléticas observam tudo. Bebês são trazidos por um monstro voador. Um outro
monstro está ao fundo com o rostro meio virado para trás, parecendo gozar de prazer. A
grosseria da gravura mostra um Goya inquieto e indignado com os descalabros morais
envolvidos pela crença no feitiço.

O mesmo descalabro moral é denunciado em Todos Caerán, só que nesta gravura as


belas mulheres, acompanhadas de uma bruxa velha, parecem prostitutas-bruxas que aguardam
a descida dos membros das camadas mais altas da sociedade, que voam esperando sua vez.
Ocorre que aquele que já está entre ela aparece depenado e tem objetos sendo introduzidos em
seu ânus enquanto vomita sangue. Pode haver alusão à sífilis ou ao fato de que uma prostituta
poderia tirar os bens de um homem. Se há um depenado, isto deve indicar que todos serão
depenados, como em outra gravura que não reproduzimos aqui e que se chama Assim eles
vão, depenados. ―‗Depenados‘ significava ‗despojados‘ e também poderia significar
‗calvície‘, um sintoma da doença (...)‖ (Wright, s/d, p.29).

134
Em No Te Escaparás (Figura 31) e No Hay Quien Nos Desate (Figura 32), volta-se
ao tema cobiça por mulheres X vida moralmente regrada. Em No Te Escaparás ocorre, mais
uma vez a disputa renhida pelos prazeres que só as mulheres podem oferecer, diferentes dos
prazeres da gula ou da riqueza, por exemplo. Notemos que os homens, representados em
figuras voadoras que lembram abutres, são guiados por um ser meio-coruja, que parece
remeter à crendice das corujas-vampiras. Já em No Hay Quien Nos Desate surge a luta entre a
manutenção dos laços amorosos – aqui representados materialmente por uma corda que
enlaça o casal – e a tentação demoníaca da coruja. As fixações sexuais e as afetações imorais
de comportamento, estão, para Goya, no mesmo quadro da loucura e das crendices.
Poderíamos até adentrar-nos pela Psicologia e pela Antropologia e supor que uma libido que
se exterioriza de uma forma considerada diabólica pela cultura está relacionada com outras
perversões, dando forte base de sustentação para esta intuição do pintor duzentos anos antes
do presente.

Mas, não faremos tal análise para não desviar o olhar da noção de Pedagogia do
Desprezo. Destacamos, porém, que é na imensa obra A Família de Carlos IV (Figura 26) que
estas variáveis aparecem juntas. Uma família real aparece com semblantes temerosos –
provavelmente numa referência à crise política que enfrentaram – e com atitudes moralmente
duvidosas: a Rainha, ao centro, tem no cabelo o grampo que lhe teria dado o amante Manoel
Godoy, seu protegido. A filha da Rainha, infanta Maria Isabel, aparece com o mesmo grampo,
numa referência a uma possível origem bastarda. O grampo reapareceria em As Velhas, já
analisado aqui. À esquerda, muito próxima, a noiva do Príncipe aparece com o rosto voltado
para trás, pois o noivado não havia sido anunciado. Uma figura de mulher velha e tenebrosa,
ao fundo e à esquerda, tem a expressão de uma bruxa. O próprio Goya – lembrando
Velásquez em As Meninas –se retratou neste quadro, na extrema esquerda, ao fundo, meio de
costas para a Família Real, observando tudo com um ar de serenidade. Aqui, a Corte devassa
e decadente serve para dar uma mostra do pensamento político-filosófico – e até moral – do
artista.

Além dos exageros e desvios da nobreza, Goya centrou suas baterias contra a loucura
que se impõe através da ignorância e do medo. Em Disparate Furioso (Figura 21), A Loucura
do Pateta (Figura 22) e O Temível Louco (Figura 23), vê-se o vazio do assombramento que,
no entanto, impera graças à fragilidade espiritual e intelectual dos homens. A primeira delas,
também conhecida como Loucura Cruel, mostra o contato, provavelmente inicial, do autor
com a loucura, no asilo de Saragoza. A cena, que deve ter sido presenciada por ele, varia da
alienação (figura à direita e figuras ao fundo) à enorme violência do personagem principal,
que está em movimento da esquerda para a direita após ter arpoado a cabeça do personagem
que está caindo. Parece que o pintor foi buscar nas crendices presentes nas outras duas
gravuras aqui citadas, o motivo da loucura. Em A Loucura e O Temível há gigantes horrendos

135
que são falsos monstros. O pateta seria Bobalicón (Wright, s/d, p.56), representando aqui a
adoração supersticiosa de imagens sagradas ou maléficas pela Igreja Católica. Um monge
tenta combater o pateta com outro falseamento: segura uma imagem envolta em panos para
atrair a atenção do bobo. Aliás, tudo se passa num clima de absurdo, pois os personagens
centrais – Bobalicón e a figura que o monge arrasta – são simplesmente irreais. Há distorções
de formas que aceleram a sensação de movimento.

O clero católico foi outro alvo para o gosto do artista. Em Contra o Bem Comum
(Figura 27), Qué Pico de Oro (Figura 30) e Ya es Hora (Figura 33), o clero aparece
preguiçoso, idólatra e ambicioso. A Figura 27 mostra um clérigo com asas de morcego
sentado sobre o globo e fazendo anotações. Na Figura 30 há uma cena de idolatria que tem
por centro, mais uma vez, a coruja, agora rodeada de religiosos católicos. Em Ya es Hora,
padres preguiçosos bocejam suas faces disformes horripilantes.

Enfim, Goya representa com maestria a Pedagogia do Desprezo, opondo, mesmo


com certa ambigüidade, a razão às crendices. Deste discurso ilustrado havia nascido uma
prática processual ―branda‖ e excludente, que estigmatiza tudo que não é ―racional‖ como
sinônimo de atraso e ignorância. Antes mesmo de Goya, a própria Inquisição se encaminhara
neste sentido, mas o artista aprofunda a influência do desprezo e do racionalismo, levando
suas críticas para o campo moral. A gravura que aparece na Figura 35, O Abutre Carnívoro, é
a alegoria de Goya para representar a Santa Inquisição. Esta gravura sintetiza o pensamento
do pintor: o monstro terrível é expulso por um camponês (ilustrado?), enquanto a multidão vê
o desenrolar da cena. Ou seja, enquanto a Inquisição usou o desprezo para combater o feitiço,
Goya usou a mesma noção para combater a própria Inquisição.

Em Significado nas Artes Visuais, Erwin Panofsky busca em Kant um conceito de


humanitas, relacionando-o com a ―trágica e orgulhosa consciência no homem de princípios
por ele mesmo aprovados e auto-impostos‖ (Panofsky, 1979, p.20). A consciência desta
condição representada pela palavra humanitas tem duas origens. Numa leitura medieval, o
homem é oposto à divindade e concebido vinculado às noções de fragilis (frágil) e caduca
(transitório). Por outro lado, numa origem antiga que foi retomada pelo Renascimento e
aprofundada pelo Iluminismo, o homem se opõe à natureza e a outros homens (bárbaros). Sua
virtude está em unir liberdade e racionalidade. ―É dessa concepção ambivalente de humanitas
que o humanismo nasceu. Não é tanto um movimento como uma atitude, que pode ser
definida como a convicção da dignidade do homem, baseada, ao mesmo tempo, na insistência
sobre os valores humanos (racionalidade e liberdade) e na aceitação das limitações humanas
(falibilidade e fragilidade); daí resultam dois postulados: responsabilidade e tolerância‖
(Panofsky, 1979,p.21).

136
O desprezo dispensado, na Idade Moderna, pelos homens cultos às manifestações de
―crendices‖ e ―misticismo‖ foi um episódio da difícil relação entre as duas formas de
humanitas. Porém, aqui nos interessa uma conseqüência deste processo: o destino desta
tendência foi a desmitologização da cultura de uma forma geral e a abertura de uma nova
mentalidade para a aceitação de princípios cada vez mais laicos na aplicação do direito, como
veremos no próximo capítulo.

137
NOTAS DE REFERÊNCIA

(1) - Este paralelismo entre culpa, defesa e apenamento não gerou uma tradição
jurídica para os Estados Nacionais. Por outro lado, o princípio moderno de que a pena deve
ser capaz de regenerar o culpado – essencial à justiça dos estados ocidentais contemporâneos
– parece ter recebido forte influência da noção cristã de perdão, tão presente no imaginário do
Santo Ofício! Afinal, na justiça secular dos nossos dias, o provimento da pena pressupõe a
capacidade do Estado de promover a regeneração do preso, da mesma maneira que os réus
reconciliados eram tidos pelo Tribunal do Santo Ofício como reintegrados à fé cristã. Havia,
no Santo Ofício, até penas de (re)catequização do pecador com obrigatoriedades litúrgicas.

(2) - Referimo-nos aqui ao ambiente desencantado conceituado por Max Weber para
caracterizar a relação do homem contemporâneo com a fé e com a morte (Weber, 1992, p. 431
a 453). Esta ―nostalgia‖ mística do homem ocidental hodierno pode dificultar ao historiador a
visualização de facetas abstratas nas temáticas que aborda.

(3) - Esta diferenciação entre heresia e magia não é consensual. Evitamos fazê-la
com a contundência do autor, pois acreditamos ser preciso aprofundar os estudos para definir
se há diferenças claras entre o discurso inquisitorial quando este se volta contra a magia e
quando se dá contra a heresia.

(4) - De agora em diante, todas as citações que utilizem a língua portuguesa com
ortografia antiga serão precedidas pela palavra latina antiquo neste formato: ANTIQUO. Se a
citação ocorrer no corpo do texto principal, a mesma palavra aparecerá entre parênteses ao
final do trecho citado. Alguns poucos grafismos e pontuações foram atualizados para permitir
a compreensão. Há casos que se devem a erros do notário, mesmo se considerada a época do
documento.

(5) - Vemos a autenticidade no sentido da crítica documental tradicional da História.


Nela, o documento pode conter dois tipos de verdades. Ao confrontar-se com a fonte
documental, o historiador deve perguntar-se se ela carrega uma verdade ―externa‖, ou seja, se
se trata de documento autêntico no sentido de ter sido produzido realmente na época, lugar e
pelo autor referidos. Em seguida, na busca de uma crítica ―interna‖, devemos questionar se
haveria algum interesse ou motivo que levasse o(s) agente(s) a mentiras, inverdades ou
falseamentos formais. Os falseamentos formais podem parecer verdadeiros em sua época
graças ao hábito de sua utilização.

(6) - A série de reproduções das obras de Goya, escolhidas para este trabalho,
encontra-se ao final do capítulo II, entre este e o capítulo III.

138
CAPÍTULO III

O SENTIDO DAS FONTES NO DIREITO INQUISITORIAL E


NAS NARRATIVAS DO MEDO DE BRUXA

139
―Todo o processo penal e os meios mais rigorosos de obtenção da confissão ou do
arrependimento – incluindo a tortura e a execução – são considerados ―remédios‖
para a alma. Trata-se, antes de mais, de estimular a verdadeira contrição do
acusado e de lhe fornecer os meios para salvar a sua alma, mesmo se isso deva ser
feito contra a sua própria vontade e com o sacrifício da própria vida: os
inquisidores argumentam freqüentemente que os impenitentes podem renegar os
seus erros antes do último suspiro, rodeados pelas chamas, graças ao rigor da pena
capital.‖

(Francisco Bethencourt, 1994, p. 308)

140
1.EM TORNO DAS FONTES HISTÓRICAS: O FORMAL, O MATERIAL
E O TEOLÓGICO NA RACIONALIZAÇÃO DO DIREITO

O direito inquisitorial representou, do ponto de vista da nossa atual concepção de Justiça,


um enorme avanço para o desenvolvimento dos princípios de investigação e impessoalidade
como base para a processualística. Os documentos pertinentes a este direito são uma excelente
fonte para o estudo da Inquisição. Consideramos, aliás, ser esse o principal estudo documental
e analítico. O surgimento, no Ocidente, de uma justiça capaz de objetivar o conhecimento do
crime através de provas, representou, mais tarde, a dispensa de uma autoridade clerical ou
mesmo nobiliárquica com pretensa inspiração divina para julgar e aquilatar a culpa. O ato de
ordenação, que torna um indivíduo parte do clero católico, dá-lhe um papel teologicamente
reconhecido de elo de ligação entre os fiéis e Deus. Numa trilha percorrida somente pela
cultura ocidental, o direito iria, em período posterior à era inquisitorial, afastar-se e desligar-
se totalmente da classe dos sacerdotes. Este processo de afastamento, porém, já estava em
curso quando das transformações desmitologizadoras ocorridas no próprio direito
inquisitorial.

Neste terceiro capítulo, assim como foi feito no estudo iconográfico da última parte
do capítulo anterior, buscaremos aplicar nas amostras do medo de bruxa o caminho teórico-
metodológico que propomos à luz da nova noção de Inquisição sistematizada como tarefa
principal deste trabalho. Aqui, faremos a busca em regimentos (análise da racionalização
formal) e processos (mitocrítica). Na conclusão, a noção de inquisidor-mártir-purificador
pretende ser a síntese conceitual deste nosso esforço. Antes, porém, é preciso caminhar em
torno das fontes e perceber suas origens e circunstâncias históricas. Principalmente, veremos
que os documentos inquisitoriais exprimem atos de direito com fortes raízes na forma como
se deu a relação entre fé cristã e poder secular na história ocidental.

Para chegar à especificidade ocidental, Max Weber analisou a constituição do direito


em diversas culturas, inclusive na Ásia e no mundo árabe. A conclusão a que ele chegou
quanto à singularidade do processo de racionalização e secularização que se deu no Ocidente,
envolveu diretamente o papel da Inquisição, que foi citada em duas passagens escritas por
Weber para Economia e Sociedade em seu segundo volume (Weber, 1999. p. 100 a 116).

Na compreensão do movimento que trouxe o direito ao formato atual no Ocidente,


devemos visualizar a justiça como era praticada antes da racionalização investigativa,
processual (formal) e burocrática das cortes ocidentais. O direito não-formal ―costuma ser
criado‖ (...) ―pelos poderes autoritários apoiados na piedade, tanto a teocracia quanto o
príncipe patrimonial‖ (Weber, 1999, p.101). O hierarca, o déspota ou o demagogo não

141
querem os limites do direito quando estabelecidos em formato racional quanto a valores éticos
naturais. Entretanto, o próprio Weber acrescenta:

―(...) com execeção daquelas normas que são obrigados a reconhecer como
religiosamente sagradas e, por isso, absolutamente compromissórias. Para todos
eles constitui um obstáculo a contradição inevitável entre o formalismo abstrato da
lógica jurídica e a necessidade de cumprir postulados materiais por meio do direito,
pois o formalismo jurídico específico, ao fazer funcionar o aparato jurídico como
uma máquina tecnicamente racional, concede ao interessado individual no direito o
máximo relativo de margem para sua liberdade de ação e, particularmente, para o
cálculo racional das conseqüências e possibilidades jurídicas de suas ações
referentes a fins‖ (Weber, 1999, p.101).

A justiça, então, era o que se denomina de ―justiça popular‖: ―toda justiça popular
julga, e isto tanto mais quanto mais tem este caráter, segundo o ‗sentimento‘ concreto,
condicionado por convicções éticas, políticas — especialmente em Atenas, mas também hoje
em dia — ou político-sociais‖ (Weber, 1999, p.103). A hegemonia e unicidade desta ―justiça
popular‖ desapareceu. Aliás, o direito transformou-se ―por toda parte‖ (Weber, 1999, p.100):
partiu da irracionalidade formal-ritualista ligada a clãs, teocratas ou príncipes patrimoniais
para diversas formas de racionalização. Na Europa cristianizada, a racionalização deu -se, em
princípio, para atender a interesses econômicos, estratégicos e simbólicos do clero e da
nobreza. A racionalização acabaria por propiciar, mais tarde, uma separação entre um direito
para assuntos pertinentes à religião e outro ―para a resolução dos conflitos de interesses
religiosamente indiferentes entre os homens‖ (Weber, 1999, p.101).

O sociólogo faz estas ponderações para permitir sua argumentação propriamente dita.
A argumentação inicia-se com uma visão geral da história do direito, mas deságua em
exemplos que incluem a Inquisição:

―A antiga justiça popular, originalmente um procedimento expiatório entre os clãs,


é por toda parte arrancada de sua primitiva irracionalidade formalista pela ação do
poder principesco e magistrático (proscrição, imperium) e, eventualmente, do poder
sacerdotal organizado, sendo ao mesmo tempo fortemente influenciado por estes
poderes o conteúdo do direito. Essa influência difere de acordo com o caráter da
dominação. Quanto mais o aparato de dominação dos príncipes e hierarcas era de
caráter racional, administrado por ―funcionários‖, tanto mais tendia sua influência
(no ius honorarium e nos meios processuais pretórios da Antiguidade, nas
capitulares dos reis francos, nas criações processuais dos reis ingleses e do lorde
Chanceler, no procedimento inquisitorial eclesiástico) a dar à justiça um caráter
racional quanto ao conteúdo e à forma (ainda que racional em sentidos diversos), a

142
eliminar meios processuais irracionais e a sistematizar o direito material, e isto
significava sempre também: a racionalizá-lo de alguma forma‖ (Weber, 1999, p.
100. Grifo nosso em negrito).

A racionalização do direito pode apresentar muitas faces. Essencialmente, jamais se


deve iludir de que tenha se tratado de uma ―humanização‖ deliberada da Justiça. Weber
aponta muito claramente a relação entre os interesses materiais e o ―racionalismo‖ das classes
dirigentes. A grande modificação, entretanto, está na superação gradual de crenças mágicas
como critério para se fazer justiça. A justiça permaneceu alheia à idéia de se constatar
racionalmente um fato, seguir indícios e obter testemunhos em interrogatórios racionais
(Weber, 1999, p. 102). O poder público não tinha o dever de construir o processo. As partes
solicitavam e o juiz só devia ou precisaria fazer o que lhe era solicitado. Sobre a relação do
juiz com as partes, Weber demonstra que tal ―frouxidão‖ na verdade encobre o exercício da
desigualdade e a violação de princípios éticos e racionais:

―O juiz não as obriga a fazer coisa alguma que elas próprias não peçam.
Precisamente por isso, o juiz não pode corresponder, naturalmente, à necessidade
de um cumprimento ótimo de exigências materiais dirigidas a uma justiça que
satisfaça o sentimento de conveniência e eqüidade concreto, em cada caso, quer se
trate nessas exigências materiais de pretensões motivadas por considerações
político-racionais referentes a fins, ou ético-sentimentais, pois aquela liberdade
máxima, concedida pela justiça formal, dos interessados na defesa de seus
interesses formalmente legais, já em virtude da desigualdade na distribuição do
poder econômico que por ela é legalizada, necessariamente leva sempre de novo ao
resultado de que os postulados materiais da ética religiosa ou da razão política,
parecem violados‖ (Weber, 1999, p. 102).

Esta diferença é crucial para se compreender o papel do Tribunal do Santo Ofício


quando da ruptura com a antiga tradição jurídica a que se refere Weber. O Santo Ofício
representa, pela sua própria existência, a distinção entre uma justiça religiosa ligada ao clero e
uma justiça secular ligada ao Estado. Tal distinção deu-se de forma singular no mundo
cristão. Os fatores que aceleraram ou garantiram esta separação foram elucidados na obra do
mestre alemão em relação a três aspectos que desenvolveremos a seguir: uma peculiaridade
interna; a posição do poder sacerdotal em relação ao político e a estrutura do poder político
(Weber, 1999, p. 114 e 115).

A peculiaridade interna está na própria origem histórica da religião cristã, que surgiu
na Antiguidade à parte do Estado ainda que referente a formas extintas de Estado, manteve tal
distanciamento em outras circunstâncias históricas, como nos dias de hoje – e, por isso

143
mesmo, teve com o direito uma relação de exterioridade. Poderíamos, para trabalho futuro,
investigar se a criação da Inquisição não se deveu a uma espécie de necessidade de mínimo
ordenamento do cotidiano dos cristãos, posto que o poder secular não teria tido sempre as
diretrizes da ética religiosa como base de sua ação judicial.

―O direito canônico do cristianismo ocupava, diante de todos os demais direitos


sagrados, uma posição especial pelo menos quanto ao grau. Primeiro, partes
consideráveis dele mostravam um desenvolvimento racional e formal-jurídico
muito mais intenso do que os outros direitos sagrados. Além disso, encontrava-se
desde o início num dualismo relativamente claro — com separação razoavelmente
nítida dos dois âmbitos, como nunca existiu antes dessa forma — em relação ao
direito profano. Isto foi, em primeiro lugar, a conseqüência da circunstância de que
a Igreja recusara durante séculos, na Antiguidade, qualquer relação com o Estado e
o direito. O caráter relativamente racional resultou de várias circunstâncias
diferentes. Quando a Igreja se viu obrigada a procurar uma relação com os poderes
profanos, ela preparou, como já vimos, essa relação com a ajuda das concepções
estóicas do ‗direito natural‘, isto é, uma construção teórica racional. Em sua
administração própria continuavam vivas, além disso, as tradições racionais do
direito romano. No início da Idade Média, a Igreja ocidental procurou, então (na
primeira criação de direito realmente sistemática por ela realizada: as ordens
penitenciais), orientar-se precisamente pelos componentes mais formais do direito
germânico. Na Idade Média, o ensino universitário ocidental separou os estudos de
teologia, por uma lado, e os de direito profano, por outro, do ensinamento jurídico
canonístico e impediu, assim, o nascimento de criações mistas de natureza
teocrática, tais como surgiram por outra parte. A metodologia rigorosamente lógica
e especificamente jurídica, orientada, por um lado, pela filosofia e, por outro, pela
jurisprudência da Antiguidade, não podia deixar de exercer influência muito forte
sobre o tratamento do direito canônico‖ (Weber, 1999, p. 114).

A este respeito, vemos que o Santo Ofício estava paulatinamente caminhando na


direção de afastar-se do campo do direito secular. O último regimento inquisitorial português
foi o de 1774, em plena Era Pombalina (ver Cavalcanti, 1990), mas, quando o Marquês caiu,
D. Maria assumiu o trono e fez uma encomenda especial a D. Frei Ignacio de São Caetano, do
Conselho da Rainha: escrever novo regimento para a Inquisição. A encomenda foi realizada,
mas o texto nunca vigorou realmente. Porém, é curioso notar que o projeto trazia noções da
separação entre as duas formas de direito, inclusive, buscando respeitar em parte o
secularíssimo direito à livre opinião. Por exemplo:

144
―I — Os sodomitas serão condenados a servirem nas galés de cinco até dez anos
com hábito particular que os distinga dos outros, e havendo o juízo secular
conhecer deste crime o Santo Ofício se não intrometerá‖ (In: Siqueira, 1996,
p.996. Grifo nosso).

―VIII — Os crimes de solicitação, sodomia e outros semelhantes se julgarão


provados com aquela prova que se declara no Código Criminal no Título Dos
delitos ocultos, e de difícil prova‖ (In: Siqueira, 1996, p.999. Grifo nosso).

―IV — Os Inquisidores na materia de indícios e presunções se governarão pela


disposição do Código Criminal no título respectivo‖ (In: Siqueira, 1996, p.1000.
Grifo nosso).

―XVI — Não é crime duvidar da justiça e retidão do Santo Ofício, nem de outro
qualquer tribunal humano‖ (In: Siqueira, 1996, p.1001. Grifo nosso).

Muito antes, o Regimento de 1640 também fazia distinções. Ao qualificar o feitiço,


ressalvou que ―(...) por quanto ainda que ao santo Ofício pertença castigar somente os
feitiços, e mais crimes semelhantes, e não as mortes, perdas, e danos, que deles se seguirão
com tudo como estes fiquem fazendo muito mais grave a culpa, é justo, que conforme as
circunstâncias dela se lhe acrescente a pena‖ (In: Siqueira, 1996, p.856. Grifo nosso).
Também o Regimento de 1774 foi, ele próprio, motivado pelo desejo de controle do Estado
sobre o Tribunal do Santo Ofício, o que implicava distinguir sua área de atuação. Sendo
assim, temos uma visão breve, porém ampla, da efetivação, no âmbito inquisitorial português,
do processo a que se refere Weber. Destacaríamos, ainda, que o Tribunal foi capaz de criar
aquilo que chamaríamos hoje de estrutura administrativa, que apresentamos, neste trabalho,
no ANEXO denominado Tribunal do Santo Ofício - Quadro de Cargos e Funções, contendo
os cargos, informações sobre sua origem histórica, requisitos para o exercício e as tarefas
destinadas a cada um.

Desta constatação referente à separação entre o religioso e o secular, surgem o


segundo e o terceiro fatores: o cristianismo não consolidou teocracias no Ocidente. O
absolutismo pode, talvez, ter se aproximado disto, porém manteve uma diferença crucial com
a distinção entre nobreza e clero, além do respeito à autoridade papal. O status de poder da
nobreza sempre se caracterizou pelo binômio terra e espada. Na estrurura do poder político, a
cruz foi aliada numa relação de complementaridade e tensão ao mesmo tempo. Daí a abertura,
no Ocidente, do caminho que levou a um direito distinto da religião. Toda a documentação
inquisitorial reflete esta complementaridade tensa. O sacerdócio não controla a ―totalidade da
vida‖. Em outras culturas, dá-se diferentemente. ―A situação é totalmente diferente onde um
sacerdócio dominante conseguiu regulamentar por rituais a totalidade da vida e manteve sob

145
seu controle, em grande extensão, todo o direito, como é o caso particularmente na Índia‖
(Weber, 1999, p.105). Também na Pérsia: a respeito dela, aliás, Weber parecia premonir o
desfecho ocorrido décadas depois de sua morte, pois atribuiu à força do direito de origem
religiosa naquele país a ―legitimidade precária dos xás persas diante de seus súditos xiitas‖
(Weber, 1999, p. 116).

Naturalmente, surge a pergunta: por que foi diferente no Ocidente? Mesmo não
sendo uma preocupação nossa aqui, pensamos que a prática política da nobreza, desejosa de
manter uma certa distância em relação à classe sacerdotal, impediu o domínio ―total‖ do clero
sobre a justiça. Parece-nos evidente, porém, que não se imaginava, nos primórdios deste
processo de transformação de mentalidade jurídica, que um direito natural universal viria a
substituir o direito religioso ou de origem semi-religiosa. Em função disto, descartamos a
idéia de ―evolução‖ do direito, posto que não poderíamos atribuí-la com exatidão às intenções
dos agentes históricos que protagonizaram esta transformação. Uma tal transformação está
relacionada à desmitologização de valores. No direito, assim como no Tribunal como um
todo, a desmitologização possibilitou a crença em normas mundanas de estados seculares,
algo impensável, por exemplo, na Índia até sua independência, ou na Pérsia (Irã) até os nossos
dias – apesar das tentativas de modernização nas décadas de 1960 e 1970.

A Igreja tem também peculiaridades internas representadas pelo caráter da autoridade


clerical, pela singularidade do jurídico no Livro Santo e por uma ―inversão‖ do canônico ao
profano. A autoridade do clero católico não ocorre imersa no campo místico, pois tem raiz
mundana. Daí sua influência sobre a legislação, pois ―o caráter da legislação eclesiástica era
influenciado pelo caráter racional burocrático de autoridade de seus funcionários, típico —
após o término da época carismática da igreja antiga — da organização eclesiástica, caráter
que, após interrupção feudal na Alta Idade Média, se reanimou e veio a dominar de modo
absoluto‖ (Weber, 1999, p.115).

A Bíblia, diferentemente do que ocorreu com a tradição de juristas ―respondentes‖ no


islamismo e no judaísmo (Weber, 1999, p.115), deixou aberta a seara jurídica no Novo
Testamento, ―por conter um mínimo de normas formalmente compromissórias de caráter
ritual ou jurídico — conseqüência da fuga do mundo escatológica —, possibilitava o livre
desenvolvimento de estatutos puramente racionais‖ (Weber, 1999, p.115). Em conseqüência,
―o direito canônico veio a ser, para o direito profano, quase que um guia no caminho à
racionalidade. Isto se deve ao caráter racional de ‗instituição‘ da Igreja católica, fenômeno
que não encontramos por outra parte‖ (Weber, 1999, p.115). Weber encerra o seu precioso
texto demonstrando a fraqueza de proibições canônicas no mundo medieval — inclusive a
usura, que foi em grande parte recusada e derrotada pelos interesses burgueses (Weber, 1999,
p.115-116). Desbanca-se, então, uma ilusão comum a concepções históricas contemporâneas:

146
a de que o direito religioso basear-se-ia em irracionalidades místicas profundas (fanatismo
inquisitorial) e seria o aversso do direito contemporâneo. Na verdade, o direito de origem
religiosa cristã no Ocidente não só acolheu métodos racionais, como os animou e aplicou.

―Nesta área, a tendência de toda justiça teocrática em averiguar a verdade material


e absoluta e não apenas a formal, em oposição ao direito probatório formalista e
fundamentado na máxima processual do processo profano, desenvolveu muito cedo
a metodologia racional, porém especificamente material, do processo oficial. Uma
justiça teocrática não pode deixar a averiguação da verdade, tampouco quanto a
expiação de um mal já feito, à mercê do arbítrio das partes. Procede de oficio
(máxima oficial) e cria para si um procedimento probatório que lhe parece oferecer
a garantia da averiguação ótima dos fatos verdadeiros: no Ocidente, o „processo de
inquisição‟, adotado depois pela justiça penal profana” (Weber, 1999, p.116.
Grifo nosso em negrito.).

Desta forma, foi a busca teocrática de uma verdade absoluta que permitiu a adoção
da ação investigativa do processo inquisitorial. O formalismo ritualista antigo, vazio de
sentido investigativo, cedeu lugar a um formalismo investigativo-processual que levaria ao
direito natural em oposição ao direito ―materialmente‖ determinado. A análise acima tem um
resultado prático para o historiador. A recolocação de temas históricos é imprescindível para o
período que se convencionou chamar Idade Moderna. Um raciocínio habitual coloca em
campos opostos o nosso direito contemporâneo e o direito inquisitorial. Esta trilha de idéias
associativas começa com a ilusão que opõe luzes e trevas no Renascimento e no Iluminismo.
Daí se convencionou pensar que o mundo moderno fora construído ―heroicamente‖ ao vencer
as trevas medievais. Como se fosse possível uma ordem social totalmente nova, quase
impensável historicamente, onde os valores modernos nada teriam a ver com seus precedentes
e até se oporiam a eles. Vamos desenvolver nossa argumentação neste trecho do capítulo 3 no
sentido de contextualizar na história do direito os reflexos e inserções mútuas das imagens
que correspondem ao direito inquisitorial e ao direito moderno laico.

Em outro trabalho nosso, intitulado A Reconstrução da Intolerância, já vimos que,


mesmo a ―mística iluminista‖ do Tribunal, presente no Regimento de 1774, no período que
sucede às reformas pombalinas, pouco tinha de absolutamente antagônico em relação à
―mística inquisitorial‖ tradicional (ver Cavalcanti, 1990). O caráter expansionista e intolerante
da onda secularizadora que usava um discurso iluminista na Europa, antes se harmonizou com
as práticas do direito inquisitorial português do que o repudiou. Como ocorre em muitas
―versões‖ da História, também aqui criou-se uma ilusão posterior aos fatos. Isto explica
porque a aproximação de valores entre estas duas formas de direito pareça tão estranha aos
estudantes de História dos nossos dias. Devemos perceber que a secularização da própria

147
cultura ocorreu em um processo mais amplo, que influenciou decisivamente o direito, a
História e a expectativa das pessoas sobre o papel da religião em suas vidas. O caso da
Inglaterra na segunda metade da Idade Moderna é paradigmático para anteciparmos a direção
a que levou a secularização:

―Na historiografia, tornava-se cada vez mais antiquado, após os meados do século
XVII, explicar os acontecimentos em termos da Divina Providência. O conde de
Claredon não negava que se podia perceber o dedo de Deus na Grande Rebelião,
mas, ainda assim, ele preferiu se concentrar nas ‗causas naturais‘ que a geraram. A
maioria das pessoas reagia contra os fanáticos que prontamente identificavam as
sentenças de Deus na vida cotidiana, e mesmo as seitas dissidentes passavam a dar
menor relevo do que antes às providências. A Sociedade dos Amigos era o grupo
religioso que mais dera publicidade a tais ‗castigos divinos‘, mas quando o quacre
Thomas Ellwood lançou sua edição do diário de George Fox, em 1692-4, ele
omitiu prudentemente alguns dos ‗castigos‘ a perseguidores, originalmente
mencionados no livro. Em 1701, os quacres puseram termo ao seu costume de
exigir que se fizesse, em cada Reunião dos Amigos, um relatório anual dos
infortúnios enviados por Deus aos seus perseguidores nos últimos doze meses.

A descrença entre elegantes seguia na mesma direção. Na Igreja de Cristo, em


Oxford, em 1666, alguns ‗sábios‘ discutiram publicamente ‗se existe algo como a
providência de Deus‘. Em 1682, Jonh Oldham escreveu:

Há quem conteste toda Providência

E pense que o mundo só é guiado pelo acaso;

No máximo fazem de Deus um espectador ocioso,

Um monarca preguiçoso refestelado no trono‖ (Thomas, 1991, p. 100).

O fiel inglês da segunda metade do século XVII já não colocaria nas mãos de Deus a
realização de toda a Justiça. A mentalidade dos fiéis ingleses chegou a este ponto após todo
um processo desmitologizador que atingiu o cerne da própria fé. Tudo indica que a Península
Ibérica sofreu um processo secularizador diferente: através da Inquisição, a fé católica foi
agente desta tendência dentro da própria cultura.

O direito inquisitorial traduzia uma soteriologia do Estado, na medida em que


buscava princípios purificadores e ascéticos para governar espiritualmente os homens em seu
―mundo vivido‖ (lebenswelt). Mesmo que o objetivo ―real‖ de um Estado não seja o de salvar
ou purificar os homens, seu ―modus operandi‖ implica difusão constante e indispensável da

148
―certeza‖ de que o governante ―olha pelos seus cidadãos ou súditos‖. Esta é uma característica
permanente na sustentação dos Estados. O Santo Ofício levava este olhar para o interior de
cada cômodo, rua ou navio. O sentimento da onipresença do olhar inquisitorial é uma ação de
Estado – mesmo não resultando da vontade momentânea de algum governante – que foi
possível graças à existência da rede de familiares do Tribunal. A consolidação da lógica do
direito inquisitorial só foi possível no Ocidente graças também a fatores outros, tais como: a
dureza do cotidiano urbano moderno na Europa; o poder de convencimento e mobilização dos
atos de intolerância religiosa e o caráter paradoxalmente imanente do olhar teológico da
cristandade. Vejamos estes fatores.

Já vimos que o mundo moderno renascentista não foi uma fortaleza de orgulho e
serenidade. Vemos agora que o direito refletiu o ambiente de medo obsidional. Da mesma
forma, as principais instituições passaram por grandes mudanças no período. Também a
estrutura social transformou-se num ritmo inusual para os antepassados recentes daqueles
europeus do período. As classes subalternas viviam em extrema penúria, mas a vida era dura
para todos. À penúria material somava-se o ambiente de medo. Muitas cidades eram cercadas
por muralhas. Pierre Bonassie refere-se a ―uma época de declínio urbano, caracterizado, a
partir do século XIII, por uma retracção muito sensível da superfície dos aglomerados, que se
amontoam no interior de muralhas exíguas‖ (Bonnassie, 1985, p. 51).

Uma vila portuguesa típica, estudada pelo historiador local Luis Vidigal, apresentou,
até o final do século XVIII, um maior número de domicílios na ―cidade velha intra-muros‖
que em qualquer outra das quatro áreas da cidade. Trata-se de Portimão, no Algarve, que
tinha, segundo dados de 1774, um total de 389 residências. Destas, 128 (32.9%) ainda
estavam para dentro das muralhas em 1774. As outras regiões da cidade eram assim
divididas: Porto da Serra, com 28.8%; Zona da Rua Direita, com 26.7% e Zona da Rua da
Barca, com 11.6% do total geral de domicílios. Somente os dados de 1822 apresentaram uma
modificação deste quadro (Vidigal, 1993, p. 66). Max Savelle, num trecho didático, resumiu
a situação das cidades européias no final da Idade Média:

―‘Como as muralhas fixavam limites ao crescimento exterior da cidade, os edifícios


no seu interior se amontoavam uns sobre os outros. Por ser difícil o espaço, as ruas
eram estreitas. Muitas vezes a lei determinava que uma rua devia ser bastante larga
para permitir que uma pessoa andasse a cavalo no seu centro levando uma lança
atravessada na extensão da largura. Isso estava longe de ser uma medida generosa,
mas os construtores se empoleiravam mesmo sobre essa estreita dimensão, fazendo
com que os andares superiores de suas casas se projetassem sobre a rua. E como as
casas normalmente se erguiam à altura de quatro ou cinco andares, isto redundava

149
em que o sol escassamente chegava a alcançar o leito do logradouro‘‖(citado por
Gonzaga, 1993, p. 51).

Este cotidiano de temores, cerco e sombras guardou imensas aproximações com o


imaginário inquisitorial. O direito esteve em harmonia com os valores daquela época, num
mundo que foi, afinal, antepassado do ―nosso‖ mundo contemporâneo. O cenário histórico
que circunda o direito é tão importante quanto o próprio direito, pois permite sua
compreensão ―para além‖ da tônica lógico-formal do discurso jurídico. O direito inquisitorial
foi historicamente legitimado pelos povos espanhol e português.

A Inquisição criou os maiores eventos de massa da Idade Moderna. Talvez o Império


Romano tenha realizado eventos semelhantes em suas arenas, mas, no período moderno, nada
se comparou aos que realizaram os inquisidores. A importância das classes subalternas na
formação da mentalidade inquisitorial moderna foi imensa, pois foi preciso falar a sua
linguagem para o sucesso dos atos. O espetáculo do auto-de-fé era realizado contando com
aquelas classes. A moldura que aparece na parte inferior de muitas imagens da iconografia
inquisitorial moderna mostra o ―povo‖ assistindo a tudo com atenção e interesse. Este papel
ainda não foi sistematicamente estudado. Mesmo não sendo nosso objetivo fazê-lo aqui,
vemos aí uma aproximação curiosa entre os interesses e expectativas do ―povo‖ e a ―política
pública‖ dos inquisidores. Numa função típica do estilo moderno de fazer política, posto que
didático-coercitivo, o auto trazia para a praça as emoções incontidas e o desejo de justiça e
estabilidade. As ondas incontroladas de intolerância religiosa do século XV foram sucedidas
por uma instituição que foi capaz de oficializar, direcionar e regulamentar esta tendência
anterior, alimentando as massas em sua ―sede de justiça‖.

Admitir a harmonia entre as massas e o Tribunal é tema delicado que enfraquece a


―lenda negra‖ do Santo Ofício, que já conceituamos neste livro. A relação das massas com o
poder no interior de sistemas ou regimes intolerantes é de análise complicada, quer se trate da
Inquisição, do Nazismo ou do Comunismo. O movimento, que transferiu para autoridades
constituídas um impulso que surgira ―espontaneamente‖, tem paralelo no conceito de
unidimensionalização criado por Herbert Marcuse em A Ideologia da Sociedade Industrial
(1978). Segundo ele, a derrota da ―lógica do protesto‖ seria o advento da ―filosofia
unidimensional‖, onde o indivíduo já não teria capacidade crítica que se possa ter como
considerável. O Estado ganharia, com isso, uma estabilidade ―permanente‖, distante de
críticas. Talvez George Orwell tenha chegado a uma conclusão semelhante em seu livro
intitulado 1984 (Orwell, 1984). Também os inquisidores ―unidimensionalizaram‖ a crítica,
ainda que de forma indireta, oficializando-a junto à ortodoxia e ao Estado e desintegrando seu
caráter autônomo.

150
Porém, longe de utilizarmos tal visão como base da análise, interessa-nos aqui
ressaltar um anacronismo na importância que é dada por muitos autores aos ―setores críticos‖
como propulsores da História de uma sociedade. Nesta concepção, só seria possível entender
o Santo Ofício e o direito inquisitorial como agentes de dominação típicos das ―lutas sociais‖.
A conseqüência para a análise histórica é que a imensa manifestação de apoio popular
representada pela presença das massas no entusiasmo do auto-de-fé perderia uma parte do
sentido, pois não se poderia explicá-la. A rigor, uma concepção evolucionista da História é
inadequada para compreender a relação entre a Inquisição e a sociedade portuguesas. Tema
constrangedor para tantos quantos precisam ver no Tribunal do Santo Ofício uma
―monstruosidade histórica‖, a percepção desta aproximação harmoniosa entre ―povo‖ e
intolerância diluiria as ilusões e idealizações que imaginam o ―povo‖ como um agente de
recusa dos valores da ascese inquisitorial. As fontes históricas não nos permitem afirmar a
existência de um antagonismo generalizado entre o Santo Ofício e a ―vontade‖ popular.

Esta idealização está vinculada a expectativas ideológicas às quais nos referimos em


outra parte deste trabalho. Para analisar as fontes históricas do direito inquisitorial com a
isenção que se faz necessária, é preciso afastar-se de expectativas anacrônicas. A
ideologização está tão entranhada nestes estudos que parece haver um vínculo entre analisar a
Inquisição de uma determinada maneira e ―lutar por um mundo melhor‖: esta seria a
motivação básica de tais estudos. A esse respeito, lembramos uma passagem em que Herbert
Marcuse cita Benjamin para fechar o seu livro, onde revela, afinal, a motivação que lhe
direciona e tinge o olhar:

―A teoria crítica da sociedade não possui conceito algum que possa cobrir a lacuna
entre o presente e o seu futuro; não oferecendo promessa alguma e não ostentando
êxito algum, permanece negativa. Assim, ela deseja permanecer leal àqueles que,
sem esperança, deram e dão sua vida à Grande Recusa. No início da era fascista,
Walter Benjamin escreveu: ‗Nur um der Hoffnungslosen willen ist uns die
Hoffnunggegeben‘.

―Somente em nome dos desesperançados nos é dada esperança‖ (Marcuse, 1978, p.


235).

Hannah Arendt também fez objeções que nos permitem refletir. Ela nos desvenda os
vínculos entre a intolerância, o totalitarismo do século XX e o discurso teórico da História,
aparentemente apartado dos primeiros fatores.

151
―A afirmação monstruosa e, no entanto, aparentemente irrespondível do governo totalitário é
que, longe de ser ―ilegal‖, recorre à fonte de autoridade da qual as leis positivas recebem a sua
legitimidade final; que, longe de ser arbitrário, é mais obediente a essas forças sobre-humanas que
qualquer governo jamais o foi; e que, longe de exercer o seu poder no interesse de um só homem, está
perfeitamente disposto a sacrificar os interesses vitais e imediatos de todos à execução do que supõe
ser a lei da História ou a lei da Natureza. O seu desafio às leis positivas pretende ser uma forma
superior de legitimidade que, por inspirar-se nas próprias fontes, pode dispensar legalidades menores
(...).

―A legitimidade totalitária, desafiando a legalidade e pretendendo estabelecer diretamente o


reino da justiça na terra, executa a lei da História ou da Natureza sem convertê-la em critérios de certo
e errado que norteiem a conduta individual‖ (Arendt, 1989, p. 513 e 514).

Este é o risco que corremos ao estudar a intolerância: o risco de legitimá-la. Por


estarmos tão perto dela, acabaríamos por considerá-la ―natural‖. A mesma lógica que faz
historiadores verem a Inquisição como um monstro – contrária, portanto, à natureza da
História – leva ideólogos a legitimarem como naturais e positivas outras formações históricas
intolerantes ou a própria Inquisição. Na ótica de Hannah Arendt, o discurso cientificista teria
chegado a um ponto que, no século XX, já nem seria preciso buscar uma ascese (com critérios
para a conduta individual), pois para justificar o totalitarismo bastaria ―apelar‖ para o
significado ―natural‖.

Vemos o direito inquisitorial na conjuntura histórica que o definiu, mas não o


tomamos por natural. Nem mesmo admitiremos que o direito faça parte das ações humanas
que, como vimos, Kant vislumbrou como sendo o esforço natural de árvores que buscam uma
altura maior para melhor receberem raios solares. A contextualização histórica explica o
direito inquisitorial e sua influência sobre os dias de hoje. Desmistifica-se a idéia de que teria
havido uma ruptura/superação do Tribunal por forças absolutamente antagônicas a ele. Isto
não implica, entretanto justificativas para a Inquisição.

Aproximar-se do que seria o ―monstro‖, ou seja, conhecer e analisar um processo


intolerante, é um ato carregado de ambigüidades, pois nossa civilização construiu -se sobre
uma profusão de atos intolerantes. Dirá o leitor, talvez, que o mesmo vem ocorrendo com
todas as civilizações. Entretanto, o ambiente crítico e autocrítico que a cultura ocidental forjou
para si na modernidade trouxe uma consciência coletiva profunda que levou o Ocidente a
sentir o ―remorso‖ crítico pelos atos cometidos no passado e no presente. A repressão e o
direito inquisitoriais foram fatores de manutenção da civilização cristã medieval, quando
ainda não existiam os Estados Nacionais fortes da segunda metade da Idade Moderna. Em
outro capítulo, percebemos que a força civilizadora do cristianismo está ligada à idéia de
pecado – também presente no direito inquisitorial – que permite a constrição e a limitação dos

152
impulsos individuais em nome do convívio nas comunidades cristãs e da estabilidade
econômica das famílias. O esgotamento da Civilização Romana deixou espaços e clarões que
foram preenchidos pela cristianização.

Mesmo a ordem jurídica secular dos Estados absolutistas guarda semelhanças com a
Inquisição. Questionamos, até, se a ordem teria sido inversa: será que a Inquisição Moderna é
que teria se espelhado na ordem absolutista? Sem entrar neste mérito, percebemos que os
métodos e as justificativas de ambos são, muitas vezes, parecidos. Porém, o debate de fundo
que permite retornar às raízes desta questão – como requer a metodologia que escolhemos –
dá-se no campo da teologia. No nosso modo de entender, desmitologização e intolerância
estiveram associados. Em geral, o senso comum indica que a intolerância religiosa ocorreria
como resultado de um fanatismo místico exacerbado. Esta vinculação ilusória entre mística e
fanatismo não se vê na História da Inquisição. Na verdade, o cristianismo moderno da caça às
bruxas já estava bem mais ―secularizado‖ que aquele que o antecedeu. O cerne do ato
investigativo inquisitorial moderno – a inquirição – nada mais é que um ato que põe em
dúvida e tenta ―localizar‖, descrever e compreender componentes místicos que serviriam de
base aos processos.

O direito inquisitorial foi, então, a expressão mais visível do processo de


desmitologização de valores na cristandade. Uma componente tomista esteve presente nesta
tendência. Ao diminuir na fé o seu lado místico (buscando afirmá-la pela via da razão
aristotélica), a Igreja limitou a principal forma de comunicação do cristianismo com os seus
fiéis. A Inquisição manteve este curso e formalizou seus princípios em regimentos e
processos. O cristianismo está repleto de múltiplas interpretações do texto sagrado. Os trechos
que dariam a base da intolerância inquisitorial (ver capítulo 1) estão aquém das finas
interpretações que alguns apóstolos deram ao dever de pregação e ânimo dos cristãos sem o
apelo místico. Mateus (4,1-11), por exemplo, vê Jesus tentado pelo diabo no deserto:

―Depois de ter jejuado quarenta dias e quarenta noites, acabou sentindo fome. O
tentador aproximou-se e lhe disse: ‘Se és o Filho de Deus, ordena que estas pedras
se transformem em pães‘. Mas ele respondeu: ‘Está escrito: Não só de pão viverá o
homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus‘.

―Então o diabo o leva à Cidade Santa, coloca-o sobre a cumeeira do Templo e lhe
diz: ‘Se és o Filho de Deus, atira-te para baixo, pois está escrito: Ele dará a teu
respeito ordem a seus anjos e eles te carregarão nas mãos, para evitar que
contundas o pé em alguma pedra‘. Jesus lhe diz: ‘Também está escrito: Não porás
à prova o Senhor teu Deus‘. O diabo o leva ainda a uma montanha muito alta;
mostra-lhe todos os reinos do mundo e seu esplendor e lhe diz: ‘Tudo isso te darei,
se, prostrando-te, me adorares‘. Então Jesus lhe diz: ‘Retira-te Satanás! Pois está

153
escrito: Ao Senhor teu Deus adorarás e só a ele prestarás culto‘. Então o diabo o
deixou, e eis que se aproximaram anjos e o serviram‖ (Mateus 4, 1-11).

Esta difícil relação entre o místico e o imanente já estava, então, originalmente no


Novo Testamento. Mesmo que Jesus tenha recusado o poder mundano sobre todos os povos
da Terra – recusa que simboliza a oposição ao ―histórico‖, ao mundano –, vê-se que os
chamados Doutores da Igreja apenas inseriram, num caminho já aberto, a busca pelos
―instrumentos mediadores‖ que permitiriam aos homens o maior conhecimento da fé. Esta
inserção é, em si mesma, evolucionista e historicista, posto que a relação com a fé passa a ser
dependente do avanço intelectual e tecnológico dos instrumentos de mediação. O dogma
perde significado em si. Na encíclica Fides et Ratio, de 1998, o papa João Paulo II (1999)
adota, por exemplo, uma fórmula agostiniana: intellego ut credam. Esta fórmula utiliza
radicalmente a razão para poder crer. O trajeto da fé escolhe o caminho da filosofia para,
investigando a inteligibilidade do ser, chegar a Deus e, talvez, à Revelação. Este círculo
hermenêutico entre Fé e Razão dá origem à vocação (beruf) teológica.

A ação religiosa é, então, uma função específica do clero: formado em Teologia,


estudioso da Patrística e conhecedor da Bíblia, somente ele terá sistematizado adequadamente
a palavra do Senhor através dos mais pertinentes instrumentos criados pelo homem. A
competência e a eficiência da pregação dependerão da formação adequada do clero. A
―profundidade‖ teológica e a constante atualização da exegese bíblica dão ao fiel o sentido da
enorme distância que o separa deste ―mundo da fé‖. Uma fé teologizada serve à autoridade e
aos interesses do clero como elo indispensável entre o homem e Deus.

Mateus antecipou esta vocação da Igreja na passagem que citamos há pouco, onde as
escolhas estão na encruzilhada metafórica à qual vemos chegar Jesus, levado pelo diabo. Jesus
vem vindo do jejum de quarenta dias quando três caminhos tentadores se lhe apresentam: a)
uma religião alienante/mágica expressa no desafio de transformar pedra em pão; b) uma fé
nas obras extraordinárias, onde tudo se resolveria pela ação milagrosa de Deus, que salvaria
Jesus na queda do alto do Templo ou c) a associação com o diabo, onde este lhe entregaria o
poder terreno de todos os governos, pois, diz o próprio demônio, ―a mim que ele foi entregue
e eu o dou a quem eu quiser‖ (Lucas 4, 5). Jesus renega os três e é ajudado pelos anjos. Esta
―leitura teológica‖ para uma passagem tão simbólica é muito elucidativa para o entendimento
do nosso argumento. Na primeira tentação, o diabo estaria propondo que Jesus fugisse da
difícil condição humana (conceito muito próximo da ciência) através de um passe de mágica.
A tentação seguinte objetivaria forçar Deus a confirmar a missão de Jesus na Terra através de
grandes obras. Enfim, a terceira buscaria levar Jesus a trocar a pregação de serviço pela
associação com o poder político dominador. A recusa em seguir qualquer destes caminhos

154
demonstraria a escolha pelo ―caminho longo‖ que conquista cada ser humano pelos exemplos
do amor e do bem servir.

Qualquer outra busca de formulação mística poderia, nesta perspectiva, levar a uma
mistificação alienante da fé. O ato religioso tornar-se-ia lento e extremamente regulamentado,
lembrando a rigidez cadavérica. Muitas denominações cristãs optam até hoje por este
paradigma desmitologizador. O aggiornamento a que se refere Durand (ver citação na
abertura do capítulo 1) nada mais é do que uma ilusão de movimento. Infecundo, este
reducionismo tem no agnosticismo seu mais radical representante, mas está presente
igualmente em um pensamento teológico que se pretende prenhe de dimensão mística. Vemos
Tomás, em sua Suma Teológica (1998), tentar unir Aristóteles – a quem chamaria o Filósofo
– com o princípio do Espírito Santo. Vemo-lo, também, em sua teologia que pretende clarear
a Revelação, tentar uma explicação ―lógica‖ para a graça que ―se dá interiormente nos
crentes‖ movida ―por um interior instinto‖.

―Diz o Filósofo que ‘cada coisa se denomina por aquilo que nela é o principal‘.
Pois bem, o principal na lei do Novo Testamento, e nisto está toda a sua virtude
(força), é a graça do Espírito Santo, que é dada pela fé em Cristo. Por conseguinte,
a lei nova principalmente é a própria graça do Espírito Santo que se dá aos fiéis em
Cristo....‖ (Summa Theologiae, I-II, q. 106, a. 1. Nota: a indicação bibliográfica
deste livro segue regra específica do mesmo.).

―Conforme fica dito, duas coisas a lei nova engloba: uma, a principal, é a graça do
Espírito Santo, comunicada interiormente, e enquanto tal, a lei nova justifica....
Como elementos secundários da lei evangélica estão os documentos da fé e os
preceitos, que ordenam os afetos e atos humanos, e quanto a isto, a lei nova não
justifica. Por isso diz o apóstolo na segunda carta dos coríntios: ‘a letra mata, o
espírito é o que dá vida‘... De onde também a letra do Evangelho mataria se não
tivesse a graça interior da fé, que sara‖ (Ibidem, I-II, q. 106, a. 2).

―A lei nova chama-se ‘lei de fé‘, enquanto que sua principalidade consiste na
própria graça que se dá interiormente nos crentes, que por isso se chama ‘graça da
fé‘...‖ (Ibidem, I-II, q. 107, a. 1 ad 3).

―Sendo a graça do Espírito Santo como um hábito interior infuso que nos move a
agir bem, faz-nos executar livremente o que convém à graça e evitar tudo aquilo
que lhe é contrário. Conclusão: a nova lei chama-se lei de liberdade num duplo
sentido. Primeiro, enquanto não nos compete a executar ou evitar senão aquilo que
por si é necessário ou contrário à salvação eterna, e que, portanto, cai sob o
preceito ou proibição da lei. Segundo, enquanto faz com que cumpramos

155
livremente tais preceitos ou proibições, já que os cumprimos livremente por um
interior instinto de graça. E, por estes dois motivos, a lei nova chama-se ‘lei de
perfeita liberdade‘, conforme a expressão de São Tiago‖ (Ibidem, I-II, q. 108, a. 1
ad 2).

A espiritualização tornar-se-ia um ato pensado e intelectualmente elaborado que viria


apenas posteriormente à manifestação da graça nos crentes. A tênue linha desta ordem foi
facilmente rompida em muitos momentos, à revelia do autor, certamente. Uma inversão, mas
cuja semente já existia na idéia de que o clero teria que ser intelectualmente bem instruído
para transmitir a fé aos leigos, levou a uma hierarquização entre o místico e o filosófico, com
a primazia deste último. Os embates entre estas formas distintas de vivenciar a fé sucederam-
se por séculos, fortalecendo outro tipo de hierarquia: a dos sacerdotes sobre os leigos. Quando
somamos estes princípios a fatos históricos tão contundentes quanto a constantinização da
Igreja e a luta contra as heresias, temos o cenário completo da desmitologização que foi
tornando a fé católica algo vazia.

É importante, então, vermos as nuanças da desmitologização. Este processo não se


confunde até hoje – absolutamente não – com uma aproximação consciente do agnosticismo.
O Espírito Santo e a mística cristã, aceitos e difundidos por Tomás, não representam
plenamente o universo místico com o qual o cristianismo veio rompendo. O rompimento é
maior e ocorre extra-muros da Igreja, criando o vínculo da intolerância sobre hereges que
sequer poderíamos presumir cristãos. Já vimos a dimensão desta ruptura neste trabalho.
Sabemos que o Imaginário, enquanto ―capital pensado da humanidade‖, foi confundido com
uma perversão mental, como se fosse uma ―fantasia‖ – no sentido hodierno do termo – que
sobrepujaria à razão, tornando o pensamento alienado do mundo. Esta confusão serviu e
continua servindo como pretexto para afastar a fé cristã e seus fiéis das formas religiosas
heterodoxas. Para garantir a efetivação do afastamento concebeu-se a intolerância
inquisitorial. Entretanto, inúmeras passagens bíblicas já indicavam esta natureza ascéptica do
cristianismo.

Em relação a místicas alheias, o texto do Livro é contundente: ataca simbologias


astrais (do sol, por exemplo); critica fortemente os ídolos e denuncia encantamentos.
Adivinhos, necromantes, encantadores e feiticeiros são ―passados ao fio da espada‖ (Josué
13, 23) ou abolidos por quem antes precisou dos seus serviços (1 Samuel 28). Em outros
trechos (2 Reis 21; 2 Reis 23; 2 Crônicas 33; Isaías 3 e Isaías 44) aparecem magias, incensos,
carros solares, encantamentos e estatuetas veneradas. Numa passagem um tanto misteriosa
que talvez seja uma das mais antigas aproveitadas para a realização da Bíblia, afirma-se como
sendo ilusão e mentira as respostas dos ídolos e as visões dos adivinhos:

156
―Suplicai ao Senhor a chuva tardia da primavera. É o senhor quem provoca as tempestades;
ele concederá chuvas copiosas a cada um dos produtos dos campos. Com efeito, os ídolos deram
respostas vazias e os adivinhos tiveram visões mentirosas, prodigalizaram sonhos vazios e consolações
ilusórias. Eis o que fez o povo ir-se como um rebanho, infeliz na falta de pastor.

“Um novo Êxodo

―É contra os pastores que minha cólera se inflama, contra os bodes que vou
intervir. Sim, o Senhor de todo poder, visitará o seu rebanho – a casa de Judá. Dele
fará o seu glorioso corcel de combate. De Judá sairá a pedra angular, a estaca da
tenda, o arco da guerra; dele sairão todos os seus chefes. Juntos, à semelhança de
guerreiros, combaterão, calcando a lama das ruas. Lutarão, por que o Senhor estará
com eles, e os cavaleiros em suas montarias cobrir-se-ão de vergonha. Robustecerei
a coragem da casa de Judá e salvarei a casa de José. E os restabelecerei, porque
deles me compadecerei, como se nunca os houvesse rejeitado, pois eu sou o Senhor
seu Deus, e hei de ouvi-los‖ (Zacarias 10, 1 a 4).

A ―pedra angular‖ seria o líder que libertaria o povo. Neste caso, interpretamos que o
inimigo a ser derrotado encarna-se exatamente nos ―pastores e bodes‖ que admitem o lado
místico. A esses se poderia até fazer a guerra.... O aguerrido ataque aos princípios místicos
presente no texto bíblico tem origem na antigüidade grega. Com uma concepção muito
própria – que talvez apresente alguma proximidade com noções weberianas – o filósofo
Friedrich Nietzsche vê na superação da tragédia grega e de seus valores pagãos – anteriores às
noções cristãs de pecado e moral – a ascensão do ―racionalismo humanista‖ e de um
―humanismo moral‖, que valorizaria a fraqueza.

Não discutiremos aqui – até por não ser tema do corte temporal deste trabalho – o
mérito das famosas assertivas do pensador alemão ao considerar que ―valores humanistas‖
teriam retirado os homens do seu estado original e que seria desejável um retorno àquela
condição. Mas vemos nele um complemento para entender a tradição judaico-cristã, pois
destacou o papel de Sócrates como o iniciador desta trilha que afastou a cultura ocidental do
saber místico, similar aos passos dados pela teologia de inspiração aristotélica. Marilena
Chauí assim resume e pensamento de Nietzsche:

―Para Nietzsche, a grande tragédia grega apresenta como característica o saber


místico da unidade da vida e da morte e, nesse sentido, constitui uma ‘chave‘ que
abre o caminho essencial do mundo. Mas Sócrates interpretou a arte trágica como
algo irracional, algo que apresenta efeitos sem causas e causas sem efeito, tudo de
maneira tão confusa que deveria ser ignorada. Por isso Sócrates colocou a tragédia
na categoria das artes aduladoras que representam o agradável e não o útil e pedia a

157
seus discípulos que se abstivessem dessas emoções ‘indignas de filósofos‘. (...).
(...) ‘enquanto que em todos os homens produtivos o instinto é uma força
afirmativa e criadora, e a consciência uma força crítica e negativa, em Sócrates o
instinto torna-se crítico e a consciência criadora‘. (...) Perdendo-se a sabedoria
instintiva da arte trágica, restou a Sócrates apenas um aspecto da vida do espírito, o
aspecto lógico-racional; faltou-lhe a visão mística, possuído que foi pelo instinto
irrefreado de tudo transformar em pensamento abstrato, lógico, racional‖ (in
Nietzsche, 1991, p. XI e XII).

Além de destacarmos a aproximação das concepções de Nietzsche, ressaltamo-las


pela conseqüência da aproximação que faz o autor entre a desvalorização do místico e a
defesa e vivência de uma ascese.

―O asceta trata a vida como um caminho errado, que por fim é preciso desandar,
voltando para onde ele começa; ou como um erro, que se refuta – que se deve
refutar – pelo ato; pois ele exige que se vá com ele, ele impõe onde pode sua
valoração da existência‖ (Nietzsche, 1991, volume II, p. 94).

Uma fé que se baseia em teologia ―racionalizadora‖ ou desmitologizada convive


mais facilmente com o medo obsidional, pois o torna tão desmitologizado quanto ela própria.
Em outras palavras: o asceta ―afasta-se‖ do ―real‖ e aliena-se do medo. O processo
desmitologizador aprofundou-se tanto que o aggiornamento do papa João Paulo II levou-o a
escrever, séculos depois de Tomás:

―A história torna-se, assim, o lugar onde podemos constatar a ação de Deus em


favor da humanidade. Ele vem ter conosco, servindo-Se daquilo que nos é mais
familiar e mais fácil de verificar, ou seja, o nosso contexto quotidiano, fora do qual
não conseguiríamos entender-nos‖(João Paulo II, 1999, número 12. Nota: a
indicação bibliográfica deste livro segue regra específica do mesmo.).

Num esforço tremendo para conciliar fé e razão – ou para racionalizar a fé – ainda


que tentando manter o status de independência da primeira, o Sumo Pontífice justifica a força
da filosofia para a fé e serve-nos para descrever para nossos leitores os primórdios do
processo desmitologizador:

―De fato, um dos cuidados que mais a peito tiveram os filósofos do pensamento
clássico, foi purificar de formas mitológicas a concepção que os homens tinham de
Deus. Bem sabemos que a religião grega, como grande parte das religiões
cósmicas, era politeísta, chegando a divinizar até coisas e fenômenos da natureza.

158
As tentativas do homem para compreender a origem dos deuses e, nestes, a do
universo tiveram a sua primeira expressão na poesia. As teogonias permanecem,
até hoje, o primeiro testemunho desta investigação do homem. Os países da
filosofia tiveram por missão mostrar a ligação entre a razão e a religião.
Estendendo o olhar para os princípios universais, deixaram de contentar-se com os
mitos antigos e procuraram dar fundamento racional à sua crença na divindade.
Emboçou-se assim uma estrada que, saindo das antigas tradições particulares,
levava a um desenvolvimento que correspondia às exigências da razão universal. O
fim que tal desenvolvimento tinha em vista era a verificação crítica daquilo em que
se acreditava. A primeira a ganhar com esse caminho feito foi a concepção da
divindade. As superstições acabaram por ser reconhecidas como tais, e a religião,
pelo menos em parte, foi purificada pela análise racional. Foi nesta base que os
Padres da Igreja instituíram um diálogo fecundo com os filósofos antigos, abrindo a
estrada ao anúncio e à compreensão do Deus de Jesus Cristo‖ (João Paulo II, 1999,
número 36.).

Como vimos no início deste capítulo, na argumentação weberiana, a busca de


fundamentos racionais esteve na base do direito inquisitorial e da processualística do Tribunal
do Santo Ofício. Além da racionalização investigativa, houve uma racionalização da estrutura
administrativa e da carreira da burocracia inquisitorial, da qual trataremos no próximo item. A
esta constatação histórica, somam-se a tendência a incentivar valores imanentes – original do
cristianismo – e o papel racionalizador e desmistificador do tomismo.

********

2.PARA UMA CRÍTICA DOCUMENTAL: AS OBSESSÕES FORMAIS


NOS REGIMENTOS DO SANTO OFÍCIO E NAS AMOSTRAS DOS
PROCESSOS INQUISITORIAIS

Diante da concepção adotada no item anterior, partimos aqui para localizar aquele
tipo de formalismo racionalizador das práticas processuais a que nos referimos há pouco. Ao
invés do formalismo unicamente ritualista, soma-se ao ritualismo externo inquisitorial –
analisado aqui anteriormente – o caráter formal-investigativo do conteúdo dos regimentos e
processos. Naqueles, a dimensão teológica ganha as cores fortes da desmitologização.

159
Partindo do Tipo Ideal de Inquisidor Moderno, fazemos análises das amostras
processuais e regimentais pertinentes ao período de maior ascensão (entre meados do século
XVII e primeira metade do século XVIII) e, em seguida, de franco declínio (final do século
XVIII e início do XIX) dos valores daquele tipo. Os trechos de processos aqui apresentados
demonstrarão a ascensão da superação da morte (no desprezo por culpas místicas) e da
abjuração do medo pela imanência (no desinteresse em determinar as penas maiores para os
acusados). Já nos regimentos, principalmente no de 1774, e no projeto – jamais implementado
– que D. Maria mandou fazer, vemos a forma distorcida com que retornou, na fase final do
Tribunal, um valor que o caracterizara nos primórdios: a hierarquização/institucionalização
da fé.

O núcleo da ação interna do Santo Ofício era o formalismo. Por isto mesmo,
analisaremos a estrutura burocrática à luz das informações compiladas e publicadas por Sônia
Siqueira (1996). A burocracia refletiu a necessidade investigativa e serviu para a prática da
racionalização de tarefas e procedimentos com vistas à obtenção da verdade.

A análise de documentos inquisitoriais está fortemente ligada à idéia de que se deva


fazer a memória dos perseguidos, abordagem que realmente tem sua importância. Bethencourt
(1994), entretanto, buscou outros documentos que não processos: ―O nosso propósito não é
estudar especificamente os perseguidos, mas a forma como a perseguição era utilizada pelos
inquisidores na produção de sentido da sua actividade‖ (Bethencourt, 1994, p. 11. Grifo
nosso.). De nossa parte, acreditamos ser possível desvendar, no interior dos próprios
processos, esta utilização, pelos inquisidores, da perseguição para forjar o significado da
atividade inquisitória. Para tanto, basta rever o olhar que usualmente lançamos sobre aqueles
textos. São textos criados pelos inquisidores de dentro do cárcere ou a partir do que lá ocorre.
As mais diversas características são localizadas de forma idêntica em processos distantes no
espaço e no tempo. É um labirinto de imaginações que acaba reduzido a algumas variáveis
que – estas sim – racionalizam e formalizam os processos. O uso de perguntas sugestivas
amarradas a respostas monossilábicas (tipo sim ou não) é uma constante em muitos
documentos. No caso de processos contra crimes de magia, que nos interessam aqui, é
também constante a adequação dos ―crimes‖ às descrições presentes na literatura
demonológica.

Uma crítica documental mais aprofundada tem ainda de perceber a importância da


propriedade da palavra no Tribunal do Santo Ofício. Se, no auto-de-fé, a teatralização permite
a encenação de um ―forte‖ opositor (ver capítulo 1), no trâmite processual, o herege
(opositor) não tem sequer acesso aos autos; sua palavra pode sair da boca do inquisidor, na
medida em que, a princípio, o notário só anota o que o inquisidor dita ou permite. Qualquer
desvio de significado no processo representaria a perda da lógica inquisitorial indispensável

160
ao formalismo investigativo, onde o reconhecimento de culpa e a posterior condenação
obedecem a um padrão de linguagem sem o qual o Tribunal vê-se em ambiente desconhecido.

Mesmo assim, o processo inquisitorial representou um ―avanço‖ quando comparado


com a ―justiça popular‖ antiga, que sobreviveu por séculos já na Idade Média. A Inquisição,
afinal, buscava o fato e a verdade através do corpo de investigadores. Mas é o próprio
formalismo que serve para explicar que culpas tão parecidas sejam encontradas em processos
oriundos dos mais diversos lugares, em épocas distintas. Os inquisidores necessitavam
―fabricar‖ transgressões na medida exata do seu formalismo obsessivo, que alimentava as
expectativas heróicas (no sentido durandiano) presentes nos mitologemas formadores do
imaginário português. Tais mitologemas, somados aos valores do Tipo Ideal de Inquisidor
Moderno, necessitavam do agente transgressor para reafirmar os próprios valores e mitos
(ainda que vinculados à própria desmitologização) presentes hegemonicamente na cultura do
grupo-inquisição. Estas ―transgressões previsíveis‖ ou ―previstas‖ já vinham formuladas em
diversas fontes documentais que temos à disposição: tratados demonológicos, bulas papais e
regimentos inquisitoriais.

Não há motivo para crer que os processos inquisitoriais tenham escapado totalmente
desta fórmula. Também eles representam a soma das ―transgressões previsíveis‖. O direito
ocidental levaria séculos ―buscando‖ chegar ao atual estágio de objetividade dentro do
formalismo investigativo processual. Mesmo assim, quando os advogados de hoje dizem, com
irreverência, que ―aquilo que não está nos autos não existe‖ acabam por reconhecer, talvez,
que ainda se mantém um padrão desviante que pode excluir algo ―indesejado‖ ou evitar a
investigação adequada para fins racionais ligados ao direito natural, impedindo a verdade e o
conhecimento ótimo dos fatos em benefício do velho formalismo, oco a serviço, certamente,
de interesses materialmente definidos.

O levantamento de documentos inquisitoriais também esteve marcado, no século


XIX, por convicções ilusórias sobre a ausência do Tribunal no Brasil. Talvez a ―surpresa‖
pela localização de documentação inquisitorial extensa sobre o país tenha contribuído para
uma leitura ―apressada‖ das fontes que foram se revelando a partir de então. Intelectuais
importantes, como o historiador pernambucano Oliveira Lima e o famoso pintor e filósofo
paraibano Pedro Américo, acreditavam que os homens da fé não teriam agido no Brasil:

―Que não se julgue, portanto, a justeza de minha crítica segundo nossas idéias
particulares, pois, graças a Deus, nossa pátria nunca assistiu a essas lutas do
fanatismo contra a liberdade, das quais o ilustre Alexandre Herculano nos descreve
quadros tão comoventes em sua História do estabelecimento da inquisição em
Portugal e das quais os sábios Discursos acadêmicos de Varnhagen poderiam dar-

161
nos uma idéia exata; da mesma forma, ela jamais experimentou a ação dissolvente
do materialismo positivista (...)‖ (Américo, 1999, p. 3).

Em outro trabalho (Cavalcanti, 1990, p. 7), apontamos que Oliveira Lima chegou a
atribuir à presença dos jesuítas aquilo que seria ―certamente um bem: o estar limpa a nossa
história da mancha fúnebre da Inquisição pérfida e sangüinária (...)‖ (Lima, 1975, p. 20).

A riqueza documental ainda inexplorada para o estudo das inquisições européias


resulta na condução cuidadosa dos trabalhos de pesquisa e no dimensionamento do valor que
o documento carrega para o fim que o pesquisador deseja. Como lembra o próprio
Bethencourt, ―o estudo das Inquisições pode mobilizar equipas de pesquisadores durante
várias gerações sem esgotar o assunto‖ (Bethencourt, 1994, p. 10). O direcionamento que
estamos dando agora poderá influenciar o trabalho de pesquisa documental, que é longo e
custoso.

Sabemos que a expectativa que o historiador cria sobre o objeto determina a


estruturação, por exemplo, de projetos, fichas de pesquisa e bancos de dados. Ao partir
erroneamente da premissa de que os documentos inquisitoriais teriam valor absoluto, o
cientista estaria deixando de lado o aspecto da crítica documental decantada aqui. Daí a
importância do amplo debate sobre o significado da documentação de que dispomos, como
fizemos no item anterior. Quando a Inquisição prendia alguém, sabia-se que ela aguardaria a
confissão. O romancista Carlos A. Azevedo descreveu assim, em Os Herdeiros do Medo, a
prisão do teatrólogo António José da Silva, o Judeu:

―O familiar caminhava, triste e tenso. Não era a primeira prisão que ele efectuaria,
foram muitas, até perdera a conta. Mas, para ele, prender alguém, era uma situação
desagradável, constrangedora. Pois ele, o familiar, tinha quase a certeza que, a
maior parte dos infelizes que vegetam nos cárceres secretos da Inquisição eram
vítimas de intrigas ou de maquinações diabólicas urdidas por inimigos. Esses
pobres diabos mofavam anos e anos nas masmorras, porque não sabiam se
defender. O que, então, eles iam confessar? Denunciar quem? A Inquisição exigia
que o réu confessasse as suas culpas espontaneamente, para descargo de sua
consciência e salvação da sua alma‖ (Azevedo, 1996, p. 18).

Neste trecho, Carlos Azevedo apresentou as principais componentes da praxeologia


inquisitorial: o anonimato do acusador, a necessidade do réu ―acertar‖ a defesa, confessando o
que os inquisidores tinham na Mesa como ―suas‖ culpas e a utilização dos depoimentos de
uns contra outros, na medida em que, em grande parte os processos eram abertos com base
nas denúncias de outrem. O réu, como vemos, era instado a confessar. Devemos perceber,
contudo, algo que nos é bem lembrado por Ronaldo Vainfas: ―(...) enquanto prática

162
judiciária, o ‘segredo inquisitorial‘ talvez não lhe fosse tão exclusivo na Época Moderna. A
Ordenação francesa de 1670 também impossibilitava aos acusados conhecer o processo, a
identidade dos delatores, o exato teor dos testemunhos, etc., conforme a maioria dos países
europeus, exceto a Inglaterra‖ (in Novinsky, 1992, p. 146). Diga-se de passagem que
também ―(...) a tortura não era exclusiva da Inquisição. Era prevista nas Ordenações
Manuelinas e no Código Filipino, sendo, portanto, de uso corrente na Justiça Civil‖ (Vainfas
In: Novinsky, 1992, p. 143).

Apresentaremos a seguir algumas amostras extraídas de processos inquisitoriais que


foram escolhidos como aglutinadores de componentes do imaginário da Inquisição. Como já
vem ocorrendo com trabalhos reconhecidos internacionalmente (Kunze, 1989 e Ginzburg,
1987), vemos a representatividade das fontes inquisitoriais qualitativamente, evitando
estatísticas superficiais. Sabemos que ―(...) seria vão medir o maior ou menor rigor da
Inquisição ibérica, e particularmente portuguesa, com base na quantidade de indivíduos por
ela condenados à fogueira‖ (Vainfas In: Novinsky, 1992, p. 147). Concordamos com esta
ponderação e reafirmamos a denominação que demos, em 1990, para aquele tipo de análise
quantitativista: chamamos Estatísticas do Sofrimento a estes quadrinhos numéricos que são
produzidos como se fosse possível mensurar o sofrimento humano. Ao contrário, buscamos
conceitos e noções, nossos e alheios, para confrontar com os processos inquisitoriais, num
trabalho de crítica documental que esperamos bastante profícuo para o leitor e para análises
futuras.

As fontes históricas processuais são de manuseio mais problemático que as fontes do


direito inquisitorial stricto sensu. As narrativas do medo de bruxa que localizamos nos
documentos seguintes dizem respeito à mentalidade inquisitorial. Os casos de Manoel, Luzia
Pinta, Luzia da Silva, Adrião e Salvador serão descritos individualmente e analisados em
conjunto mitocrítico (1). Os regimentos foram estudados a partir de duas fontes: exemplares
do Arquivo Nacional da Torre do Tombo e respectivas cópias oficiais em nosso poder e
transcrição publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro por Sônia
Siqueira (1996).

Nossa análise documental amadureceu longamente a partir de uma constatação feita


quando nos vimos diante dos processos originais: questionamos o trato que é dado a tais
narrativas quando e se são aceitas tacitamente enquanto fonte para a história das mentalidades
dos vitimados pelo Tribunal. É provável que uma parte significativa das narrativas
processuais só sirva para captar uma mentalidade: a dos inquisidores. O medo que está
presente em tais relatos é produto de mentes inquisitoriais. Indício contundente desta
―autoria‖ está na inversão de medo a desprezo, que os inquisidores fizeram ao seu bel-prazer.
Sabemos, pela Lingüística, que é quase impossível reverter ou rever discurso alheio. Os

163
processos inquisitoriais passaram do medo ao desprezo porque os inquisidores assim o
desejaram em atendimento à sua cultura jurídica, que, como já vimos, estava em vias de
transformação em toda a Europa. Já fizemos, nós mesmos, análise das fontes processuais de
uma forma que não repetiríamos hoje (Cavalcanti, 1990). Consideramos que as
transformações e aperfeiçoamentos metodológicos são naturais à pesquisa e ao trabalho do
pesquisador, principalmente quando já decorre uma década.

Fatores que, aparentemente, não eram percebidos no início da década de oitenta


(Souza, 1986) são indispensáveis hoje. Em primeiro lugar, verifica-se que o imaginário das
culpas coloniais insere-se no imaginário do Brasil – em formação naquele momento. O
imaginário brasileiro começou a inverter, ao longo dos séculos de colonização, as
componentes já vistas do imaginário português, fazendo paralelos simbólicos ou
diferenciações conjunturais, que, contudo, não chegam a diferenças profundas entre ambos
(no período colonial em processos inquisitoriais). A inversão ―definitiva‖ só ocorreria depois.
Além disso, o jogo intimidatório da componente farsesca do Tribunal, muitas vezes, apenas
impõe ao réu – talvez fazendo-o em nome dele sem sequer ter o trabalho de ―convencê-lo‖ –
um discurso de ―transgressões estereotipadas‖ que tinha origem no cotidiano de medo
obsidional da colônia: terão estes estereótipos o valor de testemunho histórico das concepções
do réu?

Descrevamos os processos utilizando, sempre que possível, o próprio original, cujo


acesso é raro para o leitor. Várias peças processuais aparecerão com suas singularidades:
confissão, denúncia/testemunho, abertura, segredo, admoestação, sentença e interrogatório.
São narrativas do medo de bruxa no formato de peças jurídicas, algo que também ocorre com
os título dos regimentos que cuidam do assunto. As peças que apresentaremos a seguir, com
exceção de apenas uma, são inéditas em publicação integral e demonstram o formalismo
jurídico inquisitorial apontado por Weber. Estas obsessões formais trazem outras obsessões
passíveis de análise mitocrítica: as verbais. Aproveitaremos os trechos citados para
exemplificar as práticas processuais do Tribunal, que demonstram a pertinência da análise do
auto-de-fé como ato teatral (capítulo 1), onde todos os formalismos são expostos. As
referências técnicas do depósito arquivístico encontram-se ao final deste volume. A
mitocrítica do conjunto da documentação processual virá após a última descrição.

MANOEL JOÃO foi preso em 1672. Foi acusado de portar bolsa de mandinga
contendo ossos de defunto, desenhos, galhinhos de arruda e um escrito com pinturas e nomes.
Pouco mais de um ano após sua prisão, o interrogatório do réu iniciava-se com a seguinte
abertura:

164
ANTIQUO (2)

―Aos dezoito dias do mez de outubro de mil seiscentos settenta e tres annos, em
Lisboa, nos esthaos, caza de despacho da Santa Inquizição, estando ahi em
audiencia de tarde o Senhor Pedro (...) de Magalhães, mandou vir perante si a
Manoel João, Reo prezo, conthendo nestes autos, e sendo prezente lhe foi dado o
juramento dos Santos Evangelhos, em que pos a mão sob cargo do qual lhe foi
mandado dizer verdade, e ter segredo, o que elle prometeo cumprir.

Perguntado se tem mais alguma couza declarar nesta Meza, e o quer fazer para
descargo de sua cinciencia, e seu bom despacho

Disse que tinha ditto toda a verdade, e não tinha mais que declarar.‖

Sendo um réu do século XVII, os interrogatórios são bastante individualizados no


caso de Manoel. A história de Manoel, deduzida da documentação inquisitorial, começa
quando é levado muito jovem, pelo avô Manuel Fernandes Sorodio, para morar em sua casa,
no Pará. O avô desconfiava que João não fosse verdadeiramente seu neto. Pode-se imaginar
um problema de identidade e aceitação por parte da família. Seja por este ou por outro
motivo, o futuro réu do Santo Ofício acabou sendo responsabilizado por uma série de fatos
estranhos envolvendo pessoas do novo meio social para onde fora levado. Por exemplo: teria
surgido repentinamente uma dificuldade para se fazer pescarias, além da casa principal passar
a ser assombrada e pessoas terem relatado receber pancadas no meio do nada. Um besouro
grande foi visto voando e o anjo Miguel apareceu com os pés escurecidos e amarrados por
grilhões (3).

O medo de bruxa não é, obrigatoriamente, exclusivo de temores sentidos em relação


a mulheres. Apesar de uma raiz misógina, este medo pode ser inspirado por homens
endemoniados, dos quais o presente processo é um exemplo. Estes homens utilizam técnicas
ou práticas típicas da bruxaria e são socialmente reconhecidos por estas habilidades. A
maioria dos casos, porém, envolve mulheres. O interrogatório de Manoel foi bastante
individualizado. As perguntas gerais, das quais falaremos adiante, estão presentes. Porém, há
trechos bem específicos neste processo seiscentista:

ANTIQUO

―Perguntado se quando lhe appareceo a figura do São Miguel a vio tambem com os
olhos corporaes, ou se lhe reprezentou somente no interior.

Disse que vio com os olhos corporaes porque ainda que estava deitado, estava em
seu perfeito juizo.

165
Perguntado se lhe pareceo anjo bom ou mao.

Disse que lhe pareceo ser anjo mao e que era demonio, por não digno, nem
merecedor de que lhe apparecesse o anjo São Miguel.

Perguntado se lhe pareceo que era demonio, que razão teria para rezar e jejuar na
forma que elle lhe mamdou.

Disse que o fez porque assim lhe (ensenhou) seu tio.‖

―(...) Perguntado se a ditta figura do anjo assim na dita ocazião, como no sabbado
seguinte em que lhe tornou a apparecer era na mesma forma, ou se tinha alguma
diferença.

Disse que em ambas as ocaziões lhe appareceo na mesma forma, a que tinha os pés
negros.

Perguntado se assim sucedeo, que razão teve, para declarar em sua confição que no
sabbado lhe apparecera com os pés mais impostos.

Disse que a verdade he a que agora tem ditto e se disse o contrario em sua confição
seria por não estar bem lembrado.‖

No trecho acima, Manoel admitiu ter dito algo que foi contradito por ele próprio.
Esta informação reforça a autenticidade do documento. O réu foi denunciado por muitas
testemunhas. Ao final dos interrogatórios, era admoestado, como praxe do Santo Ofício, para
que confessasse. Vejamos uma admoestação que é modelo para o final dos interrogatórios:

ANTIQUO

―Foilhe ditto que nesta Meza se não procura mais, que o remedio de sua salvação, e
em ordem a isso, e ao bom despacho de sua cauza, nenhuma outra cauza lhe
convem mais que dizer nella toda a verdade, não impondosi (...) outrem falso
testemunho (...) o admoestão com muita claridade da parte de Christo Senhor
Nosso queira confessar, e declarar toda a verdade de suas culpas, para assim
merecer que com elle se uze de mizericordia. E por tornar a dizer que não tinha
outra couza que declarar mais que o que ja tem feito, foi outra vez admoestado em
forma, e mandado a seu carcere, sendolhe primeiro lido esta sessão em prezença de
seu primeiro curador, com quem e com o ditto Senhor (Filippe) Barbosa o escrevi.‖

Tal admoestação não era tarefa fácil para o réu. O segredo do processo deixava-o
sem saber o que confessar. Vejamos este trecho em que se apresentam denúncias ao réu sem
que se tenha dito de nenhuma forma os nomes dos denunciantes:

166
ANTIQUO

―Foilhe ditto que nesta meza ha informação que em caza de certas pessoas houve
huns asombramentos, em que as pessoas que os padecião vião vizões e a alguma
dellas lhe foi ditto que a perseguião daquella sorte, por cauza delle declarante e que
se entendeo que os dittos asombramentos forão cauzados por elle declarante por
odio, e com raiva, que tinha a algumas das dittas pessoas, e que elle declarante
dissera que lhe aparecera o anjo São Miguel (...).‖

O colono brasileiro Manoel João foi condenado a cinco anos nas galés e a confessar-
se em certos períodos do ano (Assunção de Nossa Senhora, Natal e Páscoa), a rezar um terço
semanal, padre-nossos e ave-marias para as chagas de Cristo.

********

LUZIA PINTA era uma escrava alforriada natural de Angola. Foi presa em Sabará,
Minas, em 1742. Foi acusada de ser feiticeira calundureira, como vemos na abertura das
denunciações do seu processo, que é típica de quase todos eles.

ANTIQUO

―Pela denunciação inclusa consta que Luzia Pinta preta forra natural de Angola e
moradora junto a capella de N. Sra. da Soledade na vizinhança da Villa de Sabará
(hé) (...) por feiticeira, fazendo aparições diabólicas por meyo de humas danças, a
que chama calundu (...), com grande escandalo dos fieis catholicos, e por que hé
conveniente a justiça se faça (...).‖

Calundu é o ente que se apodera da pessoa para torná-la amoada, triste e de humor
ruim. Calundu também era a reunião em que a negra Luzia Pinta aparecia com roupas
específicas, contendo uma grinalda que devia esvoaçar ao dançar com os presentes – negros,
certamente. O som dos atabaques servia para levá-la ao transe e trazer as respostas para
dúvidas e questionamentos. Enquanto os outros deitavam no chão, Luzia atuava. Vejamos esta
confissão feita nos termos do formalismo processual inquisitorial a que se referiu Weber, em
estudo analisado anteriormente neste capítulo:

ANTIQUO

―(...) disse e confessou que de certo tempo a esta parte vindolhe a doença chamada
calandu(z), e os ventos de adivinhar por meyo destes sabia quaes erão os pretos que
trazião mandinga, ou outra couza diabolica, e uzava de feitiços as pessoas que os
padecião o que praticava vestindose de varias invenções com (...) na calcia e hú
alfange na mão, mandando preparar a moda de um docel e debaxo delle húa

167
cadeyra em que se sentava, metendo certos poz na sua boca, e dos mais
circunstantes que ali se achavão para serem curados, mandando a estas pessoas
cantar e tocar instromentos por algú tempo, e no fim lhe tirarão húa cinta que tinha
amarrada pella barriga fazendo varios tregeytos, e dizendo que naquella ocazião lhe
vinhão os ventos de adivinhar, e logo entrava a cheyrar todas as pessoas que ali se
achavão e aquellas que dizia tinha feitiços lhe atirava ella Re com cestos por que
trazia, mandando deytar no chão os doentes e passava por sima delles varias vezes,
e fazendolhes depois algúas unturas e outros mais factos, dizendo que tudo obrava
por virtude que Deos lhe dera.‖

Luzia Pinta foi degredada para o Couto de Castro Marim em 1744. Havia sido
acusada de estar ―apartada de nossa Santa Fe Catholica e ter pacto com o demonio por cuja
intervenção fazia curas com operações supersticiozas e improprias para os fins que pretendia,
jactandose ter virtude de Deos para obrar o referido‖( ANTIQUO). Observa-se aqui e em outros
textos um uso de termos finos da língua portuguesa, denotando a provável alta origem social
ou a boa escolaridade dos inquisidores. As acusações resultam na sentença:

ANTIQUO

―Mandão que a Re Luzia Pinta em pena e penitencia das dittas culpas va ao Auto
publico da Fe na forma costumada, nelle ouça sua sentença e faça abjuração de
leve sospeyta na Fe e va degredada por tempo de quatro annos para Castro Marins,
e não entrara mais na villa do Sabará. Será instruída nos misterios da Fe
necessarios para a salvação de sua alma e cumprirá as mais penas e penitencias
espirituaes que lhe forem impostas e pague as custas.‖

********

LUZIA DA SILVA SOARES vivia em Minas em 1742. Era escrava e nascera na


Vila de São Bento, em Olinda. Já presa, foi denunciada também pelo testemunho do seu
senhor Domingos Rodrigues de Carvalho, ―a quem o dito Reverendo Senhor Comissario deo
o juramento dos Santos Evangelhos sob cargo do qual lhe encarregou dissesse verdade e
guardasse segredo e que prometeo fazer, e disse ser christam velho, e de sincoenta e hum
annos de idade, pouco mais ou menos‖(ANTIQUO).

Todos os interrogatórios da ré, feitos até então, foram apresentados à testemunha


ilustre. Diante deles, Carvalho começou a se pronunciar fazendo uma denúncia, anotada nos
termos formais do Santo Ofício.

168
ANTIQUO

―Ao cuarto disse que a dita Luzia escrava delle testemunha fazia feitissos e uzava
delles (contra) a elle testemunha e a sua mulher Maria (...) da Sylva e a seu sogro
José da Sylva (Pinto) e a varios escravos delle testemunha de que morrerã alguns
cauzando a elle testemunha aos referidos dores por todo o corpo, fastio e com as
mesmas dores e pontadas morreram os ditos negros (...).‖

―(...) Ao quinto disse que a dita Luzia (preta) quando fazia os ditos feitissos estava
com seu juizo e nam tomada de vinho nem preocupada de paixam mas sim só os
fazia pela sua malignidade, como ella mesma confessava.‖

Luzia sofreu horrores nas mãos dos seus senhores (4). Antes de qualquer processo
inquisitorial, ela foi barbaramente torturada na propriedade dos Carvalho. Foi acusada de ter
―chupado‖ a vitalidade da filha do senhor ao entrar no quarto enfeitiçada como inseto; teria
desenterrado o feto e colocado braços e pernas no fogão da casa e feito um caldo com o resto
do corpo para a própria mãe tomar; além disso, teria tentado tornar o senhor sexualmente
impotente; enfim, foi acusada de enterrar pós, sapos e outros bichos por toda a propriedade
para fazer diminuir a produtividade da escravaria. Não é possível determinar se procedem
duas acusações (assassinato e desrespeito ao feto morto) consideradas criminalmente graves
ainda hoje.

Neste processo de forte carga dramática pela situação física lastimável a que foi
levada a ré pelas torturas dos proprietários, pontua a relação entre a aplicação aleatória do ato
de justiça e a ação racionalizadora da justiça inquisitorial, onde, aliás – no período moderno –
o tormento tinha regras próprias e limitava-se a duas formas: o potro e a polé. Esta limitação a
duas formas de tormento – igualmente terríveis, fisicamente falando – representa uma
indubitável formalização. Maria Jozé da Sylva, esposa de Carvalho, também conheceu os
interrogatórios e os comentou. Alegou em denúncia que Luzia Soares tinha poder de chamar o
demônio, que é típico do pacto demoníaco:

ANTIQUO

―(...) que chamava ao mesmo Demonio quando queria apelidando-o = por Seu Rey
Barbado = o qual lhe falava para fazer o que queria e que com os ditos feitisos
cauzava as dores e moléstias que tem dito e para isso enterrava (raizes) de paos,
sapos e bixos que foi desenterrar e se achavam vivos como ela testemunha vio e
que outrosi a cabeseira e pes da cama della testemunha e do dito seu marido tinha
enterrado (...) depois dezenterrado varias raizes, e penas de rabos de gallos
declarando que aquelles feitisos os fazia para que ouvesse discordia entre ella
testemunha e o dito seu marido e com efeito naquelle tempo nam viviam com boa

169
uniam nem gostando ella testemunha de ver o dito seu marido e sem que para isso
ouvesse cauza, contra si que estando a dita negra preza dissera queria desfazer os
feitisos e mandara vir hum alguidar dagoa e sobre elle estivera falando palavras que
ella testemunha nam perssebeo dizendo via no fundo dagoa ao Demonio com quem
falava e em quanto estava naquelle acto conhessia ella testemunha total milhora nas
queixas que padessia, porem que despois as tornavam a molestar o que tudo ella
testemunha sabe pelo (ver) e prezenssias.‖

O bode, a que nos referimos no capítulo segundo no ensaio sobre a obra goyesca,
aparece aqui na forma do rei barbado, que é o demônio. A tentativa de afastar o marido da
esposa é culpa de magia generalizada na Europa moderna.

A abertura do interrogatório de Luzia Soares obedeceu ao formato inquisitorial


típico, com o seguinte padrão de perguntas, com variações na ordem e esporádicas omissões:
se tem culpas a confessar; se se afastou da Santíssima Trindade e seus Mistérios; se adorou o
demônio; se se afastou de Deus; se acredita em previsões de futuro ou premonições de atos
distantes ―contra o livre arbitrio dos homens‖; se tratou de obrigar a vontade alheia por
meios estranhos; se o demônio lhe apareceu em pessoa; se fez pacto com o demônio e em que
forma e conteúdo. Feitas estas inquirições, às quais corresponde quase sempre um lacônico
―disse que não‖, parte a Mesa para questões específicas do caso, se bem que respeitando
outros formatos e regulamentos. Nas perguntas específicas do processo há um ponto
constante: as informações aparecem na questão, restando ao réu algumas palavras ou um mero
sim ou não. A esta concentração de informações nas perguntas some-se o hábito de ―lembrar‖
o réu de que ele já confessara alguma coisa.

ANTIQUO

―Perguntada se está lembrada de haver confeçado nesta Meza que achandose


doente huma (Maria Joze) em cuja caza assistia, a qual tinha o ventre muito
inchado, e padecia outras muitas queixas, lhe aplicara ella Ré hú cuzimento de
hervas e raizes medicinaes dizendolhe que havia de curada por arte de feiticeira e
que com effeito aplicandolhe o ditto cuzimento alcançara a doente melhoras, nas
suas queixas?

Disse que muito bem lembrada estava de ter confeçado nesta Meza tudo o que se
conthem na pergunta porque assim passou na verdade‖ (Grifo nosso.).

O indecifrável controle da Mesa sobre o interrogatório aparece nestas formulações


hoje consideradas antagônicas e contrárias ao espírito de justiça. Mesmo assim, o desfecho do
processo de Luzia é muito representativo. Em sentença datada de 20 de maio de 1745, ―de
Mandado dos Senhores Inquisidores‖ (ANTIQUO), o escrivão André Figueiredo redigiu este

170
documento de sentença que é um primor de racionalização investigativa e exigência de
impessoalidade para o bom andamento do processo:

ANTIQUO

―Foram vistos na Meza do Sto. Officio desta Inquizição‖ (...) ― testemunhos do


summario junto, que a ella remeteo o ordinario do Rio de Janeiro, feito contra
Luzia da Silva Soares‖ (...) ―e pareceo a todos os votos que ella não devia ser
preza, nem processada pellas culpas por que foi mandada vir em custodia para os
carceres da penitencia para ser examinada como com effeito foi; não só pello que
consta dos mesmos exames, mas tambem pro serem as testemunhas do summario
remetido entre si parentes mui chegados, e pessoas da mesma caza, e de quem a
dellata era escrava, e deporem sem outro algum fundamento por entenderem que
ella esava de maleficios e tinha feito pacto com o Demonio, mais do que o haver
Ré ella (ella Ré) assim confessado, o que fez só afim de evitar os rigorosissimos
castigos que as mesmas testemunhas lhe davam, como consta do summario que por
despacho desta Meza se mandou depois fazer para melhor averiguação desta
materia; do qual consta tambem que no acto de perguntas que judicialmente lhe fez
o vigário Manuel Freire Batalha se achava a tudo prezente o padre Joze de Andrade
de Morais, parente das mesmas testemunhas, e foi o mesmo que a tinha conduzido
preza, e entregou ao dito vigário, e por esta razão não quis negar o que já tinha
confessado, receando e temendo ser novamente entregue aos ditos seus senhores, e
que estes tornariam a castigar com o mesmo rigor e excesso com que já por tantas
vezes o tinham feito: e portanto fosse posta na sua liberdade, e mandada em paz
para onde bem lhe estivesse.‖

O Tribunal mandou investigar a veracidade dos testemunhos denunciadores. Os


inquisidores reconheceram na sentença que uma confissão falsa podia ser provocada pelo
medo de sofrer dizendo a verdade. Além disso, a ré – uma escrava – foi solta e, na prática,
libertada do cativeiro pelos inquisidores! O processo deveria ter cumprido o rito e a forma
judicial, mas a presença de parentes nos testemunhos e no interrogatório liquidara com a
validade das culpas confessadas. As custas, que aparecem na última página, não foram
solicitadas à ré. Para encerrar, ressaltamos que o volume apresenta em sua penúltima página
uma curiosa correção: o formulário do Termo de Segredo, que era impresso em gráfica, ao
definir o tipo de cárcere a que havia sido submetida Luzia Soares, tem a palavra penitência
curiosamente riscada e substituída a mão por custódia.

********

171
ADRIÃO PEREIRA DE FARIAS foi preso no Pará. Em 1758 foi mandado para
auto-de-fé. Sua história tem conotações mistas entre o feitiço e a heresia, pois parece ter
desenvolvido alguma habilidade para o debate de temas teológicos (bem X mal) que emergem
em seu depoimento. Estas singularidades demonstram-se pela presença específica de termos
inusuais pelos inquisidores em alguns trechos do processo atribuídos à fala do réu. Além
disso, as culpas que o levam ao auto são uma simplificação evidente pela mesa inquisitória
que não tinha como classificar as idéias que, segundo o processo, devem ter sido expressas
por Adrião, a não ser pela alcunha de feiticeiro. Por outro lado, sempre nos resta uma ponta de
dúvida. Por exemplo: uma expressão fortemente inquisitorial aparece nos autos como tendo
vindo da boca do réu: ―o demônio é o inimigo comum da raça humana‖. Será que Adrião
pronunciou estas palavras? Estas expressões podem ter passado do Tribunal para o cotidiano
das pessoas, mas também podem aparecer nos processos, interpostas indevidamente pelos
notários.

A principal culpa de Adrião estava num papel que deixara no bolso de um calção na
casa de Manuel Pacheco. O papel foi entregue às autoridades, que o consideraram prova de
pacto com o diabo. O motivo de tê-lo consigo, segundo Adrião, era a vontade de ter em seus
braços qualquer mulher que desejasse. Quando perguntado, teria dito que (...) ―queria declarar
a verdade a qual era‖.

ANTIQUO

Que de certo tempo a esta parte encontrandosse com certa pessoa, com quem tinha
antigo conhecimento, elle Reo pedio que lhe procurasse hum remedio para que as
mulheres lhe quizessem bem, ao que a dita certa pessoa lhe respondeo que se elle
paqgasse, lhe daria huma oração boa para o dito fim e prometendolhe elle Reo a
satisfação lhe ofereceo passados alguns dias a mesma certa pessoa hum papel
escripto, dizendolhe que era bom não só para (atrahir) as vontades, mas (...) bom
para não ser ferido com ferro, chumbo ou bala, e para seus inimigos e a justiça o
não prenderem de modo algum, porem que era preciso ser assinado por ele Reo,
que logo o aceitou, assignou, recebeo com a clausula de o trazer consigo, como
com effecto trouxe sem o ler, conservando-o (...) athe certo tempo (...).‖

O papel está reproduzido na décima folha do processo. Vêem-se a assinatura do réu e


muitas palavras desconexas. Algumas letras marcam o título, o centro e as laterais do papel
em maiúsculas: NDIAPRADI; RDIN; RX; DX; ER. Não houve conexão viável para o
entendimento do significado – se é que existe – destas letras. A atitude de andar com o papel
parece um desconhecimento do significado grave de uma atitude destas para os valores
religiosos da época. Já o fato deter ele próprio assinado o papel chega às raias da tolice. Se o
processo estiver fiel às palavras do réu, pode-se supor que a pouca idade –menos de vinte

172
anos – tenha lhe dado a excessiva autoconfiança. Curioso é notar que Adrião não achou
eficientes os pretensos poderes do tal papel, como se deduz deste termo de confissão:

ANTIQUO

―E que (hindo) examinar os effeitos do dito papel e não conseguindo o que


desejava, se recolhera para sua caza enella chamando pelo Demonio com animo
disposto a lhe falar, ouvio huma vox que lhe disse as palavras seguintes = Como
queres tu que eu te valha se ainda tens amor a outra couza, lança fora de ti, crê em
mim, e vay experimentar tudo o que me pedes que acharás que te valho = E
assentando elle Reo, que era o Demonio quem lhe falava e que o mesmo queria que
elle lançasse fora humas contas que tinha ao pescoço, as (afastou) de si, e deixando
a ley Evangelica que havia professado no baptismo, em que fora creado, e
instroido, se apartou então totalmente de nossa Santa Fé Catholica e se passou a
crer no Demonio.‖

Adrião teria demonstrado uma certa cultura e declarado que esperava do demônio
vantagens no campo espiritual e também no campo temporal. Para ter as mulheres, foi-lhe
ensinada uma oração específica, dentro da lógica apontada pela demonologia, em que ritos e
palavras são invertidos para servir ao diabo, ao invés de servir a Deus. Esta tradição já estava
consignada nos escritos originais demonológicos e aparece em muitos processos
inquisitoriais. Também aqui fica difícil determinar se foi uma criação do clero ―passada‖ para
fora da Igreja nas trocas culturais típicas do conflito erudito X popular na Idade Moderna, ou
se teria sido uma tradição pré-cristã ou mesmo herética combatida pelo clero. Talvez uma
adequada conjunção de fontes e métodos seja suficiente para nos dar esta resposta. A oração é
a seguinte:

ANTIQUO

―(...) São Marcos (...) que Jesus Christo te confirme na minha vontade / declarando
qual era esta / glorioso São Marcos muito touro (...) com touro bravo, humildade na
vossa Santa Palavra, assim quero que me amances o coração de Fulana, amance
como manso cordeiro a arvore da Vera Cruz posto no cham que te parece em todo
que te parece emterra, e eu Adrião Pereira que te pareça perolas de ouro, o
Demonio fará com que tu não possas estar, nem comer, nem beber, nem dormir,
sem vires e falar comigo (...).‖

Orava-se com as mãos por debaixo dos braços, que é a postura inversa àquela
tradicional do catolicismo de orar com as mãos juntas na altura do peito. A oração era

173
oferecida ao demônio. Muitas outras inversões são conhecidas hoje, como a Missa ao
contrário, por exemplo. Dentre os processos aqui analisados para a mitocrítica que virá
adiante, este – mesmo não sendo o mais longo com suas 190 páginas – é o mais rico em
variações verbais obsessivas, tão caras à metodologia do imaginário. A sentença de Adrião foi
dura e detalhada:

ANTIQUO

―Recebem ao Reo Adrião Pereira Simões ao gremio união da Santa Madre Igreja,
como pede e mandão que em pessoa e penitencia das ditas culpas vá ao Auto da Fé
na forma costumada com carocha e rotulo de feiticeiro, nelle ouça sua sentença, e
abjure seos hereticos erros em forma, terá carcere e habito penitencial perpetuo,
será açoitado pelas ruas publicas dessa cidade (...) sanguiniz efusionem e
degredado por tempo de cindo anos para as galés de Sua Majestade aonde servirá a
remo sem soldo e não entrará mais na dita Villa da Vigia, será instruído para a
salvação de sua alma e cumprirá as mais penas e penitencias espirituaes que lhe
forem impostas. E mandão que da excomunhão mayor em que incorreo seja
absoluto (...).‖

No degredo, Adrião adoeceu gravemente. Um médico foi vê-lo e ele


solicitou a comutação da pena. Um parecer indicou ao Rei que por ―não
haver por sua culpa cauzado prejuizo ao proximo‖ (ANTIQUO) devia a pena
ser comutada. Adrião voltou ao Pará em 1765.

****

SALVADOR CARVALHO SERRA era um mulato pobre em Minas no ano de 1752.


Sua profissão era a de seleiro. O volumoso processo que conta a sua história mostra um
homem rústico vitimado por ter recebido pedaços de hóstias consagradas durante o batismo de
um sobrinho. Salvador alegou que utilizaria os pedaços para fechar cartas e que não passavam
de aparas de hóstia. Depois, confessaria que eram consagradas. Há ambigüidades de
informações sobre como teria se dado sua prisão. Posto que o que nos interessa é a análise de
fundo do imaginário da Inquisição em culpas de feitiço, citamos sua caracterização étnica e
social na abertura para partir, em seguida, para as culpas:

ANTIQUO

―Processo de Salvador Carvalho Serra homem pardo, celeiro, solteiro, filho de


Manuel Carvalho Serra, lavrador natural do sítio de Brumado, Freguezia do
Somidouro, e morador no Arrayal do Itambê, termo da Villa do Principe, Bispado
de Mariana.‖

174
Sendo um cristão batizado, Serra deveria, aos olhos do Tribunal, respeitar a Sagrada
Eucaristia em sua representatividade transubstanciosa do corpo e do sangue de Cristo. Sua
sentença é detalhada. Dela extrairemos curtos trechos. O réu teria cometido um erro para
quem deseja sair-se bem num processo inquisitorial: negou todas as culpas e se arrependeu de
fazê-lo em seguida, pedindo audiência para corrigir as declarações afetadas que havia feito e
falar a verdade. Este suposto ato falho pode indicar a autencidade do trecho do depoimento ou
a já prevista resistência dos réus em colaborar com a Inquisição.

ANTIQUO

―Achandose elle confitente em caza de certa pessoa sua conjunta, ali chegara outra
de que antão não tinha conhecimento e lhe perguntara pelo dono da caza‖ (...) ―que
não estava ali, dicera a tal pessoa, que lho trazia humas reliquias e logo lhe dera um
papel embrulhado, que recebendo-o, vira que nelle estava huma particula perfeita,
metida em algodão, e perguntando à dita pessoa se era consagrada lhe respondera
que sim (...).‖

(...) Consta na Meza do Santo Officio, que elle o fizera pelo contrario, e que de
certo tempo a esta parte, esquecido da sua obrigação‖ (...) ―trouxe consigo metidas
na algibeira por muitos dias, duas particulas consagradas, que lhe dera certa pessoa,
dizendolhe que as tinha roubado de hum sacrario.‖

(...) posto fez algumas declarações, nellas procurou encobrir as suas culpas, uzando
de varios subterfugios para evadir a pena, que por ellas merecia.

(...) Mandão que o Reo Salvador Carvalho Serra em pessoa, e penitencia de suas
culpas vá ao Auto publico da Fé na costumada, nelle ouça sua sentença e faça
abjuração de leve sospeito na Fé, e por tal o declarão, e o degradão por tempo de
dois anos para o Couto de Castro Marins.‖

O Regimento em vigor (1640) era claríssimo ao referir-se a esta culpa: ―quando em


suas feitiçarias, sortilégios e adivinhações, usarem de hóstia consagrada, ou parte dela, ou
do sangue de Cristo nosso Senhor, ou de pedra de Ara‖ (...) ―por quanto destes atos, e dos
que forem semelhantes, nasce veemente suspeita de heresia‖ (In Siqueira, 1996, p.856).
Sabendo-se da origem humilde do réu, é de se notar que a pena tenha sido ―branda‖, pois o
Regimento prevê que para sair em leve suspeita da fé seria preciso observar a qualidade da
pessoa. Se os inquisidores tivessem agido com rigor, seria possível uma condenação máxima.
Levemos em conta o ambiente de Pedagogia do Desprezo, típico de meados do século XVIII,
já visto aqui no segundo capítulo. Neste sentido, é curioso notar que do texto do processo de
Salvador surgiu a presença do verbo arrepender-se para a mitocrítica que iniciamos a seguir.
Outros dez verbos foram pontuados com um número de aparições obsessivas que justifica a
classificação.

175
********

Expliquemos os passos que demos para realizar a mitocrítica. Trata-se de um método


meticuloso. Estabelecemos a folha documental como escala de leitura, posto que o formato
um tanto quanto aleatório dos processos não permite escalas usuais hoje em dia (parágrafo,
número de linhas ou capítulo). Das folhas que formam o universo dos cinco processos
analisados (915), 67% foram tabuladas total ou parcialmente (613). Folhas com problemas
graves de leitura em função de rasgos ou má qualidade da cópia obtida foram desprezadas.
Foram desprezadas também folhas técnicas, como as de abertura ou de termos de segredo,
pois não representam o ato processual em andamento. Foram registradas 269 aparições
obsessivas válidas para 11 verbos – com suas derivações – revelados na coleta de dados. Os
verbos obsessivamente reincidentes e suas respectivas quantidades de aparições são: crer (53);
confessar (44); denunciar (40); pecar/pactuar (com o demônio) (33); arrepender-se (30);
abominar (14); vencer/matar/alcançar (14); degredar (13); delinqüir (12); abjurar (10) e
apartar (6). Aparições inferiores a 2% do total ou de verbos insignificantes para a análise do
imaginário foram desprezadas.

Na classificação das imagens procedida por Gilbert Durand (1989, p.305), os temas
predominantes dizem respeito às estruturas por ele antes desvendadas. Para a atitude
inquisitorial, parece-nos razoável admiti-la dentre as ações humanas que simbolizam
negativamente, ou seja, elegem o negativo para valorizar. Vemos na busca de culpas e
culpados a escolha destes símbolos valorizáveis negativamente. A simbolização do mal é o
ato de dominá-lo.

―Aos esquemas, aos arquétipos valorizados negativamente e às faces imaginárias do tempo,


poder-se-ia opor, ponto por ponto, o simbolismo simétrico da fuga diante do tempo ou da vitória sobre
o destino e a morte. Porque as figurações do tempo e da morte não passavam de excitações para o
exorcismo, convite imaginário a empreender uma terapêutica pela imagem. É aqui que transparece um
princípio constitutivo da imaginação e de que esta obra não será outra coisa senão a elucidação: figurar
um mal, representar um perigo, simbolizar uma angústia é já, através do assenhoramento pelo cogito,
dominá-los. Qualquer epifania de um perigo à representação minimiza-o e mais ainda quando se trata
de uma epifania simbólica. Imaginar o tempo sob uma face tenebrosa é já submetê-lo a uma
possibilidade de exorcismo pelas imagens da luz. A imaginação atrai o tempo ao terreno onde o poderá
vencer com toda a facilidade. E, enquanto projecta a hipérbole assustadora dos monstros da morte, afia
em segredo as armas que abaterão o Dragão. A hipérbole negativa não passa de pretexto para a
antítese‖ (Durand, 1989, p.87). O tempo é uma representação do mundano no imaginário
inquisitorial. Quando o réu cai em pecado ou heresia, está entregando-se ao mundo em
detrimento da fé católica verdadeira e transcendente. Vimos que há dialética clara neste

176
processo, pois a desmitologização e sua conseqüência para o formalismo jurídico são
tendencialmente temporais e historicizantes. Porém, nos importa agora a lógica ―interna‖
própria do discurso inquisitorial que expressa o pavor pelo tempo mundano. Esta
ambigüidade, aliás, está em toda a cristandade. O simbolismo epifânico do Tribunal do Santo
Ofício era, por si só, suficiente para estabelecer esta dicotomia, da qual provém o pretexto
para a antítese de que fala Durand.

Há três grandes temas aos quais Durand vinculou esta valorização de símbolos
negativos estudada no capítulo O Ceptro e o Gládio (Durand, 1989, p.87 e seguintes): o
esquema ascensional, o arquétipo da luz uraniana e o esquema diairético. Estes temas se
interligam, mas há singularidades. O desafio está em estabelecer o posicionamento mais
adequado do Tribunal do Santo Ofício. Vemos, por exemplo, na análise simbólica dos
processos apresentados, que é rara a presença do vôo mágico tido como ―vôo divino‖ na
alegação da ré. ―O instrumento ascensional por excelência é, de facto, a asa (...)‖ (Durand,
1989, p.92). Em outro exemplo, advindo dos símbolos principais da mesma documentação
exposta aqui, vemos São Miguel, o anjo que tem a espada em mãos para matar o diabo a seus
pés, sendo invocado pelo réu. As igrejas em honra deste santo ―eram construídas no topo de
colinas ou montanhas‖ (Attwater, s/d, p.215), numa clara simbologia de ascensão. Na
Inquisição, a ascensão é ato de confronto. Quando vimos aqui, anteriormente, o Arco dos
Inquisidores (Figura 5), tivemos a oportunidade de destacar seu caráter ascendente. No
Quadro 2 (Auto-de-Fé: o significado da cena), fizemos a representação da tribuna dos
inquisidores com uma seta ascendente em seu interior, onde se lê: membros do Tribunal
sentados em ordem ascendente. Esta ascensão, contudo, não pode ser confundida: trata -se de
um imaginário marcado pelos símbolos diairéticos. No Quadro 3 (O domínio do tempo pela
morte purificadora) nos referimos à verticalização diairética durante a etapa II na
dramatização do auto. Citamos quadros analíticos e ilustração já vistos para demonstrar que
nossa argumentação começa antes da dedução classificatória a que chegaremos agora.

Consideramos que, nas Estruturas Antropológicas do Imaginário, os símbolos


diairéticos se conformam muito proximamente ao imaginário inquisitorial e são a base de sua
classificação. A mitocrítica, à qual retornaremos já, poderá fazer a verificação desta
afirmativa. Durand referiu-se a esta simbologia de inspiração diairética em trecho que já
citamos neste trabalho (ver p. 91-92).

O cristianismo tem grande identificação diairética. A revolta inicial, simbolizada na


vida e Paixão de Cristo, o martírio e a tradição hagiográfica, pontuada de santos dispostos ao
enfrentamento, como São Pedro Mártir (Figura 1) são caracterizações neste sentido. Durand
considera que os heróis ligados a este simbolismo são solares, guerreiros uranianos, opostos a
heróis lunares, resignados. As confrarias inquisitoriais, dedicadas a São Pedro Mártir, se
assemelham às instituições cavaleirescas e às ―sociedades de homens‖.

177
―De boa vontade o herói solar desobedece, rompe os juramentos, não pode limitar a
sua audácia, tal como Hércules ou o Sansão semita. Poder-se-ão dizer que a
transcendência exige este descontentamento primitivo, este movimento de mau
humor que a audácia do gesto ou a temeridade da empresa traduzem. A
transcendência está sempre, portanto, armada, e nós já encontrámos esta arma
transcendente por excelência que é a flecha, e já tínhamos reconhecido que o ceptro
de justiça traz a fulgurância dos raios e o executivo do gládio ou do machado‖
(Durand, 1989, p.111. Grifos nossos.).

―A cristandade herda, bem entendido, este arquétipo do herói combatente. Os dois


protótipos cristãos do bom combatente são um arcanjo e um príncipe mítico: S.
Miguel e S. Jorge, em nome dos quais serão armados os cavaleiros da Idade Média.
O primeiro, verdadeiro Apolo cristão, mata o dragão e reina em Gargano, perto do
Monte Tombe; o segundo, qual Perseu, liberta uma rapariga que um dragão vai
devorar e trespassa-o com a sua lança. Estes protótipos vêem-se substituídos por
numerosos sucedâneos regionais, todos requisitados contra o dragão e mobilizados
contra as trevas (...).

Não só o prestígio do deus combatente contaminou a hagiografia católica, como


também parece ter inspirado todas as instituições de cavalaria, todas as ‗sociedades
de homens‘ ou de guerreiros‖ (Durand, 1989, p. 113).

É preciso ter em mente o conhecimento da ação inquisitorial e a noção de


simbolização diairética para fazer a análise dos verbos obsessivamente recorrentes na
documentação inquisitorial. O gládio e o ceptro aparecem classificados no regime diurno da
imagem, dentro das estruturas heróicas, ao lado da dominante reflexa postural. O regime
diurno é o da luz totalmente definida, que divide o mundo entre claro e escuro, apontando
para a luta entre o bem e o mal. A estrutura heróica do imaginário vê a recusa das diferenças
em relação ao outro, que deve ser combatido. As estruturas heróicas são: ―1ª idealização e
‗recuo‘ autístico. 2ª diaiterismo (Spaltung). 3ª geometrismo, simetria, gigantismo. 4ª antítese
polémica‖ (Durand, 1989, p. 305). As dominantes reflexas são uma referência biológica para
o imaginário. Durand percebeu que as dominantes reflexas estão ligadas a certas formulações
imaginárias: a dominante postural, por exemplo, implica dominação e noções hierárquicas de
alto e baixo. A grande qualidade da classificação durandiana está em vincular o objeto
classificado ao capital pensado da humanidade, ou seja, desvendar a sua universalidade.

Dividimos o conjunto dos verbos em três grupos, respeitando o sentido de tais grupos
nos documentos inquisitoriais. O grupo 1 é composto de verbos cujo significado remete à
crença transcendente com um caráter desmitologizador: crer, confessar, denunciar e abjurar. O
grupo 2 reúne verbos de ações imanentes: vencer, arrepender-se, abominar e apartar. O grupo
3 se compõe dos verbos que permitem o ato pessoal de repudiar/estigmatizar o antagonista ou

178
os atos judiciais que tornam realidade as exigências da sentença: degredar, pecar e delinqüir.
Os verbos utilizados nos processos de feitiço, em seu conjunto, revelam que a fé, no
antagonismo com o feitiço, passa a só ter sentido se vivida mundanamente, pois é uma
questão de poder e razão a aplicação conjunta de crença e punição com base investigativa. Ou
seja, para punir o feitiço é preciso – e acaba por ser o objetivo dos inquisidores – desacreditá-
lo.

Na classificação durandiana (Durand, 1989, p.305), o primeiro grupo verbal está


vinculado à regência do verbo subir (oposto a cair). Seus arquétipos substantivos são um
conjunto de oposições encontradas em diversas culturas: cume e abismo; céu e inferno; chefe
(superior) e inferior; herói e monstro; anjo e animal; asa e réptil. Interessa-nos,
evidentemente, a dicotomia que grifamos. Já os símbolos vinculados a subir são: A Escada de
mão, A Escada, O Bétilo, O Campanário, O Zigurate, A Águia, A Calhandra, Júpiter etc. O
segundo grupo aponta para a regência do verbo separar. Seus arquétipos substantivos
também estão descritos por dicotomias: luz e trevas; ar e miasma; arma heróica e atadura;
batismo e mancha. O primeiro arquétipo está vinculado à Inquisição. Os símbolos
relacionados com separar são: O Sol, O Azul celeste, O Olho do Pai, As Runas, O Mantra,
As Armas, A Vedação, A Circuncisão, A Tonsura etc.

No ambiente de medo obsidional a que nos reportamos anteriormente, os


inquisidores modernos buscaram a vitória sobre o mal, que aparecia encarnado no medo. É
muito provável que o terceiro grupo de verbos represente o desejo mais profundo dos
inquisidores através da boca dos réus: detestar a heterodoxia, descobrir o erro, purificar aquele
que pecar ou delinqüir. Se há uma universalidade possível para o estudo do Santo Ofício,
nasce do conhecimento do imaginário. O significado etimológico dos verbos demonstra a
―normalidade‖ dos inquisidores dentro de uma cultura heróica como a ocidental. A junção
entre subir e separar, vinculados pelo verbo distinguir, é uma unidade histórica com o próprio
cristianismo. As dicotomias céu X inferno e luz X trevas são a alma da Revelação cristã, à
qual já nos referimos aqui com o estudo de citações bíblicas e levantamento de
posicionamentos teológicos.

Retornemos às especificidades ou singularidades da cultura ocidental moderna em


relação à Inquisição a fim de fechar a mitocrítica. O fogo purificador, o formalismo jurídico e
a hierarquização clerical são o sedimento das imagens culturais para o Tribunal. O fogo está
na imagem da fogueira que queima o herege, imagem que marcou milhões de retinas pelo
mundo afora. O formalismo jurídico está nos livros e processos, imagens raras, misteriosas e
autoritárias para uma população grandemente iletrada. A hierarquização, analisada aqui
anteriormente, está nos autos-de-fé, nas suntuosas vestimentas dos inquisidores, nas
procissões imensas e nos palácios inquisitoriais ou utilizados pelos inquisidores. Estas

179
componentes, presentes no cotidiano das pessoas, representaram seu vínculo profundo com as
componentes poderosas e sedutoras da intolerância religiosa.

Nas narrativas do medo de bruxa presentes no Regimento de 1640, surgem quatro


presenças verbais que parecem fundantes das obsessões localizadas nos processos. Os
regimentos tinham um caráter diferente: sua letra apresentava enorme capacidade de
permanência, pois estava sempre implícita nos atos do Tribunal e na mente dos inquisidores.
Ao contrário dos processos, onde as reincidências se contam numericamente, os regimentos
eram lidos e relidos, citados em voz alta e em textos, pareceres e sentenças. Eram ensinados
aos inquisidores numa pedagogia que permitia a troca de experiências no tempo longo, pois
sabemos que, em 1640, muito se aproveitou da experiência prática anterior (Regimento de
1613) para compor a nova lei. Portanto, as presenças verbais regimentais são elucidadoras e
indispensáveis para o entendimento do tema.

Os verbos reincidentes localizados no Regimento de 1640 (5) e que coincidem com


os encontrados na documentação são: confessar, abjurar, degredar, apartar e privar (com o
sentido de apartar).

―3.Quando a pessoa condenada por este crime, for nobre, ou de qualidade, que
pareça, que não deve ter pena de açoites, nem degredo para galés, será degredada
para Angola, S. Tomé, ou partes do Brasil; e se for Clérigo, ou religioso, terá a
pena de degredo dos §§ precedentes; e posto que haja de ir ao Auto ouvir sua
sentença, não levará carocha, mas será suspenso para sempre do exercício de suas
ordens, e privado de qualquer ofício, benefício, ou dignidade, que tiver; e sendo
religioso, será mais privado de voz ativa, e passiva; e tendo se respeito à qualidade
da pessoa, se lhe poderá comutar o degredo em reclusão, por outro tanto tempo, em
um dos mosteiros mais apartados de sua religião com alguns anos de cárcere nele‖
(In: Siqueira, 1996, p.855. Grifos nossos).

―5. Se constar que os atos de que usarão os feiticeiro, advinhadores, e sortilégios,


são tais, que deles se colha heresia; pela grande presunção, que resulta de andarem
apartados de nossa santa fé católica, serão postos a tormento, e se nele não
confessarem a tenção, irão ao Auto público da fé a ouvir sua sentença, e nele farão
abjuração de veemente (...)‖ (In: Siqueira,1996, p.856).

O mesmo imaginário heróico estava presente em 1484 numa das mais tradicionais
narrativas do medo de bruxa. Nela, aparece a posição de Santo Tomás de Aquino a respeito
do tema, numa tradição hagiográfica antifeitiço hoje ignorada pelos católicos:

―S. Tomás, no Segundo Livro das Sentenças, dist. 7 e 8, e no Livro IV, dist.34,
junto com quase todos os outros Teólogos, declara serem as bruxas capazes de,

180
com o auxílio diabólico, prejudicar os homens em todas as suas atividades, de todas
as formas imagináveis, como se o próprio Satanás estivesse a agir: desgraçando-os
em seus ofícios, em sua reputação, em seu corpo, em sua razão e em suas vidas.
Noutras palavras: todos os males causados tão-só pelos demônios podem também
ser causados pelas bruxas. E com muito mais facilidade, por muito maior ser a
ofensa assim praticada contra a Majestade Divina, conforme mostramos antes‖
(Kramer, 1998, p.274).

Nas Ordenações Filipinas de 1603, em Portugal, o título III do Livro V chamava-se


―Dos feiticeiros‖ e engendrava uma narrativa própria:

ANTIQUO

―Stabelecemos, que toda pessoa, de qualquer qualidade e condição que seja, que de
Lugar Sagrado, ou não Sagrado tomar pedra de Ara ou Corporaes, ou parte de cada
huma destas cousas, ou qualquer outra cousa Sagrada, para fazer com ella alguma
feitiçaria morra morte natural‖ (In: Gonzaga, 1993, p.164).

A inversão jurídica das narrativas do medo de bruxa veio no último quartel do século
XVIII. Somente no Regimento de 1774 surge um posicionamento ilustrado contrário ao medo
de bruxa e extremamente crítico com relação à demonologia (6). No projeto de regimento
encomendado por D. Maria após a queda de Pombal também não havia narrativas do medo de
bruxa. O texto de 1774 ganha um tom ―épico‖ ao anunciar (In: Siqueira, 1996, p.949) que já
não há motivo para acreditar que se possa transportar os corpos humanos pelos ares ou privar
as gentes da fazenda, da saúde ou da vida com o uso de tintas, carvão ou com o cozimento de
ervas.

―Porquanto, depois que o Divino Triunfador das potências aéreas e infernais,


visitando o mundo corrompido e idólatra, e remido nele com o seu preciosíssimo
sangue o gênero humano do cativeiro da culpa, deixou o Demônio quebrantado,
preso e inibido para ofender os homens, como é constante tradição de muitos
Padres da Igreja, e sólida doutrina de grandes Teólogos e Autores Eclesiásticos da
mais qualificada e pia erudição‖ (In: Siqueira, 1996, p.948).

Tentando justificar o fato de os inquisidores terem perseguido o feitiço por tanto


tempo, o mesmo Regimento recusa e ridiculariza a demonologia, dentro da conjuntura
portuguesa sob Pombal, na qual todos os males da pátria eram atribuídos aos jesuítas. Na
mesma argumentação, utiliza-se também um discurso pretensamente científico.

181
―(...) foram invenções de outras pessoas aplicadas a estudos metafísicos e
matemáticos, que por ganharem o ádito aos Soberanos, e aos Ministros, para
fazerem com eles valer; e para outros fins humanos e carnais, procuraram
disseminar as especulações maravilhosas, e os fatos preter naturais, com que
abusando da inocência dos povos, e fomentando neles a ignorância, ascenderam no
público aquele ardente fanatismo que faz perder aos homens o uso da razão, como
o praticaram (por exemplo) na Alta Alemanha Fr. Henrique Institor, e Fr. Diogo
Sprenger pela publicação da obra intitulada — Malleus Maleficarum — na baixa
Alemanha o denominado Jesuíta Martinho do Rio, na outra obra intitulada-de
Magia-em Itália Fr. Jeronimo Savanarola; em França fr. Thomas Campanela: em
Portugal o outro famoso Jesuíta Antônio Vieira; abusando todos eles da escuridade
dos tempos em que se liam com grande atenção quantas imposturas sonharam
Nicolau Remigio, João Nider, Nicolau Jaqueiro, e outros muito sofistas e fanáticos
da sua mesma índole‖ (Siqueira, 1996, p.950).

Afinal, juntamente com a linha descendente do Tipo Ideal de Inquisidor Moderno


(ver capítulo 1) e com a ascensão da Pedagogia do Desprezo, o imaginário inquisitorial viu o
medo de bruxa ser substituído por correntes que traziam em suas águas os arquétipos,
símbolos e mitos tão decantados do imaginário racionalizador do direito secular ocidental.

182
NOTAS DE REFERÊNCIA

(1) -Estes últimos cinco processos citados foram apresentados e analisados anteriormente por
Laura Souza (Souza, 1986), a quem devemos a localização de tais documentos graças à
publicação dos códices em seu livro, em estudo que, há mais de uma década e meia, foi um
dos pioneiros na análise do feitiço no Brasil colonial dentro da História das Mentalidades. O
percurso analítico que buscamos aqui é metodologicamente diferente. Daí a utilização ser
válida para efeito comparativo entre visões distintas aplicadas sobre a mesma documentação.

(2) -Alguns poucos grafismos e pontuações foram atualizados para permitir a compreensão.
Há casos que se devem a erros do notário, mesmo se considerada a época do documento.

(3) -Não sabemos se o simbolismo presente neste e em outros processos pertence ao


imaginário do réu e de seu meio social – ou se é ―plantado‖ pelo clero, como parece ter sido o
próprio medo de bruxa – uma invenção clerical, tudo tem indicado! Consideramos que há um
conjunto simbólico que diz respeito aos processos inquisitoriais. Adiante, ressaltaremos os
símbolos que tiveram recorrência digna de nota nos processos de feitiço aqui apresentados.

(4) -Laura Souza tenta imputar aos inquisidores algum tipo de aprovação em relação às
torturas privadas sofridas pela escrava. Diz ela: ―Em essência, a Inquisição não desaprovava
o procedimento que fora adotado com Luzia na fazenda de seus senhores; colocada na
posição de árbitro de si própria, viu-se compelida a tomar posição mais branda para
reafirmar a plenitude de seus poderes, que não poderiam ser usurpados por uma camada
social: senão, como justificar sua própria existência?‖ (Souza, 1986, p.351). Há uma
impossibilidade histórica nisto: em nenhum momento em todo o processo aparece qualquer
aprovação por parte dos inquisidores quanto às torturas realizadas. É, portanto, um raciocínio
hipotético da professora.

(5) -Citaremos os trechos do Regimento de 1640 no formato atualizado publicado por Sônia
Siqueira (1996). No volume que está depositado na Série Preta do Arquivo Nacional da Torre
do Tombo, por nós consultado (ver referência documental após a Bibliografia), as páginas que
tratam do Título XIV (―Dos feiticeiros...‖) são, na paginação da época, 180, 181 e 182.

(6) -A mudança jurídica enfrentou resistências. Prova disto foi a prisão e processo de Matias
Gonçalves Guizanda no Recife no início do século XIX, acusado de porte de bolsa de
mandinga (Cavalcanti, 1989).

183
CONCLUSÃO

O INQUIRIDOR-MÁRTIR-PURIFICADOR

184
―Está escrito: ‘no princípio Era o Verbo‖. E já me detenho.
Merece a palavra valor tão perfeito?
Não. É preciso que eu traduza de outra forma.
Se ao Espírito aprouver valer-me do seu favor insigne,
Escrito está: No começo Era o Sentido. Medita esta linha
E suspende a tua pluma por um momento.
É o sentido que cria e que faz viver?
Dizer seria preciso que no princípio
Era a força. Um sentido secreto
Em mim se enternece, induzindo-me a prosseguir,
E escrevo – me vem do espírito da intuição –
‘No princípio era a Ação‘ ...‖

(Fausto, de Goethe)

―Tribunal do Santo Ofício


Eis o nome da exclusão
Impostor do sacrifício
No tempo da Inquisição.‖

(Carlos Severiano Cavalcanti,


Poeta/Trovador de Campina Grande – PB)

185
Há uma especificidade brasileira na ação inquisitorial contra o feitiço. Resta saber
por onde caminha esta especificidade. Chegamos a tocar no assunto anteriormente. Muito se
tem escrito sobre isto. Há aquela tentativa de descobrir que a singularidade cultural brasileira
reduzir-se-ia a um fator, incluindo-se aí o feitiço, naturalmente. Bethencourt, por exemplo, foi
taxativo ao afirmar que fatores como a distância da colônia, fazendo com que não houvesse
aqui tribunal próprio, e a ―fraqueza do ritmo repressivo‖ (Bethencourt, 1994, p. 279) geraram
um modelo completamente diverso de ação em nosso país. Para ele, a especificidade é
numérica. Destaca o professor português que apenas 407 processos estão levantados no Brasil
em dados provisórios e, destes, ―apenas‖ 48% eram de cristãos-novos de origem hebraica‖
(Bethencourt, 1994, p. 279). Retorna, assim, na historiografia, a idéia da fraqueza do Tribunal
em nossas terras. Mas a pergunta essencial fica em ainda em aberto: o que motivaria esta
reduzida presença? Propomos raciocinar, a princípio, com outra variável: a presença de
familiares e comissários vigiando a sociedade colonial (ver Siqueira, 1979), que é dado da
cultura que não pode virar estatística, provocava uma ―onipresença‖ tácita, sempre disponível
para uma ação que fosse solicitada numa sociedade fragilizada econômica e culturalmente,
pois éramos uma colônia pobre e sem maior poder político quando comparada ao fausto da
corte. O baixo número de casos no Brasil bem poderia ser explicado, de maneira inversa, por
um possível ―desinteresse‖ dos colonos pelo Tribunal. Assim, pensamos que nossa
singularidade imaginária permitirá compreender a especificidade inquisitorial. Tememos que
uma análise quantitavista fosse redutora. Peter Burke, aliás, identificou este quantitativismo:

―Nos últimos anos, a estatística, auxiliada pelos computadores, chegou mesmo a


invadir a cidadela da história rankeana – os arquivos. Os Arquivos Nacionais
Americanos, por exemplo, têm agora uma ‗Divisão de Dados
Computadorizados‘(...).‖―Em conseqüência disso, os historiadores estão cada vez
mais inclinados a encarar os arquivos anteriores, tais como os arquivos da
Inquisição, como ‗banco de dados‘ que podem ser explorados por métodos
quantitativos‖ (Burke, 1992, p.30. Grifo nosso).

A armadilha quantitativista não preocupou Gilberto Freyre:

―(...) a inquisição escancarou sobre nossa vida íntima da era colonial, sobre as
alcovas com camas que em geral parecem ter sido de couro, rangendo às pressões
dos adultérios e dos coitos danados; sobre as camarinhas e os quartos de santos;
sobre as relações de brancos com escravos – seu olho enorme, indagador‖ (Freyre,
1980, P.xvi).

186
Fernández-Armesto indica que, também na Espanha, a Inquisição ―passou a maior
parte do tempo desancando o relaxamento moral‖ (Armesto, 1999, p.336). Perceber a
história é mais que somar números. A estatística pode confundir o analista na medida em que
ela só se aplica como conclusão ao universo de dados utilizado. No caso específico, isto
equivale a dizer que o baixo (?) número de casos no Brasil não permite afirmar um
desinteresse dos inquisidores pelo que aqui sucedia. ―Mas voltemos a dizer, ainda uma vez,
que não devemos tomar a lupa pelo objeto que ela estuda, a lua pelo dedo que a aponta‖
(Gilbert Durand, 1995, p. 61). A Inquisição, ao seu modo, participou da empresa colonial.
Como nos lembra Rosa Godoy, ―o invasor do paraíso não consegue entendê-lo‖ e ―quer
organizá-lo, instaurar a autoridade, disciplinar o tempo (...)‖ (Godoy, 1997, p.256).

Há influências que perpassam os campos de estudo da História. Além da marca que a


herança inquisitorial deixou para o direito, também em ambientes que podem parecer
insuspeitos, está a influência da Inquisição. Preocupações novas – como a profissionalização
dos ofícios – estiveram presentes entre os objetos de análise dos inquisidores modernos.
Parece que de muitos assuntos cuidavam os pareceres. Câmara Cascudo descobriu, para sua
História da Alimentação no Brasil, um parecer do censor do Santo Ofício Antônio de Aguiar
e Silva para o livro Arte de Cozinha, publicado por Domingos Rodrigues em 1680:

― ‘Senhor... dois livros vi impressos desta Arte de Cozinha, ambos castelhanos, um


de Pedro Moreto, outro de Francisco Martines Montinho, e confesso que sinto
muito que corressem em Portugal, mas antes parecerá conveniente que se fizessem
lei em que se proibissem, pelo prejuízo que redunda à República, e ainda ao serviço
de Deus destes incentivos à gula. E quanto a este ofício de Cozinha, quando
começou no mundo, não tinha outro título mais que de ministério, depois, passou a
ofício, quando o luxo introduziu manjares mais delicados e por tal se nomeia em
Direito... e, o que mais é, passou a dignidade no cozinheiro do Pontífice e do
Príncipe... pelo que, Senhor, como esta arte passou já a ofício e o haja em todas as
casas da Nobreza de Portugal, razão será haver quem o saiba obrar bem‘.
Finalmente aprovou por nada conter contra a Fé e os bons costumes, do Regente D.
Pedro, futuro Rei‖ (Cascudo, 1983, p.402).

As estruturas do imaginário aplicadas ao Brasil pelo seu idealizador resultaram


numa visão rica de nossa alma. Nela, encontramos a trilha para explicar nossa singular relação
com o feitiço e com a Inquisição. Em Atlântico Longínquo e Telurismo Próximo: Imaginário
Lusitano e Imaginário Brasileiro (Durand, 1997, p.45-56), Durand mostra que o Brasil foi
formando um imaginário diferente: ―o do Brasil é integralmente o inverso do imaginário
português‖ (Durand, 1997, p.47). O imaginário lusitano que, como vimos, influenciou a
Inquisição, foi cedendo lugar ao novo.

187
―Certamente, os conquistadores do Brasil não perderam nenhuma da sua
combatividade quando se instalaram, a pouco e pouco, no imenso subcontinente,
tendo como centro a cidade de São Salvador da Baía. A vigilância não podia
abrandar, com as incursões e os desembarques dos holandeses e dos franceses. No
entanto, os conquistadores portugueses, portadores de todos os valores da
Renascença – curiosidade intelectual, curiosidade científica, humanismo, etc. – iam
tornar-se o tal homo novus brasileiro e o seu imaginário sofreria uma
transformação radical‖ (Durand, 1997, p.49).

Os processos apresentados aqui – além de inúmeros já estudados por historiadores


brasileiros – trazem a cara desta transformação na direção de um imaginário brasileiro. É o
caso, só para citar um exemplo, da bolsa de mandinga e de expressões e bruxedos tipicamente
locais. Nas relações sociais em torno destas transformações do imaginário, a Pedagogia do
Desprezo foi um instrumento do branco colonizador para desvalorizar e tentar recusar este
―imaginário sincrético‖ que se tornaria um novo imaginário. Mesmo que a abertura humanista
dos portugueses tenha permitido este homem ―mestiço e sedentário do Brasil‖ (Durand, 1997,
p.49), a composição que se foi criando excluiu os mitologemas lusos com o passar do tempo.

O imaginário brasileiro é um imaginário da terra, onde quatro feminas governam.


―Este imaginário do Feminino e do seu sucedâneo, a Natureza, igualmente polimórfica,
traduz-se nas intenções profundas da história e da política do Brasil‖ (Durand, 1997, p.52).
A noção de eldorado, numa terra de ventre mineiro, fecundidade agrícola, fecundidade fluvial
e fecundidade florestal: ―Ora, no Brasil, o imaginário da anima é quádruplo (...)‖ (Durand,
1997, p.50). Há indecisão na representação feminina no Brasil. Durand cita o trabalho de
Mario Carelli neste sentido e afirma: ―Carelli tem razão em considerar como uma das causas
desta curiosa indecisão do imaginário brasileiro em relação a três, se não quatro imagens de
mulher (a branca, a negra, a mestiça e a índia). Mas podemos acrescentar outras razões, em
especial a constatação jungiana que estabelece a unicidade da figura da anima, contra a
pluralidade do animus‖ (Durand, 1997, p.50).

No Brasil, o feminino é plural. O feitiço esteve ligado a todas as animas, na medida


em que invocava a natureza e as conotações culturais do feminino, como o domínio da
fertilidade e das ervas naturais. A permanência de práticas que os inquisidores consideraram
feitiço nas religiões afro-brasileiras dos nossos dias demonstra que houve uma afastamento e
até um encobrimento: a Inquisição não foi mais fraca por deliberação própria – não
esqueçamos que ela cruzou metade do planeta e foi se estabelecer em Goa –, mas pela
polimorfia e pluralidade das culpas e dos culpados, difíceis de enquadrar no formalismo
investigativo do Tribunal do Santo Ofício. A Pedagogia do Desprezo, então, pode talvez ter
sido o episódio mais visível da relação do Tribunal com a imensa colônia das Américas.

188
********

Na Mitologia, quando Epimeteu já tinha distribuído os mais variados dons a cada


animal, percebeu que faltava-lhe um dom que pudesse ser dado ao homem, ―que tinha de ser
superior a todos os outros animais‖ (Bulfinch, 1998, p. 20). Mesmo sem autorização dos
deuses, Prometeu, seu irmão, indignado e revoltado, ―subiu ao céu e acendeu sua tocha no
carro do sol, trazendo o fogo para o homem‖ (Bulfinch, 1998, p.20).

Arquétipo maior da justiça que se alia ao intelecto, Prometeu invocou o disco solar,
―‘que vê tudo‘‖ e que aparece em diversas culturas como o olho solar, que ―é ao mesmo
tempo o justiceiro‖ (Durand, 1989, p. 107). Vimos no terceiro capítulo que há vínculo entre o
herói uraniano e o cristianismo. Nos estudos de A. H. Krappe (La Genèse des Mythes), como
nos lembra Durand, o autor concluiu que ―se passa facilmente de ‘olho que vê os crimes‘ ao
que vinga os crimes‖ (in Durand, 1989, p. 107). O olho que vê o crime e faz justiça está
presente no imaginário inquisitorial. Pelo percurso prometeico, chega-se curiosamente a esta
aproximação entre o espírito justiceiro e a busca da liberdade de espírito, que chega a
justificar a revolta em seu nome. ―A revolta do Prometeu é arquétipo mítico da liberdade de
espírito‖ (Durand, 1989, p. 111). ―Um mitólogo (P. Diel) pôde escrever que o fogo ‘é muito
apto para representar o intelecto... porque permite à simbolização figurar por um lado a
espiritualização (pela luz) e por outro lado a sublimação (pelo calor)‘ ‖ (Durand, 1989, p.
121. Grifo nosso).

A justiça formal secularizada, que essencialmente é uma atitude ética sublimadora,


depende do intelecto, seja na caracterização do crime, seja na ação processual-investigativa.
Poderíamos argumentar que toda ética é transcendente.... Ora, a aproximação entre a
espiritualização (transcendência) e a sublimação abre o caminho tanto para o ato justo quanto
para o ato intolerante, em nome do dogma. A fronteira entre ambos esmaece facilmente, pois
sabemos que estes conceitos variam grandemente no tempo e no espaço. Por difícil que seja
admitir, vemos que o ato intolerante carrega em si o anseio de justiça. No mito prometeico ou
nas fontes históricas inquisitoriais, percebe-se a profunda identidade imaginária entre
intolerância e justiça. O intelecto que ilumina a justiça é o mesmo que alimenta a intolerância.
Daí ser tão difícil – improvável? – combater a intolerância ―apenas‖ com o intelecto, pois no
―jogo das idéias‖ caminhamos facilmente da alteridade à autoridade. Este aparente paradoxo é
a essência da desmitologização.

As narrativas populares são tradicionalmente capazes de aparentar e exprimir a


aproximação de valores de justiça e de intolerância convivendo em harmonia. Câmara
Cascudo captou uma dessas narrativas: A História de Pedro, José e João, que permite ilustrar
a constatação tão presente nos processos inquisitoriais. Pedro, José e João eram três irmãos,
para cada um dos quais o pai havia plantado uma árvore e dado um cachorro, um cavalo e
uma espada. Quando chegou a ―idade de sair pelo mundo‖ (Cascudo, 1998, p.134), cada um

189
levou seus objetos e recebeu do pai uma interpelação: ir com muito dinheiro e sem sua bênção
ou sem dinheiro e com sua bênção. Pedro e José, os dois primeiros filhos, preferiram o
dinheiro. Pedro saiu e foi descansar na casa de uma velha que ofereceu guarita e pediu para
prender a espada, o cachorro e o cavalo com um fio de cabelo. O rapaz não desconfiou.
Quando entrou na casa a velha pediu para brincar de queda-de-corpo. Pedro achou graça, mas
aceitou. Quando viu que a velha tinha a força de muitos homens, chamou pela ajuda do
cavalo, do cachorro e da espada, mas os três foram vencidos pelos fios de cabelo que se
transformaram em cordas e correntes e impediram a ajuda. Pedro foi jogado num alçapão
onde já estavam outros homens. José notou que a árvore de Pedro estava murcha e resolveu ir
atrás para ver o que sucedia, mas acabou caindo na mesma armadilha da velha. Foi o irmão
mais novo, João, que preferiu a bênção em vez do dinheiro. Seguiu viagem e encontrou a
velha. Aceitou, desconfiado, o convite para entrar na casa dela, mas fingiu amarrar os cabelos
no cavalo, na espada e no cachorro. Quando a velha tentou vencê-lo, foi destroçada
rapidamente. Resolveram queimá-la, pois era uma feiticeira. O fogo rompeu suas entranhas e
de dentro do fígado dela surgiram três ovos que libertaram três princesas presas lá há mais de
cem anos. As princesas casaram com os irmãos, voltaram para a cidade onde o rei era o pai
delas e João veio a ser coroado rei anos depois. Nesta narrativa popular, o justo e o intolerante
estão harmonizados. Queimar feiticeiras é a regra para uma vida tranqüila. O imaginário
inquisitorial harmoniza estes opostos aparentes. A aproximação é possível para os valores
cotidianos do inquisidor graças à junção de imagens personificadas em personagens
universais para o cristianismo. A soma destes personagens na memória inquisitorial permite o
reconhecimento cultural dos inquisidores como agentes pertinentes ao mundo cristão.
Propomos e designação desta auto-imagem dos inquisidores modernos como Inquiridor-
Mártir-Purificador, cujo patrono é São Pedro Mártir, analisado anteriormente. Ressaltamos
que optamos pela palavra inquiridor (com ―r‖), que vem do verbo inquirir, e não inquisidor
(com ―s‖), substantivo que designa os homens da fé. Imaginamos ser possível admitir que o
próprio Pedro se considerava um pouco de cada um destes personagens-chave do catolicismo:

1- o pregador caminheiro catequizador;

2- o exorcista que faz o herege vomitar ou expiar o mal;

3- o teólogo que é cioso da retidão de sua fé;


4- o imolado que o foi pela cegueira do outro (herege ou infiel);

5- o cruzado que combate e converte o infiel.

O pregador, o exorcista, o teólogo, o imolado e o cruzado evidenciaram para nós, ao


final da pesquisa para a realização deste trabalho, e graças a ela, a imensa possibilidade
analítica para a história do Tribunal do Santo Ofício. Milhares de personagens individuais ao
longo da história da Igreja estiveram em acordo com um ou mais dos citados personagens-
chave, tão propalados no mundo cristão e implícitos nos valores do Tipo Ideal de Inquisidor

190
Moderno e nas componentes do imaginário português. Talvez estejamos aqui diante de um
primeiro estágio para o trabalho de designação do mito fundador do Santo Ofício. Para além
da figura individual de São Pedro Mártir, este Inquiridor-Mártir-Purificador reúne as
componentes ―puras‖ que inspiram admiração e veneração. Neste sentido, o personagem título
desta conclusão tentou ficar – e isso não significa que tenha conseguido – acima do tempo,
vivenciando a tênue condição atemporal dos valores místicos de uma religião em processo de
desmitologização. A linha da curvatura decadente do tipo ideal de inquisidor, que
curiosamente coincide com a decadência do número de processos ao longo do tempo (ver
Quadro 7 e seu Anexo)(1) ou ainda do número de familiares (ver Quadro 8)(2), não
interferem com a figura do inquiridor. Sua mensagem mítica permanece, tornando-o
instrumento precioso para trabalhos futuros.

191
NOTAS DE REFERÊNCIA
(1) - Realizamos os Quadros 7 e 8 sistematizando dados originais publicados em Bethencourt,
1994. O resultado visual e analítico é muito proveitoso. O Quadro 7 apresenta a média anual
do número de processos da Inquisição portuguesa entre 1536 e 1767. O período geral foi
dividido em quatro períodos específicos: 1536-1605; 1606-1674; 1675-1750; 1751-1767. O
ganho analítico está nas percentualizações presentes na coluna da direita: elas demonstram a
ascensão (+) e queda (-) da intensidade das atividades inquisitoriais. Para facilitar a
visualização, criamos o Anexo ao Quadro 7, onde os mesmos dados foram dispostos em plano
de linhas x e y, sendo apresentados no formato de equações matemáticas simples que se
referem sempre ao ponto/dado anterior (x,y,z,w).

(2) - O Quadro 8 debruça-se sobre o número de familiares e sua variação entre 1595 e 1796.
Tratando-se também de um plano x/y, permite avaliar os anos de 1595, 1646, 1695, 1745 e
1796, com seus contextos históricos pertinentes. A relação entre os dois Quadros (7 e 8)
demonstra que à maior intensidade de processos – e, portanto, à maior força política do
Tribunal – sucedeu um aumento progressivo do número de familiares, que teve seu pico um
século após o ápice do número de documentos processuais. Os dois gráficos (Quadros 7 e 8)
estão em harmonia com a linha de ascensão e queda do Tipo Ideal de Inquisidor Moderno
(Quadro 1).

192
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Para ser condizente com a opção teórica que seguimos, a bibliografia que segue foi
construída com a intenção de ser a mais pluralista e abrangente possível, de maneira a
oferecer ao leitor, seja qual for sua maneira de ver a história, as opções para localizar os
títulos e fazer outros estudos. Por outro lado, os autores e títulos que consideramos de maior
relevo foram citados no texto do livro em número mais elevado de vezes. Livros que tratam
especificamente da Inquisição como seu tema principal ou que a utilizam diretamente para
análise de tema muito correlato aparecem com o sinal ao final da referência. Enfim,
consciente de que esta bibliografia, na parte dos títulos específicos sobre a Inquisição – como
qualquer outra que se venha a fazer sobre o tema – terá incompletudes, destacamos as
palavras de João Bernardino Gonzaga:

―A Inquisição constitui assunto de eterno interesse, que até hoje continua


despertando apaixonados debates. Tentou-se já o levantamento das obras por toda
parte sobre ela publicadas, mas a pesquisa é difícil e precários os números
apresentados. Basta sabermos que há alguns milhares de trabalhos dedicados ao seu
estudo e que, para lê-los todos, não seria suficiente a inteira vida de um homem‖
(Gonzaga, 1993, p. 100).

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34
35

205
1 DOCUMENTOS HISTÓRICO-TEOLÓGICOS
2
3 1. A Bíblia Teb. São Paulo, Paulinas e Loyola, 1995. (Nota: todas as
4 citações bíblicas foram retiradas desta edição)
5 2. Fides et Ratio - Encíclica do papa João Paulo II. São Paulo, Edições
6 Loyola, 1999.
7
8
9
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11
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33
34
35
36
37

206
1 DOCUMENTOS HISTÓRICOS:
2 FONTES DOCUMENTAIS PUBLICADAS
3
4
5 1. Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil – Denunciações
6 e Confissões de Pernambuco (1593-1595). Recife, Fundação do Patrimônio
7 e Artístico de Pernambuco – Fundarpe/Diretoria de Assuntos Culturais,
8 1984.
9 2. Notícias Recônditas do Modo de Proceder da Inquisição com os seus
10 Presos. FREIRE, Pedro Lupina. In: VIEIRA, Antônio (Pe.). Obras
11 Escolhidas. Vol. IV. Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1951.
12 3. Livro da Visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão-
13 Pará (1763-1769). Petrópolis, Vozes, 1978.(ver LAPA, J. R. do Amaral na
14 Bibliografia ).
15 4. O Último Regimento da Inquisição Portuguesa. Lisboa, Ed. Excelsior,
16 1971.(ver REGO, Raul na Bibliografia).
17 5. O Último Regimento e o Regimento da Economia da Inquisição de
18 Goa. Lisboa, Biblioteca Nacional, 1983 (ver REGO, Raul na Bibliografia).
19 6. Lei elevando o Santo Officio à categoria de Magestade. In Internet:
20 library.byu.edu/~rdh/eurodocs/port/inquiz.html Acessado em 11/02/2000.
21 7. Regimento da Santa Inquisição — 1552. In: Revista do Instituto Histórico e
22 Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, jul./set. 1996, a. 157, n. 392, p. 495-
23 1020, p. 573 a 614.
24 8. Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal recopilado
25 por mandado do ilustríssimo e reverendíssimo senhor Dom Pedro de Castilho,
26 Bispo Inquisidor-Geral e Vice-Rei dos Reinos de Portugal — 1613. In: Revista
27 do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, jul./set. 1996,
28 a. 157, n. 392, p. 495-1020, p. 615 a 692.
29 9. Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, ordenado
30 por mandado do ilustríssimo e reverendíssimo senhor Bispo dom Francisco de
31 Castro, Inquisidor-Geral do Conselho de Estado de Sua Majestade — 1640. In:
32 Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro,
33 jul./set. 1996, a. 157, n. 392, p. 495-1020, p. 693 a 884.
34 10. Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, ordenado
35 com o real beneplácito e régio auxílio pelo eminentíssimo e reverendíssimo

207
1 senhor cardeal da Cunha, dos Conselhos de Estado e do Gabinete de Sua
2 Majestade, e Inquisidor-Geral nestes Reinos e em todos os seus domínios —
3 1774. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de
4 Janeiro, jul./set. 1996, a. 157, n. 392, p. 495-1020, p. 885 a 972.
5 11. Regimento do Santo Ofício encomendado ao Inquisidor-Geral, D. Frei
6 Ignácio de São Caetano, do Conselho da Rainha, seu confessor e ministro
7 assistente no despacho. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico
8 Brasileiro, Rio de Janeiro, jul./set. 1996, a. 157, n. 392, p. 495-1020, p. 973
9 a 1010.
10 12. Autos de Devassa. In: Anais do Arquivo Público do Pará, Belém, v.3, t.1, p.
11 1-283, 1997, p. 9 a 212.

12 13. Traslado do Processo feito pela Inquizição de Lisboa contra Antonio Jozé
13 da Silva. In: Revista Trimestral do Instituto Historico e Geografico Brazileiro, Rio
14 de Janeiro, Companhia Typographica do Brazil, 1896.

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1 DOCUMENTOS HISTÓRICOS:
2 FONTES DOCUMENTAIS NÃO PUBLICADAS
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5 1.Processo de Manoel João. 1672. Arquivo Nacional da Torre do Tombo –
6 ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo 10.181.

7 2.Processo de Luzia Pinta. 1742. Arquivo Nacional da Torre do Tombo –


8 ANTT, Inquisição de Lisboa, Maço 26 - Processo/Documento 252.

9 3.Processo de Luzia da Silva. 1742. Arquivo Nacional da Torre do Tombo


10 – ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo 11.163.
11 4.Processo de Salvador Carvalho Serra. 1757. Arquivo Nacional da Torre
12 do Tombo – ANTT, Inquisição de Lisboa, Processo 11.684.

13 5.Processo de Adrião Pereira de Farias. 1757. Arquivo Nacional da Torre


14 do Tombo – ANTT, Inquisição de Lisboa, Maço 163 - Processo 1894.

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209
1 DOCUMENTOS HISTÓRICOS:
2 REGIMENTOS INQUISITORIAIS
3

4 1.Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, ordenado


5 por mandado do ilustríssimo e reverendíssimo senhor Bispo dom Francisco de
6 Castro, Inquisidor-Geral do Conselho de Estado de Sua Majestade — 1640.
7 Arquivo Nacional da Torre do Tombo – ANTT. Série Preta, Nº 671.
8 MF.2441.

9 2. Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, ordenado


10 com o real beneplácito e régio auxílio pelo eminentíssimo e reverendíssimo
11 senhor cardeal da Cunha, dos Conselhos de Estado e do Gabinete de Sua
12 Majestade, e Inquisidor-Geral nestes Reinos e em todos os seus domínios —
13 1774. Arquivo Nacional da Torre do Tombo – ANTT. Série Preta, Nº 458.
14 MF.1538.

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1 VOCABULÁRIO TEÓRICO-METODOLÓGICO
2

3 ARQUÉTIPO: Protótipos consignados em imagens tendencialmente universais


4 presentes no inconsciente coletivo de toda a humanidade. Um exemplo de
5 arquétipo pertinente ao Tribunal do Santo Ofício é o de paraíso. Tais modelos
6 primordiais foram tidos na Antigüidade como os protótipos ou idéias do mundo
7 do espírito. A Psicanálise utiliza o conceito para designar os componentes do
8 inconsciente.

9 CONSTELAÇÕES: A imagem metafórica das constelações está presente nas


10 obras de Weber e Durand, como vemos no corpo deste trabalho. Trata-se de um
11 conceito que nasce da constatação de que valores (Weber) e mitemas (Durand)
12 tendem a aproximar-se de seus semelhantes ou complementares, formando
13 grupamentos semelhantes às constelações do Universo.

14 DESMISTIFICAÇÃO: É o ato deliberado de tornar banal o objeto observado,


15 seja uma idéia ou algo material. O mesmo que ―desenganar‖, tornar comum.

16 DESMITOLOGIZAÇÃO: Processo descrito ao longo deste trabalho. A


17 desmitologização é, enquanto significado semântico do termo, o mesmo que
18 privar algo de sua característica mítica, alienando-o do seu fundamento,
19 esvaziando-o em seu significado. Para a história da cultura ocidental, a
20 desmitologização é processo de combate às ―crendices mágicas‖ desde os
21 fundamentos bíblicos do cristianismo, aprofundando-se com a teologia tomista-
22 aristotélica abraçada pela Igreja Católica. O processo de desmitologização foi
23 consolidado com o episódio iluminista do século XVIII – a Ilustração – e está
24 consignado nos documentos contemporâneos do papado, onde a fé aparece
25 diretamente ligada à Filosofia e ao tempo histórico.

26 MITANÁLISE: Método durandiana que pretende captar as redundâncias míticas


27 presentes no texto social. Este método busca estender para o contexto geral da
28 vida em sociedade a análise mítica textual da mitocrítica (ver).

29 MITEMA: É a menor unidade significativa do mito (ver). As redundâncias do


30 discurso inquisitorial presente nas narrativas do medo de bruxa em regimentos e
31 processos são exemplos que aparecem no capítulo 3 deste trabalho.

32 MITO: Nossa atenção especial deve voltar-se para a definição de mito. Em


33 muitos casos a palavra toma o significado de coisa irreal ou inacreditável,
34 sinônimo contemporâneo de fantasia. Talvez a argumentação platônica da
35 alegoria da caverna, que narra a passagem da ignorância à ―verdade‖, seja a

211
1 origem desta distorção. O mito é uma narrativa culturalmente valorosa que atribui
2 significado às ações humanas e que permite estruturar o fundamento de valores e
3 comportamentos que servem de modelo para as relações sociais e para as relações
4 do homem com a natureza ou com o cosmos. A mitologia básica fundante da
5 Cristandade é também a mitologia básica deste trabalho e está consignada na
6 Bíblia Sagrada.

7 MITOCRÍTICA: Método durandiano para a análise mítica de textos escritos.


8 Faz-se uma escala de leitura como se se estivesse lidando com um mapa
9 geográfico, depois seleciona-se os temas recorrentes. Daí surgem os temas
10 predominantes que formam mitemas compostos. Um exemplo inquisitorial de
11 mitema composto é a pureza, presente na ascese espiritual e no fogo. A análise
12 simbólica localiza os verbos que serão localizados na tabela que permite
13 relacioná-los entre si e com suas dinâmicas subjacentes. Realizados estes passos, o
14 método mitocrítico indica o retorno às especificidades e singularidades da cultura
15 que se está estudando.

16 MITOLOGEMA: É a ampliação do mito, expandido pela vivência ―histórica‖. O


17 mitologema pode incluir narrativas como o mito. Por exemplo: o mito do herói
18 fundador vindo de fora está presente em várias culturas. Na cultura portuguesa,
19 este mito tornou-se mitologema específico, onde uma das narrativas é a de São
20 Vicente, o vitorioso, santo fundador de Lisboa.

21 SÍMBOLO: O símbolo é a analogia daquilo que está ausente e é por ele


22 representado. De forma introdutória, ressaltamos que o símbolo é, na psique
23 humana, a idéia consciente que representa noções inconscientes às quais se
24 atribuem valor.

25 TIPO IDEAL: Weber criou este conceito para viabilizar a pesquisa histórico-
26 sociológica. Partindo da constatação que lhe era própria de que a ciência não
27 poderia representar o real de forma totalmente objetiva, o pensador buscou uma
28 conceituação possível. Um tipo ideal é a caracterização radical da tipologia de um
29 agente histórico: seus valores são identificados pelo cientista e postos numa
30 idealização com a qual se comparará o ―real‖. As conclusões advindas desta
31 aproximação entre o ―ideal‖ e o ―real‖ são restritas e específicas, não servindo
32 para universalizações ou terorizações explicativas de toda a história humana.

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212
1

9 ANEXO
10 Quadro de Cargos e Funções do
11 Tribunal do Santo Ofício
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18
19 ―Na Inquisição se haverão com tal moderação em tudo, e com tanta gravidade,
20 que possam aos outros ministros aprender deles o modo com que se devem tratar;
21 escusarão porfias nas matérias, que não tocam ao S. Ofício, e nas coisas, que em
22 serviço dele houverem de fazer, serão conformes quanto lhe for possível; e
23 acontecendo entre eles alguma inquietação ou diferença, a terão em segredo, e nos
24 darão conta para mandarmos prover no caso como for justiça.‖
25 Regimento de 1640
26 Título III - Dos Inquisidores
27 (In: Siqueira, 1996, p.702)
28
29 Nov 2008

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