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TEMPO E TERROR:
ESTRATÉGIAS DE EVASÃO

Tempo e terror

Inapreensível, o tempo parece não ter ser. O argumento cético,


que S. Agostinho procura superar pelo recurso ao hino (eu tenho um
poema inteiro no espírito, mas ele só pode aparecer verso por verso: o
verso que acabei de pronunciar, o que pronuncio agora e o que me
preparo parapronunciar)y demonstrava este não-serào tempo afirmando
que o futuro não é ainda, o passado não é mais e o presente não permanece.
O tempo seria composto por não-seres e7 assim, não teria ser.1
P. Ricoeur, examinando algumas das mais eminentes constru-
ções teóricas que se esforçaram por apreender o tempo em seu ser,
demonstrou que todas elas o deixaram escapar, pois chegaram a
aporias insuperáveis.2 Teoricamente, nem as construções cosmológicas

1. Santo Agostinho 1982, Livro XI.


' 2. Ricoeur 1983-3985.

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e nem as construções fenomenológicas puderam atingir o tempo em
seu ser. Ricoeur, então, sugere a hipótese de que a única forma de
abordar o tempo seja pela sua imitação narrativa. Entre narrar uma
história e a estrutura temporal da experiência vivida humana, ele
sugere, parece haver uma correlação necessáriaT^A narração seria uma
abordagem indireta da temporalidade. Ela não diz o que ela é e nem o
porquê ela é, mas como ela se dá. O ciclo hermenêutico faria a
apreensão do tempo, indiretamente. Por meio de uma configuração
narrativa, o leitor refigura a experiência temporal do mundo humano,
da qual ele próprio participa. Ele a reconhece. Mas a configuração
narrativa não é uma teoria, uma abordagem direta do tempo. Ela não
o atinge diretamente em seu ser: ela não tem conceitos que expliquem
o quê e o por quê do tempo. Ela, apenas, o recria, o imita e o leitor o
reconhece. Mas, reconhecer nã.o é conhecer, assim como compreender
não é explicar. A conclusão cética de Ricoeur: apesar da apreensão
indireta da narrativa, o tempo continua inexplicável, inapreensível,
misterioso.
6
Entretanto, este não-ser misterioso e teoricamente inapreensí-
vel é uma realidade fundadora da experiência vivida. Este-que-não-
se-sabe-o-que-e e onipresente, e mesmo constituidor da experiencia
da vida dos homens. A experiência vivida vive praticamente a tempo-
ralidade, a reconhece e compreende, mesmo se não pode explicá-la.
Falamos de e compreendemos as coisas que serão, coisas passadas e
coisas que passam. A linguagem é atravessada pela sutileza temporal.
Há mesmo, antiga, uma ciência dos homens no tempo. Uma ciência
que diz compreender a experiência humana da temporalidade e ter
como seu objeto privilegiado de análise, a mudança perpétua das
sociedades humanas. Entretanto, sociedade alguma, até o século XIX,
pelo menos, jamais quis conhecer suas mudanças. A mudança, a
experiência concreta da temporalidade, sempre foi considerada into-
lerável pelos homens. Nenhuma sociedade humana conseguiu convi-
ver em paz com este não-ser que praticamente as constitui. Como
experiência vivida/o tempo é terror e o que sempre se quis foi
esquecê-lo.

Esse não-ser que atravessa o ser da humanidade é causador de


medo, angústia e dor. A experiência da temporalidade já foi descrita
com as palavras as mais duras que a linguagem humana já produziu.

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Dir-se-ia que essas palavras foram mesmo criadas com base nessa
experiência do tempo, para defini-la. São elas; dispersão, deriva,
conflito, errar, dissolução, corrupção, ruína, indigência, agonia, enve-
lhecimento, exílio, nostalgia, noite, inconsistência, inconstância, mu-
tabilidade, diferença constante, não-identidade, não-sentido, limite,
relatividade, vazio, falta, incompletude, angústia, incomunicabilida-
de, transitoriedade, irreversibilidade, separação, opressão, guerra, tor-
tura, inferno, inautenticidade, perda de si, escuridão, solidão,
contingência, acaso, descontinuidade, marcha para a morte, finitude,
ausência. Ausência do Ser. As sociedades humanas aspiraram sempre
à eternidade, à estabilidade, à unidade, a um presente eterno. Elas
quiseram sempre se esquecer e não se lembrar das suas mudanças*
perpétuas. Esta foi a sua esperança: sair da experiência da temporali-
dade e reencontrar o Ser, o sentido, a permanência, a Presença; isto é,
suprimir a irreversibilidade em uma reversibilidade. Lévi-Strauss pre-
fere distinguir as sociedades ditas arcaicas ou primitivas das socieda-
des ditas históricas pela relação que elas mantêm com a temporalidade.
Para ele, o que as separa não é o fato de serem umas quentes e outras
frias, umas primitivas e outras civilizadas: "todas as sociedades são
históricas; entretanto algumas o admitem francamente enquanto que
por outras a historicidade é repugnada e ignorada."3

A questão que se põe, baseando-se nessa distinção de Lévi-


Strauss seria: Se às sociedades primitivas repugna a sua historicidade,
o que faria com que as sociedades históricas aceitassem conviver com
ela? "As sociedades históricas tolerariam mesmo a sua experiência
temporal? Ou teriam criado estratégias diferentes para, ao mesmo
tempo, conviver com ela e não sofrer a sua ação corruptora? É o que
pretendo discutirmos meios de fuga do tempo das sociedades primiti-
vas e também as estratégias de evasão do tempo criadas pelas socie-
dades consideradas históricas, que se caracterizariam pela admissão
franca de sua historicidade. Limitar-me-ei às estratégias mítica, greco-
teórica, religiosa efilosóficade evasão do tempo. A estratégia científica,
predominante a partir do século XIX, ficará fora do alcance da nossa
reflexão.

3. Lévi-Strauss 1983, p. 1218.

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A evasão m íticá: O instante •-' •

Aexperiência da temporalidade pelas sociedades arcaicas e sua


estratégia de evasão dela foram tratadas, de forma incitante, por
Mircea Eliade em seu livro Le mythe de Veternel retour (1969).
Segundo Eliade,Do homem arcaico tem horror ao evento, que traz a
mudança, o novo. Ele procura evitá-lo pela repetição ininterrupta de
gestos inaugurais. Ele repete gestos paradigmáticos, buscando uma
participação em uma realidade transcendente. A realidade profana
imita um arquétipo celeste, que recebe seu sentido de um modelo
extraterrestre. Por meio de rituais, o caos dos eventos é integrado no
cosmos. Sacralizados, os eventos ganham realidade e sentido. Asacra-
lização se dá pelo ritual — um altar, um sacrifício, um canto, danças,
palavras especiais repetidas.'O ritual é a repetição do ato cósmico da
criação. O tempo do ritual coincide com o tempo mítico do começo.
Pela repetição-ritual do ato criador, o hoje concreto é suspenso e
lançado no tempo mítico, era que a fundação do mundo teve lugar. O
tempo do ritual é um começo sagrado: o presente se une ao passado
em um presente intenso, em um instante eterno. O agora do ritual é o
mesmo agora da origem. Todas as atividades profanas — caça, pesca,
agricultura, jogos, conflitos, sexualidade — possuem seus arquétipos.
Todos os atos importantes da vida foram revelados, na origem, por
deuses e heróis e os homens procuram repetir esses gestos paradigmá-
ticos e exemplares. Essa repetição e essa participação em um arquéti-
po são o que confere à realidade profana realidade e sentido. O que
não tem exemplo é sem sentido e sem realidade. O homem arcaico se;
reconhece como real, poder-se-ia dizer, na medida em que ele não é|
ele mesmo, mas quando repete e imita os gestos de outro. É quando \
deixa de ser profano que ele encontra o seu ser sagrado.
Essa é a sua estratégia para fugir à experiência temporal: ele
abole o tempo profano pela imitação, em um ritual, dos gestos para-
digmáticos. O agora do ritual quer coincidir com o tempo original. O
sacrifício-ritual, hoje, quer se situar no ontem: hoje e origem consti-
tuem um eterno presente. A mentalidade arcaica, para usar a expressão
do próprio Eliade, quer permanecer no eterno presente da criação e
suspende o tempo profano e a duração. Quando um ato adquire
realidade pela imitação do paradigma, há uma abolição implícita do

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tempo, da duração, da história. É um transporte para uma época mítica.
Nesse tempo mítico, o homem arcaico encontra o ser, estabilidade e
eternidade. Sua vida é dividida: entre intervalos regulares da vida profa-
na, sucessiva, ele realiza rituais, procurando a coincidência com o tempo
divino, imortal, real, com sentido. Entre esses rituais periódicos, ele passa
a vida mergulhado no não-sentido, na irrealidade do devir histórico.
Pelo ritual, ele regenera o tempo profano e reinaugura a tempo-
ralidade. Ávida é regenerada periodicamente: vive-se a corrupção do
tempo, faz-se o ritual em certas datas e resgata-se o tempo. Isto é, a
experiência temporal até ali é abolida e há um recomeço a partir de um
zero temporal. "Cada ritual abole a história anterior e reinaugura o
tempo. Cada festa de ano novo abole o ano anterior e reinaugura uma
nova era — é um novo nascimento, uma purificação dos pecados, isto
é, da vida profana do ano passado. Os rituais periódicos são purifica-
ções, uma restauração do tempo mítico e primordial, do tempo puro,
do instante da criação, que fez a passagem do caos à cosmogonia. A
cada ano se recria o mundo, renova-se a esperança. O caráter irreversível
e corrosivo do tempo profano é abolido pelo eterno retorno ao ser, era um
eterno presente, por meio de um ritual sacralizador. O homem primitivo
livra-se da história, preenchendo sua vida com rituais de regeneração do
tempo, que elimina os males, abre o novo, anula o tempo escoado, abole
a história, por um retorno contínuo à origem.

Assim, os sistemas arcaicos são profundamente^ti-históricos:


desvalorizam a experiência temporal, recusam a sua irreversibilidade
e procuram viver em um eterno e sagrado presente. O tempo não existe
e lá onde ele aparece, na vida profana, ele pode ser abolido. *A história,
como conhecimento das mudanças das sociedades humanas torna-se
uma impossibilidade. A memória primitiva é anti-histórica: ela não se
lembra dos eventos particulares e de personagens autênticos. Ela põe
categorias no lugar dos eventos, arquétipos em lugar de personagens
históricos. O personagem é assimilado ao seu modelo mítico e o
evento integrado na categoria das ações míticas. Ao final de dois oii
três séculos, a lembrança dos eventos e personagens se modifica e se
torna exemplar. As ações são impessoais, são modelos; os heróis são
tipos. A lembrança é poética — é o artista que cria o exemplo e o
modelo das ações e personagens. A mentalidade primitiva se defende
como pode contra o novo e a irreversibilidade temporal — ela quer o Ser.

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» Durante milênios, a humanidade se opôs, dessa forma mítica, à
experiência vivida do tempo, à sucessão dos eventos. Estava, é claro,
mergulhada na temporalidade, na sua historicidade, mas, como afirma
Lévi-Strauss, isso a repugnava e ela preferia ignorá-la. Procurava
libertar-se do evento tentando manter-se sempre na origem, no antes
do tempo, criando a eternidade no instante do ritual. O ritual repete a
criação do mundo. A repetição do ritual não é algo negativo, uma
ausência de vida ou reposição mecânica do mesmo: é uma recriação,
é como se o mundo se fizesse naquele instante e não existisse antes.
Afirma Eliade, concluindo:

(...) é mais provável que o desejo que prova o homem das


sociedades tradicionais de recusar a história e de se manter
em uma imitação indefinida dos arquétipos traia a sua sede
de realidade e seu terror de se perder ao se deixar invadir pela
insignificância da existência profana. 4

• Esse mundo profano é uma irrealidade, um não-ser, o nada. Os


primitivos não queriam perder o contato com o Ser. Por isso, recusa-
vam a sucessão irreversível dos eventos, imprevisíveis e de valor
autônomo. Eles se recusavam a aceitar e a valorizar a história como
tal, isto é, como irreversibiiidade, sucessão, mudança, evento.

A evasão grega: O círculo

Após os povos arcaicos, entre os gregos, essa sede de realidade


era menos mítica e religiosa e mais teórica. Apesar de terem sido os '..
criadores da ciência dos homens no tempo, osgregos possuíam tam-
bém um pensamento extremamente anti-histórico. Concebiam apenas '
o conhecimento do eterno, do permanente, do imutável, do supralunar.
Esse ser supralunar realiza um movimento circular. Aristóteles
define o movimento regular por três propriedades: eternidade, uni- -v:
dade e continuidade. A única espécie de movimento a possuir essas ^

4. Eliade 1969, p. 109.

146 - , • r • r'.1*"
características é o circular Ele é mais simples e mais perfeito do que
o movimento retilíneo. Aristóteles nega a possibilidade da continuida-
de para o movimento retilíneo mesmo irreversível: ele não pode ser
infinito. Ele vai de um termo a outro, pois é pura sucessividade. Ele
busca o seu ser no futuro. Quanto ao movimento circular, ele é
infinitamente contínuo: ele vai de um termo a esse mesmo termo. Não
se vai a parte alguma, não se ganha e nem se perde nada, nada nasce,
nada morre, nada lhe falta. É um movimento estéril, isto é, perfeito,
pois não acrescenta ser ao que já é. O movimento circular não revela
o tempo, mas a eternidade. Nele não hã mudança, transição, transcur-
so, novidade, evento, alteridade. O eterno movimento circular é pri-
meiro ontologicamente e primeiro na ordem do conhecimento. O ser
cognoscível só pode ser em movimento circular.5
O transitório, o sucessivo linear, o mundo sublunar, reino da
corruptibilidade temporal, seria incognoscível e, portanto, desprezí-
vel. A teoria estava voltada para a eternidade, para o ser-como-ser.
Entre eles, havia uma diferença sobre o conceito de teoria. Uns,
mantendo a origem religiosa do termo, acreditavam que a atividade
teórica consistia na compreensão imediata, na intuição contemplativa
de Deus. Outros, trazendo para o campo do pensamento racional esse
conceito religioso, consideravam a atividade teórica um saber lógico
e discursivo do mundo. Aristóteles considerava como disciplinas
teóricas a Matemática, a Astronomia, a Física e a Metafísica. Os
objetos eternos desses saberes: as estruturas imutáveis do mundo
sublunar (a Física), as leis e objetos matemáticos (a Matemática), o
movimento dos corpos celestes (a Astronomia) e, finalmente, o pri-
meiro motor (a Metafísica).6 Para Aristóteles, a teoria era discurso
racional sobre o eterno — episteme — e não intuição contemplativa
de Deus. Mas, seja como episteme ou contemplação de Deus, o
pensamento teórico grego só se interessava pelo supralunar: pelos
seres celestes em movimeto circular. Aristóteles desprezava á ciência
dos homens no tempo, a nova criação grega:

5. Moraes 1992.
6. Bernhardt 1972, vol. 1, pp. 137-189.

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(...) não diferem o historiador e o poeta por escreverem
verso ou prosa... Diferem, sim, em que u m diz as coisas
que sucederam e o outro as que poderiam suceder. Por isto,
a poesia é algo mais f i l o s ó f i c o e mais sério do que a
história, pois aquela se refere principalmente ao universal
e esta ao particular. 7

Os historiadores, portanto, narrara fatos acontecidos, particula-


res, não se referindo ao universal, ao supralunar e, então, são menos
filosóficos e não produzem um conhecimento sério, para Aristóteles.
Entretanto, como pode esse pensamento anti-sublunar criar a História,
um saber das ações humanas como resultado de uma investigação, de
uma pesquisa e aspirando à sua verdade? A verdade não seria privilé-
gio do supralunar e do seu conhecimento pela teoria? Como encontrá-
la no sublunar e na narrativa de fatos particulares? Imaginamos encontrar
aqui a originalidade grega. Eles puderam conceber a experiência da
temporalidade como algo positivo, pois alguns aspectos dessa expe-
riência temporal teriam direito à eternidade, poderiam ser circulares.
Eles vão criar um tipo de conhecimento das estruturas imutáveis
(circulares) do mundo sublunar humano. Eles elevaram uma região do
sublunar ao supralunar. Heródoto pretendeu eternizar, porque consi-
derava que pertenciam a modelos eternos, as grandes ações dos
grandes personagens gregos, para não serem esquecidos e se tornarem
exemplos. O sublunar ganhou algum staíus de perenidade e, só nessa
medida, tornou-se resgatável pelo conhecimento. Há, para os gregos,
algo de positivo, isto é, de ser na experiência do tempo: as alegrias, as
glórias, a vitória, o sucesso, o grande gênio, o poder, que dão sentido
e realidade à historicidade. Esses eventos tornam-se tipos, categorias,
que devem ser lembrados e repetidos por toda a eternidade.
Há, portanto, por um lado, a aceitação de uma parte da expe-
riência temporal, os momentos de potência e glória, e, por outro, a
recusa de seu caráter temporal e transitório. Sua recusa da historicida-
de é, ao mesmo tempo, teórica e mítica. Teórica, porque racional: o
novo saber exige investigação, pesquisa e veracidade; mítica, pois
somente os grandes eventos e personagens são considerados memorá-
veis e devem ser lembrados e repetidos, imitados, pois próximos do

7. Aristóteles 1882, cap. IX, p. 21.

148
•s
paradigma, do arquétipo eterno. A diferença está no conceito de
repetição, para arcaicos e gregos: para os arcaicos mitológicos, a
repetição se dá em um instante eterno; para os gregos, a repetição é
mais mecânica e se realiza pela imitação do movimento circular do
céu. Mas o resultado é o mesmo: o atual reencontra o etemo. Olhados
sob a ótica do universal, esses grandes eventos temporais tornam-se
exemplos de suas reflexões teóricas sobre o ser do homem: o amor, a
morte, o bem e o mal, a felicidade, o belo, a virtude. A história, a
experiência temporal, local das ações humanas, é objeto de uma
reflexão universalizante ética, estética e política.
Os gregos, portanto, menos religiosos e mais teóricos, ao mes-
mo tempo, rejeitaram teoricamente o mundo vivido, o sublunar, como
região do não-ser, pois não abordável pela teoria, e criaram uma nova
forma de luta contra a corruptibil idade temporal: a História, o conhe-
cimento de uma região do sublunar que foi elevada à condição de
supralunar. Por um lado, realizaram a evasão da experiência vivida
pela teoria: o particular, o evento, o localizado e datado são incognos-
cíveis, logo, não têm ser e são desprezíveis; por outro, enfrentaram
teoricamente esse mundo transitório, identificaram nele uma região do
ser e inauguraram um saber do tempo que é também uma forma de
vencê-lo como produtor de esquecimento, dispersão, descontinuidade
e irreversibilidade. Por um movimento aparentemente contraditório,
os gregos pensavam o supralunar e criaram a ciência do sublunar.
Mas, não há contradição, pois o saber do sublunar, a História, é uma
fuga do sublunar: este é submetido à lógica do supralunar. Os gregos
fogem da historicidade por duas vias: recusam-na é desprezam-na por
* não ser passível de conhecimento teórico; reconhecem-na e domínam-
na pela criação da História. Em todos os dois casos há evasão do
tempo, que, como diferença, irreversibilidade, transitoriedade e des-
continuidade, não é jamais admitida.

A evasão religosa:A linha escaíológica

«
Os hebreus, para M. Eliade, foram os primeiros a valorizar a
história. Eles ultrapassaram as visões tradicionais do instante e do

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círculo e deram ao tempo um sentido único, a imagem de uma linha.
Os eventos têm sentido como sucessão irreversível, isto é, como
eventos mesmo, passagem sucessiva do outro ao outro: essa é uma
idéia realmente nova, formulada pelos judeus. O que lhes permitiu«
essa confiança e coragem para aceitar a historicidade? Na verdade,
uma outra estratégia de fuga: os eventos descontínuos expressariam a
vontade de Deus e, como presença de Deus, teriam uma continuidade,
teriam sentido e seriam reais. Deus intervém, para eles, constantemen-
te na história, revelando a sua vontade por meio dos eventos. Estes são
situações do homem diante de Deus e adquirem um valor religioso. À
história é concebida como uma "epifania) de Deus. O monoteísmo, ^
fundado sobre a revelação direta e pessoal da divindade, salvou o
tempo, valorizou os eventos, a história. A revelação se deu no tempo
e não fora dele. Moisés recebeu a lei em certo lugar e data: um evento
histórico, irreversível, singular. O messianismo valoriza ainda mais o
tempo: "o futuro regenera o tempo, dá-lhe pureza e integridade. Os
sofrimentos devem ser tolerados, pois são a vontade de Deus. A
história não aparece mais como repetição infinita, mas, diretamente
controlada por Deus, é uma seqüência de teofanias positivas e negati-
vas, cada uma com seu valor de evento: singular e irreversível. A
história torna-se o lugar do diálogo entre Deus e os homens.
Os cristãos, que herdarão a tradição judaica, também só pode-
rão tolerar seu projeto de vida autêntica, mergulhada na finitude,
porque possuem sua estratégia de fuga: a sua fé, que dá realidade e
sentido ao finito. O cristianismo, segundo J. Le Goff, renovou o
problema do tempo e da história.8 É uma religião que possui datas,
eras, livros sagrados, presente, passado e futuro, uma escatologia. A
aparição de Cristo dá um centro, um passado, um futuro e uma direção
para a história. O cristianismo impõe uma concepção linear do tempo
contra a concepção circular da cultura anterior. Toda a história do
mundo, do início ao fim, desdobra-se em um só tempo. A história
começa em Adão; o fim é antecipadamente descrito nos Livros Sagra-
dos. A história-conhecimento se confunde com a profecia. O cristão
não recusa o tempo pela negação da sua existência, mas pelo seu
reconhecimento como lugar da intervenção de Deus. Aiireversibilidade

8. Le Goff 1960.

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convive cora a presença permanente de Deus. Além disso, essa irre-
versibilidade não será eterna: ela será revogada. O cristão valoriza a
experiência temporal, pois a toma como uma punição merecida e tem
fé na misericórdia de Deus, no seu perdão, que o libertará da miséria
temporal e o recolocará na eternidade. Ao mesmo tempo, valoriza a
história como diálogo com Deus e local da intervenção constante da
Providência e a desvaloriza, pois deseja profundamente o seu fim.
Diante do evento, o cristão é tomado por sentimentos contraditórios:
aceita-o e se inclina, pois expressão da vontade de Deus; teme-o e
sofre-o, pois punição divina, que deseja ardentemente ver terminada.
Entretanto, hebreus e cristãos são ainda anti-históricos, apesar
de valorizarem de uma certa forma a experiência temporal. Diferente-
mente dos primitivos, que regeneravam periodicamente o tempo, eles
acreditavam que essa regeneração dar-se-ia de uma só vez, radical-
mente, em um futuro iminente. Regenerar o tempo, na verdade, é
aboli-lo: há alguma contradição nessa expressão, Na verdade, o que se
quer não é regenerar, mas impedi-lo de gerar. A história será abolida
totalmente no futuro. A irreversibilidade dos eventos é tolerada, pri-
meiro, porque os eventos são a voz de Deus; segundo, porque terá uma
duração limitada: a história e seus horrores vão acabar. A resistência à
história é mais radical: ela só é tolerada porque se acredita que ela
cessará um dia. A regeneração periódica mítica é substituída por uma
fé na regeneração única e definitiva que se dará. A história não é
eterna, o tempo e seu império serão abolidos e a eternidade vencerá.
O sistema de defesa da história, dos cristãos e hebreus, é mais sofisti-
cado e mais completo do que o sistema mítico: ele admite conviver
com a história e até a valoriza, mas evade de duas formas: pela
renovação da fé por meio de rituais, no que se aproxima do primitivo,
e pela fé de que a eternidade abolirá o tempo de uma só vez, O cristão
abole o tempo periódica e definitivamente. Mesmo assim, a mentali-
dade primitiva ainda sobrevive no povo cristão. O mito parece ser
mais eficiente, pois ele recusa qualquer possibilidade de convivência
com o tempo e de valorização dos eventos.
Portanto, tanto a experiência temporal dos povos arcaicos
quanto a dos hebreus e cristãos é dupla: há um tempo profano,
mutável, mortal, evento (irreal e sem sentido) e um tempo sagrado,
divino, imortal (eternidade, atemporalidade do Ser). Primitivos,

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hebreus e cristãos recusam a historicidade e, cada um à sua maneira,
criam a sua estratégia de evasão da temporalidade, isto é, de imposição
à irreversibilidade de uma reversibilidade. Quanto à estratégia grega,
a recusa do tempo não se baseia na sua divisão entre sagrado e
profano, mas entre o ser supralunar circular (cognoscível) e o não-ser
sublunar linear (incognoscível). A recusa, aqui, se dá pelo desprezo ao
mundo sublunar e pelo resgate de parte dele para o supralunar. A
ambigüidade de hebreus, cristãos e gregos é que são povos históricos
e, ao mesmo tempo, anti-históricos.

A evasão renascentista: O ciclo e a linha

Do século XII ao XV, na Europa, uma consciência nova do


tempo começa a aparecer. Uma consciência secularizada, aparente-
mente mais fascinada do que atemorizada pela experiência temporal.
O lado profano do tempo cristão como que desafiará o seu lado
sagrado. Deus e a sua cidade não serão abandonados, mas não terão
um domínio tão absoluto. Parece acontecer uma novidade: o mundo
sublunar, com suas riquezas, prazeres, glórias, seu presente efêmero,
exerce, agora, fascínio e não temor. Parece que, nesse momento, os
homens se libertaram do seu horror milenar à historicidade.
Jacques Le Goff mostrará o surgimento dessa nova consciência
do tempo no conflito entre mercadores e a Igreja.9 A Igreja acusa os
mercadores de venderem o tempo, que pertence a Deus e a todas as
criaturas. O usurário se apropria desse ser que pertence a todos. O
tempo do mercador é o do empréstimo a juros — durante a quantidade
de tempo que um outro usa seu dinheiro, ele deverá acrescentar mais
dinheiro quando do pagamento. Sua atividade se baseia sobre ativida-
des que são uma trama temporal: estocagem, momentos favoráveis de
compra e venda, flutuações do mercado, safra e entressafra. A esse
tempo profano, que vale dinheiro, opõe-se o tempo da Igreja, que,
pertencendo a Deus, não pode ser vendido e gerar lucro. Para Le Goff,

9. fdem, p. 419.

152
o conflito do tempo da Igreja com o tempo.do mercador se afirma no
coração da Idade Média, como "um dos eventos maiores da história
mental desses séculos, em que se elabora a ideologia do mundo
moderno, sob a pressão do deslizamento das estruturas e práticas
econômicas/' 10 O mercador, prossegue Le Goff, está submetido e
dividido por três tempos: o da natureza — meteorológico, estações,
ritmo das intempéries imprevisíveis; o sagrado — o desejo de salva-
ção, de saída do tempo; o do mercado, que começa a se organizar, que
exige uma quantificação rigorosa do tempo. A duração de uma viagem
por mar ou por terra e a duração do trabalho definem preços e rendas.
O tempo do mercado é uma novidade: quantitativo, preciso, medido,
mecânico, previsível.
Entre esses três tempos natural, sagrado e do mercado, há uma
separação essencial e cruzamentos. O mercador possui objetivos dife-
rentes: o lucro e a salvação. Ele reza a Deus pelo seu sucesso nos
negócios e o reformista protestante confundirá mesmo seu sucesso
profissional com a graça de Deus. O cristão reformado confina-se aos
seus negócios e foge de toda ociosidade, porque os que são pródigos
com o tempo desdenham a própria alma. Ele preferirá a ação à
contemplação, que é uma espécie de indulgência consigo mesmo.
Aparece o "espírito do capitalismo", segundo Weber, com essa ética
protestante que concebe o tempo da vida cristã como sistemático e
organizado, austero e produtivo, submetido a uma vontade férrea, a
uma inteligência fria. Aparece uma pluralidade temporal e não só um
tempo único impor-se-á às atividades.
Weber definirá esse espírito do capitalismo como á superação
do mundo mágico, que estava fundamentado em visões de mundo
cosmológicas, que tinha como princípio explicador de todas as ordens
da vida a religião.11 Aqui, as esferas de valor estavam indiferenciadas.
Os mundos profano e religioso estavam fundidos, sob o domínio do
religioso. Aquele mundo unificado dará lugar, agora, a um mundo
descentrado em diversas esferas, com suas visões de mundo específi-
cas, autonomizadas. Nãò há mais um monolítico sistema de valores —
o mundo religioso não explica e não salva mais todas as esferas do

10. Idem, p. 426.


11. Weber 1986.

153
mundo profano. A fé cedeu lugar à razão, isto é, à atuação com vistas
a um fim. Aquele mundo unificado se fragmentou em esferas de
valores diferenciadas, cada uma com sua racionalidade interna espe-
cífica. Essas esferas diferenciadas mantêm entre elas uma relação de
tensão. Convivem, mas sob tensão. Essa convivência tensa entre
esferas de valores diferenciadas e autônomas — econômica, social,
religiosa, estética, intelectual, erótica — constitui o espírito e a reali-
dade capitalista, para Weber. Para ele, esse é o nascimento do mundo
moderno e de sua compreensão nova do tempo. Um tempo plural,
divergente, o das esferas diferenciadas, vem opor-se ao tempo linear
religioso, convergente, tempo do Absoluto, sem deixar de manter
relações com este. É um mundo desencantado, secularizado, racional,
imanente, autolegitimador, sujeito de si próprio. Parece encantado
com a experiência temporal.
Teria o homem europeu, nesse momento, assumido definitiva-
mente a história e perdido o medo da historicidade? Todas as descri-
ções desse homem moderno nascente levam a ver em sua ação essa
libertação do medo da temporalidade. Ele se interdita de pensar a
morte. A finitude parece não ser mais um problema fundamental.
Fala-se de um renascimento do homem: "liberado e tirano, o homem
da Renascença, o que possui potência econômica, política ou intelec-
tual, pode, segundo sua Fortuna, ir e vir onde quiser. Ele é mestre de
seu tempo e do resto."12
Ainda cristão, ele se contorce para compatibilizar seus negócios
com o tempo da salvação. G. Gusdorf terá ainda mais entusiasmo para
descrever essa libertação do homem moderno.13 Para ele, o homem
ocupa um novo espaço na totalidade do ser: tornou-se um centro de
referência de toda verdade, embora o sentido ainda permaneça a
soberania de Deus, acantonado na esfera religiosa. Gusdorf sugere a
idéia de uma primeira revolução copemicana: é em tomo da realidade
humana que se ordenam as perspectivas do pensamento. Uma nova
possibilidade de inteligibilidade abrir-se-ia. Na Idade Média, a suces-
são dos eventos era ordenada com base nos fins últimos, em uma
escatologia. O interesse do presente não lhe pertencia, pois seu sentido

12. L e G o f f l 9 6 0 , p. 431.
13. Gusdorf 1967, p. 337.

154
está fixado com base no fim. A consciência moderna do tempo,—
segundo Gusdorf, teria resgatado o presente em si. Pela intervenção
de aparelhos de medida e precisão exatas, o presente é situado em uma
cronologia e em uma cronometria. Essa quantificação do tempo me-
canizou o vivido, criou um mundo artificial, que deu a sensação de
segurança e rigor, suspendendo a angústia do vivido. A morte só é
possível no outro. A imprecisão e a superstição não foram abolidas,
mas circunscritas. O conhecimento se dividiu e se descentralizou. A
Igreja se dividiu, o espaço geográfico se ampliou, os horizontes
temporais da humanidade se abriram, o que levou à insegurança e à
necessidade de racionalização, quantificação, mecanização. Gusdorf
mostra ó lado ambíguo da Renascença: ela assegura a transferência de
tradições e é consciência de uma ruptura; ela é um retorno ao passado
da Antigüidade greco-latina e um esquecimento de um passado mile-
nar e mais recente; ela continua um passado distante e descontínua o
passado recente. Esse retomo ao passado longínquo é motivado por
um grande interesse pelo futuro. A experiência da temporalidade é
percebida como um enriquecimento. O presente se liberta do tempo
litúrgico, libertando também o futuro. O presente encontra seu sentido
no retorno à Idade Clássica greco-latina. Adescoberta da Antigüidade,
pela Renascença, foi, ainda seguindo o raciocínio de G. Gusdorf, a
primeira das descobertas modernas: foi a descoberta do outro. O
humanismo renascentista considerava a humanidade greco-latina su-
perior, mais próxima da humanidade verdadeira. O tempo renascente,
Gusdorf se entusiasma ao descrevê-lo: "aparece como um tempo
aberto, um tempo de libertação. Não mais o tempo de Deus, saído de
Deus e destinado a voltar a Ele, mas tempo dos homens, tempo da
humanidade, imanente, indefinido e progressivo. A verdade cristã se
situava fora do tempo; a nova verdade se reliza no tempo."14

Essa euforia renascentista, como a descreve Gusdorf, teria de


fato ocorrido? O homem renascentista vivia mesmo 6 seu presente em
si? Teria ele assumido a historicidade como tal? Teria perdido o medo
da finitude, da sucessão irreversível? Ousaríamos dizer que não. Se é
verdade que há um gosto maior pelo viver-aqui-e-agora, o sentido
desse gosto não é dado pela experiência atual da temporalidade. Na

14. ldem, ibidem.

155
verdade, o europeu renascentista resgatou a estratégia arcaica do
retorno a uma origem mítica. O presente não encontra seu sentido nele
próprio, mas no retomo à Idade Clássica greco-latina, que é imaginada
como uma fase iluminada, criadora, o oposto da fase imediatamente
anterior, considerada escura, sem sentido, caótica. Os renascentistas
abolem esse tempo escuro pela participação em uma história cíclica,
em que o atual identifica-se, inspira-se e quer repetir um passado
criador. Os re-nascentistas vêem na Antigüidade apenas uma alterida-
de relativa, e não o pleno outro, como quer Gusdorf. Só o gesto que
imita, repete ou lembra a Antigüidade clássica tem sentido e realidade.
O re-nascentista é, na verdade, duplamente mítico: ele não só retorna
ao ciclo passado dourado, em busca de seu próprio ser, mas profetiza
um ciclo futuro dourado, cria utopias. Ele está suspenso entre o mito
do passado e o mito do futuro; o presente teria o papel de unir a idade
de ouro antiga à idade de ouro futura, abolindo a ciclo descendente
do passado medieval. A Idade Clássica foi um ciclo de alta, quando a
humanidade se expressou plenamente; veio o ciclo em baixa da Idade
Média e, finalmente, o ciclo que ascende com a Renascença, abrindo
um futuro dourado. Contraditório, o homem renascentista ora se refu-
gia no passado, ora no futuro. Mas, o presente em si não tem sentido.
K. Pomian vê nessa fase renascentista uma percepção mítica do
tempo na forma do ciclo: é uma linearidade que oscila, uma irre-
versibilidade que descende e ascende.35 Para ele, a Renascença possui
uma percepção cíclica do tempo, expressa pelos humanistas e refor-
madores religiosos. Além desta, os renascentistas têm uma outra
estratégia de evasão, linear e cumulativa, expressa pelos cientistas,
eruditos e técnicos. Na percepção cíclica, a Antigüidade representaria
um apogeu da humanidade, que foi seguido de uma profunda queda e,
agora, na Renascença, assistir-se-ia a uma renovação, a um renasci-
mento, a um retorno, que poderia se igualar, mas jamais superar o
nível dos gregos e romanos. Na percepção linear e cumulativa, somen-
te o conhecimento estaria submetido à sua lógica: novas e melhores
invenções e teorias suceder-se-iam e acumular-se-iam, indefinida-
mente, em direção a um conhecimento absoluto no futuro. Onde, aqui,
o enfrentamento da experiência vivida? O presente é glorificado não

15. Pomian 1984.

156
em si, mas como repetição mítica dos arquétipos passados ou como
produtor de um futuro mítico. A diferença para com os hebreus e
cristãos é que a evasão não é mais em direção à transcendência, mas,
para um outro tempo-lugar, humano mesmo, passado ou futuro, que
não seja aqui e. agora: uma utopia.

A evasão da filosofia da história: A linha utópica

A partir dos séculos XVII e XVIII, a tendência ao futuro mítico


vai vencer a tendência para o reencontro do passado. Na Renascença,
haviam convivido as duas temporalidades vistas anteriormente, espe-
cíficas dela, e a judaico-cristã, que ainda não tinha perdido o seu lugar.
A partir do século XVIII, entretanto, a tendência ao futuro, criação do
judaico-cristianismo, vai se impor, mas sob uma perspectiva racional.
A salvação estaria no futuro, a estratégia judaico-cristã prevalece, mas
toma o aspecto do progresso linear e cumulativo do conhecimento,
que a Renascença tinha criado. A profecia cristã tornou-se utopia. A
idéia de progresso, antes restrita somente ao conhecimento, generali-
za-se. Todos os aspectos da atividade humana caminham para uma
perfeição futura. A presença de Deus continua, mas não obscurece a
iniciativa dos homens. Acredita-se que o homem, ele próprio, vai se
resgatar, se salvar, e nesse mundo mesmo, pela construção de uma
sociedade moral e racional e pelo acúmulo progressivo de conheci-
mentos sobre o mundo. A idéia de progresso exprime essa nova
situação em que o homem se sente produtor, criador do futuro. A
nostalgia do passado cede lugar à esperança no futuro. No longínquo
futuro, o apocalipse cede lugar à utopia. A diferença entre apocalipse
e utopia é abissal: "se o fim do mundo devia ser o fim das significações
humanas, a utopia se apresenta como a consagração global de todas as
esperas e de todas as significações humanas."16
O século XVIII foge do século XVIII em direção ao século
XXI. A utopia é fruto da fantasia imaginativa, da análise do presente,

16. Gnsdorf 1967, p. 372.

157
da crítica da ordem estabelecida, da defesa de valores racionais e da
esperança de que a história e seus horrores serão superados. No século
XVIII, os europeus tendem vertiginosamente ao futuro. Antes, o
futuro era o fim do mundo. A Igreja Católica tinha defendido violen-
tamente a sua posição de depositária do futuro, da sua visão. Conhecer
o futuro era seu privilégio e os futuros não-bíblicos eram severamente
perseguidos.17
No século XVni, a espera é outra: Robespierre proclama que o
tempo do progresso da Razão é aberto e que está nas mãos dos homens
a aceleração do tempo. O fim do mundo foi adiado: a Astrologia
calculava um final cada vez mais distante e a Astronomia calculava
matematicamente as suas possibilidades. O fim do mundo tornou-se
um assunto cosmológico e não mais escatológico. A situação se
inverteu: as visões apocalípticas é que eram, agora, combatidas pelo
Estado Absoluto e por uma literatura crítica. Montaigne e Bacon
revelavam as origens psicológicas das profecias. Voltaire fazia-lhes a
caricatura. Segundo Koselleck, os séculos XVII e XVIII criaram,
então, duas formas de tratar o futuro: o prognóstico racional e a
filosofia da história. O prognóstico racional do futuro, predominante
no século XVII, era realizado pelo Estado. O seu princípio: para os
eventos futuros, a verdade é provável, pois indeterminada. Não há um
futuro inevitável como o das profecias, mas possível. A previsão
política tornou-se prática principal dos governantes. Richelieu consi-
derava mais importante pensar no futuro do que no presente. A
prognose tornou-se indispensável à ação política eficiente. A previsão
é incerta, falível; a prognose espera um resultado possível. Aprognose
persegue um tempo que serpenteia. Ela corre atrás do tempo, queren-
do controlá-lo pelo cálculo político. Este levava em consideração o
princípio leibniziano de que o futuro está prefigurado no presente e,
no presente, calculava suas possibilidades de desdobramento.18
Entretanto, prossegue Koselleck, ao lado dessa elaboração ra-
cional do futuro, produzida pelo Estado Absolutista, e à sombra dele,
desenvolveu-se o pensamento do tempo específico da modernidade:
as filosofias da história. Por elas, a modernidade rompe com o passado

17. Koselleck 1981, p. 170.


18. Idem, p. 180.

158
e se abre ao futuro, combinando previsão racional e sentimento;
intuição profética. A profecia anulava o tempo fixando-lhe um fim
inevitável. Na filosofia do progresso, há mistura de elaboração racio-
nal do futuro e espera da salvação. Na verdade, há fé na Razão, o que
caracteriza um pensamento ainda religioso. A ação dos homens deve-
ria produzir a aproximação acelerada do futuro do presente. O presen-
te é uma eterna novidade, pois tomado pelo futuro. E, ao mesmo
tempo, o presente tomado pelo futuro, não é novidade alguma, pois já
se conhece antecipadamente qual será o fim desse processo. O espaço
da experiência — o presente que contém o passado — é abreviado e
interrompido, para que o espaço da espera seja já o espaço da expe-
riência. O futuro não seria para as futuras gerações, mas para a atual
mesma. O presente perde a possibilidade de ser vivido como presente
e escapa para dentro do futuro. O tempo se divide em períodos de
revolução e reação.19
Esse futuro, como o da profecia, é também conhecido antecipa-
damente, mas, agora, pela Razão. Generalizada, a tese do progresso
do conhecimento garantia a perfectibilidade, a moralização e a racio-
nalização progressivas de todas as esferas da atividade humana. O
presente escapou do fascínio exercido sobre a Renascença pelo passa-
do mítico da Antigüidade Clássica. Nos séculos XVIII e XIX, a
modernidade se concebia como liberada de toda referência ao passa-
do, opondo-se à história em seu conjunto. Concebia-se como uma
constante renovação. A história seria, então, um processo coerente,
unificado e acelerado da humanidade, um sujeito singular coletivo em
direção ao futuro. Esse processo de implantação do futuro no presente
é designado por termos novos: revolução, progresso, emancipação,
evolução, crise, espírito do tempo... São termos que a modernidade
criou para se pensar, sem fazer empréstimos a outras épocas. São
termos vindos da Física, da astronomia, da biologia, saberes que
tinham substituído a religião.
Hegel, segundo Habermas, foi o criador dos termos novos e da
reflexão dos tempos novos-20 Ainda para Habermas, a modernidade
buscou em si mesma sua normatividade, remetendo-se a si mesma,

19. Koselieck 1990, p. 307 ss.


20. Habermas 1985, pp. 26-60.

159
não querendo ser devedora nem da Antigüidade e nem do cristianis-
mo. Queria ser autônoma, autoconsciente de si, fundada sobre seus
próprios meios. Ela se percebe como não-fixidez, uma atualização
constante — é plena historicização. Segundo Ricoeur, essa fase é
marcada por três temas:

1. a época recente abre sobre o futuro a possibilidade de uma


novidade sem precedentes;
2. a crença de que a mudança para o melhor se acelera;
21
3. a crença de que os homens fazem a história. O presente
realizaria a transição das trevas às luzes, do passado obscuro
ao futuro iluminado, por meio da aceleração do tempo, isto
é, da revolução, que elimina atrasos, sobrevivências, igno-
râncias. Esse futuro iluminado é conquistado pelo homem,
que o antecipa, planeja o seu acesso e o executa.

Entretanto, o objetivo dessa radicalização da mudança histórica


é a eternidade, o absoluto. O que se quer é uma transição acelerada ao
absoluto. A história se quer como criadora do eterno. A modernidade
é o reino da mudança, da transformação acelerada. Hã um culto da
história. Aqui, também, tem-se a impressão de que o tempo, sua
relatividade, fmitude, corrupção e transitòriedade foram finalmente
assumidos. Entretanto, pela filosofia da história, os homens, na verda-
de, sob a alegação de que cultuam a história, livram-se dela, produzin-
do-a aceleradamente. Querem como que cessá-la, pela sua
superprodução e pelo seu superconsumo. Parecem querer produzi-la
e devorá-la, para que ela não mais exista. Ansiosos, querem realizar
uma travessia acelerada, consumir de uma só vez o relativo e instaurar
o absoluto. O culto da história serve à sua destruição como história —
dispersão e horrores, finitude — para se inaugurar o reino da Moral,
da Razão, da Perfeição, da Liberdade, da Eternidade. E pela ação
mesma dos homens, pela sua crítica racional prática do presente.

21. Ricoeur 1983-1985, vol. 3, pp. 304-306.

160
As filosofias da história são grandes narrativas, pois referem-se
à humanidade como um sujeito racional e pretendem produzir um
desenho total do desenvolvimento histórico, que envolveria a totalida-
de das seqüências individuais de eventos no espaço e no tempo e, ao
mesmo tempo, interpretar a direção e sentido do processo histórico.
Grandes narrativas, pois totais (abarcando passado, presente e futuro
e todos os eventos) de um objeto universal (a humanidade, sujeito-co-
letivo universal). Para Ricoeur, são narrativas e, ao mesmo tempo, a
própria história. A ação executa a narrativa, que é saber, consciência
da verdade da história. Não haveria distância entre interpretação e
ação. A narrativa é como um mapa vivo da história, que legitima a
ação e é confirmado por esta. Marx, mais tarde, explicitará lucidamen-
te esse espírito moderno: a crítica do mundo, a interpretação do mundo
não se restringe a uma narrativa cortada do mundo, mas intervenção
modificadora da realidade, legitimada e Iegitimadora de um filosofia
da história. Entretanto, essas grandes narrativas se convergem em
alguns aspectos, divergem em outros, alterando a própria natureza da
ação. Há duas orientações principais: uma mais filosófica e outra mais
política.22 Os dois discursos são convergentes: são discursos emanei -
padores, que vêem no fim da história a liberdade conquistada. Diver-
gem quanto aos sujeitos dessa emancipação. Para o discurso político,
produzido principalmente pelos iluministas franceses, os produtores
dessa liberdade futura são o povo e seus heróis, que defendem o direito
racional de todos à ciência, à justiça, à igualdade, à liberdade. A abater:
a Igreja e o Estado Absolutista, que promovem a ignorância, a injusti-
ça, a desigualdade e a limitação da liberdade dos homens. Para o
discurso filosófico, produzido pelo Idealismo alemão, especialmente
Hegel, o sujeito da liberdade não é o povo, mas o espírito. Ele não se
encarnaria em um jEstado, mas em um Sistema, em que o Estado ocupa
uma posição central, mas é apenas uma figura. Povos e Estado são
expressões do Espírito em busca da liberdade absoluta.

Koselleck, em sua obra Le régne de la critique (1979), é um


crítico radical da filosofia da história iluminista. Para ele, a crítica
iluminista é hipócrita. Ela enfatiza a razão moral contra a razão
política, mas toda crítica moral esconde intenções políticas. A filosofia

22. Lyotard 1979, pp. 62-65.

161
da história moralizadora dissimula sua dimensão política e, no entan-
to, é a dimensão política que sustenta o discurso moral. Resultado
dessa dissimulação: o terror, a soberania indiscutível da utopia. O
lugar-e-tempo-nenhum é soberano sobre o aqui-agora. O Iluminismo
francês acredita que conhece a verdade da história, desde o seu
passado até o seu futuro final. Ele expõe o processo histórico universal
em sua transparência, revelando o seu sentido. A questão que restava
era a da realização desse sentido já desvendado: faire Vhistoire e faire
de Vhistoire não se diferenciam; a ação encontra sua legitimidade na
Razão e a Razão é legitimada pela ação. Liberdade, em um certo
sentido dessa palavra, é o que a grande narrativa iluminista vê no fim
da história. Uma liberdade a ser conquistada pela ação concreta dos
homens. Palavra e ação, interpretação e intervenção formam um,
recobrem-se.
Quanto à grande narrativa hegeliana, a razão se realiza no
tempo, ela é e não é suas determinações. Esse processo de efetuação
da Razão se deixa caracterizar por um desenvolvimento. Segundo
Ricoeur, esse desenvolvimento não está ligado à simples e otimista
idéia de progresso dos iluministas, embora inclua a tese do impulso
para a perfectibilidade.23 Esse desenvolvimento é uma mistura de
tragédia e lógica na temporalidade histórica. O desenvolvimento não
é simples avanço, sem pena e sem luta. O papel do negativo é
enfatizado. O desenvolvimento do Espírito não se dã como no evolu-
cionismo orgânico, mas pela negatividade, por um trabalho violento e
a contrapelo. A mudança não se dã na superfície dos eventos, mas no
conceito. A história do mundo é a explicitação do Espírito no tempo.
A negatividade do Espírito é dialética: ele se nega, exterioriza-se,
diferencia-se e continua afirmativo, interior, idêntico a si. A perma-
nência do Espírito integra sua negatividade. Há uma acumulação de
liberdade na história. Acumulação integradora, sintetizadora. Os po-
vos passam mas suas obras permanecem. Cada configuração transitó-
ria cria a eternidade, cada presente inclui todo o passado, criando uma
perenidade superior, ura presente profundo do Espírito. Um presente
qualitativo: profundo, permanente, diferente de um presente cronoló-
gico, superficial, transitório. A história do mundo é mudança e reten-

23. Ricoeur 1983-1985, vol. 3, pp. 280-299.

162
ção, retorno a si. O Espírito se explicita e se retém — vive um eterno
presente. Pode-se ter, sempre segundo Ricoeur, duas leituras do desen-
volvimento do. Espírito: uma, em que a. sucessão das etapas parece
infinita e o progresso assintótico; outra, qualitativa, em que o retorno
sobre si não se dissipa em um infinito progresso. O que o Espírito é
ele sempre foi, ele retém todas as suas evoluções anteriores. O passado
é presente; Aqui, Ricoeur mostra com clareza o que diferencia a história
filosófica de uma história de historiador: "se nossa preocupação de
historiadores nos leva a um passado irreversível e a um presente transi-
tório, nossa preocupação de filósofos nos leva ao que não tem nem
passado nem futuro, ao que é, a uma existência eterna."24

Conclusão

As estratégias de fuga da história e dos eventos são diferentes,


mas o resultado visado é o mesmo: a suspensão do tempo em que o
atual encontra o eterno, a suspensão da irreversiblidade, portadora da
mudança, da novidade, da alteridade, do terror, pela reversibilidade,
portadora da permanência, do mesmo, da identidade, da paz. Uma
continuidade vem apaziguar o terror da dispersão e da descontinuida-
de, trazidos pela sucessão dos eventos. O conceito de evasão não tem
o sentido negativo de uma fuga, desesperada e cega, mas exprime o
meio encontrado para se fazer face à experiência da temporalidade
atribuindo-lhe um sentido. Essas estratégias de evasão se sucedem e
convivem: as mais recentes não invalidam as anteriores. Embora
predominem, convivem com estas.
A partir do século XIX, a História, conhecimento das mudanças
das sociedades humanas, pretenderá se distanciar do mito, da religi|o
e da filosofia, para tornar-se ciência. Ao se transformar em ciêncip, se
isso foi possível, a historicidade teria sido assumida ou ainda se fugirá
do tempo? Se foi assumida, como seria essa nova forma, inédita, de
relação com a temporalidade? E, se foi ainda uma evasão, qual terá

•34. Idem, vol. 3, p. 291.

163
sido a nova estr4tégi;a? Para antecipar uma hipótese: a história cientí-
fica não busca mais ò instante eterno, nem a reversibilidade circular,
nem a linha da salvação, nem o ciclo que imita e constrói o ciclo
dourado, nem a linha utópica, mas propõe a eternidade da estrutura:
uma linha sem vetor, nem escatológica e nem utópica, interrompida
no início e no fim, na qual há uma sucessão sem mudança, que cria a
confortável, aconchegante, sensação de simultaneidade, identidade,
eternidade. A estrutura, conceito fundamental das ciências sociais, é a
versão do século XX da reversibilidade, que protege contra o novo, a
mudança, a alteridade.

164
5
NOUVELLE MSTOIRE E EVASÃO DO TEMPO

No capítulo anterior, sustentamos algumas hipóteses polêmi-


cas: I ) que o tempo é inapreensível; 2a) que ele é essencialmente
a

evento; 3a) que, como evento, ele é vivido como terror; 4fi) que, por
ser terror, todas as sociedades evitaram conviver com esse tempo-
evento e criaram estratégias diferentes de evasão. Agora, apresentare-
mos uma hipótese ainda polêmica: a nouvelle histoire, a história
estrutural dos Annciles, criou também uma estratégia de evasão do
evento, ao construir uma nova compreensão do tempo histórico ade-
quada ao mundo europeu do século XX.
Quanto à primeira hipótese, ela pertence a Paul Ricoeur, que
procurou construí-la e contestá-la em sua obra Temps et récit.1 Ri-
coeur quis contestar essa hipótese, porque ela representa uma espécie
de fracasso para o pensamento filosófico sobre o tempo. Embora se
tenha muito refletido sobre esse objeto e se tenha até conseguido
algumas formulações consensuais, o tempo, enquanto ser, continua

1. Ricoeur 1983-1985.

165
inapreensível. Ele é apreensível, para Ricoeur, só indiretamente, por
uma poética, isto é, por práticas narrativas históricas e ficcionais, que
envolvem o círculo hermenêutico. Quanto à segunda hipótese, ela só
é a radicalização do conceito de descontinuidade e transitoriedade de
toda duração. Enquanto mudança, e mesmo realidades duradouras
mudam, o tempo se confunde com o evento. Longa, muito longa,
secular, milenar, na perspectiva de um tempo global, todas as durações
tornam-se, finalmente, eventos: singularidades transitórias. Para a
experiência corrente, há mudança, isto é, o que é deixa de ser e o que
não era começa a ser. Assim, enquanto passagem, transcurso, travessia
do passado ao futuro, afundamento ou emergência do futuro no
passado, todas as durações se revelam curtas, rápidas, acontecimen-
tos, na perspectiva de uma possível eternidade.
Quanto à terceira hipótese, esse ser que muda e que não se
apreende, só pode ser vivido como terror. Enquanto contínua mudan-
ça ele é portador do nada e, para os mais céticos, o nada é o próprio
ser inapreensível do tempo. Este não se apreende, porque seria o
próprio nada, o anti-ser. Mas um nada terxivelmente real. Ele é a
expressão da fínitude, o portador da destruição e da morte. Ele é
irreversível, intransigente, autoritário, indiferente, a lei absoluta do
relativo. Pior: ele não é o nada absoluto, isto é, um não-ser que não se
apreende de forma alguma. Ele é um nada relativo, isto é, um ser
relativo. Ele é ser e não-ser, presença e ausência. Ele é a consciência
do não-ser, presença do nada, continuidade da transitoriedade, lem-
brança do esquecimento, ser da finitude, processo de produção do
nada. Se ele tivesse só um lado, o da ausência, ele não seria experi-
mentado como terror, pois nenhum ser estaria presente para saber da
ausência. Mas, ser paradoxal, ser do não-ser, presença da ausência,
ele se tornou uma experiência intolerável para todas as sociedades.
Evidentemente, referimo-nos à concepção do tempo em uma de süas
tendências, a do tempo da alma ou da consciência. O tempo físico é
reversível e contínuo, homogêneo e objetivo, não é consciência de si
e parece eterno. O tempo da alma ou consciência, ao contrário, é
irreversível e descontínuo, heterogêneo e subjetivo, instável e finito.
Sobretudo, é um tempo reflexivo, que tende ao centro de si, à apreen-
são concentrada de sua heterogeneidade. Só aqui se pode pensar o
tempo como evento e terror.

166
Quanto à quarta hipótese: sociedade alguma que soube de seu
ser temporal essencial pode permanecer nesse ser. Todas, e esta é uma
afirmação universalizante e absoluta, mas que parece verificável,
todas evadiram-se dessa prisão. Ou quiseram, ou tentaram ou iludi-
ram-se, sonharam evadir-se. Em todas, o insuportável devir deu lugar
à elaboração da salvação, isto é, da eternidade. Contra a mudança e o
evento, procurou-se a estabilidade e o repouso; contra o fluxo, o
ponto-instante; contra o transitório, o eterno. As estratégias foram as
mais diversas e se confundem, a sucessão delas, com a própria história
da humanidade. Talvez se possa periodizar a história da humanidade
levando-se em consideração esta questão: Como cada sociedade ou
época evàdiu-se do tempo? Como elas administraram a convivência
com o evento? Tem-se, então, sociedades míticas, religiosas, filosófi-
cas e científicas. As estratégias de cada uma consistiram em: o eterno-
presente do ritual, a fé, a racionalização do devir, o controle racional
e experimental do devir. Dentro dessas estratégias gerais, há diferen-
ciações internas: há formas particulares de ritual e de reencontro da
origem, há formas diversas de expressão da fé, há formas diferencia-
das de racionalização do devir, há maneiras diversas de se tentar
controlar racional e empiricamente o transitório. Se elas se sucedem,
elas também sobrevivem e se misturam umas às outras. As estratégias
míticas, fideístas, racionalistas não foram suprimidas pela estratégia
científica, mas convivem, mesmo nas sociedades em que esta se
tornou predominante. Em comum, elas têm o desejo da permanência,
da estabilidade, do repouso, da paz eterna. O desejo da salvação, isto
é, da saída do tempo-nada.

G. Bachelard considera que esse desejo de repouso está inscrito


no coração do ser da consciência, assim como a mudança.2 O objetivo
metafísico dessas sociedades seria produzir uma consciência do re-
pouso, visando ao repouso da consciência. Todas elas estariam con-
vencidas de que a eternidade não é exterior e oposta ao tempo, mas
que é nele, expressa-se por meio dele, mistura-se e convive com ele.
O tempo, então, não seria só presença do não-ser, mas também
expressão da Presença, que pode ser percebida, encontrada e fruída
ainda no tempo. Quando se evade do seu lado não-ser, o que se quer é

2. Bachelard 1980, p. V.

167
encontrar seu lado ser, marca da eternidade. Mais uma vez, Lévi-
Strauss, cuja influência do seu objeto de pesquisa sobre sua pesquisa
e sua concepção do tempo histórico parece evidente, expõe com
clareza, falando da estratégia mítica, o sentido dessa evasão:

o interesse que acreditamos ter o passado só é, na verdade,


um interesse pelo presente; ligando-o firmemente ao passado,
nós acreditamos tomar o presente mais durável, estancando-o
para impedi-lo de fugir e se tomar passado. É como se, posto
em contato com o presente, o passado fosse por uma milagro-
sa osmose tomar-se presente e que o presente fosse salvo de
sua própria sorte, que é tornar-se passado. É isso que fazem
os mitos... Levada até o fim, a análise dos mitos atinge um
nível em que a história se auto-anula...tempo, melhor do que
reencontrado, suprimido. 3

Mas, quem tratou desse tema da evasão do tempo. de forma


mais sistemática e de maneira lúcida e inspirada, foi Ferdinand Alquié,
em sua obra Le Désir d'étermté4 Antes de abordar a estratégia de
fuga do tempo da nouvelle histoire, a quinta hipótese, exporemos a
argumentação de Alquié, que servirá para esclarecer o comentário
daquela hipótese. Alquié analisa as démarches afetivas e intelectuais
pelas quais a consciência recusa a mudança e se eleva ao pensamento
do que não passa. O desejo de eternidade, para ele, tem dupla origem:
afetiva e intelectual. A primeira, é paixão pura; a segunda, é condição
da ação.
Alquié oferece ura dado essencial para a nossa reflexão, quando
distingue essas duas origens do desejo de evasão do tempo. Para ele,
a conceito de "evasão" não se refere exclusivamente à afetividade, à
paixão, de homens submetidos a um terror e do qual tentam heróica,
brava ou humildemente escapar. Esse aspecto do conceito de evasão
é real e não é menor, pois refere-se à experiência efetiva, isto é, afetiva
da temporalidade. E as paixões, os sentimentos, medos e desejos dessa
ordem não são ilusões ou falsa fragilidade ou excesso de poesia. Mas,
o conceito de evasão refere-se também à submissão do devir a certas
ordens construídas, que possibilitam o controle da sucessão temporal.

3. Lévi-Stiauss 1971, p. 537.


4. Alquié 1990.

168
Como intelectual, a evasão consiste em, de uma parte, aceitar o devir
e, de outra, controlá-lo pela construção de um tempo em que perma-
nências são postas no interior da sucessão, e que são o pressuposto da
ação. Tanto o mito, quanto a fé, quanto a razão, quanto a ciência não
deixam de expressar esses dois lados do conceito de evasão. A evasão
mítica, além de ser uma teatralização do sagrado e de possuir uma
argumentação teórica, ela responde à vida cotidiana e afetiva da
sociedade. A evasão pela fé, além das teologias que ela engendra,
corresponde também a uma ética, a uma forma de se conduzir no
vivido. A.evasão pela. razão, também, além das construções racionais
rigorosas, expressa os sentimentos de homens imersos no tempo e que
o temem. Aestratégia científica de evasão, talvez, tenha sido a primei-
ra a separar esses dois lados do conceito. Ela encara o tempo, objeti-
vamente, separando-se dele, procurando não se deixar afetar por ele,
para melhor controlá-lo. O tempo científico enfatiza o lado intelectual
da evasão e é indiferente aos sentimentos que a experiência do tempo
possa despertar nos homens. A ciência oferece como "ética" uma
postura de constatação indiferente da sucessão.
Alquié procura descobrir na consciência, em sua forma de se
abordar e abordar o mundo, esse desejo de ultrapassamento do devir.
Para ele, a consciência é ao mesmo tempo consciência da finitude e do
infinito, isto é, ela é tempo e eternidade. Ela ultrapassa as coisas que
ela apreende, visando ao encontro consigo mesma. Ela quer pôr-se
como presença em si, a si. A consciência é essencialmente metafísica:
ela ultrapassa tudo o que ela conhece para atingir uma outra ordem.
Nesse seu caráter metafísico, aparece todo o tormento do homem: a
recusa de sua condição fínita, temporal, e a busca de seu ser infinito,
eterno.
Mas, Alquié se interroga: Pode-se recusar o tempo sem ser pelo
erro e pelo sonho? Como recusá-lo, se ele passa sem que se possa fazer
nada, se ele é mudança definitiva e irredutível? Recusá-lo não seria
estéril, inútil, irracional? Nesse momento, a distinção daquela dupla
origem do desejo de eternidade toma-se importante: Se o tempo é
recusado afetivamente, para Alquié, isto é estéril e inútil. É apegar-se
ao passado, eternizar o presente, é recusar o transcurso ao futuro.
Sobretudo, como paixão, essa recusa não é o exercício da liberdade,
mas é dependência. Na paixão, age-se contra a razão. Quer-se inverter

169
ou parar o curso do tempo, como se o reconhecimento do tempo
representasse a perda para a consciência: seu ser está no passado ou
no presente e o futuro o aboliria. Além disso, o futuro contém a morte.
Será preciso um élan de vida muito forte para que se aceite o futuro,
um instinto forte que engage a consciência no tempo e faça com que
ela corra o risco e realize ações. Aceitar o futuro é aceitar o tempo e
poder, então, agir sobre ele.
Se o tempo é recusado intelectualmente, para Alquié," essa
recusa é essencial para a ação. Para agir sobre, o tempo, a consciência
precisa ao mesmo tempo recusá-lo e aceitá-lo. A recusa racional do
tempo consiste em negá-lo como pura sucessão de instantes, sem
ordem e sem sentido. Para que haja ação, é preciso, primeiro, aceitar
o futuro, isto é, aceitar o tempo; depois, recusá-lo como sucessão
caótica. A ação exige que se ponha um fim para ela, esse fim domina
e orienta a duração. Portanto, como afetiva, a recusa do tempo é erro
e sonho, como intelectual, a recusa do tempo é indispensável à atuação
sobre o tempo. Ele próprio esclarece:

(...) o menor pensamento supõe que concebamos uma perma-


nência dominando a mudança do puro devir. Há, aqui, a
recusa do tempo e de seus instantes particulares. Mas, essa
recusa não aparece como uma negação afetiva e passional,
emanada de um ser submetido ao devir, só podendo lhe
escapar pela revolta. Ela parece traduzir em nós a exigência
do espírito que, superior ao tempo, tem o poder de o pensar.
A recusa do tempo não é sempre o fruto de nossa afetividade:
ela pode emanar de nossa ra2ão. Esta, como nosso coração,
não pode admitir a mudança. A mudança é feita de começos
e fins, de aparições e desaparições, Ora, todo começo ofende
a razão: ela não pode conceber que o que não era comece a
ser e que alguma coisa saia do nada. Ela não pode admitir
também que o que era cesse de ser.5

Alquié prossegue seu raciocínio: o racionalismo grego opôs à


mudança a fixidez das idéias e constatamos que nossa razão se esforça
por encontrar, no seio do devir, permanências. Os gregos procuraram
explicar o tempo com base na eternidade e o tempo pareceu-lhes uma

5. Idem, p. 68.

170
imitação do eterno. Prosseguindo esse esforço grego, a ciência moder-
na procura leis funcionais, universais, isto é, é sempre a busca da
permanência, da constância. O determinismo consiste na negação da
heterogeneidade experimentada do tempo. Como as idéias de Platão,
as leis da ciência constituem uma ordem intemporal, que domina a
ordem temporal. Para reduzir a heterogeneidade temporal, do princí-
pio do determinismo se passa ao princípio da causalidade, que é o
princípio da razão suficiente do devir. A explicação causai visa retirar
a base permanente transcendente do tempo para substituí-la pela
permanência das relações racionais entre os termos de uma lei. Essa
vitória da razão sempre limitada, é ainda a negação mais completa do
tempo: os eventos isolados são ligados e correlacionados à lei-causa.
A causalidade cria uma temporalidade diferenciada entre os eventos
temporais, isto é, uma ordem lógica impõe-se à ordem cronológica.
Portanto, a negação do tempo parece ser a condição mesma do
pensamento. O tempo é diversidade, sucessão de instantes, e só se
pode conceber uma ligação entre suas partes, supor uma ação eficiente
do passado sobre o presente ou uma ação final do futuro sobre o
presente, supondo uma ordem que o domina. A afirmação dessa ordem
implica a negação do caráter radicalmente múltiplo da sucessão tem-
poral, Ó espírito só se afirma pela negação do dado temporal que se
impõe a ele. Àrecusa do tempo, portanto, não é só uma fonte de nossos
erros afetivos, mas a condição mesma de todo pensamento. Nossa
afetividade sonha com uma eternidade ilusória, nossa razão constrói
uma eternidade real.
Mas, hesita Alquié, distinguir a recusa do tempo que provém ou
da afetividade ou da razão é difícil. O que fará a distinção é a ação. A
paixão é incapaz de produzir ações positivas, porque tende a uma ação
total; a razão nos leva á ações mais sólidas, pois organiza a ação
segundo a sucessão temporal. Se ela recusa o tempo, ela também
renunciou à eternidade, por outro lado. A razão recusa e aceita, ao
mesmo tempo, o tempo; e recusa e aceita, ao mesmo tempo, a eterni-
dade. A razão aceita o tempo quando aceita agir no futuro; ela aceita a
eternidade, quando, para agir, é obrigada a organizar o tempo, suces-
são de instantes, em ordens mais permanentes. Ao aceitar essa eterni-
dade, ela recusa o tempo; ao aceitar o futuro, ela recusa a eternidade.
A razão aceita o tempo, isto é, recusa a eternidade, e impõe a ele a

171
eternidade, isto é, submete a sua dispersão à lei. O futuro se abre e se
toma objeto de ações concretas. Alquié dirá:

o pensamento fecundo, técnico ou científico, não é um retor-


no ao eterno, mas uma descida do eterno ao temporal,
aplicação do eterno às coisas. O espírito põe objetos e não
pode ele mesmo ser objeto... Ele é transcendente e incognos-
cível... Ele está atrás de nós: devemos virar-lhe as costas e,
com base nele, conhecer as coisas. Nossa tarefa é, então,
simples: é-de toda a eternidade que devemos nos separare nos
liberar, mesmo da eternidade espiritual. Todo movimento que
põe a eternidade como objetivo parece suspeito: é contra
nossa condição humana, é paixão... É recusa afetiva do tem-
po, do futuro, que é medo da morte, da finitude.6

Essa é, portanto, a conclusão de Alquié sobre a questão da


evasão do tempo. Deve-se aceitar o tempo, a finitude, e renunciar ao
desejo da eternidade, que é vão. É preciso, para viver cotidiana e
temporalmente, aceitar o nada, aceitar a morte. E pela ação sobre o
futuro. Agir significa isto: abandonar o eterno e retornar ao tempo. A
consciência da morte deve convidar a amar e a viver. E liberdade de
iniciativa. Agir é separar-se do eterno. Mas, se isso é essencial, Alquié
não desvaloriza a recusa do tempo enquanto sentimento: a alegria do
sonho e a da meditação sobre o eterno têm o seu lugar, escreve ele. A
arte consola, embora ela não seja somente paixão, mas também forma,
espírito, eternidade. A arte opera uma mediação entre a eternidade
afetiva e a intelectual. Mas ela não é ainda síntese, afirma Alquié. A
arte é ainda confusão. Para ele, Descartes é o filósofo que ensina
aceitar o tempo. Em Descartes, tudo está posto na medida do homem:
a pesquisa não é a verdade, a filosofia não é inspiração divina, é
método, isto é, uma atitude de um espírito finito procurando uma
verdade que lhe é exterior. Em Descartes, distinguem-se espírito,
objeto do espírito e método do espírito. Para atingir esse objeto, a
eternidade é deixada a Deus e vemos o homem avançar no tempo, em
sua humana rota.
Essa argumentação de Alquié, que consideramos muito bem
articulada e fecunda, é que conduzirá nossa análise das recusas do

6. Idem, p. 129 ss.

172
tempo, afetiva e intelectual, da nouvelle histoire. Antes de passar a
essa análise, deixaríamos apenas uma observação crítica ao pensa-
mento de Alquié. Pensamos que ele se esquece do desejo de eternidade
da consciência, que é um desejo filosófico, especulativo, de apreensão
de si, de concentração de si sobre si. Esse desejo não se confunde com
o desejo afetivo, que é psicológico, nem com o desejo intelectual, que
é utilitário. Este último leva à ação, aquele outro leva à fantasia e à
ilusão. O desejo de eternidade filosófico é um desejo de repouso, pela
intensificação da concentração em si. O desejo de eternidade do mito,
da religião, do filósofo não são nem afetivos e nem intelectuais,
exclusivamente. Há um terceiro desejo da eternidade: o desejo do
conforto, da Presença, do repouso, da paz, da consciência de si em si.
Mas, passemos ao exame da nouvelle histoire, com base naque-
las duas evasões apontadas por Alquié, a afetiva e a intelectual
Acrescentaremos, também, o que chamaremos de sua eshaté^d. filosófi-
ca. No século XX, considerando aquela proposta de periodização pro-
posta anteriormente, todas as estratégias de evasão, no triplo sentido do
termo—afetivo, intelectual e filosófico—foram praticadas. Amitologia
parece uma estratégia solidamente construída, pois atravessou milênios
de história, satisfazendo dos mais humildes aos mais cultivados grupos
de homens. Ela convenceu alguns dos mais eminentes representantes das
ciências sociais, tomou conta da mais moderna sociedade de consumo de
massa e das artes e cultura. A fé continua mais sólida do que nunca,
dividida e multiplicada em suas expressões, mas sobrevivendo às perse-
guições as mais brutais. A filosofia prossegue sua pesquisa. Sua expres-
são maior, no que diz respeito ao tempo, talvez seja a reflexão
heideggeriana, produzida em uma Alemanha atravessada pelo ritmo do
evento. Sua obra principal tematiza exatamente o Ser e o tempo?
Entretanto, a evasão filosófica do tempo perdeu parte de seu
prestígio e predominância para uma outra estratégia, específica do
século XX, que é a das ciências sociais. Estas construíram sua estra-
tégia contra a filosofia e sua forma de evasão. Se esta se apoiava na
Razão e na consciência, aquela procurará dialetizar tempo da cons-
ciência e tempo inconsciente, sempre em um esforço racional, mas

7. Heidegger 1989.

173
não maus exclusivamente especulativo. Nessa dialética, uns tendem
mais para a consciência, outros mais para o inconsciente, comprome-
tendo a própria noção de dialética. Em alguns, ela se toma reducionis-
mo, determinismo, predominância do tempo inconsciente sobre o
tempo consciente, deixando de ser uma dialética, isto é, a passagem
do um no outro em uma constituição recíproca. Em outros, salva-se o
tempo consciente, que não é nem reduzido, nem determinado, nem
eliminado, mas sempre condicionado pelo tempo inconsciente.
Fundamentalmente, o tempo das ciências sociais consiste em
negar a continuidade do vivido em uma consciência sempre refletida,
auto-consciente, e capaz de agir com pleno conhecimento dos resulta-
dos. Elas constroem permanências formais que corresponderiam a
permanências no tempo vivido e o tempo, como sucessão, é posto
entre parênteses. A um tempo formal, corresponde um tempo incons-
ciente real. Esse tempo formal é lógico, isto é, sob o signo da simulta-
neidade e não da sucessão, que se adequa a um tempo inconsciente
real, que é sob o signo da repetição. A eternidade aparece nas ciências
sociais na construção de um tempo lógico e na recusa do tempo vivido
como somente sucessão de eventos. O que a ciência faz na natureza, elas
procurarão fazer na sociedade: encontrar ordens permanentes que enqua-
drem e dominem os eventos sucessivos. As ciências sociais, entretanto,
não têm somente uma estratégia de evasão do evento. Nos mais radicais,
os positivistas, o tempo histórico é submetido ao determinismo do tempo
natural e procura-se nele leis, constâncias à maneira da física; nos menos
radicais, Weber, por exemplo, o tempo histórico não é reduzido aó tempo
da natureza, mas pode oferecer constâncias à maneira da Teoria, isto é,
da construção de conceitos e modelos; há ainda os mais radicais, os
estruturalistas, que reduzem o tempo histórico a um tempo matemático,
submetendo a cronologia à ordem lógica de uma estrutura abstrata.
Positivismo, hermenêutica e estrutural ismo evadem-se do tem-
po histórico naturalizando-o, logicizando-o ou maternatizando-o. O
marxismo pode ter as três leituras: pode ser ou uma evasão naturalista,
ou por modelos lógicos ou matemáticos. Ele pode ter ainda uma quarta
leitura, teoricamente mais diferenciada e original, pela qual ele reali-
zaria, de. fato, a dialética da duração, isto é, a articulação de tempos
múltiplos e diferentes, sem orientação antecipada, tempos longos,
médios e curtos, dentro de uma totalidade complexa e descentrada e

174
senv determinação em última instância de qualquer uma das estruturas
que constituem esse todo. Em todas as suas expressões, as ciências
sociais só têm um objetivo: superar o evento, o tempo -r- mudança, e
constituir quadros, molduras, que limitem as possibilidades de suas
realizações. O marxismo revela, então, toda a sua ambigüidade no
interior das ciências sociais. Ele pode ser visto como antievento,
quando é um positivismo determinista ou um estraturalismo, ou como
promotor maior do evento, como defensor da luta de classes e da
revolução, sempre dentro de um quadro estrutural. Por isso ele se
constitui no maior adversário das ciências sociais por ser um adversá-
rio interno. Externamente, as ciências sociais se opõem a todo movi-
mento político revolucionário, isto é, a todo projeto de produção de
eventos com vistas a mudanças estruturais. Para elas, a sociedade é
antes inércia, resistência, repetição, repouso. Elas são antes estrutura
do que evento. Uma aceleração na produção dos eventos só viria trazer
dor e terror, pois são violências que quebram a resistência das estrutu-
ras sociais. Para elas, o evento é violência, drama, destruição, guerra
e horror. Seu objetivo é conectar os eventos dentro de uma rede
estrutural da sociedade, para que eles reflitam e reproduzam essa rede
e jamais tentem quebrá-la, o que seria trazer a morte.
Sob a influência das ciências sociais, a nouvelle histoire circu-
lará nos interstícios dessas diversas formas de abordagem do tempo
histórico. Ela não aderirá incondicionalmente a nenhuma delas, mas
dialogará, emprestará, aceitará e recusará. Em sua concepção do tempo
histórico, ela se insere nessa perspectiva de superação do evento das
ciências sociais. Ela recusará o evento tanto afetiva quanto intelectual-
mente. Das formas de evasão do tempo já citadas, o mito, a fé, o
número, a utopia, o conceito, o reducionismo, a racionalização, ela
usará um pouco de todas. Umas, mais dissimuladamente, outras, mais
explicitamente. Os sucessores mitificam os fundadores em seus herói-
cos combates, eles têm fé na objetividade da ciência, racionalizam e
conceituam o vivido e não deixam de desenhar a sua utopia. Estas
palavras são de G. Duby: "Cristianismo e marxismo produziram
utopias que liberaram da angústia de envelhecer e ajudam a tolerar a
morte: o intolerável. Como assumir a morte fora de uma utopia?"8

8. Duby, in: Duby e Lardreau 1980, pp.149-150.

175
E ele continua: a longa prática do historiador não conduz ao
otimismo. Não se acredita mais em utopias e sobretudo a do progresso.
Esse desencantamento é um traço capital do momento histórico que
vivemos. As miragens, ele afirma, dissipam-se. Mas, é possível tolerar
o intolerável sem tentar evadir-se? Sob o signo do desencantamento,
a nouvelle histoire não acredita muito nas estratégias tradicionais.
Entretanto, não deixou de criar os seus meios próprios. Èla se evade
do evento dé três maneiras essenciais: afetivamente, ela aspira à paz
de uma longa duração e mesmo de uma muito longa duração, até
mesmo à paz de uma história natural, imóvel, geográfica, sem os
homens e seu tempo inquieto, criador de dramas; intelectualmente, ela
propõe a separação dos tempos da pesquisa e do tempo vivido. O
historiador reconstruirá seu objeto, vai cortá-lo em durações múlti-
plas, sob o domínio da longa duração e do desprezo do evento. Ele
porá problemas, criará modelos e conceitos, vai se deixar inspirar pelo
presente, mas não se submeterá aos seus ritmos e, por isso -não
procurará legitimá-lo ou defendê-lo. Finalmente, ele tratará seu objeto
numericamente: quantificará, pesará, medirá, mapeará, construirá gráfi-
cos, tabelas, séries, datas exatas. Ele elaborará conceitos e modelos
para a análise desses dados, uma análise que concluirá não ideológica
e filosoficamente, isto é, incluindo o futuro como dado da pesquisa,
mas tratará somente as relações dialéticas entre presente-passado. O
tempo histórico toma-se a construção de um sujeito mais ou menos neutro
quanto às tendências do futuro, quanto às polêmicas do presente, embora
inspire-se em ambas. O tempo histórico toma-se uma construção quantifi-
cada do passado, analisado conceitualmente e sem qualquer pretensão de
recriação do vivido. Será um mapa do passado, com escalas, linhas,
números e cores, mas não se ligará vivamente a esse passado.
Enfim, fazer história não se confunde com fazer a história, isto
é, o tempo da pesquisa inspira-se e é construído com base no tempo
vivido, mas não está diretamente a seu serviço. O serviço que ele lhe
prestará é o do distanciamento de si e não o da legitimação. Pode-se,
talvez, então, recuperar a perspectiva de Alquié sobre a concepção do
tempo e da eternidade de Descartes, para pensar esse tempo intelec-
tual, fragmentado, da nouvelle histoire. Em Descartes, segundo

9. AJquié 1990, p. 144 ss.

176
Alquié, a pesquisa não é a verdade, o conhecimento não tem inspira-
ção divina, é método, isto é, a atitude de um espírito finito procurando
uma verdade que lhe é exterior. E sobretudo: distinguem-se espírito,
objeto de pesquisa e método do espírito para atingir esse objeto.
Intelectualmente, o tempo da nouvelle histoire se evade do evento pela
fragmentação dos tempos, o que evita a adesão e legitimação de uns
pelos outros. Os tempos inspiram-se reciprocamente, mas informam-
se pela crítica e pela diferença. O tempo do historiador, o tempo do
objeto, o vivido, e o tempo do método são diferentes, não-coinciden-
tes, e é nessa não-identidade que se assegura o controle dos eventos.
E, segundo Alquié, sem essa evasão intelectual, a ação se torna
impossível. Diferentemente da evasão afetiva, que éfuga, a intelectual
consiste no domínio do tempo, o que leva a um conhecimento mais
seguro da realidade histórica.
Finalmente, a evasão filosófica: o que se quer com essa cons-
trução intelectual e com o desejo de um tempo imóvel é construir o
repouso da consciência, que procura conhecer seus ritmos desencon-
trados e até os mais inconscientes para obter um máximo de eternida-
de, isto é, de duração, de paz, de presença de si a si. Desenvolveremos,
agora, não muito longamente, os dois aspectos da estratégia de evasão
do tempo, que fala Alquié, e o terceiro, que acrescentamos, da nouvel-
le histoire.
Em primeiro lugar, os Annales evadem-se afetivamente do
evento, pois o século XX foi trágico para a Europa e para a França, em
particular. A aceleração da história, iniciada no século XVIII, de forma
dramática — o terror da Revolução Francesa, contra o terror do Estado
Absolutista — desembocou, no século XX, na derrota da Europa, pelo
Atlântico e pelo Leste. Após séculos de domínio mundial, ela, pela
primeira vez, saiu da cena central. A finitude chegou ao Espírito
Absoluto e de forma concreta e brutal. Quanto à França, ela conheceu
os seus limites no final do século XIX, ela os reconheceu entre
1914/18 e os teve confirmados entre 1940/45. A França, soube-se pela
terceira vez, era mortal! Antes dela, a Espanha, ainda imperial, no final
do século XIX, de forma também traumática, foi definitivamente
afastada do centro da história por um mundo não europeu, mas
Atlântico. A Rússia, por sua parte, vivia sua revolução, uma história
interna, mais ou menos externa à Europa. Depois, a URSS se imporia

177
sobre a Europa. Das duas guerras que desencadeou, a Alemanha saiu
devastada. Antes de ser devastada, devastou. O mesmo ocorreu com a
Itália. No século XX, portanto, a Europa perdeu sua hegemonia
mundial, perdeu suas nações mais potentes, seus impérios mais vas-
tos, por meio de guerras internas e externas, e descobriu a lei absoluta
do tempo: há um momento em que o que parecia eterno, termina. E
quanto mais absoluto e eterno parecia ser uma realidade histórica,
mais violenta e brutal precisa ser a cascata de eventos que a destrói. O
tempo aparece feroz e indiferente.
Os ingleses, isolados, continuavam a única expressão da potên-
cia da Europa e, com alianças exteriores e com mundos mais fortes do
que eles próprios, conseguiram deter os alemães por duas vezes, estes
que jogavam o tudo ou nada. Londres não conheceu a invasão, a
ocupação e a derrota. Apesar de ter sido completamente bombardeada,
os ingleses puderam continuar a sonhar o sonho da onipotência. A
Europa, de certa forma, enquanto era único centro da história, toma-
va-a mais simples. Podia-se mesmo pensar em um tempo universal,
contínuo, linear, em direção à liberdade absoluta, da Europa. No
século XX, a história tem outros centros e se complexificou: a revolu-
ção soviética, os movimentos de independência das colônias euro-
péias, com suas respectivas revoluções internas pelo controle do novo
poder, crises do capitalismo, que levaram a movimentos violentos de
maior ou menor dimensão. Enfim, o século XX foi uma torrente de
eventos extremamente violentos e que atingiram profundamente a
Europa. As disputas ideológicas se radicalizaram, disputas que usa-
vam o novo poder emergente, o das massas anônimas, poderosas
como capacidade de consumo e manobrada pelos meios de comuni-
cação. Essa massa deveria ficar fora da produção dos eventos e
permanecer em seu tempo repetitivo e cotidiano de consumidora de
alimentos, moradias, roupas e cultura de massa. Ela deveria ficar
confinada à sua vida material.
Sob o terror de tais eventos, brevemente evocados, o tempo da
nouvelle histoire se elaborou e, sobretudo, venceu. Ele não teria
vencido se hão fosse uma estratégia consistente na administração-eva-
são desses eventos. Ele só venceu após 45, quando ficou claro que
naquele ritmo de aceleração o fim estaria próximo. Era preciso, então,
desacelerar a história, isto é, desestimular a produção de eventos, em

178
particular, aqueles produzidos pela enorme força material das massas.
A concepção do tempo histórico da nouvelle histoire é revolucionária
porque ela rompeu com o tempo revolucionário — ela pôs fim à fase
de aceleração e inaugurou uma outra, de desaceleração. Internamente,
como conhecimento histórico, dentro da história da história, foi tam-
bém uma revolução: "une revolution dans la façon de concevoir
Vhistoire. Un bouleversement de nos vieilles habitudes. Unemutation
historique d'importance cápitale como se refere Febvre ao Mediter-
râneo e o mundo mediterrâneo à época de Filipe //, de Braudel, mas
que pode ser estendido à concepção do tempo histórico da nouvelle
histoire em geral, inclusive à do próprio Febvre.10 Continuando seu
comentário da obra de Braudel, Febvre afirma: "a tradição dos Anna-
les é a da obra escrita em um campo de concentração. Assim foi Bloch,
Braudel e Pirenne que escreveram sem livros e sem notas, no tumulto
que se imagina de uma barraca de prisioneiro, sob ameaças e tensões".11
Até nisso e, talvez, por isso, o lugar de Febvre é diferente entre
os fundadores. A perspectiva temporal da nouvelle histoire, do ponto
de vista afetivo, é a de prisioneiros políticos saídos de uma guerra
aberta entre nações poderosas. Se Sartre acreditava no indivíduo e na
ação, na luta da Resistência, Bloch e Braudel conheceram os limites
da ação, do indivíduo, da Resistência e da luta. Eles assistiram,
prisioneiros, aos eventos. Elaborarão um- tempo histórico com base
neste lugar, isto é, um lugar que conhece os limites da ação e que
conhece também os riscos de uma ação que não considera seus limites
— a destruição, a violência, a morte. Mesmo afetivo, é já ura tempo
obrigado à racionalização, isto é, à circunscrição da vontade e do
desejo. Eles concluem que o homem faz a história, mas para fazê-la
sem riscos, para que ele, de fato, a construa, ele precisaria estar atento
à parte da história que o faz. Ele deverá considerar, nessa história que
o faz, os seus múltiplos tempos, suas resistências e, sobretudo, deve
abordá-la mais como estatístico do que como profeta, deve mais
prever do que profetizar. O tempo histórico não se resume a um tempo
da consciência consciente. A consciência possui uma área imensa de
inconsciência.

10. Febvie 1950.


11. Idetn, pp.216-217.

179
Segundo Braudçí, o íemptf.histÒrico

(...) pesa, é um tempo concreto, universal, que corre o mundo,


impõe suais pressões, como que exterior aos homens, ele os
empurra, obriga, imperioso. O tempo imperioso do mundo.
Este não se deixa cortar, parar, voltar, retomar o movimento.
É um movimento que a vontade individual não pode imobi-
lizar ou manipular livremente, é um processo de mudanças
que se impõe sobre a açãò individual. O indivíduo e sua ação
precisam ser postos nesse contexto estrutural e profundo. (...)
D o tempo curto passar ao tempo menos curto e ao muito
longo (se este último existe, ele só pode ser o tempo dós
sábios); chegando aí, parar, tudo considerar de novo e recons-
truir, ver tudo girar em tomo de si: essa operação tenta o
historiador. 12

O olhar de Braudel sobre o tempo histórico é, de fato, uma


contemplação. Mas, diferente da contemplação filosófica, que é a
descoberta no tempo da eternidade, o que ele descobre nos eventos é
a força insuperável do tempo histórico, que ele define como irre-
versível, universal, exterior e imperioso. Trata-se de um movimento
da humanidade, em seus diversos tempos e direções, em que ele
parece entrever uma certa convergência, um certo ritmo de base,
contra o qual força particular alguma pode se opor. O que Braudel
parece descobrir é que o tempo histórico é superior ao tempo dos
indivíduos e òs enquadra e obriga, mesmo se estes, se reconhecem
esse quadro e essa imposição, são capazes de usá-lo na realização de
sua vontade. Os homens fazem a história, mas precisam partir dessa
contemplação, isto é, do reconhecimento dos limites que impõe à sua
ação o tempo imperioso da história mundial. Se se entra na rota desse
tempo, os homens não produzem mais eventos, isto é, instantes histó-
ricos singulares, mas realizam as possibilidades do que já é dado
antecipadamente pelo desdobramento mais amplo da história do mun-
do. Os eventos são marcados pelo desejo individual de ruptura desse
tempo maior, pois implicam singularidade e novidade.
Para Braudel, a ação deve ser feita no sentido da história, que
se oferece na pesquisa histórica, pela observação da realidade, pela

12. Btaudel 1969, p. 76.

180
contemplação do mundo a partir de seus mirantes mais elevados.
Hexter considera também que essa recusa do evento, por Braudel, se
deu a partir da derrota de 1945. Apartir de então, ele se tornou antiaçao
e antievento. Olhando a história com base em um campo de concen-
tração, impotente, ele sofria os eventos:

para Braudel, em um campo de concentração alemão, o


acon teci mental, the short view, o presente imediato, era de-
sespero, um poderoso inimigo a ser enfrentado e derrotado
pela astúcia do distanciamento, para escapar...Para um tal
homem irremediavelmente pego em uma armadilha alemã,
em que nenhuma. ação. serviria muito, em tal lugar, em tal
momento...a curta duração, o momentâneo significaria um
movimento em um jogo intelectual... may it not have been a
necessary act of faith, the narrow path to salvation ? It may
have been..}2 ,

Distanciados dos eventos, à força, Bloch e Braudel produziram


vastos panoramas do passado, com base em problemas e não em
eventos. Eles vão, além dos eventos e dos homens, apreender a
estrutura de problemas vivos, claramente formulados. Mas, distancia-
dos à força, eles se distanciam também afetivamente dos eventos, isto
é, eles desejam se afastar dos eventos. Essa recusa afetiva do evento
liga-se ao desejo mítico-religioso-racional da salvação. O tempo apa-
rece como condenação ao não-ser e ao terror da consciência do. nada.
Deseja-se a salvação, então, isto é, a consciência do ser, a reunião da
consciência ao ser, ou melhor, quer-se atingir a .eternidade da Presença.
Aqui, as evasões afetiva e filosófica se confundem. Na primeira, Braudel
e Bloch desejam que: aqueles eventos não fossem; na segunda, quer-se
ultrapassá-los para obter a salvação, isto é, uma consciência presente a
si, em que tais eventos são impensáveis. Como recusa afetiva e filosófica,
o tempo histórico da nouvelle histoire parece ser uma contemplação da
história. O evento é posto à distância. O historiador se afasta para apreender
fatias mais amplas de tempo, que reúnam o caótico e absurdo movimento
das eventos. Essa parece ter sido a forma pela qual o século XX, se esta
noção tem algum sentido, se relaciona à afetividade: ela é posta no
exterior, para que se possa melhor controlá-la.

13. Hexter 1972, p. 510.

181
A evasão filosófica também é diferente na ciência: na religião
e na filosofia, a consciência movimenta-se em direção a um centro
espiritual, o encontro se dá por uma aproximação, uma intimidade
com o ser, uma intuição do ser, uma relação direta da consciência ao
seu ser. A maneira filosófica da nouvelle histoire de evadir-se do
evento realiza um movimento contrário, embora visando ao mesmo
resultado: o historiador se diferencia, se distancia, se separa, para ver
e sentir melhor os eventos. Ele articula descontinuidades e constrói
uma continuidade cora ritmos desencontrados. Parece-nos que a nou-
velle histoire quer encontrar o repouso da consciência à maneira de
Bachelard, que comentaremos mais tarde. Como evasão afetiva, a
nouvelle histoire quer uma história de longa duração; como evasão
filosófica, ela quer dialetizar tempos descontínuos e heterogêneos, ela
quer produzir, também, uma concordância dos tempos.
Há os que são contra essas estratégias de evasão do tempo
histórico da nouvelle histoire. Quem argumenta contra tal "contempla-
ção" é E. Dardel, em sua obra de 46, L'Histoire concrete,14 Para ele,
os eventos que agrediram a Europa saíram dos livros de história.
Eventos que destruíram milhões de vidas humanas, que destruíram
séculos de história, que revelaram ao mundo moderno a sua finitude.
A história pode ter um fim, e isso se soube na angústia e na morte. Mas,
ele, Dardel, propõe uma outra estratégia de abordagem desses even-
tos, talvez, mais na perspectiva heideggeriana da autenticidade: "é
preciso ouvir a voz mais íntima do evento, da história, que é a ciência
do concreto".15 Os historiadores franceses, para ele, não tratam mais
do sentido do tempo, o que ele considera um sintoma de desconfiança
mortal em relação ao futuro. O século XX transformou evolução e
progresso em escombros: "o messianismo social, cultural e político
está mortalmente atingido e não se levantará. A estrada do futuro está
barrada."16

Resta ainda, segundo ele, o caminho da evasão para fora do


alcance do evento: recusar esse presente é pedir asilo a um presente
intemporal. E Dardel revela, então, suas fontes: ele não pensa o tempo

14. Dardel 1946.


15. Idem, pp. 2-3.
16. Idem, p. 6.

182
histórico com base nas ciências sociais, mas com base na filosofia.
Para ele, graças à reflexão filosófica sobre o tempo, de Kierkegard e
Nietzche, por exemplo, que tematizaram os problemas da existência e
temporalidade, destino e história, todos sabemos, ele afirma, sobre os
deveres de cada um diante da existência, da realização da historicidade
face às circunstâncias e aos eventos que a agitam. Mas, ele lamenta, a
história científica que se elabora se sacrificou ao ídolo da experiência
externa e do conhecimento frio:

(...) a história observada do alto como um dado inerte e


manejável não teria perdido sua significação própria e seu
valor? ... A o querer reter dessa forma a realidade histórica
entre suas mãos, a história científica não deixa a alma da
17
historia escapar entre suas mãos?

Dardel prossegue contra a "história científica": diz-se de um


historiador fechado a todo sentimento de generosidade e piedade que
ele tem uma objetividade notável. Não peca ele, ao contrário, por
indigência de espírito, por falta de objetividade, por uma subjetividade
deficiente, que exclui certas ordens da realidade?, ele interroga. E
responde: a história científica empobrece e falsifica a realidade histó-
rica. Ela só deixa aparecer o extenso e quantificável, coagula o devir
em tipos e gêneros, negligencia o elemento propriamente histórico do
evento, sua intensidade de ser e singularidade. Pretendendo mais
exatidão, privilegia os aspectos mais mensuráveis da história e oferece
índices, médias, gráficos, leis. Aobjetivação é a primeira etapa para a
abstração, as ligações lógicas e quantificadas. Mas, ele conclui, elimi-
nar o subjetivo e a qualidade, o evento, é apagar á história como
realidade concreta.

Não exporemos toda a argumentação de Dardel, que é rica e vai


em uma direção inteiramente diversa da que tomou a nouvelle histoire
diante da mesma circunstância histórica, a dos eventos do século XX?
Ele defende também uma "história científica", mas na : orientação
historicista: a história, para ele, é uma compreensão pelo interior da
realidade histórica concreta dos eventos. O homem realiza o seu
destino, é livre, e a história-ciência o acompanha e assessora, toma

17. Idem, p. 8.

183
partido e planeja o futuro, encarado como não dado, inacabado e
aberto. Dardel representa uma história ainda sob a influência do tempo
da consciência, elaborado pelos diferentes filósofos.
É exatamente dessa influência que a nouvelle histoire quis se
distanciar. Como evasão do tempo histórico, a nouvelle histoire optou
pelo distanciamento. Ela olha de longe e do alto, para ver mais, ver
melhor e sentir menos. Contra o calor excessivo dos eventos, infernal,
ela aspira à paz de uma longa duração, bem material e natural; ela
deseja a imobilidade de um tempo, por um lado, espacializado, exten-
so, sem as singularidades e intensidades, que mais quebram e ator-
mentam, segundo ela, do que realizam o que pretendem; por outro
lado, ela aspira ao repouso de um tempo harmonioso, harmonia
construída pela articulação dialética da multiplicidade dos tempos.
Estes são o sentimento e a salvação do tempo histórico da nouvelle
histoire.
Associado, mas diferenciado; ligado, mas indiretamente, a esse
sentimento e aspiração à salvação, está o tempo de sua evasão intelec-
tual. O tempo de suas reconstruções do passado ao mesmo tempo se
baseia naquele sentimento e naquela aspiração, revelando-os, e man-
tém sua autonomia em relação a eles. A nouvelle histoire separa os
seus tempos, o do sentimento, o da construção intelectual e o da
aspiração à eternidade. Mas, ao mesmo tempo, os liga, em sua dife-
rença, como interlocutores. Não se trata simplesmente de submeter a
emoção ao pensamento; trata-se de tomá-los como ordens diferentes
do tempo. Pondo-se à distância e do alto, separando emoção, pensa-
mento e aspiração, de uma certa forma, o historiador dos Annales
ostenta uma certa neutralidade como mediador dessas ordens de
tempo. Como reconstrutores do tempo vivido passado, em relação ao
qual o tempo da pesquisa também se mantém diferenciado, eles
criaram instrumentos intelectuais, técnicas intelectuais de evasão: o
evento é posto em uma articulação de tempos longos e médios e, para
alguns, com função desprezível. Esse tempo reconstruído articula
temporalidades diversas, múltiplas, e sem direção dada a priori, não
obrigando, portanto, a adesões e militâncias diretas. Reconstruído,
esse tempo é o resultado de operações intelectuais de "corte", "medi-
da", "quantificação", "numeração", "datação", "mapeamento", "tabe-
lamento", "conceituação", "modelização", "problematização".

184
Reconstruído, ele se diferencia do tempo vivido por não pretender
"reconstituí-lo", e se diferencia do sentimento do tempo histórico do
historiador, por não ser necessariamente a sua expressão e não estar
diretamente Ligado a ele.
A evasão intelectual mantém relações distanciadas, mas eficazes,
tanto com o vivido como aos sentimentos e à aspiração do historiador que
a realiza. Braudel afirma a exterioridade 1do Q
tempo
1 histórico: "não é a
duração que é a criação de nosso espírito". E explicita o que é o tempo
histórico criado pelo espírito da nouvelle histoire: "os fragmentos dessa
duração, isto é, os cortes e recortes, é que são criações do espírito".19 As
durações que o historiador distingue na realidade, pela documentação,
são solidárias umas às outras. O historiador fragmenta-as e articula-as.
Esses fragmentos, prossegue Braudel,
(...) se reúnem no final de nosso trabalho: longa duração,
conjuntura, evento se articulam sem dificuldade. Todos se
medem à mesma escala. Participar em espírito a um desses
tempos é participar de todos. O que interessa apaixonada-
m e n t e ao h i s t o r i a d o r é o e n t r e c r u z a m e n t o d e s s e s
20
movimentos, sua interação e pontos de ruptura...

Tempo vivido e tempo reconstruído, portanto, são paralelos. O


historiador procura acompanhar aquele primeiro, quer estar sempre
ajustado aos seus avanços e refluxos, suas paradas, hesitações, diver-
gências, convergências, ramificações, imposições. Mas, sem aderir a
ele, seja para legitimá-lo, seja para orientá-lo. Aintervenção do tempo
do historiador sobre o tempo vivido é exclusivamente crítica e não se
trata de uma crítica ética, mas a crítica pela diferença, pelo contraste,
que revela ao presente a sua alteridade; ao passado, as suas possibili-
dades. Ocorre um movimento inverso à concepção do tempo histórico
da modernidade, no sentido de Habermas e Koselleck:21 se lá o tempo
histórico concreto não só se deixava narrar como até realizava as
criações da narração — acreditava-se nisso — aqui, no tempo históri-
co da nouvelle histoire, pós-modernidadé, o tempo reconstruído não é

18. Braudel 1969, p. 76.


19. Idcm, Ibidem.
20. Idem.
21. Habermas 1981, 1985 e Kosclleck 1990.

185
narrativo, mas problematização, que se submete ao desenrolar exterior do
tempo histórico e sabe que este impõe suas vontades e que, o tempo
pensado, para se tornar vivido, precisa se afastar e respeitar os movimen-
tos do tempo histórico objetivo, suas resistências e tendências. Ir contra
o desenrolar desse tempo é nadar contra a maré, velejar contra o vento,
isto é,fracassar.O sentido do tempo do mundo, para Febvre e Braudel, é
o da unificação da civilização humana, que eles acreditam constatar que
começou a se acelerar a partir do século XVT. A grande história é um
movimento nesta direção à unificação. As iniciativas que realizam esse
sentido terão sucesso, as que vão em sentido contrário, fracassarão. '"A
humanidade tende a ser una a partir do século XVI. Antes, ela era dividida
em planetas diferentes, cada um deles uma civilização, uma cultura
particular, com suas originalidades e escolhas de longa duração/'22
Essa posição de Braudel, conflita com as idéias de tempos
diversos e múltiplos, sem direção apriori e até mesmo com a hipótese
da separação entre os tempos vivido e reconstruído. Conflita também
com seu ataque constante às filosofias da história. Essa afirmação
acima não revelaria a sua filosofia da história, isto é, a sua concepção
especulativa do tempo histórico? Kula põe esta questão: Afinal, o
desenvolvimento da história se faz em um sentido único ou em
diversos sentidos paralelos?23 Segundo ele, a comparação só é meto-
dologicamente possível se se tem uma referência uniforme, isto é, sé
se concebe um desenvolvimento em sentido único. Todos os que
argumentam contra a possibilidade de comparação em história têm
uma concepção pluralista do sentido do tempo do mundo.
W. Kula propõe que se conceba um tempo dialético, isto é,
como se faz metodologicamente para a duração e a mudança, o tempo
do mundo seria uma unidade e uma pluralidade. Estas seriam as duas
faces de um só processo histórico. Para Kula, o mundo aceitou por
modelo o tipo de civilização industrial que a Europa criou. Ela terá
perdido sua dominação política sobre o mundo, mas este adotou seu
modelo de sociedade. E um bem ou um mal? Não importa, ele diz, é
ura fato. O sentido da história, hoje, seria o da unificação do planeta
nos quadros de uma civilização industrial. E, nessa direção, cada parte

22. Braudel 1979, 1B vol., p. 495.


23. Kula 1960, pp. 311-313.

186
do planeta, cada sociedade, investe em ritmos diferentes, com base em
seus meios particulares. O que constitui um mundo com uma direção
só, mas plural, com interesses particulares, complementares e confli-
tantes, com recursos e objetivos imediatos diferenciados.
Consideramos que Kula revela bem a concepção do tempo
histórico de Braudel. Mas, esse tempo exterior, imperioso, não é
transparente, não é claro e linear e, sobretudo, não se submete à
vontade dos indivíduos e grupos sem resistir. Diante dele, a nouvelle
histQire cultiva a desconfiança, distancia-se, para vivê-lo com mais
segurança. Dele, ela criará um conhecimento marcado, aparentemen-
te, pela não adesão, pela não legitimação, pela neutralidade. A função
do tempo do conhecimento histórico é acompanhar e procurar domi-
nar esse tempo exterior. Dominar quer dizer, conhecê-lo e não intervir
diretamente, e não apontar direções para que ele as tome. A pesquisa
histórica não se liga diretamente ao seu objeto, ela não aponta cami-
nhos, ela considera o futuro còm extrema cautela. Mas, o conhecimen-
to que a pesquisa histórica produz quer informar os agentes desse
tempo exterior de alguma forma. Ele quer conhecê-lo e oferecer dados
que possibilitem evitarem-se quedas, ciclos de baixa produtividade e
de oferta de empregos, já que se trata de sociedades industriais.
Dominá-los, sobretudo, para impedir que eventos pretendam tirá-lo de
sua rota. Estes, os eventos, só trazem o pânico e o terror e são
incapazes de dar uma rota melhor. É como se o historiador acompa-
nhasse um "TGV" em seu trilho: ele procura descrever cada momento
de sua trajetória e a diversidade de posições de seus vagões, pois em
um mesmo momento, cada vagão está em pontos diferentes da linha e
vivendo curvas e direções diferenciadas. O historiador procura tanto
acompanhá-lo como tambéxn quer se antecipar ao seu deslocamento,
procurando prever obstáculos à sua marcha, tanto para propor adapta-
ções às mudanças de velocidade que terá de sofrer, e que atingirão
diferentemente cada vagão se o obstáculo for inevitável, como para
combater aqueles que querem minar os seus trilhos.
Parece-nos que Imbert definiu bem o sentido dessa reconstru-
ção intelectual do tempo vivido: o seu controle técnico.24 A evasão

24. Imbert 1959, pp. 438-441.

187
intelectual do tempo da nouvelle histoire toma o sentido dado por
Alquié: oferecer técnicas que possibilitem uma ação segura. O tempo
é negado como sucessão de instantes e submetido a permanências
construídas que o enquadram e o tornam controlável. A diferença das
ordens temporais se revela quando o tempo reconstruído não propõe
encaminhamentos ideológicos, mas operações técnicas que façam
com que o tempo vivido, em sua própria ordem constatada, se desen-
volva com o mínimo de obstáculos e atritos. No tempo intelectual, o
conceito de evasão se toma uma técnica de controle do transcurso do
tempo vivido, que se "aceità inevitável, múltiplo è imperioso. Para
Braudel, "há 50 anos, as ciências humanas descobriram esta verdade,
que a vida dos homens flutua, oscila em movimentos periódicos,
infinitamente recomeçados."25 E Imbert completaria: "conhecer o
trend secular capitalista, seus movimentos longos, para planejar e
controlar seus ciclos".26 Isto é, evitar, se possível, a tendência à baixa
e o evento desestabilizador, mas sempre considerando que eles são
reais, objetivos e inelimináveis. Torna-se necessário, portanto, a cria-
ção de técnicas que possam administrar seus efeitos mais prejudiciais,
visando ao melhor funcionamento da sociedade.
O tempo intelectual evade do evento submetendo-o a perma-
nências que o enquadram. E procura encontrar no vivido mesmo
estruturas que enquadram o evento: O objetivo maior da reconstrução
intelectual do tempo vivido é a produção, no vivido, do "repouso", isto
é, do não contato com o evento-mudança. A reconstrução da trajetória
do trem, que não se confunde nem com o trem e nem com sua
trajetória, pretende oferecer técnicas que permitam ao trem continuar
seu caminho sem resistências, sem choques, sem atritos: que o "trem
da história7' faça uma viagem agradável e confortável para ò maiór
número, embora se saiba e se aceite que a inclusão nesse conforto é
limitada^ Mas, a inclusão plena de todos nessa viagem agradável
poderá ser conquistada a longo prazo? A priori, não se sabé. E a
nouvelle histoire não pretende oferecer respostas especulativas é de-
senhar utopias. O que ela propõe é a intervenção técnica, parcial e no
sentido da história e que se espere, que se dê tempo ao tempo. Escapar,

25. Braudel 1979, 3 o vol., p. 56.


26. Imbert 1959, p. 438.

188
não é possível; a violência estará fadada ao fracasso: sai-se de uma
escravatura para outra, de uma hierarquia a outra. A mobilidade social
não está proibida, mas sem comprometer o equilíbrio social. Braudel
afirma: "nem as coisas, nem as realidades sociais, nem as mentalida-
des evoluem a galope."
As estratégias afetiva —: a busca de longas durações, que
protegem o vivido da violência do evento — e intelectual — a
separação dos tempos vivido e reconstruído e o da visão geral do
historiador, a reconstrução crítica e neutra, que faz a mediação entre
presente e passado —- convergem para o que denominamos evasão
filosófica. Ãevasão afetiva é um desejo de estancamento do tempo, do
seu fluxo acontecimental; a intelectual visa à produção de uma inter-
venção segura; a filosófica visa ao repouso da consciência. A nouvelle
histoire também quer a salvação nesse mundo temporal, que seria uma
sociedade harmoniosa, isto é, com todos os seus tempos articulados
em uma sinfonia.
A estratégia filosófica de evasão da nouvelle histoire, talvez,
pudesse ser descrita fundamentando-se nas formulações de G. Bache-
lard, em sua obra A dialética da duração.28 O que Bachelard propõe
para se obter o repouso é a ritmanálise, que ele confessa ser uma
inspiração brasileira!29 Para ele, não há sincronismo entre pensar o
agir e a ação. Acima do tempo vivido, há o tempo pensado, que é mais
livre, mais facilmente rompido e retomado. Nesse tempo matematiza-
do é que se inventa o ser. Esse tempo não é tão abstrato, como se diz,
pois é nele que o pensamento age e prepara as concretizações do ser.
Ele aparece na linguagem, que é quem organiza a ação. O tempo do
pensamento, prossegue Bachelard, organiza a duração dada, constituí-
da de continuidade e descontinuidade, de cheios e vazios, de ações e
repouso, de consciência e inconsciência. Como uma música, essa
duração objetiva é um aglomerado caótico de notas musicais. É o
pensamento que a constitui em melodia harmoniosa. É ele que; a corta,
recorta... e a faz um todo rítmico que conforta e consola, que oferece
repouso, afirma Bachelard. A duração vivida é um conjunto descone-

27. Braudel 1979, 2" vol., p. 4 5 0 ss.


28. Bachelard 1980.
29. Idem, pp. 129-150.

189
xo, disperso» confusão de ritmos; a duração pensada é a organização
desses ritmos variados, visando à localização e ao conforto. Os ritmos
se apoiam, então. O que um maestro faz é correlacionar instrumentos,
ele os faz se sustentarem reciprocamente e se conduzirem uns aos
outros. Mas sem ritmo de base ao qual todos se refeririam. Uma
orquestra é uma ilusão de continuidade: é uma soma heterogênea de
som — durações vividas — e de alma — duração reconstruída.
Parece-nos que o tempo intelectual da nouvelle histoire produz
essa forma de evasão do evento: como um maestro, o historiador
escuta os diversos ritmos do tempo histórico vivido, aprende a reco-
nhecê-los, correlaciona-os, põe uns em apoio de outros, quando, entre
eles próprios, são desconexos, particulares e sem sentido geral. Como
um maestro, o historiador "põe junto", ou procura reunir ritmos
particulares e dispersos, mas procurando também identificar e respei-
tar essa dispersão e particularidade. Ele, ao mesmo tempo, organiza os
ritmos e se deixa levar por eles. Como um maestro, o historiador faz
da descontinuidade a ilusão da continuidade e da continuidade a ilusão
da descontinuidade. Uma obra de história é como uma ilusão de
sentido contínuo. O objetivo é também o mesmo: sair da dispersão, da
dissonância, do não-sentido, evadir-se do "terror do evento", que
aparece quando ocorre um som impossível de ser articulado e de fazer
"consoar".

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