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4 -* *

CHRONICA

DO

DESCOBRIMENTO E CONQUISTA

DE GUINÉ,

ESCRITA
POR MANDADO DE ELREl D. AFFONSO V,
x)B A DIRECÇÃO SCIENTIFICA. E SEGUNDO AS INSTRUCÇÒES DO ILLUSTRE INFANTE
D HENRIQUE.
V H HI >. KRONIKT4

GOMES EANNES DE AZURARA ;


IILLMENTs TRASLADADA DO MANUSCRITO ORIGINA L CONTEMPORÂNEO, QUE SE CONSERVA
NA BIBLIOTHECA REAL DE PARU, E DADA PELA PRIMEIRA VEZ Á LUZ
PER DILIGENCIA
DO VISCONDE DA CARREIRA ,
£u?iado Extraordinario . e Mtnistro Ptenipolenciario de S. Majestade FtdelíMím<>
ua corte de França ,
PRiC' DÍLsA
DE UMA INTRODUCÇÃO, E 1LLUSTRADA COM ALGUMAS NOTAS,
lUfO VISCONDE DE SANTARÉM ,
s>irio da Academia reat das Sciencias de Lisboa . e de um grande numero d Academia-,
c s*n iedade* sanias em Hespanha França , Italia , Inglaterra Holtanda .
Suecia . e America . ete. ;
V. SEGt'1DA DUM GLOSSÁRIO DAS PALAVRAS K PHRASKS ANTIOLAHAS
K OBSOt.KTAS.

PARIZ.
PUBLICADA POR .1 I». AILLAIiD.
1841.

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(tuyaxecetUtfcw&sx Ix^tncabgixEhdrtl'
tyeimctetyc Var^upvmii^oz qyuze/ajr&ACjut
Cu\x&con(c(To cj õpofkxernoirfpw tnmandate
kffê n& come tenoa yoi outzoatyzLcoxscpic no
y2oírcffmmho^oí^fem^rm^'p(nínpA
cmaãnZohívciiyo zuuioíTkrtictotc to^l fabêto
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5
INTRODUCÇÁO

Quando se examinão com attenção os altos feitos


obrados pela nação portugueza no xv° e xvi° seculos
na carreira das navegações, edo commercio maritimo ,
não podémos deixar de admirar esta nação , vendo-a
em um periodo tão curto passar além do Cabo da Boa
Esperança, descobrir, reconhecer, explorar, descre
ver, e occupar, ou dominar em toda a sua vasta cir-
cumferencia , todas as costas d' Africa , e estender o
seu dominio na Asia sobre uma superfície de mais de
outo mil legoas , e não satisfeita ainda destes trium-
phos dictar as suas leis a trinta e três reinos que
fizera tributarios !
Cresce a nossa admiração quando se contempla o
valor, e intrepidez de um Portuguez (Fernando de
Magalhães) que altravessando na sua maior extensão
o Oceano , consegue pela primeira vez fazer a circum-
navegação do íilobo ; esta admiração ainda mais se
augmenta quando se refle te que a nação portugueza
descobrira pelos mesmos tempos a parte oriental do
Novo Continente , em quanto por outro lado extendia
o seu dominio na Asia desde a costa oriental d Africa
até á peninsula de Malaca e ás Molucas , dominio
tanto mais admiravel , quanto era sustentado por
uma cadea de praças fortes, e pelo estabelecimento
de feitorias commerciaes (1). Quando pois se medita
a ttentamente na rapidez com que se succedião uns aos
outros taes acontecimentos, não podémos deixar de
ficar absortos á vista daquelles grandes feitos , e não
menos da incrivel energia, da força sem exemplo,
do desejo ardente de gloria que se desenvolveo, desde
a primeira metade do seculo xv° até á outra metade
do seculo seguinte, nesta nação que antes daquella
epoca memoravel vivia circumscripta no seu proprio
territorio !
Comeffeito a historia não nos mostra que em alguma
outra nação se operasse um tal prodigjo ; não nos
mostra outro exemplo de uma tão rapida elevação ao
cUme da grandeza , e do poder. Se examinámos a
mesma historia de Roma , vemos que esta nação ,
quando chegara ao apogeo da sua grandeza , não con-
quistára ao mesmo tempo, como fizerão os Portu-
guezes , tantos povos , e tantos estados, não dominara
sobre tantas nações, nem se apossáracom tanta rapidez
de tantos sceptros.
E na verdade um espectaculo magnifico , e por certo
digno da meditação do historiador e do philosopho,
quandocontemplar na transformação rapida de um dos
pequenos Estados da Europa , em um dos mais pode
rosos do globo , e vél-o mudar a sorte, e a situação com-
mercial do mundo, reduzindo grandes imperios ao nivel
dos pequenos Estados, e elevar outros que té então erão
mediocres, á cathegoria de grandes potencias; vêl-o
emlim produzir uma revolução immensa, revolução
que abrangeo todas as partes do globo, e que ligou o

(t) fide Barreto de Resende, Tratado dos vice-reysda ladia.


Mss. 8,37< da Bibliotheoa Real de Pariz.
— VII —
antigo ao novo mundo , estabelecendo communicoçôes
entre as nações que té ulli erão as mais desconhecidas
e remotas !
A nossa admiração ainda é maior quando vémos
a par destas façanhas, e para que ellas se não apa
gassem nas futuras idades da memoria dos homens ,
produzir a nação ao mesmo tempo uma multidão de
homens de primeira ordem que as recontão em seus
escriptos , ou as cantão em seus poemas; conservando
assim á sua patria não simplices^e fabulosas tradições,
mas a relação authenticade factos verdadeiros de que
forão testemunhas , ou em que elles mesmos tomarão
parte, identificando-se assim a gloria militar com a
scientifíca elitteraria, quando alias a idade d ouro da
litteratura romana só existira no tempo da paz, em
quanto a nossa viveo e se augmentou no meio das
batalhas , e á sombra dos louros das victorias.
E pois a esta singular e gloriosa excepção que deve
mos o precioso monumento que vamos dar pela pri
meira vez ao publico : a Chronica da Conquista de
Guiné por Gomes Eannes d'Azurara , escripto que é
incontestavelmente não só um dos monumentos mais
preciosos da historia da gloria portugueza , mas tam
bem o primeiro livro escripto por autor europeo sobre
os paizes situados na costa occidental dAfrica além
do Cabo Bojador, e no qual se coordenarão pela pri
meira vez as relações de testemunhas contemporaneas
dos esforços dos mais intrepidos navegantes portu-
guezes que penetrarão no famoso mar Tenebroso dos
Árabes (1) , e passarão além da meta que té então tinha

(1) O Atlantico alèm das ilhas Canaviat (veja-se a nossa Me


moria sobre a prioridade dos descobrimentos portuguezes).
VIII
servido de barreira aos mais experimentados maritimos
do Mediterraneo, ou das coslas da Europa.
Com efieito tendo sido os Portuguezes os primeiros
descobridores dos paizes situados além do Cabo Bo
jador (1) , a bonrosa missão de primeiro recontar estes
descobrimentos competia a um Portuguez.
Todavia, deste monumento contemporaneo do il-
lustre Infante D. Henrique (almae vida destes desco
brimentos, e onde nos são revelados os esforços dos
seus grandes talentos , e da sua profonda sciencia )
apenas tinhão escuras , e confusas noticias os mesmos
eruditos do principio do xvi° seculo; e entre estes
algum houve que até duvidara ter Azurara com
posto esta chronica : os modernos emfim o julgavão de
lodo perdido, como diremos em outro logar. Antes
pois de fallarmos neste assumpto, occupar-nos- hemos
do autor, e em seguida do livro, e da importancia
deste , e finalmente da descoberta do codice original.
Azurara revéla-nos nesta chronica , se a compa
rámos com o Leal Conselheiro composto por elRei
D. Duarte entre os annos de 1428-1438 (2) , o estado
das sciencias, e da erudição entre nós nos fins da idade
media. Pôde dizer-se sem temeridade que este chro-
nista tinha uma vasla instrucção , como o leitor verá
pelas suas citações. Elle nos da noticia dos livros
que os nossos sabios estudavão no xiv° e principio do
xv° seculos. E para que o leitor tenha disto uma idea

(1) Vide a nossa Memoria sobre a prioridade dos descobri


mentos portuguezes na costa d'Africa Occidental. Pariz, 1841.
(2) Vide a nossa Memoria sobre este Mss. publicada pelo nosso
consocio na Sociedade R. dos antiquarios de França, M. P. Paris,
ua sua interessante e erudita obra , intitulada : Les Manuscrits
francais de la Bihliolhèque du Roi , tomo 111 , pag. 335.
mais exacta , faremos menção aqui dos principaes au
tores citados por Azurara, do mesmo modo que o
nosso illustre amigo o senhor barão de Humboldt enu
merou todos os citados por Colombo. Com elfeito entre
os AA. sagrados Azurara cita a Biblia, e especial
mente os livros de Salomão , os dos Profetas, S. Jero
nimo, S. Chrisostomo, S. Thomaz d'Aquino e outros ;
entre os AA. da antiguidade classica cita Herodoto,
Homero, Hesiodo, Aristóteles, Cesar, Tito-Livio,
Cicero, Salustio, Valerio Maximo, Plinio , Lucano ,
os dois Senecas , o tragico , e o pLilosopho , Vegesio ,
Ovidio , Josepho , Ptolomeo, e outros.
Dos AA. da idade media vemos Azurara citar
Orosio , Isidoro de Sevilha , o astronomo arabe Alfa-
gran (1), Rodrigo de Toledo , Marco Paulo, Fr. Gil
de Roma , João Duns Scoto , Alberto Magno, o famoso
Petrus de Alliaco , e outros. Vé-se ao mesmo tempo
que tinha lido as chronicas e historias estrangeiras ,
e os romances de cavallaria , principalmente os de
Franca, Hespanha, Italia (2), e Allemanha. Por outra
parte Azurara mostra ter um vasto conhecimento da
geografia systematica dos antigos, como indicámos
em algumas das notas. Apezar de ter vivido na epoca
del Rei D. João Io, e D. Duarte, que não acredita vão
muito nas influencias sidéreas, c na astrologia judi
ciaria (3) , Azurara se mostra ainda embebido das

(1) Celebre astronomo arabe do ix° seculo. Vide acerca deste


A. as notas de M. de Humboldt : Examen critique de l histoire de
la géographie du nouveau continent , lomo Io, pag.79. e tomo IIo,
pag. 324.
(2) « Da grandeza dos Allemães , da gentilleza da França , e
» da fortalleza d Inglaterra , e da sabedorya da Itallya, etc. »
(Chron., pag. 12.)
(3) Vide Leal Conielhciro por elKei I>. Duarte, cap. 11 c 21 .
— X —
influencias desta (1) , mui provavelmente pela leitura
do famoso livro de Ptolomeo , Opus quadripartitum de
astro/•um judiciis (2) , mas este reparo que acabámos
de fazer, longe de diminuir o saber deste A., antes
mais o demostra.
As particularidades historicas da maior importancia
que se encontrão neste livro são innumeras ; indicámos
algumas em as notas, analysámos outras em a nossa
Memo/ia sobre a prioridade dos descobrimentos por-
tuguezes ; não devemos todavia deixar de mencionar a
que nos revela a sabedoria dos planos do grande rei
D. João Io ácerca da occupação e posse de Ceuta (3) e ao
mesmo tempo a de Gibraltar (4) , afim de ficarem por
tal modo os Portuguezes senhores da chave do Medi
terraneo^ ao mesmo tempo da Africa septentrional.
E igualmente interessante a que nos reconta da in
fluencia que tivera já sobre o animo do grande Prin-

(1) Vide Chronica , pag. 48 e 49.


(2) Ainda em epocas posteriores á de Azurara os reis e principes
tinbão na sua corte indeviduos com o cargo de astrologos.
Luiz XI de França , e muitos soberanos estavão persuadidos que
a sua rida estava escri pta nos astros. Escrevêrão-se mais de mil
tratados de astrologia em todas as lingoas da Europa. Ainda no
xvi° e xvii° seculos a astrologia contava entre os seus sectarios
Keplcr e o celebre Cassini. O leitor curioso poderá consultar sobre
este objecto Schoner, De Nativitatihus, Nuremberga 1532; Kepler,
Nova Dissertai iuncula de fundamentis astrologia certiorihus.
Praga, 1602.
(3) Vide Chron., pag. 23 , cap. 5- E na verdade, além da posição
militar, a historia do commercio lhe mostrava , que toda a Europa
na idade media considerara esta cidade como um dos mais impor
tantes emporios dal preciosidades do Oriente , pois alli h ião
buscar as drogas de preço que produzia não só Alexandria e Da
masco, mas tambem a Libya e o Egypto.
(4) Jbid., pag. 28.
cipe, autor destes descobrimentos, a noticia da exis
tencia de um soberano chrislão no oriente chamado
Preste João (1).
Pelo que respeita ao estylo do A. diremos que
Damião de Goes o reprova (2) , em quanto que o
grande historiador Barros , por certo melhor autori
dade, o louva, e approva (3). Como quer que seja,
o leitor julgará per si mesmo do estylo , em nosso
entender admiravel , dos capitulos II e VI em um A.
que escreveo quasi um seculo antes do nosso primeiro
classico.
A sua fidelidade como historiador é incontestavel.
O seu escrupulo e amor da verdade era tal que pre
feria antes deixara relação de alguns acontecimentos
imperfeita, do que completál-a quando não podia ob
ter já as noticias exactas dos que os tinhão presencia
do. A sua autoridade como escriptor contemporaneo
é immensa, pois Azurara viveo com o Principe im-
mortal que elle idolatrava , conheceo pessoalmente os
principaes , e intrepidos descobridores (4) , os quaes

(1) Ibicl., pag. 94, cap. 16.


(2) «O que se bem conhece e vê do estylo, e ordem acostu-
• mada do mesmo Gomes Eannes , posto que algumas palavras
• e termos antigos, que elle usava no que escrevia, com razoa-
• mentos prolixos , e cheyos de metaforas ou figuras que no estylo
• historico não tem logar, etc. • (Goes, Chron. do principe
D. João, pag. 10, cap. 6. Ediç. de Coimbra de 1790.)
(3) « De escrever os quaes feitos teve cuidado Gomes Eannes de
• Zurara, chronista destes regnos : homem neste mister da his-
» toria assaz diligente , e que bem mereceo o nome do oflicio que
» teve. Porque se alguma cousa ha bem escripta das chronicas
• deste regno, e da sua mão, etc. • Decad. I , liv. II , cap. 1,
(i) Entre os primeiros descobridores mais de 50 eião criados
•lo Infante.
— XII —
pela maior parte erão criados do Infante , e educados
scientificamente debaixo de seus auspicios (1).
Outra circumstancia pela qual esta chronica é
tambem mui importante, consiste em nos restituir na
maior parte a obra d'Afíonso Cerveira hoje perdida ,
o qual primeiramente havia escripto a « Historia das
» conquistas dos Portuguezespela costa dAfrica (2),»
e nos supprir em parte o deploravel extravio dos ar-
chivos nauticos de Sagres.
Esta chronica, apenas tirada dos apontamentos ori-
ginaes do A., desapareceo logo de Portugal, como di
remos adiante.
O unico escriptor que della vio alguns fragmentos
foi João de Barros, mas esse mesmo já não encontrou

(1) Chronic., pag. 136, cap. 30, e pag. 173, cap. 33.
(2) Vide Chron., pag. 165 , cap. 32. « Barros já não encontrou
esta obra e só della teve noticia por Azurara, pois diz (Decad. 1,
liv. II, cap. 1) : « Do qual Aflbnso Cerveira nós achámos algumas
» cartas escriplas em Beni estando elle all i feilorizando por parte
» d'elRey D. Alfonso. »
Barbosa , na sua Bibliotheca Lusitana, parece indicar que este
Aflbnso Cerveira fôra autor de uma obra diversa da que Azurara
se servlra, pois diz : «Que por muitos annos (no tempo d'Af-
» fouso V), fira feitor em Benin, em cujo minlsterio, não
» somente attendeo pelas mercadorias que entravão e sahião d'a-
• quelles portos, mas individualmente escreveo a sua situação, e
» as proezas militares, etc. »
Ora tendo-se servido Azurara da obra de Cerveira, e tendo
coneluido a sua cbronica em 1448, eo reino de Benin tendo sido
descoberto só em 1486, por João Alfonso $Aveiro, no reinado de
D. João II, e só então Aflbnso Cerveira podendo ser nomeado
feitor, e por tanto 38 annos depois d'elle ter concluido a sua chro
nica, parece-nos que Barbosa se enganara, por não ter conhe
cido o livro que hoje publicámos; e que tendo lido com pouca
reflexão a passagem de Barros, que acima citámos, julgou que
Cerveira escrcvéVa a sua obra em Benin !
XIII
senão « cousas derramadas e per papeis rotos, e
» fora da ordem que elle Gomes Eannes levou nopro-
» cesso deste descobrimento (1), » e disto nos da a
prova mais evidente este historiador, pois contendo
esta chronica 97 capitulos, os fragmentos â'^zurara
só lhes fornecêrão materia para ik, como vemos na
decada Ia da sua Asia.
Já no tempo de Damiam de Goes não havia noticia
desta chronica (2). Mas tempos depois o celebre Fr.
Luiz de Souza vio em Valenca d'Âragão , em nosso
entender, este mesmo codice, pois fa llando da devisa
do Infante, Talant de bien faire, e dos troços de
carrascos com as bolotas diz , « que vira isto em um
» livro que o Infante mandara escrever do successo
» destes descobrimentos , em que usava com a mesma
» lettra diflerente corpo da empresa, mas muito aven-
» tajado em agudeza de significação e graça. Erão
» umas piramides, que forão obra dos reys antigos
» do Egypto , e sendo emprego, e trabalho sem ne-
» nhum fruito, avidas por huma das maravilhas do
» mundo ; e na verdade fica dizendo melhor com o
» animo, e obras do Infante, e rom a sua lettra.
» Este livro enviou o Infante a hum rey de Napoles ,
» e nós o vimos na cidade de Valença d'Aragão, entre
» algumas peças da recamara do duque de Calabria ,
» ultimo descendente por linha mascolina daquelles

(1) Vide Barros, Decad. I, liv. II, cap. 1.


(2) Este historiador queixando-se dos precedentes chronistas
nlo terem faltado das novas navegações , e sobre tudo de Azurara ,
accrescenta : « Pode ser que o flzesse na historia de Guiné que elle
- diz que compoz, de que não ha noticia, etc. » (Vide Goes,
Chron. do principe D. Jo3o, cap. 6, pag. 9.)
Vè-se pois por esta passagem que Damiam de Goes já não encon
trara nem os mesmos apontamentos de que Barros se servira.
XIV
» principes, que aly veio iicabar, com o titulo, e cargo
» fle vizo-rey (1). »
Comparando esta noticia com o codice não pôde
haver a menor duvida de que o livro que hoje publi
cámos seja o mesmo que Fr. Luiz de Souza vio em
Valença. A originalidade do Mss. , as piramides ,
com o mote ou deviza do Infante , emiim a particula
ridade de ter existido em Hespanha, pelo menos até ao
principio do seculo passado, e outras circumstancias ,
não consentem hesitação alguma a este respeito.
Pôde conjecturar-se que Fr. Luiz de Souza o não
examinara, e apenas vira a miniatura do principio , e
reconhecéra que tratava dos descobrimentos feitos
no tempo do Principe, tendo sido informado mui pro
vavelmente pela pessoa que lho mostrára de haver
este sido enviado a um rei de Napoles.
Parece-nos pois não distarmos muito da verdade se
dissermos que pôde muito bem ser que elRei D. Af-
fonso Vo fizesse presente desta chronic.i a seu tio
elRei D. Alfonso de Napoles cognominado o Magna
nimo (2), entre os annos de 1453 e 1457, tendo man
dado neste anno como embaixador áquelle Rei Mar
tini Mendes de Berredo (3), e por elle enviado este
magnifico monumento ; tanto mais que elRei de Na
poles professava grande amor pelas sciencias , sabia
perfeitamente a lingoa hespanhola , e se interessava
pelas viagens, e descobrimentos.

(1) ffistoria de S. Domingos, P. I, liv. Vl.cap. 18, pag. 332,


edição de 1623.
(2) Vejão-ee acerca deste sabio principe as noticias dadas por
Muratori , Annali, tomo IX, pag. 446, passim.; Burigni , Histoirc
de Sicile , tomo II , pag. 342.
(8) Vide o nosso Quadro elementar da» relações diplomaticas
de Portugal , tomo I , pag. 303.
XV
Como quer que seja , este codice existia ainda em
Hespanha nos principios do seculo passado (1). Ape-
zar das investigações que fizemos, não nos foi possi
vel saber quando passara para França, e desde quando
existe na Bibliotheca Real de Pariz. Há com tudo
bastantes motivos para crer que fôra muito depois da
revolução, e em epoca mui proxima aos nossos tem
pos. Apezar de termos encontrado naquelle immenso
tbesouro perto de 300 Mss. portuguezes, ou que di
zem respeito a Portugal (2) , não tivemos a fortuna de
descobrir este por se achar classificado entre os sup-
plementos francezes. O senhor Fernando Denis porem
teve a fortuna de o encontrar no decurso das suas
investigações naquella repartição, pelos principios do
anno de 1837 ; e tendo dado ao publico conhecimento
da existencia delle em uma obra curiosa que publicou
no fim de 1839 (3), chamou esta noticia desde logo a
attenção dos litteratos de Portugal , e desde logo tam
bem o Exmo Senhor Visconde da Carreira, Enviado
Extraordinario e Ministro Plenipotenciario de Portu
gal em França , altamente zeloso pela antiga gloria
do seu paiz , tratou de fazer á nação este valioso pre
sente, obtendo do governo franceza necessaria licença
para se poder publicar esta chronica ; e, temendo que o
transumpto que desta se tirasse fosse por qualquer
modo alterado, se deo ao improbo trabalho de a copiar

(1) Em uma das ultimas folhas em branco do fim do Mss. tem


a seguinte nota : « Esta crónica de Cuinea fné de la librería del
» senor don Juan Lucas Cortez (que Dios haya) , del consejo de sn
> Mag. en el de Castilla, etc., etc. » Anno de 1702.
(2) Cide a nossa Noticia dos Mss. da Bibliotheca R. de Pariz,
1827. eas Addições, 1841.
(3) Vide Chroniques chevaleretques de 1'Espagne et du Portugal.
Paris, 1839, tomo II , de pag. 43 a 53.
XVI —
pelo seu proprio punho, com escrupuloso empenho ,
e grande fidelidade.
As provas forão revistas e corregidas á vista do texto
original com muito cuidado e intelligencia pelo nosso
compatriota o senhor José Ignacio Roquete, habil
philologo , que além disso se occupou de formar um
Glossario das palavras e phrases antiquadas e obsoletas,
que se encontrão na chronica, e que sem este serião dc
todo inintelligi veis. Finalmente o senhor João Pedro
AMandrião se poupou a esforço algum para que este in
teressante monumento apparecesse digno do assumpto
de que trata , da nação a que pertence , e do Príncipe
immortal que nelle tem a melhor estatua , fazendo
tirar além disso um fac simile do retracto do illustre
Infante do que se acha no codice, retrato que tendo
sido tirado ainda em vida daquelle grande Principe,
é tambem o unico authentico que hoje possuimos (1).
Se pois até aos nossos dias o mais antigo escriptor
dos descobrimentos do Infante D. Henrique que se
conhecia era um estrangeiro, o celebre viajante vene
ziano Cadarnosto (1455), de que tanto se gabára um
dos sabios compatriotas delle (2) , daqui em diante

(1) O Principe esta vestido de luto, com a cabeça coberta coin


a grande gorra preta , e sem insignias, e com o cabello cortado ,
conforme o estylo daquelle tempo em laes occasiôes. Tendo esta
cbronica sido acabada em 1448, e o Infante D. Pedro tendo pere
cido na catastrophe da Alfarrobeira a 20 de Maio do anno se
guinte, estava por tanto o Principe de luto pela morte de seu
illustre irmão. O retrato foi sem duvida feito n'esta epoca, em
quanto se tirava a limpo a chronica , a qual se acabou de fazer
em 1453.
(2) Zurla (Dissert. dei viaggi de Ca-da-Mosto , pag. 16) diz
que nem em fíamuiio, no discurso preliminar á viagem de Vasco
da Gama, nem em nenhuma das collecçoes de viagens, nem
XVII
será um autor portuguez, e um dos chronistas mais in
struidos do seu tempo , o qual nos prova pelas suas
relações terminadas em 14-48 (1), seis ou sete annos
antes da vinda de Cadamosto a Portugal, que antes
que o viajante veneziano entrasse ao nosso serviço já
os Portugiiezes sós , sem auxilio algum estrangeiro ,
tinhão descoberto 450 legoas além do Cabo Bojador.
Tal é pois a importancia deste livro, e tamanho o
patriotico serviço do illustrado Portuguez que concor-
reo para a sua publicação. O codice original é em folio
pequeno, sumptuosamente executado, escripto em
pergaminho, e no melhor estado de conservação, con
tendo 319 paginas e 622 columnas. Quanto á parte
paleographica o leitor poderá julgar pelo Fac simile
da carta de Gomes Eannes que vai em principio. O A.
terminou disgraçadamente esta chronica em 1448,
tencionando compor um segundo volume dos desco
brimentos feitos ainda no tempo do Infante, isto é
até á sua morte occorrida em 1460.
Pelo que respeita finalmente á parte que tomámos
nesta empresa, declarámos francamente que as notas
que lhe juntámos, as considerámos mui mesquinhas,
fizemos só as que julgámos serem indispensaveis para a
intelligencia de algumas "passagens obscuras do texto,
persuadidos comtudo que esta chronica exigia uni
commentario critico feito d'espaço, pois cada periodo,
por assim nos explicarmos, exige um commento, ou
uma explicação; mas circumstancias relevantes, sendo
a principal a do tempo em que o publico estaria pri
vado do conhecimento desta obra, nos movêrão a de-

mesmo em nenhum escriptor portuguez se encontrava relação


alguma anterior ii de Cadamosto.
(1) Vide Chron. , cap. 96 , pag. 455.
— XVIII
sistir deste plano. Sentimos vivamente nào termos
podido por estes respeitos indicar todas as latitudes
dos pontos descobertos pelos nossos maritimos, nem
Iam pouco a synonymia geografica de muitos dos
mesmos pontos pela comparação enlre as antigas car
tas com as modernas ; todavia pareceo-nos ter ao menos
feito o mais difficil , isto é determinar os pontos geo
graficos indicados na chronica pelas antigas cartas, nas
quaes se encontra a mesma nomenclatura hydro-geo-
grafica dada pelos primeiros descobridores , que alias
não marcarão as latitudes , e que por isso mesmo tor-
não estas determinações mui difficeis , e algumas vezes
até impossiveis de se fixarem mesmo aproximativa-
mente , o que será muito mais facil depois do tra
balho que fizemos. Pareceo-nos em fim que deviamos
limitar-nos a chamar a attenção dos criticos, e dos
homens competentes sobre estes pontos , e sobre outras
particularidades historicas igualmente interessantes.
Oxalá que os mesmos defeitos do nosso trabalho pro
voquem da parte delles um commentario scientifico
digno deste precioso monumento.

Parir. , 30 de Março de 18*1.

V. s.
<tomt(.aasc a tavoa òos capitóllos beato (Crónico
ilc (Buincf.

Capitóllo primeiro. Que he o prollego no qual o


autor mostra qual sera sua entençom em esta obra. ... I
Cap°. IIo. Envocaçom do autor !)
Cap°. IIIo. Em que conta a geeraçom de que des
cende o iflante dom Henrlque 1d
Cap°. IVo. Que falla dos costumes do iflante dom
Henrique I!)
Cap°. Vo. No.qual falla somaryamente nas cousas
notavees que o iflante dom Henrlque fez por serviço de
Deos e honra do regno ?5
CAprroLio VIo. No qual o autor, que ordenou esta
estorva, falla alguúas cousas da sua entençom acerca das
vertudes do iflante dom Henrique 36
Cap°. VIIo. No qual se mostram cinquo razooès por
que o senhor iflante foe movidò de mandar buscar as ter
ras de Guynea \\
Cap°. VIIIo. Porque razom nom ousavam os navyos
passar a allem do cabo do Bojador 50
Cap°. IXo. Como Gil Eanes, natural de Lagos, foe
o primeiro que passou o cabo do Bojador, e como la tor
nou outra vez , c com elle Affonso Goncalvez Baldava.. . . .r>G
XX —
Pm
Cap°. Xo. Como Affonso Gllz Baldaya chegou ao ryo
do Ouro 00
Cap°. XIo. Das cousas que se fezerom nos annos
seguintes <it>
Cap°. XIIo. Como Antam Gllz trouxe os primeiros
cativos 70
Cap°. XIIIo. Como Nuno Tristam chegou onde era
Antam Goncalvez , e como o fez cavalleiro 77
Cap°. XI1II°. Como Antam Gllz, e despois Nuno Tris
tam, chegarom ante o Iffante com sua presa 87
Cap°. XVo. Como o iflante dom Henrique envyou sua
embaixada ao saneio Padre , e da reposta que ouve 89
Cap°. XVIo. Como Antam Gllz foe fazer o primeiro
resgate ./ 93
Cap°. XVIIo. Como Nuno Tristam foe aa ilha de
Gete , e dos Mouros que fllhou 99
Cap°. XVIIIo. Como Lançarote rcquereo licença ao
Iffante pera ir com seus navyos a Guinee 103
Capitollo XIX. Quaaes eram os capitaães das outras
caravellas, e da primeira presa que fezerom 107
Cap°. XX. Como forom aa ilha de Tiger, e dos Mouros
que filharom 114
Cap°. XXI. Como tornarom, Lançarote e os outros,
nos batees a Tider, e os Mouros que tomarom 120
Cap°. XXII. Das razoões que fallou Gll Eannes, e
como forom a Tider, e dos Mouros que tomarom 123
Cap°. XXIII. Como foram ao Cabo Branco, e das
cousas que hi fezerom 127
Capitollo XXIIII°. Como as caravellas chegarom a
Lagos, e das razoões que Lançarote disse ao Iffante 129
XXI
p»l
Capitollo XXVo. Como o autor aquy razoa \\uu pouco
sobre a piedade que ha daquellas gentes, e como foe feita
a partilha 132
Capitollo XXVI. Como o iflante dom Henrique fez
Lançarote cavalleiro . . 136
Capitollo XXVII». Como o IrTante mandou Gonçallo
de Sintra a Guinee, e per que guisa foe morto 140
Capitollo XXVIIIo. Das rezoõesque o autor pôe por
avisamento acerca da morte de Gonçallo de Sintra. ... 147
Capitollo XXIX. Como Antam Goncalvez, e Gomez
Pirez, e Diegaffonso, forom ao Ryo do Ouro 151
Capitollo XXX. Como Nuno Tristam foe a Tira , e
dos Mouros que alla tomou 153
Capitollo XXXI. Como Dinis Dyaz foe aa terra dos
negros, e dos cativos que trouxe 157
Capitollo XXXII. Como Antam Gonçalvez, e Gania
Homem, e Diego Affbnso, partirom pera o cabo Branco. .
Capitollo XXXIII. Como forom aa ilha de Ergim,
<* dos Mouros que alla filharom 167
Capitollo XXXII1I°. Como Johain Fernandez chegou
a as caravellas 171
Capitollo XXXV. Como Antam Gonçalvez foc fazer
o resgate 174
Capitollo XXXVI. Como tomarom os Mouros no
cabo Branco 180
Capitollo XXXVII. Como a caravella de Gonçallo
Pacheco , e outras duas caravellas , forom aa ilha de Ergim. 1 84
Capitollo XXXVIII». Como Mafaldo tomou Rvj.
Mouros. . 19)
Cap1. XXXIX. Como sairom outra vez fora, e das
cousas que fezerom 193
b
— XXII —
Hl
Cap». R. Como Alvaro Vaaz tomou os vij. Mouros. 19ti
Cap°. RI. Como tomarom os dez Mouros 200
Cap°. RJl. Como Alvaro Vaaz filhou os xxxv.
Mouros 202
Cap°. RUI. Como tomarom fora, e do Mouro que
filharom 208
Cap°. RI1H°. Como forooi aa terra dos negro». . 209
Ca°. RV. Como filharom terra per força 212
Ca°. RVI. Da pelleja que ouverom, e dos Mouros
que filharom 217
Ca°. RVII. Como acharom as tartarugas na Ilha. . 221
Ca°. RVIII. Como tornarom outra vez aa Ilha , e dos
xpaàos que morrerom 223
Ca°. R1X. Como Lançarote, e os outros de Lagos ,
requererom licença ao Iffante pera irem a Cuinee 228
Cap<>. L. Como o Iffante respondeo aos de Lagos , e
da armaçom que se fez sobre a dita Ilha 232
Ca°. LI. Como as caravellas partirom de Lagos, e
quaaes capitaães eram em ellas 234
Ca°. LU. De como se as caravellas aguardarom ao
cabo Branco, e como Lourenço Dyaz achou as caravellas
de Lixboa 239
Ca°. LIII. Como Lançarote teve seu conselho no
cabo Branco 244
Ca». LII1I°. Corno acharom as outras caravellas na
ilha das Garças , e do conselho que ouverom 248
Ca°. LV. Como sairom aquellas gentes na ilha de
Tider. 262
Ca°. LVI. Como tornarom outra vez a Tider, e dos
Mouros que filharom 259
XXIII —
Pag.
Cap*. LVH. Como forom a Tira. 265
Ca°. LVIII°. Das pallavras que disse Lançarote. . . 268
Cap°. LIX. Das pallavras que disse Gomez Piz , e
como forom a terra de Guinee 271
Ca°. LX. Como estas caravellas chegarem ao Rio
do Nillo, e dos Guineus que filharom 277
Ca°. LXI. Como o autor falla alguãs cousas acerca
do Ryo do Nillo. . 289
Ca°. LXII. Do poderyo do Nillo, segundo os astro-
nimos , e do seu crecimento 296
Ca°. LXHI. Como as caravellas partirom do Ryo, e
da vyagem que fezerom 302
CaP°. LXIII1°. Como Lançarote , e Alvaro de Freitas ,
filharom xij. Mouros 309
Cap°. LXV. Como Lançarote, e Alvaro dè Freitas, e
Vicente Diaz, tomarom lvij. Mouros 312
Ca°. LXVI. Como se ajuntarom de companhya Pe
dre Annes e Dinis Diaz 320
Ca. LXVn°. Como as *>. caravellas se toriiarom
pera o regno , e do que ante fezerom 321
Ca». LXVI1I°. Como a oaravella de Alvaro Gllz Da-
taide e a de Picanço, e a outra de Ta vil la, fezerom con
serva , e dos Canareos que filharom. 325
Ca°. LXrX. Como tomarom certos Canareos sobre
segurança 332
Ca°. LXX. Como Tristam , da Ilha foe contra o cabo
Branco 335
'Ca°. LXX1. Como os homcès de Pallenço lomarom
o» vj. Mouros 336
— XXIV —
Fae
Cap°. LXXII. Das cousas que acontecerom a Rodri-
gueaiies de Travaços, e a Dinis Diaz 342
Cap°. LXXIII. Como se descobrirom os da segunda
cellada, e como os Mouros forom vencidos 347
Cap°. LXXI1II°. Como Rodrigo Annes, e Dinis Diaz,
se tornarom pera o regno, e do que aconteceo em sua
viagem 350
Cap°. LXXV. Como a caravella de Joham Gllz Zarco
chegou a terra dos negros 352
Cap°. LXXVI. Como o autor começa de fallar na
maneira daquella terra 359
Cap°. LXXV1I. Das cousas que acontecerom a
Joham Frrz 364
Cap°. LXXVIU°. Das legoas que estas caravellas do
lftante forom a allem do cabo , e doutras cousas misticas. . 37 1
Ca°. LXXIX. Que falla da ilha de Canarea, e da sua
maneira de viver 373
Cap°. LXXX. Que falla da ilha de Gomeira 380
Cap°. LXXXI. Da ilha do Inferno, ou Tanarife. . . 382
Ca». LXXXII. Da ilha da Palma 384
Capitollo LXXXIII. Como foe povoada a ilha da
Madeira, e assy as outras ilhas que som em aquella parte. 385
Capitollo LXXXIIII°. Como o iffante dom Henrique
requereo a elRey os direitos de Canarea 392
Capitollo LXXXV°. Como tornou a caravella d'Al-
varo Dornellas, c dos Canareos que tomou 394
Capitollo LXXXVI. Como foe morto Nuno Tristam
em terra de Guinee, e quaaes morrerem com elle 3911
Capitollo LXXXVII. Como Alvaro Fernandez tor
nou outra vez aa terra dos negros, e das cousas que la fez. 40G
XXV

Capitollo .LXXXVII1°. Gomo as nove caravellas par-


tirom de Lagos , e dos Mouros que filharom . 412
Capitollo .LXXXIX% Como Gomez Pirez foe ao Ryo
do Ouro, e dos Mouros que tomou 419
Capitollo .LR. Dos Mouros que Gomez Pirez tomou
na outra aldea 426
Capitollo .LRI. Do que aconteceo a Joham Fernan
dez quando levava os Mouros 430
Capitollo .LRII. Como Gomez Pirez, e os outros
que com elle eram, filharom os outros Mouros 432
Capitollo .LRIII. Da caravella que foe a Meça, e
dos Mouros que trouve 436
Capitollo .LRIIII°. Como Vallarte foe a terra de
Cuinee, e per que maneira foe sua ficada 441
Capitollo .LRV°. Como Antam Goncalvez foe rece
ber a ilha de Lançarote em nome do Ifiante 451
Capitollo .LRVI°. Como o autor deelara quantas
almas forom trazidas a este regno depois do começo desta
conquista 454
Cap°. LRVII. Pio qual o autor poem final conelusom
da sua obra 458
3tqut »r comera a Crónica na qual eom
ocrintoo tobolloo fritos notaorre qur ar pas-
oarora na conquista br (Êuinrr. |Jrr manbabo
bo mug alto r mugto Ilonrabo principe r mugto
orrtuoso srnljor o iffantr bom íjrnriqur buqur
brtlieru remrjor br <£ooill)áã, rrgrbor r goorr-
nabor ba raoallarga ba orbrm br 31)0 Xpo. 21
qual Crónica for ajuntaba cm retr orllumr prr
manbabo bo mugto alto r mugto rirrllrntt
principe r mugto pobrroeo ernllor rltkg bom
2lffon9o o quinto br Portugal.

CAPITOLLO PRIMEIRO.

Que he o prollego no qual o autor mostra qual sera


entençom em esta obra.

Geralmente somos ensynados da esperienza,


que todo bem fazer quer agradecimento. E posto
que o bemfeitor o nom cobyce pollo seu, deveo
desejar pollo recebedor nom ficar viciosamente
doestado donde o dador cobrou virtuosa bon
i
dade. A tam special ajuntamento teem estes
dous autos, convem a saber, outorgar, e agra
decer, que o primeiro requere o segundo per
obrigaçom. E se elle nom parecesse, cousa im
possivel serya de o agradecimento seer feito no
mundo. E porem sam Tomas, que antre os
doutores theollogos foe o mais elaro insinador,
diz em o segundo livro da segunda parte da
Theollogya, em a centisima oitava questom, que
toda obra se torna naturalmente aa cousa de
que primeiramente procede; e porem pois que
o outorgador he causa principal do bem fazer
que outrem recebe, requeresse per natural or
denança , que o bem que fez, a elle se torne per
convinhavel agradecimento. E por este retorna-
inento podemos entender natural semelhança
antre as obras da natureza, c aquellas que fazem
ajuda moral, porque todas trazem retornança
perteecente, partindosse do seu começo e con
tinuado prosseguimento atees que a elles se
tornam em fvm. E em provaçom desto diz Sal-
lamom , em o livro Ecelesyasticis, que o sol
nace sobre a terra, e cercando todallas cousas
tornasse a seu lugar donde começou de parecer.
E os ryos procedem do mar, e nom cessam fazer
seu curso continuadamente a elle se tornam.
Semelhante cousa se fazem avida moral, porque
todo bem que de liberal voontade procede, faz
seu curso dereito atees que chega ao recebedor
convinhavel , e logo ordenadamente se torna ao
lugar onde a liberaleza outorgou seu nacimento,
e per tal retornamento se faz a maviosa lyança
antre os que bem fazem e os que recebem, da-
qual falla Tullyo dizendo, que nenhun serviço
he mais necessaryo que o agradecimento, pollo
qual o bem se torna a aquelle que o deu. E por
que o muyto alto e muyto excellente principe e
muyto poderoso senhor elRey dom Afíbnso o
quinto, que aa feitura deste livro, por graça de
Deos regnava em Portugal , cujo regnado Deos
por sua mercee acrecente em vida e vertudes,
viu e soube os grandes c muy notavees feitos
do senhor iffante dom Henrique duc de Viseu
e snor de Covilhaã , seu muyto preçado e amado
tvo, os quaes lhe parecerom assy especyaaes
antre muytos que alguus principes xpaãos
em este mundo fezerom, pareceolhe que serya
erro nom averem ante o conhecimento dos ho-
mees autorisada memorya, specialmente pellos
grandes serviços que o dicto suor sempre fazera
aos reis passados, e polla grande bem feitoria
que pollo seu aazo receberom seus naturaaes.
Forem me mandou que com toda deligencia me
ocupasse na presente obra, ca postoque grande
parte doutros feitos seus sejam semeados per as
cronicas dos reis, que em seu tempo forom em
Portugal, assy como o que elle fez quando el
Rey dom Joham seu padre foe tomar Cepta,
como quando per sy, acompanhado de seus
irmãaos, e doutros muytos e grandes snores,
foe descercar a dieta cidade , e depois regnando
pIRey dom Eduarte de glorvosa memorya, per
seu mandado foe sobre Tanger, onde se passarom
muytas e muy notavees cousas, de que em sua
estorva he feita mençam, porque todo o que se
segue foe feito per sua ordenança e mandado,
nom sem grandes despesas e trabalhos, a elle
propriamente pode seer atribuyda , ca sem em
bargo de se em todollos regnos fazerem geeraaes
cronicas dos rex delles, nom se leixa porem do
screver apartadamente os feitos dalguíis seus
vassallos , quando o grandor delles he assy no
tavel de que se com razom deve fazer apartada
scriptura ; assy como se fez em França do duc
Joham senhor de Lançam (1) , e em Castel Ia dos
feitos do Cide Ruy Dvaz (2), e ainda no nosso
rcgno dos do conde Nunalvarez Pereira , da qual
cousa os principes reaaes nom devem seer pouco
contentes, ca tanto mais a sua honra he alevan-
tadá, quanto ellesham senhoryo sobre mayores

(1) 0 duque de que falla o A. c provavelmente João de


tAinçon , um dos paladins de Carlos Magno, sobre os feitos do
qual existe um poema Mss. do xni° seculo na eollecção dos
manuscriptos da Biblioth. R. de Paris (n° 8 : 203), não podendo
referir-se ao duque d'Alençon João Io, visto que não consta que
dos seus feitos se escrevesse a historia.
(2) O A. refere-se aqui provavelmente ao antigo poema do Cid ,
do qual se espalháraõ diversas copias por toda a Espanha depois
do seculo XII (vid. Coleccion de Poeslas Castellanos anteriores al
siglo XC (Madrid, 1 770-90). Na epoca d'Azurara naõ havia uma
chronica dos feitos doCiW. A este respeito o leitor pode consultar
Herder no seu Cid, o qual traduzio 80 romances que delle se pu-
blicáraõ, e Southey na sua obra Chronielc of lhe t'id,from lhe
Spanish (Londres, 1808).
e mais excellentes persoas, ca nenhun principe
nom pode scer grande, se elle nom regra sobre
grandes, nem rico, se nom senhorea sobre
ricos; e por tanto dizia aquelle vertuoso romaão
Fabricio, que ante querya seer senhor dos que
possuyam ouro, que teer ouro; e porque os
dictos feitos se tractarom per muytas e desvai
radas persoas, desvairadamente som scriptos
em-muytas partes. £ consi irando elRey nosso
senhor que nom conviinha ao processo de hua
soo conquista seer contado per muytas maney-
ras, posto que todas concorram em hun effeito ;
porem me mandou sua senhorya que me traba
lhasse de as ajuntar e ordenar em este vellume ,
porque os leedores mais perfeitamente possam
aver dellas conhecimento. E porque tornemos
a bemfeitorya per agradeci mento a aquelle de
que a recebemos, como em começo deste capi
tollo comecey descrever, seguiremos per exem-
pro aquelle sancto profeta Mouses, oqual dese
jando de nom esqueecerem os beês que Deos
outorgou ao povoo dlsrael , per muytas vezes
mandava aos recebedores que os screvessem em
seus coraçoões, assy como em livro que pode
mostrar aos esguardadores o que teem scripto.
E veendo depois os que vierom como a lem
brança das injuryas he tenra, e o bem fazer per
esqueecimento asinha perece, poserom sinaaes
que fossem duravees, em que esguardando as
gentes, se podessem lembrar do bem que rece-
berom no tempo passado. E por semelhante he
scripto de Jesue, que lhe mandou Deos tomar,
xij. pedras muy grandes da meetade do ryo de
Jurdom , e que as levasse onde foe posto o ar-
rayal depois que todos passarom. E aquesto foe
feito por seer em lembrança do maravilhoso
millagre que fez Deos em presença do povo,
partindo as auguas em tal maneira que as de
cima crecerom por alto, nom se estendendo em
sua ladeza, e as de juso fezerom movimentos
alees que o ryo ficou em secura. E consiirando
ainda alguus como per taaes sinaaes- nom era
conhecido perfeitamente o que fora feito, se
gundo veemos que os esteos de Hercolles nom
dam a quantos os voem certo saber que os po-
serom em lembrança de seer conhecido que per
elle a Espanha foe conquistada, tomarom cos
tume de screver o que doutra guisa comprida-
mente se nom podya lembrar. Em provaçom
desto se conta em o livro da rainha Ester queel-
Rey Assueyro trazia scriptos os notavees serviços
que lhe eram feitos, e em certos tempos os fazia
leer por gallardoar os que os fezerom. Seme
lhantemente elRey dom Ramiro, desejando de
nom scorregar da memorya dos Espanhooes a
grande ajuda que lhe fez o bemaventurado
apostollo Santyago, quando os livrou do pode-
ryodos mouros, e prometeo de seer nosso aju-
dador em todallas batalhas que com elles ouves-
semos; fez screver a estorva deste acontecimento
em os privillegios que outorgou dos vodos, os
qiiaaes agora recebe a igreja de Santiago, de toda
a Espanha em que entonce vivyam xpaãos (1).
Este cuidado que os antiigos ouveromdeve seer
costumado em o tempo dagora, e quanto a nossa
uiemorya he mais fraca que a sua foe, e menos
lembrada do bem que recebe , tanto poeremos
cautella mayor por trazer sempre a nossa pre
sença os benefíicios que doutrem ouvermos ;
os quaes nom podemos esqueecer sem grande
doesto. E por que nós em os seguiintes feitos
recebemos de Deos grande benefficio, per tres
maneiras : a primeira por muytas almas que
se salvarom, e aynda salvarôm, da linhagem
daquestes que ja teemos em poder : a segunda
por grandes benefficios que delles geeralmente
recebemos em nossa serventya : a terceira pella
grande honra que o nosso regno geeralmente
recebe em muytas partes, sojugando tamanho
poder de inimigos tam longe de nossa terra :
porem o poeremos em lembrança por louvor de
Deos, e notavel memorya daquel síiorque ja em
cima nomeamos, e por honra de muytos boos
criados seus, e outras boas persoas do nosso
regno , que em os dictos feitos vertuosamente tra
balharom . E por que a dieta cronica special mente

(1) 0 A. refere-se ao celebre diploma do rei D. Ramiro sobre


a batalha de Clavijo, posto que o naõ cite, e igualmente á
Chronica de Sampiro. Sobre a Chronica de Sampiro e sobre o
diploma de Ramiro o leitor pode consultar Masdeu , Historia
critica de Espana, tom. 12, p. 214 e seg., e tom. 13, 390, e
tom. 16. — Voto de S. Thiago, suppl. I.
— 8 —
he enti tu llada a este senhor, queremos logo co
meçar em seus costumes e vertudes, e ainda
nas feiçooês corporaaes, por seguirmos o estillo
dalguns verdadeiros autores , de que ja vimos
alguas cronicas.

>
CAPITOLLO IIo.

Envocaçom do autor.

Oo tu principe pouco menos que devinal !


Eu rogo a as tuas sagradas vertudes, que ellas
soportem com toda paciencia o ffallecimento de
minha ousada pena, querendo tentar hua tam
alta materya como he a deelaraçom de tuas
vertuosas obras , dignas de tanta glorya, cuja
eternal duraçom, sob proveitosa fim, alevan-
tará a tua fama com grande honra de tua me-
morya, nom sem proveito do insino de todollos
principes que seguirem o teu exempro; ca por
certo nom sem causa , eu demando perdom a as
tuas vertudes, conhecendo minha pouca sofc-
ciencia para abarcar tamanha soma, quando
com mais justa rezom spero seer reprendido
por minguar do que devo, que prasmado por
fallar sobejo. Tua glorya, teus louvores, tua
fama, enchem assy as minhas orelhas, e ocu
pam minha vista, que nom sey a qual parte
acuda primeiro. Ouço as prezes das almas ino
centes daquel las barbaras uaçooês, em numero
casy infyndo, cuja antiga jeeiaçom desdo co
— 10 —

meço do mundo nunca vyo luz devinal , e pollo


teu engenho, pollas tuas despesas infvndas,
pellos teus grandes trabalhos, som trazidas ao
verdadeiro caminho da salvaçom , as quaaes la
vadas na augua do baptismo , e hungidas com o
santo olio, soltas desta miseravel casa, conhe
cem quantas trcevas jazem sob assemelhançada
elaridade dos dyas de seus antecessores. Mas
nom direy com qual piedade, contemplando na
devina potencia, continuadamente requerem o
gallardom de teus grandes merecimentos , a
qual cousa se nom pode reprovar per aquelle
que bem escoldrinhar as sentenças de sam To
mas, e de sam Grcgoryo, sobre o conhecimento
que ham as almas daquelles, que lhe em
este mundo aproveitarom ou aproveitam. Vejo
aquelles Garamantes , e aquelles Tiopios , que
vivem sob a sombra do monte Caucaso; negros
em collor porque jazem de sob o oposito do
auge do sol, o qual scendo na cabeça de Capri-
cornyo, e a elles em estranha quentura, se
gundo se mostra pello movimento do centro de
seu excentrico, ou per outra maneira, porque
vezinham com a cinta queimada ; e os Iridyos
mayores e menores (1), todos iguaaes em collor,
que me requerem que screva tantas dadivas de
dinheiros e de roupas, passagees de navyos,
gasalhado de persoa quanto de tv receberom

(I) Garamantes , Eltopios , e lmlj-os. He de saber que som tres


povoos, segundo diz Isidro no ix° livro, scilicet, os Asperos,
— 11 —

aquelles que por visitaçom do apostollo, ou


cobiiçosos de veer a fremosura do mundo, che-
garom a as fiins da nossa Espanha. Espantam-
rue aquelles vezinhos do Nyllo, cuja grande
multidom tem ocupados os termos daquella
velha e antiga cidade de Thebas (1), porque os
vejo vestidos da tua devysa , e as suas carnes,
que nunca conhecerom vestidura, trazem agora
roupas de desvayradas collores, e as gargantas

Garamantes, e Indyos. Os Asperos som ocidentaaes ; os Gara-


rnantes em meyo; Indyos no oriente. Contou com os Garamantes
osTregoditas, porque som comarcaaos. Emeroe, que he senhora
das gentes, colloeou Alfargano antre os Piubienses , e os Indyos.
Garamantes se dizem de Garama, que he cabeça de seu regno,
o qual castello esta antre Ynenense e Thiopya, onde esta hfia
fonte que arrefeece com a queentura do dya , e aquece com a
friura da noite. Thiopya he sobre o Egipto e sobre Africa, da
parte meridyonal ; do oriente se estende contra o ocidente ataa
o mar Ethiopico. E porque muytas gentes destas trinas som
xpaaõs , e querendo veer mundo, chegaram a estas partes dEspa
nha , omlo receberam grandes mercees do iffante, pollo qual o
autor põem assy aquellas pallavras em seu capitolio.
Caucaso. Este monte se diz assy a Candore , o qual he de lndya
ataa Tauro em longura per desvairadas lengoas de gentes , e po
rem desvairadamente se nomea. Alguús dizem que o monte
Tauro e Caucaso todo he huú , mas esto reprova Orosyo.
(I) Thebas. He de saber que som duas cidades de Thebas,
scilicet , húa no Egipto, e outra em Grecia. A de Grecia foe
aquella que no tempo de Vhario Nicrao (*) , chamarom Jersem,
segundo diz Marco Paulo , donde forom os reis Thebeos que
regnarom no Egipto os C1R. annos. E este foe huu dos lugares
que forom dados a Jacob , per contemplaçom de seu filho Josep ,
(*) E«te nome está errado. Deve lêr-se Nechao de Ns^scã, segundo
Herodoto, liv. II, c. i58, i5a, e Joncpho , Antiguidades judaicas ,
p. 335, 336
— 12 —

das suas molheres grarnidas com joyas de ricos


lavores douro e de prata. E que fez esto se nom
largueza de tuas despesas , e o trabalho de teus
servidores, movidos per teu vertuoso engenho,
pello qual tresmudaste nas fiins do ouriente as
cousas criadas e feitas no ocidente. Nom forom
os requerimentos e vozes daquestes de tanta
eficacya, pero muytos fossem, quantos forom
os elamores da grandeza dos Allemaaês, e da
gentilleza de França, e da fortelleza de Ingla
terra, e da sabedorya de Itallya, acompanhados
doutros de diversas naçooês e linguagees, toda
gente estremada em linhagem e vertude. Oo tu,
dizem estes, que te metes no laberinto (i) de
tanta glorya ; por que te estás ocupando com as
naçooes ouryentaaes ? Falla comnosco, que cor
remos as terras , e cercamos a redondeza do
mundo, e experimentamos as cortes dos prin
cipes, e casas dos grandes senhores : sabe que

quando per necessydade da fome, se foe com seos xj. filhos pera
o Egipto , como he scripto no Genesis. E diz saneto Isidro , no
Xv° livro, que Cadmo edificou Thebas do Egipto, o qual passado
em Grecia , fundou a outra Thebas dos Gregos , na provincia de
Acaya , aqual agora se chama terra do principe dos Amoreos.
(1) Labarinio. Labarinto, tanto quer dizer como cousa em que
homem entrando nom pode sayr. E porem diz Ouvydyo Meta-
morfosseeos , que Pasifle , molher de Minos rey de Creta, concebeo
o Minotauro , que era mco homem e meo boy. 0 qual foe ençar-
raado per Dedallo no labarinto , no qual quem entrava nom
sabya sayr e quem era de fora nom sabya entrar. Deste labarinto
falla Seneca na Iragedyn , onde poem a causa de Ypollito com
Fedra (A).
— 13 —
nom acharás In outro que possas iguallar aa
excellencia da fama daqueste, se tu julgas per
dereito peso todo o que perteece a grande prin
cipe, entanto que com rezom lhe podes chamar
templo de todallas vertudes ! Oo como acho
queixosos os do nosso regno, porque anteponho
a elles outra nehua geeraçom ! Aquv acho gran
des senhores, aquy prellados, aquv fidalgos,
aquv donas viuvas , cavalleiros relegiosos ,
meestres da santa fé, com muytos graduados
em todallas sciencias, novos escol lares, gran
des aazes de scudeyros e dhomeês de nobre
criaçom, offeciaaes mecanicos, com outra in
funda multidom de povoo. lliuis me mostravam
villase castellos, outros lugares e terras chaãs,
outros comendas de grossas rendas , outros
grandes e abastados regueengos, outros quin-
taãs, e herdades, e foros, outros cartas de
teenças e de casamentos, outros ouro, e prata,
e dinheiros, e panos, outros saude nos corpos,
e escaramento de perigoos, que pollo teu aazo
cobrarom, outros servos e servas infundos,
outros me contam de moesteyros e igrejas, que
repairaste e fezeste de novo, com grandes e
ricos ornamentos, que ofereceras em muytos
lugares pyadosos, outros me mostravam os
sinaaes dos ferros que trazyam no cativeyro de
que os tiraste. Que farey a pobrees mendigos
que vejo ante my carregados desmollas? E a
grande multidom de frades de todallas ordeês,
que me mostram as roupas com que cobriste
— 14 —

suas carnes ? E a avondança dos matitiimentos


com que repairaste suas necessydades ? Ja qui
sera fazer fim deste capitollo, se nom vira viir a
multidom dos navyos com as vellas altas, car
regados das islhas que tu povoraste no grande
marOceyano, braadando que os aguardasse, ca
me queryam mostrar como uom devyam ficar
fora do registo daquestes. E mostraromme suas
grandes abogoaryas , e os seus valles todos
cheos dacucar, de que espargiam muyto pello
mundo. E trazyam por testemunho de sua
grande abastança, todollos moradores do regno
do Algarve. Pregunta, disserom elles, quando
souberom estas gentes que cousa era avondança
de pam, senom depois que o nosso principe
povohou as ilhas desertas, em que nom avya
outra povoraçom senom allymaryas monteses !
E mostraromme as grandes filhas das colmeas,
cheas denxames, de que trazem grandes car
regas de mel e de cera para o nosso regno; e
as grandes alturas das casas, que se vaão ao
ceeo, que se fezerom c fazem com a madeira
daquel las partes (1). Pera que direy tantas cou
sas, quantas me forom oferecidas em teu louvor,
as quaaes sem prejuizo da verdade podya serc-

(1) Esta interessante particularidade indica que a madeira


transportada a Portugal das ilhas novamente descobertas pelo
infante D. Uenrique, principalmente da ilha da Madeira, fòra em
lanla quantidade, que a sua abundancia fizera mudar o sjstema
de constriicçaõ dos predios urbanos augmenlando os andares.

--
— 15 —
ver? Outras vozes muyto contrairas daquestas
que ataa quy razoey, soarom nas minhas ore
lhas, das quaaes eu ouvera grande pyedade, se
as nom achara fora de nossa ley; ca me falla-
rom infiindas almas de Mouros, daaquem e
daalem, muytos que forom mortos per tua
lança, pella guerra muy cruel, que lhe sempre
fezeste ! Outros se me oferecerem, carregados
de ferros, com pjadosa contenença, que forom
cativos per teos navyos , com grande força dos
corpos de teus vassallos; mas tanto notey eu
daquestes, que se nom queixavam tanto da sua
derradeira fortuna, como da primeira, e esto
he, daquelle enganoso erro, em que os leixou
aquelle falso cismatico Maflàmede. E assy con-
cludo meu começo , que se as tuas grandes
vertudes, com a excellencia de teus nobres e
grandes feitos, soportarem algua mingua pella
inorancia de minha sciencia, e rudeza de meu
engenho, que eu peço a a tua magnanima gran
deza, que com cara pyadosa, passes per minha
culpa.

elevando assim as casas, substituindo-o por esta sorte ao Romano


e Arabe que até entao provavelmente se usára. Esta probabilidade
adquire maior peso á vista do systema d'illuminaçaõ de Lisboa
ordenado por El Rei D. Fernando, como consta de um docu
mento do cartono da camara de Lisboa.
Esta particularidade referida pelo A. é pois mui curiosa para a
historia da nossa architectura.
— 16 —

CAPITOLLO IIIo.

Em que conta a geeraçom de que descende


o iflante dom Henrique..

Duas cousas me movem fallar em este pre


sente capitollo da geeraçom deste nobre prin
cipe. Primeiramente, porque a longa velhice
dos tempos, afasta da memorya o proprio co
nhecimento das cousas passadas, as quaaes se
as a scriptura nom representasse ante nossos
olhos, cego serya a cerca del lo de todo nosso
saber. E pois por representaçom do presente
aos que ham de viir, me asseento a escrever,
nom devo passar ca II ando a nobreza de tam
alta geeraçom, pois este livro per sy ha de
possuyr apartado vellume, ca pode acontecer
que os que leerem per este, nom saberam parte
dos outros. Mas esto porem sera breve por me
nom afastar longe de meu proposito. E segun
damente por que nom corramos de todo com
tanta vertude a huu proprio logar, mas que
demos algua parte aos primeiros antecessores,
porque certo he que a nobreza da linhagem ,
bem esguardada per alguu seu descendente,
— 17 -
muytas vezes por escusar vergonha, ou por
algua maneira cobrar excellencya, costrange a
vertude , e alevanta o coraçom para sofrer
mayores trabalhos. Onde avees de saber que
elRey dom Joham, que foe o decimo rey em
Portugal , aquelle que veenceo a grande ba
talha da Aljubarrota, e fylhou a muy nobre
cidade de Cepta, em terra d Africa, foe casado
com dona Phillipa, filha do duc dAllencastro,
e irmaã delRey dom Henrique de Ingraterra (1),
daqual ouve seis filhos liidimos, scilicet, cinquo
iflàntes, e hua ifíante, que depois foe duquesa
de Bregonha (2). Leixo alguus, que em sua nova
idade fezerom sua fym. Dos quaaes filhos este
foe o terceiro. E assy que antre as avoengas do
padre e da madre, a geeraçom daqueste cinge
e abraça o mais nobre e mais alto sangue da

(1) Este rei é Henrique IV, filho de Jofio duque de Lancastre.


Por este ramo era o nosso infante neto de Duarte III , e ao mesmo
I empo descendente dos ultimos reis da raça Capetiana , e ligado
igualmente ii familia dos Valois.
(2) Esta princeza era a infanta dona Filippa que se desposou
com o duque de Borgonha Filippe o Bom em 10 de Janeiro de 1 4?9.
Era dotada não só das qualidades mais eminentes, mas tambem
de rara belleza. Teve grande influencia nos negocios. O duque
seu marido instituio a celebre ordem do Tozão d'Oiro para cele
brar este casamento. Esta princeza morreo em Dijon a 1 7 de
Dezembro de 1472. Desta alliança houve larga descendencia.
Foi igualmente amada de seus irmãos, principalmente d'elRei
D. Duarte, o qual no Leal Conselheiro (cap. 44 da Amizade) falla
da grande saudade que tem della. As festas que se fizerão cm
Bruges á sua chegada forão as mais sumptuosas dn Idaile Media.
1
— 18 —

christandade. E foe essemeesmo irmaaõ delRev


dom Eduarte, e tyo d'elRey dom Affonso, rex
que depois da morte delRey dom Joham regna-
rom em Portugal. E esto como disse toco sob
breviedade, porque se o mais largo deelarar
quisesse, aballarya tantas materyas, que por
qualquer dellas que quisesse seguyr o necessa-
ryo, farya tamanha deteença, que tarde tor-
narva ao primeiro começo.
— —

CAPITOLLO IVo.

Que falla dos costumes do iflante dom Henryque.

Pareceme que eu screverya sobejo , se per


extenso quisesse recontar todallas particullari-
dades que alguus estoryaães costumarom des
crever daquelles principes , a que enderençavam
suas estoryas. E esto he que screvendo seus
feitos, cobiiçosos de engrandecer suas vertudes,
faziam começo nos autos de sua primeira ydade.
E pero seja de presumyr que autores de tanta
suficiencia nom passassem algíia cousa sem
certa fym; eu pollo. presente me afasto de tal
scriptura, conhecendo que em este logar serya
trabalho de pouca necessydade. Nem ainda das
leiçooês corporaaes non entendo fazer gram
processo, porque muytos ouverom em este
mundo bem proporcionadas feiçooês, que por
seus desonestos vicios cobrarom grande doesto
pera sua fama, e que al nom seja, abaste o que
o phillosofo diz sobre este passo, scilicet, que
a fremosura corporal nom he perfeito bem.
E assy que tornando a meu proposito, digo
que este nobre principe ouve a estatura do
— 20 —
corpo em boa grandeza , e foe homem de car-
nadura grossa , e de largos e fortes membros ;
a cabelladura avya algun tanto alevantada; a
cor de natureza branca, mais polla continua-
çom do trabalho , per tempo tornou doutra
forma. Sua presença, do primeyro esguardo,
aos nom usados era temerosa ; arrevatado em
sanha, empero poucas vezes, com a qual avya
muy esquivo sembrante. Fortelleza de cora-
çom, e agudeza dengenho, forom em elle em
muy excel lente graao. Sem comparaçom foe
cobiiçoso dacabar grandes e altos feitos. Luxu-
rya nem avareza nunca em seu peito ouverom
repouso, porque assy foe temperado no pri
meyro auto , que toda sua vida passou em
limpa castidade, e assy que virgem o recebeo a
terra. E que posso dizer da sua grandeza, se-
nom que foe extrema antre todollos principes
do mundo! Este foe o principe sem coroa (1),
segundo meu cuidar, que mais c melhor gente
teve de sua criaçom. Sua casa foe huu geeral
acolhimento de todollos boõs do regno, e muy to
mais dos estrangeiros, cuja grande fama fazia

(1) Esta particularidade d'Azurara, autor contemporaneo,


mostra o erro em que cahio Fr. Luiz de Souza na sua Historia de
S. Domingos, liv. VI°, fol. 331 , dizendo que o infante fòra eleito
rei de Chypre, e que Jozé Soares da Sylva repetio nas suas
Memorias d'elRei D. Jo5o 1°; ainda quando as palavras d'Azurara
não bastassem para demonstrá-lo, as datas e os factos historicos
provarão o engano daquelles AA. Com effeito o reino de Chypre
que Ricardo rei d'Inglaterra tomou aos Gregos em 1191 foi logo
— 21 —
acrecentar muvto em suas despesas; ca comu
nal mente se achavam em sua presença desvai
radas nacooês de gentes tam afastadas de nosso
huso, que casy todos o avyam por maravilha;
dante o qual nunca nhuu soube partyr sem
proveitosa bemfeiturya. Todos seus dyas pas
sou em grandissimo trabalho, ca por certo antre
toda llas naçooês dos homeês, nom se pode fal-
lar dalguu que mais grandemente senhoreasse
sy meesmo. Dovidoso serya de contar quantos
pares de noutes, seus olhos nom conhecerom
sono, e o corpo assy austinado que casy pare-
eva que reformava outra natureza. Tanta era
a continuaçom de seu trabalho, e per tam as
pera maneira , que assy como os puetas finge-
rom que Atallas, o gigante, sostiinha os ceeos
com os ombros (1), pella grande sabedorya que
em elle avva a cerca dos movymentos dos cor
pos cellestriaaes, assy as gentes do nosso regno
trazyam em vocabullo, que os grandes traba-

cedido por este prineipe a Gui de Lusignan, cuja posteridade


reinou n'aquelle reino até 1487 , e o nosso Infante tendo nascido
em 1394, e morrendo em 1460, não podia ter sido eleito rei
de um reino regido por uma linha real legitima. Alem disso,
na lista dos reis latinos ou francos de Chypre não se encontra o
nome do senhor D. Henrique.
E' de presumir que Fr. Luiz de Souza confundira Henrique,
principe de Galilea, filho de Jacques Io, rei de Chypre, com o
nosso infante D. Henrique.
(1) Athllas foy rei da terra do ocidente de Europa, e da do
ocidente de Affrica , irmaão de Promotheo, aquelle gram sabedor
e filosofo de japetho , o gigante. E este Athllas foy avido por o
— 22 —
lhos deste principe, quebrantavam as altezas
dos montes. Que direy senom que as cousas,
que aos homeês parecyam empossivees, a sua
continuada força as fazia parecer ligeiras. Foe
homem de grande conselho e autoridade , avi
sado e de boa memorya , mais em alguãs cousas
vagaroso, ja seja que fosse pollo senhoryo que
a freima avya em sua compreissom , ou por
enliçom de sua voõtade, movida a algíia certa
fim, aos homeês nom conhecida. Avya o geesto
assessegado, e a pal lavra mansa ; constante nas
aversidades , e nas prosporidades omildoso.
Certo som que nunca alguu principe teve Vas
sallo de semelhante estado, nem ainda menos
com grande parte, que o ouvesse em mayor

mayor estrollo que no mundo avia em seu tempo. E tanto dava


pello saber das estrellas , verdadeyros juizos nas cousas que
aviam de viir , que os homeès disserom em seu tempo , que
sostiinha o ceeo nos ombros. E segundo diz Lucas., que este foy
o primeyro que achou a arte da pintura na cldade de Corinthyo,
que he em Grecia. (A.) (*)
(') O A. oonfundio aqui todas as tradições mythologieas e historicas refe
ridas pelos AA. gregos e latinos acerca d'Atlas. Azurara sem citar Platão nem
Diodoro de Sicilia refere comtudo que Atlas fira rei do Occidente da Europa ,
e do Occidente de Africa , mas esquecec—lhe dizer que elle reinAra sobre os
Atlantes, conforme Herodoto, e confunde Prometheo com Japeto de quem
alias era filho, segundo Apollodoro, Diodoro de Sicilia. e todos os antigos
escriplores. Diodoro diz com effeito que Atlas ensinara a astronomia a Her
cules, rnas o nosso A. confundio os tres principes deste nome e engatiou-se
citando Lucas de Tuy (addicionador daChronica d'lsidorodeSevilha), dizendo
que Atlas fóra o primeiro que achou a arte da pintura na cidade de Corintho.
A origem desta arte era desconhecida dos antigos. E' verdade que Sicyone
e Corintho se disputarão a gloria desta invenção, mas o inventor, segundo os
antigos AA., foi Cleantkes de Corintho e não Atlas y como diz Azurara. Se
gundo nutro) esta invenção pertence a Philocles Egypciano.
— 23 —
obediencia e reverencia , do que este ouve aos
reis que em seu tempo forom em Portugal , spe-
cialmente a elRei dom Affonso, no começo de
seu novo regimento, como em sua cronica mais
largamente podees saber. Nunca em elle foe
conhecido hodeo, nem maa voõtade contra algua
persoa, por grave erro que lhe fezesse, e tanta
era sua begninidade a cerca desto, que o repro
chavam os entendidos que fallecia na justica
distributiva, ca em toda llas outras partes se
avya igualmente. E esto tiinham assy, por que
a alguns seus criados, que o leixarom no cerco
fle Tanger, que foe o mais periigoso caso em que
ante nem despois esteve, sem algua outra pu-
niçom, nom soomente os reconceliou a sy, mas
ainda lhes fez avantajados acrecentamentos so
bre alguus outros que o bem serviram, os
quaaes, quanto ao juizo doshomeês, eram longe
de seu merecimento. E este soo fallecimento
achey que vos delle screver. E porque Tullyo
manda que o autor possa razoar sobre seu
scripto o que lhe justamente parecer, no sexto
capitóllo desta obra farey sobre ello algua de-
elaraçom, por ficar verdadeiro autor. Muyto
pequena parte de sua ydade bebeo vinho, e esto
foe logo no começo de sua criaçom, mas despois
em toda sua vida foe delle privado. Grande amor
ouve sempre aa cousa publica destes regnos,
despoendo grande parte de seu trabalho por
seu boo avyamento, e muyto folgava de provar
novas speriencias por proveito de todos, ainda
— 24 —
que fosse com sua grande despesa, e assy se de
leitava muyto no trabalho das armas, special-
mente contra os inimigos da santa fe, e assy
desejava paz com todolos xpaãos. Geeralmentc
era amado de todos , porque caasy a todos
aproveitava, e a nhuu empecia. Suas repostas
sempre eram brandas, com as quaaes muyto
honrava a condiçom de cada hua persoa , sem
apouquentamento de seu estado. Pallavra torpe
nem desonesta , nunca foe ouvida de sua boca.
Era muyto obediente a todolos mandados da
seta Igreja , e com grande devaçom ouvya to-
dos seus officios , e nom com menos solempni-
dade e cirimonya se tratavam em sua capeella,
do que se podyam fazer antre alguu collegio
dalgua catedral Igreja. E assy avya em grande
reverença Iodal las cousas sagradas, e os me-
nistros dellas trautava com honra, e aprovei
tava com bemfeiturya. Caasy ameetade do anuo
passava com jejuus, e as maãos dos pobres
nunca partyam vazias dante a sua presença.
Certamente que catholico nem rellegyoso prin
cipe eu nom saberey achar outro, que a aqueste
possa fazer igual. Seu coraçom nunca soube que
era medo senom de pecar, e porque das ver-
tuosas obras e honestos costumes nacem os
grandes e altos feitos, em este seguinte capitollo
apanharey toda lt as cousas notavees, que fez por
serviço de Deos e honra do regno.
CAPITOLLO Vo.

No qual falla somaryamente das cousas notavees que o ifiante


dom Henrique fez por serviço de Deos e honra do regno.

Em qual parte asseentarey milhor o começo


deste capitollo, que naquella muy honrada con
quista que se fez sobre a grande cidade de Cepta,
de cuja famosa vitorya os ceeos sentirom glorya
e a terra beneflicio? Glorya me parece assaz
para o sacro collegyo das cellestiaaes vertudes,
tanto sacrefíicio divino com tam sagradas ceri-
monyas, quantas ataa oje som feitas em aquella
cidade em louvor de Xpo nosso senhor, e per
sua graça para sempre seram. Pois do proveito
que a terra recebeo , o levante e o poente som
bem elara testemunha, quando os seus mora
dores podem comudar suas cousas , sem grande
perigoo de suas fazendas, ca por certo nom se
pode negar que a cidade de Cepta nom seja chave
de todo o mar Medvoterreno (1). Na qual con
quista este principe foc capitam de muy grande
e muy poderosa frota, ecomo vallentecavalleiro

(1) Vid. a lntroducção.


— '26 —
trabalhou por sua pessoa no dya quefoe filhada
aos Mouros , sob cuja capitanya era o conde de
Barcellos filho bastardo delRey, e dom Fernando
senhor de Bragança, seu sobrinho, e Gonçalo
Vaasquez Coutinho, que era huu grande e po
deroso fidalgo, e assy outros muytos senhores e
fidalgos com todas suas gentes, e outros que se
na dita frota ajuntarom de tres comarcas , sci-
licet, da Beira e de Trallosmontes , e dantre
Doyro e Minho. E o primeiro capitam real que
filhou terra acerca dos muros de Cepta, foe este
de quescrevo, ea sua bandeira quadrada a pri
meira que entrou pellas portas da cidade, de
cuja soombra elle nom era muy afastado. E os
seus golpes assiinados forom em aquelle dya
antre todollos outros, ca per espaço de cinquo
horas pellejou contynuamentc , e nem a calma
que era muy grande, nem a força do trabalho,
nom o poderam costranger que se apartasse
pera receber folga; no qual spaço, elle, com
quatro que o acompanhavam, ca os outros que
oavvam de seguir, huus eram spargydos pel la
grandeza da cidade, outros nom podyam ally
chegar por razom de hua porta, perque o iffante
com aquelles quatro, passara de volta com os
Mouros , aqual porta era guardada doutros
Mouros que estavam em ciima dos muros,
acerca de duas horas teveram hua outra porta ,
que he aalem daquella que esta antre am-
ballas villas, em hua revolta do muro sob a
soombra do Castello, ondesse agora chama a
— 27 —
porta de Fernandafonso, seendo ally retraydos
a mayor parte dos Mouros, que leixarom a ou
tra villa da parte da almina, per onde a cidade
fora entrada, e em fim a despeito daquella
grande mul tidom dos inimigos, fccharom aquella
porta; mas se o seu trabalho fora oucioso ou
nom bem se podya conhecer pellas queedas dos
mortos, que jazyam tendidos ao longo daquelle
chaão. E em esta cidade foe o iffante feito caval-
leyro, muy honradamente, per maão de seu
padre, no dya da consagraçom da igreja cathe-
dral, em companhia de seus irmaãos. E foe o
filha meu to della cidade hua quinta feira xxj.
dyas do mes dagosto, anno de Xpo de mil e
ny° xv (1). E logo da tornada que elRey dom
Joham fez para seus regnos, em huu lugar do
Algarve, constituyo a este honrado principe em
dignidade de duque, com seu senhoryo, e des-
pois a cabo de tres annos, veeo sobre a dieta
cidade grande poderyo de Mouros, os quaaes
ao despois forom contados pellos alfaqueques
em numero de cem mil, ca eram ally as gentes
delRey de Feez e delRey de Graada, e delRey de
Tunez, e delRey de Marrocos, e delRey de Bu-
gya, com muy tos engenhos e artelharyas, com
as quaaes pensavam filhar a dicta cydade, cer—
candoa per mar e per terra , em cujo socorro
este iffante, com dous irmaãos seus, scilicet,

(1) 21 d'Agosto de 1415.


— 28 —
iffante dom Joham, e o conde de Bareellos, que
despois foe duque de Bragança , com outros
muytos senhores e fidalgos, e com grande ajun
tamento de frota, foe muy deligente, e despois
de feita grande mortiindade nos Mouros, e a
cidade livre e repairada, se tornou muy honra
damente pera Portugal , nom muy contente po
rem da vitorya , porque se lhe nom ofereceo o
aazo para filhar a villa de Gibaltar, como tiinha
posto em hordenança (1), e a principal causa
de seu estorvo foe a destemperança do ynverno,
em cujo começo entam estavam , ca como quer
que o mar comunalmente per todas suas partes,
em aquelles tempos, seja periigoso, ally o he
muy to mais , por aazo das grandes correntes
que ally ha. Fez outrossy muy grande armada
sobre as ilhas de Canarya, com entencam de lhe
fazer mostrar o caminho da sancta fe.
E despois regnando elRey dom Eduarte, per
seu mandado passou a terceira vez em Africa ,
naqual cercou a cidade de Tanger, indo xix.
legoas com suas bandeiras tendidas per terra
de seus imiigos , teendolhe o cerco xxij. dyas,
nos quaaes se fezerom muy assiinadas cousas,
dignas de grande memorya, nom sem grande
dampno dos contrairos, como na estorva do
regno milhor podees saber.
Elle governou Cepta, per mandado dos reis

(I) fid. a Introducção.


— 29 —
seu padre e irruaão e sobrinho, xxxv. annos (1),
com tal proviimento que per sua mingua a coroa
do regno nunca recebeo abatimento em sua
honra, e em fim, por causa de seus grandes tra
balhos, leixou a dieta governança a elRey dom
Affonso, em começo de seu regimento. Edespois
que a dieta cidade foe tomada , continuadamente

(1) Governou feula por mandado dos reis seu padre, irmão, e
sobrlnho xxxv annos, deve entender-se que o infante teve durante
o reinado destes reis a direcção dos negocios de Ceuta , mas não
que governára aquella praça residindo nella.
As datas e os factos mostrão que assim se deve entender, visto
qne o infante depois da tomada daquella cidade em Agosto de 1 4 1 5
voltou para o reino, e ficou por governador della D. Pedro de
Menezes, que a commandou vinte dous annos (D. TV. do Leão,
cap. 97). O Infante tornou a Africa cm 1437 á infeliz campanha
de Tanger. Depois desta expedição adoeceo em Ceuta, onde ficou
só cinco mezes , e de lá regressou a Portugal , e viveo a maior
parte do tempo no Algarve oceupado das expedições maritimas.
Tornou pela terceira vez a Africa , com elRei D. Affonso V á cam
panha d''Alcacer em 145G, recolhendo-se logo depois a Sagres.
Além disto, deve notar-se que os filhos do senhor rei D. João I"
tiverão a seu cargo a presidencia , e direcção de varios ramos da
administração do Estado. 0 senhor D. Duarte foi em vida d'elRei
seu pai, encarregado de presidir á Relação, e de despachar os ne
gocios em conselho, como elle largamente refere no cap. XXX do
Leal Conselheiro. 0 infante D. Henrique tendo a seu cargo os nego
cios d'Africa tinha por conseguinte os de Ceuta.
Finalmente as sublimes palavras que elRei D. Duarte dirigio a
D. Duarte de Menezes, dizendo-lhe :
Se me não enganarão a vosso respeito, nem paru a dar a umJllho
meu, vos tirara a capitania de Ceuta, ele. (Azurara, cap. 43,
Chron. de D. Duarte), mostrão que o infante D. Henrique não
governára Ceuta como governador, posto que para aquelle cargo
fôra nomeado em 5 de Julho de 1450 (Souza, prov. do liv. V»,
n°51), cargo que alias não preencheo.
— 30 —
trouxe navyos armados no mar contra os infiees,
os quaaes fezcrom muy grande destroncam na
costa daalem e daaquem, de guisa que o seu te
mor poinha em segurança todallas terras vezi-
nhas do mar da nossa Espanha, e ainda a mayor
parte dos mercadores que trautavam do levante
para o poente.
Elle fez povoar no grande marOcciano cinquo
ilhas, as quaaes ao tempo da composiçom deste
livro, estavam em rezoada povoraçom, special-
mente a ilha da Madeira, e assy desta como das
outras , sentirom os nossos regnos muy grandes
proveitos, scilicet, de pam, e açuquer, e mel, e
cera, e madeira , e outras muytas cousas, de que
nom tam soomente o nosso regno, mas ainda os
estranhos ouverom e ham grandes proveitos.
Foe ainda o iffante dom Henrique com elRey
dom Affonso seu sobrinho, naquelle ajunta
mento que fez sobre o iffante dom Pedro, de que
se seguyo a batalha da Alfarrobeira, naqual o
dicto iffante foe morto e o conde Dabranxes (1)
que era com elle, e toda sua hoste desbaratada,
onde, se o meu entender pera esto abasta , jus
tamente posso dizer, que lealdades dos homees
de todollos segres forom nada em comparaçom
da sua. E postoque o serviço nom seja tamanho,
quanto ao trabalho, segundo os que ja disse,

(1) Deve lêr-se Avranches, condado em Normandia de que el-


Rei d'lnglaterra fez merco1 a 1). Alvaro Vaz d'Almada depois da
batalha d'Azincourt , e o creou cnvalleiro da ordem da Jarreteira.
— 31 —
certamente as circonstancias lhe dam splandor
c grandeza sobre todollos outros, cuja perfeita
deelaraçom remeto aa estorea geeral dos feitos
do regno.
Fez outrossy muy grandes acrecentamentos
na ordem de Xpus, de cuja cavallarya foe rege
dor e governador por autoridade do scto Padre,
ca lhe deu todo o spritual das ilhas, e no regno
comprou terras de que fez novas comendas , a
fora casas e herdades que anexou aa dieta or
dem. Eaerecentou no convento duas muy fre-
mosas crastas, e huíi coro alto com muy tos e
ricos ornamentos , que lhe ofereceo pera sua
serventya.
E porque era muy devoto da virgem Marya,
mandou fazer aa sua honra hua muy devota
casa de oraçom, hua legoa de Lixboa, acerca do
mar, onde se chama Restello, cuja envocaçom
se diz Seta Marya de Belleem.
E em Poombal, e em Soure; mandou fazer
duas igrejas muy notavees.
Leixou muy nobres casas ao estado de Lix
boa, prazendolhe de aministrar sua proteiçom
por mayor honra das scripturas sanctas, e or
denou pera sempre aa cadeira da theologya,
que ouvesse em cada huu anno dez marcos de
prata.
E a hua sua capeel la de Sancta Marya da
Vitorya, dava per esta guisa sete marcos. Mas
se em esta soma avya daver acrecentamento
depois de seus dyas, pollo presente nom he de
— 32 —

irieu saber, porque ao tempo que elRey dom


Affonso mandou fazer este livro, elle era ainda
vivo, em ydade pouco menos de lx. annos, e
por tanto nom posso çarrar suas benfeitoryas
per cabo, ca segundo o seu animo era grande
pera sempre bem obrar, certo som que os mem
bros poderam enfraquecer pollo descorrimento
da ydade, mas a voontade nunca pode secr pe
quena nem fraca pera cometer e acabar multi-
dom de boas obras, em quanto a alma tever
ajuntamento com a carne. E esto podem ver
dadeiramente conhecer aquelles que o viram
desposto e casy metido nos navyos pera se par-
tyr pera Cepta, com entençom de fazer la fim
de sua vida, trabalhando per suas armas por
honra do regno, e cixalçamento da sêta fe, ca
em este processo desejou sempre acabar sua
vida; aqual cousa por entom leixou de fazer,
porque elRey com seu conselho, acordarom de
empachar sua voyagem, como quer que lhe ante
tevesse dada licença. E pero a causa principal
dello ao commun seja innota, o que alguns en
tendidos nom partieul lares do principal conse
lho poderom sentvr, foc que o senhor rcy, como
homem de grandissima descripçom, consiirando
nas grandes cousas que no regno eram por fazer,
hordenou sua ficada, porque no escoldrinha-
mento dos remedyos lhe leixasse a principal
voz, assy como a tvo, e special amigo c servi
dor. Mas nom faz muvto que esta fosse a causa,
de sua ficada, ou outra algua sospensa ao nosso
conhecimento, abaste que per este movimento
poderees conhecer a mayor parte tla fim de seu
proposito, e o que eu com razom devo sperar
per respeito do que tenho dicto. Antre estas
cousas ficam outras muytas de rezoada gran
deza, de que se outrem podya contentar, que
nom fosse da excellencia daqueste, as quaaes
leixo sob sillencio por nom afastar minha scrip-
tura do que primeiro promety ; nom porem que
de todo as queira callar, porque na cronica
geeral do regno as entendo de tocar cada hua
em seu proprio lugar.
E porque fiz começo deste capitollo em filha-
mentode cidade, quero delle fazer fim naquella
honrada villa que este príncipe mandou fazer ao
cabo de sam Vicente (1), ally onde se combatem
ambollos mares, scilicet, o grande mar Occiano,
com o mar Medyoterreno. E das perfeiçooês
desta villa nom posso muyto fallar, porque ao
tempo da feitura deste livro em ella nom avya

(1) Vemos pelo que diz o A. qual era em 1453 o estado da villa
de que o infante tinha lançado os fundamentos em 1 <! 1 6 , e a que
primeiramente se dera o nome de Tercena Naval, da palavra
veneziana Darcena , arsenal de galés , onde se fabricavao e
guardavão; recebeo depois o nome de Villa do Infante, e ulte
riormente o de Sagres derivado segundo D. Francisco Manoel ,
Epanaph., p. 310, de Sagro, Sacrum, do famoso Promontorium
Sacrum. E* para notar que o celebre Catlamosto tendo fatlado
ao Infante em 14 45 no cabo de S. Vicente não prononcie o nome
da villa, tendo alias fallado da entrevista que com este tivera na
Knpozeira .
3
— 34 —
soomente os muros, que eram de boa fortelleza,
com alguas poucas de casas, mas obravasse em
ella continuadamente, e segundo o comuíi en
tender, era que o iffante querya ally fazer hua
villa especyal pera trato de mercadores, e por
que todollos navyos que atravessassem do le
vante pera o poente, podessem ally fazer devisa,
e achar mantiimento e pillotos, assy como fazem
em Callez (1 ), cujo porto be muy afastado da bon
dade daquelle, onde os navyos teem abrigo pera
todollos ventos, soomente de huu a que nos em
este regno chamamos travessya, e per essa guisa
com todos sayr, a qualquer tempo que o ma
reante quiser. E ouvy dizer, que seendo esta
villa começada, os Genoeses davam por ella
grande preço (2), os quaes como sabees, som

( I ) Callez , lea-se Cadis.


0 A. seguio a denominarão corrompida dos AA. e dos Mss. da
idade media, os quaes alterárão a de Gailes de Plinio (v, c. 19) ,
Macrobio, Silius Ilalicus(16, v. 4G8), de Columella (8, c. IG), de
nominação que era mais conforme com a primitiva de Gailir na
lingoa punica ou fenicia. A denominação corrompida de Calles,
Callis, ele, se encontra ainda em documentos do seculo xvt.
Vejão-se as cartas de Vespucio na edição de Gruninger de 1509.
(?) Esta passagem deve entender-se, que, os Genovezes oflere-
cêrão grandes som s nas pela concessão de um lugar em a nova villa
para alli estabelecerem uma feitoria e talvez uma colonia, seme
lhante ás que possuião no Mar Negro, principalmente a de Cnffn ,
c a de Smirna , etc. Não é verosimil que elles proposessem ao
Infante a cessão de uma villa da qual elle não tinha a soberania.
A republica de Genova tinha tido desde o principio da monarchia
portugueza relações mui estreitas com Portugal, e não podia
ignorar que os soberanos mesmos não podião desmembrar porção
— 35 —
homeês que nom empregam seus dinheiros sem
certa sperança de guaanho. E per,o que aa dieta
villa chamassem alguíis outros nomes, eu creeo
que o seu proprio, segundo a tençom daquelle
que a mandou fundar, era que se chamasse a
villa do Iffante, ca elle meesmo assy a nomeava
em suas pallavras e scriptos.

alguma do territorio sem o consentimento das cortes. (Vide sobre


este assumpto a parte III das nossas Memorias sobre as cortes.)
Como quer que seja, esta particularidade referida pelo A.
mostra tambem por outra parte a prudencia do governo portu-
guez daquella epoca em ter resistido a uma tal proposta, visto
que aquella republica tinha pelo seu immenso poder naval obtido
dos principes mouros, e africanos a concessão de differentes pon
tos consideraveis na Asia , e na Africa, e conseguido dos impera
dores gregos a cessão dos arrabaldes de Pera e Galata em Constan-
tinopola, e as ilhas de Seio, Metelene , e Teuedos no Archipelago.
E' pois mui digna da attenção do leitor a circumstancia de não ter
Portugal aceitado a offerta, quando alias os imperadores do
Oriente, e de Allemanha, os reis de Sicilia , de Castel la , d'Aragão,
e os sultões do Egypto buscavão á profia a alliança daquella repu
blica, e a protecção da sua poderosa marinha.
E' verdade que o poder de Genova começava já então a deelinar
e a enfraquecer-se , mas nem por isso deixão de ser mui impor
tantes as particularidades que o \. nos refere , e as observações
que offerecèmos á consideração do leitor.
CAPITOLLO VIo.

No qual o autor, que ordenou esta estorya, falla alguuas cousas


da sua entençom acerca das vertudes do iflante
dom Henrique.

Taaes forom as vertudes e costumes deste


grande e honrado principe, como nos trespas
sados capitollos teendes ouvydo, nos quaaes eu
falley como soube, mas certamente nom tam
bem comocompria, ca segundo posiçom de sam
Jeronimo, os pequenos engenhos nom podem
sofrer grandesmateryas. E seSalustyo diz, que
tanto louvor foe dado aos que os feitos fezerom
em Atenas, quanto os elaros e boos engenhos
dos sotiis scripvaães por pallavras os poderom
gabar e eixalçar, grande atrevimento foe o meu,
que tam soomente som digno de me nomear
por descipollo de cada huu daquelles, fuy lan
çar sobre mym tamanho encarrego. Empero
porque se diz, que milhor he obedyencia que
sacrifício , pois compri o que me foe mandado,
nom me parece que mereço tamanha culpa.
Mas que esta obra que eu fiz se ponha em pu
blico, eu nom demando nem requeiro, ca nom
— 37 —
he tal que se deva poer em torre, como os de
Athenas poserom a Minerva de Fadyas (1), scili-
cet, a fegura da deessa Pallas, a qual polla excel-
lencia de sua lremos ura lbe posta em alto por
seer milhor esguardada de todos, como diz o
philosofo, no vj°. de suas Ethicas, no capitollo
da saberya(2). Ante quero que aproveite assy
como por forma, per que se aodyante possa fazer
outra obra mais sofeciente, aqual convenha aos
merecimentos de tamanho principe, ca certa
mente vergonha padeceram quantos meestres,
quantos doutores , quantos leterados per suas
benfeitoryas cobrarom ensino, se antre tantos
se nom achasse alguu, que os seus excellentes
feitos em mais alto e mais elaro estillo perpe
tuar quisesse. Empero porque pode acontecer,
segundo muytas vezes vejo, que a paga do
agradecimento nom scra tam trigosa, ou muy
asinha cessara de todo, prazer-vos-ha de receber
esto que de seus costumes e vertuosos feitos nos

(1) Fadras , lea-se Phidias.


0 atto de que falla o A. é o Parihenon , e a Minerva d'Athenas, é
a famosa estatua daquella deosa feita de oiro e de marfim por
aquelle celebre escultor, e que os Athenienses collocárào naquelle
magnifico templo.
(?) 0 filosofo è Aristotelet. Não deixa de ser digno de reparo
ver o A. citar neste lugar Aristoteles , e preferir esta authoridade
á de Pmasanias. Esta preferencia que alias vemos muitas vezes no
Leal Conselheiro dYIRcl D. Duarte prova a grande estima cm
que erào tidas na Idade Mediu tambem entre nós ns obras do filo
sofo de Stagira, e que os nossos sabios o preferião a Pausanias
ainda mesmo quando tratavào das antiguidades da Grecia.
— 38 —

passados capitollos tenho dicto, e o que ao


dyante mais disser, nom segundo a excellencia
da obra requere, mas segundo a rudeza e pouco
saber do autor, as quaaes cousas podees creer
que som mais verdadeiramente scriptas do que
forom ligeiras dapanhar. Porem ante que mais
entre na sostancia da estorva, quero fallar huu
pouco de minha entençom por emmendar algua
cousa no que ante falleci nos louvores deste tam
grande c tam honrado duque. E tu, grande Val-
leryo (1), que com tanto trabalho ocupaste o teu
studo em apanhar e ajuntar as forças e vertudes
dos nobres e excell entes barooês da tua cidade,
por certo eu te ouso bem dizer, que antre tantos
e tam elaros, tu nom poderas em superlavito
graao fallar doutro semelhante; ja seja que a
cada huu poderas dar certos graaos de vertudes ,
mas nom que as todas possas ajuntar em huu
corpo mortal , como se dereitamente podem apa
nhar e ajuntar na vida daqueste. Onde poderas
tu achar huu principe tam religioso, huu prin
cipe tam catholico, huu principe tam prudente,
tam avisado, tam temperado em todollos autos?
Hu acharas tanta magnanydade , tanta fran-

(1) Este autor citado por Azurara , é Valerio Maximo, escriptor


do tempo de Tiberio, que escreveo : De dietafactisque memorabi-
libut, lib. IX ; era natural de Roma, e por isso o A. diz da tua cidade.
Mas Azurara parece ter-se enganado , visto que o autor romano
não tratou só dos feitos dos seus compatriotas, mas tratou lambem
tlos Gregos.
— 39 —
queza, tanta humanidade, tanta fortelleza pera
soportar tantos e Iam grandes trabalhos; ca por
certo nom avya homem em seu tempo que ou
sasse continuar a aspereza de sua vida ! Oo
quantas vezes o achou o sol asseentado naquelle
lugar onde o leixara o dya dante, vellando todo
o arco da noite sem receber nhuu descanso,
cercado de gentes de diversas naçopês, nom
sem proveyto de cada huu daquelles, ca nom
era a elle pequena folgança achar com queapro
veitasse a todos ! Onde queres achar outro corpo
humano, que soportasse o seu trabalho nas ar
mas, do qual pouco mingua no tempo da paz !
Certamente eu creeo, que se a fortelleza se po
dera pintar, no seu rostro e nos seus membros
se podera achar a verdadeira forma , e nom
ainda em alguas certas cousas se mostrava forte,
mas em todas. E qual fortelleza pode seer mayor
que a daquelle que veence sy meesmo ? Este so-
portava ainda famee sede, que nom he cousa de
creer. Pois qual Romullo ou qual Manllyo Tor
cato (1), ou qual Oracio Colles (2) poderas tu
avantajar sobre as forças daqueste ! Queres per
ventura trazer aquy o teu Cesar, que per tuas
pal lavras por devynal collocaste pera exemprode
vertuosos costumes e honesta vida ; que faras a
Marco Tullyo e a Lucano, que em tantos luga-

(1 ) Parece ser o dictador T. Manliui Turguatui de quem Irala


Tito-Livio, liv. 7, c. í, e Plutarco, lom. I, p. 179.
(2) Lea-sc Coeles.
— 40 —
res screvem aver corrompido sy meesmo, per
desejos carnaaes, e outros vicios, per que muyto
abatem seu grande louvor ! Quem uom receara
de se apodar com este nosso principe, quando
aquelle summo pontifice, vigairo geeral da
seta Igreja, e o emperador dAlemanha, e assy
os reis de Castella e de Ingraterra, enformados
de suas grandes vertudes, o requeryam pera
capitam de suas companhas (1)? Pois a quem
assiinaremos mais justamente o nome da fellici-
dade e bem aventurança, que a as suas vertudes
e costumes, ou a quaaes imperyos e a quaaes

(1) Esta particularidade é tam interessante para a historia


d'aquella epoca que julgámos opportuno indicar, para illustração
do texto, os nomes d'estes soberanos que o A. alias não nomea.
O convite feito pelo Papa ao Infante só poderia ter lugar depois
da tomada de Ceuta, campanha na qual o principe adquerio im-
mortal gloria , tendo commandado a escuadra , c tendo sido o pri
meiro dos principes que entrou na praça. A1 vista d'isto parece-
nos, que, só depois de 1415 esta proposta lhe poderia ter sido
feita pelo Pontifice, e antes da infeliz campanha de Tanger em
1 437, tempo em que o Infante se oceupava exelusivamente dos ne
gocios do reino , e dos de Africa , e das expedições, e descobri
mentos. Parece pois á vista disto, que o Papa que o convidára para
general dos seus exercitos fòra Martinho P, e isto no anno de 1 420
ou 21 depois da embaixada que o imperador grego Manoel Pa
leologo lhe mandára a pedir soccorros contra os Turcos.
0 imperador d'Allemanha de que falla o A. era o imperador
Sigismundo , o qual em razão das muitas relações que tivera com
a corte de Lisboa , e com os embaixadores de Portugal no consilio
de Constança, poude appreciar as eminentes qualidades do In
fante , e formar deste principe o alto conceito que elle merecia.
Finalmente os reis de Castella e d'Inglalerra de que falla
Azurara devem sor P. Jofio II e Henrique V.
— 41 —
riquezas pode seer dada mayor honra, que aos
seus grandes e vertuosos feitos? Oo bem aven
turado principe, honra do nosso regno, que
cousa ouve na tua vida que os que te louvarem,
callando passar devam, qual ponto, ou qual
momento do teu tempo foe maninho de benefíi-
cio, ou vazio de louvor ? Consiiro como recebyas
a todos, como os escuitavas, como passavas a
mayor parte dos dyas c noites antre tantos cuy-
dados, por dares proveito a muytos, pollo qual
conheço que as terras e os mares som cheos de
teus louvores, ca tu per continuadas passageês
fizeste ajuntar o levante com o poente, por que
as gentes aprendessem a comudar as riquezas.
E em verdade muytas cousas disse ja de ty ,
mas muytas mais me ficam por dizer. Empero
ante que me parta deste capitollo, creo que me
convenha de necessydade mostrar o que sento
sobre aquella parte que toquey , da justiça des-
tributiva , por nom passar sem deelaraçom ,
segundo ante promety. E certamente fremoso
mandamento foe o de Tullyo sobre este passo,
ca de razom sta, que a sentença do que ordena
a estorva, aja daver mayor autoridade acerca
daquello que elle screve, que outra algua, pois
com mayor cuidado enquere a verdade das cou
sas ; porem ou esto sera ofíicio de correiçom
militar, ou de humanidade e elemencia. Se da
parte da correiçom , nom se pode scusar de
mingua, ca teemos nas estorvas dos Romaãos,
que os padres matavam os filhos sobre este caso,
— 42 —
e fazyam outras muy cruas exccuçooês ; e da
parte de humanidade e elemencia, louvaloemos
por grande vertude, pois a sua terceira parte,
segundo Seneca, esta em reconcillyar a sy os
famellyares ; mas o extremo destas duas cousas
he dovydoso, scilicet, se se avya de antrepoer
a desceplina a a elemencia, ou a elemencia a a
desceplina. Porem sob correpçom de quem o
milhor entender, digo que a mym parece que a
milhor parte da cousa , deve sobrepojar a outra
de menos valor, e visto o caso e a desposicom do
tempo , e como per correicom ja se nom podya
receber emenda, que ao iffante deve seer por
ello alrebuido mayor louvor que reprensom, ca
nom he de coraçom pouco liberal oferecer be-
nefíicios a aquelles que os com razom denegar
devya. E como quer que seja, principe muyto
excellente, estas cousas nom sejam a ty graves ,
ca nom foe tanto minha entencom louvar os teus
feitos, como a ty, porque muytas cousas dignas
de louvor fazem os maaos , mas nom deve seer
louvado senom o que em sy for muyto boo.
Qual foe o homem cujas vertudes, per algua
vinhança de vycyos, nom fossem ofendydas?
Certamente nom som eu aquelle que esto scriba,
nem deva dizer de ty, ca aquelle que tem apa
relhado logar antre as cadeiras cellestiaaes, nom
podem os seus feitos receber ofensa, por nenhua
cousa que faça na terra, postoque a alguus pa
reçam dignas de repreençom , ca se lhe pode
dizer aquelle dicto de sam Crisostimo, scilicet,
— 43 —
que nool ha hi cousa tam santa em que o maao
entrepetador nom ache que travar. Oo quam
poucos som , segundo diz Seneca na primeira
tragedya, os que husem bem do tempo de sua
vida, nem que pensem a sua breviedade ! Mas
tu por certo nom foste do conto daquestes, pois
com teus elaros e altos feitos , e duros padeci
mentos, antre muytos principes de mais excel-
lente dignidade, acrecentaste pera ty perpetua
e immortal memorya, e o que mais he, celles-
tial seeda, segundo piedosamente creo. Oo vos
bem aventurados reis, que despois de sua morte
possoyrdes a- real seeda, que foc de seus avoos,
eu vos rogo que a sepultura deste tam grande e
tam honrado duque ajaaes sempre em vossa es
pecial nembrança , pois o esplandor de suas
vertudes he gram parte de vossa honra ; ca por
certo as exelamacooês e louvores que vos delle
afvrmo, nom forom ordenadas per meu pro-
pryo engenho, mas forom vivas vozes de suas
vertudes e grandes merecimentos, os quaaes
serva a cada huu de vos de mayor proveito de
os guardardes enteiros e saãos em vossa magi-
uaçom, que de cobiiçardes que os cu dissera
mais em curto nem minguadamente, ca traba-
Iho serva de se achar antre os vivos seu seme
lhante.
— 44 —

CAPITOLLO VIIo.

ISo qual se mostram cinquo razooès porque o senhor iflaute


foe movido de mandar buscar as terras de Guynea.

Entom maginamos que sabemos algíia cousa


quando conhecemos o seu fazedor, e a fim pera
que elle fez tal obra. E pois que nos capitollos
ante destes teemos posto o senhor iffante por
principal obrador destas cousas, dandonos delle
aquelle elaro conhecimento que podemos, bem
he que em este presente capitollo saibamos a
fim porque as fez. E vos devees bem de notar
que a magnanydade deste principe, per huu
natural costrangimento , o chamava sempre
pera começar c acabar muy grandes feitos, por
cuja razom depois da tomada de Cepta, sempre
trouxe continuadamente navyos armados contra
os infiees; e porque elletiinha voontadede saber
a terra que hyaa allem das ilhas de Canarya, e
de huu cabo, que se chama do Bojador, porque
ataa aquelle tempo, nem per scriptura, nem per
memorya de nhuus homeês , nunca foe sabudo
determinadamente a callidade da terra que hya
a allem do dicto cabo. Bem he que alguias
— 45 —
deziam , que passara per ally sam Brandam (1),
outros deziam tpie forom la duas gallees, e que
nunca mais tornarom. Mas esto nom achamos
per nenhuu modo que podesse seer, porque
nom he de presumyr que se as dietas gallees Ia
forom, que outros alguus navyos se nom antre-
meteram de saber a vyagem que fezerom. E
porque o dicto senhor quis desto saber a ver
dade, parecendolhe que se elle ou alguu outro
senhor se nom trabalhasse de o saber, nehuus
mareantes, nem mercadores, nunca se delle
antremeteryam, porque elaro sta que nunca
nehuus daquestes se trabalham de navegar se-

(IJ A viagem de S. Bramlam de que trata o A. é reputada


fabulosa, assim como a ilha deste nome. Segundo esta tradição
dizia-se que S. Brandam tinha aportado em um navio no anno
de 5G5 a uma ilha perlo da equinocial. Conservou-se esta entre
os habitantes da Madeira , e da Gomeira , os quaes julgavão ver a
dita ilha ao Oeste em certo tempo do anno. Esta visão provinha
todavia de certas circumstancias meteorologicas.
Azurara conheceo pois esta tradição da idade media , por al
guma copia do Mss. do xui° seculo intitulado : « Imago-Mundi de
duposttione orlus, » de Honorio tTAutun, e esta circuinstancia c
tanto mais curiosa que Azurara não podia ter tido conhecimento
do famoso Mappamundi de Fra-Mauro que só foi feito entre os
annos de 1 457 e 1 459 ; e ainda menos do planispherio de Martim
de Bohemia ( 1 492) que se conserva em Nurembergue , onde se vê
desenhada junto da equinocial uma grande ilha com a seguinte
legenda :
Anno 505 S. Brandam chegou com o seu navio a csta ilha.
0 celebre jesuita Hcnschcnius que compoz um exame critico
da vida de S. Brandam diz : Cujui historia , al fahuhs rrfrrla
omittitur.
— 46 —

nom pera donde conhecidamente speram pro


veito ; e yeendo outrossy como nhuu outro prin
cipe se trabalhava desto, mandou elle contra
aquellas partes seusnavyos, por aver de todo
manifesta certidom, movendosse a ello por ser
viço de Deos, edelRey dom Eduarte seu senhor
e irmaaõ, que a aquelle tempo regnava. E esta
ataa quy foe a primeira razom de seu movi
mento.
E a segunda foe, porque consiirou, que achan-
dosse em aquellas terras algua povoraçom de
xpãaos, ou alguus taaes portos, em que sem
perigoo podessem navegar, que se poderyam
pera estes regnos trazer muytas mercadaryas,
que se avervam de boõ mercado, segundo ra
zom, pois com elles nom tratavam outras per-
soas destas partes, nem doutras nhuas que sa
bidas fossem, e que esso meesmo levaryam pera
lá das que em estes regnos ouvesse, cujo trafego
trazerva grande proveyto aos naturaaes.
A terceira razom foe , porque se dezia , que o
poderyo dos Mouros daquella terra dAfrica, era
muyto mayor do que se comuumente pensava,
e que nom avya antre elles christaãos, nem
outra algua geeraçom. E porque todo sesudo,
per natural prudencia , he costrangido a querer
saber o poder de seu imiigo, trabalhousseodicto
senhor de o mandar saber, pera determinada
mente conhecer ataa onde chegava o poder da-
quelles infiees.
A quarta razom foe, porque de xxxj. annos
— 47 —
que avva que guerreava os Mouros , nunca
achou rey christiaão, nem senhor de fora desta
terra, que por amor de nosso senhor Jhu Xpõ
o quysesse aa dieta guerra ajudar. Querya saber
se se acharyam em aquellas partes alguus prin
cipes xpaãos, em que a caridade e amor de Xpõ
fosse tam esforçada, que o quisessem ajudar
contra aquelles imiigos da fe.
A quinta razom , foe o grande desejo que avva
de acrecentar em a sancta fe de nosso senhor
Jhu Xpõ, e trazer a ella todallas almas que se
quisessem salvar, conhecendo que todo o mes-
teryo da encarnaçom , morte e paixom de nosso
senhor Jhu Xpõ, foe obrado a esta fim, scilicet,
por salvaçom das almas perdidas, as quaaes o
dicto senhor querya , per seus trabalhos e des
pesas, trazer ao verdadeiro caminho, conhe
cendo que se nom podya ao senhor fazer mayor
oferta, ca se Deos prometeo cem beês por huíi,
justo sta que creamos que por tantos beês , sci
licet, por tantas almas quantas por aazo deste
senhor som salvas, elle tenha no regno de Deos
tantos centanaryos de gallardooês, per que a
sua alma depois desta vida possa seer glorefi-
cada no celestial regno; ca eu que esta estorva
screvy, vi tantos homeês e molheres daquellas
partes tornadas aa saucta fe, que ainda que
este principe fora gentyo, as oraçoões daquestes
eram abastantes pera o trazer a salvaçom. E
nom tam soomente vy aquestes, mas vy seus
filhos e netos tam verdadeiros xpaãos como se a
— 48 —
devynal graça espirava em elles pera lhe dar
elaro conhecimento de sy meesmo. Mas sobrestas
cinquo razooês, tenho eu a vj., que parece que
he raiz donde todallas outras procedem ; e isto
he, inelinaçom das rodas cellesti iaães, ca como
eu screvya nom ha muytosdyas, em híia epi-
stolla que envyava ao senhor rey, que posto que
seja scripto que o barom sabedor se assenhorara
das estrellas, e que os cursos das planetas, se
gundo boa estimaçom dos santos doutores, nom
podem empeecer ao boõ homem, manifesto he
porem que som corpos ordenados no mesteryo
de nosso senhor Deos, e correm per certas me
didas e a desvairadas fiis, revelladas aos homeês
per sua graça, per cujas influencias os corpos
mais baixos som inelinados a certas paixoõês.
E se assy he fallando como catholicos, que as
contrairas predestinações das rodas do cceo, per
natural juizo, com algua devynal graça, se po
dem estorvar, muyto mais de razom está, que
as que proveitosamente perdestinadas forem,
per essa meesma graça , nom soomente segui-
rom seu curso, mas ainda se acrecentarom
muyto mais. Porem vos quero aquy screver
como ainda per pungimento de natural influen
cia, este honrado principe se inelinava a estas
cousas. E esto he, porque o seo acendente foe
Arves, que he casa <Je INIars, e he eixaltaçom do
sol, e seu senhor está em a xj. casa, acompa
nhado do sol. E porquanto o dicto Mars foe em
Aquaryo, que he casa de Saturno, e em casa
— 49 —

desperança, senificou que este senhor se traba


lhasse de conquistas altas e fortes, especyal-
mente de buscar as cousas que eram cubertas
aos outros homeês, e secretas, segundo a cally-
dade de Saturno, em cuja casa elle he. E por
seer acompanhado do sol , como disse, e o sol
seer cm casa de Jupiter, senificou todos seus
trautos e conquistas seerem lealmente feitas, e a
prazer de seu rey e senhor (1).

(I) Sobre estas curiosas razões remeltemos o leitor ao que


dizemos em a nossa Introducção.
— 50 —

CAPITOLLO VIIIo.

Porque razom nóm ousavam os navyos passar a aliem


do cabo do Bojador.

Posto assy o iffante em aqueste movimento,


segundo as razooês que ja ouvistes, começou
davyar seus navyos e gentes, quaaes a necessy-
dade do caso requerya; mas tanto podeesapren-
der, que pero la envyasse muytas vezes, e ainda
homeês que per experiencia de grandes feitos,
antre os outros avyam no officio das armas
avantejado nome, nunca foe alguu que ousasse
de passar aquelle cabo do Bojador pera saber a
terra daalem, segundo o iffante desejava. E esto
por dizer verdade, nem era com mingua de for-
telleza, nem de boa voontade, mas por a novi
dade do caso, mesturado com geeral e antiga
fama, aqual ficava ja antre os mareantes dEspa-
nha, caasy per socessom de geeraçooês. Eja seja
que fosse enganosa, porque a experiencia dello
ameaçava com o postumeiro dano, era grande
duvida qual serva o primeiro que quisesse poer
sua vida em semelhante ventuira. Como passa
remos, deziam elles, os termos que poserom

5
nossos padres , ou que proveito pode trazer ao
iffante a perdiçom de nossas almas, juntamente
com os corpos, ca conhecidamente seremos
omecidas de nos meesmos? Por ventura nom
forom em Spanha outros principes, nem senho
res, tam cobiiçosos desta sabcdorva como o
iffante nosso senhor? Por certo nom hede pre-
somvr que antre tantos e tam nobres, e que
tam grandes e tam altos feitos fezerom por honra
de sua memorva, nom fora alguu que se dello
nom atremetera. Mas seendo manifestos do pe-
rigoo, e fora da esperança da honra nem pro
veito, cessarom de o fazer. Isto he elaro, deziara
os mareantes, que despois deste cabo nom ha
hi gente nem povoracom algua ; a terra nom he
menos areosa que os desertos de Libya, onde
nom ha augua , nem arvor, nem herva verde ;
e o mar he tam haixo, que a híia legoa de terra
nom ha de fundo mais que hua braça (1). As cor
rentes som tamanhas, que navvo que la passe,
jamais nunca podera tornar (2). E por tanto os

(1) Esta passagem indica que os maritimos Portuguezes sabião


já antes da expedição de Gil F.annes que além do cabo Bojador se
encontra o grande deserto de Saharn , e que a terra não era me
nos areosa do que a da Libya.
Este nome da geografia Pliniana , e as circumstancias que o
V. refere neste capitulo, mostrão que antes daquellas expedições
os nossos maritimos tinhão colhido todas as noções sobre aquella
parte do continente Africano nos antigos geografos, e nas rela
ções dos Mouros das caravanas que atravessao o grande deserto ;
isto se confirma pelo que diz o A. no cap. 77 como veremos.
?) 0 leitor observará á vista desta passagem, que apezar das
— 52 —
nossos antecessores nunca se antremeterom de
o passar. E por certo nom foe a elles o seu co
nhecimento de pequena escuridom, quando o
nom souberom asseentar nas cartas, perque se
regem todollos mares, per onde gentes podem
navegar. Hora qual pensaaes que avya de seer o
capitam do navyo, a que posessem semelhantes
duvydas dyante , e mais per homeês a que era
razom de dar fe e autoridade em taaes lugares,
que ousasse de tomar tal atrevimento, sob tam
certa sperança de morte como lhe ante os olhos
apresentavam ? Oo tu virgem Temis (1), diz o

noções hydrograficas que os maritimos Unhão já daquellas costas ,


e do imperfeito conhecimento das correntes chamadas pelágicas
(vid. Rennell, Jrwestigation of tlie currents of the Atlantic, e
Humboldt, Examen crit., II, 253 e 254), aquelles maritimos do
seculo xv receavão ainda os grandes perigos que offerecia á sua
imaginação a passagem daquelle cabo.
Azurara nos revela nestas passagens quanto era poderosa ainda
naquella epoca a influencia das tradições dos geografos Arabes
sobre o Mar Tenebroso, que segundo estes existia além das ilhas
de Kalidád situadas na extremidade do Mogreb dWfrica (as Ca
narias). Kid. Edrisi , Rackoui, e Ebn-al-Ourdi.
Finalmente sobre os receios dos navegantes da Idade Media,
póde o leitor consultar o Itinera Mundi de Abraham Peritsol , tra
duzido do hebreu em latim por Hjrde.
(1) Virgem Temis. He de saber que a cerca do monte Parnaso,
que he meo antre o Ocidente e Oriente, ha dous cabeços, que
contendem com as nuvèes. E cm huú delles stava húa cova,
na qual no tempo dos gentios, Apollo dava repostas a certas
virgeès sacerdotizas , que servyam em hnu templo que ally
era do dicto Apollo. E moravam aquellas virgeès a cerca das
fontes do monte Castallyo. Antre as quaaes virgeès era aquella
virgem Temis, que alguús teverom que era húa das Sibillas. E diz
— 53 —
autor, que antre as nove Musas do monte Par
naso, avyas speeial porrogativa descoldrinhar
os segredos da cova de Apollo ! Eu dovido se o
teu temor era tam grande de poer os teus pees
sobre aquella sagrada mesa, onde as revella-
çooês devinaaes te davam trabalho pouco menos
de morte, quanto era em aquestes, ameaçados
nom soomente do medo, mas de sua soombra,
cujo grande engano foe causa de muy grandes
despezas, ca doze annos continuados durou o
iffante em aqueste trabalho, mandando em cada
huu anno a aquella parte seus navyos, com
grande gasto de suas rendas, nos quaaes nunca
foe alguu que se atrevesse de fazer aquella pas-

que eram aquellas virgeòs tam temerosas de entrar naquella


cova , que sem muy grande forra , nom ousavam de o fazer,
segundo conta Lucano no quinto livro e vj° cap°, onde diz da
reposta que ouve o consul Apyo , sobre a determinaçom da
guerra antre Cesar e Pompeeo (*).
- Tanto nesta nola como nas das pag. 10, 1 1 , 12, e 21 , que se encontrão no
Codice e que são alias da mesma leltra , reina uma tal confusão que hesitamos
em as julgar escriplas pelo A. como deixamos dito mais largamente na Intro-
duccao. As ditas: nolas, longe d'iltustrarem o texto, antes necessitão de um
rommentario.
Nesta o A. seguio acerca da posição geografica do Parnaso a opinião dos
antigos, os quaes julgarão que este monte estava situado no centro do mundo,
quando alias, segundo Straho, o dito monte estava situado entre a Phocida e
a Locrida :
« fía dois cabeços que contendem com as nuvens. *
0 A. da nota que alias cila Lucano parece tcr tirado esta passagem antes
d'O»idio do que da Pharsalia. ( Yid. Metam., liv. 1 , v. 316, 317, c Lucano, V,
v. 72, e 73).
A Cova e o Antrum Corysium iios poetas (ViW. a Viagem a Grecia pelo
celebre archeologo Spon.) As passagens do livo V da Pharsalia , são as que
começão nos versos . Ilispsrio tantum... , ete, e v. 114. JVcc roce negala... ,
c 120. Sir lempore longo, c seguintes.
— 54 —

sagem (1). Bem he que elles nom se tornavam


sem honra , ca por enmendar o que falleciam em
nom compryr perfeitamente o mandado de seu
senhor, huus hyam sobre a costa de Graada (2) ,
outros corryam per o mar deXevante, ataa
que filhavam grossas presas dos infiees, com

- (1) As tentativas feitas pelos maritimos Portuguezes, para pas


sarem além do cabo , começárão antes do seculo xv°. Já no tempo
d'el-Rei D. Aflbnso IV os navegantes Portuguezes tinhão passado
além do cabo de Não, isto c antes de 133G. Os documentos publi
cados pelo professor Ciampi em 1827 e por elle descobertos nos
mss. de Boccaccio na Bibliotheca Magliabechiana de Florença , e
a carta d'el-Rei D. Aflbnso IV ao papa Clemente VI, attestão
aquelle facto (vide a excellente e erudita Memoria do Sr J. J.
da Costa de Macedo, impressa no tomo VI das Mem. da Acade
mia R. das sciencias de Lisboa, e os additamentos publicados
em 1835).
Quanto porém ás tentativas feitas no tempo do Infante pelos
navios que elle enviou áquellas paragens afim de passarem além
do cabo Bojador, se se admitte a conta dos 12 annos que o A.
indica, e esta se combina com a data de 1433 que elle fixa á
passagem efleituada por Gil Eannes , resulta que as ditas tenta
tivas só tiverão principio em 1421 , e assim que Azurara não
admittio que a expedição de 1418 segundo uns, ou de 1419
segundo outros, e que fôra commandada por João Goncalvez
Zarco , tivesse por objecto principal a passagem do dito cabo.
Mas pela leitura de Barros se vê que João Gonçalvez Zarco e
Tristão Váz forão com o destino de dobrar o cabo, mas que um
temporal os levára á ilha que descobrirão , e a que derão o nome
de Porlo-Santo. (P~id. Decad. I, cap. 2, e D. Franc. Manoel,
Epanaph., pag. 313.)
(2) Lea-se Granada.
Vejão-se as discussões sobre a origem e etymologia deste nome
em Cortes j- Lopez (artig. Elmra qua Cerialis). Dic. tleograf.
Hist. de la Esp. Ani., II, 420, e seg.
que se tornavam honradamente pera o re
gl™ (<)•

(I) Esta particularidade que o A. refere, além de curiosa,


prova a actividade da nossa marinha nos principies do seculo xv, .
e o systema de se exercitar, não só para melhor arrostar com os
perigos da navegação do Oceano , mas tambem nos combates
navaes contra os Arabes e Mouros que navegavão no Mediterra
neo, e finalmente para deflender e proteger o commercio das
nações christans no Mediterraneo, como o A. mostra a pag. 30.
— 56 —

CAPITOLLO IXo.

Como Gil Eanncs, natural de Lagos, foe o primeiro que passou


o cabo do Bojador, e como la tornou outra vez ,
e com elle Aflbnso Gllz Baldava.

Com grande paciencia recebya sempre o iffante


aquelles que assy envyava por capitaaes de seus
navyos em busca daquella terra, nom lhe mos
trando alguu reprendimento de sua mingua,
ante com graciosa contenença , ouvya seus
aqueecimentos, fazendolhe aquellas mercees que
tiinha acostumado de fazer aos que o bem ser-
vyam; e ou aquelles, ou outros alguus speciaaes
de sua casa, fazia logo tornar com seus navyos
armados, acrecentando cada vez mais no encar
rego, com prometimento de mayores gallar-
dooês, se acrecentassem algíia cousa na vyagem
que os primeiros fezerom, perque elle podesse
cobrar alguu conhecimento daquella duvyda.
E finalmente, despois de doze annos, fez o
iffante armar híia barcha, daqual deu a capita-
nya a huu Gil Eannes (1), seu scudeiro, que ao

(I) Barros diz tambem que Gil Eannes era natural de Lagos,
e que fôra elle que posern o nome de Bojador ao cabo, pelo
— 57 —
despois fez cavalleyro, e agasalhou muy bem , o
qual seguindo a vvagem dos outros, tocado da-
quelle meesmo temor, nom chegou mais que a
as ilhas de Canarya, donde trouxe certos cati
vos, com que se tornou pera o regno. E foe esto
no anno de Jhu. Xpo de mil e quatro centos e
trinta e trez. Mas logo no anno seguinte , o
iffante fez armar outra vez a dieta barcha , e
chamando Gil Eannes a departe , o encarregou
muyto que todavya se trabalhasse de passar
aquelle cabo, e que ainda que por aquella vya-
gem mais nom fezesse, aquello terya por assaz.
Vós nom podees, disse o iffante, achar tamanho
perigoo, que a esperança do gallardom nom seja
muyto mayor; e em verdade eu me maravilho,
que maginaçom foe aquesta que todos filhaaes,
de hua cousa de tam pequena certidom, ca se
ainda estas cousas que se dizem tevessem algua
autoridade, por pouca que fosse, nom vos darya
tamanha culpa, mas quereesmc dizer que por
openyom de quatro mareantes, os quaaes como
som tirados da carreira de Frandes , ou de al-
guus outros portos pera que comuumente nave
gam , nom sabem mais teer agulha nem carta
pera marear; porem vos hii todavya, e nom

muilo bojar (vid. Dcc. I, c. vi). Entretanto cm uns Atlas de


que trata Morelli, e Zurla (Dei Viaggi e delle Scopertc Africane
da Ca-da-Mosto , pag. 37), no qual se acha escripto : « Jachobus
de Giraldit de Venetiis mefecil anno Dmi MCCCCXV1, » bem como
em outro do seculo xiv se lâ no Io C. de Buider, e no segundo
Cavo de Imbugder. {Vid. Zurla, Dissertazione , etc. , p. 37.)
— 58 —
temaaes sua openyam, fazendo vossa vvagem,
ca com a graça de Deos, nom poderees della
trazer se nom honra e proveito. O iffante era
homem de muy grande autoridade, polla qual
suas amoestaçooes, por brandas que fossem,
eram pera os sesudos de muy grande encarrego,
como se mostrou per obra em aqueste , que des-
pois destas pal lavras, determinou em sua voon-
tade nom tornar mais ante a presença de seu
senhor, sem certo recado daquello por que o
envyava ; como de feito fez , ca daquella vyagem ,
menospreçando todo perigoo, dobrou o cabo a
allem , onde achou as cousas muy to pello con-
trairo do que elle e os outros ataally presumy-
ram. E ja seja que o feito, quanto aa obra,
fosse pequeno, soo pello atrevimento foe con
tado por grande , ca se o primeiro que chegou
acerca daquel le cabo, fezera outro tanto, nom
lhe fora tam louvado, nem agradecido, mas
quanto o perigoo da cousa aos outros foe posto
em mayor temor, tanto trouxe mayor honra ao
cometimento daqueste. Sc o acontecimento de
Gil Eannes, entrinsicamente lhe apresentava al-
gua glorya, bem deve seer conhecido pellas pal-
lavras que lhe o iffante disse ante de sua par
tida , cuja certa speryencia foe assaz manifesta
ao tempo de sua chegada , ca foe delle muy bem
recebido, nom sem proveitoso acrecentamenlo
na honra e fazenda. E entom lhe contou todo o
caso como passara , dizendo como fezera lançar
o batel fora, no qual sayra em terra, onde nom
— 59 —
fichara gente algua, nem sinal <le povoraçom. E
porque, senhor, disse Gil Eannes, me pareceo
que devia trazer alguu sinal de terra , pois que
era ella sahya, apanhey estas hervas que aquv
apresento aa vossa merece, as quaaes nós em
este regno chamamos rosas de sancta Marya. E
acabado assy o recontamento de sua vyagem, fez
o iffante armar huu barinel (1 ) , no qual mandou
Affonso Goncalvez Baldava, que era seu copeiro,
e assy Gil Eannes com sua barcha, mandando que
tornassem la outra vez, como defeito fezerom, e
passarom a allem do cabo cinquoenta legoas,
onde acharom terra sem casas, e rastro dhomeês
e de camellos (2). E ou por lhe seer assy man
dado , ou por necessydade, tornarom com este
recado, sem fazendo outra cousa que de contar
seja.

(I) Barinel, ou varinel, « era uma embarcarão de remoque


então se usava , cujo nome ainda relemos nas Varinas sutis de
que hoje nos servimos,» (diz Francisco Manoel, Epanaph.,
p. 31 7 e seg.).
(?) A este logar derão os nossos maritimos o nome de Angra
dos Ruivos pela muita quantidade destes peixes que alli encon
trarão. Esta angra com esta denominação se vê marcada na Carta
dWfrica do magniflco Atlas Portuguez inedito do meado do
seculo xvi da Bibliotheca R. de Paris ( R. B. n° 1 , 7(i4 ).
— 60 —

CAPITOLLO Xo.

Como Aflbnso Goncalvez Baldava chegou ao ryo do Ouro.

Pois que assy he, disse o iffante contra aquelle


Affonso Goncalvez Baldava, que vós achastes
rastro dhomeês e de camellos , bem parece que
a povoraçom nom he dally muy afastada, ou
per ventura sera gente que atravessa com suas
mercadaryas pera alguu porto do mar, onde ha
algua ancoraçom segura em que os navyos rece
bem carrega , ca pois gente he , por muyto
bestyal que seja, necessaryo he que se aja de
governar das cousas do mar, sequer ao menos
em pescarya, quanto mais aquelles que vivem
no sertaao. Porem he minha tençom de vos en-
vyar la outra vez, em aquelle meesmo barinel,
e assy por me fazerdes serviço, como por acre-
centamento de vossa honra , vos encomendo que
vaades o mais avante que poderdes, e que vos
trabalhees daver lingua dessa gente, filhando
alguu, per que o certamente possaaes saber, ca
nom seria pequena cousa, segundo o meu desejo,
a ver algua persoa perque desto possa seer em
conhecimento. O navyo foe muy asinha prestes,
— 61 —

noqual Affonso Goncalvez partiu , nom sem


grande desejo dacabar a voontade do iffante.
E navegando per sua vyagem , passarom se-
teenta legoas a allem donde foram a outra vez ,
que erom cxx do cabo , onde acharom híia foz
como se fosse de ryo cabedal , em queavya muy-
tas boas ancoracooes , cuja entrada era per terra
spaço de viij°. legoas, onde lançarom suas an
coras (1). E porque antre as cousas que Affonso
Goncalvez levava, assy eram dous cavallos, que
lhe o iffante dera pera mandar em elles dous
moços, fez logopoer os cavallos em terra, e ante
que 11 h íia outra gente saisse fora, mandou aos
moços que cavalgassem naquelles cavallos, e
fossem per terra quanto podessem, esguardando
bem a todallas partes sc veryam algíia povora-
çom, ou gente que fizesse vyagem per alguíi
caminho. E por darem menos trabalho a sy e
aos cavallos, mandou que nom levassem nhuas
armas de defesa, soomente suas lanças c spadas
pera ofender se comprisse, ca se gente achassem
e os quisessem filhar, o seu principal remedyo
serva os pees dos cavallos, salvo sc achassem
alguíi soo, de que sem seu perigoose aproveitar
podessem. Ebem mostrarom aquelles mocos no

(I) Os nossos derão a este logar o nome de Angra dos cavallos


(vid. Barros, Deead. I, liv. 1 , cap. 5; Martines de la Pnente ,
Compendio de las Historias de las índias , liv. 2 , c. 1 ). Este logar
com este nome se vê marcado em quasi todas as cartas d'Afri<a
dos seculos xvi e XVll.
— 62 —

eometymento daquelle feito, quejandos homeês


ao «h ante seryam , ca pero fossem tam alonga
dos de sua terra, nom sabendo quaaes nem
quantas gentes acharyam , ou ao menos temor
de bestas salvageês , cuja temerosa soombra os
devera empachar segundo sua nova idade, ca
pouco mais ou menos nom passavam de xvij.
annos cada huu; pero posposto todo esto, par-
tirom com grande esforço, seguindo a allonga
daquelle ryo per spaço de vij. legoas, onde
acharom xix. homeês, todos juntos em magote,
sem outras nhuas armas pera ofensa nem defesa ,
soomente azagayas. E tanto que os aquelles mo
ços viram, com grande ardimento forom a elles.
Mas aquella gente nom conhecida, pero tantos
fossem, nom teverom atrevimento de se tcer
com elles no campo chaão, ante por sua segu
rança se colherom a huíis penedos, donde ste-
verom pellejando com os moços per bõo spaço.
E durando sua contenda, foe ferido huu da-
quelles moços em huu pee, aqual ferida pero
pequena fosse, nom passou sem vingança, ca
elles esso meesmo ferirom a huu dos contrairos.
E assy durarom em sua pelleja , ataa que o sol
começou de mostrar os sinaaes da noite, por
cuja razom se tornarom a seu navyo. E bem
creo que o dano da pelleja nom fora tam pe
queno, se os imiigos steverom no campo chaão.
Consiiro aquy duas cousas, diz aquelle que
screveo esta estorva : a primeira qual magina-
com serva no pensamento daquelles homeês,
— 63 —
veendo tal novidade, scilicct, dons moços assy
atrevidos, de coor c feiçooês tam stranhas a
elles ; ou que cousa podyam cuidar que os ally
trouxera, e ainda em cima de cavallos, com
lanças e spadas, que som armas quealguu delles
nunca vira ! Por certo eu magino que a fraqueza
de seus coraçooês nom fora tamanha, que se
nom teverom com elles com mayor arilideza, se
o spanto da novidade nom fora. A segunda
cousa he o atrevimento daquelles dous mocos,
seendo assy em terra stranha, tam allongados
de socorro de seus parceiros, e filharem ousyo
de cometer tamanho numero, cujas condiçooês
em arte depellejar, eram a elles tam duvydosas.
Huu daquestes moços conheci eu despois seendo
fidalgo nobre, assaz vallente no ofíicio das ar
mas, e chamavasse Eytor homem, o qual na
crónica do regno acharees provado em grandes
feitos. 0 outro chamarom Diego Lopez Dalmeida,
fidalgo e bõo homem per sua pessoa , segundo
aprendy dalguus que o conheciam.
Seguirom assy aquelles sua vyagem pera o
navyo, como teemos contado, ao qual chegarom
acerca da manhaã, onde filharom alguíi pequeno
repouso. E tanto que a luz pareceo, Affonso
Goncalvez fez aparelhar seu batel , noqual se
meteo com algua gente, e seguindo a allonga
daquelle ryo, mandando os moços com os caval
los per terra, chegou ao lugar onde os Mouros
ficarom o outro dya, com entençom de pellejar
com elles, e filhar alguíi ; mas seu trabalho foe
debalde, porque o spanto foe tamanho, que pero
fossem leixados dos moços, nom poderom ficar
sem grande temor, com o qual parti rom, leixando
ally a mayor parte de sua prove fazenda, da qual
Aflonso Goncalvez fez carregar seu batel, casy
por testemunha de seu trabalho. E sentindo que
nom aproveitarya seguyr mais avante, tor-
nousse pera seu navyo. E porque vyo em bua
coroa que estava aa entrada do ryo, grande mul-
tidom de lobos marinhos (I), os quaaes segundo
stimaçom dalguus, seryam ataa cinquomil , fez
matar aquelles que pode, de cujas pelles fez car
regar seu navyo, ca ou por serem ligeiros de
matar, ou por o engenho daquelles seer auto
pera tal feito, fezerom em aquelles lobos muy
grande matança. Empero com todo esto Affonso
Goncalvez nom era contente, porque nom filhava
alguu daquelles Mouros, e seguyo porem mais
avante cinquoenta legoas, por veer se poderya
fazer presa em alguu homem, ou sequer molher
ou moço, pello qual satisfizesse aa voontade de
seu senhor. E assy foe seguindo sua vyagem,
ataa que chegou a hua ponta , onde estava bua
pedra, que aadellonge pareeya gallee, por cuja
razom dally adyante chamarom a aquelle porto,
o porto da Gallee (2). E ally sayrom em terra,

(l) Lobo marinho é a Phoca fitulina de Linneo. No Roteiro


da viagem de fasco dn Gama, pag. 3, dia '21 de Decembro de
1497, se diz : « Achámos muitas balcas, e hiimas que se chamam
» quuquas e Lobos Marinhos. »
(?) Este porto com este mesmo nome sc acha marcado nãsi
onde acharom redes, que trouxerem ao navyo.
E aquy podees notar hua nova cousa , quanto a
nos que vivemos em esta Espanha, e esto he do
fvado de que aquellas redes eram feitas, o qual
era de casca de huu paao, assy ordenado pera
tal mester, que sem outro cor ti mento nem mes-
tura de linho, se pode bem fyar, e fazer delle
redes, e toda outra cordoalha (1). Edaquy se tor
nou Affonso Goncalvez pera Portugal , sem po
der aver certo conhecimento seaquelles homeês
eram Mouros, ou gentios, nem que vida trata
vam, ou maneira de viver tiinham. E foe esto
no anno de Jhu Xpõ de mil e quatro centos
xxxvj .

só no bellissimo Atlas Portuguez do xvi° seculo da Bibliotheca R.


de Paris R-B 17G4,mas tambem nas cartas Venezianas de Gastaldi
(1564). Barros, Decad. I, cap. v, foi. 1 1, diz : * Ponto a que ora
» chamão a psilra ila Gale. >
(IJ Barros diz Decad. I , cap. v, fol. 11: « No qual logar achou
thumas reiles de pescar, que parecia ser feito o flado delias, do
• entrecasco d algum pao, como ora vemos o fiado da palma que se
• faz em Gumé. »
— 66 —

CAPITOLLO XIo.

Das cousas que se fezcrom nos annos seguintes.

Dos annos seguintes nom achamos cousas


notavees que de contar sejam. Bem he que fo-
rom contra aquellas partes dous navyos, cada
huíí per sua vez, mas huíi se tornou por tempo
contrairo, e o outro hya soomente ao ryo do
Ou/o por pelles e azeite daquelles lobos mari
nhos, o qual avida sua carrega, se tornou pera o
regno (1). Eem este anno passou o nobre iffante
dom Henrique em Tanger, por cuja razom nom
envyou mais navyos contra aquella terra. E no
anno de xxxviij°. se fvnou deste mundo o muv
vertuoso eIRey dom Eduarte, ix. dyas de setem
bro, em Tomar, por cujo fallecimento se seguy-
ram no regno muy grandes discordyas, a as-
quaaes a presença do iffante foe tam necessarya,

(1) Vemos nas antigas cartas Portuguezas ineditas marcados


entre o cabo Bojador, e Angra dos Ruivos , os seguintes pontos :
Pcnha-Grande , Terra -Alta, e Sete-Montes além da Angra dos
Jiuivos. Estes navios alli abordarão provavelmente, e os nossos
maritimos derão áquelles pontos os nomes indicados nas ditas
cartas.
— 67 —
que de todallas outras cousas se esqueeceo por
acorrer e remcdvar aos perigoos e trabalhos em
que o regno estava (1). E esto era por quanto el-

(l) Os acontecimentos que obrigárão o Infante a interromper


as expedições e descobrimentos desde o anuo de 1437 até 1440,
para se dar aos cuidados dos negocios internos do reino, são tão
importantes, e tem tão intima relação com esta Chronica, que
julgamos opportuno indicál-os aqui summariamente.
0 Infante tinha regressado ao Algarve depois da expedição de
Tanger ( 1437 ) , e alli se achava em setembro do anno seguinte
quando el-Rei D. Duarte adoeceo em Thomar. Apenas o principe
soube que seu irmão enfermara partio para aquella villa. Logo
que el-Rei falleceo foi o principe chamado pela Rainha viuva , e
por ella encarregado de concertar com o infante D. Pedro e com
os grandes do reino os meios de prover com remedio eflicaz ás
dificuldades em que o reino se achava. 0 Infante convocou as
ditas personagens , as quaes decidirão que se devião juntar as
Cortes para tomarem as resoluções que julgassem opportunas.
O principe foi de parecer que as cartas convocatorias devião ser
assignadas pelo infante D. Pedro ; mas como elle a isto se ne
gasse, forão todos os papeis assignados pela Rainha, com a
clausula porém, que a dita assignatura continuaria até que a
assemblea dos Estados adoptasse um regulamento sobre este
assumpto. Ao mesmo tempo o Infante , pela sua costumada pru
dencia , foi escolhido para ser o medianeiro entre a Rainha e o
infante D. Pedro. Em virtude pois das propostas feitas por aquelle
principe, as quaes forão discutidas em diversas conferencias,
assentou-se que a Rainha seria encarregada da educação de seus
fllhos, e da administração de seus bens, e que o infante D. Pedro
seria encarregado 'da administração e governo do reino, com o
titulo de defensor do reino por el-Rei. (fid. Ruy de Pina, c. 15.)
Mas como um partido consideravel no Braço dos Povos não
admittis.se estearranjamento, e se augmentassem assim as desor
dens publicas, buscou de novo o infante D. Henrique conciliar
os diffcrentes partidos obtendo o accordào seguinte do conselho
e dos procuradores ou deputados do povo, o qual se publicou em
9 de Novembro de 1438. A saber :
Io Que a educarão d'el-Rei menor, e de seus irmãos, a faculdade
— 68 —

Rev dom Affonso, que esta estorva mandou scre-


Ver, ficava em idade de vj annos, e conviinha de
seer governado e regido, tam bem elle como seu
regno, per titores, sobre cujo senhoryo se se-
guirom grandes contendas, nas quaaes o iffante
dom Henrique trabalhou assaz, por bõo asses-
sego e paz, como mais compridamente acharees

de nomear para os empregos e carpos da corte, flcaria pertencendo


á rainha D. Leonor viuva, bem como lhe seria destinada uma
somma conveniente para satisfazer ás despezas da casa real ;
2o Que o conselho real se composesse de seis membros , os quaes
terião a seu carpo, alternativamente e em certos e determinados
periodos, os negocios d'estado que serião da sua competencia, e
isto conforme a ordem que as Cortes regulassem ;
3o Que alem deste conselho, fosse eleita uma deputação per
manente dos Kstados para residir na corte, a qual deveria ser
composta de um prelado, de um fidalgo, e de um cidadão, cada
um eleito pelo seu respectivo braro, ou camara, por um anno;
4° Todos os negocios de expediente deveriãoser tratados pelos
seis conselheiros, e pela depulação dos tres Estados sob a presi
dencia da Rainha , e com a approvação e consentimento do infante
D. Pedro. Se nos votos houvesse empate, deverião os ditos negocios
assim empatados ser submettidos aos infantes , aos condes, e ao
arcebispo, e serião então decididos pela maiorla. Se a Rainha se
accordasse com o Infante, o seu voto seria então decisivo, ainda
que o de todo o conselho fosse differente ;
.5° Todos os negocios da fazenda , exceplo aquelles que erão da
competencia das Cortes, serião tratados pela Rainha, e pelo In
fante, e os decretos, e ordens serião assignados por ambos, e os
vedores da fazenda ficai ião encarregados da sua execução;
6o Determinou-se finalmente que todos os annos se juntassem
as Cortes para nellas se resolverem as duvidas que os do conselho
por si não podessem decidir, como por exemplo : t Mortes de
» grandes homens, e privacão dofficios grandes, e perdimento de
» terras , e corregimento , ou fazimento de leis e ordenacões, e que
» nas Cortes futuras se podesse correger ou emendar qualquer drffcito
• ou erro que houvesse nas passadas, » (Ruy de Pina, rap. 15.)
— 69 —
na cronica ilo regnado deste rey dom Affonso.
E assy que em estes annos nom forom navvos a
allem daquelle cabo, pollas razooes que ja dis
semos. Bem he que no anno de quarenta se ar- '
raarom duas caravelas afim de irem a aquella
terra, mas porque ouverom aqueecimentos con-
trairos, nom contamos mais de sua vyagem.

Induzida porém a Rainha por um partido violento recusou-se


acceitar, e sancoionar estas resoluções, apezar das vivas instancias
do infante D. Henrique. Esta recusa da parte da Rainha, que logo
foi sabida pelas Cortes, produzio no publico uma grande fermen
tarão, a qual se extendeo ás mesmas Cortes, de maneira que ellas
deliberárão que o infante D. Fedro fosse só revestido da autori
dade de regente.
E' de avertir que o infante D. Henrique desaprovou constante
mente tudo quanto na camara de Lisboa, e em outros ajunta
mentos se tinha deliberado , deelarando formalmente que taes
assembleas procedião illegalmente arrogando-se o direito que só
ás Cortes pertencia. Este sabio principe, procedendo nestas diflfl-
ceis conjuncturas com experimentada prudencia e illustrada poli
tica , manifestou igualmente a sua indignação logo que soube que
a Rainha se tinha fortificado em Alemquer, e que lhe constou
que ella invocava o auxilio dos Infantes dWragão. Todavia isso o
não embargou de ir a Alemquer reduzir a Rainha a regressar a
Lisboa, afim de vir apresentar ás Cortes o Rei menor (1439) ; e tal
era o respeito que este principe inspirava , que a Rainha , que aliaz
tinha resistido ás persuasões das pessoas de maior autoridade ,
cedeo ás do Infante. No anno seguinte as divisões , em que o reino
ainda se achava, obrigárão o Infante a occupar-se dos negocios
publicos, da conciliação dos partidos, e de evitar a guerra çivil.
Taes forão os acontecimentos que motivárão a interrupção das
expedições, e portanto dos descobrimentos, no intervalo a que o
A. se refere. Esta mesma interrupção motivada por taes causas,
prova a sabedoria deste grande principe, e o seu disvelo pela
nação que teve a fortuna de o possuir.
— 70 —

CAP1TOLLO XIIo.

Como Antam Goncalvez trouxe os primeiros cativos.

Ja me parece que vou tomando alguu tanto de


prazer no recontamento desta estorva, porque
acho algua cousa com que satisfaça ao desejo
deste nosso principe; o qual desejo tanto he
mayor, quanto as cousas porque tam longa
mente trabalhou som mais acerca de sua vista.
Porem agora em este presente capitollo, quero
apresentar algua novidade de sua trabalhosa
sementeira. E foe assy que em aqueste anno de
quatro centos e quarenta e huu, a vendo ja os
feitos do regno alguu assessego, ainda que
grande nom fosse, fez o iffante armar huu na-
vyo pequeno, no qual mandou por capitam huu
Antam Goncalvez, seu guarda roupa, homem
assaz de nova idade ; e a fim da vyagem da-
queste nom era outra , quanto ao mandado do
senhor, senom de carregar aquelle navyo de
coirama c azeite, daquelles lobos marinhos de
que ja fallamos nos outros capitollos ante destes.
INom he porem de dovidar que o iffante lhe nom
desse aquelle meesmo carrego que dava aos ou
— 71 —
tios; mas quanto a idade daqueste era mais
fraca, e a autorydade pequena, tanto a enco
menda serva de menos encarrego, e per conse
guinte a esperança da fim de muyto mais pe
quena feuza. Acabada a vvagèm daqueste,
quanto ao principal mandado, Antam Goncalvez
chamou Affonso Goterres, huu outro moço da
camara , que era com elle, c assy os outros do
navyo, que eram per todos xxj., e falloulhes em
esta guisa : Irmaãos e amigos ! Nos teemos ja
nossa carrega, como veedes, na qual acabamos
a principal forca de nosso mandado, e bem nos
podemos tornar, se mais nom quisermos traba
lhar a allem daquello que nos principalmente
lbe encomendado ; mas quero porem saber de
vos outros, se vos parece que he bem que tente
mos de fazer algua cousa, perque aquelle que
nos ca envvou , possa conhecer algua parte de
nossa boa voontade, ca me parece que serya
vergonha tornarmos assy ante a sua presença,
com tam pequeno serviço. E em verdade eu con-
siiro, que, quanto nos esta cousa foe menos en
carregada pello ifiante nosso senhor, tanto de
vemos em ella de trabalhar com muyto mavor
peso. Oo que fremoso aqueecimento serva, nós
que viemos a esta terra por levar carrega de tam
fraca mercadorya, acertarmos agora em nossa
dita de levar os primeiros cativos ante a pre
senca do nosso principe ! E querovos dizer o
que tenho consiirado pera receber vosso avisa-
mento; eestohe, que em esta noite seguinte.
— 72 —

eu com nove de vos outros, aquelles que mais


despostos esteverdes pera o trabalho, quero ir
tentar algua parte desta terra , ao longo deste
ryo, pera veer se sento algua gente, ca me pa
rece que de razom devemos achar algua cousa ,
pois he certo que aquv ha gentes, e que trautam
com camellos c outras allimaryas, que levam
suas carregas; e o trefego daquestes principal
mente deve de séer contra o mar; e pois que
elles de nós ainda nom ham nhua sabedorya ,
nom pode o seu ajuntamento seer tamanho que
nós nom tentemos suas forças; e encontran-
donos Deos com elles, a mais pequena parte da
vitorya sera filharmos alguu, do qual o Iffante
nosso senhor nom sera pouco contente pera
cobrar conhecimento per elle de quaaes e que
jandos som os outros moradores desta terra.
Pois qual será o nosso gallardom , sabel loces
pollas grandes despesas e trabalho que elle nos
annos passados , soomente a esta fim, tem ofere
cidos. Vós veede o que fazees , responderom os
outros, ca pois capitam sooes, he necessarvo
que naquello que mandardes sejaaes obede
cido, nom comoAntamGllz (1); mas como nosso
senhor, ca bem devees de cuidar que aquelles
que aquv somos, da criaçom do lflante nosso
senhor, teemos desejo e voontade de o servyr,
ataa poer nossas vidas na sorte do derradeiro
perigoo. Porem a nos parece , que vossa enten-

(I) Ijéa-se Goncalvez.


— 73 —
cora he boa, com tanto que vós nom queiraaes
hi meter outra novidade , pela qual se nos re-
creça perigoo, com pouco serviço de nosso
senhor. E finalmente determinarom fazer seu
mandado, e o seguyr ataa onde mais chegar
podessem. E tanto que a noite sobreveo, Antam
Gllz apartou aquelles nove, que lhe mais autos
parecerom, e fez com elles sua vyagem, segundo
ante determinara. E seendo afastados do mar,
quanto podya seer hua legoa, acharom ally huíi
caminho, o qual guardarom, presumindo que
poderya per ally acudyr alguu homem , ou mo-
lher, que elles podessem filhar; e seguiosse de
nom seer assy, por cuja razom Antam Goncalvez
poz em prazimento aos outros, que fossem mais
avante seguyr sua entencom , ca pois ja demo
vidos eram , nom serva bem de tornarem assy
em vaão pera seu navyo. E contentes os outros,
parti rom dally, seguindo per aquelle sertaão
spaço de tres legoas onde acharom rastro de
homeês e moços, cujo numero, segundo seu
parecer, seryam de quarenta ataa cinquoeenta ,
os quaaes seguyam ao reves do que os nossos
andavam. A calma era muyto grande, e assy
por rezom della, como do trabalho que passado
tiinham , vellando a noite c andando assy de
pee, e sobre todo a myngua da augua, que hi
nom avya, sentyo Antam Gllz que o cansaco
daquelles era ja muv grande, aqual cousa elle
bem podya julgar per seu proprio padecimento.
Amigos, disse elle, aquy nom ha mais; nosso
trabalho he grande, e o proveito me parece pe
queno, quanto pello seguimento deste caminho,
ca estes homeês som contra a parte donde nós
viimos, e o milhor conselho que podemos aver,
he que voltemos contra elles, e pode secr que
aa volta que fezerem , se apartarom alguus , ou
per ventura chegaremos sobre elles onde jou-
verem em algua folga, c cometendoos de rijo,
pode seer que fugiram, e fogindo, alguu avera
hi menos ligeiro, de que nos podemos aprovei
tar, segundo nossa entençom , ou per ventura
sera nossa dita milhor, e acharemos xiiij. ou xv.,
com os quaaes faremos nossa presa de mayor
avantagem. Nom era este conselho em que se
podessc achar duvida , quanto nas voontades
daquelles, porque cada huu aquello meesmo
desejava. E voltando contra o mar, em pouco
spaço de seu caminho, viram huu homem nuu,
queseguye huu camello , levando duasazagavas
na maaõ, e seguindoo aquelles nossos, nom
avva hi alguu que de seu grande cansaço tevesse
sentido. E como quer que aquelle fosse soo, e
visse que os outros eram tantos, todavya quis
mostrar que aquellas armas eram dignas pera
elle, e começou de se defender o milhor que
pode, fazendo sua contenenca mais aspera do
que sua fortelleza requerva. Affonso Goterrezo
fervo de huu dardo, de cuja ferida o mouro
recebeo temor, e lancou suas armas como cousa
vencida; o qual filhado, nom sem grande pra
zer daquelles , hindo assy adyante , viram so
— 75 —
bre huii outeiro a gente, cujo rastro seguvam,
da soma dos quaaes era aquelle que trazyam
filhado. E nom falleceo per suas vopntades de
chegar a elles, mas o sol era ja muy baixo, e
elles cansados, consiirarom que semelhante co
metimento lhe podya trazer mayor damno que
proveito, e porem determinarom de se recolher
a seu navyo. E indo assy avvados, viram ir hua
moura negra, que era serva daquelles que fica
vam no outeiro, e posto que o conselho d'alguus
daquelles fosse que a leixassem hyr, por nom
travar nova scaramuça, de que pellos contrairos
nom eram requeridos , ca pois eram em vista ,
eo seu numero era mais quedobrez sobre elles,
nom podyam seer de tarn pequenos coraçooes,
que lhe leixassem assy levar cousa sua : — An-
tam Gllz todavya disse, que fossem a ella, ca
podia seer que o menos preço daquelle encon
tro farya aos contrairos cobrar coraçooês con
tra elles. E ja veedes, voz de capitam, antre
gente husa a obedeceer, quanto prevallece. Se
guindo seu acordo, a moura foe filhada , sobre
aqual os do outeiro (1) quiserom acudyr; mas
veendo os nossos aparelhados de os receber,
nom soomente se retraherom pera onde esta
vam , mas ainda fezerom vyagem pera outra
parte, voltando as costas aos contrairos. E assy

(I) Este outeiro se acha igualmente marcado nas cartas portu-


guezas ineditas da Biblioth. R. de Paris, situado ao sul do Río
do Oiro.
— 76 —
ajamos por acabado este capitollo , leixando
aquy repousar Antam Goncalvez, ataa que no
seguinte capitollo o façamos honradamente ca-
valleiro.
— 77 —

CAPITO LLO XIIIo.

Como Nuno Tristam chegou onde era Antam Goncalvez ,


e como o fez cavalleiro.

Porque o philosofo disse, que o começo eram


as duas partes da cousa , grande louvor outor
garemos a este honrado mancebo, por sua obra
cometida com tal atrevimento, ca pois foi o
primeiro que fez presa em esta conquista , avan-
tagem merece sobre todollos outros que ao des-
pois em ella trabalharom ; ca costume era antre
os Romaãos, segundo poem santo Agostinho,
naquelle livro que fez de civitate Dey,e Titolly-
yyo em suas decadas, que todos aquelles que
primeiramente fervam nas batalhas, ou entra
vam em muros, ou saltavam em navyos, per
conseguinte lhe davam avantajados acrecenta-
mentos em sua honra , os quaaes levavam no
dya do triumpho, em testemunho de sua ver-
tude, segundo mais compridamente reza Valle-
ryo, na soma que fez da estorva romaã. E porem
receba Antam Gllz sua cavallarva, segundo em
este capitollo entendemos de screver, e despois
lhe daremos comendas na ordem de Xpõ , cujo
— 78 —
avito ao dyante recebeo, fazendoo scripvam da
poridade deste nobre e grande principe. E por
memorya de sua honra, ajassc por contente de
seer registrado em este vellume , cujo teor pera
todo sempre, em quanto antre os homeês durar
scriptura , sera testemunha de sua bondade.
Hora saibamos como NunoTristam, huu ca-
valleiro mancebo, assaz vallente c ardido, que
fora criado de moço pequeno na camara do
Iffante, chegou a aquelle lugar onde era Antam
Goncalvez; o qual trazia hua caravella armada,
com specyal mandado de seu senhor, que pas
sasse a allem do porto daGallee (1), o mais longe
que podesse, e desy que se trabalhasse de filhar
gente per qualquer maneira que milhor po
desse ; o qual correndo sua vvagem , chegou
ally onde era Antam Gllz. E ja devees entender
qual serya sua ledice, seendo naturaaes de huu
regno,'e criados em hua casa, achandossc taiu
allongados de sua terra ; e leixando sua lingua
gem , que he de presumyr que ambos despen
dervam, huu em preguntar por novas de seu
senhor, e assy dos amigos e conhecentes, e o
outro em querer saber de sua presa ; disse Nuno
Tristam, que huu allarve que elle ally trazia,

(I) Chamámos a at tenção do leitor sobre estas instrucçOes do


Infante, as quaes provão, principalmente á vista das cartas do
seculo xvi nas quaes se encontra a nomenelatura portugueza, o
seguimento methodico com que estes descobrimentos erão orde
nados pelo Infante. '
— 79 —
que era servo do Iftànte seu senhor, fallasse
com alguu daquelles cativos, pera veer se en-
tendya sua linguagem , e que se se entendessem ,
que aproveitarya muyto pera saber todo o es
tado e condiçoões das gentes daquella terra. E
bem he que fallaram todos tres, mas a linguajem
era muy afastada híia das outras, pello qual se
nom poderom entender. E tanto que Nuno Tris-
tam sentyo, que nom podya mais saber da ma
neira daquella terra, do que lhe Antam Gllz
contara , quiserasse partyr ; mas aquella en-
veja, que Socrates louva nos vertuosos mance
bos , assoombrou seu coraçom per tal maneira ,
que quis ante veer se podya ante os olhos da
quelles fazer algiia cousa avantajada. Como,
disse elle contra aquelles que hyam em sua
companha , e razom he que leixemos nós
aquestes assy partyr caminho de Portugal , que
lhe primeiramente nom mostremos algua parte
de nosso trabalho ? Certamente vos digo, que
quanto pello que a mym acontece, a mym pa
rece que receberya enjurya , teendo ordem de
caval larva , se aquy nom fezesse outra presa
mais rica, porque o senhor Iffante possa cobrar
alguíi começo de paga sobre tanta despesa. En-
tam fez chamar Antam Gllz, e assy os pririci-
paaes que levava com sigo, pera lhes mostrar
sua entençom. Vos, disse elle, Antam Gllz
amigo, sabees a voontade do Iffante nosso se
nhor, sobre aqual tem feitas muytas e muy
grandes despesas , e ataagora de xv annos a esta
— 80 —
parte , nunca pode seer certo da gente desta
terra, em que ley nem cm que seuhorvo vivem.
Ecomo quer qucvós levees ja estas duas almas,
perque elle algua cousa poderá saber, nom se
tolhe porem que nom seja muvto milhor se
levarmos outros muvtos mais, porque a allem
da sabedorya, que o senhor IÍFante per elles
avera, seguyrselheha proveito de sua serventya
ou rendicom. Porem me parece que he bem
que façamos desta guisa, que em esta noyte se
guinte, vós scolhaaes dez homees dos vossos,
e eu scolherev outros dez dos meus, dos mi-
lhores que cada buu tever, e que vaamos bus
car aquelles que vós achastes. E pois que dizees
que, segundo vossa tençom, nom seryam mais
de xx homees de pelleja, e os mais molheres e
moços, em breve os poderemos todos filhar;
e que nom achemos aquelles, poderemos achar
outros em que podemos fazer essa mesma presa,
ou per ventura outra muvto mayor. Eu nom
creo, disse Antam Gllz, que nossa yda seja certa
quanto em busca daquelles que nós achamos,
ca o lugar he huíi outeiro raso, em que nom
avya casa nem choça em que homem cuidasse
que elles se podyam alojar, quanto mais que
nós os vimos tornar, como homees que eram
ally viindos doutra parte. E o peor que me
desto parece he, que aquelles meesmos teerani
avisados todollos outT-os, e per ventura onde
nós cuidamos do tomar a elles, seremos torna
dos sua presa. Esto consiiraae bem, e onde es
— 81 —
tamos com algua vitorya, nom tornemos a
receber dano. E como quer que este conselho de
Antam Gllz fosse bõo, segundo a desposicom
do caso, e Nuno Tristam quisesse condecender
a elle, eram hi dous scudeiros, a que a rezom
nom abastava ante o desejo que traziam de bem
fazer. Gonçallo de Sintra avya nome híiu da-
quelles, cuja bondade no prosseguimento da
estorva podees conhecer, c o outro Dicgue Anes
de Valladares, scudeyro val lente per seu corpo,
provado em muytos e grandes perigoos. E estes
dous fezerom partyr o conselho do que Antam
Gllz quisera, per tal guisa, que tanto que foe
noite , partiram segundo a ordenança que Nuno
Tristam primeiramente dissera. E tal foe sua
ventura, que assy de noite forom dar onde a
gente jazia espargida em dous allojamentos,
hora fosse aquella que Antam Gllz achara, ou
outra algua semelhante ; o apartamento porem
dos allojamentos era pequeno, e os nossos se
partiram em tres partes, porque os podessem
mylhor acertar, ca ainda nom avyam certa sa-
bedorya do lugar ondejaziam, soomente quanto
avyam sentimento delles, assy como veedes que
semelhantes cousas se sentem muyto mais de
noute que de dya. E tanto que forom acerca
delles, cometeronos muy de rijo, chamando em
altas vozes, Portugal e Santiago ! cujo espanto
tornou os cqntrairos per tal guisa, que os meteo
todos em desacordo, e assy desacordados, co-
meçarom de fogyr sem nhíia ordenança de
(i
— 82 —
reguardo. Empero os homêes fazyam algím
contenença de se defender com suas azagayas,
porque doutras armas se nom sabem aprovei -
tar, specialmente huu daquelles , que se teve de
rostro com Nuno Tristam, defendendosse ataa
receber morte. E aallem daqueste que Nuno
Tristam per sy soo matou, os outros matarom
tres, e prenderom dez, antre homces e mo-
lheres e moços. E nom he duvida que outros
muytos mais nom morrerom , ou prenderom ,
se os todos acertarom juntamente ao primevro
topo. E antre estes que assy forom presos, era
huu grande antre aquelles, que se chamava
Adahu, que dizyam que era cavalleiro, e bem
mostrava elle em sua contenença teer avanta-
gem de nobreza sobre os outros. Àntre aquelles
dez que ja dissemos que eram com Nuno Tris
tam, avia huu Gomez vinagre, moço de boa
geeraçom , criado na camara do Iffante, o qual
mostrou em aquella pelleja, quejanda sua força
ao dyante serva , pello qual ao despois foe posto
em honrado acrecentamento. O feito assy aca
bado como teemos scripto, juntaronse todos
assy como forom na pelleja, e começarom de
requerer Antam Gllz, que fosse cavalleiro, o qual
menos preçando seu trabalho , dizia que nom
era razom que por tam pequeno serviço ouvesse
de receber tamanha honra , mayormente que sua
ydade nom o requerya, nem elleper sua voontade
nunca o serva , salvo despois que passasse per
mayores feitos. E finalmente assy por os sobejos
— 83 —
requerimentos dos outros , como por Nuno
Tristam sentyr que era razom , ouve de fazer
Antam Gllz cavalleiro, ainda que fosse contra
seu querer ; por cuja razom dally avante cha-
marom a aquelle lugar o porto do cavalleiro (1).
E assy foe este o primeiro cavalleiro que foe feito
em aquellas partes. Recolheitos aquelles capi-
taães a seus navyos , mandarom a aquelle alarve,
que Nuno Tristam levava comsigo, que Pallasse
com aquelles Mouros, e nunca o poderom en
tender, porque a linguagem daquelles nom he
mourisca, mas azaneguya (2) de Zaara (3), ca
assy chamam a aquella terra ; mas o cavalleiro

( I j Este porto do Cavalleiro se vè marcado na carta d'Africa do


atlas portuguez da Biblioth. R. de Paris já citado , e em outra
magnifica carta portugueza em pergaminho da mesma Biblio-
theca, igualmente do seculo xvi ; naquellas cartas se lê aquelle
nome áquem do cabo Branco , o qual fica situado a 20 gr. 4G™,
55 lat. Piort.
(2) ftd. Ritter: Géogr. comparée, t. III , 3G6 — Azenagha. Este
A. diz que fallão Berbere. Sobre esta lingoa vide o curioso artigo
Berber de M. d'Avezac , na Eneyelopédie des gens du monde.
Quanto aos Azenegues, Barros diz (Decad. I , liv. I, c. 2) : «Os
> paizes que habitão os povos Azenegues que confinão com os
• negros de Jalof, onde se começa a região da Guiné. >
(3) Salsará. Denominação que significa deserto. Os geografos
tem usado dos seguintes nomes Zahará , SSahhani , Sarra , e Sahar.
Os habitantes deste mar d'area chamão-lhe Salmracin (Sarra
cenos), ^/Aos do deserto (vid. Ritter, III, 360); todavia esta deno
minação de Sarracenos foi applicada em grande generalidade
pelos AA. da Idade Media , principalmente pelos chronistas chris-
tãos. Plano Carpino, por exemplo, julga que na índia eaistião
Sarracenos negros.
Sobre as qnestfSos elymologiras á cerca deste nome, fid. a
— 84 —
parece que assv como era nobre antre os outros
que ally eram cativos, assy vira mais cousas e
milhores, e andara outras terras onde aprendera
a linguagem mourisca, e portanto se entendya
com aquelle alarve, ao qual respondya a qual
quer cousa que lhe preguntava. E por tentarem
os da terra , e averem delles algíiu mais certo
conhecimento, poscrom aquelle alarve fora, c
hua daquellas mouras que tiinham presas, que
fossem dizer aos outros, que se quisessem viir a
elles fallar sobre resgate dalguu daquelles que
tiinham presos, ou sobre trauto de mercadarya,
que o poderyam fazer. E a cabo de dons dyas
acudyram ally ataa el. mouros de pce, e xxxv.
antre de cavallos e de camellos, e trouverom o
mouro servo com sigo. E como quer que a ade-
fora parecessem gente barbaryca e bestial , nom
faleceo em elles algua parte de astucia, com
aqual quiserom enganar seus imiigos, ca soo-
mente parecerom tres ante a ribeira , e os outros
ficarom em cillada, afim de os nossos sairem

excellente obra de M. Renaud , intitulada : « Invasions des Sarra-


» sins en Francc , IV partie, p. 227 eseg.
« A tingoagem daquelles não he Mourisca. •
Entre as differentes tribus Africanas que invadirão a França ,
havia diversas que fallavão differentes lingoas. M. Renaud, na
obra citada , diz :
« Une partie seulement parlait la langue arabe; le reste faisait
» usage du berhér, ou de tout autre idiome. » Este sabio orienta
lista cita o A. arabe lbn-Aleouthya (vid. Invasions des Sarrnsins ,
p. 242).
— 85 —

cm terra desavisados do engano, e os que esta


vam escondidos os poderem filhar; aqual cousa
bem poderom fazer segundo sua multidom, se
os nossos forom homêes ile mais baixo avisa-
mento. Os Mouros sentindo que eram entendi
dos, e esto porque vyam que os dos batees
faziam volta porque o servo nom pareeya, des
cobriram o fingimento do seu engano, parecerom
todos ante a face da ribeira, remessando suas
pedras, e fazendo suas maneiras; onde mostra -
rom aquelle allarve que a elles fora envyado,
preso como homem que queryam teer em sogei-
çom de cativo, o qual lhes disse, que se guar
dassem daquellas gentes, ca nom eram ally
viindos, senom por lhe errarem se podessem.
E entom se toruarom os nossos aos navyos ;
onde fezerom sua repartiçom dos cativos, se
gundo a sorte de cadahuu , e os outros Mouros
se tornarom pera seus allojamentos, levando
porem o allarve com sigo. E Antam Goncalvez
porque tiinha ja seu navyo carregado , segundo
lhe o Iffante mandara, tornousse pera Portugal ,
e Nuno Tristam seguyo mais avante, por com-
prir seu regimento, como ante dissemos que
trazia mandado. Empero despois da partida de
Antam Gllz, visto como sua caravella compria
seer repairada, fezea poer em terra, onde a fez
alimpar e correger do que lhe compria, aguar
dando sua marce, como se fosse ante o porto de
Lixboa, de cujo atrevimento muytosforom ma^
ravilhados. E seguindo sua vyagem, passarom
— 86 —
o porto da Gallee, ataa que chegarom a huu
cabo, ao qual poserom nome o cabo branco (I) ,
onde sayrom em terra por veer se podyam
fazer algíia presa. E pero que achassem rastro
dhomêes, e ainda redes, ouverom conselho de
se tornar, visto como por aquella vez nom po-
dyam avantajar sobre seu primeiro aqueeci-
mento.

(1) Este cabo fica em 20 gr. e 46m, 55 lat. Píort., como dissemos
nota 4 , conforme as observações do almirante Roussin.
(

— 87 —

CAPITOLLO XIIII0.

Como Antam Glli, e despois Nuno 1 tistam , chegarom ant»


n lflante com sua presa.

Nom posso contemplar na chegada destes na-


vyos, com a novydade daquelles servos ante a
face do nosso principe, que nom ache algua
deleitacom, porque me parece que vejo ante os
olhos, qual serva sua folgança, porque quanto
as cousas som mais desejadas, e se mais e
mayores trabalhos por ellas despoõe, tanto tra
zem com svgo mayor deleitacom , quando as
homem pode cobrar. Oo santo principe ! E per
ventura serva o teu prazer e a tua folgança, sob
algua semelhança de cobiiça, do entender de
tamanha soma de riquezas, como tiinhas des
pesas por chegares a esta fim , e veendo agora
o começo do retorno , cobravas ledice, nom
pella cantidade daquelles, mas polla sperança
que tiinhas dos outros que podyas aver ! Por
certo nom era do teu magnanimento coraçom a
nembrança de tam pequena riqueza ! E justa
mente lhe posso chamar pequena, em compe-
raçom de lua grandeza, sem aqual nom podyas,
— 88 —

nem sabyas começar nem acabar algíia parte de


teus feitos, soomente hua santa entençom , que
avyas de buscar salvaçom pera as almas perdi
das, segundo j a disse no vij° cap°. desta obra,
pello qual te pareceo, quando viste aquelles em
tua presença, que nom tiinhas algua cousa des
pesa : tanto te prazia de sua vista, ainda que a
força do ttiayor bem era delles meesmos, ca
posto que os seus corpos stevessem em algua
sogeiçom, esto era pequena cousa em compara-
çom das suas almas, que eternalmentc avyam
de possuyr verdadeira soltura.
Antam Gllz chegou primeiro com a parte de
sua presa , e despois Nuno Tristam , cujo pre
sente recebimento, e despois gallardom, cor-
respondeo assy ao seu trabalho passado, como
a terra proveitosa com a pouca semente ao seu
lavrador, aqual por pequena parte que receba,
sempre acude com grande melhorya de fruito.
— 89 —

CAPITOLLO XVo.

Como o iflante dom Henrique envyou sua embaixada


ao sancto Padre , e da reposta que ouve.

Ainda que a linguagem daquelles presos nom


podesse seer entendida per nhuus outros Mou
ros que em esta terra estevessem , hora fossem
forros ou cativos, abastou pera começo o que
aquelle cavalleiro que Antam GUz trouxera
soube dizer, pello qual o lffante foe em conhe-
cymento de muy grande parte das cousas da-
quella terra donde elle morava. E consiirando
como era necessaryo mandar la muytas vezes
seus navyos armados com suas gentes, onde de
necessydade conviinha pellejar com aquelles
infiees, porem ordenou logo de envyar ao sancto
padre, por lhe requerer que partysse com elle
dos thesouros da saneta Igreja, pera salvaçom
das almas daquelles, que nos trabalhos desta con
quista fezessem sua fim (1) ; na qual embaixada

(1) Julgamos opportuno, para melhor illustração deste facto,


transcrever aqui as razões que o Infante tivera segundo Barros para
pedir ao Papa aquella concessão : « O Infante, como seu principal
» intento em descobrir estas terras, era attraher as barbaras nações
— 90 —
envyou huu honrado cavalleiro da ordem de
Xpõ, que se chamava Fernam Lopez Dazevedo,
homem de grande conselho e autoridade, pello
tpjal fora feito comendador mor naquella or
dem, e assv do conselho delRev e do Iffante.
Outras cousas porem levava elle de grande sus-
tancia pcra requerer a aquelle summo pontifico,
assy como as indulgencias de sancta Maria dA-
frica, que he em Cepta, com outras muytas
graças que do papa empetrou, cuja verdadeira
forma na estorea gceral do regno podees achar.
E quanto a esta parte que aquy de presente
convem screver, o sancto padre foe muy ledo
de lhe outorgar semelhante graca, segundo mais
compridamente podees veer pello trellado de sua
letra, que aquy asseentamos por vosso milhor
conhecimento."
« Eugenius episcopus servus servorum Dey etc.
» Em memorva e remembranca pera todo sem-
»pre. Empero que sem merecimento tenhamos
»as vezes de Jhu Xpõ nosso senhor, que nom

» ao jugo de Christo , e de si a gloria e louvor destes reynos,


» com acrescentamento do patrimonio real, sabendo pelos cap-
• tivos que Antão Goncalvez e Nuno Tristão trouxerão as cousas
» dos moradores daquellas partes ; quiz mandar esta nova ao
» papa Martinho V pedindo-lhe que por quanto avia tantos
» annos que elle continuava este descobrimento, em que tinha
> feito grandes despezas de sua fazenda , e assi os naturaes deste
» reyno que nelle andavão ; lhe aprouvesse conceder perpetua
» doação á coroa destes reynos de toda a terra que se descobrisse
» por este nosso mar Occeano do cabo Bojador té ;is índias in-
» clusive, etc. » (I)ec. I , liv. I , cap. 7.)
— 91 —
» recusou seer sacrifficailo em preço da sal vaçom
»da humanal linhagem, per cuidados conti-
«nuados nos enelinamos a aquellas cousas que
»som destroiçom dos errores e maldades dos
» infiees, e perque mais toste as almas dos bõos
» e catholicos xpaãos venham a sal vaçom : Como
» assy seja que da parte de nosso amado filho e
« nobre barom Henrique, duque de Viseu, e mi-
« nistrador no spiritual e temporal, da cavalla-
» rya da ordem de Jhíi Xpõ , nos foe notificado ,
»que confyando firmemente na ajuda de Deos,
»por destroyçom e confundimento dos Mouros
»e imiigos de Xpõ a aquellas terras que per
» elles som detheudas, por eixalçamento da fe
»catholica, entende com gente darmas pessoal-
» mente ir, e seu eixercito encaminhar contra
» elles : Eempero que per os tempos elle hy per-
Msoalmente nom seja, os caval leiros e irmaaõs
»da dieta ordem, e assy todollos outros fiees
» xpaãos, que contra os dictos Mouros e outros
» imiigos da fe, que contra elles, com a graça de
»Deos, batalha e guerra quiserem mover e mo-
» verem sob a bandeira da dieta ordem : Nos por
» tal que esses fiees xpaãos com mayor fervor se
» movam e animem aa dieta guerra : A todos e
»a cada huu que na dieta guerra e batalha fo-
» rem , per autoridade apostollica, e per o theor
» das presentes letras, concedemos e outorga-
»mos comprida perdoanca de todos seus peca
-los, dos quaaes de coraçom sejan) contritos,
»c per boca confessados. E nom convenha a
— 92 —

» nhuu esta carta de nosso mandado quebrar,


»ou contradizer, e qualquer que contra esto
m presomyr fazer, aja a maldiçom do todo pode-
n roso Ucos, e dos bem aventurados apostollos
» sam Pedro e sam Paullo. Dada etc. (1) » Ou-
trossy o iffante dom Pedro, que a aquelle tempo
regya o regno em nome delRey , deu ao Iffante
seu irmaão carta, per que ouvesse todo o quinto
que a elRey perteecia , e esto pollas grandes des
pesas que acerca dello tiinba feitas. E consii-
rando comoaquello per elle soomente fora bus
cado e achado, nom sem grandes trabalhos e
despesas, lhe outorgou mais , que nhuu nom po-
desse la ir sem sua licença e especial mandado.

(1) Além desta bulla, o papa Nicolao V cxpedio oulra datada


de 8 de Janeiro de 1450, concedendo a elRei D. Alfonso V todos
os territorios que o infante D. Henrique havia descoberto (Jreluvu
R. da Torre do Tombo Mac. 32 de hullas n° 1"). Em 8 de Janeiro
de 1 454 o mesmo Papa ratificou e concedeo por outra bulla a el
Rei D. Alfonso V, e ao infante D. Henrique , e a todos os reis de
Portugal seus successores, todas as conquistas d'Afrlca com as
ilhas nos mares adjacentes desde o cabo Bojador, e de N5o até todn
a Guineu, com toda a sua costa meridional (Archivo R. Mac. 7 de
bull., n° 29 , e Mnc. 33 , n° li). Esta bulla foi publicada por Du
mont, Corps diplomai, univ., III, p. 1, 200.
Em 13 de Março de 1455 Calisto 111 determinou por outra
bulla que o descobrimento das terras d'Africa occidental assim
adquirido por Portugal , como do que se adquirisse , o não possão
fazer senão os reis de Portugal , e confirmando as de Martinho V
e de Nicolao V sobre o mesmoobjecto (--irch. R. Li», dos Mestrados
fol. 159 e 165).
Veja-se igualmente a outra bulla de Xisto IV de 2 1 de Junho de
1481, que é mui curiosa (Archivo R. Mac. G de Buli., n« 7, c Mac.
I2,n°23.)
Veja-se igualmente Barros, Deead. 1, liv. I, c. 7.
CAPITOLLO XVIo.

Como Antam Glli foe fazer o primeiro resgate.

Como sabees que naturalmente todo preso


deseja seer livre, o qual desejo tanto he mayor,
quanto a rezom ou nobreza mais abasta na-
quelle que per fortuna se acertou de viver em
sogeiçom alhea; e assy aquelle cavalleirõ de que
ja fallamos, veendosse posto em cativeiro, no
qual como quer que fosse docemente tratado,
desejava seer livre, pollo qual muytas vezes
requerya a Antam Gllz que o levasse a sua
terra, onde lhe afirmava que darya por sy cin-
i|tio ou seis Mouros negros, e assy Ibe diria que
eram ally antre os outros cativos, dous moços
de semelhante rendiçom. Eaquy avees de notar
que estes negros postoque sejam Mouros como
os outros, som porem servos daquelles, per
antiigo costume, o qual creo que seja por causa
da maldiçom, que despois do deluvyo lançou
Noe sobre seu filho Caym, pella qual o mal
disse, que a sua geeracom fosse sogeita a todal-
las outras geeraçooês do mundo, da qual estes
descendem, segundo screve o arcebispo dom
Rodrigo de Tolledo, e assy Josepho no livro das
— 94 —
antiguidades dos Judeus, e ainda Gualtero, com
outros autores que fallarom das geeraçoões de
Noe depois do saimento da arca. A voontade de
Antam Gllz nom era tam grande de tornar a
aquella terra por cobiiea do resgate, ainda que
prôveitoso fosse, quanto avia desejo de servyr
ao Iffante seu senhor, e porem lhe requereo
lisença pera ello, dizendo, que porquanto elle
sentya o grande desejo que sua mercee avia de
saber parte daquella terra, e nom sabya se lhe
abastava o que per aquelle mouro soubera , que
lhe desse licença de o ir resgatar aquelle e assy
os moços, ca segundo lhe o mouro afirmava, o
menos que por sy daryam seryam dez Mouros,
e que milhor era salvar dez almas que tres, ca
pero negros fossem , assy tiinham almas como
os outros, quanto mais que estes negros nam
viinham da linhagem de Mouros, mas de gen-
tyos , pello qual seryam milhores, de trazer ao
caminho da salvaçom, e que pellos negros po-
dya ainda saber novas da terra muyto mais
longe; dizendo ainda AntamGllz, que elle tec-
rya mancyra, quando no trato fallasse, de se
trabalhar de saber as mais novas que elle po-
desse. 0 Iffante respondendo a todo, disse que
lho liinha em serviço , e que nom soomentè da
quella terra desejava daver sabedorya, mas
ainda das Indyas, e da terra de preste Joham ,
se seer podesse (1). Antam Gllz foe prestes com

1 1 Sobre a influencia que leve uns descobrimentos «los Portu


— 95 —
seus Mouros , c começando fazer sua vyagem ,
sobreveo tam grande tormenta, que lhe foe
necessaryo tornar outra vez a Lixboa, donde
partira. E acertavasse de seer ally huu gentil
homem da casa do emperador dAllemanha (1),
oqual se viera a casa do IÍTante com entençom
de o avyar pera Cepta, onde desejava seer ca-
valeyro, fazendo primeiramente tanto por sua
honra per que o merecesse, cujo nome era Bal
tasar; e certamente, segundo aprendemos, que
o coraçom nom lhe falleceo pera seguyr seu bõo
proposito, ca com muy grande honra recebeo
sua cavallarya , fazendo primeiramente muy
assiinadas cousas per sua maão, como na esto-
rea do regno milhor podees saber. E este dezia
per muvtas vezes, que desejava muy to, ante
que desta terra partisse, veer algua grande tor
menta, pera poder fallar em ella a aquelle, que
a nunca vi iram. E certamente que lhe nom foe
a fortuna escassa no comprimento de seu desejo,
ca elle se acertou de seer com Antam Gllz, como
ja dissemos , querendo ir veer aquella terra
ante que desta partisse, e foe a tormenta tam

guezes a noticia que desde o tempo das crusadas se espalhara


pela Europa da existencia de um soberano Christão chamado
Presle João, que se dizia habitar no centro da Asia, alias paga,
remetlemos o leitor á nossa introducçaõ.
(I) Barros diz que « eru gentil homem da casa ilo emperador
Frederico 111 , o qual, com desejo de ganhar honra, viera dirigido
pelo mesmo emperador. > (Decad. I, c. 7.) Este emperador des
posou a infanta I). Leonor de Portugal.
— 96 —
grande que per maravilha scaparom de perdi-
çom. Empero todavija tornarom outra vez a
seguir sua vyagem , e seendo ja em as comarcas
daquella terra onde se o resgate avya de fazer,
acordarom de lançar ally fora o cavalleiro
mouro, porque podesse ir dar avyamento a seu
resgate a aquelle lugar onde lhe Antam Gllz
tiinha assiinado. O Mouro era muy bem vestido
de roupas que lhe o Iffante mandara dar, con-
siirando que polla excellencia da nobreza que
em elle avya sobre os outros , recebendo ben-
fei torva, poderya aproveitar em anymaçom
daquelles pera os trazer a trautos de merca-
darya. E tanto que se vyo fora, esqueceosse
muy asinha de suas promessas, sob cuja segu
rança Antam Gllz delle fiava, pensando que a
nobreza que mostrava , serva seu principal cos-
trangedor de nom quebrantar sua fe; de cujo
engano dally avante todos receberam avisa-
mento de nom fyar de nhuu sem mais certa
segurança. E seendo Antam Gllz com seu navyo
entrado pello ryo do ouro quatro legoas, fez
lançar suas ancoras, sobre as quaaes esteve
vij. dyas, sem aver recado nem vista de nhuu
morador daquella terra ; mas ao oitavo dya che
gou hi huu Mouro em cima de huu camello
branco, e outro com elle, pera dar recado per
que esperassem os outros que avyam de viir
fazer o resgate, c que no outro dya seryam
ally, como de feito forom. E bem parece que
aquelles moços eram antre elles de grande
— 9? —
honra, ca forom juntos em seu resgate bem
cento antre Mouros e Mouras, dosquaaes Antam
Gllz recebeo, por preço de seus dous cativos,
dez negros antre Mouros e Mouras, de terras
desvairadas, seendo trautador antre elles huíi
Martym Fernandez , que era Alfaqueque do If-
fante. E bem parece que avya grande sabedorya
da linguagem mourisca, pois antre aquelles era
entendido onde o outro allarve, que era Mouro
de naçom , nom podera achar quem o enten
desse senom huu soo. E a allem dos negros
que Antam Gllz recebeo daquella rendiçom,
ouve ouro em poo, ainda que pouco fosse, e
hua darga, e muytos ovos dema, em maneira
que vierom huu dya aa mesa do Iffante tres
iguaryas delles, tam frescos e tam bõos como se
foram dalguas outras aves domesticas. E bem
he de presumir que principe xpaão nom serva
em esta parte da xpiíndade, que semelhantes
iguaryas em sua mesa tevesse. E segundo con-
tarom aquelles Mouros, ha em aquella parte
mercadores, que trautam com aquelle ouro,
o qual parece que se acha antre elles (1) ; mas o
Mouro caval leiro nunca tornou a satisfazer a

(1) 0 A. parece ignorar que o oiro era alli trazido do interior


pelas caravanas que desde a antiguidade fazião este connnercio a
travez do grande deserto , principalmente depois da invasão dos
Árabes. Sob o imperio dos khalifes este commercio do interior
d'Africa se estendia não só até á exlremidade "occidental deste
continente, mas até mesmo á Hespanha. As caravanas atraves-
savão os valles e planicies de Suz, de Darph e de TnfiUl ao sul de
7
— 98 —
sua menagem , nem tam pouco se nembrou do
benefíicio; pello qual Antam Gllz perdendo,
aprendeo a seer cautelloso onde o ante nom era.
E tornado ao Iffànte seu senhor, recebeo delle
mercee, e nom menos o caval leiro allemam,
o qual despois honradamente , e com grande
bemfeitorya do Iffante, tornou pera sua terra.

Marrocos. (Vid. Geographia Nubiensis, édit. de 1619, pag. 7, 11,


12 e 14. Hartmann's Edrisi, pag. 26, 49, 133, 134.
Este oiro de que trata o A. vinha do paiz dos negros chamado :
Ouangnra , como se vè em Edrisi, e em lbn-el-Ouardi nas Notices
et Exlraiti des manuscrils de la Bibliothèque du Roi, fol. 1 1, p. 33
e 37.
Marmol y Carvajal , e Leaõ Africano folião varias vezes do oiro
de Tiber trazido de Ouangara.
A denominação de Tiber é derivada da palavra arabe Thibr,
que significa oiro. (fid. Walekenaer, Recherchcs géographiques
sur Vintérieur de VAfrique , p. 14.)
Cadamosto , tratando do commercio d'Arguiin, diz, Cap. X,
que alli trazião oiro Tiber.
Barros ( Decad. I , c. 7 ) diz : « É huma quantidade de ouro em
pó, que foi o primeiro que nestas partes se resgatou, donde
ficou a este lugar por nome Rio do Ouro , sendo somente hum
esteiro d'agoa salgada que entra pela terra dentro obrn de seis
legoas. »
— 99 —

CAPITOLLO XVIIo.

Como Nuno Tristam foe aa ilha de Gete ,


e dos Mouros que fllhou.

Assy forom estas cousas crecendo pouco c


pouco, e as gentes tomando ousyo de seguyr
aquella carreira, huus por servyr, outros por
guaanhar honra, outros com sperança de pro
veito , aindaque cadahua destas duas cousas
traga consigo ambas, e esto he que em servindo
aproveitavam em sy, e acrecentavam em sua
honra. E noanno de xpõ de mil iiijc. ^fliij. (1) fez
o Iffante armar outra caravella , na qual man
dou aquelle nobre cavalleiro Nuno Tristam,
com outras alguas gentes , e principalmente de
sua casa ; e seguindo sua vyagem , chegarom ao
cabo branco. E querendo seguyr mais avante,
passando o dicto cabo quanto podya seer xxv.
legoas, viram hua ilha pequena, cujo nome ao
dyante souberam que avya nome a de gete (2) ,

(1) 1443.
(2) Esta ilha é a de Arguim. Barros ( Dccad . 1 , c. 7 ) diz : « Que
Nuno Tristão desta viagem passou avante até huma ilha á qual
os da torra rhamão Adrgei , r A qual nns ora chamamos de Ar
— 100 —
da qual viram partir xxv almaadyas de paao, e
cm ellas soma de gente, empero todos nuus,
Dom ainda tanto pella necessydade da augua,
como por seu antiigo costume. E tiinham tal
maneira em sua passagem , que os corpos hyam
sobre as almaadvas, e as pernas pella augua (1),

guim. » Os Arabes chamão-lhe Chir, que Azurara eonverteo em


Gete, e Barros em Argei .
0 descobrimento e posse deste ponto foi para os Portuguezes
de grande importancia. Este descobrimento facilitou-lhes os
meios de obter noticias, e estabelecer relações com os Estados
negros situados nas margens do Senegal , e do rio Gambia.
O Infante fez alli construir um forte cuja edificação teve prin
cipio em 1448. Cadamosto nos dá largas noticias do estado das
relações commerciaes , que os. Portuguezes alli estabelecerão com
os habitantes do interior, e o piloto Portuguez, autor da Nave
gação á ilha de S. Thomé (1558) , publicada na Coll. de Ramusio,
e traduzida em portuguez (ei>i. Mem. para a Hist. das Nações
ultram., t. I), diz fatlando A\-irguim :
c Onde ha um grande porto, e hum castello d'el-Rei N. S'. no
» qual elle tem guarniçaõ e hum feitor seu. Arguim é habitada por
» Mouros negros, c aqui saõ os confins que dividem a Barbaria do
» paiz dos negros. » Bonlone, no seu Jsolario (1528), falla larga
mente das nossas relações commerciaes naquelle ponto com o
interior do paiz.
No anno de I G38 esta feitoria , e o castello nos foi tomado pelos
Hollandezes. Em 1GG5 os Inglezes o tomárão aos Hollandezes,
os quaes o retomárão depois. Em 1 678 os Francezes poderão con
seguir estabelecer-se alli pela primeira vez, e destruiraõ a forta
leza que alli tínhamos construido ; mas em 1 685 os Hollandezes
tornarão a recuperar aquelle ponto, no qual se conservárão até
1721 em que forão surprehendidos pelos Francezes, os quaes
forão de novo repelidos pelos Hollandezes, no anno seguinte,
ajudados dos Mouros.
(I) Estas embarcações devem seras que vulgarmente se cha-
mào jangadas.
— 101 —
com as quaaes se ajudavam, como se fossem
remos ; e cadahua daquellas levava tres ou qua
tro. E porque era cousa que aos nossos tam
pouco sohya seer em huso, veendoos de longe,
pen6arom que eram aves que andavam assy, e
aindaque na grandeza fezessem algua deferença ,
pensarom que podyam seer em aquella parte,
onde se contava de outras mayores maravilhas ;
mas tanto que conhecerom que eram homeês,
forom seus coraçooês vestidos de nova ledice,
principalmente porque os viram aazados pera
os poderem filhar. Mas nom poderom fazer ta
manha presa em elles por causa da pouquidade
de seu batel , noqual teendo xiiij>. metidos , com
sete homeês que forom da caravella, foe tam
carregado que nom pode mais sofrer; e que
quiserom tornar outra vez, nom lhes trazia
proveito, porque o temor foe tamanho nos con-
trairos, pello qual se trigarom tanto de fogir,
que ante que chegassem aa ilha, morrerom al-
guus, e os outros scaparom. Mas no filhamento
daquelles avya dous contrairoS, ca primeira
mente o prazer era em elles muy grande, veen-
dossc tam assenhorados de sua presa , daqual
se podyam aproveitar com seu tam pequeno pe-
rigoo; doutra paute nom reccbyam pequena
tristeza, porque seu batel era tam pequeno que
nom podya levar tamanha carrega como elles
desejavam. Empero chegarom aa ilha , e filha—
rom ainda xv. Mouros. E junto com esta ilha
acharom outra, em que avya infundas garças
— 102 —
reaaes(l), asquaaes parece se ajuntavam ally
pera criarem, como de feito criavam, e assy
outras muytas aves, de que ouverom grande
refesco. E assy tornou Nuno Tristam com sua
presa, ja quanto mais alegre que a primeira,
assy polla avantagem da grandeza, como por seer
guaanhada mais longe, e ainda sem companhya
doutro com que per igualleza ouvesse de fazer
partilha. O recebimento e merce, que lhe o If-
fante fez, leixo de screver, porque repricallo
cada vez hey o por sobejo.

(1) A ilha a que derão o nome da Ilha das Garças. (Barros,


Dec. I, cap. 7.)
Esta ilha é uma das A^Arguim. Vé-se marcada com este nome
nas antigas cartas. INa carta de Gastaldi publicada em Veneza em
1 564 , para a qual servirão de elementos geograficos as antigas
cartas portuguezas, se lê Ilha , ou Banco das Garcas.


CAPITOLLQ XVIIIo.

Como Lançarote requereo licença ao Hfante pera ir


com seus navyos a Guinee.

A condiçom da plebe, como diz Titollivyo,


sempre he prasmarem de grandes feitos, prin
cipalmente nos começos ; e esto me parece que
seja pollo conhecimento que nom ham das fiins;
ca o pequeno coraçom , quando vee o funda
mento das grandes cousas , sempre lhe parecem
muyto mayores do que ellas som , e porque o
seu animo nom pode abastar pera o compri
mento dellas, traz comsigo hua natural duvida
de se poderem acabar. A qual cousa me parece
que vy bem sperimentada nas obras deste nosso
principe, ca logo no começo da povoraçom das
ilhas, traziam as gentes antre sy tam grandes
imirmuros, como se em aquello se gastasse al-
gua parte de sua fazenda , e fundando sobre
ello suas duvydas, corriam per suas departi-
çooês, ataa que poinham o feito em hua ym-
possybilidade tam estreita, pella qual julgavam
que nunca podya viir a fim. Mas despois que o
lffante começou de as povorar, dando caminho
— 104 —
a as gentes como aproveitassem a terra, e os
fruitos começarom de viir pera o regno em
muyto mayor avondança, hyamsseja callando
os primeiros , e com vozes baixas louvavom
oque ante publicamente doestavam. E per se
melhante fezerom no começo desta conquista ,
ca logo nos primeiros annos, veendo as gran
des armaçooês que o Iffante fazia, com tama
nhas despesas , leixavam o cuidado de suas pro
prias fazendas, e ocupavamse em departyr o
que pouco conheciam , e quanto a cousa tardava
mais de viir a fim , tanto suas reprensooês eram
mayores. E o que peor era que a allem dos vul
gares do povo, os outros mayores fallavam em
ello casy por maneira descarnho, teendo que
eram despesas e trabalhos de que nom podya
viir alguu proveito. Mas quando viram os pri
meiros Mouros , e segundos, steverom ja quanto
dovidosos de sua primeira tençom, a qual dc
todo teverom por errada quando viram a ter
ceira presa que trouxe Nuno Tristam , cobrada
em tam breve tempo , e com tam pequeno tra
balho; e costrangidos da necessidade, confessa
ram sua mingua, avendosse por neiceos pello
que ante nom conhecerom , pello qual lhes era
forçado de tornarem suas reprensoões em pu
blicos louvores, ca manifestamente diziam que
o Ifiante nom podya seer senom que era outro
Alexandre, e desy a cobiiça começavalhes de
crecer, veendo as casas dos outros cheas de ser
vos e servas, e suas fazendas acrecentadas, e
— 105 —
pensando em ello, viinham a fallar antre sy.
E porque despois da viinda de Tanjer, o lffante
comunal mente sempre estava no regno do Al
garve, por rezom de suavilla, que entom man
dava fazer, e as presas que aquelles traziam
descarregavam em Lagos, forom os deste lugar
os primeiros que moverom ao Iffante, de lhe
dar licença pera poder ir a aquella terra, donde
viinham aquelles Mouros, ca nom podya la ir
nhuu com navyo armado, sem sua special li
cença, aqual cousa lhe elRey outorgara, naquella
carta onde lhe fez merce do seu quinto , como
ja ouvistes. E o primeiro que se antremeteo de
requerer esta licença, foe huíi scudeiro, criado
de moço pequeno na camara do Iffante, o qual
era ja casado, e almoxariffe delRey naquella
villa de Lagos ; e porque era homem de grande
siso, conheceo bem o feito como estava, e o
proveito que lhe podya trazer sua ida, se o Deos
encaminhasse que podesse la chegar. E consii-
rando em esto , começou de fallar com alguus
seus amigos, movendo os pera companhia da-
quelle feito, aqual cousa lhe nom foe cara daver,
porque a allem de elle seer bem amado no lu
gar, os moradores delle comunalmente som
homeês honrosos , e que se trabalham de seer
em boas cousas, specialmente em pellejas de
mar, porque a sua villa jaz muyto acerca da
costa, he seu huso muyto mais em navyos que
per terra. Porem ajuntou Lançarote seis cara-
vellas bem armadas pera seguir sua tençom , c
— 106 —
desy fallou ao Iffànte sobre a licença, dizendo
que assy por lhe fazer serviço, como por sua
honra e proveito, lhe pedya que lha outorgasse,
contandolhe as pessoas que hyam com elle, e
as caravellas que levavam, de que o Iffante foe
muy ledo, e mandou logo fazer suas bandeiras
com a cruz da ordem de Jhu Xpõ, das quaaes
mandou que levasse cada hua caravella sua.
— 107 —

CAPITOLLO XIXo.

Quaes eram oscapitaães das outras caravellas,


e da primeira presa que fizerom.

O principal e primeiro capitam , como ja dis


semos, era Lançarote, e o segundo Gil Eannes,
aquelle que screvemos que primeiramente pas
sara o cabo do Bojador, e Stevam Affonso, huu
nobre homem , que despois morreo nas ilhas de
Canarea, e Rodrigo Alvarez, e Joham Dyaz,
armador, e Joham Bernaldez; os quaaes todos
juntamente hyam muy bem corregidos. E se
guindo sua vyagem, chegarom aa ilha das Gar
ças, hua vespera do Corpo de Deos , onde repou-
sarom alguu tanto, principalmente com a mul-
tidom das aves novas que ally acharom, ca
entom era o tempo de sua criaçom. Desy teve-
rom seu conselho acerca de seus feitos, no qual
Lançarote começou de propoer suas razooês em
esta guisa : Senhores e amygos ! somos partidos
de nossa terra afym de fazermos serviço a Deos,
e ao lffante nosso senhor , oqual com rezom
deve sperar do nós avantejado serviço, assy
polla criaçom que em alguus de nós tem feita ,
— 108 —
como por seermos taaes persoas, que ao menos
a vergonha nos deve constranger que façamos
melhorya sobre todo llos outros que ataa gora
ca vierom , ca tamanho ajuntamento de navyos ,
vergonhosa cousa serva tornar pera Portugal
sem avantajada presa. E porquanto o Iffante
soube, per alguíis daquelles Mouros que levou
Nuno Tristam , que na ilha de Naar (1), que he
aquy acerca, que avera em ella pouco menos
de duzentas almas; e porem me parece que hc
bem que Martym Vicente, e Gil Vaasquez, que
ja forom acerca della, e viram a parte onde jaz,
vaam com estes batees, e com aquelles homeês
soomente que os remar possam , contra a parte
da ilha, o que se a poderem achar, que se tor
nem muy asinha ao longo da costa, ataa que
sejam comnosco, ca nós, prazendo a Deos, de
menhaã muyto. cedo faremos vella , e iremos
contralla, de guisa que em tornando elles, se
jamos nós tam acerca, que possamos ouvyr
suas novas, e avermos conselho doque nos
compre de fazer. Lançarote como ja disse , era
homem muy sesudo, segundo todos aquelles
bem conheciam; pelloqual nom quiserom mais
scoldrinhar suas razooes, ante disserom todos
a hua voz, que era muy bem o que elle dezia.
E porem se fezerom logo prestes aquelles dous
capitaaês, e levarom cinquo batees, com xxx

(1) Esta ilha se vê marcada junto é costa A^Arguim na carta


dWfrica do Atlas portuguez da Bibliotheca R. de Paris.
— 109 —
liomeês em elles, scilicet, seis homeês em cada
batel, e partiram da ilha donde estavam acerca
do sol posto. E remando aquella noite toda,
chegarom sobre o quarto da alva, acerca da ilha
que buscavam. E tanto que a forom conhecendo,
pellos sinaaes que os Mouros disseram, foronse
ao longo da terra tanto, atee que chegarom em
amanheecendo a hua povoraçom de Mouros, que
estava junto com a ribeira*, onde eram juntas
todallas almas que avyam na ilha, aqual vista
per elles, sobresseverom assy alguu tanto por
averem conselho, que era o que devyam de
fazer. E eram antre duas duvidas muy grandes,
porque nom sabyam se tornassem a as cara-
vellas, como lhe per seu capitam fora mandado,
se daryam sobre a povoraçam, aqual tiiuham
tam acerea. E estando assy sem determinaçom
algua, cada huu pensando em sua parte, levan-
tousse Martym Vicente, e disse contra os ou
tros : Certo he que nossas duvidas nos trazem
causa de pensamento, porque passando man
dado de nosso capitam , cairyamos em erro,
quanto mais se nos viesse alguu dano ou peri-
goo, serva aazo, a allem da nossa perda, de nos
seer muy mal contado; doutra parte nós somos
aquy viindos principalmente por aver lingua,
perque o Iffante nosso senhor possa saber novas
desta terra , que he cousa que muyto deseja ,
como todos bem sabees. Hora nós somos tanto
acerca desta povoraçom , e veedes que he ma-
nhaã, ja nom podemos daquy abalar pera as
— 110 —
caravellas, que nom sejamos descubertos , c
sendoo, nom podemos teer sperança que aquy
possamos aver lingua, porque estes Mouros
som logo lançados todos na terra firme , aqual
bem veedes que he muy acerca ; e nom soo-
mente os desta ilha , mas destas outras que aquy
ha , porque logo per estes devem seer avisados
e percebidos; e assy nossa viinda trazerya
pouco proveito, e o Iftante nosso senhor nom
averya o que deseja desta terra, quanto por
esta vez. Porem a mym parece, e tal he meo
conselho, se vós a ello derdes consentimento,
que nós demos sobre estes Mouros em quanto
som despercebidos, porque per o desacordo
que antre elles sera per nossa chegada, elles
som vencidos , c que hi al nom aproveitemos
senom aver lingua, nós devemos dello seer
contentes. E quanto aa passagem do mandado
que trazemos de nosso capitam, ajudandonos
Deos que possamos alguu bem fazer, o que eu
spero, nom nos deve seer mal contado, e que
nollo alguu tanto seja, ligeiramente nos sera
relevado por duas razooês : A primeira porque
nom pellejando somos certos que nossa viinda
foe de balde, e o proposito do senhor Iffante
falecera por aazo de seermos descubertos; e a
segunda, que ainda que mandado tragamos de
tornar, nom trazemos defesa de pellejar, e a
pelleja me parece razoada, ca nós somos aquy
xxx. homees, e os Mouros, segundo que ja ou-
vystes, seram elxx. ou elxxx. per todos, dos
— Hl —

quaaes devem seer ataa L. ou Ix. homeês de


pelleja. Se vos esto bem parece, nom tardemos
mais , ca o dya vense quanto pode, e tardando,
nossa viinda nem conselho aproveitara pouco.
Todos responderom que era muy bem consii-
rado, e que logo abal lassem. E em acabando
estas razooês olbarom pera a povoraçom , e vi
ram que os Mouros, com suas molheres e filhos,
sahiam ja quanto podyam de seus alojamentos,
porque ouverom vista dos contrairos; c elles
chamando Santiago, sam Jorge, Portugal, de-
rom sobre elles , matando e prendendo quanto
podyam. Ally poderiees veer madres desem pa
rar filhos, e maridos molheres, trabalhando
cadahuu de fogir quanto mais podya. E huus
se afogavam sob as auguas, outros pensavam
deguarecer sob suas cabanas, outros scondyam
os filhos de baixo dos limos, por cuidarem de
os scapar, onde os despois achavom. E em fim
nosso senhor Deos, que a todo bem da remune-
raçom , quis que pollo trabalho que tiinham to
mado por seu serviço, aquelle dya cobrassem
vitorya de seus imiigos, e gallardam e paga de
seus trabalhos e despesas, cativando delles, an-
tre homeês, e molheres, e moços, elxv., a fora
os que morrerom e matarom. Acabada a pelleja,
louvarom todos Deos, polla muyta mercee que
lhe fezera, em lhe querer assy dar vitorya, e
tanto a seu salvo. Teendo seus cativos metidos
em seus batees, c outros em terra bem atados,
porque os batees eram pequenos e nom podyam
— 112 —
alojar tanta gente, ordenarom que fosse huíi
homem quanto podesse ao longo da costa, por
veer se averya vista das caravellas, o qual logo
começou a andar ; e indo hua grande legoa
donde os outros ficavam, vyo viir as caravellas,
ca Lançarote pela guisa que dissera, partira
tanto que fora manhaã. Aquelle homem pos
huíi alfareme branco em sua lança, e começou
capear a as caravellas, as quaees tanto que ou-
verom delle vista, aderençaronse de ir contra
aquelfa parte onde vyam o sinal. E indo assy,
acertarom huíi canal perque os batees podvam
bem ir aa ilha, e lançarom fora huu batel pe
queno que traziam , e forom em terra saber
novas, as quaaes pello meudo lhe forom conta
das per aquelle que os allv estava atendendo,
dizendo que saissem em terra pera lhe ajudarem
a trazer aquelles cativos pera as caravellas, os
quaaes ficavom em terra sob guarda de vij. ho-
meês, que na ilha com elles ficavam , ca os outros
batees viinham ja ao longo da costa com os ou
tros Mouros que traziam. E quando Lançarote,
com aquelles escudeiros e boõs homeês que com
elle eram, ouvyram semelhantes novas da boa
esqueença que Deos dera a aquelles poucos que
aa ilha forom, e viram que cometerom tam
grande feito, prazendo a Deos de o assy levarem
a fim , forom todos muvto ledos , louvando
muyto o Senhor Deos por querer assy ajudar a
sua pouca gente xpaã. Porem quem me pregun-
tar se o prazer que dello avyam era de todo
— 113 —

verdadeiro, sem aver em elle algíia parte fin


gida, pero que pequena fosse , eu lhe dirya que
nom, porque os altos coracooês bõos e ardidos,
daquelles a que os Deos per graça deu , nom se
podem realmente contentar de nom seerem em
todollos bõos feitos em que razoadamente se po
dem acertar, nem carecem os taaes de todo da-
quella enveja, que em tal caso nom he huu
daquell^jPprincipaaes vicios, ante acostandossc
a hua boa razom , segundo os bõos homeõs fa
zem , pode seer chamada vertude. Despois que
os Mouros que nos batees hyam , forom todos
nas caravellas, sayrom os outros cm terra,
leixando os xpaãos em guarda delles; foronse
pella ilha , ataa que acharom os outros , em cuja
guarda fiçarom os vij. queja dissemos. E reco-
lheitos assy de todo seus cativos, era ja tarde,
ca naquella terra ha deferença nos dyas da-
questa, e desy o feito era mayor, por aazo do
afastamento das caravellas, e dos Mouros que
eram muytos. Desy repousarom, e folgarom
como requerya a parte de seu trabalho. Empero
a Lançarote nom esqueeceo de saber dos Mou
ros, que tiinha presos, o que lhe compria de
saber, acerca do lugar e tempo em que estava ,
e aprendeo delles per seu entrepetador, que ally
acerca avya outras ilhas povoradas , onde pode-
ryam com pouco seu trabalho fazer boas pre
sas. E avydo sobre ello seu conselho, acordarom
de as ir logo buscar.
— 114 —

CAPITOLLO XXo.

Como forom aa ilha de Tige , e dos Mouros que^harom.

No outro dya , que era sesta feira, fizerom


prestes seus batees, porque as caravellas avyam
ally de ficar, e meterom em elles aquelle man-
tiimento que lhe compria, soomente pera dous
dyas, porque nom levavam proposito de mais
andar fora sem tornar a seus navyos. E sayrom
nos batees ateexxx. homeês, scilicct, Lançarote
e os outros capitaaês das caravellas, e com elles
scudeiros e boõs homeês quchi eram. E levarom
consigo dous daquelles Mouros que tiinham ca
tivos, porque lhe disserom que na ilha d?. Tiger,
que dally era cinquo legoas, avya hua povora-
çom de Mouros, em que averyam atee el. per
toda gente. E tanto que foe menhaS, enderén-
çarom sua partida, encomendandosse todos a
Deos muy devotamente, e pedindo mercee que
assy os encaminhasse, que elle fosse servido, c
a sua sancta fe catholica eixalçada. E andarom
tanto, ataa que chegarom aa dieta ilha de Tiger;
e tanto que saltarom em terra, o Mouro que
levavom os guyou a hua povoracom , onde ja
esteveiom todo lios Mouros, ou a mayor parte
dos que ua ilha avya. E quando ehegarom a ella
nom acharom cousa algíia , porque dvas avya,
segundo despois souberom, que aquelle lugar
era despovorado ; e entom, receando que aquelle
Mouro lhe mentya, afim de os ir meter em al-
guu lugar, longe dally, onde ouvesse tanto po
der de Mouros de que per ventura podessem
receber alguu dano, teverom seu conselho pera
conscguvr o que fazer devyam. E ante que
sobre ello se determinasse cousa algíia, come-
caroin de feryr o Mouro; eameaçallo que lhe
dissesse verdade. O Mouro disse que os levarya
a huu lugar onde eram os Mouros, e que se
fossem de noite, quepodervam prender e matar
a mayor parte delles; mas de dya, assy como
hvaiu, que nom podervam chegar ally que nom
fossem vistos; e tanto que o fossem , que se po
dervam poer em salvo, se com elles se nom
atrevessem de poderem pellejar. Visto o que o
Mouro dizia, nom dando porem todos fe a seu
dicto, huíis diziam que era bem de se tornarem
a seos navyos , e dhi acordarvam o que fezes-
sem ; outros diziam quetodavya fossem adyante
a buscar aquella povoraçom, onde lhe o Mouro
dizia que os saberva bem levar, porque de razora
naquella ilha nom deverya aver mais gente do
pelleja que na outra ilha de Naar, onde ja fe-
zerom a primeira presa , ca nom era tamanha,
nem tain aazada pera muvta povoraçom. Em isto
i^!a\am rezoando cadahuus o <|ne lhe pareeya ,
— MG —
e nom se acordando bem aa final determinaçom
de seu feito, Gil Eannes, huíi bõo cavaleiro, e
vallente homem per sua maão, de que ja falía
mos em outro lugar, fallou dizendo : Eu vejo
bem que o alongamento da acordaçom , que
antre nos deve seer em este feito, do qual com
a mercee e piedade de nosso senhor Jhíi Xpõ ,
devemos teer boa sperança , nos pode trazer
alguíi empacho,.e pouco proveito, porque toda
devisam, specialmente antre tam pouca gente
como somos, he muy dovydosa, e podya seer
destroyçom e pouca honra nossa , isso meesmo
pouco serviço deDcos e do Iffante nosso senhor.
Porem eu louvarya que com este Mouro, vaão
xiiij. ou xv. homees, contra aquella parte onde
diz que os Mouros estam , atee que vejam a po-
voraeom ou lugar certo de sua morada, e tanto
que o virem , tornem aquy, onde os outros to
dos fiquem, sem daquy abal lar atee sua tor
nada; e entom com a graça de Deos, partamos
todos juntos, e vaamollos buscar, e de rezom
nom devem seer tantos homeês pera feito, se
gundo os que na ilha de Naar avya, com que
nos nom devamos desforçar aa pelleja , e aju-
dandonos nosso senhor Deos, em que todo acor-
rimento he, e faz quando sua mercee he, os
poucos vencer, e os muytos dos menos seerem
vencidos. E se vos abasta o que tenho dicto,
nom devemos tardar ao poer em obra ; de cujas
pallavras todos forom muy contentes, dizendo
que era muy bem , e que se fezesse logo assy
— 117 —
como Gil Eannes dizia. Pois que assy he, uisse
Lançarote , que vos todos acordaaes em este
conselho de Gil Eannes, eu quero ir com aquelles
que forem buscar a povoracom , e pareceme que
seria bem que Gil Eannes fique aquy com vos
outros, em guarda dos batees, pera nos socor
rerdes se o feito a tal ponto vyer, que compra
de se fazer, ao qual eu rogo que todavya fique.
E como quer que Gil Eannes rcfusasse a ficada,
visto como aquelle rogo se tornava mandado,
pois aquelle que o rogava era capitam, mayor-
nienteque todollos outros se acordavam em ello,
ouve Gil Eannes todavya de ficar; e Lançarote,
com xiiij. ou xv. homeês, partyo pera onde o
Mouro guyava. E indo ja meya legoa donde os
outros ficarom, viram ir nove Mouros e Mou
ras , com dez ou doze asnos carregados de tarta
rugas , que queryam passar aa ilha de Tider (1 )
que serva dally bua legoa, e passam de baixa
mar de hua a outra a pee. E tanto que os viram ,
correram a elles, e sem prestar defesa em que
se quisessem poer, prenderofios todos, a fora

( I ) Ilha de Tider. Tanto esta ilha , como a de Naar e a das


Garças , se achão marcadas nas antigas cartas junto á costa
iSArguim. No Isolaria de Bordone (1533) , onde se notão as tres
ilhas de que trata o A., são indicadas todas tres com a denomi
nação de ilhas das Garças o mesmo se vê na carta veneziana de
Gastaldi, e outras. Na carta do Atlas portuguez já citado, e na
outra carta portugueza feita em Lisboa por Domingos Sanchez em
1618, se achão pintadas estas ilhas junto da costa d'Arguim , mas
sem nome algum.
— H8 —

huu, que tornou a dar novas aos outros que


eram na aldea. E logo como os cativarom, os
fezerom tornar onde ficava Gil Eannes, en-
vyandolhe Lançarote dizer, que fezesse pocr
guarda naquelles Mouros, e seguisse apos elles,
porque entendya que avya de achar com quem
pellejassem, e levasse toda a gente que la ficava.
E tanto que os cativos a elles chegarom , ataroiios
muy bem , e metidos nos batees , leixarom com
elles huu homem soo, e partirom logo apos
Lançarote, seguindo sempre per seu rastro, '
atee que chegarom onde estavam Lançarote e os
que com elle eram. Despois da prisom dos Mou
ros , que ja envyarpm aos batees, forom adyante
per onde o Mouro os guyava, e chegarom a al
dea, onde os seus moradores eram partidos,
pello avisainento do Mouro que scapara quando
os outros forom presos. Eviram toda! las almas,
que na ilha avya, estar em huu ilheo, a que
passarom em suas almaadyas ; e os xpaãos nom
podyam ir a elles , senom a nado, nem ousavam
de se tornar, por nom fazerem coraçom aos
contrairos, que eram muy tos mais qne elles.
E assy esteverom atee que toda a outra gente a
elles chegou, e veendo todos juntamente que
lhe nom podyam nojo fazer, pello ryo que an-
tre elles era, acordarom de se tornar a seus
batees, que dally ficavam grandes duas legoas.
E em se tornando, entrarom pella aldea, e bus-
carona toda , por veer se acharyam alguas cousas
nas casas. E em buscando acharom vij. ou viij.
— 119. —

Mouras, que levarom consigo, dando graças a


Deos por sua boa esqueença , que por sua mer-
cee avyam cobrada ; e desy tornaronse a seus
batees, onde chegarora acerca do sol posto, e
repousarom e folgarom assy aquella noite,
como aquelles que no dya assaz avyam traba
lhado.
— 120 —

CAPITOLLO XXIo.

Como tomarom , Lançarote e os outros , nos batees a Tider,


e os Mouros que tomarom.

Per o que a necessydade da noite costrangesse


a aquelles que principalmente a despendessem
em dormyr, assy eram suas voontades intensas
sobre o carrego que trazyam, que nom par-
tvam seus pensamentos do que avyam de fazer.
E porem ouverom seu conselho do que faryam
o outro dya, e acordarom , despois de muytas
razooês passadas, que por nom fazer longa
scriptura leixo de screver, de irem nos batees ,
e darem ante manhaã na povoraçom, ca podera
seer, disseram elles, que os Mouros, vista nossa
tornada, pensaram que nos viemos como ho-
meês desesperados de os podermos cobrar, e
com tal maginaçom, faram a volta pera seu
allojamento ; e nom soomente nos aproveitara
sua tornada ally, mas ainda a segurança com
que se podem lançar em repouso. Determynado
seu conselho, partirom de noite, levando seus
batees ao longo da terra; e rompendo a alva,
sayrom fora, c deram na aldea, e nom acharom
— 121 —

em ella ninguem , ca os Mouros , tanto que os


vyram o dya passado tornar, vierom a aldea, e
nom quiserom porem em ella dormyr, mas
foronse allojar afastados della huu quarto de
legoa , acerca de huu passo perque passavam a
Tider. E quando os xpaãos viram que nom acha
vam nada na aldea, tornaronse a seus batees,
e forom costeando a ilha da paçte da outra de
Tider, e mandarom per terra xv. homeês, pera
sguardar se poderyam veer alguus Mouros, ou
acharem delles rastro. E indo assy, viram ir os
Mouros fogindo quanto podyam , ca ja delles
ouveram vista , e entom saltarom todos em
terra , e começarom de correr apos el les , e ja
nom poderom acalçar os homeês , mas das mo-
Iheres e moços pequenos, que tanto nom po
dyam correr, tomarom xvij. ou xviij. E huu
dos batees no qual hia Joham Bernaldez, que
era dos mais pequenos da companhia, hya cos
teando a ilha; e os que neelle hyam viram huas
xx. almaadyas que passavam pera Tider, nas
quaaes hyam Mouros e Mouras, assy grandes
como pequenos, e em cada hua quatro e cin-
quo ; com aqual vista ao primeiro esguardo
forom muyto ledos, mas despois cobrarom
mayor tristeza. O prazer tiinham por veer o
proveito e honra de presente, a fim porque se
moveram viir ally; avyam grande tristeza,
quando viiam seu batel tam pequeno que tam
poucos podya allojar. E com seus poucos remos
seguiram avante quanto poderam , ataa que
— Í22 —

fbrom antre as almaadyas ; e movidos com pie


dade, empero que infiees fossem os que nas al-
maadyas viinham, poucos delles quiserom ma
tar. E nom he porem de duvydar que muytos,
que com seu medo desemparavam as almaadvas,
no mar nom perecessem. E huus leixavam aa
parte seesta, e outros aa destra, e indo assy
per antre elles todos, scolhyam das criaturas
mais pequenas, porque mais podessem allojar
em seu batel ; dos quaaes tomarom xiiij., e assy
que per todos os que aquelles dous dyas cati-
varom , afora alguíis que morrerom , forom
|fviij° (1). Com esta boa presa, c tanta merece
quanta lhe Deos fezera aquelles dyas , dandolhe
muytos louvores por os assy encaminhar, e lhe
dar dos imiigos da fe tanta vitorya, com prepo-
sito e voontade de ainda mais trabalhar por seu
serviço, se meterom em seus batees, nos quaaes
se tornarom a seus navyos, que dally ficavam
cinquo legoas ; onde chegando repousarom ,
come homcês a que bem era mester, ca assaz
avyam trabalhado. Empero a folga nom foe
longa, ca logo sobre a noite teverom seu conse
lho , que era o que avyam de fazer, como homeês
que se queryam ajudar do tempo, em quanto
sentyam que se lhe o aazo oferecia pera trautar
seu negocio.

(I) 48.
— 123 —

CAPITOLLO XXIIo.

Das razoões que fallou Gll Eannes, e como forom a Tidcr,


e dos Mouros que tomarom.

Como veedes que nos conselhos em que muy-


tos som , sempre ha soma de pallavras, fallando
sobre aquelle conselho, cada huu dizia sua ten-
çom ; porem finalmente Gil Eannes rogou a to
dos, que se callassem huu pouco, aqual cousa
todos fezerom de boa voontade ; desy começou
de razoar em esta guisa : Amigos e irmaãos !
segundo que a mvm parece, as voontades de vos
outros todas som aparelhadas de bem fazer, e
esto entendo porque antre vos se nom falla de
repouso, nem de tornada a nosso regno, ante
vejo que o trabalho he de todos desejado, e re-
quervdo per cada huu que trabalhemos por
nossas honras e proveitos ; mas a devisom de
nosso acordo esta em se nom saber bem a qual
parte devamos ir buscar o dicto trabalho, com
serviço de Deos e do Iffante nosso senhor. E por
quanto nós somos tam acerca da ilha de líder,
como todos sabees, c em ella ha assaz grande
poder de Mouros, segundo dizem estes priso
— 124 —
neiros que aquy teemos; e ainda no regimento
do Iffante nosso senhor nos he mandado, que
nos nom tremetamos della senom com grande
avisamento, e esto pera vecrmos soomente se
poderemos per alguu caso saber a gente que ha
na ilha, e seu poder se he tamanho como a elle
he dicto ; eu dirya que serya bem de irmos a
ella, e podera seer que nosso senhor Jhu Xpõ,
que sempre ajuda os que bem trabalham , orde
nara de avermos della algíia lingua; e que ou
tra cousa nom aproveitemos senom veer a gente
da ilha quanta he, sera proveito ao dyante,
porque o Iffante nosso senhor podera, sabendo
o poder della, envyar tal armada, e de tanta
gente, que possam pellejar com todos os Mou
ros da ilha, e conquistalla , o que sera muyto
servico de Deos e seu. E para esto vaamos a ella ,
e sayamos em terra, nom nos allongando muyto
da ribeira ; e certo he que se seu poder he gran
de, veendo como somos pouca gente, e nom nos
queremos allongar da ribeira, que se ham de
descobrir; e se virmos que gente som, pra
zera a nosso senhor Deos que onde de mais nom
levamos cuidado, nos fara algua mercee que
nom pensamos. Todos ouverom por bem o que
assy Gil Eannes disse, e logo no outro dya pella
manhaã, partiram ateexxx. homeês nos batees,
e os outros ficarom pera espalmar seus navvos,
pera estarem prestes pera se comprisse , c assy
fossc acordado , partyrem pera seu regno, tanto
que tornassem os que aa ilha eram idos. Chega
— 125 —

rom a Tider ao mco dya, sayrom fora xx. ho-


mcês, e os dez ficarom nos batees, e allongaronsc
os primeiros da ribeira acerca de mea legoa,
indo sempre descobrindo aquelles lugares que
aazados lhe pareciam pera jazer algua gente ; e
poseronse em huíi cabeço , e começarom a oolhar
A ilha. E elles assy estando, vyram viir dous
Mouros contra sy, os quaaes os nom vyam, ou
per ventura cuidavam que eram dos Mouros
da ilha; e forom a elles, e prenderonos ; e em
os tomando, viram mais adyante dez Mouros
viir, com xv. ou xx. asnos carregados de pes
cado, e aballarom alguns a elles. Como quer
que se posessem em conta de se defender, assy
prouve a nosso senhor Deos, que sua defesa
prestou pouco, desbarataronse fogindo pera hua
parte c pera a outra , e os xpaãos os prenderom
todos. E assy estando, forom dous homeês mais
adyante pera vecr se pareeya algua gente, e
viram muvtos Mouros, osquaaes logo abalha-
rom a elles quanto podyam. Os dous homeês
tornarom correndo, e deram aquellas novas aos
outros que com os prisoneiros estavam, dizen-
dolhe que andassem quanto podessem , que vi
nham sobre elles grande poder de Mouros. Abal
larom juntamente pera os batees, levando porem
todos seus cativos ; e os Mouros viinham a elles
quanto podyam. Prouve assy a nosso senhor
Deos, que nas pressas e trabalhos acorre aos
que em seu serviço andam , que os xpaãos ouve-
rom a ribeira ante que os Mouros a elles che
— 126 —

gassem ; porem que ante que fossem em seus


batees recolhidos, os Mouros eramja com elles
de mestura, e pellejavam, e com gram trabalho
ouverom os xpaãos seus batees. Todos em aquelle
recolhimento mostrarom tanto suas bondades,
e seus boõs e ardidos coraçooes , que aaduar se
poderya hi estremar quem o milhor fezesse. E
Lançarote e huu scudeiro do Iffante, que se
chamava Martim Vaaz, forom os derradeiros
que forom recolhidos. Os Mouros seryam ataa
iij°. de pelleja, os quaaes bem mostravam que
queryam defender sua terra. E forom feridos
muytos Mouros ao recolher dos xpaãos, e dos
xpaãos, por a mercee de Deos , nehuu foe ferido
que muyto fosse. E tanto que em seus batees
forom com seusprisoneiros, parti rom pera onde
leixaromas caravellas, empero ja de noite.
— 127 —

CAPITOLLO XXIIIo.

Como foram ao cabo Branco, e das cousas que hi fezerom.

Aly foe determinado que no outro dya par


tissem pera o cabo B<anco (1), aqual cousa, tanto
que foe manhaã, poseram em obra, fazendo
vella caminho do dicto cabo, onde passados
dous dyas chegarom; e sairom alguus em terra ,
que scryam ataa xx. ou xxv. homeês , por veer
que terra lhe parecia, e estando afastados huu
pouco donde sairom , viram híia peça de Mouros
andar pescando. E como quer que lhe muytos
parecessem , sem o fazer saber aos que eram nos
navyos, quiscrom per sy cometer aquelle feito,
e aballarom a elles. E os Mouros, vendoos, co-
meçarom de fogir, porem despois que viram que
eram tam poucos, aguardarom, como aquelles
que queryam pellejar com sperança de vitorya.
Os xpaãos chegarom a elles, e a pelleja se co
meçou , sem alguu mostrar a seu inmiigo senom
per que o ouvesse dc temer; c em fim aquelle

(I) Este nome foi posto aquelle cabo por Nuno Tristão segundo
se julga.
— 128 —
do que Santyago disse, que decendya todo bem ,
que lhe ja dera tam boõ começo e meo, como
dicto he , quis que na fim ouvesse comprida vi-
torya de seus imiigos , c que suas vidas fossem
salvas, e as honras acrecentadas. Depois de hua
pequena escaramuça, os Mouros se começarom
de veencer, fogindo quem meis podya, e os
xpaãos seguindoos hua grande peça, na qual
afora os que morrerom, prenderom xiiij. E
assy com esta vitorya, acompanhada de grande
prazer, se tornarom a seus navvos. E se a es-
q ucença foe boa contra os imiigos, nom foe
menos em seu refresco, ca ouverom ally muy-
tos eros e corvinas, que acharom nas redes que
os Mouros tiinham lançadas. Porem Lançarote,
come homem a que nom esqueecya o primeiro
desejo, disse que avya por bem, que ante que
dally partissem, fossem certos homees per terra
firme, a ver se acharyam alguas povoraçooes.
E logo partirom cinquo, e toparom com hua
povoraçom , e derom volta a dizel lo a Lançarote
c aos outros. E como quer que partissem trigo-
samente , nom aproveitou sua ida, ca os Mouros
ouveram vista dos primeiros, e fogiram logo
dally, de guisa que nom acharom senom hua
moça, que ficara dormindo na povoraçom,
aqual levarom , tornandosse pera suas cara-
vellas, donde fezerom vella pera Portugal.
— 129 —

CAPITOLLO XXIIII°.

Como as caravellas chegarom ã Lagos, e das razoões


que Lançarote disse ao Ifiante.

Chegarom as caravellas a Lagos, donde ante


partirom , avendo nobre tempo de vyagem , ca
lhe nom foe a fortuna menos graciosa na bo
nança do tempo, do que lhe ante fora no filha-
mento da presa ; onde as novas chegarom ao
Hfante, que ante poucas horas se acertara che
gar ally doutras partes onde avya dyas que
andava. E como veedes que as gentes som dese
josas de saber, huus cometerom de se chegar aa
rv beira , outros se metyam nos batees, que
achavam amarrados ao longo da prava, e hyam
receber seos parentes e amigos, de guisa que em
breve tempo foe sabido seu boõ aqueecimento,
com o qual geeralmente todos eram allegres. E
por aquelle dya abastou a esses principaes de
beijar a maaõ ao Iflante seu senhor, contando-
lhe em breve a soma de seus feitos, o desy re-
pousarom, come homeês que chegavam a sua
terra e a suas casas , onde ja sabees qual serva
sua folgança antre suas molheres e filhos. E no
— 130 —
outro dya Lançarote, come homem que do feito
tiinha principal carrego, disse ao Iffante : Se
nhor ! Bem sabe a vossa mercee como avees
daver o quinto destes Mouros, e de todo o que
guaanhamos em aquella terra , onde por serviço
de Deos e vosso nos mandastes. E agora estes
Mouros, pollo grande tempo que ha que anda
mos no mar, assy pollo nojo que devees con-
siirar que teeram em seus coraçooês, veendosse
fora da terra de sua natureza , e postos em cati
veiro, sem avendo alguu conhecimento de qual
sera sua fim ; desy a husança que nom ham de
andar em navyos ; por todo esto veem assaz
mal corrcgidos e doentes; pollo qual me parece
que sera bem que de manhaã os mandees tirar
das caravellas, e levar a aquelle campo que esta
a allem da porta da villa, e faram delles cinquo
partes, segundo costume; e seja vossa mercee
chegardes hi , e scolher híia das partes, qual
mais vos prouver. O Iffante disse que lhe pra-
zia, e no outro dya muyto cedo mandou Lan
çarote aos meestres das caravellas, que os tiras
sem fora, e que os levassem a aquelle campo,
onde fezessem suas repartiçooes , segundo ante
dissera; pero primeiramente que se em aquello
outra cousa fezesse, levarom em oferta o milhor
daquelles Mouros aa Igreja daquelle lugar, c
outro pequeno, que despois foe frade de Sam
Francisquo, enviarom a Sam Vicente do Cabo,
onde sempre viveo como catholico xpaão, sem
avendo conhecimento nem sentimento doutra
— 131 —
lev senom daquel la santa e verdadeira , em que
todo! los xpaãos speramos nossa salvaçom. E
foroiu os Mouros desta presa ij"xx\v.
— 132 —

CAPITOLLO XXVo.

Como o autor aquy razoa huíi pouco sobre a piedade


que ha daquellas gentes, e como foe feita a partilha.

Oo tu cellestrial padre, que com tua poderosa


maão, sem movimento de tua devynal essen
cia, governas toda a infiinda companhya da tua
sancta cidade, e que trazes apertados todollos
eixos dos ordes superiores, destingidos em nove
speras , movendo os tempos das idades breves
e longas, como te praz ! Eu te rogo que as mi
nhas lagrimas nom sejam dano da minha con
sciencia , ca nem por sua ley daquestes , mas a
sua humanidade constrange a minha que chore
piedosamente o seu padecimento. E se as brutas
animallyas, com seu bestyal sentyr, per huu
natural destinto conhecem os dampnos de suas
semelhantes, que queres que faça esta minha
humanal natureza, veendo assy ante os meus
olhos aquesta miseravel companha, nembrando-
me que som da geeraçom dos filhos de Adam ! No
outro dya, que eram viij°. dyas do mes dagosto,
muito cedo pella manhaã por rezom da calma,
começarom os mareantes de correger seus ba
— 133 —
te<?s, e tirar aquelles cativos pera os levarem,
segundo lhe fora mandado; os quaaes, postos
juntamente naquelle campo, era hua maravi
lhosa cousa de veer, ca antrc elles avya alguíis de
razoada brancura, fremosos e apostos; outros
menos brancos, que queryam semelhar pardos ;
outros tam negros come tiopios , tam desafei-
çoados, assy nas caras como nos corpos, que
casy parecia , aos homeês que os esguardavam,
que vyam as imagees do imisperyo mais baixo.
Mas qual serya o coraçom , por duro que seer
podesse, que nom fosse pungido de piedoso
sentimento, veendo assy aquella companha;
ca huus tiinham as caras baixas, e os rostros la
vados com lagrimas, olhando huus contra os
outros; outros estavam gemendo muy doora-
samente, esguardando a altura dos ceeos, fir
mando os olhos em elles, braadando altamente,
como se pedissem acorro ao padre da natureza ;
outros feryam seu rostro com suas palmas,
lauçandosse tendidos em meo do chaão; outros
faziam suas lamentaçooês em maneira de canto,
segundo o costume de sua terra, nasquaaes
postoque as pallavras da linguajem aos nossos
nom podesse seer entendida, bem correspondya
ao graao de sua tristeza. Mas pera seu doo seer
mais acrecentado, sobreveherom aquelles que
tiinham carrego da partilha , e começarom de os
apartarem huus dos outros; afim de poerem
seus quinhooês em igualleza; onde conviinha
de necessydade de se apartarem os filhos dos
— 134 —
padres , c as molheres dos maridos , e os huus
irmaãos dos outros. A amigos nem a parentes
nom se guardava nhua ley, somente cada huu
caya onde o a sorte levava ! Oo poderosa for
tuna, que andas e desandas com tuas rodas,
compassando as cousas do mundo como te praz !
E sequer poem ante os olhos daquesta gente
miseravel alguíi conhecimento das cousas pos-
tumeiras, porque possam receber algua con-
sollaçom em meo de sua grande tristeza ! E vos
outros que vos trabalaaes desta partilha, es-
guardaae com piedade sobre tanta miseria, e
veede como se apertam huus com os outros,
que a penas os podees deslegar ! Quem poderya
acabar aquella partiçom sem muy grande tra
balho; ca tanto que os tiinham postos em hua
parte, os filhos que vyam os padres na outra,
allevantavanse rijamente, e hyanse pera èlles;
as madres apertavam os outros filhos nos bra
ços , e lançavanse com elles debruços, recebendo
feridas , com pouca piedade de suas carnes , por
lhe nom seerem tirados ! E assy trabalhosa
mente os acabarom de partyr, porque a allem
do trabalho que tiinham com os cativos, o campo
era todo cheo de gente, assy do lugar, como
das aldeas e comarcas darredor, os quaaes leixa-
vam em aquelle dya folgar suas maãos, em que
estava a força de seu guaanho, soomente por
veer aquella novidade. E com estas cousas que
vyam, huus chorando, outros departindo , fa-
zyam tamanho alvoroço que poinham em tor
— 135 —
vaçom os governadores daquella partilha. O
lffante era ally encima de huu poderoso Ca
vallo, acompanhado de suas gentes, repartindo
suas mercees, come homem que de sua parte
querva fazer pequeno thesouro, ca de Rvj. (1)
almas que acontecerom no seu quinto, muy
breve fez delles sua partilha, ca toda a sua
principal riqueza stava em sua voontade, con-
siierando com grande prazer na salvaçorn da-
quellas almas que ante eram perdidas. E certa
mente que seu pensamento nom era vaaõ, ca
como ja dissemos , tanto que estes avyam co
nhecimento da linguagem, com pequeno movi
mento se tornavam xpaãos; e eu que esta esto
rva ajuntey em este vellume, vy na villa de
Lagos , moços e moças , filhos e netos daquestes,
nados em esta terra, tam boõs c tam verdadeiros
xpaãos, como se decenderom, d\> começo da ley
de Xpõ, per geeraçom, daquelles que primeiro
forom bautizados.

(I) «6.
— 130 —

CAPITOLLO XXVIo.

Como o ifiante dom Henrique fez Lançarote cavalleyro.

Postoque o choro daquestes pollo presente


fosse muy grande, specialmente despois que a
partilha foe acabada , que levava cada huíi a
sua parte, e alguus daquelles vendyam os seus,
os quaaes levavam pera outras terras, e acerta-
vasse que o padre ficava em Lagos, e a madre
trazyam pera Lixboa, c os filhos pera outra
parte, noqual partimento sua door dobrava o
primeiro dapno, o qual era menos em alguus
que se acertavam de ficar em companhia , ca diz
o exemplo, « Solatio est miseris socios habere
pena » ; forom elles porem ao dyante avendo
conhecimento da terra, naqual achavam grande
abastança , e des y como os trautavam com
grande favor, ca porque os as gentes nom
achavam endurentados na creença dos outros
Mouros , e vyam que de boa voontade se vii-
nham aa ley de Xpõ, nom fazyam delles defe-
rença aos servidores livres, naturaaes da propria
terra, ante aquelles que cobravam de pequena
idade, faziam ao dyante ensinar a officios meca
nicos, e aquelles que vyam despostos pera go
— 137 —
vernar fazenda, fazyannos livres, ecasavannos
com as molheres naturaaes da terra , partindo
com elles de suas fazendas, como se per proprias
voontadesdos padres, forom entregues a aquelles
que os casavam , e que per merecimento de seu
serviço lhe fossem obrigados de fazer seme
lhante. E alguas viuvas honradas que compra
vam alguas daquellas, huãs as recebyam por
filhas, outras lhe leixavam em seus testamentos
de suas riquezas, per que se ao dyante muy
bem casavam, avendoas de todo por livres.
Abasta que eu nunca vy a nehuti daquestes
ferro como aos outros cativos, ecasy nhuu que
se nom tornasse xpaão, c que nom fosse muy
docemente trautado. E fuy ja rogado de seus
senhores pera seus baulismos e casamentos,
nos quaaes aquelles, cujos servos elles ante
eram, nom fazyam menos sollempnidade que
se forom seus filhos ou parentes. E assy que
onde ante vivyam em perdiçom das almas e dos
corpos, vi inham de todo receber o contrairo;
das almas, em quanto eram pagaãos, sem elari
dade e sem lume da sancta fe; edos corpos, por
viverem assy como bestas , sem algíia ordenança
de criaturas rezoavees, ca elles nom sabyam
que era pam nem vinho, nem cobertura de
pano, nem allojamento de casa, e o que peor
era, a grande inorancia que em elles avya,
pella qual nom avyam alguíi conhecimento de
bem , soomente viver em hua occiosidade bes
tial. E logo como começavam de viir a esta
— 138 —
terra, e lhes davam os mantiimentos arteffi-
ciaaes, e as cuberturas pera os corpos, comeca
vam de lhe crecer os ventres , e per tempo eram
enfermos , ataa que se reformavam com a natu
reza da terra, onde alguus delles eram assy
compreissyonados, que o nom podyam sopor-
tar, e morryam , empero xpaaos. Quatro cousas
avyaem aquestes, muy afastadas das condiçoões
dos outros Mouros que caty vavam em esta parte :
A prymeira que despois que eram em esta terra,
nunca se mais trabalhavam de fogyr, ante per
tempo se esquecyam de todo da sua, tanto que
começavam sentvr as bondades daquesta : E a
segunda que eram muyto leaaes e obedientes
servidores, sem mallicia : Ea terceira que nom
eram tam chegados aa luxurya como os outros :
E a quarta que despois que husavam os vestidos,
eram geeral mente muyto louçaãos de voontade,
polloqual folgavam muyto com roupas decoores
devisadas; e tanta era sua louçainha, que apa
nhavam as farpas que aos outros naturaaes da
terra cavam dos sayos, e as cosyam em suas
roupas, avendo ledice com ellas, como se fosse
outra cousa de mayor perfeiçom. Eo que milhor
era, como ja tenho dicto, que se tornavam de
boas voontades ao caminho da fe, na qual des
pois que eram entrados, recebyam verdadeira
creença, na qual faziam suas fiins. Hora veede
que gall ardam deve de seer o do Iffante ante a
presença do senhor Deos, por trazer assy a
verdadeira salvaçom , nom soomente aquestes ,
— 139 —
mas outros muy muytos , que em esta estorya
ao dyante podees achar ! Despois que assy a
partilha foe acabada, chegaronse ao Iflante os
capitaães das outras caravollas, e assy alguus
boõs de sua casa, dizendolhe : Senhor! Porque
sabees o grande trabalho que Lançarote, vosso
criado, tem levado em este feito passado, e com
que deligencia o trautou, pollo qual nos Deos
deu tam boa vitorya, como vistes ; e esso mees-
mo como he de boa linhagem, e homem que
merece todo bem; pidimosvos por mercee, que
o queiraaes per vossa maão fazer cavalleiro,
pois veedes que o merece per toda rezom ; e
ainda que o tam bem nom merecesse, disserom
aquelles capitaães das caravellas, parecenos que
receberyamos agravo, seendo elle nosso capi
tam, e trabalhando tanto ante nossos olhos, se
por ello nom recebesse algua honra avantejada ,
sobre aquella que ante tiinha, por seer boõ e
vosso criado, como ante dissemos. O Iffante
respondeo, que lhe prazia muyto, e que lho
tiinha ainda em grande serviço por lho assy
requererem , ca por ello davam exemplo aos
outros que desejassem de seer capitaães de hoa
gente , e que fezessem por suas honras. E porem
fez logo ally Lançarote cavalleiro, fazendolhe
grandes mereces, segundo seus merecimentos
e bondade requerya. E assy aos outros princi-
paaes fez avantageês em acrecen tamentos, de
guysa que aallem do primeiro guaanho , ouve-
rom seu trabalho por bem despeso.
CAPITOLLO XXVIIo.

Como o IiTante mandou Gonçallo de Sintra a Guinee,


e per que guisa foe morto.

Fea cousa serya prosseguindo nossa storya,


se nom screvessemos assy as desaventuras da
nossa gente, como seus boõs aqueecimentos , ca
dizTullyoem seus livros, queantre os grandes
carregos do estoryador, principalmente deve
seer nembrado de screver verdade, e que scre-
vendo a verdade nom mingue della nhua cousa.
E por certo a allem de se fazer o que deve, nom
se faz sem grande proveito, ca se acontece de
receberem os homeês grandes avisamentos pel-
las desaventuras alheas. Ca disseram os sabe
dores antiigos, que bem aventurado he homem
que pellos malles alheos recebe castigo. Porem
he de saber que aqueste Gonçallo de Sintra , de
que de presente entendemos fallar, era huu
scudeiro, criado de moço pequeno em casa do
HTante : creo que fora seu moço de estrebeyra :
e porque era homem que avya boa estatura de
corpo , e grande coraçom , acrecentara o Iffánte
muy to em elle, encarregandoo sempre de cousas
honrosas e grandes. E despois alguíi tempo da
viirtda de Lançarote, fez o Iffante armar hua
caravella, naqual mandou aquelle Gonçallo de
Sintra por capitam, avisandoo ante de sua par
tida que se fosse dercitamente a Guinee, e que
per uhuu caso nom fezesse o contrairo. O qual
seguindo sua vyagem , chegou aq cabo Branco;
e ja veedes homeês que cobiiçam cobrar fama,
desejando avantajarse sobre os outros disse que
todavya elle querva ir aa ilha Dergim , aqual
dallv era muy acerca, onde lhe parecya que
com pequeno perigoo poderya aver alguus pri-
soneyros. Os outros começarom de lho contra
dizer, dizendo que o nom devya per nhuu
modo de fazer, ca tremetendosse de semelhante
obra, que farya dous malles, scilicet: o pri
meiro que passarya o mandado do Iflante; e o
segundo que se deteerya, despendendo o tempo
sem cousa proveitosa ; porem que fezessem to
davya sua vyagem caminho de Guinee, que he
a terra dos negros. E elle, come homem que a
morte convidava pera fazer ally sua fim, disse
que a deteença serya pequena , e que em taaes
casos nom eram os mandados dos senhores pera
se de todo guardar ; mandando logo aos mari
nheiros que encaminhassem caminho da dieta
ilha. E parece que chegando de noyte, forom
senlidos de guisa que sayndo pella manhaã,
nom acharom mais de hua moça, que trouve-
rom pera seu navyo. E dally partirom pera
outra ilha, que ally esta preto, onde tomarom
— 142 —
hua molher, porque per essa meesma guisa lb-
rom descubertos quando ally chegarom. Gon-
çallo de Sintra levava huu moço azanegue por
torgimam, o qual ja de nossa linguajem sabva
grande parte, que lhe o Iffante entregara, man-
daudolhe que posesse nelle boa guarda. E pa
rece que mingua de boõ avisamento daquelles
que delle tiinham cuidado, c principalmente do
capitam , de que o carrego devera scer mayor,
buscando o moço tempo c lugar pera ello, spe-
dyosse hua noite dantre elles, e lançousse com
aquelles moradores da ilha, aosquaaes deu no
vas de lodo o que sabva dos contrairos. E pero
o elles conhecessem por. quem era, nom era o
seu avisamento tam pequeno que o de todo
pello presente quisessem creer; e por se certi
ficarem da verdade, entremeteosse huu da-
quelles com falsa dessimullacom de ir aa cara-
vella, braadando da prava que o recebessem,
ca se querya viir com elles pera Portugal , fa
zendo despois antre elles suas almenaras, per-
que demostrava que polla grande soydade que
avya de seus parentes e amigos, que ja ca eram
em este regno, elle nom saberya viver senom
antre elles, e par Deos a vyda fosse quejanda
quisesse, ca elle serva bem contente de a sofrer,
soomente que ouvesse vista e participaçom da
quelles. Os outros come homeês pouco cautel-
losos de seu engano, forom com elle muyto
ledos; empero alguns hi ouve que disserom que
se nom contentavam de tal viinda, ca lhe pai o
— 143 —
cia enganosa. E por o dicto daquelles poserom
no Mouro algua guarda, como quer que pequena
fosse, mas a noite segunda teve o Mouro mayor
cuidado de se partir, que os outros de o guar
dar, esayosseda caravella tam passamente, que
nunca dos nossos pode seer sentido, e a verdade
he que elles tiinham dello pouca nembrança.
Mas quando no outro dya foe sabido, todos se
teverom por muy enganados, e disserom logo
a seu capitam que nom eram aquello sinaaes
pera fazer presa em aquella terra. Como, disse
rom elles, em amballas ilhas onde chegamos
fomos descubertos; o moço nos fugyo; huu so
Mouro nos veo enganar ; por certo nom somos
homeês pera acabar nhuu grande feito. Pois,
disse Gonçallo de Sintra, assy posso eu morrer
em estas ilhas, ca nunca daquy partirey ataa
que faça hua cousa tam assiinada, que nunca
jamais aquy venha outro semelhante , nem
ainda mais grande, que a mayor nem milhor
possa fazer. Os outros todavya aperfíarom com
elle, que nom quisesse fazer ally mayor de
tença, pois seu perigoo era tam conhecido; que
seguisse emboora sua vyagem, ca fazendo o que
lhe o Iffante mandava, farya o que devya, e
doutra guisa caerya em erro, quanto mais
veendo os aazos tam manifestos de sua perdi -
com. Nom montarom estas razooes, nem outras
muytas que lhe forom dietas por seu avisa-
mento; fez todavya guyar a caravella contra a
ilha de Naar, e como as ilhas ally som acerca
— 144 —
huas das outras, e os Mouros em suas almaa-
dyas I)assam ligeiramente, forom logo todos
avisados. Gonça llo de Sintra, assy pollo desejo
da honra, como do proveito, mandou lançar
seu batel fora, no qual meteo comsigo doze ho-
meês , dos milhores de sua companhya, e pouco
menos de meya noite encaminharom pella ilha
ao lougo, leixando o batel, e segundo parece
que o mar era ja de todo vazyo, e começava ja
alguu tanto de crecer. E acertarom logo huu
esteiro, o qual passarom ligeiramente, e assy
outro que era acerca dollc. E porquanto Gon-
çallo de Sintra, nem alguus outros daquella
companha, nom sabyam nadar, consiirarom de
aguardar ally alguu pouco pera vecr a maree
quanto crecia, e que se. per ventura fosse tanto
que lhe conviesse de se tornar, que estevessem
acerca. E na estada que ally fezerom, sobreveo
a manhaã, e ou por elles dormirem, ou por
nom conhecerem a grandeza da augua, quando
amanheeceo conhecerem que nom podyam assy
ligeiramente tornar, porque a maree era ja
acerca de todo comprenle, e o esteiro era largo
ealto. Foe lhe necessaryo starem ally ataa que
a augua abaixasse algíia parte perque ouvessem
melhorya pera sua passagem, e em esto des-
penderom duas ou tres horas dodya sem querer
dally mover. E os Mouros como quer que os
vissem, logo como foe menhaã, come homees
que estavam ja dello percebidos, nom quiserom
por huu grande pedaço ira elles, sperando que
— U5 —
entrassem mais pella terra, pera se ajudarem
delles mais aa sua voontade ; mas despois que de
todo sentiram sua entençom, derom em elles de
golpe, come sobre cousa vencida. E como na
pelleja avya desigual comparaçom, ca os imiigos
eram duzentos , e os nossos doze sem sperança
de socorro, forom ligeiramente desbaratados.
Ally foe morto Gon cal lo de Sintra, nom por
certo come homem a que esqucecia sua vertude,
mas fazendo grande dano nos imiigos, ataa que
o a força nom pode mais ajudar, que foe necessa-
ryo fazer sua fim. E dos outros morrerom vij.,
scilicet, dous moços da camara do Iffante, huíi
que chamavam Lopo Caldeira , e outro Lopo
Dalvellos, e huu moço de estrebeira, que avya
nome Jorge, e huu Alvaro Goncalvez Pillito e
tres marinheiros (1). E em verdade nom quero
fazer deferença, ca todos morrerom pellejando
sem tornar nhuíi pee atras. E como quer que
os moços da camara, e assy o outro de estre
beira , soubessem nadar, nunca quiserom des-
emparar seu capitam , a cerca do qual vertuosa-
mente receberom sua sepultura. Habeat Deus
animam quam creavit et naturam quod suum
est ! Os cinquo se tornarom pera sua caravella,
donde em breve fezerom vella pera o regno, ca

( 1 ) Este acontecimento succedeo no anno 1445. Este lugar fica


situado a 1 4 legou ao sul do Rio do Oiro , e tomou o nome nas
cartas tanto manuscriptas como gravadas , desde os fins do xv° sc-
fulo, de Golfo de Goncatlo de Cinira.
10
— 146 —

despois de tal perda, nom teverom rezom de


fazer outra cousa, nem seguir avante, como lhe
ante fora mandado.
— 147 —

CAPITOLLO XXVIIIo.

Das razoõea que o autor põem por avisamento


acerca da morte de Gonçallo de Sintra.

Grande segredo me parece que acho no aquec-


cimento de que ja falley no capitollo passado,
ca nom sey se foe movimento de cobiiça, se
voontade de servyr, ou desejo de honra. Empero
porque o perigoo era tam manvfesto, o qual
por aquella vez se podera scusar, se aquelle
capitam quisera receber conselho, eu dirya cer
tamente que as rodas dos cecos o tiinham assy
ordenado, cuja fortuna lhe cegou a rezom, que
de todo nom conhecesse seu dano ; ca posto que
santo Agostinho screva muytas c santas pal la
vras , reprovando a predistinaçom das influen
cias cellestriaaes, em outras partes me parece
que acho autoridades contrairas, assy como de
Job, que disse, que nos posera Deos termo que
passar nom podyamos, e outras muytas da
Sancta Scriptura, asquaaes leixo por me nom
alongar do primeiro preposito. E hora fosse
predistinaçom da fortuna, ou devinal juizo por
algtiíi outro pecado, ou per ventura que Deos
— 148 —

os quis assy levar por sua mais certa salvaçom ;


he bem que vejamos seem este acontecimento con-
trairo podemos apanhar alguas cousas proveito
sas; no qual aqueecimen to, sguardando, acho sete
cousas de que podemos filhar avisamento :
A primeira ; que todo capitam que tem supe-
ryor, de cuja maão recebe o encarrego , nom
deve passar o mandado de seu senhor ou mayor,
por nhuu modo. E desto teemos exemplo em as
obras dos Romaãos, que ainda que Jullyo Cesar
muy gloryosamente ouvesse vitorya , sojugando
ao poderyo de Roma, França, Bretanha, Ingla
terra, Spanha, Alemanha, empero porque pas
sou o espaço de cinquo annos, que lhe fora
assiinado por termo pera sojugar os imiigos, a
' honra que lhe devera secr dada , foelhe denegada
e tirada, c nom por al , senom soomente por
trespassar o mandado. E Vejecio, em o quarto
livro De re miIitary, conta de Aurellyo consul,
que seu filho, antre os homeês de pee quis que
husasse, porque trespassou seu mandado. E
ainda sancto Agostinho, no quinto da Cidade de
Dcos, conta de Torcato, que matou seu filho,
pero vencesse pellejando contra seu mandado.
A segunda; que no prisoneiro a refeens , tor-
gimaães de terra alhea , sempre se deve de poer
specyal guarda, sguardando sobre elles com
grande cautella. E os malles que ja desto acon-
tecerom manifestos som.
A terceira; que quando alguíi imiigo se lançar
com o capitam, nom deve dolle fyar, ante se deve
guardar com toda diligencia, avendo sua viinda
por sospeita, ataa que de todo o vencimento
seja cobrado ; ca por semelhante screve Titolli-
vyo, no livro da segunda guerra, que se perdeo
a batalha de Canas; e esto era porque os Ro-
maãos nom quiserom seer avisados dos imiigos
que se lançarom com elles.
A quarta ; que devemos creer de conselho
aquelles que forem de nossa companhya, e nos
proveitosamente conselharem, ca diz a Sancta
Scriptura, saude sera onde forem muytos con
selhos. E porem o sabedor em o livro da Sabe-
dorya, amoesta todos que filhem conselho, onde
diz, Ecclesiast. vj°. : Ouve, filho, e toma sempre
conselho ! Ca todollos sabedores fazem seus
feitos com conselho. E porem, diz Seneca, em
o trautado das vertudes, que todo governador,
quer seja principe , quer seja capitam de prin
cipe, avisadamente deve tomar conselho das
cousas que ha de fazer. E todallas cousas que
podem acontecer, todallas revolve em teu cora-
çom, e todallas olha, c nom te seja nhua cousa
arrevatada , mas ante a tem muy bem proviuda ;
ca o sabedor nunca diz, nom cuidava que esto
serva ; e esto porque nom dovida , mas spera ;
nem sospeita, mas tem mentes aa rezom de
cada cousa; ca quando vec o começo, sempre
deve tecr mentes aa sayda, e aa fim do feito.
A quinta; quando nossos imiigos certa lingua
ham de nosso poder e voontade , devemosnos
niuyto guardar de fazer entrada cm sua terra ;
— 150 —

ca a principal cousa que o capitam devo de fazer


a cerca de seus imiigos, assy he encobrirlhe seu
poder, ca nom he outra cousa o contrairo se-
nom destroiçom sua e de sua gente. E portanto
ordenava sempre Anibal suas celladas com tanta
sajaria (1), que nunca seus imiigos pensassem
saber que seu poder era mayor do que de pre
sente parecia.
A sesta; que nos devemos muyto guardar de
nom seermos descubertos na costa onde algíia
sayda quisermos fazer. E o exemplo desto cada
dya mostra a esperiencia a aquelles que trazem
seus navyos armados no mar. E muyto me ma
ravilho daquelle Gonçallo de Sintra, que era
homem que muytas vezes andara em navyos
darmada, per mandado de seu senhor, e fora
em muy grandes cousas tam bem na costa de
Graada , como da parte de Cepta , nom seer a
tal tempo milhor avisado.
A setima; que nhuu homem que nom saiba
nadar, nom deve passar augua que encha cm
terra de imiigos, senom com tempo que aa sua
tornada ache vazia. E esto ataaquy teve que vos
screver por vosso avisamento ; e daquy avante
quero tornar a prosseguyr minha estorva (2).

(I) Sajaria. Esta palavra (que existe no Codice como verifi


cámos) pareco-nos estropiada pelo copista , e que em seu lugar
se deve ler sagnçnria , que , segundo o ELUCIDARIO, significa
sagacidade, ardis e traças executadas com muita destreza, juizo
c finura.
(?! Barros omittio cstc capitulo alias curioso pela natureza da
erudição do A.
— 151 —

CAPITOLLO XXIXo.

Como Antam Gil?, e Comez Pirez, e Diego Alfonso,


forom ao ryo do Ouro.

Aquelle anno(1) mandou o IffanteAntamGlIz,


aquelle nobre cavalleiro de que ja fallamos, em
huu caravella, e Gomez Piz, patrom delRey,
em outra caravella ; e este hya per mandado do
Iffante dom Pedro, que a aquelle tempo regya o
regno em nome del Rey. E tambem era hi outra
caravella, em que hya huu Diego Affonso,
criado do Iffante dom Henrique; os quaaes to
dos juntamente hyam pera veer se poderyam
trazer os Mouros daquella parte a trautos de
mercadorya. E ouverom falla e grandes segu
ranças com os Mouros que o Iffante la mandava,
pera veer se com o dicto fingimento os pode
ryam encaminhar pera salvaçom. Porem nom
poderom com elles encaminhar, nem fazer mer-
cadarya , mais que de huu negro. E assy se tor-
narom sem mais fazer, senom que trouverom

fl) Ann. de 1445.


— 152 —

huu Mouro velho, que per sua vooutade quis


viir veer o Iffante , do qual recebeo muyta mer-
cee, segundo sua pessoa, e despois o mandou
tornar pera sua terra. Mas nom me spanto tanto
da viinda daqueste, como de huu scudeiro que
hya com Antam Gllz, que se chamava Joham
Fernandez, que de sua voontade lhe prouve
ficar em aquella terra, soomente polla veer, e
trazer novas ao Iffante, quando quer que se
acertasse de tornar (1). E do movy mento deste
scudeiro, e de sua boa bondade, leixo o pro
cesso pera outro lugar.

(1) Barros diz : « Para particularmente ver as cousas daquelle


» sertão que habitão os Azenegues , e dellas dar razão ao Infante ,
• conflado na lingoa delles que sabia , o qual tornou depois ao
» reino. •
— 153 —

CAPITOLLO XXXo.

Como Nuno Tristam foc a Tira , e dos Mouros que alla tomou..

Por vos darmos conhecimento das cousas como


passarom , diremos aquy como Nuno Tristam ,
do qual ja fallamos em outros lugares de nossa
estorva , primeiramente vyu a terra dos negros.
E foe assy, que seendo elle envyado em híia ca-
ravella, per mandado do Iffante, contra aquel-
las partes , foe dereitamente a aquellas ilhas em
que ante forom (1 ) , asquaaes eram ja leixadas
cm ermo, ca os moradores dally, sentindo o
dano que recebyam , afastaronse por alguu tem
po pera outras Ilhas, deque presumyam que
os contrairos ainda nom avyam conhecimento.
Pois que assy he, disse Nuno Tristam , que nos
nom achamos em estas Ilhas em que fazer pre
sa, meu desejo he correr avante quanto poder,
ataa chegar aa terra dos negros, porque ja sa-
hces, disse elle, o desejo que o [ffaute nosso

(I) As ilhas das Garças no grande banco tfJrguim. {MA. AV.,


p- il7.;
— 154 —

senhor em esto tem , e nos nom podemos mi-


Ihor despender nosso tempo, que fazendo aquel-
lo de que sabemos que a elle mais praz. Todos
disserom que era muyto bem, e que o carrego
fosse seu de os encaminhar, ca elles prestes es
tavam pera todo, come homêes que outro bem
nom tiinham senom a mercee daquelle senhor
que os ally envyara. E correrom tanto avante
«pie passarom aquella terra , e virom outra muy
desassemelhada daquesta primeira, porque esta
era areosa e maninha, desacompanhada darvo-
res, como cousa em que falleciam as auguas, e
a outra viiram acompanhada de muytas palmei
ras, e outras arvores verdes e fremosas, e assy
todol los campos da terra (1). Nuno Tristam fez
lançar seu batel fora, com entençom de sayr em
terra , onde vyu homêes que parecia que de boa

(1) Comparando-se esta relação do A. com as cartas ineditas


já citadas, vè-se que Nuno Tristão depois de reconhecer de
novo as ilhas dWrguim , correra ao longo da costa para o sul , os
seguintes logares :
s Ilha Branca,
R. de S. João ,
G. de Santa Anna ,
Moutas ,
Praias ,
Furna,
C. d'Arca ,
Resgate ,
e
Palmar.
Este ultimo logar é sem duvida o que o A. diz que virào acom
panhado de muitas palmeiras.
— 155 —
voontade lhe queryam fallar; daqual cousa Mu
no Tristam fora muyto contente, se a braveza
do mar consentira que seu batel podera chegar
aterra; mas as vagas eram grandes, e ainda
periigosas; pelloqual lhe foe forçado tornar a
seu navyo, e fazer vella pera fogir aa destem-
peranca do vento , que era muy contrairo. Em-
pero disse Nuno Tristam , que como quer que
estevesse afastado donde estavam aquelles que
lhe queryam fallar, que bem conheceo que
eram da companhya dos negros. Forçado assy
Nuno Tristam do tempo contrairo, chegou com
sua caravella acerca daquellas Ilhas, onde Lan
çarote ante fezera sua presa, empero em terra
firme , onde sayu pera veer se podya fazer al-
gua presa. E primeiro la foe alguas noites, que
podesse filhar nhua cousa, ataa que ouve de
cobrar hum Mouro , ja dyoso , que per acenos
lhe disse onde estava hua povoraçom , dally
acerca de duas legoas. Mas assy podera o espaço
seer mayor, ca Nuno Tristam , segundo a tar
dança que fazia sem fazer presa , ouverasse de
aventurar a ello. Nem lhe soube o Mouro dizer
quantos seryam os moradores daquella povora
çom, pera que os assy encaminhava, ou mais
dereitamente direy, que o nom saberyam elles
preguntar, nem entender, aqual cousa me pa
rece que lhe devera de pocr algun temor, pois
nom sabyam a quantidade dos imiigos quanta
serva; mas onde ha sobeja voontade, nunca o
conselho ha verdadeiro eisame. E porem a noite
— 156 —
seguinte que aquelle Mouro foe achado, forom
dar sobre a povoraçom , onde nom filharom
mais que xxj, mas nom achamos em scripto se
eram destes xxj alguus moços ou molheres ,
nem quanta gente levava Nuno Tristam , nem
se ouve hi alguu movimento de pelleja ante de
sua prisom, nem o podemos saber, porque Nu
no Tristam era ja finado ao tempo que elRcy
dom Affonso mandou screver esta estorya (1 ).
E porem o leixamos assy sem outra deela-
raçom.

(I) Recomendámos á attençào do leitor esta importante passa


gem , pela qual se mostra quanto esta Chronica é preciosa pela sua
authenticidade, visto que a dita passagem nos revela que Azurara
não só consultara os documentos escriptos , mas até os mesmos
descobridores testemunhas oculares destes factos , visto que elle
confessa não poder fallar da particularidade de que trata por Nuno
Tristão serjáfinado.
Este capitulo é tanto mais importante , quanto Barros apenas
em duas linhas refere que Nuno Tristão fftra além do R. do Ouro.
(Dec. I, liv.lll, f. 17.)
— 157 —

CAPITOLLO XXXIo.

Como Dinis Dyaz (1) foe aa terra dos negros,


e dos cativos que trouxe.

Avya em Lixboa huu nobre scudeiro, que


fora criado delRey dom Joham, que foe avoo
delRey dom Affonso, e padre deste vertuoso
principe, que se chamava Dinis Dyaz, oqual
ouvyndo novas daquella terra, e como as cara-
vellas ja hyam tam longe desta costa , porque
era homem desejoso de veer cousas novas , e
desperiinentar sua força, pero ja estevesse allo-
jado naquella cidade, que he híia das nobres
das Spanhas , com proveitosos officios que lhe
forom dados em gallardom de seu serviço,
foesse ao Iffante dom Henrique pedirlhe que o
avyasse como fosse a aquella terra, ca consii-
randocomo era criado e feitura de seu padre,
e como tiinha coraçom e idade pera servyr, que
se nom querya de todo leixar escorregar nos

<l) Barros chama-lhe Dinis Fernandez. Todos os historiadores


v geografos, seguindo o A. das Decadas , continuarão a chamá-lo
assim.
— 158 —
desenfadamentos do repouso. 0 Iffante agrade-
ceudolhe sua boa voontade, fez logo armar bua
caravella (1) , naqual avyou como o dicto Dinis
Dyaz podesse ir comprir sua boa voontade ;
o qual partido com sua companha, nunca quis
amaynar, ataa que passou a terra dos Mouros,
e chegou aa terra dos negros , que som chama
dos Guineus. Ecomo quer que nósja nomeasse
mos alguas vezes em esta estorya, Guinee, por
a outra terra em que os primeiros forom , scre-
vemollo assy em comuu, mas nom porque a
terra seja toda bua , ca grande defcrença teem
buas terras das outras, e muy afastadas som ,
segundo departiremos adyante, onde acharmos
lugar desposto pera ello(2). E hindo fazendo sua
vyagem ao longo daquelle mar, virom a cara
vella os que estavam na terra, daqual cousa
forom muy to maravilhados, ca segundo parece,
nunca viram nem ouvyram fallar de seme
lhante, ca huus presumyam que era peixe,
outros entendyam que era fantasma, outros
diziam que podya seer algua ave que corrya
assy andando por aquelle mar. E razoandosse

( I ) Barro) não diz que elle fora ler com o Infante , diz pelo
<ontrario « que elle armara hum navio, e que passando o Rio que
»ora se chama Sanagá (Senegal), o qual divide a terra dos
» Mouros dos Azanegues dos primeiros negros da Guiné chamados
• Jalofos. •
(?) Azurara mostra por esta passagem começar a reconhecer
já -o erro geografico dos quedavão uma desmesurada extensão .1
t'-iiiiió.
— 159 —
assy sobre esta novidade, filharom quatro da-
quelles atrevimento de se certificar de tamanha
iluvida (1), e meteronse em huu pequeno batel,
feito todo de huu paao cavado, sem outra nhuua
adycom. Pareceme que deve seer a maneira de
coucho, semelhante a alguus que ha nos rijos
de Mondego, ou de Zezer, em que os lavradores
passam quando lhes he mester nos tempos dos
grandes ynvernos. E vyerom assy huu grande
pedaço pello mar, contra onde a caravella se-
guya sua rota ; e os que hyam dentro nom se
poderam teer que líom parecessem abordo ; e
quando os negros viram que eram homees os
que viinham dentro no navyo, trigaronse de
fogir quanto poderam ; e como quer que a cara
vella seguisse apos elles, polla fraqueza do vento
ficarom por filhar. E indo assy mais avante,
toparom com outros barcos, os quaaes veendo
os nossos que eram homees, spantados com a
novidade de sua vista, e movidos com temor,
quiscrom todos fogyr ; mas porque o aazo foe
milhor que o primeiro, filharom daquelles qua
tro, os quaaes forom os primeiros que em sua
propria terra forom filhados per xpaãos, nem ha
hi cronica nem estorva em que se conte o con
tra iro (2).

^1) Assim se ncha no Codice, como verificámos ao corregir


esta folha ; mas parece-nos que houve aqui alguma omissão do
copista, e que o texto se deve restabelecer da maneira seguinte :
Filharom quatro daquelles ilue tiveram o atrevimento, ele.
*.' Esta passagem confirma ainda mais o que dissemos cm .<
— 100 —

Por certo nom era esta pequena honra do


nosso principe, cuja poderosa força foe abas
tante de mandar gentes tam alongadas do nosso
regno , fazendo presas nos vezinbos da terra do
Egipto (1). Nem Dinis Dyaz nom deve ficar fora
desta honra, pois foe o primeiro que per seu
mandado filhou Mouros em aquella terra, e
seguyo mais adyante, ataa que chegou a huu
grande cabo, ao qual poserom nome o cabo
Ferde (2). E diz que acharom hi muyta gente,
mas nom achamos em scripto perque guisa en-
contrarom com ella, ou se a virom do mar quan
do estavam no navyo, ou se andavam naquelles
barcos fazendo sua pescarya. Abasta que elles
nom tomarom mais daquella vyagem , soomente
quanto diz que sayrom fora em hua ilha (3),
onde acharom muytas cabras, eaves, dequeou-
verom grande refresco; e assy diz que acharom
ally muytas cousas desvairadas desta terra, se
gundo adyante sera contado. E dally fezerom
volta pera este regno. E peroque a presa nom
fosse tamanha como as outras que ante vierom ,
o Iffante a teve por muy grande por seer da-

nossa Mem - sobre a prioridade dos Descobrimentos dos Portuguezes,


§ III, p. 20 e seguintes. Paris, 1840.
(1) Sobre este erro da geografia systematica dos antigos e que
Azurara admittia trataremos em outro lugar.
(2) Esta passagem prova que forao os nossos maritimos que
primeiramente pozerão áquelle Cabo o nome de Verde. ( Vid. a
nossa Mem. cit.)
(3) Barros diz : « Ilheta que está pegada nèlle. »
— 161 —
•luella lcrra(l), e assy fez por ello a Dinis Dyaz ,
e a seus companheiros, grandes mereces.

0) Nesta, e em outras passagens se mostra que o Infanlc


Imlia por objecto principal os descobrimentos, e não as correrias
que os seus navegadores faziào contra os habitantes d'Africa com
0 Bm de commerciarem cm couros.

i!
— 16'2 —

CAPITOLLO XXXIIo.

Como An Um Gllz, e Garcia Homem, e Diego Aflbnso,


' , partirom pera o cabo Branco.

Bem he que tornemos por aquelle scudeyro,


que no anno passado ficou no ryo do Ouro,
comoja dissemos, cujo special serviço he digno
de grande memorya , noqual nom posso tantas
vezes consiirar que me nom maravilhe mais que
assaz. E que direy cu de huíi homem, que na-
quella terra nunca fora, quanto que em ella
estevesse, nem alguu outro homem que elle
conhecesse, nem ouvisse, e querer assy ficar
antre hua gente pouco menos de salvajem,
cujas manhas nem condiçooês nom sabya ! Con-
siiro com que contenença parecerya primeira
mente ante elles, ou a que fim dyrya que ficava,
ou como se podya concordar com elles no man-
tiimento e nas outras cousas de seu huso ! Bem
he que elle fora ja cativo antre os outros Mou
ros, em esta parte do mar Medyoterreno, onde
ouvera conhecimento da linguajem ; mas nom sey
se lhe prestarva antre aquelles (1). Antam Gllz,

(I) Esta particularidade nos dá mais uma prova de que estes


que o la leixara, nembrandossc de sua ficada,
fallou ao Ifiantc a cerca dello, dizendo : Vossa
senhorva sabe como Joham Fernandez, vosso
scudeiro, ficou no ryo do Ouro, afim de saber
de todallas cousas daquel la terra, assy grandes
como pequenas, pera vos enformar dellas, se
gundo sabe que he vosso desejo ; e sabees como
ha tantos mezes que la he, por vosso serviço.
Se vossa mercee for de me envyardes por elle,
e comigo outros navyos, trabalharey por vos
servyr, de guisa que a allem de trazer o escu
deiro, se possa pagar toda a despesa que se fe-
zer em nossa vyagem. E ja sabees pera homem
que tiinha tal desejo a estas cousas, quanto se
melhantes requerymentos seryam amargosos
de ouvyr. Os navyos forom logo prestes, dos
quaaes Antam Gllz era principal capitam, le
vando em sua companha Garcya Homem , e
Diego Affonso, criados do Iffante, segundo ja
em outros lugares teendes ouvydo. E estes dous
levavam carrego das outras duas caravellas,
pero sob mandamento do principal. Os navyos
partidos forom receber sua bitalha a as ilhas da

descobrimentos erão feitos systematicamente , e segundo um


plano maduramente combinado.
João Fernandez tinha, como vemos, aprendido o arabe, e
mui provavelmente o lierbere durante o seu captiveiro na Maui i-
tania, e devia ter ali i adquirido algumas noticias do interior
d' Africa , mas para as obter mais circumslanciadas , teve o valor
de ficar entre os Mouros no Mio do Ouro nfim de mclhor poder
informar o Infante.
— 104 —
Madeira, porque avya hy ja grande abastança
de mantiimentos. Ally teverom acordo de se-
guyr direitamente ao cabo Branco, e que em
caso que os algua fortuna partisse, que todavya
enderençassem seus navyos ao dicto cabo. E
husando o tempo de seu custume, o qual ligei
ramente se move de bonanca pera tormenta , e
assy outras vezes ao contrairo, sobreveo tama
nha tormenta sobre elles, que em muy breve
pensarom sua perdiçom, apartandosse huíis dos
outros, onde cada huu daquelles capitaaês pen
sava, segundo seu grande trabalho, que o de
seu parceiro serva muyto mayor, pello qual
presumya sua perdiçom ; onde os acordos eram
tantos em cada caravella, que a penas poderom
assessegar em algua certa determynaçom ; mas
todavya se firmarom, cada huu em sua parte,
seguyr vyagem dereita, onde ante todos junta
mente tiinham determinado, pensando cada
huu que a elle soomente ficava todo aquelle en
carrego, ca de seus parceiros ally chegarem
eram muy dovidosos, creendo que de seerem
tornados ao regno serva a milhor parte de seu
aqueecimento , porque em sua perdiçom muyto
mais afirmavam. Assy forom pairando sua for
tuna, com grande trabalho de seus corpos, e
nom menos temor dos coracooes, ataa que
prouve a Deos que o mar foe amainando de sua
primeira braveza , e tornou em seu assessego,
quejando compria pera sua vyagem. Diego Af-
fonso, que primeiro chegou ao cabo Branco,
— 165 —
fez poer cm terra hua cruz grande de madeira,
perque os parceiros, acertandosse de viir apos
elle, ounom seendo ainda passados, podessem
conhecer que elle seguya ja ante elles ; e com tal
firmeza foc aquella cruz posta, que despois
muytosannos durou ally , e ainda oje me dizem
que esta em seu proprio seer. Bem se devya
maravylhar alguu doutro rcgno que per acerta-
mento passasse por aquella costa, c visse antre
os Mouros semelhante sinal, e nom soubesse
algua cousa dos nossos navyos que navegavam
per aquella parte. Grande prazer era a cada huíi
dosoutros capitaaes, quando chegavam a aquelle
lugar, e cobravam conhecimento dos parceiros
que tiinham dyante ! Diego Affonso nom quis
fazer pouso acerca do cabo, eon si irando que se
os outros vihessem, em breve tempo o pode-
rvam achar, e que pois elle de sua viinda nom
era certo, que devya seguyr avante, e tentar
qualquer cousa em que podesse fazer presa ,
porque o tempo se nom perdesse sem cobrar em
elle algua parte de sua honra e proveito. Nom
curo de screver alguas cousas da vyagem da-
questes, que achey scriptas per huu Affonso
Ceweira (1 ), que esta estorva primeiramente quis
ordenar, ca pois nom trouxerom fim, nom sey
pera que despenda tempo anojando vossas voon-

í I ) Sobre este .Iffonso Ccrvciru que foi autor de uma Hislorta


•In Conquuln dos Portugueses pela cosla dAfrica , como diz Har-
hoza na Biblioth. lusit., ful. a nossa Introducrào.
— 166 —

tades, pello qual minha scriptura vos possa la


zer fastyo, avendo materya de que possa minha
obra assaz graciosamente guarnecer. Juntas as
caravellas, os capitaães muy allegres seguyrom
em seus batees, onde cada huu tiinha por glo-
rya de fallar no que ante passara com tanto tra
balho e temor. E porque Antam Gllz fora pos-
tumeiro em aquella chegada, per cujo mandado
se os outros avyam de reger, disseronlhe como
ja sayrom fora alguas vezes, nom podendo
filhar cousa que lhe trouvesse proveito, e o que
peor era que lhe fogiram os Mouros; pello qual
sentyam que por seer descubertos piestarya
pouco allv mais sua tornada.
— 167 —

CA1UT0LL0 XXXI 11 .

Domo forom aa illia de Ergim, e dos Mouros


que em clla fílharom.

Quanto, disse AntamGllz, o começo da nossa


vyagem foc mais trabalhado, tanto spero na-
•piclle Deos, que por stiamercee nosaqny ajun
tou salvos de tamanho perigoo, nossa fym sera
muyto milhor. Hora, disse elle, pois que assy
he que per vossa sayda sentiis que teendes os
Mouros daquy avisados, bemsabees como aquy
advante esta hua ilha que se chama Ergim (1),

(I) Arguim. \crescentaremos ao que dissemos em nota 2 da


pag. 99 acerca deste ponto da costa d'Africa , que Barros acres
centa algumas particularidades ás referidas por Azurara neste
capitulo, e que nos parecem assaz interessantes para a illustração
desta Chronica. Diz elle fallandodVr^u/m e do facto referido pelo
A. : « Porque naquelle tempo para fazer algum proveito todos os
• hião demandar (os ilheos d'Arguim) ; e tinha por certo que
- avião elles de ir dar com elle, por ser aquella costa e os ilheos
• a mais povoada parte de quantas té então tinhão descoberto. E n
• causa de ser mais povoada, era por razão da pescaria de que
• aquella misera gente de Mouros Azenegues se mantinha, |K>r
» que em toda aquella costa não avia lugar mais abrigado do im-
•peto dos grandes mares que quebrão nas suas pratas senão na
— 1G8 —
naqual sento que se formos de noite, acharemos
alguus Mouros que possamos filhar. Façovos
esto saber, porque sem vosso conselho cousa
a lgua nom entendo cometer. Nom soomente os
capitaães disserom que lhes prazia, mas ainda
os outros em cuja presença todo foe fallado, tri-
gandosse todavya que a tardança nom fosse
grande. E tanto que o sol começou esconder os
rayos de sua elaridade , e o crepuscullo da noite
çarrou o ar com sua scuridom , forom piastes
em seus batees, tomando consigo aquella gente,
que sentiram que compria pera sua defesa,
poendo cada huu por sy outro capitam em sua
caravella, aos quaaes mandarom que tanto que
fosse manhaã, os fossem buscar caminho da
dieta ilha ; e elles em os batees parti rom como
tiinham ordenado; e pouco mais de meya noyte
chegarom aa dieta ilha, naqual saindo forom
dereitos aa povoraçom, e nom acharom em ella
mais que huu Mouro negro, e huasua filha, os
quaaes tomarom ; e o Mouro per acenos lhe fez
entender que se fossem aa terra firme, na beira

» paragem daquellas ilhas d'Arguim : onde o pescado tinha algn-


» ma acolhelta , e lambujem da povoação dos Mouros , posto que
» as ilhas cm si não são mais que huns ilheos escaldados dos ventos
» e roclo da agua das ondas do mar. Os quacs ilheos seis ou sete
» que elles são , quada hum per si tinha o nome proprio per que
» nesta scriptura os nomeamos , posto que ao presente todos se cha-
» mão per nome commum os ilheos d'Arguim : por causa de huma
»fortaleza que elRei dom Affonso mandou fundar em hum delles
» chamado Arguim. » (Decad. I, liv. I, c. 10.)
Arguim está situada a 29 gr. c 30™ de lat. septentrkmal.
— 169 —
do mar, acharyam a povoraçom dos Mouros,
mostrandolhe o geito contra onde os poderyam
achar. Ouvyndo esto, acordarom de repousar
ally todo o seguinte dya , porque pera seu feito
seer acabado, nom compria chegarem senom de
noite; e assy despenderom o dya, hora em sono,
hora em comer e bever. Specialmente se deleita
vam na bondade da augua , de que ally acharom
grande abastança. A noyte viinda fezerom sua
vya, remando ryjamente seus batees contra
onde lhe o Mouro ante acenara ; e esto hera ma
ravilhosa cousa, ca tanto que alguu daquelles
era preso, avya por folgança ir mostrar aos
contrairos, nom soomente os naturaaes e ami
gos, mas ainda a molher e os filhos ! E seguindo
assy sua vyagem , alguus daquelles duvydavam
«laquel la ida, teendo que hyaru com pouco avi-
samento, pois nom sabyam o numero dos in-
miigos quanto era, nem como estavam corre -
gidos pera sua defesa. Mas as pallavras daquestcs
nom poderom prestar, porque as voontades
acesas pera semelhantes feitos poucas vezes
speram conselho. Seendo ja em terra firme a
boas horas da noite, poserom o Mouro ante sy
por guya, e por o pejo que tcverom em o nom
poder entender, fezerom tamanha deteença, que
quando amanheeceo , elles eram aynda huíi
grande pedaço afastados da aldea. E levantan-
dosse os Mouros pella menhaã ouverom vista
delles onde viinham , e come homees sem acor
do, c minguados desforço , começarom do fogir
— I7t) —
cada huu pera hu sentya que milhor podya
guarecer, leixando suas fazendas , molheres e
filhos , assy como homeês que em guarecer suas
proprias vidas sentyam que tiinham assaz que
fazer. E os nossos esguardando contra elles, e
os virom assy ir fugindo, algua parte se alle-
grarom por seerem seguros do perigoo que ante
speravam ; empero polla perda que sentyam
que podyam receber polla fogida daquelles,
nom podyam seer muy allegres. Mas esta con-
siraçom nom teve tempo de seer bem revolta
em seos pensamentos, ca pero cansados fossem,
nom se podya conhecer no cosso de suas car
reiras, ca tam rijo e com tam grande voontade
estendyam seus passos, como em outro tempo
ja fezerom, levantados de suas camas, querendo
provar manhas nos campos daquellas villas
onde forom criados. E bem pareceo com que
voontade o faziam no filhamenío de sua presa,
aqual vista de tam longe, como ja dissemos, c
os imiigos folgados ehusados em aquelle mester,
e porem tomarom delles xxv. Mas sobre todos
foe aquelle dya ligeiro huu Lourenço Dyas,
morador em Setu val , que era servidor do 1 ffaute,
ca elle per sy soo prendeo sete daquelles. 0 tra
balho foe de nhuu pouco sentido em compera-
çom de seu prazer; com o qual se forom ao longo
da prava buscar suas caravellas, queavya tres
dyas que leixarom.
— 171 —

CAPITOLLO XXXIIII0.

Como Johnm Frrz chegou a as caravellas.


*

Joham Frrz avya ja sete meses que morava


cm aquella terra , e bem parece, segundo razom,
que ao tempo que o Antam Gllz leixasse, que lhe
ficarva de tornar por elle, ou requerer ao Iffante
que mandasse alguu outro, que o per essa guisa
podesse levar. E porem despois que Joham Frrz
sentyo que serva ja tempo de os navyos pode
rem tornar do regno, acudya muytas vezes a
aquella prava por veer se poderya veer alguu.
E bem creo que este serva o seu principal cui
dado. E acertoussc que aquelles que ficarom nas
caravellas, querendo comprir mandado de seos
principaaes capitaaes, fezerom vella contra a
ilha de Ergim , daqual parece que non ouverom
conhecimento, e passarom avante, onde anda-
rom borlaventeando dous dyas , atee que forom
a outra terra da parte da allem. E pouco mais
avya de hua hora que jaziam sobre ancora,
quando virom huu homem que estava em terra
contra elles. Aparelhoussc trigosamente hua ca-
ravella por vecr que podya seer aquello, e
— 172 —
fazendo vella contra el Ic , porque o vento era de
sobre a terra, nom pode ir fora tanto como
quisera. E Joham FrrZ veendo o empacho que
a caravella recebya, querendo ir ao longo da
ribeira, ou por presumyr que os batees seryam
em aquella parte, ou a outra algua fim, leixousse
assy ir hua pequena peça, onde vyo os batees
que viinham em busca de seus navyos, e bra
dando contra aquella parte onde elles viinham ,
forom os outros nouy allegres, pensando que
era alguu Mouro que se viinha de sua voontade
pera elles afim de fazer alguu resgate por alguu
daquelles cativos; pero quando conhecerom sua
linguagem, pella qual se nomeou por aquelle
que era, forom ainda muyto mais ledos, pello
qual fezerom sua trigança muyto mayor. Con-
siiro, diz o autor, qual serya stonce a presença
daquelle nobre scudeiro, seendo criado a as
vyandas que sabees, sciliect, pam, e vinho, e
carne, e outras cousas arteficiosa mente com
postas, e viver sete meses assy, onde nom co-
mya outra cousa senom pescado, e leite de
camellas, ca penso que nom ha hy outro gaado,
bebendo augua salmaça, e ainda nom em abas
tança; e estar em terra queente e areosa sem
nhíia deleitaçom ! Oo gentes que vivees na do
çura dos valles deSpanha, que quando acontece
de vos minguar algua parte do mantiimento
acostumado, nas casas dos senhores com que
vivees, apenas sc podem ouvvr com vossos ela
mores ! Esguardaae se quiserdes, sobre o pado
— 173 —
cimento deste homem, e achalloees digno de
grande exemplo pera qualquer que servindo,
quer fazer voontade de seu senhor ! E nós ou
tros, que huu dya per ventura em muytos me
ses, per mandado da Igreja jejuamos, ou por
satisfaçom de nossas peendeças, ou por honra
ilalgua festa da Igreja, se he tal que convenha
comermos pam e augua tam soomente, todo
aquelle dya recehemos tristeza ! E quantos hi
ha que despensam com suas proprias concien-
cias, quebrantando seusjejuus por contentarem
seus ventres ! Vejamos se ha hi tal que soomente
hua semana de sua voontade pollo de Xpõ le
vasse outro tanto trabalho ! Nom reprovo eu
porem que o movimento de Joham Fírz nom
fosse com alguu respeito do Senhor, ca cu co
nheci ainda este scudeiro(l), homem de boa
conciencia , e assaz cathollico xpaão; e pois a fim
«lo principal movedor era tam dereita e tam
santa, como ja disse em outros lugares, todal-
las outras cousas movydas per elle he necessa-
rvo que em algua parte conrespondessem aa
primeira teençom.

(I) Compare-se a importancia tlesta deelaração do A. de ter


conhecitlo este imlei iiluo com o que observámos em a nota I da
pag. I5G.
— 174 —

CAPITOLLO XXXVo.

Gomo Antam Glli foc fazer o resgato.

Se me ante maravilhava do padecimento de


Joham Frrz acerca de sua governança , pouco
menos me maravilho daafeiçom que lhe os mo
radores daquella terra tomarom, e ja seja que
fosse sua afabillydade muy grande pera qual
quer outra gente, antre aquelles maravilhoume
como pode aver lugar, ca me certificarom que
quando se partira daquelles com que nos pas
sados sete meses conversara, muytos delles
choravom com soydoso pensamento. Mas pera-
que fallo eu estas cousas em quanto sey que
somos todos filhos de Adam, compostos de huus
meesmos ellamentos , e que todos recebemos
alma come criaturas razoavees ! Bem he que os
estromentos em alguus corpos nom som tam
despostos pera seguyr as vertudes, como som
outros aque Deos per graça outorgou tal pode-
ryo, e carecendo dos primeiros principyos de
que pendem os outros mais altos, fazem vida
pouco menos de bestas; ca em tres modos se
parte a vida dos homeês, segundo diz o philo
— 175 —
sopho : Os primeiros som aquelles que vivem
em contemplaçom , leixando toda li as outras
cousas do mundo, soomente se ocupam em orar
e contemplar, e a estes chama elle meos deoses :
E os segundos som os que vivem nas cidades,
aproveitando seus becs , c trautando huus com
os outros : E os terceiros som os que vivem nos
hcrmos , afastados de toda conversaçom , os
quaaes porque nom ham perfeitamente o huso
da rezom, vivem assy como bestas, semelhantes
a estes que despois do departimento das lingua-
jeês, que per voontade de nosso Senhor Deos
se fez em a torre de Babillonya, spargendosse
pello mundo, ficarom allv, sem acrecentarem
algua parte de sabedorya , em seu primeiro
huso, mastodavya ham seus padecimentos como
as outras criaturas rezoavees, assy como amor,
e odyo, e sperança, e temor, e assy as outras
doze que todos naturalmente avemos , das
quaaes cada huu husa mais ou menos, segundo
a graça que tem de Deos , ca segundo diz sam
Paullo, Deos he o que obra em nós o seu com
primento. E por estes primeiros padecimentos
tenho que se moverom aquelles a afeiçom de
Joham Frrz, por cuja razom ao dyante per sua
partida recebyam tristeza . E bem me conviera fal-
lar a huu pouco sobre estes padecimentos , e per-
que guisa som geeral mente em todollos homees;
mas temy sayr longe com minha estorya (1),

f I) Felizmente Azurara i que conheceo pessoalmento .Io.ío Fer


anojando vossas voontades em perlongamento
de pallavras, ainda que todo he proveito. Hora
leixemos o longo razoado que podya seer cm
aquelles das caravellas polla viinda de Joham
Frrz. Disse elle contra Antam Gllz, como ally
acerca estava huu eavalleiro, que se chamava
Ahude Meymam, e que querya fazer com elles
algíla mercadarva de Guineus que trazia cati
vos; doque Antam Gllz foe muy to ledo, poendo
fora Joham Frrz, oqual em breve spaço fez allv
viir grande parte daquella gente. E trautando
suas arrefeês, recebeo Antam Gllz dous Mouros
por fiança, e elle de sua parte deu outros dous
homeõft datpielles que trazia consygo. Estes
dous, que assy forom dados da parte de Antam
Gllz, entre tanto que se o resgate fazia forom
levados a as tendas dos Mouros, onde eram de
Mouras muy grande parte, e ainda das milhores
daquella terra. E aconteceo assy que os Mouros
levantarom arroydo huus com os outros, por
cuja causa se forom das tendas, afastados pello
campo hua grande peça. E as Mouras esguar-
dando naquelles dous arrefeês, pensarom de os
cometer, mostrando muy grande desejo de ja
zerem com elles; e aquellas que em sy mais
avantajem sentyam, de boamente se mostravam
quejandas primeiramente sayrom dos ventres

Av)dez, nos conla no cap. 77, como veremos, algumas particu


laridades curiosas acerca da descripcào que o mesmo via jante Tez
- I" pMzi e do qut tía obsenoira.
— 177 —

de suas madres, eassy lhes faziam outros muytos


acenos assaz desonestos. E veendo que os outros
tiinham mayor sentido no temor que avyam,
pensando que o arroido daquelles Mouros era
cautellosamente levantado principalmente afim
de lhes fazer dampno ; masellas todavya aper-
fiando em sua desonesta tençom , faziamlhes
sinaaes de grande segurança, rogandoos, se
gundo per seus gritos se entender podya , que
chegassem a afim do que ellas queryam. Mas se
esto era enganosamente cometido, ou se a natu
reza malleciosa de sy meesma o costrangia,
fique no encarrego de cada huu de o determinar
como lhe bem pareça. Grande fyança mostra-
rom aquelles Mouros no movimento de seu
trauto, ca em fallando sobre suas cousas, muy
tos hyam seguramente aos navyos, levando
consygo as molheres , que sobretodo desejavam
veer aquella novydade. O cavalleiro acabou seu
trauto, recebendo alguas cousas que lhe mais
prouve, daquellas que lhe per os nossos forom
apresentadas, empero pequenas e de pouco val-
lor, pellas quaaes leixou ix. negros, e huu
pouco douro em poo. E em acabando este trau
to, requereo huu scudeiro, que morava na ilha
da Madeyra, aÁntam Gllz, que o fezesse caval
leiro, creo que serva por que era homem de
grande idade, e avya linhagem algua de no
breza , e scendo abastado doque lhe compria ,
quis cobrar titollo honroso pera sua sepultura.
Chamavasse aqueste, Fcrnam Taavares, e a
12
— 178 —
aquelle lugar ficou dally avante por nome o Cubo
do Resgate (1). Bem me prouvera fallar aquv
huíi pouco em este cap° das cousas que Joham
Frrz viu c soube em aquella terra ; mas he ne-
cessaryo que vaa com o feito daquestas tres ca-
ravellas a fim, edespois onde achar tempo, vos
fallarey de todo, por levar minha estorya na
ordenança qué me melhor parecer.
Partydos os Mouros dally, e as caravellas
seguindo por dyante, viram os homees que as
aparelhavam, acerca da ribeira ataa duzentos
camellos, com certos Mouros que os seguyam.
E por que lhe parecerom muy acerca, trigosa-
mente sairom a elles; mas aquelles Mouros sen-
tindosse apressados dos outros, ouveronse li
geiramente sobre os camellos, e fogirom em
elles. Empero os camellos eram mais que os
homees, por cuja razom ficarom ally alguus,
dosquaaes os nossos matarom quareetita , e os
outros fogindo scaparom. Seguindo assy as ca
ravellas , chegarom acerca da ilha de Tider,
ondeja fallamos que ha muy tos Mouros; e por
que viram acerca da prava onde estavam buas

(I J Este cabo se acha marcado nas cartas mss. já citadas com o


mesmo nome. Entretanto em uma grande carta portugueza mss.
em pergaminho da Uibliotheca H. de Pariz se lè : P. ( Porto J tlo
fíesgute.
Este nome foi posto assim áquelle ponto por Antão Goncalvez ,
e marcado depois cm todas as cartas hydro-geograflcas portu-
guezas que servirão d'elementos para a nomenelatura geografica
das- de todas as naçfies da Europa.
— 179 —
casas, querendo saber se acharyam ally algua
cousa, savram em terra. E veendo como todo
era ermo, quiserom ir mais avante, onde vi
ram dous Mouros que viinham contra elles; e
os nossos cobiiçosos de os filhar, contenderom
|)era elles ; mas Antam Gllz avisado de seus en
ganos, conheceo per sua contenença que aquello
era afim dalgíia cellada , ca tamanha segurança
em dous homeês contra tantos, qualquer sesudo
podya conhecer que era por tentarem dengano.
Hii, disse Antam Gllz contra dous daquelles,
huu pedaço per essa terra, assiinandolhes ataa
hu chegassem , e verees a falsydade destes per
ros! E assy como os xpaãos aballarom da parte
da prava, assy vierom os Mouros contra elles,
c seendo acerca, remessarom suas azagayas, c
os xpaãos correndo despos elles, tornaronsse do
lugar que lhe ante fora limitado. E em come
çando de se os nossos de recolher todos aos na-
vyos, a cellada foe descuberta, os quaaes em
muy breve forom na prava, de guisa que se
(am prestes se nom recolherom, nom poderam
dallysayr sem muy grande perda, ca os Mouros
sentindo sua avantajem, bem mostravam seu
desejo, entrando na augua quanto podyam,
onde se com as beestas nom forom afastados,
entrarom quanto poderom sequer a nado, por
acabar seu desejo empeecendo aos nossos.
— 180 —

CAPITOLLO XXX VIo.

Como tomarom os Mouros no cabo Branco.

Tornemos, disse AntamGllz, ao cabo Branco,


porque ouvy dizer que da parte descontra o sol
está hua aldea, naqual podemos achar algua
gente em que podemos fazer presa, se em ella
damos darrevato. Todos disserom que era boõ
conselho, porem que se posesse logo em obra;
pera aqual forom apartados xxxv. homeês, os
maisdespostos queacharom pera ello, os quaaes
saindo em terra, forom a aldea logo ao começo
da noite, mas nom acharom em ella nhua cousa.
Bem sera, disserom alguus daquelles, que nos
tornemos aos batees, e que rememos quanto po
dermos ao longo da terra, atee que vejamos me-
nhaa , aqual tanto que virmos , sairemos fora
pera irmos a estes Mouros teer a travessa do
cabo, porque elles he forcado de irem ao longo
do dicto cabo , atee seerem recolhidos ao sertaaõ ;
e porque levam molheres e moços, seerlhea
forçado folgarem parte da noite, e posto que
sempre andem, nom podem tanto andar que
lhes nós nom tomemos a dyanteira. No qual
— 181 —
conselho todos forom acordados; e remando
toda a noite sem tomar parte de folga, porque
em taaes lugares e tempo a preguiça he a mayor
parte da perda, a noite acabou sua fim. Come-
çandosse a elaridade do dya, sayrom fora xxviij.
daquelles , ca os outros ficarom por guarda dos
batees. Os que eram na terra andarom tanto,
ataa que chegarom a huu lugar alto, donde sen-
tyam que poderyam bem esguardar pera todal-
las partes, e encobrindo sua vista o milhor que
poderom o sol que começava de sayr, viram viir
contra sv Mouros e Mouras, com seus filhos e
filhas, que seryam per todos, segundo seu esmo,
Lxx, ou Lxxx. E sem outro fallamento nem ma
neira de conselho, saltarom antre elles, braa-
dando seus apellidos acustumados , scilicet ,
sam Jorge ! Portugal ! de cuja chegada os Mou
ros forom tam desacordados, que os mais delles
ouverom por seu remedyo fogir, soomente sete
ou oito, que se aparelharom pera defesa, dos
quaaes logo do primeiro golpe, cayrom mortos
tres ou quatro. E acabados aquestes, nom ouve
hi mais trabalho de pelleja, soomente quem se
sentya ligeiro dos pees pensava que tiinha re
medyo pera sua vida ; porem os nossos nom es
tavam ouciosos, ca se os imiigos tiinham cui
dado de correr, nem elles nom se leyxavam
folgar, ca em tal tempo, semelhante trabalho
descanso he pera os vencedores. E assy toma-
rom per todos lv. que trouverom consigo aos
hatees. De sua ledicc nom ey porque fallar,
— 182 —

porque a rezom vos ditara qual devya seer, assy


daquelles que os levavam , como dos outros das
caravellas onde chegarom com elles. Em fim
daqual presa acordarom de se tornar pera o
regno, porque ja em aquella parte por entam
sentyam que nom podyam mais aproveitar,
specyalmente polla mingua do mantiimento,
que ja nom era tanto que podesse abastar lon
gamente a elles, e aos prisoneiros que tiinham ,
quanto mais que o caminho era longo, noqual
nom sabyam a vyagem que acharyam. Porem
enderençarom seus navyos contra o regno , de-
rei ta mente a Lixboa, onde chegarom assaz con
tentes de sua presa. Mas qual serva aquelle que
nom fylhasse prazer de veer a multidom da
gente que corria por veer aquellas caravellas ;
ca tanto que abaixarom suas vellas, os ofliciaaes
que arrecadam os dereitos delRey, tomarem ba-
tees da ry beira por saber os navyos donde eram,
e o que traziam ; e tanto que tornarom , e as
novas correrom de huus nos outros, em breve
spaço foe tanta a gente nas caravellas , que por
pouco as nom allagavam ! Nem eram menos no
outro dya, quando tirarom os cativos dos na
vyos, e os queryam levar a huus paaços do
Iffante, que som huu gram pedaço afastados da
ribeira, ca de todallas outras partes da cidade,
corryam pera aquellas ruas per onde os avyam
de levar. Por certo, diz o autor desta estorva,
bem se poderyam ally reprender muytos da-
quelles que primeiro fallev, «pie murmuravam
— 183 —
sobre o começo deste feito, ca nom avya hy
estonces alguu que se quisesse contar por huu
daquelles, caos elamores do povoo eram tam
grandes, quando vyam levar aquelles cativos
em cordas ao longo daquellas ruas, louvando
as grandes vertudes do Iffante, que se alguu se
quisera atrever fallar o contrairo, muy em
breve lhe convyera de o desdizer, ou per ven
tura lhe prestara pouco, ca sobre a openyom
do povoo, mayormente posto em alvoroço, ra
ramente se acha perdom pera nhuu que lhe
lalle sobre o contrairo do que elles antre sy tra
zem firmado ; nem ainda me parece que podya
seer homem de tam malleciosa condiçom , que
podesse contradizer tamanho bem, doqual se
seguyam tam grandes proveitos. O Iffante era
em terra de Viseu , donde mandou receber seu
quynto; e dos que ficarom fezerom os capitaaes
sua venda na cidade, de que todos gecralmente
ouverom grande proveyto.
— 184 —

CAPITOLLO XXXVIIo.

Como a caravella de Gonçallo Pacheco , e outras duas caravellas ,


forom aa ilha de Ergim.

Como a cidade de Lixboa he a mais nobre do


regno de Portugal , per semelhante os seus mo
radores, contando a mayor parte pollo todo,
som mais nobres e de mayores fazendas. E nom
seja alguu tam simpliz que tome esta pallavra
grossamente , per que entenda que esta nobreza
seja especial em aquestes, mais que nos outros
das outras cidades e vil las , ca os fidalgos e ho-
meês de grande criaçom , em qualquer parte
som nobres; soomente fallo geeralmente, por
que como dezia Paullo Vergerjo, na ensinança
que fez dos mocos fidalgos , que o splandor da
grande cidade he gram parte de nobreza. Veendo
aquestes ante os olhos tamanha riqueza como
traziam aquelles navyos, guaanhada em tam
breve tempo, c com tamanha segurança, con-
siirarom alguus como podyam aver parte da-
quelle proveito. E avya naquella cidade huu
scudeiro de nobre linhajem, daqual nom myn-
guava per bondade nem vertude , que se cha
— 185 —

mava Goiíçallo Pacheco, oqual fora criado do


lffante, e ally era thesoureiro moor das cousas
de Çepta, homem de grande casa, e que sem
pre trazia navyos no mar contra os imiigos (1 ) ;
o qual parece que consiirou sobre este feito, c
escreveo logo ao lffante que lhe desse lugar pera
armar hua caravella muy nobre, que pouco
avya que mandara fazer pera seu serviço, e esso
meesmo pera outras duas cara vel Ias que a que-
ryam acompanhar. Na licença ouve pequeno
empacho, emuyto menos no aparelhar das cou
sas que compryam pera sua armaçom. Gonçallo
Pacheco fez capitam de sua caravella huu Dinis
Eanes da Graã, sobrinho no primeyro graao de
sua molher, scudeiro que era do regente, e nas
outras hyam os senhoryos dellas, scilicet, Al
varo Gil , ensayador da moeda , e Mafaldo, mo
rador em Setuval ; os quaaes, postas as bandeiras
da ordem de Xpõ em seus navyos (2) , fezerom
sua vya caminho do caboBranco. E chegando ally
acordarom todos tres antre sy , de nom hirem a

(1 ) Barros diz : « 0 qual como era homem de grossa fazenda


» e que armava navios para algumas partes. » Omittio a passagem
d'Azurara : Contra os imiigos.
(2) Ainda em um Atlas inedito em pergaminho, feito em
Hessina no anno de 1567 por João Martines , se vêem pintados
dois navios portuguezes em dilTerentes pontos do Oceano oriental
com a cruz da ordem de Christo pintada nas velas ; parecendo
que o dito cosmografo quiz por aquelle modo indicar o dominio
portuguez naquelles mares.
Este Atlas ricamente executado pertenceo Á Bibliotheca de
Heber, e existe aclualmenle na de Mr Ternaux.
— 186 —
aquella aldea que estava a hua legoa do cabo,
por rezom do scripto que hi acharom, quepo-
sera Antam Goncalvez, noqual avisava os que
per ally passassem, que nom tomassem traba
lho de ir sobre aquella aldea com esperança de
proveito, porquanto elle fora em ella, e a achara
despovorada. E entom acordarom de ir buscar
outra, que serva duas legoas dally, e de feito
chegarom a ella , e per essa guisa a acharom
despovorada. E acertousse de seer naquelle
ajuntamento dos que forom a aquella aldea
huu Joham Goncalvez Gallego, que era pilloto,
e fora ja em aquella terra com Antam Goncalvez,
quando esta postumeira vez tornara por Joham
Fernandez; e parece que tanto que chegou a
Lixboa , se meteo logo em companhya daques-
tes. Vós, disse aqueste Joham Gllz, aprovei-
tarees muyto naquesta fazenda, se meu conse
lho quiserdes seguyr, pollo qual tenho feuzaem
Dcos que nos dara boa presa , ca eu fuy ja em
esta terra, e vy como se trautavam os outros
que della avyam milhor conhecimento. Todos
a bua voz disserom, que eram dello muy con
tentes, e que lho agradecvam muyto; que dis
sesse em boa hora o que lhe prouvesse. Vós sa-
bec, disse elle, que as caravellas em que veo
Diego Aflonso , e Garcia Homem , andarom, ante
que Antam Goncalvez viesse, espantando os
Mouros per esta costa. E quando Antam Gon
calvez chegou tevo seu acordo com elles de irem
a Ergim, o quando alla chegarom, os da ilha
— 187 —
eram ja percebidos, pollo qual sayrom todos
fora, que nom fycou senom huu delles, com
hua Moura moça sua filha, que trouverom
comsigo. E nós vimos as casas da ilha, que eram
assaz de grande povoraçom , e bem parecia que
os Mouros pouco avya que partiram, e fora fo
mos filhar huíis xxv. E assy que eu creo, que
porque ha tam pouco que fomos em esta ilha,
que os Mouros desseguraram ja por este anuo,
polla qual seram tornados a ella, e seguindovos
vós per minha guya, com a graça de Deos eu
vos sabercy bem levar onde elles presumo que
sejam , e acertandoos a presa nom pode seer se
nom boa. Como pode seer, responderom alguíis,
que os Mouros tornassem tam em breve a huu
lugar, onde ja sabem que forom -buscados? ca
aquello em que vos vós mays muyto certifi-
caaes, deve trazer a nós muyto mayor duvyda,
e esto he a brevyedade do tempo, daqual
fazees principal causa de sua tornada, o que a
nos parece o contrairo, porque sua sospeita
mayormente tam manifesta, nom lhe deve tam
cedo trazer segurança. Os capitaaes nom quise-
rom ouvyr mais razooes, mas come homeês fir
mados no primeiro conselho, mandarom poer
seus batees fora dos navyos, e aparelharonsc
com aquella gente que sentiram que lhes era
necessarya; e porque antre elles ja fora orde
nado, de sayrem fora cada huu dos capitaacs
per sua vez, foe a sorte de Mafaldo em aquella
sayda, e os outros ficarom em suas earavellas^
— 188 —
E assy eram todos avisados que nehuu nom pas
sasse o mandado daquelle pilloto, de que ante
disse que receberam conselho. E assy remarom
seus batees, que acerca de meya noyte elles
eram no porto da ilha, junto com a povoraçom;
e saltando fora, disse Mafaldo, queconsiirassem
como ainda era tam alta noyte, e que pois eram
tam preto de povoraçom, que dando sobre ella
em tal tempo por razom do escuro, muytos po-
dyam guarecer, ou que per ventura podya seer
que jaryam fora afastados dally, nom seguros
do primeiro temor; e porem que seu conselho
serva cercarem a aldea , e em alvorecendo darem
sobre ella. Mafaldo era homem que avya h usado
em aquelle mester, ca andara muytas vezes no
trafego dos Mouros, pello qual todos teverom
seu acordo por muy proveitoso. E em indo assy
pera se lançar onde ante acordarom , toparom
em huíi camynho que viinha da aldea pera a
fonte, e esteverom em elle huu pouco aguar
dando ; e em esto viram hua moça que viinha
por augua , aqual em breve foe filhada , e per
semelhante huu Mouro, que a cabo de pouco
sobreveo per o dicto caminho, aoqual pregun-
tarom per seus acenos se estava ally muy ta
gente? e elle respondeo per seus sinaaes, que
nom mais de sete. Pois que assy he , disse Ma
faldo , nom avemos porque guardar mais a ma-
nhaâ, mas vaamos a elles, ca pera tam poucos
nom nos som mester muytas cautellas. E bre
vemente a aldea foe cercada, e aquelles sete fi
— 189 —
lhaclos. Mafaklo apartou logo huu daquelles, e
começou de o perguntar assy como milhor pode,
come homem que nom tiinha outro torgimam,
onde eram os outros Mouros daquella ilha? E o
Mouro fez sinaaes que eram em terra firme,
onde se forom com medo que avyam dos xpaãos,
oferecendosse logo de o levar onde elles estavam,
ca o mar chegava muy preto donde elles jaziam.
Mafaldo, sabido aquesto, véo fallar com sua
companhya, preguntandolhes se lhes pareeya
bem de irem em busca daquelles Mouros? E
porque onde som muytas cabeças ha muytos
sisos, começaronse antre elles alguas duvydas,
dizendo alguus que semelhante yda era muy
duvydosa , pois o Mouro nom sabya dizer, ou
elles entender, o numero dos Mouros quanto
era, e que ainda que o dissesse, que o dirya en
ganosamente, com entençom de os levar antre
tantos de que elles nom podessem cobrar vito-
rya. Pois, disse Mafaldo , se em todallas cousas
quiserdes buscar duvidas, nunca vos podem
fallecer ; e se em taaes feitos fordes de todo ao
cabo da rezom , tarde ou nunca farees cousa que
muyto aproveite. Vaamos com Deos, disse elle,
e nom afraquemos nossos coraçooês , ca elle
por sua misericordya sera oje comnosco. To-
dollos outros acordarom que era bem de irem
todavya. E leixarom ally oyto Mouros , e com
elles seis homeês que os guardassem, levando
consigo aquelle que lhe primeiro dissera onde
os outros jaziam. E assy aconteceo, que huu
— 190 —
daquel les oito que ally ficarom, fogyo do poder
tlos nossos que o guardavam , e passou em hua
almadya, naqual foe dar novas aos outros que
jaziam na terra , em cuja busca os xpaãos eram
partidos, contandolhe como cativarom elle e os
outros oito, mas nom os soube avisar de nhuua
cousa que a seu dano pertencesse , ca parece que
nom sentyo o que viinha sobre elles. E como
quer que os outros pesar ouvessem, soporta-
ronno com aquella paciencia com que homem
soporta os malles alheos, e porem leixaronsc
repousar e folgar, e assy o outro com elles. E
despois que os xpaãos entrarom nos batees,
logo de noite derom a andar pera onde lhes o
Mouro acenava, e andarom assy per espaço de
duas legoas; e aportando em terra, seguirom o
Mouro atee o lugar onde lhes elle mostrou, per
seu aceno, que eram acerca. E ally se teverom
todos, envyando huíi daquelles que se chamava
Diego Gil , que fosse veer se averya sentido da
gente, o qual foe tanto avante que vyo as casas,
c chegandosse mais preto ouvyo chorar huíi
menino.
— t9l —

CAPITOLLO XXXVIII".

Como Mafaldo tomou Rvj. Mouros.

Diego Gil nom foc priguiçoso en sua tornada,


e contando as novas aos outros, se acordarom
sc serva bem esperarem ally a manhàa, porque,
como disserom, na ilha, por aazo de escuri-
dom da noite, muyto daquelles podyam esca
par, ca no filhamento delles tanto era o seu atre
vimento, que nom poinham algua duvida. E assy
csteverom aguardando ataa cerca da alva, a
qual a muvtos parecia que tardava mais do ra
zoado, tanto era seu desejo de chegar ataa fim
daquelle feito. Muytas vezes sc acontece em ou
tras partes, onde per necessydade os homêes
ham de vellar, quando som em aquella hora
nom se podem soportar sem dormyr, tanto som
forçados do sono! mas nom era semelhante em
aquelles, ca nom avya hi alguu que nom este-
vesse muy seguro de sy meesmo que de seme
lhante podesse seer costrangido. Mafaldo, sobre
cujo carrego aquelle feito mais pendya, tanto
que viu a hora pera partyr, começou de lhe fat
lar em esta guisa : Amigos! O tempo he acerca
— 192 —

noqual nos compre acabar o porque esta parte


da noite tanto trabalhamos; nós somos em ter
ra de imiigos, onde nom sabemos se o avemos
daver com muytos, se com poucos. Porem eu
vos rogo que vos lembrees de vossas honras, e
cada huíi faça tanto que nom desfalleça no co
metimento daquesto feito. Hora, disse elle, vaa-
mos, nosso caminho, ca Deos sera comnosco!
O espaço era pequeno donde os imiigos jaziam ,
osquaaes sentindossc cercados, começarom de
sayr das choças , e come homêes mais cheos de
temor que desforço , poserom toda sua sperança
em fugir. E finalmente forom presos Rvj. (1),
afora alguus que morrerom do primeiro topo. E
como quer que o feito nom fosse de muy grande
perigoo, nom leixaremos porem de dar avanta-
gem do trabalho a aquelles que o milhor fize-
rom , os quaaes nom forom de menos esforço
na pelleja, se se antre elles acertara por grande
que seer podera. E leixando Mafaldo, que era
capitam, Diego Gil, e Alvaro Vaasquez, c Gil
Eannes , nom aquelle cavalleiro de que ante fal
iamos, trabalharom assaz, come homêes que
bem mostravom que eram pera outro mayor
feito. E assy foe a presa daquella noite Liij°
Mouros.

(Ij «6.
— 193 —

CAPITOLLO XXXIXo.

Como sairom outra vez fora , e das cousas que fezerom.

Bem podemos conhecer pellos aqueecimentos


destes homêes, que a mayor parte dos feitos
do mundo som mais sogeitos aa fortuna que aa
rezom. Qual he aquelle que posto em direito
juizo, se podessc fyar.no movimento da cabeça,
ou sinaaes das maãos que huu Mouro lhe fazia?
E nom podya assy acontecer que aquelle Mouro,
a fim de seer livre, ou per ventura cobrar vin
gança de seus imiigos, mostrasse hua cousa por
outra , c mostrando que os levava a alguu lugar
onde per sua mostrança os nossos entendessem
que podyam cobrar vi torva, levallosonde achas
sem tanta multidom, donde pouco menos de
mortos podessem escapar? Certamente nom ha
no mundo siso que o contrairo podesse consii-
rar. Creo porem que a principal causa destas
cousas nacia do conhecimento que ja delles
avyam, sentindo sua astucia em esta parte scer
pequena. Assy chegou Mafaldo com sua presa ,
onde dos outros parceiros ouve aquelle recebi
mento, que a presenca do guaanho, avido per
13
— 194 —
seu trabalho, requerya. E fazendo fim do re
conta mento de sua allegre vitorva, disse que
lhe parecia que devyam prcguntar a cada hnu
daquelles Mouros que ally trazyam , se per ven
tura a allem daquella povoraçom onde elles fo-
rom filhados , avya algua outra em que podes-
sem fazer algua presa ? Eavendo consentimento
de todos, apartou híiu daquelles pera lhe fazer
a dieta pregunta; oqual lhe disse que sy. E ta
manho era o atrevimento que ja trazyam, que
nom quiserom preguntar se eram muytos se
poucos, ou que gente.serya de pelleja, nem ou
tras alguas cousas que em tal caso convnnha de
se preguntarem ; mas assy come homêes que
hvam sobre cousa determinada, partirom sobre
a tarde, onde pellos sinaaes daquelle Mouro fo-
rom guvados a híia aldea, onde chegando nom
acharom algua cousa de que podessem fazer
presa. E ameaçando o Mouro por ello, lhes fez
entender, que pois ally nom eram , que devyam
seer em outra povoraçom que dally noni era
muy longe; naqual nom acharom senom huii
Mouro velho, posto na postumeira enfirmidade,
oqual veendo em tal ponto, leixavam pera fazer
sua fim , nom lhe querendo afadigar aqnella pe
quena parte da vida, que lhes segundo sua
mostrança lhe ainda ficava. E segundo parece ,
os Mouros, avendo ja sentido dos xpaãos como
eram antre elles, leixarom aquella aldea, irí-
dossc pera outra parte. Os nossos que ally eram
teverom conselho nom segnyr mais avante,
porque lhes parecia trabalho em que nom avya
algíia esperança de proveito, acordando de tor
narem ally outra vez, presumindo que os Mou
ros, sabendo sua viinda e tornada, cobraryam
segurança, pella qual tornarvam pera suas ca
banas; mas aquello nom foc assv, ca os Mouros
por aquella vez se afastarom muy longe dally,
onde ainda pero muy to afastados fossem, te-
myam de scerem buscados. Bem he que os nos
sos seguindo seu conselho, forom a suas cara-
vellas, donde tornarom outra vez, e veendo
como nom achavam nchua cousa , soomente
aquelle Mouro que ante leixarom, parecendo-
Ihe que estava milhor, trouveronno com sigo.
Bem podya dizer aquelle triste mal de sua for
tuna, pois em tam breve fazia revogar a sua
primeira sentença, conformando tantas voon-
tades, cada híia vez sobre a sorte de sua ven
tura! Outras vezes sairom os nossos fora, e
nom achando cousa proveitosa, se tornarom
pera seus navvos.
— 196 —

CAPITOLLO R°. (I)

Como Alvaro Vaasquez tomou os sete Mouros.

Grandes duvidas trouxe ao conselho daques-


tes o avisado percebimento que sentyam nos
Mouros daquella terra , pello qual lhes Con-
viinha buscar outras partes em quede sua viinda
nom ouvessem conhecimento. E huus dezyam ,
que era bem que fossem a Tidcr (2), porque
sabyam que eram ally muytos Mouros : Outros
diziam que sua ida em aquella parte era danosa,
porque os contrairos eram tantos que sua pel-
leja serva muy desigual , porque tentar seme
lhante nom serva outra cousa senom huu san
deu atrevimento , ca pera tam poucos como clles
eram, a qualquer sesudo parecerya maao tal
cometimento , cujo dano nom soomente serva
perda de seus corpos, mas ainda doesto ante a

(1) XL.
(2) Na carta d'Africa Occidental do Atlas citado em a nota pre
cedente se acha marcado « Tiber • ao S. d'Arguim.
Não encontrámos este nôme em nenhuma das numerosas
cai tas anteriores que examinámos.
i
— 197 —
presença tlos vivos : Outros deziam que passas
sem a allem, que sc per ventura na terra dos
Mouros nom podessem fazer presa r que chegas
sem aa terra dos Negros , ea tornandosse com
tam pequerto proveito donde os outros fbrom
ricos e abastados, que serva sua grande vergo
nha, o qual acordo foe de todos louvado. E assy
partirem dally, e indo per sua vyagem afas
tados xxxv. legoas a allem de Tider, aguarda-
ronse todas tres as cara vel las, c fallaronse os
capitaães antre sy. E acordarom que serva bem
lançarem jente fora pera veerem sc era terra
em que podessení aver alguu percalço. E tiran
do seus batees dos navyos, disse Alvaro Vaas-
quez, aquelle scudeiro do lffantc, que lhe pa
recia que serva bem mandarem dous ou tres
homees per hua parte, e outros tantos per ou
tra, pera veerem se averyam alguu sentimento
de Mouros, ou ao menos per que podessem co
nhecer que andavam em aquella terra , para vii-
rem avisar os outros que ouvessem de yr a elles.
Acordarouse todos em aquelle conselho, apar
tando "logo quatro pera cada bua parte , dos
quaaes aquelle Alvaro Vaasquez foe huu; e se-
gumdo-seu caminho cada huus pera seu cabo,
os primeiros quatro toparom em huu lugar
unde estavom redes, que os Mouros pouco avya
que leixarom. E Alvaro Vaasquez com os outros
andarom tanto, que toparom de noite com ras
tro de Mouros, e nom vos maravilhees porque
digo de noite, ca per ventura farees duvida sc
— 198 —

se podya tal rastro conhecer autre as trevas da


noite. Onde sabee que em aquella terra nom ha
chuyva semelhante. a esta terra, nem os pri
meiros ceeos nom trazem torvaçom de nuveês
semelhantes a aquellas que veemos em esta
parte do poente; e a allem da elarydade da lua
quando hi ha, as estrellas de sy meesmas dam
tanta elaridade, que bem se pode conhecer huíi
homem com o outro , ainda que alguu pouco es-
tem afastados. Achado assy aquelle rastro, por
que lhe nom pareceo rezom de poer sobre el lo
firmeza, nom quiserom tornara seus capitaaês
ataa seerem em mais certo conhecimento. E indo
assy avante, chegarom onde os Mouros jaziam ,
e virannos de tam preto , que sentirom que nom
podyam tornar atras que nom fossem sentidos.
Porem forom a elles de salto, e assy com aquel-
les apellidos acustumados, saltarom antre elles,
os quaaes eram xij. E tamanho desacordo foe
antre elles, que nom poderom sguardar o nu
mero dos contrairos, mas como jente vencida,
começarom de fogir, como quer que lhes pouco
prestasse, ca soomente dous escaparom, e tres
forom mortos, e os sete prenderom, com os
quaaes, chegando a seos navyos, forom recebi
dos come homeês que merecyam honra por
seu trabalho e vertude, ca pero nós de-seu me
recimento algtia parte screvamos , nom he po
rem tam perfeitamente como elles fezerom ,
porque nunca o conhecimento da cousa pode
scer tam proprio per sua semelhança, como
quando hc conhecida per sy meesma; c ainda os
storvaaes , por escusarem prolexidade , em
muytas partes fazem soma, que recontadas per
seu proprio efeito servam muito mayores. A
capitanva por aquella vez era de Dinis Eannes,
segundo ja dissemos, oqual apartou huu da-
quelles Mouros , por saber se avya em aquella
terra algua outra gente; do qual per seus siuaaes
ouve reposta, que ally preto nom tiinha outra
nhua povoraçom, soomente hua aldea que es
tava dally muy afastada, naqual avya muyta
gente, empero pouca de pelleja. INós, disse
Dinis Eannes contra sua companha, aproveita
ríamos pouco cm nossa viinda, se nom ofere
cessemos nossos corpos aa desposiçom dos tra
balhos; e ainda que esta aldea seja tam afastada
como este Mouro me faz entender, eu teerva por
bem que chegassemos a ella, ca toda a força do
nosso guaanho sta em nosso trabalho. Todos
acordarom que era bem de moverem todavia
pera qualquer parte, onde sentissem alguíi pro
veito; e tomando aquelle Mouro por sua guya ,
andarom spaço de tres legoas, ataa que chega -
rom a aquella aldea que lhes o Mouro ante dis
sera, e nom acharom hi cousa de quepodessem
receber proveito, ca os Mouros ja eram dally
afastados. E porem se tornarom , nom sem
grande cansaço, porque a allem de seu grande
trabalho, nom acharem algua cousa do que
busçavom , foe a principal causa de o mais sen
tirem.
— 200 —

CAPITOLLO RI0. ,--

Como tomarom os dez Mouros. "

Por aquella noite nom ouve hi outro acordo,


soomente que cada huíi tomou a milhor parte
da folga que pode pera seu descanso. Mas no
outro dya se juntaVom todos pera teefem seu.
conselho oque devyam fazer, ca nom era seme
lhante lugar pera tomar longa folga. Os capi-
taaês fallando sobre ello, acordarom antre sy,
que entrassem nos batees com certa gente, e
Luis Affonso Cayado por capitam , oqual fosse
ao longo da ribeira, e que elle com certos ho-
meês saltasse em terra, leixando nos batees al-
guu outro em seu Jugar, e que se fosse assy per
terra com aquelles que levasse, e os batees em-
pos elle, nom muy afastados da praya,€ as
caravellas fossem atras duas legoas por nom
seerem descubertas. E hindo assy em esta or
denança, toparom com rastro- de Mouros que
hiam pera o sertaão, e forom em duvyda se
hiryam apos elles seguindo per seu rastro,
teendo que serva cousa periigosa , entrando
muyto per terra , onde ja eram descubertos ,
— 201 —
nom sabendo a jente que na terra serva : porem
a voontade, que andava ja acesa no feito, nom
quis leixar lugar aa rezom , e sem outro temor,
seguirom avante , ataa que chegarom onde eram
huus poucos de Mouros, empero dally três le-
goas , os quaaes nom tam soomente teverom
coraçom de se defender, mas ainda de fugir. E
eram antre todos dez, contando hi homees, e
molheres, e moços.
— 202 —

CAPITOLLO RII°.

Como Alvaro Vaasquez filhou os xxxv. Mouros.

Recolhidos aquelles dez Mouros a as caravel-


las, Alvaro Vaasquez, assy como homem de
nobre criaçom, desejoso de se mostrar antre os
outros , que amava serviço de seu senhor, fallou
contra Dinis Eannes, aque o carrego da gover
nança ficava por aquella vez, que lhe parecia
que serva bem que mandasse a gente fora, pois
sua viinda principalmente de seu regno foe a
aquella fym. Como querees, disse Dinis Eannes,
que ajamos aquy de sayr fora , onde saymos ja
tantas vezes, pellas quaaes avisamos toda esta
terra? E de duas me parece que deve seer hua ;
ou nom acharemos Mouros que filhar; ou acha
remos tantos que sera grande nosso perigoo de
os cometer; quanto mais que eu som ainda
mal desposto por razom do cansaço : porem me
parece sera bem nom sayrmos mais agora ,
quanto em esta terra, mas que vaamos mais
avante, ataa onde sentirmos que de nossa viinda
nom podem seer avisados. E hindo assy com
aquelle proposito, seendo ja passado huu pe
— 203 —
daço da noite, Alvaro Vaasquez, nom partido
do primeiro. desejo, tornou outra vez a Dinis
Eannes, dizendo que lhe rogava que o leixasse
sayr fora, cometendolhe o carrego de sua capi-
tanya, porque sabya que muytos hiryam com
elle de boa voontade. Pois que assyhe, disse
Dinis Eanes, que vos tanto praz de sayrdes fora,
rogovos que tenhaaes em vossa ida boõ avisa-
mento, em tal guisa que nom façaaes dano a
vós meesmos e a nós outros tristeza. Alvaro
Vaasquez chamou Diego Gil, aquelle outro sen
deiro de que ja fallamos , porque o conhecia por
boõ , e homem de sua criaçom ; e andarom pellas
outras caravellas em tal guisa, que apanharom
aquella gente que sentirom que compria pera sua
segurança, osquaaes juntamente sairom em
terra , seendo ainda algíia parte da noite por
andar. E ante que mais seguissem avante, Al
varo Vaasquez, querendo os amoestar, lhes fal-
lou assy : Snõres e amigos ! posto que eu nom
seja huu daquelles tres principaaes capitaaês
que trouxemos do nosso regno, abasta que som
cometido a vós por capytam per aquelle a que
o encarrego ficava agora de vos mandar. E por
que a desordenança muytas mais vezes empeeco
que a multidom dos imiigos, quero primeiro
saber de vós , se vos praz de me aver por capi
tam em este feito, porque eu vos possa mandar
como gente a que praz receber governança, ca
milhor he que vós mo digaaes agora aquy de
presente, onde nom podemos receber dano, que
— 204 —
seiulo daquy afastados em tal lugar que vossa
desobediencia podya trazer mal, nom soomentc
a mym, mas ainda a quantos somos em este
ajuntamento. Nós , disserom os outros todos
juntamente, somos assaz contentes de vossa
capitanya , e bem nos praz de vos obedecer tam
compridamente como a cada huu dos outros, e
ainda.milhor se o mais perfeitamente podemos
fazer. Hora, disse elle, a mym parece que he
bem que nós vaamos naquella ordenança em que
noutro dya fomos, scilicet, hirey eu com alguus
de vos outros per terra, 'e os mais hiram nos ba-
tees a geito de nós. E partindo assy, seguindo ao
longo da costa huu grande pedaço, toparom com
huu cabo, ao qual poserom nome o Caba de
Santa Ana (1), e acharom logo apos elle huu
braço de mar, que entra per terra acerca de
quatro legoas, oqual lhes pareceo assy como se
fosse ryo. E achegando aa entrada delle, aguar
dou Alvaro Vaasquez os outros dos natees , os-
quaaes chegados, mandou que aguardassem
ally, em quanto elle hya ao longo daquella au-
gua, ca seu entender era, que se algua-povora^

( i ) Por esta passagem se ví a epoca em que este nome de Cubo


ile Santa Anna , 'ou antes golfo , foi dado áquelle ponto por Alvaro
Vasquez, que hia nesta expedição. Este nome servio, como os
outros que já indicámos, para a nomenclatura das cartas hydro-
geographicas do xvi° e ainda do xvn° seculos. . _ .
Barros omittio no capitulo correspondente não só esta particu
laridade, mas reduzio tambem a materia dos capitulos 37,38,
3!), 40, 41 c 4?, a poucas linhas.
— 205 —
com * naquella terra ouvesse, que ally devya
seer. Os outros disserom que tal ida era muy
periigosa, ca ainda que mais nom fosse senom
porque o dya era ja muy alto, e avya em elle
muy grande queentura, e elles muy trabalhados
polla grande mingua que ouverom do sono, e
trabalho huus de remar, e outros de andar de
pee, quanto mais ainda que posto que ally ou-
vesse muitas povoraçooês, que elles nom pode-
ryam fazer presa que boa fosse, porque era
necessaryo que de muy longe os vissem ; c que
se se sentissem poderosos pera pellejar com
elles, que os speraryam, se nom que se pode-
ryam ir muyto a seu salvo. Alvaro Vaasquez
sem embargo de todo, seguyo sua vyagem ,
como aquelle que trazya proposito de acabar
algua grande cousa, se lhe a ventura nom fosse
contraira. E indoassy avante quanto podya seer
hua legoa e mea, huu daquelles da companhya
disse contra o capitam : Pareceme que vejo ao
longo deste ryo huas alturas, como se fossem
de casaá. O capitam esguardou e conheceo bem
que era aldea , e per semelhante parcceo a to-
dollos outros que ally eram. Hora, disse Alvaro
Vaasquez, ex a nossa presa está ante nossos
olhos, pero está tam descuberta, que de neces-
sydade seremos vistos ante que a ella chegue
mos ; e porque me nom parece tamanha , que
possa teer jente comquc nós nom possamos ;
porem porque ajamos algua vitorya, cada huu
corra o mais que poder, e assy rijamente vaa
— 206 —
mos a elles, e se nom podermos tomar os man
cebos, tomaremos os velhos, e molheres e mocos
pequenos : e teerees tal avisamento, que qual
quer que se antremeter de defesa, sem nhíia
piedade seja morto, e os outros prendee como
poderdes. Aynda de todo estas rezooes . nom
eram acabadas, quando muytos daquelles co
meçavam a estender seus passos, e outros cor-
rvam ja quanto podyam. E os Mouros (1) como
gente despercebida, pouco cuidosos de seme
lhante trabalho, chegando os outros sobre elles,
forom postos naquella torvaçom, que a fortuna
do caso rcquerva. E quando viram tam de so-
breventa homeês assy atrevydos, com armas
<lesacostumadas a elles, forom fora de todo na
tural conhecimento, onde os nossos cobravam
muyto mayor fortelleza, veendo sua temerosa
torvaçom ; e começarom logo de prender em
elles o mais que podyam ; e veendo alguus que
se queryam poer em defesa, matavam em elles
muy sem piedade ; mas o feito durou pouco em
este termo, porquanto os contrairos começarom
♦ le fogir. E taaes hi ouve, que por aquella vez

( I) Desde o Cabo Branco até ao Senegal a parte da costa de que


trata o A. é habitada por diversas tribus compostas de Mouros
mestiços os quaes fallão o arabe, são mahometanos, e conhecidos
pelos nomes de Trazas ou Tcrarzah , de Brakanas e outros. Silo
de sua natureza mui ferozes , e o terror dos viajantes. Os mais
crueis de todos estes são os que habiUo, e se estendem até. ao
Cabo Branco, chamados Ladcsiebas , os qnaos, segundo alguns
AA., são de raça arabe pura.
— 20? —
acabarom de veer suas molheres e filhos pera
todo sempre, e brevemente a presa fora muyto
mayor, se aquelle braço de mar nom fora tam
preto, noqual scaparom muy tos daquelles, por
que jeeralmente assy homees , como molheres e
moços, todos sabem nadar. E outros que eram
vallentes e ligeyros, atrevendosse em sua lygei-
rice, sayanse dantre todos ; empero alguus ouve
hy que se enganarom emello, porque acharom
outros nossos que os seguiram e filharom , sem
embargo da lividade de seus pees; de guisa que
per todos forom presos xxxv, afora alguus que
morreram. Por certo grande louvor trouve da-
quelle feito aquelle sendeiro, que ja dissemos
que era seu capitam , ca per muyto espaço fal-
larom de seu esforço e boõ avyamento , agrade-
cendolhe tanto trabalho, como por serviço do
Iffànte, e proveito delles todos, em aquella vya-
jem quisera filhar; nem os das caravellas nom
forom pouco ledos com a viinda dos parceiros
assy proveitosa, naqual ledice muyto acrecen-
tavam, ouvvndo pello meudo as particullari-
dadesdo aqueecimento que os outros ouverom.
— 208 —

CAPITOLLO RIH\

Como tornarom fora, e do Mouro que fllharom.

Os outros que ficarom nas caravellas, veendo


o trabalho de seus parceiros, teverom que se
rva sua grande mingua nem se despoer outro
tanto como elles, porque ao dyante nom rece
bessem doesto. E juntaronse alguus a noite se
guinte; saindo em seus batees, andarom dpus
dyas e duas noites , e forom em terra, onde pero
muyto trabalhassem, nom poderom filhar mais
de huu Mouro, per cuja guya forom buscar
híias tres aldeas, que eram assaz dentro pello
sertaão, e nom acharom em ellas nehua cousa
que filhar podessem, ca todas ja eram despovo-
radas , ca os Mouros que fogyam , avisavam a
terra ataa onde suas novas chegar podyam. E
assy se tornarom a seus navyos, mal contentes
do seu trabalho.
— 209 —

CAPITOLLO Rllir.

Como forom aa terra dos Negros.

Sentindo como ja em aquella terra nom po-


dyam aproveitar, pollo avisamento que os Mou
ros ja tiinham , comecarom os capitaaês , com
aquelles principaaes de seus navyos, de fallar
sobre ello , pera se conselharem da maneira que
teeryam. Nós, disserom alguus, nom podemos
nem devemos aguardar mais em esta terra, pois
conhecemos que nossa estada nos nom traz pro
veito, ante conhecida perda , ca gastamos o
mantiimento , e trabalhamos os corpos sem
sperança de vitorya ; porem o nosso proveitoso
conselho serya, pois nos Deos deu assaz, que
tornassemos pera nosso regno, contentandonos
do que teemos cobrado, o qual nom he tam
pouco que nom seja rezoado preço pera satis-
façom de nossos trabalhos, e comque bem po
demos escusar vergonha de nossos vezinhos.
Por certo, responderom outros, semelhante
tornada serya vergonhosa pera semelhantes ho-
mees como aquy veem , ca tornando per esta
guisa, serya abatimento de sua honra ; mas que
— 210 —
vaamos aa terra dos Negros , onde ja Dinis Dyaz,
com huíi soo navyo, no anno passado foe fazer
presa ; e que mais nom façamos senom veer a
terra , contando despois novas della ao Snor
Iffante, parte sera de nossa honra : cheguemos
todavya, pois somos tam preto, e por pouco
que façamos, grande proveito nos sera. Todos
disserom que era muy bem que chegassem a
aquella terra, ca poderya seer que lhes darya
Deos milhor vitorya que elles speravam. E po
rem fezerom logo levantar suas vellas , e seguyr
sua vyagem , e singrando per sua rota per spaço
de lxxx. legoas, chegarom sobre a costa de Gui-
nec (1 ) , onde se aparelharom com seus batees
pera sayr em terra; dosquaaes os Guineus co
brando vista , correrom pera a praya com suas
dargas c azagayas, come homeês que se que-
ryam fazer prestes de pelleja. E como quer que
elles suas contenenças tam asperas mostrassem,
quiseram os nossos todavya sayr em terra, se
lho a braveza do mar quisera consentyr; pero
assy afastados como os nossos estavam , viram

(1) Segundo o texto parece que Alvaro Vasquez, depois de


deixar o lugar a que pozéra o nome de Cabo de Santa Anna, se
guira sua derrota 80 legoas para o sul , correndo a costa nesta
direcção até chegar á costa de Guiné, isto é um pouco além do
Cabo ferde-i mas Barros, que alias omittio parte das circumstan-
cias desta navegação, diz :
« Forão-se pela costa adiante obra de oitenta legoas, e
» na ida, e vinda té tornar á ilha das Garças fazer cnrna-
» gcm, etc. »
— 211 —
a terra muy verde, e povoada de gente e de
gaado manso, que os da terra trazyam pera
seu huso. E quiserom ir mais avante, mas re-
creceo sobre elles vendaval, com muvta des-
temperança de tempo, que os fez per força
tornar atras; sem outro remedyoque sobre ello
podessem achar.
— 212 —

CAPITOLLO RV°.

Como filharom terra per força.

Durou assy aquella tormenta spaço de tres


elvas, e elles sempre correndo atras com vento
contrairo; mas acabados aquelles tres dyas,
abrandou aquella grande tormenta, e o tempo
tornou em bonança, seendo elles ja onde pri
meiramente filharom os sete Mouros (1). E em
aquelle dya aqueecera seer a capitanya de Ma-
faldo, oqual aguardou as outras caravellas, as
quaaes seendo juntas ja alto dya, sayu elle a
bordo de seu navyo, e disse contra os outros
capitaães : Bem veedes como somos junto com
o lugar onde filhamos os sete Mouros, e sabees
que segundo o rastro que delles achamos , e
assy as redes de sua pescarya, a terra per razom
deve seer povorada; porem se vos bem parece,
eu quero sayr fora , e veer se posso percalçar
algua presa. E como veedes que antre muytos
sempre ha desvairados acordos, começarom os
primeiros de dizer, que tal sayda lhe parecia

(1) Voltarão a Tiilrr. Vide acerca deste lugar a nota de pag. 117.
— 213 —
scusada, pois tiinham assaz com que tornar
pera sua terra, como ja disserom ante que par
tissem pera terra dos Negros; outros disserom
que a ida , como quer que periigosa fosse, devya
seer de noite, e nom de dya. Hora, disse elle,
eu som oje capitam , e vós sooes obrigados de
me obedecer tam compridamente, como obe-
deeceriees ao lffante nosso senhor, se presente
fosse. E bem devees de presumyr que eu nom
amo menos minha vida do que cada huu de vós
ama a sua; porem minha voontade he, sem
embargo de vossas razoões , sayr fora , ca ainda
que assy fosse que a terra seja povorada , nom
he de presumyr que os Mouros estem ja na
prava, sperando por nos ; e saindo assy de
dya , teeremos rezom de veer milhor a terra, e
sabermos pera onde avemos de ir. Os outros
disserom , que abastava seer capitam , ca pero
lhes parecesse o contrayro a alguus da compa-
nhya , que era necessaryo de lhe obedeecer ;
porem que lhe rogavam que consiirasse bem
sobre todo, ca elles nom avyam de tornar a tras,
por nchuu caso contrairo que lhe sobreviesse.
Os batees forom logo postos no mar, e aquelles
«pie avyam de sayr fora, aparelhados pera par-
tyr, como de feito partiram. E seryam per todos
ataa xxxv. homeês de pelleja. E seguindo assy
sua vya, caminho de terra, disse huu daquelles
dos batees contra o capitam : Nom sey se veedes
o que eu vejo. E que he o que tu vees , disse o
capitam, que nós nom vejamos? Vejo, disse
— 214 —
elle, que me parece que aquelles pretos que
estam naquelles medoõs da area, som cabeças
dhomeês, nos quaaes quanto mais esguardo,
tanto me mais parecem ; e se bem sguardardes,
verees que estam bullindo. E o capitam man
dou estar os batees huu pouco quedo*; no que
os Mouros presumiram que eram conhecidos,
e porem se descobrirom ataa cinquoenta ho-
meês aparelhados de pelleja, empero nom com
outras armas senom lanças. E descubertos assy
todos, Mafaldo fez chegar seus batees acerca de
terra, de que os Mouros mostravam grande
prazer, metendosse na augua delles ataa os pes
coços, e outros mais baixo, todavya desejosos
de chegar aos xpaãos. Mafaldo quando os assy
viu na ribeira, com contenanças de tal ardideza,
acenou aos outros batees que se chegassem a
elle; e tanto que forom juntos , fez allevantar
os remos, e começou de fallar em esta guisa:
Amigos ! bem sabees a fim porque partimos de
nossa terra , como foe por serviço de Deos e de
lffante nosso snor, e honra e proveito de nós
meesmos, onde per graça daquelle grande se
nhor que criou todallas cousas, ouvemos assaz
proveito de nossas presas, sem alguu nosso
perigoo, empero nom teemos mais honra que
quanto somos afastados dessa terra spaço de
quinhentas legoas, tomando aventura sobre as
vitoryas que ouvemos em parte nom conhecida.
E porque Deos sente nossas boas voontades, nos
aparelha lugar e tempo, noqual podemos cobrar
— 215 —

honrada vitorya, ca veedes em nossa presença


aquelles Mouros, com tal orgulho, como sc nos
tevessem em cerco com grande sua melhorva,
sem sperança de socorro , acenando contra nós
come homeês seguros sobre cousas vencidas.
E posto que mais sejam que nós a terça parte,
som Mouros , e nós xpaãos, dosquaaes huu deve
abastar pera dous, ca Deos he aquelle em cujo
poder está a vitorya, o qual sabe nossas voon-
tades acerca de seu santo serviço. Nós se a elles
nom himos, sera nosso grande doesto, e ainda
lhes faremos corações contra quaaesquer ou
tros de nossa ley ; e porem meu conselho he
que os batees vaaõ de proa dar antre elles todos
tres juntamente, onde cada huu faça como mi-
lhor poder. Vosso acordo, disserom os outros,
he assaz boõ e proveitoso ; mas que faremos se
outra muyta mais gente estever encuberta ? ca
assy como aquelles estavam , assy podem estar
outros muytos mais de que nós nom sabemos:
e sc hi ha cillada, saindo nossa perdiçom hc
conhecida. Outros, nom quiserom limar estas
cousas, mas começarom de se queixar, dizendo,
que se em semelhantes razoões quisessem estar,
que nunca faryam nhuu boõ feito. He bem,
deziam elles, que vejamos a honra ante nossos
olhos, e que a leixemos com temor de hua cousa
tam dovidosa? Quanta gente ally ha nom he
abastante pera sofrer dez de nós outros em pel-
leja. Huíis poucos de Mouros velhacos, que nunca
souberom pellejar senom a modo de bestas ;
— 210 —

dosquaaes o primeiro que for ferido, spantara


todollos outros, que nom saberam mais teer
rostro ante nossas armas ! Boõs estaryam quan
tos trazem navyos armados no estreito de Cepta,
e assy per todo o mar de Levante , se ouvessem
de temer semelhante ajuntamento ! Estas postu-
meiras razooês eram bem da voontade do capi
tam, doqual forom muyto louvados aquelles
que as diziam ; e porem mandou logo que em
cada batel seposessem tres homeês, com lanças
e scudos na proa, scudando sy e aquelles que
remavam, se per ventura fossem remessados
dos Mouros ; e que tanto que os batees remassem
em terra, que logo saltassem fora com elles.
E mandou aos beesteiros, que levassem suas
beestas armadas, ordenando seus tiros de guisa,
que suas viras fossem empregadas como com-
pria. E em esto fez vogar os batees o mais
rijamente que seer podesse, e que fossem dar
de proa antre.os Mouros, como ante tiinham
determinado ; aqual cousa muy em breve foe
posta em obra, e todos em alta voz chamando,
Sam Jorge! Santyago ! Portugal ! saltarom an-
tre elles, come homeês que temyam pouco a
braveza de seus contrairos. E assy como cousa
que Deos querya ordenar ; os Mouros ao pri
meiro golpe remessarom logo suas armas, de
cujos golpes nhuu xpaão sentvo dano que perii-
goso fosse, ante aproveitarom despois, ca os
nossos as tomarom , e se ajudarom dellas como
de cousa sua.
— 217 —

CAPITOLLO RVI°.

Da pelleja que ouverom , e dos Mouros que filharom.

Acabando os Mouros de perder suas armas ,


teverom os Xpaãos a vitorya por acabada , e
começarom de feryr em elles muy rijamente,
come homeês acesos na primeira sanha, e caindo
alguus mortos em terra , os outros começarom
defogir. Eja sabces apressa qual serya; mas
ainda que a ligeirice fosse desigual , por razom
das armas que os nossos levavam, e ainda de
huso que nom era de tal comparaçom , a voon-
tade que muy tas vezes estende o poder, osfazia
iguar com elles, de guisa que forom enfraque
cendo quatro ou cinquo daquelles Mouros; e
chegando os nossos a elles, buscarom o derra
deiro remedyo pera sua salvaçom, e esto he,
lançaremse no chaão, como que pedyam misc-
ricordya, daqual cousa os nossos ouverom pie
dade, e des y porque matandoos, o proveito
nom fora tam grande. E aguardando aquelles
primeiros os outros que viinham mais atras,
fallarom com elles , dizendo que era bem que
— 218 —
todavya seguissem aquelles Mouros, ca nom
podya seer que ally acerca nom tevessem mo-
Iheres e filhos , e que sua vyagem nom devya
seer pera outra parte, senom pera onde os leixa-
rom, ca pero fossem cansados, nom podyam
seer tanto, que, se cobrassem vista daquellas
molheres e moços , que nom filhassem delles
grande parte. E leyxando assy alguus por guar
da daquelles presos, seguiram avante, avivando
suas forças quanto mais podyam. E os Mouros
ante que chegassem a seu alojamento, começa-
rom de dar vozes, pero cansados fossem, como
quem chamava ou avisava outra gente que sen-
tya acerca de sy , pellas quaaes os xpaãos enten-
derom, queoalojantento nom podya seer Ion je.
Aquello nom era outra cousa senom avisamento
das molheres e filhos, per que se podessem poer
em salvo entretanto nom chegavam a elles. A
cujas vozes as molheres sairom fora do aloja
mento, c porque a terra he muyto chaã, viram
ellas a pressa em que os maridos viinham, se
guidos dos nossos, por cuja razom cada huã
começou tomar seu filho ao pescoço, e outros
de soos braços, e outros ante sy , encaminhan-
doos como podessem escapar. E fogindo assv
per aquelle campo cada huu pera sua parte,
cobrarom os xpaãos vista dellas e dos filhos,
aqual foe a principal parte de seu descanso,
teendo atrevimento que sua força nom min
guasse pera lhe seguir o encalço; e como quer
que ja assaz de trabalhados viessem, trigarom
— 219 —
seus passos, come homeês que desejavam de
chegar onde as voontades queryam. E porque o
spaço era longo, e elles viinhamjamuy fracos,
e as Mouras sahyam folgadas , nom poderom
muito seguir, de guisa que tomando alguus,
nom poderom hir mais avante; pollo qual lhes
foe necessaryo de aguardarem os outros que
viinham atras, contandolhe sua fraqueza, aqual
os tiinha chegados a tal ponto, que tam soo-
mente pera se tornar, nom sentyam força. Po
rem acordarom de se tornar, visto como mais
nom podyam, empero primeiro receberom ally
alguã folga, aqual lhes era muyto mester, se
gundo a grandeza de seu trabalho. Eassy que a
presa daquelle dya forom doze, antre homeês e
molheres. Mas sobre todo seu guaanho era
muyto destimar a grande vertude com que co-
meterom seus contrairos, e tenho que ataa este
ponto, nom forom Mouros tomados com tam
honrada vitorya como aquestes. Oo como al
guus dos outros , que ficarom nos navyos , does-
tarom sy meesmos, e reprendyam seus capi-
taãos, porque lhe nom aazarom parte daquella
honra ! Nem podyam ouvyr allegremente aos
outros toda a parte de sua vitorya , ca lhes pare
cia que nom tiinham alguã cousa trabalhado em
comparacom daquelles ! Ally começarom de teer
conselho, qual serya sua vyagem despois da
quelle aqueecimento, eleixando suas longas de-
partiçoões, que sobre esto ouverom, finalmente
determinarom de entrarem em alguãs bayas, que
— 220 —
saaem do Cabo branco pera o Cabo de Tira (1),
consiirando que nom podya seer que naquellas
Ilhas ainda nom ouvesscm alguu percalço; na-
qual cousa todos forom acordados, porque a
esperança do proveito era igual nas voontades
de todos.

(1) Nas antigas cartas não encontrámos cabo algum com este
nome, mas combinando esta passagem com o que diz o A. no
capitulo xxx, pag. 153 (como Nuno Tristão foi a Tira) , e com a
distancia de 80 legoas que elles navegarão depois de largarem da
ilha das Garças, ou d'Arguim, parece que o cabo a que Azurara
dá este nome , ou ao qual os nossos primeiros navegantes derãoo
nome de Tira , é ponta ou tira de terra da embocadura do Senegal ,
no lugar marcado nas antigas cartas um pouco além da Palma
Seca, que se lê em muitas dellas, entre outras na de João Freire
de 1546, e na de faz Dourado de 1571, posto que nesta ultima
se vè marcado um ponto alli proximo com o nome de Tarem , que
alias se não encontra nas precedentes. Como quer que seja pelas
distancias latitudinaes entre Arguim , e aquella ponta da embo
cadura do Senegal , parece que o Cabo de Tira de que falla o A.
é o lugar que indicámos. Apezar do lastimoso laconismo dyAzu
rara acerca de um facto tão interessante para a historia da geo
grafia, vemos todavia por esta passagem que as explorações, e
reconhecimentos das bahias, enseadas, e pontos daquella parte
da costa d'Africa hião sendo progressivamente examinados pelos
nossos maritimos , e que aos mesmos derão os nomes que servirão
para a nomenelatura hydro-geografira adoptada por todas as
nações, desde os fins do seculo xv°, até quasi aos fins do xvii°.
(ftd. sobre este objecto a nossa Memoria sobre a prioridade dos
descobrimentos portuguezes na cosia d'Africa occidcntal, § IX.)
— 221 —

CAPITOLLO RVI1°.

De como acharom as tartarugas na ilha.

O outro dya fezerom seu caminho, segundo


tiinham determinado , e seendo ja dentro nas
baixas, viiram huã Ilha, aqual esta mais fora
de todallas outras, pequena porem, e muyto
areosa, onde lançarom seus batees fora, por
veerem se podyam achar alguã cousa daquello
que buscavam. E bem he que os Mouros pouco
avya que hi esteverom , segundo pareceo pellas
redes , e outros aparelhos de pescar que lhe
acharom, e especialmente grande multidom de
tartarugas, que seryam ataa CL (1). E por que

(1) Por esta passagem se prova que estes maritimos navegavão


entre os grandes bancos , e coroas d'area que existem entre as
ilhas tfArguim , e a ponta do Senegal, c E viram uma ilha , a qual
está mais fira de todalas as outras , pequena porem , e muito
arenosa. » Combinando esta relação com a carta que se encontra
no tomo Io da obra do abbade Demanet (Noiívelle histoire de
/' Afrique) se vêem effectivamente marcadas duas ilhas ao 0. do
ultimo banco e de fronte dos lugares que nas antigas cartas por-
tuguezas (de Freire 1546, e da Bibliotheca R. , se lè Palma
Seca, ete, e na de faz Dourado, Tarem, Palmar, e Palma Seca),
lanto mais que no seguinte capitulo o A. diz que virão depois
— 222 —
podera seer que todos os que leerem esta estorya
riom averam conhecimento deste pescado, say-
bam que nom som outra cousa tartarugas,
senom caagados de mar, cujas conchas som
tamanhas como scudos. E eu vy ja alguãs se
melhantes em este nosso regno, na allagoa
d'Obidos , que he antre a Atouguya e a Peder
neira. Ecomo quer que naquellas Ilhas aja assaz
de muytos e boõs pescados, os Mouros dally
teem este por mais especyal. E consiirando os
nossos como aquella gente se passara a as outras
Ilhas, porque parece que ouverom delles vista,
acordarom de lhe nom tomar nhuua cousa da-
quello queally acharom , e que os Mouros de
rezom devyam tornar aa Ilha, e que serva
aquello huã parte de sua segurança, pella qual
tornando elles meesmos, podyam aver delles
alguã vi torva.

outra ilha que departia um braço de mar que hya per antre amlsas
(isto é aquella em que elles estavão, e a outra que avistavão).
Parece pois não serem duvidosas, ao menos em nosso entender,
as localidades então exploradas por estes maritimos.
— 223 —

CAPITOLLO RVIIf.

De como torrtarom outra vez aa Ilha , e dos xpaãos


que morrerom.

Errarya a condiçom da fortuna se sempre


fezesse suas voltas per huã guisa, aqual husando
de seu ofílcio, nom quis consentyr que os nos
sos navyos tornassem de todo alegres com a
parte de sua vitorya , ca segundo he scripto nos
comentareos de Cesar, nom podem os imiigos
sofrer longa tristeza, nem os amigos continuado
prazer. E porem contaremos aquy este aqueeci-
mento, ainda que triste seja, porque nossa es-
torya leve sua dereita ordenança. E foe assy ,
que no outro dya muyto cedo, tornarom os
batees aa Ilha, segundo o acordo em que ante
ficarom, mas nom acharomja hi as redes, nem
os outros aparelhos da pescarya, soomente as
tartarugas, que ficarom presas per cordas; em-
pero presumiram que os Mouros , postoque
aquello assy levassem , nom podyam seer dally
muy afastados. E estando assy oolhando pera
toda I las partes, viram outra Ilha, que departya
huíi braço de marque hya per antro ambas,
— 224 —
scilicet, aquellaeiu que elles estavam , e a outra
que assy vyam. E cobiiçosos de encontrarem
aquelles Mouros, pensando que a fortuna lhe
nom fosse menos graciosa em aquelle encontro,
que em todollos outros que daquella vyajem
ouverom , determinarom de chegar aa dita
Ilha , por veer se acharyam oque tanto cobiiça-
vam, nom sabendo o callado segredo, que lhes
a ventura contraira tiinha ordenado. E porem
trigosamente se meterom em seus batees , nos
quaaes passarom aa dieta Ilha , e come homeês
de pouco avisamento , nom querendo consiirar
o dano que se lhe podya seguyr, começarom de
se soltar pella Ilha , tam ousados como se an
dassem per suas proprias herdades em tempo de
grande segurança. E segundo diz Bernardo, no
regimento que fez a Ricardo, senhor do Castello
Ambrosyo, sobre a governança da casa, que
aquelle que nom consiira que seu imiigo pode
pensar aquello que elle meesmo pensa, a.peri-
goo se despoem, e os Mouros, teendo aquelle
meesmo pensamento que os nossos teverom ,
poendo sobre sua guarda mayor cautella , orde-
narom tres cilladas , assy como milhor pode-
rom, detras de alguus montes darea que ally
avya, onde esteverom sperando, ataa que viram
que os nossos eram acerca delles; e veendo sua
grande avantajem, descobrirom seu engano,
viindo rijamente sobre os nossos , come homeês
que queryam vingar o cativeiro de seus parentes
eamigos. Ecomo querquea sua multidom fosse
— 225 —
grande, em comperaçom da pouquidade dos
nossos, nom voltarom porem atras, ante lhe
pararom os rostros, come homeês em que o
medo nom cobrava senhoryo, teendosse com
seus contrairos huíi muy grande pedaço, no-
qual os Mouros receberom grande dano , ca os
golpes dos xpaãos nom passavoin de balde.
Porem aa fim, veendo a nossa gente a grandeza
do perigoo , c como de necessidade lhes con-
viinha de se recolher, começaromde se rctraer,
nom come homeês que fogyam, mas com todo
resguardo e fortelleza, que a tal caso compria.
E certamente que a pelleja era muy grande, e
come de homees que o fazyam muy de voontade,
empero a mayor parte do dano, ataa o chegar
dos batees , foe sempre dos Mouros, ca muy tos
morrerom em aquelle recolhimento , e dos
xpaãos, pero feridos fossem , ainda nom cayra
nhuu. Seendo ja acerca dos batees, porque o
batel dAlvaro Gil era mais prestes, ou de milhor
entrada, recolheronse a elle a mayor parte dos
nossos xpaãos, eassy ao de Mafaldo; mas os
outros que ficarom , querendosse recolher ao
batel do navyo de Gonçallo Pacheco, chegarom
ao derradeiro perigoo, porquanto o batel era
grande, como quer que mais pequena carrega
tevesse, nom se pode recolher ao alto, como os
outros, que eram mais pequenos, c ficou em
seco, porque parece que a maree era no der
radeiro quarto de sua vazente. Ealguus daquel-
les que sahyam nadar, veendo seu perigoo tam
ij
— 226 —
prestes, lançaronse naaugua, naqual nadando
salvarom suas vidas; mas os outros que daquella
manha nom sabyam, foc necessaryo de apa
relhar suas voontades a paciencia , recebendo
trabalhada morte , defendendosse porem ta
manho espaço como lhes a força pode dar ajuda.
E assy acabarom ally sete , cujas almas Deos por
sua piedade receba no lugar dos sanctos. E por
que diz a sancta scriptura , que quem por ou
trem roga , por sy meesmo roga , prazavos
aquelles que esta estorva leerdes, apresentar a
Deos senhas oraçoões , porque as suas almas por
vossa entercessom recebam alguu acrecenta-
mento em sua glorya. Os outros dous batees,
veendo assy a morte daquelles, recolheronse a
suas caravellas, acompanhados de grande tris
teza, com aqual partirom caminho dErgim (1) ,
pera filharem augua, de que ja eram minguados.
E os Mouros levarom o batel ao ryo de Tider,
onde desfezerom a mavor parte delle; por lhe
tirarem as tavoas com a pregadura, mas nom
sey a que fim , pois seu engenho nom abastava
pera se dellas poderem aproveitar. E alguíis dis-
serom despois que ouviram dizer a alguíis da
quelles Mouros que per acertamento vierom a
nosso poder, que os seus parceiros comerom
aquelles mortos , e como quer que alguus outros
dissessem o contrairo , querendo scusar seus
parceiros de causa tam enorme , todavya he

(I) Arçuim. (fid. notas 2 depag. 99, e de pag. 167.)


— 227 —
certo que seu costume he de comerem huíisaos
outros os fígados, e beberem o sangue, e esto
diz que non fazem geeralmente, senom a alguus
que lhes matam seus padres, ou filhos, ou ir-
maãos, contando esto por híia muy grande vin
gança. E esto me parece que nom he de duvydar,
que no livro de Marco Paullo (1) se diz, que
geeralmente se costumavam estas cousas antre
muytas naçoões daquellas partes orientaaes, e
ainda vejo que he antre nos comíiu fallamento,
quando razoamos dalguu homem que tem odyo
a outro , que tanta maa voontade tem a aquelle
seu contrairo , que se podesse lhe comerya os
fígados, e beberva o sangue. Mas agora leixe-
mos estas cousas, por tornar a nossa estorva.

(1) Azurara tendo escripto esta chronica antes de I 453, servio-


se de um manuscripto das viagens de Marco-Paulo , talvez mesmo
do exemplar que o Infante D. Pedro trouxera de Veneza.
A mais antiga edição ti de 1484. Este livro que alias exerceo
grande influencia nos descobrimentos, não só era lido nos prin
cipios do seculo xv° pelos nossos sabios , mas até uma das mais
antigas traducções que delle existe é a portugueza, publicada
por yalenttm Fernandez, com a viagem de Nicolaofeneztano,elc.,
dedicada a elRei D. Manoel. Lisboa, 150?, I vol. em-fol. golhico,
que existe na biblioth. publ. de t.isbna.
— 228 —

CAPITOLLO RIX°.

Como Lançarote e os outros de Lagos , requererom


licença ao Iflante pera irem a Guinee.

A mim parece que aproveitara a aquestes, de


cujo dano no passado capitollo tenho fallado, a
nembrança da morte de Gonçallo de Sintra , da-
qual poderam tirar alguvis avisamentos, pellos
quaaes muvto asinha scusarom sua perda, c
aproveita ralhes ainda de leixarem seus batces
em froto, consiirando a desposicom do mar,
pois nom podyam a sua tornada poer certo ter
mo; mas a boa fortuna dos outros aqueecimen-
tos lhes deu sperança nom certa , pella qual
pensarom que lhe acudisse aquelle feito pello
retorno dos outros. Eleixando assy estas cousas
em sua parte, ajuntemos nossa forsa, e vaamos
outra vez em vingança daquestes. Onde avees
de saber que Lançarote, aquelle cavaleiro, al
moxarife de Lagos, juntamente com os juizes,
e aleaide , e ofíiciaaes da vereaçom daquella
villa, chegarom ao Iffantc em nome de todollos
principaaes do lugar, fallando lhe em esta guisa :
— 229 —
Beni sabe a v ossa alteza como os moradores desta
nossa villa, despois que Cepta foe tomada ataa
o presente, sempre serviram e servem com seus
corpos e navyos na guerra dos Mouros, por
serviço de Deos e delRey nosso senhor. E ainda
nos tempos dos outros Reis , quando a costa
deste regno era seguida dos Mouros, os nossos
navyos eram os primeiros que armavam contra
elles, segundo se acha per scriptnras , e per
antiigas memoryas dhomeês de grandes idades.
Agora, senhor, despois que vossa merece orde
nou de buscar esta terra de Guinee, bem sabees
como em este lugar fizestes a mayor parte de
vossas armaçoões, onde vos foe feito todo aquelle
serviço que em nossas possancas pode caber. E
por quanto, senhor, despois da devida obedien
cia em que somos a elRey vosso sobrinho nosso
senhor, a vós principalmente somos tehudos e
obrigados de amar e servyr, consiiramos alguã
maneira em que vos nosso serviço podesse seer
special , de guisa que pello merecimento de nos
sos grandes trabalhos, nossa honra seja alevan-
tada na memorya dos homees dos outros segres;
e que hi mais nom recebessemos por gallardom
de nosso trabalho, esto teeryamos por assaz;
mas somos certos que sobre esto cobraremos
grandes proveitos, primeiramente a esperança
<pie teemos de recebermos , no retorno de nosso
serviço , de vossa senhorya grandes mercees.
E em verdade , senhor, disserom elles , o feito
está de tal guisa , que os moradores deste lugar,
— 230 —

ainda despois de vossos dyas, tanto quanto antrc


nós ouver povoraçom , seram tehudos de rogar
a Deos por vós; e que alguíis por sua mallicya
quisessem seer tam ingratos, que esto quyses-
sem denegar, a presença de vossos benefíicios ,
que cada huu dya teeram ante seus olhos, esta-
ram por seu principal acusador, ca veeram ante
a sua presença grandes linhajeês de servos e ser
vas, que lhe ficaram pera sua serventya, e as
suas casas avondadas de pam , que lhes viira das
Ilhas que por vossa causa forom povoradas; e
des y as scripturas antiigas, que sempre falla
ram dos grandes privillegios e liberdades que
pollo vosso cobrarom. Porem, senhor, consii-
rando nos sobre todo, por quanto veemos que
trabalhaaes cada huu dya mais na guerra destes
Mouros, e aprendemos como na ida que fez
Lançarote com as suas caravellas , acharom
multidom de Mouros na Ilha de Tider, naqual
ao despois foe morto Gonçallo de Sintra, por
quanto os Mouros da dieta Ilha podem fazer
empacho a vossos navyos, queremos, se for
vossa mercee, armar sobre elles , e ou per
morte ou prisom, quebrantarmos sua força e
poder, de guisa que vossos navyos possam cor
rer per toda aquella parte sem temor alguu. E
se Deos trouxer o feito a fim de vitorya, pode
remos fazer, sobre a destroyçom de nossos con-
trairos, presas de grande vallor, pellas quaaes
de vosso quinto poderees receber grande pro
veito, doqual nós nom ficaremos sem parte.
— 231 —

E desto siior vos praza avermos vossa repos


ta , pera despachadamente seguirmos nossa vya-
jem, em quanto nos o veraaõ dá tempo pera
ello.
— —

CAPITOLLO L°.

Como o lflante respondeo aos de Lagos , e da armaçom


que se fez sobre a dieta ilha.

A grandeza das cousas, respondeo o lffante,


he muytas vezes desprezada, onde alguãs pe
quenas som muyto louvadas; porque milhor
he o pequeno coraçom que liberalmente se ou
torga, que o grande corpo que escassamente
oferece sua parte. E porem o oferecymento de
vossas boas voontades traz consigo mayor val-
lor, que grandes serviços doutros mais podero
sos , que me com tam boo desejo nom fossem
outorgados ; de cuja certidom eu nom ey mester
outra mais certa testemunha , que vossas obras
passadas, pellas quaaes som costrangido de vos
honrar e acrecentar , com aquelle amor e desejo
que o farey aos mais principaaes de cada huã de
minhas villas ou lugares , nos quaaes, per mer-
ceedelRey meu snor, despoisdelle tenho enteira
jurdiçom. E quanto he aa licença que me re-
querees pera irdes sobre os Mouros da Ilha do
Tider, a mym praz muyto de volla outorgar,
e de vos fazer por ello mercee e ajuda , ca seme
— '233 —
Ihante requerimento he muyto pera louvar,
porque nom se deve tanto estimar a esperança
de vossos proveitos, quanto deve seer conhecida
a boa voontade com que vos a ello movees. Hora
daquy avante, disse elle, podees encaminhar
vossas cousas pera vossa ida , e requererme qual
quer cousa que vos comprir pera ajuda de vosso
avyamento , ca vos nom serey em ello menos
liberal, doque o serva a alguus meus criados,
que per meu proprio mandado se ordenassem
de fazer a dieta vyajem. A as quaaes pallavras
todos fezerom grande mesura , beijandolhe as
maaõs em nome de todollos outros porque ally
eram viindos. Ouvido este recado per todollos
outros do lugar , começarom logo de se fazer
prestes pera armarem suas caravellas, e seguyr
sua vyagem o mais trigoso que seer podesse;
de cuja armaçom sayrom as novas pellas partes
do regno, asquaaes fezerom mover outros pera
seer em a dieta companhya. Empero creo que
nom fosse sem special mandado do Iffante , por
que, como ja outras vezes tenho dicto, nom
podya la ir alguu sem outorgamento daquelle
snõr.
— 234 —

CAPITOLLO LI0.

Como as caravellas partirom de Lagos,


e quaaes capitaães eram em ellas.

Seguyusse que neeste assejo foe chamado o


Iffante dom Henrique , da parte de seu irmaão
o Iffante dom Pedro, que era Regente do Regno
em nome delRey , como ja teemos scripto , que
fosse a Coimbra , pera fazer cavalleiro dom
Pedro de Portugal , filho primeiro do dicto
Regente, que entom era Condestabre destes
Regnos , o qual estava ordenado de ir a Castel la,
como de feito foe, e esto porquanto elRey dom
Joham o segundo, que entom era Rey daquelles
Regnos, estava em trabalho com seus primos
elRey de Navarra , e o Iffante dom Henrique ,
meestre que era de Santyago, e outros grandes
daquelles Regnos que eram com elles, por causa
dé grandes imiizades, que se geerarom antre o
dicto Rey e aquelles senhores, por aazo do
Condestabre dom Alvaro de Luna, o qual seendo
homem de pequena maneira , per sobegidom de
fortuna, ou per alguu outro callado segredo,
veo a seer em tal posse, que fazya no regno o
que lhe prazya, entanto que per sua causa,
— 235 —
forom mortos c destroydos os principaaes de
Castella, segundo todo esto mais largamente
poderees saber na cronica geeral do Regno , por
que de necessidade se devem os dictos feitos ally
de tocar. Bem deu ally o Iffante dom Pedro a
entender ao mundo a grande dignidade que
conhecya em seu irmaão, ca por mais honra
teve de seu filho receber cavallarya da maão de
seu tyo, quedenhuu outro Principe dEspanha.
Eantre as razoões que ouvy dizer que o Iffante
dissera a aquelle seu filho, ao tempo que se delle
partyu, foe que lhe encomendava que se nem-
brasse da Ordem da cavallarya que tiinha rece
bida , e principalmente de cuja maão a recebera,
aqual cousa lhe nom era pequeno encarrego.
Empero ante que o Iffante dom Henrique assy
partisse de Lagos , leixou por principal capitam
de todos aquelles navyos, Lançarote, aquelle
cavalleiro deque ja teemos fallado, e esto per
outorgamento de todollos outros capitaães, ca
pero hi fossem assaz de notavees pessoas, dignas
de grande honra, conhecendo o siso e descri-
çom daquelle, lhes prouve de lhe dar seme
lhante carrego; ca era hi Sueiro da Costa, aleaide
daquella villa de Lagos, o qual era homem nobre
e fidalgo, criado de moço pequeno na camara
delRey dom Eduarte, e que se acertara de sed
em muy grandes feitos, ca elle fora na batalha
deMonvedro (1) comelRey dom Fernando d'A-
(I) Esta batalla se llamn del endolar. Nota manuscripta á mar
gem em caracteres modernos.
— 236 —
ragom contra os de Vallença ; c assy no cerco de
Vallaguer (1), em que se fezerom muy grandes
cousas; e foe com elRey Lançaraao (2), quando
barrejou a cidade de Roma ; e andou com elRey
Luis de Proença em toda sua guerra (3) ; e esteve
na batalha da Ajancurt (4), que foe huã muy
grande e poderosa batalha, antre elRey de França
e elRey de Ingraterra ; e fora ja na batalha de
Vallamont (5), Cabo de Caaes, com o Conde-
estabre de França (6) contra o Duque dOssestre,
e na batalha de Monseguro , em que era o Conde
de Fooes (7) e o Conde dArminhaque (8) ; c na
tomada de Sansoões (9); e nodecerco deRas(10) ;
(1) O cerco foi posto a Balaguer no anno de 1413, e neste, el-
Rei D. Fernando d'Aragão fez prisioneiro o conde d't/rye/.
(2) Este rei de que falla o A. é Lancelote (Ladislao), rei de
^apoles ; o qual no anno de 1 404 entrou cm Roma com o seu
exercito, afim de destruir a sublevação do povo contra o novo
papa Innoceneio fll, e por isso diz o A. quando barrejou a cidade
de Roma.
(3) Era Luiz II , conde de Prcvenca. A campanha que fez
Sueiro parece ser a que começara em 1 409 , e que o dito principe
fez em Italia , em commum com os ai liados commandados por
Malatesta , e pelo famoso Balthezar Coita, legado de Bolonha.
Esta guerra durou ate 1411.
(4J Lêa-se Azincourl , batalha dada em 1415.
(5) Valmont, 5 leg. ao N. O. d'Yvetot.
(G) Este almirante de França com quem servio Sueiro da Costa ,
parece ser o conde de Foir.
(7) Conde de Foijt.
(8) É provavelmente o conde tfdrmugnac , Bernardo VII, que
nas guerras civis do tempo de Carlos VI se achava á lesta do
partido da casa d'Orleans , o qual deu diflerentes combates , prin
cipalmente nos annos de I 4 1 0— 14 1 I .
(91 Soissons.
(10) Arraz , cujo cerco comecou cm scptcnihro de I 4
— 237 —
e assy no deccrco de Cepta ; nas quaaes cousas
sempre provou como muy vallente homem
darmas. E este Sueiro da Costa era sogro da-
quelle Lançarote. E era tambem naquella ca-
pitanya, Alvaro de Freitas, comendador dAl-
jazur , que he da Ordem de Santyago , tam
bem homem fidalgo, e que tiinha feitas muy
grandes presas nos Mouros de Graada e de
Bellamarim ; e Gomez PiZ , patrom delRey ,
de que ja tcemos fa llado em outro capitollo;
e Rodrigueannes de Travaços, criado do Re
gente , que era huu scudeiro muyto ardido ,
e que trabalhava quanto podya por acrecentar
em sua honra. E era ainda hi , Pallenço, que era
huu homem que tiinha feita muy grande guerra
aos Mouros, e que toda sua vida despendeo em
serviço de Deos e do regno, cometendo e aca
bando per sy muy grandes feitos, segundo tee-
mos fallado na cronica geeral , despois que Cepta
foe tomada. Outras boas e honradas pessoas se
acertarom de seer em adicta companhya, que
por nom alongarmos, leixamos de screver, assy
como Gil Eannes, cavalleiro morador em aquella
villa, c Stevam Affbnso, e outros. E brevemente
que naquelle lugar forom armadas em aquelle
arino (1) xiiij. caravellas, mas afora estas, arma-
rom em Lixboa , e nas Ilhas da Madeira, outras,
scilicet : Dinis Dvaz (2), aquelle que primei ra-

(I) 1447.
(?) fid. capitulo xxxi, pag. 157.
— 238 —
mente passou aa terra dos Negros, eTristam, huu
dos capytaães da Ilha, que foe hi persoalmente
com huã caravella ; e outra dAl varo Goncalvez
dAtayde, que entom era avo delRey, e despois
foe Conde da Atouguya, è Joham Gllz Zarco,
que era ooutro capitam da Ilha , envyou ally
duas caravellas ; e assy outras, de cujos senho
res nom curamos fazer expressa mençom. Soo-
mente he bem que saibaaes, que se armarom
em este anno, contra aquella terra dos Negros,
xxvj. caravellas, e mais a fusta de Pallenço,
dasquaaes as xiii. de Lagos partiram primeira
mente, e des y as outras, cada huã como mylhor
pode, mas nom que todas juntamente se acer
tassem no feito de Tider. E como quer que a
estorva se nom possa recontar em tam boa orde
nança como compria , per razom da vyagem
que as caravellas nom fezerom todas junta
mente, diremos o que podermos, naquella mi-
lhor maneira que se poder dizer.
— 239 —

CAPITOLLO LII°.

De como se as caravellas aguardarom ao Cabo Branco ,


e como Lourenço Dyaz achou as caravellas
de Lixboa.

Eram <tez dyas do mes dAgosto quando as


xiiij. caravellas partirom de Lagos , e porquanto
nom podyam todas seguyr huã rota , e muytas
vezes lhes sobreviinha tormenta , que as apar
tava huãs das outras, tinham ja por seu husado
acordo de se aguardarem ao Cabo Branco. E
partindo todas juntamente , com boa maree e
vento de vyajem, pouco afastadas da costa,
começarom de mostrar huãs a as outras a avan-
tagem que tiinham em sua leveza, dasquaaes a
de Lourenço Dyaz começou de tomar a dyan-
teira. E leixando assy esta como as outras seguir
seu caminho, tornaremos huu pouco a fallar
das tres caravellas de Lixboa, que estam com
seu nojo, polla perda dos sete homeês que lhe
matarom , e vei emos se lhe poderemos dar alguã
consollaçom. E foe assy, que despois de aquelle
afortunado aqueecimento , seendo elles ja de
todo desperadosde cobrar vingança poraquella
— 240 —

vez, fezerom vella contra a Ilha de Ergim , onde


chegarom com entençom de tomarem sua augua,
e des y de se viirem pera o Regno. E aqueeceo
assy que seendo elles ja prestes pera partyr,
per acertamento começarom de fallar em sua
vyagem, scilicet, quantas legoas seguyryam
per huu vento, e quantas per outro, começou
de parecer a vella do navyo de Lourenço Dyaz,
aqual veendo, todos forom ja quanto mais alle-
gres, principalmente porque sabyam que serva
de xpaaõs, e ainda deste Regno, porque nom
costumava la outro navyo semelhante. Abaste
que a caravella chegou acerca das outras, onde
as voontades dhuus e dos outros forom muy
allegres, principalmente os que ja la estavam,
quando lhe Lourenço Dyaz contou a viinda das
outras caravellas, e a fim a que viinham. Vós
outros, disse Lourenço Dyaz, me parece que
devees de folgar muyto com nossa vinda ; c
pois vingança desejaaes do dano que recebestes,
tempo teendes de a cobrar. E porque seendo
vingados per outrem , vosso contentamento
nom deve seer tamanho, deviees sobresseer de
vossa ida, por seerdes comnosco no desbarato
desta Ilha , naqual cousa farees muytos provei
tos : O primeiro cobrarees honra e proveito; e
o segundo verees dano de vossos imiigos , com
vingança de vossa perda; e o terceiro que leva-
reesas novas primeiramente ao snõr Iffante, e
prazera a Deos que seram aquellas que spera-
mos, pollas quaaes vosso recebimento sera
— 241 —
milhor, ccom mais aereccntamento de mercee.
Creede, Lourenço Dyaz, responderom aquelles
capitaaês, que nom avya hi mester outra for-
maçom de pallavras pera nos mover a seme
lhante feito , senom as boas voontades de nós
meesmos ; mas por alguus empachos que antre
nos ha, he de necessydade que ajamos primeiro
conselho. Compre que seja logo, disse Lourenço
Dyaz, porque minha tardança nom compre
aquy grande, ca ey receo de as outras cara-
vellas seerem ja na ilha, e tcerya grande des
prazer de se fazer nhua cousa sem mym. Os
outros disserom , que logo aquella noite falla-
rvam sohrello, e que muvto cedo lhe darvam
reposta. E leixando suas prolexidades , forom
seus conselhos departidos em duas cousas, ca
huus diziam que lodavya devyam logo partyr
pera o regno, pois ja tiinham presa comque ra-
zoadamente podessem fazer sua vyagem, quanto
mais que os manliimentos lhe falleciam, como
lodos bem viiam, e que o cometimento daquelle
feito nom era certo : que poderva seer que as
caravellas averyam alguus contrairos, por cujo
aazoelles estarvam debalde gastando suas vyan-
das, em que estava o sostentamento de suas
vidas. Outros disserom, que serya grande ver
gonha estarem elles ally tam acerca, e nom
secrem na companhya daquelle feito. Ja nos
hiiyamos, dizvam elles, na mea vyagem de
nosso caminho , c achando tal encontro farva-
mos volta ; quanto mais estarmos aquv caasy
16
— 242 —

nas pravas da dieta ilha , seendo requeridos


pera ello, por serviço de Deos e do siior Iffante !
Certamente que nos devya seer mal contado,
por nhuíi caso leixarmostal empresa ; no qual
acordo todos cayrom , porque nesta segunda
tençom jazya a mayor parte da companha. En-
tom ordenarom de fazer sua provisam de guisa
que os mantiimentos lhe podessem durar mais
tempo ; e tanto eram suas voontades despostas
a esto, que alguus dizyam que per boa fe mi-
Ihor serva de lançarem ameetade daquelles Mou
ros ao mar, que por sua causa leixarmos cousa
tam honrosa , c emque poderemos receber vin
gança da morte de nossos companheiros. O
acordo assy acabado , no ou tro dy a responderom
a Lourenço Dyaz, em cuja companha logo par-
tirom caminho da Ilha das Garças, onde tres
dyas esperarom as outras caravellas, refres
cando com as avesdaquella ilha , de que hi avya
grande multidom, e specialmente ha hi huas
aves, que nom ha em esta terra , que se chamam
crooes, e som todas brancas, de moor grandeza
que cirnes, e teem os bicos de huu covedo e
mais, c danchura de tres dedos, e parecem
como bainhas de basas, assy lavradas, e com
taaes lavores, como se os fezessem arteftcial-
mente com meestria de fogo, afim de lhes poer
fremosura ; e a boca e o papo he tam grande ,
que hua perna de huu homem , por grande que
seja, atee o giolho lhe cabe per elle (1). Passados
(l) Ksta ave c o Buceros Nasutui de Linneo, c ;i que os Frau
— 243 —
aquelles tres dvas, começarom do viir as outras
caravellas, chegando ao Cabo Branco duas e
duas, e tres e tres, como se acertavam. Empero
nom forom ally juntas mais de nove, scilicet,
a de Lançarote, e a de Sueiro da Costa, e a de
Alvaro de Freitas, e a de Gil Eannes, e a de
Gomez Pirez , e assy outras da villa de Lagos.

cezes chamão Calão -Tock. Apesar d'alguma exagerarão que se


nota na descripção do A. é indubitavel que a ave de que se trata ,
é a que os Negros do Senegal chamão Tock , e que os Portuguezes
chamarão Cròes. tatham lhe chama Buceros Africunus.
Brinon formou duas especies, I.inneo e Ltrtham duas varie
dades ; mas Buffon as considerou como indeviduos da mesma
especie , facto que é alias attestado por Sonini. Buffon diz que o
bi<*o separado do corpo tem um pé de longo , e é de desmesurada
grossura, (fid. Buffon, plan. 933.) 0 lavor de que falla Azurara
procede, não só dos poros do bico, mas principalmente por uma
especie de cortaduras em forma de meias luas que a dita ave
tem no bico.
Se o celebre naturalista Ahlrovaniii foi o primeiro que deu o
desenho do enorme bico deste passaro , a mais antiga descripção
delle é certamente esta que nos dá Azurara. Não foi pois o
Pe Labat o primeiro viajante que vio, e observou este passaro
notavel, como diz Buffon, mas sim Lourenco Diaz e os outros
portuguezes seus companheiros em H47, isto é quasi 300 annos
antes de Labat.
Sobre est# ave veja - se a Memoria de Geoffroi ilc Pillcncuvc
( Actes de la Société d'histoire naturelle de Paris).
— 244 —

CÀPITOLLO L1I1°.

Como Lançarote teve seu conselho no Cabo Branco.

Juntas assy aquellas nove caravellas, porque


da outra de Lourenço Dyaz elles nom sabyam
ainda parte, Lançarote fez avisar todollos ou
tros capitaães, que saissem em terra, pera fallar
com elles sobre a maneira que lhes parecia que
devyam teer; os quaaes muyto asinha forom
prestes. Escendo todos juntos em seu conselho,
disse Lançarote : Senhores e amigos! Ainda que
mercee fosse do senhor Iffante , meu senhor, de
me dar carrego de vossa capitanya , seendo vós
tam honrados como sooes, eu nom leixo porem
de conhecer o que he razom, acerca de vos
guardar aquella honra que devo, e per essa
guisa vos dar aquella autoridade, que vossas
honradas pessoas merecem. E leixandoa Sueiro
da Costa, que eu tenho assy como padre, por
razom de sua tílha que tenho por molhei», caasy
a todos vós outros tenho por irmaãos, a huus
por criaçom, c a outros por antiga amizade, e a
outros por grande conhecimento; pollo qual
spero que vós me aconselharees c ajudarees, a
— 245 —
allem do que per razom de vós meesmos sooes
tehudos, como a amigo e irmaão, de guisa que
eu saya dantre vós como capitam de tam hon
radas pessoas, ca eu nom entendo fazer, fora
de vosso conselho, cousa grande nem pequena.
E por Deos cada huu ponha em sua maginaçom ,
que o carrego principalmente he seu , e assy
como por cousa sua, se trabalhe descoldrinhar
os reniedyos. E em verdade eu me allegro assaz,
quando consiiro que som posto em juizo de tam
discretas pessoas, e que tantas e tam honradas
cousas teem vistas e passadas per sy, cuja expe
riencia sera muy gram parte de nosso feito ,
pois o regimento e principal governança das
cousas que som por viir, está no hoõ conheci
mento das passadas. Hora, disse elle, nós somos
aquy estas nove caravellas que veedes, e sabees
como partimos xiiij. Quero saber de vós que he
o que vos parece que devemos fazer : se per
ventura iremos logo assy como estamos, ou se
he milhor que esperemos os outros que ham de
viir. Nós, disse Alvaro de Freitas (por sy e
pollos outros, ca por quanto era cavalleiro, e
ainda dordem fidalgo e boõ, como ja dissemos,
prouve a todollos outros de lhe dar aquella au
toridade), vos agradecemos vossa boa enten-
çom, e muyto certo seede que aquy nom ha al-
guu que vos nom ajude e conselhe, nom ainda
como capitam e amigo , mas como sy meesmo ,
e'as razooês por que som muytas, c porem as
leixo por hora de tocar. Abaste que todos vos
— 246 —
conhecemos por boõ-, e tal que nom soomente
desta pouca gente, e pequena frota, mas doutra
muyta mais sooes merecedor de seer capitam.
E quanto he ao conselho que pediis, a mym
parece que como quer que todallas xiiij. cara-
vellas sejam necessaryas de seer juntas pera a
entrada da ilha de Tider, segundo a entençom
com que todos partimos, eu averya por bem ,
que aquelles que nos aquy acertamos, vaamos
logo aa ilha das Garças (1), e ally aguardemos
dous ou tres dyas, segundo a ordenança que tra
zemos; por quanto he lugar onde nom podemos
seer vistos doutra parte, ca estando nós aquy
acerca deste cabo, ligeiramente podemos seer
descubertos: aqual cousa se assy for, de duas
cousas nom scusaremos hua : ou se sairom os
Mouros daquella ilha ; ou entrarom hy tantos,
que quando acometer quisermos, nos sera muy
grande perigoo. E se per ventura aa ilha das
Garças a poucos dyas nom chegarem as outras

fl) Sendo a estas ilhas da costa d'Africa onde , na primeira


epoca dos nossos descobrimentos , se dirigião de preferencia as
expedições , na conformidade das instrucções do Infante , pelas
razoes qne em parte Barros nos refere , como dissemos em a nota 1
da pag. 167, e posto que em a outra nota de pag. 1 17 tenhamos
já indicado ao leitor a sua posição, conforme as antigas cartas ,
julgámos todavia a proposito para melhor illustrar esta materia ,
indicar aqui a sua verdadeira posição. Em algumas cartas, eentre
estas na primeira folha da Africa do celebre Livio Sanulo , estas
ilhas se achão dispostas pela forma seguinte :
K das Garças na parte mais septentrional de todo o grupo,
TulerxiA parte mais meridional de Iodas, e a do JVnr entre as
duas.
— 247 —

cinquo caravellas , minha determinaçom sei a


de nom tardarmos mais, soomente executarmos
o que trazemos ordenado (1). E se voontade he
de Deos de nos ajudar, como em elle spero, pois
principalmente por seu serviço aquy somos
chegados, aquella ajuda que nos entom ha de
fazer quando formos todos juntos , essa nos fara
a estes que agora aquy somos, ou per ventura
milhor, porque quanto nós sentirmos a neces-
sydade mayor, tanto requereremos a sua ajuda
com mayor devacom , e onde entom quando
juntos fossemos, poeryamos a esperança nas
forcas dos homeês, veendonos poucos, firma-
ryamos o principal socorro na sua ajuda. Hora
daquy avante podees ordenar, disse elle, o que
vos sobre meu conselho milhor parecer. Em
verdade responderom todos, vosso conselho he
tam boõ, e tam proveitoso, que o que hi mais
fallassemos serva sobejo, ou per ventura des
concerto do verdadeiro caminho em que per
vossas boas pal lavras nos deteendes postos.

(I) Por estas expressões se prova que as vistas, e os planos do


illustre Infante , não erão os de fazer escravos , e captivos, nem
correrias contra os habitantes, mas sim o proseguimento dos des
cobrimentos. A passagem que se lè no seguinte capitulo da grantte
alegria que tiverão , principalmente a genle mais baixa, de encon
trarem na ilha das Garcas as outcas caravellas para cometerem
o feito, isto é de uma nova incursão contra os Mouros, descobre
em nosso entender o espirito que animava aquelles maritimos ,
o qual talvez alguns dos capitães não podessem mesmo algumas
vezes conter, e moderar.
— 248

CAPITOLLO LHIf.

Como acharom as outras caravellas na ilha das Garças ,


e do conselho que ouverom.

Grande prazer ouve antre aquelles, quando


chegando aa vista da ilha das Garças, vyram as
quatro caravellas, queja hi jaziam de repouso,
de qualquer guisa que hi jouvessem, ca nom
montava que fossem da sua conserva, todavya
sabyam que eram do regno, pello qual spera-
vam que compriryam em sua ajuda, o falleci-
inento que lhe fezessem as outras porque ante
tiinham sperança. As novas desta vista corre-
rom per todallas caravellas assy como viinham
hua tras outra, de que todos ouverom grande
allegria, specialmente a gente mais baixa, por
que viiam que os capitaães levavam determinado
de cometeerem o feito, sem embargo da nom
viinda dos outros, como ante teemos scripto, e
como gente que nom sabe encobrir sua allegria,
fezerom soar seus estormentos, e alevantarom
cantares, e des y comendo e bebendo, come
homeês que per suas voontados sc certificavom
— 249 —
da vitorya; e em chegando aos navyos que ja-
zvam ancorados , armarom seus troõs e suas
eollobretas, com as quaaes fazyam seus tiros,
em sinal do prazer de seus coraçooês ; doqual
prazer tambem os outros, queja jaziam repou
sados, nom ficavam sem parte. Mas esto acre-
centava dobrez tristeza pera os Mouros, que
jaziam metidos so os tilhados dos navyos , os
quaaes ainda que a linguajem nom entendessem,
o soom das vozes lhe certeficava o contrairo de
que elles desejavam. Nom me quero ocupar
screvendo quaaes seryam seus abraços, quando
se todos ajuntassem, por que a rezom vos ditara
quejandos devyam seer em tal lugar e tempo ,
soomente ponhamos ante nossos olhos que os
veemos saltar de huus navyos nos outros , e os
que mais tarde partirom do regno, apresenta
rem aos primeiros daquellas vyandas de que
sabyam que estavam desejosos. E assy em esto,
como no repouso da noite, passarom ataa o
outro dya sobre a tarde, que per mandamento
de Lançarote say rom em terra , pera com todos
juntamente aver seu conselho : noqual seendo
postos, disse como bem viiam a tardança flas
outras cara vellas, e como lhes Deos ally quisera
encontrar aquellas tres, que tempo avya que
eram partidas do regno, e mais hua das cinquo
porque ante speravam ; e assy que pera com
primento das xiiij. nom lhes fallecia senom
hua ; e que onde elles auto traziam determinado
— 250 —
poer a praca aos imiigos com nove, de milhor
mente lha podyam poer com xiij-. ; porem que
vissem se era bem partirem logo, ou se spera-
rvam ainda mais algua cousa. Todos disserom
que a tardança serva danosa, naqual nom sen-
tyam nehuu proveito; porem que todavva par
tissem com boa ventura, ca quanto mais cedo
se aquelle feito começasse, tanto serva milhor;
noqual acordo eram todos comuumente , ca em
tal tempo e lugar nom se temyam denculcas
contrairas , nem dos companheiros lhe desco
brirem os segredos aos imiigos. Hora pois,
disse Lançarote, teendes determinado todavva
partyr, he bem que vós outros que ja vistes
muytas ordenanças perteecentes atal caso, vos
nembrees dellas, e que me ajudees a ordenar
nossa ida , como vaamos ordenadamente. E
leixaudoaquy as desvairadas tençooês que an-
tre elles ouve, finalmente foe determinado , que
saissem per esta guisa : acordarom logo princi
palmente, que de toda a gente que nas caravellas
hva, scolhesseni iicjxxviij. homees, porque pa
rece que tantos conviinham pera a reparticom
que tiinham ordenada, dos quaaes os homeês de
pee e lanceiros fossem em hua batalha, daqual
Alvaro de Freitas fosse capitam; e que despois
elle, seguisse Lançarote, com todollos beestei-
ros e archeiros ; e na regua rda fossem Sueiro da
Costa, e Dinis Eannes da Graã, com todollos
homrês darmas ; determinando que sua ida
— 251 —
fosse muyto cedo, de guisa que ante manhaã
fossem dar na povoraçom da ilha de Tider ;
que fossem ante das caravellas tres batees,
nos quaaes saissem pi I lotos , que ja fossem
em aquella terra , e que soubessem o ca
minho.
— 252 —

CAPITOLLO LV°.

Como sairom aquellas pentes na ilha de Tider.

Anojado som daquelles pillotos, porque assy


errarom a rota que avyam de levar, ca por certo
se se a fortuna nom entremetera no erro da-
quella vyagem, a vitorya fora demuvto mavor
perfeiçom ; aqual culpa nom foc tanto daquel
les, como das treevas da noite, ca posto que
ally fossem outras vezes, nom forom tantas per
que de razom devessem seer culpados muvto
cm seu erro, ou per ventura foe sua causa as
auguas, que entom eram mortas, por cuja ra
zom acharom em muytos lugares tam baixo,
que nom podyam nadar; assy que lhes foe for
çado, achandosse em seco, sperarem a ajuda
da maree, aqual nom ouverom senom ja alto
dya. Oo quantos queixumes anda tom antre
aquelles, veendosse assy empachados, com
cousa em que suas forças nom podyam apro
veitar ! Ah Deós ! dizvam elles, e menos favoravel
queres lu seer ao nosso feito, doque ja muytas
vezes foste a outros, que tamanha teençom nom
— 2:>;í —

tiinham de Ic scrvyr ! Oje que o teu sanetu


nome teerya causa de secr muyto acrecentado,
ea nossa honra levantada, dás lugar a huu tam
fraco podervo de huu ellemento, que nos aja de
empachar ! Ave por tua santa piedade com nosco
misericordya, e ajudanos, ca teus servos somos,
empero pecadores , mas mayor he a grandeza
da tua benignidade, que a multidom de nossos
pecados. E se tu teveste poder de abryr caminho
aos filhos de Israel per meyo das auguas, e fe-
zeste o sol tornar a tras per rogo de Jesue,
contra o curso da natura ; porque nom faras
agora tanta mercee a esta tua gente, porque o
teu mi llagre pareça ante os nossos olhos, que se
antecipem estas auguas , por tal que a nossa
vvagem seja encaminhada como ajamos com
prida vitorya? Assy trabalharom em aquella
noite aquelles mareantes quanto poderom ; mas
por estas duas razooês que ja dissemos, nom
cobrarom a Ilha senom alto dya. E ante que
chegassem ao porto onde avyam de desembar
car, teverom ordenança de se juntarem todas
as caravellas, indo tam juntas, que os homeês
saltavom de huas nas outras. E allevantousse
ally antre elles huu novo conselho, pello qual
alguus dizyam , que nom era razom que saissem
em terra , ca sabido era como se ally colhyam
muytos Mouros , os quaaes de boa rezom de-
vyam entom ally seer mais que antes, por aazo
das caravellas de Lixboa, que avya dyas que
— 254 —
all v andavam, e lho matarom naquella ilha,
nom avya xv. dyas,os sete homeês de queja
fallamos; c que ao menos por aquelle dya nom
devyam sayr, porquanto presumyam que os
Mouros eram muytos, e jazyam em cilladas,
pois nhuíi nom parecia. E nom era este rumor
antre tam poucos, que em elle nom pendesse
toda a mayor parte da gente comuu. Amigos ,
disserom os capitaaês, nós nom viemos a esta
terra senom pera pellejar; e pois principal
mente a esta fim viemos, nom avemos que re
cear, ca muyto mayor honra nos sera fazer
nossa pelleja de dya, que de noite, lançando os
Mouros desta ilha forçosamente, que per outra
astucia nem engano, ainda que nom matemos
nem tomemos nehuu, que filharmos de noyte
huu milheiro delles. E com o nome de Deos,
disseram elles, sayamos todavya, e vaamos em
terra na ordenança que teemos determynada.
E assy com estas pallavras começarom logo de
sayr, e tanto que forom todos postos na prava,
poserom suas azes em ordenança , onde Lança
rote, per acordo de todos os outros capitaaês,
tomou a handeira da cruzada, que lhe o Iffante
dom Henrique dera ; e ja sabees como os que
morressem sob a dieta bandeira eram absoltos
de culpa e pena , segundo o outorgamento do
Santo Padre, de que ja vistes o teor do mandado;
aqual bandeira foe entregue a Gil Eannes(1),
I ) Barros omittio estas particularidades alias tão interessantes
— 255 —
cavalleiro da casa do Iffante, de que vos ja ou
tras vezes fallamos, que era natural de Lagos;
e como quer que Lançarote delle conhecesse
esforço e bondade, empero todavya deulhe ju
ramento, elhe tomou menagem, que por medo
nem perigoo nom leixasse a dieta bandeira, atee
sofrer morte ; e elles outro sy lhe jurarom, que
per conseguinte, ataa o derradeiro termo da
vida, trabalhassem pollo guardar e defender. E
elles assy ordenados , despois das dietas cousas ,
oomeçarom daballar assy em aquella ordenança,
indo spaço de tres legoas per area, fazendo
muy grande calma, ataa que chegarom ao lugar
de Tidre, que está dentro na dieta ilha, junto
com o qual virom estar hua soma de Mouros,
corregidos com mostrança de pelleja , aqual
vista foe muy allegre pera os xpaaos. E porem
mandarom logo soar as trombetas, indo a elles
muy de voontade ; mas os Mouros, desempara-
dos da primeira fortelleza, começarom de fogvr,
lançandosse a nado a allem de huu esteiro, que
faz daquella terra Ilha, onde ja tiinham passa
das suas molheres e filhos, com toda sua prove
fazenda ; empero nom poderom assy espedyr,
que nom matassem delles viij. e prenderom
«piatro, onde huu daquelles homeês de Lagos
foe ferido, porque quis fazer tamanha avantagem

para a historia daquellasexpeilições. Este Gil Eannet era o mesmo


quç primeiramente passam além do Gilso Bojador (vid. cap. n ,
pag. 56).
— 256 —

antre os outros, por mostrar sua ardideza, que


casy per sua voontade recebeo as dietas feridas,
das quaaes ao dyante morreo, viindo ja pello
mar, cuja alma o senhor Deos receba na com-
panhya dos sanctos. E desbaratados assy, os
Mouros, sentindo os xpaãos que sua estada nom
aproveitava ally mais, foronsc a aquelle lugar,
onde os imiigos ante tiinham seus allojamentos,
c do que hi mais acharom foc augua, com que
por razomda calma e trabalho ouverom grande
prazer, ca mu v tos perecerom de sede se ella
nom fora. E tambem acharom ally arvores dal-
godom, ainda que muytas nom fossem. O can
saço foe em alguus tamanho, que per nhuu
modopodyam tornar de pee, soomente lhes foe
grande socorro perasua necessidade, asnos «pie
avya muytos na Ilha, em que cavalgando se
tornarom pera seus navyos. Empero ante que
entrassem em seus batees, forom hi alguus que
requererom a aquelle nobre homem, Sueiro da
Costa, que fosse cavalleiro, o qual ou por o re
querimento sobejo de seus amigos, ou por elle
aver voontade de o seer por mavor honra sua,
consentyo em ello, dizendo que lhe prazia, com
tanto que fosse per maao d'Alvaro de Freitas (1),
por quanto o conhecia por tal cavalleiro, de que
sua caval larva nom podya seer reprochada. E

(1) Barros diz que Alvaro de Freitas era oommendador cVAl-


gezur (Derad. I, liv. I, rap. 11).
— 257 —
todos folgarom muyto, specialmente aquelles
principaaes que o conhecyam. E assy foe feito
cavalleiro aquelle nobre homem, doqual he de
maravilhar tam longamente trabalhar em no
officio das armas, seendo tam avantajado em
ellas, e nunca querer tomar aquella honra se-
nom em aquelle assejo. Por certo, diz o autor,
eu creo que pero Alvaro de Freitas fosse tam
nobre cavalleiro, e per aquceci mento ja outros
semelhantes fezesse, nunca sua espada tocara a
cabeça de tam nobre e tam avantajado homem,
nem foe pouco honrado aquelle Alvaro de Frei
tas no conhecimento que Sueiro da Costa fez em
querer seer cavalleiro de sua maaõ, onde o po
dera scer per muy honrados Reis e grandes
Principes, que se muyto contentarom de o fa
zer, conhecendo sua grande vertude. Aquella
noite forom repousar a suas earav ellas, e no
outro dya sairom em terra pera fazer cavalleiro
Dinis Eannes da Graã, oqual per essa guisa foe
feito per maaõ dAlvaro de Freitas. E ally se
spedirom as caravellas de Lixboa das outras,
porquanto sentiram que sua estada nom era ja
necessarya , c os mantiimentos desfalleciam
tanto, que se a vyagem per alguu contrairo
fosse embargada , era necessari o seerem postos
em padecimento. Empero bem he de crer, que
seelles souberom que ainda daquella ilha avyam
de seer tantos Mouros mortos e presos, que se
nom partiram tam asinha, se quer ao menos
17
— 258 —

por sua vingança seer mavor. Dos outros Mou


ros que filharom em Tider, envyarom Lança
rote e os outros capitaães , a Sam Vicente do
Cabo huu Mouro, e a Santa Marya da augun
da Lupe, hua ermida que está naquelle termo
de Lagos, outro, pera se vender, e do preço
comprarem ornamentos pera aquella igreja.
CAPITOLLO LVI°.

Como lornarom outra vez a Tider, e dos Mouros


que fllharom.

Nom nos parcceo necessario fallarmos na


chegada das caravellas a LLxboa , nem ocupar
mos nossa scriptura no recontamento da venda
dos Mouros, assy como o achamos no trellado
dAfonso Cerveira , de que tiramos esta estorea ,
ca ja os daquella cidade nom avyam por novo
viirem Mouros daquella terra; porque assy como
diz Frey Gil de Roma (1) , na primeira parte do

(1) Fr. Gil de Roma viveo no tempo de Filippc formoso, rei de


França. 0 tratado de fíegimine principum, que elle esrreveo em
1285 para a educação daquelle principe, foi um dos livros que
teve maior nomeada principalmente nos fins do seculo xiv° c xv°.
Pela noticia que nos dá a Chronica do conde D. Pedro , e pela
citação d'-ízurara, vemos a estimação em que o mesmo livro
estava entre nós no principio daquelle ultimo seculo. Com efteito
el-Rei D. João 1° lembrou aos fidalgos, c cavalleiros em Ceula
em 1415, na falla que lhes fez, as maximas e preceitos que elles
tinhão lido no livro de Regimine principum , que elle trazia
sempre na sua camara ; e se acreditármos Barboza (Bibliotheca
lusitana), o infante D. Pedro fizera uma traducçào portugueza do
mesmo tratado , mas este sabio bibliografo chamava a Fr. Gil de
Roma , Fr. Gil Correa.
iNão c nesta nota o logar oppoituno para moslrnr sc o appellido
— 260 —
primeiro livro do Regimento dos Principes, a
condiçom dos beês temporaaes , no desejo do
homem ham tal propriedade, que ante que os o
homem possua, parecemlhe muvto mais nobres
do que elles som, o que despois que os possue
he pello contrairo, ca por grandes e boõs que
sejam, nom os tecm em tamanha conta. E tor
nando a nossa estorva , tanto que se aquellas
tres caravellas partirom , chegarom outras tres,
daquellas quatro que ante falleciam ; nos quaaes
nom foc pequeno queixume por nom seerem
com seus companheiros na entrada da Ilha, ca

de Correa, que Barboza tlâ áquelle A., é ou não exarto, limitamos


hemos a dizer que el-Rei D. Duarte citando-o varias vezes nos ca
pitulos 31 , 3?, 36,52, 56, etc., do Leal Conselheiro, lhe chamava,
como Azurara , Fr. Gil de Roma.
Na bibliotheca de Cambrai existe um mss. n° 856 do Regimine
principum, o qual foi acabado em 1424, e por conseguinte cm
uma epoca posterior ao de que se servio el-Rei D. João Io, mui
provavelmente dos de que fizerão uso el-Rei D. Duarte, e
Azurara.
A primeira edição publicou-se pela imprensa em 1473 (vid.
Dictionnaire btbliographique , La Serna - Santander , etc.). Se,
pelo que deixámos dito , o manuscripto de que se servira
el-Rei D. João Io e o Sr D. Duarte , e Azurara, é um dos mais
antigos de que há noticia, por outra parte a traducção portugueza
do livro de Fr. Gil de Roma, pelo Infante D. Pedro, é tambem uma
das mais antigas, se exceptuarmos a traducção franceza attri-
buida a Henrique de Gand (vid. o abbade Lcbeuf, Dissertation sur
1'histoire ecelésiastique et civile de Paris, II, p. 41 ). Julgámos a
proposito dar esta noticia ao leitor pela importancia da citação
d' Azurara , a qual nos mostra o estado da erudição , e cultura lit-
leraria entre nós no começo do seculo xv°, e ao mesmo tempo as
relações litterarias que existião entre Portugal e a França, e
outros paizes nos ultimos tempos da Idade Media.
— 2CI —
pero a pelleja nom fosse mayor daquello que
teemos fatlado, parecialhes que em cousa que ja
fezessem , nom poderyam receber honra. E
assy come homees que tiinham dello despeito,
rcquererom logo aos outros, que se ordenas
sem de sayr em terra; sobre aqual cousa ouve-
rom conselho , no qual razoando hua peca ,
determinarom que se fossem tres caravellas,
scilicet , as mais pequenas ao passo do esteiro
de Tider, e que fossem esso meesmo as gentes
ilas outras caravellas nos batees ; e que poderya
seer que a gente se tornarya aa Ilha, daqual
poderyam filhar algua naquelle porto. E come
cando de obrar per seu conselho, partirom de
noite, como quer que nom podessem chegar ao
porto senom de dya, onde chegando viram os
Mouros a allem do porto, e seendo os xpaãos
em dereito delle, o qual porto era bem ancho
em augua, empero baixo, senom quanto era
huíi tiro de pedra , que se nom podya passar
senam nadando, e os Mouros teveronse assy da
parte daalem, olhando os xpaãos, dos quaaes
lhes parecia que avyam pequeno temor, e suas
contenenças assy o mostravam , ca estavam
baillando e folgando, come homecs seguros de
seus contrairos , a osquaaes faziam aquellas
mostranças, caasy afim de os anojarem scarne-
cendo de sua viinda. Porem fora bem pei a elles
se seu avisamento fora mayor, c esto he, se
esteveram dentro na augua acerca do alto, por
que por ello poderom estar cm mayor segu
— 262 —
rança acerca doque se lhe despois seguyo. Os
xpaãos, aallem da voontade que tiinham de
chegar a elles, veendo suas maneiras, que eram
assy come em despreço , dobraromselhe as
voontades de pellejar, ainda que os Mouros fos
sem muytos mays; e pero tevessem grande
empacho na augua , que estava em meo , a ar
dida voontade os forçou de todavya seguyr seu
proposyto. E assy começai^om de entrar na
augua, ataa que chegarom a aquelle alto, que
se nom podya passar sem nado , e chegando
ally sobresseverom , avendo por periigosa sua
passagem. E estando assy pellejando consigo
meesmos, porque a voontade os seguya que
fossem, e o temor lhes poinha defesa com a
morte, era hi com elles huu moço da camara
do Iffante, que eu despois conheci nobre scu-
deiro, oqual hya por scripvam de hua daquellas
caravellas, ca tal era o custume do Iffante nom
dar moradya de scudeiro a nhuu moço da ca^
mara, atee que se nom eixercitasse em algua
cousa de guerra ; per cujo merecimento lhes
dava ao dyante aquelle graao que sentya que
mereciam. Este moço, que avya nome Diego
Goncalvez, vencido de fortelleza, disse contra
huu homem de Lagos que era junto com elle,
que se chamava Pero Allemam (nom sey se por
seer natural daquella terra dAllemanha, se por
alcunha que lhe poserom) , se lhe prazia de lhe
teer companhya pera passarem ambos a nado?
Per boa fc, disse o outro, nom me poderas rc
— 263 —

querer cousa que te com milhor vooutade ou


torgara ; o qual ainda nom acabava sua reposta,
quando se ja derribava a augua , começando de
nadar; e assy o moço com elle; e despois delle
huíi scudeiro do Iffante, que avya nome Gil
Goncalvez, oqual ja fora na tomada dos pri
meiros Mouros , sob capitanva de Antam Gon
calvez, eassy na guerra destes outros Mouros,
comarcaãos da nossa Espanha, avido por boo
homem ; e despois logo outro moço da camara,
que se chamava Lionel Gil , filho daquellecaval-
leiroaque a bandeira da cruzada fora entregue;
e assy outros muytos apos aquestes. Mas os
contrairos, pero que os vissem, tomarom assy
como por jogo o movimento de seu trabalho,
atrevendosse em sua multidom, e des y pensa
vam que lhe acudisse a vitorya, per aquelle
respeito que lhe viera no outro dya, quando
matarom os sete das outras caravellas. Os nos
sos, tanto que se poderom firmar no chaaõ,
teveronse dereitos em elle , seguindo porem
avante quanto podyam , onde os contrairos fo-
rom a elles. Eos xpaãos por sayr, e os Mouros
pollos empachar, começarom sua pelleja, ju-
gando suas lançadas , pellas quaaes se bem
podya conhecer o desamor que antre elles avya.
Mas ja a pelleja dos Mouros nom era tanto por
causa da imiizade, como defensom de suas mo-
lheres e filhos, e muyto mais por salvar suas
vidas meesmas. Maravilhados porem muyto de
tamanha fortelleza como sentvam nos imiigos,
— 26-4 —
e pero a comperaçom fosso desigual na multi-
dom de huus e dos outros, ca os Mouros eram
muy muyto mais, querendo Deos ajudar sua
gente, matarom logo xvj, e os outros forom
desbaratados em muy pequeno espaço. E como
quer que o amor das molheres e filhos fosse ex
tremo antre todollos outros padecimentos que
em elles avya, como naturalmente em todos he,
veendosse desbaratados, soomente poserom cui
dado em guarccer sy meesmos, porque a morte
he fim de todallas outras cousas spantosas. E
assy vencidos comecarom de fogir, onde mor-
rerom delles assaz. E porque a calma era muyto
grande, e elles trabalhados, nom os poderom
longe seguyr; em pero prenderom lvij, com os
quaaes se tornarom pera suas caravellas.
CAP1T0LL0 LVII°.

Como forom a Tira. '

Como quer que todos trabalhassem em aquelle


feito, e que todos por ello mereçam louvor e
honra, principalmente deve seer aquelle Diego
Goncalvez, c assy o homem de Lagos, que pas
sou com elle, per aquelle respeito queja disse,
que nos começos jazia a mayor parte do louvor.
E de feito assy lho conheceo o Iffante, ca lhe fez
depois muy ta mercee, como geeralmente sem
pre teve acostumado a aquelles que o bem ser-
virom. Teendo assy aquelles Mouros filhados e
recolhidos aos navvos, começarom logo depre-
guntar alguus apartadamente, onde entendvam
que acharvam os outros que fugiram da com-
panhya? dos quaaes ouverom reposta, que sua
tençom era que servam em hua povoraçom que
se chamava Tira , que era em terra firme per a
costa do mar, atec viij. legoas dallv. E consii-
rando que quanto mais cedo fossem a elles,
tanto sua ida serva mais proveitosa , ca presu-
myam que pollo feito seer tam breve acharvam
os Mouros seguros de sua ida , e porem partiram
— 26G —
logo aquella noite pera alla tres caravellas, das
mais pequenas e mais ligeiras que acharom na
companhya, e toda a outra gente nos batees,
levando consigo duas Mouras que mostrassem
o caminho. E no primeiro quarto da noite che-
garom a hua ponta , onde leixarom os navyos,
c sairom em terra. E porque nom sentirom
ainda tempo de partir, repousarom ally, atee
que a alva começou de romper, com cuja elari
dade começarom davyar seu caminho. E che
gando a hua passagem de huu pequeno braço
de mar, toparom com muytas almaadyas, antre
as quaaes era o batel que os Mouros filharom a
as caravellas de Lixboa, empero ja acerca todo
desfeito; trouveronno porem consigo pera suas
caravellas. Edally passando avante, encontra-
rom huu Mouro, que matarom,creo que serva
por elle meesmo querer buscar caminho pera
ello ; e assy chegarom sobre o lugar de Tira , e
doutras duas aldeas, mas nom acharom em
ellas cousa algua doque buscavam , porque os
Mouros eram ja todos fogidos ; e assy lhes foe
necessarvo de se tornar pera suas caravellas. E
dally passarom ao lugar de Tidrc, onde repou
sarom por rezom das auguas que ally avya. E
estando assy, mandarom os capitaães a alguns
daquelles, que fossem por asnos pera os fracos
tornarem em elles aos navyos; os quaaes indo
ao mandado que lhes mandavam, encontrarom
cinquo Mouros, que com pequeno trabalho
prenderom. E assy tornados, disse Lançarote,
— 267 —

que porquanto era ja tarde, que repousassem


por aquella noite, e que no outro dya querya
fallar com elles alguas cousas que entom sa-
beryam.
— 208 —

CAPITOLLO LVIIf.

Das pallavras que dissc Lançarote.

Seendo no outro dya juntos todos esses prin-


cipaaes per mandado do capitam, como ja teen-
des ouvydo, e ainda todollos outros que se allv
quiserom chegar, disse Lançarote : Senhores e
amigos ! Porque foe mercee do lflantc nosso
senhor de me fazer vosso capitam , porem per
vosso prazer e voontade , e por causa dello eu
represento aquy sua pessoa, em seu nome vos
agradeço o grande trabalho e boas voontades ,
que em todos vós outros achey em este feito
aque fostes viindos por seu serviço, o qual lhe
recontarev persoal mente quando quer que a
Deos praza que sejamos em sua presenca , de
guisa que per o merecimento de vossos traba
lhos, possaaes cobrar aquelle gallardom, que
tam justamente merecees. Hora vos sabees
como partimos de nossa villa com principal fim
de viirmos aa conquista desta Ilha, e como nos
Dcos quis pera ello encaminhar, c avyarnos,
lhe devemos por cllo dar muytas gracas, ca
pero tantos Mouros lmiti filhassemos, como ja
— 269 —
outras vezes fezemos, todavya nossa vitorya foe
assaz, pois na meetade do dya realmente lhe
posemos a praça, e fomos a elles como vistes;
e comoquer que tantos fossem , leixarom o
campo ao nosso vencimento, e entramos per sua
terra, e filhando suas cousas sem contradiçom
algua, deque nos fica honra e louvor ante aquel-
les que dello verdadeiro conhecimento ouve-
rem. E quanto aa nossa viinda, segundo o pre-
posito que trouvemos, o feito he acabado, no
qual eu faço fim de seer vosso capitam, porque
segundo o regimento que trago do snõr If-
fante, despois da tomada desta Ilha cada huu
pode fazer de sy o que lhe prouver, indo pera
qualquer parte em que sentyr sua avantagem
ou proveito. E porem a my parece que he bem,
que esses poucos que filhamos, sejam partidos,
de guisa que cada huu aja sua dercita parte, e
siga o caminho que per bem tever. E de my
vos afirmo que som disposto pera qualquer tra
balho ou perigoo, que me por serviço de Deos
ou do Iffante meu snõr possa viir, ca com tam
pequena presa nom entendo tornar ante a sua
presença. Todollos outros disserom, que era
muy bem consiirado todo o que Lançarote dis
sera; e começarom logo de iguallar sua par-
tylha, pella qual cada huu recebeo segundo
sua sorte. E despois dello, fez Lançarote pre-
gunta a todollos outros eapitaaês, que era o
que queryam fazer? Sueiro da Costa, c Vicente
Dvaz, armador, e Gil Eanne's, e Marfim Vicente,
— 270 —
pilloto, e Johara Diaz, outrossy armador, res-
ponderom, que por quanto suas caravellas eram
pequenas, e o ynverno era muy acerca, que
avvam por periigosa sua ficada quanto pera
irem mais adyante, porem que se entendyam
de tornar caminho de Portugal. Mas de como
foe sua tornada, fallaremos adyante compri-
damente na storya.
— 271 —

CAPITOLLO LIX°.

Das pallavras que disse Gomez Piz , e como forom


a terra de Guinee.

Gomez Piz, que era presente naquella cara-


vella del Rey como principal capitam, assy
como homem em que avva esforço e autori
dade, começou defallar de sua entençom antre
todos, per esta guisa : Parece, disse elle, que a
deter mi naçom dos capitaaês destas pequenas
caravellas he de se tornarem pera o regno,
temendo o- perigoo que se lhes pode seguyr,
achando-os o inverno mais longe doque esta
mos. E porque vós outros , honrados snõres e
amigos, sabees muy bem a voontade do suor
Iffante como he grande de saber parte da terra
dos Negros , especialmente do ryo do Nillo (1) ,

( I ) Compare-so esta passagem com o que observámos em as


notas de pag. 78, 89, ltií e ?<7 acerca dos verdadeiros planos
do illustre Infante, autor destes descobrimentos. Estas passagens
nos revelão, apezar do laconismo do chronista, as tenções, e o
systema do principe àcerca destas expedições. Vè-se que elle de
sejava não só descobrir aquellas terras, mas sobre tudo obter
noticias dos mesmos naturaes ácerca do interior da Africa para
— 272 —
pello qual eu tenho determinado fazer vyagem
contra aquella terra, trabalhando quanto po
der por chegar a elle, e des y das outras cousas
aver a mais certa sabedorya que poder, e em
esto ponho toda a esperança doque mais posso
guaanhar em esta vyagem , o qual nom sera
pouco pera my, pois conheço do snor Iffante
que me fara mercee e honra por ello deque
posso cobrar mayor proveito; e pois navyo
tenho abastante, erraria se o contra iro fezesse :
e porem se alguíi de vós outros me quiser fazer
companhya, cu estarey a toda vossa orde
nança, com tanto que nom seja fora deste pro
posito. De verdade vos digo, respondeo Lan
çarote, que-essa era minha principal entençom
enteiramente, ante que vós em ello algíia cousa
fallassees, e prazme seguir vosso proposito,
porque assy me foe mandado pello Iffante meu
snõr. Pois, disse Alvaro de Freitas, nem eu nom
som homem pera me afastar de tal companhya,
mas vaamos hu quiserdes, siquer ataa o Paraiso
terreal (1). Com estes acordarom outros tres,

as comparar com as noções scientificas , historicas, e geograficas


da antiguidade , e da Idade Media , afim de proseguir nos mesmos
descobrimentos até chegar ao Oriente.
l'or isso Garcia de Resende diz, com razão ( Chron. d'e!Rei
D. .loao II, cap. 154) , quando trata do descobrimento do Congo
effeetuado 25 annos depois da morte do Infante : « No anno de
• 1485, desejando el-Kci o descobrimento da índia e Guiné que
» o Infante D. Henrique seu tio, primeiro que nenhum principe ila
» christanJude comecou. »
'I ) Chamámos a attençào do leitor sobre esta passagem , alias
— 273 —
scilicet, Rodrigue Annes de Travaços, sendeiro
do Regente, e Lourenço Dyaz, outro sy scu-
deiro do Iftànte Dom Henrique, e Vicente Dyaz,
mercador ; e assy firmados em este proposito,
começarom logo de seguyr sua vyagem. E
despois dellas partirom outras duas caravellas,
scilicet, huã deTavilla, e a outra de huu ho
mem de Lagos, que se chamava o Rieanço. Mas
da vyagem daquestas leixaremos o fallamento
pera outro lugar, porque nom chegarom aa
terra dos Negros. Partidas assy aquellas seis

muito interessante, visto que o dito de Alvaro de Freitas indica


indubitavelmente uma idea geografica ácerca da situarão do
Paraiso Terrestre , conforme os conhecimentos cosmograficos da
Idade Media, e da distancia em que elles se achárào d'aquellas
deliciosas paragens.
Os maritimos, que o Infante empregava nestas navegações
e descobrimentos, erão homens instruidos nas sciencias nauticas;
partião de Portugal munidos de cartas nauticas , nas quaes os
cosmografos de então desenhavão não só a configurarão hydro-
grafica das costas dos diversos paizes então conhecidos, mas, o
que é mais curioso , nas quaes representavão no interior dos
continentes por uma multidão de figuras os diversos soberanos,
os animaes , as aves, os arvoredos, e outras particularidades
reaes, outras fantasticas , e hypotheticas , como o leitor curioso
poderá ver no planispherio de Andrea Bianro de 1 436 , publicado *
na obra de Formaleone , intitulada Saggio sulta nautica antica de
yeneziani , e no outro planispherio do celebre Fra Mauro, pu
blicado pelo cardeal Zurla na sua obra Sulle Antiel>e IWappe lavo-
rate in rcnezin (1818).
A idea pois que tinha Alv'aro de Freitas da longitude em que
se achava do Paraiso Terrestre pelo seu dito mostra que o consi
derava na extremidade da terra ; aquella idea, dizemos , prova a
influencia que sobre os nossos maritimos exercia a geografla da
Idade Media. Com effeito, aquella idea da localidade do Paraiso
18
— 274 —
caravellas, levarom seu caminho ao longo da
costa, e andarom assy tanto que passarom aa
terra de Zaara , dos Mouros que som chama
dos Azanegues, aqual terra he assaz hoa destre
inar da outra, por razom das muytas areas
que hi ha, e des y verdura, que em ella nom
parece, e esto he pollo fallecimento das auguas,
que geera em-ella grande secura. E a esta terra
passam geeralmente todallas andorinhas , e
assy todallas aves que per certos tempos pare
cem em este nosso regno, scilicet, cegonhas,
codornizes, rollas, torcicollos, roussinooes, e
follosas, eassy outras aves desvairadas; e muy
tas hi ha que por razom da friura do ynverno
se partem desta terra, e se vaaõ buscar aquella
por causa de sua queentura , e outras se par
tem della no ynverno, assy como faleooês, e
garças, e pooml>os trocazes, e tordos, e assy
outras aves que fazem naquella terra sua cria-
çom , e despois veem guarecer a esta , e esto

Terrestre data do tempo da topografia chrutan de Cosmas Indico -


pleustes ( Cliristianorum opinio de mundo , apud Montfaucon, Coll.
nov. Patr. et Script. Greec., t. II), ideaque as viagens effectuadas
por terra durante a Idade Media fortiflcárão reduzindo-a a opi
nião systematica.
Na carta d1Andrea Bianco , o Paraiso Terrestre se acha marcado
na parte mais oriental da Asia.
Ou Alvaro de Freitas alludia , como julgámos mais provavel, á
localidade em que se achava collocado o Paraiso nas antigas
cartas, ou á cosmologia do Dante , segundo o qual o Paraiso
estava collocado no meio dos mares do hemispherio austral.
(Dante , Purgatorio, cant. xxvi , v° 100, e 127 , Divina Commedia .)

-
— 275 —
pollas vvandas que aquy acham conformes aa
sua natureza. E destas aves achavam os das
caravellas muytas.no mar, e outras na teria
em suas criaçooês. E pois ja começo de fallar
em esta materya, nom leixarey de dizer alguu
pouco mais do desvairo dalguãs outras aves,
e peixes, que achey que ha em aquella terra,
dasquaes som primeiramente huãs aves que so
chamam framengos, que som da grandeza das
garças, iguaaes na longura dos pescoços, em-
pero de pouca pena , e as cabeças razoadas em
comparaçom dos corpos, mas os bicos som
grossos, empero curtos, e tam pesados que o
pescoço o nom pode bem soportar,de guisa que
por sua ajuda sempre o bico teem pegado a as
pernas, ou a as penas o demais do tempo (1). E
ha hi as outras aves que som mayores que cir-
nes, que se chamam crooes, de quejafallamos (2) .
E tambem dos peixes ha hi huus, que teem os
bicos de tres ou quatro palmos, huus pequenos
e outros mayores, nos quaaes bicos teem den
tes de híia parte e da outra , tam juntos que
nom cabera huu dedo antre huu c outro, e to
dos porem som dosso fino, pouco mais grandes
que de serra, e mais afastados; c os peixes som
tamanhos e mayores que caçooês, e as queixa
das de fundo nom som mayores que doutro
peixe (3). E ha hi outro pescado, que he pequeno

(1) Esta ave é o Phanicopterus.


(2) fia. a nota de pag. 242, sobre o Buceros Africanas.
(3) É o Pristis.
— 276 —

assy como mugcês, os quaaes teem nas cabeças


huãs coroas perque desfollegam, que som assy
como guelras, e se os pooem virados co as
coroas pera baixo em alguu bacio, pegam tam
ryjo, que querendoos tirar levantam o bacio
consigo , assy como fazem as lampreas com as
bocas quando som bem vivas (1). E assy ha hi
outras muytas aves, e allimaryas, e pescados
em aquella terra , deque nom curamos serever
compridamente as feiçooês, porque serva aazo
de nos afastarmos longe com nossa estorva.

(1) Parece ser a Rcmorax


— 277 —

CAPITOLLO LX°.

Como estas earavellas chegarom ao ryo do Ntllo,


e dos Guineus que filharom.

Teendo ja passada estas earavellas a terra


de Zaara, como he dicto, viram as duas palmei
ras comque ante topara Dinis Dyaz (1), pellas
quaaes conhecerom que ally se começava a
terra dos Negros , com cuja vista folgarom as
saz ; e porem quiseroni logo filhar terra, mas
acharom o mar tam bravo na costa, que per
nhuu modo poderom sayr fora. Diserom des-
pois alguus daquelles que ally eram, que bem
mostrava o cheiro, que viinha da terra, a bon-

(1) Estas palmeiras existem marcadas nas antigas cartas manu-


scriptas.
Compare-se esta passagem com o que o 4. refere cap. xxxi,
e com as notas de pag. 1 54 , 220 , e 22 1 .
Barros (Dec. I, cap. 13), diz : « Lancerote veio ter ás duas
» palmeiras que Deniz Fernandez, quando alli foi, demarcou
> como cousa notável onde os da terra dizem que se apartam
» os Azenegues Mouros dos Negros idolatras, etc. » E com efieito
o curso deste rio forma uma notavel separação entre os Mouros
ou Berberes que habitão a margem septentrional, e os negros Ja-
loflbs que habitão a margem meridional (Vlde Durand, tomo 11 ,
pag. Gfl, e Rrnnell , Appendix, pag. 80.)
— 278 —

dade do seu fruito, ca tam deleitoso era, que


allv onde chegava estando elles no mar, lhes
parecia que estavam em alguu gracioso pomar,
ordenado a fim de sua deleitaçom. E se os nos
sos tiinham boa voontade de cobrar terra ,
nom mostravom os seus moradores menos de
sejo de os receber em ella ; mas do gasalhado
nom curo de fallar, ca segundo sua primeira
mostrança, nom entendyam leixar a ribeira
sem muy grande dano de hua das partes. E
esta gente desta terra verde (1 ) , he toda negra, e
porem he chamada terra dos Negros , ou terra
de Guinec, por cujo aazo os homeês e molheres
della som chamados Guineus, que quer tanto
dizer como negros. E quando os das caravellas
viram as primeiras palmeiras e arvores altas,
segundo ja teemos contado, bem conhecerom
que eram preto do rjo do JSillo, da parte donde
vem sayr ao mar do ponente, aoqual ryo cha
mam de Çanaga, ca o Iffante lhes dissera, que
despois da vista daquellas arvores pouco mais
de xx. legoas, esguardassem pollo dictoryo,
porque assy o aprendera elle per alguns da-
quelles Aza negues que tiinha cativos (2). E indo
assy esguardando pella riba do mar se vervam

(1) Na carta manuscripta de João Freire , de 1546, se vè mar


cado, á entrada do rio Senegal , o arvoredo de que falla Aturara.
(2) 0"Ompare-sc esta importante passagem com o que dissemos
em a nota ( n° I ) acerca do Infante e das informações que ette
colhia dos naturaes, o que comparava com as cartas geograficas
que estudava.
— 279 —
o ryo, viram ante sy, quanto poderia seer
duas legoas de terra, hua collor na augua do
mar, desvayrada da outra , aqual era assy como
collor de barro. Entenderom que podyam seer
alguas haixias, e tentarom porem sua altura
por segurança de seus navyos, onde nom acha-
rom deferenca dos outros lugares em que seme
lhante movimento nom avya, de que forom
espantados, principalmente pollo desvairo da
collor. E acertousse que huu daquelles que
lançavam a sonda, per ventura, nom de certa
sciencia , foe com a maaõ aa boca , e conheceo
sua doçura. Outra maravilha teemos, disse elle
contra os outros, ca esta augua hedoce ! pollo
qual lançarom logo seu balde ao mar, e pro
varam a augua, de que todos beberam, como
cousa cm que nom avya mingua pera seer tam
boa como compria. Certamente, disserom elles,
nós somos acerca do ryo do Nillo, ca esta augua
bem parece que delle he, e por sua grande
força corta o mar, e entra per elle assy (1).
E entom fezerom sinal aas outras caravel las,
e começarom todas de ir demandar o ryo,

(I) Esta mesma confusão que os maritimos portuguezes


fizerão do Senegal com o Nilo é mais uma prova da influencia
que sobre elles exercia a geografia systematiea dos antigos.
Segundo Plinio , o Niger era um braço do Nilo. 0 rio Senegal
atravessa no seu curso perto de 350 legoas de terreno desde a sua
origem no paiz de Fouta até ao Atlantico. (Vide Durand , Voyage
au Senegal , pag. 343 , e Demanet, Nouvelle histoire d'Afrique,
tomo I°, pag. 62 e scg.)
— 280 —
doqual noni muv longe dally acharom a foz.
E seendo ja junto com a boca delle, lança-
rom suas ancoras , empero da parte de fora.
E os da caravella de Vicente Dvaz lançarom o
batel na augua, noqual sayrom atee viij. ho-
meês, antre os quaes era aquelle scudeiro de
Lagos, que se chamava Stevam Affonso, de que
ja teemos fallado, que ao despois morreo em
Canarea , oqual armara parte daquella caravella.
E indo assy no batel todos viij., huu delles,
esguardando contra a foz do ryo, vyo a porta
de hua choça, c disse contra os parceiros : Eu
nom sey como as chocas desta terra som feitas,
mas segundo a feiçom doutras que eu ja vy,
choça devya seer aquello que eu vejo, e presu
mo que o seja dalguus pescadores que viiram
pescar a este ryo ; e se o tevessces por bem pa-
receme que devyamos ir sayr a allem daquella
ponta, de guisa que nom descobrissemos a porta
da choça ; e sayram alguíis em terra, e viTram
per tras daquelles medoòes , e se alguíis jouve-
rem na elioça podera seer que os filharom ante
que se percebam. Pareceo aos outros que aquelle
dezia bem , e porem começa rom de o poer em
obra. E tanto que aportarom em terra, sayu
Stevam Alfonso, c cinquo com elle, e levarom
aquella ordenança que o outro ante dissera. E
indo assy scondidos atee cerca da choça, viram
sayr della huu moço Negro, todo nuu, com
hua azagaya na maão, oqual logo foe filhado,
e chegando aa choça, acharom hua moça sua
— 281 —

irmaã daqueste, que serya de idade de viij.


annos. Este moço fez o Iffante ao depois ensi
nar a leer e screver, e assy todallas cousas que
compria saber xpaão, e ainda muytos xpaãos
hi ha que as nora sabem tam perfeitamente
como as èlle sabya, ca lhe foe ensinado a ora-
çom do Pater noster, e a Ave Maria , e os arti-
goos da fe , e preceptos da ley, e obras de mise-
ricordya, e assy outras muytas cousas, como
a aquelle aque alguus diziam que o Iffante man
dava ensinar pera sacerdote, com entençom de
o envyar em aquella terra, e preegar a fee de
Jhu Xo. Mas creo que ao dyante morreo, nom
seendo ainda homem perfeito. Entrarom assy
aquelles na choça, onde acharom hua darga
preta, toda redonda, pouco mayor que as que
se em esta terra costumam, aqual tiinha em
meo hua copa elevada do coiro meesmo, e era
dorelha dallyfante , segundo despois foe conhe
cida per alguus Guineus que a viiram, ca disse-
rom que todallas dargas fazem do coirodaquella
allimarva , e que o acham tam gordo a allem do
necessaryo, que lhe tiram mais da meetade,
adelgaça ndoo com arteficios que teem feitos pera
ello. E dysserom ainda mais aquelles, que a
grandeza dos elliffantes hetal, que a sua carne
farta razoadamente dous mil e quinhentos ho-
meês , e que acham antre sy por mnv boa
carne, e que dos ossos se nom aproveitam em
nhua cousa, ante os lançam alongo, osquaaes
cu aprendi que no levante desta parle do mar
— 282 —
Medvo Terrano, que vallem razoadamente mil
dobras a ossada de huu daquelles (1). Tomados

(1) Esta passagem mostra que o A. só tinha conhecimento na-


quella epoca docommercio do marfim que se fazia pelos portos
do levante situados no Mediterraneo , e que não tinha noticia
alguma que um tal commcrcio se fizesse mesmo pelos portos do
imperio de Marrocos, situados na costa occidental dWfrica.
Eu aprendi, diz elle , circumstancia importante, pois mostra
que um homem alias instruido nas cousas do commercio e da
navegação, não tinha noticia que o commercio do marfim se fizesse
pela costa occidentaI,e que além disso appresenta mais uma
prova da prioridade do descobrimento da Guiné pelos Portu-
guezes.
0 A. sabia pois a verdade , pois até aquella época o commercio
do marfim era feito pelos Arabes por via do Egypto, os quaes o
- hião buscar á costa de Zanguebar, donde vinha a melhor qua
lidade (vide Mossoudi, Notices et Extraits des Mss. de la Biblio-
thèque du Uni, t. I, p. 15 ; Jlm- Ouardi , ibid., t. II, p. 40;
Bakoui , ibid., p. 394 e 401). As caravanas arabes trazião-no
tambem dos logares vizinhos do Niger, Estas caravanas seguião
os caminhos dos antigos itinerarios (vide Ouardi , Not. et Extraits
des Mss., t. II, p. 35, 36, e 37, passim Edrisi).
Mas o centro principal deste commercio com o interior dWfrica
era na parte septentrional , já então conhecida com o nome de
Barberia , e nos paizes que formão hoje os reinos de Féz , e de
Marrocos.
As expressões do A. acerca da grandeza do elefante são eviden
temente exageradas, por que a especie indigena dWfrica e a se
gunda em corpulencia na familia dos Proboscidiens ou Pachy-
dermes trombudos (irpo6o<rzí:). 0 elefante d'Africa é pois mais
pequeno do que o elefante asiatico, posto que os dentes d'este
sejão menores do que os d'aquelle.
As particularidades referidas nesta chronica são cm nosso en
tender tão importantes pelo que nos revelão ácerca do estado
dos conhecimentos dos nossos primeiros descobridores, das in
fluencias tradicionaes da antiguidade, e da Idade Media, que sobre
elles dominavão, que parece opportuno indicar ao leitor o que
julgámos mais digno de estudo, e de reflexão, para podermos
— 283 —
assy aquelles moços e cousas, foram logo leva
dos ao batel. Bem sera, disse Stevam Affonso
contra 03 outros, que vaamos per esta terra
aquv acerca , pera veer se acharemos o padre e

avaliar o estado da instracção em Portugal sobre aquellas ma


terias nos principios do seculo xv°, assumpto sobre o qual ne
nhum escripto nacional té agora tem apparecido.
Entre outras passagens desta chronica, vimos a pag. 242 a
exageração maravilhosa com que os nossos maritimos descreverão
o bico do Buceros Africanus , do qual disserão : «£« sua boca, e o
papo he Iam grande que huma perna de hum homem , por grande que
seja , atee o giolho lhe cabe por elle. >
Vimos igualmente outra descripção maravilhosa do bico do
Phanicopterus , e flnalmente a que lhes inspirou a relação que os
Negros lhes fizerào ácerca do elefante, exageração que faz lem
brar a de um escriptor Byzantino do xi° seculo, de Miguel Alta-
liotes, quando vlra pela primeira vez um elefante em Constanti-
nopola (vide Extracto do Mss. grego da Bibliotheca R. de Pariz , a
pag. 499 da obra de M. Berger de Xivrey, Kécits de 1'antiquité
sur quelques points de la fable, du mcrveilleux et de 1'histoire
naturelle).
Nestas relações exageradas, e maravilhosas de aves, e animaes
que té então ainda não conhecião, se prova pois a influencia das
tradições teratologicas da antiguidade , c da Idade Media em
consequencia dos estudos que antes tinhão feito das figuras que
vião pintadas nos Planispherios e nos Mappasmundi do seu tempo,
erão pois tambem em resultado da leitura de Plinio , e sobre tudo
da leitura do Tratado das Maravilhas, attribuido a Aristoteles , o
Philosofo como lhe chama Azurara (vid. nota 2, pag. 37), cuja
autoridade era tamanha entre os Portnguezes no seculo xv°, que
até os procuradores dos povos nas cortes de 1481. citárão as suas
obras de Politica (vid. as nossas Memorias sobre as cortes, t. II,
p. 186).
Vè-se pois que os nossos maritimos d'aquella epoca estavão-
embebidos naquellas tradições, e na leitura das obras As quaes
durante a Idade Media se dava o titulo de Miralilia , cuja leitur».
encantava naquelles tempos não só os homens instruidos, mas alé
— 284 —
madre daquestes moços , ca nom pode seer, se
gundo a idade e desposicom delles, que osaquy
ouvessem de leixar por se afastar longe. Os
outros disserom, que fosse com boa ventura
pera onde lhe prouvesse, ca de o seguirem nom
tiinham empacho. E indo assy huu pequeno

os estudantes , e muitas vezes o povo ao qual os ecclesiasticos


lião em publico aquellas relações maravilhosas , como vemos
entre outros exemplos o de Giraldus Cambrensis , que tres vezes
leo ao povo em Oxford a descripção da Irlanda , e ainda mais
no dos celebres estatutos feitos em 1380 pelo bispo de Wickam ,
para o collegio que fundou na mesma cidade , nos quaes deter
minou que se lessem aos estudantes as chronieas dos diversos
reinos, das maravilhas do mundo (vide Sprengel , pag. 221,
e Wharton , Historr ofEnglish poctrj-, tom. I , pag. 92 ). Na epoca
em que os estatutos que mencionámos forão dados ao collegio
d'0xford, as relações entre Portugal, e Inglaterra se estreitárão
ainda mais do que nos seculos precedentes. A corte d'elRei
D. João Io adoptou a maior parte dos estilos , e usos inglezes , e as
communicações li Iterarias entro os dois paizes forão mais exten
sas do que nos tempos anteriores. A mesma citação dos romances
de cavalleria feita por eIRei aos seus cavalleiros, a adopção da
lingoa franceza que era então a das personagens da corte d'ln-
glaterra , as empresas , e motes de que os Infantes usavão , provão
a existencia d'aquella influencia. Além disso diversas passagens do
Leal Conselheiro composto por eIRei D. Duarte nos provão que os
mesmos Infantes tratavão de diversas materias litterarias com eI
Rei seu pai, e com outras pessoas instruidas, e que discutião alé
as regras, e preceitos de bem traduzir as obras classicas; vèmos
igualmente que eIRei D. João I°, no discurso que fez aos fidalgos
que ficarão em Ceuta em 1415, citou o Regimento dos principes
de Fr. Gil de Roma, recordando-lhes que se lembrassem que
muitas vezes o havido lido na sua camara. Assim pois naquella
epoca dos descobrimentos, na qual dominava o maior enthusiasmo
pelo proseguimento de empresas tão grandes, a leitura das Mara
vilhas do mundo, e das viagens de Marco Vaulo, que o Infante
D. Pedro trouxera dc Veneza , fazião sem duvida as delicias de
— 28.r) —

spaço, começou Stevam Affonso de sentyr gol


pes de machado, ou dalgua outra ferramenta,
comque alguu carpenteiava em alguu paao, e
retevesse assy huu pouco por se afirmar em seu
ouvido, poendo os outros em aquelle meesmo
cuidado. E assy todos juntamente conhecerom
que tiinham acerca o que buscavam. Hora,
disse elle, vós viinde de tras, e leixaae ir a my
dyante, porque se todos formos de companha,
por muyto passo que vaamos , he necessareo
seermos sentidos, de guisa que ante que che
guemos a elle, quem quer que he, se he soo,
necessareo he que se ponha em salvo ; e se eu for
passo e agachado, podello ey filhar de sospeita,

todos aquelles homens celebres, errados, e educados no palacio


do Infante D. Henrique, e de seu illustre pai , e irmãos.
As passagens pois que lemos nesta chronica , c que indicamos
ao leitor, apegar do seu laconismo, e dos defeitos que a critica
da nossa epoca lhes poderá notar, estas passagens, dizemos,
são importantissimas quando se estudão harmonisando-as com
as de outros documentos contemporaneos. Os grandes homens
do seculo xv°, formados na escola do Infante D. Henrique, erão
indubitavelmente dotados de grande erudição para aquelles
tempos; erudição, c saber, que escapa à primeira vista por se
achar embuçada na dureza de uma lingoagem menos polida ,
e que era mais energica nos feitos , do que explicita , e agradavel
nas relações e escriptos, mas que nem por isso deixa de nos
revelar que elles sabião tudo quanto no seu seculo se sabia.
Foi pois esta notavel escola que preparou a grande erudição
geografica que vemos apparecer no famoso congresso de Badajoz
dos geografos portuguezes, e hespanhoes em 1524 e 1525, no
qual , nas discussões que se agitarão sobre a demarcação das Mo-
lueas, e sobre a dimensão do globo, citarão Aristoteles, Strabão,
Erathoetenes , Macrobio, Si° Ambrosio, Plinio, Theodosio, Marino
de Tyro , Tebit , Almeon , Alfagran , e Pedro d'Ally, ele.
— 286 —

sem aver de my sentido ; mas nom sejam porem


vossos passos tam curtos, per que me tarde
vosso socorro onde per ventura me sera neces-
sarvo, se me em tal perigoo vyr. Acordados
assy em esto, começou Stevam Affonso de se-
guyr seu caminho, e antre o boõ esguardo que
pos no assessego de suas passadas, e o entento
que o Guineu tiinha em seu trabalho, nunca
pode sentyr a viinda do outro se nom quando
lançou de salto sobre elle. E digo de salto, por
que o Stevam Affonso era de pequeno corpo, e
delgado; o que o Guineu era muyto pello con-
trairo; e assy lhe travou rijo pellos cabellos,
que quando se o Guineu quis endereitar, ficou
Stevam Afibnso pendurado com os pees fora do
chaão. O Guineu era vallente e poderoso, e pa-
receolhe que era escarnho seer assy sogeito di
tam pequena cousa, espantado porem em sy
meesmo que podya seer aquello; mas pero
muyto trabalhasse, nunca se delle pode desem-
pachar ; com tal força andava enfeltrado em
seus cabellos, que nom parecia o trabalho da-
questes dous senom atrevimento de galgo ar
dido, posto na orelha dalguu poderoso touro.
E por dizer verdade, ja o socorro dos outros a
Stevam Affonso parecya tardinheiro ; pollo qual
crco que seu coraçom era bem arrependido do
primeiro conselho; e se em tal ponto coubera
contrauto, sey que ouvera por proveitoso leixar
o guaanho por a segurança da perda. E estando
assy ambos em sua perfva, sobrechegarom os
— 287 —

outros, dos quaaes o Guineu foe tomado pellos


braços c pello pescoço pera o atarem. E pen
sando Stevam Alfonso que elle estava ja reca-
dado nas maãos dos outros , soltouho dos cabe
los, e o Guineu, veendosse solto da cabeça,
sacudiu os outros dos braços, lançandoos cada
huíi a sua parte, e começou de fogir, cuja se
guida aos outros empos elle pouco aproveitou,
porque a sua ligeyrice era muy avantejada ante
o correr dos outros homeês, e assv indo se co-
Iheo a huu boosco, acompanhado de muy ta
spessura de mato, onde os outros, cuidando que
o tiinham, trabalhandosse de o buscar, elle era
ja em sua choça com enteuçom de segurar seus
filhos, e filhar sua arma que com elles leixara.
Mas todo seu prymeiro trabalho foe nada em
comparaçom do grande nojo que lhe sobreveo
com o fallicimento dos filhos que nom achou;
e ficandolhe ainda hua pequena de sperança,
que per ventura estaryam escondidos em algua
parte ,- começou de esguardar pera todollos ca
bos pera veer se averya delles algua vista. E em
esto pareceo Vicente Dyaz, aquelle mercador,
que era principal capitam daquella caravella,
cujo era o batel em que os outros sairom em
terra. E parece que elle, pensando que sahya
a passear pella prava, como tiinha em costume
na villa de Lagos, nom curou doutras armas
soomente de huu bicheiro. Mas o Guineu ,
tanto que delle cobrou vista , tam aceso na sanha
corno devees pensar que estava , foe a elle muy
— 288 —

de voontade. E como quer que Vicente Dyaz


visse sua viinda tam irosa, e conhecesse que
pera sua defensom comprya seer milhor arma
do, entendendo que a fogida lhe nom aprovei
tava ante empecya per muytas maneiras, espe-
rouho sem lhe mostrar sinal de medo. E o
Guineu assy como viinha rijo, lhe deu logo com
a azagaya hua ferida no rostro, com a qual lhe
cortou acerca toda hua queixada; em cujo re
torno o Guineu recebeo outra ferida, ainda que
tamanha nom fosse como a outra que ante dera.
E porque as armas nom abastavam pera tama
nha pelleja, forom leixadas por viirem a braços,
e assy andarom hua pequena peça , revolven-
dosse huu com o outro, cada huu trabalhando
por vitorva. E em esto assy, vyo Vicente Dyaz
outro Guineu , que estremava de moço pera ho
mem, que viinha em ajuda daquelle; e como
quer que o primeiro fosse tam forçoso e tam
vallente, e se desposesse aa pelleja com tal
voontade como dissemos, nom se podera porem
scusar de seer preso se o outro nom sobreche-
gara, por cujo temor lhe foe necessaryo desem-
parar o primeiro. E em esto sobrechegarom os
parceiros, empero seendo ja o Guineu livre de
sua maão, e assy como homees que o correr
avyam em huso, começarom os Guineus de se
poer em salvo, temendo pouco os imiigos que
se tremetyam de os seguyr. E finalmente torna-
ronse os nossos pera suas caravellas, com aquella
pequena presa que ante tiinham em seos batees.
— 289 —

CAPITOLLO LXI°.

Como o autor falla alguãs cousas acerca do ryo do Nillo.

Parcceme que pois em este passado capitollo


falley de como as nossas caravellas chegarom
ao ryo do Nillo, que vos devo fallar algua cousa
de suas maravilhas, caasy porque o nosso prin
cipe receba honra mandando fazer presa sobre
as auguas do mais nobre ryo do mundo. E acerca
da grandeza deste ryo som maravilhosas ten-
çoões, ca fallarom dello Aristotilles e Tollomeu,
PI i nyo e Homero, Esidro, Lucano, ePaulloOro-
syo(1), e outros muytos sabedores; nom po
rem que determinadamente saibam acabar suas
maravilhas. E primeiramente, diz Paullo Oro-
syo (2), que parece que saae da ribeira onde se co-

(1 j É para notar a omissão do nome de Diodoro de Sicilin entre


os AA. citados por Azurara, sendo alias, entre todos os historia
dores antigos, o que nos deixou a mais importante e circumstan-
ciada relação do Nilo. A primeira versão latina do Poggio só ap-
pareceo em 1472, 19 annos depois tfAzurara ter acabado esta
chronica.
(2) As obras de Orosio erão muito estimadas entre os sabios da
Idade Media. Este escriptor nasceo em Braga na Lusitania, con
forme a opinião d'alguns AA. (fid. Fr. LeamdeS. Thomas, bened.
19
— 290 —

meça o Mar Vermelho, onde os Gregos chamam


Mossille Nemporyo, e dally diz que vay contra
o ocidente , e passa per muytas terras , e faz em
meyo de sy hua ilha, que ha nome Meroe (1). E
esta cidade he no senhoryo de Thiopva, naqual
foe Mouses per mandado de Farao , com todo o
poder do Egipto, segundo screvem Josepho
Rabano (2) , e meestre Pedro, e diz que se cha
mava estonce Saba , e que era a cabeça do regno
de Thiopya, mas que depois de longo tempo,
Cambises, que era rey daquella terra, pos nome

luslt., t. I°, trat. II , p. 308 ; e Baronio, an. 4 1 4. ) A sua obra Histo-


riarum adversus paganos, a qual começa com a creação do mundo
até ao armo 316 de J. C, foi impressa pela primeira vez em 1471,
isto é 18 annos depois A'1Azurara ter ultimado a sua chronica;
mas durante a Idade Media as copias da mesma obra se multipli-
cárão de tal modo que ate em Inglaterra este livro andava nas
mãos do povo anglo-jaxonico (vid. ffrilh, an Essay on the
state of literature and learning under the Anglo-Saxons, p. 39) ,
particularidade que nos oflerece mais uma prova das relações
litterarias entre a peninsula hispanica , e os povos e nações sep-
temtrionaes nos primeiros seculos da Idade Media.
(1) A'zurara alterou os nomes. A passagem a que o chronista
se refere é a seguinte :
c Et jEgyptum superiorem fluviumque Nilum , qui de litore
» incipientis maris Rubri videtur emergere in loco qui dicitur
> Musilon Emporium , e não Mossile Nemporyo. » (Oros., liber I,
VI, edição de Colonia de 1561.)
(2) É o celebre autor da Historia dos Judeos , Flavio Josepho, cuja
obra compoz primeiramente em syriaco, e depois em grego. Esta
obra foi tão estimada pelo imperador Tito , que a mandou collocar
na bibliotheca publica. A primeira traducção latina que se impri-
mio, segundo alguns bibliografos, foi em 1470, isto é 17 annos
depois de coneluida esta chronica.
-

— 291 —
a aquella cidade Merue (1 ), por amor de híia sua
irmãa , segundo conta meestre Pedro. Empero
diz meestre Gondofre(2), na íx. parte do livro
panteam , que ja ante do outro nome lhe cha-
marom JSadabet, c que este foe o primeiro que
ouve logo de seu fundamento. E chegando assy
o Nillo a esta ilha , faz sua carreira contra o
setentriam, e dal ly torna ao meo dya, e por
rezom do referimento que ally faz, saae da ma
dre em certos tempos do anno, onde rega todol-
los campos do Egipto. Mas Plinyo conta per
outra guisa, ca diz que as fontes donde nace
este ryo do Nillo, nom ha hi homem que as
saiba certamente, e diz que anda muy longa
terra por desertos, e per terras tam queentes,
que se acenderyam se por elle nom fosse, e que
muy tos trabalharom por saber o lugar certo
onde nace, mas que o que delle mais percalçou,
que foe elRey Juba, oqual leixou em seus scrip-
tos, que achara que o ryo do Nillo nace em huu
monte, que se chama Athallante, oqual monte
he em terra de Mauritanya, a mais baixa em
fundo de Africa no ocidente, nom muy longe

(1) Sobre esta ilha africana pode o leitor consultar Ptolomeo,


liv. IV, c. 8 ; Herodoto, liv. II , c. 29 ; Strabo, liv. XVII , e sobre
tudo Diodoro de Sicilia , liv. I, p. 29. 0 mestre Pedro citado por
Aturara é o famoso Pelrus Miacui ou de Aliaco , no seu livro
Imago Mundi, acabado em 1410, livro que teve grande voga no
xv°, e ainda no xvi° seculo.
(2) Gondofre. Em nosso entender deve ler-se Gondolfo. Este
escriptor tinha viajado na Palestina, e a sua vida se arha escripla
na tinglia Sarra , tom. II.
— 292 —
do grande mar, e que ftace de hua fonte, onde
logo faz huu grande estanco, que se chama
Nullidom, noqual se criam huus peixes que
ham nome, os huus allaltetes, e outros coraci-
nus, e outros sillurus; e tambem dizem que ally
nacem as cocadrizes (1 ) (2) , onde se conta que
os da cidade Cesarea (3), que he naquella mees-
ma terra deMauritanya, tomarom hua cocadriz,
e que a poserom em huu seu templo, aque di
ziam Eseo, e que per muytos annos esteve ally,
em testemunho que avya em aquelle estanco as
dietas cocadrizes. E conta que foe achado per
homèês daquella terra, que o sguardarom e
acharom por cousa provada, que pella guisa que
neva e chove em terra de Mauri tanya, onde
está aquella fonte, que per essa meesma guisa
crece ou mingua o Nillo; e que desque saae dal-
ly, e que chega aa terra das areas , nom quer

(1) Léa-se Crocodilos .


(2) Cocadriz. Esta he hua besta, segundo conta Plinyo, que
se cria no Nillo, aqual ha por costume , e ainda por natura , de
viver de dya na terra , e na augua de noite ; na augua porque
come dos pescados, donde vive e se mantem ; e na terra por dor-
myr e folgar. Pero quando saae pella menhaã aa ribeira, se acha
moço ou homem, ligeiramente o mata; e diz que os engulle
enteiros. E he besta muyto maa e muyto periigosa (*).
(3) Ê Julia Cwsarca , actualmente Cherchel, como se prova por
varias inscripçoes romanas alli descobertas ultimamente , e com-
municadas ao Instituto (Academia R. das Inscripçoes) por il.ffase.
Esta cidade era uma das mais industriosas da antiga regência

(*) Nota existente no Codice original eescrita no mesmo caracter, que a»


de pag. 10, u, 13, 21 e 52.
— 293 —
correr per cima dellas, nem pollos lugares de
sertos e maaos ; mas que se sume ally, e que
assy vay escondido ja quantas jornadas ; e que
despois que chega aa outra Mauritanya de Ce-
sarya, que nom he terra areosa, saae sobre a
terra, e que ally faz outro lago, noqual se criam
aquellas meesmas animallvas, e cousas que se
criam no outro, e portanto creem os homeês
que toda aquella augua he do Nillo, e que des
pois que saae dally, e que chega a as outras
areas, que som a allem de Mauritanya contra
Ethiopia , que se sconde outra vez , e que vay
assy scondido per espaço de xx. jornadas , ataa
que he dentro na terra de Thiopya, que saae
de todo sobre a terra , mostrando que saae de
híia fonte tal como a outra de Mauritanya, que
se chama Nigris , onde se criam esso meesmo
aquellas meesmas animallvas e cousas que ja
dissemos. E dally avante corre sempre sobre a
terra sem mais sconder, e parte Africa de Thio
pya, e faz grandes lagos, deque se manteem os
homeês daquella terra , e per essa meesma guisa
se acham ally todallas cousas que se criam nos
outros lugares do dicto ryo. E do lugar donde
começa a correr sobre a terra que se nom sconde
mais, ataa onde se começa de partyr, chamasse
Nigris, e he ja ally a sua augua muy grande ; e
ally faz de sy tres partes, que cada hua dellas
he ryo por sy ; dosquaaes tres ryos huu delles
entra per Ethiopya, e partea pello meo. E a
este chamam Astapo, que quer dizer, segundo
— 294 —

a linguajem daquella terra, tanto como augua


que corre de treevas. E este rvo rega muytas
ilhas, que som tam grandes, que polla que elle
menos entra , nom a pode passar em cinquo
dyas, como quer que em seu cosso corra muy
rijo. Mas a mais nobre daquestas, he aquella
que se chama Meroe, que ja nomeamos em cima.
Ao outro braço daquelles tres chamanlhe Asta-
bures, oqual em sua linguajem quer tanto dizer
como ramo de augua que vem de scuridade ; e
este corre aa seestra parte. O iij. destes tres ha
nome Astusapes, que quer dizer tanto como au
gua de lago ; e este vay aa seesfra parte. E estas
auguas em quanto vaão assy departidas cha-
manse per estes nomes que a vemos dicto, e
desque se ajuntam todos em huu, nomeamno
per o seu proprio nome, scilicet, o Nillo, e nom
antes, pero sejam todos hua augua. E desque
parte das ilhas, ençarrasseem huas montanhas,
mas em nhua parte nom leva tamanha ira, nem
corre tam apressado, ataa que vem a huu lugar
de Thiopya, que se chama Catadupya ; e dally
adyante jazem de baixo da madre per onde elle
vay huas penas muy grandes e muytas, e du
ram longa terra , as quaaes o quebrantam em
seu correr, e vay ferindo por aquellas pedras,
e fazendo muy grande arroydo, tanto que dizem
os sabedores que a duas legoas dally nom ousa
morar nhua molher prenhe, porque o spanto
do seu arroydo lhes faz logo mover as criaturas
que trazem. E saindo daquelles penacaaes , he
— 295 —
ja a força das auguas quebrantada , e o ryo fica
assy como cansado, pello qual vay a augua muy
mansa. E desque entra pellos chaãos do Egipto,
parte hi ja quantas ilhas, que ham outros no
mes que nom sohyam daver, e despois vay derey-
tamente ao mar, pero antes faz muytos lagos e
muitas lagoas, com que se regam todollos chaãos
do Egipto, e despois entra todo junto no mar,
acerca da cidade que ha nome Damyata.
— 296 —

CAPITOLLO LXir.

Do poderyo do Nillo, segundo os astronimos,


e de sen crecymento.

Qual serya aquelle que podesse departyr ta


manha contenda que ha antre os sabedores,
acerca do naci mento e poderyo deste ryo, ca
Alexandre, que foe o mais poderoso dos reis
aquem a provencia de Memfis do Egipto orava,
ouve envcja do Nillo, porque nom pode saber o
feito do nacimento delle , seendo senhor do
mundo ! E nom soomente foe esta cobiiça em
elle, mas ainda nos reis do Egipto, e nos de
Persya, c nos de Macedonya, e nos de Grecia.
Mas nós descreveremos aquy huíi pouco do seu
curso, segundo os astronamos, onde disserom,
que Mercuryo he raiz de alvidrio sobre as au-
guas, e que este ha poder sobrellas, e que
quando elle he em na parte do ceeo onde as es
trellas do sino do Leom se ajuntam a as estrellas
do sino do Cancro, ou aa estrella Sirvo, scili-
cet, aquella aque chamam Canicolla (1), donde

(I) Canicolla. Desta strella , segundo diz o espoedor do Ouvy


— 297 —
som chamados os dyas ca nicoi lares , lança os
fogos sanhudos pella boca, e mudasse ally o
cerco do anno, em que se muda outrossy o
tempo, ca saae estonces o estyo, e entra o ou
tono. E outrossy quando som os sinos de Ca-
pricornyo e de Cancro, sob quem esta a boca do
Nillo scondida , chegando a este lugar destes,
sinos a estrella de Mercuryo, que he sííor das
auguas, fere nas bocas, scilicet, naquelles lu
gares per onde mana o Nillo, estando debaixo o
fogo da sua estrella ; stonces abre o Nillo a sua
fonte e mana; e como crece o mar em os creci-
mentos da lua, assy saae o Nillo, como se lho
mandasse Mercuryo , e crecendo cobre as terras,

dyo, veeo o nome dos dyas canicollares, que som aquelles dyas
que se começom v. dyas de julho, e acabam v. de setembro.
E este nome procedeo de hua cadella, que guardava o corpo
de ícaro , quando foe morto pellos segadores , segundo conta
mestre Joham o Ingres (*). E diz que por quanto aquella cadella
guardava flelmente o corpo de seu Snõr, que foe scelliflcada
antre os signos ; e porque era pequena cadella, que se tomam os
dyas canicollares deste nome, canicullus, porcam, ou canicolla
por cadella. E porqve se empeçonhara aquella cadella de ícaro
do fedor de seu Snõr, que jazia morto e fedya ja , he empeço
nhada outrossy aquella strella , e porem se empeçonha o sol
quando por ally passa, cujos rayos empeçonham as vyandas da
terra , pello qual aquelles xxxij. dyas que o sol poem em passar
aquelle signo, ham os phisicos por dyas empeecivees pera a
saude dos corpos (**).
(*) Este autor e o famoso João Dum Seolo, religioso franciscano, cogno
minado o doutor subtil, um dos maiores filosofos da Idade Media, e pro
fessor em Oxford (Yidt Wadding, Vita J. Dum Seoli, docloris MStKKf,
publicada em 1644.
'**) Nola existente no Codice original , e escripla no mesmo caracter das
de pag. 10 , ti , IJ , II e Sí.
— 298 —
donde o Egipto ha todo seu principal mantii-
mento. E nom colhe as auguas , nem as torna a
a madre, ataa que a noite nom aja as horas
iguaaes do dya. Forom porem alguus que dis-
serom, que o crecimento deste ryo principal
mente era por razom das neves de Thiopya;
mas esto achamos que nom he assy, ca nom he
setentriamem aquelles montes de Thiopya, nem
nhua das ursas dos eixos, scilicet, Ellice e Ci
nosura (1) , nem a mayor nem a menor, que es
friem e façam as neves e as geadas ; nem o vento
nordeste que traz consigo a geada, outrossy
nom he ally. E desto he bem certa testemunha
o color meesmo daquelle povoo de Thiopya,
cujo sangue he queimado da grande queentura
do sol , que ha ally o poder de todo seu fervor,
e bafos de aurego, que antre os ventos he mais
queente; donde ham os homêes daquella terra
o collor muy negro, quanto mais que toda ca
beça de ryo, qualquer que seja , que por rezom
da geada ou neve que se a elle socorra, aja cre
cimento, nunca crece senom despois da entrada
do veraão, ca entonce se começam a derreter as
neves ou geadas , por rezom das quenturas;

(1) Ellice c Cenosura som os dous pollus, scilicet, artico e


antartico ; e diz o espoedor do Ouvydyo que a cada huu destes
dous sinos chamam Arcom,e que Arcom he pallavra grega, e
quer no latlm dizer tanto como Ursi , e em linguagem portu-
guez Ursas; e que outrossy chamamos setentriom a cada huii
destes signos (*).
(') Nota como a da pag. precedente. V.
— 299 —
mas o Nillo nem levanta tam altas as suas au
guas, nem crecem em elle ante do nacimento
daquella strella Ganis, nem chega a sua augua a
as ribeiras ataa que o dya seja igual da noite, e
esto he no mes de setembro, quando o sol en
tra no sino da Libra. No que bem parece que o
Nillo nom ha a ley das outras auguas ; mas
quando vay o ceeo destemperado em meo dos
grandes fervores do sol, entonces saae o Nillo
com seu crecimento , e esto he sob a cinta do
meo dya, que arde tanto que queima. E esto se
faz porque o fogo do eixo do firmamento, por
razom do seu crecimento, nom acenda as terras
e as queime. E he assy o Nillo como socorro do
mundo, porque quando se acende a boca do
Leom , e queima o Cancro aa sua cidade Syem
do Egipto (1), entonce crece este ryo contra as
bocas delles ambos, pera temperar o seu fogo,
aqual cousa he em extrema necessydade a as
gentes. E assy tem suas auguas sobre a terra,
nom as tornando aa madre, ataa que o sol nom
venha ao tempo do outono, e se abaixe, e cre-
çam as soombras em na cidade Meroe, onde as
arvores nom fazem soombra nehua no tempo
do estyo : tam dereito passa o sol sobre os cor
pos das cousas (2) ! E finalmente assy podemos
dizer ao grande poderyo do Nillo aquellas pal-

(1) Sj-ena.
(2) Vid. Strako, o qual cita os poços sem sombra durante <i
toltticio do verao (liv. XVII , pag. 605 ).
— 300 —
lavras que o Bispo Acoreo (1) rezoava delle a
Cesar, segundo screve Lucano : Oo , dizia elle,
poderoso e grande ryo , que te levantas do meo
do eixo do firmamento, e atreveste a levantaras
tuas auguas sobre as ribeiras, contra o sino do
Cancro, quando elle he no mayor poder do seu
ardor, e vaaes contra o nordeste dereito com
tuas auguas , e o teu cosso dá consigo no meo
do campo, e tornandote dally veens ao oci
dente, e despois tornas ao oriente, e a as vezes
te descobres em Arabya, a as vezes nas areas
de Libya , mostrandote aos pobos destas terras,
fazendolhe muyto bem e muyto proveito, ca
te nom poderyam ally escusar nem viver sem
ty; e estas som as premeiras gentes que te
veem! O teu poder he sayr em as estadas do sol,
que som hua em dezembro e outra em junho,
crecendo no ynverno alheo que nom he teu. A
ty he dado da natura de andar por ambos os
eixos do firmamento, scilicet, huu do seten-
triam e outro do meo dya; a tua scuma com-

(1) Azurara refere-se aqui ao Achoreo, summo sacerdote egyp-


ciano, de quem falla Lucano na Pharsulia, canto X; ao qual ,
sem lhe dar antes o titulo de sua dignidade , lhe deo o de bispo,
o que torna inintelligivel esta passagem sem um commentario.
A passagem a que Azurara se refere comera pelo seguinte
verso,
Vana fides veleram, Nilo, quod crescat in arva, etr.
Comparando -se este capitulo de Azurara com o episodio do
canto X da Phartalia , elaramente se vê que foi alli que elle bebeo
toda a descripçao que faz do Nilo.
— 301 —

bate as estrellas ; tam alta a fazes sobyr com teu


poderyo ! e ante as tuas ondas todallas cousas
tremem. Que te posso dizer senom que hes assy
como imbiigo do mundo, ca assy como as ani
mal lyas que jazem nos ventres das madres se
governam pellos imbiigos , per semelhante se
pode fazer comparaçom de tua grandeza nas
cousas da terra!
— 302 —

CAPITOLLO LXII1°.

Como as caravellas partirom do ryo, e da vyagcm que fezerom.

Todos estes segredos e maravilhas trouve o


engenho do nosso principe ante os olhos dos
naturaes do nosso regno; ca posto que todallas
cousas de que falley das maravilhas do Nillo,
per seus olhos nom podessem seer vistas, o que
fora impossível, grande cousa foe chegarem ally
os seus navyos (1), onde nunca he achado per
scriptura que outro alguu navyo destas partes
chegasse; o que he bem dafirmar segundo as

(1) Tam grande era a influencia da geografla systematica do*


antigos sobre a imaginação dos Portuguezes do seculo xv° que
chegando ao Senegal , e vendo que a agua era doce junto da
embocadura, e mui elara, do mesmo modo que a do Nilo (Nulti
fluminum ilulcior gustus est , dizia Seneca) , vendo os mesmos
phenomenos não duvidarão um só momento do descobrimento
do Nilo ilos Negros (do Niger).
Estes dois capitulos mostrão pois uma vasta erudição do A., e
ao mesmo tempo os conhecimentos historicos, e cosmograficos
dos nossos primeiros descobridores. Chamaremos ainda a atten-
ção do leitor sobre uma particularidade mui importante , a saber
que ao mesmo tempo que Azurara se mostra imbebido da leitura
dos AA. antigos sobre estas materias, do mesmo modo que os
nossos maritimos, estes comtudo, estudando-se o espirito de suas
— 303 —
cousas que no começo deste livro tenho dietas
acerca da passagem do Cabo do Bojador, e ainda
pollo espanto que os naturaaes daquella terra
ouverom quando viram os primeiros navyos, que
sehyam a elles pensando que era peixe ou outra
algua semelhante cousa natural do mar (1 ). Hora
tornando a nossa estorva , despois daquelle feito
assy acabado, voontade era de todos aquelles ca-
pitaães de se trabalharem de fazer hua honrada
presa , aventurando seus corpos a qualquer pe-
rigoo ; mas parece que o vento saltou ao sul ,
por cuja rezom lhe conveo de fazer vella. E elles
andando repairando pera veer o que o tempo
querva fazer, tornoulhe ao norte, com o qual
fezerom sua vyagem caminho do Cabo Verde ,
onde ja o outro anno fora Diniz Dyaz. E anda-
rom tanto atees que chegarom a elle toda lias
caravellas, afora a de Rodrigueannes deTrava-
ços , que perdeo a conserva , e fez depois a vya
gem que adyante sera contado. E scendo as cin-

palavras, provão que tinhão conhecimento do systema dos geo


grafos arabes a este respeito. Estes applicárlo a mesma denomi
nação aos dois rios, distinguindo-os em Nilo do Egypto, e em
Nilo dos Negros. Esta opinião de que o Níger era um braço do
Nilo ainda foi sustentada em os nossos dias por Jackson na sua
obra intitulada : An account of lhe empire of Marocco and lhe
districl ofSuze.
No tom. XIV dos Annales des voyages por Malte-Brun , 181 1 ,
e no tom. XVIII da mesma obra , pag. 350 , se encontra uma
curiosa analyse da dita obra de Jackson sobre a identidade dos
dois rios.
(1) Esta importante passagem é mais uma prova da prioridade
dos nossos descobrimentos na costa occidental d'Africa.
— 304 —
quo em dereito do Cabo, viram hua ilha, na-
qual sayrom por veer se era povorada , e
acharom que era erma, soomente acharom hi
grande multidom de cabras, deque tomarom
alguàs pera seu refresco, e disseram que nom
avya em ellas deferença das desta terra, soo
mente nas orelhas , que teem de moor gran
deza. Des y tomarom augua, e seguirom mais
avante, atee que acharom outra ilha, naqual
viram pelles frescas de cabras, e outras cousas,
perque conhecerom que ja outras caravellas se
guirom avante; e por certificaçom sua acharom
nas arvores entalhadas as armas do iffante , e
isso meesmo letras em que estava o seu moto.
Por certo eu dovido, diz o autor, se despois do
grande poderyo de Alexandre e de Cesar, foe
alguu principe no mundo que tam longe de sua
terra mandasse poer os malhoões de sua con
quista! E per estes sinaaes, que assy acharom
aquelles das caravellas em aquellas arvores,
conhecerom que ja alguas outras seguyam
avante ; e porem acordarom de se tornarem ; e
segundo ao dyante souberom , que a caravella
de Joham Gllz' Zarco, capitam da ilha da Ma
deira, fora aquella que ja seguya dyante. E
porque em terra eram tantos daquelles Gui
neus , que per nhuu modo nom podyam sayr
em terra de dya nem de noite , quis Gomez Piz
mostrar que querya sayr antre elles per bem ;
e pos na terra huu bollo, e huu spelho, e hua
folha de papel no qual debuxou hua cruz. E
— 305 —
elles guando vierom, e acharom assy aquellas
cousas, britarom o bollo, e lançaromno a lon
ge, e com as azagayas tirarom ao espelho, ataa
que o britarom em muytas peças , e romperom
o papel, mostrando que de nehua destas cousas
nom curavom. Pois que assy he, disse Gomez
Piz contra os beesteiros, tiraaelhe a as beestas,
se quer que conheçam que somos gente que lhe
poderemos fazer dano, quando per bem com
nosco nom quiserem conviir; mas os Guineus
veendo a teençom dos outros, começarom de
lhe envyar o retorno, tirandolhe esso meesmo
a as frechas e a as azagayas, dasquaaes trouve-
rom alguas a este regno. E som as frechas assy
feitas, que nom teem penas, nem mossa pera
entrara corda, soomente a moiz toda hua, e
som curtas e de boinhos ou de caniços, e os fer
ros que teem som longos, e delles som de paao
encastoados nas astas , que querem semelhar
fusos de ferro com que fyam as molheres em
esta terra , e teem esso meesmo outros arpoões
pequenos de ferro , as quaaes frechas todas
igualmente som empeçonhadas com erva. E as
azagayas som de sete ou oyto garfos darpoões
cada azagaya. E a sua erva he muyto peço
nhenta. E naquella ilha em que as armas do If-
fante (1) estavam entalhadas, acharom arvores

(I) Esta ilha , bem como a outra de que acima se faz menção,
onde estes maritimos encontrárão as armai do Infante entalhadas
nas arvores , achão-se mui bem marcadas entre Ca>>o Verde. e o
Cnbo dos Mastos na curiosa carta d'Africa do Atlas inedito de faz
10
— 306 —
muyto grossas destranha guisa, antre as quaaes
avya hua que era no pee darredor cviijo palmos.
E esta arvor nom tem o pee muyto alto se nom
como de nogueira ; e da sua antrecasca fazem
muy boõ fyado pera cordoalha, e arde esso
meesmo como linho. O seu fruito he como ca-
baaças, cujas pevides som assy como avellaãs,
o qual fruito comem em verde, e as pevides
secamnas, de que teem grande multidom , creo
que seja pera sua governança despois que o
verde fallece (1 ). Alguus forom ally quedisserom
que viram passaros, que lhe parecerom papa-
gayos. Ally acordarom todollos capitaães de fa
zer vella, com entençom de entrarem pello ryo
do Nyllo ; mas nom o pode acertar senom Lou
renço Dyaz, aquelle scudeiro do Iffante, o qual
por que era soo, nom ousou dentrar em elle,
porem foe com o batel onde filharom os Gui
neus aa ida ; tornou sse porem sem fazer hi

Dourado, feito em 1571. (Vid. Mémoire sur la navigation aux


côtes occidentales d Afrique , pelo almirante Roussin, p. 61. —
Des fles de la Madeleine.)
(I) Esta arvore é o baobab, arvore notavel pelas suas enormes
dimensões, e que se encontra no Senegal, no Gambia , e mesmo
no Congo , em cujo ponto o capitão Tuchlay a menciona entre as
arvores que se encontrão nas margens do Zaire. Esta arvore
tendo sido descripta por Adamon (Histoirenaturelle du Senegal,
Paris, 1 757, p. 54 e KM), Bernardo Jussieu lhe deu o nome de
Adansonia. O seu tronco tem algumas vezes mais de 90 pés de
circumferencia (vid. a obra citada).
Os nossos maritimos e Azurara a descreverão 310 annos antes
do naturalista francez , que lhe deu o nome botanico pelo qual
ella é hoje conhecida.
— 307 —
cousa que de coutar seja ; e porque nom achou
mais a conserva, veossc dereitamente a Lagos.
E Gomez Piz per essa guisa perdeo a companha
das outras cara vel las , e seguindo sua vyagem
contra Portugal , despois que tomou augua da
ilha deErçym (1), veo ao ry o do Ouro (2), pello
qual sobyo atee o porto em que no outro anno
forom elle, e Antam Goncalvez, e Diegaffonso ;
onde logo chegarom os Mouros, per segurança
dos quaaes ouve sabedorya que nom estavam
ally mercadores. Venderonlhe porem huu ne
gro em contya de cinquo dobras, em alguãs
cousas que lhe por ellas deu. Ally lhe trouve-
rom augua nos camellos , e lhe derom carnes ,
e lhe fezerom assaz de boõ gasalhado; e sobre
todo lhe mostrarom tanta fyança , que sem
nhíiu empacho entrarom tantos em sua cara-

(1) Àrguim. (Pid. nota 2 de pag. 99, e 1 de pag. 1 67, e p. 246.)


(2) Alguns AA. francezesque tratarão ultimamente do celebre
Atlas catalão da Bibliotheca R. de Pariz, e ao qual assignão a
data de 1375, pretendem que os Catalães forão ao Rio do Ouro
antes dos Portuguezes, em razão de se ver uma galiota com uma
legenda relativa a Jorques Ferrer, que se dirigia a um rio d'a-
quelle nome. Sem discutirmos aqui este ponlo, diremos todavia
que o leitor deverá consultar iicerca desta viagem dos Catalães,
cuja chegada ao dito rio não é attestada por documento algum ,
a carta de M. 'Walekenaer publicada no jornal scientifico .-innalcs
iles voyages, tom. 7, anno de 1809, p. 246, na qual este sabio geo
grafo diz com bons fundamentos que a dita legenda, c projecto
de viagem àeJncques Ferrer não provão de nenhum modo que os
conhecimentos geograficos se estendessem em 1346 além do
Cabo Bojador, nem mesmo alem do Cabo Não (vid. igualmente a
nossa Memoria sobre a prtorulade dos nossos dcscohrimvntos , e o
Atlas que acompanha a dita Memoria ).
— 308 —
vella, deque a elleja nom prazya, nom con
sentindo que mais entrassem ; empero aa fym,
sem lhes fazer nhuu desaguisado, os mandou
poer em terra, ficando com elles em concerto
que no outro anno, no mez de julho, tornasse
ally, onde acharya negros em avondança, e
ouro , e mercadarias em que muyto poderya
aproveitar. Trouxe ainda Gomez Piz daquella
vyagem muytas pelles de lobos marinhos, de
que perfez carrega a seu navyo , e tornousse
pera o regno (1).

(1) Por esta passagem e pelas dos cap. x , xi e xvi , se prova que
as relações commerciaes dos Portuguezes com a costa Occidental
d'Africa alem do Bojador se estabelecerão antes do meado do
seculo Xv°, cujo commercio d'importação consistia por então em
ouro em j>ó, escravos, e pelles de phoca.
— 309 —

CAPITOLLO LXIIII°.

Como Lançarote e Alvaro de Freitas filharom doze Mouros.

Desarrezoado serya nom tornar com o conto


destas caravellas ao lugar donde as primeiro le-
vey, e pois ja das outras disse como se tornaT
rom pera o regno, querovos contar os aqueeci-
mentos das outras; e direy logo de Lançarote e
dAlvaro de Freitas. E foe assy, que seendo com
estes ambos Vicente Dyaz, aquelle que ja dis
semos que o Guineu fervo na praya do Nillo,
per acertamento se partyo da companhya dos
outros; e por quanto era de noite, nom pode
tam cedo tornar a sua companha. Mas entre
tanto elle assy anda soo, he bem que digamos
dos aqueecimentos dos outros , os quaaes nom
bem contentes da presa que levavom, firma-
ronse ambos de trabalhar por acrecentar em seu
primeiro guaanho , e seguindo vya de Tider,
onde pensavam de achar ainda algua cousa em
que podessem fazer presa , chegarom aa ponta
de Tira (1), onde fallarom com sua companha

(I) Ponta de Tira. {fid. nota de pag. 220.)


— 310 —
dizendo : como sabvam que aquella terra era po-
vorada, pollo qual lhes parecya que serya bem
sairem fora, trabalhando por veer sepoderyam
aver alguu percalço ; no qual movimento nom
ouve outra referta , senom que fezessem como
lhe prouvesse, ca elles ja sabvam que capitaães
tiinham , dos quaaes nom podya sayr conselho
senom proveitoso. Os batees forom logo prestes,
e os capitaães com suas gentes em elles, leixando
porem suas caravellas acompanhadas como com-
pria. E daquelles que eram nos batees poserom
alguus fora que fossem per terra, e os outros
que fiearom nos batees hiiam per a furna da
terra. E hindo assy huíis e os outros per sua
vya, disserom os da terra como achavam ras
tro dhomeês que per ally passarom, e ainda
que lhes parecia fresco, noqual achavom rastro
de molheres e moços. Seguii empos elles, disse
rom os capitaães, ca pois tam fresco he nom
podem os que o fezerom seer dhi allongados. A
voontade que era boa , e o rastro bem conhecido,
levou aquelles muy grande pedaço, nom veendo
ainda os Mouros que buscavom, entanto que
alguus avya hy que disserom que semelhante
ida passava o razoado, porem que se tornas
sem ; mas outros mais acesos na cobiiça do
guaanho, nom curarom das pallavras daquelles,
seguindo todavya sua vyagem. E indo assy nom
muy longe dal ly, trespoendo híiu medom darea,
viram os Mouros que hyam em huu baixo.
Hora , disserom aquelles que ally levavam car
— 311 —

rego de capitaães, contra os outros, podees


mostrar vossas boas voontades, trabalhando no
seguimento daquelles contrairos ! E como quer
que elles ja fossem alguu tanto trabalhados,
pareceolhe que a aquella hora sayrom dos na-
vyos : tam grande voontade avyam de chegar a
elles ! o qual em breve espaço poserom em obra,
ca se nom poderom os Mouros sayr muyto longe
que os elles nom encalçassem, c alguus que se
trabalharom poer em defesa, em breve conhe
cerom o erro de sua sey ta , ca sem algua piedade
os matarom muy asinha, deguisa que nom lica-
rom vivos mais de xij, que com sigo trouverom
presos. E como quer que a presa nom fosse
grande em comparaçom doutras que se ja fe-
zerom em aquella terra, forom todos com ella
muy ledos, mais polla vitorya seer assy avida
com tam poucos, que polla parte do guaanho
que a cada híiu aconteeya.
— .312 —

CAPITOLLO LXV°.

Como Lançarote, e Alvaro de Freitas, e Vicente Dyaz ,


tomarom lvij. Mouros.

Cobrada assy aquella pequena presa, ouve-


rom os capitaães seu acordo de se irem dereita-
menteaa ilha de Ergim, pera tomarem hi augua
que lhes era mester, e que ally fallassem sobre
a vyagem pera onde serya dally adyantc. E
chegando aa dieta ilha, aqual primeiramente
mandarom descobryr por sua segurança ; e
tanto que sentirom que a Ilha era despachada
dos imiigos, sairom todos em terra, e despois
que tomarom híia pequena folga , carregarom
sua augua, comque singullar prazer avyam,
ca huus dos principaaes refrescos comque a
gente do mar folga despois que anda per dyas
em elle, assy he a boa augua, quando quer que
som acerca della. E repousando assy aquella
noite, estando no outro dya pera teer seu con
selho, começou huíi de dizer como lhe pareeya
que vya hua vella que viinha contra elles, e
esguardando todos pera ello, conhecerom que
era caravella, aqual presumiram seer a de Vi
— 313 —
cente Dyaz, que pouco avya que perdera sua
conserva; polla qual sobresscverom de seu con
selho, porque queryam que todos se ajuntassem
a ello. Viinda a caravella antreelles, requere-
rom Vicente Dyaz que lhe prouvesse sayr em
terra pera estar em aquelle conselho. Amigos,
disse elle, vós averees paciencia ataa que esta
gente vaa receber alguu refresco com augua
desta ilha, de que todos viimos demuy desejo
sos. Acabado seu refresco , começarom seu con
selho, noqual os capitaães proposerom como
sua tençom era trabalhar ainda quanto podes-
sem por fazer algua presa, ca tornando com
tam pequeno proveyto, era escarnho pera taaes
pessoas. Amigos, disserom alguíis, logo vossa
tençom serva boa se homem tevesse lugar apa
relhado emque trabalhando sperasse receber
proveito; mas esta terra como sabees, he ja
toda revolta, e mil vezes foeja tresfegada, eas
caravellas andam per aquy cada dya (1 ), de guisa
que nom ha hy Mouro, por neiceo que seja,
que ouse teer pee per toda esta terra, ante se
gundo rezom , devem seer amedorentados e
fugidos pera o mais longe que poderem ; pello
qual nos parece que sera bem que nos conten
temos da presa que teemos, e que nos vaamos
em boa hora vyagem do nosso regno, e nom
despendamos o tempo em cousa que tam conhe-

(I) Compare-se com o que fica dito em as notas 2 de p. 99,


e 1 de p. 167.
— 314 —
cidamente sabemos que nos nom pode fazer
proveito. A verdade he, disserom outros, que
esta terra esta assy revolta, como vós dizees,
pollo qual de duas cousas sera hua : Ou os
Mouros seram daqui muy allongados; ou se
esteverem staram percebidos de guisa que sem
receo possam esperar qualquer cometimento
contrairo, que lhe feito secr possa, eonde nós
cuydamos de filhar, per ventura nos filharam ;
e ainda que homem al nom sguardasse, senom
o que aconteceo a as cara vel las de Lixboa , as
quaaes tcendo ja carrega comque razoadamente
poderam tornar, quiscrom poer seu feito em
aventura, donde se lhe seguyo o que ouvistes.
A terceira voz, que era dos capitaães, e assy
dalguus outros speciaaes, foe retardada alguu
pouco, mas todavva disserom, que a sayda nom
se scusava. Vós sabees, disserom elles, como da
ilha de Tider (1) som mortos alguus Mouros, e
outros filhados, de guisa que ja nom som no
conto do primeiro numero , e aquelles que fica-
rom estam meos veencidos, porque ja como
vistes , fogiram ante as pontas das nossas lan
ças, como gente que nom ousou de provar com
nosco sua força. Porem nós vaamos veer se

(I) Ilha junto aj^rguim (viã. nota 1, p. 117, e nota 1 de


p. 246). Acrescentaremos todavia ao que alli dissemos , que esta
ilha, bem como a das Garças e do Nar, se achão mui distincta-
mente marcadas na carta inedita de ' az Dourado , mas sem os
nomes dados nesta chronica. Aquelle cosmografo comprehendeo-
as todas debaixo da denominarão de Ilhas das Garças.
— 315 —
acharemos hi alguus, ca se elles hi estam, nom
pode seerque do sevo ou da laã lhe nom levemos
hua enxavata ; e se per ventura a ilha for despo-
vorada, poderemos dello dar certo testemunho
ao senhor Iffante nosso snõr, pello qual se pare-
cerya que nossa viinda nom fora sem grande
proveito, pois nom soomente abastou aos Mou
ros de nos fogirem hua vez , mas ainda com
nosso medo leixarem de todo suas choças, e
terra emque nacerom e viverom. Bem estavam
neeste conselho os mais daquelles principaaes,
mas a outra gente mais baixa qucryam todavya
que se nom tremetessem doutra cousa senom de
se tornar pera o regno. Empero ouverom de
consentyr no acordo dosque mais vallyam, e
milhor entendyam que elles, e assy começarom
logo de avyar sua ida , e ante da noite chegarom
acercada ilha, onde lançarom suas ancoras,
nom muy chegados a ella, stando ally ataa que
viram que o sol acabava seu diurnal trabalho.
E seendo ja o ceco cubcrto do crespuscullo da
noite, lançarom seus batees fora, e meteronse
em elles, e foronse meter no braço que vay da
parte da terra, como quer que ante da terra sta
outra ilha Cerina (1). E sairom fora, e forom a
Tider, mas nom acharom hi ninguem ; pello qual
se tornarom a recolher a seus batees, e forom assy

(I) Ilha Cerina. Combinando o texto com a excellente carta


de faz Dourado, se vê alli marcada esta ilha mais proxima ao
continente , e é a que fica tambem mais proxima da embocadura
do Rio de S. João. Dourado marca Arguim ao N., c ao S. do
— 316 —
avante, em guisa que era ja sol saido. E Lança
rote sayu da parte de Cerina , e foe per terra ,
mandando aos batees que fossem pella augua ;
e quando virom que nom achavom nada , disse
Lançarote aos outros, que era bem que fossem
avante aa ponta de terra ; e forom todos acor
dados em ello. E em se querendo correger e re
colher pera se yrem , ouvyo Lançarote zurrar
huu asno. Pareceme, disse elle contra os outros,
que ouço o zurro de huu asno; sentemos que
vejaaes prazer, ca per ventura quer Deos que
nom partamos daquy sem presa. E porque nom
era duvydanoqne elle ouvira, disse que o spe-
rassem ally todos, e que irya sobre huus me-
dooes veer que podya seer aquello. E esperando
assy os outros, sobyo elle sobre os montes da
area, donde esguardando pera todallas partes,
vyu os Mouros onde estavam , pero muytos
mais queelles, os quaaes corregyam seus asnos,
e apanhavam suas fardagees, como homeês que
queryam dally partyr, com pouco cuidado do
que lhe a poucas horas avya de sobre viir. Ver
dade he que elles se trabalhavam de partyr,
mas nom cuidavam que pera tam longe ! E po-

P. dos Reys marcou quatro ilhas que são a das Garças, do Nar,
de Tider, e esta de que falla Azurara.
Na carta de d'Anville que se encontra na obra do P. Labal,
Nouvelle relation d'Afrique , t. I , carta que comprehende a
parte da costa desde o Cabo Branco até ao Rio de S. João, se \è
sobre uma ilha junto da de Tider : Grine , que nos parece ser a
Cerina aVAiurara,
— 317 —

rem Lançarote tanto que os teve vistos, muy


passamente se deceo donde estava pera viir dar
novas aos outros, as quaaes ja sabees quanto
seryam allegres. Hora, disse elle, Deos seja
louvado ! Nós toemos o que buscavamos ; Mou
ros estam ally prestes pera se partyr; elles som
mais que nos : se querees trabalhar a vytorya
he nossa. Esforçaae vossos coraçoões, e aguçaae
vossos pees, ca no primeiro topo está toda parte
de nossa vitorya. Nom he pera dizer o alvoroco
em que todos ja estavam, ca scassamente Lan
çarote ouve acabadas as pal lavras, quando ja
todos aballavam; pero tanto fezerom de bem,
que forom sem arruydo, ataa que forom sobre
os medoões ; mas ja quando ally chegarom,
nom podyam postar com suas voontades que se
nom trigassem pera braadar. E quando pare
cerom sobre os Mouros, alevantarom suas vo
zes, as quaaes nom eram menores do que a
força de cada huu podya ; as quaaes ouvydas
dos Mouros forom ruuyto spantados e torvados.
Os nossos começarom de correr braadando com
seus acustumados apellidos, scilicet, Sanctyagò!
Portugal ! e Sam Jorge ! cujo soom nom era
muy gracioso aos contrairos, de guisa que nom
ouverom vagar de poer as albardas sobre seus
asnos, e os que tiinham as trouxas ao pescoço
descarregavanse dellas, e o que mais era, que
alguns que tiinham os filhos sobre seus ombros,
veendo come os nom podyam salvar, leixavam-
nos cayr no chaão, ja sabees com camanho
— 318 —
quebranto ! E assy com esta angustura come-
çarom de fogir, nom todosjuntamente nem per
huu caminho, mas cada huu pera sua parte,
leixando ja de todo , sem algua sperança de re-
medyo, as molheres e filhos. Bem he quealguus
avya hy que pero ja conhecessem seu manifesto
desbarato, tiinham coraçoões pera mostrar sua
defesa, os quaaes muy asinha eram despacha
dos da vida. E finalmente forom ally presos
per toda gente lvij ; alguus forom mortos, e
outros fogirom. Oo e se assy fora que em
aquestes que fogyam ouvera huu pequeno de
conhecimento das cousas mais altas! Por certo
eu creeo, que aquella meesma triganca que le
vavam fogindo, trouveram por se viir pera
onde salvassem suas almas, e repairassem suas
vidas; ca pero a elles parecesse que vivendo
assy vivyam livres, em muy to mayor cativeiro
jaziam seus corpos, consiirada a desposiçom da
terra e a besteallidade da vida , doque antre nos
eram vivendo em senhoryo alheo, quanto mais
a perdiçom das almas que sobre todallas cousas
del les devera secr mais sentida. Por certo ainda
que os olhos corporaaes nom conhecessem al
gua parte desta bemaventurança , os olhos do
verdadeiro conhecimento, que he a alma limpa
com infunda glorva, recehidos em este mundo
os sanctos sacramentos, com algua pequena de
fe partidos desta vida , em breve poderom co
nhecer o primeiro erro de sua ceguydade. Aquy
fezerom estas tres earavellas fim daqiiella vya
— 319 —
gem, tornandosse pera o regno, nom pouco
contentes polla avantagem que sentvam dos
outros no encontro de sua derradeira presa.
Mas agora fallaremos dos que ainda ficam no
mar, por vos darmos conto de todo seu aquee-
cimento.
— 320 —

CAPITOLLO LXVI0.

Como se ajuntarom de companhya Rodrigueannes,


e Dinis Dyas.

Pesame porque nom posso em esta storya


guardar aquella dereita forma que de rezom
devya, porquanto a sua materya toe assy trau-
tada que muytas vezes me he necessaryo fazer
capitollo, onde se fosse per outra guisa podya
passar com duas pallavras , assy como em este
presente, que por ajuntar a caravella de Ro
drigueannes com a de Dinis Dyaz, me conveo
fazer nova rubrica ; as quaaes partidas da com
panhya das outras, andandoas buscando, se
vierom ajuntar. E veendo como da outra com
panhya nom podya m saber mais parte, fezerom
sua conserva ; mas doque lhe despois aveo fal-
laremos adyantc.
— 321 —

CAPITOLLO LXVII°.

Como as cinquo caravellas se tornarom pera o regno,


e do que ante fezerom.

Assy como ja dissemos nos outros capitollos,


passarom estas cousas segundo lhes a fortuna
apresentava os aqueecimentos. E porque torne
com todallas caravellas a Lagos, como tenho
prometido, e ainda necessareo, quero em este
presente capitollo fallar daquellas cinquo, que
se partirom da companhya despois do barreja-
mento da ilha de Tider, onde era aquelle hon
rado cavalleiro Sueiro da Costa , aleaide de
Lagos, c assy outros quatro capitaães, vizinhos
e naturaaes daquelle lugar, os quaaes acordados
de se tornar, como ja teemos dicto, fallarom
antre sy no prosseguimento de sua vyagem,
parecendolhes que a primeira presa era pouca
cousa, ainda que honrada fosse, em comparaçom
de seu grande trabalho e despesa. Nós, disserom
alguus, nom podemos ja mudar nosso primeiro
conselho quanto aa determinacom de nossa tor
nada, assy por a pequena grandeza de nossos
navyos, como por nom parecermos homeês de
— 322 —
muytos acordos ; mas sera bem que vaamos
todavya nossa vyagem, e que provemos se po
deremos no caminho cobrar algíia cousa pera
ajuda de nosso guaanho, ainda que segundo
rezom , deve seer pouco, pollas muytas viindas
que os nossos navyos ja fezerom a esta terra ;
empero nom leixemos de tentar, e per ventura
nos dara Deos alguu boõ aqueccimento ; mas
pera se esto encaminhar com alguu fundamento
de rezom, nom teemos outro lugar mais aaza-
do, pera em nosso trabalho avermos algua
sperança de vitorya , soomente chegarmos a
aquelle braço de mar que he no Cabo Branco,
pello qual entrando veremos ataa hu chega; e
pode seer que se muyto entrar per terra, que
acerca delle acharemos algua cousa em que fa
çamos algua presa; e quando nom, pouco tra
balho podemos hi oferecer. Todos acordarom
seer bem dicto o que aquelles primeiros disse
rom ; e navegando contra Ia, chegarom ao dicto
ryo, noqual entrando híia peça, ancorarom
seus navyos, e des y saindo em seos batees,
começarom de trabalhar por chegar aa fim do
ryo, pello qual seguindo quatro legoas, chega
rom ao cabo delle (1), onde acordarom de sayr

(1) Sobre a posição deste rio, vide a carta de d'Anville ,


publicada na obra do V° Labat, Nouvelle relation de l'Afrique,
tom. I ; e Mcmoirc tur la Navigation aux côtes occidentales
d'Afrique, pelo almirante Roussin, a pag. 44, o que alli diz da
Raie du Lévrier, a qual tem 8 legoas de estencão Norte Sul , e 6
de largo. Esta bahia , em que entrárAo os nossos maritimos, fica
ao IN. do Cabo de Santa-Anna.
— 323 —
fora por veer se acharyam algua povoraçom
em que podessem filhar alguas almas pera aju
darem a pouquidade da primeira presa. Empero
esfriados em sy meesmos de cobrarem nhua
cousa, segundo sabyanTque a terra era perce
bida e tantas vezes revolta , soomente se traba
lhavam em ello costrangidos de necessydade, ao
menos por dizerem aos companheiros, que sai-
rom fora. E saindo assv, envvarom dvante
descobrir a terra , mas nom seguirom muy
longe, quando viram ante sy huas poucas de
casas, sobre as quaaesforom muy trigosamento
sem sperarem nhuu acordo, onde acharom al-
guus Mouros poucos, dos quaaes filharom oyto.
E querendo per elles saber se avya hi acerca
algua outra povoraçom, e pero ameaçassem al-
guus delles, nunca poderom al saber, soomente
que per toda aquella terra nom avya outra
nhua povoraçom, e em esto se acordarom todos
oyto, apartados cada huu per sua vez, pello qual
lhes foe necessaryo tornarem pera seus navyos,
com entençom de nom lilhar mais trabalho,
soomente de se tornarem pera suas casas, pois
trabalhando conheciam que nom podyam ja
mais aproveitar. No qual acordo forom todollos
outros das caravellas, soomente o aleaide de
Lagos, que disse que querya ainda tornar a
Tider pera fazer huu resgate de hua Moura e de
huu filho do snõr dally ; e como quer que fosse
conselhiulo do contrairo, nunca quis sayr de
seu proposito, ainda que ao despois foe bem
— 324 —

arrependido ; ca chegando aa ilha, começou de


fazer seus sinaaes aos Mouros, que logo vierom
aa ribeira tanto que viram que a caravella vii-
nha contra elles. E ouve del les huíi Mouro por
sua segurança, entregando elle omeestreda ca
ravella, e huíi Judeu que era em sua companhya,
os quaaes teendo os Mouros em seu poder, a
Moura de que o aleaide querya fazer o resgate
lançousse aa augua, e como cousa husada em
aquelle trabalho, em muy breve sayu em terra
antre seus parentes e amigos; pello qual os
Mouros teverom que nom devyam leixar assy
os arrefeês sem avantagem do que primeiro tii-
nham em voontade, e finalmente nunca quise-
rom entregar os que tiinham ataa que lhes
dessem tres Mouros ; aqual cousa pero fosse
grave de fazer ao aleaide, vista a necessydade
condecendeo a ello, reprendendo sy meesmo,
porque nom estevera pello primeiro conselho.
E visto como naquelle resgate nompodya mais
aproveitar, tornousse pera o regno.
CAPITOLLO LXVIII°.

Como a caravella de Alvaro Goncalvez Datayde, e a de Picanço,


e a outra de Tavilla, fezerom conserva e dos Canareos
que filhai om.

Contado avemos nos outros capitollos como


a caravella de Tavilla , e a outra de Picanço ,
se partirom da companhya das outras quando
forom pera Guince, onde lhe aconteceo de se
acordarem de tornar pera Portugal. E em tor
nando sua vyagem , encontrarom com a cara
vella de Alvaro Goncalvez Datayde, naqual era
capitam huu Joham de Castilha, e preguntan-
dolhe pera onde hya , lhe disse como seguya
vyagem de Guinee. E que presta, disserom os
outros, vossa hida a tal tempo, ca nós viimos
ja della, como veedes , e o tempo he sobre o
ynverno, pello qual se mais quiserdes seguyr,
poerees vossa vida em perigoo, com pouca hon
ra e menos proveito, porem se vos prouver
seguyr nosso conselho, tornaevos com nosco,
e iremos aa ilha da Palma, onde veremos se
poderemos cobrar algua presa daquelles Ca
nareos. E como quer que Joham de Castilha
— 320 —
duvidasse de tal tornada, por lhe nom parecer
cousa segura pollas novas que avya dos mora
dores daquella ilha, que eram trabalhosos de
filhar, porem constrangido das rezoões dos ou
tros, ouvesse de tornar com elles; os quaaes
viindo assy todos juntamente, chegarom aa ilha
de Gomeira , naqual querendo sayr em terra ,
viram muytos Canareos , dos quaaes ouverom
segurança , ante que de todo saissem de seus
batees. Os Canareos lha outorgarom sem nhua
referta, come homêes que tiinham suas voon-
tades mais inelinadas a lhe aproveitar que a
empecer. Ally chegarom logo dous capitaães
daquella ilha, dizendo como eram servidores
do iffante dom Henrique, e nom sem grande
rezom , ca elles (brom ja em casa delRey de
Castella e delRey de Portugal , e que nunca em
algíiu delles acharom as mereces que despois
ouverom do iffante dom Henrique; ca seendo
em sua casa acharom em elle muy boõ acolhi
mento em quanto em ella esteverom, e em fim
que os vestira muy bem, e os mandara em
seus navvos pera sua terra , pello qual eram
muyto prestes pera todo seu serviço. Pois, dis-
serom os outros das caravellas , e nós seus cria
dos e servidores somos, e por seu mandado
partimos de nossa terra , onde se vós tal voon-
tade teendes , em tempo sooes que o podees bem
mostrar, ca nós queremos hir aa ilha da Palma
pera provarmos de filhar alguus cativos, naqual
nos compria bem vossa ajuda , querendo envvar
— 327 —
com nosco alguus daquestes vossos sobditos,
pera nos ajudarem e encaminharem, porque he
terra que nom sabemos, nem ainda avemos co
nhecimento das maneiras que teem os seos mo
radores acerca de sua pelleja. Bruco, avya nome
huu daquestes capitaães, e o outro Piste, os
quaaes juntamente responderom, que lhe p razia
de trabalhar sobre qualquer cousa que serviço
fosse do snõr Iffante dom Henrique, e que da
vam muytas graças a Deos por lhe trazer aazo
emque podessem mostrar quanto tiinham de
boas voontades pera ello; e por vós veerdes,
disse o Piste, o desejo que eu tenho de o servir,
eu quero ir com vosco ; e levarey com migo
tantos Canareos quantos vós quiserdes. Vergo
nha me parece, diz o autor, que faz o agradeci
mento destes homees, a muytos que mayores e
milhores cousas receberom deste nosso principe,
e nom chegarom com grande parte aa perfeiçom
deste [conhecimento. Oo camanho doesto pera
aquelles que se criarom em sua camara, e os
pos ao dyante em dignidades e senhoryos , e
esqueecidos daquesto, o leixarom no tempo em
que seu serviço trazya necessidade ! cujos feitos
e nomes diremos na estorya do regno, onde
fallarmos do cerco de Tanger. Assy se ofereceo
aquelle capitam com sua pessoa e gentes, dos
quaaes logo fez meter nos navyos quantos os
capitaães quiserom receber ; donde trigosa-
mentefezerom vella, guyando vyagem da outra
ilha da Palma, onde chegarom pouco menos <le
— 328 —
nienhaã. Econio quer que a rezom a tal tempo
nom consentisse sairem em terra, acordarom
todavya sairem logo, porque, disserom elles,
scalgíia cousa aguardamos, pois ja somos vistos,
toda nossa presa sera trabalho perdido, ca os
Canareos se poeram em salvo, e saindo logo,
alguus poderemos filhar, ca posto que ligeiros
sejam, antre nós avera taaes que os seguiram,
e nom pode seer que os senhores daquelles gaa-
dos que per ally andam ante nossos olhos, nom
acudam pera os recolherem , ca sua condiçom
he trabalharem por elles acerca tanto como por
sy meesmos. E ja seja que semelhante acordo
fosse periigoso, todavya ouve lugar antre todos
aquelles; e assy despachadamentc forom logo
postos na praya tam bem os Portugueses, como
os Canareos. E indo assy nom muy afastados
da ribeira , viram como os Canareos hyam fo-
gindo, e em os começando de seguyr, disse huu
da companhya contra os outros : Pera que he
filhar trabalho de balde, correndo apos aquelles,
ca por muy to que trabalhees ja os nom avees
dacalçar; mas sygamos aquellas ovelhas e car
neiros, que vaao por aquella fraga, ca certa
mente todollos demais daquelles que os seguem
som moços e molheres, ese os bem seguirmos,
forçado he que alguus delles filhemos. Cujas
pallavras ainda nom tiinham fim, quando todos
começarom de correr, leixando os outros Cana
reos, cujo encalço ja começavam seguyr. Mas
aquelles pastores entrarom com seu gaado em
— 329 —
huu valle, tam fundo e tam riscado, que mais
era de maravilhar que de fallar como as gentes
em elle podyam fazer passagem. Porem os
xpaãos , assy Portuguezes como os Canareos , os
seguirom com tal força, que ja quando os pri
meiros começarom dentrar no valle, jaos nossos
eram acerca delles, e assy de golpe entrarom
per o valle, per tal guisa, que aos pastores foe
forçado de se embarrarem per as fragas das
penedyas, cuja aspereza era cousa maravilhosa;
mas muyto mais de maravilhar era a soltura
comque os Canareos daquella ilha andavam per
aquelles penedaaes, assy come cousa que em
mamando o leite nas tetas de suas madres, co
meçarom a andar per aquelles lugares. E assy
como osSillos ou Marmoreos que vivem a allem
do deserto de Libya conhecem seus filhos seer
de seu legitimo matrimonyo, se logo em sua
primeira puericia sem alguu temor trautam
com as maãos aquellas grandes peçonhas da-
quellè deserto, que lhes pellos padres som
apresentadas ; assy os Canareos desta ilha teem
que os seus filhos, nom nacendo com esta sol
tura, forom geerados per alguu adultervo con-
trairo. Mas que serva dos nossos naturaaes ,
querendo seguyr apos elles, ca pero vissem
tanta aspereza nom leixarom de os seguyr ; onde
huu mancebo de nobre coraçom , correndo per
aquelles penedos, scorregou de hua muy grande
e aspera fraga, e caindo morreo. E nom pensees
que este dano soomente aconteceoa aquelle na
— 330 —
tural de nosso regno, ca muytos Canareos Cai
rom per aquella guisa, e morrerom, ca como
quer que assy fossem dados per antiga natureza
a andar por aquellas penas, com a pressa dos
contrairos que sentyam acerca de sy, avendoo
por seu derradeiro remedyo, quanto a fraga era
mais aspera, tanto elles com milhor voontade
seguyam pera ella, pensando que os imiigos
temeryam de os seguyr. E se aquelle Diego
Goncalvez, moço da camara do Iffante (de que
ja falley no capitollo onde disse como se lançara
primeiro a nado na ilha onde tomarom os Iviij.
Mouros) ouve louvor por sua avantajada fortel-
leza , bem lho posso acrecentar agora muyto
mais, como a aquelle que antre os outros bem
se mostrou seer special em aquelle dya ; onde
por certo com grande razom posso eu reprender
a fortuna, porque seendo este mancebo gallar-
doado de seu senhor o Iffante per novo casa
mento em a cidade de Lixboa, teendo em sua
casa junta sua riqueza em grande abastança
pera sostentamento de sua vida, lhe sobreveo
fogo per negligencia de huíi seu servidor, oqual
lhe queimou todallas cousas que avya; e em
tanto lhe foe a fortuna graciosa, que lhes leixou
huus proves vestidos com que scaparom da
dieta casa ! O trabalho dos nossos foe grande
em este dya, nom tanto polla pelleja, pero assaz
de periigosa fosse, speeiahnente polla multidom
das pedras, com que os Canareos principal
mente guerieam seus contrairos, ca som muy
— 331 —
braceiros, e muy certos em seus tiros, e gra
vemente podem per outrem seer feridos, por
que assy sabem furtar seus corpos de golpes ,
specialmente de cousa remessada, que tarde e
per grande ventura, por ponteiro que o homem
seja, os pode acertar, trazendo outros armas
bem concordantes ao seu bestyal viver, scilicet,
híias lanças compridas, com cornos agudos nas
pontas por ferros, e outros semelhantes por
contos. Mas que o trabalho assy fosse grande,
era porem fremoso de veer, ca quem vira sua
escaramuça revolta per tal guisa e em tal lugar,
os xpaãos ocupados em prender os Canareos , e
apartar o gaado dantre elles por milhor aazo de
sua presa, e Os contrairos apressados por salva
rem suas vidas e reguardarem seus gaados o
milhor que podyam; — teerya que era mais
deleitosa tal vista que outra algua que carecesse
desta fim. E assy foe a presa daquelle dya xvij.
Canareos, antre homees e molheres, com as
quaaes filharom hua, que era de desarrazoada
grandeza pera molher, aqual diziam que era
rainha de hua parte daquella ilha. E despois
que assy teverom seus prisoneiros e o gaado
recolhido, comecarom de se retraer pera seos
batees, onde dos Canareos forom assy seguidos,
que foe necessaryo de lhe leixarem a mayor
parte do gaado que lhe trazyam filhado; pollo
qual os nossos ouverom assaz trabalho em seu
recolhimento.
— 332 —

CAPITOLLO LXIX0.

Como tomarom certos Canareos sobre segurança.

Seendo ja todos em seus navyos, levantarom


as vellas, tornandosse pera a outra ilha donde
ante partiram; e porque ouverom assaz ajuda
daquelles primeiros Canareos que tcveram com-
sigo, agradecerom muyto a aquelle capitam,
em nome do Iffantc seu snõr, o trabalho que
filhara por seu serviço, e muyto mais a boa
voontade com que o fezera , poendo em spe-
rança de receber por ello outras muyto mayores
mercees das que ata ally recebera. E certa
mente que sua promessa nom foe em vaão, ca
despois veo a este regno aquelle capitam que se
chamava Piste, com outros daquella terra, c
ouverom assaz mercees e gasalhado do Iffante,
pello qual bem creo que nom forom arrepren-
didos de seu primeiro trabalho. E desto posso
eu, que esta storya ajuntey e ordeney, seer
certa testemunha, ca meacertey de seer no re
gno do Algarve, em casa deste principe (1), ao

( I ) Compare-se esta passagem com o que dissemos em a nota


de pag. I5G, ácerca da autoridade desta chronica.
— 333 —
tempo que estes Canareos hi andavam, e vy bem
como eram trautados. Empero creo que aquelle
capitam e alguus dos que comelle vierom, du
rarom tanto em este regno, ataa que em elle
fezerom fim de suas vidas. E disse ja como
Joham de Castilha, que era capitam daquella
caravella dAlvaro Gllz Datayde, nom chegou a
Guinee como fezerom as outras, nem acho que
ouvesse outra presa, soomente aquelles Cana-
reos que ally filbarom, aqual lhe parecia muy
pequena pera tornar assy com ella ao regno ;
quanto mais que toda llas outras caravellas le
vavam sobre elle grande avantagem, oque elle
em seu pensamento recebya por injurya. E
porem imiginou hua fea maneira, per onde
podesse acrecentar algua cousa em aquelle pouco
que levava , e começou de trautar com os ou
tros que lhes prouvesse de tomarem algua parte
daquelles Canareos, sem embargo da segurança.
E como a cobiiça seja raiz de todallas maldades,
ainda que a muytos parecesse desarrezoado tal
cometimento, ouverom porem de consentyr no
que Joham de Castilha per tantas rezoões mos
trava seer proveitoso; e porque lhes pareceo
feo tomarem alguus daquelles que os tam bem
ajudarom, moveronse dally pera se ir a outro
porto, onde alguus Canareos, fyandosse dos
nossos, forom aa caravella alguus delles, que
segundo creo forom xxj., com os quaaes feze
rom vella pera Portugal. Mas o Iffante avendo
dello sabedorya, foe muy iroso contra aquelles
— 334 —

capitaães, fazendo logo trazer osCanareos a sua


casa , aos quaaes mandou vestyr muy nobre
mente, e os fez tornar a sua terra, onde seos
naturaaes muyto louvarom tanta virtude de
principe, pella qual forom muy to mais ineli
nados pera o servyr. E da primeira viinda
destes Canareos a este nosso regno, e doutras
muy tas cousas que se passarom acerca delles,
Pallaremos maiscompridamente na cronica gee-
ral dos feitos do nosso regno.
— 335 —

CAPITOLLO LXX\

Como Tristam da Ilha, foe contra o Cabo Branco.

Ja dissemos como Tristam , huu dos capitaães


da ilha da Madeira, armara hua caravella pera
ir de companhya com as outras. E como quer
queelle tevesse boõ desejo pera serviço do If-
fante, e muyto ao seu proveito, ca era homem
assaz cobiiçoso, tal foe sua ventura, que tanto
que passou o Cabo Branco, logo lhe o vento foe
contrairo, com o qual tornou a tras; e pero
despois trabalhasse assaz por tornar a seguyr
sua primeira viajem , nunca mais pode encher
suas vellas senom de vento contrairo , com
oqual se tornou pera a ilha donde ante partira.
Outrossy AlvàroDornellas, h-uu scudeiro criado
do Iffante, boõ homem per sua maâo, armou
outra caravella, naqual levou assaz trabalho
por fazer algua cousa de sua honra , e ja nunca
mais pode cobrar que dous Canareos, que ouve
em hua daquellas ilhas ; com osquaaes fez tornar
sua caravella, dando carrego a huu scudeiro,
que lha fezesse correger, e tornar ally pera o
outro anno. E bem diremos adyante algua cousa
do aqueecimento deste scudeiro, porquanto tra
balhou assaz por sua honra.
— 336 —

CAPITOLLO LXXI0. ,

Como os homeès de Pallenço tomarom os seis Mouros.

Dinis Dyaz, como ja dissemos, armou hua


caravella de dom Alvaro de Castro, tomando
logo de começo companha com Pallenço, que
levava hua fusta, nom porque se della enten
desse daproveitar em outra cousa senom na
entrada do ryo do Nillo; ca porque era velha,
entendya cle a leixar onde quer que sentisse
seu derradeiro fallicimento. E seguindo assy
amhos sua vyagem , chegarom aa ilha de Ergim,
onde despois que filharom augua , ouverom
acordo de seguyr -tanto per seu caminho, ataa
que chegarom aa terra dos Negros, segundo o
proposito comque partirom deste regno. E pas
sando ja boa peça per a ponta de Santana (1),
indo assy huíi dya com calma, drsse Pallenço,
que nom serva mal de poerem alguus homees
em terra, e que fossem veer se podyam lilhar
alguus Mouros. Pcraque he, disse Dinis Dyaz,

(1) Ponta de Santa- Anna. Fica situada ao S. do Rio de S. João


na carta de João Freire de 154G. (/7r/e n nota de pag. 304.)
— 337 —
ocuparse homem em semelhante cousa? Vaamos
em boa hora nosso caminho, ca se nos Deos le
var a aquella terra de Guynee, bem acharemos
Mouros que nos avondem pera nossa carrega.
Verdade he o que Dinis Dyaz dizya, que assaz
avya hi de Mouros , mas nom eram assy ligei
ros de filhar como elle pensava, ca crecde que
som homees muy fortes, e artificiosos em sua
defesa, e bem o verees nos seguintes capitollos
onde faNarmos de suas pellejas. Amigo! respon-
deo Pallenço , e que assy seja que la ajamos
muytos Mouros , que perderemos se nos Deos
aquy primeiro der alguus? Todavya , disse elle,
eu ey por bem que provemos se os poderemos
aver, e hora prouvesse a Deos que tomassemos
aquy tantos perque scusassemos a ida por agora
mais longe! Pois que assy he, disse Dinis Dyaz,
ordenaae como vos prouver. Aparelhou logo
Pallenço sua fusta pera sayr a terra, e como quer
que a calma fosse muy grande, todavya eram
muy grandes vagas na costa, as quaaes nunca
derom lugar que a fusta podesse prooar em
terra ; mas elle desejoso de acabar o que come
çara, disse contra aquella companha : Amigos !
Bem veedes como a braveza deste mar, acerca
desta costa, nom quer consentyr que ponha
mos nossa proa em terra ; porem minha voon-
tade todavya serva sayr fora, mas porque nom
sey nadar, farya sandice tomar semelhante atre
vimento. Se antre vós ha alguus que nadando
possam ir cm terra, certamente que eu lho
22
— 338 —

agradecerey muyto, e des y nom carecerees


daquelle louvor que os boos por seus vertuosos
trabalhos merecem. Bem he, responderom al-
guus, que nossa voontade he boa pera vos fa
zermos prazer ; mas que sera que se nos seguem
dello dous perigoos! O primeiro he que nom
sabemos como sayrémos em terra , ca nos po
dem estas ondas aquy revolver de tal guisa,
que nom possamos seer senhores de nossos
nembros, e morreremos muy asinha, ca som
cousas que ja outras vezes acontecerom. 0 se
gundo que sc formos assy per terra, e encon
trarmos algua gente com aqual per ventura
nom devamos pellejar sem vossa ajuda, se o
mar for em tal ponto , e vós nom poderdes sayr,
que querees que façamos ! E como veedes que
antre muytos ha desvairados acordos , em
quanto Pallenço ouvya as.rezoões daquelles,
apartaronse outros, que tam soomentenom qui-
serom ouvyr parte daquelle conselho, senom
quando parecerom nuus ante Pallenço, apare
lhados pera se lançar a augua. Exnos aquy !
disserom elles; mandaae que façamos, que a
morte hua he em toda parte, e sc DeoS tem de
terminado que moiramos em seu serviço , este
he o milhor tempo emque podemos acabar. Des
y, avisados de seu capitam , corregerom suas
roupas e armas o milhor que poderom, e lan-
caronse a nado; e assy prouve a Deos, que
como quer que o mar ally fosse aspero, say-
rom a terra assy todos xi j , como partirom dos
— 339 —

navyos. Des y começarom de seguyr ao longo


da ribeira, e nom forom assy muyto, quando
huu que levava a dyanteira, disse contra os
outros, que estevessem quedos, ca elle vya
rastro de gente, e o milhor que era que lhe
parecia fresco. Pareceme que he bem, disse
elle, que vaamos em pos elles, ca segundo a
mym este rastro parece , elles nom devem seer
longe. Pois, responderom os outros, peraque
nos aventuramos nós logo antre nossos compa
nheiros pera saltarmos na augua, se nós o con
trai ro ouvessemos de fazer ? Entom ordenarom
tres que fossem dyantc que levassem olho no
rastro, e que os outros seguissem em pos elles.
E andando assy sob aquella speranca per spaco
de duas legoas , descobriram huu valle, noqual
os dyanteiros viram os Mouros cujo rastro se-
guyam ; mas pareceronlhe tam poucos, que
segundo o boõ desejo que lhe levavam , pesou-
lhe, ainda que de sua vitorya tevessem mais
certa segurança , e assy voltarom os rostros
contra os outros que viinham de tras pollos
avisarem da presa que tiinham ante sy ; cujas
pallavras forom breves, porque scassamente
começavam dizer, Mouros, quando os postu-
meiros ja começavam de correr, e correndo
chamar seus appellidos, cujas vozes avisarom e
entristecerom os contrairos ; mas ally hom ouve
outro remedyo senom fogir, ca de sua pouca e
probe fazenda pequeno cuidado teverom ; e som
certo que aquelles que dally scaparom, tarde
— 340 —

tornarom allv com. suydade que de sua farda-


gem ouvessem. Os nossos começarom o correu
cedo, e eram ja trabalhados do sayr da fusta e
andar do caminho, e porem nom poderom
m uyto seguyr o encalco, polloqual minguarom
muyto em sua presa , ca nom filharom mais de
nove. Bem sera, disseram alguus, que se apar
tem seis de nós, que levem estes presos aos na-
vvos, e os outros seis que ficarmos busquemos
per estas moutas , e per ventura acharemos al
guus scondidos. Apartaronse logo aquelles que
se avyam de tornar com os cativos, os quaaes
começarom de atar seus presos na milhor ma
neira que poderom ; mas parece que nom tam
bem como compria, porque assaz abastavam
seis pera nove, segundo ja ouvistes que outros
ja em aquellas partes levarom muytos mais,
sem nhuu contra iro que lhe viesse. E porque
as molheres geeralmente som perfiosas, hua
daquella companhia começou de tomar por opi-
niom de nom querer andar, dando baques con
sigo no chaão, e leixandosse arrestrar pelloS
cabellos e pellas pernas, nom querendo aver de
sy nhua piedade; cuja sobeja perfya costrangeo
aos nossos de a leixarem atada ally, pera em
outro dya tornarem por ella. E andando assy
em esta volta, começarom os outros de se espa
lhar, fogindo pera hua parte e pera a outra,
entanto que lhe fogiram dous, a allem da Moura
que ja leixavam atada ; e como quer que assaz
trabalhassem por elles, nom os poderom mais
— 341 —

aver, ca segundo parece, o lugar erá tal que


ligeiramente se podyam sconder; e assy lhe foe
necessaryo levarem aquelles seis aa ribeira ,
muyto queixosos de sua desdicta, e nom menos
os outros , que chegarom despois sem nhua
cousa que achassem. Alguus avya hi que qui-
serom ainda tornar polla Moura que leixarom
atada , e porque era muyto tarde, e o mar pe-
riigoso, cessarom de o fazer, nem despois nom
poderom , porque logo se a fusta partiu ; e assy
ficou a Moura , com sua neicea perfya, muy bem
atada naquelle mato, onde creo que receberya
trabalhosa morte, porque os que dally scapa-
rom, temerosos do primeiro encontro, nom
tornaryam per ally tam cedo. E seguindo assy
estes navyos sua vyagem , o vento começou de
refrescar, entanto que veo a seer muy grande,
de guisa que a tormenta trabalhou os dictos na
vyos per tal guisa, que a fusta começou dabryr
e receber em sy tanta augua , que Pal lenço co-
nheceo que nom compria seguyr mais longe ,
porque seguindo, serya duvyda chegar onde
elle desejava, e ainda per ventura poderya viír
tal vento, que a caravella se afastarya delles,
pello qual sua vida ficarya em perigoo. Porem
disse a Dinis Dyaz, que o recolhesse em seu
. navyo, e assy a outra gente, com todallas
guarniçoões e aparelhos da fusta , e ainda
grande parte da madeira pera lenha ; as quaaes
cousas recebidas, allagarom a fusta, e seguirom
avante sua vyagem.
— 342 —

CAPITOLLO LXXII°.

v -
Das cousas que acontecerem a Rodrigucannes de Travaços ,
e a Dinis Dyaz.
«
Ja teemos fallado atras como Rodrigueannes
e Dinis Diaz fezerom sua conserva; mas o lugar
proprio he aqueste, onde de todo seu aqueeci-
mento nos convem dar certa deelaraçom. E foe
assy, que teendo elles feita conserva, pella
guisa que ja dissemos, aqual creemos que fosse
despois do allagamento da fusta , chegarom ao -
Cabo Verde , donde se forom a as ilhas e toma-
rom augua, e bem conhecerom pello trilha-
mento dellas, que ja os outros navyos per ally
andarom (1). Desy começarom de tentar os Gui
neus, em cuja busca ally vyerom, osquaaes
acharom assy percebidos, que pero muytas ve
zes provassem de sayr em terra, sempre acha
vam tam vallente defesa que nom ousarom che
gar a elles. Pode seer, disse Dinis Dyaz, que
estes homees nom seram tam boõs de noite

(1) Julgámos que estas ilhas são as que se encontrão em algu


mas cartas, principalmente nas francezas, com o nome de ilhas
<la Madalena. (Vide nota de pag. 305.)
— 343 —
como de dya ; porem quero tentar seu ardi-
mento quejando he, oqual ligeiramente posso
saber em esta noite seguinte ; como de feito foe
posto em obra , ca tanto que o sol de todo scon-
deo sua elaridade, sayu elle em terra, levando
comsigo dous homecs, e foe topar com duas po-
voraçoões, asquaaes lhe parecerom tamanhas,
que elle ouve por seu proveito de as leixar,
nom que sua ida fosse afim de elle provar nhua
cousa, soomente pera avisar os outros parcei
ros doque ouvessem de fazer. Entom se tornou
ao navyo, e des y fallou a Rodrigueannes e aos
outros, toda a cousa que achara. Nós, disse
elle, husaryamos de pouco siso se quisessemos
tentar semelhante pelleja ; ca eu achey hua
aldea , repartida em duas povoraçoões muy
grandes, e ja sabees que a gente desta terra
nom he assy ligeira de filhar como nós deseja
mos, ca som homees muy fortes e avisados e
percebidos em suas pellejas, e o que pyor he
que trazem suas seetas empeçonhadas com erva
muy periigosa. Porem a mym parece, que nos
devemos tornar, ca todo nosso trabalho he causa
de nossa morte, querendonos antremeter com
esta gente. Ao que os outros disserom que era
muy bem, ca todos sabyam que elle fallava
verdade. Des y corregerom suas vellas , e come-
çarom departyr. Hua cousa, disse Dinis Dyaz,
que vira em aquella ilha , que lhe parecva nova
acerca do seu conhecimento, e esto he, que
antre as vacas vira duas allimaryas , mu\
desafeiçoadas em comparaçom do outro gaado;
empero porque andavam assy de mestura, tenho
que per ventura podyam seer bufaros, que som
allimaryas da natureza dos bois (1). Etornando
assy aquestes, Rodrigueannes, que nom par-
tya contente daquella terra, porque se nom
achara em lugar em que podesse mostrar o boõ
desejo que tiinha pera fazer por sua honra,
disse contra Dinis Dvaz, que lhe parecya que
serya bem que lançassem algua gente fora, e
que poderya seer que alguus Mouros viiryam
a apanhar a madeyra da fusta que ante leixa-
rom allagada, c que se os achassem, nom podya
seer que nom filhassem alguus. Seendo Dinis
Dvaz em este acordo, lançarom fora seus ba-
tees , nos quaaes mandarom xx. homecs a terra.
E bem parece que Rodrigueannes nom fora en
ganado em seu pensamento, ca os Mouros anda
vam ja na praya apanhando aquella madeira;
e veendo como os batees hyam a terra, afasta -
ronse ja quanto da ribeyra, e como quem diz,
estes em nossa busca som viindos , busquemos
maneira per que nom tam soomente nos possa
mos salvar, mas ainda lhe possamos empeecer;
e lancaronse em duas celladas, por afastarem
os nossos da prava, e husarem de suas forças
com toda segurança de seu perigoo. Os xpaãos
forom em terra , onde se reteverom alguti spaço

(f) Era com efleito o Biifuto afrirnno que os nossos maritimos


alli virão.
— 345 —
por se acordarem acerca de sua ida-, e esto
porque dos Mouros achavam tal rastro, pello
qual lhes parecia que nom devyam seer longe
dally afastados ; como quer que conheciam ,
segundo a grandeza do rastro , que eram muy-
tos mais doque sentyam que suas forças po-
dyam soportar, o que fez a alguíis requerer
que se tornassem, ca nom era cousa pera come
ter. Hora, disserom outros, aquy nom a ja
mais : nós ja fora somos ; vergonha serva tor
narmos atras : os batees sejam aquelles que se
tornem, e nós vaamos por dyante buscar nossos
imiigos, e na maão de Deos seja todo nosso
aqueecimento. E dos primeiros xx. que eram,
tornarom seis aos batees pera os levarem aos
navyos, e os xviij. seguirom avante, segundo
achavam que o rastro hya contra o sertaaõ ;
mas seu trabalho nom foe longo em andar,
quando logo a primeira cellada se começou de
descobrir, naqual seryam ataa quareenta Mou
ros, os quaaes sayrom a elles muy avyvada-
mente, como aquelles que segundo sua avanta-
gem , sentyam que tiinham a vitorya em suas
maãos, assy pello numero daquelles primeiros,
que era mayor, como pellos outros que jazyam
na outra cellada, em que tiinham segurança
que os avyam de viír ajudar. Mas ja seja que
os Mouros trouxessem aquella fortelleza, os
xpaãos nom lhe voltarom as costas, ante corre-
gerom suas armas , e come homeês fora de todo
medo, sperarom a vinda do scos contrairos ;
— 346 —
onde se começou antre elles a pelleja -muy
grande ; e sabee que as lanças e seetas nom es
tavam de folga, nem achavam arnes nem cota
em que podessem fazer deteença. No campo
nom avya pedras de que se os Mouros muyto
podessem ajudar, e como eram desarmados, e
os xpaãos poinham toda sua fortelleza em os
feryr e matar, começaronse os Mouros a sentyr
magoados, e afastarse dos nossos o mais que
podyam. E em esta pelleja trabalhou muyto
huu moço da camara do Iffante , que se chamava
Martim Pereira, cujoscudo nom andava menos
acompanhado darmas dos imiigos, que se fosse
spinhaço de porco spim quando levanta suas
penas.
— 34T —

CAPITOLLO LXXIII0.

Como se descobrirom os da segunda cellada,


e como os Mouros forom vencidos.

Nom se fezerom os Mouros tanto a fora que


a pelleja nom ficasse muy grande antre elles ,
e esto era principalmente porque os Mouros
speravam socorro da segunda cellada , como
quer que lhes ja parecesse que tardava mais do
razoado. Empero ouverom de sayr xxv. Mouros
que na dieta cellada jazyam, cujas grandes vozes
avivarom muyto os coraçoões de seus parceiros ;
e ja devees de sentyr qual serya o trabalho dos
nossos xpaãos, seendo tam poucos, metidos
antre tantos contrairos ! Por certo sua fortelleza
se mostrou ally grande, ca postoque ja traba
lhados andassem, e lhes sobreviesse tal refresco,
nom mudarom suas contenenças doque ante
tiinham firmado, e assy come ardidos e boõs,
começarom de pellejar, fallandose huus contra
os outros que maldicto fosse aquelle que em
semelhante feito voltasse atras ! E os Mou
ros da primeira pelleja, como quer que ante
mostrassem sinal de vencimento , tornarom
muy bravos a renovar a pelleja, aqual era muy
— 348 —
grande antre elles ; mas os xpaãos os scar-
mentavam.de tal guisa, que os contrairos lhe
hyam ja tomando receo, nom se chegando de
boamente onde se os nossos mais ajuntavam ;
mas esto nom fazya força, ca nom leixavam
porem de receber huus ou os outros mortaaes
feridas, com que muy asinha acabavam o seu
derradeiro termo. E em esto andarom assy
hua peça de tempo , ataa que os Mouros vyram
alguíis de seus parceiros cayr, e casy os mais
delles feridos ; polloqual sentirom que' quanto
mais stevessem , mayor perda receberyam ; po
rem começarom de fogyr. E os que ficarom nas
caravellas, como quer que logo no primeiro
topo viiam os companheiros em aquella pelleja,
esforçaronse em elles que lhes nom serva neces-
sarya outra ajuda, senom aquella que todos
nom podemos scusar, scilicet, de nosso senhor
Deos; allegrandosse muy to com tam maravi
lhoso esforço como em elles sentyam ; mas
despois que viram como chegava a segunda cel-
lada, temerom muyto que os nom podessem
soportar ; porem se trabalharom muy trigosa-
mente de lhes dar socorro ; mas porque o espaço
era grande, nom poderom chegar tam asinha
ao lugar da pelleja. E brevemente os Mouros
eram ja todos fogidos, cujo encalço nom fora
seguido, pollo grande trabalho que os nossos
ouverom, de que estavam muy cansados. E
assy voltarom com os outros que os viinham
«ajudar, pera se recolherem a seus navyos, e
— 349 —
pensarom de suas chagas , deque poucos scapa-
rom , grandes ou pequenas , segundo a parte de
sua dieta. E os Mouros veendo como se os
xpaãos ja tornavam fc fezerom a volta ao lugar
da pelleja , com entençom de levarem huu da-
quelles mortos, oqual parece que era avido por
fidalgo antre elles ; e veendo os nossos sua ten-
çom, voltarom sobre elles pera renovar outra
vez a pelleja; mas os imiigos scarmentados do
primeiro dano, leixarom o morto que ja leva
vam , e fogirom quanto poderom , de guisa que
aos nossos pareceo necessareo de se tornar pera
seus navyos, por dar folga e cura a aquelles
trabalhados e feridos.
— 350 —

CAPITOLLO LXXIIII0.

Como Rodrigueannes, e Dinis Dyaz, se tornarom pera o regno,


e do que lhe aqueeceo em sua vyagem.

E que assy seja que eu de nobres e grandes


feitos tinha ja fallado em esta cronica, por certo
nom he sem causa que eu ajunte o trabalho da-
quelles xiiij. ao louvor de todollos boõs, ca o
seu merecimento he digno de grande honra
antre os vivos, e muyto mais creo que seja
ante a face daquelle Eterno Senhor, cujo centro,
segundo diz Ermes (1 ) , he em todo lugar per
modo infiindo, e a circonferencia nom he em
alguu, doqual suas almas receberam gloryosa
bemavènturança. E por dar fim aos feitos destas
duas caravellas, digo brevemente, que tanto
que esta pelleja foe acabada , os capitaães acor-

(1) Hermas (Fj/iit). Azurara refere-se aqui ao livro deste A.


intitulado o Pastar, composto no pontificado de S. Clemente, al
gum tempo antes da perseguição de Domiciano, começada no
anno de 95. Origencs, Euzebio, S. Geronimo, S. Clemente d'A-
lexandria, e Tertuliano citárão esta obra. Por esta passagem ve
mos que Azurara citando-o não admettia a opinião de Gel-tzio que
o elassiflcava entre os livros apocryphos.
— 351 —
darom de se tornar dereitamente ao regno; em-
pero chegando ao Cabo de Tira, acordaronse
ambos de mandar poer em terra certos homeês,
pera veerem se poderyam ainda fazer algua
presa, como quer que certo soubessem que a
terra tantas vezes fora buscada. E seendo assy
postos na prava ataa cinquoenta, começarom
de seguyr ao longo da ribeira , ataa que acha-
rom rastro dhomeês , que hyam pera dentro
pera o certaão ; e porque lhes o rastro pareceo
fresco, avisarom del lo seus capitaães, dos-
quaaes receberom mandado que fezessem apar
tar alguus dantre sy, que seguissem todavya
pello rastro avante, ataa que achassem os Mou
ros que o fezerom. E porque a terra era muyto
chaã, os Mouros viram os nossos de longe, e
começarom de fogyr, e pero muyto os xpaãos
corressem assaz a pos elles, nunca os poderom
encalçar ; porem acertousse que dous mancebos
daquelles toparom com huíi Mouro, que trouxe-
rom consigo por testemunha de seu grande
trabalho. E dally fezerom vella dereitamente a
Lixboa, onde pagado o dereito ao lffánte, rece
berom delle honra e mercee.
— 352 —

CAPITOLLO LXXV0.

Como a earavella de Joham Gllz Zarco chegou aa terra


dos Negros.

.Ficame ainda pera contar o aqueecimento da


earavella de Joham Goncalvez Zarco, oqual se
ouve em este feito, a meu cuidar, mais sem spe-
rança de guaanho que nhuíi dos que la man-
darom, ca todollos outros, como ja ouvistes, a
allem do serviço do Iffante, levavam o tento
sobre seu proveito. Mas aqueste Joham Gllz era
nobre em todos seus feitos , e porem quis que
o mundo conhecesse, que elle soomente por
servyr seu senhor, se despoynha de mandar
fazer aquella vyagem, armando bua muy no
bre earavella , daqual fez capitam huu seu sobri
nho, que o Iffante criara em sua camara, que
se chamava Alvaro Fernandez, mandandolhe
que nom tevesse o respeito em outro guaanho,
sénom veer e saber qualquer cousa nova que
podesse, e que se nom embargasse de fazer
saidas na terra dos Mouros, mas que dereita-
mente se fosse vyagem da terra dos Negros , e
que dhi per avante acrecentasse em sua vyagem
— 353 —
todo que mais podesse(l ), trabalhandosse de viír
ao Iffante seu snõr com algua novidade, comque
entendesse que lhe prazerya. A caravella era
bem abitalhada, acompanhada de gente des-
posta pera trabalhar, e Alvaro Frrz homem
mancebo e ardido. Encaminharom sua vyagem,
firmados de seguyr o proposito daquelle que os
mandava; eassy forom navegando per aquelle
grande marOccyano, ataa que chegarom aoryo
do Nillo (2) , do qual seendo em conhecimento
pellos sinaaes que ja disse, filharom duas pipas
daugua , dasquaaes híia trouverom aa cidade de
Lixboa. E nom sey se Alexandre , que foe huu
dos monarcas do mundo, bebeo em seus dyas
augua que de tam longe lhe fosse trazida ! Da-
quy forom avante, ataa que passarom o Cabo
Verde, a allem doqual viram húa ilha (3), onde
sayrom pera veer se acharyam algua gente,
teendo porem acerca de sy aquelle resguardo,
que senti rom que compria em semelhante lugar.
E andando pella ilha, acharom cabras mansas,

(1) Compare-se esta passagem com o que dissemos em as no


tas 1, de pag. 78, 161, 162, 271, not. 1, e 278, not. 2, ácerca
dos planos do Infante.
(2) 0 Senegal ou Nilo dos Negros. (Vid. nota de pag. 279,
e seguintes.)
(3) Deve ser a ilha de Gorea , a qual fica situada em 14 gr.
39™ 55" de lai. N.
Sobre esta ilha vide Demnnet, Nouvelle histoire de l'Afrique ,
tom. 1, de pag. 87 a 97, passim Noticcs statistiques sur les eo-
loniesfrançnises (troisième partie, de pag. 187 a 189), obra pu
blicada pelo ministPrin da marinha em 1839.
23
— 354 —

sem nhua gente que as guardasse, nem que


morasse em algua parte daquella ilha , e entam
tomarom dellas seu refresco, segundo ja disse
mos que os outros acharom os rastros , quando
a aquellas ilhas chegarom, ca este Alvaro Frrz
fora primeiro, e porque per outra guisa se nom
pode contar, fallamos primeiro pella guisa que
ouvistes; e dally forom avante, ataa o lugar
onde está a palmeira e aquella arvor grossa , de
que ja nos outros capitollos leixamos fallado,
onde se acharom as armas do Iffante com a sua
devisa e moto. Ally ouverom seu acordo de se
irem lançar acerca do cabo, porque poderya
seer que alguas almadyas viTram a elles, com-
que podessem aver falla, siquer per aceno, ca hi
nom avya outro torgimao. E seendo tam acerca
do cabo como podva seer terço de legoa , lan-
çarom ancora, e repousarom segundo trazyam
ordenado; mas nom esteverom assy muyto,
quando logo de terra partirom dous barcos, em
que viinham dez Guineus, os quaaes logo come-
çarom fazer dereitamente sua vyagem contra o
navyo, come homeês que viinham de paz. E
seendo acerca, fezerom sinal pedindo segu
rança, aqual lhes foe dada, e logo sem outra
cautella, entrarom cinquo delles nacaravella,
onde lhe Alvaro Frrz fez fazer todo gasalhado
que pode , mandandolhe dar de comer e de be-
ver, com toda outra boa companhya que lhe
pode seer feita; e des y partironse, com mos-
trança de grande contentamento; mas pareco
— 355

que as voontades al levariam concebido. E tanto


que forom em terra, fallarom com os outros
seos naturaaes toda a maneira que acharom ,
pello qual lhes pareceo que ligeiramente os po-
deryam filhar, e com este proposito se partirom
seis barcos , com xxxv. ou quareenta delles ,
aparelhados come homêes que queryam pelle-
jar; porem seendo acerca, ouverom temor de
se chegarem aa earavella, estando assy arreda
dos hua peça , sem ousarem de fazer nhuu co
metimento. E veendo Alvaro Frrz; como nom
ousavom de chegar a elle, fez lançar seu batel
fora, noqual mandou que se metessem oito ho
mêes, os mais prestes que pera ello achou; e
fez que o batel estevesse da outra parte da eara
vella , em tal guisa que nom fosse visto dos con-
trairos, sperando que elles se chegassem mais
acerca do navyo. E tanto steverom os Guineus
assy afastados, ataa que huu daquelles barcos
filhou atrevimento de se chegar mais avante,
saindosse dantre òs outros contra a earavella ,
no qual eram cinquo Guineus vallentes e fortes,
ca por taaes se stremarom elles antre os outros
da companhva. E tanto que Alvaro Frrz sentyo
que o barco era ja em lugar, que o batel podya
chegar a elle ante que dos outros ouvesse acor
ro, mandou que saisse o batel trigosamente, c
que fosse a elle. E segundo a grande avantagem
que ha na maneira de remar, em muy breve
forom os nossos com os contrairos ; mas veen-
dosse elles assy encalcados, nom tcendo spe
— 356 —

rança de defesa , lançaronse a augua , e os ou


tros barcos fogirom pera terra. Mas no filha-
mento daquelles que assy andavom nadando,
ouverom os nossos muy grande trabalho, por
que nom menos amergulhavom que corvos ma
rinhos, entanto que nom podyam teer posto
em elles ; empero filharom logo huu , nom po
rem muy ligeiramente; mas a prisom do se
gundo lhe fez perder todollos outros, ca era
tam vallenLe, que dous homces, como quer que
assaz de rijos fossem , nunca o poderom meter
dentro no batel , ataa que tomarom huu bichei
ro, com que o ferrarom per cima de huu olho,
por cuja door elle cessou de sua bravura, lei-
xandosse meter dentro no batel. E com estes
dous se tornarom ao navyo. E porque Alvaro
Frrz sentyo que sua stada nom aproveitava em
aquelle lugar, polla sabedorya que ja delle tii-
nham, ante lhe podya empeecer, disse que que-
rya ir mais avante, por veer se acharya algua
novidade que trouvesse ao Iffante seu senhor. E
partindo dally, chegarom a huu cabo , onde
avya muy tas palmeiras secas sem rama, e pose-
rom nome a aquelle cabo, o Cabo dos Matos (i).

(1) Este cabo se vê marcado com este nome em quasi todas as


antigas cartas manuscriptas do xti° seculo.
Vê-se pois que o nome deste cabo fora primeiramente dado
aquelle ponto por Alvaro Fernandes .
Barros (Decad. I, liv. 1, fol. 26, edic. de 1628) diz, e desta
viagem, < passou té onde ora ehamão o Cabo dos Mastos s nome
> que lhe elle então pos por razão de humas palmeiras seccas
» que á vista representavão Mostos arvorados. »
— 357 —
E hindo adyante, fez Alvaro Frrz sayr no ba
tel sete homêes , aos quaaes mandou que fos
sem assy ao longo da costa; pella qual hindo
avante, viram star quatro Guineus asseentados
a beira do mar; e porque os do batel sentiram
que nom eram delles vistos, saltarom seis delles
fora, hindo assy o mais encubertos que po-
dyam, ataa que forom preto dos Guineus , que
começarom de correr pera os filhar. E pare-
ceme que estes Guineus eram archeiros, e que
andavam ao monte matando suas veacões com
herva, assy como em esta nossa Espanha fazem
os beesteiros. E avendo vista dos nossos, le-
vantaronse muyto asynha , e começarom de
fogyr, nom avendo vagar de armarem seus ar
cos ; mas os nossos pero muyto corressem , nun
ca os poderom filhar, como quer que per ve
zes os encalçassem, esto por que elles andam
uuus, e nom teem cabellos senom muy curtos ,
taaes em que se nom pode fazer presa; e assy
se forom spedindo dos nossos, tomandolhe po
rem os arcos e coldres e frechas, e muy ta carne
de porcos monteses que tiinham assada. E an-
tre estas allimaryas que assy acharom , foe hua
que parecia cerva, aqual aquelles Guineos tra-
zyam com híiu cofinho na boca por nom co
mer, e segundo os nossos poderom sentyr, elles
trazyam assy aquella allimarya por anegaça,
por lhe aguardarem as outras veaçoões com a
mansidade daquella (1) ; e porque a viram assy

(1) Esta descnpçào não deixa a menor duvida de que o ani


358
mansa, nom a quiserom matar; e tornaronse
pera os navyos , onde teverom conselho de se
viir pera o regno, viindosse dereitamente aa
ilha da Madeira, e des y aa cidade de Lixhoa,
na qual acharom o Iffante, de que assaz mercees
receberom , das quaaes Joham Gllz nom ficou
sem boa parte, pella boa voontade com que se
moveo a o servyr em aquelle feito. E esta foe a
caravella que em este anno foe mais avante
que todallas outras que a aquella terra passa-
rom.

mal que os nossos maritimos alli virão , c de que trata o A., é o


Antilope, e provavelmente as outras veaçoõr.s erão rebanhos da
mesma especie.
.Sobre a historia dos Antilopes o leitor deverá consultar Buffon
c Cuvier.
CAPITOLLO LXXVf.

Como o autor comera de fallar na maneira daquella terra.

Bem he que leixemos agora huu pouco estar


estas cousas de repouso, e que trautemos da
devisom daquellas terras, per onde as nossas
gentes andarom naquelles trabalhos de que ja
teemos fallado, porque possaaes aver conheci
mento do engano em que os dante nós sempre
viverom, tomando receo de passar aquelle Ca
bo, com temor daquellas cousas que dissemos
no começo deste livro; e porque vejamos ainda
camanho louvor merece o nosso principe , por
trazer suas duvydas ante a presença nom soo-
mente dos que somos presentes, mas ainda de
todollos outros que ham de viir nas idades viin-
doiras. E porque hua das cousas que elles di
ziam que eram contrairas pera passar em aquel-
las terras , assy eram as correntes muy grandes
que em ellas avya, pollas quaaes era impossi-
vel poder nhuu navyo fazer vyagem per aquel-
les mares ; agora teendes elaro conhecimento
de seu erro primeiro, pois vistes ir e viir os na-
vyos, tam sem perigoo como em cada hua parte
dos outros mares.
— 360 —
Í)iziam ainda , que as terras eram areosas e
sem algua povoraçom ; e bem he que quanto a
as areas, nom se enganarom de todo, mas toda-
vya nom em tamanho graao; e da povoraçom
bem vistes o contrairo , pois que os seus mora
dores veedes cada dya ante vossos olhos, como
quer que as suas povoraçoões a mayor parte
som aldeas, e villas muy poucas, ca des o Cabo
do Bojador, ataa o regno de Tunez, nom seram
per todas, antre villas e lugares afortellezados
pera defesa, ataa cinquoenta.
Enganavanse ainda na perfundeza do mar,
ca tiinham em suas cartas que eram pravas tam
baixas , que a hua legoa de terra nom avya mais
que hua braça daugua; o que se achou per o
contrairo, ca os navyos teverom e teem assaz
daltura pera seu marear, tirando certos baixos,
e assy se fez Essacanas (1) que hi ha em certas
restyngas , segundo agora acharees nas cartas
do marear que o Iffante mandou fazer (2).

(1) Esta palavra não se encontra nem no Elucidario nem nos


Diecionarios portuguezes ; encontra-se todavia no heptaglotto de
Castell , e em Golio, mas alli se indica que a significação desta pa
lavra arabe é a de logar onde uma pessoa habila.
Posto que admittida esta para a explicação do texto, este fique
ainda obscuro, e se não possa bem acomodar com o que alli se
diz, comtudo parece-nos que se pode entender que o A. quiz
dizer que todas aquellas observações se fizerão nas habitações
(Essacanas) que hi ha em certas restingas, segundo, etc.
Foi nos mesmos logares que os nossos maritimos desenhárão
as cartas , e marcárão as costas , restingas, etc.
(?) Por esta passagem se mostra de um modo indubitavel
que as primeiras cartas hydrograficas da costa occidental d'Afri-
— 361 —
Na terra dos Negros nom ha outro lugar cer
cado se nom aquelle a que elles chamam Oa-
dem(\ ), nem povoraçom senom alguas que estam
aa beira do mar , de casas de palha , as quaaes
foram despovoradas per os que la forom em os
navyos desta terra : bem he que toda a terra
geeralmente he povorada, mas sua vida nom
he senom em tendas e alquitoões (2) , como nós
aquy trazemos quando se acerta de os nossos
principes andarem em hoste, da qual cousa de-

ca alem do Bojador forão feitas pelos Portuguezes por ordem do


illustre infante D. Henrique , e que forão estas que forão adop
tadas , e copiadas pelos cosmografos de toda a Europa. (Vide a
nossa Memoria sobre a prioridade dos descobrimentos dos Portu
guezes' na costa d'Africa Occidental , §° IXo, X°, e XIo.)
(1) Julgamos ser o logar a que Cadamosto chama Hodcn (Gua-
den) e do qual diz, i Na direita de Cabo Branco pela terra den-
» tro ha uma povoação por nome Hodcn que dista da costa obra
• de 6 jornadas de camelo, > mas diz o contrario do que le
mos no texto , pois acrescenta :
« A qual não é morada, mas nella se recolhem os Arabes, e
» serve de escala para passarem as caravanas que vem de Tom-
• buto e outros logares dos Negros , a esta nossa Barbaria de ca. »
Este logar com o mesmo nome dado por Cadamosto se vê
marcado , d'accordo com esta relação, na carta dos Itinerarios
das caravanas que M. Walekenaer juntou á sua obra, Recher-
ches géographiqucs sur Vintérieur de V Afrique.
(2) Alquiiòes, palavra arabe que se não encontra em os
nossos diccionarios, nem no Elucidario, mas sim no diccionario
heptaglotto de Castell na palavra Alquidene, carretas de trans
porte de molhercs e de homens, e em Golio. Não encontrámos tam
pouco esta palavra nos regimentos da guerra d'elRei D. João Io
nem nod'elRei D. Affonso Vo. (Sousa, Prov. da hist. gen., III.)
Azurara empregou pois neste logar uma palavra arabe ja des
usada na lingoa portugueza no seculo x\°.
— 362 —
ror» testemunho aquelles que la filharom, e
ainda Joham Frrz, de que ja fallamos, contou
dello gram parte. Todo seu principal studo e
trabalho sta na guarda de seusgaados, scilicet,
vacas, e carneiros, e cabras, e camellos, e ca-
sy cada dya mudam seus arreaaes , ca o mais
que podem assessegar em huu lugar seram oito
dyas. E alguQs daquelles principaaes trazem
egoas mansas, de que ham cavallos, empero
muyto poucos.
Sua vyanda, pella mayor parte, he leite, e
alguas vezes poucas carnes, e sementes dervas
bravas, que colhem per aquelles montes; e
disserom alguíis dos que la forom, que parecem
estas hervas painço desta terra, mas nom ha hi
dellas muytas (1). Alguíi trigo quando o podem
aver, diz que o comem per aquelle respeito que
nós em esta terra comemos confeitos (2). E muy-
tos meses doanno, elles, nem seus cavallos, nem
caães, nom se governam doutra cousa senom
de bever leite. E os que vivem a beira do mar
nom comem al senom pescado, todos geeral-
mente sem pam nem outra cousa , salvo augua
que bevem , e as mais das vezes comem este
pescado cruu e seco.

(1) Vide a descripcào que se encontra nas viagens de Clapcrton.


(2) Vlde Itinéraire de Tripoli de Barbarie à In ville de Tom-
hoctu, pelo Cheyk Hagg-Kassém , publicado por M. Walekenaer,
Recherches sur Pintérieur de PAfrique , p. 4?.S, cuja relação se
conforma com o texto do nosso A.
Consnlte-sc igualmente Leão .4frienno.
— 363 —

As vestiduras que trazem som almexias de


coiro, e assy bragas delle; porem alguus hon
rados teem alquices; e alguus speciaaes, que ca-
sy som sobre todollos outros , trazem vestidos
boõs , assy come os outros Mouros , e boõs ca-
vallos, e boas sellas, e boas estrebeiras; mas
estes muy poucos.
As molheres vestem alquices , que som assy
como mantos , com os quaaes soomente cobrem
osrostros , e peral ly entendem que acabam deco-
bryr toda sua vergonha , ca os corpos trazem to
dos nuus. Por certo, dizaquelle que ajuntou esta
estorva , que esta he hua das cousas per que ho
mem pode conhecer sua grande bestyall idade (1 ),
ca se algua pequena de razom antre elles ouves-
se, seguyryam a natureza, cobrindo aquellas
partes soomente que clla mostrou que devyam
seer cubertas, ca veemos naturalmente que em
cada huíi daquelles lugares vergonhosos pos
cerco de cabellos, mostrando que os querya
sconder; e ainda teem alguus naturaaes, que
se leixarem assy aquelles cabellos, que tanto
crecerom , atee que scondam todollos lugares
de vossa vergonha. E as molheres daquelles
honrados trazem vincos e argollas douro, e as
sy outras jovas.

(I) Esta mesma descripçSn, e expressão se encontra em Leão


Africano.
— 364 —

CAPITOLLO LXXVI1°.

Das cousas que acontecerom a Joham Frrz.

Por darmos ajuda ao conhecimento destas cou


sas, digamos em este lugar o aqueecimento de
Joham FrrZ (1), qual foe em esta terra naquelles
sete meses que em ella andou por serviço do
senhor Iffante, comoja ouvistes; o qual ficando
ally em poder dos parentes daquelle Mouro,
que a esta terra trouve Antam Gllz , foe per elles
levado, com seos vestidos, e bizcoito, e alguu
trigo que lhe ficara , e tambem suas roupas de
vestyr; asquaaes cousas lhe forom todas toma
das contra sua voontade, e soomente lhe foe
dado huu alquice, como cada huu dos outros
Mouros trazia. E aquelles com que assy ficou,
eram ovelheiros, e foronse pera a terra com
suas ovelhas, e elle com elles (2).

(1) Acerca de João Fernandes , vide cap. XXIX, p. 152, e a


nota 1, da flcada deste viajante no Bio do Ouro em H45, e cap.
XXXII.
(?) Esta relação de João Fernandes sendo muito impor
tante, até por ser anlerior de quasi um seculo á descripção do
— 365 —
E disse que esta terra (1) he toda areosa sem
algíia herva , soomente pellas vagêes ou baixios,
que teem algíia herva, de que os gaados ham
seu fraco governo ; teem porem outeiros e serras,
todos darea. E dura esta terra des Tagaoz (2)
ataa terra dos Negros , e vay cerrar com o mar
Medyo terreno, no cabo do regno de Tunez,
a Momdebarque. E dally vay toda terra, tal
como esta de que tenho dicto, des o mar Medyo
terreno atces os Negros, e atees Alexandrya,
aqual he toda povorada de gente de pastores,
della mais della menos, segundo tem o pasto
pera os gaados ; nem ha em ella arvores senom
pequenas, assy como figueiras do inferno, ou
espinheiros, e em alguus lugares ha hi palmei-

celebre Leão Africano , falta-nos com tudo o mais importante


della, a saber o itinerario que elle seguio, e logares que visiton
durante os 7 meses que andou com as caravanas ; apesar da
omissão destas particularidades , a sua descripção conteuda neste
capitulo, e a sua exactidão se acha confirmada pelo que depois
escreveo Leão Africano, Marmol , e outros viajantes, aos quaes
remettemos o leitor.
(1) Desta terra falla Mousem nò xv° cap°. do Êxodo, e Jose-
pho, e meestre Pero , que glosarom sobre elle , onde screvem
do trabalho em que foe o povoo de Israel por mingua daugua,
e como acharom huú poço daugua sollobra , onde diz que lan
çou Mousem, per mandado deDeos, o pedaço do fuste, e tor
nou doce. E esto foe ante que chegassem ao lugar onde lhe Deos
envyou a magna (*).
(2) Esta terra é a Tagaza de Caãamosto (cap. 12, p. 21), Ta-
gazza de Jncíson, no caminho tfJkka a Tombouctou.
O Nola que se aoha no Codice original.
— 366 —
ras (1). E todallas auguas som de poços (2), sem
nhuus ryos correntes senom em muy poucos lu
gares ; e a anchura desta terra seram iij. legoas,
eem longuramil, que senom mete em ella outros
lugares nobres senom Alexandrya e o Cairo.
A letra com que screvem (3), nem a lynguagem
com que fallam , nom he tal como a dos outros
Mouros, ante doutra guisa ; empero todos som
da seita de Maffamede, e som chamados Alarves,
e Azenegues, e Barbaros (4). E todos andam
como ja disse, scilicet, em teendas, com seus
gaados per onde lhes praz, sem algua regla nem
senhoryo , nemjustiça , soomente cada huu anda
como quer, e faz o que lhe praz naquello que
pode. Estes guerream com os Negros mais per

(1) Vide Denham e Claperton.


(2) Vide os Itinerarios já citados e publicados na obra de
M . Walekenaer, Recherches sur lintérieur de V Afrique, e Descrip-
ção d'Africa por Leão Africano.
(3) Esta particularidade é mui curiosa, pois indica que no
seculo XV quando Joao Fernandes viajou com as caravanas ainda
algumas destas tribus, que supomos Berberes , não tinhão adop
tado os caracteres arabicos. É para deplorar que o A. não fosse
mais explicito neste logar, visto que os AA. Arabes fazem men
ção de livros escriptos nesta lingoa. Oudney falla em varias ins-
cripções escriptas em caracteres desconhecidos que elle vio
no paiz dos Touariks. Muito poucos desta tribu fallão o Arabe,
do que elle se admirou em razão das frequentes relações que
existem entre elles e as nações que fallão só esta lingoa. (Vide
Clapertorís travels.) Compare-se com Leào Africano em Ramusio
(dos pastores das ovelhas), etc.
(4) Segundo Burckardl, Trav., p. 64 , e 207, sào os Berbe
res. O nosso A. comprehende aqui os Lybianos (compare-se com
J.eào Africano em Ramusio).
— ;*67 —

furto que per força , porque nom teem tamanho


poder como elles (1). E veem a sua terra alguus
Mouros, e vendenlhe daquelles Negros que assy
ham per furto , ou os levam elles a vender a
Mondebarque, que he a allem do regno deTu-
nez, aos mercadores xpaãos que ally vaão, e
dannos por troco de pam e doutras alguas cou
sas (2), como agora fazem no rvo do Ouro, se
gundo adyante sera contado.
E he hem que saibaaes, que em toda a terra
dAfrica, que he des o Egipto atees o poente, os
Mouros nom teem mais regno que o regno de
Feez, no qual jaz o de Marrocos e de Tafellete,
e o regno de Tunez, em que he o de Tremecem
e de Bugya; e toda a outra terra possuuem estes
Alarves e Azanegues, que som pastores de Ca
vallo e de pee, e que andam sobre os campos,
comoja tenho dicto. E diz se que na terra dos
Negros ha huu outro regno , que se chama de

(1) Nesta passagem se mostra que se trata aqui dos Touarih e


das suas contendas com os negros Fulloi ou do Foullan.
(2) Foi este commercio d'escravos negros que os mercadores
christãos fazião com a Africa septemtrional , que produzio a sin
gular pretenção de Zuniga, e de outros escriptores hespanhoes
do que os Castelhanos e especialmente os Andaluzes fazião o
commercio dos Negros de Guiné antes dos Portuguezes, e por
uma confusão, feita ou por lgnorancia ou de proposito, nos quize-
rão disputar a prioriilade do nosso descobrimento da Guiné , e o
nosso commercio exelusivo com esta parte da costa d'Africa por
nós primeiramente descoberta. (Vide a nossa Mem. já citada
g° XVII.)
— :m —
Meelly ; empero esto nom he certo (1), ca elles
trazem daquelle regno os Negros , e os vendem
como os outros, no que se mostra que se fos
sem Mouros, que os nom venderyam assy.
E tornando ao acontecimento de Joham Frrz,
o qual se foe assy com aquelles ovelheiros, com
os quaaes andando per aquellas areas, disse que
muytas vezes nom era farto de leite. E acer-
tousse que huu dya passavam per hi dous de
cavallo, que hyam pera onde andava aquelle
Ahude Meymom, de que ja em cima teemos fal-
lado, os quaaes requererom a aquelle Joham
Frrz, se querya ir pera onde aquelle Mouro an
dava? Bem me praz, disse Joham Frrz, porque
hey novas que he nohre homem , e queroo ir
veer pera o conhecer. E entom o poserom os
outros sobre huu camello, e começarom de an
dar contra onde elles sentyam que o Mouro
andava ; e tanto andarom que lhes mingou a au-
gua que levavam, pollo qual forom tres dyas
que nunca beberom. E diz que nom conhecem
a parte onde a gente anda , senom levando olho
no ceco (2), e onde veem andar corvos e hussos

(1) Por esta passagem se mostra que Azurara não acreditava


na existencia do grande imperio de Melli, mui abundante em
minas de ouro , posto que no seculo precedente tivesse sido
visitado pelo celebre viajante arabe Ebn-Bssluta.
(2) Leão Africano diz que se encontrão entre os Árabes e
outros povos d'Africa , muitos que sem nunca terem aberto um
th livro Talião soffrivelmente em nstrologi».
— 360 —

francos, allv entendem que a gente he, ca em


toda aquella terra nom ha caminho certo senom
os da beira do mar. E disse aquelle Joham Frrz,
que aquelles Mouros com que elle hya, nom se
guyavam senom pellos ventos, segundo fazem
no mar, e per aquellas aves que ja dissemos.
E tanto andarom assy per aquella terra, so-
portando sua sede , atee que chegarom onde an
dava aquelle Ahude Meymom com seos filhos,
c com outros que com elle acompanhavam, que
seryam per todos ataa CL. homeês ; ao qual
Joham Frrz fez sua mesura ; e o Mouro o re-
ceheo muy bem , mandandolhe dar daquelle
mantiimento cle que se elle governava , scili-
cet, leite, per (al guisa que ao tempo que foe
filhado das caravellas stava communalmente
pensado c de boa collor. Disse que as calmas
daquella terra som muy grandes, c assy o poo
das areas , e a gente de pec nuiyta , e per conse
guinte poucos de cavallo , porque os de mais ,
que nom som pera andar de pee, andam sobre
camellos, dos quaaes alguus som brancos, que
andam no dya cinquoenta legoas (1). E destes

(1) Esta conta não parece exagerada. (Vide Renners Mr-


moir on ihe rate of Iravelhng as performed hy camels na collec.
de Philosophical Transactions, vol. 81, pag. 144.) O A. refere-se a
certos camelos do deserto , e do paiz dos Tuunrih que pela
sua extrema velocidade correm em um só dia o espaço que leva
dez dias a um camelo ordinario. Mas estes não marchão com as
caravanas ordinarias, e regulares, pelo contrario servem uni
camente para as excursões bellicosas.
Í4
— 370 —
camellos ha hi grande abastança, nom special-
mentc dos brancos, mas de toda eollor; e que
assy ha hi gaados muytos , como quer que os
pastos sejam tam poucos, como ja dissemos. E
diz que teem cativos Negros , e os honrados
abasto douro , que trazem daquella terra donde
os Negros vivem ; e que ha naquella terra muy-
tas emas, e antas, e gazellas, e muytas perdizes,
c muytas lebres; e que das andorinhas que de
ca partem no veraao, que ally vaão invernar
sobre aquel las areas, creo que seja por razom
da queentura ; e assy vaão la outros passaros
pequenos ; mas que as cegonhas passam aa terra
dos Negros, onde manteem o inverno.
CAPITOLLO LXXV1II ".

Das legoas que estas caravellas do Iflante forniu a allem do


Cabo, e doutras cousas misticas.

Era opinyom antre muytas gentes da Spanha ,


r ainda doutras partes, que aquellas grandes
aves que se chamam emas, nom chocavam os
ovos , mas que assy como poynham na area,
que assy os leixavam ; o que foe achado muyto
pello contrairo, caellaspooem .xx.e .xxx. ovos,
e os chocam segundo as outras aves. E diz que
as cousas de que em aquella terra podem aver
proveito os que vivem de mercadarya, trautan-
do com elles, que som aquelles Negros, de que
elles teem muytos que furtam , e ouro que ham
da terra daquelles, e coirama, e lã, e manteiga,
e assy queijos que hi ha muytos, e assy tama
ras em grande abastança que ham de fora, e am
bar, e algallya, e anime, e azeite, e pelles dos
lobos marinhos, de que ha muytos no ryo do
Ouro, segundo ja ouvistes. E podense hi haver
das mercadaryas de Guinee, que som muytas e
muy boas, segundo adyante sera scripto. E foe
— 372 —
achado que ataa esta era de iiijcRvj. (1) annos
do naeimento de Jhu Xpõ, foram em aquellas
partes cinquoenta e hua caravellas; mas da so
ma dos Mouros que filharom, fallaremos em fim
deste primeiro livro. E forom estas caravellas
a allem do Cabo iiijcL. legoas. E achasse que toda
aquel la costa vay ao sul, com muytas pontas,
segundo que este nosso principe mandou acre-
centar na carta do marear. E he de saber que o
que se sabya em certo da costa do mar grande ,
eram vjc. legoas (2), e som acrccentadas sobre
ellas estas iiijcL.; e o que se mostrava no mapa-
mundy, quanto ao desta costa, nom era verdade,
ca o nom pintavam senom a aventura ; mas esto
que agora he posto nas cartas , foe cousa vista
por olho, segundo ja tcendes ouvido (3).

(,1) 1 446.
(2) Julgámos que se deve ler 200, visto que devia ser escrito
ijc. e não vjc., 600 legoas, o que nos parece um erro, pois a parte
conhecida da costa occidental d'Africa até ao Cabo Bojador offe-
rece uma distancia que sc não conforma com as letras numeraes
do texto.
(3) Vide sobre esta importante passagem o que dizemos em
a nossa Memoria lobre a prioridade dos descobrimentos portugue-
zes na cosia d' Africa , §»• I\, X, e XVIII.
CAPITOLLO LXXIX".

Que falla da ilha de Canarea, e da sua maneyra de viver.

De muytas cousas me parece que rue convem


dar rezom em este livro, porque fallando dellas
tam brevemente, ficarya desejo aos que leessem
a estorya , querendo saber de suas particulari
dades per onde chegassem ao fim de seu conhe
cimento. E porque no começo deste livro disse
como o Iffante dom Henrique mandara sobre as
ilhas de Canarea; e despois disse como os na-
vyos foram a ellas fazer algíias presas; quero
agora mostrar quantas som estas ilhas, e de
que povoraçom, e assy de suas maneiras de
creença, e des y de todallas cousas que a ellas
perteecem. E segundo achey per scripturas an-
tiigas, no tempo que regnava em Castella eIRey
dom Henrique, filho delRey dom Joham o pri
meiro, aquelle que foe vencido na batalha da
Aljubarrota ; huíi fidalgo de França , que se cha
mava mosse Joham de Botancor, seendo homem
nobre e catholico, desejando fazer serviço a
Deos, avendo sabedorya como estas ilhas eram
de infiees, se partiu de sua terra com enten
— 374 —
com de as conquistar. E viindo em Castel la,
ouve navyos e mais gente da que trazya, e foe
sobre ellas, onde ouve assaz trabalho em sua
conquysta; empero aa fym sojugou as tres, e
as quatro ficarom por conquystar. E porque
mosse Joham gastara ja seus mantiimentos e
dinheiro que trazya, foelhe necessaryo de se
tornar pera sua terra, com entencom de viir
outra vez pera acabar de as conquistar todas,
leixando em aquellas tres que ja conquistadas
tiinha, por capitam, huu seu sobrinho, que se
chamava mice Maciote (1). Mas mice Joham,
tanto que foe em França, nom tornou mais a
esta terra, por quanto disserom alguus que en
fermara de doenças graves, pellas quaaes foe
estorvado de tornar mais pera acabar seu boõ
proposito; outros disserom que fora embargado
per eIRey de Franca por causa das guerras em
que andava, onde lhe foe necessaryo seu ser
viço; pollo qual o dicto mice Maciote ficou ally
ao despois per tempos , ataa que se foe pera a

(1 ) Compare-se com o que se diz em a obra que tem por titulo :


« Histoire de la premiere descouverte et conquesie det Canarics
» faite dès Pan 1402 par messire Jean de Belhencourt , ensuite du
» temps mime par F. Picrre Bontier, et Jean Le Verrier, prrstre
» domestique dudit sieur de Belhencourt , etc., • publicada em
Pariz em 1 ti 30 .
Vè-se que Alurara colhera noticias desta expedição de Be
lhencourt em antigas relações. Esta chronica tendo sido con
cluida na livraria d'elRei 1). Alfonso V cm 1 453 , e Cadamosto
tendo navegado em serviço de Portugal dous annos depois ( 1 4.r>5),
sua relação das Canarias é portanto posterior á do A.
— 375 —
ilha da Madeira, como ao dyante sera contado.
E a povoraçom destas tres ilhas aa feitura deste
livro, som per esta guisa : na ilha que se cha
ma de Lançarote moravam Lx. homêes ; e na
de Forte ventura, Lxxx; e na outra a que dizem
do Ferro avera doze homêes. E estas som as
tres que forom conquistadas per aquelle grande
snõr de França. E todos estes seus moradores
som xpaãos, e fazem antre sy os officios divi
nos, teendo igrejas e sacerdotes. Mas ha hi ou
tra ilha , que se chama de Gomeira , aqual se
trahalhou de conquistar mice Maciote, com al-
guus Castellaaos que tomou em sua companhya,
e nom poderom acabar sua conquista , como
quer que antre aquelles Canareus aja alguus
xpaãos. E esta sera de povoraçom de vijc. ho
mêes. Na outra ilha da Palma moram .v. ho
mêes. E na seista ilha que he de Tanarife, ou
do Inferno, porque tem em cima huu algar por
que saae sempre fogo, moram seis mil homeês
de pelleja. Aa septima ilha chamam a Gram
Canarea, em que avera cinquo mil homêes de
pelleja. Estas tres des do começo do mundo
nunca forom conquistadas, porem que foram
ja dellas tomados muytos homêes, de que sou-
berom casy todal las maneiras de seu viver; e
porque me parecerom muy desvairadas do huso
das outras gentes, quero aquy dello fallar huíi
pouco, por tal que aquelles que do Snõr cobra-
rom tamanha graça per que sejam fora do conto
de tanta bestvalidade, louvem por ello ao Snõr,
— 376 —
a que prouve de todallas cousas seerem feitas
efti tam desvay radas maneiras; e aquelles que
na santa ley de Xpõ som collocados, e pollo seu
amor algua aspereza dè vida querem sofrer,
ajam pera ello grande esforço pera o poderem
bem soportar, quando se nembrarem que estes
som homêes, c que com prazer e folgança sua
passam tam forte e tam aspera vida. De todas
estas ilhas que ja nomehey, a Gram Canarea he
a mayor, aqual sera darredor xxxvj. legoas. Os
moradores della de naçom som entendidos, em-
pero de pouca lealdade. E conhecem que ha hy
Deos, do qual aquelles que bem fezerem ave-
ram bem, e os contrairos averam mal. E teem
antre si dous, que nomeam por rex, e huu duque,
porém todo o regimento da ilha he em certos ca
valleiros, os quaaes nom ham de minguar de
elr (1), nem chegar a ijc (2). E despois que mor
rem cinquo ou seis, ajuntanse os outros cavallei-
ros, e scolhem outros tantos daquelles, que som
outrossy filhos de cavalleiros, porque outros
nom ham descolher, e aquelles pooem no lugar
dos que fallecem, em guisa que sempre o conto
seja comprido. Ealguus dizem que estes som dos
mais fidalgos que se sabem , porque sempre fo-
rom da linhagem de cavalleiros, sem mestura
de villaãos. E estes cavalleiros sabem sua creen-
ca, do que os outros nom sabem nada, senom

(1) 190.
'2) 200.
— 377
dizem que creem naquello que creem seus ca-
valleiros. E todallas moças virgeês ham ellesde
romper; e despois que alguu dos cavalleiros dor
me com a moca , entom a pode cazar seu padre ,
ou elle com quem lhe prouver. Mas ante que
com ellas dormam , com leite as engordam tan
to que o coiro della sc arregoa como fazem os
figos, porque a magra nom tem por tam boa
como a gorda, porque diz que se lhe alarga o
ventre pera fazerem grandes filhos. E despois
que assy he gorda, amostrãna nua a aquelles
cavalleiros ;eo que a quer corromper, diz a seu
pay, queja he assaz de gorda. E o padre ou ma
dre a fazem entrar no mar alguus dyas, e certo
tempo cada dya, e tirasselhe daquella sobeja
gordura; e entom levãna ao cavalleiro, e ella
corrompida , trazea seu pay pera sua casa. A
pelleja destes he com pedras , sem outras armas
senom huu paao curto pera dar com elle. E som
bem ardidos, e de forte pelleja, por a terra que
he de muytas pedras, e defendem bem sua ter
ra. Todos andam nuus, e soomente trazem hua
forcadura de palmas de collores darredor, por
bragas, que lhe cobrem sua vergonça , e muy-
tos som os que as nom trazem. Nom teem ouro,
nem prata, nem dinheiros, nem joyas, nem
outras cousas dartelharya, senom alguas cou
sas que fazem com as pedras , deque se aprovei
tam em lugar de cuitellos, e assy fazem as ca
sas em que vivem. Todo ouro e prata, e assy
qualquer outro metal, ham em desprcco, con
— 378 —
ta ndo por sandice a qualquer que o deseja, c
comunalmente nom he antre elles alguu que
seja fora da openyom dos outros ; nem panos de
nhua feiçom lhe praz pouco nem muyto, ante
scarnecem de quemquer que os preza, como fa
zem do ouroc prata, com todallas outras cousas
que ja disse; soomente prezam muyto ferro, o
qual corregem com aquellas pedras, fazendo
delle anzollos pera pescar. Ham triigo e cevada,
mas fallecelhe o engenho pera fazer pam , soo
mente fazem farinha, aqual comem com carne,
e com manteiga. E teem muytos figos, e sangue
de dragom, e tamaras, empero nom boas, e
hervas que comem. E teem ovelhas, c cabras e
porcos abasto. E som cinquo mil de pelleja,
como ja disse. As barbas nom fazem, senom
com pedras. Alguus del les se chamam xpaãos, e
despois que alla o Iffantc mandou dom Fernando
de Castro, com sua frota, em que levava dous
mil e quinhentos homêes, e Cxx cavallos , forom
muytos delles xpaãos; e porquanto se dom Fer
nando temeo de lhe fallecerem os mantiimentos
que levava, leixarom de os conquistar de todo.
E despois quisera o Iffantc la mandar outra vez,
e antremeteosse elRey de Castella sobrello , di
zendo que eram de sua conquista, o que certa
mente nom he assy ; por cujo aazo ficou por aca
bar bua cousa tam virtuosa, como fora de aquella
gente viver na ley de Xpõ. E foe esta frota la
envyada no anno de Xpõ de mil e iiijc.xxiiij°. (1)

fl ) Deve lèr-se M?4.


— 379 —
Os desta ilha ham por grande mal matar carne,
nem de a esfollar, e porem se podem aver de
fora alguu xpaão , folgam muy to seer seu carni
ceiro, e quando o nom podem aver tantos que
lhe abastem em aquelle mester, buscam dos
pyores que ha na ilha pera teer aquelle encar
rego, dosquaaes nom curam nhuas molheres,
nem os homêes nom comem com elles , ca os
ham por pyores do que nós avemos os gafos.
O fogo acendem com paaos esfregando huu com
o outro. Nojosamente criam as madres a os
filhos, polla qual a mayor parte da criaçom
de suas criaturas he com as tetas das cabras.
— 380 —

CAPITOLLO LXXX .

Que falla da ilha da Gomeira.

A pelleja dos da ilha da Gomeira he com va


ras pequenas assy como frechas , agudas e tos
tadas em fogo. Andam nuus sem nhua cousa ,
de que teem pequena vergonha ; scarnecem dos
vestidos , dizendo que nom som outra cousa
senom sacos em que se os homecs metem. Nom
teem senom pouca cevada , e carnes de porcos,
e cabras , de todo porem pouco. Seu comer gee-
ralmente he leite, e hervas como bestas, e rai
zes de juncos, e poucas vezes carnes; comem
cousas torpes e cujas , assy como ratos , pulgas,
e pyolhos, e carrapatos, avendo todo por boa
vyanda. Nom teem casas , mas vivem em covas
c chocas. As molheres som acerca comuues, e
como alguu vem onde está o outro, logo lhe dá
a molher por gasalhado, c contam por mal
aquem o contrairo faz (1); e porem os filhos

(1) Diz Marco Paul lo que nos regnos do Gram Tartaro, ha ou


tros homèes semelhantes, os quaaes quando recebem seus hos
pedes, pensando de lhe fazer prazer, lhe leixam suas molheres,
— 381 —

nom herdam antre elles, soomente os sobrin


hos , filhos de suas irmãas. A mayor parte do
tempo .despendem em cantar c bailar, porqtie
todo seu viço he folga sem trabalho. Em forni-
zyo poem toda sua bem aventurança, ca nom
teem ensinança de ley, soomente creem que ha
hi Deos. Seram vij". (1) dè pelleja, os quaaes teem
huíi duque , e certas cabeceiras.

creendo que assy como lhe elles fazem em este mundo , assy lhe
faram os Deoses no outro. E esto teem porque som idollatras
que nom teem ley, soomente vivem naquellas primeiras idol-
latrias (*).
(■ Nota do Codice original.
(1) 700.
— 382 —

CAPITOLLO LXXXI".

Da ilha do Inferno, ou Tannrife.

Melhórya de vida me parece que acho antre


aquelles moradores da ilha do Inferno , ca som
abastados de trigo e cevada e legumes, com
muytos porcos e ovelhas e cabras, e andam
vestidos de pelles; mas nom teem casas, soo-
mente choças e covas em que passam sua vida.
Assy colhem dentro suas naturas como fazem os
caval los, asquaaes nom estendem senom quan
do ham de fazer filhos, ou verter augua. E nom
menos ham por mal andar doutra guisa do que
nós aquy avemos a aquelles que andam sem
panos meores. Sua pelleja he com astes damago
de pinho, feitas como grandes dardos, muvto
agudas, torradas e secas. E som -viij. ataa nove
bandos, e em cada huu teem rey, oqual ham de
trazer sempre consigo, como quer que lhe a
morte venha, atee que o outro que depois da-
quelle socede o senhoryo se acerte de morrer,
de guisa sempre tragam huu morto e outro vivo.
E quando assy o outro morre , que som dous
mortos, que lhes he necessarvo leixar huu , se
— asa —

gundo sua bestial hordenança, ou mais derei-


tamente direv costume, levamno a huu algar
onde o lançam , e aquelle que o leva ao pescoço,
diz quando o lança, que se vaa aa salvaçam. E
estes som homeês fortes e ardidos , e teem mo-
Iheres certas, e vivem mais como homeês que
alguus destes outros; pellejam huus com os ou
tros, noque he todo seu principal cuidado, e
creem que ha hi Deos.
— 384 —

CAPITOLLO LXXXII0.

Da ilha da Palm».

Os moradores desta ilha da Palma nom teem


pam nem legumes, senom ovelhas, e leite, e
hervas, e em esso se manteem ; nom sabem
conhecer Deos, nem fe nhua, senom pensam
que creem ; como o outro gaado , som muyto
bestyaaes; e dizem que teem certos que se cha
mam reis ; e a sua pelleja he com astes como os
de Tanerife, senom que lhe pooem, onde avya
dandar o ferro, huíi corno agudo, e no conto
outro , empero nom tam agudo como o outro
da ponta ; nom ham pescado alguti , nem o co
mem os desta ilha, e o que os de todallas ou
tras fazem pello contrairo, ca buscam engenho
pera o tomar, e se aproveitam delle em sua go
vernança, senom aquestes soomente , que nem
o comem , nem se trabalham de o tomar. E se-
ram os seus moradores quinhentos homeês, o
que he grande maravilha , seendo tam poucos ,
e des o começo do mundo nunca seerem con
quistados ; no que se mostra que todallas cou
sas nom som mais que como Deos quer que seja,
p aos tempos e termos qur a elle praz.
— 385 —

CAPITOLLO LXXXIII°.

Como foe povoada a ilha da Madeira , e assy as nutras


ilhas que som em aquella parte.

Por quanto eu disse.no quinto capitollo desta


obra, onde falley das cousas specyaaes que o
Iffante fez por serviço de Deos e honra do regno,
antre as outras que elle tiinha feitas, assy era a
povoraçom das ilhas, quero aquy fallar bre
vemente da dieta povoraçom , quanto mais pois
em estes passados capitollos tenho fallado das
ilhas de Canarea. E foe assy, que em casado If
fante avya dous scudeiros nobres, de criacom
daquelle senhor, homêes mancebos e pera muy-
to , os quaaes despois da viinda que o Iffante fez
do descerco de Cepta , quando a o poderyo da-
quelles rex mouros teve cercada juntamente,
segundo ja dissemos, requererom que osavyas-
sc como podessem fazer de suas honras, come
homêes que o muyto desejavam, parecendolhes
que seu tempo era mal despeso se nom traba
lhassem algua cousa per seus corpos. E veendo
o Iffante suas boas voontades , lhes mandou
aparelhar híia barcha, om que fossem darmada
— 386 —
contra os Mouros, encaminhandoos como fos
sem em busca de terra de Guince, aqual elle ja
tiinha em voontade de mandar buscar (1). E
como Deos querya encaminhar tanto bem pera
este regno, e ainda pera outras muytas partes,
guyouhos assy que com tempo contrairo che-
garom aa ilha que se agora chama do Porto
Sancto, que he junto com a ilha da Madeira,
naqual pode aver sete legoas em roda. E estan
do assy ally per alguíis dyas, sguardarom bem
a terra, e pareceolheque serva grande proveito
de se povorar. E tornando dally pera o regno,
fallarom sobrello ao Iffante, contandolhe a bon
dade da terra, e o desejo que tiinham acerca de
sua povoraçom ; dequeao Iffante muyto prouve,
ordenando logo como podessem aver as cousas
que lhe compriam pera se tornarem aa dieta
ilha. E andando assy em este trabalho de
se encaminarem pera partyr, se ajuntou a sua
companha Bertollameu Perestrello, huu fidal
go que era da casa do iffante dom Joham; os
quaaes teendo todas suas cousas prestes, parti
ram vyagem da dieta ilha. E acertousse que an-
tre as cousas que levavam consigo pera lança
rem na dieta ilha, assy era híia coelha, aqual
fora dada ao Bertollameu Perestrello per huu
seu amigo, indo a coelha prenhe em hua ga-

(1J Por esta passagem se mostra que o Infante tinha em vista,


desde o começo das expedições que mandára aparelhar, o des
cobrimento da Guiné. Nisto difere algum tanto o A. do que diz
Cadamosto.
— 38T —
yolla ; e acertousse de paryr no mar, e assy leva-
rom todo aa ilha. E seendo elles allojados em
suas cabanas pera ordenarem suas casas, solta-
rom aquella coelha com seus filhos pera fazer
criaçom , os quaaes em muy breve tempo mul-
tiplicarom tanto, que lhe empacharom a terra,
de guisa que nom podyam semear nhua cousa
que lhe elles nom stragassem. E he muy to pera
maravilhar, por que acharom que no anno se
guinte que ally chegarom , matarom delles muy
muytos, nom fazendo porém mingua; por cuja
rezom leixarom aquella ilha, e passaronse aa
outra da Madeira, que scra quareenta legoas
em cerco, e doze do Porto Sancto, e ally fica-
rom os dous, scilicet, Joham Gllz, e Tristam, o
Bertollameu Perestrello se tornou pera o regno.
Esta segunda ilha acharom boa, specialmente
de muy nobres auguas corredyas, que levam
pera regar a qualquer parte que querem ; e co-
meçarom ally de fazer suas sementeiras muy
grandes , de que lhes vierom muy abastosas no
vidades. Des y virom a terra de boõs aares e
saadya, e de muytas aves, que logo no começo
tomavam com as maãos, e assy outras muytas
bondades que acharom na dieta ilha. Fezerom
assy todo saber ao Iffante, o qual se trabalhou
logo de envvar la outras gentes , e corregi-
mento de igreja, com seus elerigos, de guisa
que em muy breve tempo foc grande parte da-
quella terra aproveitada. E consiirando o If
fante como aquelles dous homêes forom comeco
— 388 —
de sua povoraçom , deulhes a principal gover
nança da ilha, scilicet, a Joham Goncalvez Zar
co , que era huu nobre homem , oqual fora ca-
valleiro no cerco de Tanger em bua batalha
que ally o Iffante venceo em hua quinta feira,
daqual a estorva do regno mais compridamente
faz mençom ; e ja este Joham Gllz fora em ou
tras muytas boas cousas, specialmente no de-
cerco de Cep ta , no desbarato dos Mouros que se
fez no dya da chegada ; e a este deu o Iffante a
governança daquella ilha donde se chama a
parte do Funchal ; e a outra parte, que se chama
do Machito (1) , deu a Tristam , oqual tambem
fora cavalleiro em hua cavalgada que se fez em
Cepta, homem assaz ardido, mas nom tam no
bre em todallas outras cousas come Joham Gll/.
E foe o começo da povoraçom desta ilha no an-
no do nacimento de Jhu Xpõ de mil e iiijc.xx an-
nos ; aqual ao tempo tla feitura desta estorva
estava em razoada povoraçom , ca avya em ella
CL. moradores, a fora outras gentes que hi avya,
assy como mercadores, e homêes e molheres
solteiros, c mancebos, e moços e moças, que
ja nacerom na dieta ilha, c esso meesmo eleri
gos e frades, e outros que vaão e veem por suas
mercadarvas e cousas que daquella ilha nom
podem scusar.

(1) Compare-se com Barroi, Decad. I, liv. I, f. 6 , 7 e 8,


edição de Lisboa de 1628. É de notar que o silencio A' Azurara
ácerca de Roberto Maehim e Anna iArfei , parece indicar que
este romance se nao tinha ainda inventado no tempo do A.
— 389 —
E na era de mil e iiijc.rv. (1) annos mandou o
Iffante a huíi cavalleiro, que se chama Gonçallo
Velho, comendador que era na ordem de Xpõ,
que fosse povoar outras duas ilhas, que estam
afastadas daquellas CLxx legoas ao noroeste; e
hua daquestas começou o iffante dom Pedro de
mandar povorar com prazimento de seu irmaão,
e seguyusse sua morte em breve, pello qual
ficou despois ao iffante dom Henrique; e a esta
posera o iffante dom Pedro nome a ilha de Sam
Miguel, pella singullar devaçom que el sempre
ou vera em aquelle sancto (2).

fl) 1445.
(?) Na carta inedita de Gabriel de Vidsequa feita em Malhorca
em 1439, da qual temos um calque que nos foi mui generosa
mente dado por M. Tastu , se lè a seguinte nota escripta no meio
das ilhas dos Açores :
« A questas íltas Jbran trohaslas per Diego de Senill, pelei del
» Rey de Porlogall an Ian MCOCCXXXII » (segundo a melhor
leitura). Transcrevemos esta nota em razão da data e do nome
do descobridor, visto que quanto á data esta se conforma com o
que diz o P' Freire na vida do infante D. Henrique ( p. 3 1 9 e 320) ,
de que fora em 1432 que a ilha de Santa Maria dos Açores fora
descoberta por Gonçalo Velho, e não por Diego de Senill, como
diz falsequa. De lHurr, na sua dissertação sobre o globo de
Martinho de Bohemia ou de Behain, diz tambem que as ilhas dos
Açores forão descobertas em 1432. Todavia sobre a verdadeira
epoca do descobrimento dos Açores reina grande confusão entre
os A A., e se se comparão as cartas anteriores ao anno de 143?,
com o que diz o Pe Freire a p. 323 acerca do descobrimento da
ilha de S. Miguel, de que a existencia desta ilha concordava (se
gundo disse o Infante Dom Henrique) com seus antigos JUappas,
parece que o descobrimento dos Açores tinha sido effectuado
antes do dito anno de 1432.
Com effeito na carta de Parma do xiv» seculo se vêm marcadas
— 390 —

E tambem fez o iffante dom Henrique tornar


aa ilha de Porto Sancto Bertollameu Perestrello,
aquelle que primeiramente fora com Joham Gllz
e com Tristam , que a fosse povorar ; pero com
a multidom dos coelhos, que caasy som infiin-
dos , nom se pode em ella fazer lavra , soomento

estas ilhas, e na carta calalan da Uibliotheca Real de Pariz se


encontrão as seguintes ilhas no archipelago dos Açores denomi
nadas com os nomes em italiano :
ínsula ile Corvimarini filha do Corvo) ,
Le Conigi ,
San Zorzo (S. Jorge),
Li Colombi,
Insula de Brasil ,
Insule de Sante (Maria ? ).
No Atlas, inedito da Bibliotheca Pinelli, cuja data se teui fixado
entre os annos de 1380 a 1400, se vêm marcadas as ditas ilhas
com os nomes seguintes :
Caprana ,
/. di Brasil,
Li Colombi,
1. de la fentura ,
Sã Zoni,
Li Combi,
I. di Corvimarini.
Na carta de falsequa de 1439 acima citada ge vêm marcadas
estas ilhas que o cosmografo indicou , sendo 8 em numero , e
3 pequenas. Os nomes são os seguintes :
Ilha de Sperta ,
Guatrilla ,
Ylla de rInferno ,
Ylla de Frjrdols,
Ylla de Osels (Uccello),
Ylla de
Ylla de Corp-Marinos ,
Conigi.
K para notar que os nomes destas ilhas na carta do cosmografo
— 391 —

se criam ally muytos gaados, e apanhasse san


gue de dragom, que trazem a vender a este
regno, e assy levam a outras muytas partes. E
fez lançar gaado em outra ilha , que está a sete
legoas da ilha da Madeira, com entençom de a
mandar povorar como as outras, aqual se cha
ma a ilha Deserta. E destas vii. ilhas as quatro
som tamanhas como a da Madeira, e as tres
mais pequenas. E por acrecentamento da ordem
de Xpõ, cujo governador o Iffanteera ao tempo
da dieta povoraçom , deu aa dieta ordem todo o
spiritual da ilha da Madeira e do Porto Sancto ,
e todo o spiritual e temporal da outra ilha, de
que fez comendador Gonçallo Velho, e mais da
ilha de Sam Miguel, lhe Icixou o dizemo, e
ameetade dos açucaraaes.

malhorquino sendo todavia a mais moderna estão todos alterados,


em quanto na carta catalan feita pelos seus compatriotas 454 an-
nos antes se lêm os seguintes nomes dados pelos descobridores
portuguezes : Ilha de Corvo, de S. Jorge e de Santa Maria, do
mesmo modo que se encontrão nas cartas italianas do xiv° se
culo.
Limitamo-nos a lndicar estas interessantes particularidades ao
leitor, não sendo uma nota o logar opportuno para discutir este
importante ponto da historia geograflca dos descobrimentos e da
cartografla; tanto mais que seria necessario mostrar se as ditas
ilhas com os nomes dados pelos Portuguezes nos principios do
seculo xv°, podião j;l existir 40 ou 50 annos antes nas cartas da
ultima metade do seculo xiv°, com os mesmos nomes , ou se a&
ditas ilhas são ou não uma addirão posterior á epoca das ditas
cartas.
— 392 —

CAPITOLLO LXXXIV°.
i

Como o iflante dom Henrique requereo a elRey os direitos


de Cpnarea.

No anno de iiij°Rvi. (1 ) annos começou o Iffante


de mandar avyar seus navyos pera tornar a sua
conquista, empero ante de obrar nhua cousa
em ello , requereo ao iffante dom Pedro seu ir-
maão, que a aquelle tempo regia o regno em
nome delRey, que lhe desse sua carta , pella
qual defendesse a todollos naturaaes destes reg-
nos que nhuu tomasse atrevimento de ir a as
ilhas de Canarea fazer guerra , nem trautar de
mercadarya , sem mandado do dicto Iffante;
aqual carta lhe foe outorgada, e mais ainda lhe
foe feita mercee do quinto de qualquer cousa
que de lá trouvessem , o que era muy dereita-
mente outorgado consiiradas as grandes despe
sas que aquelle nobre principe tiinha feitas so
bre a dieta conquista. E pero nós achassemos
o theor daquella carta , intitollada no primeiro
livro que fez Affonso Cerveira, pello qual pros-

(I) 1446.
- 393 —

seguimos esta estorva , nom curámos de a sere-


ver, porque nom he cousa nova a qualquer en
tendido veer semelhantes scripturas , porque
sabemos que o seo stillo he tam comuu que mais
farya fastyo aos leedores , que voontade de yeer
suas acostumadas rezoões.
— 394 —

CAPITOLLO LXXXV°.

Como tornou a caravella dAlvaro Dornellas , e dos Canareiu


que tomou.

Agora em este capitollo nos convem de tornar


ao feito dAlvaro Dornellas, que leixamos scripto
que ficava nas ilhas de Canarea; o qual vergo
nhosamente se leixou ficar ally, por quanto lhe
parecya que receherva prasmo tornando ao
regno sem algua presa per que se podessc co
nhecer algua parte de seu trabalho. E foe assy,
que Affonso Marta trouve sua caiavella, segun
do ja fallamos, aqual seendo avyada pera as
ilhas da Madeira , onde o dicto Alvaro Dornellas
mandava que recebesse sua bitalha , pello preço
que se cobrasse da venda de dons Canareus que
em ella envyava , pollos quaaes elle ficava satis
fazer mercadarya que os vallesse, a aquelles de
que os ouvera emprestados; per fortuna de tem
po nom pode cobrar as ilhas, e foe lhe forçado
entrar na foz de Lixboa , onde a aquella sazom
era huu Joham Dornellas, scudeiro delRey, ho
mem fidalgo , criado na camara delRey dom
Joham, o delRey Duarte, primo daqueste Al
— 395 —
varo Dornellas de que fallamos, oqual com elle
avya igual senhoryo na dieta caravella. Seendo
ambos de huu proposito pera irem em ella, soo-
mente quanto ao tempo da primeira partida,
Joham Dornellas ouve mandado delRey perque
lhe mandava que cessasse por entom da dieta
vyajem por seer assy necessaryo a seu serviço.
E quando aquelle scudeiro vya assy a caravella
como viinha , conheceo a necessydade em que
seu primo serva , fez logo trigosamente apare
lhar bitalhas e gente perque o navyo podesse
seer armado , e esso meesmo levou mercadarya,
per que entendeo que seu primo satisfarya aa
divyda dos cativos que tomara. E este Joham
Dornellas era homem ardido , desejador de
grandes feitos , e assy despachadamente fez sua
vyagem, ainda que fosse com sua grande des
pesa, chegando em breve a aquella ilha onde
seu primo estava, que era a que se chama de
Forte ventura. A lly chegou logo Alvaro Dornel
las tanto que soube de sua viirída , oqual apar
tando seu primo lhe disse : Por quanto eu tiinha
dicto a estes Castellaãos que esta caravella era
toda minha, a qual cousa lhe dissera por elles
averem causa de me ajudarem melhor a meus
feitos, pensando que vós nòm viiryees a esta
terra, e ainda principalmente por armar com
sua ajuda hua fusta que aquy está; porem eu
v os rogo que ainda que esto seja a vos em algua
parte abatimento de honra, que pollo meu vos
praza de o soportar, avisando todos que digam
— 396 —
que 4.odavya o navyo he meu, e que como cou
sa minha veo aquy com todo o que em elle he ;
e des y, primo amigo, hi vos fica outra vez me
mandardes outra cousa, ainda que seja muyto
mayor, e certo seede que a allem da rezom que
tenho, recebendo de vós esta graça, que o farey
com aquella voontade que verees. Par Deos,
primo, disse Joham Dornellas, ainda que a
mym em algua parte seja trabalho abater de
minha honra , seendo a pessoa que som e a cria-
çom que tenho, todo me praz de pospoer por
vos fazer voontade, como quer que alguns da-
questes que comigo veem, som taaes pessoas,
que mais vierom ca per amizade, que com spe-
rança de proveito, ca vem aquy Diego Vaasquez
Portocarreiro , sendeiro delRey nosso senhor , e
assy outros boõs ; pero trabalharey em ello
quanto poder .- como de feito fez, em tanto que
todo se acabou como Alvaro Dornellas desejava.
Empero tanto devees de saber, que elle husou
despois muyto pello contrairo doque suas pal-
lavras mostravom, ca nom tardou muyto tempo
que Joham Dornellas nom conheceo seu enga
no, polloqual ao dyante forom em muy grande
contenda , pouco menos de se matarem sobre
ello, cuja materya nom he propria deste lugar.
E ficando assy ambos em este primeiro acordo,
armarom logo a fusta, e chegarom assy junta
mente aa ilha da Gomeira, onde Alvaro Dornel
las como capitam, fallou com aquelles princi-
paaes da ilha, rogandoos da parte do iffante dom
— 397 —
Henrique que lhe quizessem dar algua ajuda
pera irem aa ilha da Palma fazer algua presa;
os quaaes com boa voontade lhe outorgarom
quanto elle requereo. E filhando assy alguns
daquelles Canareus pera sua ajuda, chegarom a
huíi porto da ilha da Palma, onde sairom em
terra, scondendosse logo em huu valle, por
quanto era de dya e temyam de seerem senti
dos. Mas tanto que foe noite começarom de an
dar pella ilha, sem algua guya nem certo ca
minho perque se podessem encaminhar pera
algua certa parte, soomente a qualquer ventura
que lhe Deos quisesse ordenar, por assaz de
muy asperos lugares, ataa que chegarom a huu
lugar onde ouvyrom ladridos de caães, pellos
quaaes conhecerom como estavom acerca de po-
voraçom. Hora, disserom alguus, nós ja somos
em segurança daquello que buscamos : repou
semos assy em este valle, e muy to cedo, Deos
querendo, iremos a elles, porquanto nossa ida
agora nos podya trazer mayor perda que pro
veito. E assy repousarom ally ataa que virom
tempo de cometer seus contrairos, os quaaes fo-
rom cometidos per tal força que em muy breve
prenderom .xx. E porquanto os Canareus lhe
davam assaz trabalho, querendo livrar seus pa
rentes e amigos, e esso meesmo vingar outros
que ficavam mortos, disse Joham Dornellas a
seu primo que filhasse os cativos, e que se adyan-
tasse com elles, e que elle empaeharya os ou
tros per tal guisa que lhe nom fezessem. menos
— 398 —
de sua presa; naqual ficada posto que assaz de
perseguidos fossem , ouveronse de sayr dantre
elles, leixando xv mortos per aquelle valle, e
dos xpaãos nom foe alguíi , nem feridos mais
que dous. E assy se tornarom aa ilha da Gomei-
ra , onde a Alvaro Dornellas foe necessaryo fi
car, e seu primo partyo pera este regno, por
quanto lhe sobreveo tamanha mingua , que
nom speravam outro remedio senom comer al-
guQs daquelles cativos , porque doutra guisa
nom sentyam comopodessem guarecer. Empero
quis Deos que primeiro que chegassem a este
termo, ouverom o porto de Tavilla , que he no
regno do Algarve

( I ) Os reis de Castella queixárãose destas correrias, e houverão


muitas disputas entre Portugal e Castella ácerca do senhorio
destas ilhas. Las Casas, na sua ffistoria de índia, Mss. inedlto,
trata largamente deste objecto , sobre tudo no cap. 8.
Compare-se o que diz Azurara neste cap. com o que refere
Barrot, l>ecad. I, liv. I, cap. 1?, foi. 23, edição de 1628.
— 399 —

CAPITOLLO LXXXVI".

Como foe morto NunoTristam em terra de Cuinee,e quaaes


morrerom con elle.

-\
Oo, e como acho em tam breves pal lavras re
gistado o recordamento da morte de tam nobre
cavalleiro como foeaqueste Nuno Tristam, cuja
trigosa tim no presente capitollo fallar entendo!
a qual por certo eu nom poderya passar sem
lagrimas, sc nom conhecesse caasy per devinal
consiiraçom, a eternal folgança que recebe o
seu sprito , ca me parece que serya contado por
envejoso antre os verdadeiros cathollicos, se
chorasse a morte daquelle que a Deos prouve
fazer participador da sua inmortallidade. E cer
tamente que assy como elle foe o primeiro ca
valleiro que per sy desse aquella honra a alguii
outro em aquella terra, com cuja presa eu fiz
começo deste livro, assy quis que caasy o aca
basse com sua morte, dando aa sua alma devi
nal a primeira seeda da celestrial glorya, assy
como primicias de todollos outros que por ser
viço de Deos em aquella terra falleeessem; ca
seendo este nobre cavalleiro em perfeito conhe
— 400 —
cimento do grande desejo e voontade do nosso
virtuoso principe, como aquelle que de tam pe
quena idade se criara em sua camara , veendo
como se trabalhava de mandar seus navyos
aa terra dos Negros, e ainda muvto mais avante
se o fazer podesse, ouvyndo como ja alguas ca-
ravellas passarom o ryo do Nillo, e as cousas
que de la diziam , parecendolhe que se elle nom
fosse alguu daquelles spcciaaes de que o iffante
seu snõr fosse servido em aquella terra, de
qualquer boa cousa que se em.ella fizesse ou
achasse, que elle nom poderya receber nome de
boõ homem ; e porem fez logo hua caravella ,
aqual armada começou sua vyagem, nom fazen
do algíia deteença em algua parte, se. nom se-
guyr todavya contra a terra dos Negros. E pas
sando per o Cabo Verde, foe mais avante Lx.
legoas, onde achou huu ryo, em que lhe pare-
ceo que deverya de aver alguas povoraçoões ;
pello qual mandou lançar fora dons pequenos
batees que levava, nos quaaes entrarom .xxii.
homeês, scilicet, em huii dez, e no outro doze.
E começando assy de seguyr pello ryo avante,
a maree crecia, com a qual forom assy entran
do, seguindo contra buas casas que vyam aa
maão dereita. E acertousse que ante que saissem
cm terra, sayrom da outra parte .xij. barcos,
nos quaaes seryam ataa Lxx. ou Lxxx. Guineus,
todos negros, e com arcos nas maaõs. E porque
a augua crecia, passousse a alem huu barco de
Guineus, e pos os que levava em terra, donde
— 401 —

começa rom de asseetar aos que h v am nos batees.


E os outros que ficavam nos barcos trigavansc
quanto podyam por chegar aos nossos , e tanto
que se vyanu acerca, despendyam aquelle mal-
aventurado almazem , todo cheo de peçonha ,
sobre os corpos dos nossos naturaaes. E assy os
forom seguindo ataa chegarem aa caravella, que
estava fora do ryo, no mar largo; porem todos
asseetados daquella peçonha, de guisa que ante
que entrassem ficarom quatro mortos nos ba
tees. E assy feridos como hyam atarom seus pe
quenos batees ao bordo de seu navyo, come
cando de o aparelhar pera fazerem vyagem ,
veendo o periigoso caso em que estavam ; mas
nom poderom a] levantar as ancoras polla mul-
tidom das seetas de que eram combatidos, pollo
qual lhe lòe forçado de cortarem as amarras,
que lhe nom ficou algua. E assy começa rom de
fazer vella, leixando porem os batees porque os
nom poderom guindar. E assy que dos xxii. que
sairom fora nom scaparom mais que dous, sci-
licet, huíi Andre Dyaz, e outro Alvaro da Costa,
ambos scudeiros do Iffante, e naturaaes da ci
dade dEvora; e os dez e nove morrerom, por
que aquella peçonha era assy artcfíiciosamente
composta, que com pequena ferida, soomente
que aventasse sangue, trazya os homees ao seu
derradeiro fim. Ally foe morto aquelle nobre
cavalleiro NunoTristam (1), muy desejoso desta

f I ) A este rio se firou «-hnmandn Mio de iVimo , ou de iVimo


?(i
— 402 —

vida , porque iiom ouvera lugar de comprar sua


morte como vallente homem; e assy outro ca-
valleiro, que se chamava Joham Correa, c huu
Duarte Dollanda, e Estevam Dalmeida , c Diego
Machado, homees fidalgos e mancebos, que o
lffante criara em sua camara, c assy outros scu-
deiros e homees de pee daquella meesma cria-
çom , e des y mareantes e outra gente do navyo.
Abasta que forom per todos xxj., porque de sete
que ficarom na caravella, forom ainda ferydos
dous em querendo levantar suas ancoras. Mas
quem querees que encaminhasse este navyo pera
fazer vyagem c se partyr dantre aquella mal-
dicta gente, ca os dous scudeiros que dissemos
que ficavam, nom scaparom de todo daquelle
perigoo , seendo feridos chegarom acerca da
morte, da qual infirmvdadejouverom bem .xx.
dyas sem poder fazer nhíia ajuda aos outros que
trabalhavam por encaminhar a caravella, os
quaaes nom eram mais de cinquo, scilicet, huu
grumete, assaz pouco avisado na arte do ma
rear, e huu moço da camara do lffante, que se
chamava Airas Tinoco, que hva por scrivam , e
huu moço Guineu , que fora filhado com os pri
meiros que filharom em aquella terra, e outros
dous moços assaz pequenos, que vevyam com
alguus daquelles scudeiros que ally fallecerom?
Por certo serva daver compaixom de seu grande

Tristão, como se vê em tpiasi Iodas as rarlas antigas, em memo


ria desta calastrophe.
trabalho em aquella hora ! El les chorosos e atri
bul lados polla morte de tal capitam , e dos ou
tros seus parceiros e amigos, des y temerosos
de tam abominavees imiigos como sentvam
acerca de sy, de cujas mortaaes ferydas em tam
breve spaço tantos e taaes homeês forom mor
tos; e sobre todo acharem tam pequeno reme-
dyo pera buscarem sua salvacom , ca o grumete
em que elles todos sua sperança tiinham , elara
mente confessou sua pouca sabedorya, dizendo
como nom sabya rotear nem trabalhar acerca
dello em cousa que aproveitasse , soomente que
se per outrem fosse encamynhado, que farva
quanto podesse naquello que lhe mandassem !
()o grande e supremo socorro de todollos desem-
parados e atribulados, «ple nunca desemparas
a aquelles que te chamam em sua mayor neces
sidade, que ouviste os elamores daquestes que
gemyam a tv , firmando os olhos na alteza das
nuvêes braadando que lhes acorresses; onde
bem mostraste que ouvvas suas prezes quando
em tam breve lhe envyaste tua cellestrial ajuda,
dando esforço e engenho a huii tam pequeno
moço, nado e criado em Olivenca, que he bua
villa do sertaão muy afastada do mar, o qual
avisado per graca devi ual , encaminhou o navyô,
mandando ao grumete que dereitamentc seguis
se o norte, abaixiMidosse huíi pouco aa parte do
levante, ao vento que se chama nordeste, por
que allv entendva el le que jazia o regno de Por
tugal , cuja v vagem elles seguvr desejavam! E
— 404 —

em seguindo assy per sua vya , despois que foc


passada hua parte do dya, forom veer Nuno
Tristam e os outros feridos , e acharonnos mor
tos , pollo que lhe foc necessaryo de os lançar
ao mar; e forom em aquelle dya lançados xv, e
quatro ficarom nos batees, eosdous lanearom
no outro dya. Mas nom screvo quaaes seryam
suas razoões quando lançassem aquelles corpos
sobre a multidbm das auguas, sepultando suas
carnes nos ventres dos peixes! Pero que min
gua nos faz a sepultura pera os corpos , pois na
nossa propria carne avemos de veer nosso sal
vador, segundo determinaçom da saneta scrip-
tura , pois tanto monta que jaçamos no mar,
como na terra , nem que nos comam peixes, quer
aves? O nosso principal sentimento he nossas
obras, pellas quaaes despois de nossa morte
achamos a verdade de todas estas cousas que ca
veemos em fegura ; e pois todos confessamos e
creemos que o Papa he nosso Vigairo geeral, e
supremo Pontifico, per cujo poderyo podere
mos receber absolluçom ou condanaçom , se
gundo a autoridade do avangelho, como verda
deiros catholicos devemos creer, que aquelles
que elle absolver , comprindo as condiçoões de
sua letra , seram postos na companhya dos sanc-
tos. Pollo qual justamente poderemos dizer a
estes : Beati mortui qui in Domino moriuntur.
E porem averam gallardom de Deos todos aquel
les que esta estorya leerem , se da morte daques-
tes fezerem memorya com suas oracoòes, ca pois
— 405 —

em serviço de Deos e de seu senhor morrerem,


bem aventurada he a sua morte. Este moco que
disse, era aquelle Airas Tinoco, deque ja falley
em cima , noqual Deos pos tanta graca que per
dous meses continuados encaminhou a vyagem
daquelle navyo; dovidosos porem qual serva
sua fim , ca em todos aquelles dous meses nun
ca ouverom nhíia vista de terra; na fim dos
quaaes cobrarom vista de hua fusta, que era
darmada, daqual se temerom muyto, pensando
que era de Mouros; mas despois que souberom
que era dehuu cossairo galego, que se chamava
PeroFaleom, sobreveocm elleshua nova ledice,
e muyto mais quando lhe foe dicto que eram na
costa de Portugal, a traves de huíi lugar do
meestrado de Sanctiago, que se chama Sines. E
assy chegarom a Lagos, donde se forom ao If-
lante contarlhe o forte aqueecimento de sua
vyagem , apresentandolhe a multidom das fre
chas com que seus parceiros morrerom ; de cuja
perda o Iffante ouve grande desprazer, porque
caasy os criara todos , ca posto que bem creesse
a salvacom de suas almas, nom pode scusar
tristeza daquella humanidade que ante a sua
presença per spaço de tantos annos fora criada;
e assy como snõr que sentya sua morte seer em
seu serviço, teve despois special cuidado das
molheres e filhos daquelles.
— 40ti —

CAPITOLLO LXXXV1I°.

Como Alvaro Frrz tornou outra vez aa terra dos Negros,


e das cousas que la fez.

Hua das cousas per que o nobre eoraçom he


conhecido, assy he quando se nom contenta de
pequenas cousas, buscando sempre melhorva,
perque sua honra seja acrecentada antre os fei
tos dos nobres, assy na sua terra como fora
della; o que justamente podemos dizer daquelle
Joham 0i Iz , capitam da ilha ; o qual nom seendo
contente da outra vyagem que o seu navyo fezera
no outro anuo aa terra dos Negros, encaminhou
outra vez denvvar a la aquelle meesmo Alvaro
Frrz, com sua caravella bem armada, encomen-
dandolhe que todavya seguisse mais avante
quanto podesse, e que se trabalhasse de fazer
algíía presa, cuja novidade e grandeza podesse
dar testemunho da boa voontade que elle avya
deservyr aquelle snõr que o criara. Alvaro Frrz
tomou o feito com boõ encarrego , como aquelle
que nom menos desejo tiinha de chegar ao feito
do que o seu tyo encarregava. O navyo abitalha-
rlo, fezerom vyagem dereitamen te ao Cabo Verde,
— 407 —

onde o outro anuo tomarom os dons Guineus de


que ja fallamos em outro lugar , e dally passa-
rom ao cabo dos Matos (1), e fezerom ally pouso
por lançarem algua gente fora. E soomente por
veerem a terra juntaronse sete, osquaaes pos
tos na praya, acharom rastro de homeês, que
hyam per huu caminho, e seguindo em pos elles,
chegarom a huu poço, onde acharom cabras,
as quaaes parece que ally leixarom os Guineus ,
e esto segundo penso que serya porque senti-
rvam que hyam despos elles. Ataa ally chega
rom os xpaãos, porque nom teverom ousyo de
seguyr mais avante; e seendo tornados a sua
caravella, aerecentarom mais em sua vyagem ,
e lançando seu batel fora, acharom em terra
esterco dallifante de tamanha grossura, segun
do juizo daquelles que o viram, como podya
seer huu homem; e por lhe nom parecer lugar
pcra fazer presa, tornaronse outra vez a sua
caravella. E hindo assy per a costa do mar,
nom passarom muytos dvas sairom outra vez
em terra, naqual encontrarom hua aldea, onde
sairom os moradores della come homeês que
mostravom que queryam defender suas casas,
antre os quaaes vinha huu bem adargado com
hua azagàya em sua maão, oqual veendo Al
varo Frrz, parecendolhe principal daquelles,
Ibe rijamente a elle , e deulhecom sua lança tajn
grande ferida que deu com elle morto em terra,

(I) Viie pap. 356, nota I.


— 408 —

e tomoulhe a darga e a azagaya, aqual trouve


ao Iffante com outras cousas, como ao dyante
sera contado. Os Guineus veendo aquelle mor
to, sobresseverom de sua pelleja, nem os nos
sos nom viram tempo nem lugar pera os tira
rem daquelle temor, ante se tornarom a seu
navyo, e no outro dya forom a terra, alguu
tanto dally mais afastados, onde viram andar
certas molheres daquellas Guinees, as quaaes
parece que andavam acerca de huu esteiro apa
nhando marisco, e tomarom hua dellas, que se-
rya de idade ataa xxxannos, com huu seu filho
que serya de dous, e assy hua moça de xiiij. ,
naqual avya assaz boa apostura de nembros, e
ainda presença razoada segundo Guinee; mas a
força da molher era assaz pera maravilhar, ca
de tres que se ajuntarom a ella, nom avya hi
alguu que nom tevesse assaz trabalho queren-
doa levar ao batel , os quaaes yeendo a deteença
que faziam , naqual poderva seer que sobreche-
garyam alguus daquelles moradores da terra ,
ouve huu delles acordo de lhe tomar o filho e
levallo ao batel, cujo amor forcou a madre de
se ir apos elle sem muyta prema dos dous que
a levavam. Dally seguirom mais avante alguu
spaço, ataa que acharom huu rvo (1), noqual

(1) Este rio acha-se marcado na carta de Juan de La Cosa


(1500) com o nome de Rio de Lagos , na de João Freire de 1 54 G ,
e em outras com o de Rio do Lago, e posto que Dourado marque
ao sul do Cabo dos Matos um rio , romtudo não lhe deo nome
algum.
— 409 —

fezcrom entrada com o batel, e em huas casas


que ally acharom filharom hua molher, edespois
que a teverom na caravella, tornarom outra vez
aoryo , com entençom de sobirem mais avante
pera trabalharem de fazer algua boa presa. E
indo assy seguindo sua viagem, vierom sobre
elles quatro ou cinquo barcos de Guineus, cor-
regidos come homêes que queryam defender
sua terra, cuja pelleja os do batel nom quiserom
sperimentar veendo a grande avantagem que os
contrairostiinham, temendo sobre todoo grande
perigooquehavva na peçonha com quetiravam.
E começarom de se recolher o milhor que po-
derom pera seu navyo; mas veendo como huu
daquelles barcos se adyantava muyto, voltarom
sobre elle, oqual tornando pera os outros, que
rendo os nossos chegar a elle ante que se reco
lhesse, porque parece que era ja afastado boa
parte de companhia, chegousse o batel tanto
que huu daquelles Guineus fez huíi tiro contra
elle, e acertousse de dar com a frecha a Alvaro
Frrz per a perna; mas porque elle era ja avisa
do de sua peçonha, tirou aquella frecha muyto
asinha, e fez lavar a chaga com ourina e azeite,
des y huntouha muyto bem com teriaga, e prou
ve a Deos que lhe aproveitou como quer que
sua saude passasse per gram trabalho, ca certos
dyas esteve em passo de morte. Os outros da ca
ravella, ainda que seu capitam assy vissem fe
rido, nom leixarom porem de seguyr avante
per aquella costa , ataa que chegarom a hua
— 410 —
ponta darea, que se fazia em dereilo de bua
grande enseada, onde poserom seu batel fora,
e forom dentro pera veer a terra que acharyam ;
e seendo a vista da prava, vivam viir contra
elles bem Cxx Guineus, huus com dargas e aza-
gayas, outros com arcos; e tanto que forom
acerca da augua, começarom de tanger e bailai1,
come homeês afastados de toda tristeza; e os do
batel querendo scusar o convite daquella festa ,
tornaronse pera seu navyo. E era esto a allem
do Cabo Verde Cx legoas, e toda sua rota lie
gceralmente ao sul (1). E esta caravella foc mais
longe este anno que todallas outras, pello qual

(1) A grande enseada a que chegárão , c que flca situada a


I 1 0 legoas ao sul de Caho Verde , fica situada além da Serra
Leoa , e se acha marcada nas cartas de Juan de La Cosa de 1500 ,
de Freire de 1546 e na de faz Dourado, tendo ao sul o Cabo do
Santa Anna.
Passarão pois estes maritimos nesta viagem, a partir do Rio de
Lagos, pelos seguintes logares marcados nas cartas antigas
citadas :
R. Gambia,
R. de Santo Clara ,
R. das Ostras,
R. de S.Pedro,
Gasamansa ,
Cabo-Roxo,
R. de S. Domingos ,
R. Grande,
Higuba ,
Kesegi ,
Amalio,
R. de Nuno,
Palmar,
Gabo da \ erga ,
— 411 —
lhe foe dado de grado duzentas dobras, scilicel ,
cento que lhe mandou dar o iffante dom Pedro ,
queentam era regente, e outras cento que ouve-
rom do iffante dom Henrique. E ainda se nom fo
ra a infirmidade dAlvaro Fernandez, daqual foe
muy apressado, a caravella seguira mais avante;
porem foelhe necessaryo de se tornar daquelle
postumeiro lugar que ja disse, viindosse derei-
tamente aa ilha dErgym (1) , e dallv ao cabo do
Resgate, onde acharom aquelle Ahude Meimom,
de que ja fallamos per vezes em esta storva. E
como quer que nom trouxessem turgimam , po
rem assy per seus acenos , ouverom hua Negra,
que lhe os Mouros derom por alguus panos que
trazyam ; e se tam pouco nom fora, muyto mais
poderom aver, segundo o desejo que os Mouros
mostra vom. E dallv fezerom sua vyagem pera
o regno , onde ouverom as dobras que ja disse,
e mais outras mercees do Iffante seu snõr, que
com sua viinda foe muy allegrepella avantagem
que fezerom em sua ida.

R. de Pichel (cartas de J. de La Cosa e de Dourado; R. du


Praia na de Freire) ,
R. de Marvam (c. de Freire de 1 546 ; R. do Ouro na de
Dourado) ,
R. do Hospital na c. de Juan de La Cosa (lõOO) ; R. das
Soffras da c. de Freire de 1546, e que Vaz Dourado
chama R. dos Pes (1571),
R. da Tamara (c. de J. de La Cosa); R. da Maia na
de Freire , e de Tornala na de Dourado ,
R. de Caza , de Oase em La Cosa e Freire ,
Serra Leoa.
(I) Ãrguim.
CAPITOLLO LXXXVIII°.

Como as nove caravellas partirom de Lagos , e dos Mouros


que fllharom.

Como quer que as novas da morte de Nuno


Tristampozessem grande receoa muytas gentes
do nosso regnode quererem prosseguyr a guer
ra que tiinham começada, cadezyam huus con
tra os outros que era muy dovidosa cousa co
meter pelleja com homeês que tam elaramente
trazyam a morte consigo; porem nom falleceo
hi quem com boa voontade filhasse a empresa ,
ca posto que o perigoo fosse tam manifesto ,
pera todo abastavam os coraçooes daquelles
que desejavam cobrar nome de boõs , e special-
mentc se moviam a ello pollo conhecimento que
avyam da voontade do Iffante , veendo os gran
des acrecentamentos que fazya a aquelles que se
em ello trabalhavam , ca segundo Vegecio, ally
sam os homeês. fortes onde a fortelleza he gal-
lardoada. E porem se moverom em este anno
certos capitaaês , com nove caravellas , pera irem
em aquella terra dos Negros, dos quaaes o pri
meiro foe Gil Eannes,cavalleiro morador na villa
— MS —
de Lagos: e o segundo huíi nobre scudeiro,
criado na camara do Iffante de moço pequeno ,
o qual era huíi mancebo muy ardido, e nom
menos acompanhado doutras muytas vertudes,
cujos feitos acharees mais compridamente na
cronica do regno, specialmente onde se falla das
grandes cousas que se fezerom em Cepta ; e este
avya nome Fernam Vallarinho. O terceiro era
aquelle Stevam Affbnso, de que ja fallamos em
outros lugares desta nossa estorva, o qual leva
va sob sua capitanya tres caravellas. Ally era
Lourenço Diaz, dequcja fallamos ante desto, c
assi Lourenço Delvas, e Joham Bernaldez pilloto,
que levavam cada huu sua caravella. E era ainda
em esta companhya híia caravella do Bispo do
Algarve, de que era capitam huu seu scudeiro.
As quaaes per ordenança do Iffante se forom aa
ilha da Madeira pera receberem ally suas bita-
Ihas. E da dieta ilha partirom com estas cara
vellas que de ca forom, dous navyos, scilicet,
huu de Tristam , huu daquelles capitaaês que
ally moravom, de que elle meesmo levava capi
tanya, e outro em que era Garcia Homem, genro
de Joham Gllz Zarco, que era o outro capitam.
E assy fazendo todos juntamente sua vyagem ,
chegarom aa ilha da Gomeira, onde poserom os
xix.Canareus, que forom levados sobre seguran
ça , como ja teendes ouvydo atras. E tomarom
esso mesmo certos horiíeês que ally ficarom,
assy da casa do Iffante, como da ilha da Madeira.
Nós , disserom aquelles dos navyos contra os
— 414 —

Canareus daquella terra, quer vamos tentar a


ilha da Palma , pera veer se poderyamos fazer
algua presa em que fezessemos serviço ao Iffante
nosso snõr, e queremos saber se por nosso milhor
avyamento vos prazera de nos dardes alguus de
vós outros, que nos queiram ajudar. Ja sabees,
responderom os Canareus per seus turgimaaês,
que todo o que por serviço do Iffante for, que
o faremos com todo nosso poder. E bem heque
forom assy todos aa dicta ilha , mas sua ida nom
prestou nada, porquanto os Canareus eram avi
sados per vista que ouverom da caravella dc
Lourenço Dyaz , que ally chegara ante alguus
dyas. E despois de seu grande trabalho que
acerca dello ouverom , visto como nom podyam
fazer presa , tornaronse as duas caravellas da
ilha, e tambem Gil Eannes, aquelle cavalleirode
Lagos ; e os outros forom sua vyagem atee che
garem a allem tlo Cabo Verde Lx. legoas, onde
acharom huu ryo , que era assaz de boa lar
gueza, noqual entrarom com suas caravellas (1 ) ;
mas nom foe aquella entrada muy proveitosa
pera a caravella tlo Bispo , porquanto se acertou
de topar em huu banco de area, de que abryo
per tal guisa, que a nom poderom dally mais
tirar; pero scaparom as gentes com toda llas

(1) É indubitavelmente o Rio Grande onde elles chegarão.


Compare-se esta passagem com« nota 1 de pag. 79 do tomo 1 ° de
VITistoire génêralc iles voyages de M. ffalekenacr, na qual emenda
o erro de Clarke na sua obra intitulada : The Progresi of maritime
,\isro</ery ÍI803), p.
— 445 —

outras cousas que lhes dellu prouve tirar. Mas


em quanto se alguíis em esto ocupavam, Stevam
Aflonso, e seu irmaaõ, forom em terra, cujos
moradores eram em outra parte, e com enten-
çom de os ir buscar partiram dally , guyandosse
per alguíi sentido que avyam do rastro que
achavam acerca do lugar. E seguindo assy per
seucaminho alguapeça, disserom queiichavam
a terra com grandes sementeiras, e muytas
arvores dalgodom , e muytas herdades semen-
tadas darroz , e assy outras arvores de desvai
radas maneiras. Ediz que toda aquella terra lhe
parecia a maneira de pauues. E parece que se
adyantara Diegaffonso ante os outros, e com elle
xv. daquelles que mais traziam o desejo prestes
de chegara alguu feito, antre osquaaes era huu
moço da camara do lffante, que se chamava
JohamYilles, queantreaquelleshia por scrivam.
E entrando assy per huu arvoredo de grande
spessura , sairom a elles de reves os Guineus
com suas azagayas e arcos , chegandosse a elles
quanto mais podyam. E assy quis a ventura
que de sete que forom feridos, os cinquo fica-
rom logo ally mortos , dos quaaesos dous eram
Portugueeses , e os tres strangeiros. E estando
assy o feito em este ponto, chegou Stevam Affon-
so com os outros que viinham detras, o qual
veendo o periigoso lugar em que eram, recolheos
todos o milhor que pode , noqual recolhimento
ouverom assaz trabalho, ca os Guineus eram
muyfos, o com armas tam empecoivoes como
veedes que eram aquellas que em tam breve
matavam os homeêscom ellas; onde receberom
avantagem de louvor quatro mancebos , que fo-
rom criados na camara do Iffante, dos quaaes o
principal eraaquelle Diego Gllz , nobre scudeiro,
de cuja vertude ja em outras partes leixamos
fallado. Era o outro huu Henrique Lourenço,
tambem mancebo desejoso de fazer por sua hon
ra. Huu dos outros dous avya nome Affonsean-
nes, e outro Fernandeannes. E tanto que forom
em suas caravellas teverom seu conselho, no-
qual acordarom de se tornar, visto como ja eram
descubertos, e mais que tiinham seus navyos
empachados com as guarniçooês que tirarom da
caravella do Bispo. Mas que elles esto assy dis
sessem , eu me tenho mais que a principal causa
de sua partida foe o temor dos imiigos , cuja
periigosa pelleja era muyto de recear a qual
quer homem entendido, porque nom se pode
chamar verdadeira fortelleza , sem outra mayor
necessidade.que elles tiinham, quererem tomar
contenda com quem sabyam que lhes tanto dano
podya fazer. Ally fycarom os corpos daquel-
les mortos antre a espessura daquellas arvores,
e as almas forom veer as cousas do outro mun
do, asquaaes a Deos praza que se ainda nom
som no sanctoRegno, que as leve pera sy. E
por piedade vós outros que- a Christaã religiom
manteendes, dizee senhas oraçooês, ca rogando
por elles, por vós meesmos requerees. E tor-
nandosse as caravellas como tiinham acordado,
— 41? —
chegarom aa ilha dErgim (1) , por se proveerem
da augua que avyam mester ; e dally ouverom
conselho de se ir ao cabo do Resgate (2) , onde fo-
rom em terra, e acharom rastro de Mouros. E
como quer que por rezom da calma, sua ida em
terra fosse muy periigosa, consiirando como tor
navam sem presa pera o regno , forom costran-
gidos de se despoer ao perigoo , e des y come-
carom de seguyr aquelle rastro, entanto que
passadas duas legoas chegarom aos Mouros ,
onde com seu pouco trabalho tomarom delles
Rviij°. E dally acordarom de se viir dereita-
mente pera o regno, como de feito fezerom,
soomente Stevam Affonso que se veo aa ilha da
Palma , naqual saindo em terra com a mayor
parte daquelles que consigo levava , acertousse
de toparem logo com alguus Canareus, dos
quaaes filharom duas molheres; o que nom
ouvera de passar sem grande e danoso retorno
dos contrairos, ca voltarom sobre os nossos que
traziam a presa , e assy os cometiam de rijo que
alguus hi avya que de boamente leixarom a
parte daquelle gaanho a quem os segurara da
perda ; mas aquelle esforcado e boõ sendeiro
Diego GIlz , nom se esqueecendo de sua fortel-
leza , muy rijamente tomou huà bcesta tlas
maaõs a huu daquelles beesteiros que levavom e

( 1 ) Arguim .
(2) Este cabo lira nas autigas carlas situado ao sul dWipumi ,
o se \è com o mesmo nomo na de Juan de la Cosa; na de Toio
Frrirr se lè Porln ilo ftcsçatc.
— 418 —

assy meesmo o coldre com o almazem , e mc-


teosse antre os nossos tirando aos Canareus. E
assy se trabalhou de empregar seus tiros , que
em muy breve matou sete daquelles contrairos,
antre os quaaes foe morto huu rcy delles, o
qual foe conhecido por huã palma que trazia na
maaõ , ca assy parece que hc o costume antre
elles, que o rey aja aquella priminencia antre
os outros. E como veedes que antre todollos ho-
meês he natural cousa que quando o principal
fallece , todollos outros se afastam , veendo
aquestes como seu capitam era morto, cessarom
de sua contenda, dando lugar aos nossos que
se recolhessem ; e assy vierom pera o regno com
sua presa, como quer que hua daquellas Cana-
reas lhe morresse ante que saissem do mar aa
villa de Lagos.
CAPITOLLO LXXXIX".

Como Gomez Pirez foe ao ryo do Ouro, c dos Mouros que tomou.

Yindo este anno He iiij .Rvj. (1) nembrousse


Gomez Piz do que leixara dicro aos Mouros
quando no outro anno chegara ao ryo do Ouro ; e
porque sem licença e ajuda do IfTantenom podya
passar em aquella terra, começou de o requerer
que o encaminhasse como podesse passar onde
aos Mouros ficara que tornasse; e leixando al-
gíias outras razoões que se antre elles passa-
rom , o lffante Iheoutorgou a licença, e lhe fez
prestes duas caravellas , scilicet, hua tilhada, c
outra de pescar, nas quaaes eram xx. homees, e
com Gomez Piz eram xxj., antre os quaaes era
huu moço da camara do lffante, que se chamava
Joham Gorizo, oqual levava carrego de screver
todallas receitas e despezas dos Mouros (2). E ja
era cousa acustumada a todollos navyos que o
lffante mandava, quando partvam deste regno,

(1) H4G.
(2) Por esta passagem se prova que já as relações de trafico
>m a Africa começavão a tomar um caracter mais regular.
— 420 —

irem primeiramente aa ilha da Madeira pera


receberem suas bitalhas; e tanto que all y che-
garom fallou Gomez Piz com aquelle scrivam,
dizendo como elle se querya logo partyr cami
nho do ryo do Ouro, na caravella mais pequena,
e que Joham Gorizo ficasse na outra, recebendo
essas cousas que avya de levar, e que quando ja
chegasse teerya elle seu trauto acertado com os
Mouros. Partida assy a primeira caravella , che-
garom aa entrada do ryo do Ouro , onde sobres-
severom sobre suas ancoras alguu spaço. Vaa-
mos, disse Gomez Piz contra aquelles que le
vava, ao cabo deste ryo, onde eu fiquey no
outro anno aos Mouros que fosse fazer a mer-
cadarya, ca nom avemos pera que estar aquy ,
pois que os Mouros nom parecem. E seguindo
sua vyagem pera alla, chegarom a huu porto
que se chama o porto da Caldeyra , noqual lan-
çarom suas ancoras (4). E porque os Mouros
ouvessem sentido de sua viinda , no outro dya

(1) Porto da Caldeira. Nào se encontra este nome nas mais


antigas cartas, como se vê na de Gracioso Benincasa de 1467 que
é uma das mais proximas aos nossos descobrimentos, e na qual
se encontrão alias muitos nomes dados pelos nossos descobri
dores; o mesmo acontece na de Juan de la Com de 1500 , na de
freire de 1 54G,etc. Parece-nos pois que os nossos maritimos derão
este nome a um porto dentro já do Rio do Ouro , como se de-
prehende do texto. A. caravella de Gomes Pires chegando (\
entrada deste rio fundeou ; este capitão decidio-se depois a hir
ao cabo do Rio , isto é a G legoas por elle acima , onde já tinha
hido no anno antecedente, e chegando lá entrou n'um porto
ao qual ja precedentemente os nossos tinhão dado o nome de
Porto da Caldeira .
— 421 —

que ally chegarom Gomez Piz mandou fazer hua


fumaca em huíi outeiro que estava junto com o
porto. E porque vyo que nom viinham em
aquelle dya , mandou fazer outra, e assy outras
de noite e de dya , ataa que passados tres dyas
os Mouros começarom de viir, com os quaaes
Gomez Piz começou de fallar per seus entrepe-
tadores, requerendo que lhe fezessem ally tra
zer alguus Guineus, pollos quaaes lhe daryam
troco de pano. Nós, responderom elles, nom so
mos mercadores, nem os teendes aquy acerca ,
ante som pella terra dentro a trautar suas mer-
cadaryas , como quer que se o elles soubessem
muyto se trabalharyam por viirem aquy, ca
som homeês abastantes assy de Guineus , como
de ouro, e doutras algíias cousas de que pode-
riees seer bem contentes (1). Pois, disse Gomez
Piz contra alguus daquelles, que lhes rogava que

(1) Esta importante passagem mostra em nosso entender que


antes do descobrimento do Rio do Ouro pelos Portuguezes os
Europeos alli não contratavão. A mesma deelaração dos Arabes
nos parece destruir a supposição daquelles que julgavão que em
1346 os Catalães tinhão noticia deste rio, e que era a este ponto
ao qual se derigia Jacquet Ferrer (vide pag. 306, nota 2, e
pag. 98, nota inJlne). Com efleito vè-se que os Arabes daquelle
ponto sabião mui bem que para fazerem vir aquelle sitio as ca
ravanas lhes era necessario atravessar o deserto durante muitas
jornadas, e estavão ao facto de que ainda mesmo emprehen-
dendo esta viajem , experimentarião talvez difficuldade em per
suadir os outros a mudarem os itinerarios seguidos desde tempos
remotos para virem commerciar a um ponto para elles incerto,
preferindo-o aos intiepostos certos do antigo commercin das
<-aravanas.
— 422 —
os fossem chamar, e que lhes darya certo preço
porel lo; mas os Mouros receberom o preço,
fingendo que os hyam chamar, e aa fim nunca se
dello quiserom empachar , entanto que Gomez
Piz aguardou ally per spaço dexxj. dyas. Eem
tamanha fiança sc poynham os Mouros com elles,
«pie de boamente se metyam cinquo e seis na
carayella. E entretanto sobrechegou a outra em
que hya Joam Gorizo, que ficara na ilha. Passa
dos os xxj. dyas veendo Gomez Piz como lhe os
Mouros bulravam , e que nom queryam ir cha
mar os mercadores, disselhes que ateelly os
tevera seguros em nome do snôr Iffante seu
snõr, e que pois elles nom trautavan verdade,
que dally avante se guardassem delle , avendo
o seguro por acabado. E assy lançou logo fora
todollos que tiinha na caravella; des y fez vela,
afastandossc dally quatro legoas contra a outra
parte do ryo, onde estando no outro dya que
ally chegara, vyo como viinham dous Mouros
contra a ribeira, os quaaes per seu mandado em
breve forom filhados. Gomez Piz fallou com elles
a de parte, preguntandolhes se sabyam -novas
dalguns outros Mouros que ally fossem acerca?
Sabemos, responderom elles, que dez som idos
a híia ilha que está no cabo deste ryo, e que hi
preto esta bua povoraçom , em que avera qua-
reenta ou cinquoenta almas. Hora pois que assy
he, disse Gomez Piz contra Joham Gorizo, fa-
zeevos prestes seis de vós outros, e tomaae huu
desses batees , e saii em terra em busca daquel
— 423 —
les Mouros que me este diz que-forom aa ilha ,
e avisaaveos, disse elle , que tenhaaes maneira
de os filhardes ante que se lancem a augua ,
porque ey novas que todos som muy grandes
nadadores, e podervoshyam scapar sedellonom
fossees avisados. Partironse assy aquelles, e
Gomez Piz fez aparelhar outro batel, noqual
meteo xj. homeês consigo, e sahio em terra,
onde lhes fallou em esta guisa : Amigos ! Bem
veedes como somos viindos a esta parte princi
palmente por fazer serviço a Deos , e des y ao
senhor Iffante nosso snõr, nom sem proveito
ile nosso retorno. E porque soube que em de-
reito daquella ilha a que tenho envyados aquel
les outros nossos parceiros, sta hua aldea em
que avera quareenta ou cinquoenta almas, antre
os quaaes por muy tos que hi aja de pelleja se-
ram de xx ataa xxv , e bem creo que se a elles
formos como devemos, que faremos em elles
presa sem grande nosso perigoo ; porem meu
conselho he que nos yaamos logo a elles, porque
sealguu dos da ilha scapar, nom possa dar no
vas de nossa viinda, pella qual se possam avi
sar e fogyr. Esto vos faço saber como homem
que quer vosso conselho e prazimento. Pera que
he, responderom os outros, mais falla nem
conselho, senom hii com Deos pera onde qui
serdes, e nós vos seguiremos como he rezom , ca
pera huu homem de tal autoridade como vós,
e que tantas cousas periigosas teendes vistas e
passadas no mar e fora delle, escarnho serya
— 4'24 —
pensar algíiu de nós de correger no que vós te-
vessees determinado. E leixando assy aquestes
em sua boa determinaçom , fallemos dos seis
que forom aa ilha , os quaaes poserom toda sua
lbrçaem remar seu batel por chegarem aaquella
ilha ante que a maree vazasse , porque os Mou
ros de baixa mar se podyam bem sayr. E seendo
acerca della, acordarom que quatro saissem fora,
e dous fossem no batel ao longo da terra , por
tal que se os Mouros se quysessem lançar a au-
gua, que os podessem bem tomar, e que se
comprisse de saltarem fora pera ajudar seus
parceiros , que o podessem fazer. E indo assy os
quatro per terra , ouverom os Mouros vista
delles, e ou por seerem homeês esforcados, ou
porentenderem que tiinham a vantagem , forom
logo contra os xpaaós , remessando suas aza-
gayas nom muy longe delles , as quaaes lhes
forom recebidas nos scudos , e des y vierom aa
pelleja, na qual se os quatro tiinham avantaja
damente com elles , mas os dous que eram no
batel viiram muy bem o trabalho de seus par
ceiros , e salta rom em terra pera os ajudar, cuja
viinda foe aos contrai ros cousa de veencimento,
comecando logo de se retraer, ataa que se des-
poserom de todo a fogyr ; e de dez que os Mou
ros eram , os dous que sc quiserom lançar a
augua, ou por nom saberem bem nadar, ou
por outro algíiu empacho, forom logo afoga
dos. E porque os xpaaõs viram que se lançavam
a augua , saltarom em seu batel , e assy dentro
— 425 —

como fora tomarom os oito. E teendoos assy


atados, disse Joham Gorizo contra os outros :
Vaamos a terra contra onde vimos ir Gomez
Piz no outro batel , ca certamente elle que logo
partvo despos nos, nom foe al senom que quis
entretanto dar na aldea que lhe os Mouros dis
serom que ally estava , e pois nós ja teemos aca
bado nosso encarrego , vaamollos ajudar , ca per
ventura lhe sera necessaryo , ou siquer ao me
nos sentiram nossas boas voontades. E esto dizia
Joham Gorizo , porque quando elles hyam pera
a ilha, bem viram o outro batel a vyagem que
levava. O qual conselho todos ouverom por boõ;
e leixando estes agora ir a seu caminho contra
onde Gomez PiZ vay, fallemos do acontecimento
dos outros.
— 426 —

CAPITOLLO LR".

Vos Mouros que Gomez Piz tomou na outra aldeã.

0
Tornando agora ao feito de Gomez Piz, aja
mos aquelle conselho por acabado , e tenhamos
«|iie vaaõ seu caminho guyandosse peraquelles
Mouros , per cuja lingoa se moverom partyr de
seu navyo. E foeassy, que indo elles ja acerca
donde lhe disserom que a aldea estava, viram
os Mouros como sahyam de seu allojamento , os
quaaes veendo Gomez Piz, braadou rijamente
aos outros que os seguissem. Corrce , disse elle,
ca toda nossa vitorya esta na ligeirice de nossos
pees, segundo veedes que se os imiigos começam
daparelhar ! 0 qual mandado era sobejo nas
orelhas daquelles, que ainda se a primeira pal-
lavra nom dezia , ja elles eram antreos Mouros;
e chamando Santyago ! c Portugal ! em muy
breve saltarom em meyo da aldea , onde no pri
meiro golpe prenderom xxj. daquelles, antre
homeês, e molheres , e moços ; pero creo que os
mais servam daquelles que nom podessem fo-
gyr, ca dos doze xpaaõs que ally chegarom,
quatro se apartarom a correr Iras aquelles que
— 427 —

Ibgyam , cujo trabalho prestou pouco, ca nunca


poderom chegar a elles pera os filhar, ataa que
lhes a força começou de fallecer , e encaminha-
rom de se tornar. E elles contentes de sua vito
rva , tornandosse pera seus navyos , chegarom
aos outros que viinham pera os ajudar, eajun-
tousse ally hua ledice caasy por igual , porque
cada huus em sua parte eram contentes da vito
rva que receberom, e muyto mais por que fora
sem algua perda. E assy forom pera seus na
vvos , onde repousarom com essa vianda que
tiinham , apresentando huus aos outros com
boas voontades , como se faz em taes lugares
onde sobrechegam semelhantes encontros , e
porque se diz em comuu proverbio, que homem
pobre com pouco sc allegra. Gomez Piz nom se
quis de todo leixar em repouso com esta vitorya,
contentandosse do que ja tiinha, mas entre
tanto os outros estavam em seus fallamentos ,
apartou huu daquelles Mouros, preguntandolhe
se sabya parte dalgua povoraçom que preto
estevesse? O qual lhe respondeo que nom sabya
senom hua , mas que era dally seis legoas, na
qual averya bem cento almas. Pois, disse Gomez
Piz, assy podem seer iij*., ca todavya iremos a
elles, pois ja neeste mester estamos ! Eassy de
supito mandou fazer vella, fazendo guyar seus
navyos contra onde o Mouro mostrava que a
aldeã jazia. E quando sentyo que serva ja qua
tro legoas donde ante partira , fez lançar seu
batel em terra com xvij. homeês daquelles que
— 428 —

sentyo que milhores e mais despachados eram,


e os tres leixou em guarda das caravellas. Des y
fez poer o Mouro por guya dyante; e porque
parece que hyam de noite , e o Mouro nom sa-
bya bem o certo onde a povoraçom jazia , soo-
mente quanto esmava o geito, passavam ja por
ella se nom fora o ladrido de huu cam , per cuja
voz sentiram o lugar onde os Mouros jaziam ,
e voltarom sobre elles; mas quando ja chegarom
a aldea, começava damanhecer, de guisa que
parte dos Mouros eram ja partidos pera fora.
Empero com seu acostumado apellido chegarom
sobre o lugar, e sem nhua defesa que os Mouros
posessem sobre sy, prenderom xxxj.; e esto
creo que serva porque parece que os mayores
e principaaes eram ja fora, e os outros que fi-
caroru eram velhos, e molheres, e moços, aos
quaaes logo preguntarom, que era dos outros
que se dally partiram? Som, disserom elles,
daquy tres legoas contra a praya do mar, onde
forom em busca de mantiimento pera sy e pera
nós. Hora que sera, disse Gomez Piz, ca minha
entençom he que nos vaamos a elles, ca poisja
despostos somos a este trabalho, erro serya
nom lhe darmos fim; porem comee algua cousa,
se a trazees , perque recebaaes alguu descanso ,
e tomemos alguu daquestes que nos encami
nhem pera onde aquelles Mouros estam. Bem
ouve hi alguns que quiseram de boamente fol
gar, se os nom forçara o empacho do capitam
e doutros alguns que acordavom com a sua teu
— 429 —
com. Tomaae, disse Gomez Piz contra Joham
Frrz, aquelle boõ scudeiro de que ja fallamos
que andara sete mezes em aquella terra, dous
homeês desta companhya, e encaminhaae estes
Mouros pera os navyos , e nós iremos em busca
dos outros que daquy partiram ante que oje
chegassemos.
— 430 —-

CAPITOLLO LR1°.

Do que aconteceo a Joham Frrz quando levava os Mouros.

Indo assy Joham Frrz sua vyagem corri seus


prisoneirosante sy, nom muyto seguro de achar
alguus contrairos que per ventura lhe fezessem
perder sua presa , sguardando pera todallas par
tes, porque a terra era chaã (1), acertousse do
veer ao longe cinquo pessoas que viinham con
tra elle, de cuja vista foe muy alegre, por
quanto lhe pareceo que se viinham dereita-
mente a elle ; porem começou de consiirar em
ello. Hora, disse elle contra os outros, vós ja
veedes aquelles Mouros como se veem dereita-
mente a nós. Elles me parece que som cinquo,
e nós somos tres , dosquaaes he necessaryo que
huu de nós guarde os presos. Vós Joham Ber-
tollomeu, disse elle, ficaae com el)es detras, e
Lourenceannes e eu iremos a aquelles que veem,
c vaamos logo dereitamente de rostro a elles,

> (1) A terra baixa indicada nas antigas cartas ao norte do Rio
ilo Ouro.
— 434 —

porque quanto mais arredados daquestes pelle-


jarmos, tanto sera mais nossa avantagem, por
que poderya seer que se mesturarvam com
aquestes que teemos, e serva aazo de Se solta
rem alguus. E em esto começarom de seguyr
dereitamente a aquelles que viinham, pensando
que eram Mouros de pelleja, o que acharom
muyto pello contrairo, ca todas cinquo eram
molheres , as quaaes receberom com leda voon-
tadecomo cousa que tam sem trabalho acrecen-
tava em seu cabedal ; des y Icvarõnas com os
outros a seus navyos.
— 432 —

CAPITOLLO LRII0.

Como Gomez Pií , e os outros que com elle eram ,


filharom os outros Mouros.

Seguyo assy Gomez Piz sua vyagem , segundo


ouvystes que dissera aos outros despois que
chegarom a aldea, e seendo ja afastado per boõ
spaço do lugar donde fezerom a presa , vyu huu
Mouro que viinha encima dhuíiasiio, oqual
parece que partira donde os outros Mouros fica-
rom ; e tanto que o Mouro ouve vista dos nossos,
lançousse de seu asno , e começousse de tornar
correndo pera onde leixara os parceiros. E por
que a terra era chaã", e o Mouro viinha folgado
e ouvera vista de muy longe donde os nossos
viinham, ecom todo esto os xpaãos, que eram
muy trabalhados, pollo grande trabalho e per-
dimento de sono que ouveromdous dyas avya,
nom o poderom seguyr; empero levavãno ante
a vista o mais que podyam , porem aa fim ou-
verõno de perder, nom quedando por isso dan-
dar sua vya dereita, ataa que chegarom a as
casas de hua aldea, onde parece que outros
Mouros estavam, naqual nom acharom algua
— 433 —
pessoa. E esto serva ja hora de terça. E sguar-
dando assy pella charneca quanto podyam de-
visar, viram ir os Mouros que dally partirom;
e assy como estavom cansados, encaminharom
empos elles spaçodhua legoa e mea, ondeforom
dar com elles no mar, acerca doqual secolherom
a huas rochas muy grandes que ally avya (1),
trabalhandosse porem os nossos de os buscar;
mas pero muytos fossem , por aazo da graveza do
lugar nom poderom cobrar mais de scte.E assy
em este trabalho andarom aquelle dya todo atee
preto da noite; mas sobre todo seu cansaço sen-
tyam muyto a fame e sede pera que nom tii-
nham nhuíi remedyo. E seendo ja buscados
todos aquelles lugares que sentyam aazadospera
alguus jazerem, acordarom de se tornar. Ebem
he que alguus disserom que serya boõ conselho

(1) Vimos precedentemente que Gumes Pires, quando chegára


ao Rio do Ouro , fundeíra na boca do rio , e depois seguira pelo
mesmo rio acima até a um porto situado na extremidade delle,
ao qual os nossos maritimos tinhão posto o nome de Porto da
Caldeira , onde se demorou 21 dias afim de estabelecer relações de
trafico com os Arabes do interior d'Africa ; mas, pelos motivos
que o A. indicou, esta negociação ficando sem fructo, se fez
de vela, e se afastou dalli 4 legoas contra a outra parte do rio,
reconheceo a ilha que está no mesmo rio ( o ilôt de roches très-
éleve das cartas do almirante Roussin) , e depois de terem feito
em tudo 1 1 legoas, e forão finalmente dar com os Arabes, osquaes
se refugiárão em humas rochas muj" grandes que ally avya. Estas
rochas são os 7 montes que os nossos maritimos de então mar-
cárão nas cartas , e que se vem indicados já no Mappamundi de
Fra Mauro de 1460 copiados das ditas cartas nauticas portu-
guezas ; os Jltos Montes do globo de Martim de Bohemia de
Nuremherg .
28
— 434 —
de ficarem ally delles aquella noite, pera veer
se sahyam os Mouros que jaziam escondidos;
pero nom ouve hi tal que se atrevesse a ficar;
tanto sentyam seus corpos postos em fraqueza !
ante determinarom todos de se tornarem pera
suas caravellas. E segundo parece que se quis
nosso Snor Deos nembrar de sua fraqueza, e
ordenou que encontrassem naquelle caminho
per onde hvam, dous camellos sellados, que
foe grande remedyo pera seu descanso, ca se
revezavam em elles, atee que chegarom a seus
navyos, onde acharom que tiinham ja de presa
Ixxix. almas. No outro dya foe acordado antre
elles, que porquanto seus navyos nom podyam
alojar tantos Mouros, por aazo do sal que leva
ram deste regno, e esto a fim de fazerem salga
nas pelles dos lobos marinhos quando outra
presa nom podessem cobrar, ou per ventura
entrar no resgate com os Mouros, que lanças
sem todo aquelle sal fora, como de feito feze-
rom. E quiserom ainda partyr pera ir correr
outra costa, e por aazo da tormenta que lhes
sobreveo, determinarom de ensevar ally seus
navyos, porque se podessem milhor repairar
aa fortuna do mar quando tornassem. E acaba
dos seus navyos de correger, apartou Gomez
Piz huu daquelles Mouros, por saberparte onde
averya ainda outros Mouros que podesse filhar;
e ja seja que lhe o Mouro dissesse onde estavam
alguas aldeas, e elles fossem a ellas passandosse
ua parte do sul, nom acharom em cllas nhuu
— 435 —

Mouro, nem Moura, nem outra criatura. Eassy


andarom per certos lugares, per onde o Mouro
sentya que os acharyam, ataa que de todo sen-
tirom que os Moul*os eram avisados, e que se
rva trabalho perdido andarem ally mais em
sua busca. Porem acordarom de se tornar pera
oregno, visto como lhe os mantiimentos falle-
ciam, specialmente a augua , deque naquella
terra nom podyam aver outro refresco. E assy
enderençarom sua vyagem, ataa que tornarom
a Lagos, em cujo termo o Iffante estava em huu
lugar que se chama a Mexilhueira.
— 436 —

CAPITOLLO LRIir.

Da caravella que foe a Meça, e dos Mouros que trouve.

No outro anno, que era do nacimento de Xpõ


de iiijcRvij. (1), consiirando o Iffante como os
Mouros nom queryam no ryo do Ouro entrar em
trauto, pera aqual cousa, postoque algua voon-
tade tevessem, minguarya de todo por causa
dos Mouros que forom filhados per Gomez Piz ,
como largamente teendes ouvydo, quis provar se
per ventura se poderya esto milhor avyar, trau-
tando per aquelle lugar que se chama Meça (2).
E por que ainda podesse daquella terra aver mi
lhor noticia, porem mandou logo fazer prestes
hua caravella de huu seu scudeiro, que se cha
mava Diego Gil , oqual era homem que o tiinha
muyto bem servydo na guerra dos Mouros, assy
per mar como per terra. E teendo assy enca-

(I) 1447.
(?) Messa, cidade situada na provincia de Sus, no imperio de
Marrocos.
Leão Africano , liv. II , diz que fárn edificada pelos antigos
Africanos.
— 437 —
minhado, soube parte como huu mercador de
Castel Ia , que se chamava Marcos Cisfontes,
tiinha daquelle lugar xxvj. Mouros ja resgatados
pera se darem por certos Guineus. E porque
seu navyo podesse teer algua causa em sua ida ,
fez saber ao dicto mercador, que se lhe prou
vesse, que lhe seryam levados seus Mouros a
aquelle lugar, naquellacaravella queassy tiinha
encaminhada , com tanto que lhe desse certa
parte do que lhe sobreviesse do resgate. E por
dizer verdade nom era tanta a sperança do pro
veito daquelles, quanto o Iffante era contente
por duas razoões : a primeira por teerem milhor
aazo de poder veer a terra, e saber per que
maneira entraryam no trauto da mercadarya ;
e a segunda por trazerem della aquelles Gui
neus (1), ercendo que receberyam a fe de Xpõ.
Muyto prouve a aquelle mercador de seme
lhante partido como lhe o Iffante cometer en-
vyava; e porem foe logo a caravella avyada, e
a carrega recebida, seguindo suavyagem derei-
tamente a Meça , onde muyto fallarom em seu
trauto, mas nom poderom acertar nhua cousa.
Se querees, disse Joham Frrz, aquelle scudeiro

(I) Esta passagem mostra que ainda neste tempo o trato dos
Negros de Guiné se fazia pelos portos aquem mesmo do Cabo
Não. 0 Infante sabia pois, antes de tentar aquella negociação, que
alli era um dos entrepostos do commercio entre Marrocos e os
estados negros , como o c desde 1810o pequeno reino fundado
por Hescham dos Mouros independentes ao sul de Marrocos , do
commercio entre este reino , c o de Tambouctu,
— 438 —
que ficara os sete mezes antre os Mouros de
Zaara, como ja teendes ouvydo, contra Diego
Gil, e Rodrigueannes, outro scudeiro que o
Iffante la envyava pera acertar aquelle trauto,
e assy a huu Castel laão mercador que ally era
pera resgatar os Mouros, sairey em terra pera
encaminhar este resgate. E tomando sua segu
rança, foe antre elles, onde trautou per tal
guisa que fez trazer aa caravella cinquocnta e
huu Guineus, pollos quaes forom dados xviij.
Mouros (1). E assy acontcceo que o vento saltou
tam rijo da parte do sul, que per força lhe fez
levantar vella, e tornaronse pera o regno. Ally
foe trazido ao Iffante huu lyam, que elle despois
envyou a huu lugar de Irlanda, que se chama
Galveu, a huu seu servidor que morava em
aquella terra, porque sabyam que nunca seme
lhante em aquella parte fora visto (2). E Joham
Frrz ficou assy atee que outro navyo tornou
por elle. E em este anno meesmo tornou Antam
Gllz ao ryo do Ouro, por veer se poderya en
caminhar os Mouros que tornassem ao trauto;

(1) Esta particularidade mostra a grande influencia que tinha


João Fernandez sobre os Mouros, sem duvida por fallar o arabe,
e ter viajado com elles. M. Ejrries, no artigo biographico que
escreveo deste intrepido viajante (Biographie universille) , diz
com razão que elle fôra o primeiro Europeo que penetrara no
interior d'Africa , e que as particularidades da relação que dera
apresentavào uma grande analogia com as da relação de Mungo-
Park.
(2) Galveu, lea-se Galivar, cidade situada na bahia do mesmo
nome.
— 439 —
onde sua ida ouvera de seer muy periigosa, ca
seendo sobre ancora encima do ryo, os Mouros
forom logo na ribeira, antre os quaaes era huu
que bem mostrava que antre elles tiinha sno-
ryo, doqual Antam Gllz recebeo segurança,
avisandoo porem que nom segurasse dos outros
senom em quanto elle fosse presente. E assy
foe que seendo aquelle Mouro dally afastado,
porque ja os outros Mouros mostravam sinal
de fiança aos xpaãos, quis Antam Gllz sayr em
terra, pensando porem que o Mouro que o se
gurara primeiro serya presente; e tanto que
foe acerca da terra, nom veendo ally aquelle
capitam ou snõr dos contrairos, nom quis sayr
fora. Empero porque nom podya bem fallar
com elles, seendo afastados, fez chegar o batel
muyto acerca da prava , onde os imiigos bem
mostrarom o engano que traziam encuberto,
remessando suas azagayas, come homeês que
queryam mostrar a mortal imiizade que aos
nossos avyam. E brevemente que se nom fora
o grande ardimento dAntam Gllz, ally fizera
elle fim com todollos que com elle estavam,
fazendo muy rijamente vogar seu batel a fora,
aqual cousa se nom podya fazer senom muy
trabalhosamente polla multidom das azagayas
que cahyam sobre elles. Empero prouve a Deos
que sayrom dally, leixando alguus daquelles
Mouros feridos, e dos xpaãos foe huu de tal
guisa ferido deque a poucos dyas fez sua fim
viindo ja o navyo per o mar. E em estc mesmo
— 440 —

anno foe la outra caravella de }iuu servidor do


Iffante, que se chamava Jorge GUz, naqual fo-
rom elle e outro, e trouxerom do ryo do Ouro
muyto azeite e pelles de lobos marinhos. E em
este capitollo fazem fim as cousas deste anno,
doqual nom achamos outros leitos que de cou
tar sejam.
— 441 —

CAPITOLLO LRIV.

Como Vallarte foe a terra de Guinee, e per que maneira


foe sua flcada.

Spargendosse a fama deste feito pellas partes


do mundo, ouvede chegar aa cortedelRey de Di
namarca e de Suecia e Noroega (1 ), e como veedes
quehomeês nobres se entremetem de quererem
veere saber semelhantes cousas, acertousse que
huu gentil homem da casa daquelle principe,
cobiiçoso de veer mundo, ouve sua licença, e
veo a este regno. E andando per tempo em casa
do Iffante, huu dya lhe veo a pedyr que fosse
sua mercee de lhe armar hua caravella, e de o
encaminhar como fosse a terra dos Negros. 0
1 ffante como era ligeiro de mover a qualquer
cousa em que alguíi boõ podesse fazer honra
ou acrecen ta mento, mandou logo armar hua
caravella o mais compridamente que se pode

(I) Reinava então nestes três reinos o rei Christovão, neto do


imperador Roberto , e sobrinho de Eric XII , o qual abdicára em
1441. 0 rei de que falla o A. morreo em G de janeiro de 1448,
e as tres coroas se separarão.
— 442 —
fazer, dizendo que se fosse ao Cabo Verde, e
que vissem se poderyam aver segurança do
rey daquella terra, porquanto lhe fora dicto
que he muy grande snõr, mandandolhe suas
cartas , e que esso meesmo lhe dissesse algíias
cousas de sua parte por serviço de Deos e da sua
sancta fe ; e esto porque lhe afirmavam que
era xpaão : e a conelusom de todo era que se
assy fosse, que a ley de Xpõ tiinha que lhe pro
vesse seer em ajuda da guerra dos Mouros dA-
frica, naqual eIRey dom Affonso, que entom
regnava em Portugal , e elle em seu nome, com
os outros seus vassallos e naturaaes, continua
damente trabalhavom. Todo foe prestes muyto
asinha, e aquelle scudeiro, que se chamava
Vallarte, metido em seu navvo, e com elle huu
cavalleiro da ordem de Xpõ, que se chamava
Fernandaffonso , que era criado e feitura do
lffante, que elle mandava em aquella caravella,
porquanto Vallarte era strangeiro, e nom sa-
bya tam bem os costumes e maneira da gente,
que encaminhasse os mareantes e as outras
cousas que perteeciam aa governança do navyo,
e ainda casy por embaixador, se se acertasse
de veerem aquelle rey, levando pera ello dous
naturaaes daquella terra por turgymaães. Em-
pero a capitanya principal era de Vallarte. E
assy seguiram per sua vyagem, despois de
grandes trabalhos que ouverom no mar, que
passados seis meses, do dya que primeiro par
tiram de Lixboa, chegarom aa ilha da Palma,
— 44a —
que he na terra dos Negros acerca do Cabo
Verde ; onde teendo seu conselho sobre a ma
neira que dally avante avyamde teer, segundo
os regimentos que levavam do Iffante, fezerom
despois vella pera dyante , porque ainda aquelle
nom era o porto onde elles avyam de teer asses-
sego. E seendo a fundo da ponta em huu lugar,
que antre os naturaaes daquella terra he cha
mada a Abram, ally fezerom lançar seu batel
fora em terra, noqual sayu Vallarte com alguus
outros , onde acharom ja muytos daquelles Ne
gros , dosquaaes Vallarte requereo que lhe des
sem huu , e que elle lhe darya outro , pera aver
antre elles segurança per que podessem aver
suas fallas ; cuja reposta foe, que tal cousa nom
era em elles de fazer sem autoridade de huu ca-
valleiro que ally estava, caasy como governador
daquella terra, que avya nome Guitenya, oqual
tanto que soube semelhante requerimento, veo
ally, e prouvelhe muytode outorgar o que Val
larte requerya. E tanto que huu daquelles Ne
gros foe na caravella, Fernandaffonso que sabya
milhor nossa linguagem portuguees, começou
de fallar com elle, dizendosse assy : O porque
requeremos tua viinda a este navyo, foe porque
digas per nossa autoridade a teu snõr, como nós
somos de huu grande e poderoso principe da
Espanha, que he na fim do poente, per cujo
mandado aquy viimos pera fallar da sua parte
ao grande e boõ rey desta terra ; fazendolhe
leer hua das cartas que levavam, aqual lhe foe
— 444 —

deelarada per huu de seus entrepetadores, pera


o dizer assy a aquelle cavalleiro que o ally en-
vyara. Quanto, disse elle, se vós querees veer
Boor, que he o nosso grande rey, nom podees
pollo presente aver seu recado, porquanto he
certo que he muy alongado daquy, onde anda
guerreando a huu outro grande snõr que lhe
nom quer obedeecer. E se ainda fosse em sua
casa, disse Fernandaffonso, em quantos dyas
podyam ir a elle com nosso recado, e esso mees-
mo tornar com a resposta? De seis ataa sete
dyas, serva a mayor tardança, respondeo o
Guineu. Pois, disse Fernandaffonso, sera bem
que digas a esse cavalleiro com que vives, que
mande la huu homem com seu recado, fazendo-
Ihe saber todo o que te ja disse, e se o teu snõr
assy fizer, fara grande serviço ao seu rey e pro
veito a sua terra. Hora, disse o Guineu , eu direv
todo muy bem a Guitanye. Entom lhe fezerom
apresentar vyanda, de que elle comeo e beveo;
des y deronlhe hua carta daquellas que tra-
zyam , que mostrasse a seu snõr, naqual , lhe
dissesse, que dizia aquello que lhe elles disse-
rom, e que esso meesmo a levasse por sinal
damizade. Mas ja quando aquelle Guineu foe
levado a terra onde estava o cavalleiro que o
envyara, hi era outro semelhante, que avya
nome Satam , c outro que se chamava Minel',
que pouco avya que ally chegara, cuja fealdade
era extrema; ca segundo disserom aquelles que
ally eram, nom se podya pintar cousa maisfea,
— 445 —
nem seu corregimento nom era grande teste
munha de sua honra, ca assaz mal corregido
pareceo ally; empero de mayor poder era que
alguu dos outros. E entretanto aquelle Guineu
(allava comocavalleiroa embaixada que levava,
o batel estava a cerca da praya sperando reposta,
aqual era muy trabalhosa de aver, por causa
dos Guineus, que eram tantos sobre aquelle
que viinha da caravella, com entencom de sa
berem o que dizya , e esso meesmo veer a carta
que trazya, que os cavalleiros eram postos
em grande trabalho por os afastar dally. E
finalmente nunca em aquelle dya se pode aver
reposta ; como quer que o cavalleiro se metesse
na augua assaz pera fallar com os do batel,
tanta era a multidom dos Guineus, que nunca o
leixarom acabar, leixando todo pera outro dya,
noqual o batel muy to cedofoe em terra; porem
ja hi era o cavalleiro em hua almadya, naqual
quisera ir aa caravella, mas quando vya que
hia o batel , tornousse a terra, e fez lhe trazer
hua cabra e huu cabrito, e cuzcuz, e papas com
manteiga, e pam com farinha e spigas, e huu
dente dallyfante , e semente de que faziam
aquelle pam , e leite, e vinho de palmas. E acon-
teceo de seer ally viindo em aquella noite huu
cavalleiro, que se chamava Ámallam, que fora
filho de huu tyo daquelle Guitanyc, per cuja
mercee elle recebera aquella terra, oqual parece
que quisera fallar aos do batel, mas o Guineu
nom lho quis consentyr, dizendo que nom era
— 446 —
rezom, teendo elle semelhante cousa começada ;
por cuja rezom avisou os nossos que se tornas
sem, e que trouxessem aquellas cousas pera
seu refresco, e que despois de comer fezessem
a volta, e que entretanto averyam elles seu
conselho. Mas se ante eram em deviso por feito
da falla, muvto mais o foram sobre a tarde; e
porque a nós conviírya fazer grande prolixidade
se ouvessemos de contar pello meudo quantas
maneiras se teverom antre huus e os outros
sobre esta falla, abaste que estecavalleiro Guy-
tanye foe per vezes aa caravella, indo em hua
almadya, e levando quatro consigo, e fallou
com os nossos sobre a mercadarya , dizendo que
elle abastava pera todo trautar, porquanto
aquelle rey Boor quando dava terra a alguíi
caval leiro, podya fazer em ella como elle mees-
mo, e assy qualquer cousa que fezesse elle a avya
por bem feita. Os nossos disserom que nom
trazyam mandado de fazer nhua cousa atee que
primeiro fallassem a aquelle rey, e sobresto
passamm muytas razoões , cuja conelusom foe
que elle mandarya todavya a casa delRey com
seu recado. E entretanto speravam pollo messe-
geiro que alla era,. aquelle Guitanye hia segu
ramente ao navyo, levando daquella milhor
vyanda que tiinha, e dentes dallyfantes, c assy
outras alguas cousas, e elle esso meesmo rece
bendo convites, c pano, com outras joyas que
lhe os nossos davam, mostrando seer muvto
contente de sua conversaçom. E huíi dya lho
— 447 —
vierom a rogar que lhes ouvesse huu ellifante
morto pera lhe tomarem a pelle e os dentes e os
ossos , com algua parte da carne ; ao que res-
pondeo o Guineu que sem grande trabalho se
poderya aver. Pois, disse Vallarte, se nos vós
esto encaminhardes, per qualquer de nós am
bos que ca torne, averees hua tenda de pano de
linho, naqual se possam allojar de xxv ataa
xxx homeês, tam leve que huu a possa levar ao
pescoço. Muytas vezes hyam os nossos a terra
com elle e per seu chamado, nom que esteves-
sem tam acerca que os podessem filhar. E acer-
tousse hua vez que seendo o batel acerca da
prava , que com o golpe do mar tocou em seco,
de que aquelles que estavam em elleforommuv
torvados ; aqual cousa sentida pello cavalleiro,
disse que estevessem seguros, porquanto aquel
les todos eram seus, e que lhe nom faryam
nhuíi desprazer. E assy que em todo, aquelle
cavalleiro guineu se mostrava homem verda
deiro. Mas a fortuna , alguas vezes ajudada
pello maao conselho dos homees, ordenou o
feito per tal guisa, que nom poderom os nossos
aver fym de tam blando começo. E foeassy, que
seendo aquelle Guitanye em busca do ellefante„
como tiinha prometido, Vallarte, come homem
de pouca descriçom , quis sayr huu dya em
terra, porquanto parece que avya peça que o
chamavam. E bem he que lhe foe dicto primei
ramente que scusasse aquella ida, e todavya
quis sayr fora, como aquelle a que a fortuna
— 448 —
chamava pera veer a hora de seu grande traba
lho. E seendo acerca de terra, pareceo hi huu
Negro, que trazia hua cabaaça com vinho ou
augua, fingendo que lha querya dar, e Vallarte
disse aos que remavam, que se chegassem, e
como quer que alguus lhe dissessem que nom
era siso semelhante chegada, todavya ouvessede
fazer o que elle mandava, com grande dano de
todos, ca chegando o batel de ceavoga , forom
tanto acerca da terra por tomar a cabaaça ao
Negro, que tocou o batel. E em estando Vallarte
oolhando pera hua soma de gente daquelles
Negros, que jazyam aa sombra de hua arvore,
huu dos torgimaães que levavam , que se cha
mava Affonso, fez que querya tomar a cabaaça ,
e leixousse escorregar fora , e os outros veendo
aquesto, querendo tornar o batel atras, sobre-
veo hua onda, e botouho de todo fora; onde os
Negros muy rijamente acodirom todos de rol-
dom sobre o batel , remessando suas azagayas,
assy que de quantos sairom da caravella da-
quella vyagem, nom tornou ao navyo mais
que huu, que se lançou a nado; mas dos outros
nom achamos que fim ouverom,por quanto
aquelle que veo nadando diz que nom vyu ma
tar mais que huu , e que per tres ou quatro
vezes que oolhou pera detras, sempre viu Val
larte estar asseentado sobre a popa do batel. Em-
pero ao tempo que screvyamos esta estorva
vierom ao poder do Iffante alguus cativos natu-
raaes daquella parte, que disserom que em huu
— 449 —

castello muyto afastado pello sertaão, esteve-


rom quatro xpaãos, dosquaaes ja huu era fina
do, mas que os tres ficavam ainda vivos ; pello
qual alguus teverom , segundo os sinaaes que o
Negro dava, que seryam aquelles. E consii-
rando Fernandaffonso tam afortunado aqueeci-
mento, e como nom tiinha batel com que mais
podesse tornar em terra pera saber parte dos
outros, fez levantar suas ancoras, e tornousse
pera o regno (1).

{ 1 ) Esta particularidade , que alias não encontrámos no cap. xv


da Decada Ia de Barros, liv. I°, quando trata desta expedição, é
da maior importancia , pois explica o acontecimento referido na
ravla de AntonioUo Usus di Mare, isto é d'Antonio da Nole, datada
de 12 de dezembro de 1455, encontrada nos archiros de Genova
em 1802 por Graberg (Annali di geografla e di statistica, tomo II°,
pag. 285) , na qual aquelle viajante diz ter encontrado naquellas
paragens um homem de sua nação que elle julgou ser um dos
da expedlção de fivaldi , a qual tivera logar 1 70 annos antes, e
da qual não houvera mais noticia depois da partida della, se
gundo os AA. italianos.
Não sendo pois admissivel que um descendente dos homens
da expedição das galeras genovesas de Theãisio Doria e Vivaldi
conservasse a côr branca tendo o seu ascendente ficado entre os
negros, nem podesse saber a lingoa, AntonioUo ou Antonio da
Nolc não podia pois ter visto naquellas paragens outro homem
hranco senão um dos maritimos da caravella portugueza de Fer
nando Affonso e de Vttllarlc, de que trata Azurara no texto, tanto
mais que nem os diflerentes capitães portuguezes, nem Cadamoito
não encontrárão em parte alguma da costa d'Africa além do Bo
jador vestígios, nem tradições de terem hido áquellas paragens
alguns outros Europeos, anteriormente ao descobrimento feito
pelos Portuguezes.
Da expedição de fivaldi não houve mais noticia depois da sua
partida no xni° seculo. Tio tempo d'Antantolio havião apenas
29
— 450 —

tradições de que a dita expedição partlra com destino de sahir o


estreito de Gibraltar afim de fazer uma viagem desusada para o
Poente. Antoniollo era homem de boa educação , e vémos que
elle tinha conhecimento dos AA. em que se tratava daquelle
facto, mas embebido destas tradiçSes, e tendo noticia da existencia
de um indeviduo christão que tinha ficado naquellas paragens ,
julgou sem maior descernimento , e de certo ignorando o facto
referido por Azurara, acontecido alguns annos antes, que o
dito homem alli encontrado podia ser talvez um descendente
dos da expedição de fivaldi. (Ex illis galeis credo Vivalda qui se
amiserit sunt anni 170.)
Esta importante passagem da Chronica A''Azurara , confrontada
com a carta de Antonioito Vsus di Mare, publicada por Graberg,
e estas com a relação da segunda viagem de Cadamosto, não deixão
a menor duvida de que o homem de que trata Antonioito era um
dos tres pertencentes á caravella de Fernando Aflbnso e de Val-
larte, que alli ficarão em 1447, isto é havia 8 annos antes de ter
abordado Antoniollo ás mesmas paragens , e não descendente dos
das caravellas de ftvaldi, cujo destino se ignorava havia então
perto de dous seculos. Esta passagem serve tambem para refutar
as conjecturas do editor da dita carta , c as inducções dc Baldelh
no seu MiIIone , tomo I°, pag. 153 e seguintes, acerca do Portu-
lano Mediceo, e das duas cartas d'Africa do dito Portulano, as
quaes analysámos em a nossa Memoria sobre a prioridade do
descobrimento da costa Occidental d'Africa atém do Cabo Bojador
pelos Portuguezes, á qual remettemos o leitor, onde mostrámos
que as ditas cartas, longe de destruirem a nossa priorldade, antes
a confirmào.
CAPITOLLO LRV°.

» Como Antam GUz foe receber a ilha de Lançarote


.em nome do Iflaute.

Tanta h usança avyam ja os moradores de


Lagos em aquella terra dos Mouros, que nom
tam soomeute se avyam por contentes de irem
a ellafpera guerrearem os seus moradores, mas
ainda ouve hyalguus que se nom contentarom
de pescar nos lugares acostumados per seus
padres e avoos, e tentarom de ir pescar aos
mares daquella costa , pedindo licença ao In
fante, com certo preço que lhe por ello prome-
terom , que os leixasse la passar e ordenar sua
pescarya ; o que creo que nom fosse em vaão
requerido, ca bem he de cuidar que alguus da-
quelles que ante la passarom, viram o mar
assy acompanhado de pescado, perque se mo-
verom fazer tal requerimento. Concertados po
rem com o Iffante em certa cantidade de di
nheiro que lhe avyam de dar pollo dercito que
lhe hi sobreviesse, encaminharom sua ida na
vegando per sua vyagem , atee que chegarom a
— 452 —

huu lugar que se chama o Cabo dos Ruyvos (1),


onde começarom de ordenar sua pescarya , de
que achavam muy grande abastança. E estando
assy per alguus dyas , e teendo boa parte de
pescado seco, e outro sobre seus perchees pera
o secar, sobrechegarom os Mouros muy queixo
sos de tal atrevimento, e por pouco que nom
matarom os pescadores, o que de feito fezerom
se nom fora a boa deligencia que poserom em
seu recolhimento, de guisa que a afim torna-
rom toda sua ira sobre o pescado que estava
stendido pera secar, oqual spedaçarom com
suas armas, nom com menos sanha doque fe
zerom aos contrairos se os poderom percalçar.
Dous daquelles pescadores forom feridos em
aquelle recolhimento, nom porem de periigosas
feridas, mas taaes dequeem breve guarecerom,
e tornaronse pera sua vil la nom arreprendidos
da vyagem, ca assaz trazyam de guaanho no
pescado que ja ante tiinham seco e empilhado
em seu navyo, cautellososdo caso que se lhe ao
dyante recreceo.
E em este anno desejando o Iffante de pros-
seguyr muyto mais sua primeira teençom, visto
como pera os feitos viirem a milhor perfeiçom,

(1) Cabo dos Ruyvos ou Angra dos Ruivos das antigas cartas
(vide pag. 59 , nota 2). Sobre a grande abundancia de peixe que
se encontra nestas paragens , vide a curiosa e erudita obra de
M. Berthlot , intitulada : De la Pêrhe sur In cófe occidentale d"A-
frique. Paris, 1 8^0.
— 453 —
lhe era necessaryo algua das ilhas de Canarea,
contrautou com aquelle mice Maciote deque ja
faliamos, que avya o senhoryo da ilha de Lan
çarote , que lha leixasse ; oqual satisfeito per
mercee ou preço ordenado cada huu anno,
leixou a dieta ilha com todo seu senhoryo ao
Iffante; daqual fez principal primeiro capitam
aquelle nobre cavalleiro Antam Goncalvez,
oqual em seu nome foe tomar a posse da dieta
ilha, onde esteve per alguus tempos, animando
os seus moradores a serviço e obedieneya de
seu senhor, com tanta benignidade e doçura
que em muy breve tempo foe conhecida sua
vertude.
— 454 —

CAPLTOLLO LRVI°.

Como o autor deelara quantas almas forom trazidas a este regno


despol» do começo desta conquista.

Cynco razoões pus no começo deste livro per


que o nosso magnanimo principe foe movido a
mandar seus navyos tantas vezes sobre o tra
balho desta conquista; e porque das quatro me
parece que vos tenho dado abastoso conheci
mento nos capitollos onde falley da devisam
daquellas partes do Oriente, ficame pera dizer
da quinta rezom, poendo certo numero a as
almas dos infiees que daquellas terras vierom
a esta, per vertude e engenho do nosso gloryoso
principe ; asquaaes per conto achey que forom
novecentas e viinte e sete, dasquaaes como pri
meiro disse, a mayor parte forom tornadas ao
verdadeiro caminho da sal vaçom (1 ) . Hora veede

(1) Alguns AA. modernos, fundando-se nas relações de Cada-


mosto, tem pretendido sustentar que forão os Portuguezes os
primeiros que entre as nações modernas introduzlrão o com-
mercio da escravatura desde o principio do descobrimento que
fizerão da costa d'Africa. Não cabe nos limites desta nota mostrar
— 455 —

qual serva o numero da geeraçom que se da-


questes podya seguyr, ou qual filhamento de
cidade ou villa podya seer de mayor honra que
aquesta de que ataa agora tenho scripto, ca
leixando estas e as que dellas decenderom , c
ataa fim do mundo podem decender, outras
muytas mais vierom despois , segundo no livro
seguinte podees saber, ca nos foe necessaryo
fazer aquy fim nos feitos deste anuo do naci-
mento de Xpõ de iiijc. Rviij (1 ), por quanto a este
tempo ouve elRey dom Affonso de Portugal ,
quinto quanto ao nome, e duodecimo no numero
do senhoryo, enteiramente o regimento de seus
regnos, seendo ja em idade de dezassete annos,
casado com a muyto vertuosa e illustrissima
princeza reyna dona Isabel, que foe filha do
iffante dom Pedro duque de Coimbra e snõr de
Montcmoor, que nos annos passados governara
o regno em nome delRey, segundo em alguas
partes desta estorva leixamos lal lado, e como
muyto mais perfeitamente acharees na cronica
gceral do regno. Consiirando que assy como
todallas outras cousas caasy começavam en.tom
com a novidade do regedor, assy nos pareceo
rezom que começassem todollos livros de seus

quanto são erradas taes asserções, diremos todavia que o celebre


Las Casai, na sna Hisloria de las índias mss., diz, eap. 19, que
João de Bethencourt trouxera das Canarias muitos cativos que
fendera em Hespanha , em Portugal i em França.
— 456 —

feitos e storyas. E desy por nos parecer ra


zoado vellume aqueste que ja tecmos scripto,
fizemos aquy fim, como dicto he, com enten-
çom de fazermos outro livro que chegue ataa
fim dos feitos do Iffante, ainda que as cousas
seguintes nom forom trautadas com tanto tra
balho e fortelleza como as passadas, ca despois
deste anno avante, sempre se os feitos daquellas
partes trautarom mais per trautos e aveenças
de mercadarya, que per fortelleza nem trabalho
das armas (1).

( I) Barros não poude supprir a falta da continuação do texto


de Azurara (vide Decad. I", liv. I°, cap. I°, foi. 32°). Este grande
historiador confessa, que tudo quanto refere do proseguimento
destes descobrimentos é tirado de algumas lembranças que
achára no Tombo, e em livros da fazenda d'elRei D. Affonso V.
Para mostrár-mos quanto é para deplorar que Azurara não le
vasse ao fim esta chronica , pelo menos até a epoca da morte do
Infante, e portanto do» descobrimentos effectuados depois deste
anno de 1448 até 1460, bastará dizer que desde o dito anno em
diante tudo é confusão nas datas, e nos acontecimentos relativos
n este proseguimento, tanto em Barros, como em Goes na Chronica
do principe D. João , no cap. 8 , que consagrou a estes descobri
mentos.
Barros llmita-se a citar no anno de 1449 a licença que elRei
dera ao infante D. Henrique para mandar povoar as 7 ilhas dos
Açores. Deste anno salta ao de 1457, em que apenas falla da
doação que elRei fizera ao infante D. Fernando, e só no anno
de 1460 refere que nesta epoca Antonio da Nolle (o Antonietto
de que já falíamos), Genovez de nação e homem nobre , que por
alguns desgostos da patria viera a este reino, cm companhia de
Bartholomeu da Nolle seu irmão , e Raphael da Nolle seu sobri
nho, aos quaes o Infante deu licença para que fossem a descobrir
as ilhas de Caho Verde, hindo ao mesmo tempo por mandado do
— 457 —

mesmo Infante ao dito descobrimento uns criados do infante


D. Fernando.
De maneira que nos deixa na ignorancia do progresso regular
que tiverão os nossos descobrimentos na costa d'Africa desde o
anno de 1448 , em que Azurara acabou esta chronlca, até 1460 ,
em que morreo o infante. Damião de Goes, que pretendeo recon
tar com mais exactidão e mais circumstanciadamente estes acon
tecimentos , deixou-nos na mesma confusão no cap. 8 da Chronica
do principe D. João , onde trata dos descobrimentos do infante
D. Henrique, e além disso commettendo grande erro relativa
mente á parte da costa que se achava descoberta até ao anno de
1458 (vide cap. 16, pag. 39 e 40 da obra citada ) , erro que fica
refutado pelo que se diz nesta Chronica d1'Azurara, cap. 78,
pag. 372.
— 458 —

CAPITOLLO LRVII".

No qual o autor põem final coneluaom de sua obra.

Toda obra que ha de seer perfeita, requerc


que seja posta em numero ternaryo, scilicet ,
que aja principio, e meyo, e fim; pera cujo
milhor conhecimento he bem que saibamos que
som tres ternaryos em a geeral universidade do
mundo , dos quaaes ao primeiro chamamos so
bre excellente, nem podemos achar alguu certo
nome que sua perfeiçom nos possa sinificar,
porque da sensuallidade nom he conhecido, e a
natural natureza o nom pode entender; mas
obediente creença, com grande humildade,
avyvada per graça de Deos, em elle poem ati
cada firmeza. E por esto o phillofal theollogo
grande Alberto (1 ), sobre o primeiro capitollo da
cellestrial jerarchya, poem tres graaos do en-

(1 ) Alberto Magno , bispo de Ratisbona , um dos homens mais


encyelopedicos da Idade Media. As suas obras forão publicadas
em Lyão em 2 1 volumes de folio. Sobre os seus biographos e seus
escriptos, vide o excellente artigo Tlbert le Grand, no tomo XIXo
de VHistoire liiléraire de la France, pag. 362 e seg.
— 459 —

tendimento perque se ha em conhecer Deos. E


o primeiro compara a as aves que voam de
noite, assy como murcegos, curujas, e outras
semelhantes , cuja vista per alguu modo nom
pode sofrer a elareza do sol ; o que o principe
dos philosophos afirma em sua metafísica, di
zendo que tal he o nosso entender, comparado
a as cousas que em seus seeres , quanto he aa
naturalleza, som manifestas, como o olho da
curuja ou murcego em comparaçom da elari
dade do sol ; ca tal vista teem os que se envol
vem em os desejos da terra , ocupando toda sua
afeiçom em o que recebem das imageês senti
das, e com esto embargam seu conhecer, que
nom sabe cousa do seer devinal. E no segundo
faz comparaçom das outras aves que teem o
sentido mais esforçado, e soportam a queen-
tura do sol, mas quando sguardam seu splan-
dor, trememlhe os olhos aficadamente ; daqual
maneira husam alguus , que alongandosse das
cousas de fora, seguem specullaçom per enten
dimento, e afastando seu conhecer da materyal-
leza, aa longa e tremendo veem a Deydade,
querendoa entender com rezom humanal, a qual
fallecendo a meude, caae em error, assy como
cayu parte dos grandes philosophos nom allu-
meados per lume de fe. A terceira vista teem
as aguyas liindas , que podem oolhar com vis
toso sentyr a esplandecente roda daquesta pla
neta ; pellas quaaes principalmente podemos
entender os qiie leem pello livro da vida , que
— 460 —
toda llas cousas a que seu entendymento se es
tende sem outro descurso conhecem. E assy os
homeês que em conhecer Deos querem cobrar
de todo firmeza, sojugam sy meesmos ao sancto
Evangelho, e do que entendem tomando solaz,
adoram com humildosa e gram reverençao que
per sotilleza nom podem abraçar, e confessam
fielmente com o doutor sam Thomas em o nono
artigoo da questom x. do livro que se chama de
potencia Dey, que em Deos he huu real circullo
em ternaryo perfeito de todo çarrado , porque
elle entendendo sy meesmo diz e geera huu
verbo eternal , emque vee sy e todallas cousas.
E do padre e filho he spirado huu amavyoso
procedimento, perque a Devinal essencia he
amada, e todo aquello que della procede. E assy
onde foe o começo do entender, ally faz fim a
voontade amante. Exemplo desto tcemos em
nós, porque consiirando o que entendemos,
geerasse na alma certo conhecer, e estonce o
entendimento apresenta aa voontade que livre
mente filhe o que lhe mais praz, e ella receptiva
de amavyoso objecto, enelinasse a aquelle per
afeiçom de que o entendimento foe primeiro
movido. Per este modo se acaba o circollo, que
he sobre spiritual de alteza infunda, e em sy
meesmo nom pode proceder a allem do ternareo
em que se termina.
O segundo ternaryo circullar he de natureza
que çarra em sy todallas criaturas, e maginassc
per aquesta maneira : Poemos algua fonte sem
— 461 —
fallecimento de que certo ryo toma nacença, e
prosseguindo seu curso , segundo vigor que em
seu começo recebeo, a aquella fonte se torna
em fim, de que ante procedeo originalmente.
E assy teem principio todallas cousas em o
senhor Deos, geeral causador, e continuando o
seer que recebem , em aquello poem postumeira
fim de que ouverom primeiro começo. E por
este ternaryo, que em ellas he de principio, e
meyo, e termo final , diz o philosopho no livro
que fez, emque fallou do ceeo e do mundo, que
o ternarvo he conto de toda causa, e elle carra
em sy tal perfeiçom, e meyo, e certa fim,
deque nhua criatura fica isenta. E por esto foe
estabelecido antiigamente que Deos em ternaryo
fosse louvado.
O terceiro ternal circollo chamamos moral,
e perteece a as obras que se fazem per nós,
asquaaes começandossc em a feuza que o senhor
Deos a ellas quer dar, elle as faz principal
mente, e nós somos estromentos postos em
meyo, de que elle husa a seu prazimento ,
obrando aquello que he sua mercee, acaba n-
doas como elle quer; em cuja confirmaçom he
scripto em o Evangelho de sam Lucas, que fa
zendo todo o que nos he mandado, conheçamos
que somos servos sem proveito, comprindo
aquello aque somos obrigados. E por certo todo
o que nós podemos he vaydade, pois sem nós
se pode comprir, e em ello nada merecemos
senom quanto praz ao criador de nos outorgar
— 462 —

graciosamente, fàzendonos estremada mercee


por husar de nós em suas feituras, querendo
que sejamos medeaneiros em alguas cousas
que elle faz. E desto praz aa sua boondade, por
em nós achar algua sua obra perque ajamos
boõ gallardom. Sentindo os sesudos esta in-
fiinda mercee, que os faz seer aquello que
som, e entendendo que todas boas obras delle
procedem com emperiaj prazimento, confessam
que nada merecem por cousa que façam, e tra
balham por compryr tal redondeza , perque se
termine todo seu acto em aquelle principio
donde começou.
E porque vós, muyto alto e muyto excellente
principe, antre os mortaaes, segundo meu cuy-
dar, mais vertuoso snõr, com principal fim de
agradecimento mandastes a mym Gomez Eanes
de Zurara, vosso criado e fectura, per vossa
mercee cavalleiro e comendador na ordem de
Xpo, que feze6se este livro, com grande rezom
me parece que em agradecimento faça delle fim.
E pois que o apostollo sam Paullo nos ensina
que em todallas cousas demos graças a Deos,
como he contehudo em híia epistolla que en-
vyava aos de Thesallonica, fazendo circollo de
minha obra, em aquello ponho postumeiro
termo que foe ajudoiro no começo em minha
voontade requerydo, oferecendo ao infiindo
Persoal Ternarvo aquellas graças quejandas
posso, que em dar quaaesdevo nom som pode
roso : Primeiramente ao Padre sobre essencial ,
— 463 —

de que geeral mente he todo proceder, agradeço


o engenho que me deu pera esta obra começar :
E despois ao Filho sobre spritualleza, que de
seer nom ouve começo, agradeço a ajuda que
me fez pera continuar o que tiinha começado :
E desy ao Spirito Sancto sobre natural, de que
todo bem avemos per amoryo , agradeço a espi-
raçom per que moveo vossa alteza a me esto
assy mandar, e nom a alguu outro de vossos
naturaaes e sobgeitos , de que assaz poderees
aver. Ejuntamente a todallas Tres Pessoas, que
som inefabel Trindade e sobre essencyal Uni
dade, huu soo nosso Senhor Deos verdadeiro,
agradeço a fim, per que todo acabou milhor
do que eu ante cuidava.
E acabousse esta obra na livrarya que este
Rey dom Affonso fez em Lixboa, dezooito dyas
de fevereiro, seendo scripta em este primeiro
vellume per Joham Goncalvez, scudeiro e scri-
vam dos livros do dicto senhor Rey. Aoqual
snõr o muyto infiindo benigno e misericordioso
Deos sempre queira de boas obras e vertudes
em muyto melhores os dyas e annos de sua
vida de bem em milhor acrecentar, e lhe dar
fruito de beençom, com que lhe sempre dê
graças e louvores , porque el he seu fazedor e
criador. No anno de Jhu Xpõ de mil e quatro
centos e cinquoenta e tres annos.

DEO GRACIAS.
_ _ J
GLOSSÁRIO

DAS PALAVRAS K PHRASES ANTIQUADAS F. OBSOLETAS

tjVE $E ESCOSTRÍO

NA CHRONIGA DA CONQUISTA DE GUINÉ

Be <&. (£. i)'2lzurara,

POi J. i. R090ETE.

A.

Aanefora, porfôra, exteriormente, AcORrimenTO , soccorro, recurso,


na apparencia.— E como quer que amparo , auxilio. V. Acorrer.
aadefora parecessem gente barba- Acorro, soccorro, auxilio.—Esguar-
ryca e bestial ^pag. 81). dando a altura dos ceos , firmando
Aanuar, aduar, povoação movei, os olhos em elles, bradando alta
horda d'Arabes. mente, como se pedissem acorro
Aazar, v. a. facilitar. — Porque ao padre da natureza (pag. 133).
lhe nom aazarom parte daquella Ajunoiro, adjutorio, auxilio.
honra (pag. 219). Alfaqleqie, palavra arabe que si-
Aazes, esquadrões. gnillca resgatador de captivos, ou
Aazo, occasião, motivo, causa.— Por libertador d'eseravos e prisioneiros
aazo das correntes, por causa das de guerra ; tambem se loma por
correntes. Por seu aazo, por oc- paisano, correio e talvez espia.—
casiào d'elle. Os quaes forora contados pelos al-
Acalçar , alcançar, apanhar cor faquequei em numero de cem mil
rendo. (pag. 27).
Acerca , perto ; quasi. Alfareme, segundo o Etucidario, e
Acontecer, v. n. caber por sorte, o Diccionario da Academia de Lis
pertencer em quinhão. — 46 almas hoa c de Madrid, signilica especie de
que acontecerom no seu quinto veo de cobrir a cabeça, mas no
( pag. 135 1.— Pella parte doguanho texto de Azurara parece significar
que a cada huú acontecia pag. 311). bandeira, do arabe alaleme. — Poz
Acornaçoh , acordo , decisão una um alfareme branco em sua lança,
nime. X. Acordo. e começou capear a as caravellas
Acorno , decisão unanime , resotução (pag. 112).
concorde. — Segundo o acordo em
que ante flcarom (pag. 223'. //. Pa Algar, furna, caverna subterranea,
recer, opinião. — Antre muytos cratera de volclo. —Lcvamno a um
sempre hadesvairados acordos (pag. algar, onde o lançam ( pag. 383 ). —
212). A ilha de Tanarife tem em cima um
Acorrer (do latim oceurrerc), correr algar por onde saae sempre fogo
em soccorro, acodir. — Para acor (pag. 375).
rer e remedyar os perigos em que Allonca ,»./-. o longo. - Segumdo a
o regno estava (pag. «7 1. — Prouve allonga daquelle ryo (pag. 62).
assy a nosso Senhor Deos, que nas Ai.ma7.em, provimento de guerra,
pressas e trabalhos acorre aos que como seitas, dardos, ele — Despen-
cm seu serviço andom (pag. 125). dyam aquelle malaventurado alma-
30
— 466 —
zcm ( de «ellas ) todo eheo de peço Aposto, airoso, bem feito do cor
nha t pag. 4°1 ). po, de gentil disposição no corpo.
Almenaras, palavra arabeque signi — Entre elles bavya alguús de ra
fica fogos que Caziao nas atalaias zoada brancura, Cremosos e aposios
para dar rebate dc inimigo, ou para (pag. 133).
outros av isos convencionados ; mas Aprenner, é tomado algumas vezes
no texto de Azurara parece dever se na accepção do verho francez ap-
tomar no sentido flguradode sinaea , prendre, saber, ter nolicia d'alguma
gestos, ademães. — Fazendo despois cousa. — Aprendeu delles, soube
entre elles suas almenaras, per que deiles, ou por elles. — E aprende -
demonstrava, etc. (pag. 142). mo< como na hida que fez Lançarote
A i.mima , palavra arabe que significa ( pag. 230 ) , isto e , soubemos , etc.
vestidura de varias cores, d'onde Aquecimento, acaecimento, aconteci
veio o castelhano antiquado almeji mento , successo , caso , cousa que
ou almejia, sorle d'antigo vestido: succedeo. — Bem podemos conhecer
segundo o texto de Azurara parece pelos aquecimento» destes homeés
ser gibão, ou veste. — As vestiduras (pag. 193), isto e, pelo que succe
que trazem são almexias de coiro, deo a estes homens.
e assy bragas delle (pag. 363). Aqueste , este.
Ai.mina , montanha assim chamada Aqcesto ou Aouisto, isto.
que fica nas costas de Ceuta , sobre Asinha, adv. de pressa, em breve
a qual assentou arraial o Infante tempo. — O bem fazer por esqueci -
Dom Henrique em 20 d'agosto de mento atinha perece ( pag. 5).
1415, para de la combater a cidade, Assejo, ensejo.
onde entrou no dia seguinte. Vej. Assessegano, socegado, sereno. —
Vuix de Sousa, tomo II, pag. 183 Avia o gesto anetsegado (pag. 22).
e 184. Assessego , socego , descanço , re
Alquce, Alquicé ou Alquicer (pa pouso, serenidade.
lavra arabe), vestidura mourisca Assiinano, assignalado.
a maneira de capa: commummente Ataa, até.
è branca e de lã ( V. Diccionarin Atees, ate.
da Academia Hespanhola , art. Al- Atenneu , algumas vezes é tomado na
quicet). — As molheres vestem accepção do verho francez attendre,
alquicees, que sam assy como man esperar, aguardar.
tos, com os quaes soomente cobrem Achego , como Azurara confunde
os rostros ( pag. 363 ). muitas vezes o b com o e , e o t
Alquitoões, pl. d'Alquitam ou Al- com ou, julgamos que deve ler-se
quitom, palavra arabe que signi- abrego , vento sudoeste , vento
lica carreias de transporte de mu entre mciodia e poente, mui quente
lheres, etc. — Sua vida nom bc em Africa, do latim Africus. — E
senom em tendas e alquitoões (pag. bafos de aurego, que antre os ven
361). tos hc mais quente ( pag. 298).
Alquizel , segundo Luiz de Souza , ci Aistinano, austinente, abstinente,
tado no Etucidario, signilica enxerga mortificado com abstinencias.— E o
ou pequeno enxergão de que usao corpo assy austinado, que quasy
os Mouros; mas o mais provavel e pareeya que reformava outra natu
que seja o mesmo que alquicer, reza ípag. 21).
porque Azurara emprega atgumas Acto, i.m. acto, acção. adj. apto.
vezes o z em tugar de e, v.g. prezes Ave, imperativo de aver, tem. — Ave
em tugar de preces. V. Alquice. por tua piedade com nosco miseri
Amavyoso, mavioso, aflectuoso , ca cordia (pag. 263).
rinhoso. Aver, quasi sempre significa ter.
Amonio, benevolencia, amor, alleeto, Avisamento, parecer, conselho (do
inclinação amorosa, amizade. francez avii). - E querovos dizer
Ancho ( palavra castelhana ), largo. oque tcnho consiiradn para receber
Anchura (palavra castelhana), lar vosso atisamento (pag. 71). It.
gura. Aviso, advertencia; escarmento,
AncoraçAo, ancoradouro. lição ( do francez averlinement ). —
Ante, antes. Daily avante todos receberem ati
Aponar,», a. esmar, avaliar; equi tamento de nom fiar de nhuu sem
parar, comparar uma cousa com mais certa segurança (pag. 96). —
outra. A pag. 40 e empregado como Acontece de receberem os homees
reciproco e significa comparar-se, grandes atisamentos pelas desven
medir-sc com — Quem nom re turas albcas (pag. 14°).
ceara de te apodar com este nosso Avito, hahilo (de Christo, etc.).
principe f Azanegies, Mouros que hahitão a
— 467 —
terra dc Zoara, que pela maior alguú tanto alevantada (pag. 2°).
parte são pastores e vivem errantes Caha.mio ou Qi amanho ; corrupção
(pag. 367). do latim aurim magnas), quão
A/s». alas, Oleiras. — E tanto que grande. — E porque vejamos rama-
forom na prava , poserom suas azes nho louvor merece o nosso principe
em ordenança (pag. 254 ).j (pag. 359 ).
Capear, acenar com lenço ou cousa
ligueira.
B. Capitanva, commando.
Carnaulra , carnes , musculos. — De
Baixa, i. f. baixo, mar de pouco fun grossa fanuviara (pag. 20), isto e,
do. — E sendo ja dentro na9 baixas. bem fornido de carnes.
Miram uma ilha (pag. 221). Carrega , carga , carregação.
Baixias, bailios. V. Baixa. Carrego, encargo, mcumbencia;
Barcua , barca. cargo.
Barinel, varinel , embarcação de car Castellaão, castelhano.
ga no Mediterraneo ; embarcação de Ceavoga , ciavoga i é um termo de
remo usada em Portugal no seculo marinha.
XV. V. a nola da pag. 59. Cegiiinane, cegueira.
Barrejamento, invasão, assalto. Cellana , cilada. — Ordenava sempre
Barrejar, invadir, assaltar. — E foe Anibal suas celladas com tanta sa-
com el Rey Lancaraao quando bar- jaria (pag. 15°).
rejou a cidade de Roma pag. 236). Cepta , Ceita , Ceyta, Ceuta.
Basas, vasas, lavores, feitios vasados. Certinom, certeza.
— Bainhas de i<usu(pag. 242), istoe, Cinta uieimana, zona torrida.
bainhas vasadas, fundidas ou lavra Cirne, cisne.
das com arte. Cocanriz , s. f. crocodilo.
Bemfevtlria, beneficio, beneficen Cofinho do latim cophinus) , cestinho
cia.— E porque tornemos a bemfeu- sle esparto ou de verga i atado com
turia per agradecimento aaquelle umcabrestilho a hocca dosanimaes
de quem a recebemos (pag. 5). serve d'açairao. — E antre estas al-
Bem re yuE, verdade e que. limaryas foe húa que parecia cerva,
Bico, hocca prominente e aguda dal aqual aquelles Gumeos traziam com
guns peixes.— E lambem dos peixes huú copnho na hoca por nam co
ha hi huus que teem os bicos de tres mer (pag. 357 ).
ou quatro palmos (pag. 275) Colnre, aljava, carcaz para seitas.
K> s mu a , vitualhas ou victualhas, vi- — Toiuandolhc porem os arcos, e
vres, provisões de hocca, manti coldres e frechas ( nag. 357 ).
mentos. Collorreta , sorte d antiga peça d'ar-
Blanno (palavra castelhana), brando. tilheria.
{fig, ) Agradavel. Comarca, algumas vezes significa
Boinho, buinho, junco. provincia. — E outros que se na
Bõo, significa quasi sempre, homem dieta frotaajontarom de trescomar-
bom, de prohidade, abonado, no ras, scilicet da Beyra, de Trallos
bre, destinclo. montes, e dantre Douro e Minho
Boosco , hosque. (pag. 26).
Di; ss \s., quebrar, fazer em pedaços. Comprente : maré comprente ou com-
—Brtlarom o hollo, e cora as aza- plente, mare enchente, que enche,
gayas lirarom ao espelho ataa que enchente da mare. — A maré era ja
o britaram em muytas peças ( pag. acerca de todo comprente ípag. 144),
305). isto e, a maré estava quasi cheia, era
Bisi.r ar, burlar, lograr, fraudar. quasi preamar.
CoMPRIR , v. a. (do latim compiso) en
cher. Compra vossa vida, ete. , en
c. cha vossa vida , etc.
Cominar, commutar, trocar.
Comlnalmf.nte, comniumiuente , or
Ca (do antigo francez ca, hoje cor), dinariamente.
que, porque. Conhecestes, conhecidos. —Pergun
Caasv, quasi. tar por novas dos amigos e conhe-
Cabeceira, chefe, principal. — Oa centes (pag. 78).
quaes teem huú duque e certos ca Cunsiirar , considerar.
beceiras ( pag. 381 i. Contenenca \áo francez contenance),
Carenal, adj. caudal . caudaloso. rosto, semblante; modo e ar do
Carellanura , cabelleira , cabello rosto, demonstrações no semblante.
comprido. — A cabellaaura avia — Com graciosa contenenca ouvia
— 468 —
seus aquecimenlos ( pag. 5b ). stanciadamente , contar por miudo
Conto , numero. quantidade. — Do — Segundo departiremos ao diante
contu dai|uestes, <1o numero d'estcs. ípag. 158). //. Praticar, fallar, con
Contra , a , para. — l-evamousse Mar- versar familiarmente ou miuda
lym Vicente e disseco»! fra os outros mente; discorrer sobre alguma ma
(pag. 1°9). teria, julgar. — Occupavamse em
Conyimia vELÍdofrancez eonvenable), dcparltr o que pouco conheciam
conveniente . adequado , compe (pag. 104). //. Altercar. — Huús cho
tente. — A elle se torne por con- rando, outros deparlindo , fazerom
rinhavel agradecimento (pag. 2). tamanho alvoroço, etc. (pag. i:H .
Correger, apromptar, preparar, Desafeu;oano, feio, de mas feições,
aprestar, apparelhar; compor, con disforme, horrendo. — Outros tam
certar. — tezea pôr em terra (a ca- desafeifoados, assy nas caras como
ravella 1, onde a fez alimpar e evr- nos corpos, que quasi parecia , aos
reoer do que lhe cotnpria pag. 85). homens que os esguardavam, que
Corheoino, governado, reparado; vyamas imageés do imisperyo mais
preparado , disposto , apparclhado ; baixo (pag. 123).
provido do necessario. - Os quaes Desagiisano, t. m. (í termo eom-
todos juntamente hyam niuy bem mum a lingua castelhana ) sem-
corregidos (pag. 107 . — Mal ror- razão , injuria, mao tratamento,
regidn , maltratado, mal disposlo. aggravo, doesto, acção descome
Corrfsiihento , preparo, apreslo, dida. — Sem lhes fazer nenhuú
concerto. V. Correger. — Corre- desaguisado os mandaram pôr em
gimento de igreja i.pag.387); isto e , terra (pag. 308\
ornamentos, alfaias de igreja, pre Descontra. — Da parte descontra o
paros para dizer missa, etc. sol ; pag. 180) , da parte opposta ao
Cusso, carreira , corrida. — Cosso de sol.
suas carreiras (pag. no), isto e, Desfollegar, resfolegar, respirar.
ligeireza, rapidez de suas carrei pf.spf.NnEn , gastar, empregar.
ras. Despeso, gaslo, despendido , empre
Coesa prnucA (do latim re$ publica, gado.— Ouverom seu trabalho nem
em francez chosc publique) , bem despeio pag. 1391.
publico , bem comtnum. Despoh , expor. - Aquelle que nom
Cu asta, claustro , pateo interior d'um consiira que seu imiigo pode pensar
convento. aquello que elle meesmo pensa, a
Criatura , eriança , feto no utero ma perigos se despoem (pag. 224 .
terno. — Lhes faz logo mover as Despos, apos, atras. — Correndo dei-
rriaturas que trazem (pag. 294). pos elles pag. 179).
Crooes, aves africanas ijue teem um Desseoirar, c. n. estar sem segu
hico enorme, Caldos. V. a nota de rança , estar desapercehido. — Creo
pag. 241. que porque ha tam pouco que fomos
em esla ilha, que os Mouros desse-
gurarom ja por este anno, peila
D. qual seram tornados a ella (pag.
I87L
DESTtNT.mo, destincto.
Da rca, adarga, escudo oblongo de Destinto, i. m. instinto.
coiro. Destra , direita.
Darhf.vato, ode. arrebatadamente, Desvaiuaramente, diversamente, de
por surpresa. — Na qual podemos diverso modo. V. Desvairado.
fazer presa se em ella damos dar Dbsvairano, diverso 7 differente. — E
revato pag. I801. porque os dictos feitos se tratarom
Df.PAnTiynM , pratica, conversação por muylas e deseotrada* persoas,
individuada, em que sc trata com desvairadamente som scriptos em
miudeza d'alguma maleria. — Tra muy las partcs (pag. 5).
ziam as gentes tam grandes mur- Desvairo, diversidade, variedade.
muros, e fundando sobre ello suas
duvydas, corrião por suas departi- Dest , deshi , desde enúto, logo ; de
foòVir, alaa que poinham o feito em pois disto, depois destas cousas:
húa impossihilidade (pag. 103). tambem.
Df.partimf.nto, devisão, separação. Devisa : fazer derisa em algum
— Depois do departimento das lin logar, lomal-o como ponto certo
guagens, que se fez em a torre de para d'elle se orienlar, e arrumar:
Bahillnnya (pag. 175). e termo de marinha antiquado.
Df.partir, r. o. ct n. separar, repar — Porque todollos os navios, que
tir, dividir, f figA Narrar circum- atravessassem do levante pera o
— 469 —
poente, podessem ali) fazer devisa Esglarnar, olhar, observar com at-
ipag. 34). tcnção , considerar com reflexão
Df.visaoo: cores devisadas, cores di attenta e circumspeeta ; attender,
versas e vivas. — Folgavam rauylo ter presente alguma cousa.
com roupas de cores derisada» Esguarno, acção de olhar com atten-
(pag. 138). ção, de considerar com reflexão. —
Drviso, a. m. divisão,desuniao. — Has L)o primeiro esauardo , ã primeira
se ante eram em debiso por feito da vista , ao primeiro aspeclo.
falia , etc. (pag. 446). Espalmar (do francez esnalmer\
Doestar, reprehender, desapprovar. termo de marinha ainda hoje usa
Doesto , deshonra , vituperio , re- do, alimpar de limos o costado
prehensão. — Os quaes (Denelicios) das embarcações, e untal-o de
tiom podemos esquecer sem grande breu , ou de seho.
doesto pag. 7). Esuieença (do francez antiquado es-
Dyoso, idoso, adiantado em idade, chèance), sorte, fortuna. — Ouvi-
ancião. rora semelhantes novas da hoa es-
queença que Deos dera aaquelles
E. poucos que aa ilha forniu (pag 112).
E&sacana», palavra arabe que signi
fica tugar onde uma pessoa hahita.
Eixal.^amento, exaltação. V. a nola da pag. 360.
Ello, isso, isto. Sobre etlo, sobre isto, Essomesmo, adv. tambem, da mesma
a este respeito. — E havydo sobre sorte, segunda vez, assim mesmo,
eito seu conselho (pag. 113). oulro sim , bem assim.
Empachar, impedir, obstar. Estanas no sol, solsticios. - O teu
Empecivcl, que faz mal, causa damno poder he sayr em as estadas do sol
e detrimento, nocivo. (pag. 3°°).
Ehpero , porem , todavia. Estanco ( do latim stagnum, ou
Enncrsutano, endurecido, pertinaz, do francez èlang), lagoa, lago. —
a(ferrado a uma erença, etr. Nace (o Nilo) de húa fonte, onde
Enprltraoo, embrulhado, emmara- logo faz huú grande estanco i pag.
nhado ( do francez infiltre ). — 2921.
Com tal força andava enfeltradoem Esteo (do francez Hai)i esteio, pi
seus cabellos pau. 28G). lar, cotumna. — Esteos dHercules
K m I - - ni , eleição , escolha. (pag. 6), as cotumnas d'Herculcs.
Estitcllano, dedicado, consagrado. EsToriaAs.s, historiadores.
— E porque a dieta cronica special- Estrollo , astrologo ou astronomo.
mente hc, entitultada a este senhor Expoenor, expositor.
(pag. 8). É tomado na accepção an
tiquada do verho castelhano intifti
lar, dedicar alguma obra a alguem r.
pondo no frontispicio seu nome para
autorizal-a.
Enxavata ou Enxamata, quantidade Fali.amento, fajla, discurso, con
grande, porção grande (degmpatwf). versação, narração.
— Nam pode seer que do sevo ou Fallecimento, falta, defeito.— Eoste
da laã lhe nom levemos húa enxa- soo fallenmento achey que vos
tata (pag. :> s ". . dei le escrever (pag. 23). //. Incapa
Ero, j. m. eiro ou iro, peixe simi- cidade, insufficiencia. — O falleri
Jhante a enguia. - E ouverom ally mento de minha ousada pena i pag.
muytos eros e corvinas {pag. 128). 9 .
Errar, v.n. otTender, faltar ao dever, Fame, fome.
fazer damnoaalgucm. — Nam eram Feito, por /ei/o,por causa. — Kramem
ally vindos, se nom por lhe errarem deviso por feilo da falia (pag. 448 .
se podessem i pag. 85 . Feitcra , acção de fazer. — Aa /W/u
Erro, olTensa, falta ao dever. ra deste livro (pag. 33 , ao fazer
Bscaramrnto, escapamento, salva deste livro.
ção de perigos . ete. FelszA, liusa, confiança.
Bscolnrinhamento, acto de esqua- Filua, fila, fileira. — E mostraremos
drinhar, dexeogitar. as grandes /i/A<wdas colmeas cheas
EscoLDriHHAit , esquadrinhar, exco- denxames pag. 14).
gitar. Finiaoo, tomado, agarrado. V. Fi
EsotarOÁDO, visto, observado com lhar.
attenção. FiLiiaBENTO, tomada, acção de to
EsccarDaoOR, que olha, que considera mar. de «garrar, etc. V. Filhar.
com attençào, etc. V. ksgwtrdar. Fithar ou Fti.rar, tomar, lomar por
— 470 —
força, guerreando. — O primeiro
capitam que filhou terra (par. 26). I.
—Por que lhe nom offcreceo o aazo
para filhar a villade Gibraltar ípag. Icnai.eza, igualdade-
28). II. Tomar as mãos, agarrar, fi Igcar, igualar.
lar. — Com entencom de pellejar
com elles e filhar alguus (pag. 63). Ihisperio, hemispherio. — Imisperio
mais baixo, (fig.) o inferno. V. Des-
— Onde nós cuydamus de filhar, afeiçoado.
Çor ventura nos filkarom(pa%. 314'. Innoto (do latim ignotus , desco
ambem algumas vezes se toma na
accepcão moral de tomar : «. g. Issonhecido. mesmo. V. Ena mesmo.
Íllhar ousyo (pag. 63', filhar consc-
ho ( pag. 149), filhar trabalho (pag.
207 ; , etc. J.
Forcanuha ne palhas, palmas em
forma de forcado ou eneruzadas.—
Todos andam nuus, e soomente Jazer com), ter acto carnal ou dor
trazem húa forcadura de palmas mir com pessoa d'outro sexo. — E
por bragas (pag. 377;. as Mouras, esguardando aquelles
Fornizyo , fornicação. — Em fornizyo dous arrefees, pensarom de os co
poem toda sua bemaventu rança meter, mostrando muy grande de
ipag. 381). sejo de jazerem com elles (pag.
Froto : em (rolo (do francez a fiai \ , 176). Tambem as vezes signilica
em nado. — E aproveitaralhes ainda dormir, repousar.
de leixarem seus batees em froto Jouver, futuro subjunctivo de jazer.
(pag. 228). Jiso , de baixo, ou abaixo. Aguas de
Com, pao, vara. juso, aguas que descem n un> rio,
que ticím para o lado da corrente.
— As (auguas) de juso lizerom
G. movimentos atees que o ryo ficou
em secura (pag. 6)
Garrino (do francez garni) , guarne
cido. L.
Grannor, ». m. grandeza, magni
tude, importancia.
Graveza, aspereza. — Por causa da Laneza , lado. Em sua ladeia, para os
lados. — As auguas decima crece-
>jrarvza do tugar ipag. 433). rom por alto, nom estendendo em
Guareger , r. a. salvar, livrar, v. n. e sua
guarecer-se , e. r. refugiar- se, aco Lenice,ladeza (pag. 6 .
alegria, contentamento,
lher se, esconder-se em alguma prazer.
parte para livrar-se de perigo , etc.
— Pensavam guarecer sob suas ca Luxar , deixar.
Liberaleza, liberalidade.
banas (pag. 111). Ligeiro, facil. — Nom erom iam li
geiro» dapanhar como elle pensava
(pag. 337). — O lffante como era /»-
II geiro de mover ipag. 441).
I,i no mo, legitimo, de legitimo matri
Hm, ide. monio í filho ). —Daqual houve seis
Honeo, odio.— Nunca em elle foe Livinane filhos liidimos (pag. 17).
conhecido hodeo nem ma voòtade Sem embargo , ligeireza , velocidade. —
(pag. 23). da lividade de seus
Hoste, exercito em campanha. Andar Longa t A), de207).
pees (pag.
longe.
em hosle , andar com o exercito em Lyança , ailiança.
campanha. — CMiando se acerta de
os nossos principes andarem em
hosle (pag. 361).
Hu ( do francez ou), onde, aonde. — M.
Veremos ataa Au chega (pag. 322).
Hi mana s , humano.— Humanai linha Macinar, imaginar, julgar, pensar.
gem, o genero humano. Magna , ». f. mana. — E esto foe ante
Huso , a , adj. usado, acostumado, a- ue chegassem ao tugar onde lhe
feilo — E ja vedes , voz de capitam, eosenvyou a magna (pag. 365'.
entre gente husa a obedecer, quan Magnammento , magnanimo. — Por
to prevalece (pag. 75 . rerlo nom era de teu magnani
— 471 —
mento coraçom a nembrança dc Um que estava o seu molo (pag. 304). O
pequena riqueza (pag. 87): mote do Infante (diz Azurara na
Malhão ou Milho», marco, baliza . Chronica do conde D. Pedro, cap.
limite. — Foe alguú principe no 35 . f. 1 1 5 ) era , lalante ( isto c von
mundo que tam longe de sua terra tade, desejo , animo ) de bem fazer.
mandasse por os snalhoôes de sua No retrato original do Infante que
conquista (pag. 304) ! se acha na Cbronica de Guiné, cuja
Maninho, esteril, infecundo. — Oo copia acompanha esta edição , lé-se
bemaventurado principe, qual mo em francez tatant de bien faire.
mento do teu tempo toe maninho Sobre o seu tumulo lé-se igual
de benefício (pag. 41)? mente talant de bien faire . e não
Mato, a pag. 356, significa mastro, do talaint, etc., como diz Luiz de Sou
frances mdt. za, tom. 1, pag. 629, senão c erro
Mentes: ter mentes, ter attenção, at- typographico. (V. Memoria historica
tender (pag. 149). sobre a Batalha por D. Fr. Francisco
Meo, meio. Que he meo, que medeia, de S. Luiz, tomo X das Memorias
esta entre. da Academia de Lishoa , parte 1 ,
Meor, menor. pag. 209. ) É provavel que a or-
Mercano s de hom mercado ( do fran- thographia da primeira palavra
cez d bon marehé ) , por preço com- seja errada, porque no Giossario
modo, barato. de Buchon que vem appenso ã ulti
Mesteiroso, >. m. oITIcial mecanico, ma edição ilas Chronicas de Frois-
trabalhador, obreiro. — O recom- sard , no qual se achão lodos os
pensamento da honra deve ser dado termos antiquados do seculo XIV-,
ao que hemuytonobreeexcellente; não se encontra eserita d'estc modo.
e o recompensamento do ganho ao mas sim talent, com a accepção de
que he mesteiroso. O que vale o volontè, désir. No Glossario deDA-
mesmo que dizer : A recompensa do NEREY appenso ao XIIIo,
Homantambemde la
official mecanico, ete. , é o ganho jRo*e,quee do seculo
ou salario ;c a do homem nobre e só seencontra talent, e com a mesma
excellente c a honra. Este pensa accepção de volontê, désir. Deve pois
mento d'Aristoteles , de que se ser suppor-se que uaquelle tempo ap-
vio Azurara na carta a eIRei Dom plicavão a palavra franceza talent a
Aflbnso V, que precede a Cbronica mesma orthographia que emprega-
de Guiné, toi por elle igualmente vão em algumas palavras laiinas
empregado no cap. 1° da Cbronica acabadas em em, mudando o e em
do conde Dom Pedro, fazendo so a, pois escrevi."») talam, qualam,
mente inversão de phrases , espres- landam, por lalem, qualem, tan
sando-se assim : «E porque segun- dem. V. Etucidario, art. A.
» do o Filosofo, o recompensamento
» do ganho deve ser dado a aquelle
» que he misteiroso , e o recompen- N.
» samento da honra a aquelle que
>- he muylo nobre e excellente. » V.
Etucidario , art. Misteiroso. Naturaes, naturalistas.
Mice, misser, senhor, do francez mes- Neiceo, nescio, tolo.
sire. Nemrrar , ele., lembrar, etc.
Mingua , falta. Nojo , damno. — E vendo que lhe nom
Ministranor , administrador. podiam nojo fazer (pag. 118). II.
Moiz, palavra desconhecida, que se Tristeza, sentimento, tuto. — Tor
não encontra emDiccionario algum. naremos a fallar das caravellas dc
Talvez tenha a mesma origem que Lixhoa, que estam em seu nojo
a palavra castelhana antiquada mo pella perda dos sete homeés que lhe
nta, cousa polida. Poderemos pois matarom (pag. 239).
explicar a passagem de Azurara, a
mosx das setas toda húa (pag. 305),
d'este modo : que a haste das seitas
e toda polida ou liza,por isso que O.
elle diz que não tem mona para
entrar a corda.
Mosse, corrupção do francez mon- Orrar-se, trabalhar-se . andar-se
«>ur. trabalhando, construindo, edill-
Moto, mote, lettra que os cavallei- cando. —Obrava-se em ella (a villa
ros levavão na empreza. — Acharam do Infante) continuadamenle (pag.
nas arvores entalhadas as armas do 34).
lffante, e isso mesmo letras em Omii.noso , humilde.
— 472 —
Oposito, opposto, parte opposta. E tendo hoa parte de pescado seco,
Ornenança , ordem, preceito. Orde e outro sobre seus perchees para o
nança natural, preceito, dever na secar (pag. 452).
tural. Pernoança, perdão.
Ocsyo, atrevimento, ousadia. —Fi- Pero, posto que, ainda que. — A qual
Ibarom ousyo (pag. 63), tomarão a ferida pero pequena fosse (pag. 62).
ousadia, ousarão, atreverão-se. PtIILLOSOPHAL OU PHILLOPUAL , pltilo-
sofo, philosophico.
Poneroso: ser poderoso , poder, ter
P. possibilidade ou poder de fazer
alguma cousa. — Que em dar quaes
devo (graças) nom som poderoso
Parceiho, companheiro, socio em (pag. 462).
empreza.— E que se coraprisse de Poer , pOTj alegar, trazer algum
saltarem fora para ajudarem seus exemplo ou simile em confirma
parceiros (pag. 424). ção do que se diz. — Segundo poem
Passagem, algumas vezes significa Santo Agostinho (pag. 77), istoé,
transgressão, accão de transgredir segundo traz por exemplo Santo
um preceito, uma ordem, etc. — E Agostinho.
quanto aa passagem do mandado Ponteiro , que sabe fazer bem a pon
quo trazemos de nosso capitam taria , certeiro, que acerta bem os
(pag. no). tiros. — Assy sabem furtar seus
Passamente, adv. de vagar, de man corpos , que tarde e per grande ven
sinho. V. Pano. tura, por ponteiro que o homem
Passar, algumas vezes significa trans seja , toa pode acertar pag. 331).
gredir. — Que panarei o mandado Pontifico , pontilice.
do irrante (pag. i4t). Por, algumas vezes significa para, do
Passo, adv. de vagar, de manso, sem francez pour.
fazer bulha. — Por muy passo que Porem, por islo, por este motivo, por
vamos he necessario sermos senti esta causa ou razão.— Agente desta
dos (pag. 285). terra verde he toda negra , e porem
Passo ne morte , perigo de vida. he chamada terra dos Negros | pag.
Peça, porção, quantidade, numero. 2781.
— \ iram nua peça dcMouros andar Poroie, algumas vezes signilica pa-
pescando (pag. 127). //. Espaço de raque.
tempo ou de tugar, distancia. — Posiçom : segundo posiçom de Sam
Parece que avia peça o chamavão Jeronimo, segundo traz por exem
(pag. 447). — E os christaãos se- plo S. Jeronymo. V. Poer.
guindoos húa grande peça ( pag. Possança , posse , poder. — onde vos
128). foi feito todo aquelle serviço , que
Peenneças, penitencias em satisfa em nossas possanças pode caber
ção de culpa. — Jejuamos ou por (pag. 129).
satisfação de nossas peendeças , ou Postlmeiro , derradeiro, ultimo.
por honra d alguma festa da Igre Pocqcinane, pequenez. — Nom pode-
ja ípag. 173). rom fazer tamanha presa em elle»
Pejo, impedimento, embaraço, es por causa da pouquidade de seu ba
torvo. — E por o pejo que tiverom tel pag. 1°1).
em o nom poderem entender | pag. Povoraçoh, povoação.
169). Povorar , povoar.
Pena, penha, penhasco. //. Espinho, Praça : pôr praia aos inimigos, pôr
pua. — Como spinhaço de porco es- cerco aos inimigos, cercal-ns.
pim quando levanta suas penas Prasmar do francez antigo blasmer,
(pag. 346). /(. Penna. hoje blamer), vituperar, arguir,
Penacaaes, penhascos, penedias, eriticar, censurar.—Com maisrazom
rochedos. — E saindo daquelles pe spero ser repreendido por minguar
nacaaes he ja a força das auguas do que devo, que prasmado de fat
quebrantada (pag. 295). iar sobejo (pag. 9).
Percalçar. alcançar, apanhar, ga Preçar, prezar.
nhar. — Quero sayr fora, e veer se Prema, constrangimento, vexame,
posso percalçar algua presa pag. angustia, dor, trabalho, afTlicção,
212). pena.
Percalço, proveito, utilidade, ga Preto , ode. perto.
nho. Prf.7.es, preces , supplicas.
Percuees, ;>/. (do francez perche),
varas, provavelmente sustidas por
estacas para seccar peixe, etc. —
— 473 —

Q Ht rrica, titulo de capitulo eíerilo


com tinta encarnada. Na Chronica
de Guiné todos os litulos dos capi-
tJi r.nAti , cessar, deitar. — Noni que tulos são eseritos com tinta encar
dando por isso dandar (pag. 432). nada, por isso diz Azurara : Me
Quejanno, qual , que tai , tal qual. — conveo fazer nova rubrica ípag. 32°) ,
O qual mostrou em aquella pelleja
quejanda sua força ao diante seria
(pag. 82s. — De hoa mente se mos s.
travam qucjandas sayrom dos ven
tres de suas madres (pag. 176). Sarenores, sabios.
Saberya, sabedoria.
Sajaria, sageria, sageira(do francez
R. tagesse), sabedoria.
Salma<;a (agua), salobra.
R , lettra numeral que vale 40. ScEu.iFicar, pôr no ceo, annumerar
Recompensamento, recompensa, pre entre os signos celestes. — Aquella
mio. cadella (a canicolla ) que foe scelli-
Rfxontamento, narração, relação. ftcada antre os signos pag. 297v
Scilicet, a saber, convém a saber.
Recontar (do francez raconter), Scrira , esereva.
contar, referir, narrar.
Rf.ff.rta , prolia de palavras . con Secura : licar em semra, ficar em
secco. — Atees que o ryo ficou em
tenda, repugnancia. — OsCanareos seeura (pag. 6).
lha outorgarom sem nhúa referta Seena , sede , assento , tugar ; estada ,
(pag. 326). jazida.
Refesco, refresco.
Regimf.sto, reinado, governo , admi Sf.esta. V. Seeslra.
Sf.estra parte, parte esquerda.
nistração do Estado. — Leixou a Sf.crf., seculo.
dieta governança a eIRey dom f- Semelhante ( Per) , adv. igualmente,
fonso, em começo de seu regimen il igual modo.
to (pag. 29). II. lnstrucçScs escri
tas.— No regimento do llTante nos SemSennas
uavf.nno , sem terem.
oracões, suas, vossas ora
he mandado i pag. 124). ções.— E vôs outros que a christãa
Reguar, reinar, reger, governar um religiom manteendes dizee senhas
reino. — Jíenhuu principe pode ser
grande, se elle nom regra sobre Sento, sinto.pag. 416).
oraçoôes
grandes (pag. 5). Serventva , serviço.
Reguarna, retaguarda.
Regcarno (do francez regará), res Sesuno. V. Sisudo.
Sino , signo. — As estreitas do sino
peito , contemplação ; resguardo. do Lcom se ajuntem aas estrellas
Rf.mf.mrrança , lembrança, recorda do sino de Cancro pag. 296).
ção. Siso, parecer, opinião, sentença. —
Renniçom , redempção de captivos : o E porque onde som muytas cabeças
preço em que ou por que se res ha muytos sisos (pag. 189 .
gata. — E aallem dos negros que Siscno, nomem de juizo, assisado,
recebeo daquella rendiçom pag. cordato.
97 . So, sob, debaixo. De to os braços,
Reprennimento, reprehensão. debaixo dos braços.
Repricar, repellir. Sorrf.sser , sobrestar, parar, esperar,
Reprochar (do francez reprocher), deter-se.
censurar, crilicar, lançar em rosto. Sorrevf.nta, vinda inesperada. De
Retornamento (do francez relour), sobreventa, repentinamente, ines
retorno, volla, (fig.) Paga. satisfa peradamente. — E quando viram
ção ou recompensa de benelicio re tam de sobreventa homeés assim
cehido. — E por tal retornamento atrevidos (pag. 2°6>.
se faza mavyosa lyançaantre osque Solaz, s. m. sdo latim solalium),
bem fazem c os que recebem (pag. consolação, alivio. Adj. Consolador,
3 s. que ajuda o seu proximo, que se
Retornança. V. Retornamento. empenha em lhe dar consolação e
Rftraf.r , retirar. alivio.
Rf.x, plural de rei. Soltura , liberdade.
Ronas cf.lf.stiaes, circulos celestes. Som , sou , estou ; são.
Romaão, Romano. Soomente, senão, a excepção de.
Rotear, marear, governar (um na Sospeita (De), de surpreza, de sobre-
vio . sallo. — Se eu for passo e agachado.
— 474 —
podello ey filhar úe sospeita (pag. Esta terra lie Ioda revolta, e mil
285 \ vezes foe ja trasfegada (pag. 313).
nu m , homem destincto , que se Tresmunar , transportar, trastadar.
avantaja aos outros poralgum titulo Trespassar , transgredir. V. Passar.
ou merecimento. — A terceira voz, Tricança , pressa, acção de se apres
que era dos capitaães, e assy dal- sar. — Pelo que flzerom sua tri-
guús outros speciaaes (pag. 314). gança muyto mayor (pag. 172),
Spera , esphera. isto é, pelo que se derão maior
Spiritialleza, spiritualidadc. pressa , ou se apressarão mais.
Stonce, então. Trigar, apressar, dar-se pressa.
Storvaaf.s, historiadores. Trigoso, apressado, prompto, breve,
Superlavito, superlativo. ligeiro. — O mais trigoso que ser
Suynane, saudade. podesse, o mais breve possivel.
Troo», peça d'artilheria.
Turgvhau, interprete, lingua.
T.
Tai: por lai, com tanto. V.
Tam soomente, nem sequer, ou ape
nas. Vagem , vargem, varzea.
Taunikneiro, tardonho, que tarda. Vertune, algumas vezes significa va
— Ja o soccorro dos outros lhe lor, fortaleza , valentia. — Os quaes
parecia lardinheiro ( pag. 286) , levavão no dia do triumpho em tes
isto e,ja lhe tardava o soccorro dos temunho de sua vertude ipag. 77).
outros. Verteosa mente, valerosaiueu te.
Tennino, estendido. Vincos, brincos das orelhas, ornato
Tiluano (do frances lUlac), de co mulheril. — Eas mulheresdaquellcs
berta. — E lhes fez prestes duas ca- honrados trazem vincos e argollas
ravellas, hua Olhada, e outra de douro ípag. 363).
pescar (pag. 419). Vinuanca, cousa que vem, que ac-
Tono , tudo. eresce de vir). — Qual foe o homem
Topo, encontro, choque. — Muylos cujas vertudes por algúa vinhança
mais prenderom , se todos acerta de vyeios nom fossem offendidas
ram juntamente ao primeiro topo (pag. 42}? isto e, cujas virtudes não
(pag. 82). fossem offendidas por algum ac-
Toroimam. V. Turgymam. crescimo de vicios.
Toste (do francez antiquado tosl), Vira , especie de sctta delgada e mui
sem demora, de pressa, em breve. aguda. - Ordenando seus tiros de
Traraluar-se, v. r. dar-se trabalho guisa, que suas viras fossem em
por conseguir alguma cousa, empe- pregadas como couipria (pag. 216).
nhar-se. — O Inantu encarregou Vono, hodo. Sobre a origem dos ho
mu) to a Gil Eanes que se traba dos deve ler-se o Elucidario no
lhasse de passar aquelle caho (pag. artigo BOD1VO.
SI). Vovagem (do francez voyage), via
Th autar, tratar, tralicar,commerciar. gem.
Trauto, tracto, contracto, commercio. Voz, voto, suffragio. — A terceira
Travar , censurar, notar ou murmu vos, que era dos capitaSes (pag.
rar. — Que noni ha hi cousa tam 314).
santa em que o maao enterpretador
nom ache que travar (pag. 43 1.
Traves (A), de fronte, na altura de, X.
em termos de marinha. — Eram na
costa de Portugal, atraves de huú Xpaão, christão.
tugar que se chama Sines pag. 405). Xpiisnane, cliristandade.
Tresfegar (Hg. ), revolver, por em XpO, Christo.
confusão, amotinar, alvoroçar. —

PAKIZ. - NA OFFICINA TVPOGRAPH1CA DE KAIN E THUNOT,


RIR RACI!IE, 28, UNTO AO OIIEON.
ERRATAS.

ERKOS.
Pag. UBh.
10 assemelhança a semelhança
20 algun alguu
20 mais mas
27 13 della cidade desta cidade
27 15 ny° xv iiijc xv
63 17 Eytor homem Eytor Homem
81 29 tornou os contraires torvou os contrairas
90 I da nota. e de si e desi
95 18 aaquelle,que anunca a aquelles que anuncu
viiram viiram
120 I Per o que Pero que
128 7 quem meis podia quem mais podia
151 3 em huú caravella em hua caravella
IG1 4 da nota. commerciarem em commerciarem em es
couros cravos
191 5 muyto daquelles muytos daquelles
208 3 nem se despoer nam se despoer
367 4 da nota 2". do que de que
J
MEMORIA

SOBR E

A PRIORIDADE DOS DESCOBRIMENTOS PORTUGUEZES

NA COSTA D'AFIUCA OCCIDENTAL.


PAMZ. - NA OFF1CINA TYPOGRAPHICA DE FA1N E THUNOT,
RBE RACINE, 28, JISTO AO ODEON.
MEMORIA

SOBRE

A PRIORIDADE DOS DESCOBRIMENTOS PORTUGUEZES

NA COSTA D'AFRICA OCCIDENTAL,

PARA SERVIR DE ILLlSTRAÇlO


Á CURONICA DA CONQUISTA DE GUINÉ POR AZURARA,

PELO
Visconde DE SANTARÉM,
Da Academia Real das Sciencias de Lishoa, e de um grande numero
dc Academias e Sociedades sahias estrangeiras.

PARIZ.

NA LIVRARIA PORTUGUEZA DE J.-P. A1LLAUD,


QOAI VOLTAIRE , N° 11.
1841.
INTRODUCÇAO.

Quando o celebre Christovão Colombo descobrio o


Novo-Continente , nenhuma nação da Europa tinha
noticia da existencia daquella parte do globo; nenhum
maritimo tinha tentado attravessar o Oceano Atlantico
afim de buscar um novo mundo ao Oeste. Mas depois
de feito aquelle grande descobrimento , e de passado o
primeiro enthusiasmo , não só se buscou diminuir- lhe o
valor, e importancia , por todos os meios que a inveja
tem quasi sempre á sua disposição , mas tambem aven
tureiros de todas as nações corrérão, tempos depois,
áquellas regiões pela estrada que o eminente talento da-
quelle grande homem , e a fortuna de Pedro Alvares
Cabral , lhes tinha aberto, e facilitado.
Em quanto pois aquelles aventureiros se dirigião
ao Novo-Continente, ebuscavão por todos os meios clan
destinos, e até pelos da força , estabelecer-se naquellas
1
regiões, que alias tinhão sido descobertas á custa rfo
sangue e do oiro dos Hespanhóes e dos Portuguezes ,
começarão por outra parte os eruditos, principalmente
do xvu° seculo, das diversas nações maritimas da Eu
ropa, a desenterrar antigas tradições extrahidas dos AA .
da antiguidade classica, edos da Idade Media, afim de
provarem que a America tinha sido conhecida antes do
descobrimento de Colombo. As passagens dos livros de
Platão, d'Aristoteles , de Diodoro de Sicilia , de Possi-
donio, de Strabo, de Seneca, de Plinio, de S. Cle
mente d Alexandria , d Eliano, d'Apuleo, e d'Origenes,
sobre a existencia de um continente separado do nosso ,
servirão de thema para diminuirem a gloria de Co
lombo. A esta polemica seguio-se a das pretenções de
varias nações á prioridade daquelle descobrimento.
Os AA. do Norte a reclamarão prevalecendo-se do
texto , e d'aigumas passagens da obra d'Adam de Breme ,
de Torpheo, e de Gotlob-Fritsch , os Venezianos das via
gens dos dois Zenos ; e os Normandos não forão menos
diligentes em sahirem a campo em tempos posterio
res para reclamarem tambem a mesma prioridade. De
igual modo o feito illustre da passagem do cabo Tor
— »j —
mentoso pelo grande Vasco da Gama (que foi uma con
sequencia necessaria dos descobrimentos feitos no tempo
do Infante D. Henrique) foi recebido por toda a Europa
com incrivel entbusiasmo. A passagem do cabo da
Boa-Esperança , e os immensos proveitos que a geo
grafia e o commercio della colhêrão, excitarão a admi
ração de todas as nações e de todos os escriptores desde
os fins do seculo xv° e durante todo o xvi°.
Mas poucos annos depois de Vasco da Gama ter mos
trado aos maritimos de toda a Europa admirada e sor-
prebendida este novo caminbo , que lbes tinha aberto
para os ricos paizes do Oriente , aventureiros de outras
nações se dirigirão áquellas regiões pela via que ogrande
espirito, e valerosa decisão daquelle almirante portu-
guez lhes tinha ensinado ; em quanto os eruditos, prin
cipalmente do seculo xvu°, não satisfeitos com o que a
respeito de Colombo tinhão praticado , tratarão de di
minuir igualmente a gloria do grande feito de Gama.
Descobrlrão a passagem de Herodoto, tantas vezes
citada, sobre a circumnavegação dAfrica por uma expe
dição feita no tempo de Necos , afim de mostrarem que
o valeroso almirante tinha apenas achado o que já era
I*
conhecido na antiguidade, e até o sabio Wesseling in
dicou que a publicação da primeira edição à!Herodoto
tivera uma grande influencia na viagem de Vasco da
Gama , como se antes de tal publicação os Portuguezes
instruidos , c em uma epoca em que os estudos classicos
crão fructuosamente cultivados entre nós, podessem
ignoraras passagens relativas aos periplos da antigui
dade que se encontrão nos antigos AA. !
Nós reconhecemos a indubitavel influencia das antigas
tradições classicas da antiguidade , e da Idade Media ,
sobre os grandes homens do xv° seculo ; mas esse conhe
cimento , longe de diminuir os altos feitos que praticárão,
c os notaveis descobrimentos que fizerão , antes mais
realça a sua gloria.
Como quer que seja , Huet (1), Pluche, Knoefs, Ren-
nell (2), Montesquieu (3), Francisco Paris (4), Nie-

(1) De navigationibui Salomonis.


(2) Système de Ia géographie iTHéroilote.
(3) Espritdes Lois, liv. XXI.
(4) Analyse de la Dissertation pour prouver que les anciem ont
fait le lour de 1'Afriquc, et ronnu ses côtes méridionales. (Mém. <le
1'Arad- cles lnscripl. — Mist.,.1. VII, p. 79.)
buhr(l), Gesner(2), Larcher (3) , Michaêlis (4) , For
ster (5), Heeren(6), sustentarão e admitlirão a prio
ridade da circumnavegação d'Africa pelos antigos ;
outros , como Gossellin (7) , Mannert (8) , De Murr (9) ,
Walckenaer (10), Malte Brun (tl), Pardessus Í12) , e
outros , não admittem tal circumnavegação.
A prioridade da passagem do cabo Bojador pelos
Portuguezes , e os primeiros descobrimentos desta na
ção na costa occidental d'Africa , tiverão igual sorte ;

(1) Voyages en Arabie, p. 265. .


(2) Prel. de Phcenitiuui extra columnas Herculis navigationibna ,
na sua Orphiea.
(3) Hist. gén. du coinm, et de la navigation de» Anciens. Lyun,
1763.
(4) fide este A. no sen Spicilegium geographice Hehraorum , ele.
Paral, p. 82 et 103.
(5) Découverles et Voyages dans le Nord, 1. 1 , p. 10.
(6) De la Politique et du Commerce, 1. 11 , p. 87 et suiv.
(7) Recherches, etc., t. 1, p. 189-216.
(8) Geografia dos Gregos e dos Romanos.
(9) Journal pour THist. des Arts, t. VI, p. 112.
(10) Vies de plusieurs personnages célèbres, etc, t. I, p. 109.
Vie dEudoxe de Cyzique.
(11) Précis deGéographie univ , édit. de 1831, 1. 1 , p. 78 et 80.
(12) lutroduction auTableau du Commerce . etc., p. 42 á 52.
grande , e geral admiração dos contemporaneos , uni
versal applauso dos historiadores e geografos dos secu
los xv° e xvi° pela serie de descobrimentos feitos durante
a vida do illustre Principe que os intentára, e conse
guira, e que forão continuados nos reinados de D. Af-
fonso V e D. João II.
Mas apenas se espalhou na Europa a noticia delles, e
que alguns pilotos portuguezes , munidos de cartas nau
ticas portuguesas , trahindo o seu dever pelos convites de
premios e promessa davultados interesses, forão ensinar
a derrota daquellas paragens a aventureiros estrangeiros,
e os conduzlrão áquellas regiões , desde então esses aven
tureiros aprendêrão o caminho que té alli absoluta
mente ignoravão; outros poderão obter dos Portuguezes
noticias que os habilitarão a poder alli aportar ; outros
finalmente aprovei tárão-se das cartas e memorias que
o mesmo governo portuguez varias vezes mandou com-
municar a estranhos reinos (1). Todavia até aos fins do
seculo xvi° nenhum escriptor estrangeiro nos disputou

(1) yidt a nossa obra intitulada : Rccherch.es historiqucs, critiques


et blbliographiques sur Améric Vespucc et ses eoj-ages.
a prioridade dos nossos descobrimentos na costa Occi
dental d*Africa ; somente no meado do seculo xvn°, se
culo fertil em taes disputas , se apresentou um certo
Villaut de Bellefond , viajante francez , reclamando ,
sem prova alguma, a prioridade daquelles descobrimen
tos a favor dos maritimos de Dieppe , que, segundo elle,
tinhão fundado estabelecimentos na Guiné em 1364.
Varios escriptores o copiárão depois , e posto que os
mais sabios geografos de todas as nações que escrevérào
depois de Villaut, e mesmo alguns dos Francezes, não
admittirão aquella supposta prioridade , comtudo tres
obras importantes , publicadas nestes ultimos annos em
França , vierão de novo ressuscitar a pretenção da dita
supposta prioridade dos descobrimentos dos Dieppezes ,
fundando-se principalmente na relação daquelle viajante
do meado do seculo xvir.
Restabelecer pois os factos, e mostrar com documentos
de indubitavel fé que a tal pretendida prioridade dos
descobrimentos dos maritimos de Dieppe no seculo xiv
é insustentavel , tal é o objecto da presente memoria.
Julgamos cumprir um dever para como nosso paiz em
não guardar silencio em assumpto tão grave, no qual in
1"
teressa não só a antiga gloria delle , mas tambem a his
toria da geografia. Resta-nos todavia o sentimento de
nos vermos obrigados a circumscrever-nos nos estreitos
limites desta memoria, sendo a materia alias digna de
uma obra extensa que devêra ser acompanhada de docu
mentos, e de provas mais numerosas do que as que pro
duzimos. Temos comtudo a esperança de vér ainda um
dia realizado este nosso desejo. Os documentos são nu
merosissimos , e felizmente uma grande parte delles
existe nosarchivos de Portugal, outros se encontrão em
diversas bibliothecas ; não será portanto difficil convencer
os homens imparciaes da justiça dos nossos direitos, e
da boa fé que nos dictou este escripto; e se os Portu-
guezes podem com razão ser considerados como usurpa
dores da supposta prioridade dos descobrimentos dos
maritimos de Dieppe , como um moderno escriptor nor
mando lhes chama sem prova alguma.
MEMORIA

SOBRE

A PRIORIDADE DOS DESCOBRIMENTOS PORTUGUEZES

NA COSTA d'aFRICA OCCIDENTAL.

s i.

Das pretençSes de um escriptor dos nossos dias <le terem os


Normandos abordado ás costas d'Africa antes dos Portuguezes.

Funda-se o dito escriptor em que no ix° seculo os


navios destes piratas famosos devastarão todos os paizes
do littoral desde o Elba até ao estreito de Gibraltar , e
penetrando no Mediterraneo assolarão as costas deHes-
panha , da Provença , e da Italia , que em 825 devas
tarão Sevilha , em 845 aportárão á Galiza , e entrarão
no Tejo donde forão repellidos ; e destes factos que
alias são confirmados pelo testemunho de escriptores
contemporaneos , isto é do ix« seculo , e dos tempos im-
mediatos , tanto Christãos como Arabes , destes factos ,
dizemos, deduz omesmo escriptor as conjecturas seguin
tes : l*que depois que elles se estabelecerão na Neustria
devião conservar relações com os Mouros de Hespanha ,
e por tanto com os de Africa , e que desta sorte, desde o
começo do xin° seculo , os Normandos conservarão rela
ções commerciaes com os Mouros , e os seguirão na costa
de Africa.
2* Que até ao seculo xiv° as suas navegações devião
limitar-se ao littoral da antiga Mauritania , e pararem
no cabo Não , limite de todas as navegações dos antigos.
3* Que os Normandos deverião por algum tempo li
mitar as suas navegações aos confins da Mauritania , e
que se não pode duvidar de que elles deixassem desde
então de conhecer as ilhas Canarias , sendo alias tão
vizinhas do continente.

S ll

Observações sobre estas conjecturas, prioridade daquelles nave


gações pelos Portuguezes muitos seculos antes das suppostas rela
ções dos Normandos com a Africa.

Ainda quando estas conjecturas repousassem sobre


algumas passagens de escriptores contemporaneos , nas
quaes se indicasse que os Normandos tinhão frequentado
a Africa desde oix° até ao xm° seculo, e principalmente
as Canarias, archi pelago que durante a Idade Media fôra
um dos tres pontos (1) de apoio, ou uma das bases esco
lhidas pelos povos do Occidente para estenderem a es-
phera da sua actividade, e para entrarem em relações com
as partes do mundo que então lhes erão desconhecidas ,
ainda quando taes conjecturas, repetimos, fossem tiradas
da inducção de passagens d'alguns escriptores antigos ,
nesse caso mesmo os Portuguezes tinhão por si a priori
dade da navegação naquellas paragens.
Plutarco refere , na vida de Sertorio (2) , que este

(1) Os outros dois pontos erao a Islandia , e mais tarde os Açores.


(i) Flut. in vita Sertor., cap. 8. Sallustio, fragm. 48».
— 11 —

grande capitão , fugindo da tyrannia de Sylla ( elle era


do partido democratico de Mario ) , se derigira á Betica
( hoje Andalusia ) , e que achando-se alli varios mariti
mos da Betica , ou Lusitanos, que voltavão das ilhas do
oceano Atlantico, lhe propozerão transportá-lo áquellas
felizes e bellas regiões : fizerão-lhe a descripção da-
quellas ilhas , dizendo-lhe queerão situadas a mil esta
dios de distancia da costa Occidental d'Africa.
Ora este facto , referido por um escriptor tão grave
como Plutarco , e que viveo em tempo mui proximo a
elle, oflerece um grande argumento da prioridade que
os Lusitanos ou os povos da Hispania tinhão do conhe
cimento da Africa occidental , e de que a frequentavão
80 annos antes da era christã.
A' vista dis1o os antigos Portuguezes frequentárão a
Africa perto de 10 seculos antes que os Normandos
ousassem passar além da Mancha.
Estabelecido assim este facto, passaremos a responder
ás conjecturas do A. Normando que acima indicámos.
As ponderações que faremos nos parecem mais plau
siveis do que as do dito autor, visto que ellas serão
fundadas em factos historicos e argumentos que nos
parecem irrefutaveis.
E um facto historico de indubitavel fé , e attestado
por diversas passagens dos escriptos dos Arabes e Chris-
tãos , que os Peninsulares que estavão sujeitos ao seu
dominio , isto é desde o viu° até ao x° seculo , servião
muitos delles nas suas esquadras , outros passavão fre
quentes vezes a Africa , e outros finalmente , que habi-
tavão as cidades maritimas de Portugal , entretinhão
— 12 —

continuadas relações commerciaes com a Africa durante


o dominio Arabe.
Não se pôde pois sustentar á vista destes factos que
os Normandos desde a sua apparição no meiodia da Eu
ropa no seculo ix°, onde só apparecêráo como piratas ,
podessem ter ligado e estabelecido relações commerciaes
com a Africa , e podessem desta sorte ter tido conheci
mento da parte occidental daquelle continente , ante
rior ao dos Portuguezes , vizinhos delle , em relações
immediatas com os Arabes que attravessavão o grande
deserto (1), e com os Mouros ; além de que muitos
Portuguezes se instruiáo na geografia da Africa , nas
escolas arabes que existião na Peninsula , principal
mente durante a dynastiados Ommjades.
Um A. francez de uma nova Historia de Hespa-
nha (2), diz acerca das incursões feitas pelos Nor
mandos :
« Un fait à signuler à 1'honneur de 1'Espagne , soit
» chrétienne , soit arabe , c'est qu au moment méme oú
» la Gaule franque allait devenir tributaire des pirates
» normands, et voir leurs bandes pillardes setablir sur

(1) As relações dos Arabes de Hespanha erão taes com o interior


d'Africa , que o celebre Leão Afrieano {vide Relação em Ramusio,
part. VII, p-78) diz que fôra um arcbitecto de Granada que con
struira em pedra o palacio do rei de Tombuctu , e a primeira mes
quita daquella cidade africana. M. Walekenaer presume que forão
os Mouros de Hespanha que fundárao aquella cidade (vide Recher-
ches sur lintérieur de VAfrique , p. 13 et 14).
(2) fide Histoire d Espagne, par M. R. Saint -Hilaire , t. 111,
p. 103.
— 13.—

» ses cótes dévastées, les énnrs de Cordoue, et jus-


» quaux roitelets dcs Asturies , surent garder leurs do-
» maines contre ces terribles visiteurs, et que les appa-
» ritions des Normands sur les côtes d'Espagne ne
* jurentjamais que rares etpassagères. Jamais ils n'es-
«sayèrent, comme en Neustrie, de s'y domicilièr, et
» 1'accueil que leur firent à plus d'une reprise les braves
» habitants de la Galice finit par leur ôter 1'envie de
» retourner. »
Este escriptor, que estudou os AA. arabes e chris-
tãos da Peninsula , mostra na passagem que transcre
vemos quaes forão as relações que os Normandos tiverão
com a Peninsula , e vem reforçar os nossos argumentos.
Parece-nos pois que á vista do que expomos , quanto
á parte da questão historica da prioridade das nossas
navegações e relações com a Africa , nos tempos remo
tos , que esta prioridade é anterior, não só á epoca do
dominio arabe e romano , mas que taes relações é de
presumir que existissem com aquella parte do globo
desde o tempo do dominio carlbaginez , em cujas arma
das servi ão os Lusitanos. Os Carthaginezes levárâo para
Africa exercitos enormes de Celtiberos, e neste grande
numero entrárão os Lusitanos. Se a celebre viagem
d'Hannon se realizou (1), como julgámos, é maisadmis-

(1) Sobre o Périplo dHannon , vide o erudito artigo Hannon que


M. Walekenaer publicou no tomo XIII da Encj-elopédie dct gens du
monde. Este Periplo foi traduzido em portuguez, e em Ramusio se
encontra um discurso de um piloto porluguez mui curioso sobre
e«te Periplo d Hannon.
— U —

sivel a conjectura de que ella seria antes conhecida dos


povos da Peninsula, do que dos habitantes das regiões
septentrionaes da Europa.
Como quer que seja , uma serie infinita de passagens
extrahidas dos escriptores gregos, romanos, arabes, e dos
dos ultimos tempos da Idade Media , que por brevidade
omittimos , prova chronologica mente que as nossas rela
ções com a Africa não experimentárão interrupção desde
a mais remota antiguidade, até ás expedições do Infante
D. Henrique, epoca na qual taes relações tomarão um
caracter positivo de descobrimento , e de colonisação.

§ III.
Observações sobre as primeiras asserções do capitulo 1° da Notice
historique sur le Senegal et ses dcpendances.

Tendo deixado acima demonstrado que, ainda mesmo


que fossem admissiveis as conjecturas do A. da obra
alias curiosa , intitulada : Recherches sur les voyages et
dècouvertes des Norniands, a prioridade das navegações
na costa d'Africa pertencia aos povos da Peninsula
hispanica , e não aos Normandos , passaremos agora a
mostrar que não tem melhor fundamento as asserções
sustentadas no cap° Io da introducção historica da excel-
lente Notice historique sur le Sénégal et ses dépen-
dances, publicada em Pari z no anno passado.
Alli se diz o seguinte : « Les premières expéditions des
» peuples modernes pour la côte occidentale d'Afrique
» datent du milieu du xiv° siècle ; elles furent entre-
» prises par les Français , habitants de Dieppe , et non ,
— 15 —

» comme on l'a cru longtemps , par des Portugais et


i>des Espagnols. En 13C5, des négociants de Rouen ,
» s'étant associés à des marins de Dieppe, commencèrent
» à établir des comptoirs et des entrepôts de commercc
» sur la cóte occidentale d'Afrique, depiiis 1'embou-
«chure du Senegal jusqu'à 1'extrémité du golfe de
» Guinée Cest alors que furent successivement formes
» les étahlissements français du Senegal, de la rivière
» de Gambie, de Sierra-Leone , et ceux de la cote de
»Malaguette (qui portaient les noms de Petit Dieppe
»et de Petit Paris ) , et que furent construits des forts
»français à la Mine d'Or , sur la côte de Guinée , à
»Acra et à Cormentin. »
Como todas estas asserções assentão sobre uma data
para justificarem a prioridade dos seus estabelecimentos
na Africa occidental sobre os nossos, e esta é a do anno de
1365; e sendo em taes discussões a chronologia o mais
importante ponto dellas, recorreremos tambem não a uma
data sem prova de documento authentico, mas sim a
uma de documentos autbenticos, e contemporaneos, que
é anterior áquella, e que prova que já antes de 1336, isto
é 29 annos antes, tinhamos começado as nossas navegações
além do cabo de Não. ( Veja-se a carta d elRei D. Af-
fonso IV ao papa Clemente VI. Memorias d'Academià ,
tom. VI, P. 1a, e Additamentos publicados em 1835.
Vejâo-se igualmente os documentos extrabidos dos apon
tamentos autographos de Boccaccio que Ciampi copiou
na bibliotbeca Magliabechiana de Florença (1).) Perto de

(1) Mrm do Sr .1. J. da Cosia de Macedo, na qual aqnelle sabio


— 16 —

dois seculos antes, Edrisi nos cita uma expedição partida


de Lisboa eque abordou ás ilhas situadas perto d'Africa.
( Vid. Humboldt , Examen critique, tom. II, pag. 139. )
A' vista disto fica indubitavel que ainda mesmo
quando fosse verdade o que se avança naquella obra ,
Notice , etc. , nós tinhamos precedido os Francezes na
exploração daquellas paragens nos tempos modernos.
Por nossa parte existem os documentos , a maior proxi
midade dos dois paizes , e além disso todas as probabi
lidades ; e por parte dos Dieppezes não existem nem docu
mentos daquellas epocas, além de ficarem mais distantes
do que nós , e em nenhum contacto no xivo seculo com
os Mouros , como então se achavão os Portuguezes.
Se acaso aquelles suppostos estabelecimentos fran
cezes tivessem alli sido fundados em 1365 como elles
dizem , terião sido indicados nas minuciosas cartas fei
tas immedia lamente depois, e pelo menos a parte hydro-
grafica daquellas costas alli se acharia marcada ; mas
pelo contrario na carta de Pizigani de 1367 não se
encontra o menor vestigio do conhecimento daquellepaiz,
eainda menos de estabelecimentos curopeos. No famoso
Atlas Catalão da Bibliotlieca R. dePariz, que é pos
terior de mais de 10 annos áquella data (1) , e lendo-se
alli uma nota da viagem do Catalão Jacques Ferrer ao

academico prova por documentos incontestaveis a epoca daquellas


navegações.
(1) Sobre a verdadeira data deste Atlas, que alias alguns geografos
tem lido 1375, tem havido alguma controversia.
(

— 17 —

Rio do Oiro em 1346 , não se encontra uma só palavra


sobre os estabelecimentos francezes na costa tTAfrica,
o que de certo não teria escapado ao autor se na rea
lidade taes estabelecimentos alli tivessem sido fun
dados 10 annos antes, e tivessem recebido as denomina
ções indicadas em a Notice historiquc. Esta circumstancia
não teria escapado ao autor do Allas , quando alias en-
riqueceo as suas cartas com grande numero de notas
do mais alto interesse para a historia da geografia do
xiv° seculo, e entre ellas a seguinte perto da costa de
Guiné : « Per aquest loch pasen los marchaders que en-
tren en la terra del negres de Guineva , le qual pas es
appelet Vall de Darha. » Como seria possivel que os
Catalães , cujo commercio e cujas relações com as ou
tras nações erão tão extensas naquelle seculo , podessem
ignorar que os maritimos de Dieppe e de Roão não
só tinhão chegado ao Senegal, mas, o que é mais, que
alli tinhão fundado estabelecimentos commerciaes que
datavãojá de 10 annos quando se ultimou aquelle Atlas?
Como era possivel iguorar-se isto em toda a Europa
em um seculo em que a geografia fazia já os mais ra
pidos progressos , e que recebia o grande impulso que
as viagens de Marco-Paulo , de Mandeville , de Plano
Carpino, de Rubruk , tinhão dado a este estudo que
alias occupava todos os homens eminentes desde Ray-
mundo de Lulle, e de Rogerio Bacon ?
As relações commerciaes de um povo europeo , no
estado em que se achava a Europa no xiv° seculo , não
se podião occultar das outras nações , e muito menos as
dos maritimos da Normandia se podião occultar aos
2
— 18 —

Portuguezes , que naquelle seculo alli commerciavâo,


como é attestado por varios documentos que eitra-
himos dos àrchivos de França.
Fillippe VI de Valois concedeo em maio e setembro
de 1341 varios privilegios aos mercadores portuguezes
que commerciassem com Harfleur(l).
Em outubro de 1350, João II, chamado o Bom, rei de
França e duque de Normandia, confirmou em favor dos
commerciantes portuguezes as cartas que eIRei seu pai
lhes bavia concedido para commerciarem com a Nor
mandia (2).
Finalmente por outra carta datada de Pariz em julho
de 1362 , o mesmo rei confirma outros privilegios com-
merciaes concedidos aos Portuguezes (3).
A' vista pois destes documentos, como é possivel duvi-
dar-se que aos negociantes portuguezes que estavão esta
belecidos em a Normandia , e aos que alli vinhão com-
merciar, se não podia occullar a existencia das suppostas
navegações dos Normandos em a costa d'Africa , e
ainda menos que elles alli tinhão fundado estabeleci
mentos commerciaes , cujo commercio , segundo se diz
em a Notice historique , consistia «dans 1'échange de
» toiles, de couteaux , d'eau-de-vie et de verroteries ,
» conlre des cuirs , de 1'ivoire, des plumes d';iu-

(1) Archivos de França. Tresor des Charles, reg. 80, n° 92,


fol. 47.
(2) Archivos de França, reg. 80, p. 47, v.
(3) Ibiã., registo n» 91, n° 299, p. 152.
— 19 —

» truche , de 1'ambre gris et de la poudre d'or (1) ? »


Ora um tal commercio Dão se podia fazer ás escon
didas , e não podia escapar á vigilancia dos commer-
ciantes estrangeiros que residião ou frequentavão a
Normandia no xiv° seculo, tanto mais que os proveitos
erão immensos, como diz a mesma Notice historique.
« II procura d'immenses bénéfices à la ville de Dieppe ,
» et y donna naissance au travail de 1'ivoire. »
Além disto o silencio de todos os autores contempo
raneos acerca da existencia dos taes suppostos estabeleci
mentos, é um fortissimo argumento contra estas preten-
ções d alguns modernos escriptores francezes (2), não se

(1) Esta passagem é uma repetição das asserções de fillaut , A.


que alias escreveo tres seculos depois, e do qual tratámos em outro
logar. Balbi (Es- ai statistique sur le Portugal, t. 1, p. 404), no
periodo commercial de 1500 a 1595, diz : « Les Portugais Jlrent
pendant ce siècle le commerce exclusif de 1'Afrique, etc. Les manu
factures Jrançaises et anglaises ricxistaient pas encore ; à peine les
manufactures de laine commencaient-elles à prospérer en Angle-
tcrre. »
(2) Sobre este silencio dos escriptores francezes do xiv° seculo
faremos aqui menção do mais celebre dos historiadores desta narão,
isto e de Froissard, o qual , além de ser contemporaneo , escreveo as
chronicas de Franca, d lnglaterra, d'Escocia, de llespaiiha ede Bre
tanha, desde 1326 até 1400. A sua historia abrange portanto a
epoca dos taes suppostos descobrimentos dos maritimos de Dieppe ,
e dos inculeados estabelecimentos que fillaut diz haverem elles
alli fundado. Ora este chronista , que já na idade de 20 annos se
occupava com enthusiasmo dos estudos historicos,que não só visitara
todas as provincias de França afim de buscar noticias e documen -
los para enriquecer a sua historia . mas que viajou e residio em
— 20 —

achando além disso taes estabelecimentos marcados nas


cartas posteriores a 1365, em quanto , por outra parte ,
os Portuguezes e toda a Europa no século seguinte
julgarão que nenhuns navegadores tinhão passado além
do Cabo Bojador. No meado do seculo x\", a historia de
todos os povos da Europa mostra só uma exclusiva ad
miração pelo facto temerario de terem ousado os Por
tuguezes passar além da meta em que té alli todos os
navegantes tinhão parado.
Azurara, na chronica inedita da conquista de Guiné,
diz no cap° 7o, fallando das razões pelas quaes o in
fante D. Henrique foi movido a mandar buscar as ter
ras de Guiné :
k E por que elle tinha vontade de saber a terra

Inglaterra , rujo paiz tinha tantas relações com a Normandia , que


visitou para o mesmo objecto a Italia onde tanto se oceupavão de
materias geograficas e commerciaes , não é de presumir que pas
sasse em silencio taes descobrimentos feitos pelos seus compatriotas
se elles na realidade tivessem existido. Um biografo deste celebre
historiador diz com razão :
« // ne se pastait rien de nouveau dont Froissard ne voulúl élre
» temoin . »
Elle fez de proposito uma viagem a Bruges, como elle diz, para
se informar dos Portuguezes que alli residião de alguns factos e
noticias que lhe servirão para a composição do liv. Ill da sua Histo
ria, e foi passar seis dias em Middelhurgo ha Zelandia em compa
nhia do cavalheiro Postelet , vaillant homme et snge , et dm conseil
du roi de Portugal. Não parece pois que a tal indagador podesse
escapar um facto tal , qual era o do descobrimento da Guiné pelos
maritimos de Dieppe.
— âl —

» que hya alem das ilhas de Canaria , e de um cabo


» que se chama Bojador, por que ataa aquelle tempo ,
» nem por escriptura , nem por memoria de nenhuns
» homens nunca foe sabudo determinadamente a
» callidade da terra que hya alem do dito cabo. »
O testemunho deste chronista é da maior impor
tancia historica , conforme todas as regras da critica :
Io por ser contemporaneo, 2o por que escreveo sobre
documentos authenticos, 3o por que era um dos ho
mens mais sabios e mais instruidos não só do seu paiz
mas do seu tempo , 4o emfim por que elle cita com co
nhecimento de causa não só muitos factos da historia da
França, mas até conhecia muitas obras e Mss. francezes
dos dois seculos precedentes , e portanto do seculo xiv°,
seculo, no qual os modernissimos escriptores francezes
dizem que os Dieppezes fundarão estabelecimentos na
Africa occidental , e portanto uem elle nem Aflonso Cer
veira tampouco (do qual elle copiou as relações sobre os
descobrimentos d'Africa), podião ignorar se os Francezes
alli tivessem fundado anteriormente os suppostos esta
belecimentos de que se trata ; mas Azurara não diz a
este respeito uma palavra , e nenhum dos navegantes
portuguezes que explorárão a Africa desde o cabo
Bojador até além da equinoxial , não dizem tam
pouco uma só palavra de terem encontrado vestigios
de alli ter hido algum povo europeo. Citaremos ainda
outro escriptor contemporaneo, isto é do seculo xv°,
Luis de Cadamosto , o qual , em razão de ser estran
geiro, tem tambem grande importancia no que diz a este
respeito.
— 22 —

Cadamosto partio por ordem do infante em ikkk (1).


No cap° 15 diz fallando do Senegal «que a maré sobe
» pelo rio até 60 milhas , segundo a informação que
» tive dos Portuguezes que estiverão com as caravellas
» por elle acima. »
No cap° 20 , fallando dos negros destas paragens, diz :
« Não tem navios , nem nunca os virão , salvo despois
» que tiverão conhecimento dos Portuguezes- »
No cap° 30 diz :
« Estes negros, tanto homens como mulheres, vinhão
» ver-me por maravilha ; parecia-lhes cousa exlraordi-
» naria ver christãos nunca até então vistos , e não
» menos se admiravão do meu Iraje do que da minha
» brancura. »
O mesmo viajante, na segunda viagem, diz cap» 2 fal
lando dos negros que habitão entre o Senegal e cabo
Verde :
« E muito se maravilharão do nosso navio , e do
» modo por que navegavamos com vélas. Admiravão-
» se de ver homens brancos. »
Os interpretes negros que Cadamosto levava , bem
como os que levavão os outros capitães portuguezes , ti-
nhão apprendido a lingoa portugucza em Portugal , a
onde tinhão sido precedentemente trazidos do Seuegal
pelos primeiros Portuguezes que descobrirão aquella
terra e suas dependencias. ( Vid. Cadamosto , cap° 36.)

(i) Fixámos esta data que foi a que se acha determinada na pu


blicação da Academia R. das (ciencias de Lisboa; comtudo cila c
sujeita a uma discussão chronologicai. que reservámos para outra
parte.
— 23 —

Não citaremos sobre este assumpto nem as outras


chronicas do reino , nem mesmo outros escriptores ,
apesar da importancia e autoridade das suas obras, por
que estão já fóra do limite que acritica fixa na impor
tancia dos testemunhos historicos, visto que pela maior
parte são posteriores á epoca daquelles descobrimentos.
Todavia as Decadas de Barros tem tal autoridade , que
julgámos a proposito citar a seguinte passagem , a qual
prova e reforça os testemunhos que acima produzimos.
Aquelle grande historiador, fallando da impressão que
os nossos descobrimentos d'Africa tinhão produzido na
Europa no seculo xv°, diz :
« E neste tempo por toda a Europa se fallava no des-
» cobrimento da Guiné como na maior nova cousa que
» se podia dizer, e os homens que o seguião erão esti-
>. mados em preço de cavalleiros, e de grande animo. »
(Decad. t , c. 7.)
Fica pois provado : lo Que as principaes cartas e
Atlas do seculo xtv» posteriores ao anno de 1365 não mar
rão nenhum estabeleci nien to f rancez na Africa occiden tal.
2o Que se taes estabelecimentos francezes tivessem
sido fundados naquella epoca, não podião ser ignorados
das nações da Europa, e menos dos commerciantes por-
tuguezes estabelecidos em a Normandia, e dos que a
frequentavão.
3° Que da chronica das expedições portuguezas á
tosta d'Africa começadas meio seculo depois, resulta
a prova de que até áquella epoca não se sabia na Eu
ropa que algum navegante tivesse passado além do
cabo Bojador.
— 24 —

4o Finalmente , que pelo testemunho de um dos mais


celebres viajautes do meado do seculo xv° se mostra
que elle não encontrára vestigio algum de outros Euro-
peos terem n 1 li aportado á excepção dos Portuguezes.

S IV.

Mostra-se que os Portuguezes descobrirão, no seculo xv°, a parte


occidental d'Africa desde o cabo Bojador até além do grande
golfo de Guiné; que ao descobrimento seguio-se a conquista de
muitas destas partes , e a fundação d'estabelecimentos militares
e commerciaes, tratados com os soberanos do paiz. Titulos legi
timos de posse e reconhecimento de direito por todos os soberanos
da Europa , sem exceptuar os de França.

Tendo provado no precedente §° que os AA. fran-


cezes não mostrão nem por documentos historicos, nem
por passagem alguma dos autores do seculo xtv°, terem
navegado além do cabo Bojador, e ainda menos terem
fundado estabelecimentos na Africa occidental naquella
epoca, diremos agora que os Portuguezes no seguinte
seculo descobrirão successivamente , depois do anno de
1415 até ao fim do reinado d'elRei D. João II (1495) .
toda a costa d'aquelle continente desde o dito cabo Bo
jador até além do grande golfo de Guiné , e mesmo do
cabo Tormentoso (viagem de Bartholomeu Dias em
1486). Diremos que este descobrimento é authenticado
por mil documentos e pelos escriptores contempora
neos. A este seguio-se a fundação d'estabelecimentos
commerciaes , e de fortalezas para manter a posse e
— 25 —

ao mesmo tempo o respeito dos habitantes, e repellir as


tentativas q-ue os aventureiros de outras naçõ< s podes-
sem fazer contra aquelles estabelecimentos. Esta posse
e esta acquisição ratificou-se além disso por tratados
e convenções feitas com os chefes ou reis das difíerentes
nações africanas ; e além de todos estes titulos legiti
mos , e conformes com o direito das gentes, os reis
de Portugal fizerão julgar essa legitimidade do desco
brimento e da posse pelo papa, juiz commum e su
premo que todos os soberanos da Christandade então
reconherião como arbitro em todas as questões ; e el-
Rei D. João II declara-se senhor dc Guiné (14-85) (1),
e assim se mantém e conservão estas conquistas nas
mãos e poder dos Portuguezes até que a fatal batalha
A!Aleacer, e a perda da independencia do reino , que a
ella se seguio, no fim do seculo xvi°, fez cahir principal-

(1) Os geografos francezes mais instruidos reconhecem estes


factos apesar das pretenções d'alguns escriptores modernos desta
nação que se deixarão illudir pela relação de fillaut da qual logo
trataremos.
M. d'Avczac . um dos homens mais instruidos na geografia d'A-
frica , diz no seu ezcellente artigo Guinée , publicado na Encyelo-
pédie des gens du monde, o seguinte:
« Leroi Jean II de Portugal , peu de temps après, ajoute à ses
» titres olBciels celui de seigneur de Guinde ; toutes les côtes jus-
• qualors reconnues par ses sujets, ainsi que Ia mer sillonnée par
» leurs caravelles, semblèrent désormais former un seul domaine,
» dont une prise de possession solennelle élait constatée. »
Vide Walckenaer, — Recherches sur 1'intérieur de 1'Afrique , no
§° que começa : Les 1'ortugais qui ouvrirent aux mttions de 1'Europe
In carrière des découvertes , ele, p. 30.
— 26 —

mente nas mãos dos Hollaudezes uma parte daquelles


estabelecimentos. E comtudo um facto provado por nu
merosos documentos, que nenhum soberano de França
disputou a prioridade daquelles descobrimentos e da-
quellas conquistas aos reis de Portugal , que nenhum
protestou contra aquelles titulos, finalmente que nem
nos AA. contemporaneos , nem nos archivos das duas
nações, encontrámos vestigios de que os Francezes recla
massem ou pretendessem oppôr direitos aos que Por
tugal estabeleceo e sustentou.
Nenhum dos soberanos de França protestou , antes
pelo contrario reconhecérão , conforme o direito publico
daquella epoca , a bulla de 8 de janeiro de 1450 de Ni-
colao V que concedeo a elRei D. AfFonso V todas as
conquistas que o infante D. Henrique tinha desco
berto (1). Nenhum protestou, antes todos reconhecérão as
disposições da outra bulla do mesmo papa de 8 de janeiro
de 1454 , pela qual ratifica a elRei D. Alíonso V e ao in
fante D. Henrique, e a todos o<s reis de Portugal seus
successores , todas as conquistas d'Àfrica , com as ilhas
nos mares adjacentes desde o cabo de Não e Boja
dor té Ioda a Guinea com toda a sua costa meridio
nal, com todos os direitos, e regalias , prohibindo que
ninguem podesse navegar naquelles mares sem sua au
toridade (2). Nenhum dos soberanos de França pro
testou contra a outra bulla de 13 de março de 1455 do papa

(1) Archivo real da Torre do Tombo. Maç. 32 de Bullas, n° 10.


(2) lbul. Maç. 7 de Bullas, n°9, c Maç. 33, n» 14. Dumont,
C.orps diplom., t. Ill, part. 1, p. 200.
— 27 —

Calixto III, pela qual aquelle pontifice determmou, que


o descobrimento das terras d'Africa occidental, assim
adquirido por Portugal , como do que se adquirisse ,
,o não podessem fazer senão os reis de Portugal , e con
firmando igualmente as bullas «le Martinho V e de Ni-
colao V sobre o mesmo objecto (1). Não protestárão tam
pouco os Francezes contra a outra bulla de Xisto IV de
21 de junho de 1481 , chamada da adjudicação das con
quistas , e de confirmação da de Nicolao V (2).
Por muito estranho que possa parecer no estado
actual das ideas a citação destes documentos como
fundamentos de direito , observaremos que, quando se
discute e examina a legalidade dos titulos , é essencial
que não falte requisito algum que constitua essa lega
lidade na origem da acquisição. Os nossos titulos ao
descobrimento e posse da Africa occidental , desde o
cabo de Não até ao cabo da Boa Esperança , remonlão á
epoca na qual aquelle direito publico era admittido;
consequentemente, os documentos citados são ainda
muito importantes como fundamentos e requisito in
dispensavel da causa julgada em tempo competente.
Se destes fundamentos passámos a examinar os do
direito publico convencional, vemos que os Francezes
não protestárão tampouco contra o tratado de 1479
celebrado entre Portugal e Hespanha, no qual se esti
pulou que o commercio e navegação da Guiné e da

(1) Archivo real da Torre do Tombo. Gav. 7 , M. 13, n° 7, e Liv.


dos Mestrados . fol. 159 e 165.
(2) Ibid. Maç. 9 de Bullas, n° 1 ; M. 12, n° 23.
— 28 —

Mina do Oiro, ca conquista de Fez, Geassem pertencendo


exclusivamente a Portugal (1). Não protestárão tampouco
osFrancezes contra o outro tratadode 10 d'abril de 1488,
celebrado igualmente entre Portugal e Hespanha , sobre
as possessões portuguezas, e terras e ilhas situadas
desde o cabo de Não e Bojador até á Guiné (2), nem tam
pouco contra o famoso tratadode Tordesillas de 4 de
maio de 14.93 (3).
E pois constante que os soberanos de França não pro-
testárão, nem se opposérão a que os direitos de Portugal
ao descobrimento e posse daquelles territorios fossem
assim sanecionados pelo direito publico e pelo das gen
tes, antes consentirão na publicação de obras que se
imprimirão em Pariz com sua licença , nas quaes nos
principios do seculo xvi° se mostrava a prioridade dos
nossos descobrimentos na costa occidental d'Africa
além do cabo Bojador até á Guiné inclusive. Citaremos
entre outras a collecção de viagens, hoje rarissima,
publicada em Pariz por Philippe Le Noir, em 1513,
reinando Luis XII , com o titulo : Nouveau-Monde et
navigations faites dans les pays et iles auparavant in-
connues, etc. ; é uma traducção da collecção italiana de
Zorzi , publicada emVicenza em 1507, ema qual o 1o li
vro tem o titulo, — Libro de la prima navigatione per
l' Oceano a la terra di Negri de la Bassa Etiopia per

(1) Fid. Zurita , Annaes do Aragão, part. 11 , Iiv. XX, cap. 34.
(2) Archivo R. da Torre do Tomk Gav. 18, Mar. 6, n° 17.
(3) fid. Prov. da Hist. Geneal. de Souza, e Dumont, Corps
dipl. univers., etc.
— 29 —

commandamento del illuslro signor infante don Hen-


rich .Jratello de don Doa/th, re de Portogallo. Os mes
mos Franrezes concederão licença para a impressão de
uma segunda edição da de 1513; esta segunda edição foi
publicada em 1516, reinando Francisco Io.
O governo portuguez manteve os seus direitos , e a
posse daquellas conquistas, e o seu commercio exclu
sivo com eHas , não só durante o seculo xv°, mas tam
bem até aos fins do xvi°.
Para provarmos aqui esta asserção com alguns exem
plos, limitamo-nos a citar os seguintes factos :
No anno de 1492 , os Francezes capturarão contra
os tratados uma caravella da Mina. EIRei de Portugal
mandou fazer represalia em 10 navios grossos que se
achavão no Tejo, e depositar as mercadorias na Alfan
dega , e mandou fazer o mesmo aos navios daquella
nação que se achavão surtos em Setubal. EIRei de França
(Luis XII) mandou restituir a caravella, e elRei de Por
tugal fez o mesmo a respeito dos navios francezes (1).
No anno de 1495 os reis catholicos mandarão entregar a
elRei ile Portugal o piloto portuguez João Dias, o qual
tinha sido cumplice, em companhia de certos Francezes,
do roubo de uma caravella portugueza que vinha da
Mina, á qual roubarão 20,000 dobras (2). O governo
francez reconhecia tanto os nossos direitos, que em

(1) Resende, Chronic. d elRei D. João 11 , cap. 146.


(2) Archiv. R. de Simancas , documento apud Navarrete, t. Ill,
p. 515, ii° 32.
— 30 —
>
28 de junho de 1532, o grande almirante de França
deu ordem de prohibição de hirem navios francezes a
Guiné, conforme á reclamação feita pelo embaixador
portuguez (1).
Ora se os Francezes tivessem sido os primeiros desco
bridores da Guiné, e alli tivessem fundado estabeleci
mentos anteriormente aos Portuguezes, o grande almi
rante de França passaria uma ordem de prohibição tal?
Certamente não.
Este documento só basta para provar que os nossos
direitos ao commercio exclusivo, e á posse daquella
parte da Africa Occidental , erão plena e publica
mente reconhecidos pelo governo francez. Mas o que é
mais positivo ainda , é que Francisco Io, por cartas
patentes de 27 d'agosto de 1536, mandou restituir
as tomadias que os piratas francezes havião feito em
alguns navios portuguezes vindos das conquistas, e
castigar os culpados como quebrantadores da paz (2).
A' vista pois destes documentos authenticos, e das
razões que deixámos substanciadas nos precedentes $§,
fica evidente não só a prioridade dos nossos descobri
mentos, e igualmente a da posse, da colonisação , e
estabelecimentos na Africa Occidental além do cabo Boja
dor, mas tambem que a França reconhecera esta posse,
e estes direitos por mais de dois seculos; direitos que

(1) Archiv. R. da Turr. do Tombo. Corp. chronolog., part. !,


M. 49, doe. 32.
(2) Archiv. real da Torr. do Tomb. Corpo ehronolog., part. I,
Maç. 37, doe um 94.
— 31 —
alias indubitavelmente contestaria se os Normandos, ou
outros seus subditos, se tivessem primeiramente esta
belecido naquellas paragens.

S v.

Mostra-se que só alguns modernos escriptores francezes pretenderão


sustentar aquella suppostn prioridade do descobrimento da Guine,
e que estes se fundão principalmente nas asserções de nm via
jante que visitou aquellas paragens 210 annos depois dos desco
brimentos portuguezes.

Nenhum escriptor estrangeiro do seculo xv°, e ainda


de quasi todo o xvi°, disputou aos Portuguezes a priori
dade dos seus descobrimentos além do cabo Bojador, e
da fundação de estabelecimentos na costa d'Africa occi
dental. Uma deducção extrahida das obras de todos os
historiadores e geografos das diversas nações , prova sem
replica esta nossa asserção.
Esta deducção fará parte das peças justificativas que
juntaremos á presente memoria.
Só depois do meado «lo seculo xvn°, um certo
VillaM de Bellefond , que fez uma viagem á costa
de Guiné em 1666 e 1667 (1), cuja relação dedicou a

(O Villaut. Relations des côtes d'Afrique appelées Guince , avec


la description du pays, mceurs et façon de vivre des habitante , des
productions de la terre et des marchaudises qu'on en apporte,
avec les remarques historiques snr ces eôtes. 1'aris, 1669, 1 vol.
in-11
Colbert , julgou a proposito , sem citar documento nem
prova alguma das que exige a verdade historia, indicar
que os maritimos de Dieppe tinhão sido os primeiros
descobridores da Guiné, onde havião fundado estabeleci
mentos em 1365.
Antes de mostrarmos da maneira mais palpavel que
as asserções deste viajante , quauto aos primeiros desco
brimentos dos Europeos naquella parte d'Africa, não
podem ser admittidas, e que se reduzem a poeira diante
dos factos notoriamente recebidos e consagrados pelos
tempos anteriores e pelo unanime testemunho dos es-
criptores dos seculos precedentes, bem como pelos do
cumentos {vid. § precedente) ; antes pois de provarmos o
que acabámos de dizer, pela analyseda obra do mesmo
viajante , indicaremos aqui a seguinte particulari
dade inleressante , a qual exclue toda a aceusação de
parcialidade nacional de que poderiamos ser aceu-
sados.
Em 1799 se publicou em Edimburgo a seguinte obra:
A historical and philosophical Sketch ofthe discoveries
ofthe Europeans in the northern and western Africa.
Nesta producção os AA. inglezes necusárão o viajante
Villaut de falsario.
Os ditos AA. inglezes acerescentão com razão « que os
» escriptores francezes e portuguezes tendo passado em
» silencio um acontecimento tão notavel , as viajens dos
» marchantes de Dieppe a Africa devem ser condem-
» nadas ao esquecimento do mesmo modo que o sup-
» posto descobrimento d'America pelos Venezianos. »
Transcreveremos textualmente uma parte daquella
— 33 —

obra na qual se traia a questão de prioridade que o


viajante francez pretendeo estabelecer.
Dizem pois os A A. inglezes : « Gil Nunes , in 1415 ,
» was the first who parsed cape Boiador , and it was
» 1497 before Vasco de Gama doubled the cape of Good
» Hope. The priority of discovery is, however, disputed
» by the French, who pretend that the merchants of
» Dieppe visited these coasts so early as 1346. Two
» of their authors, Villaut and Robbé (geographers), de-
» tail at some length the origin and progress of the
» French seitlements at El-Mina , Sestro Paris , Cabo
» Monte , and Sierra Leone ; and like other historians of
» unknown orfabulous periods, endeavour to supply the
» deficiency ofhistorical evidence by circumstantial mi-,
» nuleness of narration. The authorities by whichthese
o claims havebeen supported are so nugatory as tobeal-
» most unworthy of attention. During the civil wars,
» say these authors, which occurred in the reign of
» Charles VI., it is true that these African settlements
» were entirely abandoned (1) , but then there are various
» bays and towns on the Gold Coast which still retain
» their original French appellations , as Rio Fresco
» (esta denominação é inteiramente portugueza) or the
» Bay of France , Petit Dieppe , or Rio Corso , and Ses-
» tro Paris, orGran-Sestro, on the Grain Coast. Besides,
» a certain bastion at fort El-mina , after various revo
lutions , was denominated the French bastion, and

(t) Esta mesma allegação , copiada de Villaut , apparece em outras


obras posteriores.
3
— 34 —

» wilh good. reason, since it plainly had a mutilated


» inscription in which the cyphers 13 were very legible
» which must have signified 1383. But this ingenious
» process of antiquarian reasoning is entirely con-
» futed by the obstinate silence ofboth the French and
» Portuguese historians , -who would not have omitted
» so remarkable an evenl .
» The voyages of the merchants of Dieppe to Africa
» must therefore be co/isigned to oblivion , with the
» voyages of the Venetian discoverers of America. »
Por esta longa passagem e por outra de Macpherson
na sua excellente obra . Atinals of Commerce, publi
cada em Londres em 1805 ( t. I, 573), vemos que a
pretenção de Villaut e as suas asserções forão com razão
tratadas como fallazes. E acrescentaremos que apesar
deste rscripto a maior parte dos historiadores e geogra
fos desde os ultimos annos do seculo xvii° até ao anno
de 1832 , continuarão a admitlir em suas obras a ver
dade historica, indicando sempre a prioridade das nave
gações e descobrimentos dos Portuguezes na costa occi
dental d' Africa.
Sem embargo disto alguns escriptores francezes, dos
quaes trataremos em outro logar, adoptárão sem cri
tica nem exame algum as asserções de Villaut. Todavia
em quanto estes escriptores menos reflectidos se limi
tarão a copiar as asserções daquelle viajante , a propa
gação de taes erros não tinha consequencias graves.
Desgraçadamente porém depois do anno de 1832 as mal-
fundadas pretenções do viajante do fim do seculo xvii°
forão de novo reproduzidas por outros de reconhecido
— 35 —

merito, e,o que é mais, reforçadas com argumentos


todos fundados em conjecturas.
Sendo pois as ditas pretenções da supposta prioridade
do descobrimento da costa d'Africa pelos maritimos
de Dieppe fundadas principalmente nas asserções de
Villaut, julgámos a proposito mostrar rapidamente que
as ditas asserções são contrarias não só aos factos e
testemunhos historicos, mas até ao bom senso, reser-
vando-nos para tempo opportuno a publicação de uma
refutação completa.
A parte principal em que Villaut trata da supposta
prioridade dos descobrimentos dos maritimos de Dieppe
acha-se no fim da descripção da sua viagem, a pag. 409,
com o titulo :
« Remarques sur les cotes d'Afrique, et notamment
» sur la cote d'Or, pour justifier que les Français y
» ont êté longtemps auparavant les autres nations. »
Este viajante começa dizendo que a opinião geral
julgara té então « que os Portuguezes forão os primeiros
» que descobrirão e habitarão estas costas, mas isto,
» segundo Villaut , procede de um antigo erro nascido
» da longa posse que elles ti verão daquellas terras , e do
» grande poder que ostentárão entre aquelles povos.
» Esta gloria é devida aos Francezes, e sobre todos aos
» de Dieppe que alli navegarão 60 annos antes que os
■> Portuguezes tivessem conhecimento daquellas terras.»
Villaut fixa pois uma expedição dos maritimos de
Dieppe no mez de novembro de 1364 (1).
(1) E de advertir que Villaut não cita mesmo A. algum prece
denle o qual tivesse fallado nesta expedição !
— 36 —

Antes de mostrarmos o erro evidente desta data,


diremos que este viajante sem tritica alguma prova o
contrario das suas mesmas asserções relativas áquella
sup posta prioridade da expedição de Dieppe, mostrando
em as seguintes passagens que entre aquelles povos
africanos não só existião vestigios do antigo domi
nio portuguez, mas, o que mais é, que estas provas in-
dicão a indubitavel prioridade dos nossos descobri
mentos e nossa longa posse.
A pag. 53. — « // est surprenant , diz elle , que ces
» peuples qui ne savent ni lire ni ècrire , et qui parlent
» tous portugais ...»
A pag. 55. — « Rio Fresco , a 14 gr. N.
» II s'y trouve des catboliques , outre les Portugais
» qui y demeurent en grand nombre. »
A pag. 59. — «Tous. tant hommes que femmes ,
» parlent un portugais corromptt. »
A pag. 69 , Villaut nos diz que o boniem encarregado
dos negocios do rei de Bouré ( Serra Leoa ) era um Por-
tuguez.
A pag. 71 , falla de la grande fréquenlation qu'ils
(os naturaes) ont eue avec les Portugais .
A pag. 73, fallando da Serra Leoa : « Pendant ces
» trois jours , plusieurs Portugais vinrent à bord avec
i des marchandises .
» Serra Leoa , appelée Boulombel des Maures, fut
» ainsi nommée par les Portugais. »
A pag. 87, diz que no rio da Serra Leoa os Portu-
guezes ganhavão mais do que os outros no commercio do
marfim, visto que o trazem do interior {trafiquant le
— 37 —

morphi datis les terres reculées) para o vender aos es


trangeiros , isto é aos Francezes e Inglezes.
A pag. 105. No Cabo do Monle , o rei fallou a Villaut
emportuguez. « Tous les habitants parlent le portugais
» corrompu. »
A pag. 116. Cabo Mesurado (diz elle) , assim cha
mado pelos Portuguezes. Apesar disto passa a fazer
differentes hypothèses absurdas sobre a etymologia
deste nome, e conclue será talvez « parce que les
» Français qui y furent autrefois massacrés crièrent :
» Miséricorde ! ! »
« Les habitants parlent tous portugais. » (p. 120.)
Diz que o rio dos Cestos fôra assim chamado pelos
Portuguezes , à cause d'une espòce de poivre qui y
croît qu'ils appellent sextos ! !
A pag. 14-0, remarques sur la côte de Guinée,
Villaut diz : « Les Portugais qui y vinrent après les
» Français, se voyant chasses par les Hollandais et An-
» glais du bord de la mer, environ l'an 160i, se reti-
» rèrent dans les terres plus avancées , et s'allièrent avec
» les naturels du pays, d'où sont nés les Molattes ou
» olivátres que l'on y voit, s'étant par ce moyen telle-
» ment acquis l'amitié de ces peuples, qu'ils sont la
>. cause que , jusqu'à présent , nous n'avons pu découvrir
» le dedans de ces terres dont seuls ils font le commerce ;
» et qui voudrait l'entreprendre s'y perdrait, puisque ,
» par présents ou menaces, ils feraient tout massacrer
» par les Mores. Cependant ils vont partout et remoit-
» tent le Niger sans péril jusqu'au Benin , qui sont plus
» de 800 lieues.
— 38 —

» lls ont rausé aux Danois la perte de Cantozi , que


» c'est une ile qu'ils possédaient dans le fleuve Niger,
» à 200 lieues au-dessus de la rivière de Gambie. »
A pag. 14-2, o mesmo viajante, tratandodaautoridade
que os Portuguezes tinhão sobre estes povos , diz : « Leur
» autorité sur les habitants de ces cotes est si grande
» qu'ils les tournent comine ils veulent, et nous ne
» lisons point que jamais ils aient été massacrés, ce qui
» est assez ordinaire aux autres Européens (1). Ils ont
» lel empire sur eux qu'ils se font servir à table par des
» flls de rois...
» Un de ceux qui vint à bord trafiquer à Sierra
» Leone me dit que tons les ans ils allaient au Sénégal ,
» éloigné de 200 lieues de Sierra Leone , et que les
» Mores le portaient dans les terres et ses marchandises
» quand il n'y avait point de rivière. »
Esta serie de passagens, que mui de propo*ito ex-
trahimos da relação daquelle viajante, prova em nosso
entender que o dominio portuguez na Africa occidental
remontava a seculos antes da chegada de Villaut áquellas
paragens.
Com efleito, elle encontrou na cosia e em Ioda a parte
nomes portuguezes , e os naturaes não só fatlando portu-
guez, mas o que é mais, é que em algumas partes
aquelles povos fallavão a lingoa portugut za corrompida ,

(1) Villaut prova nesta passagem a sua completa ignorancia da


historia dos descobrimentos Se tivesse lido as Decadas de Barros,
teria visto quantos Portuguezes forao massacrados pelos Africanos
na primeira epoca do descobrimento.
— 39 —

prova de relações conservadas por longos tempos , e que


os mesmos habitantes conduzião os Portuguezes pelo
interior e os transportavão a logares mui remotos uns
dos outros em plena segurança , o que não acontecia aos
outros Europeos.
Ora vejamos agora o que o mesmo Villaut diz para
sustentar a supposta prioridade do commercio dos Diep-
pezes naquellas paragens.
Apag. 159, — Remarques sur cette côte — da Mala-
guetta — Villaut diz que esta palavra é franceza.
Para refutar esla etymologia (1) , basta-nos transcrever
a seguinte passagem de Barros (Decad. I, fol. 33, col. 4) :
* Assim como da costa donde veio a primeira malaguela,
» que se fez para o Infante D. Henrique, da qual alguma
» que em Italia se havia antes deste descobrimenlo era
» por mãos dos Mouros destas partes da Guiné, que
» allravessavão a grande região da Mandinga e os de-
» sertos da Libya até aportarem no mar Mediterraneo
» em hum porto por elles chamado Afundi Barca, e
» corruptamente Monte da Barca, e de lhos Italianos não
» saberem o logar de seu nascimento por especiaria tão
» preciosa lhe chamarão Grana Paradisii. «
A' etymologia franceza que Villaut dá ao nome de
malagueta que alias se encontra já em Barros , aquelle
viajante acrescenta :
« Les Dieppois ont trafique loi gtemps sur cette côte ,

(1) Corneille, no seu Dictionnairc geogrnphique , impresso cm


1708, artigo Malaguclte , copia fillnut , e sem mais exame ndmiltio
a etymologia dada por este viajante.
— 40 —

» et mélaient ce poivre avec celui des Indes. A vant qu'il


» fut si commun , auparavant même que les Portugais
» eussent découvert 1'lle de Saint-Thomé, d'oíi par
» aprés ils se sont répandus par toute la Guinée, nous y
» trafiquions . »
Este erro chronoloj;ico e historico é tão palpavel , que
apenas a citação de uma data bastará para o refutar.
Quando a ilha de S. Thomé foi descoberta em 1471,
já os Portuguezes frequentavão o Senegal, e o Gambia ,
a Casamansa , cabo Verde, o rio Barbacim , 60 milhas
além de c;ibo Verde , o rio do Oiro , as quatro ilhas de
Bissangos , a Serra Leoa, e finalmente a costa da Mina
descoberta em 1469. Não foi portanto depois que des
cobrlrão a ilha de S. Thomé, que se espalharão por
toda a Guiné, como erradamente diz este viajante.
Vejamos agora como Villaut pretende provar a prio
ridade do descobrimento destas terras pelos Dieppezes.
« Tout conlribue (diz elle) à nous le persuader ; car,
» outre même que le Grand Sestre conserve le nom de
» Paris (1) , c'est que le peu de langage qu on peut en-
» tendre est français. lls n'appellent pasce poivre sextos
» à la portuyaise, ni grain à la hollandaise, mais mala-
» guette ; et lorsqu'un vaisseau aborde, s'ils en ont,
» après le salut ils crient : Malaguctte tout plein ! qui
» est le peu de langage qu'ils ont retenu de nous. »

(1) Nesta asserção mostrou o A. a maior ignorancia da carto


grafia da Africa. Este nome não se encontra em nenhuma carta
anterior ao meado do scculo xvn°, como o leitor verá no S IX desta
Memoria.
— u —

Se o dominio francez naquellas paragens tivesse ces


sado desde o seculo xv°, como diz Villaut e os outros que
o copiarão , a lingoa franceza poileria ter sido conser
vada entre aquelles selvagens pelo espaço de dois secu
los ? Não o julgámos presumivel, antes temos a exis
tencia d' um tal fenomeno por impossivel. Além de que ,
se alguns dos habitantes daquella cosia proferião aquel-
las palavras, uma das quaes é franceza, proferião tambem
outras em hollandez , etc. Circumstancia que nos indica
unicamente a certeza de communicações recentes com
as ditas nações , em quanto por toda a parte tanto nas
costas, como no interior da Guiné, os povos fallavão
portuguez , como o mesmo Villaut confessa , circum
stancia que attesta o anligo dominio portuguez.
Villaut, que alias não entendia a lingoa portugueza ,
acrescenta, sem saber o que diz : « S il arrive à bord
» deux amis dediflérents lieux , ils se prennent par le
» bautdes bras, les étendant l un contrel'autre,etdisent :
» Toma , » palavra alias portugueza, e da qual se podem,
com melhor critica, fundando-nos sobre os factos histo
ricos , e até nas passagens da relação do mesmo via
jante que acima transcrevémos , tirar inducções intei
ramente contrarias ás que Villaut tirou a favor da
supposta prioridade dos estabelecimentos dos maritimos
de Dieppe naquella costa.
Com elleito a lingoa portugueza estava Ião generali
zada naquelles paizes em razão dos antigos estabeleci
mentos portuguezes , e das intimas relações que tinha
mos com os povos do interior da Africa .que o mesmo
Villaut confessa (p. 210), quando falla da costa do
— V2 —

Oiro e da feitoria dinamarqueza de Frederickbourg ,


que tanto o general como os Mores (os negros) todos
fallavão portuguez.
Taes forão as provas do longo dominio dos Portugue-
zes na Africa occidental que Villaut encontrou naquella
epoca , que até as autoridades dinamarquezas erâo
obrigadas a fallar portuguez afim de se entenderem
com os habitantes do paiz para as suas communicações
com elles.
Mas o viajante francez , sem fazer attenção a estes
factos alias tão interessantes, sem mesmo dar peso al
gum ao que precedentemente referlra, antes preoccu-
pado pela idea de que os Dieppezes tmhão sido os
primeiros descobridores da Guiné, diz (pag. 4-15) que
em setembro de 1364 os mercadores de Roão se juntá
rão aos de Dieppe, e que em logar de dois navios , ex
pedirão quatro para a Guiné. « Ces vaisseaux (acres-
» centa elle ) retoumèrent au bout de sept mois riche-
» ment chargés de cuir, ítivoire et de peivre , quils
» portèrent ensuite chez les autres nations ! »
Ora isto acontecia em 1364 e 1365, como diz Villaut,
isto é, segundo este viajante, os Dieppezes fazião viagens
regulares e expedições annuaes á costa de Guiné , e dos
objectos que della importavão os vendião depois na Eu
ropa ás outras nações. Como é possivel pois que um
facto tal, se fosse real e verdadeiro, podesse ser ignorado
de todos os historiadores e geografos de todas as na
ções da Europa no seculo xiv°, e no seguinte? Como é
possivel que um tal facto deixasse de excitar a am
bição dos commerciantes das outras nações , como
— 4.3 —

aconteceo depois dos nossos descobrimentos? Acaso não


se manifesta nestas passagens de Villaut, que este acon
tecimento , alias de tempos modernos , fora de proposito
transportado a mais de um seculo antes de realmente
ter existido ? !
Na verdade , como podião as nações da Europa
ignorar um facto tão importante como o referido por
Villaut, a saber que os mercadores de Roão e de
Dieppe não só continuarão a enviar annualmente expe
dições á Guiné, mas até alli mandarão uma colonia?
Acaso poderião ellas ignorar tal facto á vista das cir-
cumstancias que o mesmo Villaut acrescenta dizendo :
« Le gr and pro/it qui se trouva dans le débitde cepoi-
» vre , donna envie aux étrangers defaire ces voyages ,
» et d'aller eux-mémes choisir ce quils achetaient des
» Dieppois ; cest pourquoi Van 1375, di.r aris après que
» nous y étions , ih commencèrent d'y traiter. »
Mas quaes forão estes estrangeiros que nos fins do
seculo xiv°, isto é 58annos antes da famosa passagem do
cabo Bojador por Gil Eannes , forão á Guiné , e dos
quaes ninguem soube cousa alguma / Não é pois obvio
que Villaut errou, e alterou manifestamente esta data
como alterara a do descobrimento da ilha de S. Thomé?
Não é pois evidente que em um seculo já tão exclares-
cido como era o xiv°, aquella parte da costa dJAfrica
occidental devia achar-se já marcada nas cartas pisanas,
e por outra parte os geografos venezianos devião igual
mente ter marcado aquellas costas nas suas cartas e
aquelles pontos como conhecidos dos maritimos de di
versos paizes, visto que tinha existido, segundo diz Vil
— u —

laul , um commercio seguido sem iuterrupção por es


paço de onze annos , e que depois deste tempo no
anno de 1375, os estrangeiros imitando os Dieppezes
forão áquellas paragens para commerciar com os na-
turaes ?
Villaut alterou pois a verdade dos factos, e baralhou
a chronologia a ponto tal que os nossos descobri mentos ,
que alias começarão nos tempos modernos em 1433 , elle
os transporla a uma epoca muito mais remota comellendo
o espantoso erro historico chronologico seguinte. Trans
creveremos as suas proprias palavras. Fallando das ilhas
do Cabo Verde, as quaes forão descobertas só em 1446 ,
Villaut diz : a Cependant les Portugais commencerent
» de vouloir aller plus loin que les ílesdu Cap Vert quils
» tenaient , et de tâcher à sètablir aussi bien que les
» Français a la cóte d'Or. Pour cet elíet, du règne de
>. Jean I8' , roi de Portugal, ils équipèrent un grand vais-
» seau à Lisbonne, pour courir les côtes d'Afrique, oú ils
» se trouvèrent au (emps des pluies , ce qui leur donua
■ tantde maladies qu ils furent conlraints de lesaban-
» donner, et voulant regagner le vent pour retourneren
» Portugal , furent portes le 23 décembre 1405, iète do
» saint Thomas, dans une lle sous la ligne, qu'ilsnom-
» mèrent íle de S. Thomé ou Thomas. »
Desta sorte uni escriptor do seculo xvii" veio sem
prova nem documento algum alterar os acontecimentos
e os factos sucedidos dois seculos antes, factos referi
dos pelos historiadores e «hronistas contemporaneos ;
veio finalmente baralhar a chronologia , e transtor
nar a verdade, anticipar o descobrimento da ilha de
— 45 —

S. Thomé de 66 annos á epoca do seu verdadeiro des


cobrimento !
Por outra parte Villaut parece ter copiado Cadamosto
sem o citar, e applicou o que elle ref ere do que lhe acon-
tecêra com os uaturaes d'Africa, á primeira supposta ex
pedição dos maritimos de Dieppe em 1364; e onde o
celebre viajante veneziano diz Portuguezes , Villaut
parece ter subslituido Dieppois
Os limites desta memoria não nos permittem provar
largamente esta nossa asserção, todavia indicaremos ape
nas os exemplos seguintes.

C\DAMOS ro. VILLAUT.

• Estes negros , tanto homens • Les noirs de ces côtes , aux-


• como mulheres, vinhãover-me « quelsjusque-lúlesblanesavaient
» por maravilha ; parecia lhes > élé inconnus, accouraient de
» cousa extraordinaria ver chris- • toutes parts pour les voir (aos
> tãos nunca até então vistos, e - Dieppezes)! »
» não menos se admirarão do
• meu traje que da minha brun-
• cara. »
Wocap.2, IIa viagem.
• Admiravão-se de ver homens
>> brancos. •
Nome dado a caho Perde
pelos Portuguezes.
• Este cabo Verde chamava-se « Le cap Vert a été ainsi nom-
• assim por que os primeiros que » mé de la verdure perpétuelle
» odescobrirãoyòrõoPor/u^u<fiís » dont il est ombragé. »
» um anno antes que eu Tosse
— 46 —
> a estas paragens (1), o acharão O A. segue a descripção física
• todo verde pelas grandes arro- inteiramente conforme com a do
» res que alli se conservão vi- viajante do xv° seculo, e a pag.
» çosas , etc. » 413, diz:
CanamostO, cap. 34. n Au sortir du cap qu'ils(os
» de Dieppe ) nommèrent ainsi,
» corome j'ai dit, pour la verdure
• éternelle qui 1'ombrage , ils
• coururent le sud-est, et arri-
» vèrent à Boulombel ou Sierra
• Leone , ainsi que depuis l'ont
• nommé les Portugais !! •

Esta simples confrontação , ainda quando não fossem


as ponderações acima feitas, bastava para mostrar qual
deve ser o credito que devem merecer as asserções de Vil-
laut. A decisão da critica não pôde ser difficil neste caso.
Por uma parte está Cadamosto autor contemporaneo , e
testemunha ocular dos descobrimentos , e todos os histo
riadores e geografos dos seculos xv°e xvi°; epela outra um
indeviduo, preoccupado de prejuizos de nacionalidade ,
que, sem documento nem prova alguma, vem dois secu
los depois attribuir aos maritimos de Dieppe o que os
documentos e os fac os dos seculos anteriores provão
pertencer aos Portuguezes ! !
Consequentemente a obra deste viajante , e todas as
outras que nesta se tem fundado, não podem destruir,
nem mesmo tornai* incertos os legitimos direitos dos

(1) Azurara diz no cap. 28 da Chronica da Conquista de Guiné,


que Deniz Diaz descobrira aquelle rabo, e lhe pozéra o nome de
rente.
— 47 —

Portuguezes á prioridade do descobrimento daquella


parte da Africa occidental.

S VI.

Prova-se que todas as outras obras nas qnaes se pretende estabelecer


a prioridade dos descobrimentos dos Normandos e Dieppezes,
forão escriptas e compostas mais de dois seculos depois dos des
cobrimentos dos Portuguezes. Prova-se igualmente que as ditas
obras repellrão apenas as asserções de Villaut, e não merecem
nesta parte credito algum.

Ainda que os tres modernissimos escriptores france-


zes, de que fizemos menção no § precedente, se fundarão
principalmente na relação de Villaut, todavia citarão
como autoridades outros autores que a critica historica
e os factos não podem admiltir em razão de suas obras
serem nesta parte destituidas de provas, fundando-se
em conjecturas e em subterfugios ; finalmente por se
rem posteriores de dois seculos e mais aos descobri
mentos dos Portuguezes.

Estas obras são as seguintes :

1. — DELBEE. — Journal du vqyage du sieur dELBÉE, commissaire


general de la marine, aux Het de la côte de Guinée, en 1669
et 1670. Paris, 1671.

Este escriptor, como se vé pelas datas, é posterior a


Villaut, e adoptou as mesmas pretenções da supposla
prioridade do descobrimento da Guiné pelos Diep
pezes.
— 48 —

II. — Histotre sommaire de Normandie , par U sieur De Masseville ,


publicada em Roão no anno de 1693.

Esta historia , além da data da sua publicação ser pos


terior de mais de dois seculos aos historindores e docu
mentos que legalizão econfirmão a prioridade dos nossos
descobrimentos na costa d'Africa occidental , é ao
mesmo tempo contraria ás pretenções que pretende sus
tentar , dizendo o seguinte :
« Ceux qui ont écrit les anciennes chroniques de
» notre province, y ont mis si peu de chose du xme et
« du xive siècle , que l'on ne doit point être surpris de
>. n'y pas trouver les belles navigations des habitants
» de Dieppe. »
A isto se pôde dizer que se não encontrão alli men
cionadas por que são fabulosas ; se alias não fossem
suppostas, as chronicas e historias daquelles seculos não
deixarião de as referir, e particularmente as daquella
provincia. Como quer que seja , esta particularidade
tonfessada por um hisloriador daquella provincia, é
um argumento mais em nosso favor, ainda quando os
precedentes não bastassem. Este escriptor, desprovido
das mais ligeiras e superficiaes noções da critica, passa
a transcrever o que precedentemente tinha dito Ma-
nesson - Mallet na sua obra, Description de l'Uni-
vers , sobre os suppostos descobrimentos dos maritimos
de Dieppe na Africa occidental ; mas disgraçadamente
para este historiador da Normandia, Mallet é do mesmo
modo um escriptor moderno, e posterior de mais de
— 49 —

tres seculos aos taes suppostos descobrimentos nor


mandos.
Mallet escreveo nos fins do seculo xvxi0, e a sua
obra foi publicada em 1683, 1685. E portanto con-
• temporaneo do moderno autor da Histoire de Nor-
mandie ! Mallet era tão ignorante na chronologia dos
descobrimentos que diz que nós descobrimos a Guiné
em 1417! !...

III. — Relation univcrselle de VAfrique ancienne et moderne,


par le sieur de Lá Croix.

Esta obra foi publicada em Lyão em 1688, e nella


transcreveo seu autor a passagem da precedente de
Manesson-Mallet.

IV. — Nouvelle relation de fAfrique occidentale , pelo Pe Larrat,


publicada em Paris em 1728.

Este escriptor, ainda mais moderno do que os prece


dentes , sustenta as mesmas pretenções ácerca da sup-
posta prioridade do descobrimento da Guiné pelos
maritimos de Dieppe e de Roão, começando pela se
guinte curiosa declaração :
« 11 y a des appareuccs très-bien fondées que lesNor-
» mands , et particulièrement les Dieppois , avaient
» reconnu , fréquenté et visite les côtes d'Afrique dès
» le commencement du xive siècle. »
A' vista desta declaração de um escriptor que , 356
annos distante da epoca de um acontecimento duvi
doso, pretende provál-o por que ácerca dell e existem
— 50 —

apparencias ; á vista de tal declaração diremos que o


simples senso commum basta para conhecer o gráo de
credito que merece a asserção deste escriptor. Todavia
Labbat escrevia já em uma epoca na qual a critica his
torica tinha feito notaveis progressos; julgou pois a pro
posito corroborar as suas asserções dizendo que ellas
erão fundadas sobre um documento que se queimara no
incendio de Dieppe em 1 694 ! !
u L'incendie de Dieppe , en 1694 , est cause que je ne
» rapporte pas ici 1'acte tout entier ; mais la date, et
» d'autres circonstances qui vont étre rapportées , sont
» tirées des Annales manuscrites de Dieppe. »
Mas o que refere o dito escriptor é evidentemente
tirado de Villaut , cuja relação foi mui provavelmente
transcripta nos taes annaes manuscritos. Além de que ,
Labbat , e os outros escriptores modernos , nos occultá-
rão a epoca da composição dos mencionados annaes afim
He escaparem ao exame critico do seu valor como mo
numentos historicos.
Ora o incendio de Dieppe tendo occorrido no anno
de 1694 , como é que taes annaes escapárão ás investi
gações de Masseville , autor da Historia de Normandia
em 6 volumes, e tão zeloso como se mostrou pelos sup-
postos descobrimentos dos maritimos de Dieppe, tendo
escripto antes do dito incendio?
Labbat faz desapparecer no incendio o documento que,
segundo elle , provava os suppostos descobrimentos dos
Dieppezes em 1364, e não contente com isto, diz que
os taes annaes manuscritos se podem ver em casa de
um F. cujo nome deixou em branco!!!
— 51 —
Taes documentos não poderão ser descobertos por
M. Estancelin , nem por M. Feret, apesar do vivo in
teresse que elles tinhão em os encontrar (1).
Custa na verdade a acredilar que escriptores serios
e eruditos se deixem surprehender por um zelo patrio
tico, alias louvavel, ao ponto de deduzirem fundamentos
historicos de suppostos documentos que não tendo po
dido ser publicados pelo Pe Labbat, este os faz des-
apparecer em um incendio, que pretende suppril-os por
uns annaes ineditos da composição dos quaes não fixa
data alguma , e finalmente que deixa em branco o nome
do possuidor desses mesmos annaes '. !
Não é por certo desta sorte que se destroem os factos
verdadeiros authenticados por historiadores contempo
raneos ; não é por apparencias que se lanção por terra ,
ou sepultão no esquecimento documentos dos archivos
de indubitavel fé que são conhecidos de todo o mundo,
e citados pelos escriptores de toda a Europa ha tres
seculos, e que provão a incontestavel prioridade dos
descobrimentos dos Portuguezes na costa occidental
d'Africa.
A um documento authentico só se lhe pôde oppôr
um outro igualmente authentico , revestido de todos
os requisitos que a paleografia exige para ser acre
ditado como verdadeiro, e não as asserções de escrip
tores que, 300 e mais annos depois dos acontecimentos,
referem outros que se não encontrão mencionados nem

(1) Kid. Rechercbes sur les navigateurs normands, p. 137.


— 52 —

nos AA. contemporaneos , nem em documento algum


da epoca a que se referem.
Acrescentaremos ainda duas palavras sobre a supposta
perda dos taes documentos no incendio de Dieppe. O
incendio dos archivos daquella cidade aconteceo em
1694. Ora se aquelle supposto documento, do qual o
PeLabbatdiz ter visto uma copia nos taes annaes manu
scritos, tivesse existido, edelle houvessem copias , devião
estas existir tambem nos archivos de Roão que alias se
não incendiarão. Mas até hoje ainda ninguem poude des
cobrir nesta ultima cidade documento algum que pro
vasse a existencia da sociedade dos mercadores della
com os de Dieppe.
Esta particularidade é tanto mais importante, quanto
é extraordinaria a circumstancia que Villaut refere, a
saber que o commercio e relações da dita sociedade com
aquella parte d'Africa durára desde 1364 até 1410 !
Como é pois que desapparecérão todos os documentos
que devião provar este supposto facto? Gomo pois nem
um só escriptor contemporaneo nacional ou estrangeiro
disse cousa alguma sobre um tal facto?
Mas não são só os historiadores do xiv° e xv° seculos
guardarão silencio sobre taes factos , mas ainda os do
XYi°, dos quaes não encontrámos até hoje um só que
indicasse a existencia daquelles suppostos estabelecimen
tos normandos no seculo xiv° (1).

(1) O que diz La Popelinière, escriptor dos fias do xvi» seculo , é


concebido em termos taes que se deve attribuir antes á expedição
de Betancourt , do que aos suppostos descobrimentos dos Dieppezes
na Guiné.
— 53 —
A' vista destas ponderações todo o leitor imparcial
reconhecerá que as asserções do Padre Labbat não tem
maior valor do que as de Villaut,^ mostrão inteiramente
o contrario do que este autor se propunha provar.

V. — Outra obra em que um (1) dos escriptores francezes se funda


para reelamar a gloria daquella prioridade em favor dos
Normandos.

E a dc Dapper, medico hollandez, nascido no se


culo xvn°, e que escreveo uma descripção das costas
de Guiné , que se publicou em Amsterdam em 1686.
Posto que seja inutil repetir que este escriptor está no
mesmo caso dos precedentemente citados, isto é que
a sua autoridade é nenhuma ácerca do facto disputado ,
em razão de escrever mais de 300 annos depois, e não
produzir documento algum contemporaneo, nem pas
sagem de A. ou AA. do seculo xiv°, como todavia em
uma passagem da sua obra se pretende achar uma prova
daquelle facto , e da supposta prioridade dos estabeleci
mentos dos Normandos na Mina , assentámos em a tran
screver, afim de que o leitor se convença da fraqueza e
insulliciencia delia , tanto mais que Dapper mostra
ter uma ignorancia completa dos chronistas e histo
riadores portuguezes dos seculos xv*exvi°, que alias não
consultou sobre este ponto.
« II y a quelques années (diz elle) que les Hollandais,
» relevant une batterie qu'on appelle la batterie des

(t) Histoire des anciennes villes de France, t. 11 , p. 26 e seg.


Paris, 1833. Obra alias mui curiosa e erudita.
— 5* —
» Français (1) , parce que, selon 1'opinion des originaires
» du pays , les Français en ont été les maitres avant les
» Portugais, on trouva graves sur une pierre les deux
» premiers chiflres du nombre treize cents ; mais il fut
» impossible de distinguer les deux autres... »
Ora sendo indubitavel que os Francezes frequentarão
a costa da Mina desde os fins do seculo xvi° ( como
mostraremos nas addições), e que para o commercio
daquella costa se formara uma companhia dos nego
ciantes de Dieppe e de Roão no seculo xvu° seguinte , é
pois nestas epocas que o nome de bateria de França
devia ter sido posto pelos Francezes a um posto fortifi
cado onde fazião o resgate, e não dois seculos antes, o
que é contrario aos factos e aos documentos.
O mesmo Villaut confessa que os Francezes não vol-
tárão (2) acosta da Malagueta e do Oiro senão no reinado
de Henrique III , isto é em 1576 , e acrescenta que os
Portuguezes , para impedirem que elles frequentassem
aquellas paragens, fizerão vir de Lisboa em 158G dois
navios de * guerra , e mettêrão a pique em Akara o
» navio francez de Dieppe chamado Esperança (3), e que
» em 1591 os Portuguezes fizerão o mesmo a outro na-
» vio em cabo Corso , e que afinal os Normandos aban-

(1) Esta relação é copiada de Villaut.


(2) Villaut diz voltarão na supposição em que estava de que elles
alli se tinhao estabelecido no seculo xit°.
(3) Villaut nos diz, pag. 420 a 422, que no anno de 1381, um
navio chamado Esperança , navio da Companhia de Dieppe , que fòra
a Akara , e que dois mezes depols voltara. Ora não será o mesmo
navio e a mesma viagem de 1501 transportada a dois seculos antes ?
— 55 —

» donárâo aquellas paragens depois de 1599. » Villaut


acrescenta que os Portuguezes en diuerses rencontres
faisaient des prisonniers (1). E pois verosimil que se
uma bateria existia com o nome de bateria dos Fran-
cczes , este nome fosse dado pelos mesmos Portugueses
em razão de nella terem trabalhado os prisioneiros desta
nação. Entretanto qualquer que seja a origem desta de
nominação , ella não prova cousa alguma relativamente
aos suppostos estabelecimentos francezes naquella costa
no seculo xiv°. E mesmo contrario á boa critica admittir
(ainda quando não fossem os factos authenticos que
referimos) que uma tal denominação se tivesse conser
vado na opinião tradicional dos naturaes durante dois
seculos , não tendo alias os descobridores portuguezes do
seculo xv° encontrado alli vestigio algum daquelles po
vos terem tido communicação com os Europeos, nem
ouvido pronunciar uma só palavra das lingoas europeas,
finalmente não tendo encontrado o mais leve indicio de
construcção militar.
Além de que, se Dapper tivesse a critica do celebre
Nitíbirfir não daria por certo a menor attenção á supposta
opinião dos negros da Guiné , cuja intelligencia não
pôde ser comparada á dos Arabes , que quando os
questionão sobre a passagem dos Israelitas , respondem
sempre affirmando que passarão pelo logar onde o via
jante lhes faz a pergunta.
« S'il en fallait croire les relations des Arabes (diz

(1) Villaut, p. 436.


— 56 —

» Niebuhr ) qui habitent à l'est du golfe, les enfants


» d'Israèl auraient passe la mer Rouge toujours à l'en-
» droit précis ou on leur en fait la demande ! »
Este sabio conclue : « Ainsi les traditions et les rap-
» ports contradictoires des Arabes ne sont ici cTaucune
» valeur (1). »
Nós sabemos por experiencia que os negros affirmão
sempre nas suas respostas o que se quer que elles res-
pondão. Se os Hollandezes perguntárão a alguns, por
curiosidade , depois de apparecer a relação de Villaut
(1667) : « OsFrancezes vierãoaqui, e fundarão esta for-
» taleza antes dos Portuguezes? » os negros de certo
responderão logo affirmativamente , em quanto outros ,
conforme o modo das perguntas , affirmarião o contrario.
Diremos pois , e em nosso entender com melhor razão ,
a respeito de uma tal opinião dos negros daquelle ponto ,
o que o sabio Niebuhr diz dos Arabes : que taes opi
niões não tem neste caso valor algum, tanto mais que ,
ainda quando esta existisse realmente no tempo de
Dapper, isto é nos fins do seculo xvii°, esta opinião de
um, ou mais negros não pôde destruir os factos relatados
pelos escriptores das nações da Europa civilisada, e con
temporaneos desses mesmos factos , ou que alias os co-
Ibérão em autbenticos documentos.
O mesmo diremos quanto á descoberta da pedra em
que se achavão os dois numeros gravados, e que Dapper
pretende que indicavão mil e trezentos, não se tendo
podido distinguir os outros dois.

(1) Niebuhr. Detcription de VJrabie, p. 348 e 349.


— 57 —

Posto que os factos e os historiadores do seculo xv°


bastão para tomar nullo este argumento , e supposta
prova em favor das preterições destes modernos escrip-
tores , comtudo examinaremos paleograficamente qual
deve ser a importancia desta descoberta na questão da
supposta prioridade dos estabelecimentos dosDieppezes
na Mina.
Dapper não nos diz se aquellas duas lettras de que
elle compoz mil e trezentos, estavão ou não gravadas
em algarismos arabicos, se em lettras lapidares roma
nas ; se as duas lettras erão da numeração arabica , gra
vadas na tal pedra por Francezes , como se pretende in
culcar, neste caso a dita pedra era posterior ao anno de
1574 , isto é no reinado de Henrique III , por que foi só
nesta epoca que a numeração arabica se introduzio ge
ralmente em França (t). Neste caso as duas lettras indi-
cavão uma data posterior de quasi um seculo á fundação
do castello de S. Jorge da Mina pelos Portuguezes, e
não um seculo anterior á dita fundação, como pretendeo
Villaut , e todos aquelles que o tem seguido.
Se as ditas lettras erão lapidares romanas , o que é
mais provavel , de que maneira estavão ellas dispostas
para indicarem mil e trezentos , quando alias não vemos
meio regular na paleografia do xiv° seculo de fazer re
presentar o numero mil e trezentos só por duas lettras
romanas.
A' vista destas objecções o leitor julgará quanto são

(1) Vid. Dom de Vaines, Diction, de diplom. , art. Chiffres.


— 58 —

destituidas de bons fundamentos as allegações destes


modernos autores , que nem uma só pôde resistir a uma
critica severa e imparcial.
Se este argumento das taes lettras não pode resistir a
uma analyse , o que se segue é em nosso entender
pueril.
Diz este A. : « On peut conjecturer, par un chiflre
» qui estsur la porte du magasin , que cet appartement
» a été báti Ian 1484 , sous Jean II , roi de Portugal.
» Or, comme les chifíres de ce nombre sont encore aussi
» entiers que s'ils avaient été gravés depuis neuf ou dix
» ans, on a raison de croire que les autres sont d'une
» grande antiquité !!! »
Por esta regra uma moeda moderna sendo encontrada
comas legendas apagadas, e inculeando, pelos accidentes
que mil vezes acontecem, uma supposta antiguidade aos
olhos da gente superficial, será por ventura mais antiga
do que outra dos reinados ou tempos anteriores que os
accidentes respeitárão ? Certamente não. Acaso não
vemos todos os dias monumentos alias modernissimos
mostrarem pelo seu estado de ruina maior antiguidade
do que outros mais antigos mesmo de alguns seculos ?
E pôde por ventura induzir-se deste acontecimento um
argumento chronologico contrario á verdadeira data
destes monumentos? Certamente não.
Sobre este importante facto da verdadeira epoca da
fundação do castello de S. Jorge da Mina , estes escrip-
tores modernos que citámos, ou de proposito, ou por
ignorancia, não se derão ao trabalho de consultar Garcia
de Rezende , historiador portuguez do xv° seculo, não
— 59 —

só contemporaneo da epoca daquella fundação, mas , o


que é mais , criado d'elRei D. João II , que a mandou
edificar, escriptor que estava ao facto dos acontecimentos
daquella epoca.
Este historiador diz pois (cap. 24) que elRei mandara
de Lisboa toda a pedra lavrada para se edificar a
fortaleza, e o grande historiador Barros, que não só
tinha em seu poder documentos authenticos, mas que
tinha fatlado e conhecido alguns dos homens contempo
raneos dos descobrimentos, e da fundação de S. Jorge
da Mina, donde elle mesmo foi feitor, diz (Dec. 1, liv. III,
cap. 1) , fallando daquella fortaleza, o seguinte :
« Que elRei D. João II ordenou de mandar fazer huma
» fortaleza como primeira pedra da Igreja oriental
» que elle, em louvor e gloria de Deos, desejava edifi-
» car, etc. »
Chamámos a attenção do leitor sobre a importancia
das palavras : como primeira pedra da Igreja oriental ,
as quaes provão que alli não houvera té então (isto é
antes de 1482) templo algum christão.
Além disto os Portuguezes não encontrarão alli vesti
gio d'edificio algum , nem igreja , visto que Diogo d'A-
zambuja mandou armar um altar ao pé de uma grande
arvore onde se celebrou aprimeira missa dita naquellas
partes (Barros , log. cit. ).
Além deste facto , Caramansa , soberano negro da
Mina, na sua resposta dada a Diogo d'Âzambuja naquelle
anno de 1482, mostrou que ninguem até então alli tinha
tratado de formar estabelecimentos naquella costa.
Esta particularidade destroe tambem completamente
— 60 —

as asserções de Villaut , de Dapper, e dos que os copiarão,


de que os habitantes 200 annos depois dizião que os
Francezes se tinhão estabelecido no forte da Mina , e o
tinhão edificado antes dos Portuguezes.
Pela mesma descripção dos trabalhos que Diogo d'A-
zambuja mandou fazer afim de construir a fortaleza ,
fazendo saltar rochedos, etc. , se mostra que Dapper
não lêra os historiadores acima citados, nem outro al
gum dos seculos xv° e xvi°, acerca da fundação do castello
de S. Jorge da Mina , prova em fim que este escriptor
copiara isto de outros modernos, e mui provavelmente
de Villaut.
Finalmente este ultimo, entre os argumentos que
produz para roborar as suas asserções acerca da supposta
fundação do castello de S. Jorge da Mina pelos France
zes, aponta o seguinte : «Que no dito castello elle
» vira os Hollandezes servirem-se de uma igreja, sur
» laquelle on aperceva.it encore les armes de France à
» peine effacées. »
Nesta asserção mostrou este viajante que tambem não
conhecia cousa alguma da hyraldica portugueza ; ou
elle tomou as armas portuguezas, que naquella epoca
ainda erão assentadas sobre a cruz floreteada da ordem
d'Aviz, pelos lizes do escudo francez (1) ; ou, o que é mais
provavel , é que vendo na capella votiva ao Infante

(1) A cruz d'Aviz continuou a conservar-se no escudo real ate ao


anno de 1488, coino se vê nas Memorlas dos reinados d'elRei D.
AflbnsoV e D. João II por Alvaro Lopes, M»s. inedito. Biblioth. R.
do Rio de Janeiro.
— 61 —

D. Henrique o escudo francez dos lizes de que este prin


cipe usava, e que existia na capella de S. Jorge da Mi
na , como se vé igualmente no seu tumulo na Batalha ,
dera por certo que o dito escudo provava a supposta
prioridade da fabulosa fundação franceza do castello de
S. Jorge da Mina !
Barros diz positivamente que na igreja, « em memo-
» ria dos trabalhos do Infante D. Henrique por ser au-
» tor deste descobrimento , se diz uma missa quotidiana
» por sua alma com proprio capellão a ella ordenado. »
(Log. cit. )
Assim fica evidente que naquella igreja de S. Jorge
da Mina havia uma capella erecta em memoria do In
fante" D. Henrique, na qual, conforme o estilo e pratica,
se vião as insignias , e sobre tudo os escudos das armas
de que usava aquelle. principe , do mesmo modo que
existem na capella do mosteiro da Batalha, onde elle
jaz , na qual entre os seus escudos se vé um com as
flores de liz das armas de França.
Além disto , se os maritimos de Dieppe tivessem
construido entre os annos de 1383 a 1386, como diz o
sieur de La Croix , a igreja do forte da Mina , a qual
ony voit encore, diz elle (1688), como era possivel que
os Portuguezes, quando fundarão o castello de S. Jorge
no anuo de 1482, alli não encontrassem a mesma igreja,
que alias ainda alli se via dois seculos depois , isto é no
tempo de La Croix e de Dapper ?
De maneira que a supposta igreja, edificada pelos
maritimos de Dieppe em 1383, tinha desapparecido
cm H82 , quando os Portuguezes fundarão a de S.
— 62 —

Jorge, e tornou a apparecer em 1688 , na epoca de La


Croix , etc. !!!
Desta confrontação de datas fica evidente que existe
nestas relações de Villaut, de Dapper, e de La Croix um
erro manifesto, para nãodizermos falsidade, nas mesmas
datas ; que a lettra numeral k foi transformada e substi
tuida em suas obras por um 3 para fazerem remontar
ao seculo xrv° os acontecimentos e os factos passados
no seculo xv°. Fica evidente que a igreja de que se trata
é a mesma de S. Jorge fundada pelos Portuguezes , e
não outra.
Finalmente, um sabio geografo francez, M. Eyriès ,
em um artigo biografico de Dapper publicado na Bio-
graphie Universelle , diz o seguinte : « Dapper, ayant
» quelquefois mis peu de choix dans les matériaux qu'il
» a recueillis , a induit en erreur les auteurs qui se sont
p Jiés a son témoignage sans lexaminer d'après les
» régles de la sage critique. »
Apesar da publicação das obras que acabámos de refu
tar, um dos mais eruditos geografos dos nossos dias, Karl
Ritter, diz na sua Geografia comparada da Africa,
cuja traducção se publicou emPariz em 1836, o seguinte :

Histoire des colonies et des dêeouvertes des Portugaij , des Français


et des Anelais sur le Senegal et la Gambie.

« Les Portugais les premiers s'établirent sur ces


» cotes inconnuesjusqualors , après eux les Français,
» qui s'emparèrent de 1'entrée du Senegal, et enfin les
» Anglais. »
— 63 —

A pag. 37, t. 2 =
« Lorsque les Anglais et les Français s'y établirent
» dans les siècles suivants, ils trouvèrent sur le Senegal,
» et surtout sur la Gambie , une enorme population
» portugaise , et rencontrèrent même des mots portugais
» dans la langue des Bambouc, preuve de leur ancienne
» et vaste domination dans ces conlrées.
» Les Anglais commencèrent leur commerce sur le
» Senegal et la Gambie sous le règne d'Elisabetb, les
» Français sous Louis XIV, en créant des sociétés
» commerciales , etc. »
O sabio A. allemão tendo alias conhecido as obras de
Villaut, de Labbat, e outros que refutámos , como se vê
a pag. 39 do mesmo vol. da sua Geografia comparada ,
mostrou , no que acima transcrevémos , que não admitte
a supposta prioridade dos descobrimentos dos mariti
mos de Dieppe.
Fica pois demonstrado neste § que todas as obras
francezas nas quaes se tem pretendido sustentar aquella
supposta prioridade , só se publicarão depois do meado
do seculo xvii°, e que as asserções que nellas se encon
trão são contrarias aos factos, e tiverão sua principal
origem na famosa relação de Villaut. Para fazermos
ver ao leitor de um modo mais positivo a evidencia desta
demonstração, indicaremos aqui a ordem chronologica
daquellas publicações.

1667 — Obra de Villaut.


1669 j — Dita dElbée.
1670 j
1683 — Dita de Manesson-Mallel.
— 64 —
1688 - — Obra du sieur de La Croix.
1693 — Dita de Masseville.
1708 — Corneille, no artlgo Malaguette do seu Dictionnaire géo-
graphique, o qual copiou Villaut.
1728 — Obra do P* Labbat.
1739 — Spectacle de la Nature , refutado por JUacpherson.
1741 — LaMartinière, no artigo Malaguette , copiou o do Diccio-
nario de Corneille; além disso, este A. era natural de
Dieppe.
1767 — Nourelle histoire de l'Afrique française, par 1'abbé De-
manet.
1832 — Recherches sur les voyages et découvertes des navigateurs
normanda.
1833 — Histolre des anciennes villes maritimes.
1839 — Notice statistiqne des colonies françaises, publicadas em
1839, tom. III.

Tal foi a influencia das invenções que apparecêrâo


na relação de Villaut , as quaes se toruão tanto mais
suspeitas quanto o mesmo viajante teve o cuidado de
nos ocultar onde as tinha colhido.
Poderiamos mostrar pela citação de varias obras an
teriores ao mesmo viajante, e publicadas no mesmo se
culo, que nestas se não disputára a prioridade aos Portu-
guezes. Produziremos todavia os seguintes exemplos,
ambos exlrahidos de escriptores francezes.
Temporal, na sua collecção, para a publicação da qual
obteve um privilegio de Henrique II datado de 7 de
maio de 1554, longe de attribuir aos Normandos os des
cobrimentos d'Africa, diz formalmente que estes forão
feitos pelo Infante D. Henrique.
« Le premier qui commença à découvrir la marine
— os —

» autour de 1*Afrique fut le très-illustre dom Henri in-


<> fant de Portugal (1). »
Davity publicou em Pariz em 1660 (isto é sete annos
antes da publicação de Villaut) a sua fíescription de
lAfrique. Nesta obra, longe de se encontrar uma só pa
lavra relativa aos suppostos descobrimentos dos mariti
mos de Dieppe nas costas occidentaes d'Africa, antes
alli se confirmão os factos que mostrão que os Por tu -
guezes forão os primeiros que passárão além do cabo
Bojador, eque descobrirão a costa occidentald'Africa.

S VII.

Mostra-se que assim como a supposla prioridade do descobrimento


d' Africa occidental pelos Normandos só foi sustentada por alguns
escriptores francezes do seculo xvn°, do mesmo modo os docu
mentos publicos ofílciaes ultimamente citados na obra Notices
statistiques , etc., só dalào do meado do mesmo seculo.

Na obra alias mui importante ultimamente publicada


em Pariz em 1839, intitulada Notices Slatistiques
surIes colonies françaises, vemos que o seu beneme
rito redactor, apesar de ter, como julgámos , á sua dis
posição todos os archivos não só daquella repartição,
mas tambein os de todas as villas, e cidades maritimas
da França, bem como os das suas colonias d'Africa,
apesar de dispor destes depositos, não encontrámos alli

(1) Em Ramusio (1 , p. 176, e 96) se lê : ffenrico Infante de Por-


tugallo inventorc dijar scoprire le marine a torno l'África.
8
— 66 —

citado um só documento anterior ao anno de 1664 .


relativo á creação de companhias commerciaes d'Africa.
Taes companhias e contratos são portanto posterio
res de mais de dois seculos aos nossos descobrimentos, e
ás nossas companhias, e contratos para o commercio
dAfrica.
Do mesmo modo o mais antigo tratado feito com os
reis africanos quealli se ré citado, data só dosfins do se
culo passado (1785) , em quanto que os tratados que
celebrámos com principes, ou chefes daquelles povos
remontão ao xv° seculo, como se vé nas Decadas, e em
outras obras.
Com efleito passaremos a mostrar que as companhias,
e contratos feitos pelos Portuguezes para o commercio
d Africa occidental, datão do xv° seculo, e são portanto
anteriores aos que todas as outras nações da Europa
tizerão sobre este objecto. -
Nesta demonstmção seguiremos a ordem natural e
chronologica dos testemunhos historicos contempora
neos.
Os mais antigo aresto que encontrámos acerca do
estabelecimento de companhias portuguezas na costa
d'Africá> é só posterior de 11 annos á famosa passagem
do cabo Bojador por Gil Eaunes. Em l'*44 se estabeleceo
em Lagos uma companhia para continuar os descobri
mentos, e para fazer o commercio d'Africa , debaixo
da direcção do Infante D. Henrique, e com as condi
ções por elle ordenadas. Azurara indica este facto
quanto ás pescarias no cap. 95 da Chronica da conquis
ta de Guiné, mostrando que os habitantes dos porias
— 67 —

maritimos do Algarve hiào pescar ás costas, e mares da


Guiné , que para este efíeito pedirão e obtiverão licença
do Infante, e se concertarão com este principe de lhe
pagar um certo direito. E forão, diz ochronista, até ao
logar que chamão o cabo dos Ruivos, onde começarão sua
pescaria que foi da maior « abundancia , e os nossos se-
» cavão o pescado com grande admiração dos Mouros
» por verem o atrevimento dos Portuguezes. »
As relações de Cadamosto contendo todavia particula
ridades mais circumstanciadas sobre os primeiros estabe
lecimentos de feitorias portuguezas na cosia d'Africa
occidental muito além do> ponto da Angra dos Ruivos
de que acima tralamos, e noticias curiosas da creação
de companhias commerciaes portuguezas para o trafico
daquellas paragens, por esses respeitos passámos a trans
crevê-las* -
Aquelle celebre viajante refere pois, no cap. X da re
lação das suas viagens, que o Infante D. Henrique fizera
um contrato por tempo de 10 annos para o commercio
d'Arguim, a sal>er :
« Que ninguem podesse entrar no porto <XAr-
» guim para commerciar com os Arabes , salvo aquel-
» les que. entrassem no contrato (companhia) cujo
» contrato tem uma feitoria na dita ilha , e feitores
» que comprão, e vendem áquelles Arabes que vêm á
» marinha , dando-lhes diversas mercadorias , que são
» panos tecidos, prata , alquizeis, que são uma especie
» de tunicas, tapetes, sobre tudo trigo do qual estão
» sempre famintos, e r»cebem em troco negros que os
» ditos Alarves trazem da negraria, e oiro Tiber, de mo
— 68 —

» do que este senhor Infante fez trabalhar (1445 ou 46)


» em uma fortaleza na dita ilha para conservar este
» commercio para sempre, e por esta razão todos os an-
» nos vai, e vem caravellas á ilha d'Arguim (1), que
» antes do contrato costumavão vir ao golfo d'Arguim
» caravellas armadas , umas vezes 4 e outras mais , e ca-
» hiào sobre os moradores , e os fazião escravos , isto era
» entre o cabo Branco , e o Senegal. A guerra que os
» Portuguezes assim lhe fizerão foi por espaço de 14
» annos. »
Pelo que deixámos tranacripto de Azurara e de Ca-
damosto se prova que em 1444 começarão os Portugue
zes a estabelecer companhias commerciaes para a costa
occidental d'Africa ; que estas nos annos seguintes ti-
verão já uma latitude immensa , visto que a de Lagos
tinha as pescarias , e a de Arguim tinha a exploração do
extenso commercio do interior d'Africa, o qual por meio
das caravanas se fazia pelo porto d'Arguim; finalmente
por outra passagem ò!Azurara, no cap. 96, se mostra
que depois do anno de 1448 as ditas companhias , a que
então chamavão contratos, fazião o commercio exclu
sivo com todos os pontos da costa d'Africa que té então
se achavão descobertos até Cabo Verde. Este chronista
diz que « depois daquelle anno em diante, as cousas
» d'Africa não forão tratadas com tanto trabalho como
» as passadas, por que os feitos daquellas partes forão

(I) Arguim foi possuido pelos Portuguezes até ao anno de 1638,


em que os llollandezes se apoderarão deste ponto.
— 69 —

» antes tratados por contratos, e avenças de mercadoria


» do que por força d'armas. »
Isto mesmo confirma Barros ( Decad. I. c. 1S) di
zendo que no anno de 1448 mandara o Infante a Diogo
Gil assentar trato em Meça, e expedira Antão Goncal
vez ao Rio do Oiro para o mesmo objecto. O mesmo his
toriador, que alias trabalhara sobre documentos authen-
ticos, refere que no mesmo anuo de 1448 elRei D. Af-
fonso V arrendara o resgate (commercio) de Guiné a
Fernão Gomes por 5 annos com obrigação que neste
tempo havia de descobrir 500 legoas de costa. (Dec. I.
liv. 2.) Nas cortes de Coimbra de 1473, se pedio que o
contrato da Guiné fosse arrematado a lanços (1). Na
descripção da viagem á ilha de S. Thomé por um piloto
portuguez , publicada por J. B. Ramusio, se lé : « Toda
» esta costa (isto é a de Guiné) até ao reino do Manicongo
» he dividida em duas partes (anno de 1553) , asquaes se
» arrendão todos os 4 ou 5 annos a quem mais ofíerece
» para poder contratar áquellas terras, e portos. Gha-
o mão-se aquelles que tomão aquelle contrato arrema-
» tadores, e salvo estes , e seus delegados , não pôde
v mais ninguem avizinhar-se nem descer áquellas
«marinhas, nem por conseguinte vender nem com-
» prar. »
Este mesmo piloto , que alias era muito instruido até
nos estudos classicos , confirma o que dizem Azurara, e

(1) Vid. as nossas Memorias para a Historia das Cortes, t. 11,


part. H , p. 39.
— 70 —

Cadamosto, dizendo cap. 8° : « Antigamente, bu já


» mais de 90 armos, quando esta costa foi descoberta, os
» mercadores en travão com os seus navios pela Ethyo-
» pia (1) dentro, sobindo rios grandissimos onde acha-
» vão infenitos povos com os quaes contratavão ; po-
» rém nos nossos tempos foi prohibido pelos reis de
» Portugal, que ninguem podesse fazer este commercio,
» senão os arrematantes do contrato, etc. »
Estes ainda duravão no tempo do governo dos Filip
pos, visto que nas cortes de Thomar de 1581, pedirão
estas que cessassem os contratos de mercadorias para as
conquistas, e que este commercio fosse livre (2), pagan-
do-se o direito, e imposição que a este respeito sc de
terminasse.
Ora ficando assim provada a anterioridade dos esta
belecimentos commerciaes dos Portuguezes de mais de
dois seculos aos do tempo de Luiz XIV, fica sendo pois
indubitavel que os nossos titulos de prioridade são
igualmente incontestaveis nesta parte.
Para illustrar ainda mais este ponto, accrescen taremos
a seguinte interessante particularidade, a saber que pe
los termos do contrato feito a Fernão Gomes, chamado
o da Mina, este fôra autorisado a fazer collocar padrões
com as armas de Portugal para mostrarem a epoca do
descobrimento- de cada ponto, e legalisarem a posse do

(1) O A., conforme a geografia systematica dos antigos, considera


a parte d Africa occidental , de que trata , como uma porção da
Elhyopia.
(S) Vul. as nossas Mem. para Hist. das Cortes, t. II.
— 71 —

mesmo ponto. Estes padrões de posse consistirão até á


fundação do castello da Mina em grandes cruzes de ma
deira com inseri pções. EIRei D. João II porém os man
dou depois levantar de pedra com inscripções grava
das (1).
Consequentemente ao descobrimento seguio-se a
posse , e a esta o estabelecimento de feitorias, e de con
tratos commerciaes. (Gompare-se este $° com o §° IV
desta memoria.)
Ficando assim demonstrados estes nossos direitos ,
passaremos a indicar outros fundamentos de prioridade,
a saber dos tratados , feitos, e embaixadas mandadas aos
soberanos do paiz , durante o seculo xv°, e xvio.
Barros , tratando do descobrimento do Senegal pelos
Portuguezes , e do primeiro estabelecimento que alli
fundarão, diz o seguinte :
« Nós geralmente lhe chamámos Çanagá, do nome de
» hum senhor da terra com quem os nossos, no principio
» do descobrimento delle ,tiverão commercio (2).» O mes
mo historiador acrescenta mandara construir uma for
taleza neste rio em 14.90 pelas seguintes razões, « e como
» porta per que , com ajuda destes povos Jalophos que
» elle esperava em Deos que por meio deste principe 1).
» João Bemoij se converterião á fé como se converleo o
» reino do Congo, podia entrar no interior daquella grão

(1) fírf. Barros, Decad. I, liv. Ill, p. 152, e cap. 3, [>. \7t ,
edição de Lisboa de 1628.
(2) Ibiil., Decad. I , liv. 111 , cap. 8.
— 72 —

» terra, e chegar ao Preste, de quem elle tanto funda-


» mento fazia para as cousas da índia. Tambem como per
» o castello XArguim resgate de Cantor (Gambia), Serra-
» Lioa , fortaleza da Mina , grande parte da terra da
» Guiné era sangrada do ouro que em si continha ; com
» esta fortaleza do rio Çanagá do outro ouro que corria
» as duas feiras que dicemos (isto é a de Tombuctu , e
» Genna, ou Geni) (1), por estes fundamentos, etc., el-
» Rei mandou fazer a armada de 20 caravellas de que
» deo a capitania a Pero Vaz da Cunha. »
Barros (2) refere em outro logar, que depois do an-
no de H91 os descobrimentos no interior continuarão ,
e que os principes do mesmo interior enviarão presen
tes, e embaixadas a elRei, donde procedeo tanta entrada
naquella terra (isto é entre o Senegal, e o Gambia) que
Portugal estabeleceo relações com os maiores principes
della, intervindo nas suas contendas, e negocios, como
amigo , conhecido , e estimado delles.
« Neste tempo mandou elRei de Portugal Pedro d'£-
» cora, e Gonçalo tnnes a elRei de Tucurol (3), e assy
» ao rei de Tungubutu , e por muitas vezes a Mandi-
» Mansa, por via do rio Cantor, o qual era dos mais po-
» derosos daquella provincia mandinga, ao qual forâo
» para tratar 8 Portuguezes, sendo os principaes fíodri-

(1) fid. sobre estes nomes Walekenaer, Recherches sur t'Afrique ,


p. 31.
(2) Decad. J, liv. 111 , cap. 12.
(3) M. Walckenaer julga que é provavelmente o Tocrour dos M«s.
arabes (loc. cil., p. 32).
— 73 —

» go Rebello, Pedro Reinel eJoão Collaço, os quaes le-


» varão presentes de cavallos, etc. , como já dantes os
» Portuguezes tinhãocom elle praticado, donde resultou
» tal amizade entre os nossos e aquelle rei, que enviando
» eu por razão do meu cargo de Feitor destas costas de
» Guiné e índias o anno de 1534 hum Pero Fernandes
» em nome delRei ácerca do resgate (commercio) de
» Cantor, este principe ficou muito satisfeito, tanto mais
» que a seu avô, que tinha o mesmo nome, ybVa enviado
» outro méssageiro d'outro rei D. João de Portugal. »
A' vista destas passagens daquelle historiador con
temporaneo, fícão hem evidentes as nossas relações com
os principes do paiz , isto é com os mais poderosos
potentados da Guiné (1) , relações que comprehendião a
Casamansa e seu territorio, como passámos a mostrar
no seguinte

S VIII.

Prova-sc que o rio e territorio da Casamansa foi igualmente desco


berto pelos Portuguezes , que delle tomarão posse ha perto de
quatro seculos, e que o dito territorio flca comprehendido nas
demarcações portuguezes.

Deixámos provado, no precedente que o descobri


mento e a posse dos pontos mais importantes da costa

(1) fid. sobre a prioridade dos nossos descobrimentos na costas


e interior d'Africa o que dizem o Dr Leyden , e Murray na sua His
toria dos Descobrimentos e Viagens em Africa , a qual foi traduzida
em francez em 1821. Vid. tom. Ill, cap. 6.

\
— Ik —

d'Aírica pelos Portuguezes se ex tendia, nos fins do se


culo xv°, além da costa da Mina , e mesmo além do golto
de Guiné. Deixámos provado que as companhias e con
tratos havião estabelecido relações commerciaes com
todos os pontos descobertos , e que além disso tinhão o
direito de explorarem todos os territorios que ficavão
comprehendidos dentro da demarcação que lhes era
concedida Agora mostraremos , 1° que o rio e territorio
da Casamansa fora igualmente descoberto pelos Portu
guezes ; 2°quedelle tomarão posse, visto que ficava den
tro da demarcação concedida nos dois ultimos contra
tos, e especialmente no privilegio concedido a Fernão
Gomes.
Quanto ao descobrimento , Azurara refere , no
cap. 66 , a segunda viagem de Alvaro Fernandes ao Gam
bia , e depois refere igualmente que Gil Eannes explo-
rára , 60 legoas além do cabo Verde , um rio largo onde
entrara com as caravellas. « Banos (1) ... o rio Gambia
» do resgate de Cantor, não tem tanta variação em nome ;
» por que quasi todo elle te o resgate do ouro onde vão
j> os nossos navios, què será da barra por razão das suas
» voltas 180 legoas , e por linha direita 80. »
Continua a descripção , e acrescenta a seguinte parti
cularidade : « ...Em rio tortuoso quebrão as aguas de
» maneira que não vem com Ímpeto contra os nossos
» navios quando sobem por elle , e quasi meio caminho
» ante que cheguem ao resgate, faz uma ilheta , a que os

(1) Decad. I, liv. Ill, cap. 8.


— 75 —

» nossos, pelos muitos elefantes que ali havia , lhe cha-


» mão dos Elefantes. »
Ora o Casamansa é um braço do Gambia , segundo
alguns geografos, e fica situado a 40 legoas da sua em
bocadura , junto da ilha dos Elefantes, communica com
o Gambia , e á esquerda com o rio de S. Domingos ou de
Cacheu. Consequentemente o rio e territorio de Casa
mansa fica comprehendido nos descobrimentos de que
trata Azurara ; todavia citaremos uma prova ainda mais
positiva ácerca do seu descobrimento no tempo do In
fante. Esta prova é a seguinte relação de Cadamosto ,
cap. 6 (do descobrimento de alguns rios : do rio de
Casamansa). «Por causada doença dos nossos mari-
» nheiros (diz este viajante) , partimos, como acima
» disse, do porto de Mansa, isto é do paiz do Sr Bati-
» mansa, e em poucos dias desembocámos do dito rio , e
» parecendo-nos a todos ter ainda mantimentos, e que
«seria cousa louvavel, pois Unhamos chegado aqui,
» correr mais avante por aquella costa , por que sendo
» Ires os navios estavamos muito bem acompanhados;
» postos todos d'accordo um dia por horas de terça ,
» com vento galerno nos fizemos á véla , e por que
» estavamos muito metidos pela boca do rio Gambia,
» e as terras da parte do sul-sudueste entravão muito
» pelo mar dentro , fazendo a modo de um cabo ,
» fizemos-nos pelo poente para sahirmos bem ao mar.
» Mostrava esta terra ser toda baixa , e povoada de
» infenitas arvores verdes, bellissimas e muito gran-
» des , e depois de nos engolfarmos quanto nos pareceo
• bastante, descobrimos que aquillo não era cabo para
— 76 —

» se notar (t) , por que além da dita ponta se via o ter-


* reno da cosla todo ao longo della. »
Continua a descri pção da viagem , e acrescenta :
« E hindo huma caravella após a outra , e assim nave-
» gando dois dias por aquella costa sempre á vista de
» terra, descobrimos ao terceiro a foz de hum rio de ra-
» zoavel grandeza , o qual , segundo mostrava em a sua
» barra , era da largura de mais de meia milha ; e hindo
» mais adiante sobre a tarde, tivemos vista de hum
» pequeno golfo , que quasi mostrava ser a modo de
» embocadura de rio , onde por ser tarde lançámos o
» ferro, e na manhaã seguinte fazendo-nos á vela , e en-
» golfando-nos algum tanto , descobrimos a boca de ou-
• tro grande rio aqui abordamos e surjimos , e
» tomando todos conselho , determinámos armar duas
» das nossas barcas, e mandá-las com os nossos inter-
» pretes a terra saber noticias do paiz , o nome do rio , e
» quem era o Sr destas terras. As barcas partirão , e
» voltarão dizendo , que se chamava o rio de Casa
is mansa , etc. »
A' vista desta interessante relação deste A. contem
poraneo, que alias abreviámos , não pôde haver a menor
duvida sobre a prioridade do descobrimento, e explo
ração da Casamansa pelos Portuguezes. Ora mesmo
entre as nações modernas, e mesmo nos nossos dias, o
descobrimento de uma nova terra traz comsigo o direito

(1) Esla expressão mostra que elles, conforme as suas instrucções,


marcavão só os pontos mais salientes nas cartas nauticas que leva-
vào, como se diz em Azurara.
— 77 —

de posse. É por este principio que os maritimos de todas


as nações lhes dão qunsi sempre os nomes dos descobri
dores, e arvorão o estandarte da nação a que^ pertencem,
como um testemunho de posse. Vejamos pois se os
Portuguezes não tem um direito mais fundado á posse
da Casamansa do que o que confere a simples explo
ração e descobrimento. No § VI mostrámos estes titulos
legitimos de posse , os quaes comprebendião toda a costa
occidental d'Africa desde o cabo Bojador até além do cabo
da Boa-Espe rança; agora diremos que os ditos titulos
são igualmente applicaveis á Casamansa , que a decisão
real delRei D. Affonso V da concessão do contrato e
privilegio a Fernão Gomes o da Mina, mostra que a
Casamansa fôra comprehendida nos territorios desco
bertos, e possuidos pela coroa de Portugal; finalmente,
que os mesmos estabelecimentos, e feitorias de Zangui-
chor, què possuimos a 15 legoas acima da embocadura da
Casamansa, e Farim,e Geba, estabelecimentos que nos
não forão até agora disputados , mostrão em nosso enten
der o direito dos Portuguezes sanccionado por todos os
titulos legitimos , como são os do descobrimento, posse
indisputada durante muitos seculos, e permanencia de
estabelecimentos eommerciaes (1). Os direitos da nossa

(1) Les Portugais se font établis sur la Casamansa. (Vid. Waleke-


naer, artiele Afrique, dans 1'Encyclopédie des gens du monde.
L abbé Demancl , na sua obra Nouvelle Histoire d'Afrique , t. I ,
p. 190 , tratando da Casamnnsa , diz : « On lait positivcment que les
• Portugais ont eu aulrefois des élalilissements considérables sur celte
' riviire , quils ontfail un grand commerce dans le royaume du Cap
— 78 —

prioridade nos descobrimentos serão ainda mais eviden


temente provados no seguinte §°.

§ IX.

Prova-se pelo exame das cartas geograficas do xvi° seculo que as


denominações de Petit Dieppe, e de Sestro Paris , só se encontrão
pela primeira vez em uma carta Mss. deumcosmografode Dieppe,
posterior de perto de dois seculos ao descobrimento da costa Mina
pelos Portuguezes.

Do exame chronologico e geografico das diversas cartas


tanto manuscritas e ineditas, como gravadas, que os
differentes cosmografos de varias nações desenharão
desde os fins do seculo xv°, até á ultima metade do se
culo xvu°, rcsultãoas provas incontestaveis, e sem replica:
1o Que em todas as cartas do xvi° seculo todos os nomes
que se lêem na costa occidental d'Africa desde o cabo
Bojador até além do cabo da Boa-Esperança são portu
guezes , que forão dados áquelles pontos pelos descobri
dores desta nação , e se conservarão invariavel e exclu
sivamente nas ditas cartas ; 2o que os mesmos nomes só
começarão a desapparecer dalgumas cartas d'Africa dos
fins do seculo xvn° á medida que os Hollandezes, os Fran-

» qui est sur la riviere de Cassamance , à 130 heues de son embou-


• churc , et qu'ils se rendaient dans ce royaume par la même rivière ,
• qui est donc navigable. •
O testemunho deste escriplor é pouco suspeito de parcialidade ,
visto que ellc admittio a prioridade dos suppostos descobrimentos
dos Dieppezes conforme as relações posteriores á obra de Villaut.
—79 —

cezes, e Inglezes occupárão as nossas colonias naquella


parte do globo em consequencia da nossa incorporação
á monarchia hespanhola , 3o finalmente que as denomi
nações de Petit Dieppee de Sestro Paris, só se encontrão
pela primeira vez em uma carta de 1631 de um piloto de
Dieppe, e depois nas cartas franeczas de Sanson filho ,
posteriores á viagem de Villaut.
Os limites desta Memoria não nos permittem a pro-
ducção de todo o trabalho que sobre esta materia temos
preparado; indicaremos apenas alguns exemplos que
julgámos serão assaz terminantes para convencer o leitor
acerca da evidencia das nossas asserções.
No celebre mappa-mundi de Ruysch que se encontra
na edição de Ptolomeo, publicada em Roma em 1508,
se yê marcado todo o continente d'Africa, segundo as
navegações dos Portuguezes(l).
Nas duas lie llas cartas d'Africa que se encontrão na
edição de Ptolomeo de 1513, publicada em Strasburgo,
todos os nomes da costa Occidental daquelle continente
são portuguezes , e são todos conformes com os que os
nossos descobridores derão aos difíerentes pontos que
descobrirão e reconhecérão. Os elementos geograficos
que servlrão a estas bellas cartas , forão todos tirados de
cartas nauticas portuguezas. Alli se diz :
« Duce particulares tabulce ex chartis Portugalensium
» sumptee. » No segundo prefacio se lê : « Dua? parti-

(1) M. Walekenaer , na sua obra Recherches sur Vintérieur de


i' Afrique, p. 187.
Maquelle mappa se nao encontra uma só denominação franceza.
— 80 —

» exilares tabulce Aphricce ex chartis Portugalensium


» sumptcB. »
Sobre o territorio da Casamansa se lê cabo de Santa
Maria, na margem esquerda do rio de Santa Clara,
depois Casamansa , cabo Roxo, e rio de S. Francisco.
Na edição do Ptolomeo d'Scott, publicada em Stras-
burgo em 1520 , se lêem os mesmos nomes portuguezes
como nas precedentes , e a Casamansa com os nomes
igualmente portuguezes acima citados.
Em uma bellissima carta portugueza em pergami
nho (i) de grande dimensão, e que é anterior ao anno
de 1543 , se lêem 130 nomes portuguezes sobre a costa
occidental d'Africa a partir do cabo Bojador, até ao
cabo da Barca , ao sul da equinoccial. Na linha paral-
lela á Casamansa se vé pintado um grande estandarte
com as armas de Portugal. Na costa da Mina, se \ê pin
tado o castello da Mina, flanqueado de seis torres. Em
nenhuma parte, tanto da costa como do interior, se lê um
só nome francez , nem se vêem pintadas as armas da-
quella nação.
Em outra carta portugueza d'Africa de um magnifico
atlas em pergaminho, que se diz ter pertencido ao celebre
Pedro Pithou , e que da bibliotheca do château de. fíosni
passou ultimamente para a Bibliotheca R. de Pariz, todos
os nomes são portuguezes , e os mesmos que forão dados
pêlos descobridores. Esta carta é igualmente da pri
meira metade do seculo xvi°. A confrontação da nomen-

(1) Esta carta existe na Bibliotheca real de Pariz, no deposito das


cartas e planos.
— 81 —

cla tura geografica desta cartacomaChronicada conquista


de Guiné por Azurara , com Cadamosto, e com Barros,
prova a exactidão do que acima dizemos. A antiguidade
e perfeição da dita carta mostra pois com toda evidencia
que oselementos geograficos de que se servio seu^autor
forão, conforme as regras da cartografia , tirados de car
tas anteriores. Ora sendo o cosmografo portuguez , autor
deste atlas, dos principios daquelle seculo, claro fica que
os elementos de que se servio forão os das cartas nau
ticas anteriores, isto é das do seculo xv° feitas pelos
navegadores que descobrirão aquellas paragens, os quaes,
conforme as instrucções do Infante D. Henrique, hião
munidos de cartas nauticas onde marcavão os pontos a
que aportavão , como nos diz Azurara.
Em outra carta portugueza d'Africa (Bibliotheca R. de
Pariz) feita em Lisboa , por Domingos Sanches, em 1618 ,
todos os nomes são portuguezes.
O mesmo em outra carta portugueza Mss. de Teixeira
Albornoz, feita em 1667, que se acha no Dépôt de la
marine.
Os cosmografos italianos, principalmente os vene
zianos e florentinos, os quaes erão então dos mais in
struidos da Europa, buscavão por todos os meios estar ao
aleance de todas as circumstancias , e particularidades
relativas aos descobrimentos, tanto em razão do inte
resse scientifico que nisso tinhão, como pelo interesse
commercial que podia resultar das relações com as terras
novamente descobertas.
Nas cartas que elles publicárão no decurso do se-
culoxvi°, conservarão escrupulosamente as denominações
6
— 82 —

portuguezas primitivas, e acrescentarão as que outros


dos nossos descobridores mais modernos dérão a outros
pontos da costa d'Africa , onde abordarão depois da
morte do Infante D. Henrique.
Produziremos apenas os seguintes exemplos.
Na carta de Gastaldi, publicada em Veneza em 1564,
todos os nomes que se lêem na costa d'Africa occidental
são portuguezes, e em geral os mesmos que se encon
trão nas cartas acima citadas , e se lé de novo depois do
C. Branco, Ilha dos Coiros. Em Arguim se vê pintado
um pequeno forte. Na Casamansa , na margem direita ,
se indica um forte, ou feitoria, depois rio das Palmas ,
C. Formoso., etc.
Acarta de Paulo Forlani Veronnese (1562), posto que
menos minuciosa do que a precedente , menciona com-
tudoo paizdo Budomel. Em outra carta italiana do se
culo xvii° (1) , se vê perfeitamente marcada a Casamansa
e pintado um pequeno castello no centro. Do mesmo
modo, em outra carta veneziana do mesmo seculo que
alias é enriquecida com muitas notas, se vêem todos
os nomes portuguezes, e até se indicão os annos de al
guns dos nossos descobrimentos. No Senegal ,'e Cabo
Verde se lê por exemplo o seguinte :

N° 1 . — Scop. da Denyt Fernando 1446.


N° 2. — Scop. I an. 1446 dai Portug. (2).

(1) Existe na Bibliolheea real de Pai ií , Dépól des cartet et plans.


(2) Existe na mesma Bibliolheea.
— 83 —

Os cosmografos venezianos levarão a fidelidade de


Iranscripção dos nomes geograficos portuguezes a tal
ponto, que em uma carta feita em 1689 por Coronelli, a
qual tem o seguinte titulo : Afrique selon les relations
les plus nouvelles, par P. Coronelli, cosmographe de la
republique de Venise ,- não só todos os nomes que se
lêem na costa d'Africa occidentnl são portuguezes, e são
os das nossas antigas cartas, mas tambem, o que é mais
curioso, é que apesar de terem apparecido já as cartas
de Sanson, onde pela primeira vez se vé impresso o
nome de Petit Dieppe, o cosmografo veneziano o não
admittio na sua carla que alias dedicara ao duque de
Brissac , e apesar de ter sido mandado vir para França
pelo cardeal d'Estrées.
Se do exame das cartas italianas passámos a estudar
os elementos geograficos das cartas hollandezas na parte
da nomenclatura da costa d Africa Occidental, este exa
me nos apresenta os seguintes resultados.
Na magnifica carta hollandeza em pergaminho a colo
rido por 3o3.oDirch.er, feita em 1599 (1), todos os nomes
são portuguezes em toda a extensão da costa d'Africa
occidental além do Cabo Bojador. Na carta da Guiné
que se encontra no Grand Routier de Linschot, edição
de 1619, a nomenclatura é do mesmo modo portugueza.
Na de Hondius publicada em 1623, os nomes das antigas
cartas são alli conservados exclusivamente. Em outra
carta mss. de 1631 (2), todos os nomes, que são alias mui

ít) Esta carta existe no Dêpôt géncral iles cartes de la marine.


(2) Na mesma rollecoSo.
— 84 —

numerosos, que alli se liem são portuguezes, e não se vê o


de Petit Dieppe, antes tem o do Rio dos Cestos. Do mesmo
modo, em outra de 1661 com titulo : Africae Nova Des-
criptio, e na de Guilherme Blaeuw de 1670, e nas ou
tras de Wisscher, e de Picter Goos (1); mas nos flns do
seculo xvii», os nomes portuguezes começarão a desap-
parecer de algumas cartas bollandezas.
Até na carta de Bertius de 1640 se vêem conservados
os nomes portuguezes que existião nas cartas italianas
copiadas das portuguezas de que elle se servira. Nesta
se lé sobre a Casamansa a palavra Guião , palavra
que entre os Portuguezes principalmente do secu
lo xv° signiGcava bandeira, estandarte , como emblema
ile commando , e de dominio. Ora nas cartas da Idade
Media , e ainda nas dos seculos xvi° e xvn , os cos
mografos indicávão as possessões das difíerentes nações
pelas bandeiras ou guiões das mesmas nações. E pois de
presumir que Bertius copiara aquella palavra portu-
gueza de uma carta antiga que indicava que sobre
aquelle territorio tremolava o guião portuguez (2). Ber
tius, apesar de ser cosmografo de Luiz XIII, pertencia á
escola hollandeza, e tinha nascido em Flandres, e ain
da no seculo xvi°, tinha além disso vivido cm intima ami
zade com Justo Lipsio, o qual era um dos sabios da-

(1) Na mesma collecçao. Nesta carta se lê junto do rio Senegal,


Rio Portuguez.
(2) Em uma carta de Hugo Allard dos fins do seculo xvn°, na
qual se lêem muitos nomes poriuguezes, se lè igualmente sobre a
Casamansa a palavra Guião.
— 85 —

quella epoca mais instruido nas cousas portuguezas, de


que temos provas nas suas cartas dirigidas a alguns dos
nossos sabios ; éportantodepresumirqueellealludira por
aquella palavra ao dominio portuguez naquelle ponto.
Quanto ás cartas inglezas, poderiamos produzir al
guns exemplos para provar que os nomes portuguezes
se conservarão nellas como nas das outras nações da
Europa. Para nào excedermos porém os limites desta
memoria , citaremos apenas o seguinte :
Em uma carta mss. ingleza do seculo xvn, A New
Map of coast of Guinea from Cap Verd , se lêem .
quasi todos os nomes portuguezes , e entre estes o de
Rio dos Cestos, mas não o de Petit Dieppe (1).
Os exemplos que acabámos de produzir mostrão que
as denominações geograficas dos primeiros descobridores
portuguezes forão não só admittidas, e conservadas mais
de dois seculos nas cartas das principaes nações mariti
mas da Europa, como um titulo incontestavel dos nos
sos descobrimentos, mas igualmente que as ditas de
nominações forão do mesmo modo conservadas nas cartas
dos Ptoloméos de Slrasburgo , nas dos mesmos cosmo
grafos francezes , e até nas cartas feitas pelos de Dieppe,
como passámos a mostrar.
Em a carta d'Africa do Atlas inedito feito por João
Rotz , natural de Dieppe , e que este cosmografo dese-
nhára primeiramente para o rei de França, como diz
na dedicatoria , mas que oflèreceo depois a Henri-

(1) Esta carta existe no DèpAl genéral des cartes de la marine,


onde a examinámos.

J I I
— 86 —

que VIII° de Inglaterra , atlas que é datado de 1512,


e que é pintado em 18 grandes pelles de pergaminho,
toda a nomenclatura hydro- geografica que se lê na
costa d'Af'rica occidental é portugueza , e não faz menr
ção entre elles de Petit Dieppe , ou Sestro Paris (1).
Em outro Atlas hydrogeografico desenhado em Dieppe
em 1547, composto de 15 cartas, por Nicolao Val-
lard de Dieppe, o qual pertenceo ao principe de
Talleyrand , toda a nomenclatura geograflca è portu
gueza. O celebre geografo francez Barbiédu Bocage diz
que estes Atlas fôrão feitos sobre as cartas portuguezas
ou copiados destas (2) , e acrescenta que tanto este Atlas,
como o do outro cosmografo de Dieppe Rotz , e a carta
franceza que pertenceo a lord Oxford , e que existe no
Museo Britanico (3) , provão que a Nova Hollanda fôra
descoberta pelos Portuguezes, opinião igualmente adop
tada por Dalrjmple , Pinkerton , de La Rochette, Co-
quebert , e outros.
Em um tratado francez de cosmografia o que tem por
titulo : Les premières heures de Jacques de Vaulx ,
pilote pour le roj en la marine, 1533, se encontrão

(1) Este precioso Atlas existe no Museo Britanico. 20 — E — IX.


Devemos estas noticias ao nosso consocio o Sr ÍVashington da So
ciedade R. geografica de Londres, e a douta generosidade de
Mr Bolmes do Museo Britanico.
(2) Vid. a noticia dada por este geografo no Moniteur universel
de 1807, pag 76i.
(3) Desta carta temos igualmenle varias noticias interessantes
na carta de Mr Folmes do Museo Britanico de 16 de novembro
deste anno , e que nos forão transmittidas pelo S' fVashington .
— 87 —

cinco cartas primorosamente illuminadas , e nellas des


crita a costa d'Africa com nomes portuguezes. Em todas
ellas a nomenclatura hydro-geografica é portugueza.
O cosmografo, para mostrar a dillerença dos meridianos
de cada lugar segundo as longitudes , não empregou ou
tros nomes senão os portuguezes , e os mesmos dados
pelos nossos descobridores. Este interessante tratado é
seguido dlum Mappamundi , e na parte d'Africa deste
todos os nomes são igualmente portuguezes. Em nenhu
ma destas cartas se lêem os nomes de Petit Dieppe ,
nem de Petit Paris (1).
No Atlas inedito de Guillaume Ic Testu , piloto
francez , dedicado ao almirante Coligny em 1555 (2) ,
a nomenclatura é portugueza, posto que estropiada.
A folhas 18, na carta da costa d'Africa ricamente
illuminada se vé no interior pintado o estandarte real
portuguez , e a esphéra arniilar d'elRei D. Manoel.
Sobre o territorio do Cabo de Palmas se vê pintado
outro estandarte portuguez. Depois se vê pintado o
castello de S. Jorge da Mina, flanqueado de 7 bastiões ,
e um enorme estandarte real portuguez no meio. Nesta
interessante carta todos os nomes são portuguezes. Os
nomes de Petit Dieppe e de Petit Paris não appare-
cem nestas cartas.
Em a carta d'Africa que vem gravada na cosmografia
de Belle-Forest , Pariz, 1575, se lêem todos os nomes

(1) Esta obra existe na Bibliotheca real de Pariz. Casa dos


MM. Supplem. francez, n° 194Í5.
(2) F.ste Atlas existe no Dépòt de tu guerre, onde o examinamos
— 88 —

portuguezes, sobre a Casamansa se vê pintado um pe


queno castello. Não se lêem porém alli os nomes de Petit
Dieppe e de Petit Paris. A pag. 1930 , se diz : Castelde
Mine , place bdtie par les Portugais et tant renommèe .
Thevet, Cosmographe du roi, na sua obra publicada
em Pariz no mesmo anno de 1575, diz igualmente que
os Portuguezes edificarão a Mina.
Na carta inedita em pergaminho, datada de 17 de
julbo de 1601, e feita em Dieppe por Guillaume Levas-
seur, todos os nomes são portuguezes, e só tem alguns
traduzidos em francez (1). Não se lê tampouco nesta
earta nem Petit Dieppe , nem Petit Paris, antes se vê
tremolar a bandeira portugueza em S. Jorge da Mina.
Em letra vermelha se lê R. dos Sestos, e nem uma pa
lavra do Petit Dieppe.
Em outra carta d'Africa em pergaminho magnifica
mente illuminada , feita no Havrede Grace, por Pierre
de Vaulx, pilote gèographe pour le roj Van 1613,
todos os nomes, alias numerosissimos, são portuguezes ,
e só alguns se afrancezárão. Não se lêem tampouco
nesta carta os nomes de Petit Dieppe , nem de Petit
Paris (2). Tem pintado o forte da Mina.
Em outra carta mss. em pergaminho feita em 1625
por Dupont de Dieppe, todos os nomes são igualmente
portuguezes, marca o Rio dos Cestos, e não se lê na

(1) Esta carta existe no Dcpôt des cartes de la marine, onde a


examinámos.
(2) Existe no mesmo deposito.
— 89 —

dita carta nem Petit Dieppe , nem Petit Paris (1).


Finalmente, em outra carta d'Africa em pergaminho
feita em Dieppe, por Jean Guerard, em 1631 , se en
contrão pela primeira vez os nomes de Petit Dieppe e
de Rufisque (2) , posto que a nomenclatura seja toda por-
tugueza , ou os nomes traduzidos e estropiados (3).
Ora, como acabámos de ver, se em todas as carlas
d'Africa de todas as nações da Europa, sem exceptuar
mesmo as feitas pelos Francezes durante todo o decurso
do xvi° seculo , os elementos que servirão para a nomen
clatura geografica dellas forão os das cartas dos Portu-
guezes do xv° seculo , e se nas dos mesmos cosmografos
de Dieppe , como são as de Rotz de 1542 , de Vallard
de 1547, de Guilherme Levasseur de 1601 , e de Du
pont , feita em 1625, se não encontra marcado o
Petit Dieppe, e se este nome só apparece pela pri
meira vez na carta de Guérard de 1631, fica bem
evidente que a dita denominação só foi dada ao
ponto junto ao Rio dos Cestos depois do estabele
cimento da companhia dos maritimos de Dieppe e
de Roão, fundada em 1626, isto é um anno depois da
carta de Dupont; tanto mais que a dita companhia
desenvolveo grande actividade , e obteve grandes pro-

(1) Esta carta existe no Dépót des cartes de la marine, onde a


examinámos.
(2) Rufisque n'est qunne corruption de Bio Fresco, nom que le»
Portugais donnèrent à cet endroit. (LaHarpe, Histoire general o
des Voyages, t. II, p. bO.)
(3) Esta carta existe no Dépót general des cartes de la marine.
— 90 —

veitos desde aquelle nnno até 1064, e administrava as


suas feitorias d'Africa por directores da sua escolha ,
e provia aos meios de defeza , sem intervenção alguma
do governo (l). A' vista de taes faculdades , e das provas
que resultão do exame das cartas geograficas, fica evi
dente, em nosso entender-, que entre os annos de 1626
e 1631 os Dieppezes dérão pela primeira vez os ditos
nomes indicados na carta de Guérard, os quaes alias
apparecem depois nas cartas de Sanson de 1669 e em
outras francezas posteriores. Logo fica demonstrado que
tal denominação não remonta ao seculo xiv», como
pretendeo Villaut, e outros que o seguirão, nem entre
os cosmografos de Dieppe , do Havre , e outros que
citámos havia tradição formal das suppostas viagens,
e descobrimentos dos Normandos no seculo xiv°, alias não
deixarião de fazer menção constante daquelles nomes
francezes nas suas cartas.
Se ao importante facto da omissão daquelles nomes
nas cartas ciladas até á de Guérard em 1631 , e ás
provas que tirámos deste exame, juntarmos o que diz
Barros (Decad. 1, liv. III, c. 12) a respeito de Moba-
met-Ben-Man-Zugal , neto do Massa , rei do Songo,
senhor de uma das mais populosas cidades da provincia
de Mandiga , a qual jaz no parallelo do cabo de Palmas ,
isto é a 4,26m K., fica ainda mais comprovada a nossa
asserção. O historiador portuguez diz que o dito rei
respondéra á embaixada que eIRei D. João II lhe man-

(1) Fid. Notices slatistiques sur les colonies françaises, t. III,


p. 144.
— 91 —

dou : « Quasi como espantado de tal novidade (segundo


» vimos em as cartas destas mensagens que temos em
» nosso poder) , o qual declarou que nenhum dos muitos
» reis de que elle descendia, ouvio recado nem men
ti sageiro d'etRei christão , etc. »
Ora, ficando o Petit Dieppe situado na parallela de
5 N., seria possivel não haver naquellas terras tradição
alguma relativa a principes christãos antes do tempo
d'elRei D. João II de Portugal ?
Os reis poderosos, de que Mohamet tinha noticia, erão
os quatro seguintes, àoAlimaem, de Baldac , do rei
do Cairo , e do de Tucurol.
Por este facto se prova da maneira mais positiva
que nenhum credito se deve dar ás suppostas tra
dições relativas á anterioridade das communicações dos
Francezes nestas paragens ás nossas , e que pretendião
ter existido entre os povos daquellas paragens de que
falla Villaut 185 annos depois daquelle facto , e Dapper
mais de dois seculos posterior ao dito facto (I) !

S x.

Continua-se a mesma materia.

Deixando pois demonstrada a epoca em que os nomes


de Petit Dieppe, e de Riifisque , se introduzlrão nas car
tas do seculo xvu°, continuaremos neste §» a citar ainda
outros monumentos geograficos aulhenticos, e alguns

(1) fid. p. 54 desta Memoria , e comparem-se as passagens citadas v


— 92 —

delles ineditos, os quaes reforçâo as provas incontesta


veis da prioridade dos nossos descobrimentos, e afim
tambem de dar uma noticia mais ampla deste interes
sante assumpto.
Na preciosa carta inedita feita pelo celebre piloto
João de la Cosa em 1500 , a costa occidental d'Africa
contém mais nomes do que na de Arrowsmith, e todos
são portuguezes. Entre o Cabo de Palmas e o Cabo das
Tres Pontas se vê pintado um grande edifício com um
grande estandarte quadrado que representa a bandeira
portugueza. No fundo do golfo de Guiné , immediata-
mente ao norte da linha , junto do Cabo Formoso, se vé
um navio com uma flamula, e ao lado deste pintadas tres
ilhas que, segundo a opinião do nosso sabio amigo, e
collega , o Sr barão fValckenaer (1) , são provavelmente
Fernando-Pò , Ilha do Principe , e ilha de S- Thomé.
Mais longe, e immediatamente ao sul da linha, existe
uni grupo de 6 ilhas, e junto deste um navio com a ban
deira portugueza , e a seguinte nota :
Islas nel marc Oceanum Austral.
Todas as bandeiras que se vêem junto destas ilhas em
os navios , são portuguezas.
No Mappamundi hespanhol feito por Diogo Ribeiro
em 1529 (2), que se conserva original e inedito na

(1) Devemos as noticias desta interessante parte da carta de João


de la Cosa ao seu sabio, e benemerito possuidor o Sr barão Waleke-
naer, na carta que nos escreveo em 9 de novembro deste anno.
(2) Diogo Ribeiro era cosmografo do imperador Carlos V°,
desde 1523, llumboldt , Examcn critique de l'Hutoire de la Gco
— 93 —

hibliotheca de TVeimar, vemos de uma copia que possue


M. Walekenaer que Ioda a costa occidental d'Africa
está cheia de nomes , que estes são portuguezes , e
mesmo no interior a partir do Cabo Mesurado , lemos
os seguintes : Mesurado , La Mina de Portogal , etc.
Vemos do mesmo modo em um Mappamundi , com o
titulo Nova et integra universi orbis descriptio , publi
cado na edição de Pomponio Mela com os cotnmentarios
de Vadianus, impresso em Pariz em 154-0, toda a no
menclatura porlugueza nos diversos pontos marcados
na costa occidental d'Africa. Naquella carta , e na dita
costa se lé : Cabo Bojador, Jiio do Ouro , Bahia de
S. Cjpriano , C. d'Arca , C. Verde , R. Grande , Serra
Leoa, C. do Monte , etc.
É pois evidente que tanto para esta carta , como para
as anteriores servirão d'elementos as cartas portuguezas
antigas. Não se lêem porem nestas cartas tampouco os
nomes de Petit Dieppe , nem de Sestro Paris , apezar de
se achar junta á parte que foi impressa em Pariz no dita
anno de 1540.
Acrescentaremos a estas provas mais uma nomencla
tura geografica que eucontrámos u'uma relação de um
capitão de Dieppe, e por isso tanto mais importante
para o nosso caso , a qual foi publicada pelo celebre
fiamusio (lom. Ill da sua coll. 1356) no $° Del Viaggio
che si/a nella costa de la Guinea (da viagem que se faz
na costa da Guiné). Esta relação é do tempo de Fran-

graphie clu nouveau continent , ediç. em-8°, t. 111, p. 184, passim.


Navarrete, t. 111, p. 306.
— 94. —

cisco 1°, e portanto anterior a 1547. A dita nomenclatura,


como o leitor vai vêr, é não só portugueza , mas o que é
mais importante , é , que o autor da viagem , apesar de
ser marítimo de Dieppe , descrevendo todos os nomes
portuguezes dos portos, não descreve , nem falla no Petit
Dieppe , nem em Sestro Pariz, nem em Rufisque, nem
na supposta prioridade dos descobrimentos dos Nor
mandos naquella costa, mencionando alias pelo que res
peita á America , e outras partes , as nações que desco
brirão aquelles paizes. Os nomes que alli se encontrão
são os seguintes : de Cabo Verde ao Gambia (Gambra)
marca a distancia. Deste a C. Roxo, deste ao R. Grande,
deste á Serra Leoa , e desta ao R. dos Cestos , e ao C. de
Palmas , deste ao C. das Tres Pontas , R. do Gado ,
deste ao C. Formoso, deste ao R. Real, deste a Fer-
tiando-Pò , deste ao C. de Lopo Goncalvez , deste ao
Manicongo , situado a 6 de lat. austral , etc.
As provas indubitaveis da prioridade dos nossos des
cobrimentos autimentão a proporção que se examinão
os documentos antigos, e anteriores a Villaut; e mais
se fortificão pelo exame dos monumentos geograficos dos
mesmos Dieppezes.
Se pois no tempo em que viveo aquelle viajante de
Dieppe, o qual era alias instruido, existissem mesmo
simples tradições dos suppostos descobrimentos dos seu?
compatriotas effectuados na Africa Occidental , elle não
deixaria por certo de as mencionar, bem como os nomes
postos pelos seus mesmos compatriotas a alguns pontos
daquella costa. Aquelle viajante antes se queixa de que
nós impedissemos os Francezes de hirem commerciar á
— 95 —

Guiné, ao Brasil , e á Taprobana , e as razões que allega


limitão-se ás seguintes , a saber : que logo que os Portu-
guezes navegão ao longo de uma costa della se apossão,
e a considerão como sua. Posto que este povo (o Portu-
guez ) seja o mais pequeno de todo o globo ! este não
lhe parece assaz extenso para satisfazer a sua cubica.
Parece ( exclama elle ) que os Portuguezes bebérão do
pó do coração do rei Alexandre para mostrarem uma
tão desmedida ambição, etc.
Deixando pelo que acabamos de transcrever provado
por mais outro documento normando que no tempo de
Francisco I" não bavia tradição entre os Dieppezes dos
seus sup postos descobrimentos no xiv° seculo na costa
Occidental d'Africa , deixando provado que este mesmo
viajante mencionou os pontos maritimos da dita costa
pelos nomes portuguezes que realmente tinhão, e que
attestavão a nossa prioridade pelos motivos que acima
ficão referidos, passaremos agora a citar outros monu
mentos geograficos de grande importancia.
Em duas cartas d'Africa do precioso Atlas inedito ,
feito pelo cosmografo portuguez João Freire em 1546(1),
se \ê toda a costa d*Africa coberta de infinitos nomes

(1) Este interessante monumento geografico existe na preciosa,


c selecta livraria do S' barão Taylor, que com douta franqueza nos
deu conhecimento delle. Compõe-se de 7 cartas em pergaminho,
illuminadas; a execução caligraphica é perfeitamente executada.
Na 7" folha se lè o nome do cosmografo , e a data que citámos
acima.
Sobre a Tcrra-Nova tem o estandarte real portuguez pintado, e
todos os nomes dos portos, enseadas, e rios são portuguezes.
— 90 —

portuguezes. Gomo um signal indicativo do domínio


maritimo no Oceano, se vêem pintados varios navios em
diversos pontos, principalmente da costa d'Africa , com
a cruz da ordem de Christo pintada nas velas. Na costa
occidental d' Africa se vêem pintadas as bandeiras reaes
portuguezas junto a Arguim , apanhando todo aquelle
territorio, vendo-se depois outra sobre o Senegal e
Cabo Verde. Na segunda carta d'Africa se vê outra vez
a bandeira real portugueza no Cabo Verde , e a haste
se extende 'sobre o Senegal. No Hio Grande seWê um
estandarte encarnado com duas pontas, a 1* de ouro, e a
2ad'azul, tendocada um uma meia lua pintada no centro.
No interior se vê pintada uma cordilheira de montanhas,
e um leão rompente na extremidade destas , isto é na
Serra Lcôa. Junto do Rio do Lago e da Aldea das Al-
rnadias , se vê pintada outra bandeira* portugueza (1).
Em outra grande carla em pergaminho feita em Se
vilha em 1550 , por Diogo Gutierres , cosmografo hes-
panhol (2) , todos os nomes que se lêem na costa occi
dental d'Africa desde o Bojador até ao Cabo de Palmas,
onde se termina a carta , são tirados de cartas portu-
guezas anteriores.
Na grande carta inedita feita pelo cosmografo portu-
guez André Homem em 1559, toda a nomenclatura é

(1) fid. a nomenclatura lirdro-geografica no Appendix.


(2) Esta carta existe no Dcpôt général des curtes de In marine ,
onde a examinámos, e é a mais antiga carta inedita que se acha
naquella repartição, segundo nos affirmou o benemerito conser
vador, e se vè do catalogo.
— 97 —

portugueza , e se vêem as armas reaes portuguezas , pin


tadas sobre a Guiné (t).
Em outra carta d'Africa do Atlas do cosmografo por-
tuguez Lazaro Luiz, que se conserva original e inedito
na bibliotheca da Academia real das Sciencias de Lisboa ,
o qual foi feito em 1563 , se vé por detrás da costa que
corre des d'o Casamansa até ao Rio das Pontas, uma
grande serra que se ex tende, e no alto da qual está um
leão rompente sustentando na mão direita , que tem le
vantada , aí quinas de Portugal , e por cima do leão ha
umas lettras grandes que dizem Africa , e nesta porção
da costa comprehende-se a Serra Leôa. O nosso consocio
o Sr J. J. da Costa de Macedo , que teve a bondade de nos
enviar esta nota acerca da carta d'Africa deste Atlas ,
acrescenta, que lhe não parece que as quinas portu
guezas sejão relativas á porção da costa que está con
tigua á Serra, mas que a Serra indica parte das mon
tanhas do interior d'Africa , e as lettras que dizem :
o Africa , postas por cima do leão , designão o dominio
portuguez em todo aquelle paiz. »
Outras cartas d'Africa de outro Atlas inedito , feito
emAIessina em 1567, por Joan Martines (2), primoro
samente illuminado, e os nomes escriptos na maior per-

(t) Esta carta illuminada , a qual tem 7 pés de largo, existe no


Dépót géographique et topographique du miniitère des affaires étrnn.
geres, onde a examinámos. Tem a seguinte inscripção : « Andreas
Homem, cosmographus lusitanus , meJaciebat Antuerpia: nn. 1557. »
(2) Este precioso Allas compõe se de 6 cartas , e pertenceo á
celebre bibliotheca de Heber, donde passou pera a de M. Ternaux-
Compans.
— 98 —

feição , se vé Ioda a nomenclatura portugueza apezar do


cosmografo ser Hespauhol. Vê-se igualmente entre o Rio
de S. Bento , e o Rio dos Camarões, pintado um grande
castello com o estandarte real portuguez. Tem outras
bandeiras portuguezas ao sul , e na parte oriental. Mais
abaixo do golfo de Guiné se vêem dois grandes navios
com a bandeira portugueza no tope do mastro grande ,
navegando na direcção do cabo da Boa-Esperança.
Na carta da Asia se vêem pintados os estandartes
portuguezes em Calecut , e em Camhaya , e no Oceano
Indico se vêem pintados dois navios portuguezes tendo
não só a bandeira azul portugueza com as cinco quinas
nos mastros , mas tambem pintada nas velas a cruz da
ordem de Cbristo , um delles navegando entre as Mal
divas , e Socotora , bindo na direcção do cabo da Boa-
Esperança , e o outro na direcção de um estreito no qual
se lê passo entre uma grande ilba na qual se lê em
italiano : « Qui nela Java majori , lidonni siabruxano
» vivi dipoi morto il suo marito , » e na outra ilha se
lê Java menor. No mar do Sul o cosmografo pintou
igualmente dois navios portuguezes , um navegando
na direcção do Sul, e o outro na de Leste. Do mesmo
modo se vé outro navio portuguez pintado na parallela
do Rio da Prata , navegando na direcção do estreito de
Magalhães.
E evidente que o cosmografo quiz mostrar pela pin
tura dos navios portuguezes navegando em todas as di
recções no Atlantico, no golfo de Guiné, no mar Indico,
no mar do Sul , e na direcção dos dois cabos que termi-
não a Africa, e a America, é evidente, dizemos, que rluiz
— 99 —

mostrar que os Portuguezes erâo ainda naquella epoca a


nação dominadora naquelles mares, do mesmo modo
queao largo do golfo do Mexico, e do archi pelago das An
tilhas , se vêem doisnavios hespanhoes, e posto que já na
quella epoca os navios mercantes de outras nações navega-
vâo naquelles mares, comtudo o cosmografo não represen^
tou nem um só , em razão daquellas viagens serem pela
maior parte clandestinas , e de nenhum modo da natu
reza das dos Portuguezes e Hespanhoes , unicas nações
que então dominavão naquelles extensos mares, e vastas
regiões (1).
E pois por estas particularidades que as cartas geo
graficas antigas são da maior importancia , não só como
monumentos geograficos , mas ainda mais como monu -
mentos historicos de irrecusavel authenticidade.
Vemos tanto no Mappamundi do Theatrum orbis
Terrarum do sabio Ortelio , cognominado o Ptolomeo
moderno , como na carta d'Africa da primeira edição
daquella preciosa obra publicada em 1570, que elle
adoptára a nomenclatura hydro-geografica portugueza.
Na carta da costa occidental d'Africa do famoso Atlas
do cosmografo portuguez Fernão Vaz Dourado , feilo
em 1571, da qual lemos á vista uma copia tirada com
admiravel nitidez, e fidelidade, no Archivo real da Torre
do Tombo , não só se encontra a maior parte da nomen
clatura portugueza das cartas precedentes , mas ainda,

(1) Comparc-se esta particularidade com o que referlmos arima


guando tratámos da carta de João Freire, feita em 1546, na qual o
cosmografo pintou igualmente os navios portuguezes.
— 100 —

além dos nomes que se lêem nas dos cosmografos ante


riores, se vêem outros igualmente portuguezes, que nas
mesmas se não encontrão. Entre o Senegal e o Gambia ,
se vê pintado o escudo das armas reaes portuguezas.
No interior da Guiné se vê pintado outro escudo das
mesmas armas de maior dimensão do que o precedente ,
e por baixo se lê : Mtiopiae interior ; e entre o Rio
Formoso, e o Rio de S- Bento, se vê um grande estan
darte com a cruz da ordem de Christo em uma haste.
Do mesmo modo se vê pintado outro estandarte com a
cruz da mesma ordem no Rio S. Francisco.
Em quanto pois este nosso cosmografo se occupava em
dotar a sua patria com um tão interessante monumento
geografico , as edições do Thcatrum orbis iVOrtelio se
multiplicavão na Europa (1), e nas cartas d'Africa dellas
a nomenclatura hyd ro - geografica portugueza , e em
nenhuma destas se vê marcado o Petit Dieppe.
Se o snbio que acabámos de citar admittio a nomen
clatura geografica portugueza na costa d'Africa occi
dental , como a unica conforme com os factos authenticos
do descobrimento verdadeiro e real daquella parte da-
quella região ; se elle admittio , e citou como authentica
a autoridade de Barros, outro sabio geografo dotado
tambem de profundos conhecimentos , não se desviou
tampouco do caminho da verdade.
Com efleito Livio Sanuto , que lêra e estudara as
obras dos historiadores, e dos viajantes; que compulsara

(1) f/á edirflesde 1573, 1575, 1578, 1587, e em francei 1592.


1595.
— 101 —

os diarios dos navegantes , afim de poder desenhar as


cartas com maior exactidão do que todas as que té então
se conhecião, e de quem Purchas diz que fora o A. que
descrevéra a Africa com maior exactidão ; este geografo
pois, nas cartas d'Africa que elle mesmo desenhou, e que
acompanhão a sua obra , que se imprimio em 1588, con
servou toda a nomenclatura hydro -geografica portu-
gueza , e além disso juntou a alguns destes nomes a
historia dell es. Citaremos apenas os exemplos seguin
tes , os quaes augmentão ainda mais o grande numerode
provas em nosso favor, e servem de novos argumentos
para refutar as pretenções de Villaut e dos que o se
guirão.
Diz pois que o Cabo Bojador fora assim chamado
pelos Portuguezes que forão os primeiros que o desco
brirão (1) -, que o commando do castello d'Arguim se déra
a Soeiro Mendes em 1441. Fatlando da costa da Mala-
guetta e da Guiné (2) , diz que as difíerentes caravanas
de Negros vinhão commerciar com os Portuguezes ; e
acrescenta que a costa da Malaguetta fóra assim cha
mada pelos Portuguezes pela abundancia desta especia
ria , e não pelos Normandos , como Villaut inventou
79 annos depois de Sanuto. Tratando da Mina, diz que
fora descoberta por João de Santarem em 1471 , e que
o castello fôra alli construido por elRei de Portugal , e
acrescenta que alli só hião os feitores d'elRei de Por
tugal.

(\) r„t. fol. 77.


llnd. foi. 87.
— 102 —

Forâo os mesmos elementos da nomenclatura hydro-


geograflca portugueza , que servirão a Hondius para a
carta d'Africa da edição de Mercator, publicada em
1609. Nesta carta se vè na Casamansa um castello , e
na costa de Guiné não só a nomenclatura é portugueza,
mas além disso se lê nesta lingoa longe da costa a se
guinte nota :
a Aqui está outra corte de Jalqfos. »
Estas cartas são feitas rom tal miudeza e exactidão ,
que o simples exame dellas mostra que forão feitas de
pois de maduro estudo , e profundo conhecimento das
cousas daquella parte d'Africa bebidas em fontes e re
lações portuguezas como as mais exactas e veridicas.
Até na ilha de S. Thomé se indicão as propriedades e os
nomes de alguns senhores d'engenhos d'açucar !
Encontrámos os mesmos elementos portuguezes na
carta de ou Ira edição de Mercator, publicada em Amster-
dam em 1632, e no Mappamundi de Hondius de uma
edição á'Ortelio, publicada em Amsterdam em 1641,
no qual, do mesmo modo que nas precedentes, se não lé
o nome de Petit Dieppe , apezar de ser dedicada aos
doctissimis viris DD. David Sanclauro , Antonio
fVillon, e Martino Matheseos , professores da Acade
mia de Pariz.
A' vista pois desta deducçâo fundada nos documentos
da mais incontestavel autoridade , documentos que se
achão, além da sua propria authenticidade , em harmo
nia com as relações, historias, e chronicas , igualmente
aulhenticas, e contemporaneas ; á vista da evidencia de
taes provas da prioridade dos descobrimentos dos Portu
— 103 —

guezes naquella parte do plobo , nem o espirito mais


rebelde á verdade poderá recusar a importancia decisiva
dellas:
XI.
Mostra- se que as historias de França, e as mesmas chronicas
normandas dos seculos xiv° e xv°, não fazem menção alguma
dos suppostos descobrimentos dos Normandos na costa dAfrica
occidental.

No § IIIo mostrámos que as cartas anteriores aos


nossos descobrimentos além do Cabo Bojador, isto é
a dos dois irmãos Pizigani, de 1367 (1), a do Atlas cata
lão da Bibliotheca real de Pariz , ao qual assignão os
geografos francezes a data de 1375 (2), não continhão
indicados nomes alguns geograBcos europeos além do
dito Cabo Bojador. Na primeira destas cartas se lé o se
guinte na linha que corresponde ao Cabo Bojador :
« Caput finis Africce et terra? occidentalis. »
Na segunda não se lé além do Cabo Bojador nem um
só nome sobre a costa , antes se vé a seguinte nota que
o desenhador colocou um pouco mais abaixo do cabo para
dar logar ás grandes barracas que pintou no deserto.
A nota diz pois : Cabo Finisterre. É aqui que co-

(1) Vide sobre esta carta a brochura intitulada : De l 'Anciennelc


de la Mappemonde det freret Pizigani, exécuiée en 1367. Deux
lellres de M. Pezzana , conservateur de la Bibliothèque de Parme.
Génes, 1808.
(2) Sobre as discussíies <|ue se agitarão ultimamente acerca da
data desta rarta , vid. n Jornal Inglez Ithenremn de 18d'Abril, tfi
de Maio, 6 e 20 de Junho de 1840.
— 104- —

meça a Africa que se termina em Alexandria e Ba-


bylonia. Esta pane daqui e comprehende toda a costa
de Barbaria na direcção d'Alexandria , e para o
meiodia em direcção da Ethiopia e do Egypto.
E não diz uma palavra da costa occidental.
Deixámos pois assim demonstrado que antes das
nossas navegações e descobrimentos se não encontrão
marcados nomes alguns na costa occidental d'Africa que
corre além do Cabo Bojador, e nos precedentes §°* IX°
e X° levámos em nosso entender á maior evidencia, pelo
exame das cartas dos x v° e xvi* seculos, que só desde en -
tão aquella costa fôra marcada nas cartas geograficas', e
coberta de nomes portuguezes os quaes servirão d'ele-
mentos á cartographia de todas as nações da Europa.
Mostrámos finalmente que o nome de Petit Dieppe só
se encontra pela primeira vez em uma carta de um cos
mografo daquella cidade datada de 1631.
Além destas provas irrecusaveis da prioridade dos
nossos descobrimentos naquella parte do globo, jantá
mos outras de igual importancia, a saber os testemu
nhos de AA. contemporaneos; agora diremos, que em
quanto por parte de Portugal existem estes titulos in
contestaveis , pelo contrario pela dos Normandos, assim
as Historias de França contemporaneas , bem como as
chronicas de Normandia , não dizem uma só palavra
sobre os suppostos descobrimentos dos Dieppezes do
xiv° século. Os mesmos escriptores normandos o ron-
fessâo como mostrámos já nesta memoria.
Com edeito o celebre Froissart não diz uma palavra,
nem tampouco as grandes chronicas de França con
I

— 105 —

servadas emS. DenizM), posto que ftlli se trate mui d'es-


paço dos acontecimentos occorridos durante o reinado
de Carlos V de França , nem uma palavra se diz acerca
de taes, e tão importantes factos, isto é dos suppostos
descobrimentos na Guiné pelos Dieppezes.
O mesmo acontece áschronicas normandas antigas em
gothico impressas em Pariz por Jeham Saint Dinis, e
noutra publicada em Roão por Richard Macè , a qual
M. Brunet (2) juljra ser uma nova edição da de 1483,
nem uma só palavra se diz acerca dos taes suppostos
descobrimentos ; antes pelo contrario , no cap°. 208 de
uma destas chronicas impressa em Roão em caracteres
gothicos por Pierre Regnauld , alias sem data do anno
d'impressão , lemos o seguinte :
« Au temps de ce bon roy Charles le Sage , fut le
» royaume de France en grande adversitè à cause des
» Anglois et Navarrois qui étoient en grande puissance
» sur les cbamps comme en plusieurs bonnes villes , ci-
» tez et chateaux, et faisoient forte guerre en Norrnan-
>- die. »
A esta passagem, que alias nos mostra a impossibili
dade em que seachavão naquella epoca os Normandos, na
presença daquellas guerras, de tentarem, e muito menos
de levarem a efíeito descobrimentos em paizes tão remo
tos , acrescentaremos outra exlrahida do autor da His-

(1) Grandes chroniques de France, selon qu'elles sont conservées


á Saint-Denis.
(2) Vid. Manuel du Libraire et de I'Amntcur. — Nouvclles fíe-
cherches, etc.
— 106

toire de la Marine (1), o qual, tratando do mesmo reinado


de Carlos o Sabio, diz « que a guerra duràra continua
damente com os Inglezes, » o que obrigara este principe
a conservar armarlas as suasescuadras, e termina : « Mais
» comme il ríètait pas en ètat de soutenir la marine
» a cause de 1'épuisement ou se trouvait le royaume ,
» il Jit alliance avec Henri , roi de Castille , qui lui
» preta des vaisseaux . »
Se em as chronicas que citámos acima se não encontra
uma só palavra acerca daquelles suppostos descobrimen
tos, tampouco se faz menção destes na obra intitulada
« Histoire et chronique de Normandie , revue et aug-
■ mentée outre les precedentes impressions, » impressa
em Roão em 1610.
Esta chronica , apezar d'acrescentada e de ter sido
publicada em uma epoca mais recente, e já depois dos
Dieppezes terem frequentado em viagens clandestinas as
costas d'Africa occidental na parte que comprehende o
Gambia, e mesmo alguns portos situados no golfo de
Guiné, não diz uma só palavra dos suppostos descobri
mentos delles no xiv° seculo quando trata do reinado de
Carlos V, tempo em que alguns modernos escriptores
francezes dizem que elles se efíectuárão.
Esta omissão adquire maior importancia pela data
de 1610, e que esta se combina com a omissão do nome
de Petit Dieppe nas cartas dos cosmografos de Dieppe

(1) fid. Boismeslé, Mstoirc gencrale Ac In marine. Paris, 1754,


t. 11 , p. 335 e seguintes.
— 107 —

João Rotz de 1542, Guillnume Levasseur de 1601 , e


de Dupont de 1625. (Vide §° IXo, pag. 85 a 87.)
No fim destas chronicas vem uma descripção da Nor
mandia extrahida da chronica inedita composta por
Jean Nagerel, impressa a dita descripção igualmente
em Roão no mesmo anno de 1610.
Esta relação, apezar de ser mui circumstanciada, e do
A. tratar da denominação de iVeiwína desde a destruição
de Troya ate á vinda de Rollo (Raoul o Dinamarquez)
com os seus Normandos , e de trazer algumas memorias
chronologicas , nestas se não faz menção das viagens dos
Dieppezes.
Ora se em 1610 houvessem tradições das suppostas
viagens e descobrimentos dos mercadores de Dieppe , e
de Roão, destas se teria feito alguma memoria na minu
ciosa e circumstanciada relação da entrada publica em
Roão de Carlos IXo em 12 d'agosto de 1563, e das
festas que então se fizerão naquella cidade, nas quaes as
autoridades e magistrados de Roão fizerão representar em
alegorias' nas columnatas , nos arcos de triunfo , tudo
quanto a imaginação, e a mythologia lhes suggerira; alli
não vemos mencionada nenhuma relativa á supposta
tradição que se diz existir agora entre os Normandos
dos suppostos descobrimentos da Guiné, nem vemos a
menor allusão áquellas fabulosas navegações nos dis
cursos feitos pelas ditas autoridades, nem nos do parla
mento.
Em quanto pois as chronicas de França do xiv° seculo
e as antigas chronicas de Normandia passáo em si
lencio aquelles suppostos descobrimentos, um chronista
— 108 —

portuguez dotado d'immensa erudição, contemporaneo


dos descobrimentos dos Portuguezes, que tinha fallado
comos descobridores, finalmente Azurara, na sua Cfiro-
nica da conquista de Guiné, diz no capitulo 30, fallando
da viagem de Deniz Dias , e do descobrimento de Cabo
Verde : « Filharon daquelles quatro , os quaes forom os
* primeiros que em sua propria terra forom filhados por
» Xpaãos (Christãos), nem ha hi cronica nem estorya
» em que se conte o contrario. »
Em quanto o illustre infante D. Henrique dizia ao
papa Nicoláo V, « que não tinha noticia , que nunca,
» pelo menos que se houvesse conservado na memoria dos
» homens que houvera costume de navegar o mar Ocea-
» no para as regiões meridionaes, e orientaes , sendo o
» mesmo mar (acrescentava elle) desconhecido anósoc-
» cidentaes que não tinhamos nenhuma noticia certa
» daquellas regiões, etc. (1). »
Basta ser mediocremente instruido para saber que a
corte de Roma era certamente a mais bem instruida de
todas acerca do que se passava em toda a christandade;
se alli pois constasse que os Dieppezes , e outros subdi
tos de França, não só tinhão descoberto aquel las re
giões africanas , mas que alem disso alli havião fundado
estabelecimentos nos quaes os ditos Normandos devião
precisamente ter introduzido o culto , e religião catho-
lica, a chancelaria romana não sanccionaria o que dizia
o Infante, não daria todo o peso da sua autoridade a
um facto contrario á verdade. Mas não, em Roma não

(1) Vià. pag. 26 desta Memoria , § IV.


— 109 —

havia conhecimento de taes descobrimentos , nem de


taes feitorias dos Dieppez«s do xiv° seculo; do mesmo
modo que o não havia em parte alguma, sem exceptuar
mesmo a França , como nos é attestado pelas suas chro-
nicas e historias contemporaneas , e pelas da Norman
dia , que acabámos de citar. E por outro lado seria
absurdo monstruoso suppôr que o Infante , abas tão
instruido nas sciencias , e na historia, como nos attestão
os AA. e documentos contemporaneos, e a universal
opinião dos estrangeiros do seu tempo, e que além
disso tinha relações até em pontos remotos da Irlanda ;
seria absurdo, repetimos, suppôr que este principe igno
rasse taes factos , quando Villanl (1), e os que o segui
rão , nos dizem , que o commercio e relações dos mariti
mos da Normandia com aquella parte da Africa conti
nuarão até 1410, isto é até 2 annos antes daquelle
illustre principe mandar fazer as primeiras navegações
dos descobrimentos !

s xii.

Ponderão-se algumas razões que mostrào a inverosimilhança de


poderem os maritimos de Dieppe attravessar o Atlantico no
xiv° seculo, e hirem directamente á parallela de 5 grãos Norte
da equinoxial.

Mostrámos no §° precedente que aschronicasde França


do xiv° seculo, e as antigas chronicas normandas guar-
darão silencio sobre os suppostos descobrimentos dos

(t) Vid. pag. 52 desta Memoria, § VIo.


— 110 —

Dieppezes naquelle seculo; mostrámos que tanto nas di


tas chronicas , como na obra de Boismeslé, se nos refere,
que no reinado de Carlos V, cognominado o Sabio, as
guerras continuarão , e que este rei se não achara em
estado de conservar a sua marinha armada ; agora acres
centaremos : 1° que não é presumivel que em tal epoca,
e quando o soberano era obrigado a pedir navios ao rei
de Castella, que os seus proprios subditos podessem dis
por tranquillamente, como no remanso da paz, dos seus
uavios, e equipar expedições regulares para attravessa-
rem o Atlantico , afim de descobrirem a Guiné , e alli
fundarem estabelecimentos ; 2° que o estado da marinha
naquella epoca não permettia taes expedições, segundo
a confissão d 'um escriptor normando (1) que vamos tex-
toalmente produzir.
« Dans cette époque, les sua esseurs de Philippe-Au-
guste furent obligés d'acheter ou de louer des navires
» aux republiques de Genes , de Venise, et de Pise, pow
» subvenir à Cinsuffisance des bâtiments qui apparte-
» naient a leurs sujets. L'état navait pas de marine mi-
» litaire, les rois ne commencèrent qu'au xiv° siècle à
» posséder quelques galères , nefs, ou caraques, qu'ils
» achetaient aux republiques italiennes. »
Oiçamos ainda o que diz este A. , alias o maior de
fensor da existencia dos descobrimentos dos Dicppezes.
« Cest bien sous les funestes règnes de Philippe de
» Valois et de Jean, son fils , que 1'on peut dire qu'il
» n etait plus question de commerce. Les sanglants dé-

(1 ) fid. ElUncelin, fíecherchcs , png. 70.


— 111 —

» mélés des marins anglais des Cinq Ports avec ceux de


» la côte de France, auxquels succédèrent les desastres
» de la bataille de VÊcluse [1340] (1), ou le plus
» grand nombre de navires normands furent pris ou
n coulés i 1'acharnemcnt de la guerre continentale et
» maritime avec 1'Angleterre ; les suites des batailles
» de Crécj (1347) et de Poitiers (1 356) ; la guerre de la
» Jacquerie, la guerre civile allumée et entretenue en
» Normandie par Charles le Mauvais : telles sont les
» causes dont nous inférons que la slagnation du com-
» merce de Dieppe dut étre complète pendunt plus de
» trente ans (2). ■
Villaut, sobre o credito do qual já temos dito bastante,
pretendeo, para dar uma apparencia maior de verdade á
sua relação , que « comme la France commençait à respi-
» rer sous Chat les Vdes guerres et malheurs quelle avait
» soufferts sous le rojJean, son père (3) , » que fôra então
que os mari timos de Dieppe emprehendérão as taes sup-
postas viagens de descobrimento. Todos os escriptores
que adoptárão aquelle supposto facto, repelirão esta
mesma asserção de Villaut , sem mudarem sequer unia
palavra. Mas pelas passagens que acima transcrevemos
se vé qual era o estado da França, e sobretudo da Nor
mandia, no xrv° seculo e no tempo de Carlos V, e que no
reinado deste soberano , aquelle estado, principalmente

(1) Os escriptores francezes dizem que esta frota se compunha


de 120 velas a bordo da qual se achavão 40,000 homens.
(2) Vid- Recherches sur Us voj-ages des navigatcurt normands ,
pag. 117.
(3^ Villaut, pag. 409.
— 112 —

ua parte relativa á marinha, não melhorara, e que as


mesmas chronicas normandas antigas provão que os
males contiouárão, e que os Inglezes fazião forte guerre
en Normandie.
Ora não é possivel presumir que immediatamente
depois dos desastres navaes da batalha de l'Écluse, na
presença da guerra civil , e da guerra com os Inglezes
que se achavão senhores da navegação no canal da
Mancha , onde Dieppe se acha situado , quando Carlos V
pedia navios a elRei de Cas Lella; como era possivel, dize
mos, que os Dieppezes emprehendessem então não só
uma viagem de descobrimento atra vez do Oceano At
lantico até á Guiné , mas que de mais a mais alli envias
sem regularmente expedições todos os annos , como diz
Villaut , e aquelles que o seguirão?
Taes expedições , e taes viagens só se emprehendem,
e executão em tempos pacificos , e além disso , um povo
maritimo não restabelece em oito annos a sua marinha
depois daniquilada.
As grandes navegações , e descobrimentos dos Portu-
guezes não começarão senão muito tempo depois da
grande victoria d'Aljubarrota , e depois da tomada de
Ceuta, quando Portugal estava forte e em paz , quando
a sua marinha, longe de ter sido destruida nos rei
nados precedentes como a da França, antes fôra pro
gressivamente augmentada.
Por outra parte, ainda quando tudo quanto temos
observado nesta memoria, não levasse á maior evidencia
que os ditos descobrimentos dos Dieppezes do xiv° se
culo não podem ser adinittidos como factos reaes, e ver
— 113 —

fladeiros a seguinte circumstancia os faria duvidosos , c


sospeitos.
Os AA. modernos que sustentão aquelle supposto
facto, parecem indicar que as expedições dos Dieppe-
zes se dirigirão logo á Guiné (1), mas taes navegações,
e sobretudo a fundação dos estabelecimentos em Africa ,
devião ter tido principio da parte mais conhecida dos
Europeos para a mais desconhecida ; elles devião pois
ter começado, do mesmo modo que começarão os dos
Portuguezes , isto é pelo Cabo Bojador , e seguirem
gradualmente para o sul , e isto por expedições successi-
vas , tanto mais que os Portuguezes, apezar da proximi
dade daquelle continente, e das antigas , e não inter
rompidas relações que tinhão com os povos da parte
septemtrional d'elle , apezar do adiantamento que já
então tinhão dos conhecimentos nauticos , apezar disso
forão-lhes necessarios 12 annos d'esforços , e de tentati
vas feitas pelo infante D. Henrique para conseguir que
os seus maritimos passassem além do Cabo Bojador.
Ora se fôra pelo interesse commercial, como os ditos
AA. dizem, que elles fizerão aquellas navegações, e des-
cobrimeutos, estes devião começar por frequentar o Rio
do Ouro, ponto o mais proximo, e por onde podião
commerciar com o interior; devião seguir de lá a Ar-
guim, e frequentar aquelle porto para dalli seguirem
para o Gambia , e para a Guiné. Mas o mesmo P. Labat
(Relations d'Afrique) diz : « En 1678 les Français sy

(1) fid. nas addiçiies.


8
— tu —

» établirent pour la première /ois, et le fort portugais


» fut miné , etc. »
Por outra parte o estado da cartografia do xiv° seculo
(Vide as cartas citadas no §° precedente) mostra , repe
timo-lo , que taes viagens são insustentaveis, e os mes
mos geografos francezes mais illustres são as melhores
autoridades que invocámos neste ponto para refutação
das suppostas navegações dos Dieppezes no xiv° seculo.
M. Walekenaer (1) diz : « Les premiers géographes du
» quatorzième siècle , qui ne connaissaient que la petite

(1) M. Walekenaer, Histoire générale des voj-ages, t. 11, p. 241 ,


observa o seguinte que nos parece coneludente, tanto mais que
estas reflexões são feitas por um dos mals illustres, e mais profundos
geografos n3o só de França , mas dos nossos dias :
• La preuve qu'apporte le P. Labat d'une assertion qui enlèverait
» aux Portugais la gloire d'avoir franchi les premiers le Cap Bojador,
» le Cap Vcrt , et d'être les premiers parvenus au Sénégal , c'est que
• les Dleppois avaient associé les marchands de Rouen dans leur
» commerce aux côtes d'Afrique par un acte du mois de septembre
» de 1365. Comme on ne dit pas de quelles côtes d'Afrique il s'agit
» dans cet acte, il n'est pas douteux , si toute/bis il a existé, qu'onj-
» désignait les côtes d'Afrique baignées par la Méditerranée, qui
» jamais n'ont cessé d'être connues de toutes les nations de l'Europe ,
» et d'être visitées par des vaisseaux français. » ( fid. p. 14, $ 11°
desta Memoria.)
O mesmo sabio diz em outro logar (p. 242) : «....Nous devons
» déclarer à nos lecteurs que les prétentions des Dieppois aux décou-
» vertes des côtes occidentales d'Afrique, et leur voyage le long de
» ces côtes jusqu'à Scrra-Lcone antérieurement aux Portugais, ne
» soutiennent pas le plus léger examen , et quolque l'abbé Prévost el
» un grand nombre d'écrivains aient adopté le récit du P. Labat ,
— 115 —

« portion des côtes d Afrique qui s'étend à l'ouest jus-


» qu'au Cap Bojador, avaient coutume de terminer à
» cette latitude ce grand continent par une li^ne qui
» formait le cadre de leur carte , ainsi qu'on peut le voir
» par la carte collée sur bois .qui est à la Bibliothèque
» du Roi. Mais comme l'ouvrage d'Édrisi et les relations
» des Arabes avaient donné connaissance à ces géogra -
» phes de Timbouctou, de Melli, du pays de Guinée, de
» plusieurs contrées du Soudan , et du grand fleuve qui
» le traverse , ils entassaient tous ces détails sur leurs
» cartes, immédiatement au delà de VAtlas et à la hau-
» teur du Cap Bojador, afin de ne pas descendre plus
» bas vers le sud que le point connu sur la côte , et de
» se renfermer dans le cadre tracé d'avance (1). »
Esta "interessante passagem deste sabio geografo cor
robora da maneira mais evidente as nossas asserções,
tanto mais que elle acrescenta em outra parte :
m Les Portugais, qui ouvrirent aux nations de l'Eu-

- ce n'est pas moins une grossière imposture, à laquelle nous n'au-


• rions pas même accordé l'honnenr d'une réfutation , si beaucoup
• d'hommes respectables , entraînés par un faux zèle pour la gloire
» de leur patrie, n'avaient cru devoir la reproduire, etne l'avaient
• accréditée par leurs suffrages; et si même elle n'avait été mise,
» en quelque sorte, au rang des vérités reconnues, etc. <>
(t) V^id. Walekenaer , Recherches sur l'histoire de l'Afrique,
pag. 187. Paris, 1821.
O mesmo sabio diz, pag. 194 da obra citada : • Lorsque les
» Portugais eurent découvert le Sénégal et la Cambie (e portanto a
» Oasamansa), ils ne doutèrent pas que les embouchures de ces
» deux fleuves ne fussent celles du Niger, etc.»

il I I
— 116 —

» rope la carrière des dêcowertes , furent aussi les pre-


» miers qui se procurèrent d'une manière directe des
» notions sur Timbouctou , etc. »
Com effeito, nas cartas que existem , e já citámos, dos
fins do xiv° seculo, a parte da costa occi dental d'A-
frica termina no Cabo Bojador, ou junto delle; mas
apenas os Portuguezes no seculo xv° descobrem a costa
ao sul daquelle cabo, e impõem nomes a d i (lerentes
localidades por elles primeiramente visitadas, vê-se im-
mediatamente prolongar-se a dita costa, aperfeiçoar-se
a parte hydro- geografica das cartas posteriores como no
famoso Planispherio de Fra-Mauro , carta que , na
opinião do sabio cardial Zurla, foi feita nomeado do
dito seculo xV, isto é em 1459 , lendo-se já alli os no
mes portuguezes : 7 Montes (7 monti) , Cabo Verde , e
C. Roxo (C. Rosso) (1). Além disto um chronista portu-
guez do mesmo seculo xv°, alias bem informado dos
acontecimentos do seu tempo (2), diz quanto á navega
ção no oceano naquella epoca o seguinte :
« E por que em todo o mar oceano não ha navios
.i latinos senão as caravellas de Portugal, e do Al-
» gaive, » passagem que nos indica que , quando elRey
D. João 11° mandou a armada para fazer construir a
fortaleza, e cidade de S. Jorge da Mina, o oceano
Atlantico só era suleado pelas caravellas portuguezas ,

(1) fid. Zurla : Sulle Aniiche Mappe idro-geogrnphiche tavorate


in Venezia Commentario. Venezia, 1818.
(2) Garcia de Resende, Chron. d'elRey D. João IIo, <-ap. 24.
— 117 —

e não pelas de outras nações , pelo menos no alto


mar.
Se confrontamos esta passagem com um capitulo das
cortes d'Evora (14-81-1482), lica evidente em nosso en
tender -que os maritimos da Normandia não hião então,
mesmo clandestinamente , á Guiné naquelle seculo ,
aliás eHes terião sido mencionados na representação
feita nas ditas cortes a eIRey D. João IIo, acerca dos
estrangeiros ; mas na dita representação só se falla dos
Florentinos , e Genovezes que andavão em Lisboa e
que podião descobrir (dizem ellas) os vossos segredos
da Mina, e Ilhas (1) , e nem uma só palavra se diz dos
Normandos.
A' vista do que acabámos de expor neste §° fica do
mesmo modo demonstrado : 1o Que no reinado de Car
los V de França a situação interna e externa da Nor
mandia não permittia que taes empresas e navega
ções fossem intentadas, e ainda menos levadas a ef-
fei to regularmente como pretendeo Villaut, e aquelles
que o seguirão , e portanto que a asserção daquelle
viajante está em manifesta contradicção com os factos
verdadeiros e authenticos relatados nas historias de
França comtemporaneas, isto é do xiv° seculo, e com
as mesmas chronicas antigas da Normandia. 2o Que as
cartas geograficas do xiv° seculo posteriores áquellas sup-
postas navegações, e descobrimentos não descrevem
ponto algum da costa d'Africa occidental ao sul do Cabo

(1) fid. as nossas Memorias para a Historia e Theoria das Cortes,


parte II, pag. 219.
— 118 —

Bojador, o que não aconteceria se taes descobrimen


tos tivessem existido. 3o Que a dita costa, além da-
quelle cabo, só começou a ser conhecida depois dos
descobrimentos dos Portuguezes no xv° seculo, k> Que
ainda nos fins do dito seculo os Normandos alli não hião
mesmo clandestinamente , como as duas passagens da
chronica delRey D. João IIo, e a representação dos po
vos nas cortes d'Evora nos indicão.

§ XIII.

Mostra-se que assim como os Portuguezes fornecerão a Europa , em


razão dos seus descobrimentos , o conhecimento positivo da costa
d'Africa occidental alem do Cabo Bojador, e a nomenelatura
hj-ílro-geografica , assim fornecerão tambem ás outras nações e aos
mesmos Normandos , ainda no xvi° seculo , pilotos portuguezes
para os conduzirem áquellas remotas regiões.

O sabio A. da Histoire des villes maritimes de


France (1) diz mui exactamente o seguinte :
« On sait méme qu'il était d'usage que sur tous les
» vaisseaux dieppois qui partaient pour un vòyage de
» long cours on prit à bord soit un Espagnol, soit un
» Portugais, pour servir d'interprète ou de facteur. »
Ficando assim evidente tambem que, se os Dieppezes
necessitavão d'interpretes portuguezes , para emprehen-
derem aquellas longas viagens, é por que só elles sa-
bião o caminho, e tiverão primeiro communicacão com
os habilantes daquellas remotas regiões , sabendo além

f 1) Histoire des ancienues villes maritimes de France , par


M.Vitct, t. 11, p.63. Paris, 1833.
— 119 —

disso a lingoa daquelles povos, e que aconteceria o con


trario se os Normandos alli se tivessem estabelecido
antes dos Portuguezes, e Hespanhoes.
Este facto é mais uma prova da prioridade dos nossos
descobrimentos. E por estes respeitos que Fernando
de Magalhães dizia ás tripolações dos seus navios na
famosa viagem do estreito a que deu o seu nome , o se
guinte, que Maximiliano Transilvano nos refere na
sua Relação da viagem ás ilhas Molucas , datada de
5 d'outubro de 1522 (1):
« Pues como despues de tan largas é inauditas nave-
» gaciones hechas por los Portugueses... (2).
« É que acatasen como los Portugueses (no cada ano ,
>> mas cada dia , yendo y viniendo á las partes orien-
i tales solamente por causa de sus tratos y mercado-
» rias , sin otro negocio de mayor importancia) pasaban
» cuasi 20° (graos) adelante del trópico de capricornio
» hácia aquella parte del polo antáitico. »
Foi certamente por esta grande experiencia daquelles
navegações que na celebre armada de Magalhães hião
por capitães da náo Trindade Duarte Barboza , da
não Conceição João Serrão, da náo Victoria , Luis Af-
fonso de Goes , e por pilotos João Rodrigues de Ma
fra da náo St. Antonio e Estevão Gomes em a náo
Trindade , e João Lopes de Carvalho da náo Conceição
e Vasco Gallego da náo Victoria , e da náo Santiago
João Serrão, todos Portuguezes, e entre criados e ma-

(1) Docum. apud Navarrete, t. IV, p. 249, § VI.


(2) Expressões de Transilrano.
— 120 —

rinheiros 33 indeviduos desta nação (1). De maneira


que os pilotos desta memoravel expedição erão todos
Portuguezes , á excepção d'André de S. Martin da náo
St. Antonio, na qual hia tambem como piloto João Ro
drigues de Mafra, que era Portuguez.
Acrescentaremos aqui o que diz o Abbade Paulmier
de Gonneville , conego de Lisieux (2) , na memoria que
publicou em França em 1663, tratando da primeira
viagem feita ás índias Orientaes , pelos Francezes ,
acerca da nossa prioridade :
« La flotte portugaise du généreux Vasques de Gama ,
» s'étant heureusement ouvert le chemin des índes
» Orientales , et les rois de Portugal ayant soigneuse-
» ment fait poursuivre cettepointe, Lisbonne se vit en
» ]>eu de temps remplie de richesses de 1'Orient, dont
» Véclat donna dans les yeux de quelques marchands
«/rançais qui trafiquaient auport de cette capitale ,
w de sorte qu'ilsformèrent le dessein de marcher sur les
» pas des Portugais (3), et d'envoyer un navire vers
» ces Indes fameuses. Ce vaisseau fut équipé à Hon-

(1) Vid. Relações nos documentos apud Navarrete, t. IV, de


pag. 12 a 21.
(2) Mémoires touchant 1'établissement d'une mlsslon cbrétienne
dans le trolsième monde, autrement appelé la terre australe, meri-
dionale, antarctique et inconnue.
(3) Veremos adiante provado que dos reinos estrangeiros mau-
davão espiões , os quaes se allistavão no serriço das escuadras portu-
guezas aflm de colherem as noticia; positivas das nossas navegações,
e descobrlmentos , e dos portos onde abordavão as nossas expedições ,
e dos proveitos que os Portuguezes tiravão das suas relações com of
povos d'Africa, e do Oriente.
— 121 —

>. Jleur , ville maritime du bailliage de Rouen , et du


» diocèse de Lisieux : la conduite en fut donnée nu sieur
» de Gonneville , lequel leva les ancres au mois de juin
» de 1'année 1503. »
Vemos pois da relação publicada por este escriptor ,
1o que a dita viagem só se eflèituára 17 annos depois
da viagem de Bartholomeu Dias, e 5 depois da de Vas
co da Gama ; 2° que a mesma viagem se eiíeituára de
pois das informações colhidas em Lisboa pelos merca
dores francezes que alli residião , e se o diario nautico
desta viagem se não tivesse perdido era mais que pro
vavel que no mesmo se fizesse menção de terem dirigido
a derrota por cartas nauticas portuguezas , e de terem
talvez abordo pilotos portuguezes , ou algum dos nos
sos experimentados maritimos naquella carreira , como
aconteceo a Parmentier, maritimo de Dieppe, que fez
uma viagem a Sumatra em 1529 (1).
Abordo do navio intitulado o Sacre ia embarcado um
Portuguez, o qual foi o unico que mandarão a terra em
uma das ilhas além da de S. Lourenço, para se entender
com os habitantes (2). Os Francezes fallárão aos habi
tantes da ilha de Madagascar (S. Lourenço) em portu-
guez (3), prova evidente que os maritimos de Dieppe

(1) Vid. Journal du voyage de Jean Parmentier, de Dieppe à


1'íle de Sumatra, en l'année 1529, publicada por M. Ettancelin, na
»ua obra Recherches sur les voyages et dccouvcrtes det navigateurs
normands. Paris, 1832.
(2) O A. do diario serve-se do termo apprivoiscr , amansar,
domar.
(3) Ibiã., pag. 271.
— 122 —

sabiào que só na lingoa portugueza podiáo ser enten


didos naquellas regiões. As observações das latitudes
erão feitas a bordo tanto do navio de Parmentier como
do que hia cm sua conserva conforme as observações fei
tas pelos Portuguezes (1). Parmentier consultava as
cartas nauLicasportuguezas que levava a seu bordo (2).
A circumstancia que este viajante refere de não ter
visto nunca as trombas marítimas a que elle chama
puchos, nome que os marinheiros portuguezes natural
mente derão ás ditas trombas pela acção de puxar, ou de
sorver a agua do mar, mostra que Parmentier navegava
pela primeira vez além da equinoxial onde este fenomeno
é mui frequente (3). Esta particularidade basta tam
bem para destruir em boa critica a conjectura do editor
deste diario nautico, a saber que é mui provavel que
Parmentier, que alias nascera, segundo o dito editor,
em 1480 , teria hido á costa de Malabar pouco tem
po depois de fiasco da Gama.
Se as particularidades que acima referimos não bas
tassem para provar que esta expedição dos Dieppezes

(1) • ...Fut prinse la hanteur, et se Irouva 19 degrés justes selon la


deelinaison des Portugait. » (fid. obra cit., p. 273.)
(2) fid. obra citada , pag. 286. Alli se vê pelo contexto mesmo
do diario (25 de septembro 1529) que elle levava uma carta nautlca
portugueza : « Néanmoinsjai vu depuis une carte de Portugal ou ces
» iles sous la ligne sont nommées de Maldiva. •
(3) « ...Ceux qui ont vu des puchos disent qu'ils se forment au-
» tiement, et que la pointe esten haut ct le large demeure eu la
» mer, et que la pointe est crochue el se tient en suspens, et
• attirant l'eau. » (tlsid,, pag. 275.)
— 123 —

era conduzida principalmente pela experiencia daquel-


les mares, regiões e povos que tinha dellas o Portuguez
que hia abordo do Sacre , a que o Diario refere da .
discussão que o dito Portuguez tivera com o capitão
para lhe provar que as ilhas que avistárão erão as Mal
divas, bastaria para o provar. O mesmo Portuguez
sabia a lingoa Malaia(í), e posto que João Masson, que
tambem hia nesta expedição., a fallava , isso não prova
outra cousa senão que as grandes expedições, e desco
brimentos dos Portuguezes tinhão excitado a ambição
commercial de outros povos da Europa, que muitos
estrangeiros se embarcavão em os nossos navios , e que
não era para admirar que João Masson em 1529, isto é
32 annos depois das nossas expedições da índia de Vasco
da Gama, soubesse alguma cousa da lingoa Malaia, tanto
mais que a podia ter até aprendido com o Portuguez
do Sacre. -
Com efíeito quando em 1529 Parmentier de Dieppe
efleituou esta viagem , tinhão já hido á índia sem inter
rupção de um só anno 34 armadas portuguezas (2), ao
todo 293 navios do governo. As relações dos Portugue
zes com os povos asiaticos erão já então extensissimas
<; conhecidas , e admiradas de toda a Europa , e sobre

(1) « On fit venir Chabandar, et le Portugais du Sacre lui dit ce


- qui avalt étc ordonné, dont il fut content; il ne roulut que
» M. Jean demeurât, mais que je demeurasse avec le Portugais pour
» otage, etc. •
(Vid. Diario de Parmentier na obra citada , p. 301 , e 302. 1
(2) Vid. a nossa noticia dos Mss. da Bibliotheca R. de Paris.
Lisboa, 1827, Journal dcs vojages det Portugait, etc.
— 124 —

a importancia dellas escreviâoos negociantes estrangei


ros aos seus compatriotas , como nos é attestado por
documentos contemporaneos (1). Portanto as viagens
de Gorineville e de Parmentier forão emprehendidas
em resultado da experiencia, e dos conhecimentos trans-
mittidos, e communicados em razão dos descobrimen
tos, e navegações dos Portuguezes.
Com elfeito é um facto indubitavel pelo que deixá
mos provado nos precedentes §§°' que assim como os
Portuguezes forão os primeiros que fizerão conhecer á
Europa moderna no seculo xv° a costa occidental d'A-
frica além dos Cabos Bojador, e de Boa Esperança ,
e que as suas cartas hydrogeograficas servirão de ele
mentos ás de todas as nações desde o seculo xv°, como
vimos nos §° IX e X , do mesmo modo os roteiros por
tuguezes forão , e são ainda hoje considerados como os
melhores da costa d'Africa (2), e de outros mares.
Com efíeito além dos AA. e documentos que ficão
citados , e que provão todos estes factos do modo mais
evidente, e incontestavel ; um autor genovez do xv° se
culo , e por tanto contemporaneo dos nossos descobri
mentos, refere a seguinte particularidade, a qual vem
augmentar ainda mais o numero das provas da nossa
incontestavel prioridade.

(1) Vid. a nossa obra intitulada : Recherches historiques, critiques


et bibliographiques sur Améric Vespuce et ses voyages. Paris, 1840.
(2; Seixas, no Theatro nautico, 1688 , quando falla dos Roteiros,
diz que os da costa d'Africa feitos pelos Portuguezes são os melho
res , e cita a Hydrografia de Manoel de Figueiredo, e o Roteiro de
Valentim de Sá.
— 125 —

yéntonio Gallo , historiador genovez (1), em um tra


tado a que deu o titulo De navigatione Columbi per
inaccessum antea oceanum commentariolus , composto
provavelmente nos ultimos annos do dito seculo (1498-
1499) (2) diz que a existencia do mundo a que chamão
índia ( isto é o novo continente ) não tinha sido re
velada a Christovão Colombo pelas suas proprias me
ditações, mas que esta revelação lhe tinha sido com-
municada por seu irmão Bartholomeu Colombo, « o
■ qual concebéra o projecto da possibilidade de se
» elTectuar uma navegação na direcção doeste , em
» razão de marcar os descobrimentos portuguezes effec-
» tuados alem de S. Jorge da Mina sobre os Map-
» pasmundi que desenhava em Lisboa para ganhar a
» 5«a vida. »
Isto é , Bartholomeu Colombo acrescentava nos seus
Mappas os novos descobrimentos feitos pelos Portugue
zes ao sul da Africa , e no oriente depois de 1482 epoca
da fundação de S. Jorge da Mina.
O sabio mais encyclopedico do nosso seculo (3) julga,
fundando-se nos documentos que nos restão relativos
ao descobrimento do novo continente, que fôra durante
a residencia de Christovão Colombo em Portugal desde
o anno de 1470 a 1484 que este grande homem aper-

(1) Vid. Muraton , Herum italicarum scriptores, tom. XXIII,


p. 302.
(2) Esle A. escreveo : de fícbus Genuensium.
(3) Humboldt, Examen critique de 1'hiitoirc du nouveau continent ,
tom. I, p. 92, e 96.
— 120 —

feiçoárn os seus estudos, consultando os homens sabios


do paiz.
Os Portuguezes forão pois não só osprimeiros descobri
dores daquellas paragens da costa occidental d'Africa,
mas tambem os mestres das outras nações , como diz um
sabio geografo francez (1), paragens ás quaes as outras
nações maritimas da Europa só abordarão muito tempo
depois dos Portuguezes , guiados por pilotos portugue-
zes (2), e pelas relações e informações dos Portuguezes,
factos estes que serão ainda mais evidentemente demon
strados pelos seguintes $°\

S XIV.

Mostra-se que depois da fundação da fortaleza e cidade de S. Jorge


da Mina pelos Portuguezes , os maritimos das outras nações não
navegarão para aquellas paragens mesmo nos ultimos annos do
xv° seculo.

Garcia de Resende, autor contemporeaneo, diz (3) que


« elRey D. João II, por ninguem ousar dir a aquellas

(1) O Sr barão Walekeuaer.


(2) André Bernaldez, Memorias mss. de los reys catholicos, A.
que conheceo Colombo, e que teve com elle relações, diz , cap. 118,
fatlando dos motlvos que deu a corte de Lisboa para não aceitar a
sua offerta , que Colombo •
« Savendoqueel Rey de Portugal desejasc mucho detculrirese le
» fue a convidar, e reconta de el que ho desistimaron , no le foe
• dado credito por que el Rey de Portugal tenia muy altos y bieu
» famados marineros. »
(3) Chron. delRey D. João II , c.ip. 24 , e 149.
— 127 —

» partes (isto é a Guiné), fez crer a todos que da Mina


» nam podiam tornar navios redondos por causa das
« grandes correntes. E pera isso toda a pedra , caI, telha,
» madeira , pregadura , ferramentas , mantimentos ,
» mandou tudo em hurcas velhas , pera lá se desfaze-
o reni , e dizerem que por causa das grandes correntes
» nam poderam tornar, e assim se fez com muito segre-
» do, e grandes juramentos , e o ouverão todos por
» tam certo, que em vida d'elfíey sempre pareceo que
» navios redondos nam podião vir de la, e com isto
» teve sempre a Mina bem guardada (1). »
E em outra parte acrescenta , « por que em nenhuma
» parte da Christandade os ha, senão as caravelas de
» Portugal, é do Algarve , e os galeões de Roma que
« nam são para navegar tam longe (2). »
Na epoca em que este historiador escreveo este facto,
Portugal era, de todos os paizes , aquelle em que havia
mais conhecimentos das sciencias nauticas, e mui par
ticularmente da navegação no Atlantico além das costas
da Europa. Se pois se comparão estas passagens com oque
expozemos em outras partes desta memoria , particular
mente nos §°' IX, X, e XIII, e estes com as cartas do nosso
Atlas, resultará a demonstração seguinte, a saber que
nenhum documento contemporaneo, isto é do seculo xv°,

(1) Em o cap. 176 , Resende repele : E sendo tam cioso da Mina ,


e guardandoa tanto, ele. Passim, cap. 187.
C2) Ibid., cap. 149, da discussão que houve entre elRey D. João II,
e o piloto Pedro ftAlcmquer, muito grande piloto da Guiné, e que
bem tinha descoberto.
I

— 128 —

prova que outra alguma nação navegasse para aquellas


paragens durante o mesmo seculo, á excepção da Por-
tugueza. A seguinte passagem do mesmo historiador
confirma ainda mais em nosso entender este facto. Refere
pois o mesmo A. que elRey D. João II mandara con
struir pequenas caravelas com grandes bombardas para
atirarem ao lume d'agua : « Elle foi o primeiro que isto
» inventou E por serem mui ligeiras, e pequenas
» que as naos grossas lhe não podiam fazer nojo com
» seus tiros , foram tam temidas no mar as caravelas
» de Portugal muito tempo que nenhuns navios, por
» grandes que Jossem , as ousavão esperar, até que
» se soube a maneira em que trazião os ditos tiros, e se
» trouxerão depois, como agora trazem geralmente em
» todas as partes, o que dantes não era (1). »
Parece pois á vista destas passagens que, se os navios
das outras nações , e os dos Francezes navegassem en
tão para aquellas paragens, este historiador que estava
ao facto da construcção naval dos diversos paizes da
Europa, e que menciona os galeões romanos, teria de
certo citado os das outras nações que os tivessem em
estado de hir á Mina e voltar de lá (2).
Além disto elRei tinha agentes secretos estrangeiros,
e nacionaes em todos os reinos da Europa, que o avi-

(1) Resende, Chron. delRey D. João II, cap. 180.


(2) Resende eslava perfeitamente informado das cousas de França,
como se vê no cap. 163, quando Irata da embaixada mandada á
Corte de Roma em 1492, e no cap. 168 quando falla dos negocios
de França em 1493.
— 129 —

sãvão de tudo quanto se tentava relativamente a ar


mamentos navaes, e tentativas de viagens clandestinas
á costa occidental d'Africa , e em virtude dos avisos
que estes lhe fazião procedia pelo modo que diremos
em outro logar (t).
Com efleito o rei que tinha tomado aquellas pre
cauções, era o mesmo principe que suggerio a Colombo
o projecto que este grande homem tencionou pôr em
pratica em 1498, a saber de derigir a sua navegação ao
sul até além da equinoccial , e dalli proseguir a sua na
vegação na direcção do occidente até encontrar terra,
afim de verificar « se elRei D. João de Portugal se
tinha enganado , quando este soberano lhe tinha afir
mado que ao sul existia uma Terra-Firme (2). » Um
soberano tal não podia tomar aquella percaução deman
dar destruir as Urcas nos mares da Guiné, se não es
tivesse certo que um tal estratagema seria acreditado
na Europa por todas as nações em razão do nenhum
conhecimento que estas Unhão daquellns navegações ,
ainda mesmo quando se divulgasse a noticia como se di
vulgou da prosperidade , e riqueza dos nossos estabele
cimentos.
O governo portuguez estava pois certo que o estra
tagema seria proficuo aos seus interesses, e á sua po
litica, porque nenhuma nação maritima da Europa sa-

(1) fid. o mesmo historiador.


(2) ful. a nona obra intitulada flecherches sur Àméric fetpuce ,
pag. 240.
— 130 —

bia enlão o caminho daquellas costas, e daquelles
mares , porque nenhum navegante ousaria ir enlão ás
paragens nas quaes os Portuguezes tlizião terem per
dido seus navios em razão das correntes , pois seria ab
surdo suppor que se as outras nações maritimas conhe
cessem então aquellas paragens, um rei tão respeitado
dos soberanos seus contemporaneos, houvesse de re
correr a um estratagema que, sem essa ignorancia dellas,
seria alem de inutil , irrisorio.
Gomo quer que seja , a historia contemporanea , os
documentos, e a critica mostrão, que só no xviu seculo,
muito depois dos Portuguezes, é que os marítimos das
outras nações alli forão furtivamente, até que formarão
estabelecimentos, e feitorias depois do meado do dito
seculo, como o leitor verá no 5° XVIo.
E na verdade o progresso dos nossos estabelecimen
tos na costa occidental d'Africa não se ocultou, nem
podia ocultar das outras nações da Europa. Entre mui
tos motivos que \mva isso concorrérão , apontaremos os
seguintes. 1° O da residencia de muitos estrangeiros
em Portugal que espionavão os nossos passos , que se
introduziào em as nossas frotas, e que tratavãode desco
brir os planos do governo. 2° Em consequencia das mes
mas commuuicações feitas pelos soberanos portuguezes
a principes e sabios estrangeiros , como vémos mais de
um exemplo dado por elRei D. Allonso Vo, o qual com-
municava aos sabios Italianos o progresso das nossas na
vegações , e descobrimentos, de que temos a certeza
pelas communicações que Estevão de Treviso transmet-
tia em nome deste rei ao famoso Fr. Mauro , cosmo
— 131 —

grafo veneziano (1). Pela oflèrta feita pelo mesmo sobe


rano a elRei de Napoles (1453) do famoso manuscripto
da chronica da Conquista de Guiné por Azurara ; pela
correspondencia sustentada anteriormente ao anno de
1474 com o celebre astronomo florentino Toscanelli (2) ;
pelas remessas , feitas por elRei D. João IIo, das primei
ras amostras da pimenta vinda do reino de Benin em
1486, para Flandres e para outras partes da Europa (3).
3° Pela deserção de alguns pilotos , e marinheiros ex
perimentados. Todos estes motivos, aos quaes acrescia
ornais importante de todos, a fama das riquezas que
importavamos daquelles paizes , concorrerão a dis-
pertar a ambição commercial dos maritimos das outras
nações.
Mas se as nações da Europa tinhão noticia larga dos
nossos descobrimentos , com tudo nenhum historiador,
ou documento algum contemporaneo, indica que os ma
ritimos dellas navegassem para aquellas paragens não
só no tempo delRei D. Alfonso Vo (4), o que não admitte
contestação, mas o que é mais, nem mesmo no reinado
de D. João IIo, como se mostra pelas passagens acima

- (1) \ideZurla, Dissertazione dei viaggi de Cada-Mosto, pag. 22,


passim. Docum. apud Navarrete, tom. II, pag. 1, n° 1.
(2) Vide a nossa obra : fíecherehes, etr., sur Améric fespuce et
ses voyages , pag. 240.
(3) Vide Resende , cap. 64.
(4) Toscanelli, na carta etcripla em 2tt de junho de 1474 ao conego
poituguez Fernão Martins, diz:
«Que o caminho pnrn i> paiz que produz as especiarlas pelo oeste
— 132 —

transcriptas. E com isto (diz Resende) teve sempre a


Mina bem guardaria, e portanto sabemos que até
aos fins do anno de 1495 em que o mesmo rei mor-
reo , nenhum navio estrangeiro lá abordara. Ainda
mesmo no tempo em que o historiador João de Barros
compoz as suas Decadas , vêmos tambem que nenhuma
nação hia alli disputamos a nossa posse, tal é o sentido
claro, e genuino das seguintes passagens daquelle
grande historiador, fallando da Guiné :
« E mais he propriedade tãCpacifica , mansa , e obe-
» diente , que sem termos huma mão em o murrão
» aceso sobre a escorva da bombarda, e a lança na
» outra , nos da ouro , marfim , cera , courama , açucar,
» malagueta, e daria mais cousas, se tanto quizeramos
» della descobrir como descobrimos além dos povos Ja-
» pões — (1) »
Acrescentando em outra parte fallando do tempo
d elRei D. João II :
« Assim eIRey commettendo por muitas vezes esta grão

» era roais perto e mais curto do que o que vós faieis a Guiné. •
Não diz pois o que fazem em geral para a Guiné , mas sim o que
vós Portuguezes fazeis.
Toscanelli nasceo em. 1397 : foi autor do celebre Gnomon, feito em
1468.
Este mesmo sabio escrevia a Colombo :
• Não me admiro de ver-vos manifestar um tão grande valor,
• valor alias manifestado por toda a nação portugueza , na qual
• sempre houverão homens que se distingulrão cm todas as em
• presas. >
(1) Decad. I, liv. 111, cap. 19.
— 133 —
» balsa ile Guiné, que até hoje se não leixou pene-
» trar (1). »
£ ainda mais concludentemente na seguiute passagem:
« Na qual posse (da Guiné ) como prudente barão e
» animoso principe, por não leixar duvidas a seus suc-
» cessores com os principes da Christandade , logo se
» determinou com elRey don Fernando de Gastella ,
» assinando termos, etc. (2) »
Direito, e posse que foi plenamente reconhecida por
todos os soberanos da Europa (3) , e mui positivamente
pelos reis de França ( V , como já dissemos em outro
logar.
As passagens que acabamos de transcrever de um his
toriador nascido ainda no xv» seculo servem igualmente
para refutar as conjecturas de um escriptor francez que
em uma obra por elle composta , e publicada 400 an
nos depois dos nossos descobrimentos, diz o seguinte :
« Podepresumir-se!! que os Francezes voltarão á Guiné
» em 1470. »
Acrescenta porém :
« Mais à cet égard nous riavons pas de témoignage
» à produire que les Normands recommencèrent dès
» 1470 leurs expéditions à la côte de Guinée »
E a proposito deste supposto facto que elle presume
ter existido, e á cerca do qual confessa não poder pro-

(1) Decad. 1, liv. Ill, cap. 12.


(2) ndc §° IV, p. 27, 28, 29, e 30.
(3) lbid.
(h) Compare-se coin o que dissemos a pap. 27 e 28.
— 134 —

duzir documento ou testemunho algum, chama-nos or


gulhosos jisurpadores por nos termos estabelecido na
costa da Mina, e primeiro do que as outras nações, quando
o dito A. é o mesmo que confessa que não ha teste
munho algum que prove que os Normandos alli fossem,
ou tivessem estabelecimenlos em 1470 !i!
Nenhum documento ou testemunho d'historiador do
xv° seculo nos mostra que os maritimos de outras na
ções tivessem hido á Guiné na ultima metade do dito
seculo depois do descobrimento dos Portuguezes.
Apezar de todas as investigações que fizemos, não en
contrámos uma só prova de se ter realisado por parte
das outras nações as tentativas que fizerâo depois dos
Portuguezes terem descoberto aquelles paizes. como
o leitor verá com maior evidencia em o seguinte

S xv.

Da» tentativas feitas por outras nações durante a ultima metade do


seculo xv° para hirem traficar á Guiné, depois do descobrimento
da costa Occidental d'Africa além do Bojador pelos Portuguezes.

A mais antiga noticia que se encontra ácerca de uma


tentativa formal feita por uma nação estrangeira rela
tivamente á navegação e commercio da Guiné , é a que
refere Zuniga(i), emprehendida no annode 1475, isto

(1) Vide Zuniga , Annales de Sevilla, pag. 375. Posto que este
annalista seja posterior de mais de dois seculos aos acontecimentos,
comtudo examinou documentos, e thronicas contemporaneas que
- iaò —
é mais de meio seculo posterior á passagem do Cabo
Bojador por Gil Eannes , e 42 annos depois de terem
sido trazidos a Portugal os primeiros negros de Guiné,
como diz mui bem Balboa, escriptor hespanhol , do
modo seguinte ( 1 ) , fallando da Africa occidental :
« Los primeros negros que en nuestra Espana se vieron
» y sirvieron como captivos fueron llevados el ano de
» 1443 por un Deniz Fernandes , escudero del rey
« don Juan de Portugal (2). »
Se acreditarmos o que diz Zuniga, posto que não
produza documento algum que prove que a dita tenta
tiva do anno de 1475 fosse levada a efíeito , as determi
nações da corte de Gastella forão tomadas em conse
quencia da guerra entre as duas coroas. Aquelle A.
confessa que elRei de Gastella mandara em 15 d'agosto
do dito anno armar navios para impedirem o nosso
commercio com a Guiné , e para hirem direitamente
áquellas partes, e acrescenta que eflectivamente para
alli partirão grande numero de caravelas posto que não

cita; mas apezar de Ler consultado as relações, e historias contem


poraneas , artificiosamente omittio o qne diz Bernaldez , Memoriai
de los reyes calholicos , relativamente á prioridade do descobrimento
da Mina pelos Portuguezes, cap. 0 , citando-o alias em muitas partes
da obra !
(1) Balboa, Miscetanea anlàrtica , cap. 9, manuscripto da biblio-
theca de M. Ternaux. Balboa é anierior de quasi um"seculo a
Zuniga .
(2) Este facto referido pelo escriptor castelhano está em harmonia
com o que refere Azurara no cap. 31 da Chronica sla conquista de
Guiné.
— 136 —

corrobore esta asserção com a citação , ou texto de docu


mento algum contemporaneo, isto é do dito anno de
1475.
A segunda noticia que temos de outra tentativa semi-
Ihante feita no mesmo seculo foi igualmente castelhaua ,
como era natural em razão da vizinhança, e riva
lidade.
Consiste esta em uma carta de seguro dada pelos reis
catholicos aos mari timos de Palos para commerciarem
livremente por mar, e terra, com as mercadorias que
levassem ou trouxessem da Mina do Ouro. Este docu
mento é datado de Sevilha em 4 de março de 1478 (1).
E portanto posterior de 9 annos ao nosso descobri
mento do Resgate da Mina (2), e de perto de meio se
culo ao descobrimento da Guiné pelos Portuguezes.
Esta concessão foi feita igualmente pelos reis catho
licos como um verdadeiro acto de agressão contra Por
tugal, em consequencia da guerra que então existia entre
os dois paizes , a qual se terminou pelo tratado cele
brado no anno seguinte , a 24 He setembro de 1479, em
virtude do qual os reis de Hespanha reconhecérão que
o commercio, e navegação da Guiné, e da Mina do
Ouro, e do reino de Fez pertencia exclusivamente a
Portugal (3). -

(1) Navarrete, Coll., tom. 11, pag. 386, n° III.


(2) Barros , Decad. I, liv. 11 , diz : « Neste tempo o negocio da
• Guiné andava já mui corrente entre os nossos, e os moradores
> daquellas partes, e huns com os outros se communicavào , etc. «.
(3) Vide Zurita, Annaesd'Aragão, P. II , liv. XX, cap. 34.
— 137 —

A terceira tentativa de que encontrámos testemunho


historico contemporaneo foi feita no anno de 1481,
isto é 10 annos depois do descobrimento feito pelos
Portuguezes do Resgate do Ouro da Mina,e de 41
annos posterior ao descobrimento do Senegal pelos
mesmos Portuguezes.
Eis aqui como a dita tentativa é referida por um
veridico A. contemporaneo , por Garcia de Re
sende (1) :
« Daqui de Montemor mandou elRey por embaixa-
» dores a elRey dom Duarte de Inglaterra , Ruy de
» Souza, pessoa principal, e de muito bom saber, e o
» Dr João d!Elvas , e Fernão de Pina por secretario ,
» afim de confirmarem os tratados antigos entre Portu-
» gal , e Inglaterra (2) , e tambem (acrescenta elle) para
» mostrar ho titolo que elRey tinha no senhorio de
» Guiné pera que depois de visto elRey dlnglaterra
» defendesse que em todos os seus regnos que ninguem
» armasse , nem podesse armar á Guiné , e assi man-
» dasse desfazer huma armada que pera lá fazia per
» mandado do duque de Medina-Cidonia , hum João
» Tintam e hum Guilherme Fabiam , Ingrezes , com a
» qual embaixada elRey dlngra terra mostrou receber
» grande contentamento e em tudo fez inteiramente

(1) Chron. d'elRei O. João 11°, cap. 33.


(2) A renovação dos ditos tratados se acha emfy-mer, Fadcr, ele.,
tom. XII, pag. 145, datada de 8 de fevereiro de 1482, e a confir
mação da liga celebrada entre as duas coroas a 13 de novembro do
dito anno (ihid.).
— 138 —

» Lo que pelos os embaixadores lhe foy requerido ;


» de que elles trouxerão authenticas escrituras das
» deligencias que com pubricos pregões se lá fize-
» rão, etc. »
Este interessante facto referido por um historiador
contemporaneo , que assistia até ao despacho dos nego
cios mais secretos d'estado , em razão da confiança que
elRei D. João IIo tinha nelle, mostra que esta tentativa
fôra emprehendida á custa de um poderoso Vassallo de
uma potencia lemitrofe , e rival , e mostra que não tivera
efíeito, antes o mqn.ircha britanico probibira a seus
vassallos armarem navios para se dirigirem áquellas
paragens ; prova em fim que Duarte IVo reconhecâra a
validade dos titulos de que os embaixadores portuguezes
se prevalecêrão para fazer evidente ao çabinete inglez
o nosso direito. Com efieito os mesmos titulos forão
por muitos tempos respeitados não só pelo- governo
inglez, mas até pelos subditos d'aquella potencia, visto
que a primeira expedição ingleza, feita clandestinamente
á Guiné , data só do anno de 1551 , como diremos
adiante.
Mão podemos deixar passar aqui em silencio a seguinte
particularidade, a qual nos offerece mais uma prova que
um dos modernos A A. francezes se fundara não só em
relações posteriores de mais de dous seculos aqs nossos
descobrimentos, mas tambem em conjecturas inadmis
siveis.
Haclujt transcreveo integralmente o capitulo de
Garcia de Resende que acima trasladamos; aquelle A.
inglez transcreveo sem acrescentar uma só palavra .
— 139 —
nem a menor observação (1) , mas o aulor de uma obrn
publicada ba poucos annos em Pariz , citando este
facto segundo o mesmo Haclujt , acrescenta, que os
embaixadores portuguezes representárão a Duarte IV*
o direito que o papa lhe tinha concedido sobre aquelle
paiz (a Guiné).
Nem em Resende , nem no texto de Haclujt se lêem
estas palavras , ou se acha indicado que o titulo que el-
Rei de Portugal fizera valer perante Duarte IVo para
mostrar o direito de Portugal á posse exclusiva da
Guiné fosse a bulla pontifícia , como este escriptor mo
dernissimo acrescenta para estabelecer a sua conjectura
de que Luiz XIo, que então reinava em França, se não
atreveria pela mesma razão a desconhecer o poder da
santa Sé, e que por este motivo os Normandos deixarião
de frequentar a Guiné ! Mas o A. normando esqueceo-se
que Luiz XIo não era soberano a submetter-se facil
mente em ponto semelhante sem que tivesse feito pe
rante a curia de Roma forte opposição, se os seus subditos
tivessem os mesmos direitos áquellas conquistas d'Africa
que tinhão os Portuguezes ; o dito autor esqueceo-se que
o mesmo rei de França , em negocio menos importante
para o seu reino e interesses de seus subditos, isto é no
da legitimação do matrimonio delRei D. Afíonso V° de
Portugal com a princeza D. Joanna, filha d'Henrique IV*
de Castella , mandara de proposito uma missão á curia
de Roma para se oppor á dita legitimação. O direito de

(1) Vide Haeluyt , The English voyages, etc., tom. 11, parle ll,
pag. 2, ediçào de 1599.
— no —

Portugal era tão evidente aos olhos de Luiz XI°, como o


foi aos de Francisco 1°, que mandou castigar os que ar
massem navios para hirem á Guiné (1).
Antes da concessão das bullas de confirmação de que
tratámos no §° IV tinha precedido a estas o descobri
mento, e a conquista. Quando o papa Píicolão Vo expe-
dio a primeira bulla no anno de 1450, havião decorrido
já 17 annos que Gil Eannes tinha passado além do Cabo
Bojador, e 10 que Diniz Fernandes havia descoberto o
Senegal (2) , e 6 que se havia estabelecido a companhia
de Lagos para continuar os descobrimentos, e fazer o
commercio d'Africa.
Estes titulos alias bem legitimos, e que seriâo reconhe
cidos hoje mesmo pelo direito das gentes, forão de certo
allegados pelos embaixadores de Portugal, peranteDuar-
te IVo, como os fizera valer perante os reis de Castella ,
como mostraremos em outra parte; e tanto el Rei D. Joãoll°
se prevalecia tambem destes direitos que no anno de
1485, quando tomou o titulo de senhor de Guiné,
mandou cunhar a moeda de ouro a que se chamou
espadim , tendo de uma parte o escudo real , e da outra
uma mão com uma espada com a ponta para cima, e
no circulo a legenda : « Díí protector vita? mea? quodtibi
» dabo. » Resende acrescenta : « E estes espadins mandou
fazer deste nome por devoção , e lembrança da con-

(1) fid. p. 30, §° IV, Documentos do Archivo real da Torre do


Tombo.
(3) Vide Àzurara, Chron. da conquista de Guiné, cap. 30 e 31.
— Hl —

quista da Africa , que sempre com a espada na mão se


fez, e prosegue(l). Forão tambem sem duvida os titulos
legitimos que acabamos de citar acima que os embaixa
dores porluguezes fizérâo valer para impedirem toda a
especie de armamento de navios feito, ou que no fu
turo se tentasse fazer, nos dominios de Duarte IVo, com
a intenção de se derigirem á Guiné ; tanto mais que
vémos no armo seguinte de 1 486 o mesmo rei D. João IIo,
nas cartas que entregara a Aflonso de Paiva , e a Pedro
da Coyilham para o Preste-João, dar conta nas mesmas
cartas áquelle soberano de tudo que pela costa de Guiné
tinha descoberto (2) ; com muito maior razão os seus
embaixadores em Inglaterra, e nas outras cortes, se pre-
valecêrão daquelles direitos expondo-os miuda, e cir-
cumstanciadamente , comprovando-os com os factos , e
com os documentos authen ticos.
A quarta tentativa feita em reino estranho teve logar
em H88 , intentada desgraçadamente por um Por-
tuguez.
O conde de Penamacor, que se refugiara em reino
estranho , tomando o nome supposto de Pedro Nunez ,
tratou em Flandres, e em Inglaterra de alistar gente,
e convidar pessoas e armadores daquelles dois paizes
para hirem á Guiné. Mas elRei D. João II° expedio
áquelle reino João Alvares Rangel com instrucções, e
cartas para elRei dln^laterra , nas quaes lhe dava conta
da deslealdade do dito conde, pedindo-lhe que para exem-

(1) Resende, Chron. de D. João 11°, cap. 56.


(2) Ibid., rap. 60
— U2 —

plo dos reis , e mais delle : « Que por bem de suas allian-
» ças , e amizades ho quizesse mandar prender e entre-
» gar-lho. EIRei d'Inglaterra mandou prender o dito
» conde no castello de Londres , e ficou sem efíeito
» aquella tentativa (1). »
Assim pois ptlo exame que acabámos de fazer dos
documentos , e dos testemunhos historicos do seculo xv°
se mostra : 1o Que as mesmas tentativas feitas nos fins
do dito seculo pelos estrangeiros para hirem á Guiné
nãoforão levadas a effei to; 2o Que as emprehendidas pelo
mesmo governo hespanhol , mencionadas por Zuniga,
e as indicadas por Navarrete, não se prova por do
cumentos, nem por testemunhos contemporaneos, que
alli tivessem chegado ; 3o Que ainda quando as mes
mas expedições tivessem hido á Guiné, tal hida sendo
posterior, como mostrámos, de muitos annos ao
descobrimento, e conquista dos Portuguezes, não di
minuia em cousa alguma a gloria da prioridade do des
cobrimento portuguez , nem os nossos inconteslaveis
direitos. Tanto mais que os mesmos historiadores hes-
panhoes contemporaneos reconhecérão , e confirmarão
a prioridade do nosso descobrimento, principalmente o
celebre, e veridico Andres Bernaldez{1).

(1) Vid. Restnile , Chron. de D. João IIo, cap. 73. Compare-se


esta passagem com o que acima dissemos relativamente a Haeluyt.
(2) O Mss. de que extrahimos este capitulo pertenceo a um dos
conventos de Hespanha; perlenceo igualmente á livraria dos mar-
quezes de Mortara. M. Ternaux-Compans o adquirio ultimamente
em Madrid. Rcrnaldes é um dos chron istas hcspanhoes do xv° seculo
— 143 —

A preciosa obra deste autor achando-se ainda inedita ,


julgámos opportuno transcrever textoalmente o que elle
diz como mais uma prova irrecusavel da nossa priori
dade, e como refutação das asserções de certos AA.
modernos hespanhoes, que mui de proposito o nãocitá-
rão nesia parte. No cap. vi° das suas Memorias que elle
intitula da forma seguinte : De la Mina de Oro que
descubrieron los Portugueses , diz :
■( Eu el afio de 14.71 descubrieron la flota del dicho
» rey don Alonso (Afíonso Vo) la Mina del Oro que hoy
» losreyesde Portugal poseen en la costa del mar Oceano,
» asi á la parte del mediodia pasadas las costas de los
» negros Gelofos é sus confines é mucho mas adelante
» tanto al norte, poco menos se le esconde en la redondez
» de la tierra ; donde al tiempo que la hallaron en los
-> primeros viajes la mayor parte de los navegantes ado-
» lecian y se morian sin remedio, y despups prosiguiendo
» sus viajes se perdieron en el camino y se enseharon é
» desearon de morirse; de la cual Mina de Oro muy

dos mais estimados. Navarrete, no tomo 1°, pag. lxviii , lhe faz
grande elogio pela veracidade com queescreveo o que vio, e o de
que teve verdadeira .relação , etc.
O sabio A . da Historia de Fernando e â'Izabel, M. Prescott , o qual
compulsou, e examinou com luminosa critica todos os AA. daquelle
reinado, e os manuscriptos contemporaneos , diz no tomo II»,
pag. 112 : • The Portuguese tvere lhe first to enter on lhe brilliant
» palh of nautical discovery, etc. » O mesmo A. diz, fallando da
autoridade da chronica de Bernaldez , que a sua importancia his
torica é plenamente reconhecida pelos criticos castelhanos. (Ibid ,
p. 109.)

í I I
— 144 —
» grande riqueza e honra ha procedido â los reyes de
» Portugal, é de cada dia procede mucho provecho á
» todo su reino. »
Assim pois se o direito de prioridade de descobri
mento , e conquista dos Portuguezes na costa d'Africa
occidental não fosse evidentissimo, este não teria sido
reconhecido não só por este veridico historiador contem
poraneo, mas tampouco o governo hespanhol não o
teria reconhecido do modo mais solemne, e Zurita (1)
não diria : « Concertóse que este trato , y navegacion
» de la Guinea , de la Mina del Oro , quedase con Por-
o tugal, y que el rey, y la reina, no enviasem allá
» sus navios, ni consintiesen que de sus puertos fuesen
» sin licencia del rey de Portugal , pues que se liahia
» ballado por bulas aposlólicas y por derecho que les
ii perlenecia. »
Se pois o nosso direito de prioridade e de conquista
não fosse então bem evidente, o governo hespanhol o
não teria sanccionado, visto que os reis d'Hespanha
tinhão a pretenção de terem direitos ao que elles cha-
mavão o reino d'Africa , e que Las Casas , que escreveo
mais de um seculo depois dos nossos descobrimentos ,
allegava coroo fundamento da opinião dos que diziáo
que a Africa fôra noutro tempo unida á Hespanha , e
della fizera parte antes da abertura do estreito de Gi-

^1) fid. Zurita, Annaes d'Aragão, liv. XX, cap. 34, pag. 307,
edição de 1610. Este autor nasceo em 1512 ; mas, apezar de não ser
contemporaneo dos descobrimentos, trabalhou sobre documentos
tUthenticos, e muilos delles coevos aos aron teci mentos.
— 145 —

braltar. Las Casas diz mesmo : Por que tudo quanto


agora se chama Africa se chamava , e era Hespanha.
A razão disto tirava elle da obra do celebre cardeal Pedro
flAillv (Petrus Aliacus) no seu tratado de Imagine
Mundi, cap. 31 (1).
Ora Pedro à'AillY, apezar de ser o sabio francez mais
erudito do seu tempo , apenas conhecia da Africa o que
os antigos conhecião; pois elle diz da parte doOccidente
que a distancia desta para « esta parte do principio
» da índia para a parte doOriente não é grande latitude,
» por que a experiencia mostra que aquelle mar se po-
* dia navegar em mui poucos dias se o vento fosse
» favoravel. »
Por esta passagem se prova que o famoso Petrus
Aliacus não conhecia a prolongação d'Africa, e não
tinha idea alguma do golfo de Guiné. .
O cardeal nasceo perto de Abbeville , segundo alguns
biografos , em 1350 , e morreo em 1 420 ou 142.5 ; foi pois
no seu tempo que se diz terem tido logar os suppostos
descobrimentos dos Normandos na Guiné; entretanto
como elle morreo 13 annos antes da passagem do Cabo
Bojador pelos Portuguezes, apenas conhecia a Africa
como a conhecião os geografos da Europa na Idade
Media , apezar de ser cognominado : L'aigle des doc-
teurs de France (2).

(t) Las Casas , Historia de las índias, tomo Io, cap. 11, pag. 73
e^^, Mss. da Bibliotheca de M. Ternaux Compans.
(2) Compare-se o que dizemos acima com o que fica escripto a
pag. 103 e 104, §°XI.
10
— H6 —

Repetimos pois á vista do que deixámos demonstrado,


que ainda mesmo que alguns navios hespanhoes tives -
sem hido á Guiné nos fins do seculo xv°, em despeito
dos tratados , e das ordens passadas em 28 de maio de
14.93 ao almirante Colombo (1) , taes viagens não dimi
nuem a nossa gloria , nem a prioridade dos nossos des
cobrimentos confirmada pelos documentos historicos,
pelos factos, e pelo direito publico contemporaneo fun
dado nos tratados.

S XVI.

Quando tiverao logar as primeiras viagens feitas á Guiné pelos


Francezes, e lnglezes, segundo os testemunhos historicos authen-
ticos.

Antes da segunda metade do xvi° seculo não se encon


tra documento algum que prove que os Francezes , e ln
glezes tivessem visitado as paragens da costa occidental
d'Africa além do Cabo Branco.
A seguinte chronologia das expedições destas duas
nações dirigidas áquellas partes provará este facto con
forme as regras de uma severa critica.
1551. — Primeira viagem dos lnglezes á Guiné.
Expedição de Thomas TVindham. Nesta primeira expe
dição ingleza tomou parte, e foi o principal promotor
della um Portuguez , mui experimentado maritimo , e
que tinha feito varias viagens a Guiné, e ao Brasil >
chamado Antonio Annes Penteado. Pelos diplómas

(1) Ftâ. Doe., n° xlii , apud Navarrete, tomo IIo.


— U7 —

publicados por Haclujt se mostra que os Inglezes


seguirão a este respeito os conselhos, e instrucções de
alguns Portuguezes que residião em Londres (1). A
corte de Lisboa, e principalmente o Infante D Luiz
escreveo a Penteado exortando-o a que voltasse para
Portugal, convite a que elle se recusara. Além disto
uma das caravellas da expedição era portugueza, e foi
comprada a um Portuguez que residia em Newport , no
paiz de Galles.
Vé-se pois pelo que deixámos referido desta aulhen-
tica relação que todos os elementos que promovêrão a
primeira viagem dos Inglezes á Guiné erão portuguezes,
finalmente que a dita primeira viagem é posterior de
mais de um seculo aos nossos descobrimentos na costa
occidental d'Africa além do Bojador. Entre as particu
laridades curiosas que se encontrão nesta relação, e que
oflerecem novas provas da prioridade do nosso desco
brimento , é a seguinte :
O rei de Benin fallou em portuguèz aos Inglezes, lin-
goa que elle tinha aprendido desde a sua infancia (2).
1553. — Segunda viagem de Windham a Guiné (3).
155k. — Viagem de João Loh á Guiné. Este viajante
refere que todo o espaço de costa que decorre desde o
Cabo Branco até 7 legoas além do Rio do Ouro era
então frequentado pelos Portuguezes , e Hespanhoesque

(1) Vid. ãaeluyi, tomo IIo, pag. 114 e 122.


(2) Compare-se esta passagem com o que dissemos no g° V, a
pag. 36 e 37.
(3) Vid. esta relação na collecção de Eden.
— 148 —
fazião naquellas paragens as suas pescarias no mez de
novembro.
Nesta viagem, na qual os Inglezes reconhecerão o Rio
dos Cestos, nem uma palavra se encontra Ao Petit
Dieppe.
1555. — Viagem de Guilherme Towrson á costa de
Guiné (1).
1556. — Segunda viagem do mesmo maritimo, o
qual encontrou junto ao Cabo Branco muitas caravellas
portuguesas.
Perto do Rio dos Cestos encontrarão tres navios fran-
cezes. Os Inglezes informárão-se dos Francezes se acaso
tinhâo encontrado os Portuguezes. Os commandnntes
francezes proposéião aos Inglezes de os acompanharem
para attacareni os Porluguezes, e hirem juntamente á
Mina. Navegarão juntos depois do accordo feito. Nesta
epoca os Francezes sabião tampouco o nome da costa e
do commercio que alli se fazia , que foi dos Negros que
elles soubérão que alli havia ouro (2) , e ficarão sur-
prehendidos quando no dia 14 de janeiro se acharão á
vista do forte de S. Jorge da Mina.
Estas particularidades augmentãoas provas que temos
produzido em diflerentes partes desta Memoria não só
de que não havia mesmo tradição entre os Francezes dos
suppostos estabelecimentos normandos na Guiné no xiv°,
e ainda no xv° seculo, mas tambem que a fabula da

(1) Vid. Haeluj-t, tomo IIo, pag. 23.


(2) Vid. TValckenacr, Histoire générale des voyages, tomo I°,
cap. 6, pag. 472.
— U9 —

construcção de forte da Mina pelos mesmos só foi in


ventada no xvii° seculo (t).
1558. — Volta o mesmo capitão inglez á costa da
Mina,t altaca um navio francez. Em Cormentin en
controu grande numero de Negros que fallávão portu-
guez (2).
1562. — Expedição de William Rutter , o navio
Mignon que fazia parte desta expedição foi destroçado
por um combate dado pelos Portuguezes (3).
1563. — Viagem de Baker á Mina. Ao Oeste do
Cabo das Tres-Pontas os Negros lhe fallárão em bom
portuguez.
1566. — Viagem de Fenner a Cabo Verde. Pela
relação desta se vé que os Portuguezes tinhão principal
mente nas ilhas de Cabo Verde forças navaes estacio
nadas para obstarem ás tentativas dos Francezes , e In-
glezes. Nesta epoca os Inglezes viajávão a bordo das
frotas portuguezas para se instruirem das cousas das
mesmas colonias (4).
Foi só no anno de 1587 quando o almirante Drake
nos capturou um grande navio da fndia que em Ingla
terra se conheceo o methodo da construcção portugueza,

(1) Compare-»e esta prova com o que esposemos no $° VI,


pag. 53 e seguintes, e §<" IX e X.
(2) fValckenaer, obra citada, tomo 11°, pag. 11.
(3) Ibid.
(4) Vid. ffalekcnacr, Histoire générale des voyages, tomo II°,
cap. 10, pag. 66 e seguintes.
10*
— 150 —

e as grandes riquezas que tiravamos das- índias Orien-


taes (t).
Por esta resenha chronologica Aca pois mostrada a
epoca em que pela primeira vez os Inglezes abordarão á
Guiné , e que só alli se faz menção de terem encontrado
navios francezes em 1556 , isto é um seculo depois de
terem os Portuguezes descoberto toda a costa d'Africa
até ao Rio Grande. Pelas mesmas relações se prova
tambem que se os Francezes tivessem regularmente fre
quentado nos annos anteriores a costa de Guiné , não lhes
seria necessario saberem dos Negros que alli se commer-
ciava em ouro , e não fícarião surprehendidos de se acha
rem á vista do forte de S. Jorge da Mina. Entretanto é
inegavel á vista de um documento produzido-por Ra-
musio, e por nós já citado (2), que os Francezes no
tempo de Francisco Io, isto é antes de 1547, hiãojá á
parte da costa d'Africa que nós tinhamos descoberto um
seculo antes, assim como é tambem inegavel, que a França
conhecendo o nosso direito prohibira a seus subditos o
armamento de navios para hirem a Guiné e ás nossas
possessões. O docfimento authentico que nos ofíerece
esta prova datado de 20 de novembro de 1532 , mostra
que uma expedição clandestina preparada naquelle anno
em os portos da Normandia não tivera efíeito, visto
que os navios francezes que devião hir á Guiné forão

(1) lbid. O leitor que desejar melhor instruir-se nas particula


ridades das viagens que acima mencionámos deverá consultar as
collecções citadas.
(2) ride pag. 93, 91 e 95, §° X.
— 151 —

embargados nos portos em consequencia das ordens do


almirante de França expedidas a M. De Mallière , vice-
almirante de França , pelo proposito que tinhão de na
vegarem o trato da mercadoria nas partes da Mala-
guetta , Guiné, ou Brasil.
Este armamento tinha custado, segundo a declaração
dos interessados, mais de 20,000 escudos. Elles represen
tarão que tinhão preparado aquella expedição porque
tinhão licença à'elRei de Portugal para hirem áquelles
paizes. Os armadores reconhecêrão, que não podião hir
commerciar áquellas paragens sem licença d'elRei de
Portugal (1).
Este documento, ao mesmo tempo que nos ofíerece a
prova mais concludente, e positiva de que a França, e
seus proprios subditos reconhecião o nosso direito de so
berania , conquista , e posse legitima daquelles paizes ,
nos appresenta igualmente a mais antiga noticia das
tentativas feitas pelos Francezes para hirem áquellas
paragens. Antes pois desta epoca não apparece docu
mento nem testemunho historico que mostre que os
Francezes tivessem hido áquella parte da costa occidental
d'Africa.
Assim pois o primeiro armamento feito nos portos de
França com destino á costa da Malaguetta e da Guiné
é posterior aos descobrimentos dos Portuguezes além do
Cabo Bojador de 99 annos, e de 72 ao da cosla da Ma
laguetta pelos mesmos Portuguezes.

(1) Documento original no Archivo real da Torre do Tombo, de


que temos copia autbentica.
— 152 —

Mas entre estas tentativas, e as viagens clandestinas


feitas pelos Francezes ás nossas possessões cTAfrica, e a
epoca em que os subditos desla nação formarão estabe
lecimentos naquellas paragens, decorreo umlongo inter
valo de annos (t). Os primeiros estabelecimentos desta
naçào na Africa occidental de que ha documentos au-
thenticos datão só do xvii» seculo.
Tudo pois quanto certos AA. tem dito nestes ultimos
tempos de que os estabelecimentos francezes na costa
d'Africa remontavão a uma epoca anterior não passa de
meras conjecturas, desmentidas pelos factos, e pelos
documentos , e testemunhos historicos , como se vê de
monstrado sem replica nesta Memoria. Se os aconteci
mentos, e fac1os historicos só merecem credito quando
são provados por documentos , ou por testemunhos de
historiadores contemporaneos dignos de fé , muito maior
é a obrigação e dever do escriptor de provar do modo
mais authentico os duvidosos , e incertos.
Os escriptores modernos que desde Villaut até hoje
tem sustentado um facto suppostosem produzirem prova
alguma tinhão a obrigação indispensavel de provarem o
mesmo facto por documentos , e testemunhos historicos
do xiv° seculo, isto é por documentos contemporaneos.
Não terminaremos este §° sem produzirmos mais uma
prova importantissima que mostra que antes dos nossos
descobrimentos além do Cabo Bojador, não havia entre

(1) Vid. Walekcnacr, Histoire générale des voyages, tomo IIo,


pag. 243, pawim. ; Leyden, Murray , e a traducção franceza desta
obra , tomo IV°, pag. 4.
— 153 —

os Normandos noticia, nem mesmo tradição das suppostas


viagens destes maritimos além do dito Cabo Bojador,
do mesmo modo que mostrámos no §° XI que as suas
mesmas chronicas do XVo seculo nenhuma noticia derão
de taes descobrimentos.
A justiça que assiste Portugal é tão grande, e tão
evidente , que são as mesmas relações dos Normandos
do principio do xv° século que augmentão o numero de
provas, que a tornão incontestavel.
As unicas daquelle seculo são as que se encontrão na
obra intitulada Histoire de la premiere descouverte et
conqueste des Canaries faite dès Van 1402 (1) par
messire Jean de Bethencourt , escrite du temps mesme
par F. Pierre Boutier, et Jean le Verrier, prestre
domestique du dit sieur de Bethencourt , et mise en
lumiere par M. Galien de Bethencourt , conseiller du
roy en la cour de parlement de Rouen.
Esta relação foi impressa em Pariz em 1630, acom
panhada de uma dedicatoria , de prefacio , e de um tra
tado da navegação e das viagens de descobrimento e
conquistas modernas, principalmente dos Francezes ,
por Bergeron.
Esta relação é da maior importancia pelas novas
provas que fornece á nossa demonstração , reforçando
ainda mais o que temos dito na presente Memoria.
As razões em que nos fundamos para julgar a dita

(1) As nossas expedições ás Canarias tinhão começado já ante


riormente ao anno de 1336 ( vid. §° 111 , pag. 15) , isto é mais de
meio seculo antes da expedição de Bethencourt.
— 154 —

relação da maior importancia para o objecto que nos


propozemos provar, são as seguintes :
1a O ter sido escripta por dois capellães que acompa
nharão Bethencourt ás Canarias em 1402, e portanto
por duas testemunhas oculares, e por dois, indeviduos
dos mais instruidos entre todos os da expedição.
2* Por que referindo elles as particularidades que
mostrão qual era o estado dos conhecimentos e noti
cias que Bethencourt tinha da Africa occidental, sendo
alias Normando e contemporaneo da epoca em que
Villaut e os que o tem seguido inventarão os suppostos
descobrimentos dos Dieppezes ou Normandos na Guinea;
por que as noticias , dizemos , e os conhecimentos que
tinha Bethencourt áquelle respeito provão sem replica a
prioridade dos nossos descobrimentos.
3" Por ter sido publicada por um descendente do dito
João de Bethencourt e em uma epoca posterior aos esta
belecimentos da companhia dos mercadores de Dieppe
e de Roão em 1626.
4° Finalmente por que a dita relação tem sido geral
mente admittidacomo authentica pelos escriptores fran-
cezes.
No capitulo 33, pag. 95, que tem por titulo : Comment
M. de Bethencourt a visite toutes ces isles (as Canarias),
et de leur bonté èt facilité à les conquérir avec les autres
pays de VAfrique, referem os ditos capellães o seguinte
que transcreveremos textualmente, que Bethencourt
dissera que :
<- Si aucun noble prince du royaume de France , ou
» dailleurs , voulait entreprendre aucune grande con
— 158 —

» queste par deçà , qui serait une chose bien faisable et


» bien raisonnable, le pourrait faire à peu de frais;
» car Portugal, et Espagne, et Aragon, les fourniraient
» pour leur argent de toutes vitailles et de navires plus
» que nuí autre pays, et aussi de pilotes qui savent les
» ports et les contrées. »
Esta passagem é importantissima pelas seguintes
razões : 1* Por que são os proprios Normandos contem
poraneos dos suppostos descobrimentos e navegações dos
seus compatriotas, que se dizião ter sido eflectuadas no
fim do seculo xiv°, que confessão que se algum nobre
principe de França, ou de qualquer outro reino quizer
emprehender alguma conquista naquellas partes do
imperio de Marrocos , e de outros pontos da Africa occi
dental lhe será facil porque Portugal lhe poderá fornecer
por dinheiro (note-se) vivres, e navios como nenhum
outro paiz, e o que mais é , até pilotos exper imentados
no conhecimento dos portos e dos mesmos paizes.
2* Porque esta mesma passagem prova que na mesma
epoca que os modernos escriptores depois de Villaut
fixarão as suppostas navegações dos Dieppezes á Guiné,
Bethencourt , e os seus capellães julgavão praticaveis
aquellas navegações, e conquistas uma vez que Portugal
prestasse o seu auxilio , e o que é ainda mais impor
tante , o auxilio dos seus navios e p'ilotos que erão os
mais experimentados daquellas paragens, o que elles
não dirião se acaso as ditas suppostas navegações , e
descobrimentos dos Dieppezes tivessem tido logar desde
1364 a 14 10 , como diz fillaut e os escriptores moder
nissimos que o seguirão.
— 156 —

3* Finalmente por que a dita passagem confirnia sem


replica tudo quanto temos dito nesta obra , particular
mente no §° II, pag. 112, acerca da incontestavel ante
rioridade das nossas relações com os Mouros ás que
depois tiverão os Normandos , e no §° XII da impossibi
lidade em que se achavão os Normandos de emprehen-
derem taes ex pedições navaes nos flns do seculo xiv° .
Além disto a mesma passagem prova que a impor
tancia da nossa marinha nos primeiros annos do se
culo xv°, era reconhecida pelos Normandos daquella
epoca , do mesmo modo que reconhecião que os conhe
cimentos que tinhão os nossos maritimos da costa occi
dental d'Africa até ao Bojador ( 30 annos antes de Gil
Eannes passar além do mesmo cabo) , erão superiores
nos dos maritimos seus compatriotas , c aos das outras
nações.
Accrescentaremos ainda algumas particularidades in
teressantes que se encontrão nesta relação, e que illus-
trão ainda mais o ponto principal deste nosso escripto ,
isto é a incontestavel prioridade dos nossos descobri
mentos africanos além do Bojador.
Alguns escriptores modernos , sem terem examinado
esta relação com a critica e imparcialidade com que os
assumptos historicos devem ser tratados, derão grande
importancia ao qúe elles chamão exploração da costa
occidental d'Africa por João de Bethencourt e por seus
companheiros , já se vé , com o fim de estabelecer a sua
prioridade sobre os Portuguezes na carreira dos desco
brimentos. Examinemos pois se estas pretenções tem
melhor fundamento, do que as que já ficão refutadas.
— 157 —

A primeirá viagem dos companheiros de Bethencourt


ao continente africaria vem relatada no eap. 23. Alli se
mostra que elleç ferão só á costa de Marrocos : « lls
» s allerent noyer en la coste de Barbarie prés de
» Maroc (p. 42). »
Ora se acabamos de vêr que os Normandos de Be-
ihencourt não passarão da costa de Marrocos , o que se
lé a pag. 97, cap. 53 ,. mostra que as relações que elles
tinhão da costa occidental d'Africa , não passavão da
parte da. dita costa situada aquem do Cabo Bojador,
o que ainda melhor se demostra pelo cap. 54, no qual
dizem os autores da relação : « Or est l intention de
-> M: de Bethencourt de visiter la contrée de la terre
» ferme de Cap Cantim, qui est mi-voyat>e d'icy et
» etEspagncjusquau Cap de Bugeder, qui faitla pointe
» de la terre ferme au droit de nous, et s'étend de
•- 1'autre bande jusquau fleuve de ÍOr. »
Por este capitulo se mostra tambem que alli se não
indica que Bethencourt tivesse executado este mesmo
projecto de visitar os logares situados mesmo aquem do
cabo , pelo contrario elle se queixa de não obter auxilio
d'elRei de França: «Et si ledit seigneurde Bethencourt
» eút trouvè quelque confort au rojaume de France, il
» ne faut point douter (note-se) que de présent, ou
» bientôt après , il nefút venu à son attente , et spécia-
» lement des isles Canariennes. »
Por outra parte se os Normandos tivessem- algum
conhecimento pratico da parte da costa occidental d'A-
frica , situada nas extremidades do imperio de Marrocos
e da costa que corre entre o Cabo Bojador e o fíio do
— 158 —

Ouro dos Portuguezes , os capellàes de Bethencourt não


dirião o seguinte que elle tinha tenção de fazer a explo
ração daquellas paragens : « Pour voir s ilpourra trouver
» aucun bon port et lieu qui se peut jòrtifier et eslre te-
» nable quand temps et lieu sera, pour avoir 1'entrée
» du pajs et le mettre en treu (1) sil chet à point (2). »
Logo fica evidente á vista desta passagem que os Nor
mandos não tinhão o menor conhecimento pratico dos
portos situados aquem do Bojador, paragens que todavia
elles reconhecião, como vimos acima, serem perfeita
mente conhecidas pelos pilotos portuguezes em 1402.
Ora a experiencia nautica não se adquire em poucos
annos ; se os Normandos reconhecião então que os Por
tuguezes erão superiores no conhecimento daquellas
paragens, e daquelles paizes á maior parte das ou
tras nações maritimas, reconhecião igualmente como
reconhecérão que a sua experiencia daquelles portos ,
costas e paizes era superior á dos Normandos e Fran-
cezes nos fins do seculo xiv°, tempo no qual Villaut, La-
bat e os escriptores que os seguirão pretenderão que
os maritimos de Dieppe havião fundado estabelecimen
tos na Guiné.
A inexperiencia dos Normandos e falta de conheci
mento daquellas paragens ainda mais se manifesta
pela seguinte confissão :
« Et pour que le dit de Bethencourtagrand voulenlé
» de sçavoir le veritable estat et gouvernement du pays

{i) Subjeição e tributo, segundo Bergeron.


(2) Jbid., pag. 99.
— 159 —

» des Sarrasins (1) et des ports de mer que Ion leur dit
» estre bons , du costé de la terre Ferme qui marche
» douze I ieues prés de nous au droit du Cap de Bugeder. »
E para saber Iodas estas cousas Betbencourt recorre
não aos livros francezes ou italianos, mas sim aux
exl.ra.its d'un livre quefit unfrèrv mendiant espagnol (2) ,
que tinha viajado em todos os reinos christãos , e pa
gãos, e sarracenos deste lado. Vejamos agora quaes erão
os paizes descriptos no famoso livro do religioso.
Visitou Marrocos, de lá veio a Azamor, e a Saphi,
d'alli a Mogador , c depois a Gasulle (3), e dalli a um
porto que elle chama Samateve , e daqui ao Cabo Não
onde se embarcou a bordo de uma barca , e correo (no-
te-se) toute la coste des Mores qui se nomme les Pla-
gues Areneuses jusquau Cap de By aodor qui marche
douze lieues prés da nous , et est un grand royaume
qui s'appelle la Guinoje (Guiné) , e depois de che
garem ao Cabo Bojador forão vêr, e reconhecer as ilhas
da parte de cá, áquem (de par deçà).
Consequentemente tudo quanto se deprehende do
sentido obvioda relação do livro de que se servio Bethen-
court prova que o mesmo famoso religioso viajante não
conheceo nada da costa além do Bojador descoberta de
pois pelos Portuguezes, e que os seus conhecimentos
geograficos erão os mesmos que tinhão todos os povos

(1) Vide cap. 55, pag. 100.


(2) lbid.
(3) Vide Gesulia na carta de Chenier na sua obra. Recherches
historiques sur les Maures et Histoire de 1'empire de Maroc.
— 160 —

christãos nos fins da idade media acerca da Africa


pelas viagens e relações das caravanas. Mas a passagem
mais importante desta relação é a que se refere á Gui-
noye (a Guiné), visto que a dita passagem prova que
elle não só alli não fora, mas o que é mais impor
tante é que prova que não conhecia a verdadeira Gui
né dos Portuguezes, pois collocava este paiz junto,
ou perto do Cabo Bojador {prés de nous) (1). Este
erro em que estavão as nações christãas no xiv° se
culo e no principio do xv° acerca da posição ou da si
tuação da verdadeira Guiné descoberta só pelos Portu
guezes depois de 1433, produzio a espantosa confusão
que depois do descobrimento dos Portuguezes fizerão
alguns escri piores das nações estrangeiras ; erro, e con
fusão que produzirão as pretenções dos escriptores hes-
panhoes, genovezes , e normandos dos tempos poste
riores ao nosso descobrimento , como mostraremos mais
claramente no seguinte §°.
A dita passagem reforça tambem as provas de que
os Normandos não tinhão hido á verdadeira Guiné
antes dos Portuguezes , alias os capellães de Betben-
court terião feito disso menção, e estarião mais adian
tados no conhecimento da posição geografica da Guiné,
de que o religioso hespanhol de cuja obra elles se ser-
vião.

(1) Vide p. 102 da mesma relação. Note-se que os Norman


dos se achavão então nas Canarias, e julgavão que a Guine era si
tuada prés de nous , mui perto delles no outro lado no continente
mesmo áquem do Bojador. Na carta catalan de 1375 se vè
Ginya ao sul das montanhas que representão os montes da Lua.
— 161 —

Os extractos ou antes citações da obra do dito viajante


provão igualmente que o Rio do Ouro de que alli se
faz menção, bem como o rio deste nome ao qual se
dirigia o Catalão Jacques Ferrer (1), não era o mesmo
Rio do Ouro descoberto primeiramente pelos Portugue-
zes na costa occidental d' Africa ao sul do Bojador; pelo
menos não ha certeza de que fosse o mesmo, como mos
traremos em outra parte.
Não nos demoraremos mais em analysar esta relação,
tendo dito bastante para convencer o critico mais mi
nucioso, e severo de que os Normandos, e outros na
vegadores francezes só forão á verdadeira Guiné perto
de seculo e meio depois da bida de Bethencourt ás
Canarias e dos seus companheiros á famosa Gynoie
situada a 12 legoas da ilha de Forteventura ! só alli
foraõ um seculo depois do descobrimento dos Portu-
guezes , como acabamos de mostrar neste

S XVII.
Mostra-se qual era a Guiné de que Unhão noticia os povos da Euro
pa no» XIVo e XVo seculos, antes do descobrimento real desta
parte d'Africa pelos Portuguezes. Dos erros em que cahirão os
escriptores italianos , hespanhoes e depois delles os francezes
ácerca da posição geografica deste paiz, e da confusão que fize-
rão depois do dito descobrimento pelos Portuguezes , os quaes
derão origem ás infundadas, e injustas pretenções de nos dispu
larem a prioridade incontestavel do descobrimento da verdadeira
Guiné.

No §° XI mostrámos que os cosmografos dos fins


do XIVo seculo terminavão a costa occidental d'Africa
11
— 162 —

nas suas cartas no Cabo Bojador, no §° XIII mostrámos


igualmente que os ditos cosmografos, apezar de terem
noticia pela obra d'£drisi, e pelas relações dos Arabes
de varios paizes do interior , e entre estes do paiz de
Guiné, collocavão esta nas suas cartas junto ao Atlas, e
na altura do Cabo Bojador , afim de não descerem
mais ao sul , além do ponto conhecido sobre a costa (1).
Agora diremos que os povos da Europa começarão só
no XIVo seculo, em razão das suas relações com a Africa
septemtrional , e com o imperio de Marrocos, a terem
noticias pelos Mouros do commercio que os traficantes
do dito imperio fazião por via das caravanas com um
paiz muito rico, situado no interior dAfrica, chamado
Geny , Ginja , Gineva, ou Gynoia, o qual produzia
muito ouro , e que era habitado por negros.
Taes erão as unicas noticias que as nações da Europa
tinhão daquelle paiz antes do descobrimento delle, noti
cias indirectas, e inteiramente vagas ; taes erão em fim as
noticias que tinhaõ da Guiné os Normandos no principio
do seculo XV antes do descobrimento daquelle paiz
pelos Portuguezes.
As seguintes passagens da relação autentica dos ca-
pellães de Bethencourt mostraráõ do modo mais evi
dente que a Guiné onde forão os Normandos não é a
verdadeira Guiné, não é o paiz deste nome sò e exclusi
vamente descoberto pelos Portuguezes no xvJ seculo ;

(1) Vide pag. 114 e 115. Vide as tres primeiras cartas do nosso
Atlas, de 1367, 1375, e de 1384 a 1400. Planch.i n» 1°.
— 163 —

as ditas passagens mostrarão que a parte da costa


d'Africa occidental que elles tomárâo pela Guiné , era
a de Marrocos e do começo do deserto fronteiro ás Cana
rias, e áquem do Gabo Bojador, cujas costas e portos erão
frequentados desde tempos mui remotos por outros povos
maritimos da Europa e pelos Portuguezes.
No capitolo 57 , p. 105 e 106 da relação dos capellães
de Bethencourt, dizem estes : « Et mesmement se parti t
» la saison avant monsieur de Bethencourt , et vint par
» de ça un basteau avec quinze compagnons dedans
» d'une des isles nommée Erbanie ( Forteventura ) et
>. s'en alla au cap de Bugeder , qui siet au royaume de
» la Guinoye à 12 lieues prés de nous ! » Isto é da ilha
de Forteventura onde elles se achavão.
Ora esta passagem não deixa a menor duvida da
situação geografica da Guiné dos Normandos , a qual
segundo elles ficava áquem do Cabo Bojador , e a 12 le-
goas de Forteventura , uma das Canarias. Mas a outra
passagem da pag. 133, cap. 71 , quando tratão da ilha
de Lancerote, prova ainda mais a convicção em que
estavão de que a Guiné lhes ficava defronte.
« El de Vautre costé (da dita ilha) devers la Guinoj e,
» qui est terre Jerme des Sarrasins. »
A mesma erradissima idea da posição geografica da
Guinea tinha elRei de Castella , como se vé do que
escrevéraao papa, e se mostra pela seguinte passagem
desta relação contemporânea.
Tratando os mencionados AA. da hida de Bethen
court a Roma durante o pontificado d'Innocencio VII
— 164 —

em 1406, e do que escrevêra elRei de Castella ao ponti


fice , dizem pag. 197, cap. 89 , que o papa dissera a
Bethencourt ; « Le roy d'Espaigne icy me rescrit que
» vous a^ez conquis certaines isles (as Canarias), lesquel-
» les sont de présent à foi de J. C. et les avez fait tous
» baptiser ; pourquoi je vous veux tenir mon enfant et
» enfant de 1'Eglise , et serez cause et commencement
» qu'il y aura dautres enfants , qui conquerreront après
» plusgrand chose (1) ; car aussi que j'entens , le paysde
» terre ferme n'est pas loing d'y Ia , les pays de Gujnée
» et de Barbarie ne sont pas à plus de douze lieues (2) ,
» encore me rescript le roy d'Espaigne que vous avez
» esté dans ledit pays de Guynée (3) bien dix lieues , et
» que vous avez tué et amené des Sarrasins. »
A' vista destas passagens de uma relação contempora
nea escripta por testemunhas oculares , por Jean Le

(1) Esta só passagem bastava em boa critica para provar que In


do quanto disse Villaui é fabuloso, pois se desde 1364 a 1410. isto
é no tempo de Bethencourt , os Normandos tivessem hido todos os
annos á verdadeira Guiné, isto c ao Petit -Dieppe fundado entre
1626 c 1631, mais de 200 annos depois, nem o papa diria isto em
1406, nem os capellães de Bethencourt deixarião de fazer disso
menção.
(2) Note- se pelas expressões que a Guinei, e a Barbaria se con-
siderão pelo menos lemitropbes.
(3) Bethencourt, como mostrámos acima, não passou além do
Cabo Bojador, e vè-se tambem por esta passagem que o rei d'Hes-
panha tomava os Sarracenos das praias arenosas, ou antes os do
imperio de Marrocos, pelos habitantes da Guiné.
— 165 —

Verrier, que como elle declara fallando de Bethencourt ,


« qui Vavoit nienè et ramené des isles Canaries , et
» escrivit son testament ; » á vista destas passagens , di
zemos, não resta a menor duvida de qual era a Guiné
a que forão os Hespanhoes, e Normandos no xiv° e prin
cipios do xv° seculos antes da passagem do Cabo Boja
dor por Gil Eannes , e do descobrimento da verdadeira
Guiné pelos Portuguezes , facto que ainda melhor se
demonstra pelas provas que as cartas do nosso Atlas
anteriores aos nossos descobrimentos attestão sem replica
pela perfeita harmonia em que estão com os textos dos
autores contemporaneos , e com os factos.
Por esta convicção em que estavão os Castellanos no
xiv° e no começo do xv° seculo de que, frequentando a
parte da costa occidental d'Africa fronteira ás Canarias,
hião á Guiné, da mesma maneira , e pela mesma convic
ção que tinhão os Genovezes, e outros povos maritimos
principalmente do Mediterraneo, que se derigiãoáquel-
las costas áquem do Bojador, de que hindo alli apor-
tavão á Guiné; por esta errada convicção, dizemos, é que,
logo que os Portuguezes descobrirão a verdadeira Guiné,
os Castellanos sobre todos pretenderão arrogar-se, pela
identidade da denominação, a prioridade do descobri
mento e até das relações commerciaes , e disputar a
gloria , e os proveitos aos Portuguezes, sem se importa
rem com o espantoso erro de posição geografica de mais
de 18 graos de latitude, que separa a verdadeira Guiné
da parte da costa africana áquem do Bojador, a que
elles davão este nome.
— 166 —

Foi fundado sobre este erro espantoso que elRei


D. João IIo de Castella nas cartas que escreveo a elRei
D. Alfonso V de Portugal, datadas de Toledo em 25 de
maio de 14-52, e de Valladolid de 10 dabril de H54 (1),
acerca das incursões que os nossos maritimos fazião nas
Canarias, e de ter o infante D. Henrique querido tomar
posse das ditas ilbas ; foi fundado neste erro , dizemos,
«jue o dito rei na ultima destas cartas diz o seguinte :
« Otrosi , rey muy caro é muy amado sobrino, vosnoti-
» ficamos que viniendo ciertas caravelas de ciertos
» nuestros súbditos é naturales vecinos de las nuestras
» ciudades de Sevilla y Cádiz con sus mercadorias de la
» tierra que llaman Guinea que es de nuestra conquis-
» ta (2), é llegando cerca de la nuestra ciudad de Cádiz á
» una legua estando en nuestro seííorio é jurisdicion ,
» recudieron contra ellos Pallencio vuestro capitan,*
etc., o qual tomara uma das caravellas.
Ao que fica demonstrado acrescentaremos que combi
nando esta passagem da carta d'elRei de Castella com
as incursões que fazia Pallenço nas Canarias, do qual
trata Azurara , e com a carta ao papa de que acima
falfamos , e combinando-a em fim com outros documen
tos historicos , se mostra que a Guinea de que se trata é

(1) Estas cartas se achão copiadas por Las Casas na sua preciosa
Jfistoria de las índias inedita, tom. i, de pag. 123 a 133.
(2) Isto era conforme com as pretenções que tinhào os reis
de Castella de serem senhores do que clles chamarão regno d'A-
frica , direito que elles derivavãn dos Godos.
— 167 —

a que elles situavão áquemdo Bojador. Este erro geogra


fico estava de tal modo generalizado que Azurara que
tinha concluido de escrever a sua Chronica da conquista
de Guiné , no anno anterior ao da carta d'elRei de
' Castella , diz , quando trata da chegada de Denis Dias á
'terra dos Negros, isto é ao Senegal (1) :
« E como quer que nós ja nomeassemos algumas
» vezes em esta estorya Guinee por a outra terra em
» que os primeiros forom , screvemollo assj emcommum,
» mas nom por que a terra seja toda huma, ca grande de-
» ferença teem umas terras das outras e muy afastadas
» som. »
Chamámos a attcnção do leitor acerca da importancia
da expressão d'Azurara screvemollo assy em commum ,
por que ella mostra sem replica, confrontando-a com as
passagens extrahidasda relação dos capelláes de Bethen-
court, que a parte da costa d'Africa occidental áquem
do Bojador , a que antes do descobrimento portuguez
chamavão Guiné, a quelmo os diversos maritimos da
Europa, não era a verdadeira Guiné descoberta só pelos
Portuguezes. A esta ultima não havia, em o tempo do
descobrimento, noticia alguma que outra alguma nação
europea alli tivesse hido anteriormente aos Portu-
guezes.
O que ainda mais se confirma pela seguinte pas
sagem do mesmo chronista contemporaneo, quando
Irata do descobrimento do Senegal, que então tomavào

(t) Vid. Azurara, cap. XXXI, pag. 188.

I ill
— 168 —

peloiVi/o, e do paiz além do Gambia então pelos Portu


guezes descoberto , na qual diz o seguinte :
a Todos os segredos e maravilhas trouve o engenho
» do nosso principe ( o infante D. Henrique ) ante os
» olhos dos naturaes do nosso regno. Ca* posto que
» todallas cousas de que falley das maravilhas do Nilk>
» per seus olhos nom podessem ser vistas , o que fora
» impossivel , grande cousa foe chegarem ally os seus
» Jiavyos onde numca he achado per scriptura que outro
» algum navyo destas partes chegasse, o que he bem
» d'affirmar segundo as cousas que no começo deste livro
» tenho dictas acerca da passagem do Cabo Bojador , e
» ainda pelo espanto que os naturaes daquella terra
» ouverom quando viram os primeiros navyos , que se
» hiam a elles pensando que erapeixe ou outra alguma
» semilhante cousa natural do mar (1). »
Ora , ficando assim, pela analyse dos documentos con
temporaneos, provado o erro e confusão geografica em
que estavão os povos maritimos da Europa acerca da
verdadeira posição da Guiné antes da incontestaveljjz70-
i idade de descobrimento desta pelos Portuguezes , cla
ro fica tambem que as expressões d'elRei de Castella, que
se lêem em a carta a elRei D. Affonso V, não destroem a
prioridade dos descobrimentos dos Portuguezes, antes
a confirmão, como foi depois explicitamente declarado
nos artigos do Tratado de 1480.

(1) Vide Azurara , Chron. da Conq. de Guine, cap. LXI1I, p. 301 .


Compare-se esta importante passagem com as que transcrevemos
ap.20e seguintes, §» III, e a pag. 108, %° XI.
— 169 —

Disgraçadamente porém a falta de critica e de conhe


cimentos profundos em materias geograficas por uma
parte , e pela outra um amor proprio nacional mal en
tendido de certos autores hespanhoes , italianos, e
francezes , fizerão propagar esta confusão até aos nossos
dias , renovando sempre que podem suas pretencões de
supposta prioridade de descobrimento da costa d'Africa
occidental além do Bojador, illudidos por esta confusão,
e por este grandissimo erro geografico.
Pelo que respeita aos AA. hespanhoes vémos um es-
criptor desta nação, em uma obra recentemente pu
blicada, illudido ainda por esta fatal confusão geogra
fica tirar das palavras da carta d'elRei de Castella
de 1454 que acima citámos , a consequencia de que a
Guiné fora descoberta primeiramente pelos vassallos da
coroa d Hespanha !!
Mas á vista do que deixamos demonstrado já se vé
qual é o valor que se deve dar a esta asserção do A. hes-
panhol , que converteo a seu sabor as palavras da carta :
de uma terra que chamam Guiné que é de nossa con
quista, as quaes erão fundadas nas pretencões dos reis
de Castella ao famoso direito ao queclles chamavão rei
no d'Africa , e na errada confusão que se fazia de que
a Guiné ficava fronteira ás Canarias e era dependencia
dellas ; que tomou , dizemos , as ditas expressões por
uma prova de prioridade de descobrimento !!!
Tem sido pois em consequencia de uma tal confusão,
e de um tal erro geografico, que principalmente desde
Villaut até hoje se nos tem disputado a prioridade do
— 170 —

descobri men to da parte da costa d'Africa occidental além


do Bojador, e particularmente da Guiné , sendo digno
de justo reparo que osescriptores que tem continuado a
sustentar tão infundadas pretenções lhes não tenha sal
tado aos olhos que a denominada Guiné dos Normandos
não era a verdadeira Gume descoberta pelos Portuguezes.
Não terminaremos este §° sem indicarmos ao leitor
unia particularidade interessante, particularidade que
augmenta ainda mais as provas de que antes de Villaut,
isto é antes dos fins do xvu° seculo , não só não havia
tradição das suppostas viagens dos Normandos á verda
deira Guiné, mas tambem que a confusão de que tra
tamos, só se in.troduzio nas obras de Villaut, e nas
posteriores publicações, cujos AA . sem exame nem cri tica
se confiarão cegamente na relação daquelle viajante.
Em nenhum viajante normando ou francez anterior
a Villaut, isto é antes de 1667, se encontra a preten-
ção de terem descoberto a Guiné antes dos Portuguezes,
antes em todos se encontra mencionada a prioridade do
nosso descobrimento , como o leitor verá nas Addições
a esta Memoria. .
O que se lé na mesma obra de Bergeron intitulada :
Traitê des navigations, publicada em 1630 , a pag. 34
e 35, é decisivo sobre este assumpto. Este A. deveria
ter alli fallado dos soppostos descobrimentos dos Nor
mandos, se de taes descobrimentos houvesse mesmo sim
ples tradição, mas Bergeron pelo contrario diz, p. 36,
que foião os Portuguezes que descobrirão loda a costa
de Guiné.
— 171 —

Ora as relações de Beíhencourt forão publicadas


em 1630, e nestas lérão Fillaut e outros autores de me
morias normandas as passagens que se referem á hida
dos Normandos á chamada Guiné áquem do Bojador,
passagens que acima produzimos; e por outra parte
combinando-as com a existencia da feitoria do Petit-
Dieppe fundada depois da companhia de 1626, cuja de
nominação se espalhava já nas cartas francezas desde a de
Guerard de 1631 , cahiraonogravissimoerrode confundir
a posição geografica da Guiné das Relações de Beíhen
court , com a denominação do Pelit-Dicppe marcado em
muitas cartas posteriores á de Guerard (1) e situado na
verdadeira Guiné descoberta pelos Portuguezes ; e sem
a menor critica embrulharão, e confundlrão datas e
factos, e as denominações e posições geograficas : e de
toda esta confusão composérão na ultima metade do
xv)i° seculo a famosa historia dos suppostos descobri
mentos na Guiné anteriores aos verdadeiros descobri
mentos dos Portuguezes.

§° XVIII.
Mostra-se que o projecto de viagem do Catalão Jacquet Ferrer a um
rio chamado do Ouro em 1 346 uão destroe de modo algum a
prioridade do descobrimento da costa Occidental d Africa além
do Cabo Bojador pelos Portuguezes.

Podiamos deixar de tratar deste assumpto á vista do


que fica provado nesta Memoria ; mas como até com este

(1) Vide §» IX, p. 89 e 90.


projecto catalão (sem mesmo saberem que elle fosse le
vado a efleito), se tem pretendido ultimamente dispu
tar a prioridade dos nossos descobrimentos além do
Cabo Bojador, e isto em algumas obras que podem con
tinuar a propagar o erro, e a injustiça, pareceo-nos
acertado mostrar que este projecto de viagem a um rio a
que chamavão do Ouro , longe de destruir a incontesta
vel prioridade dos descobrimentos portuguezes além do
Cabo Bojador, antes em boa critica nos parece confir-
mál-a de um modo mais positivo, e concludente. Já
em 1809 o nosso sabio collega o senhor barão Walcke-
naer, em uma carta dirigida a Malte- Brun publicada
nos Annales des Voyages (1) , caracterizou esta viagem
do Catalão Jacques Ferrer como ella deve ser caracteri
zada pela verdadeira critica. Transcreveremos aqui tex-
toal mente aquella excellente analyse feita por este il-
lustre geografo.
« Vous mavez demande (diz elle) si je ne croyais pas
» qu'il y eút erreur de copiste dans Ia date de 134-6 ? si
» en supposant cette date exacte, il ne résultait pas de
» ce passage une preuve evidente que le cap Bojador
» avait été doublé dès 134-6 ? Je réponds à la première
» question que je ne vois pas qu'il y ait erreur dans la
» date.
» Je réponds à la seconde que ce fragment ne prouve
» absolument rien pour 1'extension des connaissances
» géographiques en 1346 au dela ducap Bojador, ni

(1) Vide Annales des Voynges de Mallu-Brun, lre série, tome 7.


Ann. de 1809, p. 240.
— 173 —

» même au delà du cap Nun. Les preuves de ces as-


« serlions sont courtes et évidentes. »
M. Walckenaer passa a tratar das suas notas á Geo
grafia de Pinkerlon , e das très cartas de Pizigani , ca
talan, e da Bibliotheca Pinelli, isto é das datas dellas,
e acrescenta :
« En supposant , comme je le crois, que cette date de
n 1346 est certaine , cela ne prouve pas qu'en 1346 les
» connaissances géographiques s'étendissent jusqu'au
» Rio d'Ouro : que dis-je ? Ce fragment prouve précísé-
» ment le contraire. Il nous apprend qu'un certain Jean
» (alias Jacques) de Ferrer, Catalan , partit de la ville de
» Majorque sur un bátiment le 10 août 1346 pour se
» rendre (causa eundi) au Rujaura (1), et que depuis on
» n'en a plus entendu parler.
» Il n'y a pas de doute que ce Rujaura ne &o\l\'Au-
» rius fluvius des cartes de Sanuto , le Rio d'Ouro de
» nos cartes modernes.
» Cela prouve qu'en 1346 on avait entendu parler
» d'un fleuve sur les bords duquel on recueillait de l'or,
» et qu'onfaisait alors des efforts pour le découvrir, et
» que Ferrer fit une de ces tentatives et qu'il y suc-
» comba. Rien neprouve qu'il soit seulement sorti de la
» Méditerranée (2).

(t) Vide a plancha I", carta n° 2, do nosso Allas, que acompanha


esta Memoria.
(2) E esta é a nossa opinião, apezar da objecção que certos escrip-
tores leimosos em buscar todos os pretextos para diminuirem a in-
— 174 —

n On m'objectera qu'à la suite est un détail circon-


» stancié du Rujaura (1); mais ce détail ne peut êlre de
n Ferrer, puisqu^il pêrit dans son expédition. Le uom
» Rujaura a pu être connu du temps de Ferrer sans
» quaucun vaisseauyJút parvenu, sans quoneút méme
» passé le cap Nun.
» Le cap de Ronne-Espêrance était nommé avant
» d'étre découvert.
» Nous ne doutons pas (dizia então o A.) de 1'existence
» de Tombouctou , quoique tous nos eflorts pour y arri-
» ver aient été jusqu'ici sans succès : combien de pays ,
» de villes , de rivières dans 1'intérieur de 1'Afrique,
» dont nous parlons, que nous inscrivons sur nos cartes,
» et que nous ne connaissons pas ! »
A este conceito do senhor Walckenaer juntaremos o
do autor da excellente e erudita obra intitulada Archeo-
logia naval. Transcreveremos tambem a passagem tex-
toalmente para que o sentido e espirito do original
não sofíra a menor alteração : « Sur l'un des feuillets de
» I'Atlas calalan de 1375 (diz M. Jal) , manuscrit pré-
i) cieux que possède la Bibliotbèque roynle (département

contestavel prioridade dos nossos descobrimentos, nos podem fazer


em razão de se achar pintado o navio de Jacquet Ferrer na carta
catalan na posição em que se vê na carta n° 2 do nosso Atlas.
M. Walekenaer conhecia já em 1809 esla particularidade, c apezar
disso pronunciou o juizo que deixamos transcripto.
(1) Papeis encontrados em Genova pelo S' Graherg.
— 175 —

» des cartes) , se voit un navire faisant voilc vent arrière


» (note-se) vers \ecap Bojador (1). »
O leitor imparcial que lançar os olhos sobre a carta
n° 2 da plan. 1* do nosso Atlas onde se encontra o fac
simile do dito navio, ficará convencido da exactidão da
observação deste sabio official de marinha , e verá que
se o dito navio navegasse na direcção do Tropico, istoé
na do Rio do Ouro descoberto pelos Portuguezes, a sua
mareação não seria a que o desenhador lhe dera. M. Jal
continua em outra parte sobre este assumpto, dizendo
o seguinte ácerca de um navio pintado em uma das cartas
do Atlas catalão :
« Y a-t-il quelque chose deplus manifestement infi-
» dèle , de plus grossièrement trompeur que ce vais-
» seau ? »
Passa a analysar as formas e construcção do navio ,
e diz :
« On m'a dit que 1'Atlas catalan était un monument
» si respectable, qu'il était difficile d'en rejeter 1'auto-
» rité : je crois que son autorité en tout ce qui est de la
« géographie mérite qu'on prenne 1'AtIas três au sé-
» rieux. » Mais M. Jal julga que se por uma parte este
Atlas é importante na parte geografica, pela outra o
desenhador ignorava completamente a maneira de dese
nhar os navios.

(i) Vide Archéologie navale, par A. Jal, historiographe de la


marine, membre du Comité hislorique desehartes, etc. Paris, 1840,
tom. 1», p, 4<4.
— 176 —

« Si Por) veut (acrescenta o A.) que malgré 1'évidence


» je croie à sa fi deli té comme dessinateur de navires,
» cest apparemmentqu'on croitaussiàsa tidélité comme
» dessinateur d'hommes et danimaux ; or que voit-on
» sur les cartes catalanes ? »
M. Jal passa então a notar as monstruosidades e ano
malias que se observão nas figuras dos homens c dos
animaes pintados neste Atlas, e conclue que se não deve
admittir nesta parte a autoridade do Atlas , « pas plus
» quil ne faut. croire que 1'Uxer de Ferrer allant au
n cap Bojador était une faible barque n'ayant ni hau-
n bans ni étai pour son màt , ni drisse pour sa voile , ni
« aucune manceuvre pour son antenne , si ce n'est une
» oste et son palan. »
A isto poderão replicar aquelles que não admittem a
menor discussão sobre o Atlas catalão , dizendo que os
defeitos do navio não destroem a importancia da nota do
cosmografo que indica que Jacques Ferrer partira para
o Bio do Ouro a 10 dagosto de 1346 , e que em conse
quencia os Catalães tinhão conhecimento do Rio do
Ouro perto de um seculo antes dos Portuguezes o des
cobrirem. A esta objecção responde em nosso entender
não só a carta de M. Walckenaer que acima transcreve
mos , mas tambem o que se acha no Mss. de Genova ,
« para hir a um rio chamado Vedamel ou Ruijaura , »
denominações que em nosso entender tornào ainda mais
incerta a viagem de Ferrer ao Rio d'Ouro descoberto
pelos Portuguezes.
Com efíeito se o Rio d'Ouro de que tratava o autor
— 177 —

da nota do Atlas catalão fosse o descoberto pelos Por-


tuguezes além do Cabo Bojador junto ao tropico ,
o mesmo cosmografo teria prolongado a configuração
da costa até áquelle ponto , e teria marcado o Rio do
Ouro; mas pelo contrario a costa acaba no Cabo Boja
dor ( vid. a carta n° 2 do nosso Atlas , plan. 1" ) , e o dito
cosmografo collocou junto a este cabo a nota que se lé
na mesma carta.
Além de que, em todas as cartas desenhadas nos diver
sos paizes da Europa até a epoca em que os Portuguezes
descobrirão a costa occidental d'Africa além do Cabo
Bojador, não se vê nellas marcadas nem costa , nem
nome algum, nem ponto indicado além do dito cabo,
como mostrámos nos §os IX e X , e se vé do modo mais
evidente pelas cartas do nosso Atlas , circumstancia que
está em perfeita harmonia com o testemunho do mais
veneravel e authentico documento historico contempo
raneo , a saber com as seguintes passagens da Chronica
da Conquista de Guiné por Azurara , na qual diz :
« E foe achado que ataa esta era de \kk& do nasci -
» mento de N. S. J. C. forom em aquellas partes cin-
» quoenta e huma caravellas , e foram estas caravellas
» além do Cabo ( Bojador) 450 legoas. E achasse que
» Ioda aquella costa vay ao sul , com muytas pontas,
» segundo que este nosso principe mandou acrescentar
» na carta de marear (1;. E he de saber que o que se

(1) Esta passagem responde do modo mais coneludente áquelles


que se tem fundado em hypotheses para nos disputarem a priori
dade dos nossos descobrimentos naquella parte d'Africa.
12
— 178 —

» sabja em certo da costa do mar grande ( o Oceano )


» erão 200 legoas , e o que se mostrava no mapamundy
» quanto ao desta costa , nom era verdade , ca o nora
» pintavam senão a aventura (1); mas esto que agora
» he posto nas cartas foe cousa vista por olho, segundo
» já tendes ouvido. »
Este importantissimo testemunho historico mostra e
corrobora do modo mais evidente não só tudo quanto
dissemos nos §M IX, X e XVII, mas tambem as ponde
rações que acima fizemos acerca da viagem do catalão
Jacques Ferrer, e da indubitavel prioridade dos nossos
descobrimentos além do Cabo Bojador, prioridade que
ainda se faz mais evidente á vista da outra passagem da
mesma Chronica quando trata das razões que moverão
o infante dom Henrique a mandar descobrir as terras
de Guiné.
« E a segunda foe (diz Azurara) (2) por que consiirou ,
» que achando-se em aquellas terras alguma povoraçom
» de xpãos, ou alguns taes portos em que sem perigo
» podessem navegar, que se poderyam pera estes regnos
» trazer muytas mercadaryas, que se averyam de boõ

(1) Azurara, Chron. da Conquista de Guiné, cap. 78.


(2) Azurara, Chronica, pag. 46 , cap. 7. Compare-se estas passa
gens com as do mesmo A. que transcrevemos a pag. 20 e 2< , § III ;
e pag. 108, § XI , e com a de Ruy de Pina no cap. 57 da Chronica
d'elRei D. João 11, fallando da continuação dos descobrimentos:
- Como grão catholico e muy solicito investigador dos secretos do
• mundo, desejando proseguir o descobrimento das costas do mar
» Oceano contra o Meio Dia, e Oriente, etc., que seus antecessores
• primeiro que nenhuns do mundo cmprchenderão e commeçaram . •
— 170 —

» mercado, secundo razom^ pois com elles nom tratavam


» outras persoas destas partes , nem doutras nenhumas
» que sabidas fossem. » ( Isto é das nações da Europa. )
Acrescentaremos ainda ás evidentes provas da prio
ridade dos nossos descobrimentos que resultáo das pas
sagens que acabamos de citar que sendo indubitavel , á
vista dos documentos authenticos , que os Portuguezes
frequentavão as Canarias antes de 1336 (t) , portanto
10 annos antes da partida de Jacques Ferrer para o
problematico Jíio do Ouro da nota da carta catalan ,
seria mesmo contra todas as probabilidades que os Ca
talães estivessem então mais adiantados no conheci
mento da costa occidental d'Africa , além dos mares das
Canarias , do que os Portuguezes que frequentavão
aquellas paragens antes da partida de Jacques Ferrer,
e que estavão muito mais proximos daquellas costas ;
além de que a historia , e os documentos que altestão
que durante todo o decurso do xiv° seculo existirão as
mais estreitas , e continuadas relações entre Portugal e
a Catalunha , não deixão a menor duvida , pelo menos
em nosso entender, de que em Portugal se não podia
ignorar o que se passava naquelle paiz sobre este im
portante assumpto , se da viagem de Ferrer tivesse re
sultado o descobrimento do Jiio do Ouro além do
Cabo Bojador (2) , tanto mais que é provavel queexis-

(1) fide a Memoria já citada do nosso consocio o Sr J. J. da


Cosia de Macedo , no tomo VI das Mem. da Academia Real das
Sciencias de Lisboa, e Additamentos publicados em 1835.
(2) Alguem houve que se illudio aponto tal á vista do navio de
— 180 —

lissem copias das cartas de que se compõe o Atlas ca


talão , como uma nota da carta de Gabriel Valsequa de
Malhorca datada de l!t39 nos mostra que nesta epoca se
conhecia senão aquelle Atlas, pelo menos outro seme
lhante , e nesta ultima epoca o illustre infante D. Hen
rique tinha relações scientificas com o mestre Jacomo
de Malhorca , e portanto não podia ignorar tal desco
brimento se na realidade elle tivesse sido levado a efíeito;
nem Azurara teria escripto o que diz no cap. VIII da
sua Chronica da Conquista de Guiné acerca das razõe ;
pelas quaes os navios não ousavão passar além do Cabo
Bojador, e o grande historiador João de Barros não
teria dito (t), faltando deste rio, e do ouro que alli se

Jacques Ferrer, pintado na carta catalan, que avançou que elle bia
vento em popa para o Gambia !! porque os antigos deverião ter
chamado Rio d'Ouro ao Gambia !! Seria difficil indicar quaes dos
antigos (se se trata da antiguidade classica) fallára do Gambia, e
descrevêra as suas areas auriferas .'! Uma hypothese mais conforme
com o estado (cientiflco da epoca da nota do Atlas, e da direcção do
navio, seria a de que o Rio d' Ouro onde hia Jacques Ferrer podia ser
o Sus nos estados de Marrocos , em razão do muito ouro puro em
que alli se contratava, como diz Leão Africano ; ora o Sus cresce
em setembro (segundo Leão Africano) , e Ferrer tendo partido cm
10 d 'agosto parece indicar a tenção de chegar alli justamente na
epoca em qne o rio onde se contratara em ouro levara maior vo
lume d 'apua. Compare-se o que dizemos aqui com a nota que flze
mos a pag. 97 da Chronica à'Azurara. Devemos advertir que os
Árabes davão o nome de Rio iVOuro a diversos rios; o Rio de Fez ,
que desagua no Sebu, era tambem rhamado pelos Árabes, Rio do
Ouro.
(1) Barros , Decad. 1 , cap. 7.
— 181 —

resgatava : « He hum» quantidade de ouro em pó quefoi


n o primeiro que nestas partes se resgatou , donde ticou
» a este logar por nome Rio do Ouro , sendo somente
» um esteiro d'agua salgada que entra pela terra dentro
» obra de seis legoas. »
A' vista pois do que deixámos demonstrado neste
parece indubitavel que a nota que indica uma viagem
do Catalão Jacques Ferrer em 1346 no Rio do Ouro
dos Portuguezes, rio que alias não existe marcado na
mesma carta, longe de provar cousa alguma contra a evi
dente prioridade dos descobrimentos portuguezes antes
a confirma , e isto do modo mais positivo, visto que de
pois da sua partida nunca mais delle se soubera , quando
alias os descobrimentos portuguezes são todos verifica
dos, e confirmados pelos historiadores e documentos
contemporaneos.

CONCLUSÃO.

Do que deixámos demonstrado nesta Memoria resul-


tão as seguintes consequencias incontestaveis, a saber:
I* Que antes da passagem do Cabo Bojador por Gil
ÍLannes em 1433 , nenhuma nação da Europa conhecia
a costa occidental d'Africa além do dito cabo , e que as
únicas noticias que as ditas nações tinhão do interior,
ou dos pontos proximos das costas daquella parte do
globo a partir daquelle cabo, só as tinhão em razão das
suas reliições com os Mouros e Arabes dos portos da
Africa seplentrional , e com os do imperio de Mar
rocos.

! I I
— 182 —

II* Que antes dos descobrimentos efíectuados pelos


Portuguezes além do Cabo Bojador, a costa occidental
d'Africa , além daqiielle cabo , se não acha marcada nas
cartas historicas , e hydrograficas ; prova evidentissima
de que as ditas costas , e portos , e paizes , não erão co
nhecidos dos cosmografos da Europa , nem visitados
pelos maritimos desta parte do globo (1).
III* Que o estado dos conhecimentos geograficos an
terior á passagem do dito Cabo Bojador pelos Portu-
guezes , e dos nossos descobrimentos , e as obras de
cosmografia, e todos os monumentos historicos ante
riores á dita passagem, estão em perfeita harmonia com
a cartographia , e provão do modo mais evidente que a
parte d'Africa por nós descoberta não era conhecida dos
europeos.
IV* Que em apoio destas provas accrescem as que re-
sullão das relações authenticas dos primeiros descobri
dores portuguezes, e a de Cadamosto, de não terem
encontrado além do Bojador o menor vestigio de terem
hido áquellas paragens anteriormente maritimo algum
Europeo (2).
V* Que depois dos Portuguezes terem passado o Cabo
Bojador e terem examinado e descoberto os diflerentes
pontos, rios e costas da parte occidental d'Africa, e
só depois de os marcarem nas suas cartas nauticas, é que

(1) Vide §»» IX , X e XI , e as cartas do nosso Atlas.


(2) Na edição franceza desta nossa Memoria mostraremos que as
pretençôes dos Genovczes ácerca da expedição de Vivaldi não tem
fundamenlo algum.
— 183 —

as outras nações acrescei) tavão nas suas cartas as custas


d'Africa além do dito cabo, adoptando a nomenclatura
hydro-geograGca portugueza , quando alias antes dos
nossos descobrimentos nenhum nome europeo âe vê
marcado em nenhuma carta anterior. E todos os cosmo
grafos das nações maritimas da Europa observavão uma
regularidade tal neste objecto que , pelas cartas estran
geiras posteriores á passagem do Cabo Bojador pelos
Portuguezes dispostas por ordem chronologica , come
çando mesmo na carta catalan de Valseqiia de 1439 ,
isto é seis annos depois da dita passagem , se mostra que
os cosmografos das outras nações hião ampliando as suas
cartas com a demarcação das costas , e com a nomenclatura
hydro-geografica , á medida que os nossos descobridores
hião adiantando as suas explorações e descobrimentos ,
emarcando-os nas cartas nauticas portuguezas (1) ; prova
indubitavel da prioridade do descobrimento feito pelos
Portuguezes, prova que está em perfeita harmonia com
as relações dos primeiros maritimos portuguezes que
alli aportárão, os quaes não encontrarão entre os povos
situados na parte occidental d'Africa além do Cabo
Bojador vestigio algum de outros Europeos terem alli
aportado antes dos nossos descobrimentos (2).
VP Que em consequencia das provas irrefragaveis da
prioridade dos nossos descobrimentos acima mencio
nadas flcão sendo de nenhum valor as pretenções dos

(1) Vide §-» IX, X, XI e XII, pap. 11* c 11», e a< carta* d»
Atlas que acompanha esta Memoria.
(2) P~idc %« III de pag. 20 a 2*.
— 184 —

Castelhanos (1) , dos Italianos (2), e dos Normandos ,


sendo as destes ultimos sustentadas pela primeira vez
em obras posteriores de dous seculos e mais aos nossos
descobrimentos, e nas quaes se nãoproduzio documento
algum (3) , tanto mais que antes da obra de Villani
publicada em 1669 não existia entre os Normandos e
Francezes nem a menor tradição dos suppostos desco
brimentos dos Dieppezes (4), particularidade que se
prova ainda mais terminantemente pelas relações dos
capellães de Bethencourt (5).
VII* Finalmente que , da falsa posição geografica
dada pelas nações europeas no xiv° e xv° seculos á Guiné,
antes da passagem do Cabo Bojador por Gil Eannes
em 1433, e do descobrimento da verdadeira Guiné
pelos Portuguezes , resultou a confusão , e o erro que
deu logar ás insustentaveis pretenções de outras nações
á prioridade daquelles descobrimentos, eflectundos só,
c realmente pelos Portuguezes (6).
Consequentemente na historia dos descobrimentos

(1) ride §° XV.


(2) ride as Memorias do nosso consocio o S' Macedo, tomo VI
das Mem. da Academia R. das Sciencias de Lisboa , e Additamentos
publicados em 1835.
(3) ride§» Hl, IV", V, VI.
(4) ride §° VI, pag. 64, e nos Additamentos a esta Memoria;
c §° IX, p. 89 e 90. e §° X, pag. 94 e 95, §° XI.
(5) ride §« XVI.
(6) ride §° XVII , e compare-se com o §» IX, principalmente a
pag. 89 e 90.
— 185 —

portuguezes tudo é certo , tudo é confirmado pelas re


lações , e pelos historiadores contemporaneos , pelos
factos incontestaveis , que estendérão de uma maneira
pasmosa os limites da historia da geografia positiva ,
que enrequecérão as sciencias , e que se realisárão de
um modo indubitavel ; factos que estão ao mesmo tempo
em harmonia mais perfeita (quando se estudão con
forme as regras da critica) , com as chronicas e escriptos
contemporaneos, e de AA. que forão testemunhas dos
mesmos acontecimentos, e além disto que estão igual
mente em perfeita harmonia com a cartografia de todas
as nações. Tudo pois se acha intimamente ligado na
historia dos descobrimentos portuguezes na costa occi
dental d'Africa , e isto de tal modo que não é licito
hesitar um só instante sobre a sua indisputavel priori
dade sem derrubar toda a historia positiva , sem dis-
truir to. la a verdade , sem desprezar todas as regras da
critica, e semcommetter a maior injustiça não contra um
indeviduo , o que é sempre reprovado por todas as leis ,
mas sim contra uma nação inteira , contra uma nação que
fez ás sciencias, á navegação, e aos interesses commer-
ciaes de toda a Europa os mais relevantes , e assignalndos
serviços, e taes que se não encontra outro exemplo na
historia que os possa igualar.
Em quanto pois a prioridade dos descobrimentos
eflectuados por uma nação se provar por documentos
authenticos, e por testemunhos contemporaneos, e pela
primitiva posse, unicos titulos dignos de influir nas
discussões politicas, e nas negociações diplomaticas
entre as nações cultas , os que possue Portugal , e que
— 186 —

substanciámos neste escripto não deixãoa menor duvida


sobre os seus direitos.
Os direitos pois da nação portugueza á prioridade do
descobrimento da costa occidental d'Africa além do
Gabo Bojador são incontestaveis. Estes direitos só lhes
podem ser disputados por um laberynto de confusões
e de erros geograficos, d'anachronismos , d'hypotheses
e de sophismas-, mas este expediente cahirá sempre por
terra diante da irrefragavel verdade da historia , e dos
documentos incontestaveis della.
Não terminaremos este escripto sem darmos aqui um
testemunho publico da nossa gratidão a todos os sabios
francezes a cujas luzes recorremos, e que com uma ini
mitavel liberalidade poserão á nossa disposição os the-
souros das repartições que estão a seu cargo , e outros
as suas proprias bibliothecas , e isto com aquella urba-
nidade que caracteriza esta grande nação. Seja-nos licito
emfim dizer, que este escripto, e o Atlas que o acom
panha não poderia ser feito em outro algum paiz, onde
difficultosamente se encontraria esta reunião de ma-
teriaes.

FIM.
ADDIÇOES.

A pag. 16.

As relações dos Portuguezes com os Mouros no xiv° se


culo erão frequentes. Diversos documentos nos restão
para prová-lo. Citaremos apenas os seguintes.
Pelo tratado feito em junho de 1339 em Sevilha entre
Portugal e Castella , se vê pelo artigo 6o que nós tinha
mos relações com os Mouros Granadinos, e com os Afri
canos (1). O mesmo se vé pelo tratado feito entre el-
Rei D. Fernando de Portugal , e o rei de Granada em
1369 (2).
2'.

Sobre a viagem dos Almagrurinos de que Irata Edrisi ,


e que citámos a pag. 18.

Sobre esta viagem e as discussões que acerca della


tem havido entre oscommentadores, o leitor deverá con
sultar Hartmann (Afric. Edrisi , p. 317, 319) ; Buachc,

(1) Fide Monarq. Luait., P. VII, liv. VIII, o. 18, p. 427.


(2) Vide o nosso Quadro elementar rlas relações dlplomaticas, etc..
tomo Io, secção XV.
— 188 —

nas Mem. do Instituto, t. VI, p. 27 -, Humboldt , na


sua obra intitulada : Examen critique de 1'histoire de
la géographie du nouveau continent , t. II, p. 139
e seg. ; e finalmente Histoire naturelle des íles Canaries,
por MM. Webb e Berthelot , Ethnographie , p. 10.
e seg.

3*.

A pag. 17.

Dissemos alli que a nota da carta catala» acerca dos


mercadores que passavão para a terra dos Negros de
Guiné se chamava Vall de Darha , e que o cosmografo
tinha collocado a dita nota perto da costa de Guiné ;
diremos nesta addição para melhor intellgencia, que á
vista da costa , e melhor estudada a nota de que se trata,
e a posição della, esta se acha* no interior junto ao
monte Atlas. Leão Africano trata do deserto de Dara
no liv. II da sua Descripção d'Africa, e com efieito
ainda em nossos dias é pelo Vall de Darha que passão
as caravanas de Tafilet {vide Shaaben*/'s Account of
Timbouctou and Housa , London , 1820 , p. 3 ) .

4*.

Sobre a data da primeira viagem de Cadamosto , a pag. 22.

Em a nota de p. 22 dissemos que a data de íkkh


fixada á primeira viagem de Cadamosto pelo autor do
prefacio da traducçáo das relações deste viajante publi
— 189 —

cada pela Academia Real das Sciencias de Lisboa (1)


era sujeita a uma discussão chronologica.
Posto que indicassemos alli aquella data , todavia pa-
rece-nos que a unica exacta é a do anno de 1455.
Eis-aqui algumas das razões em que nos fundamos.
O academico , autor da introducção feita áquellas rela
ções , não conheceo a Cbronica da conquista de Guiné
por Gomes Eannes de Azurara , e não poude tão pouco
consultar a Dissertação de Zurla sobre Cadamosto dada
á luz tres annos depois da publicação feita pela Acade
mia (2) ; seguio pois Damião de Goes ( o qual tambem
não tinha tido conhecimento da Chronica da conquista
de Guiné por Azurara) fixou o dito anno de 1444
apezar de ter visto em Ramusio a data de 1454 e de vér
que Tiraboschi a tinha adoptado Julgámos comtudo
que apezar dos argumentos produzidos por Goes e pelo
traductor portuguez , que a verdadeira data deve ser a
do anno de 1455, em razão do silencio de Azurara acerca
de Cadamosto, do qual não diz uma só palavra, mencio
nando comtudo outros viajantes estrangeiros que acom-
panhárão os nossos descobridores do tempo do Infante.
Azurara acabou a sua Chronica no anno de 1448, isto é
sete annos antes da viagem de Cadamosto , e pela ver
dadeira data da primeira viagem deste Veneziano dever
ser de 1455, como julgámos mais provavel, Azurara

(1) Collecção de Noticias para a historia e geografia das nações


ultramarinas, tomo II, ii° 1.
(2) Dei Viaggi e delle Scoperte africane de Alvise da Cn-da-Mosto ,
patricio veneto. Dissertazione. Venezia, 1815.
— 190 —

não mencionou na sua chronica este acontecimento,


além de que tendo Caâamosto navegado conjuntamente
com Antonio de Nolle, o Antonioto Usodimare do mss.
de Genova (1) , e a carta deste ultimo acerca da sua via
gem sendo datada de 12 de dezembro de 14.55 , e a par
tida de Cadamosto a 22 de março do dito anno de 1455
ainda mais nos persuade ser este o anno em que real
mente Cadamosto partio pela primeira vez por ordem
do infante D. Henrique em companhia de Vicente Dias,
natural de Lagos, como elle diz no capitulo 2°, mas
esta particularidade combinada com o silencio A'Azu
rara no capitulo 58 , pag. 269 , acerca do navegador
veneziano , fallando alias pela primeira vez neste Vi
cente Dias, armador de Lagos, que acompanhou a grande
expedição das 13 caravellas commandadas porLancerote ,
esta particularidade, dizemos, ainda mais nos persuade
que a viagem de Cadamosto em companhia deste Vicenle
Dias foi mui posterior ao anno de 1445, tanto mais que
este viajante portuguez chegou então ao Senegal , como
se vé em Azurara , pag. 280, 287, e commandava uma
caravella. Além disto da confrontação da relação d' Azu
rara com a de Cadamosto , cap. xv, se vé que a viagem
de Vicente Dias ao Senegal em 1445 não é a mesma que
elle fez depois com Cadamosto , pois este ultimo diz
tambem que 5 annos antes que ellefizesse áquella jor
nada fora descoberto o Senegal por tres caravellas do

(1) Vide Annali di geogr. e ili stntist. ili Giac. Grnhersg , t. II,
p. 286.
— 191 —
Sr Infante que nelle entrarão, etc. (1); logo a commer-
ciar i e assim de anno em anno forão hindo là navios
até ao meu tempo.
Adoptando-se a data de Azurara desta viagem de
Vicente Dias , isto é de 1445, a de Cadamosto, tendo
lido logar 5 annos depois, da-nos o anno de 1450, mas se
se procedesse a uma discussão maior acerca desta mesma
data de 1450, o que não cabe nos limites desta addiçâo,
poderia-mos fixá-la a uma epoca posterior á de 1450.
Cadamosto foi o primeiro Veneziano que navegou fora
do estreito de Gibraltar para o meiodia , como diz
Marco Barbaro (vide Zurla , Dissertazioni sopra Cada
mosto, pag. 14. Venezia , 1815). Quando este nobre
Veneziano entrou ao serviço de Portugal já a costa d'A-
frica tinha sido explorada além do Cabo Bojador, exclu
sivamente pelos Portuguezes , até além da Serra Leoa
(vide Azurara), e 51 caravellas portuguezas tinhão
explorado a dita costa até ao anno de 1446, e 62 prin-
cipacs navegadores portuguezes tinhão descoberto , e
explorado a dita costa.

5V

A pag. 23, g° III.

Os povos d'Africa além do Bojador não tinhão noticia


de ter alli abordado outro algum povo europeo antes

(1) Compare-se com o cap. 65 A'Azurara , da volla das Ires cara


vellas ao reino , pag. 317.
dos Portuguezes. Resende, fatlando do descobrimento
do reino de Benin em 1486 , diz : « IN o regno e terra
» de Beni foy primeiramente descoberta neste anno
» por João Afonso d'Aveiro. » Depois acrescenta :
« £ elRey de Beni mandou logo por embaixador
» hum seu capitão No qual vinha saber novas desta
» terra, por averem por muito estranha cousa a gente
» della ( os Portuguezes ). »

6«.

A pag. 29. Das obras que forão publicadas em Pariz no xvi° seculo
nas quaes se sustentou a prioridade dos descobrimentos dos
Portuguezes.

Em 1578, reinando em Fiança Henrique III, se deu


licença a João Ongojs para publicar um livro intitu
lado : Les Vojages et Conquestes des rois de Por
tugal, etc., recueillies de Jideles temoings et mèmoires
du sieur Joachim de Centellas , gentilhomme portugais ,
no qual, a pag. 23, fallando do infante D. Henrique,
diz :
« Que plus curieux de s assurer des finages et
«limites d'Afrique et régions de Mauritanie (sites
» entre ledétroit) , vers la partie méridionale, senha idit
» y faire voile et les assujeltir, puis bouillant en désir
» de voir découvrir de son tems terres incognues au
» moyen de quoi ne s'acquit seulement la meilleure
» parl de l Afrique dependam de VÊthiopie. , mais
» aussiplusieurs aulres íles de la grande merOceane. »
— 193 —

O editor francez Ougojs , fazendo esta publicação


48 annos antes da fundação dos estabelecimentos da
companhia de Dieppe e de Roão na Guiné , e 90 antes
de ter aparecido a viagem e relação de Villaut , não
acrescentou nota alguma sobre a supposta prioridade
dos Normandos, como fez o traductor da obra sobre a
Africa do Dr Leyden e Hugh Murray em uma nota á
dita traducção (1), posto que nesta obra se dissesse
que : « La passion des découvertes et des expériences
» maritimes , assoupie pendant la longue période du
» moyen áge , se réveilla dans le xv° siècle. Une chose
» remarquable, cest que Vinitiative fut prise par les
» Portugais (2). »
Em outra parte da mesma obra se lê :
« La grande population portugaise que les Français
» et les Ánglais trouvèrent établie sur les rives du Sé-
» négal prouve d'une manière evidente que le fond de
» leurs récits (dos historiadores portuguezes) était
» exact.
» Les Français, dans le Bambouck même, entendirent
» une fòule de mots portugais mélés au langage des in-
» digènes. Ce mélange ne leur parut plus extraordi-
» naire lorsqu'ils eurent appris des habitants même que
» leur pays avait été jadis envahi et conquis par les
» Portugais (3). *

(1) Hisloire complete des voyages et découvertes en Afrique,


traduzida em francez em 1821, lomo III. fide de pag. 1 a 5.
(2) ll.id., tomo III, pag. 322.
(3) íbid., pag. 335.
13
— 194 —

Acrescenta remos que em quanto por uma parte se


encontrava a lingoa portugueza generalizada no Bam-
bouck , M. Walekenaer mostra que os Francezes só no
anno de 1696 começarão a fazer esforços para descobrir
este paiz (1).
7V

Addição np V, pag. 40, onde Villaul diz que a unica


lingoagem intelligivel erafranceza.

Assim podia ser em 1666 quando Villaut alli foi ,


mas em 1555 acontecia o contrario, isto é mais de um
seculo antes. Guilherme Towrson, o primeiro viajante
inglez que alli foi (2) , trauscreve algumas palavras da
lingoagem dos negros daquellas paragens , e são as se
guintes , nas quaes não ha nem vestigio da lingoa fran
ceza, e pelo contrario algumas mostrão ser portuguezas
corrompidas.
Beisan, besom, é a sua salutação, não será beijão a
mão ?
Manegetc a fajè (significa bastante pimenta ) , e se
no tempo de Villaut mais de um seculo depois dizião
manigete tout plein , é porque só em tempos mui proxi
mos linhão tido relações com os Francezes. As unicas
palavras estrangeiras que em 1851 Towrson alli ouvio
pronunciar são em nosso entender portuguezas corrom-

(1) fide Walekenaer, Histoire générale des voprages, tomo 111,


pag. 230 e seg. fide Viagens de firue e de Labat.
(2) Vide Hacluyt, tomo II , pag. 23.
— 195 —

pidas , e escriptas com uma orthographia estropiada,


como são as seguintes :
Kaurte — cortar.
Kràka — faca.
Bassina — bacia.
Afolta — muito.

Towrson chegando com os seus a uma villa a que


chama Equi (o L'Ekké-Tekké de d'Anville ) a Leste do
rio de S.João, chamada tambem pequeno Comendo (1),
forão attacados e batidos pelos Portuguezes. A lingoa
em que os naturaes fallárão aos Inglezes era misturada de
palavras portuguezas (2). Quando pois Barbot em 1680,
e Villauí. em 1 666 e 1667, esti verão na costa de Guiné, os
habitantes tinhão aprendido algumas palavras francezas
em razão dos estabelecimentos que alli tinhão sido fun
dados pela companhia de 1626, isto é 40 annos antes,
mas tendo-os abandonado , e os Inglezes tendo frequen
tado muito mais do que os mari timos desta naçãoaquellas
paragens no seculo passado, a lingoa ingleza se gene-
ralisou alli a ponto tal, que Labarthe , na relação da
sua viagem á costa de Guiné (3) , diz que em toda
aquella costa se falla a lingoa ingleza , e se queixa do
desleixo dos capitães francezes , etc.

(1) Vide Walckenaer, ffistoire générale des voj-ages , tomo I,


pag. 458.
(2; Jíid., pag. 461 .
(3) Voj'«ge à la côtede Guinée, ou Descri ption des cótes d'Afrique,
depois le cap Tngrin jusqu au cap de Lopes Gonzalves. Paris, 1803.
— 196 —

O mesmo viajante se queixa por outra parte de que ,


no rio de Santo André, não poderão entender um negro,
pois começara o seu discurso em francez , proseguio em
portuguez, e acabava-o em inglez. O mesmo viajante,
fallando do forte francez de Judà , diz : « Um grande
» defeito que existe em a nossa feitoria é que os negros
» não sabem a nossa lingoa (1). »
Citámos estas particularidades afim de provar de um
modo mais positivo que as inducções que Villaut tirou
das palavras francezas que ouvira pronunciar aos negros
da costa da Malaguetta não estabelecem de modo algum
a supposta prioridade dos descobrimentos normandos.
As seguintes passagens provarão em nosso entender
sem replica , que forão os Europeos que adoptárão a
palavra Malaguetta usada pelos naturaes daquella costa,
e não pelos Francezes terem primeiramente dado
aquelle nome á especiaria de que se trata.
Antonio de Nolle , companheiro de Cadamosto , na
carta que escreveo em 12 de dezembro de 14-55, diz :
In ipsa regione aurum et Meregeta; prova de que o
dito viajante encontrára aquella denominação entre os
naturaes daquella costa, 211 annos antes de Villaut
alli ter bido.
Os Portuguezes, como dizemos no texto, p. 39, con
servarão o nome original , e Gerardo Mercator, no seu
Atlas, edição de Hondius de 1609, pag. 321, diz : «II
» ya une sorte d epicerie rapportant le goút du poivre
» que les Portugais appellent Malaguette. »

(t) lbid., pag. 111.


— 197 —

Se pois as passagens que acabamos de citar não bas


tassem para mostrar que Villaut, Corneille e La Marti-
nière se enganárão pretendendo que esta palavra era
dorigem franceza, a seguinte passagem extrahida da
relação da viagem á Guiné de Samuel Brunon {vide Coll.
de D. Bry) deverá convencer o leitor que Villaut e os
t]ueo seguirão não tiverão a menor noticia da verdade.
Brunon diz pois na relação d.i sua viagem feita em
1617, fallando dos negros e das mercadorias que elles
vendem, e entre estes objectos a Malaguelta .-
« Species piperis ab ipsis Malaguelta dieta. »
Christovão Colombo chamava mesmo a toda a costa de
Guiné costa de Maneguetta , vide cap. k, Vida do
almirante.
M. Humboldt julga que a palavra Malaguelta se
deriva da palavra indiana pimenta, usada na ilha de
Sumatra: « Je trouve (diz elle) dans la Cosmographie
» de Sébastien M uns ter , pag. 1093 : Lingua patria
» Sumatrenses piper mola dicunt, » e acrescenta -.
u M. Ainslie donne aussi (edic. de Madr., 1813, pag. 34
» de la Materia medica ofHindoostan) a u piper nigrum ,
>- en tamoul, la dénomination de Mellaghoo. » {Vide
Humboldt, Examen critique , tomo Io, pag. 258 e 259.)
Os viajantes francezes anteriores a Villaut empre-
gavão a denominação italiana. Aflonso Santongeois , na
relação das suas viagens , publicada em 1559 , isto é
mais de um seculo antes de Villaut , em logar de dizer
que a etymologia da palavra era franceza , lhe chama á
italiana : Grenne de Paradis {vide fol. 50 v°).
— 198 —

8*.

A pag. 57.

Sobre os erros produzidos pelo emprego do algarismo


arabico até ao fim do xv° seculo , é um facto tão conhe
cido dos criticos que apenas o indicámos no texto quando
tratámos de analysar a passagem de Dapper ; comtudo
produziremos aqui , para roborar ainda mais o que alli
dissemos, a seguinte passagem de M. de Humboldt a
este respeito : « On sait (diz este sabio) à combien d'er-
» reurs la manière d'écrire les chiffres arabes a donné
» lieu jusquà la fin du x\° siècle (1). »
Em outra parte o mesmo A. diz :
a Je signale des erreurs de chiffres si fréquentes et
» qui naissaicnt en partie de 1'usage simultané des chif-
» fres romains et arabes , parce que des erreurs de
» ce genre ont quelque importance dans les discus-
» sions , etc. (2) »

9'.

A pag. 59.

Ruj de Pina , chronista contemporaneo, isto é do


xv° seculo, e A. de grande autoridade pelos multiplicados
empregos diplomaticos que exercéra , refere igualmente

(1) Vide Examen critique, tomo I , pag. 282.


(2) Ibid., tomo II, nota I, pag. tH.
— 199 —

a fundação do forte e cidade de S. Jorge da Mina pelos


Portuguezes no anno de 1481 reinando elRei D. João II.
Todos os AA. dos fins do xv° século e do xvi° são
unanimes sobre este facto de que a dita fundação fôra
feita pelos Portuguezes.
Fernando Colombo , na vida que escreveo do almi
rante, diz cap. k : « Que Colombo estivera na fortaleza
» de S. Jorge da Mina , d'elRei de Portugal. »
Nu carta d'Africa do famoso mappamundi de Juan de
la Cosa de 1 500 alli se-lê : Mina de Portugal , e se vé
um grande castello pintado com o estandarte por-
tutiuez.
o
Mas o facto mais terminante que mostra que entre os
Normandos e Francezes do principio mesmo do xvii° se
culo consagravão nas suas obras a verdade, e que a
fabula da construcção do forte da Mina pelos Francezes
ainda não tinha sido inventada , é a mesma carta de
Guillaume Levasseur, cosmografo de Dieppc , feita em
1601, na qual se vê sobre a Mina o estandarte por-
tuguez.
10'.

A pag. 69.

Por uma carta escripta A'j4nvers a elRei D. Manoel ,


consta que Christovão de Haro , juntamente com outros
dous do mesmo nome e alli residentes, e commerciantes,
consta, dizemos, que em 1517 havia feito um ajuste com
Portugal para hirem contractar com a Guiné, onde tinha
enviado em consequencia «lo mesmo contracto varios
— 200 —

navios dos quaes os Portuguezes mettérão 7 no fundo


avaliados em 16,000 ducados (1).

11*.

A pag. 70 e 7) , §° VII. Sobre os Padrões de posse.

Os padrões de posse com as armas de Portugal se


tinhão com efFeito levantado por toda a costa d'Africa ,
como nos dizem os AA. contemporaneos , e como vemos
pintados em muitas cartas historicas , entre outras em
uma de João Freire na qual se vê pintada uma Cruz
monumental na Serra Leoa com as armas portuguezas.
Em 1786, isto é tres seculos depois da expedição
de Bartholomeu Dias-, sir Home Popham e o capitão
Tompson explorando a costa d'Africa virão sobre um
rochedo junto a singra Pequena ou la Petite Baie ,
a 26 grãos e 37 m. lat. Sul , uma Cruz de Marmore com
as armas de Portugal, cuja inscripção estava já apa
gada (2).
12'.

Sobre Fernão Gomes da Mina e seu contrato , pag. 71. §° Vil.

Barros refere que o contraio do Marfim, etc., feito


com Fernão Gomes , chamado o da Mina, fôra feito em
1469 com a limitação que não resgatasse em terra firme

(i) Vide Navarrete, Coll. de los viag., etc., tomo IV, pag. lxxiv.
^2) Vide Major Rennel, Geograph . of Herodotus , pag.'698, passim .
Walckenaer, Histoirc génerale des vorages, tomo 1 , pag. 93 e 94.
— 201 —
defronte das ilhas de Cabo Verde por ficar pera os mo
radores dellas por serem do infante D. Fernando. O
mesmo historiador acrescenta :
« E foi Fernão Gomes tão diligente e ditoso em
» este descobrimento, e resgate delle, que logo no janeiro
» de 1471 descobrio o resgate do ouro , onde hoje cha-
» roamos a Mina (1), e não somente descobrio Fernão
» Gomes este resgate do ouro, mas chegárão os seus
» descobridores , pela obrigação do seu contrato , té ao
» Cabo de Santa Catharina , que é atém do Cabo de
>. Lopo Goncalvez 37 legoas em 2 1/2 de latitude
» austral. »
13V

Sobre os tratados com os principes africanos, a pag. 73.

Já antes das viagens de Cadamosto , isto é antes de


1455, tinhão os Portuguezes tratado paz e amizade com
os soberanos do Senegal , como consta das relações da-
quelle autor contemporaneo :
« Cinco annos antes que eu fizesse esta jornada ( diz
» elle ) foi descoberto o Senegal por tres caravellas do
» iSr Infante , entrarão dentro nelle e tratárão amizade

(1) Sarros, Oecad. 1 , liv. II, cap. II. Compare-se esta passagem
com o que dissemos a pag. 59, §° VI ; epag. 143 , §° XV, e addiç£o9,
ácerca da prioridade do descobrimento da Mina pelos Portuguezes.
Em 29 d'agosto de 1474 , elRei D. João II concedeo brazào darmas
a Fernão Gomes da Mina por ter sido o primeiro que a descobrio.
(Barroi, Decad., loc. cit.)
— 202 —

» com os negros, de modo que principiarão logo a com-


» merciar; e assim de anno em anno forão hindo lá
» navios até ao meu tempo (1). »
No anno de 1488, diz Garcia Ae Resende (2), quando
refere a volta do Bemoy na armada das 20 caravellas
commandadas pelo capitão Mór dellas Pero Vaz da
Cunha, diz «que levava em seu regimento de fazer
> uma fortaleza na entrada do Rio de Çanagá , etc. »
E em outra parte acrescenta :
« Na qual fortaleza elRei folgou tambem de mandar
» fazer por que tinha por certo que o dito bem metido
» pelo sertam vinha pela cidade de Tombucutum e por
» Mombarce , que são os mais ricos tratos e feiras
» de ouro , que dizem que ha no mundo, de que toda a
» Barberia do Levante, e ponente atée Jerusalem se
» provê e abastece.
» Este rio e pouco mais adelante foi descoberto em
» tempo, e per mandado do Infante dom Anrique pri-
» meiro, inventor, e descobridor desta empre/.a e con-
» quista de Guinêe. »

U\

Sobre a Casamansa , a pag. 77, §° VIII.

Ainda no anno de 1556 Geronimo Girava, na sua


Cosmographia impressa em Milão, diz, pag. 157 :

(1) Cap. 15, pag. 27. Rel. de Cadamosto, Coll. de noticias por
hist. , etc. , tomo 11°.
(2) Resende , Ghron. d elRei D. João 11, cap. 77.
— 203 —

« EIRey de Portugal além de ser senhor del mar


» Indico Oriental , tiene en la Ethyopia , assi en la de
» Ponente como en la de Levante , muchos regnos , con
» los quales tiene tratos como son en la parte de Poniente
» los reynos de Senega , Gambra, Guinea , etc. »
Nesta parte entre o Senegal e Gambia se comprehende
a Casamansa , e seus rios e territorios erão então pos
suidos por Portugal. En 1701, ainda os Francezes não
pensavão em formar estabelecimento algum no Casa
mansa. De Brue mostra na relação da sua viagem que
os Portuguezes possuião aquelle territorio, e o com-
mercio exclusivo delle (1).
Um seculo depois, isto é em 1802, vêmos na relação
da viagem á costa de Guiné por Labarthe que, quando
trata da Casamansa , não dá o menor indicio de que os
seus compatriotas tivessem então tenção alguma de
formar estabelecimentos commerciaes naquellas para
gens. Este A. tambem adoptou as fabulas da relação de
Villaut, e dos que copiárão este viajante {vide pag. 63
da sua obra , intitulada Voyage a la côte de Guinèé).

15*.

Nomenclatura da carta portugueza que se acha na Bibliotheca K.


de Pariz de que fallamos no texto , pag. 80.

Indicaremos só os nomes que se lêem desde o Cabo


Bojador até ao Cabo da Barca. Esta carta não tem

(1) Vide Walckenaer, Histoire générale des voyages, tomo 111»,


pag. 130 e seg.
— 204 —

data, netn nome do cosmografo que a fez; parece-nos


comtudo ser anterior ao anuo de 1543.

Nomenclatura.

Cabo Bojanor. Anterote.


Penha Grande. C. d'Arca.
Pedreiras. Palmar.
G. dos Ruyvos. Palma Seca.
Montes. CANAGA.
Praia Ruiva. C. de Santa Anna.
G. dos Cavallo». Talam (Tarem na de Dourado).
C. d'Area. Gudomel.
R. dOiao. C. VERDE.
Terra Baixa. C. dos Mostos.
Medam. Barbaceis ?
C. de Gonçalo de Cintra. ÇANAGA (1).
G. de S. Cypriào. C. de Santa Maria.
C. das Barbas. B. das Ostras.
P. da Gallé. R. de S. Pedro.
G. de Santa Maria. CASAMANSA.
C. Bbimco. C. Roxo.
P. do Resgate. R. de S. Domingos.
F. d'ARGU!M. R. Grande.
Ilha Branca. Biguba (Buguba de la Cota).
R. de S. João. Beige ? ( Besegue da carta de la
G. de Santa Anna. Cosa.)
Moutas. B. da Mina.
Praias. Fumada de Palmas.
Resgate. C. da Verga.

(1) O mesmo nome se lê nn carta de Juan de la Cota de 1500,


se não encontra nas cartas posteriores de Freire (1546), e Dourado
de 1871.
— 205 —
R. do Pichel. Arvoredo.
R. d'Arvoredo. R. de S. André.
R. da Pescada. Madronhal.
R. da Tamara? R. das Barbas.
R. de Case. Aldeã dos Lagos.
Ritonto. Aldeã do Velho.
SERRA LEOA. Rio do Meio (R. de Melo na de
Gamboas. Freire).
Guigachaboli ? (R. de S. Pedro de Comiada? (o mesmo nome se lê
.1. de la Cosa. ) na carta posterior de Dou
C. de Santa Anna. rado. )
R. das Galinhas. B. de Soeiro da Costa.
C. do Moute. Serra de Santa Apolonia.
C. Mesurado. C. das TRES PONTAS.
R. de S. Paulo. Atalaya.
R. d'Alvaro A°. R. de S. Jorge.
R. dos Juncos. A MINA.
R. dos Cestos. C. Corço.
I. da Palma. Aldea da Praya.
R. dos Genovezes. Pucaros ? ( Tucares na de Freire.)
R. de S. Vicente. Monte Redondo.
A Licoâ (o mesmo nome se en Palmar.
contra na carta de la Cosa de Aldea da Barca.
1800, e não de Freire 1546). R. da Volta.
R. dos Escravos. Monta do Gato.
Os Curraes. C. de S. Paulo.
P. dos Cavallos. Monte da Raposa.
C. das Palha*. C. da Mouta.
Aldeã do Portugal . Almadias.
R. das Pontas. As Esteiras (1).
Medão. R. Primeiro.

(1) A carta de Freire tem aqui pintada uma bandeira da ordem


deChristo.
— 206 —
B. da Escrava. G. do Galo.
B. de S. Bartholomeu. R. da Boroa.
R. de Santa Barbara. Serra Pequena.
B. Real. G. dos llheos.
R. do Carmo. Praia dos Garções.
B. de S. Domingos. R. do Carneiro.
B. da Cruz. R.deS. Bento.
R. de Carnide. C. de S. João.
C. dElRey. R. da Angra.
Pescaria. 1. do Corico.
Ilhas Verdes. C. das Esteiras.
Rio dos Camarões. R. do Gabam.
Ponta Delgada. C. da BARCA.

Nomenclatura da carta d'Africa occidental do Atlas portuguez


inedito da Bibliotheca R. de Pariz, de que se faz menção a
pag. 80.

Este Atlas não tem o nome do cosmografo que o fez


nem data do anno em que foi feito. Parece comtudo ter
sido desenhado no principio da segunda metade do
xvi° seculo. Damos aqui apenas a nomenclatura hydro-
geografica que se lé na parte da costa que corre desde o
Cabo Bojador até ao Rio dos Juncos, por ser a esta parte
da costa á qual principalmente nos referimos no texto.

Nomenclatura .

Cabo BOJADOR. R. do Ouro.


Penha Grande. Montes.
Terra Alta. Golfo de G° de Cintra.
Angra dos Ruyvos. C. das Barbas.
Montes. Pedra de Galé.
G. dos Cavallos. C. do Cavalleiro.
— 207 —
C. BRANCO. GASAMANSA.
C. de Santa Anna. C. Roxo.
Terra do Sul. R. de S. Domingos.
ARGU1M. Cacheu.
I. dos Bancos. R. Grande.
C. do Resgate. R. de Nuno.
R. de S. Jo5o. C. da VERGA.
Ponta da Tona. R. de Peixes.
Furna. I. dos Ídolos.
C. d'Arca. C. de Sagres.
Resgate. Tabité.
Palmar. SERRA LEOA.
C. Cenagá (Senegal). Baixos de Santa Anna.
G. do Mel. R. das Palmas.
C. VERDE. C. do Monte.
Veisiguiche (1). R. dos Monos.
Porto Dale. R. dos Cestos (Livio Sanulo lhe
R. Gambia. chama Cistariumjtuvius).
R. de Santa Anna. R. dos Juncos.

16*.

Sobre as cartas geograficas, a pag. 90, §° IX.

Ainda mesmo depois que Sanson filho , em 1669,


marcou nas suas cartas o Petit-Dieppe , este nome não
foi geralmente adoptado pelos cosmografos francezes ,
como disse certo A. de uma obra moderna que adoptou
a fabula de Villaut. Os seguintes exemplos provão que
o dito A. não examinou as cartas geograficas.

(1) Vide em Barros, Decad. I , pag. 155 e 157. Tratado feito por
Pedro d'Évora com Bezeguiche , senhor daquella costa. Aqui se fazia
uma pescaria portugueza. (Barros, Decad. 1 , liv. III , foi. 35 v°.)
— 208 —
Encontrámos pois no Deposito geral das cartas da
marinha uma carta franceza em pergaminho , datada de
1669 , feita por Le Bocage de Boiscie que se intitula :
Idrographe , projesseur roial de navigation au Havre ,
na qual não só a nomenclatura é portugueza , mas onde
se não vê marcado o nome de Petit-Dieppe , lendo- se
alias o de Rio dos Cestos. Esta carta é dedicada a
Colbert.
O mesmo encontrámos em outra carta franceza uiss.
do xvn° seculo, que existe no mesmo deposito.
Em outra carta franceza mss. dos fins do mesmo se
culo (1) a maior parte da nomenclatura é portugueza ,
ou tirada das cartas hollandezas e italianas que a copiá-
rão das portuguezas.
Rouillé , na sua carta de 1753 (que encontrámos na
mesma repartição) , conservou alguns nomes portu-
guezes, e não marcou o Petit-Dieppe. Nesta carta se
indica a posição dos nossos fortes e estabelecimentos na
Casamansa. Comtudo a celebridade que o nome de
Sanson pai tinha adquirido em razão de ter sido mestre
de Luiz XIII e protegido por Richelieu, e ainda mais
por ter sido fundador de uma escola geografica da qual
seus filhos , e seu sobrinho Duval, forão os primeiros
disci pulos, esta celebridade, e estas circunstancias
exercerão grande influencia na cartografia franceza.
Com effeito, se na carta de Sanson pai de 1650 a
nomenclatura hydro-geografica portugueza desaparece
de modo que este geografo tirou da sua carta d'Africa

(1) Dépôl general de la marine, portefeuille n° 117, pièce 15'.


— 209 —

47 nomes portuguezes que se achavão marrados nas


carias anteriores desde o Cabo Bojador até ao Cabo
Verde; se elle pois fez desaparecer da sua carta estes
nomes , na outra carla d'Africa publicada pelo filho em
1669 (segundo as relações mais recentes) não só desa
parecem igualmente os nomes portuguezes , mas o que
é mais curioso, é que se lê sobre a costa d'Africa Occi
dental a 5 gr. 1/2 N. o nome de Petit-Dieppe.
São pois bem visiveis os elementos de que se servio
para este efíeito o dito geografo. Consistirão nos da
carta feita pelo pai e publicada em 1650, e para marcar
o Petit-Dieppe , mui provavelmente das relações de
Villaut, publicadas no mesmo anuo de 1669.
As cartas francezas publicadas nos annos de 1674
e 1677, das quaes desaparecem todos os nomes portu
guezes desde o Cabo Bojador alé á Serra Leoa, são
nesta parte uma copia da de 1669. Mas os defeitos da
carta d'Africa de Sanson pai são perfeitamente apon
tados por um i Ilustre geografo dos nossos dias(l), o qual
diz :
o Sanson , qui publia sa carte d'Afrique vers le mi-
» lieu du xvii' siècle , la chargea d'une érudition con-
» fuse ,- et montra moins de connaissances réelles, de
» discernement et de critique que Sanuto. »
Depois das cartas dos dous Sansons e da de Duval de
1678 , com as numerosas cartas francezas de Nicolao de
i^e/ .desaparecêrão igualmente os elementos portuguezes

(1) Walekenaer, fíecherches sur Tintérteur fle VAfrique, pag. 212.


14
— 210 —

das precedentes (1), e além disso nellas se marcou o


Petit-Ditsppe . Forào estas ultimas cartas as que princi
palmente fizerão acreditar a certo escriptor francez
que não tinha examinado as precedentes, nem se tinha
consagrado ao estudo da cartografia anterior á epoca de
Sanson, que as denominações de Petit-Dieppe e de
Sestro-Pariz , que se lêem marcados nestas cartas mo
dernas , erão uma prova da prioridade dos estabeleci
mentos dos Dieppezes , sem reflectir que as ditas deno
minações só apparecérão nas cartas francezas na segunda
metade do seculo xvn°, isto é 200 annos , e mais depois
dos descobrimentos portuguezes ! !
Não devemos passar aqui em silencio a seguinte par
ticularidade, que nos parece mui importante , acerca do
que acabamos de referir, a saber que , contra esta mania
dos modernos de fazer desaparecer das cartas geogra
ficas a nomenclatura dada pelos descobridores, exclama
com razão M. Coulier (2) , dizendo :
« On pourra bientôt se demauder ce qu'ont découvert
» les Gama , les Solis , les Magellan , les Colomb ,
» les Surville , les Bougainville , les Mendanha, les
» Queiroz , etc. ( que je cite au hasard ) , dont les appel-
» lations s'eflacent partout pour faire place aux chan-

(1) A proposito do merecimento das cartas de Nicolao de Ter,


eis-aqui o juizo que encontrámos em um artigo de biographia
critica ácerca delle : « Hfit graver plus de 600 cartes qui doivent la
» plus grande partie de la vogue dont elles ont joui aux ornements
• qui les enjolivaient . »
(2) Notice sur la terininologie géographique , etc. Paris, 1840,
pag. 16.
— 211 —
» gements moderues actuellement consacrés, dans les
» ouvrages publiés tant par les administrations que par
» les particuliers ; loubli de ces corrections consacre
» une injustice irréparable et remet tout en doute. •

17".

Nomenelatura hydro-geografica da carta d'Africa do Aflas


de João Freire de 1546, a pag. 96.

Começamos do mesmo modo que na addição 15, a


partir do Cabo Bojador.
Cabo bojador. G. de Sam Cebriam.
Penha Grande. C. das Barbas.
Terra Alta. Rochedo.
Sete Cabos. Pontada Calle.
Terra Branca. C. BRANCO.
Barreiras Brancas. 1 . dos Louros.
Praia. P. da Faes?
G. dos Ruyvos. Arguim (1).
Ponta do Medon. Porto do Resgate.
Praia. Ilha Branca.
C. de Medon. llba das Garças.
G. dosCavallos. R. de S. João.
Ollavedo? Ponta da Tona.
R. do OURO. G. de Sanla Anna.
Terra Baixa. Medões.
Monta». Praia.
G. de Gonçalo de Cintra. Cabo d'Arca.
Terra d'Area. Ante Rote.
Medões. Tarem.

(1) Aqui tem pintado o estandarte portngue/..


— 212 —
Praia. Palmar.
Moutas. Gudomelle.
Alagra. G. das Almadias.
Palma Seca. C. Verne (2).
Praia. Barboas.
Arvoredo. Rio do Lago.
R. Çanagá(l). Gâmria.

2« Carta d'África.

K. de Santa Clara. Mai Pulla?


R. das Ostras. Serra Leoa.
R. de S. Pedro. R. da Serra.
Casamansa. Porto dasCaboas.
C. Roxo. I. Roxa.
R. de S. Domingos. R. do Sabam.
R. de Santa Catharina. R. das Galinhas.
Gormazo ? Arvoredo.
R. Grande. C. do MONTE.
Buguba. R. da Aguada.
Busegue. C. Mesurano.
R. do Milho. R. de San Paulo.
Palmar. Arvoredo.
C. da Verga. R. dos Juncos.
R. do Pichel 1. Aldea da Praia.
R. da Praia. Palmar.
C. de Sagres. R. dos Cestos.
R. de S. Xpvam. C. das Baixas.
R. das Soffras. 1. da Palma.
R. de la Maga. 1. Cayado.
R. do Café. C. Formoso.
Barreiras Vermelhas. R. dos Genovezes.

(t) Sobre este rio se vê pintada a bandeira real portugueza.


(2) Vé-se sobre este cabo pintada a bandeira real portugueza.
— 213 —

R. de S. Vicente. Praia.
Praia de Escravos. Ponta de Santiago.
Atalaya. R. de Santo André.
G. do SACRAMENTO. O Paul.
As Areas. Arvoredo.
Ponta do Cavallo. Medronall.
R. do llheo. R. das Barbas.
C. das PALMAS. Aldea de Lagoa.
!'. de Gonçalo de Matos. Aldea da Praia.
Arvoredo. Etc.

Em uma carta feita pelo mesmo cosmografo, mas


sem data, da qual nos commuuicou a nomenclatura
M. Tastu, se vé sobre o Cabo Bojador um estandarte
com as cores portuguezas. No centro, entre o Rio Gam
bia e o Rio Grande , se vé pintado um grande padrão
com a cruz, com as Quinas portuguezas e a inscripção
Serra Leoa. O espaço que indica este padrão de posse
comprehende a Casamansa. Vé-se o estandarte da
ordem de Cbristo no Rio das Esteiras, a bandeira por-
tugueza sobre o Rio dos Camarões , vé-se outra no Rio
do Gabam, outra no Rio do Manicongo , outra nos
Montes , e finalmente outra bandeira igualmente portu-
gueza na bahia de Santa Helena.
A carta deste cosmografo que M. Taslu examinou
tem alguns nomes que se não encontrão nas cartas d'A-
frica do Atlas do S' barão Taylor. Citaremos os seguin
tes : Cabo Carvoeiro, Challon, C. dos Mastos , ou
Matos, Magundá, R. de Nuno, R. de Marvam, R. do
Arvoredo, R. de Santa Brizida. Do mesmo modo a
Africa do Atlas do Sr barão Taylor tem outros que se
— 214 —

não encontrão na nomenclatura da carla examinada por


M. Tastu.

18'.

Cruz da ordem de Chri»to pintada nas velas dos navios


pelos cosmografos, a pag. 96 e 98.

Dissemos no texto, §° X, pag. 96 e 98 , que tanto


nas cartas d'Africa do Atlas de João Freire de 1546,
como nas do outro Atlas de João Martines de 1567, se
vião pintados nos mares d'Africa, e outros pontos, varios
navios com a cruz da ordem de Christo pintada nas
vélas.
Em a chronica A'Azurara vémos, principalmente
no cap. 37, pag. 185 , que os navios que o illustre in
fante D. Henrique enviava ao descobrimento d Africa
levavão estas bandeiras , pois ochronista contemporaneo
diz , quando trata das tres caravellas commandadas por
Denis Eanes da Grãa , Alvaro Gil e Mafaldo
« Os quaes , postas as bandeiras da ordem de Xpõ
» em seus navios , fizerom sua vya caminho do Cabo
» Branco. »
Fernão Lopes de Castanheda, que examinou um
grande numero de documentos ainda pertencentes ao
seculo xv°, e que foi testemunha ocular do que a este
respeito se praticara ainda no xvi° seculo, diz (noliv. III,
cap. 34 da sua Historia do descobrimento e conquista
da índia pelos Portuguezes) que Aííonso d''Albuquerque
conhecéra a esquadra de Diogo Mendes de Vascon
cellos , que hia de Portugal (no anno ile 1510) pera
— 215 —

Malaca , por que trazião pintadas nas gavias humas


grandes cruzes vermelhas .
Este uso durou muito tempo na devisão da marinha
portugueza da índia, como se diz em Couto (Memorias
militares, tomo 1°, pag. 251) , a saber que as esquadras
portuguez.-is pertencentes áquelle estado, tinhão nas
suas bandeiras, no meio as armas reaes , e por baixo
dellas a cruz da ordem de Christo.

19*.

Sobre o Atlas de João Martines, pag. 97 e 98.

Temos noticia de tres Atlas ineditos deste cosmo


grafo. Na Bibliotheca do Arsenal em Paris, existe um
feito igualmente em Messina no anno de 1582, e no
Museo Borgiano existia outro datado de 1586 citado
por De Murr ( Histoire diplomatique de Martin de
Behain , pag. 26). As cartas deste cosmografo que citá
mos no texto, e que datão de 1567, são as mais antigas
que até agora se conhecem deste João Martines.

20a.

Não se encontrão nomes alguns marcados na costa occidental


d'Africa além do Bojador nas cartas anteriores ao descobrimento
dos Portuguezes, pag. 104.

.Devemos advertir que tratámos aqui do estado dos


conhecimentos geograficos durante a Idade Media rela
tivamente á costa occidental d'Africa , anteriormente
— 216 —

aos descobrimentos portuguezes nesta parte do globo.


A's cartas do seculo xiv°que citámos a pag. 103, e ás
reflexões que ácerca dellas fizemos, acrescentaremos aqui
outras noticias igualmente importantes , e que augmen-
tão as provas da nossa incontestavel prioridade ácerca
daquelles descobrimentos.
Em um Mappamundi illuminado, que se encontra
em um manuscripto das Chronicas de S. Denis, na
Bibliotheca de Santa Genoveva, por baixo dé cujo
mappã se acha a assignatura autographn de Carlos V,
rei de França , cognominado o Sabio (durante o reinado
do qual disse Villaut e tem repetido os AA. que o tem
seguido , que tiverão logar os suppostos descobrimentos
da Guiné pelos Normandos) , se representa o globo cer
cado de mar, e os unicos nomes que se lêem na Africa
d'Oriente para oOccidente, são : Egypto, Babilonia,
Thebaida , Alexandria, Ethiopia , Nilus , e Libus.
Nenhum indicio do conhecimento da costa occidental,
mesmo além do Cabo Não.
Este mappa não se lhe pode fixara data do anno ,
mas sendo do tempo de Carlos V foi portanto feito
entre os annos de 1364 a 1380 durante o reinado deste
soberano.
Na carta de 1384- a H00 da Bibliotheca Pinelli que
dámos em o nosso Atlas , a cosla d'Africa occidental
acaba no Bojador. \
Na carta da Bibliotheca de Weimar datada de 1424,
e que publicámos igualmente em o nosso Atlas , a costa
d'Africa ac;>ba do mesmo modo no Cabo Bojador, e nem
um só nome se lê ao sul do dito cabo. A mesma carta
— 217 —

à' Andrea Bianco que publicámos igualmente em o


nosso Atlas, posto que desenhada já em 1436, isto é
tres annos depois de Gil Eannes ter passado além
deste limite em que té então parávão todos os nave
gantes, ainda nesta se não vêem nomes alguns, nem a
costa prolongada além daquelle limite , pois ainda não
tinha decorrido o tempo necessario para serem rommu-
nicadas aos cosmografos das outras nações as cartas nau
ticas portuguezas acrescentadas com os novos desco
brimentos.
Se pois as cartas daquelles seculos representão , se
gundo a opinião de M. Jomard (1), o estado dos conhe
cimentos geograficos do paiz em que erão feitas, não
resta a menor duvida , adoptada esta opinião, de que as
principaes nações maritimas do xiv° e xv° seculo não
conhecião"a costa occirlental d'Africa além do Bojador,
e que só a conhecerão depois do descobrimento della
efiectuado pelos Portuguezes.
Esta verdade é tão palpavel que o simples estudo
chronologico das cartas dos seculos xiv° e xv° no-la mos
tra do modo mais evidente.
Se em 1375 os Catalães não tinhão noticiada costa
além do Bojador {vide carta do Atlas da Bibliotbeca R.
de Paris ) em 1439 pelo contrario , isto é 6 annos depois
que os Portuguezes havião reconhecido a dita costa , e
tinhão hido já a mais de 120 legoas além do cabo, e ao
porto que chamárão da Galé, se vê já na carta catalan

(1) Vide Procès-verbal de ta séance de la Sociélé de géographie


du 19 mars 1841. — Bulletin de la Société de géographie.
— 218 —

de Gabriel Valsequa (1) a costa prolongada além do dito


Cabo Bojador em consequencia das noticias nauticas
que começavão a espalhar-se nos reinos estranhos dos
descobrimentos porluguezes.
A descripção hydrograflca da costa d'Africa além do
Bojador adiantou-se pois nas cartas das diversas nações
maritimas da Europa com uma regularidade e coinci
dencia pasmosas á proporção que nas mesmas nações se
hião obtendo noticias dos descobrimentos portuguezes ,
e os podião marcar nas suas cartas, copiando-os das
nossas cartas nauticas , como se mostra com evidencia
mathematica pelas cartas do nosso Atlas.
Não trataremos aqui da carta sem data do Portulano
Mediceo publicada por Baldelli e que este A. julga ser
de 1350 , pois ella é de mais de um seculo posterior pelo
menos á carta V do mesmo Portulano , e segundo a
opinião de M. Walekenaer, a mesma carta poderá ser
do xvi° seculo pela semilhança que appresenta no curso
dos rios com as cartas de Livio Saniito , e com as cartas
deste ultimo seculo.
Quanto ás inducções que Baldelli tirou desta carta ,
são todas infundadas, como o leitor poderá vér não só
pelo que dizemos nesta Memoria , mas tambem compa
rando a dita carta com a outra do mesmo Portulano por
elle igualmente publicada , e que não tem a costa d'A-
frica marcada além do Bojador (2). M. Walckenaer

(1) Em o nosso Atlas publicámos a parte cVAfrica Occidental


slesta carta , a qual devemos á douta generosidade de M. Tastu.
(2) Vide Atlas de BahUlli no Millone de Marco-Polo.
— 219 —
julga do mesmo modo que não merecem a menor
attenção as inducções que Baldelli tirou da dita
carta.

21*.

As Grandes Chronicas de França , da abbadia de S. Deniz, não dizem


nada dos suppostos descobrimentos dos Normandos do xiv° se
culo, pag. 105.

Mostrámos no texto que os AA. contemporaneos do


reinado de Carlos V de França , e .as mesmas Chronicas
da Normandia, não fizerão menção dos suppostos desco
brimentos africanos dos Normandos que os modernos
depois de Villaut disserão ter tido logar naquelle rei
nado ; agora diremos que este silencio das chronicas e
historias daquella epoca ácerca deste supposto desco
brimento está em harmonia com o estado dos conheci
mentos geograficos relativamente á Africa que havia em
França naquelle reinado ávista do mappamundi das
Chronicas de S. Denis, onde se vê a assignatura do dito
rei Carlos V, ávista do principio estabelecido por M Jo-
mard , de que tratámos na addição precedente.
22*.

Os geografos do xiv° seculo amontoarão todos os detalhes dos


paizes do interior sobre as cartas junto ao Allas na altura do
C. Bojador, para não descerem mais abaixo na direcção do Sul ,
por ser o dito cabo o ponto conhecido sobre a costa , ctc. ,
pag. UB.

As passagens que vamos citar d'Ibn Khaldoun, que


escreveo nos fins do xiv° seculo, e que viveo ainda
alguns annos depois da expedição de Bethencourt ás
Canarias no principio do seculo xv°, confirmão ainda
mais a incontestavel prioridade do descobrimento da
costa occidental d'Africa além do Cabo Bojador pelos
Portuguezes, e mostrão a exactidão do que se diz no
texto.
Tratando das ilbas de Kalidat , diz :
« Dizem que os navios dos Francos forão dar a estas
» ilbas no principio deste seculo (isto no xiv° seculo);
» elles attacárão os habitantes, roubárão-nos , e arreba-
» tárão outros que forão vender ao Magreb-Aqsà ou
» Aksa f isto é na extremidade do imperio de Marrocos).
» Estes escravos passarão ao serviço do sultão, e logo
» que aprenderão a lingoa ambe , fizerão a descripção
» do estado da sua ilha. ->
Segue a descripção , e depois acrescenta :
« Estas ilhas forão descobertas por acaso , por que os
» navios navegão neste mar só impellidos pela acção e
» direcção dos ventos mas os dous paizes que (icão
» situados nas duas margens do mar Mediterraneo são
-

— 221 —

» perfeitamente conhecidos , e íe achão descriptos sobre


» plantas ou folhas de papel pela forma que elles na
» realidade tem , os rumos dos ventos alli se achão
» marcados em todas as direcções , e chamão-se estes
» papeis Alkanbas (i). Elles (os navegantes) se confião
» nestas cartas para fazerem as suas viagens , mas nada
» disto existe para o mar Atlantico , e por esta razão os
» navios não se aventurão neste mar, por que perdendo
» a costa de vista não poderião derigir-se para a sua
» volta (2). »
Esta passagem é terminante acerca do assumpto que
nos proposemos provar. A navegação do Mediterraneo
era perfeitamenteconhecida.havião os Portulanos, cartas
nauticas exactissimas , mas para o Atlantico não acon
tecia o mesmo , isto é não havia um tal conhecimento.
O mesmo A. arabe diz , quando falla do Atlantico (-3) :
« E um grande mar sem limite, no qual os navios não
» ousão aventurar-se fóra da vista das costas por causa
» de se não saber onde os ventos os poderão levar, por
» que detraz delle não ha terra habitada. Quanto aos
» mares cujos limites lhes são conhecidos, os navios
» navegão nestes por que os marinheiros conhecem por
» experiencia onde os ventos os devem conduzir (4.),

(1) Esta palavra nào é arabica.


(2) Ibn-Khaldoun, Prolegomenos historicos, compostos em 1377.
Sobre esta obra, vide o excellente artigo de M. de Sacy, na Biogra-
phie universellc , tomo XXIo, pag. 154.
(3) O mesmo A., Historia dos Berbers.
(4) Azurara, Chron. da Conquista de Guiné, rap. 9, pag. 07,
«

— 222 —
» mas o mesmo não acontece no Atlantico , por que se
» lhe não conhece limite , e posto que elles couheção a
» direcção dos ventos, não sabem até onde os mesmos
» ventos poderão arrojar o navio, o qual se perderia, ou
» se exporia a cahir no meio dos nevoeiros, e dos vapores ,
» de maneira que o navio se perderia (1). O limite do
» Magreb do lado do Occidente é o Oceano Atlantico,
» como acabámos de dizer: »
Passa a descrever as cidades da costa do imperio de
Marrocos até ao Nun, e conclue por esta importante
passagem :
« O limite até onde vão os navios é detrás da costa de
» Nun (Cabo Não) , e não vão mais longe , por que se
» fossem se expunhão aos perigos que acabámos de des-
» crever (2). »

fallando das razões que dera o Infante a Gil Eanncs para o per
suadir a fazer todas as diligencias para passar o Cabo Bojador, e a
não conflar nas objecções de certos maritimos, refere que o Infante
lhe dissera o seguinte : • Quereesme dizer que por openyom de quatro
- mareantet , os quaes como tom tirados da carreira de Frnndes , ou
• de alguns outros portos pera que commumente navegam , nõm sabem
• mais teer agulha, nem carta pera marear, etc. •
(1) E a descripção do mar Tenebroso dos Arabes.
(2) Devemos estas passagens deste celebre A. arabe ao nosso
consocio na Sociedade asiatica de Pariz o S' barão de Slane.
23'.

A' passagem de Garcia de Resende de pag. 126 , e a 130,


sobre o estratagema da destruição das Urcas.

Consultámos sobre este estratagema de que usou el-


Rei D. João II para impedir que os navios redondos
das outras nações fossem á Mina , a M. Jal, autor da
excedente obra intitulada sárchéologie navale , não só
como autoridade competente na parte nautica, mas
tambem na parte scientifica e historica da construcção
naval da Idade Media , o qual nos deu uma extensa e
interessante nota na qual mostra por muitas razões
nauticas quanto a medida adoptada por elRei de Por
tugal fôra calculada com sabedoria , com conhecimento
das correntes do golfo de Guiné, e ròbora as suas asser
ções e analyse da dita passagem de Resende com exem
plos recentes acontecidos a navios francezes. Daremos
a integra desta interessante nota na edição franceza
desta Memoria.
2V.

Sobre a particularidade de se não encontrar documento do seculo xt°


que mostre terem hido á Guiné navios de outras nações na
ultima metade daquelle seculo , a pag. 134.

Faria e Sousa conta todavia que elRei d Hespanha


mandara uma esquadra composta de 35 navios , no anno
de 1 V78 , para fazer o commercio de Guiné, commandada
por Pedro de Gobines , e que no anno de 14-81 para alli
— 224 —

partira outra composta de 30 navios, mas que elRei


D. A Afonso V fizera partir uma esquadra portugueza
que a combatéra e destroçara.
Mas este A. portuguez (posto que a sua autoridade
seja mui importante tanto pela sua erudição, como
pelos documentos que consultou) escreveo mais de um
seculo depois da epoca de que se trata, e não citou os
documentos, nem historiadores contemporaneos, nos
quaes colhêra os factos que cita. Estas asserções de
Faria e Sousaíorão combatidas em nosso entender com
boas e fundamentadas razões por Barbot , na sua Des-
criptionde la Guinée , pag. 162, a cuja obra remette-
mos o leitor. Finalmente as expressões da bulla que
citámos na seguinte addição parecem-nos decisivas ,
pois por ellas se mostra que possuiamos pacificamente
aquelles territorios.

25*.

Motivos de direito em virtude dos quaes Luiz XI , rei de França ,


respeitou a posse dos Portuguezes nas conquistas d'Africa,
pag. 139.

O contexto da bulla do papa prova da maneira mais


evidente a prioridade do nosso descobrimento de toda
a costa d'Africa além do Cabo Bojador, e da conquista
que della fizemos , e posse que della haviamos tomado.
Forão pois estes direitos que forão reconhecidos por
todos os soberanos , e por Luiz XI. Eis-aqui as expressões
da parte historica e geografica daquelle importantis
simo documento , isto é da bulla de Xisto IV de 1481 ,
na qual se confirmão as precedentes que nesta se trans
crevem :
« Ajudado o dito infante sempre de real autori-
» dade não cessou de idade de 25 annos, e .assim em cada
» um anno, de mandar dos dictos regnos com muy gran-
» des trabalhos , perigos e despezas , exercito de gentes
» em muy ligeiros navios chamados caravellas pera bus-
» car o mar e provincias maritimas contra as partes do
■ nieiodia e polo antartico, e fecto assy esto, occupando
» e lustrando as dictas caravellas muitos portos, ilhas e
» mares, vierão em fim á provincia de Guinee , e oceu-
» padas algumas ilhas , portos e mar ajacente á dita pro-
» vincia navegarom mais hum pouco , e vierom aa boca
» de hum gram rio estimado commummente o Nillo
» (o Senegal) , e como quer que contra os poboos da-
m quellas partes fosse fecta guerra per alghuns annos em
» nome do dicto rey dom Afonso e Illante dom Anrrique,
» e nellas muitas ilhas vizinhas fossem sojugadas , e
» possuidas pacificamente assy como ainda agora com
» a terra ajacente se possuem , donde muitos Guineos ,
>< e outros negros tomados , etc. »
O pontifice relata depois que forão os ditos negros
convertidos e instruidos nas verdades da santa religião
que professamos, e continua :
« E sabendo o dicto nosso predecessor que os dictos
■ Rey e Illante que com tantos , e tam grandes Iraba-
» lhos , e despezas , e bem assy com tanta perdiçam dos
>- naturaes dos dictos regnos dos quaes lá muitos pere-
» ceram , que com ajuda somente dos dictos naturaes
» fizeram descobrir as dietas provincias, e aquirirom e
18
— 226 —

» possuirom como dicto hecomo verdadeiros senhores (1 )


» os dictos portos , e insolas , e mares. »
E mais adiante accrescenta :
« Pera conservaçam de sua posse poserão defeza que
» nenhum presumisse navegar ás dictas provincias nem
» tratar nos portos dellas , nem pescar no mar dellas sem
» primeiramente aver expressa licença pera ello do dicto
» Rey ou Ifíànte, e hesto hindo soomente em seus navios
» com seus marinheiros, e pagando-lhe delle certo tri-
» buto , etc. »
Mais adiante o pontifice repete :
u O dicto rey dom Alíonso , ou o dicto Ifíante possuia
» justa , e legitimamente as ditas ilhas, terras, portos e
» mares , as quaes pertenciam de direito ao dicto rey
» dom u4ffonso e a seus successores , etc. *
O pontifice lhes concede poderes para fundarem
igrejas, e commerciar com os Mouros e infleis, etc. (2)
Forão pois estes titulos que os reis de Portugal
fizerão valer, como dissemos no texto , perante os outros
soberanos da Europa ; e se Luiz XI se absteve de con
sentir que seus subditos os não violassem, foi de certo
pela legalidade delles , e não pelos motivos que julgavào
aquelles que nunca examinarão estes importantes docu
mentos.

(1) Compare- se com o que dissemos a pag. 24 e seg. dog°lV,


e a pag. 108, S° XI.
(2) Este documento existe no Archivo R. da Torre do Tombo,
gav. 18, maç. 6, n° 17, de que temos em nosso poder uma copia
authentlca extrabida do mesmo Archivo.
— 227 —

Não terminaremos esta addição sem chamarmos a at-


tenção do leitor para a seguinte particularidade. No
§° XVII, pag. 163 e 164, mostrámos que em 1406 o
papa Innocencio Vil julgava , como o rei de Castella ,
que a Guiné ficava fronteira ás Canarias , e áquem do
Cabo Bojador, e isto porque a costa além do dito cabo
não tinha ainda sido descoberta pelos Portuguezes, nem
a verdadeira Guiné ; mas nas bullas de Nicolão V de
1450 ede 1454, e finalmente nesta de Xisto IV de 1481,
todas posteriores aos descobrimentos portuguezes na
costa além do dito cabo, a posição geografica da Guiné
é já mais conforme com a verdadeira.

26'.

O celebre Las Casas do mesmo modo que Bcrnalilez não nega a


nossa prioridade nos descobrimentos africanos, antes a confirma ,
pag. 145.

Las Casas, apezar das pretenções enunciadas na carta


d'elRei de Castella , diz a pag. 139 , tomo 1° da sua
Historia de las índias mss., quando falla das incursões
feitas pelos Portuguezes nas Canarias, que estas aug-
mentárão : « Mayormente desque comenzaron á des-
» cubrir la costa de Africa y de Guinea. »
A pag. 40, cap. 4, fallando de Colombo e do Infante
D. Henrique, diz :
* Y como entonces andaba muy hirviendo la práctica y
» exercicio de los descubrimientos de la costa de Guinea
* y de las islas que avia por el mar Oceano. »
— 228 —

Diz que Colombo se aproveitára dos mappas e relações


de Bartbojomeu Perestrello, c accrescenta :
« Y á in quer ir tambien la práctica y experiencia de
» las navegaciones y caminos que por la mar hacian los
o Portugueses á la Mina del Oro y costa de Guinea ,
» tomó el acordo de ver por experiencia lo que entonces
» del mundo por la parte de la Ethiopia se andaba , y
» praticaba por la mar, y assi navego algunas veces
» aquel camino en compaííiade los Portugueses como
» persona ya vecina y quasi natural de Portugal. »
Las Casas declara que isto lbe fôra contado por
D. Diogo Colombo, filho do almirante, e accrescenta que
tendo Colombo antes da sua famosa viagem residido na
Madeira, onde (diz elle) «frequentes nuevas se tenian
» cada dia de los descubrimientos que de nuevo se
» hacian, y este parece aver sido el modo y ocasion <le
» la venida de Ghristobal Colon á Espana y el primer
» principio que tuvo el descubrimiento dc este grande
» orbe (a America) (1) »
A' vista destas passagens e declarações formaes de
um dos historiadores castelhanos mais eruditos, que
tivera em seu poder os papeis de Colombo, nào resta a
menor duvida que se os Castelhanos tivessem descoberto
a costa dAfrica além do Bojador e a Guiné antes dos
Portuguezes, e tivessem a mesma pratica de navegar

(1) Compare- se esta passagem com o que dissemos no texto,


a pag. 118 e seg., §° XIII , e principalmente com o que fica dito a
pag. 125.
— 229 —

naquellus paragens que tinhão os Portuguezes , Colombo


teria navegado com elles dc preferencia , e não teria
vindo exercitar-se em as grandes navegações , e nos seus
estados nauticos com os Portuguezes.

27'.

Sobre o famoso livro de Jmago Mundi de 1'elrus Aliacus ,


pag. 145.

Accrescentaremos aqui ao que dissemos no texto acerca


deste sabio , que pela confrontação do texto do seu fa
moso livro cosmografico com o mappamundi das Chro-
nicas de S- Denis da Bibliotheca de Santa Genoveva ,
cujo monumento geografico é da mesma epoca, e feito em
França, resulta a demonstração bem evidente de que
rio seculo xv° antes dos nossos descobrimentos a Africa
além do Bojador não era conhecida neste paiz. Remet-
temos pois o leitor para o mesmo livro , ali verá na
região situada ao sul do Monte Atlas a seguinte nota :
Regio inhabitabilis , e pelo cap. 13 se mostra que elle
não estava mais adiantado do que os antigos, e o autor
do mappamundi das Ghronicas de S. Denis , e do mesmo
modo pelo que se lé nos cap. 32 e 33 : De Africa in gene-
rali, e 33, e no Epilogus mappemundi do mesmo A. Esta
obra foi feita em 14.10 , depois da viagem de Bethen-
còurt: Na Bibliotheca R. de Pariz encontrámos uma cos
mografia com o titulo Image da monde, impressa em
caracteres golhicos por Jean Trepercl. Este impressor
— 230 —

publicava já algumas obras em Pariz em 1498(1). Esta


cosmografia foi composta igualmente no seculo xv* antes
dos descobrimentos africanos dos Portuguezes. No
cap. 6 , a Africa é considerada como uma ilha , e a parte
em que trata de ce qui est appelè la terre de la Map-
pemonde , mostra pela harmonia em que está com o
mappamundi das Cbronicas de S. Denis , e com a obra
de Petrus de Alliaco , que é anterior aos nossos desco
brimentos , e portanto que seu autor não tinha conhe
cimento algum das costas situadas além do Bojador e
da prolongação d'Africa. Que Pedro àíAilly não tinha
noticia da parte d'Africa meridional ainda mais se
prova pelo seu Tratado de Esphera mundi (2) , na parte
em que diz que a terra junto à equinoccial c inhabi-
tavel.
28".

Religioso hespanhol , a pag. 160.

Sem examinarmos nesta addição quem poderia ser


este religioso viajante , o que discutiremos em outro
logar, diremos todavia que este podia ser portuguez,
julgámos que se não pode affirmar sem exame que elle
fosse hespanhol só por que assim o chamárão os capellães
de Bethencourt , pois os Francezes , e Italianos consi-
deravão, então e ainda hoje muitos AA. destas nações

(1) Vide De La Serna Santander , Dictionnaire bihliographique


choisi du xv» sièele, tomo Io, pag. 252.
(2) Este Tratado foi lmpresso em Pariz em 1508.
confundem os dous povos, e os dous reinos; o papa
João XXI apezar de ser portuguez não é conhecido
entre os.AA. senão pelo nome de Petrus Hispanicus.
Cadamosto sabia perfeitamente que o Algarve pertencia
a Portugal , mas referindo nas relações das navegações
de Pedro de Cintra a sua partida diz : « Aaté á minha
partida de Hespanha. »
29*.

Nos viajantes e AA. francezes e normandos anteriores á Villaut ,


isto é a 1667, n5o se encontra a pretençào de terem descoberto á
Guiné , antes dos Portuguezes, a pag. 31, 64 , 81, e 170.

As seguintes obras francezas e normandas anteriores


a Villaut vão provar que antes da publicação da relação
deste viajante os Normandos nos não disputárão a prio
ridade dos nossos descobrimentos e da Guiné.
Além da relação de Jean le Verrier e de Bontier,
capellães de Bethencourl , pela qual se mostra que nos
principios do seculo xv° os Normandos não tinhão noticia
alguma dos taes suppostos descobrimentos dos seus com
patriotas, antes reconheci ão a superioridade dos conhe
cimentos nauticos dos Portuguezes nos mares áquemdo
Bojador té então frequentados pelos navegadores euro-
peos; além pois das provas terminantes que deduzimos
da dita relação (1) , indicámos igualmente a pag. 64- que
João Temporal na sua collecção publicada em 1554
citara a nossa prioridade nos ditos descobrimentos ,

(1) ride S°» XVI e XVII.


— 232 —

nesta addição accrescen taremos por ordem chronologica


a noticia de outros AA , viajantes anteriores a Villaut ,
os quaes sem excepção não disserão uma só palavra dos
suppostos descobrimentos dos Normandos.
1553. — Na traducçâo franceza da Historiado des~
cobrimento da índia pelos Portuguezes composta por
Castanheda, publicada em Paris , no prefacio falla o
visconde de Longueville das navegações , e nem uma
palavra dos suppostos descobrimentos normandos.
1559. — Alphonse de Santongeois , na sua viagem a
Africa occidental , descreve com miudeza toda esta costa,
seus portos , rios , enseadas , etc. , e a fol . 52 tratando da
parte que corre desde o Cabo do Monte até ao Cabo de
Palmas, e do R. do Junco , não falla em parte alguma
do Petit-Dieppe nem do Sestro-Paris , o que é mais uma
prova que taes nomes nem taes estabelecimentos fran-
cezes não existião ainda naquellas paragens na ultima
metade do século xvi°.
Falla da Mina delRei do Portugal , e nem uma pala
vra das patranhas que se lêem em Villaut , que escreveo
a sua viagem 1 07 annos depois daquelle viajante francez.
Toda a nomenclatura hydro-geografica é portugueza
traduzida porem em francez.
1575. — Belle-Forest , chronista de França, no rei
nado d'Henrique III , na sua Cosmografia, pag. 1,934,
longe de fallar nos suppostos descobrimentos dos Nor
mandos , diz :
« Le roi de Portugal s'est fait maitre de la plupart
» des ports et surtout de la Guinèe, Benin et Maui-
» congo, faisant bátir au cap h Trois Pointes (cabo das
— 233 —

» Tres Pontas das cartas portuguezas ) le castel de


» Mine. »
1582. — La Popellinière , no seu livro Les Trois
Mondes, diz pag. 43 , fallando do infante D. Hen
rique :
« Puis Henry, soa fils (de João Io), poussa outre :
» si que plus on luy rapportoit choses estrangcs et plus
» lui croissoit 1'envie de sçavoir. Tellement que ce desir
» suivy de 1'industrieuse hardiesse de ses capitaines et
» pilotes , luy descouvrit beaucoup de nations et, pro-
» vinces nowelles. »
Mais abaixo, diz :
« Henry fit en peu de temps courir ses caravelles
» jusqu'au cap de Nõ , ainsi dict , parce quaucun ría-
» voit osc passer outre. »
Descreve a posição do cabo , e accrescenta :
« Puis insatiable en cognoissance de choses rares, il
» donna charge de passer outre, etc. »
E posto que este A. não tivesse conhecido as relações
authenticas dos primeiros descobrimentos que existem
na Chronica d' Azurara , e não tivesse fixado com bas
tante exactidão as epocas dos diversos descobrimentos,
diz todavia :
« Puis dom Henry envoya Pierre de Cintra qui ,
» passant outre , reconnut le cap de Sagres mais étant
» mort son nepveu Alfonse ne fit qu'entretenir, sans
» descouvrir chose de nouveau pour la briefveté de sa
» vie ; toutefois Jean Second fit donner jusquaux terres,
» que les Grecs et les Latins estimoient inacces-
» sibles , etc. »
— 234 —

Depois de proseguir a sua relação , na qual refere


todos os nossos descobrimentos, diz (pag. 45) :
« Voilà comme la genereuse curiosité des Portugais
» depuis la prinse de Septa , Tangy et Arzilla , descou-
» vrit et frequenta les costes de Maroc, etc., et autres
» parties de la Libje. »
E conclue :
« Puis descendus à Senaga , Tombu , Budomel , Me-
» ly , et autres royaumes estendus prés du grand fleuve
» des Noirs, donnerent à la Guinée, et au cap de Tres
» Puntas, à 20 lieues du quel entrant en terre, Us dres-
» serent le castel de Mine, tant pour se mieuz assurer
» contre ces barbares, que pour y dresser une forme
» destape , etc. »
Poresta passagem se vé que naquella epoca este A. que
era alias instruido , não tinha nenhuma noticia do sup-
posto descobrimento citado por Villaut, e das outras
fabulas dos que o seguirão, quando tratão da fundação
do castello da Mina (1). Se pois no tempo em que La
Popellinière escreveo existissem ao menos tradições dc
taes viagens, elle não deixaria de as mencionar no liv. II,
fol. 3 e 4 , quando trata dos descobridores.
1615. — Jarric, na sua obra intitulada : Histoire
des Indes Orientales découvertes par les Portugais, diz,
tomo I , pag. 3 , que os Portuguezes forão os primeiros
que descobrirão a cosla d'Africa, o que alias não diria
se enlão houvesse alguma tradição dos suppostos desco
brimentos dos Normandos.

(1) Compare-se com o que dissemos as pag. 97 a 62.


235

1619. — Jean Le Tellier de Dieppe ; este cosmografo


escreveo um tratado de navegação , no prefacio do
qual diz que se servira da obra de Manoel de Figuei
redo , cosmografo portuguez (1), e cita muitas vezes o
piloto Vicente Rodrigues. Diz que a cosmografia de
Figueiredo fora traduzida em francez por um capitão
de Dieppe chamado Nicolas Le Bon, « grand naviga-
» teur (accrescentando) ; la mémoire pourtant d'un tel
» personnage nous doit étre honorable pour avoir obligé
» les Français en la traduction de ce livre , dans lequel
» nous avons plusieurs bons enseignements pour Vart
» de la navigation. » Passa a referir como fora por meio
do tratado do cosmografo portuguez que se introdu
zirão em França alguns methodos novos , etc. ( p. k
e seg.) (2)
Le Tellier partio de Dieppe para Africa a 12 de ou
tubro de 1619. Na sua obra não diz nem uma palavra
do Petit-Dieppe , e quando falla em Rufisque ( Rio
Fresco), não diz que os Normandos, e Francezes o
tivessem descoberto.
1630. — Bergeron era um dos homens mais instrui
dos do seu tempo na historia da geografia e das viagens-,
todavia no seu famoso tratado intitulado Traicté de la

(1) A obra de Figueiredo, isto é a hydrografia deste A., foi pu


blicada em Lisboa em 1608.
(2) Compare-se o que diz este A. de Dieppe, e Le Bon no seu
Tratado impresso em Dieppe ein 1631, que se encontra anexo ao de
Le Tellier no exemplar da Bibliotheca R. de Pariz, com o que disse
mos no §° XIII de p. 118 a 126.
— 236 —

Navigation et des voyagcs de découvertes et conques-


tes modernes , et principalement des François, não diz
nem uma palavra dos suppostos descobrimentos dos
Dieppezes no xiv° seculo, pelo contrario, mencionando
todas as navegações {interiores á de Bethencourt ás Ca
narias, mencionando mesmo a fabulosa viagem de S.
Brandão, e entbusiasmado pela expedição de Bethen
court, julga que fora elle quem dera com a conquista
das Canarias o impulso aos descobrimentos Portugue-
zes, o que alias o dito A. não diria se tivesse conhecido
a resposta d'ElRei D. Alfonso IV° de Portugal ao papa
Clemente VIo datada de Monte-Mor o novo em 12 de
fevereiro de 1345 (1), documento pelo qual se prova
que os Portuguezes tinhão hido ás Canarias, e navegado
além do Cabo Não 67 annos antes da expedição de Be
thencourt, e dos seus Normandos ; Bergeron, repetimos,
fazendo menção da expedição de Bethencourt e das que
a precedêrão, não diz uma só palavra das suppostas
expedições normandas do seculo xiv°, circumstancia que
alias não deixaria em silencio se no seu tempo existisse
mesmo a supposta tradição dellas , como pretendêrão in
culear os modernissimos AA. sectarios das fabulas de
Villaut.
Pelo contrario, Bergeron, a pag. 35 e 36 do seu tra
tado, quando menciona os descobrimentos portugue
zes na costa d'Africa se não arroga a gloria da priori-

(1) Vide Mem. do nosso consocio o S' Macedo já citadas. Docum .


que .icompanhàoa Ia Mem. no tomo VIo, Part. Ia das Memorias da
Acad. R. das Sciencias de Lisboa.
— 237 —

dade para os Normandos do xiv° seculo nem mesmo


para os de Bethencourt, e não tendo mais que dizer
em favor da prioridade dos Francezes, que elle fazia
consistir (tambem sem fundamento) na expedição das
Canarias de 1402, recorre á seguinte curiosa razão, a
saber em que a mesma prioridade reverte á França, di
zendo que os Francezes poderião com justo titulo « pré-
» tendre part en quelque sorte à la gloire de ces con-
» questes (todas as nossas conquistas), puisque les rcrys
» de Portugal sont yssus de la dernière race de nos
» rojs ! »
Ora quando este A. se arma com as genealogias da
casa real portugueza de Godefroy para sustentar uma
tal pretenção , já se vè que no seu tempo não existião
nem tradições dos taes suppostos descobrimentos nor
mandos dos Dieppezes, nem fundamento serio para nos
poderem disputar a incontestavel prioridade dos nossos
descobrimentos além do Cabo Bojador.
1633. — Voyages d'Afrique faits par le commande-
ment du roy, ou sont contenues les navigations des
Français entreprises en 1629 et 1630 sous le commande-
ment du commandeur de Rasilly.
Esta obra é dedicada ao cardeal de Richelieu. Na
descri pção d'Africa que começa a p. 106, longe de se
encontrar uma só palavra acerca dos suppostos desco
brimentos dos Normandos, antes diz a p. 109, fallando
dos descobrimentos dos modernos : « Mais de notre
n temps, beaucoup de terres nouvelles ayant été dé-
» couvertes par la diligence des Portugais (auxquels
» on doit la liberte vers le midy des Indes orientales)
— 238 —

» on a bien dilate les bornes de l'Afrique, et luy don-


» nant un grand nombre de provinces incognues aux
» anciens on Va pour le moins agrandie de la moitié. »
O A. desta obra era erudito, conhecia a geografia
classica, e a historia da geografia positiva tal qual se
sabia na epoca em que escreveo.
1635. — Relation du voyage au Cap-Vert par le
Père S. Lo, en octobre de 1695. Este viajante embar
cou com o seu companheiro em Dieppe. Refere que
muitas pessoas tratáráo de os persuadir que não de-
vião partir, « nous objectant Vintempérie de Cair de
» Cap-Verd, la rudesse des habitants, et que les nè-
» gres nous mass acreraient (p. 2), » e posto que falle
no que elle chama descobrimento das Canarias por Be-
thencourt em tkOO, nem uma palavra diz dos sup-
postos descobrimentos normandos na Guiné no sé
culo XIVo.
Fallando de Gabo Verde diz que assim fora chamado
da muita verdura, mas não diz que tal nome lhe fora
primeiramente dado pelos Francezes, como Villaut in
ventou depois. Os PP. seguirão deste cabo para Rio
Fresco (Rufisque) , onde encontrárão muitos Portugue-
zes estabelecidos do mesmo modo que em Portudal a
12 legoas de Ru/isque, e o mesmo no reino de Joval.
Estes padres sabião a lingóa portugueza, e forão muito
bem recebidos pelos indeviduos desta nação residentes em
Portudal (p. 99). No Porto de Jovalles todos os Negros
fallavão portuguez (p. 125j.
1638. — Relation du voyage que François Cauche de
Rouen a fait à Madagascar et costes d'Afrique, etc.
— 239 —

Este viajante partio de Dieppe em 1 638 e tinha conhe


cimentos historicos como se vé pelas citações dos AA.
antigos, e fatlando do Senegal não diz uma só palavra
de alli terem os Francezes fundado um estabelecimento,
ou de o terem descoberto. Pallando de Rio-Fresco (Ru-
tisque), diz : « Les Portugais habitent ce lieu ou Us
» sont bien venus (p. 6). » Em Madagascar, « notre ca-
pitaine (diz elle) dit au roy en langage portugais, etc. »
E nem uma palavra em toda a obra que indique mes
mo uma simples tradição das fabulosas viagens dos
Dieppezes á Guiné no xiv° seculo.
1639. — Voyage en Afrique por Jannequin. Este
viajante f&rúo Ae Dieppe para Africa, e voltou a França
em 1639. A sua viagem foi publicada em 1643.
Nesta relação o A. não diz uma só palavra acerca das
pretençõesda supposta prioridade, que vemos nas obras
posteriores a Villaut.
1643. — Jorge Fournier na sua grande obra sobre a
Hydrografia publicada em Pariz em 1643 não diz uma
palavra acerca de taes tradições, npezardeser Normando,
pois nasceo em Caen em 1595.
Pela dedicatoria a elRei se mostra que no seu tempo
não só não existião taes pretenções, mas o que é mais ,
nem a menor tradição ( vid. pag. 14 ) ; elle diz pelo con-
trairo remontando a outros tempos, que tinhão tão
poucos navios , que os fretavão aos Hespanhoes , Mal-
tezes , e Hollandezes , pour nous áèfendre de nos enne-
mis (1), diz elle. A este proposito remettemos o leitor

(1) Compare-se com o que dissemos no $° XII, de pag. 109a 112.


— 240 —

para as pag. 312 a 315 da obra do mesmo A. intitulada :


« Mèmoires de la Marine de France , » e alli verá não
só o silencio deste A. sobre as suppostas viagens á Guiné
dos Dieppezes no xiv° e xv° seculos, mas tambem a
descripção que elle faz do estado da marinha franceza
no tempo de Carlos Vo ( o Sabio ) ; verá cm fim que taes
expedições se não podião ter verificado naquellas epocas.
Que a invenção das taes suppostas expedições ainda não
existia no tempo em que escreveo este A. normando , se
prova ainda mais pelo que elle diz a pag. 314 : « Ce qui
» s'est passó depuis Van 1400 jusquà Van 1500. «
Tratando neste periodo da expedição de Belhencourt
diz que « il montra aux Portiigais le chemin quils ont
depuis tenu pour les découvertes de la côte etAfrique. »
E não diz uma palavra das taes suppostas expedições
á Guiné , fabula que então ainda não tinha sido inven
tada.
1643. — Morisot , natural de Dijon, na sua obra
Orbis maritimus, sive rerum inmaris et littoribus gesta-
rum generalis Historia , diz a pag. 487 e 488 , fallando
do illustre Infante D. Henrique e dos descobridores que
se lhe seguirão :
« Tum primum circumnavigari incepto Africa , qua
» Atlantico Oceano pulsatur oriensque petitur. »
Continua e depois diz :
« Hinc Joanne II imperante /Ethiopia ipsa patefacta,
>i cetiamqud parte ab antiquis cosmographis inaccessa
» putabatur. .>
E no cap. X , em que trata dos grandes feitos mariti
mos dos Normandos , não diz nem uma só palavra dos
— 241 —

suppostos descobrimentos delles na Guiné, nem tão


pouco na dedicatoria a Luiz XIll onde trata da ma
rinha , etc.
164.5. — Voyages en Afrique, etc, par Jean
Mocquet , guarde du cabinet des singularitez du Roi
aux Tuilleries. Esta obra foi publicada em Roão em
1645.
Esta obra augmenta ainda mais o numero das provas
de que , antes da viagem de Villaut, a fabula dos sup
postos descobrimentos na Guiné pelos Dieppezes no
xiv° seculo não tinha sido fabricada, e ninguem tinha
em França noticia de tal.
Este A. tinha tido logar opportuno no seu prefacio
para fallar neste assumpto, quando trata meudamente
da importancia e fructo das viagens, e do quanto Hen
rique IV° se interessava em ouvir as suas relações, etc.;
se naquella epoca houvessem pelo menos tradições ,
este A. as teria lembrado quando diz a pag. 5 :
« Et rendre quelque serviceaux François curieux
» qui pourroient étre excités à mon exemple (note-se) à
» entreprendre pareils ou plus grands voyages à la gloire
» de Dieu , honneur de leur pays , et utilité de leurs
* compatriotas. »
Tratando da Africa a pag. 28 diz :
« La partie d Afrique incognue aux anciens , et des-
» couverte par les Portugais , » e nem uma palavra dos
Dieppezes.
Mocquet viajou em 1601 , isto é 65 annos antes de
Fillaut.
1665. — Neste anno se publicou uma traducçâo
16
— 242 —

franceza «la Historia das índias orientaes de Maffei,


e os redactores do Journal des savants , dando conta da
mesma obra no dito anno, fizerão os maiores elogios
aos Portuguezes pelos esforços que estes tinhão feito
para descobrirem novas terras , e até nos attribuem a
invenção da agulha nautica.
Esta deducção chronologica , combinada com o que
dissemos no texto, mostra da maneira mais evidente, que
não havia em França , e entre os viajantes normandos
desde Bethen court no seculo xv° até 1665, e portanto
anteriores a Villaut, nem mesmo tradição dos taes sup-
postos descobrimentos na Guiné dos Dieppezes do
xiV seculo.
30".

Viagem de Jacques Ferrer a Vedamel ou fíajaura, pag. 176


e seguintes.

Dissemos no texto que este rio não era o Rio A'Ouro


descoberto pelos Portuguezes, e alli desenvolvemos as
razões era que nos fundámos; agora accrescen taremos
que, combinando-se a denominação de Vedamel do Mss.
de Genova com a descripção do dito rio assim chamado
ou Rujaura que se encontra no mesmo Mss. , não Aca em
nosso entender a menor duvida de que o Rio d'Ouro ao
qual se derigia Jacques Ferrer não era o rio a que os
Portuguezes derão o nome de Rio ftOuro. O navio de
Jacques Ferrer derige-se não para o tropico , mas sim
para o norte do Cabo Bojador ( per anar al rin de lor )
ou ao Vedamel , e na mesma carta catalan se vê ao norte
— 243 —

do cabo a palavra Vetenileh na mesma posição do Va-


dimel ou Vedamel. Na carta de Benincasa de 1467, se
lé no mesmo logar Vtemille.
O almirante Roussin , a pag. 36 da sua Memoria so
bre a navegação ás costas occidentaes d'Africa , descre
vendo o Rio d'Ouro dos Portuguezes , diz : « On ne
» remarque aucuncourantparticulier devant Riod'Ouro,
» ce qui détruit toute idée de 1'existence d'une rivière
» débouchant dans cette crique. »
Barros diz (como vimos pag. 181 ) « que era somente
» um esteiro d'agua salgada que entra pela terra dentro
» obra de seis legoas. »
l&Mocquet, que alli esteve muito tempo, diz que
tendo o capitão mandado sondar o dito rio, se achárão
apenas 12 pés dagua , e que o navio demandava 10 a 12,
de maneira que a quilha tocou no fundo (1).
Em quanto o Rajaura , Rio do Ouro, ou Vedamel de
Jacques Ferrer, segundo a descripção que se encontra
no Mss. de Genova , habet latitudinem unius legua? et
fundum pro majore navi mundi.
Ora na epoca que se fixa a esta viagem do maritimo
catalão havião já os galiões , e as nefs que erão os maio
res navios, e estas ultimas, um seculo antes da viagem de
Jacques Ferrer, só podião navegar em mais de 18 pés (2) ;
á vista pois da discussão destas particularidades parece

(1) Vide Voyages de Jean Mocquel , 1601 , publicadas em Pariz


cm 1645, pag. 72 e 73.
(2) Vide sobre as Ncfs as passagens citadas por M. Jal, Archéo-
logie navalc , tomo II, pag. 422.
— 244 —

que se deve concluir que o Rio do Ouro do Mss. de Ge


nova , tendo bastante fundo em 1346 para alli hirem os
maiores navios do mundo, não era certamente o Rio do
Ouro dos Portuguezes ; pois tendo sido sondado em
muitas partes pelos maritimos do navio de Mocquet em
1601, não acharão mais de 12 pés. A seguinte passagem
da Memoria hydrographica do almirante fíoussin nos
parece ainda mais decisiva -, pois diz :
« La plage de sable qui , comme on l'a dit, ferme
» presque entièrement 1'embouchure du Rio do Ouro
>- ne permet pas de penser que ce lieu puisse recevoir
» des bâtiments du plus faible tirant d'eau , il ne peut
» probablement admettre que des canots. » (Mém. sur la
Navigation aux côtes occidentales d'Afrique, pag. 36.)
Sem fazermos grande fundamento das objecções que
acabámos de expor, o que nos parece indubitavel é, que
se não pode sustentar de modo algum que o JRajaura
para onde partio o Catalão Jacques Ferrer em 1346
seja o Rio do Ouro descoberto depois pelos Portugue
zes. Com efleito quando se vê de um modo indubita
vel a grande influencia que tinhão no seculo xiv° as
tradições classicas sobre os cosmographos , e sobre os
maritimos, e que Herodoto (IV, 178) diz que os Cartha-
ginezes fazião além das columnas d'Hercules um com-
mercio mudo com uma nação que vinha buscar ás praias
as mercadorias que se lhe oflerecião, e deixava em seu
logar em terra uma grande quantidade de ouro em troca :
quando se vê que Pindaro nos diz tambem (Olymp. II,
127 ) que junto das ilhas dos hemaventurados (as Afor-
s• tunadas) se vião desaguar sobre o placido oceano rios
— 245 —

» de ouro; » quando depois destas tradições classicas se


vêem os Arabes na idade media darem o nome de Rios
de Ouro a alguns situados aquém do Bojador (1) ;
quando vémos todas estas particularidades, e que as
combinámos com o estado dos conhecimentos geogra-
phicos no xiv° e xv° seculos antes da passagem do Cabo
Bojador pelos Portuguezes ; quando as combinámos
em fim com a historia positiva, e com as cartas contem
poraneas, não hesitámos em declarar que nos parece
não só difficil, senão impossivel provar de um modo
incontestavel que o Rio do Ouro a que se derigia Fer
rer fosse o Rio do Ouro dos Portuguezes.
Por estas observações o leitor verá quanto são fracos
e sem fundamento solido todos os argumentos que
se tem buscado para diminuir a incontestavelprioridade
dos nossos descobrimentos africanos; o leitor verá em
fim , que nem um só dos argumentos que se tem feito
contra aquella prioridade pôde resistir em presença dos
factos, da historia, e de uma analyse imparcial e scien-
tiflca(2).

(1) Vide nota 2 de pag. 180.


(2) Esperámos em breve poder discutir c desenvolver melhor
este assumpto , bem como o da viagem de Vivaldi , em uma Memoria
especial.

FIM.
ERRATAS.

A pag. 151 : penultima linha, lêa-se aos em logar de os.


A pag. 153 : lêa-se Bontier em logar de Boutier.
A pag. 161 : lêa-se no logar da nota : Vide Addição n° 30.
A pag. 165, linha Ia, $°H : lêa-se Castelhanos em logar de Castellanos.

Ibid., linha 10 : lêa-se Castelhanos.


<
I

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