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De uma renúncia e de resistências trans* anticoloniais

viviane v.

Gostaria de iniciar este texto com alguns reconhecimentos. Reconhecimento, em primeiro lugar, a
este grupo de pesquisa que me acolhe desde o ano passado, quando resolvi tentar uma vida nova em
Salvador. Reconhecimento também a todas as pessoas que, desde perspectivas mais institucionais
ou pessoais, apoiaram-me nos difíceis embates cotidianos com normatividades cisgêneras conforme
me identificava mais fortemente como uma mulher trans*. Reconhecimento aos amores que tenho
cultivado, reconhecimento à erva que me acalma e inspira, reconhecimento à brevidade destas
nossas vidas, em particular aquelas vidas trans* e gênero inconformes de expectativas
consideravelmente reduzidas.

Este texto procura apresentar, brevemente, alguns argumentos para a renúncia de minha candidatura
ao título de mestra em Cultura e Sociedade desta universidade, e apontar para algumas
possibilidades de resistências trans* anticoloniais.

Minhas reflexões sobre questões trans* iniciaram-se alguns anos antes de qualquer contato
acadêmico mais formal. Estas reflexões já lampejavam a partir de minhas vivências inconformes de
gênero (minhas 'montagens' escondidas, saídas a 'bares trans*', entre outras experiências), e iam se
complexificando conforme passaram a se associar com a leitura de obras como Transgender Rights
(editada por Paisley Currah, Richard M. Juang, e Shannon Price Minter), Whipping Girl, de Julia
Serano, e Crossing Sexual Boundaries: Transgender Journeys, Uncharted Paths (editada por J. Ari
Kane-Demaios e Vern L. Bullough). E, assim, uma leitura que se iniciou com o objetivo de
encontrar apoio teórico+político para os sentimentos de que viviane representava algo mais
profundo em mim passou também a originar um interesse acadêmico por questões trans*. Foi então
que iniciei meus contatos com alguma literatura brasileira sobre questões trans*, a qual me pareceu
bastante interessante, apesar de alguns lampejos críticos que senti e que hoje tento elaborar
academicamente. O fato é que há+via algumas discrepâncias consideráveis entre diversas leituras
políticas+teóricas realizadas nos estudos transgêneros e o que se produz+ia a respeito de pessoas
trans* no Brasil. Não posso deixar de associar, desde minha perspectiva acadêmica, estas
discrepâncias epistemológicas+metodológicas+políticas com as formas que as críticas que tenho
proposto têm sido encaradas em alguns meios acadêmicos.

Há três grandes vertentes propositivas em minhas perspectivas: a caracterização da cisgeneridade


como normatividade de identidades de gênero, a intersecionalidade como um aspecto fundamental
em análises sociais anticoloniais+antinormativas, e a crítica a epistemologias de inspiração
colonizatória através da proposição de autoetnografias trans* (naquilo que se refere às questões de
identidades de gênero, mais particularmente).

Caracterizar a cisgeneridade como normatividade de identidades de gênero é simplesmente


estabelecer um paralelo com a heterossexualidade enquanto normatividade das sexualidades e
práticas sexuais. Pela enésima vez (e gostaria que houvesse pelo menos alguma citação sobre
alguma fala transfeminista em contrário), a cisgeneridade é um conceito pensado **a partir** das
críticas ao gênero como conceito binário, essencializado e estável. São, aliás, estes os três pilares
que procuro caracterizar para a cisnormatividade: as ideias de que gêneros são binários
(homem/mulher), pré-discursivos (definíveis objetivamente a partir dos corpos ou de sua 'essência'),
e permanentes ('não fluidos', para ficar nos termos de modinha). Tampouco posso deixar de notar
tons da infantilização cisnormativa de pessoas trans* nestas infundadas críticas de que
cisgeneridade seria uma mera reprodução de binarismos ou uma outra essencialização dos gêneros,
ignorando minha posição enquanto acadêmica em questões trans* (ou seja, que leu um pouco a
respeito para falar destes assuntos) para, de forma paternalista, dizer que 'compreendi+emos o
conceito de cisgeneridade errado'. Novamente, solicito citações e referências, jah tão escassas
quando pensamos em pessoas trans* na academia.

Ninguém, por outro lado, parece querer discutir a sério as insensibilidades intersecionais (no caso,
raciais) que apontei ao dizer que “Algo cheira mal nos trópicos”, a respeito do Seminário
Internacional Desfazendo Gênero, tampouco a precaríssima análise de questões trans* realizada por
uma pessoa que participou do Grupo de Trabalho em que participei. Preferem, como parece, pensar
nas críticas como 'ambição pessoal', como algo 'intelectualmente desprezível', 'politicamente míope',
e que 'reforce estereótipos patologizantes'. Talvez meçam os posicionamentos e atitudes políticas
alheias a partir das réguas que norteiam seus próprios pensamentos. Sinceramente, é um
desapontamento imenso perceber que um mero reconhecimento de que talvez tenhamos nossos
erros em perceber criticamente todas as complexas relações intersecionais (algo autoevidente, dado
que ninguém 'chegou lá' nos píncaros das equidades perfeitas para nos ensinar tudo sobre como
alcançá-las) seja muito mais difícil e raro de se ouvir do que frases como 'há muita agressividade',
'todas somos trans', 'esse negócio de cis e trans é essencializar o gênero como algo binário', 'ela
nasceu do sexo feminino' – esta última, de fortes tons cis+sexistas (dada a desconsideração da
autoidentificação de gênero do 'objeto de estudo' em detrimento de um biologismo acrítico, no
mínimo), ouvida no grupo de trabalho do Desfazendo Gênero anteriormente mencionado.

Construir minhas críticas como 'fofocas e acusações', reduzir as coisas a 'debates inflamados', não é
nada mais que um dispositivo de poder que procura evadir-se de questionamentos incisivos. Neste
meu pouco tempo de vivência social enquanto mulher, pude experimentar diversas instâncias em
que esta estratégia de deslegitimação foi micropoliticamente utilizada. Talvez em número suficiente
para perceber o quanto essa estratégia é frágil, e por outro lado para ter a confiança de insistir nas
críticas incisivas.

É possível também, e isso é o fundamental, que talvez estas pessoas não tenham desconstruído a
cisnormatividade em suas cabeças para pensar que, sim, há pessoas trans* para muito além dos
objetos infantilizados trans* que caricaturizam – e parece ser importante que assim seja, de forma a
estabilizar posições de 'especialistas' no 'universo trans'. Há pessoas trans* fazendo teoria mundo
afora, apesar de aqui no Brasil, por todos condicionantes sociais excludentes que conhecemos, estas
presenças ainda serem muito pontuais e com pouco poder de decisão: ainda assim, onde estão elas
nos referenciais bibliográficos quando se abordam questões trans*? Por sua vez, algumas pessoas se
gabam de suas habilidades em línguas coloniais+imperialistas, como o francês e o inglês: onde
estão as traduções das produções de pessoas trans* mundo afora? Onde estão, afinal, as referências
que menciono ao falar da transfobia na teoria em uma tradução de Katherine Cross
(http://bit.ly/1ah0k0w): Riki Wilchins, Susan Stryker, Sylvia Rivera, Julia Serano, Vivian Namaste,
Dean Spade, Paisley Currah, Pat Califa, Stephen Whittle, Carol Riddell, Lou Sullivan, Jay Prosser,
Tobi Hill Meyer, Emi Koyama, Joelle Ruby Ryan?

E quando apontamos estas insuficiências, e quando apontamos estas falhas, e quando apontamos as
exotificações de pessoas trans* e gênero inconformes nos mais diversos meios (especialmente o
acadêmico, em meu caso), e quando procuramos utilizar a cisgeneridade como categoria analítica
para pensar a normatividade de identidades de gênero (similarmente a como utilizamos
heterossexualidade), e quando reclamamos de pronomes mal utilizados, nossas críticas parecem se
revestir de um 'ou tudo ou nada', de 'muita agressividade', de 'emotividade', de 'estarmos elegendo
os inimigos errados'. Fiquei profundamente feliz quando escutei, recentemente, pessoas
mencionando que este é um padrão que ocorre também na dinâmica das análises raciais: as falas
oriundas das margens costumam parecer 'agressivas', 'emocionais', 'extremistas'. Acredito, afinal,
que estas avaliações de 'tom' sejam mais reveladoras sobre os locais de fala de quem as efetiva do
que os locais de fala das pessoas que são 'criticadas' por isso.
Nestes sentidos, minhas atuações acadêmicas têm me desgastado profundamente. As pessoas mais
próximas a mim nestes últimos tempos sabem que a aproximação ao meio acadêmico foi
praticamente conjunta à minha crescente identificação (social+existencial) enquanto uma mulher
transgênera. Esta aproximação teve inúmeros benefícios para uma construção de gênero mais
crítica, ainda que haja sempre o cheiro de que este é um lugar que não me pertence: falam de
pessoas trans* em terceiras pessoas, falam de suas vidas em detalhes de cuja necessidade desconfio,
utilizam-nas no meio de debates filosóficos sobre gêneros que pouco têm a ver com as realidades de
assassinatos, espancamentos, torturas e suicídios que perpassam tantas vidas trans*. Neste sentido,
renunciar à minha posição enquanto acadêmica não deixa de ser renunciar a uma parte de minha
construção enquanto pessoa trans*, e sinto que é necessário um esforço crítico para analisar o
quanto minha potência política anticisnormativa perderia com esta desvinculação acadêmica formal.

Abro a autobiografia de Malcolm X. Folheio as páginas a esmo, procuro uma marcação que fiz
aleatoriamente. Página 38. Malcolm relata de uma conversa sua com um professor de inglês que lhe
pergunta sobre seus planos de carreira. Ele, sem nunca haver pensado nisso antes, responde que
gostaria de ser uma pessoa advogada. O professor, falando de 'realismo', lhe diz “Um advogado –
este não é um objetivo realista para uma pessoa negra.” Este episódio, juntamente à percepção
crítica de que ele tinha mais potencial que todas as pessoas colegas brancas que este mesmo
professor incentivava em suas escolhas profissionais, é apontado por Malcolm como um importante
ponto de inflexão em sua vida.

Olho para este texto, penso em como minhas argumentações serão novamente ignoradas, em como
lerão 'ambição pessoal' e a porra onde quero pensar criticamente (sem bolsa de mestrado), e penso
que não vale a pena seguir nisso. É economicamente inviável, minha parte economista diz
pragmaticamente. Você tem que pensar na sua vida, trava, tá acabando o tempo, diz minha parte
trans*. Mas então eu vejo cada pessoa trans* que não se utiliza mais de linguagem inferiorizante
para se explicar no mundo, vejo tantas pessoas trans* e cisgêneras preocupadas em apontar as
colonizações cisgêneras que nos afligem diariamente (e de distintas formas), e sinto tanta sintonia
intersecional com outras lutas anticoloniais e antinormativas, e penso que vale a pena resistir. Vale a
pena resistir neste meio acadêmico podre e fedido, mais preocupado em desenhar querelinhas
pessoais que em debater conceitos e ideias de forma solidária, vale a pena porque eu sinto que este
respaldo institucional potencializa minha voz trans* e me permite criticar mais efetivamente
cisnormatividades, onde quer que elas estejam. E, neste meio tempo, seguimos na graça e segurança
de mandar beijos críticos nos ombros para quem está incomodado, ao invés de feliz, com nossa
presença trávica pelos corredores das torres de marfim colonizatórias. Talvez a academia, enfim,
não seja um destino 'realista' para pessoas trans*, mas estou disposta a continuar re+existindo.

As resistências trans* estão somente começando. Estejam pre-pa-ra-das: elas virão de


autoetnografias, de status de facebook, de postagens em blogs desconhecidos, de barracos contra
cisnormatividades, das vozes que se levantam dos chãos onde nos acostumamos a morrer e resistir a
torturas, agressões e suicídios, elas virão por todos os meios necessários às descolonizações de
gênero.

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