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O Tecelão dos Tempos
(NOVOS ENSAIOS DE
TEORIA DA HISTÓRIA)
- .• .

1 • .
Durval Muniz de-Albuquerque Júnior

O Tecelão dos Tempos


(NOVOS ENSAIOS DE
TEORIA DA HISTÓRIA)

São Paulo
2019

mnlermeios
€II ARTES LAOS
. Editora lntermelos
Rua Cunha Gago, 420 /casa 1 -Pinheiros
CEP 05421-001 --São Paulo - SP - Brasil
Fones: [11] 2365-0744 -94898-0000 (Tim) - 99337-6186(Claro)
www.intermeloscultural.com.br


O TECELÃO DOS TEMPOS(NOVOS ENSAIOSDE. TEORIA.DA HISTÓRIA)

, © Durval Muniz•de Albuquerque·Júnior .

1edição: junho de 2019


Editoraçãoeletrónica, produção Intermeios -- Casa .de Artes e Livros
• Capa Lívia Consentino Lopes Pereira
Revisão Érica Castro


CONSELHO EDITORIAL
VincenfM. ·colapietro (Penn.Staté U.niversify)
Daniel Ferrer (ITEM/CNRS)
Lucrécia D'Alessio Ferrara (PUCSP)
Jerusa PiresFerreira(PUCSP)
.Amálio·Pinheiro (PUCSP)
Josette·Monzani (UFSCar)
Rosemeire Aparecida Scopinho (UFSCar)
llana Wainer (USP)
• Walter Fagundes Morales (UESC/NEPAB)
·lzabel Ramos de AbreuKisil
Jacqueline Ramos.(UF.S)
Celso Cruz (UF.S) --in memoriam
·Alessandra Paola Caramori(UFBA)
Claudia Domnbusch (USP)
Barbara Arisi '(Unila)
Nikita Paula(Ancine)

DadosInternacionais de· Catalogação na Publicação -- CIP

A345 -Albuquerque ·Júnior, I)urval Muniz de

,O.;tecelãodos tempos: novos ensaios de .teoria da :História / Durval


Muniz deAlbuquerque.Júnior:Prefácio de Temlstocles Cezar.--.São Paulo:
• lntermeios; 2019. •
276 p. ; 16x23 cm.
ISBN 978-85-8499-164-8

1. História. 2.Te:oria da História. Escrita da História. Usos da História.


3, 4 ..

5. Ensino da História. 6. Historiografia. I. Título.II. Novos ensaios de teoria


da História:.111, Combates pela histori,ografia:·ensaia sobre,um intérprete da
vida. IVA escritada História. V.Usos do passado. VI. O ensinoda História.
• VJl.•.Cezar; '.femístocles. VIII. Intermeios - Casa de Artes e livros..
• CDU .930
. CDD·900
Catalogação elaborada por.Regina .Simão Paulino - 6/1154
À Manoel Luiz Salgado Guimarães,
eterno amigo e inspiração.
SUMÁRIO

9 PREFÁCIO

13 APRESENTAÇÃO

PARTE I: A ESCRITA DA HISTÓRIA

27 Capítulo 1. O tecelão dos tempos: o historiador como artesão das


temporalidades

39 Capítulo 2. 0 passado, como falo?: o corpo sensível como um ausente


na escrita da história

57 Capítulo 3. A poética do arquivo: as múltiplas camadas semiológicas e


temporais implicadas na prática da pesquisa histórica

79 Capítulo 4. Raros erotos, restos, rastros e rostos: os arquivos e documentos


como condição de possibilidade do discurso historiográfico

105 Capítulo 5. O significado das pequenas coisas: história; prosopografia e


biografemas

125 Capítulo 6. O caçadordebruxas: Carlo Ginzburge a análise historiográfica


como inquisição e suspeição do outro
PARTEII:USOS DO .PASSADO

• 149 :capítulo'7/Patrimônio ou matrimônio,:isso é lá com Santo Antônio?:


algumasreflexões em torno da relação entre memória e património

165 Capitulo 8.As sombras. brancas: trauma, es.quecimento e usos .do passado

179 Capitulo9. A necessária presença do outro,-.mas ·qual outro?: -reflexões


acercadas relações entre·memória; história e comemorações

19 1 Capitulo 10. Entregar (entregar-se ao) •O passado de .corpo e língua:


reflexões•em tomo do ofício de historiador

PARTE III: O ENSINO DEHISTÓRIA

:213 ·Capírulo]l. ·Regimes:de historicidade: como se alimentar de narrativas


0

temporaisatravés do ensino de.história

233 Capitulo 12. Por um ensino ·que .deforme: o futuro da prática docente
no·campôda,história.

245 Capítulo 13. Fazer defeitos nas.memórias: para que servem o ensino e a
escritada história?

263 Capítulo 14. De lagarta a borboleta: possíveis contribuições do


·pensamento·déMichel 'Foucaült ;para a pesquisa-no campo do ensino
de.história

1
PREFÁCIO

Combates pela historiografia:


ensaio sobre. um .intérprete da vida

TEMíSTOCLES CEZAR

Iproject thehistory ofthefuture.


Walt Whitman'

É como se o livro dos tempos pudesse


Ser lido trásprafrente, frente pra
trás
Gilberto Gil, Ojim,da história2

Notícia verdadeira.

No dia 04 de agosto de.2017, ô Grupo Carmin estreava, no Espaço Cultural


Casa da. Ribeira, em Natal, a peça "A Invenção do Nordeste e Outras Artes':
baseado na obrahomônima de DurvalMuniz deAlbuquerqueJunior.3 Segundo
a responsável pela direção do espetáculo, Quitéria Kelly, a proposta surgiu como
resposta a "uma série de reações xenófobas contra os nordestinos,· durante as
eleições presidenciais. de 2014''.4 Desconstruir essa imagem estereotipada do
nordeste e do nordestino foi a principal motivação para a transformação do livro
de Durval em criação teatral. Em 21 de janeiro de 2019, "A invenção dó Nordeste"

1. "Eu projeto a história do futuro". WHITMAN, Walt. "To a historian" (1855), Leaves ofgrass.
TheNew American Library: New York, 1960, p. 32-33.
2. Gilberto Gil, Ofim da história; Parabolicamará, WEA, 1991.
3. ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. A "invenção do nordeste eoutras artes. São Paulo:
Cortez, 1999, A partir daqui me referirei ao autor-apenas pelo seu prenome: Durval.
4. https:/ /gl .globo .com/ rnirio-grande-do- norte/ no ticial grupo-carmin-es treia-esp etaculo-a-
invencao-do-nordeste-em-natal.ghtml
• 10 TECELAO DOS TEMPOS

- é agraciada com o Prêrriio Ce~granrio de Teatro; uma "prova de que as questões


queesiamoslevantando são urgentes e precisam ecoar", declara a diretora.5
DeSófocleseShakespeare aoTeatro Oficina,ao Queermuseu, àlnvençãodo Nordeste,
· ·sécit/0$',de~raserésistênciastranscorreramsobvcorpo,osangue,ochoroeorisodemullreres
e dehomens.
A arte docombate

Não é comumuma-obra produzida sob a égide donigores da ciência atingir um


público que ultrapasse os muros da academia. Comkinvenção do nordeste eoutras artes,
originalmente uma tesedé doutorado, Durval não apenas cruzou essa fronteira simbólica,
elea transgrediu: uma transgressão criativa, que irrompe da linguagemmuda invadindo as
palavras com musicalidàdes desconcertantes, quenos faz escutara rugido da batalha. 6 A
metáforabélica nãoé, contudo,uma incitação àviolência; mas a persistência argumentativa
do exercício crítico.Sua escritaelegante e reiterativa éreflexo de umamente inquieta, tenaz
eapaixonada,quenão hesita em afirmar, questionar, afrontar e desarticular fórmulas
.•,tradicionâis::e,éàJlônicas de se:pensar.a,historiografia. Desde, portanto, seu primeiro
livro,passandopelo História. A arte .dé.-.inventar o passado7, de 2007, até os ensaios
reunidos nesteOtecelão dos tempos, essa forma de refletir sobre a matériafostórica não
cessou deexpandir seucampoanalítico, deexpor suas dúvidas,de.ampliar o potencial
'de suas polênricas,'de:·erigir a contradição em método historiográfico, de amadurecer
sua ousadia iritelectua!,'enfim, .de,combater. Combates pela historiografiaª parece uma
maneirajusta eadequadade resumir.este incessante trabalho por-wnahistória viva; que,
-,em última instância, visa, como o poetapropaga, "corromper o .silêncio ,das palavras''.9

Ensaio eficçãohistórica

Tanto História. A arte de inventar o.passado;quanto O tecelão.dos tempos


portam, emseussubtítulos, a definição,do modo deDurval.escrever: o ensaio.
Derivada do latim, a palavra remete à ação de pesar, exagiare, Na vizinhança
etimológicadotermo encontra-se examen (exame;ponderação) em cuja origem
percebe-se umtraço em comum: exigo, empurrar para fora, expulsar, depois
exigir. "Quantas tentações - escreveJeanStarobinski - se o sentido nuclear das
;pàlavrâs dê hoje resultasse do que elas sigrtifrcaramem um passado·longínquo''.

5. ·; ·https://g Lglobo..comfrrt/rio_- grande-do- nor.te/noticia/2019/02/05/peca-a-invencao-do-


nordeste-volta-a-natal-apos-premio-cesgranrio.ghtml
6. FOUCAULT, Mi chel. Surveiller etpunir. Naissance de laprison':Paris:Gallimard, ·1975, p. 315.
7. ALB{JQUERQUE :Jr:; Durval Muniz· de.Bistória. karte de jnventar.o passado. Ensaios de
teoriada história.Bauru: Edusc, 1007.
8. Trata-seaquideumaanalogia com a obra de FEBVRE, Lucien. Combatspour l'histoire (1952).
Paris: Armand Colin,1995.
9. BARROS,Manoel de. Retrato doartistaquando coisa.Rio deJaneiro: Record;2007., p. 13.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 11

Assim, ensaio equivale a "pesagem exigente, a "exame atento, mas também a


"enxame verbal", "cujo impulso liberamos"""
Os textos ensaísticos de Durval, implacáveis muitas vezes, irônicos outras
tantas, indulgentes eventualmente, rigorosos sempre, implicam em uma defesa
epistemológica e política intransigente de umadimensão do discurso histórico que
é, de modo geral, negligenciada pelos historiadores: a de uma poética da história.
Isso não significa uma proteção ao relativismo irresponsável nem um ataque
aos princípios da objetividade do conhecimento, mas um resguardo à ausência
de sensibilidade de narrativas históricas despreocupadas com a subjetividade
implicada na materialidade do gesto de escrever: Suponho que para Durval, assim
como para mim, o contrário da história,a sua forma vazia e manipulada, não é a
ficção e seus recursos, mas a simples mentira, a inverdade proposital do conteúdo.
Nesse sentido, Durval, voluntária ouinvoluntariamente,aproxima-se muito
de Foucault quando este diz: "nunca escrevi senão ficções e estou perfeitamente
consciente disso': porém "acredito que é possível fazer funcionar ficções no
interior da verdade, de induzir efeitos de verdade com um discurso de ficção, e
de fazer com que o discurso de ficção suscite, 'fabrique' alguma coisa que não
existe ainda - portanto, 'ficcione. 'Ficcionar'a história a partir de uma realidade
política que a torna verdadeira, 'ficcionar' uma política que não existe ainda a
partir de uma verdade histórica" Esses efeitos de verdade não têm somente o
objetivo de produzir uma verdade alternativa, mas também de tornar manifesto
que a verdade se produz e que é necessário descrever, analisar as operações de
sua formação. Durval, tal como Foucault,não tem por objetivo tornar visível a
verdade do passado e do presente, mas desvelar aquilo que tornou possível essa
verdade; ou seja, mostrar as relações entre o constante jogo das interpretações
e o regime racional; o paradigma,que rege as práticas discursivas.

"Je suis un homme complet ayant les deux sexes de lespri@"?

O tecelão dos tempos é escrito por um homem cônscio da diversidade,


seja ela racial, étnica, política, sexual, que caracteriza, à revelia dos fascismos
cotidianos, a condição humana. Ostemas por eleabordado, muitos deles matérias
tradicionais dos historiadores (tempo, arquivo, documento, biografia, memória,
. esquecimento, patrimônio, ensino) trazem consigo não apenas a marca pessoal
de suas escolhas, mas, sobretudo, um forte respeito à diferença.

10. STAROBINSKI, Jean. "É possível definir o ensaio?", Doze ensaios sobre o ensaio. Antologia
Serrote. São Paulo: IMS, 2018, pp. 12-26. Ressalte-se que nenhum dos 12 ensaios reunidos
nessa coletânea tratam especificamente sobre o ensaio na história ou na historiografia.
11. BLANCHOT, Maurice. Michel Foucault tel que je l'imagine. Paris: Éditions Fata Morgana,
1986, pp. 46-47.
12. "Sou um homem completo tendo os dois sexos do espírito''. apud BARTHES, Roland .
Michelet. Paris: Seuil, 1995, p. 7.
1 12 • ; TECELÃO DOS TEMPOS

1. Comoseupúblico conhece, Durv:al é umescritor talentoso e um oradonxímio,


·qi.te escreve e fala com a:liberda.tle·dequem:hámuito rórnpeu com o dualismo primário
dogénero,sejaaquele expresso peloantigo parmacho/fêmea, seja aquele cromático
(azul erosa)reinscrito na agenda soeialhrasileirarecentementepot uma representante
daonda conservadora que ora ocupao Estado. Durval não se sujeita ao princípio
dadualidadepolítica oureligiosa; ele é regido pelo e sob o,signo do corpóreo. O
corpo, abrigo de todasasmazelas ealegrias,percorre o·livro como um objeto mais
'descontínuodqqué dissimulado oulntrovertido. Um-corpo livre-da:prisfoda alma!13
Apósconcluira leitura dos 14 ensaios que-compõe o livro, eu disse a Durval
quefiqueicoma mesma sensação dequando assisti'ao documentário, sobretudo
suascenasfinais, Gaga: o amor peladança - abiografia de 0had Naharin, o
renomado coreógrafo ediretorartístico da Companhia de Dança Batsheva, de
Israel.'Ocorpo queexpressa ahistória,a históriaque se expressa no corpo.

·'Às/aosleitoras/es.

. ,A.escriftuiahistória, Usos dppassado,Densino de história. Assim encontrasse


divididoO tecelão dos tempos,precedidopelaapresentação intitulada de Ainfração
à ortodoxia: o ensaiocomo forma.Teoria da história,história da historiografia e
metodologiahistórica aparecemaquinãocomo argumentação artificial descolada das
.ifontés:;;mas.:como:condições:de emergência•e.existênciadodiscursohistórico. Nessa
perspectiva, autores e temas:estrangeiros-e nacionais .sfomobilizados sem complexos,
semhierarquiasintelectuais previamente concebidas. O livro-é mais uma ,prova que
ninguém,nenhum país;>dêtêmo,monopólio depensarlivremente. .Durval não se deixa
··'intimidar e discute francamente• pensadores e temáticas de modo original e·ousado.
- Por isso, ostextos aquireunidosformamuma constelaçãosimultaneamente
erudita e polêmiça,:ferina e-generosa, que pode ser -lida de trás para frente, de
frente paratrás, compés calcados no:presente, com. olhos no passado ou como
projeto de uma - história .futura. Cadacapítulo é um .convite à ruptura com a
tradição que oprimeo cérebro .dos·vivos;éuma incitação à vigília que sesobrepõe
ao sono dogmático, é um chamado que,desafia a acomodaçãoacadêmicaiO livro
étanto:um·-descaminho:cômo .urna,travessia; tanto para o iniciante na matéria
• como para o. experiente pesquisadore/ou professor.. Com O tecelão dos tempos
nosxonfortamos,e nos deslocamos, sentimosprazer e identifipação, medo ou
. repulsa,jamaisindiferença. Porquê? PorqueDurval não é apenas .um intérprete
do nordeste, ·dofüasil ouda.história,.de é.um.intérprete-da vida.

·:Porto Alegre, verãode 2019.

13. "A alma,efeito e instrumento de ,uma..anatomia. política; a alma,prisão do •corpo".


FOUCAULT,Michel. Surveiller etpunir.op. cit., p. 34.
14. Mr.Gaga, direção deTomerHeymann, Israel, Suécia,Alemanha, Holanda, 2015.
APRESENTAÇÃO

A infracão à ortodoxia:
2

o ensaio como forma

... a. lei formal mais profunda do ensaio é a


heresia.
Apenas a infração à ortodoxia do
pensamento, torna visível, na coisa, aquilo
que a finalidade objetiva da ortodoxia
procurava, secretamente, manter invisível.
(ADORNO, Iheodor. O ensaio comoforma,
p. 45)

Apresento aos colegas historiadores mais um livro de ensaios sobre teoria


da história. O anterior, História: a arte de inventar· o passado (ensaios de teoria
da história), mereceu recepção variada e diversa. Foi objeto de resenhas bastante
elogiosas e tambémde resenhas desgostosas e irritadiças. Otítulo, emsi mesmo
provocativo, também gerou reações bem comuns à vida acadêmica brasileira:
desde a leitura interessada até a crítica e a condenação sem a leitura de uma linha
sequer. Irritados com a ideia de que a historiografia sejaurnainvenção do passado
ou que seja uma arte, colegas fizeram preleções contra o livro em seus escritos e
em suas salas deaula, sem se darem ao trabalho de, ao ler o livro; entender o que
nele se entende porinvenção ou por dimensão artísticada historiografia. Muitas
das críticas também se deveram ao totalsilêncio sobre o subtítulo da obra. Nele
eu explicitava aforma na qual os textos que compunham o livro estavam vazados:
o ensaio. Mas, como também é comum entre os historiadores, a forma em que
Os textos são escritos não interessou aos meus leitores, como se ela não tivesse
nenhuma relevância ou consequência sobre aquilo que ali era dito. Embora, em
mais de uma resenha, críticas formais tenham sido levantadas contra os textos
(estão cheios de repetições; não passaram por uma revisão que as evitasse, os
14 'TECELÃO DOS-TEMPOS

• textos sãodevariado tamanho, algunsdeles muito breves), nerthuma delas - se


ateveaofato de quese tratavam de.ensaios e, portanto, os textos deveriam ser
_ . ,àvàliados a, 'pattir das ,regras.que presidem essegênerode escritura. Como esse
• novo livro .também-se constitui deensaios,acheiinteressante,portanto, discutir,
nessaapresentação,asregrasdessaforma deconstrução textual; tomando como
• __ ponto ,de :pattidá; ,os-textos dàssicos sobre essa temática, escritos ,por· Lukács,
Bense eAdorno." \Espero, assim,-preparar -a· tecepção desse .livro, pelos .seus
leitores, sem pretender comisso evitar as possíveis.discordâncias ·-ou-eríticas de
que venha aserobjeto,o queseria um contrassenso numlivro queassume a
forma ensaística. Formaaberta aincertezas eimprecisões, forma.,quenãobusca
_ .a ortodoxia/mas ahereSia;como bem-resume-o parágrafo,finaldo clássico texto
de TheodorAdorno,que tito-em,epígrafe.
.- Adotaraformaensaio;nos·doisfüvros, que dedico à teoria. da história, -deve-
- .se àptópria maneira J.mmoconcebo·otrabalho_ do historiador e aquilo .que dele
·,:resú.1ta:A-n1ed1da.quepenso.quea,operaçãnhistotiográficasealojanum-lugar
• singular·e,equívocoentre aciência e a arte, nadamais adequado para expressar
esselugardo que aforma ensaística. É nesse lugar decharneira entre a prática
- .. dentífi.ca:ea•ptátiça: artístic:aque-Georgvon Lukács, emseutexto Sobre a essência
e ájorma do ensaio, vai localizar a esctita ensaística, ,Para ele, o ensaio era:uma
maneira de,ao mesmotempo; darforma e conceituar a 'realidade, borrando as
e
fronteirasentreciência arte, em busca de dar nova orientação :conceituaLà vida,
•a médida,que,elersealija,daperfeiçãpgêlida.da_:ciência positivista e do caráter
- • •definitivo dasfonhilla.çõesfilosóficas. _O.ensaionão é umlogrototalouparcial do
• discursocientífico, é umaformaoutra e própria de construção· do conhedmento.
É, antes de tudo, uma:•forma ,de· .exp.ressão do conhecimento que se reconhece
0
-- e:se pensa"comoforma;16 .ós,histotiadotestendem a nattira1izar a forma como
escrevem,comorelatam enarramo conhecimentosurgido desuas pesquisas. A
rejeição furiosaaos textos deHayderiWhitenasce;·justamente,de-sua,propositura
• -- de queos historiadores façamuma ·m:etahistória; o:u seja, que reflitam sobre as
regras e oscódigosque estãopresentes e constituemseus escritos: o persistente
- -nãoo.;füto;,e;irnpensadono'.Jrabàlho.historiogtáfico'.17 •
Para Lukács,o potencial .crítko do ensaio :nasce,;justamente; do fato de
• que ele iipplita a réflexão sobre o ato de dar forma a ·reâlidade,- de elaborar

. - . .
15. LUKÁCS,Georgvon."Sobrela esencia ylaforma del ensayo. Una carta a Leo Popper" In:
Elalmaylasformas.Barcelona: Grijalbo,1970, p. 226-242; BENSE,Max. "Sobre el ensayo
y su prosa"In: Cuadernosdelos seminaries permanents. Ensayosselectos. México: UNAM,
2004, p.24-31; ADORNO,Iheodor.Oensaiocomo forma.In:Notas de literatura LRio de
Janeiro: TempoBrasileiro,1973, p. 15-45.
16. LUKÁCS,Georg von. Op. Cit,p.226-227.
17. • >.V:ei:{Wa'l'I'l.~"ili,ayden;;Metahistória: aimaginaçãohistóiicá:dasécüldXIX.•SãoP,a'ulo:,E(iusp,
2008.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNJOR 15

discursivamente a vida." O ensaio seria aforma como experiência dupla: como


experiência da vida e como experiência· da escrita. Há um enorme potencial
crítico no ensaio àmedida que ele não confunde a vida com a forma narrativa que
damos a ela. A ironia e o humor faz parte dos escritos de todo grande ensaísta,
justamente, porque ele não confunde significantes e significados, corno muitos
dos meus colegas costumam fazer. Embora fale dos grandes temas da vida, de suas
experiências mais importantes, o ensaísta sabeque seus escritos se constituem de
imagens, de elaborações conceituais e narrativas dessas experiências. O ensaio,
diz Lukács, assume a eterna pequenez do trabalho mental sobre a vida e com
irónica modéstia a sublinha."? O ensaio se sabe produtor de sentidos limitados
e datados. O ensaio, na sua modéstia, sabe que sempre falamos de- algo que
já possui uma forma, senão dele não conseguiríamos nada dizer, por não ter
existência. Isso é mais verdade ainda quando, como no caso dos historiadores,
falamossobre algo que já foi; ou seja, que já possuiu uma forma passada. O
ensaísta sabe que, ao contrário do que se arrogam alguns, não se sacam objetos
novos de um pretenso vazio"" Ele sabeque o que faz é ordenar de um modo
novo, é reconfigurar, é reelaborar narrativamente aquelas experiências, aqueles
eventos, aqueles acontecimentos em algum momento já vividos e que tiveram
uma dada forma de apresentação e expressão. A consciência da não-identidade
entre o modo de exposição e a coisa impõe à exposição um grande esforço.
Portanto, a forma ensaio dada a esses textos de teoria da história visa combater
uma atitude de naturalização diante da escrita da história, como se sua forma
fosse única, eterna e universal. Não existe um historiador natural, como não
existe uma única e natural-forma de escrever a história. O ensaio, surge dessa
consciência da incomensurabilidade entre conceito e real, ele se aproxima da
arte nesse esforço em busca de uma forma que dê conta de exprimir as coisas,
mas não deixa de ser um esforço teórico, a medida que se dirige a conceituação
e a ·discussão de dados conceitos que nele aparecem, já que traz de fora não só
seus significados, mas seu referencial teórico.
O ensaísta sabe que o grande desafio, o desafio estético, ético e político, está
emencontrar uma expressão para aqueleobjeto, uma expressão da qual depende
a sua própria realidade e verdade. O ensaio seria essa' busca, esse tatear, esse
experimento deformas que consiga expressar averdade do que seria o objeto do
discurso. O ensaio nasce de uma luta por expressão, uma luta em busca daforma
mais adequada para a encenação de uma dada forma de vida, para a expressão de
uma dada verdade. Esse é o maior aprendizado que nós historiadores podemos
fazer com os ensaístas: a-verdade não existe anterior à forma, a verdade não está
no próprio objeto, no próprio passado, a verdade do passado se fabrica através

18. LUKÁCS, Georg von. Op. Cit., p. 233.


19. LUKÁCS, Georg von. Op. CHt., p. 234.
20. Idem, ibidem, p. 235.
1 :

,16 TECELAO DOS TEMPOS

daformaquedamos a ele, porisso mesmo,a arte não se separa aqui de uma


, . ambição:.e;;de,umapre,tensãol:ientífiças·mas,-ao :contrário;- é dela 'insepatável.-E
naartededarformaaopassado,deinventá-lonarrativamente, que suas verdades
podem aparecer,se fazervisíveis edizíveis.Sem a reflexão 'cFítica sobres aarte da
narrativanãoháciênciapossível na historiografia.
•· ,Ao..dar:a:os-,meus ,esctitos.'solt,re cteoria,.da ,história• a forma -do ensaio, não
· 1.es.tóu";àotindo .:mão\das dimertsões:.derttíficas dessas -reflexões e do..ofício de
0

· historiador,masestouressaltando, por um lado,que essas reflexões têm uma


formaadequada a própriaverdade que pretende enuncia_r e,·por:outro lado, que
os profissionaisde históriadevemrefletir sobre a •inseparabilidade entre forma
econteúdo,entreformae mensagem, entre forma ·e recepção, .entre forma-e
,comunicàçã.o.,Lukács sintetiza,-.comorecurso.a:umaimagem -,recurso só possível
a
. • • emumensaiofilosófico, que é formamesmadeseusescritos -, a relação entre
ciênciae arte,entreverdadeeforma: "Oensaioaspira à verdade;i-porém;assim
comoSaul,quesaiu abuscaras b.urr-as :de seu,pai· e encontrou:umreino, o ensaísta
• qúe,reahnerite.es:teja.:capacifado para,buscar a verdade alcançará, ao·Jinal de
seucaminho,o objetivonãobuscado, avida""?'Eque ambição maior pode ter a
escritadahistória senãoade ·expressar avida humana.em,suas•distintas formas
._.· ~aeexistênciano:tempo? .
:Aessêrtdamesma da formaensaio,que está contida na própria'etimologia
,da;pàlàvra}:ê;que:ela.é,umatehtàtiv.a..deaproximação:de uma.dada.realidade, de
umadada experiência, deuma da:daiverda:de:0:ensaio; como diz::Max_Bense em
seu textoSobreoensaio e sua prosa,éproduto de um,método experimental;:se
: Jrafa:'d.e.escrever experimentalmeri,te;sde fazer·experimentos-,com a.linguagem,.·
• buscando at::forma.maisadeqliada de se dizer o objeto de quese quer tratar. O
• ;;ensaio:seaproxhnariad·a·distinção entrdísicaexperimental.e física teórica:22 Ao
contráriodaqueles colegas que estãocarregados de certezas teóricas prévias, em
meus escritoseu trato de fazer.experimentos .comas-ideias acerca da historiografia
· que;,pors:.sua ;v_ez;nascem,da,minha expetiêrrda,de pesquisa em história: :Assim
como o pesquisarhistória, assim como aida ao arquivo, o escrever história
e o-.pensar,:s'obre,sua escrita-devem:estar abertos.. a inc.ertezas e 1'entativas de
• experimentar-'o aindanãorealizado,daí o caráter ensaistico de niihhas pesquisas
e daminhaescrita.Poiso ensaio sesabede saídaprovisório e parcial. O ensaio
assume aquiloqueé nuclear nareflexão que qualquer histo'riador-•·-deve fazer
· ,sôhre.os;escritos,ou os artefactos quevier ater:sob os olhos: o caráter temporal, -
• • históricoditüto:de:Wda e qualquercoisa,detodo equalquer .enunciado, de toda
: equalquerafirmação, detodae qualquer v:erdade, de toda e. qualquer certeza.·
• Por issoo ensaio se assume, desaída, comoinacabado, comouma forma que
-não pretendeser conclusiva earrotar certezasdefinitivas.

21. LUKÁCS,Georgvon. Op. Cit.,p. 236.


22. BENSE, Max.Op.Cit,p. 24.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 17

O ensaio se assume como uma forma, provisória, como um dado estado


da arte sobre um dado tema; em dadas circunstâncias. Isso diferencia o ensaio
. de um tratado, ambição de muitos historiadores; Diz Max Bense, que escreve
ensaisticamente;,quemcompõe experimentando, quemfazseu:tema rolar deum
lado para o outro, quemvolta a perguntar, quem volta a tocar, provare refletir,
• quem aborda um tema -de diversos ângulos,. quem torna distância dele e, em
um golpe de astúcia intelectual, reúne o que vê e prefabrica o que o tema deixa
ver sob certas condições geradas através daescritura." Ofato de que muitas e
. mesmas ideias, em meu livro anterior, reapareciam em muitos de seus textos,
não se deve a falta de revisão ou deadequação dos textos para publicação; esse
caráter aparentemente repetitivo faz parte da forma ensaio. Em cada texto eu
estava experimentando, literalmente ensaiando novas colocações para as mesmas
ideias. Algumas ideias, alguns temas pareciam e parecerão ser os mesmos nos
textos desse livro, mas eles se repetem emsituações textuais diversas. Corno diz
Gilles Deleuze, trata-se de uma repetição diferencial: as ideias colocadas em
novas situações tornam-se outras? O fato dos textos terem dimensões maiores
ou menores, tambémse deve ao fato de que o ensaio nuncatema pretensão de ser
exaustivo, de esgotarqualquer tema, de chegar a uma.conclusão definitiva sobre
qualquer assunto. Ele nunca chega ao fim, ele pode acabar a qualquer momento.
Para Bense, habita em cada ensaio uma força perspectiva, ele é a forma
adequada para quem 'esposa um perspectivismo filosófico, no sentido que; em
·suas formulações, o ensaísta não esconde que elas partem de um dado lugar de
fala, uma maneira de lidar com o pensamento e conceber o conhecimento.25
Por isso oensaio tende a irritar todos os detentores de verdades definitivas e
de fórmulas teóricas que funcionam como chaves que abrem todas as portas. O
ensaio é essencialmente crítico, por seu caráter experimental, por abrir mão de
regras e códigos consagrados em dado campo do conhecimentoe ousar abrir-se
. para o ainda nãotentado. Ele nasce de umaatmosfera crítica e problematizadora,
onde o consciente e conceituai se misturam ao instintivo e ao figurativo.? O
ensaio articula conceito e imagem, metáfora e argumento, O que é fundamental
no ensaio é avariação, por mínima que seja, variações que-podem ser sobre os
. mesmos temas; O ensaio não é científico, segundo o filósofo e.ensaísta húngaro,
ali onde se concebe a ciência como a suma, como o sistema de afirmações
axiomáticas dedutivas sobre um âmbito bem determinado, aí sendo possível
apenas o tratado, não o ensaio. Porém, na medida em que cada ciência afirma
um objeto e este se converte em tema de reflexão crítica, é possível que surja
o ensaio científico. 27 Aqui, trata-se de refletir sobre um aspecto que é inerente

23. BENSE, Max. Op. Cit., p. 24-25.


24. Ver: DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. São Paulo: Paz e Terra, 2018.
25. BENSE, Max. Op. Cit., p. 25.
26. BENSE, Max. Op. Cit., p. 26.
27. Idem, ibidem, p. 28.

'TEGEtÃ.0·-DOS,TEMPOS

. .-.,
ao próprio fazercientífico da história, não::apenas,sobre a· teotia,que• a orienta,
massobre aforma queresse saberpode vira assumir, da qUa:l:a.teoria é apenas
•-·umiêfos/eleinentosi ·Pretertdemos·realizar.-nesse livro .o que Max'Bense nomeia
de"ensaiosdefineza intelectual;ou seja, aqueles quese desenvolvema partir
depreocupaçõesaxiomáticasedefinitóriassobre :um terna .determinado; que
• ·· correspori:dé nuna ciência --: rto,caso, a,dência da:história,.tendo uma especial
a
inclinaçãopara lógica, paraa razão queanalisa, decompõe,desgrana a matéria
quesustém navariaçãoexperimental.Não praticamos, no entanto, análises
:que;\de1tão abstratas, pretendemestar a salvodo tempo e do contexto. em· que
•. 'foram'.tfeitas. ·
O ensaísta,portanto, levaemconta,desaída, o carátertemporalda escrita
edarecepção.Como diz Lukács,"cada época constituirá a '.era-:que·requer, e
sóosqueseguemdemaneiraimediata creemqueossonhos dos pais hão sido
mentirasquese devemcombatercomas novasverdadespróprias""?, com as
. . ·verdádes.,doprésentei"Oada-ensaio,.escrevecom letras visíveisjunto a seu título
• .·, as-.palavras:.poriocasião, de.2,3oPortanto,não há naforma ensaio nenhuma
, ',,pretens:ão.,a uni,vers:alidâde erin.temporalid.ade-<laqúiloque,. áfirma. O ensaio
desafiao dogma e aortodoxiapormostrarque as cerite:tas são históricas e
situadas num dado tempo. Dirigindo-se diretamente ao.historiadores, o filósofo
húngaro noslembradeque "os fatos estão aLe·sempre .está .contido tudo neles;
porém, cadaépocanecessita de outrosgregos, de -outra-·IdadeMédia, de:outro
iRenasdmeittd?1 '.0mseja/osfatos são ·o:qtie são,, mas a,elaboração narrativa, a
formaquecadaum vaiganhar, dependedotempo em que aquele-que espreve
··.se:situa.e:das,necessidades,-<las'.qúestões,,das,perguntas.qmetesse tempo lança a
esseseventos passados.Oensaio par.te.:cla:pressupdsição danão.,identidade entre
_;pensamentoecoisa,entre conceito,imagem,narrativae empiria. O .conteúdo
doensaio nãoéacoisaemsi,assimcomonahistoriografia não é a,reâ.lidade
. • ,:ddpa:ssâdoem,sLmesma,::masrns·<imagens e·enunciados ·elaborados como uso
dalinguageme,nela,dosconceitos.
Aforma queesseseventosadquirirão nopresente,portanto, .não é uma
· •.;,quéstão'securl'dá,ria'ouwenorj·deladepende ~o.moitão,aparecer, quesignificados
. •.· adquirirão,que efeitos de ordemepistemológica, pülítica 'e, ética exercerão.
. • , •• Con.óluLbukács:que,o;ensaio é·um,juízo,.,mas que o essenciaLnelenão éa,sentença
senãoo processodojuízo. Numa obraondepretendo que os -historiadores
• reflitam sobreoprocesso de produção dosjuízos que.emitem, das verdades que
. enunciam, das narrativas queconstroem sobre o passado, nada.mais-adequado
• ·:dcrque,á':form,.atensaio;·p.õísj.ustamente ela:,convoca essa·Teflexão sobre o ,modo

28. Idem,ibidem, p. 28.


29. LUKÁCS,Georg von.Op. Cit., p.237.
30. LUKÁCS, Georg von. Op. Cit, p. 239.
-31. : Irle.m/ib'ide.m; p. .237.
32. Idem,ibidem, p.242.
DURVALMUNIZ DEALBUQUERQUE JÚNIOR 19

de fazer de quem escreve. O ensaio convoca a reflexão sobre o caráter formatador


e formalizador da realidade, do passado, que toda e qualquer escrita implica,
inclusive daquela compretensões científicas, daquela quese pretende conceituai,
interpretativa e analítica. O ensaio nos ensina que. o gesto de conceituar o
passado, não se separa do gesto deatribuir-lhe uma dada configuração, não há
soberania do conceito em relação à forma; portanto, não há nenhum conflito,
mas interdependência, entre as dimensões científicas e artísticas do trabalho do
historiador, que a forma ensaio tão bem materializa. Como sugere Lukács, como
no ensaio, os historiadores fazem, em seus escritos, poemas intelectuais, mesmo
que sejamantipoéticos, pois a forma configura·o objeto.33
Para Bense, a configuração, ou- a figura de, uma dada situação, não é
alcançável desde uma ·perspettiva axiomático-dedutiva, .senão só através de
uma arte combinatória literária na qual, no lugar do conhecimento puro,se
. coloca a-imaginação.34 O· escrever a· história e o pensar a· história é inseparável
do conceito, mas também é inseparávelda imagem. É mediante.a imaginação
que se configuram os objetos, as cenas, os eventos históricos: É impossível um
historiador sem imaginação, sem a capacidade poética da produção de imagens,
mentais e escritas. As imagens não: surgem, no entanto, de uma ·necessidade
dedutiva, de umaobrigação indutiva, mas deumtrabalho experimental; de uma
·experiência e de uma experimentação do mundo, das coisas, dos eventos, do
arquivo que é, ao mesmo tempo, conceituai, ética e estética, afetiva e racional.
O ensaio nasce das afecções do. mundo e essas se dão emum • dado ·lugar.
·A experiência requer um posicionamento, um lugar, como dirá Michel de
. Certeau;35 uma tomada deposição. É-ao tomar posição que o ensaio atravessa a
mera superfície estética e se converte em acontecimento ético e existencial, em
acontecimento político." Interessado não no que existe, mas no que, vai existir,
no possível que poderá vir a ser, o ensaísta desloca, de certa maneira; os termos
do debate. Quando se espera o lugar comum, ele oferece o embate, adialética de
um experimento, de algo ainda emluta para ganharforma, ele faz otemaaparecer
ainda não fechado, ainda não acabado, mas em seu estado· de experimentação,
de abertura. Diz Bense:

• O quetem que ser dito não o deve ser como uma máxima firme, como uma
lei,senão será melhor considerado ante a mirada inteligente do leitor numa
espécie de variação incansável do produto terminado, e isso sucederá de tal
modo que, por umlado,responda a demonstração experimental de·umafeto

33. LUKÁCS, Georg von. Op. Cit., p. 242.


34. BENSE, Max. Op. Cit., p. 29.
35. Ver: CERTEAU, Michel de. "A operação historiográfica". In: A escrita da história. Rio de
Janeiro: ForenseUniversitária, 2000, p. 65-122.
36. BENSE, Max. Op. Cit., p. 30.
20 .··,TE'.CELÀO· DOS TEMPOS

1 ·•· correspondente aleicientíficanatural e, por outro,a produção deumabem


.>
'tdétérniinàda,cobqguraçãcr daleiâoscópica;37

., Comoadoramditarleis aquelesque escrevem ·.:sobreteoriada>história. No


ensaio,emlugarde leis,a oferta poética de umpensamento que,maisdoque
• • conceituar,configura, ,Urtr ,pertsamentô an~lítico;iteórico,· mas :também poético.
Masmeuscolegas dirão:nósnão .fazemQS'poerna,s,:,nós escrevemos em prosa.
Max Bense chamaatenção para o contínuo entrepoesia eprosa, entre orJ.ação
• •· e•iêrtdêncta/ entrê o: esta:dorestético e• ó·étko:38-A;poética ·se expressa.tanto na
poesia quanto naprosa, àmedidaque elaé a condição..mesma:da,linguagem e,
porextensão,da consciência humana-, ou seja;. a:,não~identidade entre forma e
objeto,adistinçãoentre a coisaeos sentidos que adquirem emumadada cultura,
·dúuri dàdo:-tempo específico: Para 1heodot,A.'dorno,:em:seti,textb O•ensàio como
•':]armà;,o ensâiçrpãrte~.doptessupostope;que;,os.;{enômenos dtlturais :constituem
· . . uma segundanaturezaparanóshumanos.Aimediaticidade com-que encaramos
o mundo anossavoltaé umefeito desentido,queprecisaserquestionado??No
· .e;nsaio",a;tendêticia•é.'.que.stionar;.a··opinião, é· pôF em quéstão toda e qualquer
ortodoxia,inclusiveacadêmica. Nisso,oensaio éumaformamais dialética de
escritadoquemuitas que assimsenomeiam,pois ela,unplica a:ptópria.atitude
. . ,tmetà:ctítiça;,ou:sêja,,:a/reflexãosobre sua.própria fmma. O ensaio,p.araAdorno, é
' ~,â'forinácdtícaporexcêlêrida,eqquanto ctíticaimanentedas próprias formações
··•culturafa,eteóricas,··confrontando/e·:explicitatidoos c0nceitos e-procedimentos
..... ··:,qúe.assu.ste:ntam.,,O'ensàio'-pretende{àba:latrjustamenterqualquer pretensão de
. verdadeabsoluta, levando a méditar;,sobre :as•'inverdadestque ·:nelas se alojam
• 'e;as,sustentam.•.;J;)iz-Adorno.:-tSoh:.o;olhar . do:ensaio,,;asegmida,.naturezatoma
.:consciênda desimesmacomoprimeira natureza"" Ouseja, oensaio éa forma
...adequadapara afirmarquetodoequalquerevento humano é .da•.ordem .da
invenção, dacriação, dafabricação. Por quecom ahistoriegrafia··seria,diferente?
, Pará•··ódilósófq•ie.ênsaísta.füe:mão,:cum·espírito:.yerdadeiramente,emandpado é
.. '!fustável,;,pôrtanJo;>é•;aquele?quemão ;se>cententa com certezas a priori,.,que .se
aventurana investigação ena criação, quenão se prendea fórmulas e métodos
pretensamente universais." O ensaio éaforma adequada a umespíritoinquieto,
ao
quenãosefurta perigodaincerteza, que nãosefurtade experimentaro novo,
que é ~pazideabtir:níãcide:certezas:e,yerdades,·.que,ab0mina,dogma:s·e-formas
• ditas corretasdepensar e escrever. •

• .37. ;;,BENS.E,MrubQp:Cit./p,31. •.
38. Idem,ibidem,p. 24.
·39.. ,1?\':QORNQ;'.:rheõdor;;,Qp;•cit;,p.. 39.·
40. Idem,ibidem, p.40.
41. •.AD@RNO/Iheó'dor.Op,,Cit.,p-;:41, •

1
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE. JÚNIOR 21

Adorno vai destacar a proximidade histórica entre o ensaio e a retórica,


que a mentalidade científica, desde Descartes e Bacon, quer extirpar do discurso
científico."O discurso científico moderno, inaugurado por aqueles pensadores -
ambiçãomaior da historiografia,desde o século XIX-, proscreveu a retórica; por
considerá-la ornamental e fonte de trapaça e engano. Oomisso; a·historíografia,
por muito tempo,ignorouqualquerreflexão.sobre a forma; sobre a escrita, sobre
os modos de argumentação, sobre o caráter tropológicodalinguagem em que
são vazados seus textos. Numaforma de saberem que a arte de narrar ocupa
um lugar central e decisivo,essa proscrição da reflexão sobreo lugar da retórica
e, portanto, da forma narrativa em nosso ofício, resultou e ainda resulta em
muitos equívocos. O ensaio seria essa forma de escrita que' assume a dimensão
retórica do texto, e que sabe que aforma como elese configura resulta no tipo de
mensagem que consegue comunicar. Escrevo sobre teoria dá história na forma
de ensaios porque não tenho a pretensão, nesse campo, de enunciarcertezas
definitivas, nem ideias fechadas, nem métodos e conceitos com -pretensões
universais. Não é umaexcrescência escrever sobre teoria naforma de ensaio. O
ensaio necessariamentese aproxima da teoria namedida em que, justamente,
parte do pressuposto que a realidade humana é uma, construção conceitua!. Só
que a relação que o ensaio mantém com a teoria, segundo Adorno; não é uma
relação de ponto de vista. O ensaio, segundo ele, devora as teorias que lhe são
-próximas, adotando em relação a elas, no entanto, a mesma relação:irônica de
desconfiança e de derisão que mantém em relação a qualquer discurso.4~ O ensaio
parte dae afirma a tensão entre a exposição e o exposto; mesmo quando.torna a
teoria como seu objeto de-reflexão; pois ele estásempre se voltando criticamente
sobre simesmo. O objeto do ensaio, mesmosendo, como no.caso desse livro, de
caráter teórico, é a busca do novo em sua novidade, o que significa não poder
ser traduzido por antigas formas. O ensaio se baseia nacuriosidade e nele reside
o seu princípio do prazer."
O que me motivou, o que mefez avançar em cada texto que .escrevi para
esse livro, foi o prazer da busca, da procura,, da incerteza - daí, muitas vezes,
o impressionismo dasideias e das conclusões a que se chega. Felicidade e jogo
são essenciais ao ·ensaio, ele nasce do prazer do pensamento, onde ele se exerce
sem prescrições, sem partir de um princípio primeiro; nem convergir para
um fimúltimo" (lamento que alguns colegas façam da tristeza, da inveja e da
agressividade ressentida e rancorosa, quando nãoda violência,o ponto de partida
do que escrevem e das atitudes que tomam no campo acadêmico: o que colhem
é a infelicidade). Tanto na forma quanto no conteúdo· não há uma finalidade,

42. Idem,ibidem, p. 42.


43. Idem,.ibidem; p. 36-37.
44. ADORNO, Theodor. Op. Cit., p. 42.
45. Idem, ibidem, p. 17.
'''TEeEtAo·oos :rEMPOS

. ·, .
umateleologia noensaio.Mas porteros conceitos comoseu meio específico,
osensaios quecompõem esselivronãosereduzem a sua :dimensãofotmal,·eles
•·... ·l:l'.p'enasffão-séadéquànütt,UI1:-prelenso.:putismo:científico:<4ue;corisidera,qualquer
:,prt9'.cí,lpaçãó1..éxpressiv:apresentena~expos<ição··uma· ameaçaa-ohjetividade. O
., . queno fundoaindase defende,muitas vezes,emnossocampo, éumapretensa
eliminaçãodapresençadosujeito naquiloqueescreve,umaideiade objetividade
quepressupõeapossibilidade da adequaçãoperfeitada formaàempiricidade, que
ela tenta expressar.Naalergia contraas formas,diziaAdorno,consideradascomo
atributosmeramenteacidentais,oespíritocientíficoacadémicoseaproximado
. j\dbtÜsoispítitc(êl.Qgniáticói41:0s ldeâi:sde:pureza e:asseio; ,Ce>lllpartilhados tanto
pelose de
mpreendimentos umafilosofia veraz -,a:ssinr como; diria.eu, ;de--uma •
• historiografiaveraz ,.,/âfet-idasJân:tq:por.:v.alo.r.eséternos:quantó' por •mna:ciência
•· . sólida,inteiramente organizadae semlacunas,etambémpor inna-ar.teintuitiva,
desprovidadeconceitos,trazemasmarcasdeumaordem repressiva." Alguns
--'s.dos;colegàs que;emitiran'llopi;niões,sobre·o•merilivro precedente màl escon:deram
seudesejoderepressão,deproibiçãodotexto e do queneleeradito.
o
Alguns criticaram próprio .car'áter cfpagme.r.1:tár.i-0 •do-liw:o;- nifato .de ·ser
• composto pordiversostextosescritos emmomentos e em. comtextostdistintos.
···.,.,;EssHiv'ro.terá•O'mesmáfot:~âtot:Masé cai;actensticá·do.,ensaio•·serfragmentário,
. . ;;nqque:afitma·a-:víilldàdeAo,.estudo,dasip,gulai;idade em :detrimento daJotalidade.
Aliás,oensaioapostaquenofragmentose pode .ter1.'dis.tintas. visões· do todo.
SegundoAdorno, o ensaio não segueasregras do jogo da ciência e dateoria
· torganizâdas;:;s:~gurido,as..quais a ordemtlas,:coisas seria:@• mesmo:que··ar.ordem
• _. dasideias."Oensaio,ao invés de:s.er:rédu:tivo, é,prdlifecante,.,ofereceHd@;distiJntas
-.'. versõesde.ummésmo:pr9hlemaàmedida.queoobser.v:a·de.distintoslµgares. Ele
leva emcontaoprincípiodanão-identidadeentre o quetse diz :e,aquiloa- que o
.·-,discm:so:se-refere)P.arâ,rt\dornp,. ,o:,ensài<i,é;:~usta:mente;.aJornia,-adequada.para
• ··.,co:nfi.gurar,~qúil,o;que,é,füstórico,·.êfêmeroepassageiJ:1p,,4uase.sempre·tgnorâdos
pela filosofia. Aovalorizar oindividual eodiverso contidono concéito, o ensaio
• secolocacriticamentecontraoconceitoinvariávelno tempo, ele·quer;expressar
otransitório.Oensaio incorpora oimpulso arttissistemáti:co,,em . seu.. próprio
,:módÓ1de·q,rôced.e:r.:e:,afirma,o)qaráte-r,históricoile.:qüalquer11.~flexãcir p:ottanto,
,,:àfirmaridó::9\pensaniento;como-:es.tando:sempre.:em,aberto,•,inconcl!isivo.49
f·;NO$/en.saios,,qtie'.'.C0Iilpõem esse füv.ro;; levo em conta que ,os -conceitos
.. nãoguardam sentidosúnicos esãopassíveisde diversasleituras. Comonos
"o
. diz Adorno: ensaiopercebeque aexigênciade defünições, esttitas, ser,ve-há
• • mt1ito-;te.:rpp6ip~fª:êliriúnar;:rnMianteiillanipülações:;que::fixam,os~·sigrtificados

46. Idem, ibidem,p. 19.. ••


!47. "'.J.de_'l;ri.;;.·i/i.idéi;n, p;22. • ·•
48. ADORNO,Iheodor.Op. Cit., p. 25.
49. Idem,ibidem,p. 25-26.
DURVALMUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 23

• conceituais, aquele aspecto irritante e 'perigoso das coisas, ·que vivem nos
conceitos""" Irritação e diagnóstico de perigoso não faltaramdiantede meus
ensaios de-teoria da história.
Esse livro está intitulado de O tecelão dos tempos, não apenaspelastemáticas
queaborda em suas três partes: a escrita da história, os usos do passado e o ensino
da história, para as quais· essa imagem-tem pertinência, mas porque a forma
ensaio, em que·estãovazados os textos que o compõem,.também guarda relação
com a prática da tecelagem. No ensaio,como nos fala Adorno, o pensamento não
avança num contínuo, num sentido único; emvez disso, os vários momentos que
compõem o ensaio se entrelaçam como num tapete. 51 No ensaio, a densidade do
pensamento depende da tessitura narrativa, da forma que ele assume. A força
de uma obra historiográfica depende de como é tramada narrativamente. No
ensaio, elementos discretos, separados entre si, são reunidos em umtodo-legível,
em que cadalinha temporal, cada evento, como um nó numa trama, se arranjam
emumdado enredo, sem que se partade nenhum andaime ou estrutura prévia."
Quem acredita que ahistória possui apenas uma lógica, uma racionalidade, uma
estrutura própria, que se encontra fora daquela que é forjada pelo historiador,
verá com desconfiança a afirmação de que a configuração da história é narrativa,
que seus elementos se configuram no movimento de sua exposição. Essa
configuração se dá em um .campo de forças no qual um· dos elementos serão as
formas anteriores dos eventos. O ensaio acaba com a: ilusão cartesiana de que
conhecer é simplificar o mundo, reduzindo-o a modelos abstratos e· a conceitos
generalizadores. No ensaio, já dizia Adorno, o que se enuncia é a necessidade de
se abandonar todas as pretensões à completude e à continuidade. O ensaio, ao
invés de aplainar a realidade, expõe a suas fraturas. A descontinuidade é essencial
ao ensaio, na medida em que assume o conflito, inclusive o confronto deideias,
como a própria condição de existência do mundo humano."
Portanto, os ensaios que se seguem procuram seguir as linhas de fratura e
de disputas em torno de temas que são de relevância no campo das discussões
em torno da teoria da história. Num primeiro momento, tratam-se de distintos
ângulos a questão da escrita da história, a questão da temporalidade, a relação
com o arquivo, apresença .do sujeito, do corpoe da vida, do biográfico, a crítica
historiográfica. Num segundo momento, aspectos diversos ligados aos usos
do passado são apresentados: a questão do património, o museu, a memória,
as comemorações, a experiência corpórea no arquivo. No terceiro momento,
'reflexões em torno do ensino da história: para que serve, a quem se dirige,
como deve ser praticado, segundo que pressupostos. Neles, ensaio reflexões que

50. Idem, ibidem, p. 29.


51. Idem, ibidem, p. 30.
52. ADORNO, Theodor. Op. Cit., p. 32.
53. Idem, ibidem, p. 32-34.
1-

24 • TECELÃO DOS TEMPOS

·• devemestimular oleitor a fazeras suas prôprJas;,nessa·condição de,abertura e


inconclusãoque é o espíritomesmo do ensaio.Ensaiar,tentar, sem temer o·erro,
.._ a•discordâr).'Cia,,o-~quívoco, o<raJ1ger·de,dentes dos ortodoxos e dogmáticos. O
o
ensaio é lugarda heresia.Quesefaçame sedigammuitas heresias com e a
partirdessestextos.Que dainfraçãonasça ainflação de ideias epráticas.
PARTE I

A ESCRITA DA HISTÓRIA
t
1
1
Capítulo1

O tecelão dos tempos: o historiador como


artesão das temporalidades

"Um galo sozinho não tece uma manhã:


ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe estegrito que ele
e o lance a outro; de um outro- galo
queapanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e. de outros galos
que com muitos outrosgalos.secruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos".
(Tecendo a manhã, João Cabral .de -Melo Neto)54

Michel de Certeau" pergunta: o que fabrica ó historiador quando faz


história? Querendo com isso ressaltar que o que fazo historiador é um trabalho;
um trabalho de fabricação de uma narrativa; de um artefato escriturístico; um
trabalho de fabricação dos acontecimentos do passado. Querendo corri isso dizer
que a historiografia é produto de uma operação, deuma atividade de atribuição
de sentido aos eventos. Ahistoriografia seria uma maquinaria. narrativa que
usinaria o passado, buscando dar forma à mecânica ,que azeitaria os processos
que se desenrolaram em dado tempo e espaço. Karl Marx56, muito antes de
Certeau,já havia falado do motor da história,damecânica social, à qual caberia
ao historiador, usando como instrumento o materialismo histórico,. desvendar,

54. MELO NETO, João Cabral de. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
55. CERTEAU, Michel de. "A operação historiográfica". In: A Escrita da História. 2 ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 65.
56. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 1998.
·TECELÃO DOS- TEMPOS

enunciar,fazeraparecer emsuas ep;grena,ge.F1s1p.àis,sutis. Embora tenham:escrito


.. seus textos em séculosdistintos, Marxe Certeau parecem 'pàrtilhar :algumas
metáforas,alguns topoilinguísticos, algumas imagens-símboloda sociedade
moderna,dasociedadeindustrial,quando setrata -de pensar.a1ativ.ídade do
e
historiador astarefasque esteteria acumprir socialmente. Nos doisautores,
a historiografia,otextode história, aparececomo produto deuma atividade de
• .....mariúfatµraLéQmo'i-uinaati:vidadeque.re-mete.·ao:maquír1ko; m:esmo que,seja.em
• -;fürb~ri~õ~idiàtirttas:,-se~ páta ·Marx,cias0ma.quirt:,tções -estavam. na!Ordem social,
. . ,. Jaziaqtp.tri~tlctrealiiiade;,do,refererite,;dopassad.o; do,qual tratava o historiador
-historiador quetraziaparao •interiór:de. sua narrativa os modos· como: essa
• . históriaseproduzia e os modosde produção·que davam,movimento e .eram o
fundamentomesmododevirhistórico -, paraCerteau,asmaquinações sedavam
hora
_· na dafabricaçãodanarrativahistória. ,Esta,não descobria·:na•ordemsocial,
na
:, -nopassado, realidade,uma maquinariajá pronta, tngrenagens perfeitamente
identificáveis,masasproduziacomamatéria prima dalinguagem montando,
.:peç~;párJ:?e;:ça; versõestlo,passadoJ_que:apar~céi:ia ,como um artefato· fruto •da
·•'in<iúsfrià:â6:hístdi:iador, de sútfdestreza:, cle'sua perícia narràtiva e.profissional.
Tendoapartilhare, ao mesmotempo,discordardesta aproximação entre
aatividadedo historiador e aquela realizadapelo trahalhador:·fabril, ,pelo
Úáõalhãdot.sµfgrdo: ,i::bll'.1 ,~/gtaride··industria;,,peiot-rabalhador surgido· com a
sociedade burguesae capitalista; aproximação que tem ·conotações;pôlíticas
clarase que visaquestionara separação feita pelo mundo.. modernocentre o
• ·:;;,tiãli;;JlhÔ;mahuàl: e õ ti:~bálhômtdectual:;historiâdores eoperários,seriamos todos
• _. :,trà:Balhàd~rêsfAp:eria~.Habaiharíarnos·sóbre:nnuêFiasdistintas e.produziríamos
.• .. produtos distintos evaloradossocialmente demaneira :diferente.· Concordo .
-,.cont a'-fdeia',çle-qué•:if.histõrtogtafia:é,prpd.4to·<de·um trabalho, deum trflhalho
deatribuiçãode sentidoaos eventos,aosacontecimentosdopassado. Concordo
que·dhi}tcfriâ:dorexerce:~·,tràbàlho1!7'.produção·do·passado,·que·esteofabrica
• .como um:attêfato;·Conéordo:'que:ele .exerce -uma tarefa.de.produção deversões ·
. para aquiloquesepassou, que produzsentido para os tempos; que -dá a eles
e
existência consistência. Mas cõíisidet-0:que otr.abàlho .que realizamos não
temocarátermaquínico, ot:aráfe.i;fabiil;'.é:fcarâterplenamente-moderno que as
imagens emetáforas usadastantoporCerteauquantoporMarxparecemindicar.
. •O trabalhodohistoriadormepareceter maisanalogias como trabalho:attesanal
. ./doque com o trabalho na grande indústria. a historiador me.,parece':hàbitar
maisumateliêdo queumespaçofabril.Pensoquea atividadehistoriadoratem
a
maiorproximidade com pacienteemeticulosa atividademanual exercida por
. • tecelões;.;bo_râcidei:ras~ ·,re·ndeiras;::tdcoteiias; :chuliadeiras. ;'Atividades que·têm
• · maior proximidade com o -1.+niverso ;défiriido comocfeminino do ,'que .com as
·:_,,atividádes;fabti$:idênfi.ficàdas-:éom.o pertenc.éntes.:ao·universo;111ascillino.
Nascido. em sociedades ondeotrabalho da ,.ma·q-_uincifatur,a ;estava
i••./ t"

'.
o
ausente, . . . saberhistórico
.: ~. . . ,....parecepartilhar
. . '
douniversoculturalem
. que as
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 29

atividadesartesanais eram aquelas que centralizavam as atividades de·trabalho


e que garantiam areprodução material da sociedade. Nascidapara garantir a
reprodução da memória edo poder dos setores.sociais·dominantesnas,soc;iedades
da antiguidade clássica europeia, a historiografia parece tersido pensada e
praticadacomo umaforma detrabàlhoartesanâ.lquetornava <;orno matéria prima
os-restos, osJr.agmentos de narrati:vas ·sobre-:o ·passado e sobre o presente, que
podiamser recolhidos e submetidos aumtrab.álhodeenredaménto, ,que podiam
sertramados ·deforma a darumpassadopara estes povos e, ao mesmotempo,
permitia que estes restos ganhassem sobrevida epudessem chegar às futuras
gerações, onde exerceriam um papel pedagógico, transmitindo as experiências
das gerações passadas, garantindo o apeí:feiçoamento progressivo destas
•. sociedades. Se, na narrativa homérica, Penélope tecia um infindável enxoval
enquanto aguardava avolta deseu Ulisses amado, e ludibriavaos candidatos
asua mão real desmanchando toda a·noite o que havia tecido, garantindo assim
uma .-espécie de paralisia do tempo,• fazendo comque otempoadotasse uma
.forma .circúlartal como aformadaroca que manipúlava,durantetodo o dia, na
narrativade Heródoto, ele é o tecelão quearticulaaquilo que viu e aquilo que
ouviusobre o passado esobre opresente,sobre os gregos e.sobre os bárbarosnmm
tecido que seprojetaparaofuturo,para ·que as futurasgerações não esquecessem
as maravilhas praticadas por seus antecessores. Ele não narra uma viagem de
um personagem.lendário. Ele é o viajante, que em seu perambular portodas
• as cidades da península e,por.tidades e povos:desconhecidos vaitecendo, vai
urdindo, . vai, fazendo: comqueestes pontos ·.desconhecidos, se articulem,numa
geografia inteiriça.Heródoto,o histor, é, aquele que conecta -povos ·e 'lugares
• que se desconheciam, éaquele·que conecta lenda, mito e-testemunho,-éaquele
que articula ostempos, o passado-com.o presente e·,este com o futuro. No seu
·deambular de.viajante e em suanarrativa, vaitecendo umaidentidade urtificàda
para os gregos,'dopresente e do passado, e os vai distinguindo ·e apartando·de
- - outra figura quetececomo sendo unificada e,homogênea: o,bárbaro.
Heródoto, herdeirodos aedos, tece uma narrativaque seja encantadora
para osouvidos,que,assimcomo o. canto das sereias homéricas, possa arrastar
os ouvintes para a .praça pública, para a ágora, possa produzir o estado de
. encantamento e, aomesmotempo,asensação de comunhão emum todo. Como
uma artesã-do ·patcihwork;: Heródoto· de Halicarnassos· costura fragmentos,
pedaços delendas, de mitos; com pedaços de narrativas factuais;detestemunhos,
de memórias, dando a.este táos·sarapintado,uma.:coerência, urna otdem,-uma
aparente coesão. O seu instrumentodetrabalhonão é o fuso ou a roca, nem
mesmo o cesto ou a ânfora,mas as palavras, a .escrita em prosa: O prosear, o

57. 'Ver: HARTOG,·François;Memériade'Ulisses.. Belo Horizonte. Ed. daUFMG, 2004.


. '58. • Ner: HARTOG, François.O Espelho de Heródoto. Belo Horizonte: Ed. daUFMG, 1999.
• 59. Ver: HARTOG; François. OsAntigos, o Passado e o Presente. Brasília. EDUNB, 2003.
'iTE€ELi\O 'DOS,TEMPOS-

.:,

contar,onarraréaarte que permite a tecelagem do passado,ela é a arte que


º"'.,._,.,. '.;'

. permiteinventaropassado",quepermite darforma a·gs tempos,.que possibilita


o registrodoque sepassou procurando entender-secomo sepassou.Trabalho de
ordenamentoederacionalizaçãodovivido,ahistórianasce como estetrabalho
artesanal,paciente, meticuloso,diuturno,solitário,infindávelquesefazsobreos
restos, sobreosrastros,sobreosmonumentosque nos legaramoshomens que nos
• _•/íilit~çede,h;un/qu~/como,esfi)Jge$;·-pedem-,deciframento;-solicitam compreensão .e
sentido.O historiador,como a horda~leira,-ao~final.desuas-âfrvída:des-.de:pesquisa,
• .·\terfità.i,-suâ'.fre_rite:,:uma1 cesta- cheia de documentos, derelatos, de - imagens, - de_
:escritosítde-11arrãtivas;:de:vari.adas·'corese"tonalidades,,misturados--•de..forma
·Jtâóiic~/:É-:.el.e;;.tomofaz.ruprcitissio.náldúhorâàdo;;quesubmete esse.caos a,uma
ordem,aumdesenho,aum plano, aumprojeto,a ummolde,..a:lun modelo,,que
_ deveserpreviamente pensado. 'Assim:seomonábordado existirá-aquelas laçadas,
aqueles pontos,aquelasamarrações,queserãofundamentaispara que-odesenho
•• _sê::süsteriteJ:, sé{a,ça;r;r1a narrativa Jiistoriográ:fi<::a· existi.rá,·.-o'que :não- por·mera
- réoirtddência'seJfü·amará'de-Jio·c_ondutor,idefi.o,da·meada;opreblema,a-questão,
_ o objetivo,quedeveserperseguido"e·deve•estariptese.flte,durarttetoda.a narrativa.
Sem oproblema,sematese,se m um,argumento.centraLa• expor e defender, a
?;Ó:al_Tâtiva:histôriqgráficai'.n'ão::perde'rá ,seuxatáter'fragmentário, não passará de
_,)uma,'ciôhjça;.<de·,u.m/,arrofar ·ae.eventos..:e .de.,suas',datações,'um amontoado de
··.::fatos:coloridós,:-dispersos ellispostos ale_atoriamente61•
Mesmoquenomundo contemporâneo, -mesmo ,,que,'-:desde ·o século
:XV;IIJt,paralelamente,a;, ü:uplantação ·.·da-s.ocie.dade,,imiustr-ial, da ·produção
• . maquin'ofatora;'. àfliistót-ia-tteriha.,passadoAl .reivindicar:ª' condição de ciência,
pensando-secomoum sabermetódico,presididoporregrasditadas .a- .partir
- deummodeloque,,enµnras ciências ditas naturais, buscando etornar~.semma
máquinade produziredizera wetdadésobre o passado,-,pretendendcfremontá-lo
. <tal·êom:0'Óço1:reu/à'.historiQgJ;afianã:o,·cons~gniu:-superar,1,uasorigensartesanais,
anarrativahistoriográficanãoconseguiuexp.urgar.,;suas\dimensões ,artísticas,
literárias epoéticas,oartesanatodaenalinguagem°?.O historiadornão ê um
• - •,"tràbalhàdór:defürthâ'dé-.nioti:tagem:,.,mesmo,qué múitas,V"ezes-nossos sindicatos
assimraciocinem;nãopredominanotrabalho historiogtifi:co;'pelo\rnenos
atéestadata,os modelosfordistaoutoyotistadeorganização do trabalho. O
trabalhodohistoriadoraindase faz, em grande medida,deformaindividual e
isolada, dentro deseuateliê, de sua casa, desua biblioteca, de sua sala ou quarto
.,,de-estudos}.Q",histó.tiàdor,temuina;jomada·deJrabalho,que,em-,grande;medida,
ele aindacontrola,notadamentesetrabalha par(ro;,setor,público: O.füstoria:dór
/60. e;N;r!Al,BUQU:ERQUE fÚNIO~;j)urv.al MuniZ de. .Histór.ia:.,a.,arttn;le inventar a passado.
Bauru: EDUSC, zoor _
61. '.ffJ.:;oç,H;·Ma,rc,.~palogia·dit/Histótiwouo:Ç)jf:cici,-de;liistoríadorAUo de Janeiro: Jorge Zahar,
·- :¾2002.-. · _ - ' • • • •
• ,62. :_,í,Vet;;f!rARTOG;Ffllnçbish0;$écuU(XIX-éaHistórim'iRió?de:Janeiro:\lJPRJ,,2004.
'DURVAL'NIUNIZDE ALBUQUERQUE fÚNlOR 31

obedecea umtempo detrabalhoque podeser bastanteextenso, não tendo uma


jornada fixa a cumprir, seu trabalho pode estender-se por.dias e·noites inteiras,
e sua jornada detrabalho está sujeita a muitas porosidades temporais, tanto
po'detrabàlhar,porhoras,seguidas, cómoentremear seutrabàlho.co.mtemposde
descanso oucom-outrasformas de atividade. O tempo,intensiv.oesem porosidade
que persegue a, .organizaçãofabtil encontraaqui resistênciasem se instalar, por
mais ·que sejamos convo;cados pelas: agênciasfinanciadoras e pelas ·instituições
onde trabalhamos a produzirmos cada,vezmais' e em menos tempo.
Embora necessite, cada ·vez .,mais,' de umgrande númerode outros
profissionais, e-não consiga fazer seu trabalho sem que outros historiadores
já tenham escrito sobre seutema - afinal,tal como os .galos•namadruga:da,
umhistoriadorsozinho não: tece um amanhã -, após a leitura;.de uma grande
:quantidade de outros textos, de fazer com eles·umtrabalho:artesanal de pesca,
de caça ou mesmo de·furto;:-um.;trabalho de meticuloso esquartejamento.,dos
textos em notas e fichamentos, éo historiador em sua solidão que vai costurar
,todos aqueles fragmentos, fazê-los aparecer como se fizessem parte 'de um
mesmo tecido; Mesmo. que pequenos .pontos.:remetam para. a barra da página
,·onde estarão suspensas, penduradas;, quase caindo; as referências, as notas de
rodapé, que procurarão enunciar algunsdosfos que ali foram urdidos,elas
terão.a função de chamar atenção e legitimar a perícia-de,,quemteteu-a trama,
pois quanto mais esta nãodeixaraparecerem sua frente-os nós, as amarrações,
aslaçadas, aslirthas.arrepiadas e cortadas a dente que compõem o desenho do
passado que aparece a nossa frente em sua inteireza e·emsua perfeità.articulação,
mais .hábil em. seu ofício será considerado.o.historiador. que a .tramou63.
·Embora; como\dirá Blanchot64,escreva:mos em urna solidão.povoada por
presenças do presente e do passado, emboramuitos espectrosvenhamsentar-se
• conosco ,em.nossa -mesa de trabalho; a forja ·do texto do historiador, tal como
a feri:amenta.feitapelo ferreiro;é.produto de seu'trabalho individual, de:sua
·.habilidade no uso dos instrumentos -necessários à elaboração,, da: escritura da
história. É ele quem 'usa,sozinho •os seus martelos,suas bigornase seus foles,
é ele quem reaqueceosfragmentosdo passado,quem lhes infunde calor, vida,
para queganhem liga, se soldem,.venhama,seamalgamaremem umtodo; em
uma unidade desentido. Semo sopro de vida das narrativashistoriográficas,as
brasas que restaram doJqgo das batalhas do passado; dasfogueiras das vaidades
·ou das revoluções,•equejazem ainda crepitando mortiças sohas cinzas.. dotempo,
,fagulhas de esperanças, de proJetos, de <lesej os,de sonhos,restos das êhamas das
'paixões e das rebeliões humanas~ nãovoltariam a bdlliar,a crepitar;'a queimar, em
nosso.tempo; a nossa carne e a nossa consciência: Como diráWalterBenjamin, o
historiador é aquelequetem afunção messiânica de colher, como um jardineiro,

63. GINZBURG, Carlo. OFio e os Rastros.São Paulo: Companhiadas Letras,2007.


64. BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário, Rid,de Janeird: Rocco, 19.87.
32 ,«, g6
. 'l'EGELÀO"POS· TEMPOS
·, .f ,.

' : ' ..
asúltimas floresda esperançaque, emboramurchasejásem perfume,ainda
teimam empermanecerbalançando sobovento :dos :tempos;,ainda.tremulam
; comobandeirasque simbolizaram, queforam oescudo ea ·heráldica, ·,que
,:marcharam àfrentedos exércitosde vencidos detodosostempos° Ohistoriã:dor
·,,·k~tcéat:piélêinv.quefaomesmctte:rnpo,·chôra.éfouvaos:mortos;que.numgestode
,_ ~~~i-;iJ1hà.par.arcotn:os .quese-foram,·-os·veste:de·novó•para:um ato;inat;1gural,.os
faznovamentevir para ocentroda sala,pa.ra·ifrente1do.cortej0, osJazlevantar a
• (:front.e e'.!tOY!llllehte,fa.laremrvodferar.em};imprecarem;,readquirin:ào o ,direito à
ea
fala dirigirseupróprioe nterro,asimularemocontrole·sobrea:versão desua
própria vida,dasuaprópriamemória. A carpintaria dopassado, portanto, é obra
do historiador,eleé o carpina:que;,:de posse·dos escombrQs que o passado deixou,
submete-osa um trabalhodecorte, de.rejuntátnentorde·limagem,.de aparas,.,de
0
:encà:b(e,e;apiumo;que:os'·põem,novamente:parafüncionar:comoacessoaoque
foi, como portaou janelaporondepodemosespiar omádentrar ·a dramaturgia
dostemposidos.Ohistoriadoré umpadeiroque, com aparas· das· àtitúdes,.dos
costumes,dasaçõesdas massas,fazfermentar novas ·imagens ·dos·tempos,:que
. servemdealimentoparanossos sonhosdecontinuidade, par.amossa 'fome de
identidade, para nossa:;inarüção:de'.!SeI'.itidos,para·vida,::para o:estarmoKaqui na
a
.· terra,para nossaexistênciafinita eilimitada.Ahistória podeser :delicioso
:·ipã<trque,_.alimenta'.no.ss'a,s"vaidádes;.nos.sa:onipotência;mossos.;;preconceitos,
e
queexplica justifica nossasdesigualdades e diferenças,.mas pode·ser também
olicor amargoquetragamosparanosdarmos conta de·nossas,veleidades, de
,nossos crimes, de nossasjnjÜstiças; de·,nossasAgnomínias, · de ,tudo,o,que nos
• ·, i'~arga,a.eJtistêrii::ia.;iridividua:Leicõletiva,.",,Historiador:. os:wiínheiro do:tempo,
•taquele,.qú,ê:tréJ;z:par,a;nossoslábios.a::possll:>ilidade de experimentarmos;mesmo
• /t1ué,,difereQéialmentei qs;sáb:ores;··sabei:es,.e,ódores .de·outras)gen:tes, ·de ·outros
· ·::;lµgáres;·de,oq,trasJo:rm:a,scde:\tida '.Soêial•··e'culturali 'fSempre o:pirão de farinha
• , :qa;ihistótiâ?'ft?l:ar.inha!tnoída;;pelosrmoinhos,,do,;tempó;<:grãos •,minúsculos ,de
,_ temposquepodemvir afazerliga,podemvira se espessarem; a·engrolarem;, a
, ; ise,es.caldàrem;.·sôb,.a·àtiyjdtde,,concentradarvigor.osa, da. pá.•do• históriador. Pá
feitadeletras,habilidadenarrativa, vórticedalinguagema..tragar,,niisturar e
conectartodos estesgrãosdetempo,linguagem aproduziratransubstanciação
doselementosque captura,experiências humanasreexperimentadas,provas
novamenteprovadas,o estranhoqueseencontra,osentido que setransporta,
,.•metáforas;;a;fazer :cttrâh·sitót.enfre,o:,i:,rtdizívelre .O.'.'ÔÍZível,,,o •ontem e ohoje, o
<a+;5igrHfi~ahte\e::o·,s.ignifiçado,:'iO"Teaquecer;'do...e.squecido ·dando<tmvarnente
caldo, fazendovir àtona, emergir,borbulhardepósitosde tempo,camadas de

'• 65. BENJAMIN,Walter. "Sobreo Conc'eito:,d«;!'#istória''.'In:,.ObrarEscólhidas'J: Mtigia e Técnica,


Arte ePolítica. São Paulo: Brasiliense, 1996.
,•.66. Referência atrechodamúsica"O fim dahistória" (Gilberto Gil,Parabolicamará, Weá,
. l99i): , • • .• • • • •
• DURVAL·:M.UNIZ DE'ALB\JQUERQUE JÜNJOR 33

acontecimentos que sedimentadas, que adormecidas no fundo do caldeirão da


história, voltamnovamente a circular, a exalar sentidos evalores, projetos e
desejos, voltama ser o prato. do dia.
O historiador ainda realiza todas as etapas de .seu·trabalho:.·aqui o
parcelamentodas tarefas e aalienação dotrabalho airtda nâo·.fizeram-a .sua
.aparição·de forma completa, ·Embora cada vez-mais trabalhemos em :equipe
• e·sejam.deixadas para os bolsistas de iniciação científica as tarefas mais·duras
e. inóspitas,- como levantar,fichar, copiar ou, digitalizar aquela documentação
coberta de poeira· e veneno,infestada de fungos etomada ,pelo·mofo;aquele
jornalqueserasga sóde pegar em suas páginas - pois, na oficinadahistória" a
hierarquia entre-mestres e aprendizestambém está presente,deforma rigorosa,
manifestando-se na diferença'de remuneração; nà hierarquia de poder e saber,
no. tipo. de atividade que cada um exerce, sendo·· a relaçãoorientador-bolsista
·uma relação·:de exploração.mascarada pelo caráter•pedagógico e' educativo ·de
que se reveste,talcomo acontecia .nas corporações.medievais·-' ·o'historiador
ainda detém, ou pelo menos deve deter, o; conhecimento-sobre todas as etapas
que wmpõem a-súa,ativi.dade e deve possuir umsaberfazer,;uma sabedoria; que
deve ter .nascido. da prática, do frequentar os arquivos, do resumirdocumentos
e bibliografia, do escrever notas parciais,até do redigiro artigo ou o livro.
Aprendizes de historiadortêm que enfiaramão namassa, têm quepraticar cada
etapa do ofício,sob pena de nada aprender.
O fazer:historiográfico·não ·se.aprende apenas nos bancos esc.olares;,.não
se aprende apenas· ouvindo ou lendo como se deve fazer, nãoseaprende lendo
manuais demetodologia ou detécnicàs de. pesquisa;'Aformação,dó historiador
tem que teruma dimensãoprática, tem quesertomada como o que me parece
ser,.o ·aprendizado de uma arte, de um artesanato, oaprendizadoxleum saber
• fazer que ·exige ttêinainento; realização e:tepetição· das tarefas, permanente
crítica e.aperfeiçoamento daquilo que faz; a,busca deumavirtuosidáde; deuma
,destreza manual e· inteleétuaL A historiografia exige o exercitar da imaginação,
da 'capacidade- de estabelecerconexões entre os estilhaços 'do passado,. de
. preencher as lacunas entre os eventos, necessita-do exercício da: capacidade de
ficcionalizar, de intuir articulações naquiloquesó nos chegaem pedaços. O
• trabâlho historiográfico exige; sobretudo,: a destre-zanarrativa, a 'capaddade de
contar uma boa história, exigeo desenvolvime nto da capacidade deenredar
eventos, ·de elaborar boas tramas. O historiador, assim comoas rendeiras, deve
saber conectar os fios,amarrar os nós, •respeitando os vazios e silêncios .que
também constitue m o desenho do passado; o entramado,dostempos. Parà.fazê-lo
deve. stibmeter-se.aotreinarriento constante dahabilidadede desfiar a narrativa,
• de utilizaraslinhas de que dispõe para aí urdir ·versões, do:·passàdo, • discursar
sobre o que ocorreu numa dada época. Como toda habilidade artesanal, só se

67. FURET, François. A Oficina daHistória.Lisboa: Gradiva, s/d.


34 ,TECEuÃO DOS TEMI'OS

. . .. . .

aprendeaescreverhistóriaescrevendo,praticando, agindoporensaioe erro,


abusandodarepetição,buscandooadestramento necessário,elaborando várias
.. ,-:,yêfsô~s['.d~: •h;i.esmo.:textof:corrigindo-orras.urç1:ndo~o,"refazendo~o, escr;evendo
versõessucessivas.
·;_çó1nd(tqda1àti\riclade"-artesanaVotrabâlhO':.do'historiadotfov.a~o a:.. sujar-as
mãos,implicaumarelaçãocorpoacorpo,subjetividadeasubjetividade, com o
seu materialdetrabalho.Ohistoriadorsemisturaesaicomasroupas,,o:cprpo
eaalma marcadospeloseumaterialde;trabalho,,;pelos.ac.ontecim.entos,.,pelas
e vidas açõesque vema pôremcena.Assimcomo asmãoseo corpodoartesão,a
. subjetividadedohistoriadorsai calejada"Ou:chéia:de cicatrizes de,;seus encontros
comasvidashumanas,comaslutas, comasilusõese".desilusões;daqueles que
•;vietapi;J10s::anteêéder:O~tràbalho:do historiador,nestestempos que correm,se
aproximadotrabalhodolixeiro, aapanharos restosd.o. . que sobroudossonhos
. : egrandes projetosepromessasquejápretenderemser, o sentido .• do:,processo
histórico.Ohistoriador, na pós-modernidade, éum profissional•'.dedicado,:à
· ,:d·ei:idªgeaj.;d,âs.;versõês:_dopássado,uos::sonhos.. doshornens,das,utopiasfalhadas,
. dasgrandesprofeciasmalogradas.É alguémque, depossedaslatas e . garrafas
. vazias dasgrandespromessasdahistória, agoraatiradas num canto, amassadas,
Jeriferd1jâ:dâstchut,a,d.assem:teiiniôhia pelos,p'assantes,·as,submetea:urn:Jrabalho
de.repÍ;ie.hs..a:gem;,de,releitura;.:de;.rédefintção . de,sentido.. e utilidade, versôes . do
passadoquedepois de passaremporumtrabalho de desconstrução; de,sele9ão,
' de modelagem,voltama estar,cheias·:de,saber: e-de,sabor;-voltama.. fazer;,sentido,
voltama influenciara .:vida.'dos.<homens:..deihoje;·que,as ,podem!tra,garpor terem
.:noyo•valo.r.: . .
, - , Aalienação do trabâlho;temdificultlàde de-sefazerpresente.emnosso_ofício.
•. :;;Ao,à.eâbar:setttrâhal4m..ohistoiiàdor áinda;pode·sentir.•ever,aobFacon10.$Ua, ele
0

·• C:}airid~..p,ode•éolocar;á.êimà da-capa<tl0'1ivro o seu no111,e.de·;autor,.aindapó.de dizer


o
esteé meulivro,o artigo que escrevi,esteresumoemanais édeminhalavra.
. ,/ElevêS:eU'J"ôsto•pi;óJê.tado.sô.bre,,o,:que•fazs;seirê••riflétido:notext_oque.acabade
escrever, sesentedepossedosaber;qu.e•afüfobplasmado; se ,sente proprietário
daqueletexto,atéque algumaeditoravenhacomprara.•preço-vil seus-direitos
autorais,quepassamapertence..r,a;o.utro,por;'.pelo:illenos,-:cinquenta.anos.
. . . . . Talcomono artesanato,otrabalhohistoriográficoémarcado 'pela
superexploraçãoemtódas-às ·suas:,etapas:,Rodedamos :dizer que temos ,aqui. a
presençadaextraçãodamaisvaliaabsoluta. Otexto do historiadortem, como
o artefato fabricadopor umartesão,valorde uso,mastambém,cadavez mais,
- : ,valoi:\l:etroca/O·escrito.,:do;shistor.i.,1dor,é;,;consurnido1p.e. lo saberc:que,,enc;:erra,
. , . ,pelasJiifotmaçoesique:,v.ê_i:cillai,pêlas::élâhoraqõ·es1éticas, estéticas·epelíticas·. ·que
formula,pelosmodelossubjetivosquefornece,pelo prazer.. oufruição_que pode
. ...... ·ofeteqe1Jpelós.celemenfos1,de,identidà'<le•e'çle.-localiza.ção,temporal:e:espacial que
constrói: esseéoseu valorde uso.Masnão podemos .esquecer:..quéhoje o texto
dohistoriadoré também umobjeto de mercado. Muitosdelesvisam "a atendei-
• ,-: .. • •.• , -. ' •• • . • :· 1-
,.J)URVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚN lOR 35

a demandaquevem das editoras,das empresas educacionais,da mídia, do


público consumidor deste gênero;· o que não os tornam necessariamente ruins
ou suspeitos.. Mas,quero chamar atenção para ofato de queohistoriador, tal
·como-o-:artesão, o-produtor direto, realiza,quase sempre, uma troca bastante
desigual quando seuproduto é colocado à venda. Otexto do historiador, como
o objetofabricado pelo artesão, exigemuitas horas de trabalho, é umproduto
• que exige um trabalho extensivo,·mas que será·adquirido por preços. que estão
• • :muitoJon,ge,de corresponder ao tempo gasto parasua produção. O mesmo vai
dar-sena relaçãoentre pesquisadores :e:auxiliares de ·pesquisa. Estes. realizam
• as tarefas mais árduas e sãoremuneradosde maneira vergonhosa. O trabalho
do historiador, como o·.de qualquer artesão, se não penalizao .corpo com a
intensividade do trabalho fabril, submetendo-oà velocidade damáquina, da
'linha. de rnontageil).; .-cobra do . corpo a submissão a longas ,permanências· em
dadasposições,àrepetição dedadosgestos, àtensão permanente de quem está
·.emestado de criação, de quem está concentrado numtrabalho de :invenção: Esse
.:desgaste excessivo do·corpo não é levado em conta nahora deseremunerar seu
trabalho,pois esteé visto comoum trabalho leve,como uma atividadecerebral,
mental, que nãoexige oudesgasta asuaforça de trabalho.
"Gomo todo trabalho artesanal,, o.ofício do;historiadorexigeatenção para
:o detalhe, o debruçar-se sobre o material singular e raro que se tem à -:frente.
Como diz MichelFoucault68; a raridade é·a·característica··do que chamamos-·de
•• fontes_ para o nosso.trabalho. Ao contrário do:aguadeiro,:quandó o historiador
vai às fontes não éparaencontraraí abundância e refrigério,mas escassez e
trabalho árduo. O historiador é umbricoleurque temque darformaa seus
objetosa partir de cacos,. de fragmentos, de resto.s; derastros,'de.• sinaiS69. ·Para
,pôr de pé seus sujeitos e seusobjetos temque ser espetialista'no uso dacolà da
imaginação histórica, tem que serumexímio costureiro dos: retà.lhos·deternpos
·•que tem em suas mãos; tem· que serum e:xpetimentado ventríloquo para·tentar
• falar poraqueles que as vozes já se calaram; tem-que partilhar a habilidade da
,bordadeira ',para comas linhas coloridas da teoria e da metodologia conseguir
:,dar forma a·um desenho;a:umaconfi.gurnção·dopassado,,ordenando o caos dos
.eventos.,que deixaram suas marcas em ·algumà forma- de registro.
Para os que sãoaprendizes deste artesanato; que estão ·<lando os primeiros
passosparao conhecimento dos mistériosque habitam a oficina da·chistória,
queria apelar para que ·resistamos a fazerda historiografia uma produção
•mâ:ustrialou fabril,uma produção em série; umaprodução afeitaapenas às leis·do
· .mercado; .uma mercadoria a rriaisnas prateleiras repletas de reteitas,deautoajuda.

- '68.'FOUCAULT, Michel. "Nietzsche, a genealogia e a história".In:Microfísica,do Poder. 23 ed.


• Rio :deJanêiro:Graal, 2007.
69. . GINZBURG, Carlo. "Sinais: raízes de um paradigma indiciário".In: Mitos, Emblemas e
Sinais. São Paulo: Companhia das Letras,1989.
TECELAO•.DOS··TEMPOS

. . . .

Épreciso quereafirmemosocaráterartesanal;:ai:tístico:_de'nosso..ofício.· .Não .0s


convidoase tornaremludistas; nãoprecisamos quebraras máquinas paraque
··\nossa-·arí:e'.:dê-iinvehtat.;q,passa'd0,possa\s_eripràticadai.::Os,computadores. .fazem
aquiloqueosordenamos.Emboraemespanholchamem-se ordenadores, quem
temo podersobre elesainda:,sotnos,riós.' • Devemos' lembrar· que1.a>pretensão
detornarahistóriaumaciência obj etiva.rm:etódica, r.r.ciona:l, xealísta;- verista,
c,:;ess.eticiâlista:_é:c<Jnte.nipo1Jneaà,!;!rpergê_nciadasoc:iedade;capitalistainiiustrial;·da
sociedadedasmáquinasedotrabalhofabril.Muitos desejaram seroperários da
- -\bi:stória}t~~o'áo.:escrevfila;•çomoao:prâtfcá,,fa,1c1postando,na-suarefrabica:ção,
o
· maquinando desvendamento de suasengrenagense amudançadaroda que
a se
presidiria, apossandodeseumotorefazendo neleumarevoluçãoa todo
-· ,vapor:e;torítínuita;;energia. Horµens,,de,Jerroe~de nervos .de aço·em:busca de
. implantarem devezofuturomaquinado,fazendoo pro.cesso históricffatingir
;\â,IJiàxim:a'a:telçração;,,estab'd . eceri'do\um':córte1defini,ti;vo: com o:pgssado; para
num
estancar eterno presente,anulando devezotempo,este ·nosso,,grande
• J-rtiri}igo!Apostaram na'técnkaema:ciência:como:capazes detrazer a'igualdade e
. a liberdade.Estesonhoruiu, mas comoartesãos das.cinzas;:dospedaços demuros
• derrubados edeestátuascaídasdospedestais,oshistoriadores sãoconvocados,
.. ·'• hpje; a•rel.U'tirem-.o.quesobr0:u,destes:s0n:hós,· destes.desejos; destasilusõ·es,.destas
utopias,destasfantasias,ecom eles conseguir darformaa novos cenários para
opresente epara ofuturo. Abdicandodefazer da história uma ·grande usina
desonhos,mas regandoa pequena, modesta, localizada,mas insubstituível flor
iJ,éÚ~sperançat,que~11asce•e1n;:pe,quenos·caflteir0s•porJodomundo:História-·que
nãorecusaasmigalhas"",masque com elas tenta pacientemente darforma às
· temporalidades,agrupando-asnumtrabalhopoético sohrea-matétia•da empiria
•• • e'da:,ut9pia:/Matetíalisn;i:o,;;poéticp,.mais, do.,que\dialético,,contrários-,quenão
seresolvem em unidades, mas que 'revolvem as·,unidades,e• as .unanimidades.
·":Hístórià::i!q:m1~l}f~br:icaçã'.Óf.âeJ6bjetos'•:e:sujeitds;·:·contodnv.ençãoiitncessante ·
deformas parao passado,detecelagempermanente dostem pos. Trabalho e
-'arte:'€'ort1prprilêtitlos•'comü:liscussõeS'"Pôliticas;-7êticas.,e:estéticas. A qfiaina-·do
-,:histor-ia:don-e}t.bri.ridopara:·aqueles:que·fonam:margin:alizados pela,sodeâàde do
• • 'ltrabãlho e.,dostràhalha:dores,,a:quéles,:que,:nunca for.am ,'vistos:-como •sµjeitos •-.do
passado oudofuturo, aqueles quenuncacontaram, aquelesque nuncavaleram
nada se o
pornão dedicaremao queseria fundamentode nossasociedade:o
-· · trâb,âlhô:)U,,mâ'i\ofidna-Jiue111ãoqnata.gato.s7.!·/mas'.aberta:;.a,gatos•e,ratos, 'aberta
•• ::a·rnitlhe're$/:crfanças;:p:t:ostitutas; :b.õêrtüos, .fadrões,:..sodomitas, loucos,,bruxas,
. presos, artistas,saltimbancos,palhaçosdeofício enavida. Urna .hístória-que
• não sedirigeapenasàrazão,à consciência,masquedá lugar aossentimentos,
aos sentidos, àspaixões,aosdesejos,aos delírios.Umahistória que abandone
:; '· · . _ . • . .• .

70. DOSSE,François. AHistóriaemMigalhas.SãoPaulo: EDUSC,2003.


71. DARNTON,Robert.OGrandeMassacredeGatos.Rio deJaneiro:Graal,1988.
• 1 • ••• ' ' •
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE,JÚN10R 37

,sua paixão trágica ,pela desgraça, pelo sofrimento, pela morte. Quenão .deixe
· cle falar das, injustiças, das misérias,'. da exploração, mas que seja capaz .de ver
que aí também há o riso, a alegrfa,afelicídade. Tudo o que desejo é que os
leitores deste texto sejamfelizes praticando o ofício de historiador; fazendo dele
a maior.arte que -pode ser·pratic:ada.por cada umdenós, arte bembrasileira,
a de. driblar comluta, resistência, determinação, coragem, sabedoria e saber
todas assituações, forças, relaçõessociais edepoder, as formulações culturais e
simbólicasque nos tentamfazer desistir da vida ede nela serfelizes.Ao poder,
ao capitalismo interessa pessoas infelizes, deprimidas, melancólicas porque
• submissas, submetidas, derrotadas e prohtas a comprar amais nova drogaque
• o mercado oferecer. Façam deseu ofício sua droga diária, faça ·da.história e .da
arte de tecer o passado seu'Prozacdetodasas,horas e, commuitoámor·ehumor,
vocês resistirão à fábrica dedeprimidos que se tornoua sociedade burguesa.
Resistam encantando a vida, ·dando• a ela arte e astúcia'. Tomem ciência de que
só fazendo da vida e dahistória uma arte, tanto comofazem os.mtistas ou como
fizemos todos quandomeninos, é que seremos felizes. Quevocês sejam, "como
•·historiadores, artistas earteiros,é tudo o que desejo paraaprendizes defeiticeiro
no atelier ·dafostória. • •
•- •Capítulo2

O passado, como falo?: corpo sensível o


como um ausente naescrita dahistória

.... mais. doqueparaooutro;escrevemos para


o nosso próprioalimento: o doce alimento
da ternura, dainvenção do passado ou o
,envenenam.ento••da acusação edavingança,
- elas própriasprim;ipais elementos da paixão
na reconstr.ução do nosso corpo sempre
.prontoàcéderca emoção•inventada; mas não
falsa. -Não é falso se te escrevo:
(Barrebo, Marialsabel;.Horta,Maria Teresa
e Costa,Maria Velho da.Novas Cartas
Portµguesas, p.4).

A historiografia foi, pormuito tempo, uma esctita,<lehomeris.• Homens a


tentar fixar:o,que.·<legranâioso e·meinorável .fizeram outros,homens;cbs textos
inaugurais do género nascetarri,:para narrar, tentar-entender-e ç:leixar como
. exemplos os·feitos guerreiros realizados por homens engalfinhados nos campos
• de batalha. Anarrativa historiográficanasce comora,no menor da poética votada
a fazer de forma.prosaica o registrodos grandes Jeitos de ·homens·.incomuns,
.homens merecedores defama e glória. Ahistoriografia nasce da busca·,do
. T,egist-ro das batalhas e afrontamentos. que separaram elevaram à morte gregos
e bárbaros, .atenienses e espartanos; .O •gêneró • histotiogrâfrco rtásce:da guerra
. que .se fazem homens, soldados, corpos Viris, treinados, disciplinados para o
confronto bélico.A historiografia nasce para registrar eventosonde os corpos
masculinos se ferem,se-mutilarn, se esventram,sangram, se laceram, perdem a
vida, devémcadáveres. No entanto,já em seus inícios, a escritada história vira o
:rosto diante,desses corpos,damaterialidade sangrenta dos corposque morrem
a
em :s_uas refregas. Ahistória prefereregistrarsuas diatribes oratórias, dialética
• ·:rECELÃO'DOSil'EMPOS

. . . .-, - .. .
de suasperorações, seusdiscursos eestratégias retóricas. Desde o início,os
personagenshistóricosnão têmcorpos sensíveis,,possuem.apenas.a lógica·de.suas
··,;·1::tationà:tizà~ões{dé'se1.1.5..prpjetos;;de:suas,estratégias'.IDilitares; são máquinas de
: ·, • guerra.Dessescorpos se quis deixar registrp.;das destrezas e,cnão das dores;. das
coragensenãodos e
desesperos,das valentias nãodos medos,dos destemores e
.. : . .•'.c1n·ão.de1seüftremores;:(das.•a~tlfoias ·e·nãoidàs.angústias; das,racionalidades ,e. não
- daspaixões.Ahistoriografiapreferiu deixardesseshomens suas lendas e não
•· • : • suasfendas, suaslidas e nãosuasferidas,•seus eventos e· não· seus aSofrimentos,
• , .'/'. :: se,us.:p~~sanienfos':não seus sentimentos.Como uma :escrita masculina, como
• : \1ima:,escôtaid-e homens::para·homens,:a.historiogràfiai,ai-nda hoje, deve 'V.irar o
rosto para arealidadefrágil eprecária dos corpos, ,deve<a:bstrair. arsensibilidade
dascarnesparamelhor destacar (}.failhantismo>das ideias;. ·das .decisões, .dos
• \manél.a'hlerttos{Oomo:urnà·escrita·que não·é feita:sobre mulheres e .que-não é
para ser ouvida:; Jidase ;apFeciada,:pol'·.m:i.tlheres,.~·histol'.iqgrafia.deve. manter o
pudordiantedalágrima, dopânico, do,gritode\doi--e;de pavor .daqueleshomens
que nela comparecemcomoagentes esujeitos. Desses homens interessa.que se
guardea não o
fama, odrama,quese lembre nome, não a fome, quese narre a
ação, nãoamutilação,quedeles qque o:que ,perdura'.; nâo'a,Joucura,-a·tortura,
·. .·ã.tetifüra·72: - • ,: '•; • •

• . • • .' O corpus da historiografiafoipor muitotempo umcorpus mutilado, pois


• • dele estiveram ausentes
asmulheres,asGtianças;?os pobres, iQS; lou<,lOS; todos
. aqueles que não
faziam partedacastados homens que contam e merecem ser
i contados.Comonegar, portanto,somentelevando em .conta esse: aspecto, que
• • • • .· , /, o passadoescrito peloshistoriadoresnãop assava,,de. pura -ficção, de-invenção
,.deuma(h1stórla;-de:tim.mundcionde,só.existiarrihomens;.onde·só'.Semoviam
personagensmasculinas, em que as mulheres apareciam aquiealicomosombras
\por:•t!c:ás:qe:s.e~·coIJ1panheitoso_u,como;cásos:episódicoseexcepdonaisamerecer
um a
registrofeito partirde umrelato ouponto de ·vista também.masculinó? A
historiografiaconstruía um passado onde eram raras as Jalas'femininas, uma
·Yfüstôfiçg1;afiâ·oride:s6,:se·.expressav;am·,osJalar:esdosihomens;.su.asfalas e:seus
· •· falos·:"·t:Jma·füstóriogrâfia :vrr.j.l/das, guerras, revoltas e revoluções;. das disputas
e e
querelasdinásticas imperiais;das conquistasterritoriais; dà~.submissão, do
domínio,docontrole,da invasão,daconquista,da colonização de terras;· e da
· , . .aéülturciçãotda'subordinàção;'daeséravizayão·depo:vos·consideradossübmissos,

___ _ .
' ·(_ -. ' <. ' ;, - • • --

,....... ...' .

• .·• .
72. Verpara a historiografia da Antiguidade:HERÓDOTO. História. Brasília:UNB, 1988;
'.ff:0-CfDlDES:'.,Históriá:d4 guerra do -Peloponeso<füasíÍia: VNB, 199'9;-POLlBIOS;História.
Brasília:UNB,1985;SAHLINS,Marshall. Históriae cultura: apologias a Tucídides. Rio de
Janeiro: JorgeZahar,2006;HARTOG, François. •O. espêlh0:4e•f!er.ódoto:;Belo:Horizonte:
,f--UFMG;1999.i1v1J:>MIGLIÀ-NO;Arrlâldo.Afrafzes,dásslcai,da.histçr,iagràfiatnQdetna..Bauru:
• .: i '·Y1?f?.{!SC; 2.00f;,;J(lLY, '.fábio:'D.uai:te.(prg.)',:Hlstória e,retprlca:::ensàios,,sqbre~histdri9grafia
antiga.São Paulo: Alamec!a,:2007,
DURVAL MUNIZDE ALBUQUERQUE JÚNIOR 41

subalternos, passivos, a-históricos, selvagens, primitivos, femininos?. A


historiográfia a contar uma história•bem- áfeita às fantasiaS,:masculinas,de .poder
absoluto, deexploração e dominação dos mais frágeis, de direção e educação
.dos menos racionaise aptos, umahagiografia dos poderosos e dos potentes,
-,•'dos potentàdos>Mais raro:airtda era:-oaparecerdos corpos-fernininos;anão.ser
•· ·como corpos.estranhos; ameaçadores;corpos'com artes e,manhas-inintéligíveis,
- corpos>de. bruxas,' de. feiticeiras,, de,augures,-de;pitonisas;, .:de:princesas,:,de
.videntes;..de prostitutas. :A historiografia foi, pormuito tempo,uma narrativa
misógina,medrosa diante dadiferençarepresentadapelocorpo feminino,
corpo, ao mesmo. tempo, 'desejado e recusado pelos homens. Corpoque parece
;perigoso;· misterioso, frágil,·doentio, fascinante emsuadiferença, indecifrável
emsuaidentidade.Corpoobjetoámpossív.eldesetornar sujeitode,sua história,
da história., Corpo marcado;,limite e ameaça.ao masculino; corpo .que se ·define
• ·por uma ausência, a ausência dcfJalo; :mas .que representa para eleum eterno
-perigo;.inclusive de apropriação74.
A historiografia,apesar de:to'dos· os .esforçosAeitos.· pelas·;historiadoras
e, talvez porfalta deesforço demuitas delas, continua sendo umanarrativa
:masculina. Ashistoriadoras efetivamente, nas últimas -décadas;s trouxeram as
mulheres como. personagens, .como sujeitos, 'como temas, 'de seus trabalhos.
A. condiçãoieminina'tem·,sido,discutida em·•· seu, caráter temporal,em seus
:diferentes modos de efetivaçãono tempo. O :ser mulher':tem sido .·.dedinado
.em sua multiplicidade notempo eno espaço, conforme diferenças ctilturais,

73. Sobre a'relação entre história:e dominação, vet: 10D0ROV, Tzvetan. AconquistadaAmérica:
a questão do Outro. SãoPaulo: Martins Fontes,2003;SAHLINS, Marshall. Ilhas de história.
Rio de Janeiro:Zahar, Wll; GRUZINSKI, Serge;, AS::quatro,partes do:mundo: história de
uma mundialização. São Paulo: EDUSP; 2014; SAID, Edward. Cultura e imperialismo, São
Paulo:.Gompanhiadas 1:etràsí'l995;MBEMBE,,Achille::Saír.dagrande noite;ensaiosobre
a África descolonizada. Ramada: Pedago, 2014; PAZ, Octávio. O labirintoda solidão...São
• Paulo: Cosac&Naify, 2014; GALEANO, Eduardo. Espelhos: umahistória quase 'Universal.
.Porto Alegre: L&PM, 2016; COUTO, Mia. Um rio chamado tempo,uma casa chamada
terra. SãoPaulo: Companhia das Letras, 2003;,AGUALUSAi:José-Eduardo.:Teotia,geral do
esquecimento.RiodeJaneiro: Foz, 2012; ANTUNES,António Lobo.Asnaus. RiodeJaneiro:
Alfaguara Brasil, 2011.
74. Sobre arelaçãoentre história,género e minorias,ver:BUTLER, Judith. Quadrosdeguerra:
quando a vida épassível de luto? Riode Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2015; HARAWAY,
Donna etali. Antropologiado ,ciborgue: .as vertigens do pós-humano.BeloHorizonte:
Autêntica,2009;RAGO,Margareth e GIMENEZ,Aloísio.Narrar opassado, repensar a
.história: Campinas: UNICAMP,:2000;,MBEMBE, ·Achille. ;crítica da razâo negra.Lisboa:
.Antígona;-2014; ,MAYER, • Hans. Os marginalizados. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989;
.CORBIN,·-Alain. Lesfilles de: noceóParis: Flamarion,2015;: STERNS,··Peter.Hístór.la das
' 'te/ações çle gênero: .São Paillo:-,Contexto,'.2007; CIXOUS, .Hélene; Le•'tire de, la :Medusa.
• Paris: .Gàlilee,,201 O; DURAS, Marguerite;BattQgem contra óFadficô. São José: ARX, -2003;
• WOOLF;,Virgínia: Odando::iimâ biogtafia:Belo Hôrizonte: Autêntica; 2015;.USPECTO R,
. Clarice.Perto docoração selvagem. Rio de Jarteiro:·Rocco; f998. •
• TECELAO DOS TEMPOS

sociais,deetnia,de opção sexuaLou religiosa. O corpo feminino, . em,,suas


configurações, disciplinamentos,elaborações discursivas e não-discursivas, em
suapresençamúltipla ediversa,temsido trazido parao interior dotextodos
historiadores ehistoriadoras".Mas será que com isso a historiografia deixou de
·• ser um discursomasculino?Será que as historiãdoras;•e1nesmoos historiadores
que sedizemfeministas, quese propõem afazer umahistória das mulheres,
umahistóriados géneros,atentarampara o carátermasculino das regras que
regem aescrita dahistória? A historiografiaé um ,gênero narrativo que foi
formulado por homens edestinado a serlidopor homens.• A escrita da história
praticadapelashistoriadorasfoi capaz,atéagora, de romper comesseestatuto do
•.conhedmentô·históricó?As.mulhereshistoriadoras·nãocontinuaminscrevendo
suafala nointeriordeumgênero narrativo que é fálico? A historiografia não
continuaassombradaporumpênis fantasmáticoa ponto ·de masculinizartodas
asmulheresque setransformam em personagenshistóricos?
Quandoassistimos a múmeras . historiàdoras se engajarem no ,discurso
.masêtilirto da, recusa-do ,poético e doJiterário' na. historiografia,.não ,estamos
diante dareposição de regras,,que fazem .do discursofostoriográfico. mais
·,úma:dàs:nianifestações;na'linguagem/da ·dominação masculina; que recusa a
poesia, querecusa oliterário comocamposmais afeitos ao feminino? Quando
assistimos a diatribe:contra,a·expressão . dos sentimentos, da intimidade,. do
pessoal,do subjetivo, doprivado, do doméstico no ;texto do ·historiador, não
;estamos,diânte da-cpr:edominânciano texto,historiogtâfico da racionalidade vista
, como masculina? Não é,ofalo quefalaatravés daquelas historiadoras e daqueles
historiadores que serecusam· a,tratar dadimensão,sensível,sentimental; emotiva,
afetivados sujeitoshistóricos? Todosostextos defensivos e,até agressivos e
violentosque são escritos:contra a dimensão artística dahistória, não são a defesa
'intransigente .do :cafáter ·rnascú:lino do,texto historiográfico, quenão poderia
• se déllicar a coisas.. superfidais, ornamentais; decoràtivas,, supérfluas, ou seja,
frescuras, coisas de mwhet?76Admitir•o caráter gerativo da linguagem, admitir

'15. ,Ver, por-exeIJ1plo:PERROT; .Michelle. Minha história,das·mulheres; São Paulo: Contexto,


2007; DELPRIORI,Mary(orga.).Históriadasmulheres noBrasil. 2 .ed. São·Paulo: Contexto,
.• 2004;'P-EPRb;JoanaMaria;Novahistória das mulheres noBrasil.São Paulo: Contexto, 201'2;
DEL PRIORI,Mary.História econversasdemulher. 2 ed.São Paulo:Planeta'Brasil, 2014;
DUBY,Georges (org.). História das mulheres no.Ocidente (4:vols,). Lisboa: Afrontamento,
1993.
76. Ver, porexemplo: BOUTIER,Jean e JULIA,Dominique(org.). Passados recompostos: campos
e canteiros da história.Rio deJaneiro:FGV,1998;RUSEN,Jorn.Razãohistórica: teoriada
,,:,história '-.•D$jutic/ameiJto$da,ciência:históril::a?Brasília::• UNB,;-2001; .ANDERSON;Perry. ·o
fimdahistória:de Hegel aFukuyama.Riode Janeiro:Zaha:r,,1992; COHEN, G. A.A teoria
·, dithisfóriaideKarlMarx: uma défesa.'São ,Paulo:,UNICAMP,:,1013; '.GINZBlJRG, Cario. O
fio eosrastros: verdadeiro,falso,fictício. São Paulo: .Companhia-das Letras, '2007; COSTA,
. EmíliaViotti da.Adialéticainvertidaeoutros ensaios.São Paulo::UNESP, 2014;. JANOTTI
• Mariá.deLourdes•Mônaco et•alfrMemórcia;,:história ·e historiografia; SãoºPaulo:·MarcoZero'.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR

que é aíque os sentidos domundo nascem, que é aí que se inventa o passado,


que é aí que se passa a história e que ela pede passagem, não seria abrir o flanco
para admitir o caráter feminino da linguagem, um verbo que se faz carne, e,
portanto, admitir que saberes narrativos como a:historiografia pertencem mais
à metade vista edita como feminina do mundo do que àquela definida cultural e
socialmente como masculina? Quando se defende o caráter-metódico, científico,
rigoroso, sério da escrita da história não se.está desenhando -para ela umperfil,
umrosto que por muitotempo foi atribuídoao masculino? Quando se defende
que a his,toriografia não deve servir ao mero deleite, ao prazer, não deve· ser
escrita apenas para gerar emoção e comoção, que· a historiografia· deve servir
ao mundo, deve ter uma utilidade, deve servir para a intervenção na realidade,
não é ainda pensá-la através de uma lógica que definia as próprias atitudes e a
vida dos homens; aqueles que-não podem gastar seutempo com prazeres. sem
utilidade, com emoções e comoções, . que não podemperder tempo com tarefas
que não sejamsocialmente relevantes? Não eramas mulheres que tinham tempo
para dedicarsuas vidas a atividades banais e sem maior relevância social? A
escrita da.história.não quer ser companheira de-tarefas coma costurar, hordar
ou tricotar, ela tem mais o que fazer77•
Embora a viradalinguísticatenhafinalmentecolocado para oshistoriadores
a relevância de se refletir sobre o papel dalinguagem, da narrativa,. da escrita
em nosso ofício;embora os estudos no campo da história· da historiografia e

1993; CARDOSO, Ciro Flamariort. Ensaios racionalistas. Rio de Janeiro: Campus, 1988;
MALERBA, Jurandir (org.). A velha história: teoria, método e historiografia. Campinas:
Papirus, 1996; WEHLING, Arno. A invenção da história: estudos s.obre o historicismo.
Niterói: EDUFF, 1994; DIEHL, Astor António. Vinho velho empipa nova: o pós-moderno
e ofim da ·história. Passo Fundo: EDIUPF, 1997; REIS, José Carlos. História da consciência
histórica ocidental contemporânea. Belo Horizonte: Autêntica, 2013; NOVAIS, Fernando.
Aproximações: estudos de história e historiografia. São Paulo: Cosac Naify, 2005; FAUSTO,
Boris.Memória e história. São Paulo: Graal, 2005; CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis:
historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003; DE DECCA, Edgar. Pelas margens:
outros caminhos da história eda literatura. São Paulo: UNICAMP, 2000.
77. Sobre a relação entre historiografia, linguagem, poética é ficção, ver: RICOUER, Paul: Tempo
e narrativa I: a intriga e a narrativa histórica. SãoPaulo: Martins Fontes, 2010; BARTHES,
Roland. Oprazer do texto. 2ed. Lisboa: Edições 70, 1988; BARTHES, Rolartd. O rumor da
lingua. 3 ed. São Paulo: Martins-Fontes, 2012; RANCIERE, Jacques. Os nomes da.história:
ensaio depoética do saber. São Paulo: UNESP, 2014; CHARTIER, Roger. A história ou a
leitura do tempo, Belo Horizonte: Autêntica: 2009;ANKERSMIT, F.R; A.escrita da•história.
Londrina: EDUEL, 2012; WHITE, Hayden. El texto histórico como artefacto literário.
Barcelona: Paidós, 2014; CERTEAU, Michel de.A escrita da história. 2 ed. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária, 2008; VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Lisboa: Edições 70,
2008; LIMA, Luiz Costa. História,ficção, literatura. SãoPaulo: Companhia das Letras, 2002;
HANSEN, JoãoAdolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora; São Paulo: Hedra,
2006; ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de; História: a arte de inventar o passado. Bauru:
EDUSC,2007.
.44 'TEC:ELÃODOS TEMPOS

da teoriadahistóriavenhamcolocandoo escrevermesmo dahistória como


uma a questão ser tratadaeabordada historicamente, aindavemos inúmeras
reticênciasdiante dapossibilidade dese inventar outras formas de se escrever
'hiStófia:;(()_s.i:historia-dores,parecenNi:ão gostar muito de viradas, não, querem
colocarsuaslínguas,sualinguagem ·emoutroslu.gat'es:que rrão aqueles-canônicos.
. Essahistóriade virada linguistaoulinguística nãoécoisaparahomem sério, para
historiadorderespeito. Apergunta "comofalo o passado?'.'.;passou·a ser relevante
e a serfeita em muitosmomentos. Noentanto, apesar detoda a reflexão que a
\'litetatur;;rfemiµista:temfeitosóbrea ·implica:ção do,:ato .da·esctitana·.reptodução
>da;dotiilil~çã.ô:Ínasdilina;c;do·sexismo;_tlo:machismo; darnisoginia,·essa·discussão
-· não.:JehrJXT,ipactado,:a .fescrita•.da·: história'. ,Não vemos historiadoras feministas
questionandoanarrativamesma dahistoriografia,realizando umtrabalho de
.<metanarrat_iv:a;·.como:.é:::costumeiro;no--càrnpoditetário. comprometido ·com os
·,·\fen1iriismos/1Está·na~horaidashistoriàdoras'.e.;dosi.historfadoresatentarem_para
o fatodeque, dependendo de comoifalo,,de::.corno'escrevo, de como:narro a
-;b:istotiç>grafia~ti!la·.cofitinuará,reproduzindo,.j/Iógica}·a.racionàlidademasculina
• •que aestruturou,queproduziu assuas :regras. O passado; .dependendo como
••. eu o falo, de como o estrúturo-narrativ:amente,·dependendo das,.regras ,que
·_. _· obedeço continuará sendouma narrativamasculina, mesmotendo ·como.agentes
•- .,múlheresf.mesmoctendo,comrntemas.aqueles.tidos e-havidoscomo•Jigados,ao
.:.feminipq.?8/Càrlo~Ginzburg,•+Um:dosfostoriadores,-mais:agressivose·violentos
emseusembates no campo dahistoriografia, um macho-.italiano e-mediterrânico
atentarexpurgartudo o quereniete ·flOJitetário;em·nosso ôfício a golpes de
críticasadhominem edeataques pessoais, premiando coma ameaça de abjeção
os desviadosautoreshomossexuais que ousaramquestionaras regras-que definem
o nossoofício. Numaposturaparanoide 'típica ;daquele :que'tem .o poder, o
•.• .. domínio e teme em perdê-lo, vê fasdsmô .e antissemitismo em todo e qualquer
· discursoque discordedo seu, qualquerproposta de escrita da história que vá de
encontro aseu modelo.Oressentido filho de ,Uina escritol'a,desucesso;fazendo o
• • permanenteluto de um paiausente, paijudeu e comunista - religião e ideologia
·ypolítica centradas110:masculiqo ,:... ,c.é.,s~guido•por:muitas historiadoras que

• 78. Sobre a relação entre a escrita e a: i;eprédüção:dà',dominação;niásculin<1 ver: BOURDIEU,


··••Bíerre;,.AidominâÇãa!masciiJina;;Sã6-'Paulo:.,'1Jettrarid'Brasil,2002iBADlNTER,.:Elizabeth.
• • Palavras dehomens.Rio deJaneiro:NovaFronteira,1991; 'BEAETVOIR; Simone, de. O
segundo sexo.Riode Janeiro:NovaFronteira, 2014;BUTLER,Judith.Relatar a si mesmo.
• ;;,Belo·,Horizotite: .•Autênticà/2015;;LAGAN;,,Ja:cques,-'A:-significiição ·clo•Jalo. Tn:· Escritos.
RiodeJaneiro: Zahar,1998;LACAN,Jacques. OSeminário -=.Livro .J:8:, de .um.Hiscurso:que
nãofossedosemblante.Rio de .JaneírófZahat-;•_2012;'-?AGLIA, Camilletl?ersonas,sexuais,· 6
• ••:edi$ãé}PàulotCo$pânhia,_dakcLetras/199,2;,SEDGWJCK, Eve. :ppisterriólogia do armário.
Lisboa:AngelusNovos,2003; LAURETIS,Teresade. Aliciaya no: .feminismo; semiótica, 0

cine. Barcelona: Cátedra, 1992r-B'ARTBES,,;Rolan&i O,,neutro;!São\PauloB:Màitins. Fontes,


2003; YOURCENAR,Marguerite.Peregrinayextranjera. Madrid: Al(aguara,, 1992.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 45

não são .capazes de perceber-como naarqueologia deseu paradigma indiciário


só comparecem figurasmasculinas,desde os caçadores e magos, até Sherlock
Holmes. A seu modo, ele,. o historiador dos pobres e oprimidos, continua um
caçador de bruxas. Na micro-história aredução da escala parece não ter servido
para se ver o minoritário, omicro termina sempre por.se revelar macro e-macho.
Talvez porque os homens continuem tendo um enorme trauma com .escalas
reduzidas. A história não quer ser uma:literatura menor, mesmo.quando se diz
micro-histórica79.
A colocação do corpo, do corpo sensível, dos afetos, das emoções, das
, comoções, das sensibilidades como elementos partícipes dos eventos históricos,
faz parte dessa tentativa de trazer para o interior do texto.historiográfico aquilo
mesmo que, por .muito tempo, foi o não dito, o inconsciente,o interdito, o
negado, o recalcado, o invisíveLe o indizívelpor remeter, a dimensões da vida
-identificadas como-pertencentes ao -que se via e dizia como cfeminino. 'Foi a
filosofia misógina do século XIX que chamou a atenção para. o que.seriarn·essas
dimensões femininas, não viris'. da vida social, do pensamento,· dos. afetos 8°. O
real recalcado emergindo na realidade construída, pelos-discursos à custa da
denegação, da rejeição. O abjeto que devém objeto no próprio ·discurso que o
tentaobjetar.:Masnão bastatrazerpara O âmbitodo discurso e.da historiografia
o corpo, seus sofrimentos e suas dores, suas sensibilidades, suas doenças esuas
saúdes para garantirque escaparemos da.racionalidade masculina que preside o
pensamento ocidental e se expressa através de sua historiografia, deseu conceito
mesmo de história. Friedrich Nietzsche fez esse gesto no campo da filosofia,
ainda noséculoXIX e, no entanto, o corpo quevaloriza e traz para, a história e
para o pensamento é o corpo guerreiro do.aristocrata, é o corpo viril dos ·gregos,
é o corpo mascúlino que ele contrapõe com desprezo a tudo que é feminino.
Corpo dionisíaco sim, desde que fosse o corpo do próprio deus e, não o corpo
de suasbacantes,.que o seduzia: e devorava. O corpo do leão e da águia, nunca
. o corpo do anão, do corcunda ouda serpente (ela, sempre.ela; esse corpo fálico
que atraiçoa o masculino e que revela a potência diabólica do feminino)81.-Ter

79. Ver: GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Gompanhia das Letras;
•Relações.deforça. São Paulo: Companhia das Letras, 2002; Os andarilhos do bem. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988; Amicro-história e outros ensaios. São· Paulo: Difel, 1989;
GINZBURG, Natalia. Aprop6sito de lasmujeres. Louisville: Lumen, 2017; Léxico familiar.
Louisville:Lumen, 2016; La ciudad y la casa. Louisville: Lumen, 2017; Todosnuestros ayeres.
Louisville: Lumen, 2016; DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura
menor. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
80. Ver, por exemplo: SCHOPENHAUER, Arthur. As dores do mundo.São Paulo: Edipro,2013;
HEGEL, G. W. E. Filosofia do direito.São Paulo: Loyola,2010; PROUDHON,Jean-Pierre.
La pornocratie.New York, Smashwords, 2010; MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Critica
da educação e do ensino. São Paulo: Moraes, 1978; NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia
da moral. São Paulo: Brasiliense, 1987.
81. Ver: NIETZSCHE, Friedrich. Onascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das
'•·:rECELAO DOS.TEMPOS

umacobra entreaspernas,umproblema eterno para oshomens,quepodem


a
vê-la apicar si mesmos,caráterdemoníacodofalo. 1A·coloca:ção .do:·çorpo, do
das
sensível, dores,dossofrimentos,dos afetos,dossentimentos como .lugares
a
para história,comofazahistoriadoraArleteFarge",levaaquesejapreciso se
·,-distútit.::nôvas,maneir-as.·decla:d'orrna';à·,narrativ.a,histórica,,novas,maneiras ·de
•-'.tffigu,r~.o:pisfadp,:no,v,as(estr.atégias:nan:ativas,queposs<;1m:expressar:na··própria
fpele,dó#X;to,,essa·ipiesençado:corporal;·do,a:fetiv9,'do sentimenta,J;do:passional,
do erótico, dopulsional, do,desejante. Assim'-como fizeram várias escritoras e
-resétitore;s/ogõjlôqgo{do.sécril<iXNrtrapsgrédir.as'r~gras;q.ue:presidem a·escrita·da
historiografia,violar os tabus constituídos emtorno,dessa escrita,' romper.·Íwm
oscânonesestabelecidosporumacomunidadedominadaporsenhoreslegítimos
e superiores, quasesemprevarõesprovectose im potentes, é a únicaforma de
••..:i'.ô.ar,pas§;:igeiJ).1,_nêüextÔ'historJogrâfito,ao,universo-arrinconado.de.exp.eriên.cias
eexperimentos comoscorpose sentimentosditos evistos c@md,.femininos.
, .. ; "; :x::.@~:.aestjQsi<~s\afetos,'ios,.corpos;;;as"erótLcas,,os ·sentimentos ·e .--sensações
minoritários,menores,vistos e ditoscomofora Lda-.:norma, .dos, padrõ.es,.,das
,,c-;estr-umtàs"domipiintes,;;dos:,discursos·hegernônicos.-requerem:; para que deixem
·.•· • ·:ç.e:;sf1\~l:>Jet9$.;!p.ara\que>se•:tornem.'.objetos~do,çonhecimentó.1história:o;c:que·se
repensemas regrasdeprodução e oscódigos ·e-modelos;que:presidem a'.escrita
• da história.Eprecisoqueosaberhistórico abandoneaquilo que-- a scteórica
• 'feriti.µist~ii:j3yé,(Se·dgwíckj:ha.mou-. de_·:epistemo:logia do\:atmário83• ·•·Sim; existe
. umaepistemologiado armário, .,uma•:manéira··de·produzir.·- conhecimento,
:c/pafaq;!zrn11s·t:~odelosa.caHêinicos,,có.digos•<le:produção.do,sabereda:esc17ita:que
•- interditam._i::et1;9s1~ssuntosrque.interditamtertas:p·arte&:do ·corpo,. que ,proíbem
quese escrevadedeterminadasformas,quedadopalavreadovenha para o texto
\atà'dêiiticó;(qµ~/dádâs'.diinens:ões:-aofatirno'.e::d0priv;ad'o:riã0,compareçamnem
)rtosfarnosósiomp.êndiosfüfüistóriadaNidaprivadaouHenistória'do-cotidiano.
Ahistoriografiaquasenuncaentrana cozinha, quarto e, principalmente, no
<.n~(banheir:ptç\;::histofi()grafia,raramente,deita·n.a·cama,;se:enfia.p.or.. babco·í-dos
cobertores,sealojapor entreaspernas,passeia pelasbundas,ilumina o ânus.
Ahistoriografiaprezapelas datas, ,pélos~:anqs,,.41.ão·pelo •:ânus;' com ou,sem
.,ipeló.s;fí{}}ç<>rpo;;do'. p,ersonagemf,histórico,não;.tem,orificios; ·•-corpo málfequim,
.,:;C.º.fP9)PÍ,ÓtéSéf,Gotpp::Odildo;,.ctit,nô4'.âitia:·cohval~grür:e.::prazer:ü'ônic0s.''Beatriz •
Preciado. Ahistoriografiapreferefalar dos anosdourados, não doânus em
desdouro.Sabemos,nomáximo,queosturcos otomanoscostumavam er:µpalar

'-:1etras;'.2007;H1;imiino,:iie.t11âsiadame.ntth1,1matioiSão.:Raulo: Companhia das- Let•ras, 2005;


i '., •.: 'Xf.reft/1scu/otdqsi'idolos;:2a,·ed;:Po.rtilAlegré: LtirnM,c20l'2ritvohtidedepoder>Rio:dé:Jan:eiro: ...
Contraponto, 2008; iAsstmfalo,u.--Z:atatustra:':-São?Páulo: Companhia das Letras, 20 l l; O
• - _ • ' ' \''4i1tiúistoe-clitimrnbos de Dio11fs/o,i,São l?,rnlo:º,Gomparihia:.das I:etras,c:2007.
-- ,82. iF6RG.E/A'tléte,.Lt.igáres-pnrJúihi;slqr/a.:iBelo'HurizontefAutênticai ·2011.
• .r83. ' $EDI@WIO~;.EverOp. Cit. • •
84. /\i\fer: '.P,,Rp:Çi:A:Do;:Beàttíz:WanifestójciJ.ntrasseiual:,~ãmPa:i.ilo:-N •l /2014. .
•• • • _--.-':_ -~.... '" .. ' -• .-. : .-. '. . • . 1. '.'· . . : .: ., • : •
• -OURVAL·MUNIZ·DE ALBUQUERQUE' )ÚNIOR 47

os ·cristãos, masnuncateremos jamaisuma descrição em pormenor do. que isso


signifieava,- Pau.no·ânus não ·écoisa· para historiador, mesmo ·para.~aqueles: que
·se,dedicama.fazerahistória das homossexualidades rnascúlina_s,·das práticas de
sodomia, dos usos dos prazeres ou da erótica romana ou grega". Enquanto os
· ·relatos inquisitoriaisse, deleitamem narrarem detalhes seo membro desonesto
.. penetrou o vasotraseiro; se:nelederrarnou .a. semente;.sea,sementefoi:dep osita<la
nas coxas, se.houve gemidos e prazeres, os historiadoressejulgam honestospor
sentarem em cima e esconderemqualquer vaso, qualquer membro,negando
qualquer prazer ougozo que advém do encontro com esses relatos, da escrita
. ·sobre·ess.es:temás86.• O historiador quer:nos convencer;que.-só_geme de cansaço
detrabalhar,queaúnica semente que deposita é ada sapiência em seus textos e
,que:seus:personagens.nãó •têm coxas, ·embora-possam.ser coxinhas. Consegue-se
fazer história das- homossexualidades sem:que.se fale em ânus,: pênis, nádegas,
peitos, músculos, suores, pelos; sem :que se fale sequer eiwpenetração anal, em
. 1-sexo oraL Os historiadores passaram a fazer história oral, adotaram com alegr.ia
• as;técnicas da história oral, dizemcom entusiasmo que as oralidades ,devem
habitar o texto ·do historiador, mas nem todas as oralidades e nem todas as
históriasorais. Há permissão para a fala da boca,não para o falona boca, por
,isso mesmo a fala dohistor.iador não deixa de sera fala dofalo.
Como a escravidão· foi· um regime de trabalho que insidia diretamente
.,sobre ·os corpos;que implicava a·eompra e a :venda de corpos, avaliados como
. ,mercadorias;:tratados diretamente como ferramentas; .como meios .de,pródução,
sujeitos a serem marcados, tatuados., •esearifrcados; torturados,- algemados,
··chicoteados, mutilados, a historiografia da escravidãoé uma das poucas
-"historiografias, quetratam do corpo, emboraxom as-mesmas•interdições ,que
• descreviaqui.Como ela teve que. se' defrontar-com umafostoripgrafia dássica
que não omitiua dimensão ,desejante, pulsional, erótica; sexuaFdas. relações
'entre.senhores e escravos, como:querià'sercrítica aos,sentidos conser:vadores e

.·· 85. Ver,por exemplo: VEYNE, Paul. !]legia erótirn romana. São Paulo: UNESP, 2015; ARIÉS,
Philippe e BÉJIN, André (orgs.), Bexuàlidades ocidentais. São Paulo:' Brasiliense, 1982;
··,FOUGAULT, 'MkheLHistória:da sexualidade 2: o uso dos prazeres. 7 ed. São Paulo: Graal,
1994; RODRIGUEZ,Rocío. Sodomía e Inquisición:elmiedo al castigo. Conesa: Ushuaia
ediciones. 2015; NAPHY, William. Born tobe gay: história da homossexualidade: .-Lisboa:
'· Edições '70, 2006,
• 86. Ver;•por exemplo,VAINFA.S,Ronàldo..(org.). Confissões da Bahia:-Santo Oficio dalnquisição
de Lisboa.SãoPaulo: Companhia das Letras, 1997.
87. Ver, por. exemplo:· LARA, SilviaHuno'ld..Camposdaviolência: escravos ecsenhores na
capitania doRio de Janeiro. São Paulo: Paz e Terra, 1988; REIS, Liana Maria. Crimes e
escravos na capitania de todosos negros(Minas Gerais, 1720-1800).SãoPaulo: Hucitec, 2008;
: MOTTA,-JoséFlávio. porposescravos,-vontades. livres,: São-Paulo: Fapesp/Annablume, 1999;
GOULART, JoséAlípio. Dafuga ao suicídio: aspectos de rebeldia doses.cravos no Brasil. Rio
deJaneiro:Conquista,1972; MATTOSO, Kátia Queirós. Serescravo no Brasil (sec. XVI-XIX).
••• PetróptHis:.Vozes; 2016.
·• .TECELAO.DOSTEMPOS

racistasquepresidiamessasanálises, muitas vezescaiu no extremoopostode


dessexualizaredeserotizar ocorpoescravo,ocorponegro". Comoo racismo
,:,se'4"~pro~úzià-r10Hrasil-tanibém:péláJorm;;tcomoo··corpo,negro·foi.tr~zid9-para
/,os:\é,xtO:siçlássicôs>'de:poss~;.historiogrâfia;1i:thist0ri9grafia contemporânea sobre
••. ;i:êsc.rayfâ;lo,'·muitas:vezesr;:caiu·natentaçãoi.denegarsas: dimensões :.sensíveis e
sentime ntais,afetivaspresentesnasrelações serihodajs,es.cravi;stas;,enfatizartdo,
'J;rtúita-sFVe.zes_:contrazão(·o:caráter-v:iolerito;:.agressivoi'autoritário;:!sádico dessas
relações.Mas,eupergunto,trazerpreferencialmenteo corpodonegro como
• : corpo escravizado contribui par.a,1:tma 'efétiVa4ÍlUdança na:Jorma de~:-ver:mos
• esses corpos, ,su~s.1,potenci'aJidaties;c,seus,:,;v:igores,>:suas;séduçôes,,suas'helezas,
• seus sofrimentos?Sendoumdospoucosmomentos .emque,:vemos uma,história
···'do§:C!:!rgos;9,ue;csófremi:;a•·histqiiografia;,da::esqrãv:idão:çontemporánea,·:,em.·sua
,.crít1ciC~ga,v.er~ãoJreyreanada:fostóriaidcrBrasil;.não-.c~iria'em,0utro,:·extremo
· ·ao,n·~ga'r'fdi_niénsãoerâticà{tde~éjante;"libídinàl~desses 'co:r.pQSMasados,imuitas
vezes comoinstrumentode sedução,visa ndoaconquista deuma 'vida, menos
/pênosi{"':k,11'e;!g~ç·ãoid.o·c.orpo:objet0tdo.torp:o:coisa;:do,c:orpo-rhercad0ria:dos
escravos,dosnegros,nãopassariapelavalorizaçãodaquiloque,nessescorpos,
isfgriífic~svidaF,'bêleza;;potência;,sedução;-:leveza,.:·àlém"de..revolta;.-rebelião e
_, re~istênê~,â ??~';~ãc:iha-vet-ia'\forn1as ,sutis, imicropolíticas ,de·resistência;·.es.cra:v;a,
de resistêncianegra? Amitologia'fálica e misógina :que cercam :o corpo -do
" negro e áa ·ntgra. no:füasiL:não.,podem ser• apenas substituídas por-.uma visão
quase crística,quasesacrificialdos corpos escr.avos.:Creio,.que,já, se produz no
uma
Brasil historiografia quechama!àtenção.-para:-o,;que de(sensível,. de•<afetivo,
deartístico,
, ..•...
'.~ :.
deético eestético
..
fizeram.nossas popillaç-ões,afrodescendentes91•

88. Para aerotizaçãodo corpoescravo, ver:FREYRE,Gilberto. Casa Grande..& Senzala. 51,ed.


0?Sãó,Paitló}Glçbal/2006hS6brados,-e Muçam/Jost:São:Paulo: Glóbali<2006,;W1:m(este. ".7· ed.

São Paulo: Global, 2004;PRADO,Paulo.Retratodo Brasil:·ensaio,·sobre a.tristeza;brasileira.


SãoPaulo: CompanhiadasLetras, 1999. •
• 89. • ,·ver:'FERNA'NDES,Floré$fan,:A.'integraçào.do)nlgronasoc1edàdéde·c/asses:iSãoPaulo:,.Atica,
• __ :?19.í'.8;'CA:RD?SO,'..FérnanâoHenrique.,CapitàJismo:e;:escraidâãO;rro;Brasil.meridiónaLRio
_ .- :'?de.JapeirÓi'Civilii;içãQ' Btã§iléit;i-,;i_oos(IANNifOétávi..o>As:-metamorfosesdo;escravo:,apogeu
• • : _- '"e.frise··da·escravatutaõ110!Bmsil?Sãô.·Pa\ilo:.Dife'l,-'L962.
a
90. Para historiografiaqueenfatizaoescravorebelado,ver:MOURA, Clóvis.Quilombos:
.··:•··•"tesfst,ênGia:,aoesérayi~ma?S~-.,êd, São'Paµlo: Ática,,f993;;REI_S,;Joãóc]osé.<Réb'élião.escrava ·no
• • • • • ,iB,r:i,lsit)'.Sã0;Paulo:CGgrppa!lhhLdasLetràs,"200~;:XAVIER;'RômµlôLµiz.Nascimento)J?a/mares:
.•. ,, :.-;,ps esÚa'✓-Óscantra 0°podétiâloniaf)SãóP-áiilo-:>Terceiro Nome;,2014; N1\SCIMENTO, Abdias.
•1,Qtti/Q,nbCJ: fídao!ptdblerria,s,e;<_asp_irações4o,.negr.o;Sãq!Paulo:;Editora34,-.2003::AZEVÊDO,

8êltaM1itià:Matilihci'\ie,fQrida:negia,úneçJ.o;bmnco: o,'négro nà:imagitrár-io,dasYt!litesdo 'século


XIX.3ed. SãoPaulo: Annablume,2008.
91. Ver:NASCIMENTO,Abdias.Orixás: osdeuses vivosdaÁfrica. Temple: TempleUniversity
. • Press,I997;13R:A;GM;4maridaJ:Ifstór:ici.da.bêleza-negra'nqBra.síl:-'discursos; corpos·e.práticas.
• ---1 ·,-.Sâd.iOatJo{':ED.U:JiSGARlill)l,5,;;ANT@NACCI,;MadaiAntoriieta;,Memórias:'ancDradas··em
_·. ,u:fJ~os·neg,:oiS2:';.;-edfEOUÇ; 2014:-:LARAi:Silviá2:Hun'0ld,;.Afemór-iatdo jongo:, a$:gravações
, históricasde StanleyJ.Stein(Vassouras,1949).2' ed.Rio ,,de.,Janeiro: Fólha·- Seca; 1008;
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 49

• -Mas,· seé fundamental politicamente denunciarmos as-heranças .e anàcronismos


senhorfais e escravistas presentes em nossa sociedade, não seria também
importante, como fez. Freyre pioneiramente,enfatizaras contribuições trazidas.
pelonegropara anossa cultura, em termosdealegria, beleza, magia, encanto,
sedução, na constituição de nossos próprios corpos? Sema reprodução de mitos
. fálicos e misóginos é•preciso • discutir, por exemplo,as contribuiçõesafricanas
à ·cultura sexuale erótica brasileira; para as.formas· de manifestação de.. afetos ·e
desejos,. para as formas de expressão de sentimentos,·sentidos e·valores, para: a
'constituição,de,nossas·corporeidades, das nossas.estéticas e estilos de existências,
para a constituição,daqi.rilo que os antropólogos nomeiam de ethos, de nossos
jeitos de estar no mundo, de pensá-lo, de signi..fi.cá-lo. Para o bem ou para o mal
• osafricanos-foramfuridamentais,paraa constituição do quese nomeia de nossa
·cultura popular, comsuasrebeldias e subserviências.Não saberemos maissobre
e
o Brasil sem que as sensibilidades denegros indígenas sejamhistoriadas, em
,sua diversidadeemutações-notempo e•espaços.
Já que estou.propondo uma nova maneita de escrever a. história,' que traga
• para ointerior do texto, .o.corpo, ·os sentimentos,·as paixões, .as ,sensibilidades,
'.tomo como exemplo, paradebate, o trabalho com alinguagem e com o arquivo,
o trabalho com o texto e com o passado, com a escrita e com 'o docwnento;que
., afinal é a. operação e relação nuclear na atividade historiadora, 'que foffeito por
-três escritoras portuguesas; _no.ano de 1971, e que-resultou num livrointitulado
• Novas Cartas Portuguesas92; livro.que levou-as suas.autoras a.serem processadas
peladitaduraportuguesa, acusadasde pornografia e atentado. aos bons costumes,
levadas a prestar depoimentos na polícia políticado regime, livro que teve
sua edição recolhida de todas as livrarias emmenos de três dias após o seu
· lançamento.. A, perseguição sofrida, pelas três Marias, como .ficaram conhecidas
,mundialmente MariaIsabel Barreno,MariaTeresa Horta e Maria Velho da
Costa; as autoràs do textotransgressor, tornou-se a primeira causa feminista
internacional, o primeiro evento que mobilizou o movimento de mulheres, ao
mesmo tempo, ern ;vários países ·do mundo. No texto, as mulheres; o ·corpo das
mulheres, o desejo-feminino, as emoções e sentimentos femininos, .a opressão
-sofrida pelas mulheres-são os temas recorrentes. Mas o livro não chamaatenção
apenas pela.temática que:aborda,·o escândalo..que provocou não seresume ao
que diz, mas como o diz, não. apenas o que .nele é falado, mas como nele se·-fala.
Otrabalho de escrita nele realizado é tão transgressor das regras·vigentes,para
o textoliterárioquanto os temas de que trata:amiséria, a desigualdade social, o
racismo,o sexismo, a misoginia, a guerracolonial, a ditadura.Para mexer com a

CUNHA,Maria Clementina Pereira da. "Não tá sopa": sambas e·sambistas no Rio deJaneiro
(1890-1930). Campinas: UNICAMP, 2016; PARES, Luís Nicolau, Aformação do candomblé:
história e ritual da naçãojeje naBahia. 2 ed. Campinas: UNICAMP)'2007,
92. BARRENO, Maria Isabel; HORTA,•Maria Teresa e COSTA, Maria Velho da. Novas cartas
portuguesas. Alfragide: Dom Quixote,2010.
.TECELÃO DOS;rEMPOS

'-'êensibili~ª.qé,idos!lêitore;Jn:otadamente,:dasc:leitoras;para'iazer,o::efeito.pólítico
. que desejavam - o despertardas mulheres portuguesaspara :sua :i:ondiç.ão. de
opressão,deexploração,demisériamaterial,sexual eafetiva -, oJivroreconre a
e :íês\râttgiá~J1.g:tátiyas'.inov;~'doms?;que,-põetn,em;questão:não1apenas:.os;valores
. •.• masculinosquehegemonizam acultura asociedade,comoas formas1iterárias e
. ,,·e,na1'tíi~i:yas.:qJ;l~'ás;3,;êpródtiziame:,repunham'no.pr.óprio:ato:de:esorever. .
' o
Desde tituloda obra,elase faz pelacitação do:ar:quivo:,asNovas, Gartas
Portuguesastomam comotexto matricial,como pretexto,umconjuntode cinco
cartas,pretensamenteescritasporumajovemfreiraenclausuradanoconvento
deBeja,MarianaAlcoforado, dirigidasaumnobrefrancêsporquemteria se
•.• ,;a.paixon(q:9;:~;que·.'a,p'areçer,pn..:publicadas'.na'·,França;·_em: 1669,, com,:chtítúlo "de
·.. 'LetttesV)ort,ygt,iÚs>'..Ü<;)liÍ:aJ;ríticatlitérátia::serdividind9:.,quanto_à autoria das
cartas, entreumsujeitofeminino,a própriaMariana, eumsujeitomasculino,
de
Gabriel-Joseph Guilleragues,elascausaramgrandeimpactotanto noséculo
. ···:XV;JI;:qu$ito'!nosrséêtjlosis,~guintesrsendmtràduiidas.':e-,püblicadas em. várias
línguas,apontodefazerdaenclausuradade .:B,eja um -mito literário -da.cultura
· · ., portuguesa.Em1969, apareceram ,re·efüta'dastem Portugal,numa . edição
.. · \bil,ú,lgue~::eopi/Jtâdt,tçã.o\qga:1e1ewEugênio,,deAndrade,ie:soho:título.'de,Gar.tas .
a
Portuguesas".Nelas, imagemfemininaque emerge éo estereótip.o:daémülher
•·>_;f/ãgih:s.ólitáda/aba,ndonad_a~Arítimaidesua;pâixão;'.suplicante·e;submissaºdiante
de seuhomemamado,alternandoadoraçãoeódioem relação aoobjeto .de. seu
·>:amor;<,Etitrt!J.oia:mone·i<devoção'-a'um,amado,;.queipartiu,para.não:rnaiscvoltar,
•· .. ••·énibótlftivesstpa't:.tjlhá'dd#o.:.inesmo.sentimento,.elcrpõe,em~discurso,sua,paixão
avassaladora,seudesejodeposse econquista, o quefaz ·com,que:.d cavâlheiro
dê ChamiU)t;fJ.ija:áióda'tiliji~ de,seu e::ontato. tEssas:.cartas_e ·o per,sonagem ·que
-.·.,as;'esc:reve:1Sã.o>torrrii:das~pêfas:..:ttês:.autoras·,como' materfal·~pata-:.o trabálho . de
montage m edesmontagemque fazememrelação a essaimagem dofeminino,
doimagináriomasculinoemtornodocorpo,dodesejO.,'iiios sentimentos·· e·••da
escritafemininas. Aescritabarrocadas cartàs:deMariana permite· a construção, .
\por' ,p:ârte)lâ~drê.S:iM:ariasfde::um:liv.ro'd:narcacj.o;;pelq.::excesso, .pelas,inúmeras
0

· ·'dQbntfe';yólµta~IJ.a,àãtiYâs,istilístie;as·e.subjetiv:as;que•constituem:pe.rsónagens,
cenárioseeventos.ComodiscuteGillesDeleuze,no barroco, adiferença se
. instaura pela pelo
dobra, plissadodas formasantesconsideradasclássicas. o
•Od1a01e~tâ,l,:jd;~l.lpetfi6ia,l;::toinados\<::,omoiatiiíbutos;iioffeminino;.comparecem
·\aqufJ:i9i'rfl?:~findplosdilosôficos,,e:.nart~tiv:osraotno;,a'.dimensão.:polítita:·que
tomaa criação dodiferentenaespessuramesma dasuperfície dalinguagem,
a
quetoma plasticidade dasformascomoum princípio ontológicoque vê na
da
possibilidade criação dointeiramenteoutroa partirdaforma consagrada,
t-,:.· .,. ',/:./ ' .... •.. ', ~ 1 ''

,c.-,·-:,·_1_
----------------- ·.... ' ' ' '

. }Z93. • ,: A.~di5:~ft;asileitá:':i\LCOFORADÓ,· Mãriart;'.iC,ár.tas,p(lr;tuguesas::-Porto,:AJ,egre:·L & PM,


. ,;~'19,97:/ •:,; • ...·. . • º . .· . . •.· . . •. • •

94. DELEUZE, Gilles. Adobra:Leibniz e o barroco.Campinas: Papirus, 1991.


DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JCNIOR 51

estabelecida, legítima, otrabalho mesmo da significaçãoe da escritura. Irao


arquivo, retirarde lá aforma canónica paradeformá-la,para dobrá-laaponto de
. devir outra radicalmente·,distintai fazer uma forma:morret para acontecer outra,
comoseessaformativessesidosubmetida a um acidente:que a teriaideformado
completamente, é o objetivo das autoras: e-de.quem partilha.:de uma,,ontologia
do acidente,,tal como,definiu.aJilósofa CatherineMalab6u95•
•. O subtítulódadô à obrajá de:saída.rndicia oduplo carátertransgress.ivo:que
terá o trabalho com a'linguagemecomo.arquivo,-quea:li'seráxealizado:··•'.Novas
Cartas Portuguesas, ou de cornó-Maina,Mendes. pôs ambas as mãossàbre o .seu
corpo·e:deu umpontapénocudosoutroslegítimos·superiorés"96:Esse subtítulo
é construído .a partir da ,referência intertextual-,aostítú:los)dos-.últimos -livros
que haviam Bido publicados pelas autoras e.que haviam causado polêmica, por
causadas temáticas deque tratavam:MainaMendes, de MariaVelho da Costa,
.publicado :eml969/A.mbas as. mãos·sobre. ocorpo, deMaria Teresa Hortae Os
·outrosJegitimos superiores, deMariaIsabel Barreno, publicados em1970%7• Além
do· recurso aouso intertextualdoarquivo,esse subtítulo transgride o queseria
. ao bom gosto-literário; o·pudorpretensamente,adequado e exigido das mulheres,
ao usar umpalavreadosópermitidoaos homens, emdadas circunstâncias. A
referênciaaocu,objeto sexual e de desejo profundamente· negado e- recalcado,
·;notadamente.numa·sociedade.machista e,·heteronormativa,além'_de-:violar o
que seria as regrasdebom gosto e beleza da escritaliterária, violariaoscódigos
:de' motalidade e decência,que pr.esidiamo discurs.o' feminino.. Ao classificar o
livro como um pontapé no cu daqueles senhores, legítimose superiores;.;que
-,dominavam o êânone,-literário, :mas também a -sociedade, as,três•autoras o
· ..inscrevemcomo uma verdadeira afronta-ao domínio dofalo (qual historiador
teria coragem de definir assim asuatese?). Ao associar a escrita com o corpo,
aofazer da escrita um processo de domíniosobre seus próprios -corpos, .de
poder sobre simesmas, à medidaque elasignificava colocar as duas mãos sobre
.os próprios corpos, ao dar o texto a funçãode afetar,de ferir,de magoar, de
fazer doer os corpos'mascúli.nos;.abordando-.os·:naquela·.região·corporal que
negam, que escondem, que consideramvergonhosa,efe minadora, queseria a
.,contraface do.falo;- ótifkio.quetorna o corpo masctilinopenetrável e,,portari.to,
·. violável emsua cara paça defensiva, queosaproxima perigosamentedo corpo
feni.inino;as autoras transgridem nalinguagema ordemda própria;corporeidade
• ·como.a define a sociedade.patriarcal·e-heterossexual.,Ao í::hamardogo,de cara
• aaten.ção.para o cu; .paranosso.olho,.cego,-ôlho completamente·não iluminista,

95. MALABOU, Catherine. Ontologia do acidente: ensaio sobre aplasticidade destrutiva.


• ..fJorianópÓlis: Cultúrà e Barhárie; .2014.
96 • BARRENO, MariaIsabel;HORTA, Maria Teresa e' GOSTA, Maria V:elho da: Qp. Git., p. 2.
97. COSTA-, 'Maria Velho da. Maina Mendes. Alfragide:DomQuixote, 1993;HORTA, Maria
Teresa. Ambas asmãos sobre ocorpo. Alfragide: Dom .Quixote,-2014; BARRENO;-Maria
.':Isabel. Os ·outros.iegítimossµpei!iores)Alfragide; Editorial Caminhoi 1997.
1 -

nãohumanista (aocontráriodeumcérebro eumarazãoespecializados, ·cu


todo animaltem),nãoracionalistaoupositivista (olhoque sófazcagada),para
a oposiçãoface/nádegasestruturantedaprópriaconstituiçãoda imagem do
corponoOcidente,comovai discutirAnthony·Giddens ~;.:elas,:indiciam;que. seu 9

trabalhoserátrabalho comoarquivo,trabalhocom alinguagem,mas Jamhém


trabalhocomocorpo, visandodarlugares eusosdistintos,visandoreinscrevê-
. i)O",em,C: <:>,útros;:(toi1,t~xt9·s/:A:lgunt!Jristoriador,1,ou,füstoriadora';•lembra-,que,.-seus
.·:,pets9nagêl_ls,::pos_su,êtri.:}af:ótgão;;álgum-:autor"de escritoshistoriogrâficos::.acha
0

_,.,rele\!:à:flte:atopô.siçãdfréijte-ê•trãsfáltoé,ba:bmque,c.onstituem~os'meridümos•que
• • •.:1estrutqram;no$s'os'Cotp:ôsfApenasMikhailiBakhtiil~~ ,iu.m .critko:literário;'•deuao
baixo corporalumestatuto histórico.Amaioriadenossos..colegas;não.consideram
relevantesaberdahomossexualidadede .seuSêperson~gens;ou .dos. autores que
:.:ánàlis.artl:fpara': ·eriteli4erêttr,:suas .·óbras e·:suastações,. omfazem ;,disso .apenas
motivodeescândaloe rebaixamentodooutro, ·embora;,a. :heterossexualidade
•• }s~Já,Í)aturàljzàda;estonítâ.a,'fü._IDOelementoconstituinte e:relevanteda vidados
· •:.sujéitq~{qUé?sãóibi(?gtâfidos·e:ána:lis-aclos,•0,quemlguémfaz,:corn·,seu traseiro
parecenãoter nenhumarelevância,embora o quelaz;:comcseuTalo •ou seus
genitaispareçaserfundamental._
· ·-•· "i,-:',l;ogo'nQ,.primeiró:texto1quê:Compõe'o1ivro,, intitUlada de tPritneira Garta .
, •-;m'+tº./,_!ifueifafüb'ém\iripv'if.eitt~sgtidemma,forma: canônica.,denumeração,
.\batrocamen.tei:éd6bràn.do,p,riúmer6i·se-afirmao•;valotdossentimentos;o valor
.· ,• .fip.á'ip'aii:ãor\<>?valotidcf,p1ath,mna:: consti;,1.,1ção.rla..,escrifa1,d0Jiv:ro.·· Ao:-iniciarem
;,:umà'obra;quertem!i.unidàrQ,.Sen,tidq;:polítiçOfque. consideramuma.intervenção
.. ,rpública:,em'defesa:\dain1udáqça".da1condição;;das.m.ulheres,ao construírem :um
. ··àe,x:tq:qtie~visápr<lâuiitci1Pvas:suj)jetividadesfemininas,emPortugal, as,autoras
·,êílãct.irrv;estehU:iumfüisc;uisrnriiilitante; racionàiizante;• dirigido·às,consciências,
elasnãonegam,masafirmamdesaída,que oque dáespecificidadeaotexto, o
\que,singg.làtiZâ1llll,'te~c\{~émulheres;ruttt~xto,es:crito.no.feminino:équede não
a
nega, nãorecalca, pretexto dacientificidade,daracionalidade,daseriedade,
dorigor,formasatribuídasaomasculino, aspaixões,adimensão sensível, os
sentimentosquepresidemtantoa idaaoarquivo, como afeitura danarrativa.
- /Elas.tõlôéam:se:~te.:xto:rio'.ih:terstítio:de•:dua:s.p:a:ixões/d&dois:sentirirentos _!.,um
• -' di.J;i_gfüo·aq;àrq].llvbfa:t,t·,passa,do:.r''O,séntimertto: de.nos_talgia;-,e::>outro:dirigido
ao
aofuturo, fazerfuturo-osentimentodevingança,quenão deixa de·· se
ligaraopassado,deseconstruirapartiresobre umpassado. Damesmaforma
quese sentenostalgiadealgoque passou,dealgoausente, anostalgiasendo a
---~,·-··)'•. ·<•:·,, '-<: • ; ,-:·.·' • - • • •

. ··.A9.8:\E\:Yet;.GfDpENS-,h\fí4ionyJíttran,sf0.tmrtçã0_é.:da1;n;imidade:,sexuiilldade, ,amotr e erotismo


nassociedadesmodernas. 2ed.SãoPaulo:Unesp,2003..-
...•. f99.., /J,!3A~J'JN;:r;4ikh'.éiil;.A:;c,µ/t,u_ra.popularna Idàde:.1.í!édià:elnó Renascimento.qª ed.'.SãoiPaulo:

n {li? ssoo.ocoo.morto.o.rsr-cosA. o»
• · ·'O'\Telb'ci;''9,pj'.Gi~,;,p;;.$.·. .,. _, . • • •
DURVALMUNIZDE ALBUQUERQUE )ÚN1OR 53

consciênciadaperdairremediávelde algo oualguém, avingança se tramaa partir


de algo que ocorreu, de algo quese passou,elaadvémcomo resposta futura e
planejada, ela advém··comoacerto .de contas,,em relação,a<algo que foHeito,,por
· :alguém anteriormente>Esses seritimentosJreúnem:asttês autoras naescritado
• texto,essessentimento5fazem dastrês•uma só, violando a própria função autor,
tal comoa modernidade a instituiu.Astrês Marias, as trêsmulheres reunidas
- pela•paixão;pelanostaJgia epelavingança,tomam~seau.toras, ao.mesmo tempo,
- • ·múltiplasAÍÍlicàs.eanônimas. Elasjamaisrevelararn; mesmo quando interpeladas
,pela polícia e pelajustiça/quepartes do,livro teria,sido··escrita por.cada-uma
1

delas. Elas efetuam,assim, aprópriatransgressão dafunção de autoria,esse lugar


da soberania masculina, de suaconstrução comoseresúnicos, geniais,heroicos,
· ,como singular,idadesmemoráveis,provocando um curto-circuito no poder do
Estado quepara atribuir uma imputação de crimeeuma pena necessitava de
uma autoria. Ao assumirem a identidadede umamorta, de umaautora :que já
havia morrido, ao escreverememseu nome, fazem-na novamente ter presença
:. e,aomesmo.tempo,através:dela'se-desvanecem.como sujeitos, Elas nomadizam
nos códigos que definem a escrita-literária; Como mulheresquesão, parecem
dizerquenão hánalinguagemmasculina lugar para elas se 'iti:screverem, a· não
ser comoausência, como fuga, como deslizamentoefissuraconstantes.Fazer
.·. da autoria uni vazio permitia abriruma·brecha nalinguagemliteráda':para se
•-Oizer,ointeidito,trazer,para a:realídade-devires dorealatéentãcHnomináveis.A
escolha dos mortos dos quais assumimos a palavra éumdos desafios políticos
mais importantes paraos historiadores. Gesto .político•de constitui.ção de
au.tor-iapartilhada, de Urtlaautor,ia constituída por seres que partilham a mesma
condiçãominoritária.Enquanto oshomens sedigladiam na cenapúblicapara
apareceremcomoexcepcionais, enquanto a 'rivalidade masculina dá otom nas
. diatfibes; inclusive acadêmicas, inclusive historiográficas, homens querendo
:rebaixar, Jdesqua:lificar, destruir como inimigosos outros, para se afirmarem
• enquanto'iridiyidualidade extraordinária,as três·Marias se fundem num gesto :de
•.• irmandade; desolidariedade, desororidade, gesto deempatiaecompanheirismo
o
entre mulheres. As três assumem lugar de autoriadeuma quartamulher, a
·sororMariana Alcoforado;afrmã .que sefaz presença no.arquivo; a vozfeminina
queas precedeu, ·,que,primeiro •.se· enunciçm ,solitária .entre vozes-:masculinas.
Elas comela ·se fundem,. fazendo ,sua;voz:novamente, · reverberar no,,presente,
• :.no.stalgicamente reperctitida,anacronicamente,<dizendo numa linguagem
1

· prete.Bsamente 'passadaa-contecime,ntos.do 'presente. :Assim··.como·Mariana, as


. 'três.autoras,•a,;voz;a·esi:rita,dastrês:autoras,vêm a ser,=·devêm,, se'Virtualizam
emmuitas outrasmulheres que aparecemreferidasenomeadasao longodo
• ·livro. ·o·próprionomeMarianase desdobrano nomedeoutras mulheres, Maria,
Ana, AnaMaria, indiciandoo caráter coletivo da condiçãofeminina. Os nomes,
- tão importantes- na individuaçãomasculina,se ,referem aqui a uma condição
partilhada,vividacoletivamente pelas mulheres. Objetivo político máximo a
• alcançar:quesuasvozes,que suasfalas;. seus.'.d;itos e;,esçritos:fo.ssem :assumidos,
encarnados,subjetivados pormuitasoutrasmulheres.Aoinvés deumaescrita
masculinaqueindividualiza,que separa, queconflita,umaescritafeminina em
queoEusedissolve,emqueoego sedissipaem direçãoaoid,porumdrible
nosuperego,escrita emqueapaixão ea pulsão,emque .o.:âfeto e o·inconscjente
dissolvemosujeitomasculino,razoávele centrado emtornodafala e·,do:Jalo.
o··Significan tepor excelênciadocorpo,daracionalidade e <la 'escrita ,masç-ulina,
falose vêaquisubstituídoporaquilo que,pormuitotempo,foi apresentado
.J1él~\J9sitaj:í,áJisfcomo:.oftle.stino-e:'o''d~finidor-·inesmO"dOffemitlino,.a',.falta<lo
• falo, oburaco,oocodavaginaoudocu,imagemdacastração,do nada,da
impossibilidademesmade significar,defazer sentido.·próp:rio:
• ):{; ';•.:'$~:::, ,:,:"' '• : . . . ..· ..
•Nãoserá, portanto, necessárioperguntarmo-nosseoque nosjunta é a paixão
' • comumde exercíciosdiferentes,ou exÚcjdo .ooniúmlde pàtxõesdiferentes.
1

• •" :-r é'rÍ?9r,grt#:·~9:n:os •;perg'untaremo.s;,então.<quâh:01,.modo ,de ,nosso.,exerdcto,, se


. s-L-::/:11óstaJgiá,.se"-viµgaç..çá:Sim;sem.dúvida;:quencistalgia étambém umaformade
vingança,evingançaumaformade nostalgia; emambos oscasos procuramos
ih o quenão nosfariarecuar; o,,que.'i1ão.mosCfaria;:'destniir.1•Mas, rião: deixa .a .
i paixãode ser aforça eo exercício o sentido. .
···,,r:,}/:~'Sifdé:nqsfijgiàs'Jaremos\Uma::frman4a'dee.;um;•conv:ento/SqrorMariana·de
·•, i • '. ·• ;ri:tihccttartlis?S(>ide:s~ganças;.farernos;um .Outubro,:um Maio;.. enovo:mês
• • ..• . paracobrirocalendário.Ede íiós; 01qudarenros'? 101

·• · Perguntaquenão quer calarparanóshistoriadoresdas sensibilidades: o


·i:que·farémos·dehgs,'.dess:ê,lµgarrdeJa1a:qut;i;áSSÍ11nimo·s;s:vam.os;continuar:fazendo
Pdelé,õ'.'lqgat\dá'fala:dct;falo?Namos,çoJitinuarfalàndo'dos.1sentimentos·como,·se
':êles·n;ãô'hal:füas~em nossos1persdnagensiNamos .cohtinuartratando;os ·eventos
··' comoobjetos racionalizadosecolhidosa pinça, ,como•·espéc;:imes.estranhos?
• • Vamos continuarnosrecusandoafazerdapaixãotexto,vamos continuar nos
recusmidoap.ôro·Corpoem,1i-ossos·escritos,·vamoscontin:uarnegarido•.osdesejos
, e aeró:tica;,:9.uedmplic:a 9.ptóp.doato'dees0revet?.Vam0s~corttinuati fingindo.que
a. escrita'do,texto·.nãoJiá-;pràzer;,,qrte-suaJeiturasnão.'é,da.orderiHdo gozo; ;que
. ·,vei1~1h~·pto:ntoJ1ão.éumâesp'êde.tlet>rgasmo/único,;(:)l'gasmo':múltipl0•quenos
•,.é,conç~tli,do:.como:;hi,storiaq.otésiinveja!das.\.hístorfa."doras,ialém..da.-,orgasmo
:,m.últi:pí6.1ainda;;p.óde1il,:gozar·,no;;texto··e âo:textd)tVamos,continuar,,n:egando
• • 'que:~ossas.:éscôlhaS:d~objetoJenrumifdimensãoideseja:ntê;,pülsional;'l1âssiorral?
Vamoscontinuarnegando que ospersonagensqueescolhemospassapela
•••• e0Jpátia,:pela!simpati~í;pçla·antipâtia;.p.o:ttànto,'pefo,p-athos?Atê.quan:do·-vamos
1

· :-·'.'contiriíiai;,:nessàl<iêfé.sa:;patéti.ca.1de.,1Jma,dâdaim~gem:,.da':biel'ftifréida:de,.do·· rigor,
• -•- • .. ' . _., 1 ,·

101. PrimeiraCartaI. In:BARRENO,MariaIsabel; HORTA, MariaTeresa e COSTA,Maria


.·;-; ;:Nelhcfpp,:·qt:'fpi3. ' • : . · · • ·•·· .. · , . . · . , •••• · •• • ' • ·
DURVALMUNIZ DE ALBUQUERQUEJÚNIOR

• da seriedade, dametódica tarefa do historiador? Sim; patética, porque nessas


. diatribes em· defesa da :sacrossanta e ameaçada:virgindade da deusa. Clio; nessa
enunciação permanenteide suascrises quase .histéricas {quando São·mesmo é
estéreis, pois autocentradasnumavisão masculina da ciência e do mundo), - e só
uma mulherpara vivertanto em crise - a defesa deumsaber, deumdiscursoque
pormuitotempofoimonopóliomasculino,por muito tempo .esteve a•serviço do
poder e da dominação doshomens ocidentais, .que por muito tempo se comprazia
em ser uma narrativa épica devitórias e batalhas entre homens, em busca da
•. conquista, dopredomínio,da dominação, da subordinação,, da ,colonização de
povos, ·espaços, culturas,,etnias, das mulheres, de todos aquelesconsiderados
.pouco razoáveis e.dvilizados'. Se o coletivo singularHistória emergiu na passagem
. do séouloXVIU para.o século XIX, corno.discutéKoselleck1º\ essa damavetusta
se destinava ao controle, à decifração,aodomínio doshistoriadores,homens
curiosos em desvendar os segredos dessa senhora impávida.Muitos aindariem
efazem mossa da presença de objetos como esses queestudam a históriadas
sensibilidades. Omesmoriso condescendente e de-pretensa superioridade;que
:os homens costumam dirigiràs mulheres, que costumamutilizar quando se
veem diantede práticas, gestos, falas, coisasdemulher, assim como diantede
coisas de "fresco", de "veado.
,Quando vamos ,admitir que nos movem as -paixões .quando escrevemos
·histói:ia;inclusive quando escrevemos.aquelares·enha;pretensamente acadêmica,
ou seja, ·destinada a fazeruma análise do texto dealguém de ·.quem não se gosta,
de ,alguém- com quem não se simpatiza? ·Quando vamosfazer a história das
invejas quemovem muitas práticas e discursosno meiohistoriográfico?Inclusive
a inveja e odespeito pornãoseconseguirescrever com abeleza e a ·qualidade
. com ·que o outro escreve? Quando vamos analisar;em nossos textos;.as emoções,
os sentimentos queestiveramna·base de suafeiturà? Os·romârtticos o fizeram
tão bem no séculoXIXo Para que nossa:escrita da históriapossa contribuir para
mudar o mundo, ,as :relações entre as pessoas;· nossas relações com· os corpos,
com os desejos, com os prazeres;;para :que·façamos um Outubro (referência à
revolução bolchevique), ou um Maio (referência ao maio de1968) em nosso
• ofício temos que começar por-novos exercícios no ato deescrever, usando escritas
passadas comopretexto, mas sabendo-asde seu tempo,sabendo-as perdidasem
..seu sentido primeiro, delas se utilizando para produzir-uma nova escrita, um
novo texto, urnanovâfala,· que não nasça dos desejos 'de .preva:lência; dominação
e poder. Esqueçamos.os, caga· regras, os definidores de métodos e metodologias,
• . os codificadores de práticas e discursos, os policiais dá historiografia, saiamos
'do armário em que ·querem aprisionar nossos desejos de feminino, de criação
sensível de relatos sobre o passado, inclusive desconfiando de-qualquer definição
dada para esseJemin:ino, como. para o masculino;:fazendo deles, aquilo que

102. KOSELLECK, Reinhart. O conceito de História. Belo Horizonte: Autêntica,2013.


-?rECELÃODOS,'fEMPOS

três
fizeramas Marias: uma interrogação,uma dúvida,umaescavação,uma
procura permanente no interior da próprialinguagem. Não setrata de repor o
,· , binarismodasidentidades de gêri:ero; de acrescentar;o que setia identificado com
o femininoemdetrimentodomasculino,mas de ultrapassar, essa clivisão;ir para
<i14111<dela.:,ffomàr á:forruniho':como/o:i:tórtice·do .sentido fixado no masculino,
fazê-lo fluirsemumaoutrafixação num -pretensofei:riinino essericializ.ado,
vê-locomoaperdiçãodo serpensadoe dito comomasculino, "ooculto onde
se o
omistério escondeu", buracovazio poronde escapatodas as-paralisias do
- cSentt4ç;:::totfos:0,s.-sig1füicados.'-binârios.;e,cristâlizados:na • dicotomia de lugares
.--.'.de:)gênerq:'-É;:preciso,escrever':história•das.sensibilidades, mas,acima ·de.tudo/ é
precisodeixarpassarnesses escritos.novas :se:rrsibilidâdes,êé preciso.materializar
.. _ noJe#õ:histotio.grâficaessanoya:maneira·de.entrar em contatocomo·arquivo,
, ~dé'fâier'.áekusp".criativo,\defaz.er;d-eleuso ·pólítico,:ético e,estético. Não adianta
..·,a.clidô~ar.:Ínais~urri:cam.pó:àfüistotiografü:1,para·ele.continuar'Se,r:egendopelas
mesmasregrasditasobrigatórias,universais, ,irrecorríveis,sinescapáveis ., que
<fütàn:i;tornôise·deve esctever._afüistória;,porque,:assim,é quesempre's.e·pensou
, ozrnun:âkdomrnado- e·hegemonizado por:um--masculino~que:também ,sempre
se quisestáticoesoberano,sempre se quis•comoJruto do !dever. Nãotomemos
- nosso ofício comodever, como dívida, mas como dispêndio; como alegria, como
_. prazer dagestação,dopartode um corpo,escrito.Gapaz de afetar,- de seduzir; de
- atrair,de marcar,defazerefeito, de,-seduzir, 'de c:onquistar,,de emocionar, defazer
. arrepiar os corpos,de bolinar os espíritos ,dos ,leitores:
'·;,sRisó•b~eve,deixamos'sobre'ascoisas;.iretornando:deonde:nuncafôramos .. E
assimnosexpomosumasàs outras, c-Ohtando-nos,talvez .um.homem;sim,
porémde nósnemsempre os homens,maso nossoespaço vazio, anossa
,,'.daiidade:sufocante,a voragem;ide;tudo_ o.:que tocamos,. a~nossa·corrstante
• <descobêrta dos,contornosimprêéisOs,'clos pei:fisexatoS;;da'dureza,das formas.
De tidizes fluida, demimv.idroe de. tLmilhano:,(mosto, mastro); De.mim
desejo: o corpo àdescoberta doj:,razer eapaixão queme engana;deimediato,
• :,:des~jo(e;eu,sobrea,paixão,como,seap:ossuíssetódanumlongo actodeamor
semesperma mas meu suco.
Possívelseráser-se mulhersemser fruto?"0?

103. PrimeiraCartaIII.In:BARRENO,MariaIsabel; :HOR.TA,.Mariâ,TeresaeCOSTA/ Maria


Velho.O.Cit.,p.33.
.Capítulo 3

A poética doarquivo:
as múltiplas camadas semiológicase
temporais implicadas na prática da
pesquisa histórica.

Tão baço o teu retrato


No álbum da lembrança!
Que.vaga semelhança
Entre a imagem que vejo
Ea dor que sinto!
Minto
Se te disser
Que te desejo ainda,
Que o meu instinto
Te reconhece e quer.
Esei que um diame perdi
Em ti
Como se perde o homem na mulher.
(Arquivo, Miguel Torga)"

1. Templo da perda, tempo de pedra

Perder-seno arquivo, gesto comumao historiador. Gesto paradoxal; pois ele


vai ao arquivo paraalgo encontrar, para se encontrar com a história, Na ânsia de
encontrar o que procura, ele começa 'por perder a própria presençamaterial do
arquivo. Na busca por conhecer, o primeiro gesto é de desconhecimento. Vai-se
ao arquivo, mas ele não é reconhecido. Atravessa-se tantas vezes aquelasportas,

104. TORGA, Miguel. "Arquivo". In:Diário, vols. XIII a XVI. 5° ed. Alfragide: Dom Quixote,
2011, p. 28.
. :J'ECELAO:DOSTE:MPOS.

que seabremparaadocumentaçãodesejada,mas nuncasedeseja saber desde


. ·:'.\iquando,el~S•.estão âpehas;-,qµem as(CQnStruil;l, :quemas fran:queou;ao:acesso. dos
• pesquisadores.Aoperder-seno arquivo,o historiador:tende·a p.erdeno:arquivo,
comoquestão,como problema, como uma camadade tempoque condiciona a
que
leituradaquilo eleguarda.Tem plodas perdas,espaçodestinadoaguardar
ascoisasquerestaramdos temposquese perderam, ·o arquivoé:umtempo de
um
pedra, monumento destinadoalembrardadaépoca, dadaautoridadepolítica
··e:<:úiforâk:qu~:0)itstituiu;·•Antes:d_eser;úmdepó,sit0';de,,documentos~;o,arquivo
é um espaço:é.tqctitétônjçq,éirtstihício11aliAntes,de:entrarmos em contato com
:c_os tempo~quecrfe,lé,srasumwam;1ná'.formadevestígios,•derastros,·d~,restos, de
. •;s.inats;ide"~ign◊sJ·o.ârqiliv9.já,r.emete,elemesmo,:pata:outras.ten1poràlidades·.que,
seconhecidas, ajudariam naleiturae nainterpretação da.quilo .que ·ele. guarda,
·,\ie..seu,acervo:•áJt:êrnpoiàlidade,:de,sua'institui~ão•e,de,sua·con:stituição.
CõmqribsJegípra.:;Jaçqu.es.Dertid;:wap,alavra,1arquiv:o,v~mdq·.grego.arkhê;
que designa, aomesmotempo, ocomeço e o comandcirºt O arquiv:o,nos abriria
..., as portas parasabermos onde ·as coisas. começaram,-para perscrutarmos. a
origem dascoisas.Localdeescavaçãodosprincípios,doscomeços, lugar da
arqueologiadenósmesmos. Mas por .que.• nunca:perguntamos.pela·•ol'igem, do
:: :·tptóprio;arquivb?:E.ssà,o~igem,nunca:'épbliticamenteneutra; Oarquivoinstaura
umcomando, encarnaumalei, ele é instituído e'.'institúinte.. Ele.instaura·.uma
•• lei daseleção, daseparação,dadesignação doque é arquivável .ou,frão:· Ele se
instituicomoum espaço àparte,comoum espaçode·guarda, de dassíficação;de
•. /otdenamento, de áva;li~Wãp;denomeí;l~ão,.de.distribuição,·designificação, do·que
• • : éalidepositado.Oarquivonãoremete apenas, aos:começose:aos comandos, ele é
começo ecomando.Oarquivo nãoapenasnos·abre·:as p.ortas,para.outros-tempos,
• ;:-ele foi cnnstitúfdo e·çónstrtjído .em·outros. tempos'dos ·quais dáctestemunho; O
: • .. :: a:rquivo.é,testâm'~ri:t6•êJes.teIJiúhhói:Ao p.ararm:os~ potta,detun1ai;quivo;,ajgumas
)perguntasiS~ iq1põ'eíi):,qÜartdo esse:arqµiyO'foi institucionalizado?,,Quem O foz? ·
Comque objetivos?O prédioqueeleocupa,quando foi·construído?·,por;quem?
Com·queJin·aii~éiddEssf:pré:diôJásmgiu,comós.ede·de·umarqúi:vo?1?ara'üm
o
·:. ·.·.f leitordos tempos,como é caso do historiadorr?:,ariâlise:de:uma:,documehtação.
• ,:deve começarpor sualocalizaçãofísicaeinstitucional. Oarquivo começa a falar
dostempos antesmesmoque cruzemosseusumbrais.
. .· · A disciplinarizaçãodo saberhistórico,apartirdoséculo XIX, suacrescente
na a
inserção vidauniversitária, produção de umahistoriografia académica,
\corii,pretên,sõis,~é\tíentifit:iÔádeifohmôtHficando ,as. estruturas :do::sensíVél 106,
:Jai,s~n~ibiJidtiQ~i/qq~ ;cond{çionivanlia·.relaçãctdà· ·estudioso-do1·passad.o;<· · dos
..;rt·:~::.J.{-::r·:::.. .:,j·\·--- ~t;).. ·::· · ·'•' - - •• • -
e_e__.g_e3±i. #i

. 105. DERRIDA,Jacques.Mal dearquivo: umaimpressão fr eudiana.Ri o de Janeiro: Relume


· . ,, Dumatá;;-2001,:p'.-Ü. . • • • • ·• • . · . • • • • • •• •
a
106. Para noçãode estruturadosensível,ver: CORBIN ,,t>lairr.:Sàberes e"odores: o·olfato e o
•·. diftçgfriárioJôÚahhos.s~éúlqs'Xylll'éXIX..SãoPatilq:C.ompanhia.dasLetras;J987, p'.]0-11.
DURVAL ·MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNlOR 59

historiadores, comaquilo que nos chega, de material, dos tempos .idos. A


'metodização do trabalho do historiador,levada a efei-to, inicialmente, pela
historiografia germânica;. tratou. de se contrapor à sensibilidade romârttica, que
nt1tria.ó·interessepelopassado por partedas camadasletradas dás populações
europeias, entre o finaLdoséculó XV-III e meadosdo séculoXIX. Atualizando,em
• grande medida, assensibilidades antiquária e erudita, o romantismo não cessava
de produzir·o interesse, diria mesmo a paixão, pelos monumentos do passado,
. por suas mínas,pelas construções-e instituições que tinham cheiro de passado.
O verdadeiro prazer e deslumbramento produztdo pelo contato com a pátina do
tempo, com o cheiro·do bolor; com o esverdeado dó lodo; pelo estar nos lugares
·e sítios onde ocorreram importantes eventos do passado,Joi sendo substituído
por uma crescente insensibilidade ou distanciamento em relação· a essas coisas
de antanho. Centrada quase que numaverdadeira adoração dodocumento
escrito, narnetódicaanáliseinterna e externa do alfarrábio ou catapárcio antigo,
• ·- o historiadorfoiperdendo em sensibilidade para as càisas·-rnateriais, - para-os
.. próprios monumentos, prédios;• instituições onde esses'documentos -passaram
a ser guardados""7•
. Essa insensibilidade parece ir se acentuando- à medida que a progressiva
divisão do trabalho reservou ao arqueólogo ou .ao museólogo a atenção para
• as camadas detemporalidade que se expressam nos restos materiais, nos
monumentos, nos objetos. Ao mesmo tempo,odesenvolvimento da arquivologia
eda arquivísticacomo:áreas de saber fez com que a dimensão institucional,· legal,
normativa dosarquivos tambémpassassem aolargo do trabalho dohistoriador.
Mesmo a chamada crítica externa do documento, uma etapafundamentalno
que seria o tnétodo heurístico, a metodologia.por- excelência do trabalho' do
historiador, passou a ser tarefa, ·em grande medida, reservada ao arquivista.
É ele que· pesquisa sobre a autenticidade do documento, é ·ele :que procura
datar a documentação, é ele que tentaatribuirautoria a dado documento, é
ele que verifica: possíveis o.corrências de falsificação, adulteração, interpolação,
fraude documental. Antes de fazer parte do acervo, de constituiralgum fundo
documental,qualquer aquisição do arquivo passa por essas operações que
.ganhama conotação de-operações técnicas,•encobtindoe mascarando-o quenelas
temde operações políticas e de dotação desentidos e significados. As atividades
dos trabalhadores doarquivo,as operações querealizam com adocumentação,
constituem.temporalidades e,gignificações que; muitas vezes, são desconhecidas
e .não· levadas em conta pelo historiador na· hora de- atribuir sentido e fazer a
leitura de um documento"0%,

107. Ver: NAXARA, Márcia Capelari. Cientificismo e sensibilidade romântica. ,Brasília: -UNB,
'2004.
108. Ver: ROUSSEAU, Jean-Yves. Os fundamentos da ,disciplina arquiv{stica;: Alfragide:.Dom
Quixote, 1998; POULOT, Dominique. Museu e museologia. Belo Horizonte: Autêntica,
2013;.RAMOS, Francisco Régis Lopes. Adanação doobjeto: o museu no ensino da-história.
,TECELÃO· DOS f!,:MPOS

:: ... :•.··_. ', ••:_,. ..:·-::.,:.,_,_,,,:- i.( ,.---.,'. ' _: .• ,

.• ··•·~;()iiófubate.1ststêmática;à<serts1\jilidade,an:tiquária.e;ià:erudi:ção,,ro.mântica,
·• ':\ha.:tstêirâidaiçiêjitifiiâçã9;da,histoti:ografià,,,se'fazpresente:mesmo:em um.cdtiço .
....· ·•·.,uct:histôtíçismo•io'moh:Milóstif0~füiêdr-i'oli:Nietzsche:quando;;em.seuc!:famado
textoDa utilidadeedesvantagemdahistóriapara avida, criticao quechamade
e
históriasantiquária monumental".Emnomedaafirmaçãodavida, da vontade
depotência,Nietzschevaialertarparaoperigo queseriapara a existência esse
cumularo presente coma
presençadopassado, esseapegoàs coisas grandiosas
realizadaspelosantepassados,essaadoração aosmonumentos de épocaspassadas
pois,segundo ele,esse apego passadoinibiria acriaçãodonovo, levariaao ao
niilismona medidaemque,ao considerarmos quetudo de.:grandioso,,,que -se
poderia fazerjáteriasidofeito,isso levaria. a·.:uma .vida: descrente "em nov.as
• possíveis grandezas. Omitodo progresso,em gue.-vamos sendo .educados na
. . ;,irifülêt.rtiélàüe;va{levando .a um 'desprezo:eurrta.i.t'fsensibilida:de crescentes diante
<:do;que,vem;do;,pa:ssi~.o~rárádóxalmente;:mesmo;entre.os:historiadores.
.si
2.Soberanosdocumentos, sobradostempos..
,.><f'•.XD:histcinàdrif::fihhl;rnente tememm~OS:O':queprocura/oque:veio encontrar:
\.\odocktiênJo/Baç9·:t:etn~torio;álbunidâle,mbrança1,Fragmentoide presença de um
tempoquesefoi.Muitas vezes,a simpleschegada dodocumento,trazido.. pelas.
mãosdeum operador técnicodo ·aJquiv:ofdispara,wna,eno.rmeemoção..Todo
ocorpodohistoriador secomove,aoabriraquelacarpetaamarelada, amarrada
0/por:,cord:õ:~s,:téssêeados:e'1-desbôtarlos; ·ao. retirar·de seu,interior,a;.folha::depapel,

o a
afotografia, jornal, partitura,oroteiro, a eatta; há,muito ;tempo:desejados.
Umafelicidadeo invade,umprazerindescritível se 'apossa de seu ,corpo• ao
,::toêâr:.o únêsmó:.qp.jêtp!que:,pertencewao '.súj eito-q_ue~inspiraisua curiósidade e
1::sua:âf~içãô:;Ws'.1ve:les;Caoler{o:.qÚeneleestá,;escrito/lágrimasteitnam em,:a:tlorar
nos olhos,
tendoqueescondê-lasdaqueles que ;estão; em <'mesas;ptóximas,
·?tefu,e~g§O,,~u,temêrosa 'de,:p.ôr.,,vperdeno:\documefito;,mancha.rido';O::Com,suas
'mãos:emtjcio11ââas;'suada.s/:trêmúlas;{füjicültarido •reproduzi~lonatela de seu
. ,,ce>,tp.putàp,ó,i';:(;)ritras:Vezes':i"umenorme;praze-r,,uína,;sát.isfação;s'uhia;sensaçãode
:.plerutii,4e;'de'tjever:cuiaj.pndo·s·e.instaur~à•médida··quevemos,atravésMa,.câmara
digital,uma massadocumentalmudar desuporte e devfr<outra·•ndinterior•· de
')1Ó~S0'~onjpµtii:dof{O'üeséjo1id~.posse;de.complétude;tle:,p1enitude;,se.vêatendido
poressaacumulaçãodocumental, mais-valiadohistoriador. Noentanto,na •.
horadeescrevera introduçãodamonografiadefinaldecurso,nomomentoda
discussãometodológicaquedeve
'' ,,.
·~/ ;., ,\ • . .
abrira esçritadafdissertação/e:iatesef dó-livro,
•' .

. ; ';: . .<Gh.i,pé\;ó;,ArgosÇ.2004.... · • •
109. '}NIEiZSêHE;.cfrié'élrith/í:Wa ,utiliélàrle-.·é',desvantagem: dài-hisforia".p ara a Vida". ,ln:
• • , .•.• · :i:J.;Con#derqça~'E~té171pdt4n~ás,:Q,fPénsàdores;.:vôLJfr5IêfüSãaRaulo{Ndvà.'Cultural, :1991,
,}\P.f:22';'34,, e •
'DURVAL MUNIZ DEALI\UQUERQUE.JÚNJOR 61

todos esses momentos,todas essas·sensações;<todas essas vivências; experiências,


. emoções; serão ignoradas, serão apagadas,,serãomantidas em silêncio; porque
.• nas culturas cristãs, na cultura acadêmica positivista;,cnas·concepçôes de ciência
prevalecentesno mundo contemporâneo,nãohálugar parao corpo e suas
-sensações, não liilugar para :os afetos, não há lugar paraas emoções,não há
lugar para os momentos defruição e prazer, só para os,,momentos de trabalho e
sacrifício, Como. bons cristãos, iremos falar. dos percalços da pesquisa, mas não
de seus prazeres;-alegrias e sensações: E,·nesse,esquecimento do corpo próprio,
o esquecimento do próprio corpo dodocumento, do,.corpus,documental, o
. esquecimento das váriastemporalidades que essas experiências,que essas
:memórias,. inclusive. corporais, .encarnam, expressam-:. O historiatlor · começa
por esquecer-se dos tempos doarquivo, continua por esquecer-se dos tempos
'do corpo próprio e do corpo do documento; de·sua,rnateríâlidade.
Encegueiradopela busca dainformação, do dado, do evento,·do.discurso,
da imagem, dafigura,o historiador pode até seemocionar,pode até ser
profundamente: afetado pelo-contato com amaterialidade, com o ·chamado
suporte documental,mas pouco o· leva. em. conta nahora de sua :análise.. As
camadas de tempo que estão· incrustadas, .materializadas naquek·suporte,
parecem não fazersentidona hora daanálise do evento que o,hlstoriador está
usando. Poucossãoaquelesque atentampara as marcas que a passagem do
,tempo deixou na própria pele do.objeto; domaterial;da documentação. Quemse
lembrará dereportar-ófato de.que o jornal queserviudebasepara a sua pesquisa
estavaamarelado, estava ressecado, estava rasgado,fendido,fedido, manchado,
borrado. Talvez isso seja referido apenas como desculpa por não· se.ter acessado
:dadas informações>Mas as marcasternporais quedas significam, parecem não
fazer sentido para o historiador. O ,fato de um documento estar claramente
marcado porum-àlagamento'0U u:ma goteira;o fato demarcas de sangue estarem
·presentes em dado suporte ,documental;· parece não -serlevado em conta como
•marcadores temporais, como· signos que indiciamalocalização temporaldaquele
própr:iodocumento.'Essasoperações·que faziamparte da chamada-crítica externa
do documento,ao ser entregues, em grande medida, às chamadas ciências
auxiliares dahistoriografia, terminou porinsensibilizar o historiadorparaessas
marcas e presençasdo tempo .queha:bitamtodo e qualquerarquivo...cMesmo as
marcasde grampos 'e dips, mesmo .os furos, que foram feitos no documento
paraacondicioná4os, ,encadernações; o,tipo,de pastas ·e carpetas em: que estão
guardados, falam do destino e descaminhosdopróprio documento, indiciam
que o documentonão só contéma.história, masele tem umahistória, inclusive
institucional. Elesofreu operações,:elesofreu-restaurações, ele-foi submetido a
uma dada ordem e auma dada classificação; ele se encontra numa distribuição
·e numa localização, elepossui um .estatuto,· inclusive jurídico·:( documento de
domínio público; obra. rara, documento sob sigilo,documentosob custódia,
documento comrestrição de consulta),que significam, que produzem sentido
.'TECELP.Q DOS/J;'EMPOS

. equepossuem umahistoricidade,queremetematemporalidades .,pol.ttiço-


;. ,, administrativas, técnicas, tecnológicas, j urídicas,/Gulturais; -'étkas,<que podem
serlevadasemconta nahoradaanálise dessedocumento.
~r: ª
_:. ,-,,•••: cA<tifitiúi~1ste.m~nca➔ ~e~sibilii:iacl.e::a-ntiquár.ia, '-'ljepressão ,mesma -aos
·.• ··.,:.;fetôs/e:éíifóçõés.:'qú~coÍi~(itü~ÍrF~tatívidádeôepesquisa<do;historiàdorj· levaram
. .. •::á·:,·~ssa,l:~gueira:ê:,íns~n'.§ibni'dádetdiatite"da:,,màter,falidatle:mesma.daifonte.· A
em
pesquisa históriapassaporessecorpoacorpocomas fontes, sej am•élas quais •
queadotam
sejam. Aqueles da
ametodologia história or-ah·que ..sãoiobi;igados
.:' á,eritreyts.tii;pess:o~~:e;:p_ç~6:t.lü:z;iT1àssilwsuas·fontes;também :teridem_ a ·esconqer
.r esse,m:omentó:fürpe5:qúis'a,*1Ôtádarnente;,o,:faee à;face;que. aLse\deu,.as emoç.ões •
e afetos,as simpatias e âtjp:p~Úas;;,osrtiómentoside,tensãp;'GO:rillito,,destonfiança,.
. i;que,:cqipptl'seram:oifféi~t~~as.~fontes.::Ao•,transtrever-,as)entrevistas; a,própria
;.materialfdadeiHâfàla,;ii;r:v,óz;!qP;gesto;,do~corpo,,se,;perdemArremeâiavelmente.
Astemporalidadesdaproduçãodasfontestendem aserobliteradas,esquecidas,
silenciadas. Mesmoanarrativade umaidaaomuseu histórico tende a
,Úmtêlêcttí~lizaniracioriâ:llzar:o'éOfit~to:com'.'.OS\restos>1:omos·signos dopassado
queaíestãoguardados.Adimensãoperceptiva, sensível,intuitiva,emocional,
' afetiva, doencontrocom objetosdo passà:do;. terideni:a,·ser(:silertciâdas>Vai •se
''/fàfa:r~da,•:Ii~ráfrva,anu,s~ôl9gica:e..muse0gráfiçaique,aí:se;encontrou, vai:se.fazer
·:\ir.prítica;:d;:tversã:p1de\his!ória;';.que:ortentouà:montagem•da,ewosição,tlllas',não
se vaifalar sobreoquesepassou noencontrodepele comosobjetos,com os
temposqueelesmaterializam. . • • .
,, :: : • · :!Aó~Jorri:àhôklpéútx:Íeht.o:shberano,nditrabalho-dd~histo'riad,ór, ,ao:.tornar
otextoescrito oparadigmamesmododocumentohistórico,ao enfatizar,no
>s,êcülchX!X;··otâi:áter,,m9numehtaLd.o;documentor,no,sei1ti:do/de·qué!ele'é~uma
. ·elâ.bàta:gão:..e!~a:co11~trüs:ão,mesm,a'.i.âcrhrstoriador1-é·ele :quedéfin.e; tecorta ·e
·.\nomeitt:$µasJotit~s;·apres.ença;do:documentoi·a;pres:ençamesma:de,s.emsµporte,
·;.,arsua,,mà,t.erfali:éfà.9tf:éhiãó,seu1co:1;1téúd9;\passaramia:sei;remi:graricte,medida,
• t>igtroradãs:1?)--S~fr!liâ,r~'aliêtalôtca,,<!-':Presem;~tle um,;brasão,llemm,símbolo,.de
•.· •.•umdístico,deum escudo, de umamarcadestatusera fundamentalna análise
· \dó[âocUJV,êiito/sÓiü.oàc;àpà:iesde;:h_ójej'ignerarmos»solenemente as·maroas·:que
":se.:asspmarn·:-OtLfaqêia.1·miirn:Ydofume.nto;ç,u'uma,corresp;orid:ênda.,OJacrei.de
cera, ocordãomarcador,osantinhoabandonadoem meio aolivro, o papelem
·-. ·.que,tr,,car.~p;,foi'esçiita;:1gt;i:'~lq~enmatça\que-.possa,,nela;estar.·estàmpadaI•remetem
,/íf•'diver~a$'.:,1;eJnpq;álid~de·s:\a:tte:tnp;oralfüàde.,darprodução·· •do:'.documento, .a
sua
temporalidadede recepção,desualeitura,etc.A soberaniadodocumento
notrabalho dohistoriador,entendidocomoconteúdo,mensagem, informação,
• '. -·
0
,daâQ;:l~.v;ól:tàqip1;tjgres.siJP'ª-*~gam,e,rtto:4e,suae)tistênciamateriâl;·,sensívele,·com
ela, sobreeasobra
asombra
fã%ta.o
da
deváriossignostemporais. O estudo paleografia
'

" 2z..z',52ames.as«sr
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 63

.ainda. ·nos-ensina :que ·os· signos da ·escrita, da mesma,significaqueela é um


indicador temporàl. Desde os.seus aspectos materiais:o papel,a tinta, a letra, os
borrões e mata-borrões, asrasuras, as correções eincorreções, até seusaspectos
propriamentelinguísticos,comoasintaxe,a fonética, a semântica, as estruturas
linguísticas e narrativa_s;<osgêneros emodelosnarrativos',a prevalência'de·dados
ttopos.lingliísticos,,de·dadas figuras :de--linguagem,,de dados conceitos, nomes,
palavras·,-locuções; imprecações,. saudações, modos. de cumprimentos,'-:formas
estruturais dotexto, indiciam dados.tempos.
Mas, se a prevalência dotexto, do discurso, da narrativa corno fontes
privilegiadas para ohistoriador facilitou esseesquecimento da materialidade
do documento,,,-0 esquecimento não é. menor,mesmo quando se utiliza
outro· tipo de documentação,como aquelesdocumentosda.. chamada· cultura
material. Encontramos, na narrativahistoriográfica um certo veto à descrição
da materialidade doque interpreta.A :ariálise·.e a interpretação tendem a se
sobrepore escondero próprio objetoc·analisâdo.:Ofostoriador 'Francisco· Régis
Lopes Ramos chamou esseapagamento, com razão, de "a danação do objeto".
Comreceio de ser considerado·um.posítivista,anátema.e condenação,maior•de
. um historiador contemporâneo, evita-se a descrição,a narração damaterialidade
mesma do-que·se:analisa,no.máximo ela vaiseralocadana nota de-rodapé, Dizer
que ojarro que pertenceu a familia·Prado·estava·rachado; fendido; que axícara da
-imperatriz Teresa Gristinafaltav,auma parte daborda,quea panela doengenho
Massangana .encontrava-se enferrujada,, que as correntes-.que prendiam os
escravoser.all)..grnsseiras;,que o:chapéu do cangaceiró,fedia;amofo; que. a•camisa
·que pertenceuao:imperador estava:amaielada; parece:não serpettinente,-nem
. de bom gosto. E,omais intrigante, é que essas expériênciassensoriais,par.ecem
·não ter uma iinportância decisiva nos sentidos ,que ·atribuímos. ao passado. É
como seossentidosnão produzissemsentidos;·sóa.mteligência e a-racionalidade.
Qual tese, que utilizou--u:m-filme como .documento,· se inicia peladescrição do
estado da película:?:Só o-fará se esse estadofoiconsideràdou:m empecilho para
ainterpretação,comoseseu estado de degradação, e descuido, seu desbotar; suas
-.estáticas,,:suas'falhas:sonoras não indiciassemtemporalidades, tempos de· sua
própria história com'ofilme; queseqüer são tomerdas como significativas e.tomo
parte -de:. sua: interpretação. O fato <de ter restado deum filmealgumas poucas
cenas não éparteda históriadessefilme? Porque achamos que a históriade um
·-lilme:sebifurca·entre à:história,maisgeral·do·.cinema, da cultura, do país, das
ideias emque.se inscreve e,ahistóriaqueele conta;seu conteúdo;·ouno·máximo,
sua produção; sua>feitura, sua rodagem, sua edição? Por que as aventuras e
desventuras que ele, como materialidade, sofreu,não ·constituem •suahist6ria?
• TEC:El>ÃQ D.05/fl;MP OS

.:i3:, Qühtr_o:se#;i.ialogm~tâtutsppÓ,fia's 111


.

• .· •.• :\·.• ·, 2é'orri·():preth;,só.doc.un1entcl,ctJante:de:si;o~hi-st0riadot·inidará a,sualeitura,


sua a interpretação. O documentoéumemissor designos, queconvocam
e requeremsignificação. O trabalhodo historiador é semiológico,ou seja,
constitui-senadecifração,leituraeatribuiçãode sentidopara o.s,sfgnos·:que;são
•s:emihdos-pór.su~:d~cutnentação;:Aanálisehistóri:canormalmente.sere~liza-.pela
:·.·..,;mobiliZ?'.ç?ó~'privifêgio·e.epêóhtro·dedois,.ri',lgin;res.E):e.sigrros:·osistema,de,sjgnos
quefuncionamnointeriordodocumeri:t0'·e-o'. estàdo:·geraldos• signos:de uma
.. • ? ·\/dMa'ctiltura'lideuma:dadà•épo.cia,.;de:um.dáêlolugacespacial,·social;)nstitucional,
• ·, . profissional,etc. Ossignosque constituemoqueo historiadorcostuma chamar
..,-~dé:i:ontêÍido/dofd<t<mnierttq,:garth~"·sentido,:,à•,•medidaa:que"-sã:o- atticülados. a
:;•·~jgnos;et(?_n;ôrriic.0$;rpdliticos;:tep.giosostestêtht~sj\epistêmicos/::que·Jormavam
•• ·• 1 arede<mitis;geral;cle;i;tgnos;-.quê-funcionàranfnaquela:cultura, naquel~,mo:inento

histórico.Alémdisso, paraquefaçasentidopara o presenteem que está postado


o historiador,tanto ossignosgeraisdopassadocomoos signosdocumentais, são
articuladosaoregime designos prevalecentesna cultura, nasociedadeemque
'. . ;,;o;his~dr}âdo;t:Sê?J:!rtCOntra.tnseri~O/No:ctrahalho'dêiinterpretação:reâ1izàdo·pelo
. .. historiador,selevarmos emconta ós:regimes qe,.s;ignos·quemobilizarp.óderíamos
:··./::dizer,;íniêialinénte,:ql.ieteriam0s,.a::presença:de1:rês.c.amadas.;temporâis:aquelas
• '/ duas{r~ferentes:amestãdq:;-ger:al'dos·:sigrros emuma dadacultura,no passado e
.· · ·•Pctpresentefe,arestrut\µ',Vd0s•s}gnos\que\Junci0nam,ino•inter-ior-•do·docum:ento.
-0historiadorestádiante,porexemplo,da carta escritapelopoetaManuel
;-,~an.P:eirá;parât1'4áfü6de,:Ari:dra:di/datada:-"de::24des·etembto::Cle:l923,••riela:ele lê
aseguintepassagem::
. ,. _:;cÔ.Il:obàto,acabade me:roer a:corda, comunicar.1do:-me.que não editará,niais os
a
meus versos,para publicação dos quais He·se•c.omprometeraJormàlmehte
hámaisdeum ano,compromisso esse-j,árias.;vezes-renov.ado, sendo que o
• · ~-. • último nãodataainda de um,niês;tÉ Utn-(ãánalha, .cuja palavra.-não.merec.e
': : ,.;]fé)$•com<i não·:possoxonfiar,.que.:elemé,devôlva os,originais-coma.'devida
.: +c~utel~.p~a·que•nãQ~e·percarn..no•9orr:ew,;peço,-te,:meucaroMário, ogi-ande
• • , ; Ffavj>rde'.passares:pdo.:~sciitório;da'.fu:m:ã'Monteiro.Lobato'.&: .Cia; Gusn:iões .
, : ,.. 70,afimdete serem entreguesosmeusmanuscritos. Nesse sentido vou
., ··esérever:pariflá:m. •

II1. Sobreas quatrosemiologiasqueserãoaquiabordadas,ver: FOUCAULT,Michel.Agrande .


estrangeira:sobre a literatura. Belo;ll9rizonte: Autêntica,2016,p. 90-92. ·.• • .
• . : • •'. ·i12:<.; (MOR4E,K<MiircptAJ'ítôrjlo:(-0rg;};Corr~spon4ência:Mátidde Andrade &.Manuê/Bandeira.
' · • , : • • , .·, :-2ed~§ã\:>.;R_aiilo:,:EP;USP:,JJ'nivetsida,~2:dti"Sãp/l?aulo:''lEB, .20011 p,J03.
DURVAL'MUNIZ :DE .i\LB)../.QUERQUE JÚNlOR 65

A carta, por. ser um· texto aberto ·ao. mundo; por a ele se referir, para éle
apontar, já convoca desaída o domínio designosque estão noexterior do
documento, do texto; para queele:faça sentido. Precisamoss.aberquem é o Lobato
·referido.logo na primeirafraseda carta, paraque toda ela ganhe:sentido, O nome
Lobato é umsigno,que não pertence apenas à economia de signos dessa missiva;
vamos encontrá-lo em meio ao mundo literário, editorial, empresarial, cultural
de São Paulo e do Brasil, desdeo início do século XX. Apenas a presença de seu
nome faz comquediferentessérie de signos, vindas do exterior do texto, venham
atravessar essa missiva, podendo ser .utilizada e mobilizada, ·como documento,
no momento de.se escrever diferentes histórias:história daliteratura brasileira,
histótia da imprensa, história editorial no país, história dolivro e da leitura,
história económica,história cultural eintelectual, etc. O signo "meus versos,que
não teriam sido publicados, crucial para a-interpretação da carta, ganha.sentido
na medida em que amissiva é enviada porManuelBandeira, um signomaior da
•• poesia brasileira, desde·o"início do século XX.No encontro entre os signos.que
se distribuem sobre a folha do papel eaqueles que constituíam distintos regimes
no interiordaquele tempo e daquelas sociedade e cultura; a interpretação-.vai
serealizando. Aquilo que,normalmente, os historiadoresxhamam de articular
.texto e contexto, sedá pelo acoplamento de signos documentais comsignos
contextuais. Na simples existência,.da carta, .na sua· chegada -até nós/ diferentes
camadas temporais se articularam: otempo da escrita da carta por/Manuel
Bandeira, que nela se registra com o signodata, 24 de setembro de 1923; o
tempo da leitura por Mário.de Andrade; que supomos; serum tempo próximo
daquele, o tempo desituação da carta; o tempo-que permaneceu .guardada,
que nos distancia daquela situação,ou seja, o tempo de arquivo.No próprio
texto da carta há a indicação de outras temporalidades: otempo do primeiro
compromisso empublicar os versos, por parte de Lobato, "há mais de um ano,
seguido de outros momentos em que reafirmou esse compromisso,: sendo que o
último "não datavaainda de um mês",além do tempo imediato em que "acaba de
roer a cordà'. O historiador'lida com essamultiplicidadedetemporalidades eas
• :articú.la:numa narrativa,que·parte.do encontro delas·comoseu·próprio tempo.
Noentanto, em qualquerdocumento como qual o, historiador trabalhe,
·funcionam.outros regimes de.signos; operam outras.-semiologias, que-remetem
a outras temporalidades que vêmsendo sistematicamente negligenciadas no
trabalho de interpretação documental realizado pelos historiadores: A história
da disciplinarização do saberhistórico, ao longo dos últimos dois séculos,
• implicou a repressão·e o recalque de,dadas sensibilidades, de dadas habilidades,
de dadas práticas, de dadas competências no ·campo da escrita historiográfica.
A acusação sistemática à sensibilidade antiquária e erudita, relegadas a uma
espécie de pré-história da disciplina, acusadas de ·pouca cientificidade; fez
. com que nós, historiadores, perdêssemos a acuidade parapercebermos e
interpretarmos os.signos e, com eles;aastemporâlidades que emanam do próprio
·:::.•:rECELÃQ-'DpS.JllMPOS

#E±EE±±E±.a±te
própriamaterialidadedas coisas,dosobjetos,idos 11101.mmentos,. das·ru.ínas, .dos
gestos,ele i nos
mpõepensaraprópriadimensãode presençadopassado.. que

· na horadaescritura dahistória.A cartaoriginalnos afeta :•em; seu.:suporte


-·mesm@;:p.êlas:maí.-ca--s temporais, e· humanas··que.. ela·0arrega.,ko termos,a carta
emmãosnãopodemosdeixar,imediatamente,deimaginarqueaquelepedaço

±±±E5E±.±±±±252±37±:
•• •. .•

otipo depena, decaneta oulápisusados, tatt1b~msremetem a-.dados tempos. Se .

·.113.- ,..- G1JivU~RE0ttiÚ:JanftJJrich: Biodução:d;p'~eseuça: O'.que.osentido11ão.consegue·trattsrnitir.


• . •. ',ruo· & Ja'àeito: Gohtraporito/2010.. •_ • , : • • • . •
' ., ;;-
- :OURVAL,MUNlZ DE ALllU.QUERQUE."JÚNlOR

·.se::lembram-de teferinse.a,esses,signos:Obcecados pelos signos vérba:is, pelos


signoslinguísticos,pelo texto :da :carta/todas ·essas,outras·séries·.de;signos· e de
'.terµporalidádes: se perdem na-.interpretação.·.A,•,produção--de presença·•- é uma
,.-'aporia•-no.'. disc.urso'·historiográfico; :capturado, completamente.:pelaretórica
- •dentifidsta elingtiagei:ra.
:O historiadortendeCa -ficar·atehtozaos,tempos. dos'.eventos aos quais.o
documento se refere, mas nãotomao documento mesmocomo evento, como
• ·àccmtecimento de ,um dado.ten;i.-po;,que.indicia e emite signos: desse tempo,
em :toda·a ·sua· extensão eemtodososseus aspectos. :Enfatizando--a dimensão
.·cognitiva;: racionalizante, intelectivado trabaJho :com asfontes,o historiador
perde as dimensõesafetivas,sensíveis, corporais, desejantes, ,emocionais,
'passionais de seu contato como passado, de:seu·contato·mediàdo'pelos vestígios,
.:1Jelos·sinais;;pelosrastros,-pelos:signos ~lo.passádo;É toda:uinapoética·.do·arquivo
que ésilenciadaemnome ,da explicação científica; Do.encontro,entre poeira: e
poesia, quasenada restaránotexto. Otempo do..-evento;que se está estudando,
- se impõesobre otempo dapesquisa, seimpõeemrelação as'ternporâlidades
. .1,presentes.naprópda.materiálidade·dos:documentos.QuandôMichelFoucault,
- - 'no seu_ textoA:vida,doshomensinfames;-apresentacomo;ctitérios de·escolhados
,documentos, dos cásos,<los,personagens; <las· pequenas,histórias. que pretendia
-· i.transformarnu1ndossiê,cas.emoçôes;:osafetos,. oss.entimentos/as sensações,,que
• 1he ocorreram no arquivo, trata logo .de·.alertar,que,tais critérios não, -agradaria
aos historiadores -asácidas críticas que recebeude Carlos Ginzburglogo
confirmariamseu ponto devista114 ,,,,,; e:que;:ohvróresültantedo· que.poderíamos
':nomear.deúma,metõdologiapóética;•,_-não·.constituía.-obta.historiográfica:

Este não e umilivro. de-história.,.A escolha: que tiele:se encontrará não:seguiu


• ,coüt,a:i:egrà.mais.important&do·.que:rneu.-gosto;·-meu-prazer,uina;emoção, :o
riso, a surpresa, umcerto assombroou qualquer outro: sentimento, doqual
teriadificuldades, talvez, em justificar-a intensidade, agora que o primeiro
momento da descoberta passou'lê,

Mas háoutrasemiologia negligenciada no- trabalho historiográfico/fasa


. m_~gligênciaestá reladonada á~duas_outras operações de repressão,:dedenegação,
deproibição queforamfundamentais nahora demetodizaro saberhistoriográfico -
no séculoXIX. Damesma forma que se recusou a-tradição.antiquária e erudita,
tratou-se de levaranarrativahistórica para longe da filosofia e da arte. Embora

• ·:114. Ver, porexemplo, as críticas pessoais eadjetivasque realiza no prefácio à ediçãoitaliana


dolivro: GINZBURG, Carlo.O queijo eos vermes: o cotidiano eas ideias deum moleiro
perseguidopelaInquisição.SãoPaulo: Companhia das Letras, 1987, p.22-24.
115. FOUCAULT,Michel. "A vida doshomensinfames" In:Ditos e Escritos IV:estratégia,
• ,-;:poiler~saber. Organizáção :e;seleção·dostextos,•-Manoel ·BarrOS"da;,Motta>Rio<de·Janeiro:
ForenseUniversitária, 2003,p.203.
;TECELÃO DOS .'fEMPOS

umLeopold vonRanke!"aindareconhecesse o caráterinelutavelmente


J:ittí~tlc<>:'<da·i,ésícrit.;üJ1ist0iipgrâfic~t,;essédimensão.\:deveria,,:ficar,./arrinço.na,pa
parao momento daproduçãofinaldo texto,para omomento da construção ,da
narrativa,datrama.Todasasoperaçõescientíficas,todasas operações críticas
,.,ertvôhr~riJlo.g7tl9cµrnento;:-deverià11r:ser:lev.adarpara 0longe doditerário :,ou· do •
.· .··.\âtµ's,:t;ic~Pers,~'IWit.-,g,qtie41,avia.c;le:leridádou1ffàbuloso\na,documenta.çãü".era a
··;:,tar:efa·,ptin'cip#t:9:o,:historiacl9r,,,,pDfàbulaçãdidewerria::ser'e~pnlsa)dessa~et,apa,,da
pesquisahistórica.Noarquivo, aarte riãoterüflpgax;,ápenas.·atécnica~·a disçiplina.
EssaseparaçãoaindaapareceemautorescontemporâneoscomoPaulRicoeur ou
MicheldeCerteau""7,Nãohápoéticanoarquivo,apenas técnicas,tecnologias,
e
metodologias epistemologias. " •
.,:i;:,;\Essajêpfe;ssãô:.~,duµérisãoa:rUsticMfa,pesquisahistóricà,le:v.a.àcdific.uldade
queoshistoriadorestêmdeperceber,delidar, deincorporar, no momento da
os
interpretação, signosemitidospela própriaescritadodocumento; ou seja,
>atentôs:~Ô<gúei>\docu:mento,diz;:o:profissionahda:·histori?grâfia:p.oµco..se;atém
•·.,;â:côm!i:~lçJijWi.A:fâstâdôs,das;pre_acupac;:ôes;de·:oarnposcomo-.a,retórica,ao1qual
· jáhaviam pertencido, t-plóldgia<e•cl:tlingujstica;fOS'hist0niad0,res.. demoraram a
'. ,{:sé2dár/çoJ1ta•:d~s:qu~:,escre;viam;a1.prol>Jetnatíiar·.a.·escrifa··âaihistória;.,q_ue,:dirá
se interrogaremsobrea escrita ousobre osregimesdesignosque presidem
·.•. aproduçãode
o
um dadodocumento. Os historiadores se propõem a Jer-:.uma
fotografiasem menordomíniosobrealinguagem fotográfica. C:onectam :os
•.•• signos queremeteriamaoeventoqueestãoestudandoaos signos do:··contexto,
atentarem
sem os
para signosdotextomesmo, ossignos emitidos pelafotografia
•. enquantorealidadefechada,enrolada sobresimesma. Ohistoriador ·como=que
. . arrombaafotografaparafazer comque a história, a sociedade;;a ·cttltura'passe
• -:. jp'<:)f~Jã~lli'éuê:seritido;;'seus..signos'.sã0.ãtiradQs:.paralfotidelapara·:que,gat1:hem -
. . :.Úiff!l!gibilidádé(emrilêirna,:oufros,Sigrios.:.de.c.semtempo,rmas-'a::-particularidade
· . ' sígnicaqueela transporta é ignorada,tantonoquetangeaosuporte (qualidade,..
:··,aen;s1dá.4i/biilhotcon1do>pap,êJ,\das{tintastmarcas:dem1aiJ:ipul~ção;·:de:,guarda,
•• c/matt~'$;,àçfdenta.,Js;.-marc!'l.sde,tieter.tora:çãçt)i'.quanto no,quetange:a:imc:lgem,que
·••·ela:i>rpjet~JpGses,d.e·coi!po,s;•:ar:rumação·de,personagens~foco:dáfot<:>grafia~- ponto
.•. deiluminação, elementos nãohumanos,objetos,sombras, etc) .

.•,•Ftl6.)i-RA1'-l~É'tLi;,pp91div,o'.ri'./s.óbreÔ'tátátêrldadêrtc1aliistóri.ta'ihfaMWL'ERBAtJurandir, ('org.).
.. -Liçõesde história I: i{êamírjho:d,j,êiênÍ:iitw1.,longo?sêculoXIX,,: p. 14-16.
117. PaulRicaeurdivideotrabalhodo historiádoremtrês.fases: a, documenteµ;, ada ·e:,icplicàção/_
• i\'···co,mpréensãqi!.tda·represerit,atãóhistoiiadoni,iportahtp;a·etapáido;arquivohseparada•do
·•• ,>.•monierito .epist~ni'ól9gkó'do'ti.âbalho':-doJ1,is.toriador.:Michetdé Certeau:taníbém:divide a
: • :.•• • '/PPer~çii.q;bisJ<?tiográticaeD1,trêsmo.rnentos:.0Jugar,-à'disciplinae a escrita; pouco falàri:do
!'..·):,domofueptQÂ,ó'arqJlivo;qUe~uppmõs.ê~farnomomento'dirdis'c;iplina:Ner:\RIGCEúR;'Pául.
1. • ,-;{A;fne'ff.lprjarfrhis,tóri,ti;tógsqueci-Ím11.to,,CaJ!1pinas:'Eâitotaila.UNIGAMP;;20.07; ·cERTÉÂU,
Michel de.A escrita dahistória.:2ed.Rio deJaneiro:Forense, .,
Universitária,2002.
DURVAl:·MlJNIZ:DE AI;BUQJJERQUE JúJ:,..rJOR 69

Se retomarmos·.·.o exernplo,dacarta•.deManuel·.Bandeira;··há,nela marcas


temporaisque aparecem na· espessura mesmadapróprialinguagem. O estilo
emquea carta é vazada, as palavras e expressões que utiliza, asimagens a que
• ·rec.orre.e produz, ostropostinguísticos,,asfiguras.delinguagern, todas indiciam
temporalidades. Sendo um texto que implica umarelação,queimediatamente
distribui um lugar para oemissor e oreceptor,equesupõe aexistênciaou que
buscao estabelecimento de algum tipo .de relação ou vínculo entre quem en:via
e quem recebe,· a c.:arta,. como gênero narrativo;: possui marcadores e estruturas
narrativas :que se modificam como tempoe,portanto, são.:indicadores de
temporalidades. A forma como.se-introduz.a carta,·as.for:mas.de tratamento;as
formas como se.encerram o texto; asformas de saudação, são estruturas mais ou
menos ritualizadas, que se referem a. umadadacultoraepistolar,.em dado tempo
e espaço. Somente a um amigo, a alguémque se confia, dirige-se um desabafo
como: "um canalha, cuja palavra não merecefé", emse tratando, no caso, do
mais· poderoso,editor .do: país,no,momentó'. Se ·ele ·chama o remetenteapenas
.· .pelo:seu p'rimeirorrome;·Mário, isso·indicia uma,relação.·.de·proximídade:entre
eles.A expressão "roer a corda", possui um·.seritido naquela·temporaJ.idâde que
poderia ter se perdido para,nós .ou soar diferente:emnosso presente.
· Notadamente;iquando·se utiliza de fontes literárias, ohistoriador tende a
empobrecê-las, àmedida que se dedica:apenasa .pensar.a relaç,ão entre: os signos
.literários. e: outros regimes de signos,extraliterários,·quase sempre explicando
• .aqueles poresses. Esquece que a literatura possuLregimes de-signos próprios;que
nãodeixam de indiciar temporalidadese,portanto, historicidades..'Ahteratura
comportaalém dossignos da escrita, signos que compartilha com outros géneros
textuais; outros signos queMichel Foucaultno meoude signos de•autoi.rnplicação us.
Atravésdesses signos, a obradesignaa simesma como.literatura, são signosrituais
• de -gênero, mas também são signos de autoria,signos que buscamconstruiro
que ·seria um estilopara o autor, .que lhereservam um -higar no interior da obra,
como que desenhando. seu .rosto· particular. Damesma formaque; na •pintura,
por mais convençõ:es de·época que·ela:.obedeça;.m:esmo·não,sendo:urna pintura .
dita moderna, onde haveria uma maior exigência, de que opintor constituísse
uma ,gramática·própria de signos(comoos relógios mortos deSalvador Dali, os
•. touros·:de Picasso,·as moringas de Portinari, as manchas deJoan Miró),se exige
aprodução de umalinguagem pessoal, nemque seja feitadetoques edetalhes
aparentementeimperceptíveis - daía ciênciaindiciária de Morelli,referidapelo
. texto de Cario. Ginzburg119 ~. ,;:niúliteratura há-também,.,na•esp.essura mesma da
linguagem marcadoresde autoria, marcadores de gênero;-marcadores. de estilo,
que remetem a dadastemporalidades, queatravessam ese relacionamna obra.

118. Ver: FOUCAULT,Michel. Op. Cit., p. 90-92.


119. Ver: GIWZBURG, Cario. Sinais: Raízes de um paradigmaindiciário. In: Mitos, emblemas
esinais. São Paulo: Companhia das Letras, 1989,p. '143-179.
DURVALMUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 71

Ora, mas alémdesses dois regimesde signos queaí podemosencontrar


-um regime representadopelos signos·que.se dispersam apartir da história,
doenredo, da narrativa; e outroque se compõedos signosque vêm de um
.exterior para conferir-lheslegibilidade -há, operandono texto;·na e,spessura
-·mesma ·da-linguagem,· doisoutros regimes designosque :também,, p ó.dem:ser
tomados comoíndices temporais. Quando Graciliano seutiliza, na escrita, de
.• um estilo. muito próximo-dá· falacoloquial, elecomisso está indiciarido· uma
dada maneira de entender e •pràti.car,a- escrita,literária;.que.pertence:a·umdà:do
.,tempo. José de Alencar;romancista do sécúld:XIX:; jamais escreveria: "Qualquer
dia ·o patrão os botaria fora". Ouso doverbo botar nolugar do verbo pôr seria
·:impensáveLse.gundo:·;os cânones, e asregras quepresidiam a escrita literária
·:anterior ao,,moder.nismo;:portanto, tal usose:constitui como: uma.marca de
temporalidade estilística e de,gêneto.narrativo. Quando Graciliano faz uso
. ·de palavras e•expressões como:,/'doidice", "cambembe", "ter luxo, "ganharo
. •mun d o,·· .,, "·cacarecos
· · · .,,, ((·trouxa,-:'
· , " -,,d e.b aixo
· d e um_ pau""»;·e.1 e quer :.n
· ao/So
- ·' ·:-constrmr
.
uma linguagem literária própria,constituirumestilo,mas, com ele, construir
um lugar para si·próprio,• dese.nhar urmrosto-para si, como autor, no interior
,do :campo literário. ,Esses:signos·.são:autoimplicativo.s,,,pois • não só marcam
que ·o texto é literário,:;designam como literáriaessa escrita (essas não seriam
expressõesadrriitidas. nutn tratado médico ou jurídico, por exemplo), como
também demarcamuma região particular.para essa escrita literária, o lugar de
..uma escritaliterária realista e regionalista e,comela,um lugar próprio,específico,
singular para seu autor. Apmcura·de aproximar a:escrita ·literária da .orá1idade
,constituhuma· marca,temporal '.que. remete essa obra aoconjuntode escritos
.que .ficaram conhecidos como romance detrinta,explicitando, portanto, que
na própriá linguagem existem marcas temporais. •

···4. Temporalidades':é;onceituais, ·valores 'espaciais

A recusadafilosofia, a desconfiança diantedas filosofias da históriar que


.. acompanhou·a'disdplinarização-da historiografia-produziu uma outra, ordem
deinsensibilidade ecegueirana prática deinterpretação dos historiadores. Júlio
Aróstegui serefereàfaltadereflexãosobre os próprios. conceitos que utilizapor
"parte do:histotiador,-·ao-fato de·que·•ele pouco hístoriciza os próprios ,conceitos
. ·com que leva a•éfeito.;suaanálise122·; Creio.que·se,;isso ocoi;ra• no -momento da
••,interpretação, nomomento,da,·esctita, ·essa,cegueiraconceitual é-mais acentuáda
•. na-·etapa •do·arquivo:Muitos , colegas' creem que o conceito é algo externo ao
·.documento,· que •o.,conceito,·faz . parte;apenas· da etapa deinterpretação e de
leitura dadocumentação, o conceito.só-apareceria no momento :da·intelecção a
,,,que;seria submetida a fonte. Jáouvi colega dizer,quehistória não possui"teoria,

122. Ver:ARÓSTEGUI, Julio. Apesquisahistórica: teoria e método. Bauru: Edusc, 2006, p. 23-24.
.·.- TECEbÃ0eOOS·'.fl,M.POS

se como o conceituale oteóricofossemumaespéciedeluxo, deacréscimo, de


excrecênciaemrelaçãoarealidademesmaqueestudaohistoriador.Talvezporque
. :•.. ·\âtiidà,:aqb;~Jií qué·.~p;en.tt~frÍósbfos'oú.:de:ritistas ,s0'dàis1ptoduzem:conceitos, não
·. {,.' sendo papeldohistoriadorinventá-los eutilizá-los. Comose os conceitos fossem
..· • • • apenasrealidadeslivrescas,sóhabitassem oespaçodolivro, não:Jizessem parte
davidacotidianados homens.Mas,afinal, o queorganizaumacultura,o que
,: :'•··sustenta:piída•:9rdertls.ôtíâl*gàl;m:stitucional,'pólítica;,econômica;oqueins.titui
realidades,oque distribuilugares deobjeto elugaresdesujeitosenãoforemos
.. conceitos?Oconceitonão éapenasaquelapalavrafora .do·.comum,,:abstrata;
. ,distâht,i;daividw.ê◊tiçµ,ana;~qúe:encótftr:amós:nós:livros;,:tes:es:e.dissertações;...Os
.:·:cõ'nceitõsisãovividos/otiffianame,n,t~;pelpsfüomensemtilheres; eles nomeiarµ, •
•·.,-'sígajfrcam~:ê:4irigempráticas· e.:a:çõesi,leles:':füstrihuem\hierarquias,;p.artições,
· ,/estalteleéenffr~laçõese:e.;exc}µs,õe,sr.~lesidefinen:r·e''.distiQguem; eles ·dizem .O • que .
1

•.•··. :as cqisai'.~iqj'pbrtarlfo;'ij.1'$titµerofreilidàdes;,matériá.e,pr.irna;.afinâl,..·du,trabalho


·., dô:•hist()Í'i~ddr'.)Noçõ.w.qúe:p;i.rec.em:Ctão~hanais:·comn:;àltoLê'cbaixo; ;grande e
e
. pequeno,frente trás,claro eescurol'ifeio-,e·,belo;-masculinO: e .feminino-são da
• ordemdoconceito e-.~~ganizatn,,idesde:;nossas ;0peraçães ,to1.:poráis;caté nossos
. · • ·• comportamentose valoressociais.Elasimplicam maisdoqueumasimples .
. ...t•rtorrieaçãp';'\dassifrti!:ção;:>;ótderiainelito;·;-eJas :4áHn;i.pHciim,.1ccomolprodu.to ,da
•• •· ,:TniStQJ;ia':d'ã;ct'iltura'en,. :gúe:estão'irnéi;sasf'valoraçêesrhieriírquias,;diferenciações,
;;:· ·, proximidadese distanciamentos,decisivos para, se,;entender:-01acontecer · do
" social,numdadotempo. . ·.• •
••• Quando entranoarquivo,quandotemodocumento em suas:-mãos, O
. '·.T1:histor,iadç,r1costunia,;só,perrsar,.em:,.pro~mar•.eventos;;,acontecimeàtos,.:í;lções,
•· :.: •personagens, discursosepráticas. Não; passa·:por·suaxabeça :buscar; ,naqueles
•• -· ·· :paptis,àtkádosmilnr arquivo; :eonceitosi'rioções;,Gategorias,:que organizaram a
·pr9pría[mda:das·pessoa:s. qu;e:viverart1,em·tUn,fütdo,tempo,;O_caráter·poétito da
0

própriaespéciehurnana;,+tal:-como\foi~âfirmâ'do:por~pehsadoresitão:díspares
,; comoi;t\tistóteles.e'Nietzs,dhê/,.à0l)iedicia+.que,(se•telactonam ,cóm::o,mundo,.
.· coin,ahvida,,com;seu;pfóprió:.tor,po; a:trav:és ·do.1símholo;:da. repréSefit?~ão, da
mediaçãodasvárias formasdelinguagem,doimaginário,damemória -queda
assimignorado,poiso:Coht.eitd}é,;uma.:,das:•protlµções;;humartas·µestinadas
ser
adarsentidoaomundoeao humano.A produçãoconceitualtambém é •
. ·..·, mar~adt:peht:te.rnporálídird.e em queocorre,o;prqp.rio:tempo•émm1conceito,
: .·., uina!di:irtérl~ãõ.â\Jtt_rata.Hàemstêricia:sô:-ela:b.orai:laexapturádaconceitualmente.
• Nos documentos,noarquivo,nãoapenas sefaladetempos, •mas se·élabo-ram
conceitospara otempoeconceitostemporais.
• Seopesquisadortememmãosa DescriçãodasMinas GeraisdoBrasil,
documentoqueteriasidoredigidopor AntoineBlem,comerciante francês
radicadoem Lisboa,no anode1732,nelepoderá leraseguintedescrição de
VilaRica: • ·• • • •
DURVALMUNIZ .DE.ALBUQUERQUE·JÚNIOR 73

Setenta·léguas ao Deidente· das·.costa do· Brasil está situada a província das


•• Minas Gerais, detrásde montes e serras que-se-continuarn::desde.a costa até
aquele sítio, que étambém monstruosa.No mais áspero dele, e nadatitude
vi.nte-graus:e vinte e: cinco miai.Itos'austrahe:fundou Vtla Rica, por.serlugar
ondeabunda maiso ouro, a qualsendo umaruacontinuada porespaço de
meüi..légua/estádividida em três bairros. Oprimeiro se chama Ouro Preto,
, o.segundo Antônio:Dias,. onde está o palácio-do governador, casa da moeda,
·câmara e cadeia, e o terceiro o·padre"faria123•

Se eu soumm. pesquisador ;da,·história dos espaços, da configuração


histórica de espacialidades, ouse estou escrevendo uma-história da:..Vila':Rica,
esse documento apresenta alguns conceitos:que.,devem'chamarminha: atenção .e
que devo ter:presentes na hora. de elaborarminhanarrativa: eupreciso dominar
o conceito delégua parapoderterumaideiada localizaçãoprecisa da vila,como
·preciso cl.ominaras·noções'deocidente, delatitudej de.graus; de minutos e de
• 'austral; ,preciso •dominar' o significado, :·naquele,.ternpo,; das..noções de .costa e
sítio; preciso ficar atento ao próprio conceito de vila, qualo seu sentido nesse
tempo; não.posso:cometer·oanacronismo de nomear esse espaço de.cídade,pois
·vila e cidade são .conceitos espaciais 'diversos,jmplicavam'um estatuto-jurídico-
administnàtivodiferendado; tenho·que prestarcatenção.ao conceito que nomeia
o espaço das·Minas Gerais; o conceito de província,-que édistinto·do .conceito de
.estado; devo atentarainda para ofatode que, ao invés de estar,escr-ito·a província
deMinas Gerais, está escrito dasMinas Gerais,o queatribui sentidos diferentes
,a esse espaço é, portanto;.faz de Minas Gerais um conceito espacial que mudou
desentidoaolongodotempo;aindasurgem conceitoscomo os delugar,espaço,
rua, bairro,que não são meras palavras óbvias e aos: quais se podeir atribuindo
.os mesmos,sentidos-que possuem, hoje, em.,nossailíngua. •
A perda dasensibilidade aos signos ,temporais presentes, no. -suporte.
documental, tanto ·quanto a perda da senSíbilidade diante daqueles signos
• ,presentes na· espessura mesmada linguagem, comoos signos ·,da escrita, os
signos de ,autoimplicação: e os signosconceituais, deve-se ·à ·emergência· da
concepção modernade tempo, a um tempo pensadocomo uma 'linha re.ta,
como um fluxo. .abstrato.e imanente a. todas ·as coisas: Ela se devetambém
ao próprio surgimento da ideia moderna· de História, tal comofoi discutida
por ReinhartKoselleck", como um processo que unifica toda a experiência
humana, que unifica todasas histórias particulares,umsingular coletivo que
' .arrasta inexoravelmente,,na direção-do futuro; do progresso, da civilização; da •

123. BLEM, Antoine. ."Descrição das-Minas• Gerais do Brasil". Apud FURTADO, Jünia Ferreira.
• Oráculos dageografia Iluminista: Dom Lufsda Gunhaf!.Jean-13aptiste BourgqignonD'Anvi/le
naconstruçãoda cartografia do Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2012, p.386.
124. KOSELLECK,Reinhart. Op. Cit.
. " .. TECELÃO .oos,,TEMPOS

t ' ,

racionalização, damodernização,daevolução,do desenvolvimento,darevolução,

ttempo
startes.:±z24851%
eda própria o história.Obcecadosemenxergar tempoos historiadores
\:iião·se)Ípercebeni~tlos.~sp~ç;ô.~iiliâ.i:un:esquédm~ntoide,que-'OS•signos:temporais
são inseparáveisdeumalocalização;eles se'deposit8.lll na.:superfície:do-mundo,
•. •·•· · .• das coisas, dos corpos. Otemposó éperceptívelatravés -da:Sirnarc;as.que::deixa
• \nape.lld,p;mtmc;lç{Osrêsto~i:asct\iírté\SJí)S:y.ésJígios/ossinàis,.ns·monumentos e
documentos possuem l:µtléiqimensão ~spaçial;:.O;arqttlvo,:possui:uma:arquitetura
-enãoapenas emseuprédio,emsuas instalações. O arquivoéuma rede de
•:;sigri◊~/~le.garihir;~eàtidó:éfaz:s_ep,tidóàmedída:que'télaeiona;,organiza,·dispõe,
.. ·'côrfola:êioriJn:•:separa~fcipõe/:dássifita;rerdena{di$pOtúb'liiza;·'.úma,:,'dadarmassa
\;.sígx:iica};_doêumênfab.'Preciç:up~dos's.obrernanéita eom:a\diacr,oniatrlo.ar.quiyo,
• •... ,.. {i1,1ose.$quecémôsde;$has'$1ncronfasea~sincronías.A':>.,.a:rquivoi;,ao:mesmcHe~po,
'.',,iúirúrsu~~ssão'ê":úma~di§pósiçâóSdé'telementost:B.ar.quivofa:z:sentido:nãoapenas •
· p:elo:,qü/!Põe;eittsuç~s~ão;_,,rna:s.p:elo,qtre;attitdla numa Tede;;:Essa;.cegueira,para
.jfdiniensã1:r:ê.spâéial{dóia~quivo;:·,en,ql!?ntq,:çqp:jID1toi,dei:signos;:vai··estendei~se
•.áo:'dàc;uq1:énto:,:à0,S elerrientds:ilip;guís.tico$,econteituais;, O·documehtOj\antes·de
0

- . , •. :Jâlai\de:mri,terjlpóté11tnrespa:çofele~~,e:~paciâliz~~ãóde1sígnos;':Quantos-.de,nós
o
pensamos livro,a folhadepapel, a fotografa,o filme,o vídeo,amúsica.como
~-., ,· : ;espàçós?tBnidotUtrierjto;F)os1,Uh::nvseu',-Coi'pO'm:m,çortj'Unto~,de,,signos,qq.espor
, ·'. · ::e1e-sê:·âisti:ibtiern·e'néle1se-:ielàdona;m\Quartt0s:deiil0S;'ao'e"lltrar entumarquivo
eteremmãosafolha de umjornal,prestamosatençãonalocalizaçãoda notícia,
dacoluna,dacrónica,dacharge,dafotografa,queremete m ao nosso tema,
• ·,<,riffplhà:iioijotnàí,~suíl,tbrtelação-:conJ,asI,ou.tras nótídas;,matéi;.ias;{ilustrações,
anúncios,presentesnamesmapágina?Quantos denós nosinterrogamos que
· •.•• rededesignificadosaqueleconjuntodematérias,designosproduz?Quantosde •
.•.,;.:11.ús.prest~os:atençãq:ina•Iilarcação:'.a:'{ápis·,o:u:canétà'foita., p.or,~gum,leitor em
. _·;dã:da.·m:a1étia,?·:A:J,guêiri'sélembtà3>tletei- ,e,,anotar ;quem·.são•o.'diretor,to :éditor,
• ,:':;o, propriêtãrio.. dtljornâl ?,1:·E,'no/entantp;•,fadmissÓ.:faz. sentido;}sala:damente e
·• • ' fornâdb:siün;tbiljiJtltoim:uma·tiedé';de·~lement9s/Al'guém;selembra.'de obser.var ,
o
• . •· .. que jornaltemclarasmarcasdeixadasporumainundação? E, no entanto,
todosessessignossão signostemporais, •in:Ôiciam::aihistória' diqüêle .próprio
',do.cu:i:nentó,e do arquivoque oabriga.
. Desde PaulRiceur,pelomenos, aprendemosqueatem poralidade
·•·\~ortsti'mdW;peló,hístodãdorpão.;correspondenematttemp,o,éósmico;.aostempos
'.-'<Í.lmatuteza;,rtem,áM~mpo,me.~ânico;tronolqgi.co;.convencional·dcr#.~cnologias
•· .. de:iné;dií3:ção>ido,,te~po,.·'nem•s,nlÜito;roenos•.s.a:o:.tempo,sübjeliv9,;:ao:tempo
• ,,,,;psicôl9gi;to,·essefep:ipp;
,:.;..-,·:
' -
qu$:litativo,.vtv.encial:4o·qual;já:Jalav.a'Santo;½,-gostihho125,.

o
125. RICOUER,Paul.Entre otempovividoe tempouniversal:otempo histórico. In: Tempo
• ' • -,:enartafiva"'::.Tq:mo'IlJ:;D;unp,i,nas:•P~pirl)s, ,l99Z.,.p:'179:~216, •
-· E>URVAUMUNIZ "DE 'ii\:LBUQUERQUE'JÚNJOR 75

O tempodohistoriador éumaconstruçãonarrativa, que sedáno plano da


•• li.IJ:gmrgern.Anarrativa:~,portanto;•,:tlinguagem;;produziria·uma:,temporal.idade
, própria,nascida dasucessãodeseus elementos, dadisposiçãosucessivasdas
cenas,figuras e imagens. Talvez essa ênfasenadimensãotemporal dalinguagem
nos tenhafeitoinsensíveis para adimensãoespacial da linguagem,dotexto,
dossignos.Aobediênciaàs regras dasintaxe nos obriga a dispor oselementos
'lin:guísticos de: uma,dada.rnaneira; numa;dada'·ordem.sobrea{olha do:papél e
,,mí-tela:dffcomputadot.,Nós,espa:cializamos os·signoslinguisticosobedeceridoàs
· estruturas linguísticas, queproduzemuma dadaarquiteturatextual. -As:flexões;'as
.. ·concordâneias,as·correlações;a.'.cQetência e-a coesão. dotexto exigem -a?construção
um
-· de dado desenho como usoidos:signos ·dadinguagem.•·Ao·mesmo,-tempo,
a linguagem permiteinúmerosjogos de combinação, substitui.ção, .omissão,
. ·éncadeamento;'.deslocamento,.a,pa.rtiridoselementosque compõ.eo:seu'conjunto
---_Jiriito • de-;signosfonéticos: Os mesmos ·significantes:'p:odern adquirir inúmeros
::significados,através·dosimples-Jogo.dos-elemento,s:, (zuaVhistohádor-está atento
para essa dimensão espacialdoselementosquecompõem um texto? Talvez,
· ,apenas,'quari:do:eles.. são. apresentados'de maneira, propositaL Não.seria possível •
• • alguém ser um historiador do:movimento ,da.poesia- .concreta• e nãchlevar. ·'em
·.-conta"oSjo_gosr:ealizàdos·:com:a':disposição'dos,:elemenfosJmguístico·na:folha
dopapel, de modo .a:queviessem: a\formar:uma.dada:. imagemf.constituindo .o
quechamavam de uma poesiavoco-visual. Nós,historiadores, enfatizamosas
• ·-âimen'sõ.es, enunciadoras, e ,re:coidàdoras :dos •signos, ·sua::capacidade de, dizer
e relembraralgo oualguém, ;;que,csão funções -que :·se· realizam,nas:duração,
notempo, mas -esquecemos daquiloquefazosigno, sersigno, ouseja,a sua
. dimensãoespacial, asuapresençaespacializada.Vejamos,por exemplo;osj0gos
de linguagemdo poetaAdriano deSousaparadizeroespaçodo sertão:

[...]linhagemdelinguagem] avança]apedra semgema] oovogoro]a gangada


-1.íri.guatravadal por decreto de sua excelêrtcial -o;marquês de ponibal 1- avança/
.. ;morto'apau:epedra/.nascatedraísfüológicasl·o,norné;anônimo/avança/.,da-
alma de .càdaxôisa ,êalada[,·sob.sas.pedràsl -:dekada voêábulo - evbcaçio·para
. nomeara ·sem/•-o nada/ ·o in'iüol.•,o'vácuo dow:agol o ar..rarefeito]o não] o
desnome onomemória deserto dopróprio nome]dois terços do deseitãol
·supo:stol bangu'elaj·aYsilaba·comidapor~gentes;quei-à falta de.coisarrielhor/
comemqualquer.coisajgentes.calangos palavras! desco.mem,;,sei consomem-
·,..se defome]emfonemassem sustança..'.126

··•"Nesse;poerna;:o.espaçodo:sertão·nãoé'ditoaptrnasnaquiloquesobre'ele·se
diz. Eleé significado,justamente,por sua pobreza,porsuafome,porsuaausência
• deriquezafüiHnguagem:'Masô',poetaJ1ãofüzisso•apena:s,,dirétamertteatravés.da

-J26. SOUSA; Adriano;:Saartão,.'Jôãci'Pessoa: Offset)2009.


.TECELAóoos:n,MPOS

' ' , 1 ~- j ', •, '

,'.,: ;_;,,tlâí-t~J;;::~oêtica;,;@.S'Írtl!1gerí~;.que,con:sttókpéla,1disp:os-ição,das,.palavrf;),Si',;Il)aS
- : . atravésdas própriaspalavrasqueutiliza.Oespaçodosertãonão é_apenas,dito
por essepoema,ele se mostra,elefazpresença,elefazsignonesse poema. É
, • i :._-: ·.;)coµ,i-utpà\1ü4gq~gemtr~#tlcr,'.coinida,~paJ!gt;íela~,umà·gaIJ.gasem:sustança.que,ele

··--·••··i;:::bpro,eiità'.,li'gú.rar.osertã-~::·~J11stóriaidó_Sertã0:éa_próprfa,nistória'de::umaJm,gua
• . · • r,;;:êstàn<iâ<là'.:r'ÍqJêtnpo:por' càusa:;q~·,um:detteto, doMarquêsdePombal",uma
, ;_•" línguafilhadascatedrais fik:J(ôgicas;,.tão;p<1µ:co:môdernas1quanto outra~·:catedrais.
. : , •.· '+{trrniJiI}:gua;_quei,êPêlame~m~::,Úm:mai.caâot,te~por.aL,.eomo•em,outr,as,Jantas
o
obras sobre sertão,o tempodosertão éopassado, éumtempoestancado,
parado,atrasado,anacrónico,até nostemposverbais.Osertãoéumdesertão,
,_.·,_;:µi:clt1sive,~m1s\:láfünh?iemtde;linguagén1;'j;)Ois,essanasceup.ara.nomeàr1o·vazi9,
o o o
vácuo, nulo, sem,onada.Odesertão,emseupróprionome, énegação de
· : : ;\: il1qrÜiJf~·:desn6me;i0·sertãó'é no11J.etnória?seu,tempo:éo d,r:presen-ç:a é.terna do
nada,daduraçãodaausência.
:• , \'>:;Mas·i~,.espiêlàlizj\:ção,.nJ>'eiriteti~r:do Cdoeume:n.toTsnão,se dá •apenas ,pela
disposiçãodeseuselementos,ela tambémsedánaJkópr-ia:tropologia,comque se
"·· • . . arquiteta otexto.Todalinguageméfigurativa,elaoperautilizando-sedetropos
i :. , ,_ • • • •;,Jµ:iguístieos , :i:rltz:et:queos histpri;);dores;tanib'ém~faziamissõ,(oko:grandepecado

• ;< :\ dh:qgroklªY4~tfw:hitil~~f.que;;parece•se~limt!litar-da:carne.dosprofis,sionais, do
ramo-,elaopera lançandomãodefigurasde linguagem.Ora, aprópriapalavra
;,<'.'t:tfõfto'.,r'éi:pête:tái-translíitj..ota.. ;giró,",à,mudan.ç.a·,de lµgar. 0s'tropos{deslocam• o
:·•.·.~J:senti4ói;:alte~am,õ-i~ignifioadq·po;çjústap:esição;·,aproximação,,s,ii;bsfituição,
. omissão,daspalavras.Nãose constróiumacena do ;passado• sem :.o r:ecurso
ametáforas,sinédoques,metonímias,catacreses,oximoros,antonomásias,
• :.· ,(;pefüfrasesúeµpsesibipérboles,"etc. ,Cada.uma·,dessas figuras;implica, u,.ma;dada
• · • disposiçãodoselementos, não sótextuais,mastambémvisuais e ,sonoros,
que tambémoperamcomessa tropologia. Um·doc:umehto é um e.spaço,.'.COm
suas marcas.e signos, el,e.cóntémJ~1,1guagensv4ue ::também, '.a: depender de'.que
, linguc)-ge,111,for;Jem·s~as,:próp:rias:regras ide espacialização; a depender de .cada
época.Todosessesregimesdeespacializaçãotambémimplicamdadosregimes
de temporalização. ·-· < • • • . • . · . . .
.. :·,_ \~Oj~1a.ssÚrt;çomoe:xistero;conc~pçõ_es,tempoí:aisprevalec;,entes :em.1im dado 0

..• • ltf!mp9;iici;ssimtêom9,;·po;tle1T,iq~ifaz~rtumai;história~das.,;concepç.ões ·de,tempo; há


-tambémconcepçes espaciaisqueprevalecemem umdadotempo,podemos
• • ··· ·:f~ier·uma.liistória'dos,valores'espaciais·de-tmiá c;illtur.a;,Michel.Foucâúlt, numa
. -
:.,-:

• . • ·127. Em1759, 0Marques dePombal, primeiro-ministrodePortugal,proibiu ouso donheengatu


•• ' \, ;,:e,rtj,Jqi:Jaa.(3ól<>riiíl.é;1nsti,titili,d'.portv.guê$.:lír:guâ,:da.Co,t;tt;icorno.;a,,únicalíngua.·a s.er usada
no Brasil, visandoenfraquecer opoderdaIgreja Católicaque usavaachamadalíngua
;•.\?,.gerale.J!í'.s~c~tequ~sé::Essfi:J,e,Úeto,complemento,1J.O.detex.pulsão.<ios padresjesuítàs:das
• - :::Çéllôniijpci'rt\iguesás. \ '· · • • ·• • • •• •
Wfl!Jf;,, Hayden. "O texto histórico comoartefatoliterário"In: 'Trópicos do discurso:
ensaios sobre a criticada cultura.SãoPaulo:Editora dà.1:ISP/1991, p. ,97-,I 16.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 77

série de conferências sobre aliteratura, compiladas no livro Agrande estmngeira,


defende a ideia de que as obras literárias - mas poderíamos dizer que .todas as
obras humanas, tudo aquilo que o homemrealiza, em umdado tempo - está
marcado pelos valores espaciais prevalecentes em suacultura"". Os documentos
apresentariamumaarquitetura, uma forma, umaestrutura, umaespacialização
que ·remeteriam para os valores espaciaisdeuma época. Por exemplo, se nos
determos na produção rn.usical ·do final dos anossessenta edo começo dos
anos setenta do séculop:assado,.no Ocidente; podemos perceber .-que .a aventura
:espacial, que, a corrida-das duas ,superpotências em busca do·domíniwdo
.espaço·sideràl, que a chegada do homem à lua, colocoram-novamente-o cosmos
como a espacialidade de referencia na cultura o.cidental. O cosmos, quefoi a
··categoria .espacial.fundamental na cultura greco-romana antiga, retornava.em
novas versões. A noção de cósmico• voltou a. organizar vidas e'obras, de muitos
moradoresdo planeta Terra', Essa profundamutação nas sensibilidades enas
consciências em relaçãoaos espaços foi assimpercebida por Clarice Lispector:

Deagora em diante,mereferindo à Terra,.não direimaisindiscrimina:damente


"o mundo"". "Mapa mundial", considerarei-expressão não. apropriada; quando
eu disser "o metrmundo'', me lembrarei comumsusto,dealegria: que também
meu mapa precisa ser. refundido, e que ninguém me garante que, visto de
fora, omeu mundonão seja azul (...) Para vermos.o azul, 'olhamos·:para o
céu. A terraéazulpara quem a.olha do céu.Azul seráumacor em·si;.ouuma
questão de-distâncià? Ou umaquestão de grande nostalgia? O· inalcan.çável
·é ,sempre azul131.

Desse trecho,o que quero destacar, pata,encerrar o .texto, é a mutação de


,sentido sofrido por um·artefato comumente-usado pelos.historiadores:o mapa.
Com essa mutação. nos valores e conceitos espaciais da cultura Ocidental, Clarice
atenta para a total falta de sentido em chamarum mapa da Terra, de mapa
mundial ou mapa mundi. Esse documento, que possuía uma espacialização
·.específica,• nascida de regras e convenções historicamente datadas, mudava
de sentido a.partir dessas mutações nas concepções espaciais,rnotivadas pelos
:acontecimentos históricos do período. Até mesmo a cor azul, signo quepor
muito tempo esteve ligado ao céu, passava poruma total relativização em seu

129. Ver: FOUCAULT,Michel. A grande estrangeira:sobre aliteratura, p. 126-132.


130. ,Ver:.LOPES, Hen'rique•Masera. \'Nas·paredes ,da•pedra encantada: :Era .Espaciàl,
Contracultura e Nordeste àderiva no Cosmos" In: Acaminho do planetário: ·uma história
de paisagenssonoras,poéticas e existenciais das psicodelias nordestinas (Recife, 1972-1976).
Natal:. Programa de Pós- Graduação em História, 2017(Dissertação de Mestrado), p. 85-
142.
131. "Cosmonauta na Terra"In: LISPECTOR, Clarice.A descoberta do mundo. iode Janeiro:
R

Rocco, 1989, p.??


'-TECEl:ÃQ DOSffEMPOS

:,.sei)]\z'4ldê~avá:de~et;,pa,ra,aptm1s':estí;lI'j.era:tudo,uma.questãoHe'distânç(a;,era
apenasumaquestãodeposição noespaço.Azul, porisso mesmo,,era:agora ,uma
questão não apenas dedistanciaespacial, mas afetiva,subjetiva.Azul era agora
tudoqueseviacomoinalcançável.Azuleraumanostalgia,asaudade pacificada
de algosabidamenteperdidopara sempre.Azul, :er:a,'-p:qrtanté;,um:a questão, de
.. ·p.ôesia,·;étaeurtrestâdq çle~p,c,esía>Devemospensar.tnes$as.coisas,qúartdo formos
,.·, .. ao arquivo,ele
. - '-. --
que
-
é-o"nossomundo" ,' •
·Capítulo·4

Raros e rotos, restos,rastros erostos:


os arquivos e·documentos.como
d• ·~ d te poss1b11
con1çao ci ddo d.1SCurso
·1-·1·d1aae
.. t·or1ogratco.
hust ... ;,f.

1Rar.os:,-primeiro•movimento

.•,,Elessãoraros.Assini{az supor amaneiraeo cuidadocomque ·são,guardados.


\Eles·doi:mem.acondicionados.enicenvelopes.:de,papel·patdo,:de,itados,no:interior
.· . de umadasgavetas deum velho móveL-.-Gaveta,permanentemente trancada• a
;chaves.:Eles•p0ucas vezesveemaluzouvêm àluz.Os maisvelhosseaproximam
.;de completar quarentaesete anos.Osmaisnovosrodam as ;quarenta e:quatro
;p,rimaveras; ·ou será invernos? Como saberpse,da·escurídão .que os ,emi.olve e os
,.protege da ·ouriosidade•e,.olhares;alheios, poucasvezes,tivera:m, a,,pportunidade
desair? Aquele queos possui, queseconsideradonode suasexistências, algumas
·vezes,recorda~se deles;·talvezporqueatravés deles se,recorde .de outra pessoa,
• ,aquela que um, dia os ,produziu· e osenvioua umaaventurosaviagem entre
Paris e Lisboa; -Nesses dias finalmente podem ,sair da·prisãodaquelequadrado
• . de madeira, podembater a•poeira,que os envolve,·podem respirar.ar.iresco.
. Sentemo calor de mãosque ostoma comcarinho, que finalmente •permitem
.cque:seus ,co.r•pos,mude;m de,posição;,que sedesdobrem,'que,semprumem, -·que
1retesados, possamcumpriramissão aque foram destinados: relataremeventos
.;•<leum dia a dia;::contarem o càtidiano âttibulado; angu:stia:do;; triste,solitário, de
um jovemquetinhaentrevinte eumevinteetrêsanos, deumpoeta português
.que,se.sentia·exiladona ;capitaLfrancesa·,.fazendo chegar ao outro,que deixara
,comap.enas.:dezessete.anos,na,capital,portµguesa; o que por elesentia,aquela
.amizade,;que,se dizia maior do queamor, quase adoração.Por vezessentiam
que algo os umedecia, talvezosuor daquelas mãosquesentiam estremecer no
contatomais prolongadocom seus corp,os de,papel etinta, oli talve_z;cporuma
lágrima que, furtiva, viera· despencacdaquelés:.dlhofneg:roi.'e tristes que os
costumavam mirar. Unicosolhosqueatéaquelemomentoostinha enxergado,
. l'ECELÃO,POS•'.fEMPOS.

• '

. i.s:;t1~~9eique;'actnasãerem:f:~9nt~rupl~ranvqutros :oll)os',tristes::e,..orvâlhados,,que,
·. , aomesmo tempo que osobservavacom cUàféMão)devotacla irnlhos:queridos;j á
ofazianum tomde despedida,poishaviamnascidoparadelelogoseasilarem,
, ',,-qaiçeratti•"dêstiJ:tados.:à;iretn de.enco~tro-.àquele outro·par~de:olhosi·que.agora
novamenteos mirava.Nasceramdestinados ao·tiânsito,·•nasceram· destinados
a seremcomopontesqueligassemduasalmas eestabelecessem·•entre,·elas. • a
• /ÇOI'ilµil~cãçã,õ132. • • • , .. .. . .•
:•· . • •...i;iQüe~:os'fêi,p.á'Sçet{qtrerrúis.iípd~içm,q,trpela/prüneiravez·em,a.Igo•chamado
. envelope,quem osfez viajaratravésdoquesouberam Chamar-se mala -postal,
jogadosemum porãode navio, aossaltos e solavancos do mar, os costumava
..-··•· çh;µfjr'.pó't':trcês:mo.mest.par.ete,4tte)evarído;êm::conta-:01,tamanho·e·a_aparência
·.,,:''CJ.H~ipp~súianfha:vi~cqqllelés,éhamaclos·de-:ca:rtas,·Jâ:lve,zpor·seujêito,digamos,
mais feminino,poisder-tà.madFl~/alongadás;.;cheias.·de· curvas ·e reentrâncias,
; ·,.: m.:'iüs,J:hgkpsitp;,,S'éf:Ppre•,'extens\il,S,i<}l.Wcâs,;yezes·iiriham.c:nàstido em vários dias
parto de dolorido,febril,angustiado.Haviaaqueles a .que. chamava•.dé:postais,
.·'mú,ifg:111füt~1Péutós:.de;ci>rpo,.·corpo•'mais:adensador·•Corpo,já seni.ipr.eenchido
.. por caracterese imagensque nãohaviamsido alicolocadaspelo ,demiurgo •que
·:•.'co~',criá-r'â/pâtecejigo)d~stinados\àile:var,µm,,tecado'.,mais br.eve,rmais rápido.
a Talvez diferençanosnomes adviessedopróprio fatodeque as chamadascartas
nasciam quasesempreemcasa,erammaisdomésticas, talvezporissotambém
..•. •le.yª"s~~rt,linórtiêttéinifiiriój;Jih>s,difO's,pti.stl:lis;:rriáis.mascú:linos;éamenGOntrados
equasesemprepreenchidosna rua, muitas vezes àspressas,emmuitas ocasiões
nas mesas decafé oumesmo nobalcãodaprópriaagência decorreios.Havia,
noentanto,entreeles,umtal"Diário queeratratado comtantadeferência e
•.•mimos :gúe·:e.hf·deot:'.atj_s:3,r:íéi\íme:Iêirhtódos.:Esteiditd',\lDiár.ió''.re.ra :composto ,de
... ·.siP~<f\i:~nos:':pe~a-ç9s(de;papêl,,pequenas-,ano.tações,a;;que·0,demiargQ-êhamava
·• -:_. dê,~ilhetes/$,.:ê~se,ditdJDiátio~:p:pÔeta?;pareéia:,.resé.J.War,suas•confiss.ões:mais
· íntimas, seussentimentosedesejos mais:seeretos; parecia, em·certos,momentos,
segredar-lhesao ouvido, ·em. sussurros _quase inaud-iveis ,para ele mesmo, em
. longos profundos sus e piros,asdoresmisteriosasque lhe atravessavamaalma.
4- Masnão podiamqueixar-se davida, pois comomesmocarinho com que
::eranttraJa'do.s ;ao.mascer,,-comc o ,111esma;afeto:-:çQm;.que ,foram,geradosr,er.am
· rftel)idos'eirt:fte'.ti::a~,portµgues:asf!D,epois':de,seremJogados ,deumlado para ;o
. outro,desemisturarematoda uma raléchamadadecorresporidência;/depois •
' desacolejaremdentrodeuma ,saçola;;transp-ortada<pOr::um:hom:em:'chamàdo
carteiro, terminavamporserrecebidas po.:r;,àquélas, mãos.ansiosas-erec~püvas,
:..•it.'9il%'as'lib~rtávan;rçla\pt:isâo·'t10·tã1,env.elQpe;éeµtão:-ôlh0s·pressurosos,percoiriam
, comexpectativae curiosidadeseuscorposde papehe:letra;t.levando~.os Hµasesao • •
132.'Anarrativaque se faz nesteparágrafoenosseguintes baseia-senasinformações contidas
' .• ,j,.. :;pb'fivrci:G~~TILHQ,:Çiüillieimé'.~é,(o;g.}f3rit6ni-0..Nób{ê.;,cpt-responaê~tia:Gsboá:1N,8M, · • .
··:·•i;,,-;,;1982( "· 0•' • • • • • • • • • • '• ,. ,.,

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.. -;..
DURVAL MU NIZ DE AlBQQUERQUE,JÚNIOR 81

arrepio.,Depois, cada umera-logo esquecido;jogado naquela gaveta; pois outros


logo, vinhamlhes fazercompanhia, jáque aquele que assinava sob o nome de
remetente não parava ,de enviar filhos recém paridos. Mas, de repente, essas
. chegadas foram escasseando, a gaveta em que estav.am ençen:adas era aberta .em
. ü1tervalos(de. tempo ·cadawez tnaioxes, quando-.jáse-:acotovela:vam âli •dez.enas
das chamadas cartas, umas duas centenas dos ditos postais e o.tal ·"Diário': com
• .todos os. seus bilhetinhos. Raras foram ficando as oportunidadesque tinham
• de se,,desnudarem,diante .de olhos gulosos porse alimentardo que traziam
tatuado na pele. Um dia, assustados, ouviram alguém se aproximar daprisão
>:onde estavam encerrados: e pronunciandois: nomes que,perceberam, a eles se .
. referiam; mas como nunca os tinhaouvido e não,sabiam:oque significav.am,
·temeram ·e tremeram:diante deles. Ouviram -alguém,·dizer-· que eles eram
documentos, quequando iamporaíseparadosjá não mais chamavam-se cârtas,
postais ou diário, agorateriam sido rebatizadoscom este nomedescomunal,
eles, acostumadoscom seus nomes deno máximo três sílabas - isso porque
um delesteve o enxerirnento de possuir umhiato, eram agora:rebatizâdoscom
•este vocábulo; vejam quepedante!, gigante de quatrosílabas.Eficaram também
sabendo que elestodosjuntos compunhamuma coisa ·chamada. arquiv:o: Não
sabiam bempor quêmas,nestemomento, descobriramque estavamAicando
velhos,desconfiaram queestavam ali naquelacondição hámuitotempo.Enão
.cessavam. de se .perguntar: o-.que·.significa·.ser um documento?:Jsso nos, torna •
mais importantes? ·será que isso alterará as condições-pouco :confortáveis, em
que vivemos? Se juntos constituímos umarquivo,isso pode significar,tomara
Deus, que nunca nossepararemos? Mas oque oshumanos costumamfazer
comos arquivos? E meditavamrnfinaLcomesta:,convivência prolongada em que
nos <Colocaram terminamos por>nos afeiçoar;:Até:.otal ,"Diário", hoje nos, parece
. sirnpático:Mas o·quesighifrca ·serumarquivo?
: Roiaíqueainda ouviram alguémchamá-los deraridade e,ligando wna:coisa
a outra, pensaram:com:seus borrões:,se somos.documentos,:•se:compomos,um
arquivo,se somosuma raridade,documentodeve ser uma ·coisa rara,;-arquivos
rlevem ser uma raridade. Mas por,queseriam raros? Espichandomais as orelhas,
ouviram uma voz que nunca haviamouvidoanteriormente dizerque estava ali
porcausa deles. Que eles lhe interessavam,justament~ .porque'documentavam
avida, os sentimentos, as emoções, osacontecimentos da vidadeumhomem
, do,passado, 'de umpoeta,que escrevera um úntcoJivro e dera a eleonome de
S6%°, tautológico não!, poeta quejá havia morridohá mais de quarenta anos.
.Essa voz os fe:zAicarsabendo"donome do demiu,rgo;'daquele;que lhes dera a vida
· e que,surpresos,descobrem trazereminscritos em seupróprio:corpo, nome:.que
parecia assentar bem para aquelas,mãcis finas e 'delicadas;.aquelernsto.pálido e
magro, .contornado pelo cabelo escuro e de.. cachos revoltos, rostoque chamava

.133. ,,NQBRE,António..Sô..Paris: Leórl -Vanler; 1892.


. l'ECELÃO,POS•'.fEMPOS.

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magro, .contornado pelo cabelo escuro e de.. cachos revoltos, rostoque chamava

.133. ,,NQBRE,António..Sô..Paris: Leórl -Vanler; 1892.


'TECELAOcDQS·.JEMPOS

.. . · . ·. • .

·-••>atenção:,porfsua;foisie~aêâesbliição:AritóríioNobrePElesseriam,uma.raridade
a um
pordocumentarem vidade homemque viveu no passado, porserem aquilo
, ,:que"sohrmfdesta,vida:}pôr,'\iiremde-um outro.tempwpor-.terem sido.aquilo que
-._ .. ·:restôt.r,ç.'e:Utnà·vida:quefoLutnyetdàdeiro-nauftágio.'fües:corneçaram _então até a
sesentirem importantese,ouvindo a: voz que-já; lhes,era:familiar-falar·commuita
comoçãodaquelequejá morrera eque os havia :dado nascimento,:começaram a
entenderprofundamente osignificadode seremraros.Não eram ,raros•:apenas
por serem opouco queescaparada destruiçãoentre tud0-_-quepertencera e que
remetia àvida eà obradaquele poetamortoque, ficaramsabendo, comesse único
livrotornara-se uma referência n:~-po.esiade·seµ-país; não-etatn rnrns. apenas-por
escaparemdadestruiçãoinexoráveltrazidapelotempo; eram rarostambémpor
seremoque ficou de umarelaçãoafetivaque desconfiavam,mas agoratinham
certeza,diante dacomoçãode quemportantotempo osguardava, tinha ,sido
tambémrara, especial, distinta. Ohomem aquem oestranho chama deAlberto
de Oliveira,queétambém nomeado depoeta, ao guardá-los por tantotempo
naquelagavetaescura,fez com:;que -'eles;;se :to:r;nassem_ ,raros. Descobrem-se,
:,;assim.,,pédaços'rle;urrúpassadcxainda·Vivendono-presente,,sentem então-o p.eso
em
dosanos seuspróprios corpos, tomamconsciênciade quesãorarosporque
• carregam namaterialidade dopapel e da:tinta_ que os.compõem, nas mais-de
• três milpáginasesborrachadas, talcomodisseraodemiurgo, a 'espessura. do
·, t!JPr.óptió ;têr):lp_o;'descéibreni:c_,setestemuiihos deixàdúspor,uma época,.descóbrern
. que,emmeio adestruiçãogeneralizada de seussemelhantes - pois sobre.isso
,;-cmnversaridongàmente;aqueles.doisfüomens .,.. - eles:escaparam, eles estavarn:ali,
•· :1quàse:s()zinhos;.nataréfade indi0iar,paraso:presehte o que foraesse:passado;-Eles
,;erarn:,iarOS]iorque·descobrem:tam.bém quemão·,era:comum,que:dois,homens
mantivessemnum curtoespaçode tempo -'>-afinal timham:sido criados em
'•".apenas'Jrêsanos;\entre'J'.890.e1'893;·:quan:do:,o\demiurgo,decidiu·inter-romper
suaprodução -umacorrespondênciatãoconstante e com oconteúdo que
,,parec:iam;,carn:gar.::Pois',ja tinham,ouvido; o tal"Alberto falar no cuidado com
• :;que:'eles:deverfam:sei'ittátà<los;Semp.re,parecerido--pelotomdesua:vozquehavia
-• medd:.e_ plidor:etn'torriá;;los:pú'.b1icos,6mmosttá'~los:para,,outras-pessoas.r-Eles
eram assim,raros,tantopelaquantidade,quanto pelaqualidade, pelo conteúdo
que traziam.Eramrarospor teremescapado ·da.-.destruição 'generàlizada;,por
viremdeoutrotempo, porestaremligadosà vidae ao nome de um criador e
• - A:le-.um,recepiortarribênr'diferentes;_especiais;,homens de,nome na-sociedade e
- ,hó'te,njpo_de:_que'Jaziam,parte;,Eràm.rarospor fimip:orserem'documentos,por
:constituírem~úm:arqúivothàmado:de:-privado;'fntimo,,,pessoal,,bi<;>grâfico~-Pºr
,:desçobriremfi3'.través:.$lªquelasconversa· que escutam;. ·que eram,documentos - e -
,-,arquivós;que.,difiéihnente:v.inham-a:,público.·e,quedificilmente,eram·conservados
na sociedadea queosdoischamamdeportuguesa. Quedam, no fim daquele
dia, satisfeitos e enfatuados com,a-sua própria ,importância;.chegam quase a se
_ • _, ,sentirem.nôbres:como o seu demiurgo. _
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 83

Rotos: segundomovimento

No dia emque ouviram a conversa entre otal Albertode Oliveira e o


estranho que ficaram sabendo chamar-se Guilherme de Castilho",que também
·apresentou-se como sendo, que.palavrão!, biógrafo de António Nobre, foi uma
das poucas vezes-que tiveram a oportunidade de saírem da escuridão e da
solidão daquela gaveta. Quasenãoacreditaram, seus corações dispararam, uma
excitação tomou conta de todos quando ouviram a chave girar na-fechadura,
quando escutaram asvozes cada vez maispróximas daqueles doishomens invadir
o recinto em que estavam. Emboraagrupados,espremidosnos tais envelopes
sentiram seus corpos serem atravessados. pela lâmina do olhar curioso que -os
olhava pela primeira vez, fascinado. Se eles, documentos, se ele, arquivo, que
são tidos por seres inanimados e-não sujeitos à emoção estavam naquelefrenesi,
imaginem o que não deveria estar-se passando com o coração, as.:emoções, os
sentimentos daquele forasteiro que os mirava· pela primeira vez. Embora ele
tivesse se apresentado como um estudioso, um pesquisador, como aquilo a
que chamara de biógrafo, embora tenha procurado apresentar-se como um
homem que teria diante deles uma atitude totalmente racional, de interesse
apenas pelas informações que pudessem deles colher, como não perceber a
emoção, o .sentimento; quase a comoção quese apossava dele no momento que
os mirava. Nesse dia, apenderam mais esta lição: os documentos não falam
ou dirigem-se apenas à razão,·eles não impactamaqueles que os- leem apenas
através das informações, dos dados a que dá acesso; a. relação dos pesquisadores
com os documentos, com o arquivo não é apenas da ordem do racional, os
documentos emocionam, mexem com a sensibilidade do pesquisador, os
documentos tornam-semais ou menos relevantes;tornam-se dignos de eleição,
deescolha, de seleção, de recolha, de registro e de citação pela· emoção que
causam no pesquisador, pelo impacto sensível que exercem sobre quem os lê. A
ideia de que a relação com o documento é apenas da ordem· do racional é uma
mitificação. Estava escrito naquele rosto, naquela manhã, era perceptíveLno
brilho daqueles olhos, no nervosismo de suas mãos, na felicidade estampada
em seu cenho, nos-arrepios que, notamos, percorria por instantes toda a sua
pele, que nós causávamos naquele pesquisador mais do que uma simples
curiosidade fria e racional. Guilherme era pura emoção quando nos recebeu
em suas mãos, quando nos retirou de nosso esconderijo, quando nos despiu
dos envelopes que nos guardavam, quando ofereceu-se para que pudesse nos
desdobrar, pudesse nos abrir, pudesse ter acesso ao nosso conteúdo. Sentado,
espalhou-nos sobre a mesa e foinos percorrendo um a um, com seus olhos

134. Os parágrafos seguintes contêm'inforrnaçôes presentes na biografa de AntónioNobre


escrita porGuilherme de Castilho, Ver: CASTILHO, Guilherme de. Vida e obra de António
Nobre. 3 ed. Amadora:Bertrand, 1980.
.:\,'fEQELÃ0•D0S.·:TEMPOS

sôfregoseenternecidos. Comodizer que,mesmoquenostenhachamado por


• essesnomes tão impessoais,tão oficiais;...;. .dócumentos e•arquivo.,..,;.:não teve
: conoscouma relaçãodeintimidade, umarelaçãomediadanãosópelosconceitos
epré-conceitoscarregados em sua .tortsêiênoia;:e'núsuá racionalidade,·,rnas,urna
· relaçãomediadapeloafeto,pelosentimento,pela sensibilidade, .:pelo :.que. está
no plano dó~ihtonsciente/da,empatia,:da- e1119ção ?<D.urante=.todo aquehdia, ele
.•:1<;>inóu-riot.i~deJriÍ.'uneras·informà_ções;:nenhurri:•de-nós-.escapotl/de seu.escrutínio.
Para variar,o "Diário"teve deleatençãoprivilegiada,sempreele,esse :exibido!
.. · Inúmerasvezes o sentimosestremecer, se emotionat;-quase chorar. 0utrasvezes
um
esboçou sorriso, porquenossodemi urgo nãoera daquelesque escrevesse
· algoque valesseumagargalhada.Mas, nesse • dia; fi:c::ou :.claro:;para:,nós,;_quando

· um
um ditopesquisadorsedebruçasobre nós,osdocumentos,quandofrequenta
arquivo,elenãoofazdestituído de suas-outrasfaculdades; ele não.ésó:razão
0

e inteligência.Comovocêsficarãosabendo nocontinuar denossahistória, a


:· <;in'eni6dâ:foirtm:a fachldade.-muito'útilizag"apelopesqi:Iisador nessa manhã, mas
•. elenão compareceu al}_os·so.encontre muiticfo·s,ó.da.rázão e:damemória;·eleNeio
, ao nosso encontroporinteiro,comtodasas suasoutras faculdades. A'emoção,
• • aimaginação, o desejo, tambémali estiveram presentes eforamconvocadose
.-:.,.,àf~râdqs',por.nóssos'torpusidocumentais.i'Pois•·isso~ficou'muito:.claro para nós:
·, • naqueledia déitrab'à1ho;,:aquele1-sehhor;fot;profundamente/áfeta:do,:por:,1riossa •
' presença,nósnãoapenaslhe fizemostercontato comoafeto queuniuaquele
que nos enviara eaquelequenosrecebera,master contatocomseuspróprios
• ~s,entl.m~IJ:tÓ~i-riós:fizerrros1e(eitQ;nessehomemmão:apenasem,suá·mente;,-em seu
·,:éérebro,-T\tastambé111;no;seu;c9rpo;,,no)s~l'!.'i.espkito/Nós:'quev;iemos:dé:outras
:.'. '.\lia:gens/perinitim.os-g\1e·.a,quêlêJ.homem, ,usandotaiimaginação;:único meiode •
transporteàmão naquela circunstância, yié.jasse até bü.ttostempos;,:viajasse a um
_,;,()i:ltroiP~is\a-.:uma:ó(ltraxi.dacleJ.:permitimos:que,aquele homem;.-através,'desua .
sensibilidadee desuacapacidadedeimagin ar,revisse o .to-sto, o. corpo-daquele
a
, homem, quem deveria devbtar,âfeição e:interessetpois se.assim não: fora, não
·. ,.:se'.disp.ôtí~,:.~tesçrever:o,:q,ueJçhama.v.:a\de',suá,biografia,.cEle,,pôde; :percorrendo
asnossas linhas,vendo. as,fjgurastque,nps,decotàY;a,:sentindo,::\ próptia>;;textura
denossoscorpusde papel,inalandoo cheiroqueexalávamos,cheirotalvez de
- \~ólo.i-;._dl:!ipoêiriii'_cle,,ceiillose :,envêlhecida:;, cheiros atravésdos quaissuanarina
,·,,ansiosa,pro.cur,a,ya,:;çá,ptár:-quem·,sàhert:ra1os;restoScde,,perfume'daquêle.co~po,
;:daquelâ%imãos,,que=.em'.-t:lád~\m:omento·;empunhando:·uma'.pena·.resolvera,nos
a
. ·' fazernascer, imaginar figuradaquelesujeitoa quem quer.ia;::tamhém usando
ao
o recursoàtintae papel,novamentefigurar.
: ..••• Masumacoisa ri:os;chamou,.atenç.ão~na,qu,el'etlia, era;a,tarefa:,mesma; a
:• . . ·e:;:ttivida"de;'lf,qperação·a qué'se'ded.icàva o nosso;leitor.-J).ercebemos que ele,:talvez·
pelopoucotempodeque dispunha,ou porquetalvezduvidasse dadisposição
de nossocarcereiro edonoem noslibertar paranovas :Consultas· em; éUttas
< ••. •
oportunidades,tratavade copiat.trechosrpequenoscfi;f!gmentQsdo ,quetrazíafuos
•_ ,_ • • • • e •• •
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 85

'inscrito e escrito emnossa pele. Não sabíamos bem seguindo-qual critério,


supomos que deveria ter algum, talvez quandodávamosa eleainformaçãoque
desejavasaber ou quando em dados momentos denóslheemocionávamos mais,
quando falávamosem coisasternas, amorosas, em coisas sensíveis, -:ou quando
nosso demiurgo através .de nós descrevia seu cotidiano parisino, ·expressava o
que pensavasobreseutempo, asociedade francesaou portuguesa, ou quando
comentava suas dificuldades financeiras ou a relação tensa com o pai e o irmão,
ou quando sederramava ,em -recordações, saudosas de Coimbra, de Leça da
Palmeira, da sua.morada na·chamada torre de Anto, ouquando, quem sabe,
falava da-impossibilidade de.corresponder às expectativas de-casamento,desua
Purinha ou quando, amuado, indignàdo, revoltado, acusava seu amigo de não
• corrnsponder aosentimento que por ele sentia, de ser um homemfrio,que só
-pensava na carreira de homem·deletras,para quem ttido era'literatura -nesses
momentos, ele copiava emseu cadernodenotaspequenostrechos do queem
nós ele lia. Temosque confessar que aquilocomeçou a nosafligir. Se hápouco
soubera-nos raros, agora asensação é de estarmos ficando rotos. Era como
se ele nos estivesserasgando em pequenas tiras. Nosso corpus eradilacerado
para que pequenas:partes de: nós viessem a aparecer renovadas em tinta nova
e em papel cheirando a novo. Ele parecia se comprazer naquelaoperação de
despedaçamento. Como um cirurgião com seu.bisturi e pinças; ia selecionando
e-seccionando partes de nossa.textura; de nosso texto, e transplantando-as para
outro corpus de papel. Nos entreolhávamos.e:nos perguntávamos: maso que
vai resultar .dessa operação a que estamossendo submetidos? Rara que servirão
esses fragmentos,soltos·queele resolveu levardaqúilo·quetrazemos.emnós?:Essa
sessão, que paranós parecia de tortura, erachamada por ele de momento da
pesquisa e, por vezes - algo que nos pareceu muitopedante - de levantamento
documental. E verdade que sentimos ser levantados da gaveta até aquela mesa
para.o.início de suaatividade, mas o que ele faziaagora parecia maisdissecamento
documental que levantamento documental. Parecia estar a nos desventrar,
destripar, .nosso pobre corpus documentaLia-ficando feito em pedaços>Será
porque ele querianosver sangrar? Tem gente, um povo chamadohistoriador,
que de vez em quandovem com essa conversa de que é precisodar sangue à
historiografia, outro palavrão! que a história•precisa ter personagens de-carne e
. osso. Talvezpor estar à procura do nosso demiurgo, como disse que queria dizer
avida desse homem tal como ela:se passara defato, na,realidade e de verdade, ele
estivesse à procura de.seu corpo atravésde nós,estivesse tentado a beber o· seu
sangue por nosso intermédio; afinal, na biblioteca do nosso dono havia o livro
que dizia ser deum dos mais famosos homens dessa espécie historiadora, um
.tal de Michelet; que dizia que essa espécie.d.e,gente pesquisadora adorà-beber o
sangue dos mortos. Talvez fosse por isso que ele nos submetia:àquela ope.ração
de quaselinchamento. Pensávamos cá comnossos·borrões: se desaparecêssemos
hoje, o que restaria de nós, seriam esses fragmentos, esses frangalhos de nosso
·'•''TECELAOc:D_üS:;11lMl'.05

22#±E±E#±Es?
""""C.a,,» isess.sses»d«soe
dequealgo denósseperdiairremediavelmente,deque,sedesaparecêssemosde

E±±±±E±±EE±27
quechegaraporúltimoànossa convivência, quejátraziaescrita,documentada,
umaespécie deameaçaànossaexistência.Nela,emtommuitosério,quase
·•· . oficial,bemdiferentedaformaíntima e carinhosa comque costumava dirigir- •
seaquemochamavade"meuAlberto", "meu irmão", "meuamigo, Purinho,

.7#%#s
1', /\4ifytf\!écque'tlelllí51\sj@',a;,pata,Ííão"'1/ia,",n,.;10:,eteí<r,ile;quo,pí:in<;ijialmente
• • • • • •;;-p\tid}~D°Iâr:fó:'?:':yiessê:c~,.p:(1bliG01\pots~;-st:gundorelenisso;,l;ignificaria.:a:,sua>''ruína
.:,niotal:}e;;e*gii:que,;fi(lS'lÔSSemos·•a,ele'!cieyolvi.dos135iC.om.o>dá·para"adivinhar,
..·•:<oC::Sr;,Í\lberto,riã&;ob.edeceus!aOi;p.edid,o;i:tâlv.ez..,p,o:r,quétHv:éssemo~Ypara·::ele••·uin .
valormuitomaiordoque ochorosoe revoltadopoetaparisinopodiasupor.
:•·N~:o:_:.sàbêrnos.,se.o:'faliNobrevoltou'.:à;insis.tir·a:i.este·,pe·dido;se,,Afüerto;t-tev.e,que
nosdefenderbravamentedoexpatriamento,o certoéquenosmanteve emseu
•···, :·:,ppq~ti,é.úibp(a;rt11s:tQJ'.t~efia,ddoc.3i'vivermasiso:rli:bras:de;:uma,:éômoda:Jechada
• • •· ·.·_YaJcihav~i~talv:ez,p.ót,;t.amb.é~:;jü,Jgâr.,qué.éra,rnos:rnesmo.tão:ameaçadores,à,,sua
moralcomopareceuseràmoraldenossodemiurgo. •· . • ..

• • '·
#E±EE±s±a
. traseiras.iEntre O$ dóIS.tratollfs,e:u:ma:conversa,que;;bisbilhoteiros como·som0s -
• .iffi.nãl,.p,orgue:,só.bsíÍi\o.s. pesquisadóres-podem'se servir de m:ós·par,a bisbilhotar a
· • .• · ·: vida,opassadodosoutros;nósnãopodemos tambémdarnossasbisbilhotadas? .
•• -ficamosaescutar.Orumodaconversa nosdeixoumuitopreocupados, umfrio
,;' ({ '
demorte
.
..• . percorreu
. nossasco
' .
lunas,osdoisseconfessavammuito.velhos,
•. • ·'. •. •. . .
• •
diziam- .
' •

- •. ·:\--~~-~-.:t:.:· .\.
'.º,DURVAL- MUNIZ DÉ.ALBUQUERQUEJÚNIOR 87

se cansados e_ perto de morrer.Ambosmostravam-se cuidadúsos - e.m relação


a0nosso destino. OtaLAugustoidisse·que,deyia-aoirmão 'morto a ·homenagem
ide.umapU:blicaçãocantes.:que·elemesmo·partisse'.ffendoficadoresponsávelpor
algo,.com um_ nome que nos pareceu dedoença, oespólio doirmão,nele não
'>encontrara um,volume•de documentos denossofeitiosuficiente para compor
- uma publicação que,ficamos sabendo, seria só de suas cartas. Nessa hora, os
postais e principalmente o "diário", entreolharam-se com um ar de indagação
sobre o destinoquea eles seriadado. Nessa conversa não obtiveramaresposta
quesó teriam quando otal GuilhermedeCastilho apareceu,trêsanosdepois'é.
• Paraencurtara:füstóFia;,as ditas.cartas-foram nesse:mesmodiasepanidas dos
• postais edo "diário"e entregues aotaJAugusto'. Esta:já.nosparecewurnaprirneira
•indsãodolorosa ·em nosso corpus que,mais tarde,viemosasaberque se chamaria
·-arquivo. Essaoperação de.amputação de .umaparte de nossos rnembros·,pareceu
modificar nossa condiçãomesmade arquivo, elejánão era mais o-mesmo; Entre
• ]á:grimas·ea:braços dedespedida,ainda escutamos esperançosos que o:talAugusto
iaapenas copiar aquelasquejulgassedeinteresse para publicaçãoe que,depois,
nossas companheiras cartasvoltariam a juntar-seanós. E,efetivamente, passado
quase umano, eis que elas retornam, rnascchegam,visivelmente perturbadas e
traumatizadas com oquelhesaconteceu. Umas contavam que,à medidaque o
talAugustoasialendo, iasendo tomadoporalgo quesópodiam descrevercomo
sendo perturbação, desorientação;:repulsa.Estas, dizem,cforarn atiradas-devolta
ao ·envelope,.como seelequisesserapidamente escondê-las, vê-las desaparecer
desuasvistas. Foi aíque elas com preenderamo sentido do que,seriaimpróprio
.para publicação,como-ele, não:cessava.de dizer. Outras pen::éberam que o .:velho
leitor.•e-copista;porquê'tarrib:émsededicava.a,copiá-laspara,umoutrocaderno
- .de notas, se distraía, ,ficava cansado e .com preguiça· de copiar aslongas cartas
que o: irmão:escrevia;"deixando de copiartrechosinteirosdas pobres cartas. Ele
• ·dizia paraquem quisesse ouvir queiria delas ·copiar só os trechos-interessantes.
Quando elas contemplavamas suas cópias, .era como se sevissemnum espelho
- .: :yoltado para,produzir deformações caricaturàis;. Faltavam literalmente :pedaços
- -inteiros do que.traziam escritoemseus corpos,eracomo seencolhessem e, o que
_. mais doía •era·contemplar.os·.enormes -_cortes,,as ·enor-mes lacunas, as-'êrtormes
- incisõesque o .tal Augusto faziaemseu conteúdo. Talvez porjulgardadas
·.·:passagens c:omprometedoras, por;considerar·dadaspalavras; dados: desejos; dados
pensamentos,.·dados sentimentos expressosporseüirmão-através-rlaquelasletras
e edaquelas1irrhas como impublicáveis,'.elesimplesrnente,res-olvia:omitir:, apagar,
•. rasurar; silenciar o que ali seescrevera. E o fazia, como descobrirá mais tarde,
-,escaridalizado; ota1 Guilherme de Castilho; ao ver as provastipográfic.asdolivro
, a se:r,:pUblicadopelostàlAu,gustoNobre,,que· elesequerindicava,, usando qualquer

136. Informações presentesem:CASTILHO, Guilherme de (org.). AntónioNobre:


correspondência, op. cit., p. 11.
ss±. •
TEOILAQ.00S '(EMPOS

/.:~,tíJd:dé·cbn~er,rçã,o;'a:adµltenlç,ãó'que,ali,háivia·sido·féita;'ÂS'tart,asvôltar.all,1~.assim,
desiludidas como destinodos taisdocumentos.Descobriram que.assim. i:::omo
' ' •.• sãoproduzidos.pormãoshumanas,estãosujeitosaserempor elas :destru.ídos A

:·· eadulterados.Perceberam oquãoprecárioéo estatuto ,do· documenJo.., O ser


• ,, ,,documento naçla;·garante~ poµe•até-~•\gtííficar.urn,risco. ffinhaiwouvido:aJg.umas
··_,:.. :v:e_tes;:6/;AJtfert6~1'afa.r:;:que~Qsldó:cuinentos",étarn'inUito:Jmportante~.\p_ois .·eram
ao
aporta deacesso passado. Semeles,eraimpossível escreveraHistória dos
· ··?pbY9s;,·reaµperari,.verd,afüfado.§:fatos::qt,1.e :rnareai;am ·a,vida,demma,dada,n;ição

±E±E2±±±±.±±2±±±3
? - :(ll:Ú:>act1.r1te-cetâ:4e.;v-erda.detéo~ios·;hom!:!I'l..S'.'·;Ma.sragota;,punham"'Se'-a,i:efletir:
. ·• ...•?c9itto:'b·d0,C:umentoj,99:e;~er;gararttiületac.esso;ivendad_e;-à•realidade;.pode . ser
,. ; _.'•:,~têstérrnw.ho,ô,o::qúecsç,.pas,s9,u,~corn(\)1)0dés,€r;evidêncüi,;dndício,,átrav:~s·.doi,qual
o
se reconstitui passado,seeles mesmosnecessitam serreconstituídos, pensados
, ••• ·,;_,qµanto;às:operà,ções:qu'éo:s:.;pro:d:uziram,,se·eles-mesmos;São.artefatos·fabi;:icados
•. · ·.• ·}fp.6-r:pp,~rações:ide'ras~ta/silen~iament9,;idísto1;ção,,encobrimento;.ap3:gamento?
• . . :··· {(:fonioi:S:àber9...que,ho.uve:teahnente;.verda;deirá:mentei:entre,A.ntónioée'Alberto
· sejá na escrituraprimitivadenossoscorposelejá i:isara:de,disfarces;p ara:falar
.~,'iúl~seus:sentimentos,·qué~prêferiu:•Gha:mar.de:~Jissô''-;;5e'depoisne>s·quis•·de-vólta,
: ••••• : A'ãlv.ez.paranofdestrúir;is~:tüdo,o:qúe:Albetto.nos:·promete,de:futuro·ésermos.
publicadas aos pedaços,aos fragmento.s;..âdi:ilterá.das, éheias de escórias feitas por
• • ·':\umJrmão';vélh~:~ari:o:r.ilista?:Agóra,enterido hem :por:que somos-taros, -embora
/)latnhém::éntertcl~os:.,mêlhótJâil)4a.:po:çque$.Omqs,rntos1F.. • •

,;:fR-esto;s;.'ter:ç~iro,movunento.:.

• Aquelasqueentrenóssechamavamcartas,quenos deixaram tãocontentes


por,pelaprimeiravez,saíremdaquelaprisãoe daquelasituação de obscuridade,
•• •~que:so.tiber11n:r!mtusiasma~:las:'.queiamaté.passear.numa,coisa'chamâda:automóvel
epercorrerasruasdacidadechamadaLisboa,coisaquesóhaviamfeito uma
····.cf:w;tica:vez;ia'qs,~orttboih,o~súlentr0:cleuma,sac.ola,i,n:aicheirosar'volta.ram·'assim
profundamentedesiludidas comseu destinodedocumento. Querdizerque
serdocumentoimplicavasofrertodosaqueles percalços?Jásabiamque, :para
•'· :· sê-lo,alguémprecisavaassimasnomear, sópassaria m de cartas adocumentos
: /qµarrdofalgué1n1.-quàndo:;algtl'lri\humanoassimo ,.deddisse:tNãci,bastava,que ·o
/0 iitfoüu,rgq;,jàpibénit4urnan-0it;âs/tivesse::ériàdp;,.es.ci;it9;'"pr-0duzido;,,nãohastava
quetivessemsidoguardadaspelo queridoAlberto,quetivessemconstituído
•· aquiloqueele chamavade seuarquivo. Descobriram,dolorosamente,que os
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 89

documentos estavam sujeitos.a. passarem ·p_or:outras• operações-quejam assim


os configurando enquantotal. Ficaramsabendo queosdocumentos são feitos
da mesma forma ;que aquilo que indiciam, :pois·-estão ·sujeitos :às peripécias e
-a:conteceres que ocorrem:no. tempo..,Mas também :são ,artefatos, são, produtos
da fabricação, deintervenções diversas quesedão ao longo dotempo. Ficaram
·•·pensando naqueles;::que:leriam,. no:futuro,. aqueles arremedosde simesmas,
aquelas ·Cópias, :·porque .não;.<lizer aqueles restos delas mesmas, que imagem
poderiam fazer do que se passara ·entre-aqueles dois homense elas -relatanuri.?
Escandalizadas,contavam queo irmão do poeta não só desprezara a maioria
-,delas, ,alegando ser .impublicáveis e. seminteresse - imaginem que,-de-dezenas
'delas,· teria copiado:apenas dezoito. cartas -; muitas vezes, :perceberam que ele
sequer conseguiaentenderoque o irmãoquisera dizer. Como oprópr.ioAlberto
confessara a Guilherme, na correspondência·:de·Nobre havia trechos-cifrados,
:,referências a•ev.entos, pessbas e situações que só os dois,wn.heciam e que,usavam
disfarces para aelasse referirem: Elas sentirarn·quenãosó aqueleancião·queaslia
parecia não dominarmaispartedo vocabulário, dos conceitos,mas queopróprio
contexto em que foram ,produzidas, como elas próprias, haviam envelhecido.
• • Em seus· corpos. estavam. escdtos palavras, ,·conceitos, nomes,, significados. que
haviam se perdidonotempo. Elas se tleram,conta<leque atarefa que:se colocava
para aqueleprovecto pesquisador se dava-não.apenas.no plano.da·leitura;e da
cópia, ·mas no plano .da decifração. Elas sesentiram como um, velho papiro
:precisando ser decódificado: Se :elas:já.nonascimento erarn produto-de .disfarces,
de representações dosenhorNobre, deencenaçõesparachamar aatenção do
outro,sejáhavianelas ouso deumalinguagemcifrada, como poderiam ser.lidas
,simplesmente·como:o.relato do que·realmente;wer.dadeiramenteacontecera, por
lim homem:que;pareGia sequer .entender, ou.não·querer entender e ver,o que se
passara entre os-dois correspondentes?E se elas desaparecessem, e sentiam ·que
isso era bem ·possível, até pelo envelhecimento do:qual tomaram consciência,
o que fariam as pessoas com·aquilo que delas restari::i? Aquelas dezoito cartas
• mutiladas fariam quesentido,'quemensagemtransmitiriam:estando :amputadas
deseu conjunto? Ficaram mais indignadasquando souberam que o livroa ser
publicado pelo Sr;Aµgusto Nobre chamar-se-ia Cartas de António• Nobre para
Alberto de Oliveira", pensaram consigo mesmas: - Mas isto é um engodo, uma
falsificação,a um pequenoextrato da-correspondência o tal-senhor vai' dar esse
nome pomposo, induzindo.as pessoas ao erro de pensar-que aquilo era,tudo.que
os dois amigos haviamescrito! E, jálacrimosas, foramdeitar-se em s·eu:envelope
pardo,lamentandoodestino dosdocumentos.

138. _,Essas informações-e areferênciaaótituld do livroencontramos·em: CASTILHO,.Guilherrne


de (org.), AntónioJNobre:xorrespon'âência, op. cit., p.12. Não sabemos se olivro chegou
aserefetivamente publicado, pois em-nenhuma bibliotecà portuguesa, nem mesmo na
Biblioteca NacionaldePortugal, encontramos esse titulo.
STEGEtil.O POS•:113MPOS

que
±5os entrenóssechamavampostaisouviramtudoaquiloapreensivos.
')Eutt~/il~s';,~pep.a;sum,Já,tjv~t~essaéXp'êriêntià·de:•sêrrêtinfüo:i:le:seu·esconderijo,
., enviadoao quechamavamdeperiódicoparaa talpublicação.Ele não'ch_t;gara a
• )yér'.~,1:~sajtaqd',llétomc/fi.cou,sfuitsilhü~ta;qefp-oisde:setpassada,pela.tahmáquina
. deimprimir,poislogofoidevolvidoàsuacondiçãodeprisioneiro. Todoshaviam
-escutado naquelamanhã, com.·ctfrta.~sperança,,cf:Alb·erto':dizer·<\º .Gt:iHherme
%r±7
sendoa talpublicaçãofeitapelohomem quedemonstravaterporelestantoafeto
eapego, queos guardaraportodaumavida, nãodeveriapadecer dos mesmos
problemasquemaculavamatalpublicaçãodascartas,nãoseriado modocomo
:-Vi:iliisa:êãhavani:derelataifMasesté~rtttisias111i;rlqgo'Se"àJ;refeceqe-detilugara,maus
presságios, quandoo ouviramfazerasseguintesressalvas:que eramdocumentos

::% ':-JfüÇ.t-piétaçã.9{d.et:ifrariµ9,o,:qué:em:rrúiitos;passos,;etaquase'linguagem:dfrada139,
revivendome mórias e:reconstitrundO'am\,i~ntes.inteiramenté'délidos:p.elo.tempo.
Principalmenteessa palavra, '-'delidos'i':causou--lhes .frio,nas -colunas;,fobassim
•- quese sentiram,delidos,eessenome nãodeviasignificar boà::coisa:;<,De-um•só
i golpe,ficara m sabendoque,se chegassemaver aluzdapublicação, nãoseriam
· ••.•... t> _;, i,~di>s\;le,$',a\ter.,é,sa:so,rte/Assitti-:e-0mo:as,caí:tM1J>assariàm·p:orJirtvpio,cesso' de
,,, • ,.,__:sel~çaÔiddgµà1nã;oJábic1U1;quàisos,.cfitériús;üu·sejar~!guns,-i>.utalveza;mai0ria
::·-d~lês:.,ç<lritmtiáriàmAevando,suai\ii:da~deatmári9;·dele:não,;5aidam-é,''emboràotal
• ,:· ·: ,át!ii~dó:lê\faS$ecÓ nojüé1d~cônrôda:;-:elesn:ão;-se;seritiaminada iê:ômodos.,naquela
. ·si14!içãohFibátarri,_sàheíido·àinda-..;que::otAlbertoacompanhatia:. itpublicação-
' : delesdenotas'cexplk'àtiVas,,que~ajtrdasseµr na -interpretação. de dados: trechos
ele
que disseseremmais delicadoseescritos disfarçadospor umalinguagem
• • • ·•·:qi.fr~élà:il\'Íá:S/01_eôitaraméom!seus:cârtõêsi-;~lbeit0:lião,esta'ria',assim'quetendo
• _-;ürt,d,uzir,ªqüe1es;:queo~Jeiiam~a:.e:htehder'idadas;pas-s_agens'tia,maneira:que seria
• maisinteressanteparaele?Ao seproporaexplicardadaspassagens dos escritos
deNobre,passagensdisfarçadas,Albertonãopoderia aelasacrescentarnovos
·-i-@sfarçés{;igt~gàr,-,s,ehffdos•'•e;'~ighífié:ados{que:a:li rião• se;;encóhtravanil"·Eles,já
0

, ,kciir11éç~v~:;a.-, s~i\;tir_etiHSêyetd~deiras;-ôdâliscas,:zcobertoside,,véus :ou; ,;quem • .


.. :s:~ô:e_;Jfallt~WO:s.'·.com•,suás.::rnúmeras:,riiáscái:as'.?E, é}porque.-tilihamiouvidoifalar •
queostaisdocumentosserviamparadesvelar, paradesvendardadas ré'alida:des •
do passado. Mascomopodiaserisso,seelesmesmossepareciam{cida· vez
um
. . maiscom palimpsesto, 'dãdà>a.,sucessão-ide-;,catnadastdeis:eritido :.qtte,a- eles
iamsendoagregadas? Oquegaranteque,ao revivér,,;mertiórias e· ·reconstitutr
. ••., :::airtbi,ente{Sél.~lipof,,;Alberto-ttãc>":tentassffazer,.:c.onrque ·eles-· fossenülídos da
! ., \.'-:,\: •·:,•i• • • • \ • •· • ; e • •
- . DURVAL.MUNIZ'OE 'ALllllQUERQUE--JÚN10R 91

·inaneira•que ele..gostaria?. Quem - garante que Alberto -perdoem=-me,.senhores


•• -pesquisadores,_.pela palavra -que-vou usar,-., quem garante. que, com licença da
-palavra, Alberto não ficcionaria suasmemórias, nãocriaria·.os· tais.ambientes
'delidos? Se o demiurgo jáeraum grande fingidor, afinal eraum poeta, -se.já os
haviausado pararegistrar,mas também paraencenar e disfarçar sentimentos,
afetos, desejos,emoções, amores, dores, angústias;,saudades·rsolidões;-o,quenão
podiafazeresteoutropoeta,nos últimos anosde suavida, preocupado com a sua
.memória; com a:,imagem,que deixaria de.si mesmo, .ao selecionar quais denós
mereciatornar-se público eao escrever·astais,notas•explicativas?.Era evidente
• ,que essa.s-,notas.tinham afunção de induzirauma dada leitura, de'desfazer o
-que ele)ulgava ser.apossív:eis equívocos ou mal-entendidós nas·leituras que os
- :pósteros .(nossa, como falamos '.difícil agora!)' pudessem. .fazer de nós.· Seriam
falas, discursos, mas feitos-para silenciar,seriammemórias para fazer esquecer,
escritos não só para inscrever,mastambém paraapagar, para reviver 'e matar
ostais ambientesdelidos; elas ao mesmo tempo tratariam deconstruir e-ocultar
umcontextode fala para o entendimento do 'que dizíamos. Nessedia,ospostais
aprenderamque serdocumento nãoé ser daordemdarevelação, masda ordem
dodisfarce. Aprenderam que documento não é para ,constatar, documento-é
para contrastar. Aprenderam que documento não-apenas,informa; documento
deforma. Que os:documentos·não se oferecem desnudos e.virginais.para:serem
lidos, o documento é feito de camadas desentido e significados,muitos deles
delidos. Odocumentotem uma históriadesua própria constituição enquanto
• tal,: queinterfere.nossentidos·que.ele possa:'oferecer; Aprerideram,acima:détudo,
que documentonãoé dado, documentonão é achado; documento-é fabricado,
criado,inventado.Documento é comoosertão de um tal Rosa, ele vem sempre
disfarçado'%.
tSouberam. naquela manhã que, assim -como-ascamigas cartas, deles só
dicariam· restos.:E-se-puseram,a:meditar sobre ,·esta condição de ser .resto.
Chegaram à conclusão de que.esta-já eraa sua,condição,desdeque foram atirados .
. --para aquela gaveta:. Eles ·eram restos de.uma-relação afetiva:que párece ter.sido
::irrtensa,,angustiaxla,·rnnfütiva;- ·atormentarla/atribuladai feita:de dessi.Ihetrias·e
. desencontros, de mal-entendidos, de entreditos, de encontrose desencontros.
._. Eles ·erampa:rtetdo.que havia sobrado deuma relaçãoqueAlbertodefinia, nas
·.entrevistas· que concedia, tomo sendo umaamizadeamorosa, 1Eles ·eram
um
restosde tempo, eram restos de vivências, de experiências, de emoções, de
pensamentos; delamentos e de tormentos. Eles eramo que restara de uma·vida,
da vida de .um,poeta que;mortera·:comapenas,trinta e dois anos; . eramo_que

140. Referência a ROSA;.Jbão .Guimarães.· Grande Ser.tão: veredas,:1 Sa •.ed.. Rio· de Janeira:-José
·;·Olympio, 1982.
141. Informaçõesipresentes em: .CASTILHO, GüHherme de ·(otg.). António:Nobre:
correspondência, op. cit., p. 21 e 22, Ver. também: D'OUVÉIRA, AlbertoiProsa e·.versos:
páginas escolhidas. Lisboa: Aillaud, 1919.
~- - . ' -.. ' . ' .. :·- :. . . . .•• e<··

.
%E#E • :·

._ • Rastos:quartomovimento .

:· ·-: _ :_; e-;virlha#td~q~it~:s~feriotidea_tal:côrnoda;que os ábrtgava·est~va instalada: Por


- : • :'Vezes,â~ayam,qõ.~:ospâssós·que;se4proximav;una:eles.sédir}giam,.esp·erav;am _ ;

·-Ilílilliiili~'
,gµàrdarii,com,tàrito girfohoce•tiésv.elo,portantos,an:GlS·estave;.mórt0143, Jl}eus não
.••.• llieid°T~.arrrr•P~•~rttre~,s*àt-~•que~e propus&anaquela • o·"

, .1,.• ..:
·.,.•< --. <~?;~.--~ :.~ -·.. ·_. '.'. .
: ..: . ·,._;;

" fez.z2sr-vaoos
: 143.Todaa é a sumáriasinformações
cena imaginada partirdas dadaspor:CASTILHO,Guilherme
' "-- \>/, icte (tjrg;}>4~t~11iá-Nol:Íre:_éórr,ew&nâê.noia,,·p:··io.. • , •
;:,:
'DURVAL MUNIZ DE AtBUQUERQUEJÚN10R 95

escutaram sequer ·O'A.lberto.a falar-:deles·com seus familiar.es; se falara," fizera-o


sim·que pudessemouvi-lo:Possivelmente.sábiamque existiam,<que.estavam:ali
· guardados, -mas ,será ·que. tinham algum significado,seráque eramdo interesse,
será quetinhamalgumvalorpara os herdeirosdoautor de Palavras Loucas? E
se elesfossemsóisso, loucaspalavras, pronunciadas por umpoeta em seudelírio
amoroso, se elesfossemap,enas indícios de umaloucuraque ocon:eu nopas-sado
de Alberto e que ele tivesse desejado,antes demorrer, ver apagados, de,strüídos
parasempre? O .queteda ditoAlberto-are.speito.delesà:sua companheir.ade
muitos anos?Teriadeixado algumaordem expressa para queela desse a elesum
. determinadodestino? Pensavam:essapareceser asina dosditos docwnentos
:,íntimos; serjoguetesnas mãosde herdeiros nem sempre neles· interessados ou
cônscios deseuvalor, herdeiros quequeremfazer dos documentos:apenasfonte
de ganhos materiais; :que.nãose preocµparn em-guardá-los oupreservá-los,que
• não;titubeiamquando sentem necessidáde.de se verem.livres do que chamamde
"papeladavelha",queficaentulhandoeenfeiando osimóveisquereceberampor
herança,quenão contam duasvezesna hora dedescartar, queimar, malbaratar,
vender, danificaros --doc:umentos ,que foram deixados porseus antecessores .
Mesmoaqueles·qtie,se,arv.orarmser guardiões··da:-menióriadeseus queridos e
Jamosos·entes.desap,arecidos;:não.duvidam da·necessidadedeescondertdeproibir
· o acesso, deinterfütarapubliddade,dedádos documentos, enisso estãoindusive
juridicamenteamparados, quando não osto.rnampu.blicos com as.necessárias e
indispensáveis omissões,,corrigendas,1acunas/adulterações;cmanipulações. ·os
chamados documentosestão sujeitos· atodas essas provações, talvezpor· isso
tenhagente quediz que osdocumentos existemparaserviremde prova. Eles
provariamque·.algo, aconteceu. Mas se eles,mesmos passarn,por :tantas provas,
se, eles .são produto detantos acontecimentos, fortuitos- e: in:te_ncionais, como
elespoderiam provar algo, ser; aquilo qtie· dirime de vez uma dúvida ou, uma
questão, seeles precisam ser-encarados, antes.detudo, com e_spírito.de dúvida e
. postos em ,questioname:µto?:Mas ·Seriam. uma.prova narrativa·, ihdiciária;.:como
se faznodiscursojurídico"°. Estenão édefinitivamente um bom exemplo;
;sabemos•que, ,no discui:so.juddico,-até mesmo objetos de-materialidade muito
maisincontestável do que onosso, como uma faca eumabala,podemservir de
;provatanto. para a defesa como,·para a acusação;, podem entracem-narrativas
:doxrime como:argumentos totalmente díspares;, pois é no discursoque fazem
sentido; elas mesmas não dizem ou provam nada, a argumentação é quelhes
confereumdadoestatutode prova,:que pode vir a ser contestado e contestável
Jogo a seguir por outra argumentação. Todo documentoé submetido a;,um

. 144. P'OLIVI)-IRA,Albertd. Palavrasloucas. Coimbra:FrançaAmado, 1894. _


145. Esseé o argumento apresentado,porexemplo, pelo histotiádor italiano GINZBURG,.Garlo.
"Sobre Aristóteleseahistória, mais uma vez", In:Relaçoes de.força: história; retórica, prova,
• São :Paulo: Companhia das Letras;'2002,
_: - >Ad torvelinho daqueledia, seguiram-se âias;,de-silem:io;\dias em; que
sentimentos se misturavam.Viviamentreo abandono e temorpelo queviria•

•• - ,- :· - ·se~·?tiradó sóbrenós>Em·poúedemp<Y,a t!:!mp.eratura.comççoú,a,subjr,mossos -


- :: ' corposcomeçaram aiarders•:dese_speraâps•_,gtitavarnos. er serttíamos.todas· as

· l/\}._. : . . :_.i,fosse~nr,.pens~mç:ht◊;.pâlavr,âs: Ptrnç:õç:s•,: a,:i:,tiáxim,rcuipá(;tjnha.que ser :espiada


E,:z%272%%2.
146. Todaa cenaéimaginada apartirdassumárias informaçõesdadaspor;CASTILHO,
'bURVAt,MTJNIZ DE· Ai::BUQUERQUE J01,nOR 97

Além dasnossas cinzas, varridas no dia seguintepara olixo, que rastos de


nós permaneceram? Haviaas tais cartas wpiadas pelo. irmão, do poeta, rotas,
·àdulterádas;'corrornpidas;•masmesmo assim eram o,testemunho de que·havíamos
• existido: Elas.apareceriam em um livro, descuidado;:cheio de erros tipográficos,
onde as:·,companheiras.apar:eciam ,aiáda,mais .desfiguradas .do, que foram·nas
cópias originais dovelhopesquisador. Isso pôdeser constatado, como vimos,
·por,aquele.outrmpes:quisador, o tal Gtiilhermes:de Castilho.Mas como,pôde ele
constatar, as àdulterações, se: das· cartas havia apenasJevadoaquela&:anotações
·feitas·às, pressas emseu cadernode notas? Sabemos queeleefetivamenteleu
cada umdaquelespapéis que lhes foram apresentados como documentos e
.;fizera .anotações de trechossoltos emseu caderno. O quenão.sabíamos·é,que
ele dispunha deuma memória tão priY:ilegiada:que. foi capaz,de:perceber,
• ·quando dàdeitura da .versão das cartas.que:fam:serimpressas, .que.elas·estavam
irremediavelmente adulteradas. Pensouentãoque eleprópriodeveriapublicar
ascartas escritasporAntónioNobre. Sabiada morte de Alberto ..de,Oliveira,
:àté.-comparecera ao velório, quandoficoua olhar para a ,cômoda-ce:mitério,em
quenos enterrávamose tambémAicou a-dsrnar·.(wmo·essa gente portuguesa
cisma), sobre onosso futuro, masjulgou não ser; momento propício para disso
,tratar.:Resolveu,então voltar. à residência:·de-Alberto·.para comunicar. à:v,iúva o
,,seuprçij.eto, É quando.se inteira de nossa execuçãosumária. Mesmo .assim, por
:, c0nside:rar.ser ele;pon:ircunstântiasfortuítas;.O único que estaria em condições
de estabelecer a versão.mais.próxima possível dos.originais das cartas,lançando
mãode :suas,anotações,,das:çópias· originais de Augusto de Nobre, .que a eleJoi
dado acesso, eà sua·..memória prodigiosa; resolve_ publicar asdezoito cartas
que haviamassim,através destas diversasoperações eprovações,sobrevivido
, ,à,fogueira147•
Emseulivro intituladoAntónio Nobre:correspondência, esses pálidos rastos
denós mesmos vieram encontrar alojamento e.'registro definitivo. Oautor teve
:o ·cuidado.de·assinalar;,usando as convenções usuais;:as lacunas que conseguiu
perceber nascópias feitas peloirmão dopoeta. Mas o quealiestivera escrito
perdera-se completamente. O-que, afinal, ·restara 'de-nós, a cópia da cópia, a
publicação decópiascorrigidas de memória porum homem que nos leu uma
• ,:única vez, que fezde nósan:otações esparsas?O que está-registtado·nes·se:1ivrosão
apenas rastros doquefomos, mas rastos no duplosentido dapalavra: algoque
sobrou, que é uma pálidasombrado quefomos, mas que assimmesmoindicia
que existimos, éuma marca, é umaimpressão que não deixamde remeter para
,a-existência outra;, anterior quetivemos.Emborarasurada figura doque fomos,

· Guilherme de(org.). António Nobre: correspondência, p. 10e ll, onde ficamos sabendo da
•', ordem para a'destruiçãó de-toda corresportdência·:dé António Nobre,
'147. Informações,•presentes ..em:'.CAS'ITLHO, Guilherme· •de (wg.). António Nobre:
correspondêneiarop:•cit.,.p. 12.
98 :··TECELAO•'DOSTEMPOS

- · éla,ainda;ca,u_s~inci:ômódo,-:ela•.~iridafüterpela, :aindapede-sentidorexplicação,
ela aindaconvocasignificado, quando écolocada sob osolhosde alguém. Essas
cartas,adulteradas ouadúlteras,ainda marotas, safadaspelotempo e pelos
homens,piscamparanós,pedemdeciframento, porque são da ordem daquilo
queumtal Saussurechamou de signo".Signoque se desdobrariaemdois.termos
queestariampresentes mesmo em nossos corpora,agora quase•,c,1-pagadQs: um
. significanteeum significado. Sim, continuamos· a ser significantes pois, .mesmo
. tendonossos corpora ardidos emchamas, essas _êópias,cesses•simulacros::doque
fomos,que agora circulam sob aforma.e.oriome.de•livrn, possuemde-,nós-uma
figura,uma imagem,quecontinuamaconvocaros parceiros dossignificantes: os
significados. Mesmoessesrastosdoquefomos·continuam-exigindo significação,
continuam atingindocorpos, mentes, sentidose consciências, continuam
/afetarido,:iazeiido .:.efeito;:ao ·:_serem'.conternplados,didos por aqueles quese
dispõemaencará-los.Elescontinuam a ter mistérios adesvendar, agora mais
,airida;'depôtstletôdas,as:.périp.écü1s·porque,pàssaramatéchegaraessacondição
·-livrescà:.\EleS·çotitinuaÍri:a-s~r esfin.ges·ell'libuséa.de-quem decifre.seus,segredos.
•MasÇ·sabemqs:ªgora-;,esta,é:umatarefa!ihfindll.,._sempre.novos.sertHdos·poderão
seratribuídos aessesrastros.Dizemque háuns taisseguidores deum chamado
., ,pitrágjgrna'ú?,d.iêiáriõ{deve·seruma,seitanu,rdigíãotque)desdeamais remota.
antiguidade,são capazes de através de rastros-reconstituir., a imagem ;completa,
e
inteira perfeita dealgo oualguém,doanimalqueosproduziu, que osdeixou
·'.üradv-ertidamente,acfpass11r:por,iiadó-lugar,-em um,dado momento149 •. Um.tal
a
Zadig era capaz de ver imagemde um camelo, talqualmente, diria Rosa, ele
era,- sóbastando deparar-se com·suas marcas 'deixadas ·na areia 150. Há inclusive
um um
personagemde romancechamado 0Nom~~da·Rosd15!:que•só.atrav:és dos
-· ràstros:deixâdós. por t1m cavalo:que'fµgira,de:um mosteiro foi.capaz de,saber o
,:seu:paradeiroiMas,.,afi.rtâl;\êle'.eraidisdpµlo.cdeA.r1stóteles;do métodoindutivo
0

poreleutilizado,coisa muitoaconselhadarecentementeahistoriadores, -pois


_ , •-;dizem;,,embora,mpróprío.texto: do estagitita: hão- digaüsso,."que.indício,-pode
ser prova". Como otalsaber histórico seria indiciário,rastropode ser prova

·148..-_· Refer'ên,ci,i""á:'5AUSSURRE;,Ferdinand':de.:Curso:de. lingufstica-~geraL,São ,Paúlo: Gultrix,


1999.
149. A referência aoditoparadigmaindiciário e sua.tetnissãtr para a_ pré•história éfeitr pelo
- .-- : ;l:iistóriadovitaliano GINZBURG,Carlo. Sinais: raízes de umparadigma irrdidário: - ln:
·:·-!vfitos:emblemas. e sinais: .São- Paulo: companhià das ,Letras;t989.
:150. \éO'h1stonadofbràsileiró'SidneyChàlhdub servé,se:dessâ-fábulaparafazerréflexões de cunho
... -- ~.réâlistaiio'sedlivro:CHALHOIJB;~i:dney!'-Visões dàlibefdade:SãoJ>atilo:. <Zompanhia das
- ::tetr:as'. 1990.
151. ·.: Referêricia,1 EGO/Utnberto. :O nomedarosa. SãoPaulo: Record,1986,
. 152. Esta confusão entre as,noções-de;indicio e .de·prova;·.de. testemunho e·de,:prova éJeita·por
Carlo Ginzburg.Ele mesmo admite,em nota à~ag,ã0,italiana:deseu livro;Relaçõe.s dêforça, _
+que ohistodador inglês11erry,Anderson:já o,havia.alertado para o uso indevido que fazia
'da noção de prova,atribuindo-a àAristóteles e usando a-obra do-estagirita para discutir a
0
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 99

e através deles se podem recompor não somente um camelo, um cavalo ou


uma cachorra prenha, mas todo um pedaço do-passado ou quem sabe, suma
pretensão, o passado inteiro; E nós que, modestos; queremos ser apenas signos,
sinais, restos, rastros, rotos e raros, a interpelar, a afetar, a forçar os ·homens a
criar, a inventar novos sentidos e significados. Nunca tivemos a pretensão que
servíssemosparase recuperar, resgatar, desvendar, desvelar, decifrar, o passado,
mas apenasqueservíssemos parainterpelar,interpretar, analisar, inventar, criar
-versões eimagens do passado, para servir aos homens do presente, às perguntas,
problemas, questões, dores eangústias do presente. Dizem que nós; documentos
ditos íntimos, servimos bem para fazer uma chamada micro-história; logo nós
que sabemos quetamanhonão é documento e que documento nada tem que
ver com otamanho-que se queira dar ao objeto, ao problema,ao tema que se
quertratar"",
Hoje, depois detodos estes percalços, sabemos que os ·arquivos são
constituídos, que nascem tanto daquelas operações de acúmulo e guarda
de documentos, de classificação, nomeação, acondicionamento, de dados
conjuntos de documentos, como tambémdestasoperações deseleção, separação,
ordenamento, distribuição; e até mesmo· de atividades de descarte, destruição
e adulteração de documentos. O arquivo e os documentos se fabricam; tanto
·quanto as narrativas quedeles se utilizam.

Rostos: quinto e último movimento.

Mas como vocêssabem dessas coisas? Vocês desapareceram há muitos


anos,vocês viraram cinzas desde oano de 1940 ecomopodem terse inteirado
desses modernos desenvolvimentos da chamada ciência histórica! Como podem
.estar a-par de questões tão momentosas (gostaram da palavra?) que dividem os
. profissionais dehistória, que abalam os alicerces desta sacrossanta instituição de
Milão a Paris, deNova York a Lisboa, de Londres a Uberlândia? Uai,diria um
documento mineiro, e nós não estamos mortos? E não dizem que o espírito dos
mortostem o dom da transcendência, da onisciência e da onipresença? Não se
costuma acreditar, nestas terras que navegaram em. nome da cruz ou naquelas
em que as caravelas aportaram, que os espíritos sãoeternos,imortais e a tudo

noção de prova na historiografia. O autor, no entanto, opta pormanter a confusão indevida.


Ver: GINZBURG, Cario. Relações-de força; op. cit., p. 11. Para Aristóteles, porém, só se
poderia falar de prova quando se tratasse de fenómenos da natureza, pois os fenómenos
humanos ofereciam apenas indícios etestemunhos. Ver: ARISTÓTELES. Retórica. Madrid:
Alianza, 2007.
153. Sobre os procedimentos metodológicos e a relação com as fontes propostospela chamada
micro-históriaver: RO]AS, Carlos António Aguirre. Micro-históriaitaliana: modos de uso.
Londrina: Eduel, 2012e LIMA, Henrique Espada. A micro-históriaitaliana: escalas,indícios,
singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
:úoo

veem?Queeles nãoconhecemmaisoslimitesdetempose espaços?Porque você

%E±E-E±
. , •···•.Jêsío,s:t:Ílf<ll.Íéat<i$jtorn~1nqWâté,ós,sitj1plésirástros.da:existência,quedeixamos,
guardariamem seuinterior pelomenosos rostosdaqueleque noscriouedaquele
±.±s:.
o nos tornamos seujeitão, permitiríamosvê-losatravés de·nó.SdllóSseríamos
umaespéciedejanelasobreaqual,aonosdebruçarmos,enxergaríamososperfis
"±...reorar««v.
· · . • ·•.·,-füinhayoz;'a~p?,~o'aútprtdoiteitô/l'Ràtrativas;'alénrde'desenhatemrostos;,perfis,
•.· figurasde delinearem sujeito, personagens,tambémsãofeitas devozes. Fui.. ,eu
,~qt1~;'de$a~.d'ihícittdessêt~~O,i~Ot1v'õqueLvtiCê$/dp,cumentos; eos coloquei.para.
fuieu,comogostamde
falar, dizermuitosdemeus colegashistoriadores,que
E deixeivocêsfalarem, quefizdevocêsospersonagens centrais desse texto; 'que
avocêsum humano,
dei rosto postoqueporhumanosforamcriadosesão .ecos
.i:1de'v:oz~s··e;s~rnbrás'.dçto.stos,que,$~ipei'der,am,nopassado:Masvocês.pensàram
\qu,et~nham:o,.iorttrôl~!do);iueaqfüsé:dizía?i.Róis:·estavarmbastante;enganados.
iAo-,çonttárid,qo.,q11e:<::osfuma;.dizeriajgµns1de'.tneus.:colegas,,.·documento:,não
·-··•falcú,docuqientctfiãopen~#doeumep,tótlão.mo,stra;doc.umentonãoidemonstra,
documento nãodesmente,documentonãodesvela,documento não resgata,
:,docume11to'não.:diz,na:da,qu:e.:frâo:sejaatrav~s-:detum:auutra-vozo;avoz.de·quem
• '.ôscc9nsult:à,1:ósélê;,;os,,/4lâlisa1:o.s:•rebóttâ-;<,DSJatt1buksentido.e,significado.•,·o .
• ,: · ,doc;:i.ur).erltozapaiece;no)texto;quartdo:o,autot,ássi:tn~o permite;mo)conte,xto··• de
<argumeptâ~ã:9-qrt'e.él~,ipi:fpara,natrama.,ria.:r;.Ú\tiva.,,qué:ele;·.enreda1.0,documento
nãofazsentidoemsimesmo,só fazsentidonessa relação (;011F.O.OUtl'Oi.COmo
··:Jjz;iqüi;:;êiô:,bistoriaâot;:,,que,.itifunde:'vídàraôs:doéumerttos,que.,analisa1',faz·,.a
· .,.-transfüsãoede;san.gue,p~re,que,se:reanimerni:que(>S,tornam,humanos.·É•eleque •
, ;faznovamenleii'dôcwnentct,sigfiifiGar,·:queJaz ós: rostos'que:estes,documentos
. •' <desehhâmem.t1;!J;ços.rápidôs:ou:.ex.cessivos;,novainent~ganhar:sn1ovirnento:·Mas·
· •· . ·e_rttão;c:voêê.,esteve'.âfaze1úfi.t~ão?·1É,pos~fvêl:,qu~;a1gum,,,frfê(até:fhum,ano exísta
sema suacapacidadedeimaginar,criar,inventar, construir? Etudo issopode
1setich~mado:deficctonã:,r;iHá'.ficção maiondoJ1ueidizer~se;que,,os,documentos .
·.,·•fizerâmwe.r;:queiosdoéumentos,.dísse~am;equeosrlocumentos:,revelararrto.,real,·.
,,.,qúe,os"do.ci,i01efitós1ôbt;igaram.a'.quealgó,fossê··ditó?Não- sei:sewoêês1nõtarani,
0

maseudividi esttexto emcincoparte asdenominei de


e cinGÓ .. movimentos,
porquequeriaenfatizar esse sentidodo movimentoque se estabelece entre
o •
eo
, o documento, arquivo ~•.· historiador. Apesquisahistórica se.:in.icia com.o
• ' • • '

.;f.,.
•·:
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 101

movimento nadireção dese constituirumarquivo, de seproduzir documentos


(não de achá-los, deencontrá-los, pois vocês são testemunhos disso; não é pelo
simplesfatode existirem e de estar guardados numa cômoda,que vocês p0dem
ser considerados documentos, nem porqueum dia podem ter sido achados pela
. esposa de Alberto ao fazeralimpeza doméstica - e ela bem podia considerá-
los uma sujeira -,é preciso a intencionalidade do pesquisador para quealgum
artefatopossa serconsiderado documento;é preciso uma série-de operações para
que ele venha a·assim se constituir), a pesquisa histórica· avança num movimento
de entrada e saída docorpo do documento. Éo historiador quefaz o movimento
que se inicianotexto do documento e oliga avárias outrasinformações de que
dispõe, a.outros documentos, a outros relatos;memórias,.a outras anotações para
que o documento faça sentido. Eu useiessa estratégia de fazê-los personagens
do texto porque costuma-se dizer que umpersonagem histórico é aquele que
-efetivamehteteve existência no passado, esseseriaumlimite do nosso discurso,
só poderíamosJalar de personagens reais,de rostos que possamos ter a-certeza
de ·que·tiveram.presença real nos tempos que se-foram. Mas vocês efetivamente
existiram, pelo menos é o que indica os rastros e restos quedeixaram.Mesmo
rotos e raros, porque não poderiam ser personagens deum texto de historiador?
Mas é quenão somos humanos, ese exige que os personagens históricossejam
humanos.' Não necessariamente, para que se possa daro estatuto depersonagem
histórico.aalgo basta.que ele tenhatido urna relação privilegiada com o humano,
basta ter tido urna relação com a ação.humanano, tempo, por issopodemosfazer
do clima ou da-paisagemumpersonagem.
Eu os utilizeiaqui, edocumentos são para serem utilizados e só setornam
documentos aoserem utilizados,nestes termos, como pretextos para uma
discussão acerca do estatuto mesmo do documento e do arquivo. Sim, como
pretexto, porque, isso é o que vocês são: textos prévios, narrativas quevêm
-primeiro, agregado de sentidos que estão no princípio, que servem de ponto
de partida para acriação de uma outra narrativa, de novos sentidos, de novas
versõese interpretações. Mas então quer dizer queo tal historiadorpode fazer
conosco o-que ·bem.entender? Sim e não, o arquivo, o documento, são para os
historiadorescondição de possibilidade de sua narrativa, mastambémo limite
ao que pode nela ser dita. Ofato de que grande parte de que vocês tenhasido
queimada, limita aquilo quepodemos saber, pensar, imaginar acerca do que
foram os sentimentos que ligaram António e Alberto, limita o quepodemos
afirmar- sobre as ações que forampor eles praticadas. Mas, o próprio conteúdo
das dezoito cartas que restaram, sem esquecer os cortes cirúrgicos de que foram
vítimas, impede que nós historiadores, do século XXI, possamos dizer com o
mínimo de certeza o que se passou entre esses dois homens, o que não impede
que possamos imaginar, intuir, elucubrar, sugerir, insinuar. Aliás, tudo o que
foi escrito até hoje. sobre a relação entre esses dois-homens só fica no plano da
insinuação, por queisso? Porque; amigos, ouve umaoperação de silenciamento,
102 • ;·TECELÃO.POSTEMPOS

. .
\.:,qu'ê:teVêqt1aseAue,sucessoabsolutoi·Ela,começouna-própriàformacomoYocês
: Jotàrn,.esçritas,;pélo"demturgo;\usaridoJinguagem' cifrada;,e'\fitarido-pronun,ciar
certaspalavras,registrarpossíveis emoções e acontecimentos.Porissooarquivo
· ·-.eFosxdo.cumet1tos~são:1,astcqfídiçõe$:de;;,passibilip..âde:;detqµé:i hajà>discui;so:'do
historiador;afinal,senãotivessem sobrado devocês aquelaspálidasemutiladas
cópias, eunão poderia tersequerescritoessetexto em queo rosto ,de-voéês
figuroucomopersonagemprincipal. Foi a so mbra ide:v.otêst,proj etada: à-partir
,.-sdaçiti'êle'>p~quenó-simulacrovqúe-:de-.vocês;sobraram;,quetme·.permitiu, ..c.omo
a
historiador,esculpire darrosto vocêsnessetexto,imaginarsuas dores,sabores
as
edissabores,Mas sucessivasoperaçõesde apagamento,de esquecimento, de
• · ·•:~ilenêiânierttoiêjlJe'foram'.Gôhstitutiv.as,'dew:ocês.mesmos;.'!.Cotno documento e
• :• .· ccomof::(rqu~voç,·n1e:,,i111põemrliniites.:"Até. pot-inotivos,:étic9s,não :possodr além
deafirmações daordemdaprobabilidade,da possibilidade, nãoposso mais do
quefazer de meutextoumainterrogaçãoeuma suspeita.Mas,afinal, não éisso
'tambérl;1,.papehioitext:O'histotiQ'gráficQ? • •
Vouacabaresse textopregando uma peça emvocês,fazendo-lhes uma
. • rsm:,presa,rcotn<rlahtas que:::vocês.;:dot:ilmentás;:.pregam ..e'.,fazem:na.gente.:Nocês
·sabian;uqué-':hãoJsão.fo:úníco(:testétnU;tiho:que;ficóµ<do,forte·:seritimento:)que
Nobre
António devotou aAlberto de Oliveira?Nãosabiam?Pois fiquemsabendo.
• ~ .• ·N essa;rnesma ,época,:errt\Paris?Nbbre·1compôs,,.um{poema,.em: ,homenagem, a
• Oliveira.Essepoemacausou noamigo português amesma reação que parec;e-ter
.-• ,:càusa:domuitas:•de'vocês:.·éleúcou·preocupado,çom.a:repercussão,·que poderia
.•:.·terapubliq1ção.. dess.e:poema/esc:re:veuao,a.migo,di.zendo.:que ternia,que:fossem
vitimasdefalatório edecalúnias. Nobrerespondeu-lh eumtantoquanto
magoadocomoscuidadosdoamigo, disseque publicaria opoema seguido
.. 0de;nbtas"expliliativa:s;,onde~deixatia,eS'.cla:r.eêida,amatureza,'(10s;sentimento que

• . tnutria;pefo homenageàdo,:sentim~htO:.tã()'-PtlrO'ê-heloéquéde:veria·-sermoti..:vo·.de
publicidade.Disseque,seelequisesse,modificaria certas passagens' do poema 154
.;N~ots'iib.etnosrsêíiss~/foiJeitô.FO,que,•sabeI.JJ0sJé.que••ele,teà:lmenteipú6licouo
• :poemà.. na· prime.íni::e'diçãttde.:seú ;únkó?livro;o".Só;-:mas,sem·.as·.devitlas•.notas
.·,e.xplitàtiv'a$;:ffüó:Sàbemos;sé:'oi$to.'geroli:"desagr;ádo·a>Albe1to~,se·:deu origem:ao
falatório eàscalúnias que esséJemia:; seporissoou por ter,rompido a-rela,ção que
• mantíhharcoi:n{o;;;:1ütôr?dê'.:Ral_a_vrasiioucas,LNobtetetirôu,o,,poema da:segtmda
·•·.. ,etlíçã'dtdolivro.Mais um episódio desilenciamento,deapagamentodamemória
dealgo,daquiloquese passara entre osdois que, sabemos,poderia levara ruína
moraldeambos,mas doqual nada mais sahemos; Tueiam'o:po·ema e:reconhecetão
.o tom, o estiloe estarãodiante,talvez, dosmesmosdisfarces que deram v:i:da.a
,_: .
'
e
todosvocês
'.' '
quepermitiramque
;, .· eu escrevesse este,text.o:.

- ·• 454'. ''Yer.çar,ti'dé.:AntóitlÓNobre·ã)dhertó déDlivêita,:'lOde dezembr.ode:SI 891 ;fa: MARQl[ES,


FemandoCárino. Op.Cit,p. 94-104. •• •
DURVAL MUNIZ DE AlBUQUERQlJii JÚNIOR 103

Terças-Feiras

Ao Alberto

Ó condezinho deTolstoi (Alberto)


Santo da minha extrema, devoção,
Alma tamanha-que adoreide·perto,
Lá na .Thebaida do Sr. João

Meu Cálix do Senhor! Meu Pálio eterno!


··-Luar:branco na minha,escurirlão!
Ú-minha Joana D'.Arc! Amigo certo
Na hora incerta! Águia! .Meu. Irmão!

Ati, as Terças-feiras, nesteInferno


D'aquele que nasceu, em terça-feira
E ernterça•feira morrerá, talvez...

Quando eu formorto já, noites-de.:inverno,


Aos teus filhinhos, .conta-,as à lareira
Para 'eu ouvir de lá:
Era uma vez...J5

.155. MARQUES;·Femando Cármino. O. Cit., p. 38.


d
Capítulo5

O significadodas pequenas coisas:


história, prosoprografia ebiografemas.,

Uno vuelve siempre a losviejos sítios


donde .amó kvida,
y entonces comgrende
como están de ausenteslas cosas queridas.
Por eso muchacho no partas ahora
: sofrando eLregresso,
que elamor essimple,
yalas cosas simples
las devora el tiempo.
(Canción delas simples cosas - Armando
Tejada Oómez e César Isêlla)

A.palavra.prosopografiavem.do grego,e,etimologicamente..-se refere à


descrição de uma pessoa oude uma personagem (prosopon); resultada no
·delineamento. de um perfilporescrito 'dessa :personagem, :constituindo uma
espécie de monumento, palavraque, como sabemos, tinha na antiguidade o
sentido·de·prdduzir uma imagem ou coisa paraprovocaralernbrança.·As Vidas
·Paralelas156 esctitaspór.Phitarco são o exemplo'mais conhecido emaisdtado
, entre.todas as.obras,,do .gênern, produzidas,pelos,antigos. Na Antiguidade, a
· prosópografia eraumgênerode estudos·edenarrativa queauxiliavaos estudos
históricos. Ela consistia.·em analisar emconjunto as :biografias de .pessoas ou
personagens pertencentes a:uma mesma cat,egoria social,-notadamenteàs,elites
políticas esociais, pararetiraro queseriam traços de,conjunto,perfismodelares
no campo da virtude,da moralidade, dos costumes, do· civismo, das-atividades

• .156. PLUTARCO. 'Vidas Paralelas/Màdrid: Cátedra, 1999.


e
• , , políticas militares.A prosopografa reduzia, assim, um,gr:upo de-indivíc!:uos a
- ··•..·.- ,'.1,).I'npetfil:cdletivo;,rêtirando.déles_.á:sfogµlârídáde.eelevandq osaexemplaridad;e,·
0

:O que;@igia!énêontrar nostpgulà.t".O'qúe:'.pudesses,er;generalizáveLAtravés do
, · •. usodacomparação,encontrarosparalelismos, assemelhanças, as rçgularid;ides
fazeraapreensão queseria
edeles do do
essencial, que seria característico e
• - caracterizador daquele determinadogrupo _dejpess?ªt e, ao mesmo- tempo,
--·observàr suâ singillaridáde enquarito grupo; pótque afinahe tratava de abordar
'.,gruposseletos,gruposescolhidos porpossuírematributos que :osdesta,cavam
dos demais,já queessas ·eram sodedâdes·ari,stoçrãticas,i.ónde- a,distinção-,e a
:.:hie~atq4i~-s~consfituí?P.1·~nr:prindpi~S::fuíidamentais·na'definiçãoida·ordem
social.Eraimportanteobservar oquefazia Ul'p: ctado:grgp,o,'l)er;ooeso;'distinto,
·' ., os fraç6s.--quen;ata.á1étn"da$ipessoas:queo,çomp\inham;:;1proiin1ava.m a todos.
Aprosopografiaé, pois, ,umrdos,têneros-:do. biogi:.âfrco; :uma 1maneira
•. . ;,Jde narrar vidas, de descrever ·a trtjetória :de,,pessoa~,;.ãrticu.lando vida, e
temporalidade.Este carátertemporaldobiográficoedo pro.sopogtáficoc.é·o que
os aproximadogénerohistórico, quando esse surge na Antiguidade.Obiográfico
o mesmoquando
e prosopográfco, nãotinhamuma preocupaçãoem colocar-
da eram um
se comoauxiliar história, dadomodelodeprodução damemória
.,que; Hi>t.t\in'.t9i:tornavª~-se/Wná :ro~te;d~:Cinjortnações ·e.,pofüa,ser · s.ubrnetido à
interpelação porparte dospraticantes dogénerohistórico. No entanto;•,devido.ao
·•ii'.(tátátérida·õrct~rn16d¼leri{qÜe,e!Iier.gep}/:esses,,gên:eros de,esGrit,a.da,memó.ria
adardestaque
.· ·: , e dopassado tendem ao que vãoconsiderar ser da.ordem 'do
, .exce_pâqnal;:da:orG"em,i4J;yri1e,tn.9ráV~fo-no•s·.entido.de ~lgo~extraordiriário, único,
. •• ;:graridip'sotü':qné ,vlflt!tíá ser retido pelamemória, pela··escrita; ·seria aquilo
nas que, pessoas edos
vidasdas gruposprivilegiados, seriam .:da-,ordem do
·~ · dnonuin~ntàJ,,,<!.q~:e'~t~#d,iqo:r.:.qmp·hl.go '.que chama a atenção'pelagrandiosidade,
·;-pel;úÍ;llpóµênciij)p~lamignitttde,;pelo,tamanhoacima-do·comum.e·do normal.
: Esta metáforaespacialdograndioso, a ideiada prevalência necessáriado grande
·:,_sobre·ç'peqµenb1tmhâ,.réla~o:direta-colii.üma:ordérii:'aristocrátii:a,senhoriale
a
: escravista, com própriaideiado imperial, como sendoaquele queprevalece,
quesedestaca, que suplantaosdemais porsuaprópriadimensão, porsua própria
constitiyçãot,potsua·co1J1p:l~içâo. ' - ; -·
o
- Por isso géneroposopográficopraticamentedesaparece durantea Idade
'• ::·· .:iJvi~diai'Jto~s,e,riibbra'~,í'prevaleçamsodedaddtambém'.:decurthoatistocrático.e
c'S'errhàrí~J}ji;grân:çlidsid,âde,,,funponêh'cia; a'.ma.gríitude·qüe·()s..antigos).tribuíam
· <1".dado,s•;homens;fa,:setÍs'foi_tos·,e tSêus .:,gestos,<forn~m-sé;agora':idiminutos . e·
insignificantes diante damagnificência egrandiosidade do Deuscristão, de
• :-·:seti§'.-'.dé§Jg11ios\e':clê'·súas ,a_çõêsi Ni(J?-resénça.41btumadorá':do único/do ·um,
-·iédtii~s?;o-"interess~·p·é1iloutro;:suas.v.iâa&e-seuidestfüóst:To'dasas:vfdas._a:gora
. • ,Üíé<lêi!Fse pofiSliâirêláçãoiõ'm,u,<iivinot-por.:s.ui{proximüfade•·ou''distância ·em
:·•. ·:. ,tel~ção.a.-seus,<laiilirutôsia suamensagem, a ·sua palavra;,Bor issoas narrativas
de vidasse ,conc~ntram. emi,tratafd~queles,;,q~e,:Dele:. estiyeram,01,i.restivessem

-:,· i .•.
. :.• ,. ((~-
·-'.DURVAL.MUNIZ:DEALllUQUERQUEJÚNJOR 107

màis,próximo;sse,obstinama medir· aidistância.que os separa <lo.convívio.com


o Senhor,amensurar odevotamento, a entrega dessa vida a·esse Outro absoluto
que tudo exige etudo .deseja; de.-vontades:imperativas e-indiscutíveis;' Daí
porque seprivilegia anarrativa davidadeJesus e de seus,apóstolos, <le Maria
·e dos fundadores da Igreja católica.Aprosopografa dálugar à hagiografra: a
narrativa da trajetória de umser em busca da •divindade,:da metamorfose.de
• ·,um· ser;terreno emumserceleste,da conversão, :da.obstinaçãordos:sacrifídos,
·daentrega,.das.remíncias:deuma:vida que,resólve.trilhar o caminho do Senhor.
Nessas narrativas quebiografamavidadaquelesquevieramasersantificados,
beatificados,quevieramocuparum lugarintermediário entreohumano eo
• ' 'divinorsµjêitos·suspensosmumtempo-e num .espaço de mediação;.de,transição
entreo material e o .espiritual; esses nomes,esses corposnãotêm,.relevância,
-"rilonumentâlidade,em,si:mesmos;.elessãoa:penasinstrumentos;man.ifestações
daverdadeiragrandeza, do únicoser monumental:Deus. Seas narrativas
estabelecemainda algumparalelismo, não· será entre a vida de homens; buscando
encontrar nelas umpadrão de moralidade,deheroísmo, decoragem, ummodelo
deação política, mas será comaprópriadivindadeencarnada, com a trajetória da
vida deJesus e.daqttelesqueforam·seusseguidoresprimeiros.,Ahagiografiamarra
a busca,a trajetória, o caminho, opercursoque -leva,uma ,.vida.a ,se-aproximar
de fesus;,.tornando,se mais um· :de.cseus disdpulos.,:Essas vidas ,são;avàliadas e
medidas nãoporaquilo degrandiosoquefizeram naterra, pelas glórias que aqui
tiveram,masporaquilo que antecipa uma vidadeglórias após a .morte..Há uma
• •:inversãonessas,nan:ativas hagiográficasemtelação às.prosopografiasanHgas no
queserefere à relaçãoentre vidae morte: .enquantonaAntiguiâ.a:de·a morte:era
apenas o'ptetextopara.a•âfitma:ção-deuma-vida extraordinária;heroica,.épica,
•-nas.hagiografias a:vida serveapenas de pretextoparaaafirmaçãodamortecomo
• 'Verdadeiro começoda vida, como princípioenão ,como:fimda vidaide glórias.
Sãonarrativas que ao mesmotempo em que constroem vidase personagens
. extraordinários; singulares, os definem como pequenos; menoresc,curn·nada-'diante .
Daqueleque segueme doqual ,buscam em·suahuriüldade/.despojamento-das
,coisas desse mundo, numa total entrega; Dele se:aproximarem,. Enquanto -nas
prosopografas antigas buscavam-se modelosdehomens perfeitos, buscava-se
esculpirheróis,seresúnicos,nashagiografas encontra-se portrás de cada vida
ecadaserbiografadoapresençaúnica daperfeição de Deus, o únicomodelo,
- aquele cuja'Providência tudo governa.•e ·explica.' k·hagiogra:fia" é um curioso
0

. +gênero biográfico . .onde se. narra um sujeito em sua dissolução em .Outro, :em
que senarra não a -cbnstituição de umasubjetividade, masasua conversãoem
umasubjetividade outra, delealijada, é a:.na:trãtiva,da nadifrcação,de uma vida,
uma vida que se entrega adesígnios,·.• a desejos, avontades,•a:c:imperâtivos que
, não•.vêm-dela mesma, éa,narrativacuriosa de•umdesfalecimento.desi, de uma
renúncia de umsi mesmo, de umaperda de .si no Outro.
.~JECELÃQ>D,QS TEfylfOS

MicheldeCerteau"",ao estudaras narrativasdosmísticosdosséculosXVI


#c±.%#=#=
biográficomoderno.Emboratal a como hagiografiaabiografade um místico

Mesa
· • ";Je11us;,.êQfu:oxsagrado;:AMda;mí$tica,ttpltioeaqéTeresade.cÁvila,,éinarrada por
• -... elamesma, comoumamaneirade testemunharos esforços que.ewpre!:!ndeu
paraordenarsuaalmaeseuespírito,comoumamaneira de organizarum si
hnesmosingularqueganhasentido,noentanto,naprópriabuscadeseentregar,
....· de servirdeinstrumentoprivilegiadodamanifestaçãode umestranho, deum
Outro."%Naohánocasodamísticanenhumapossibilidade parase praticara
· ·_ .• . • prosopografia, poisessasnarrativas tratamdeconstruir um serquejáse define
I. ' • ';pela s~gwirld~â~jridjtjgual::p'é!ir'.diferençaradicâl dasua relação como sagrado,
. J_pela"excep'ç,ionálida'de dà·tarera:e·da:insp~r_ação;que.o:acompanhar•Pelromaneira
-'lÍiliêa'Côm;4u~,<>'iS:ehhori~~le,serpânifesta:ffe'Iiattatiya;mística:fabulaum,sujéito
• tiam,~~t<:lírfgid,ó:,ê.v~lta.d,oJ?aÍ:c{Deµ~;<1J1gS;quera:ssim•tomo·.prop,orá.as:religíões
reformadas,mantémcom ele umarelaçãoespecial,individual e íntima,portanto,
nãogeneralizáveloupossíveldesertomadacomo modelodeaçãocoletiva.As
narrativasdevidasmísticassão umdosacontecimentos.que:deram•'origern::à •
noçãodeindivíduonasociedadeOcidental.Emborasejaaindaa narrativa:.de
:· vidasquesóganham sentido na relaçãocomo Outro,quebuscamnessevazioe
nessaquestãoque éapresençaausentede Deus darse ntidoasua própria presença
••• nomiundp;fjá;o•%faz~nt.·anundarido/a:püssibilidade·Jl:e:camfrrho'S.~Singulares, ••
>mêlhii:dUai~,;ptópriosi·q11efogeµi·dos·-~~ortes dêfihidos p.êla,lgreja;pda·teologia
:iforma:lizadã'éditá'Científica;,São·vida:s,que·j.~não_obedecetn.í:ipenas.ànegrasi;às
<, < •<'ordens;c>inàsfazem suas própriasregrase procuramteraUÍ)iaordenação;espe«ífic.a.
• '-':Se:ràin'ârrati:va;p9s9ppgráfit,üteve,,seu.nastedouro;e..,períódo,•áureoi,na
,..:Ant.igüida:de;'elã:tetâunia-:enorníe.difiitúlâã~é'.de-conviver;comesse:p:rocesso,de·
.:::emetgêrii::ià,/;la:idéia'. de'.infüvídµo:ííamqdemid.rde·,.ao,coríttário doque•ocorrerá
.1:(;omairf~rr-âfi'va.•,bjqgr.áfica:quetitnbo_tc~sofr.t.4mut~ç<les:em;.suas:regras;..nadará.
/:·,comoitl111",pebce•;enilsuasi~guas::nessa~;;,sádêdad:.es\detídei:itidades·;,irffü\dduais..•
: .· ·iEmbárãiõ\té:xtq,,p.os:Ópç;gtáfico,,cortsti:uisse0petfis,dridiW'duàlizados,;;.o que'se
,...,:qllériaifr~;•,aO::eôtnpàr!llósp.ertcontra.rc:r~ghlat'.iq,ade$,'-r.egras:e,:bâlizamentos
:·'êticosi;)IllÓraísf,f~lig1osos,':Jr.Õlíti_C:os.:que:dotassern .O$ .homepstdas .elites,ae ,uma
,'.çertã:honi9geneidade,\os.\submetesse,,,a;.umú;lá'do.,,módelo:1dé;subjétivictâde,,O
,_que;s,e:s~uscaya(Ilão-,efa;•çesenhar''átfiguta~do.dndivíduo;masido:cidâdão,·que

·.· ·lS.7.•• ,,:ci~r.EAU.-'.M\che.l;de·!.L;:j:á]iülaMJst/~(i(s{glof'Xlf[c)íllJIÓ:-M~clrid:.$Írüeiá?2006..


158. Idem. Ibidem,.. ~./:12J. • • • • •
'.oúRVAL.MUNIZ·DE ALBUQlJERQliEJúNJOR 109

é por definição umser genérico,..público; distinto do ser privado,,íntimo que


nãointeressavama essetipo denarrativa. Ora, no,mwido -moderno•o-gêne.IrO
'biográfico tenderá,comoJá·ocorreu,no;caso da.narrativa mistica,. a,ab·ordagem
'dci'írttimo;:doprivâdo,pdomenosde,umserquemes:moaparecendoemp:úblico
• não,se defineapenasporsuas ações e palavras que realiza e profere nesse espaço.
Assim comoa narrativa místicatratava ·de ,desvendar. o,,segredo;,.'o. mistério
particularatravés do qual·ó divino·:semahifestava;eraa. tentativa:de perscrutar
a voz de Deusquesemanifestava agoradeformaparticulare só era ouvidapor
um dado individuoem especial, ·a.,biografia setoma.a·manifestaçãodmmistério,
dosegredo íntimo,privado,individualque estána base, quese manifestaà luz
do dia,queimpulsiona oseraagir em público.·Enquanto a,pros.opografia.antiga
pressupunhaadescrição de umavidaquese passava às daras: e em·púb1ico, a
narrativa biográfica pressupõeum mistério, um não-dito, uma partedosujeito
quese passanassombras davidaprivada,quenão só precisa vir àluz, comose
• 1-tornaa·,essêncianiesma,.o motonn.ãoreveládo-da·ação-social.

Aprosopografa antiga pressupunhanãosóuma·natureza humana idêntica


• emcada indivíduo, que podiam:assi.tn,sercomparàdos;,como,pressupunha• um
tempo :circular em que esseshomensvoltariam aatuarda mesma forma·esegundo
·asinesmasp:âi.xões;queosmoveram.nopass.ado...Ogêneroposop9gráficoan:tigo
"'Sepropunha,pois;·aencontrardadas.regulari°dades nasações,hurnanas;!desvendar
1p:elacomparação•dos:,atos;humanos-irtdividuais, notadamente.,daqueles seres
- :humanos exceptionaisros,traçosdenossan.:1tureza .comum,visandoatuarsobre
elespoliticamente, visando a nãorepetiçãoidas ações, deletérias para aprópria
·,soéiedáde. 'A proximidade :entre, a prosopogrâfia· e- 0;1gênero,histotiográfi.co
ao
naantiguidade sedeve fato de que.ambos partem dos pressupostos .da
- ::generalidade e-hom.ogeneidade·danaturezahtimarta é da·circularidade.do.tempo,
.·.pque-dá,aessas·duas,ati'\\idades o·caráter·exernpfarque:arrogam:parasi>Não
;Só à História seriamestra davida, masa prosopografiatambém,na mêdidaem
• que elase constituíaenquanto umestudode vidas, umdebruçar;-se sobtewidas
. para çorn elas<Se·aprerider dadas.:liçõesrpara delas: 'Se ·extrair-modelos de Viver
• .,que,não>fossem marcados,:pelosrerros: das gerações anteriores.
Ora, omundomodernosepautaporumaoutravisão datemporalidade,um
tempo.cada vez·rnais-pensado.çomo·desligamento e fuga do passa:do·na direção
deumfuturo. Opassado vaideixandode serxepositóri:o ·de-exemplos e tempo
, ,doqual se devebuscarseaproximar,para ser aquele tempo doqual os homens
deviam seafastar,deviam negar e com eleromper.Embora o Renascimento
apareçanasnarrativasqueo constituicomoum retorno ao .mundo :clássico
antigo, elesóganhasentido na negação e· ruptura com o·que seria o ·seu passado
imediato,aIdadeMédia. A nai:rativa,posopogtáfica,: ·assim comoa,narrativa
hagiográfca, e ao<contrário da narrativa biográfica, .convive mal com essa
negação do passado comomodelo, pois elasó faz sentidose operfilmodelar
do humano que ela desenha em sua escritura possa continuar tendo validade
, · •. em nossos termos,evidente
mente-contrastacomo earáter mais psic.ológico que

EEEaE;ase,E-

dosujeitoondesebuscaencontraraquiloqueofazserdiferente,enquantoo

·E#a.E ;;.~teja'Jigád~/POl1SUa,:V.ez;co,ti:J.ó•;nos1'rpp!TJ.ê.:MklíekEoucaült;1~9,a emergêm:ia:di


noçãodeHomem,comoentidadecoletivaeúnica,metafísica,quevem sealojar •
. • nolugardeixadovaziopelamortedeDeus,a ~.s:C.rita.-da' histór,ia:se tdeêlicatá, •
'' •. ,notadanreni~,apóssu.t.dispiplinatiziçã,o,tJQmo?ciênciai·110:sécúlo':XJKtattaçaro
.· •·.·.,,perà.trs:c1,;:itQ;:t.~rpp\'>;··:4füiint-tdãéle&-otfüêfiíiâi:v,idualidàq~s:e:xcepcionais;,:como.
• ·:~sida;;µaç~~>ÚP:~'iseu::poyoA.>úLpaqtieles:;quetc.6rislituen;11:;sua&ielitésiôirigentes,
elevadosàcondiçãodeheróisedegénios deumadadaraça.Podemos dizerque
• aescritada históriatraçaummovimentoquevainadireçãoopostaadaescrita
·.4~os9,pogtílfic.a;;qt:íe;:-de,uma:,:;ble:~ã◊,·;:d~0seresArid!v1êhiãis•to.nst1;uía::o::qrte',;seria
um ·-· sercoletivo,
,.., . .
quedissolviao singular

no
:··· .' . regular,
..,
poisa
. historiograf
. iaparte
- -
• -OURVAD,MUNIZ ·DE ALBUQUERQUEJÚN10R 111

de uma coleti:vídade para delá·fazer,emergir umser únic.o,·que paira· sobre ela


como:excepuicmalidáde exemplan. oumesrno;fazde um existir coletivo como o da
rra:ção•oudo:po:vo:umanarra:tivacqueosconfere·falsingularidade que·osdotada
·• individualidadedeuma pessoa,os trata ·como umapessoa, como:expli-citamente
se propõeafazerJules Michelet'com a França e seupovo, dequemquerser o
•biógtàfo.Trata:;se·de,:mesmoaoabordar o·cõle.tivq,extràirdele,o,tra(j:o'.distmtivo,
otraçosingularizador. Aprosopografia cai.emdesuso numanarrativa histórica
·•'iltentaaosJo.gúlar,ao:único,aoirrepetíveJ,emqueos.hornenssãovaloradospor
aquiloqueintroduzemdenovono mundo,nãopor obedecere.m:a,regras gerais e
.zcoletivas•·dewtude,de·Goragem·e·dehoruaiNapoleão; o,cri:ador·,de·suaspróprias
regras, acoragemousada de desbravar novasterrase de afrontaroscódigos de
.· ,honra. e virtudevigentes, ohomem quesefez porsimesmo reisemprivilégios
denascimentoousangue, é o modelo depersonagem:pr.ivilegiadopelamarrativa
:históricarnõdernae,;ao,mesmo..tempo,.personagemimpossívelpara-umestudo
·,p:osopográfico,,pelo.menosseguiridoas·regras:que esseobededanaantiguídade,
._ pois.riãosetia possível compararoincomparável.
'Essaemergênciapoindiv.íduo.cotnomodelo·desUb-jetividadeprevalecente
éresponsável pelaafirmaçãodos saberespsi, com a emergência dapsicologia
e dapsicanálise, noséculoXIX,como campos distintos e.autónomos do ,saber,
voltadospara oconhecimento etratamentodesseEu que se,iridividuáliza e passa.
aserp:ensado;como tendo umahistoricidade própriaeuma constituição...que
sedeve explicartomando o elementobiográfico comodecisivo. Notadamente
apsicanálise adotará a· nar.rativá.biográfica como ·recurso'privilegiado de sua
• ,prática deinterpretaçãoecuradas patologias do espírito queirá definindo e
.c0nfigutaridn:como;.seu.caqipo.demtuação.As,palavras,·.a,narrativa,.o:.discurso,
aparecem nessesabertendouma centralidadeque nãoencontra emoutros
campos quesedefinem,talcomo esse,como científicos. A própriahistoriografia
·· · qUe;,por,muito,tempo;;teve no, cuidado::com a narrativa, napreocu pação com
o estilo,um de seuselementos constituintes, se vê tomadapelo pressuposto
. •positivista·· demma..transpar:ência :dadingua,gem e da ,poss1b:ilidade:'deuma
• representaçãoque fosse;capazdese.adequarperfeitamente.à coisa representada.
. ,AihistOTiografia dó:XIX tende.a,negaro.•papel da,narràtivana construção: de,seu
. objeto, definido :como.sendo·osfatoshistóricos; e de seus sujeito.s,cqua:se sempreos
gr;andes.personagens.oq.:persona,gens qu.e,tal\comoela,sã0:pensados como sendo
singulares coletivos, comoo Povo ou a Nação,quando a psicanálise tomará a
• · . ,linguagemcomo,sendo:decisiva·parao'.desvertdarnentodo-segred0::deconstituição
· dessessujeitos individuais. :Embora ,ambas .fizessem uso dobiográfico,ambas
•...:fabulassem:narrativas.paravidas'de dados.personagens,:enquanto a•psicanálise
interessava a cena davidaíntima,davida privada,enquantoela erao lugar da

161. !Ver; por.exemplo;MICHELET, Jules.História da RevoluçãoFrancesa.São Paulo: Companhia


das, Letras: Círculo do Livro; 1989; O Povo..São.Paulo: Martins .Eóntes;\f988. .
·, ,- ··•\.

encenaçãodesse Eu privadoque emergecoma sociedade b1:11;g:uesa,, a ,história

odestino,ascrençasde '<lois)ndivídu()Si" Mas\São, justamente ,essas, obras '.que


petnütem;Percebér,á müdanÇqcÍlas,régra~:d~;pr.odução 'do.discurso historiográfico

#i',.:-ú\ :·• ·:

;Ei'i/ 1

.. ' • • •• • •. 'J63': , ·-lFf\13V,:JlE,,1*tíêni.,Má:r.t!ii,.t.uterb; 'l/rn·de$ti,iu; 'Lfsbc;ia: !extô{Editor~s; 201Q;

$2$,h " $22.%,z%o.ossos-


e_;:~;·.~ L·. >,:?. :.-,_

., , -~
. ' .~ .

• • ·: ~ \" :· -· ..-= .. •.• •

,~·~:;~.-i·::;:..;_;_: ·..
• DUllVAL"MUNIZDfaAtBUQUERQUE JÚNIOR 113

Febvretende aenfatizar o que há de .comum,entre esses homens e os demais


• Shomens. de,seutempo máis do que aquilo que .os tornava" urna singularidade.
Emboranão deixe.de reconhecerquesob .tais nomes ·esteve,uma ,pessoa .que
se destacoupor suadiferença em seu tempo,desloca essadiferença do campo
· de· uma particulatidadeiindividual, para o campo <las. possibilidadessóciais.
A démarche agora édistinta; não separte da sociedadepara nela encontrar
edemarcar a trajetória individual ·diferenciada mas,• ,pelo -contrário, parte-se
desse nomeindividual, desse personagem para, à medidaqueo colocanum
contexto social que o explica e. o possibilita; ir. dissolvendo paulatinamente 'sua
dessemelhança, tornando-o umapossibilidade .inscrita:na ·vida social.
Embora o nome individual ainda esteja presente nessá historiografia
produzida sob a·jnspiração--dos Annales -:: nome,que.praticamente desaparecerá
<dáhistoriogràfiainspira-dapelo,marxismo,queconstituirá, com·aquela:adviri:da
domodelo daescolafrancesa,a historiografia majoritária no século passado -,
essenomeindividualapenas recobre processos estruturais, determinantessociais,
. meútalidades-'·coletivas:qu.e··-vieram ·conformar e possibilitar.. essesoindivíduos.
• Gomo ficará explícitoma mudança··de nome datese de doutoramento-·deferfdida
; por FernandBraudel, discípulodileto de Febvree. o.continua:dor-,de sua -0bra
a frentedosAnnales, quando a'centrálidade-do,nome-do rei 'Felipe.II, -aquele
em cuja impfrio;o sol nunca -se punha, é deslocada pela centralidade·do.espaço
,donnar,Mediterrâneo .e do-mundo mediterrâirico:165 ,Felipe II é,remetido .para
seraíapenasummarcadortemporal, de.apenasmomeia· uma época, n-ão..é ele
em si, 'suaJigura ,quetenümportância. :Revêlador·do.tipo de sujeito, do- tipode
_·:personagem,que:odiscursodo.Artnalesintroduzirána-historiografia,seráagora
"º mar:Mediterrâneo;queassumirá.esselugar;queserá·designado-como:o.agente
do processo histórico, aometaforizaroqueseriam as estruturas mais profundas,
.quase imperceptíveis; poisdotadas,deurna temporalidade delongaduraçãoque
astornamenosvisíveis,menos apaixonantese, no entanto, mais·decisivas. Seriam
elas responsáveis,verdadeiramente, pelos movimentos dahistória.
.O desprestígio• do biográfico -no campo da História não-se: dá apenas-no
que tangeaperdade centralidade das figurasindividuais, dos personagens
.,excepcionais como-agências do.processo histórico; com a consequenteascensão
de personagens coletivos;·.ou mesrnodeforças·estruturais, muitas delasatuarido
apesardas vontades ouda consciênciados indivíduos, tal comoas estruturas
-econômicasmarxistas,.·mastambémno·que,tartgeaopróprio modélo:de narrativa
que a biografa representava. Se Michelethavia elevadoa nação ou o povo à
condiçãode umapessoa,que elebiogra.fava; buscando suas origens-e deserevendo
,sua traj_etória: contínua no tempo,, em que a·nação •teria;,deixado sua\infâncía,
Jomando hegelianamente consciência de si mesma, -atingindo, ·como queria' Kant,

' 165. .:BRAUDEL;'Fernaild. La>Méditer;ranée et. /emondé:méditen:cméen.aTépoquede Philippe-II.


2 Vols.Paris: LGF,1993.
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encenaçãodesse Eu privadoque emergecoma sociedade b1:11;g:uesa,, a ,história

odestino,ascrençasde '<lois)ndivídu()Si" Mas\São, justamente ,essas, obras '.que


petnütem;Percebér,á müdanÇqcÍlas,régra~:d~;pr.odução 'do.discurso historiográfico

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• DUllVAL"MUNIZDfaAtBUQUERQUE JÚNIOR 113

Febvretende aenfatizar o que há de .comum,entre esses homens e os demais


• Shomens. de,seutempo máis do que aquilo que .os tornava" urna singularidade.
Emboranão deixe.de reconhecerquesob .tais nomes ·esteve,uma ,pessoa .que
se destacoupor suadiferença em seu tempo,desloca essadiferença do campo
· de· uma particulatidadeiindividual, para o campo <las. possibilidadessóciais.
A démarche agora édistinta; não separte da sociedadepara nela encontrar
edemarcar a trajetória individual ·diferenciada mas,• ,pelo -contrário, parte-se
desse nomeindividual, desse personagem para, à medidaqueo colocanum
contexto social que o explica e. o possibilita; ir. dissolvendo paulatinamente 'sua
dessemelhança, tornando-o umapossibilidade .inscrita:na ·vida social.
Embora o nome individual ainda esteja presente nessá historiografia
produzida sob a·jnspiração--dos Annales -:: nome,que.praticamente desaparecerá
<dáhistoriogràfiainspira-dapelo,marxismo,queconstituirá, com·aquela:adviri:da
domodelo daescolafrancesa,a historiografia majoritária no século passado -,
essenomeindividualapenas recobre processos estruturais, determinantessociais,
. meútalidades-'·coletivas:qu.e··-vieram ·conformar e possibilitar.. essesoindivíduos.
• Gomo ficará explícitoma mudança··de nome datese de doutoramento-·deferfdida
; por FernandBraudel, discípulodileto de Febvree. o.continua:dor-,de sua -0bra
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em cuja impfrio;o sol nunca -se punha, é deslocada pela centralidade·do.espaço
,donnar,Mediterrâneo .e do-mundo mediterrâirico:165 ,Felipe II é,remetido .para
seraíapenasummarcadortemporal, de.apenasmomeia· uma época, n-ão..é ele
em si, 'suaJigura ,quetenümportância. :Revêlador·do.tipo de sujeito, do- tipode
_·:personagem,que:odiscursodo.Artnalesintroduzirána-historiografia,seráagora
"º mar:Mediterrâneo;queassumirá.esselugar;queserá·designado-como:o.agente
do processo histórico, aometaforizaroqueseriam as estruturas mais profundas,
.quase imperceptíveis; poisdotadas,deurna temporalidade delongaduraçãoque
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elas responsáveis,verdadeiramente, pelos movimentos dahistória.
.O desprestígio• do biográfico -no campo da História não-se: dá apenas-no
que tangeaperdade centralidade das figurasindividuais, dos personagens
.,excepcionais como-agências do.processo histórico; com a consequenteascensão
de personagens coletivos;·.ou mesrnodeforças·estruturais, muitas delasatuarido
apesardas vontades ouda consciênciados indivíduos, tal comoas estruturas
-econômicasmarxistas,.·mastambémno·que,tartgeaopróprio modélo:de narrativa
que a biografa representava. Se Michelethavia elevadoa nação ou o povo à
condiçãode umapessoa,que elebiogra.fava; buscando suas origens-e deserevendo
,sua traj_etória: contínua no tempo,, em que a·nação •teria;,deixado sua\infâncía,
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2 Vols.Paris: LGF,1993.
·;r:ECELÃOJJ.OS 'IJ,MPOS

·,-.,; ;grupq~)iô~:iai$,v"êtrf:µ~ttimeritó,'das~agê,neiasesttUtüi:a,is.fÁhistória:,semnqmes e
:sefu.kõst9:.das;~\1Ôrgagensrestrlttwiis'daiiá(õlµg.ar-a,umá·:f?:istoriqgr.afia e:rn-qµeo

E3E±±E±33±±E3±3±52
, pioneirosemcolocarcomo questãoa escrita dahistória, masnãoparareivindicar
ou
_ osdireitos dosindivíduos dosagentes ·etn súá:\~S.ttjtµt:a,•mas,para- afirmar a
':_:preV.álên:çià -~ci'.:'instifüiçâ,Q/d,g\t11gar,tda 'estrüttir~,pródutora·e-J>.fganizadoraido

zcr
- :~s:túél;ante,$,é·()t,,i::táifo$.c0s·ni:ilit1apJes·daqgel~sata.schaviam tetdmâdo ·a palaYra;que·-
_;estav:a;e~çarçetàd~ p~las';instituJçq_esI-µ:riiyets.it~dàs,rpelorpatti.dós.e: sipdicatps,
-,e>au,tori~-~a:s:a:pen,as,pàra'. :seus.1)1Mi.1,~rins;MasJ1üem'>tend_e;áJet:J'lesse.ar.tigo'de
1

,\Gette.àíta,r,eafüth,aç_ãoilfa,:velna,tese/liqeiijidãdibe11tla4eiieic1çãod.0Jàdi\líduo
oudoexercíciodeumalivre expressãodapalavra,uma palavraquenasceria
- desubjetividadesindividuaiseas expressaria,queseriam a·e)$:pressão-:de0 .uma
-~:v;e-idadir".interi0í;;aêÇa'dâ~militcµitef,desG0nhece~.fatR>::<;ie que.:Certeau, é membro •.

#±±e:.=.#.==
. ,_ ê,ida~:prin~fü~f~J!qú~stõ'es;;Syps::estüdós ·t!tt1Qgrâfi~ôs,.e: ahtropôlqgicos•- d.e>Levi- •
. ,,.:strau.ij;'?t_qüe.der~forma.ao•.que.se:nome-0üdeestruturalismo antr-opológico,
',h,âwittn,:qµesüonârlo.·.a,uiüvers_àlidade·:da,càt~gor-ia:-Homen:i;,se,havia:posto-·em .
• ; - q~ij(tã:07a;·,p.ossi~\lid.ad~;>pJJrtantotdá-históda-;ser,a,biografia'·desse- B;ornem,-,a
_ ,:narré1tiva:tôritínµl_d~,-·sµaJorl)j:~,çãp~,de:sµa:çivili,'?a,ção;,deseu,progr:esso,<dasua

s:..±.±:
,}dê'fah1g,;:quê,ijã.;.li'~yia,desçenJr,aço'a:tcon§êi~rlda daJ)rjgemida'maiorc;parte, de

EEE±EE±E±AE
··-\liyr~s,rde;ij_túilqú~i::\determinaç~o'.iéstr9-tural:oü;que.~s~jamr~gentes,.em,·tup.trJ.ra
;JCO:JJ,1pléJâ,"çpm a-5i~str-u.tuí:asici)mp~êlespt{>.pho~sei;.cotisid~rayam. Ele nãonega o
_·, fato quehaveriaaí uma
descontinuidade,umaruptura, masadvogaque essa sedá
. ):d,~~l~caj'id9;;eilídàiiclo\defor:n1a{di,stinta1corn{estrütura~·pi:évié\Sixístentesrcomo
·_ ,·!á\:ê}trut~rai'àaiiliitguªge1To,'A9.ueles:e·stt1d;,t11tes;,que--,p1thayam:-frases·em'tnUros
: e paredes,queportavam cartazes éfaixa.s;"queffazian1iÜ).termináveis, discursQs,
. / _-_:· ...,_:.,-:;.:é.-.-:->- \' ' ~- ' ·- •

167. CERTEAU,Michelde. Laprisede paroleet autresécritspolitiques. Ediçãode LuceGiard.


a {"!G.a.ocrescers acrssrss..
: -_ :,:t6fJ:.C:l:A..CANt}#cqué{'EI SeminarioV. 2:elyo en lateoriadeFreudy,en laif.éc'itipii,p_sicoânâtítica.
• ; '}'. :•;J3ú~nd,S:i_.¾f~~::P.àiMs/199!k' ': < _ • , '' ' • . • • '· •
rDURVAL'MUNIZDE:ALBJJE)UBRQU6JÚNIOR ' 117

estavam efetivamente :,constit:úindo,se. em: _sujeitos,.políticos ~.não ,por·.porem


<a:b'aixotodas:as estruturas{maspor:seservirem:de umaformainovadora daquela
queseriaa estruturafundamentalna sustentação,constituição elegitimação de
nossomundo:a linguagem. Damesmaforma, ao tratar,da :escrita- da história,'17º
Certeau estava no fundo tratando de como ,o ,historiador se ,constitui:como
sujeito, queoperaçõeso tornam historiador, aomanejaruma dada linguagem,
ao produziruma dadaescritaque, alémdesesubmeterà estmtura:de umâdada
• 'linguagemfàstegrasdedados,modelosnarrativos;.estavacondiciona:daporoütras -
· . estruturas, comoaquelasquedefiniam seu lugar de produção e que.delimitavam
umadisciplina, um conjunto ordenado ele operações técnicas eteórica5'arealizar.
Podemos,portanto,falarde um retorno do sujeito? Sim, podemos falar . -do
retornodosujeito, masdoseuretorno comoquéstão,.como problema, não-como
·certezac·ou,presençàtr~qúila.e·apa:z;iguadora,>cbmopresença referencial; mas
• simcomoptesençádiferencial: Podemosfalarenfretornodoiridivídub?Nomeu·
0

. . inodode·ver;.não:E,mboraw:olte•a pperar,c:om sujeitos'ii:l:dividuais;·embora sua


,narrativa>vÔlte.a.Se'enfeitardenomes.,,.agora•íodusiv:e,comnomes,das-pessoas
das camadas populares - inclusive, desde a Segunda Guerra,como nascimento,
nos Estados Unidos,dosestudosde história oral, ahistoriografia, que nasceu
como uma ·empresa..escriturística e.•. descorifiada,,em.•relação,à·,voz; à;•. oralidade,
- . fin,ge•agora.a:ceitarde:volta·9petigo.dapresença:da-voz doOutro,talcomófizera
• osantropólpgos e os etnógrafos -, esses ,indivíduos .sãoconvocado&para·serem
-,dissolvidos· e:·explicâdos pelas.estruturas·. sociais e culturais· que_se:tornam,sua
.expliccrção,·assim.como nzera-Lucien"•Febvre,. Apesar•·dafascínio e do exotismo
que o nomedeMenocchio pareceimprimira essanova história, que não só se
nomeiade nova,mas demicro-história, ele terminaporserapenasaporta de
::entradaro>indíçio;,o rastro;.osinal,.à·incorporaçãode camadas:profundas;cle uina
culturapopular cujasestruturas ele permite intúir:171 O,biográfic&-não é -m ais
-·.-.co.m odelo,de.escritura;dessasividas;'mas·:o,discurso·anttopológico,:sodológico,
linguísticoepsicanalíticodefinitivamentemarcado pela visada estrutural.
Embora em sua análise da mística não falte apresença deinúmeros
• ,person.agens,-.efuborateriha iniciado.suac:vidadehístoriadot;·cortdamadoporsua
-- ordem;,convocado,,portanto;p.or;sua•instituição; pela CompanhiadeJesus, para
fazer abiografiade umdeseus maiorais, ele,quepretendiaestu darinicialmente -
o discurso dapatrística,sevê condicionado e:preinido·por:apelos.,.institudonais
adedicarsuateseao estudo davida e obra dePierre Fabre,aventura naqual
- encontro1Laquele·arquem-vai dedicar:outros ·estudos bi<;>gráficos; ·Jean/Joseph
Surin, Certeau nãofaznuncauma biografia dássica;.0:que importa no fundo
não sãoesses nomes, masas regras sociais,- culturais;institlicionaistlinguísticas

170. • CERTEAU?Mfohelde. AiEscrita.âà''História. ·2• ed/Rio de Janeiro: forense Universitária,


2008.
J71. -. GINZBURG;,Carh.Ol.i)tiéijó.eosNetmes:c9'ed.São'Paulo:'Companhia'das.tetras;I987.
·;r:ECELÃOJJ.OS 'IJ,MPOS

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E3E±±E±33±±E3±3±52
, pioneirosemcolocarcomo questãoa escrita dahistória, masnãoparareivindicar
ou
_ osdireitos dosindivíduos dosagentes ·etn súá:\~S.ttjtµt:a,•mas,para- afirmar a
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,\Gette.àíta,r,eafüth,aç_ãoilfa,:velna,tese/liqeiijidãdibe11tla4eiieic1çãod.0Jàdi\líduo
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#±±e:.=.#.==
. ,_ ê,ida~:prin~fü~f~J!qú~stõ'es;;Syps::estüdós ·t!tt1Qgrâfi~ôs,.e: ahtropôlqgicos•- d.e>Levi- •
. ,,.:strau.ij;'?t_qüe.der~forma.ao•.que.se:nome-0üdeestruturalismo antr-opológico,
',h,âwittn,:qµesüonârlo.·.a,uiüvers_àlidade·:da,càt~gor-ia:-Homen:i;,se,havia:posto-·em .
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_ ,:narré1tiva:tôritínµl_d~,-·sµaJorl)j:~,çãp~,de:sµa:çivili,'?a,ção;,deseu,progr:esso,<dasua

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167. CERTEAU,Michelde. Laprisede paroleet autresécritspolitiques. Ediçãode LuceGiard.


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estavam efetivamente :,constit:úindo,se. em: _sujeitos,.políticos ~.não ,por·.porem


<a:b'aixotodas:as estruturas{maspor:seservirem:de umaformainovadora daquela
queseriaa estruturafundamentalna sustentação,constituição elegitimação de
nossomundo:a linguagem. Damesmaforma, ao tratar,da :escrita- da história,'17º
Certeau estava no fundo tratando de como ,o ,historiador se ,constitui:como
sujeito, queoperaçõeso tornam historiador, aomanejaruma dada linguagem,
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· . estruturas, comoaquelasquedefiniam seu lugar de produção e que.delimitavam
umadisciplina, um conjunto ordenado ele operações técnicas eteórica5'arealizar.
Podemos,portanto,falarde um retorno do sujeito? Sim, podemos falar . -do
retornodosujeito, masdoseuretorno comoquéstão,.como problema, não-como
·certezac·ou,presençàtr~qúila.e·apa:z;iguadora,>cbmopresença referencial; mas
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,narrativa>vÔlte.a.Se'enfeitardenomes.,,.agora•íodusiv:e,comnomes,das-pessoas
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-,dissolvidos· e:·explicâdos pelas.estruturas·. sociais e culturais· que_se:tornam,sua
.expliccrção,·assim.como nzera-Lucien"•Febvre,. Apesar•·dafascínio e do exotismo
que o nomedeMenocchio pareceimprimira essanova história, que não só se
nomeiade nova,mas demicro-história, ele terminaporserapenasaporta de
::entradaro>indíçio;,o rastro;.osinal,.à·incorporaçãode camadas:profundas;cle uina
culturapopular cujasestruturas ele permite intúir:171 O,biográfic&-não é -m ais
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Embora em sua análise da mística não falte apresença deinúmeros
• ,person.agens,-.efuborateriha iniciado.suac:vidadehístoriadot;·cortdamadoporsua
-- ordem;,convocado,,portanto;p.or;sua•instituição; pela CompanhiadeJesus, para
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adedicarsuateseao estudo davida e obra dePierre Fabre,aventura naqual
- encontro1Laquele·arquem-vai dedicar:outros ·estudos bi<;>gráficos; ·Jean/Joseph
Surin, Certeau nãofaznuncauma biografia dássica;.0:que importa no fundo
não sãoesses nomes, masas regras sociais,- culturais;institlicionaistlinguísticas

170. • CERTEAU?Mfohelde. AiEscrita.âà''História. ·2• ed/Rio de Janeiro: forense Universitária,


2008.
J71. -. GINZBURG;,Carh.Ol.i)tiéijó.eosNetmes:c9'ed.São'Paulo:'Companhia'das.tetras;I987.
'íTECELA©·DOS-:,TEMPOS

aqueobedecem. Oestudodamísticaé o;•est.U:do·de•suâlinguagem, é o estudo de


suafábula,dasregrasque a presidem como'p:rátitar,discursiva ou-não. 'Como diz
Luce Giard, "ele nãopretendereconstituir ahistória dessesautores, mas-,refletir
'•·rría!?ltn.1lftéiri;ts,de.:âtingir.ta1'ôbjetivo,e:telatar:.a,sua'prôpriarnaneira de,;proceder:
apartirdequaispressupostos,soba égide dequaisconveniências e àsombra de
quaissilêncios""Aofalar emTeresa de Ávilaou SãoJoãodelaCruz, elenãoestá
- pressupondoqueelessejamaorigemindividual e consciente, daquele.discurso
que proferem. G\disturso ·místico é.,1111-'tl:isóurso.privilegiado para sua análise
poisele tem co mo umadesuas regras a denegação dessa ação or;iginária'.daquele
quefala,éoprópriosujeitomísticoquepressupõe a existência deumaoutra
voz,davozdeum Outroquefala atravésidele; :que o usa-como instrumento; O
corpo que érecoberto pelo n:ometerreno.não é o.mesmo,simulado e construído
•• pelodiscursodamística,o"corpomístico"Nãointeressaa Certeau .a,,. trajetória,
:_'•de. vi:dà"dê'Teresa.·01.r<leiJoão,rêlas·-nacla e.xplicant'do,·sujeito·místicd,_que vieram
a setornar.ATeresa eq:JoãC>/S'i;Ljéitós'.místi:cos:só existem nci::interior do próprio
discursoqueassimosnomeia, elesprópriossabem -.que·sua· constituição .cromo
ser místiconasce contraditoriamentedaanulação de seu ser terreno e banaLpor
um discursoqueosdifere eseparadessaprópriavida. Embora adote anarrativa
i{il;,1pgráfica:mm91modelcrpára.a·enunciação,de,s:ua;doutrina,/feresa. sabeque;.cao
um
anunciá-laenuncia corte, umacesura,uma separaçãocom o serque fora
anteriormente.Narrativa deconversãoedeentregaaum Outro, umavidaque
•perde sentidopróprioparaadquirir novo sentido .na::exisfência •de outrem, na
fusãocomDeus. , ·.-· - • •
, · •· -· QuandoCerteauanalisa aoperaçãohistoriográfica, e mesmo quarid.o -
. escreve comohistoriador, trata de explicitarasregras ei0s"limites de.seu trabalho,
• ;:.]ê/tambéni;e_s.tf,pon:do-:em: questão, a figura:,do historiador como O'ponto'.:de
partidadodiscursoque emite.Assim comoomístico,o historiador .é como
indivíduoapenasumcorpo e,um,nome.quevem·ocuparumlugar de discurso,
lugarmarcadodeantemão porcódigos, por:regras;·porrelações, por umar:quiY:o·
· · de práticas eenunciados,umlugar .ónde.eQéxistem,.condições de'.p.ossibilidade
e limitespara seudiscurso.O ,ser :historiador .é:exen:er,uma função; é ·executar
um trabalho, éproduzir umdiscurso sobre o,,p.assado:que é, -ao mesmo tempo,
convocadoelimitadopelas:éstruturas"dnstituciornlis;'.P,Olíticas, ecortôrnicas,
ideológicas,culturais,simbólicaselinguísticasque vigoramnum dadotempo.
Quesentidofaz então oretornodobiográficonumahistoriografia em que,
>eriü'diálogo,,corn.\ -~quelas,disciplinas, :às :_quais, foucault atribuima morte do
·.Jíomem:·ia:;etnografia;-;a,psiéanâlise: e· àJinguístkaq,assou a··fazer- a história da
,c.onstit;úição,social:,etulturâldelugares.:de-sujeito,,.demodelos•de·subjetividade,
• • deidentidadessociaismuito mais do :quedesüjeitosfo.dividuais-pensadós tomo

172. GIARD,Luce. "Umcaminho não traçàdó". In~CERTEAlJ;Mkhel,de,Histórià :e P.sicànâlise:


• _ ·, ·; '.;,.;:;~tifré CÍênc/a,e,ficçãq:.B.elo:1:J;órizónte:Autêntiea;•201 l,-p. 20.
DURVALMUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 11

mônadas fechadas? Essa abertura e, ao mesmo .tempo, essa dispersão do sujeito


na linguagem, tema que a literatura,•asartes modernas, inclusive o cinema, não
deixaram de abordar,não tornaria o ambiente atual muito mais predisposto
a ·volta de uma abordagem prosopográfica do biográfico, do que a clássica
'abordagem individualizante, psicologizante,heroificante de outros momentos?
Quando, advogo que a sociologia, e mesmooutras ciências sociais, como
a antropologia, a etnografia e a psicanálise podemfornecer modelosnarrativos
e heurísticos mais condizentes com a forma como pensamosa questãodo
'Sujeito, do indivíduo edo biográfico hoje, estou pensando nas mudanças que a
própria escrita historiográfica passou nas últimas décadas, em que me-parece
seaproximar mais do caráter sincrônico e estrutural da prosopografia,do.que
da narrativa historicista, continuísta, teleológica, cronológica, individualista
que marcava as narrativas biográficas tradicionais. Se a História, como define
Veyme, 173 sefazhoje apartir do inventário das diferenças entre presente e passado
tendoa tarefade estabeleceroponto de corte, o momento deruptura quesepara
estes tempos, a biografa só terá sentido paraohistoriador se inventariar as
diferenças constitUintes dopróprio indivíduo biografado, se.encontrar naquele
que se diz um, muitos outros,se empenhar-seem marcar os momentos de
descontinuidade e inflexão na vida que écontada. Se, como nosapontaVeyne, o
inventário da diferença, oestabelecimento da singularidadedeum dado evento
ou de ·um dado tempo ou de um dado espaço ou personagem só é possível
através da sua comparação diferenciadora em relação a uma· dada estrutura
que, também é preciso mapear e descrever; à biografia significa hoje. desenhar
uma figura de sujeito naquilo que ela se assemelha-e se distancia em relação a
um todo socialque é a sua própria possibilidade de existência. O biográfico é a
medição de um desvio, é a descrição deum processo desingularização, deum
processo de subjetivação do social cuja singularidade estásempre ameaçada de
serreabsorvida por este todo de onde emergiu. Assim.como o sujeito místico se
constituía no mesmomovimento em que era tragado, era atraído para o nada de
si; para-a anulaçãode si diante de outro, osujeito da historiografia contemporânea
se desenha no mesmomovimentoque se anuncia a sua dispersão e reabsorção
por um todo. Assim Menocchio sedispersa numa cultura popular indiferenciada,
ele se tornaum dos nossos,um homem de nosso tempo, no mesmo gesto em
que o historiador traça a sua singularidade. Riviêre, sabe Foucault,"" é distinto
daqueles que seu texto criminoso figuraoupermite figurar em seu nome e 'com
seu.nome, ele.próprio está perdido, vagando nas matas, de só· se acha na dupla
capturaque o leva à prisão e o leva para o texto psiquiátrico, jurídico, político,
médico, que o aprisiona na condição de sujeito de seu própriotexto, texto que

173. VEYNE, Paul. Inventário das Diferenças.


O Lisboa: Gradiva, 1989.

174. FOUCAULT, Michel.Eu Pierre Riviêre, que degolei minha mãe,minha irmã e meu irmão.
8ed. Rio de Janeiro: Graal, 2007.
• 'FECELÃO :·POS TEMPOS

o eo
,... oexplica, implica mata,que tem como possibilidade o ·módelo.· literário
. dasnarrativas decrimesmonstruosos.Talvezseja graças·a esses folhétos·baratos
decapasazuisqueRivierepossa terarquitetadoseu crime, mastambémseu
questão
texto,ficando a irresolvidadequalgesto concebeuprimeiro. Alexina ou
• HerculineBarbin"nem mesmosabedireitoo que·-~\ seu sexo equívoco. do q\lâl
• .• gozou numa espécie de limbo identitário, gozo ITO, iüdeter~inado; nrnnãoslugar,
. . · :'. novaziodeEuque parecetambémtersido ·osegozos-místicostle,torpos como
odeTeresadeÁvila,ao sercolocado diante:da'·cobrança:pbr umaldéntidade •
. • ;:1ndiyídual;iêla1tiõRríUiçi1deffazer,de,seu·sexo·íridice:deideritidade,··•prefere a
•.. ·. morte,talvezporquesó ela, como diziam os:místicosrpr.-0métia o:definitivo gozo
. daperdadesimesmo,dodescaminho de si noOutro, estafusão com um Outro
queo vaziodamortetrazia.Mas,antesdemorrer, escreve .umdiárioondenarra
,;sui,viâa•;''es,Ctita,N9,,gr:áfi~a;f~ita,,tião/para,enunciar;:qina:sdmento;forrnação·.•e
constituiçãoconscientedeumsujeito racional, mas paranarrar um sujeitoque
' S(}'êqúiVC!P;l,i que~rraü}uê.~e:dilac~ra·em dúvidas,,queise:compraz e sente',prazer
ou
emnãoser ninguém não saberquem é, narrativafque.enuncia para·.breve.a
• • ·;.l,morteide,ii:m<~prpo;que:já'.;estava.mortcúdesde qqe:.a• turnba;de.uma ,categoria
• . ;<;çlassifiçât?fia,:9;jêlo-congelar?corp~vque:nem·sâberdireito;quenome.tem,que
'SêX(?'p'óSS(ti;,úffi,,s*jeit<fquese,constitllLrta,ªertva.e,no··,delírio:dos.códigos.que
";p9fifuno;a.Êtisionarn·e;~atagLSearnotte·é,setp:preoquê]nter:rnmpeàbiografia,
quasesempre,dirá Certeau,elaestáemseucomeçoe • é'Uffi\SeU. pressuposto. •
. ·•· <Querrts~ põêa·biqgrafar;,ou quem,,sep15~.a:se autóbiografar, :cóloca o biografado
:\ôWâ<SKtrtesttío.hô;JÜgar·dóm10rto;pois·paràµaver•biografia:'éspreciso•partir do
•tpressµp(?stô'de•que·:a•vf,dá:.qu:êse•bi9grafaa.éabou;·nerihurri·novo,episódio virá
a aser ela acrescentado. É eletambémque, porsuavez,lembrará que a morte
é acompanheirae inimigadodiscurso dohistoriador. Discurso que.lida com
osmortosapretextodeconjurar aprópria morte.Odiscursodo historiador
•· ·<•:e.nunçia;;,póisfQe'sa:ída;:~falfçomo,o\discurs9"biqgtâfico,·.·a .condição de,morto, .
de passado,dealguémquejápassou, de seus personagens,.mesmoquando se
·.·• ·.•;encontramfyi.yqs:;Enttax,para/à,,história;;é;,C.Uriosamênte,,mbrreregártharem
• ·· eternidade,talcomo prometiaa entrega místi<:a.
. •·•sEm,tdd<J,s;.e~s_esexempJos;,,o:·gestó.biográfico,pérmitido e,convQcado;hoje ·
e para pelahistoriografiaéaqueleque dispersao sujeito,quenão fazdele o
·',riúdêotlé2s~rititl<>fü<!··s.eu,própr:io·e~istfr;;de.:suas;ptóprias·,açõ.es, Ofü1div.íduo
'exíst~·parpJ,.si!fJttravt:ssâ.dó:-e,ultrapassádopelas.estrutüras;que.o rnôldam ··e ·o
transformampermanentemente.Narrar,umavidà.hoje.:.implica narrar,as suas
··,·r~lâçõeid~sentel~'àf:l,ÇàS,eidifetenças.com,ou.tros,s,ejamesse:outmoshumanos
mais
' ou as diversasestruturas sociaisque osmoldam e:>cortdicibnam;··. Se. o
• :bipg'i'áfi.cê);h;pj~ll))pltçaem.auscultar:comoumáfigura:de.sujeitos.e:desenha·em

175. FOUCAULT,Michel. HerculineBarbin: odiário de umhermafrodita. Rio de Janeiro:


FranciscoAlves, 1982.·
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JCNIOR 121

suas relações, emsua diferençacomum outroque setoma por referência, creio


que o recursoaos estudos nomeados de prosopográficos passa a ser um recurso
heurístico, metodológico e teórico bastante pertinente. Afinal, o que constitui a.
prosopografia senão o pôr em relação diversos indivíduos e procurar encontrar.
nas suas trajetórias de vida elementos de regularidade e de singularidade. Na
prosopografia, a vida de cada individuo serve. de instrumento de medição do
desvio que significaa vida de outroindivíduoque fazparte daamostradefinida.
A utilização da prosopografia requer do historiador a explicitação dos seus
pressupostos, dos métodos adotados e a confissão dos silêncios que de saída
assumiu, pois elenão podefalar de todas as vidas, ele não pode comparar
todos, por isso terá que deixar claro os-critérios a partir dos quais recortou seu
·universo devidasa serem cruzadas ou postas em comparação, terá que definir
de saída seu corpus ou seus corpos. Ao invés do discurso biográficoclássico
ondeo autor da biografiapodia fingir uma identidade com o personagem que
biografava a ponto de gerar a ilusãodeque era o própriobiografado que falava
de si mesmo,, na prosopografia se reconhece de saída o que é umpressuposto
até mesmo do discurso autobiográfico, a não coincidência, a heteronomia,os
lugares de fala distintos-que separam o biógrafodo biografado,ainda que sejam
a mesma pessoa.
Se a historiografia é hoje o inventário das diferenças, a prosopografia
permite inventariar os traços comuns edivergentes que separam as vidas
escolhidas para serem.confrontadas. Inventariar edescrever esses traços comuns
que se encontram nas vidas dos personagens, constituiaoperação historiográfica
propriamente dita, pois significa encontrar para alémdo episódico e do singular
que supõe cada existência individual asregularidades discursivas epráticas, os
rituais, os costumes; os hábitos, os códigos culturais e linguísticos, que seriam
comuns a cada uma dessas existências; as permitiriam, definiriam e delimitariam.
A prosopografia permite que a partir do biográfico se descreva o estrutural e não
o eventual. Os indivíduos, suasvidas, suas ações,suas falas, seus pensamentos,
suas obras, permitiriam encontrar no confrontoentre elas o queseria o regular
e o singular emdada configuração histórica, tornaria possível mapear; inclusive,
Os modelos, os códigos,as regras.que:presidiram·suas constituições como pessoas
e como sujeitos, :emdado tempo e lugar. As prosopografias teriam que lidar e
descrever os próprios elementos conceituais e linguísticosque aparecem como
recorrentes nas próprias narrativas biográficas comque se ocuparia. Ao comparar
vidas narradas a prosopografia torna possível não apenas encontrarregular-idades
culturais, sociais, econômicas, políticas, ideológicas atravessando e constituindo
essas vidas, mas encontrar as próprias regularidades no discurso queas informam
e as transformam em biografias. A esses elementos que se repetem com dada
regularidade nas narrativas biográficas, que se·cortstituiriam em um dos objetos
da análise prosopográfica, eu chamarei de biografemas, numa referência ao papel
que no canipo daJinguagem desempenham os fonemas, tal como-os-definiu
· . TECELÃO DOS ;rEMPOS

Saussure,"" ouaopapeldesempenhado pelosmitemas.. nas narrativ.as. ·niítiaas,.


talcomo analisadaspor Lévi-Strauss eRolandBarthes."77
; • :y a,@s:,.hiê>gráféqi.asísãó; assim,co:mo os-fonemas ·para·urna. frase,,as,menores
unidades dodiscursobiográfico eque osustentam. Essesbiografemas variam
historicamente, porissomesmo seconstituem emobjetodo trabálhóo.-do
, , . :,. histofradpr,\qµ.;e,,se;interrogái:'ia\s·obr.e'•quàisi'sãmos ibiografemas_• que,susteritam
• ·-.· ;. natrativas"',de{vidá.errt\um -dado;:cohtexto; numardada épo-ca ou em uma ~da.da
de
modalidade discursobiográfico: osbiografemas do discurso. 'da. história
oral,porexemplo, sedistanciariamdos biografemas do discurso da psicanálise,
embora possa m terpontos emcomum. Para encerraressetextoseria pru'dénte e
L:mteressante-q'."t,1eet},t~duxesse-um.exemplode,utiliz~çãddo,recm~o ª;prosopografia.
comométododeanálisee recursoheurísticono :campo' dahistoriografia e, ao
a
mesmo tempo, exemplificaçãodoque eu ·,estoff:'chamando de .biogl"afemas,
·.:-essá:s:úriídádes'~str4turais:pãosótlodiscurs&hiqgráfico,:rnªs.tarribém da-própria
.-.,fforma.cori10.•i:pe11sajrios."etonstifuímos·sí.ijeitos:en1:nossa·cultura,atrávésdos,quais
• :,t;rinbém os,~ujé:it◊'s-se·pensam e.sédefinerh!Voàlanwrmão'da,minha experiência
· .<le·•pesquis,a;•ifüia.l,cxeflêhr. sobrelá'quilo-•qüe·5fazemos,..·sobre ,'()S :procedimentos
· que utilizamos éumaexigência,hoje,no campoda• historiografia.
Pesquisandoo processo de construção da noção de culturapopularno
Brasil""e deculturapopularnordestinapelo discurso do folclore,propus-me
•.·. a:.,trâç;i.:rd.:Ínr;petp:Ldjletivo (da;tigu:r:a-àoi:foldmistà;· 'P.ara dssoüanceLmão do
••• conjuntode biografias, autobiografiasememórias pessoais escritas •por eles
mesmosouporseusbiógrafos.Pusem comparação essasnarrativas e.busquei
• ide não os
ntificar só traçossociais, Gí.tlturà:is,.•ide0ló.gicos: e políticos que .-OS
_.· aproximavamoudiferenciavam,mas procureiidentificar oselementosde
•<recpri:êndasiies#sJptóprias·.natrâtivas,,ou'.!iéja,:procurerverificara ocorrência
. ,otr-riãô:,de:regt,i!ânidaâes,.nâoé$<fr}]:Uànto aosctraços pessoàis;-aos aspectos davida
'des~e$:person.ig<tt,i~·J?ara:osquais:essesJextos;ªpontavam,,mas,tambémno•que
.• se referiaaospróprioselementosque se faziampresentesnessas .nar,rativas • de .
que
vida,aquilo. denomineidebiografemas. O meu pressupostoera ode que
/aq,uel~sfíementos;-iqueles:aspectos;aqueles:traçoseconôrriicQS}políticos; ·sb.ciais,
que
culturais aparecessemcomcerta regularidade nas nan;atLv.asdessas vidas me
·_·;petriiitidatn:,yislu:thbrar..o:~.dados_'eStrutúrais>'o,queseriamasdeterminaçõesmais
• >:-geráis•:gue;presídiriun:es.sasiirídas;;Pei-111.itindoquea:bandonasse,uma:ahorq.agem
··, -, ·ceiitiâda:,riaX~hisã.&ldartmicídade;'-,continü.ídade,e:irredutfüilidade-do:iridivíduo,
parapensá-loco moproduto deuma tramalhistórica/de, ·uma,configuração

,)76.,),{simsstrRE/Êêidinand de.Curs<ldei.LingufsticliBeral. ,27,'ed, São Paulo: Cultrix,2006.•


, <17.7:\ )LEVI.-SXRAÚSS{Glaude.O Crue à.Coijdo:,2e&:sã0Paulo:CosacNàify;'201Ve,BAR1'HES,
• Roland.Mitologias.11ed.SãoPaulo: Difel, 2003. _ •. _ • .
178. Apesquisa referida deu origem a dois livros,numdeles utilizo o método prosopográfico:
••• ,,:~LBUQ.UER,QUEJR;; Durvã!Muniz de. AFeiradosMitos: afabricaçãodo folclore e da
r;cúlt,UrÇ1,ppMlaf:'(Nord.este>l92(J.,1"95fJ)}São·Raulo;,;lptermeios;i2o13:· • •
DURVAL MUNIZ DE.ALBUQUERQUE JÚNIOR 123

histórica que a· comparação entre as narrativas dessas vidas,,que tii:iham corno


primeiros traços unífica:dores;.teremvivído numa mesma.fpoca e.num mesmo
espaço:.o Brasil. Além,dissotao pôr emcomparação essas narrativas devida, fui
me dando·conta dequeelastambémapresentavam regularidades discursivas; elas
se c-0mpunham de alguns elementos que eram .recorrentes, o que me permitiu
divisaro que seria a própria estrntura das narrativas biográficasnessernomento
histórico.
: Se,ao compararos elementos.biográficos dos folcloristas que produziram
sua obra no BrasiLentre o final do·século XIX e meados do século XX, pude
divisaroque seriamos elementos estruturadores.da.ordem-social em que viveram
, e escreveram; div:isat:ospróprios processos de mudança; _as transformações que
,abalavam muitas,dessas estruturas ou anunciavamnovas estruturações, contra
'as· quais a maioria deles. produziram seus estudos, a comparação das.narrativas
biográficas queformularamou dasquais foram objetos permitiu-medefinir as
estruturas narrativas doprópriogênero biográfico.nesse momento:0 ensaio de
prosopografa me permitiu, portanto, evitar a "ilusão :biogrâfid' e encontrar
os elementos estrutmantes -do:pr:óprio .gênero.biogrãfico, •nesse-momento,
aquilo que chamei de biografemas. Seriam :eles os ·elementos sem os quais não
haverianarrativa biográfica, as unidades menores e consideradas nudeares e
incontornáveis na narrativa de umavida: local e data, de nascimento docal e
data da morte (o, que configura o queseria ou não uma,geração;o perteriGirnento
a um dado tempo ea um dado espaço), a origem social (profissão a que se
dedicavam os pais, famílias aque pertenciam, posição queelas ocupavam na
hierarquiasocial),formaçãoescolar e profissional(queformaçãoescolartiveram
e, voltada para queprofissão),articulaçõessociais e políticas{instituições de,que
faziamparte, em que trabalharam ou estudaram;vinculaçãoou não a atividades
partidárias, políticas ou ao exercício de cargos públicos),redesintelectuais
(instituições culturais ou artístico-literárias de que·Jaziam parte;. contatos
intelectuaise,principalmente, ocontato que estabeleciamentresi). Asbiografias
quase sempre se iniciam co:m a localização espaço-temporal do nascimento e
da morte, dó biografado. A biografia, portanto/ é de·saída a-,rtatrativa de uma
,,-trajetória que vai.do,nascimento•atéamorte, deum tempo linear:que articula-dois
momentos, umiprincípioe um:final. Quando, no entanto; amorte do.biografado
ainda não se deu, sua vida éfechadaporalgumacontecimento decisivo que
Significou, muitas vezes;seu apogeu ou•seu dedínio. A sombra da -morte não
deixa de assombrarumavidaquese conta e que já sejulga terminada. ,Seguem-
_, se elementos. como a descriçãoda origem familiar, importante em biografias
de homens .cujos, vínçulos-com dadas parentelas foi fundamental na definição
do que seriamsuas trajetórias na vida; a descrição do processo de formação
educacional, que confere destaque e ,promove-a diferença'de: percursos que se
efetuam numa sociedade e numa época em que a escolarização era privilégio
de poucos; a escolha profissional e a carreira que nela desempenharam; as
TECELÃO:DOS TEMPOS

• , relà;çõeisohaiS'eiólítkas'.dee.destaque}as inslitúições profissionais,,pQlíticas e


deconsagraçãodequefizeram parte;a descrição das.redes,sociais,-Jiterárias e
. políticasdequeparticiparam; as condecoraçf)es/prêrt1ios .eioutras;modalidades
deconsagraçãoquereceberam. Essesbiografemas nos permite visualizaro que
umseria certopadrãoaristocrático denarrarvidas, de ·escrevetrbiqgnafias; • A
ausênciado sucessoempresarialou financeirocomo elemento central emsuas
· )v.rdas;,,r:nat-ràtivas,de uma .orjgem tióbiliárquica a:o·,invés da narrativa de uma
>-ttaj.efóiia;de:ascensão sodal,típicadai(iljmdde>manhurguês·denota:qu.e estamos
'·· . :Eiâi1té:Üe:Uhl:pa<irã0;:biç,gr;µico concêr.nente.a,um·dado .extrato socialespedfico.
Ou seja,a prosopografiapermitevisualizarnãosó as .estruturas;que sustentam
• unitd~do:iêlatb:b:{ogtáfico;;mas perrriite::divisa:r as estruturas ,sociais··da;qual.ele
e
provém daqualquer serum testemunho,umamemória.
. •. • • Ousoda prosopografia 'como:,ret;;urso,rnetodológ:ico: e, héurístieq.-.pelo
.•• ·,:·:,:füstoriâ:dor;-:pérm:ite;<portanto,.no;:meu:,modo:;de:ver,:i.superaF-amiístiça· do
· · ,:,.füdiviíduódã.o:ipresente: em.: riossa•:'éü'ltur,a;.-permite re.ihtro'duzir as agências
•• )jfi<llvfdtiàis-nas rtàrratiV:aifüist.oriogtâficas;sem quese·recaia.na pressupo'sjção.de
,que·elas•~sJãoconscienteme11te e;i:adortalmente,·como·•seres·:livres.de:qualquer
. _ :c·ortstiaqgimentd estruturale-social; I1a;origern de suasaçõesrperm:'itemapear:os
• ..• ;conaicionaméntoSdetoda,otderp.:queJimitame, aomesmo.tempo; possibilitam
• ·..,a:sações'dosindivíduos.nqmdà:dátempo,.enutn clado:espaço;,petmite dar.conta
• · das .ptóprias.'.estr4turasna:rrativas,qtte·,~nformam·a escrita.·de,vidas num\dado
momentohistórico; permiteestabelecer O$•padrões -sociais e nar11ativos. em que
estasvidas forampossíveisenarráveis e,ao mesmo tempo, o que·'elas tiveram de
e
singular,diferente divergente emrelaçãoa essespadrões.Tratar-se-iade um
retornodoprosopográfco,da colocaçãode vidas emparalelo,mas não ,mais, •
comona antiguidade, pararealçarsuasexcepcionalidades,mas paradescrever
suas regularidades,não parafazerdelasmonumentos, :mas,para,desconstruí-las
en_qtiaíitóJais;"não;,para:c.onst!,'.üit;heró:i;$.;;:mas:para pôr em·dúvida.,o,heroísmo
.4
decadaum deles.Parodiando umafala deMichel Foucault, eu>dfria: fazer
.i- .prosqp:qgr.àfia.·não,para desenhara,figuraiiítid,a,,de uma personagem; para traçar
operfilinequívocode umapersonalidade,masparadesenharumrostode areia
,: que,se,dêsvanecena··orlaidorrnar:1.~~.Ao invés dotalho da escultura· de,grandes
homens,aderrubadadestasamarteladas, restando delas-as migalhas;pequeFlas
coisas,detritoserestosqueotempovirádevorar.

179., <AJrase,parafraseádaé: '.'.Se estas (ijspdsições.víessem à desaparecertakomo,apareceram, se,


por algumacontecim ento de que podemos quando muitopressentir a:possibilidade;•mas de
. que nomomentonão conhecemos·aiinhrnern aforma nem a.prornessa,se.desvanecessem,
• ' , '.CO.IDÓ·aco1),teceµ, hà·;curya ,do,século:X:Vll.f;,conl o,solo.,d€) ·,pensarnento clássico - então
se pode apostar queo homem se desvaneceria, como, .na,.o_f.Ia .do mar,. urn:tosto,•de à reia''.
FOUCAULT,Michel.As Palavras e, as;'.()oisas,,,p: •536. •
Capítulo6

O caçadorde bruxas: Carlo Ginzburge-a


análisehistoriográficacomo inquisição e
suspeiçãodo outro

Carlo .Ginzburg; já emseulivro de estreia,. publicado em1966, analisa 0


processo atravésdoqual umcu:ltoqueteriacaracterísticas nitidamentepopulares
foi pouco apouco se modificando.sob apressãodos inquisidores, parafinalmente
assumir os :lineamentos dafeitiçaria,tradicional.180 Em Os: Aridátilhos do Bem,
portanto, Ginzburg,utilizando-seda documentaçãodo Santo Oficio, defende a
;tese de que o processo de caça às bruxas,. empreendido pêla: mquisição,.tetmina
por fabricar a própria;bruxaria. Teõlogos e ·inquisidores através :da difusão
• de esquemas de .interpretação acerca. das. superst.ições.·e crenças populares,
Veiculados em sermões, tratados; e-·imagens; :teriam-elaborado a· imagem da
• -:feitiçaria.diabólica. Ginzburg :trata, enfim, de como essestextos diab◊lizaram
aquilo .que não entendiam, quenão conheciam: as ·formas de pensar;,. de
conceber e explicaro mundo das camadas populares, seus cultos e rituais, que
. eram interpretados como demonstração de barbárie e de irracionalismo., As
confissões das bruxas eram -consideradas-fantasias absurdas e eram arrancadas
com ferocidade e superstição:pelos juízes, queno curso dosprocessos, através da
. Jortma e de ''.interrogatórios sugestivos''. .modelavam através de seus esquemas de
interpretação afala dosinquiridos, paraver reafirmada, ao finalda investigação,
a tese; a ideia que játinham desde-o início doprocedimento investigatórfo'.181. ·o
conceito prévio de bruxariaou defeitiçariadiabólicaterminava po{darsentido
a toda fala e a toda prática religiosapopular queescapavadaobediência aos
códigos daculturaletrada e da Igreja Católica.

. 1'80. GINZBURG, Carlo. Os Andarilhosdo Bem:feitiçarias e.cu/tos·agrários:rtos,séculos XVI e


.XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1988; p.8.
181. .' Idem.:1bidem.:p:9.
TECELÃO:DOS TEMPOS

• , relà;çõeisohaiS'eiólítkas'.dee.destaque}as inslitúições profissionais,,pQlíticas e


deconsagraçãodequefizeram parte;a descrição das.redes,sociais,-Jiterárias e
. políticasdequeparticiparam; as condecoraçf)es/prêrt1ios .eioutras;modalidades
deconsagraçãoquereceberam. Essesbiografemas nos permite visualizaro que
umseria certopadrãoaristocrático denarrarvidas, de ·escrevetrbiqgnafias; • A
ausênciado sucessoempresarialou financeirocomo elemento central emsuas
· )v.rdas;,,r:nat-ràtivas,de uma .orjgem tióbiliárquica a:o·,invés da narrativa de uma
>-ttaj.efóiia;de:ascensão sodal,típicadai(iljmdde>manhurguês·denota:qu.e estamos
'·· . :Eiâi1té:Üe:Uhl:pa<irã0;:biç,gr;µico concêr.nente.a,um·dado .extrato socialespedfico.
Ou seja,a prosopografiapermitevisualizarnãosó as .estruturas;que sustentam
• unitd~do:iêlatb:b:{ogtáfico;;mas perrriite::divisa:r as estruturas ,sociais··da;qual.ele
e
provém daqualquer serum testemunho,umamemória.
. •. • • Ousoda prosopografia 'como:,ret;;urso,rnetodológ:ico: e, héurístieq.-.pelo
.•• ·,:·:,:füstoriâ:dor;-:pérm:ite;<portanto,.no;:meu:,modo:;de:ver,:i.superaF-amiístiça· do
· · ,:,.füdiviíduódã.o:ipresente: em.: riossa•:'éü'ltur,a;.-permite re.ihtro'duzir as agências
•• )jfi<llvfdtiàis-nas rtàrratiV:aifüist.oriogtâficas;sem quese·recaia.na pressupo'sjção.de
,que·elas•~sJãoconscienteme11te e;i:adortalmente,·como·•seres·:livres.de:qualquer
. _ :c·ortstiaqgimentd estruturale-social; I1a;origern de suasaçõesrperm:'itemapear:os
• ..• ;conaicionaméntoSdetoda,otderp.:queJimitame, aomesmo.tempo; possibilitam
• ·..,a:sações'dosindivíduos.nqmdà:dátempo,.enutn clado:espaço;,petmite dar.conta
• · das .ptóprias.'.estr4turasna:rrativas,qtte·,~nformam·a escrita.·de,vidas num\dado
momentohistórico; permiteestabelecer O$•padrões -sociais e nar11ativos. em que
estasvidas forampossíveisenarráveis e,ao mesmo tempo, o que·'elas tiveram de
e
singular,diferente divergente emrelaçãoa essespadrões.Tratar-se-iade um
retornodoprosopográfco,da colocaçãode vidas emparalelo,mas não ,mais, •
comona antiguidade, pararealçarsuasexcepcionalidades,mas paradescrever
suas regularidades,não parafazerdelasmonumentos, :mas,para,desconstruí-las
en_qtiaíitóJais;"não;,para:c.onst!,'.üit;heró:i;$.;;:mas:para pôr em·dúvida.,o,heroísmo
.4
decadaum deles.Parodiando umafala deMichel Foucault, eu>dfria: fazer
.i- .prosqp:qgr.àfia.·não,para desenhara,figuraiiítid,a,,de uma personagem; para traçar
operfilinequívocode umapersonalidade,masparadesenharumrostode areia
,: que,se,dêsvanecena··orlaidorrnar:1.~~.Ao invés dotalho da escultura· de,grandes
homens,aderrubadadestasamarteladas, restando delas-as migalhas;pequeFlas
coisas,detritoserestosqueotempovirádevorar.

179., <AJrase,parafraseádaé: '.'.Se estas (ijspdsições.víessem à desaparecertakomo,apareceram, se,


por algumacontecim ento de que podemos quando muitopressentir a:possibilidade;•mas de
. que nomomentonão conhecemos·aiinhrnern aforma nem a.prornessa,se.desvanecessem,
• ' , '.CO.IDÓ·aco1),teceµ, hà·;curya ,do,século:X:Vll.f;,conl o,solo.,d€) ·,pensarnento clássico - então
se pode apostar queo homem se desvaneceria, como, .na,.o_f.Ia .do mar,. urn:tosto,•de à reia''.
FOUCAULT,Michel.As Palavras e, as;'.()oisas,,,p: •536. •
Capítulo6

O caçadorde bruxas: Carlo Ginzburge-a


análisehistoriográficacomo inquisição e
suspeiçãodo outro

Carlo .Ginzburg; já emseulivro de estreia,. publicado em1966, analisa 0


processo atravésdoqual umcu:ltoqueteriacaracterísticas nitidamentepopulares
foi pouco apouco se modificando.sob apressãodos inquisidores, parafinalmente
assumir os :lineamentos dafeitiçaria,tradicional.180 Em Os: Aridátilhos do Bem,
portanto, Ginzburg,utilizando-seda documentaçãodo Santo Oficio, defende a
;tese de que o processo de caça às bruxas,. empreendido pêla: mquisição,.tetmina
por fabricar a própria;bruxaria. Teõlogos e ·inquisidores através :da difusão
• de esquemas de .interpretação acerca. das. superst.ições.·e crenças populares,
Veiculados em sermões, tratados; e-·imagens; :teriam-elaborado a· imagem da
• -:feitiçaria.diabólica. Ginzburg :trata, enfim, de como essestextos diab◊lizaram
aquilo .que não entendiam, quenão conheciam: as ·formas de pensar;,. de
conceber e explicaro mundo das camadas populares, seus cultos e rituais, que
. eram interpretados como demonstração de barbárie e de irracionalismo., As
confissões das bruxas eram -consideradas-fantasias absurdas e eram arrancadas
com ferocidade e superstição:pelos juízes, queno curso dosprocessos, através da
. Jortma e de ''.interrogatórios sugestivos''. .modelavam através de seus esquemas de
interpretação afala dosinquiridos, paraver reafirmada, ao finalda investigação,
a tese; a ideia que játinham desde-o início doprocedimento investigatórfo'.181. ·o
conceito prévio de bruxariaou defeitiçariadiabólicaterminava po{darsentido
a toda fala e a toda prática religiosapopular queescapavadaobediência aos
códigos daculturaletrada e da Igreja Católica.

. 1'80. GINZBURG, Carlo. Os Andarilhosdo Bem:feitiçarias e.cu/tos·agrários:rtos,séculos XVI e


.XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1988; p.8.
181. .' Idem.:1bidem.:p:9.
.J.6 TECELÃO.~~

Dezanosde pois, em1976,CarloGinzburg publicao livro que o consagraria


comohistoriador emtodo omundo e ·que passària a ser um.a espécie. de q_bra:
paradigmática doquese chamaria de -micro-"história.:italiana ou da ,utiJizaçã<!
daquilo que opróprio Ginzburg, em outro texto famoso", chamará deparadigma
indiciário:OQueijo e osVermes"""Nesselivro vemos, mais uma vez, Ginzburg
envolvido comadocumentaçãoinquisitorial, analisando um volumoso processo
abertocontra o :n'ÍÔleirn Dome:n:ico Scandêlla, .dito .Menocchio,- acusado de
sustentarque o mundo tinha sua origem na putrefação/:NoArquivo da Cúria;- -

Episcopal de Udine,caçando bruxas, curaridei_ros e:benandanti, o historiador


italianoacaba pordeparar-se coma longa sentença emitida a partir deuma
vastadocumentação manuscrita, graças à qualteria podido sab.er. quais eram as
leiturasdomoleiro,quais as discussões de .que partkipara,.. seus,pe_nsrunentos· e·
sentimentos:temores,esperanças,ironias, raivas, desesperos. Através das fo:ptes
inquisitoriaise judiciárias, Ginzburg diz ter :sentldo, ,muitas-vezes, _Menocchio
bempertode nós, como sefora um de nós, sem deixardeperceber que era
também umhomem muitodiferente de nós. ·passa então· a tentar- entender
essa a
diferença, reconstruir fisionomia da cultµr-a'qú.e permitiu a existência
das ideiasdaquele camponês,analisar os filtros culturais através doqual lia os
• textosquelia,terminando por,a partir da análise,do-,cotidiano e· das ideias.-d~
., um moleiro,desembocar numa hipótese geratsobre acul~ra-popular-da Europa _
pré-industrial,queseria a deque existiria, neste momento; um relacionamento
. . <i.ci:tcúlar/feitó·dé=-influênciascredprocas·entre a cultura-das· dasses,<lominantes e
.'>'à:rlllti.ira•.das·dasseffsubãlternas:184 • • -

' • :'No'final'da-détada'Seguinte, no ano de'l989, em.livro oferecido·à memória


deseupai, LeoneGinzburg,que morreu numa prisão durante. o fascismo,e à
sua mãe, afamosaescritoraNatália Ginzbmg, -encontramos: o grande nome da

micro-histórianovamente às ;voltas, com,bruxaS, e feiticeiros;·que .se:.reuniam. â _


_ noite,no campoouna montanha,que às vezes: chegavam voando, depois de
.•• i:Jerem-imtã'do_o-corpocom-unguentos, montando bastões ou cabo de vassouras;.
>em·outras:ocasiões,-.apareciam em garupasdeanimais ou então.-transfo:rmados.
eles próprios em bichos. Os que vinham pela,·primeira vez· deviam renunciar à
fécristã,profanar ossacramentos e,.;rertder homenagem ·,ao ,diabo, ,ptesenteéSoh
a formahumana ou (mais,frequentemente) como animal ou semianimal. :Antes
tde:v.oltarem parai:asa;-:ess_as· bruxas e feiticeiros recebiam uqguentos0mâléfico
-· produzidos comgordurasde criançae outros ingredientes. Em História Notur,m
• ./1,nais,uma-vez?.Ginzburgvai'ahordar como um dadÓ conceito,.o de sabá, cdmo
o conjunto de narrativas que seapóiavam.nesse.conceito e que davam aeletun.
<182. ~-GINZBU,RG;(;árló:"."SinaJs:c.raízes de um,paradigma indiciál'.io''.'Tn: Mitos, Emblemas e
• Sinili$/SãôsRaulo:XC:ompaI,1hia·das Letras, 19$9; p. Í43-l,79. •
183. c:GlNZBl:ffi,G; Carlo.O Queijo eosVermes: o cotidiano·e-as.·ideias de um moleiropétiegiizd
c:pe/aJnqúisição:'São·Paulo-: Comp,anhia·das L'etras>'-1987. ' - · . -
',184. ;,Jdem,Ibidem. p. 11-13.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JCNIOR 127

dado feixe de significados.terminam por enquadrar e dar sentido; terminam


por modelar práticas, crenças e discursos-vindos das camadas populares. Ele
se pergunta como e porque se cristalizou a ima,gem do sabá e que mecanismos
ideológicos sustentaram a perseguição à feitiçaria na Europa, procurando
reconstruir, também, as crenças das mulheres e doshomens acusados de bruxaria.
As imagensdo sabátendiam a repetir-se com.extraordináriauniformidade tanto
nas·confissões dosparticipantes das reuniões noturnas, quanto nos tratados de
demonologia, de um extremo ao outro da.Europa, entreos princípiosdo século
XV e o final doséculoXVII. Oconceito de·sabáservia. para dar materialidade
ao que seriam verdadeiras seitas de bruxas e feiticeiras, bem ,mais perigosas do
que as figuras isoladas, conhecidashavia séculos, portadoras de malefícios ou
"do que: a. figura dos encantadores, Quem perseguia- as bruxas, quem-usava do
conceito de sabá para nomear o que seria a reunião de muitas delas, utiliza de
um conceito genérico, quehomogeneíza o inimigo, o. estigmatiza, emnomeda
prevenção do perigo ou dos malefícios que trariam, como-também de evitar o
encantamento que·estes poderiam causar. A.uniformidade das confissôes, de
suas práticas e discursos,.seriauma,prova da uniformidade e da onipresença dos
sequazesdestas seitas e de seus, ritos horrendos que deveriam ser combatidos
paraque não se·espalhassem perigosamente entre apopulação. "Portanto, seria
• oestereótipo dosabá o .que sugeria aos juízes a possibilidade de arrancar dos
imputados, por meio de pressões. físicas e psicológicas, denúncias em série,· as
quais, por suavez, desencadeavam verdadeiras ondas de caçaàs bruxas"85
Podemos dizer, portanto, que aformação de Carlo Ginzburg como
historiador esteve intimamente ligada à temática da bruxaria, da feitiçaria, da
caça às bruxas. Talvez.não seja muito.difícil entenderco interesse do historiador
italiano por essa temática, além de representar a abordagem de elementos da
cultura popular, além de-ser um esforço para trazerparao interior da história
a presença das classes subalternas, o seu cotidiano e modos de viver e pensar,
;premissàs-políticas e.acadêmicas condizentes comomarxismo, posturapolítica e
teórica que herdadeseus pais, essa temática também-se relaciona.com avida de
um historiador de descendência.judia, que tevesua vida marcada pela morte do
.pai, graças à intolerância'dófascismo. Em História Noturna, Ginzburg, citando
H. R. Trevor-Hope, vaise referir à analogia existente entre asituação das bruxas
e dos judeus na cultura europeia: tanto umas quanto outros serviriam, em dados
momentos de tecru.descimento das .tensões-sociais, ,nos ,momentbs de crise,
como bodes expiatórios sobre os quaisse abatiam a raiva,. o .ódio e o desprezo
.daqueles vitimados-pelo processo:emcurso. A hostilidade camponesa emrelaç:ão
à feitiçaria erasemelhanteao antissemitismopopular. Asituação dosindivíduos
acusados de bruxariapodiaser comparada à dos judeus perseguidos, Ainquisição
se ocupava tanto do combate à,bruxaria, como· de· todos ,aqueles-indivíduos

185. GINZBURG, Carlo. História Noturna. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 10.
TECELÃO DOS TEMPOS

acusados de praticar ritos e professar crenças judaizantes. Não é difícil supor,


portanto, quea in egável solidariedade de Ginzburg, oseuolhar generoso em
relaçãoàqueleshomens emulheresquenaEuropa pré-industrialforam acusados
debruxaria e feitiçaria,nascede seupertencimento aum grupoétnico quefoi
ao
vitima longoda história de perseguições;•·genoddios; -acusaçõ.es. e suspeitas
toda
de ordem.Em suas discussões no campo historiográfico,o Holocausto, a
- matança indiscriminadade judeus pelos ,nazistas durante .a.Segunda Guerra
Mundial,guerraque ceifoua vida de seu pai, por ser judeu ecomunista, aparece
• iri:sistentementecomo argumentoparaque se faça o combateao que ele considera
• ser_postt1ras: relativista.si:pós~môdernas,,irracionalistas, .narrativistas-- que, ·ao
- porem: ern'dúvidao que çhama•deptintípio·da reâlídade•ná história, abririam a
• --_-.\possibgídâde•paraa'ateitaçãodas.tesesnegadonistas;-dasversõesreviosinistas
emrelaçãoaeste eventomonstruoso e incontornáveLpara qualquer-judeu.
No entanto, me parece,.eestaseráatese que tentarei,demonstrar•aolongo
·•aestetexto;que'.Carlo·Ginzburg:nãoapre:ndeucomos-processosdnquisitoriais e
_· Júdiêiái:fos que compulsou,.com as pesqUisasquerealizouemtorno;da·bruxaria
esuaperseguição,apenas umadadaforma de pensar e· escre:ver a _história,
não desenvolveuapenasuma dada metodologia, dadas convicções políticas e
teóricas,mas ele aprendeulendo, relendo, fichando, reproduzindo estes dis.cursos,
dadosprocedimentosretóricos, dadas estratégias narrativas, ·dados modos -de
argumentação: aprendeu a manejar dados troposdiscursivos,fundamentais
na urdidura deseustextos ·de crítica.historiográfica. -Tentarei ,argumentar
, : no sentido de .que aforma·comó .G inzburg enfrenta o debàte. nodnterior da
disci_plinafüstórica; amaneira como ele.trava os debates com oscongêneres com
os quais não concorda, a formatcomoele constrói seus argumentos contrários
-a seus co1egas;as estratégias que.escôlhe,para fazer- o enfrentamento- àsideias,
- às obras: e:aós autores,dos.quais •div.ergefoi; em-grande medida,. aprendida, não
- apenasnó-iriteriordatradiçãomarxista,tradiçãopolítica-e.acadêmicana qualse
-fo1woµ,datradição acadêtnicada disGipliriahistórica,na qual fezsuaformação;
ndtadamente naquela,advinda,da Escola •dos Annales; mas principalmente
da tradição retórica conformadoradosdiscursos judiciários, eclesiásticos,
,.irtquisitoriai_s,ccbma-qualesteve·em,per:manehtecontato·emsuasatividades·de
pesquisa. Carlo Ginzburg, aoassumirolugardesujeitodecrítico historiográfico,
me parece bem maispróximo dolugar dejuiz edeinquisidordo quetalvez ele
.teriha-cônsdênci.a:ou suspeite.. Contraditoriamente,·o historiador judeuparece,
• emmuitos momentos em quesecolocana condição de crítico-de dadas visões
dahistória ,e- - de;dadas , práticas·histortográficas;'<ffiuito·,próximo .do carrasco,
docaçadorde bruxas,que encontra comopersonagens e possibilidades· dos
documentos e dos discursos queinventaria elê. Suspeito que as.estratégias ,que
presidem o discursoinquisitorial,o discurso judiciário, terrrtinam••por. serem
assimiladas porGinzburg queas.maiiipula;no.momento.em que, de também,
tem que abatere remeterpara a margem uma dada compreensão da história,
DURVALMUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 129

um dado autor e uma dada obra, que são por ele considerados perigosos e
• ameaçadores para a historiografia e para os fins políticos e sociais que o discurso
historiográfico-deve atender. Tentarei descrever certos procedimentos retóricos
e analíticos adotados por Ginzburg em seus textos de crítica historiográfica e
• mostrar a proximidade com procedimentos da mesma natureza presentes nos
discursos jurídico e inquisitorial.
Tanto em Os Andarilhos do Bem como em História Noturna, Ginzburg
vai tratar de um procedimento retórico estratégico do discurso inquisitorial e
judiciário: a submissão da variedade das manifestações das crenças populares,
da diversidade dos rituais, das distintas formas de pensar ede praticar o culto
a um só conceito, a um só esquema explicativo, a uma noção que congrega
um conjunto de significados, que simplifica, caricaturiza e estereotipa aquelas
pessoas, crenças e práticas que são consideradas heréticas; fora da ordem,
estranhas, indefiníveis, incompreensíveis, pertencentes a tradições culturais
exóticas, bizarras e atrasadas. Simplificar e homogeneizar o inimigo a combater,
encontrar por toda a parte o mesmo rosto quando se trata de detectaro agente
ameaçador, unificar uma dispersão, ordenar e hierarquizar o que parece caótico,
reduzir o oponente a meia dúzia de traços, a uma definição sumária, criando
uma situação de antagonismo maniqueísta, uma situação de conflito onde só
podem existir duas posições possíveis: ou se está dentro ou se está fora, ou se
está a favor ouse está contra aquela posição definida como sendo a ortodoxia,
a norma, a verdade, a realidade. A estratégia da estereotipia, da criação de um
sujeito inimigo homogêneo e unitário, funciona quando se trata de simplificar
a complexidade da realidade, dos debates, quando se trata de ter como meta a
desqualificação do oponente, a descaracterização do outro, sua completa anulação
ou derrota. Quando o outro é visto como ameaça, quando a diferença é vista
como desvio, quando a diversidade de pontos de vista é pensada como intolerável
e inadmissível, se está no caminho de um julgamento do outro que caminha na
direção de sua punição, de seu castigo ou de seu extermínio.
Considero que no momento em que Carlo Ginzburg se coloca no papel
de crítico da historiografia, ele adota, de saída, essa estratégia de redução da
diversidade e singularidade daqueles que pensam diferente dele. Através da
adoção de epítetos como pós-modernos, narrativistas ou céticos, Ginzburg
reduz adiversidade de posições desses autores, desconhece a singularidade de
suas contribuições para o campo da prática e do pensamento sobre a história,
construindo uma situação artificial de polarização entre suas posições e as
posições dos autores contra os quais fala, aos quais, muitas vezes, sequer nomeia
e a cujas obras pouco se dá o trabalho de citar e comentar. Ele adota a estratégia,
muito presente no discurso jurídico e inquisitorial,-dehomogeneizar seu alvo de
ataque, de construir através de um conjunto sumário de traços e posições um
sujeito oponente, ao qual se deve vencer através da argumentação, do ataque às
suas posições, normalmente bastante resumidas e caricaturadas. Em entrevista
TECçLAO DOS TE.MPOS

. dadaàMariaLúêia·Pallares-Burke, ele próprioadmite tomar os seus críticos c;omo


inimigos -oquetambém costumavam fazertodos os inquisidores - e diz ser
seduzidopelaestratégia do -advpgado-do; diabo -àdmite, pois,: aproximar-::se ·do
lugarde falado advogado,mesmo queseja do diabo, que é o-discurso judiciário-.
•.:einbonrme•pàreça·queeleacrédita estar sempre do lado do hem -:_o que ,pensam
-lodosos sacerdotes -:';·que.suas posições representam.sempre a posição.melhor
e maiscorreta em relaçãoà posiçãodos "inimigos" da qual quer_ se apossar
· paradeslocá-lae desqualificá-la -discurso belicoso. que se assentaria bem ,na
'-bocâ:cle um:militar.,1~6'Veja.:se,em:que termos define o,que .seria o programa de
pesquisa e o ôbjetivopólêni.ico do•seu conjl:lilto de ensaios reunidos .nolivro O
• ,,Fio_eos'Rastros:

_ ·contra a tendência.do.,cêtidsmo pós~modemo de eliminar os limites entre


- ·: nar1:ações ficcionais.enarraçõeshistóriças, em nome do elemento-construtivo
. que é comum a ambas;·euproptinha considerar a relação entre umas e.outras
. como::uma contenda ·pela representação da.realidade; Mas, em vez de uma
guerra detrincheira, eu levantava ahip:ótesetle um ·conflito:feito de-desafios,
empréstimos recíprocos, hibridismos. Com as coisas.nestes termos,•não:era
possível combater o ,neoceticismo -repetindo velhas· certezas;. Era.-preciso
aprender com o inimigopara combatê-lode modo eficaz187 ·{grifos· nossos).

• Tal comoas bruxas ou. os judeus, .o histor:iador que advoga. posições


distintasdassuas éumsujeitosem rosto e sem·nome, um perigo;· uma ameaça - _
a que se deve combatercomoa um inimigo que ameaça tomar de assalto a
. cidàdelaJnexpugnável da históriacierttíficaoucomo um.pestilento que ameaça
··infectar de.ceticismo o sacrossantoambiente da história realista.. Sua· retórica é
·i:laramehté béligerante,Jançando nião de .figuras de linguagem. que remetem os
embates no çarripohistoriográficopara aJógica da guerra. :Como um benandanti,
Ginzburg, oandarilho; ou talvez o profeta emissionário •do bem,ataca inimigos
imaginários agrupados em:-çategorias· genéricas e arbitrárias como os, céticos,
osneocéticos, ospós-modernos, os narrativistas, os positivistas, que ameaçam
tornarestéreis .os. campos. da,históriav que ameaçam que. a historiografia hão
colhabonsfrutos.Assim comofaziaminquisidores -e juízes, quando-algum --
nome,quando algumcorpo ou algumrosto vemocupar o lugar de uma destas
categorias, este nome,estecorpo, este rosto deve serlançadopara o terreno.do
opróbrio.Como,parecequepara Ginzburg, no:debate historiográfico, não se
..tratade discutirideias, dedebater conceitos,de questionarabordagens, de pôr
- .. • -
186. PALLARES-BURKE,MariaLúciaGarcia.AsMuitas Faces da História. São Paulo: UNESP,
2000,p. 287. -
187. GINZBURG,Carlo.O Fio e os Rastros:verdadeiro,falso,fictício. São Paulo: Companhia
dasLetras, 2007, p. 9. e
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 131

em questão as versões do passado, mas trata-se de uma guerra, de um combate


contra um inimigo, de derrotar o oponente, lança-se mão, para isso, de. todas
as armas disponíveis, a principal delas, tão afeita a inquisidores e advogados de
acusação: a desqualificação pessoal.
O que para muitos leitores desavisados ou cúmplices nada inocentes
passam por análises historiográficas, notadamente no Brasil, onde alguns de
seus enunciados a respeito de dados autores são veiculados como .avaliações
pertinentes de suas obras e de seus pensamentos, nada mais sãodo que ataques
pessoais, avaliações adjetivas do outro, que visam produzir a desqualificação
daquele que considera seu oponente. Ginzburg adota uma estratégia retórica
e discursiva, surpreendentemente muito usada pelas hostes nazifascistas e
stalinistas: a de tentar minara adesão ao pensamento, a de tentar impedir o
acesso às teses daqueles considerados adversários, pela produção da abjeção do
outro. Ao invés de atacar e de discutir os argumentos e teses daqueles dos quais
diverge, Ginzburg adota a estratégia de gerar a suspeita sobre o caráter e sobre
as posições políticas e morais dos adversários. Explorando à exaustão a lógica
da suspeita, tão presente tanto no marxismo como nas ideologias totalitárias,
Ginzburg exercita um verdadeiro trabalho de patrulhamento ideológico, de
caça às bruxas no campo historiográfico, tais como faziam os inquisidores e
juízes em relação ao campo religioso. Existe para ele uma espécie deortodoxia
historiográfica a defender, existem dogmas a serem preservados, nem que para
isso tenha que se assacar, sobre aqueles que representariam posições teóricas
e políticas distintas,adjetivos comprometedores, disseminando a suspeita em
relação à integridade moral e intelectual daquele com quem debate. Exemplar a
este respeito são suas declarações e escritos a respeito de Michel Foucault, nos
quais jamais enfrenta ou discute as posições teóricas ou as conclusões de seus
trabalhos, limitando-se a emitir avaliações sobre a pessoa do filósofo ou genéricas
valorações adjetivas de sua obra e pensamento. O tom dessas declarações é
sempre depreciativo, demonstrando hostilidade e ressentimento em relação ao
filósofo que um dia ousou responder com ironia a uma colocação feita por ele
quando do debate emtorno do livro Vigiar e Punir, para o qual foi convidado
como debatedor.188 Ao tratar de Foucault, o porco-espinho que admite ser189,
não para de soltar farpas como estas:

O que quero dizer é que havia vários Foucaults e um-deles era muito, muito
brilhante, mas,no meu entender, pouco original. Sob este ponto de vista,

188. Ver: Mesa-Redonda em 20 de maio de 1978. In: PERROT, Michele (Ed.). L'impossibleprison.
Recherches sur lessysteme pénitentiaire au XIXe siêcle. Paris: Seuil, 1980, p. 40-56.
189. Ao ser colocado diante das duas categorias com as quais Isaiah Berlin distingue os
intelectuais - raposas e porcos-espinhos - Ginzburg admite estar mais para porco-espinho
do que para raposa. Ver: PALLARES-BURKE, Maria Lúcia. Op. Cit. p. 284.
132 ,TEC!,'LAO DOS TEMJ'C6

diriaque Foucaulté um áUtor-extremamente superestimado, pois, em grande


parte, nadamais édo que uma nota de rodapé-a.Nietzsche...

• '.'Pessoalmente,· 'ele era extremamente· agressivo -de fato, a .pessoa_ ,mais


agressivaque jáencontrei -, e egocêntrico de ummodo maníaco, oque
lhepermitia vender a sua imagem corri bastante eficiência. Lembro-me de
-estar umavez num café de Paris conversando com E. P. Thompson e, por
algum motivo, começamos a falar sobre Foucault. Foiquando Thompson
disse algo que penseiter ouvido errado: "Foucaultéum.charlatão'.'. ·Pedi.que
repetisse,tal minha surpresa, e era isso.mesmo; Concordo.que havia,muito de
. ·tharlàtão em Eoucault, mas.nãosóaMuito de sua obra - a.parte da retórica
vazia - vai realmente desaparecer, mas há tambémcoisasque merecem ser
, _'preser-vadas.:.1~ (grifosmossos)

Ao terminarmos de ler este·esclarec,edortrecho. sobre :M ichelFoucault, o


que ficamos sabendo a respéitodoque;seria.brilhante ou menos brilhante em sua
obra?Oque ficamos sabendo a:respeito·do.que deveria ou não ser pres.ervado
•em seu trabalho? O,que ficamos sabendo sobre suas ideias aresp.eito· da história,
• -das:discordândasteóricas-emetodológicas que. o autoritalianoteria· em relação
,aos:textos-:deFouçault?· Em meio a uma ..saraivada de adjetivos, que fizemos
questão.desublinhar, todos voltados para desqualificar a pessoa de Poucault,
apessoa privada, que não·interessa imediatamente ao fazermos uma análise
doque produziu edas contribuições .que deu para a escrita da história e para
ahistóriadedeterminados temas, nenhuma·ariálise.crítica e rigorosa dos seus -
cescrifos:nos· é ·apresentada.iTodâs: as.,pesquisas originais que realizou, .toda a
erudição deseus escritos.todos os conceitos-e categorias que formulou, todas as
,-intervehções,intelectuais:e. pôlíticas.,quefez ao longo de sua vida, com as quais
sepóde•concordar-ounão,sãoreduzidas.a ser.,uma simples-nota de-rodapé à -
obra dê'.Nietzsche.Setcomo,o:,próprio Ginzburg admite, ·faltam• estudos sérios
sobre a pród,ução de Foucault, este devendo,ser resgatado da idolatria de seus
seguidores,porque ele não realiza :este estudo sério, preferindo,ao .contrário,
substituir aidolatriapeladifamação? O uso da. adjetivação é uma estratégia
retóricaeargumentativamuitoutilizada ·em ·qualquer -- discurso que busca a
desconstrução da reputação e procuraakançar a desonra de alguém, que busca
tornar o outroum serinfame,abjeto, abrindo brechas para que'. possa: vit a ser
punido,linchado, destruído,assassinadolegitimamente. A estr,atégia da -irifâmia
perseguiu durante geraçõesa grupos humanosno Ocidente como os árabes e -
os judeus. Acalúnia e o vitupériosão uma das armas preferidas dos regimes de
exceção,dos regimestotalitários quando querem eliminaralguém suspeitode
um
ser um adversárioe dissidente. Ela é uma estratégia que busca desautorizar
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 133

o pensamento, a obra, desqualificando a pessoa. Como um bom inquisidor ou


um bom juiz, Ginzburg submete Foucault a um duro julgamento público, com
o agravante de que ele não só não estava presente, comojá estava morto, não
podendo mais comparecer ao tribunal instaurado pelo micro-historiador para
fazer a sua defesa, estando fadado, pois, a ser considerado culpado de ser ele
mesmo e de ter escrito as coisas que escreveu. Como sua defesa pode serainda
realizada por seus seguidores, o Torquemada" da historiografia, logo trata
de também desqualificá-los, considerando-os suspeitos do crime de idolatria,
afirmando. que escrevem ainda pior do que ele, produzem montanhas delixo
intelectual em torno de seu nome e a partir de suas ideias, deixando dara,
portanto, que no seu tribunal historiográfico seus testemunhos nãoserãolevados
emconta. A obra de Foucault deve ser realmentemuito incômodapara•alguém
que exerce o poder que seu lugar de intelectual e de historiador ainda vivo lhe
dá. Desta maneira, Foucault e seus escritos devem se assemelhar ao executado,
ao supliciado que retomaria sempre para obsedar o. sono do carrasco.
Maisacintoso e explícitoé o uso retóricoque faz do nomedeoutro morto,
que comparece em seu discurso como argumento de autoridade, assim como
inquisidores e juízes costumavam convocar em suas-sentenças a presença dos
escritos e das falas de ausentes considerados autoridades consagradas, que
serviam de modelo e de referência para a sustentação de uma dada tese, a
favor ou contra o acusado. Assim como se convocava a autoridade da palavra
do próprio Deus presente nas escrituras ou se convocava ouse convoca, ainda
hoje, a autoridade de alguém cuja tese se firmou como jurisprudência para se
legitimar uma dada argumentação a favor ou contra um réu, Ginzburg, nasua
diatribe contra Foucault, convoca umaautoridade no campo historiográfico
contemporâneo, àlguém que, já estando morto, não poderá vir a desmentir as
palavras e julgamentos que lhe atribui: Edward Palmer Thompson. A retórica
usada neste trecho de suas declarações é claramente teatral, quase operística,
,gênero bem ao gosto dos italianos: numa ocasião em que desfrutada intimidade
deuma conversa num café parisiense com o consagrado historiador inglês- o
que, por extensão, lhe confere prestígio-, ao falarem, sem que se saibao porquê,
sobre o-filósofo francês - toda fala de delação costuma dizer-se despretensiosa,
toda informação que se apresenta para colocar em maus lençóis alguém é
apresentada como conseguida por acaso, semnenhuma intenção prévia -, ele
escuta Thompson afirmar que Foucault seriaum charlatão. Ele titubeia, chega
a duvidar deseus próprios ouvidos, pede, por favor, para que o historiador da
formação da classe operária inglesa repita a sua afirmação, e este repete sua

191. Referência a Tomás deTorquemada, frade dominicano, inquisidor-geral dos reinos de


Castela é Aragão no século XV, confessor da rainha Isabel, a Católica, considerado o Grande
Inquisidor, peloalto número de condenações e execuções que presidiu, na perseguição a
muçulmanos e judeus.
134 TECELÃO DOS TEMPOS

sentença, sem que nenhumargumento seja áduzido para ,que se,chegue, a tal
veredicto. Foucaultqueda, condenádoporcharla.tanismo sem que saiba ou que
saibamos oqueteriafeito para ser assim considerado.. Numa v:ersão kafkiana da
justiça, ousemelhantea algumas condenações realizadas .pelo Santo· Ofício,. o
· herege resta perplexo,perante seujulgador;semsáber-direito do,que.está sendo
acusado, o quefez para merecer a tipifi:caçãa p.enalde quelhe acusam, o que foi
que teria escrito oúfeitopara receber a infame designação. A categoria-charlatão
é brandida como os inquisidores brari<liam;categorias como bruxaria;feitiçaria
diabólicaou sabá, enquadrando o comportamento do outro, suas maneiras de
ser epensar,paradesqualificá-las e permitir-o esquecimento, o ,soterramento, a
negaçãodo sere da verdade do outro, negar o direito à diferença, à alteridade,
ao desacordo e à diversidade: ·.Foucault, como as bruxas, deveportar, a partir
desse:i:lia;a,marcainfainanteemsuas•vestes,·a,mácúla em seu nome; o:estigma
desenhado afogoem sua calvatesta .e ter seus escritos:queimados, lançados no
novoíndex,paraquenovos charlatãesnãosevenham aproduzirnamoralizada
emoralizante êidadedos historiadores. 1hompsontorna:-se, assim, cúmplice na
difamação.Porjáter idolutar ao la:do·dasfalanges celestes,Jala agora pela boca
doitaliano que, não demoraem admitir, em'tornarpara si a sentença _exarada
pelo outro: sim, Foucault foi· um charlatão;um escritor de frases de.efeito; um
. ,pràticantê:da retórica vazia; ·E.nosso históriadorâtaliano que,:nesta ·peça e neste
passo, acaba·de nos dar um exemplo do:que.considera ser uma-retórica cheia,
. :plena;,um-discurso carregado·de· substância,..,um--discurso consistente, 'bate o
.martelo •·.edecreta•.que Foucault deve ser desmascarado, deve ser descascado
: como 'Ul11a;cebola,, até que dos· vários ;F.oucaults-: existentes ·.restasse,apenas o
• -Foucaü:lt~quemerecia ser preservado,•<depois que cumprisse .a pena·e fosse
. · submetido a umlongo período deexpiaçãodesuas faltas. O Foucault agressivo,
o .Foucaultegocêntrico, o ·Foucaultmaníacor o Foucault superestimado - talvez
sejaesteseucrime, ser superestimado -, o Foucault notade rodapé devia,.após
confessar epurgartodosesses pecados no Purgatório intelectual.de,Bolonha ou
da Califórnia, sernovamenteadmitido_na.ordem dos historiadores; onde: havia
lugar.apen~paraó.Eoucaultbr,ilhante;quase,translúcidocomoos anjos e:como
outros defensorese partidários dasLuzes, comoo já ,angélico historiador.dos
costumes emcomum eo historiadordasbruxasefeiticeirasdo bem.
Essemesmo tipodeestratégica retórica,inquisitoriale judiciária, elevai
usar para•se livrar, comfacilidade,dedoisoutrosautoresque considera serem
responsáveis pela emergência, no interiordahistoriografia contemporânea, do
quechama detesescéticas, baseadasnoqueseria areduçãodahistoriografiaà sua
dimensão narrativa ouretórica: FriedrichNietzsche ePaul de Man. Na introdução
aolivroRelações deForça,""aobuscaras raízes doqueseria o relativismocético

192. GINZBURG,Carlo.RelaçõesdeForça:história, retórica, prova. São Paulo: Companhia das


Letras,2002.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 135

presente nas formulações que chamariam a atenção paraa dimensão retórica


do ofício do historiador, contraditoriamente dá um soberbo exemplo do uso da
retórica em nosso campo e, talvez ele não admita, de retórica sofistica; aquela que
tantoSócrates como Platão vão.criticar na antiguidade, e que terá em Nietzsche,
justamente, um defensor. A complexa; sofisticada e criativa obra de Nietzsche,
suasposições críticas quanto à noção de verdade prevalecente em sua época, seu
questionamento da imagem da Razão reinante em seutempo, a centralidade que
concede à linguagem na construçãodo mundo, são explicadas por Ginzburg a
partir de dois argumentos: um que pretende ter um caráter político e ideológico
e outro que pretende ter, digamos, um cunho psicológico ou psicanalítico.
Numa primeirapassagemem quevai sutilmente sugerindo a existência de uma
relação entre as posições de Nietzsche e o nazifascismo - sendo, agora, o morto
condenado moralmente pelos crimes que fizeram; posteriormente, emseu nome
- ohistoriador italiano, num claro recurso retórico, diz imaginar a emoçãoque
ele teria sentido ao ler o Górgias de Platão poreste se referir. ao domínio dos
• mais fortes sobre os mais fracos; domínio que seria determinado por uma lei
da natureza; a moral e o direito como a projeção dos interesses de uma maioria
de fracos; asubmissão à injustiça definida como moral para escravos. Emoutro
. grande lance-retórico, diz então que o personagem do Górgias, Cálicles, revelou
Nietzsche a ele mesmo - o que significa, evidentemente, que Nietzschetinha
uma verdade única, interior, essencial, capaz de ser revelada, emboratodo
seu pensamento negue esta possibilidade -, embora, como admite o próprio
Ginzburg, Nietzsche jamais tenha citado este personagem emseus escritos,
mas,segundo nosso perscrutador de mistérios e bruxarias, o filósofo alemão
implicitamente - felizmente o Sherlock Holmes dos indícios sabe ler o implícito
- teria prestado homenagem a Cálicles por que este havia falado dospequenos
leões,que a sociedade não consegue domar, o que seria o mesmo que a frase de
Nietzsche -como sempre arrancada de seu contexto -, "o magnífico animal louro
em busca de presa e vitória" da Genealogia da Moral - que são realmente deuma
semelhança aterradora. Para culminar, então, esta análisereveladora, precisa
e-honesta; brande o· primeiro argumento forte· contra Nietzsche, que explica
toda asua obra e nos esclarece sobre os seus conceitos: aaltivez de Cálicles o
candidatava àveneração pequeno-burguesa de Nietzsche pela diferença. Ou seja,
a filosofia da diferença é explicada por umargumento sofisticado esutil de classe:
Nietzsche éum pequeno-burguês, o cúmulo dospecados, e essacondiçãosocial
é suficiente para explicar todo o seu pensamento. Mas fiquei a me interrogar:
Carlo Ginzburg não étambém um pequeno-burguês? E por que essa condição
social não o levou a ter as mesmas posições que teve Nietzsche?Bem, mas essas
perguntas incómodas não se devem fazer ao historiador italiano."? Emseguida,
apresenta o seu segundo argumento, mais sofisticado ainda por ser psicanalítico,

193. GINZBURG, Cario. Relações de Força, p. 22.


136 • TECELÃO.DOS.TEMPOS

embora, comosempre, baseado em suposições, segundo ele mesmo afirma -


se
embora diga umverista e umdefensor doprincípio darealidade!ahostilidade
'-.aê,Nietzstheaocristianismopoderia•ser explicada pelo seu complexo ,de Édipo
mal resolvido.Empáginasque Nietzscheteriamantidociosamente ocultas ao
>ptlblico,. sóiagora reveladas pelo pesquisàdor .do ocultismo, quenão gosta de
0

. nada oculto,;nossodetetiveou;inquisidon,aiencontrar,a verdade de Nietzsche,


···a:verMdéclêseucorriportamentoanticristão;;omotivoporseucomportamento
,herétito:afrontara:memóriadopah·-um:pastorprotestante;·issotudo,apretexto
, deexplicarsua posição quanto à centralidade .da linguagem na. construção do
_ .que socialmentese define como verdade:'Nunca:·aprendemos·tanto sobre .esta
questão candente.
As páginasdedicadas a Paul de<Ma:n • sãotainda ·mais ·reveladoras da
estratégiaretórica utilizada constantemente por Garlo Ginzburg emsuas diatribes
historiográficas, estratégia,que Aristóteles,19fautor tomado por ele, nesse,livro,
comoformulador de umaideiade prova coerente· com um.saber narrativo e
retórico, vaichamar de ad hominem, :ou·seja;,aquela estratégia ,retórica que
-_- corisü;te :em, a: pretexto de· atacar o argumento, apresentadoí atacar· a,quem o
apresentou. Otrabalho realizado pelo importante crítico literário belga, durante
quarertta anos um dosresponsáveis"" imperdoávekrime -pelo surgimento do
• desconstrucionismo - o inimigo davez aabater - ,teriauma relação:íntima
como uSo;:por·ele, por .todo este perfodo; de uma máscara; de um simulacro de
. simesmo, que encobria o seuverdadeirorosto de-arltissemita e de simpatizante,
em,certomornento; donazismo.'Potissoele-detestatia-a.ideia de que existiriam
,realidades.everdades para.além das máscaras, queexistiria,um mundo real, e
,político,,pata hlémdos textos; 195,Mais uma'vez,o-inquisidor~mor, o.caçàdor de
,bruxas,- cons.eguiria desqualificar.toda·uma:obra,pondo·em suspeição·ohomem,
o.caráter, a atitude nroràl do autor.Oidealismo de PauldeMan,segundo a leitura
deGinzburg, sua recusa:da -realidade,,.sua,recusa<da, história•, nasceria da má-
• eonséiênci.il,::da vergonha de ter.publicadoentrel9.40 e1942uma série.de artigos
. ,arttissémitasnôiéSóir,:um,diárioc:olaboracionista-belgà;Nenhumapa:lavrase•diz
sobreo rompimento dePauldeMancom estas ideias, aperseguição política:que
•·passaa,sôfrer, levarido-'o,'indusive,0:ao:exílionos:Estados-Unidos. O:inesmoautor
que omite uma:boa parte'da biografiade PauldeMan,chama-o literalmente de
.:mentiroso.por este_-ter:ditoprovir:da,esquerda eda'.FrentePopular, relacionando
a isso ofatodocríticobelgadizerque, noato daleitura,verdade e mentira
estão inextricavelmente entrelaçados."?Ginzburg tempredileção por esse tipo
clé:'inferências;•em',que,um-,certo',deta;,lhe::dacvida•do.-autor,é'imêdiatamente
• articulado aumafrasesua,solta e fora de contexto, sem . nenhuma mediação,

RISTÓTELES. A Retórica. 7ed. Madrid: Alianza,2007.


194. ver. A
195. GINZBURG, Carlo. RelaçõesdeForça, p. 33.
196. GINZBURG, Carlo.Relações deForça,p. 33.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNlOR 137

e que explicitaria a verdade de seu pensamento. É com um misto de prazer e


certo ar de vingança que Ginzburg diz, ter agora revelado o-segredo de Paul de
Man.""7 Faz da delação do que seria o traço biográfico escondido e vergonhoso,
que resumiria e seria a verdade de toda a vida de umhomem e de toda a-sua obra,
atitude digna de qualquer dedo-duro - como os extremos políticos tendem a se
parecer em suas práticas -, o único argumento para acertar um golpe de morte
no queseria a perigosa e suspeita posição antirreferenciai da retórica, defendida
pelo autor, e que estariaagora contaminando a historiografia. Portanto, podemos
concluirdaí que todo historiador que não partilhe das posições do historiador
italiano deve ser investigado, sua vida deve ser submetida a umadevassa, pois
algo de muito sórdido deve esconder. De umlado, teríamos os puros e os invictos;
do outro, os maculados e pecadores. Não há dúvida de que o nosso historiador
nasceu no país em que reside o Papa. O caso de Paul de Man - caso tanto lembra
a medicina, quanto o direito ou a psiquiatria - como o de Sarah Kofman, uma
autora judia que na infância fora perseguida e que havia publicado. um livro
sobre Nietzsche e a metáfora, no início dos anos 1970, vindo depois a suicidar-
se, seriam reveladores dos motivos que chama de extracientíficos, que levaram
a uma nova-leitura de Nietzsche em meados dos anos 1960 - já que científicos
não apresenta nenhum - e os apresenta, com visível deleite, como desforras da
realidade contra aqueles que a reduziriam a mero efeito narrativo ou retórico.
Se a realidade assombrava a obra de Paul de Man metaforicamente, no caso
de Sarah, a judia, a mártir - lugar clássico em que vão aparecer os judeus na
obra do historiador italiano -, a presença da realidade foi literal e homicida."8
O que chama de relativismo cognitivo, político e moral destes autores e, por
extensão, de todos aqueles que neles se inspiraram, nasceria de "inconfessáveis
ressonâncias autobiográficas, que o historiador italiano faz questão de fazer
serem confessadas.199 Como um inquisidor, juiz ou delegado de-polícia dedicado,
Ginzburg obriga os seus inquiridos, aqueles suspeitos dos crimes de ceticismo,
'relativismo, narrativismo, irracionalismo, pós-modernismo, a confessarem os
crimes ainda. mais hediondos que estas posições acobertam. Horror! Horror!
Afinal descobrimos a verdadeira face de todos: antissemitas, fascistas, nazistas,
anticomunistas. Só faltou dizer ateus."
Mas a estratégia judiciária, a estratégia inquisitorial que preside as querelas
historiográficas sustentadas por Carlo Ginzburg, nunca se explicitou de forma
tão contundente como em seu enfrentamento ao espantalho mor do momento
na historiografia: o espectro da literatura e daficção. Nunca se excedeu tanto
como na caçada à bruxa narrativista, encarnada pelo crítico literário norte-

197. Idem. Ibidem, p. 3


198. GINZBURG, Carlo. Relações de Força. p. 35.
199. Idem. Ibidem, p. 36.
200. A exclamação são as últimas palavras de Kurz, o protagonista de O coração nas trevas de
Joseph Conrad, citado porGinzburg, na p. 37 do livro Relações de Força.
TECELAODOS.TEMPOS

- americano, HaydenWhitee, devez emquando, por outro fantasma ausente, o


semiólogo RolandBarthes. Paraacompanharmos, passo a passo,o uso que Carlos
Ginzburgfazdo quechamareideestratégias dadelação e da suspeição na escrita
deseus textosde críticahistoriográfica, vamostomar ·,.como objeto deanálise
um textosignificativamenteintitulado: Oextermínio dosjudeus e o.princípio da
rr;álfq~dê.1º1'Inicia. o texto, no qual vai enfrentar o,autor que se apoia na teoriados
tropos linguísticosparaanalisaras obras de-historiadores e filósofos da história,
lembrando um topos oumotivo comum nacfilturaeuropeia,desde a Idade Média,
otopos do complô hebraico•. Em 16 demaio de 1348,acomunidadehebraica de
La Baume, uma cidadezinha provençal, :foi exterminada;.acusada de•difundir
a PesteNegra lançando veneno nos poçosrnas.fontes enos·rios. Ifouve apenas
umsobrevivente do massacre, quétratou de registrá-lo em poucas linhas escritas
entcm1iexemplar da-Torá. Segue então citando exemplos de massacres ajudeus,
em momentos anteriores ou·posterioresa,este acontecimento, onde o tema do
.,complô.aparece como,motivaçãopara o desencadear dashostilidadespor parte
-- da,p0plila.çãocristã.:G)sjudeus,.em certasocasiões,aparecemassociados·aoutras
categotfas· consideradas suspêitas·ou- perigosas,"como:leprosos e .muçulmanos.
Nactônica escrita; noséculoXfY,,-ponummonge artônimo do-convento de 0

Saint-Denis, sobre o suiddio .coletivo de quarenta judeus numa torre de ,uma


localidadeperto deVitry-le-François,Ginzburg identifica o queseria um topos
historiográfico,já que o .episódio,.que conta ainda coma figurade um jovem que
aoser oúltimo que deveria realizaro gesto extremo; aoinvés disso,se apodera do-
' --•oµrodefodosos mortos e-ao tentarfugiréapanhado·emorto,apresentamuitas
afinidades com duas passagens das GuerrasJudaicas, do historiador Elavius
Josefus.A obra de Josefus, bastante conhecida-na JdadeMédia,.poderia sera
fonte do relàtofeitopelo-monge de,Saint-Denis, que teria apenas reproduzido
uinitoposhistoriográfico;·quetambémpareciater sereproduzido no relato feito
pelo próprioJosefus docélebreassédio deMasada, a desesperadaresistência dos
judeus reunidosdentro dá forfaleza;•seguida.do;-suicídio coletivo;,também aqui
comduas exceções:duas mulheres.Mas o que quer demonstrarGinzburg com a
,nafrá.tivadesses episófüos?-Sua-primeiraconclusãoéa de;que,·embora·omonge
•anónimo;. em seurelat<>, pudesse estarreproduziridoo,topos.encontrado nolivro
de Flawus-Josêfus,·estêfatonãomos:autofizariaadizerque.osuicídio coletivode
judeus não ocorrera verdadeiramente. Ouseja, Ginzburgquer demonstrarque
umrelato, mesmo sendotropológico - emeperguntoqual não seria ,;, . , mesmo
partilhandodesseaspectocom aliteratura,comobras deficção,podenarrar, •
_•·poderefe.tir-se.·afatos,queefetivamenteocorreram,conclusão,com•a·qual,.. creio,
• todos concordam, mesmoaqueles queeleacusa de serem céticos.. Essesapenas
• .,: ... _ ....... '.•-- -. . . . . . .

201. Carlo."O e oprincípio da In: MALERBA,


e
G IN Z B U R G, ex term ín io d o s ju deu s realida d e.

AHistóriaEscrita:teoria históriadahistoriografia.
J u ra n dir. S ão P aul o : C o n tex to ", 2 0 0 6 ,

p.211-232.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JCNIOR 139

chamariam a atenção para o fato de que o topos ou os tropos dão forma ao que
aconteceu, dando-lhe um sentido particular, construindo-o de uma-dada forma,
impossibilitando que recuperemos o evento como efetivamente aconteceu, tarefa
impossível até para quem fez parte dos eventos, que tende a ter uma visão parcial
e limitada do que está ocorrendo e que, em casos como estes, talvez não tenha
nem tido tempo de entender o que se passava, antes que fosse morto.
O texto segue então, com um item em que convoca o que podemos dizerque
seria o topos nuclear em toda sua obra, para acompanharmos o tema do texto, sua
verdadeira obsessão: o extermínio de judeus pelo nazismo e a sua negação por
parte da historiografia dita "revisionista". É importante que retenhamos o nome
deste primeiro inimigo a combater, pois disto se tirará consequências-muitos
interessantes ao longo do texto: "os revisionistas" - Ginzburg e suas categorias
sempre precisas. Ele lembra que outro historiador judeu, Pierre Vidal-Naquet, já
havia estabelecido omesmo liame que eleagora tentava fazer, entre os massacres
de judeus ocorridos na antiguidade e narrados por Flavius Josefus e o extermínio
promovido pelos nazistas no século XX. Mas, para Ginzburg o que é importante
não é apenas a analogia entre os eventos, mas urna questão- de método que eles
levantam para os historiadores: a questão do testemunho. Nos: dois episódios
narrados por Josefus e pelo monge anônimo de Saint-Denis após o massacre,
restam sempre duas testemunhas, o que estaria de acordo com a tradição jurídica
tanto hebraica quanto romana, que exigiam o relato de duas testemunhas para
que fosse reconhecida uma questão em juízo. Ginzburg lembra, no entanto, que
o discurso historiográfico obedece a regras e fundamentos epistemológicos que
nem sempre coincidem com aqueles que presidem o direito. Um historiador
nunca recusaria um testemunho, mesmo sendo solitário. Procuraria, sim,
estabelecer o valor dotestemunho submetendo-o a uma série de confrontos; ou
seja, procuraria construir uma série que incluísse ao menos dois documentos. Ou
seja, em poucas linhas saímos do uno para a exigência do duplo, que ainda há
pouco havia sido negada, e a diferença em relação ao direito se desvanece. Após
afirmar que o direito e a história possuem regras e fundamentos epistemológicos
distintos, chegando a dizer que estaria forade moda aanalogia entreo historiador
e o juiz que define a validade dostestemunhos, recua de forma significativa para
dizer que a conexão entre prova e verdade, preocupação nuclear dos juízes; dos
tribunais, dos inquisidores, do direito, continua sendo uma questão que a história
não pode facilmente colocar de lado. Significativamente, Ginzburg associa juiz,
tribunal, testemunho, prova, verdade e historiografia. Talvez venha daí o seu
gosto pelos julgamentos e sentenças, como veremos a seguir.
A seguir, num breve item que se inicia novamente com a convocação
de Pierre Vidal-Naquet e seu combate aos "revisionistas", que agora ganham
um rosto e um nome, Robert Faurisson, vai tratar do que seria a. descoberta,
por parte dos historiadores, de que eles escrevem entre aspas. Naquet, que
perdeu a mãe em Auschwitz em 1944, teria razões morais e políticas para se
140 TECELÃO DOS TEMPOS

preocupar como revisionismo acerca doHolocausto e, embora reconhecesse


emcartaescrita aLuce Giard, incluída num volume em memória de Michel
de Certeau, a contribuição que este dera para arranhar· a inocência. orgulhosa
doschistôriadotes quantoao fato de que o historiador escreve,. produz um texto,
constrói uma narrativanum dadoespaço e tempo, sendo ele próprio produto
destelugarespaço-temporal, alerta para a necessidade, justamente por causa
da possibilidade dese :vir a afirmar.que o extermínio dejudeus e ascâmaras de
gás não existiram,não foramfatos, de se preservar a velha noção de realidade,
no sentido evocado por Ranke no século XIX: "aquilo que de fato .aconteceu".
Cita então trechoda carta de Naquet em que este fala que De Certeau era o
antípoda de Faurisson, orevisionista, mas a distinção entre os dois é feita.em
termos queparecemnãoter chamado a atenção de Ginzburg. De .Certeau seria
o antípoda deFaurrison,porque esteúltimo seria um materialista que, em nome
·--da reàlidademaistangível;• tirariaa realidade de tudo que toca. Ao contrário do
. que se poderiaesperar, e do quevaiargumentar o próprio Ginzburg•ao longo
dotexto, Certeau, o narràtivista,. é contraposto a· Faurrison, o materialista .e,
no .entanto,: éomateriàlista, o que fala·em nome da realidade, não aquele que
reconhece a presença da·linguagem, o irrecorrível caráter discursivo do que
nomeamos dereal;que nega.a realidade da existência do extermínio dosjudeus.
:Naquet continua:afirmando que Certeau .ficara abalado com os delírios de
e
Faurisson lhe escrevera uma carta onde·àfirmava estar convicto dae.xistência
.de·umdiscurso•sobre as tâmaras de gás, de que tudo passava pelas palavras,
mas queisto.rtão .queria dizer que não existia algo para além ou para aquém
daspalavras,quese poderia chamar,·se assim quisesse, de· realidade. Naquet
termina•fazendo a pergunta: sem .esta realidade como· se faz, para distinguir
,_romance de história? Como se Certeau-ou os chamados narrativistas tivessem
alguma vez dito que a realidade; enquanto um conjunto de eventos empíricos,
nãotivesse existência. Q equívoco épensar;quearealidadese esgota na dimensão
empírica dos eventos;esta é caótica e só setorna evento, tal como nós-,humanos
entendemos,quando é organizada, nomeada, significada pela linguagem. Não
basta que oextermíniode judeustenha existido na '.'realidade'.: na enipiria,
isto não garantesua existência, hajavista que enquanto ocorria, durante a
guerra,muitagente o ignorava,e,portanto, paraelas não existia. SeGinzburg e
Naquettravam uma batalha discursivaemtorno da existência ou não dos fatos
ocorridoscomosjudeus, é porque, justamente, é aí .no plano da linguagem,
naluta em tornoda verdade,quea "realidade" de um fato se estabelece e se
constrói. O Holocausto existe, como o próprio texto de Ginzbu:r;g nos permite
concluir,porquehouvetestemunhos, eles foram registrados, falados,contados,
narrados. Não é, portanto,a existência ou não dos fatos concretos que difere
literatura e história.A literaturapode sefazer a partirda "realidade" ou tratar
de"fatosreais": o quediferencia estes doisdiscursos éque eles obedecem a
regrasdiferentesde produção.
DURVAL MUNLZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 141

A pergunta de Vidal-Naquet serve para· introduzir o personagem que


será então objeto de análise: Hayden White; de cuja obra, nos Estados Unidos,
brotaria inevitavelmente- a pergunta pela diferença entre romance e história.
Depois de nos informar que as diferenças entre as práticas historiográficas
de White e Certeau eram óbvias e,talvez, por isso, sobre elas nada vai dizer,
ficamos sabendo que há uma certa convergência entre asobras Metahistória e
A Escrita da História, desses dois autores - convergências que também ficamos
sem saber quais são, a não a ser, possivelmente, que ambas teriam contribuído
para que o historiador descobrisse que escreve, o que, convenhamos; é bem
pouco. Para compreendermos plenamente a contribuição de White para o debate
historiográfico, que devemos saber qual é de antemão, pois não se dá o trabalho
de informar, Carlo Ginzburg escolhe como estratégia de investigação tratar de
sua biografia intelectual. Como de costume, ohistoriador italiano, ao invés de
enfrentar os textos, os argumentos, discutir os conceitos, a abordagem, as ideias,
a prática historiográfica do autor norte-americano, escolhe como caminho
"metodológico, para fazer a crítica historiográfica à contribuição de Hayden
White, tratar de sua pessoa, de sua biografa intelectual que, como veremos, vai
muito além disso. Como um juiz, um inquisidor ou um bomdelegado de polícia
de costumes, resolve investigar a vida pregressa, o passado de White. Passa então
a investigar o acusado dos graves crimes de ter acabado com a diferença entre
história e literatura e, pior ainda, de ter liquidado com a realidade.
Como se faz com todo aquele que está sendo acusado de alguma conduta
criminosa, a investigação se inicia pela procura de seus parceiros, de seus
sequazes. Iniciando o inquérito historiográfico vamos surpreender White, no
ano de 1959, em péssimas companhias, dedicado a apresentar ao público norte-
americano a tradução de um livro escrito por um dos mais estreitos sequazes de
Croce - este linguajar de delegacia de polícia é do próprio Ginzburg; não é, como
poderiam supor, caros leitores, uma metáfora deste autor "pós-moderno que vos
fala -, Carlo Antoni, onde White, pasmem, refere-se ao ensaio dejuventude de
Croce, A,história incluída sobre o conceito geral de arte, comouma contribuição
revolucionária. Nesta apresentação, onde expressa um entusiasmo pelo texto de
Croce que irá matizar mais tarde, ao tratar do autor no seu livroMetahistória,
já apareceriam alguns elementos da obra sucessiva de White: o interesse pela
construção de uma ciência geral da sociedade e o interesse pelo lado artístico
dahistória. Emboratenha começado sua vida de descaminhos como um sequaz
de Croce, White vai lentamente dele se afastando, mas o faz, por discordar do
mestre,ao qual continua elogiando como o historiador mais dotado entre todos
os filósofos da história do século passado e por sua atitude "irónica', por não
concordar, justamente, com o-seu conceito de arte como uma representação
literalda realidade, ou seja, por sua postura realista.Mas, sefôssemos investigar
tambémo pensamento de Croce, descobriríamos que seuidealismo, crime dos
crimes,se deve à influência sobre ele exercida; por urna convivência estreitíssima
142 •. TECELÃO·DOS TEMI'OS

• .de·,vihteanos: devida intelectual com .Giovanni Gentile. • Espero que você, leitor,
não perca nenhumlance desta trama que estamos começando a desvendar:
os personagens são obscuros,mas a luzda razão começa a cair .sobre. eles.
• €oritinuemos:. Gtoce,aótraçát:tumquadro retrospectivo,de sua vida intelectual.
0

•• x::hega a confessar:que o reconhecimento da identidade entre história e filosofia


se dewsoboimpulso dos estudos de Gentile,·a quem chama, isto é fundamental,
demeu caríssimoamigo. No entanto, maistarde as "intrínsecasambiguidades
,deiderttídade'~·apretensá•convergência entre as posturas de C:roce e Gentile - os
criminosos·cóstumam terdificuldade com-aidentidade, costumam comumente
fraudá-la - "vêm a plena luz" ..::,:felizmente isto também costuma acontecer, a
_.ideritidadefalsa dosmeliantesterminavindoà luz, graças a habilidade de algum
investigadorbrilhante. Enquanto Cwce:se move na direção de dissolver. a história
na filosofa,Gentile semove na direção.oposta, recusando . a identidade entre
historiografia ehistória e identificando o historicismo como .uma metafísica
histórica.A separação entre os·dois intelectuais italianos se aprofundaainda mais
.quandôGeritilereáge a um ensaio escrito-por Croce, intitulado.Anti:-:historicismo,
ensaiopolemicamenteantifascista. Esta digressão que. sintomaticamente se
inicia·..coi:n<White-.entreos,,sequazes de Croce para terminar com as relações
.eritre Croce e Gentileazedadas pelo fascismo, serve para Ginzburg concluir a
primeira parte do inquétitocsobre os antecedentes· de White; e apresentarsuas
,primeirascondusõesrsuas'primeirascertezas:·odesenvolvimento·intelectual de
White só:pode ser entendido seJevarmos em conta cSuas ·relações; .mais do que
suspeitas,com o neo-idealismoitaliano - outra categoria de extrema clareza; na
abordagem tropológica proposta por White em Trópicos. do Discurso, ainda se
pódem:encóntrar.traços do pensamento de Croce, como sua crítica ao realismo
e aafirmação deque os discursos constituem o objeto que pretendem ·descrever
e analisarobjetivamente.
Ginzburg,indo então à obrade White, identifica outros parceiros do autor
quando setrata de professaresta posturaneo-idealista, esta "posição subjetivista':
O queseriauma posição subjetivista? Ainda não sabemos e nem ficaremos •
sabendo,neste autorqueprimapeladefinição dos conceitos que utiliza -será que,
para os inquisidores, asbruxasassumiam uma posição por demais subjetivista?
....:Oogro.-de serµpre está·lá; Michel ,Foucault,a:quem,White,,significativamente,
teriadecodificadopormeiodopretenso:paifundador do neo-idealismoitaliano:
GiambattistaVico. Manter a lógica da suspeita,de que tudo.é possivelmertte·não
verdade, embora o autorseja umdefensor da ·verdade, .da realidade, sejalá o
• quejssosigriifica;.éfundamehtâLparaoJnvestigador--, e não se questione que a
precisa e preciosacategoria desubjetivistaservepara nomeartanto autores do
finaldoséculo XX quantodo início doXVIII, semnenhum problema, embora o
críticoseja historiador e·seautonomeie,um,paladino emdefesa ·d.rvirgindádeda
donzela historiográficaameaçadadeser violada pelos sequazes do subjetivismo.
Ou seja,quedamidentificadosmaisdoiscúmplices de White na empresa· de •
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 143

dissolução da diferença entre realidade e discurso, história e literatura: Foucault e


Vico - que péssimas companhias. Mas não para por aí, porque este bando parece
contar com muitos adeptos: a afirmaçãode White de que os discursos criam os
seus próprios objetos - e como não fica claro para estes energúmenos, de uma
vez por todas, que o objeto embora seja do discurso existe fora dele e antes dele,
já pronto, só para que o discurso vá lá e se apodere dele - parece reverberar
não só ainsistência de Croce na existência de uma linguística geralcombinada
com o subjetivismo radical de Gentile, segundo quem a historiografia cria seu
próprio objeto, a história, - agora sabemos que pode haver dois subjetivismos,
um radical e outro não radical, a trama se torna cada vez mais complexa, novos
personagens entram em cena, sempre muito bem descritos e definidos, não se
percam leitores, este romance policial vai longe. Nossa eu disse romance, novela?
O italiano vai me matar. Essa afirmação também reverberariaas palavras de um
outro personagem damesma camarilha narrativista, o semiólogo francês Roland
Barthes, palavras usadas, e isso é mais um indício, um sinal contra White, como
epígrafe de um de seus escritos: o fato não tem mais do que uma existência
linguística - meu Deus, como pode dizer isto? É claro que os historiadores
podem pegar e apalpar todos os dias os corpos carnudos dos fatos - ou seja,
nosso detetive - e não terá sido mera coincidência a relação estabelecida entre
o método indiciário do historiador e do detetive Sherlock Holmes em texto
famoso do historiador italiano -- pôde concluir, exultante, que as leituras feitas
de Barthes, no inicio dos anos oitenta, reforçaram um "esquema preexistente:
continuamos em meio ao uso de metáforas policiais, embora estejamos lendo
um texto crítico em relação ao caráter tropológico da linguagemhistoriográfica.
Mas eis que chegamos ao momento crucial da investigação acerca de White,
o momento mais difícil para nosso historiador-detetive: definir o papel que
Gentile teve nesta trama diabólica, pois, pelo que ele sabe White nunca citou os
escritos de Gentile, nem analisou seus escritos. Mas é muito fácil pressupor, diz
Ginzburg, - eu não sabia que historiador podia fazer isso, pressupor não está
no campo da imaginação e, portanto, no campo daficcio - que um estudioso do
neo-idealismo italiano como White tenha familiaridade com a obra de Gentile.
Prestem atenção, leitores, a este passo da argumentação: não se pode dizer que
White leu ou estudou Gentile, apenas se podepressupor sua familiaridade com
- o que seria a sua tradição filosófica. Mas, como veremos logo a seguir no texto
a pressuposição, a suspeita vira verdade, e White é acusado de ser um sequaz de
Gentile em .suas posições políticas. Esse tipo de construção de tramas é muito
comum quando se quer acusar alguém sem provas - as provas tão reivindicadas
peloautor italiano -e bastante comum em regimes totalitários de todos os matizes
ideológicos. Mas continuemos acompanhando a argumentação do texto porque,
agora, Ginzburg chega aonde queria chegar desde o princípio: nos informa da
estreita relação de Gentile com o fascismo, até a sua trágica morte; de sua adesão
ao idealismo de Hegel através de uma leitura original dos escritos filosóficos do
,44 TECELÃO DOS TEMPOS

jovem Marx. Teria interpretado erroneamente o conceito de práxis de Marx,


considerando-o um conceito que implicava a identidade entre sujeito e objeto,
enquanto o Espírito criaria a realidade. Essa apresentação de Marx travestido em
um filósofo idealista - troca de vestes é um elemento essencial de qualquer trama
policialesca - teria exercido um peso considerável na vida intelectual italiana. Até
o insuspeito Gramsci ecoava, ao usar a expressão "flosofia da práxis", ao invés
de materialismo histórico um ensaio de Gentile a respeito de Marx, onde este
eliminava o materialismo do pensamento de Marx. A luz desta leitura de esquerda
da obra de Gentile, da contiguidade de sua filosofia com o futurismo, poderíamos
entender um manifesto pela nova historiografia em chave modernista escrito por
White em 1966, que atacava o que seriam as ortodoxias historiográficas liberais ou
marxistas, em que o subjetivismo extremo - surge agora mais um subjetivismo,
0 extremo. O que será que o caracteriza? Não perguntem estas coisas incômodas
ao nosso crítico de historiografia. Ele não é filósofo, é historiador, pode investir
assim como um miúra furioso no campo filosófico, como fez Foucault no campo
historiográfico - tinha um sabor radical, numa situação em que desejo era
uma palavra de esquerda - e as palavras se classificam assim, que interessante
_ e realidade era uma palavra de direita. Leitores, perdoem a sofisticação do
argumento, pertence a Ginzburg, não ao narrativista que vos fala.
Continuando a investigação, indícios mais incriminadores são descobertos
contra O subjetivista radical, extremo, o intelectual que se pensava de esquerda
por usar a palavra desejo num texto historiográfico: ele costuma ter atitudes de
fuga da realidade- o que evidentemente é monopólio dos subjetivistas -, atitudes
avaliadas pelo nosso investigador, agora travestido, ele sim, de psicólogo forense,
como sendo simplistas, quando não suicidas; teria fascínio pelas atitudes céticas
e o pior dos crimes: pronunciou-se contra as revoluções, sejam aquelas do alto,
sejam aquelas de baixo - será que as revoluções de baixo têm alguma coisa a ver
com a palavra desejo? White associaria, equivocadamente ceticismo, relativismo
- o que será isso, vocês ainda insistem em perguntar - e tolerância política. Mas
essa autodefinição de White passa então a ser comparada com as posturas de
Gentile, e ficamos perplexos perguntando o porquê. Se ele não conhecera, lera
ou estudara Gentile, por que suas posições políticas ou teóricas teriam que ser
comparadas com as de Gentile? Logo ficaremos sabendo. Passa então a comparar
White com Gentille: a polêmica de Gentille com o positivismo não levava a
posições céticas, mas metafísicas, Gentile jamais foi um relativista, ao contrário,
foi um homem que auspiciou um empenho religioso tanto no plano filosófico,
como no plano político e naturalmente jamais teria teorizado sobre a tolerância
política, como testemunharia a apologia feita por ele do fascismo, mesmo nos
seus aspectos mais violentos como o squadrismo, demonstrado ainda por sua
definição do porrete como força moral feita em um comício em 1924.
Agora, feita a minuciosa investigação, ouvidas ou lidas todas as testemunhas,
mesmo aquelas que nunca estiveram na cena do crime, como Gentile, Ginzburg,
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 145

como qualquer acusador, como qualquer juiz ou inquisidor pode dar o veredicto
acerca das motivações secretas, escabrosas, das posições céticas, pós-modernas,
narrativistas, subjetivistas de White. Elas não estão na sua obra ou no seu
pensamento, que nem merecem análise, mas na sua vida, nas suas posições
políticas e morais. Como se retomasse o topos do complô, com que iniciou o
texto e que vitimou milhares de judeus, ao longo da história, o historiador, judeu
e de esquerda, descreve um verdadeiro complô armado por pensadores idealistas,
neo-idealistas e fascistas para destruir a cientificidade da história, questionar o
princípio da realidade, pois assim poderiam continuar perpetrando seus crimes,
sem temerem o testemunho da história, sem temerem a verdade histórica, a
realidade histórica que um dia viria à tona pelo trabalho paciente e diligente de
um historiador materialista, realista, científico, objetivista, verista, factualista -
desculpem a lista de conceitos sem definição, são apenas os possíveis antípodas
dos lugares de sujeito imaginados por Ginzburg - tal como faziam agora os
revisionistas, que ameaçavam apagar a memória do Holocausto.
Se vocês leitores acompanharam o argumento do texto, ele é de uma
clareza, de uma limpidez, de uma precisão, surpreendentes: White leu Croce,
Croce leu Gentile, Gentile foi fascista; embora não se saiba se White leu Gentile,
como estava familiarizado com o neo-idealismo italiano através de Croce e
seus sequazes, e estes com certeza leram Gentile, e este, além de fascista foi
simpático ao modernismo, logo como White também escreveu textos simpáticos
ao modernismo e a Croce, ele é fascista. Isto equivaleria a dizer leitores que -
duvidando um pouco da inteligência e argúcia de vocês, que não devem ser tão
pronunciadas como as de Cario Ginzburg -, partindo dos indícios que ele mesmo
forneceu, poderíamos pressupor - se isto é permitido - ou concluir através de
insinuações, como faz Ginzburg e como costumam fazer todos que querem
caluniar alguém sem correr o risco de ter que, aí sim, comparecer aos tribunais
para prestar contas do que disse: Gramsci leu Gentile, Gentile leu Marx, Ginzburg
leu Gramsci e diz ter retornado a ler Marx, como Ginzburg leu Gramsci que leu
Gentile, que foi adepto do fascismo, logo não só Gramsci mas o próprio Ginzburg
são também suspeitos de fascismo, até provem ao contrário. Ou melhor, ainda:
Stalin leu Marx, Pol Pot leu Stalin que leu Marx, logo Marx é responsável pelo
genocídio no Camboja cometido por Pol Pote seus sequazes do Khmer Vermelho
ou, no mínimo, pelos crimes de Stalin. Isso é o que se chama lógica dedutiva.
Como vemos, ela resulta num primor de análise quando a aplicamos à história,
quando a utilizamos para interpretar indícios e sinais deixados pelo passado.
Termina seu inquérito, o seu arrazoado, tentando corrigir White e dar a
ele lições sobre a tolerância e a defesa do direito à discordância, tudo o que ele
próprio não parece exercitar ao longo de seu artigo. E conclui, com palavras
que considero reveladoras, elas dão a pensar mais sobre ele mesmo, do que
estaria disposto a aceitar: "quando as divergências intelectuais e morais não
são coligadas em última análise a verdade, - ou seja, só existe uma verdade e
146 TECELÃO DOS TEMPOS

Ginzburg parece estar de posse dela - não há nada a tolerar" Daí talvez advenha
o tom de intolerância e de caça às bruxas que se espalham pelos seus artigos
quando se trata de discordar de outros historiadores. Embora atribua a White,
por inspiração de Gentile, uma concepção moral da verdade que, apoiando-
se na ideia de eficácia, seria semelhante à do cacetete como força moral, é ele
que não cansa de distribuir bordoadas em todos aqueles que julga não estar de
acordo com a verdade e com a moral, por não estarem de acordo com sua visão
ou versão da verdade e sua concepção de moral. Se isso for ser tolerante, o que
será a intolerância?2º2 Que eu saiba, a tolerância não era algo que costumava
preocupar os inquisidores quando esses perseguiam bruxas e hereges: o fato de
estarem do lado da verdade, da moral e do bem justificava e deixava a consciência
tranquila em relação a tudo o que faziam. Quando a crítica historiográfica se
apoia em tais pressupostos, quando se torna mera avaliação moral, em termos
de bem e de mal, nós sabemos que a única coisa que dela não podemos esperar
é o esclarecimento de ideias e conceitos, ela não passa de combustível para a
fogueira das vaidades que ameaça queimar a todos os hereges que venham a
discordar dos sacrossantos dogmas reinantes.

202. GINZBURG, Carlo. "O extermínio dos judeus e o princípio da realidade". In: MALERBA,
Jurandir (org.). A História Escrita: teoria e história da historiografia, p. 224.
PARTE II

USOS DO PASSADO
Capítulo 7

Patrimônio ou matrimônio, isto é lá


com Santo Antônio?: algumas reflexões
em torno da relação entre memória e
patrimônio.

São João não me atendendo


A São Pedro fui correndo
Nos portões do paraíso
Disse o velho num sorriso:
Minha gente, eu sou chaveiro!
Nunca fui casamenteiro!
São João não me atendendo
A São Pedro fui correndo
Nos portões do paraíso
Matrimônio! Matrimônio!
Isto é lá com Santo Antônio.
(Isto é lá com Santo Antônio, Lamartine
Babo e Mário Reis).

Pode parecer despropositado iniciar um texto sobre a relação entre memória


e patrimônio, seja ele o patrimônio histórico, artístico ou cultural, fazendo
referência ao e o associando como termo possivelmente intercambiável com o
matrimônio, ainda mais simbolizado pelo santo casamenteiro português que,
enquanto eu estive preparando este texto, foi fartamente homenageado nas festas
juninas em todo país. Mas se prestarmos atenção à etimologia das palavras,
veremos que a aproximação não é tão estranha assim; parece haver algo que
ressoa entre as duas palavras: ambas vêm do latim e são formadas pela aglutinação
de duas outras palavras. Ambas têm como terminação a palavra latina mônius,
que podia tanto referir-se a um ofício como a um dado poder exercido por ou
conferido a alguém. Enquanto a palavra matrimônio remete, pois, ao poder ou
ofício que seria destinado à mater, à mãe, a palavra patrimônio remete ao poder
150 TECELÃO DOS TEMPOS

ou ofício que seria destinado ao pater, ao pai. Enquanto o matrimônio era urna
palavra que remetia ao universo dos dons ou obrigações femininas, a palavra
patrimônio remetia às prerrogativas ou privilégios masculinos. No entanto,
o que me interessa nessa relação, o que me fez partir dessa aproximação para
tratar da questão da relação entre memória e patrimônio, é a própria noção de
temporalidade que estava presente nestes dois conceitos, é a direção temporal
divergente proporcionada pelo sentido cultural dado pelos romanos aos dois
termos. Enquanto o matrimônio estava associado ao ofício ou ao poder; portanto,
ao dom, à prerrogativa e, ao mesmo tempo, à obrigação materna de gerar filhos,
ao dever materno de dar a Roma novos cidadãos, a palavra patrimônio estava
associada ao ofício ou ao poder, portanto, à prerrogativa e, ao mesmo tempo, à
obrigação paterna de constituir e deixar herança para seus filhos, seja ela herança
econômica, pecuniária ou em forma de propriedades, seja herança política,
permitindo o acesso dos filhos, notadamente aos homens, a cargos, dignidades
e honrarias, seja a herança de um nome de respeito, de fama, um nome coberto
de glórias e de heroísmo2º3•
Enquanto a realização de um matrimônio, mesmo envolvendo um homem
e uma mulher, visava acionar o poder e a obrigação, o dever feminino de gerar,
de gestar, de criar os filhos, constituindo-se, portanto, numa aposta no futuro,
sendo o matrimônio uma aliança celebrada visando à construção de um futuro,
à construção de uma família com a geração e a criação da prole, num tempo que
ainda estava por vir, o termo patrimônio aplicava-se para nomear algo que já
tinha existência, que já estava constituído no presente e que se deixava para os
filhos em caso de morte do pai. O patrimônio podia-se deixar como herança.
Representava, portanto, algo que vinha do passado, que fora conquistado,
amealhado, adquirido, no passado, pelo chefe da família, pelo patriarca e que,
no presente, se transmitia a seus herdeiros legítimos, a seus descendentes ou a
seus escolhidos, aqueles para quem, em testamento, havia resolvido transferir
aquilo que por direito lhe pertencia. Portanto, enquanto a palavra matrimônio
remete ao ato de criar, de gestar, de gerar o novo, o infante, de dar vida a novos
seres e a uma nova realidade, no futuro, a palavra patrimônio remete a algo que
vem do passado, que se recebe ou se transmite por herança, algo que nasce da
acumulação, da atividade, do trabalho, da guarda, da conquista, da aquisição
em um. dado período de tempo. Enquanto o matrimônio remete a um tempo
que é da ordem do intensivo, o patrimônio remete a um tempo que é da ordem
do extensivo. Enquanto o matrimônio remete ao fazer história, o patrimônio
remete à memória.

203. Ver: CUNHA, António Geraldo. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4 ed. Rio
de Janeiro: Lexicon, 2010, p. 415 e 482.
DURVAL. MU NIZ DE ALBUQUERQUE JÚN IOR 151

Embora hoje elas pareçam palavras que remetem a universos culturais e


semânticos completamente diversos, produzindo essa estranheza ao aproximá-
las, não podemos nos esquecer de que o matrimônio, o casamento civil, ainda
constitui um requisito para a transmissão da herança e, portanto, do patrimônio
amealhado pelos pais, notadamente, o patrirnônio econômico e financeiro, nos
dias que correm. Mas o que me interessa em particular aqui é outra associação,
que pode passar despercebida mas que está presente quando se trata de pôr
em relação esses dois termos: enquanto o termo matrimônio está relacionado
com a vida, com o gerar e o gerir a vida, a palavra patrimônio está ligado
ao universo da morte, ao universo da perda. Talvez isso esteja ligado a algo
mais profundo, algo menos explicitado, algo que faz parte do imaginário da
cultura ocidental e que é pouco tratado: a associação que há entre o feminino,
a maternidade e a geração da vida, a importância que tem a mulher por dar
início à vida, e a importância que ganha o masculino quando se trata da morte,
aquele que ganha enorme importância quando morre, aquele que mostra toda
sua importância quando falta, aquele que ganha valor com a perda. Quando
tratamos da temática do patrimônio cultural, artístico ou histórico, talvez seja
com este universo semântico, simbólico e imaginário que estamos lidando.
Se atentarmos para o vocabulário e as concepções que mobilizamos ao tratar
dos temas da memória e do patrimônio, talvez cheguemos à conclusão de que
seria preciso, hoje, provocar um deslocamento neste arquivo de conceitos e
concepções que circulam em torno destas temáticas em nossa cultura para que
possamos situar a discussão noutro patamar. Tentarei, nesse texto, sugerir que
deslocamentos seriam possíveis realizar neste universo semântico e simbólico
que está ligado à temática do patrirnônio. Para isso, sugerirei que um desvio
pelo universo semântico e simbólico que se articula em torno da temática do
matrimônio seria uma estratégia possível.
A palavra patrimônio remete, portanto, desde os romanos, à ideia de
herança. No Renascimento, ela será mobilizada para referir-se, justamente,
ao que seria a herança deixada pelas civilizações clássicas para a cultura e a
civilização ocidental. O que se pretendia era fazer ressuscitar, era fazer renascer
as tradições culturais greco-romanas. Portanto, os renascentistas operam, mesmo
que não se deem conta, com o imaginário da morte, com a simbólica da perda.
Com clara conotação cristã, o que se busca é a ressurreição daquilo que havia
desaparecido, que ficara no passado e que se queria transpor para o presente.
Tal como Lázaro, o legado cultural de gregos e romanos, seus monumentos,
textos, imagens, objetos, deveriam ganhar nova vida com sua restauração,
tradução e guarda em coleções e museus. A ideia era a de que os antigos haviam
deixado uma herança que constituía, pois, um· legado, algo deixado para as
novas gerações, que dela deveria cuidar e reproduzir. O que predominava era a
concepção de que se podia recuperar um tempo perdido, se podia religar passado
e presente, fazer o passado renascer por sua transmissão, por sua religação com
152 TECELÃO DOS TEMPOS

o presente,daí o caráter sacralizado que este passado adquire, motivo de culto


e de contemplação. A atitude colecionista, que no século XVII dará origem
aos primeiros museus, baseia-senessa vontade deimpedir a perda, a morte do
passado,o desaparecimento de seus objetos, de seustextos, de seus vestígios. Se
o mercantilismo, nestemesrno,momento, incentiva o entesouramento de metais
preciosos, também se trata como tesouros a ser guardados, aqueles objetos,
vestígios, ruínas etextos quevêmdopassado. A civilização greco-romana passa
a sertratada como aquela quedeixou uma herança, que deixou um patrimônio
a serpreservado, cuidado e transmitido às· futuras-gerações204•
Quando, no séculoXVIII, comaRevolução Francesa, emergiu o conceito
de patrimónionacional, de património do povo, para impedir a destruição e o
roubo de objetos, obras de arte e imóveis pertencentes à aristocracia e ao clero,
sendotransformados em propriedade do Estado, todo esteuniversoanterior das
antiguidades gregas e romanas, que erapreocupação exclusiva dos antiquários e
estetas preocupadoscom a guarda e entesouramento detestemunhos do passado,
sofre uma ressignificação. A ideia de herança énovamente mobilizada, mas
agora não se trata de urna herança civilizacional ou cultural apenas, mas de uma
herança nadonal. O conceito de nação serve paraaglutinar e ressignificar tudo
aquiloquehavia sido guardado ou preservado, tudo aquiloque chegara desde
o passado. Podemos dizer que agora o Estado e; como extensão, o povo que
este pretensamente representa,encarna a figurapaterna, encarna aquela figura
responsável pela aquisição e gerência de um patrimônio, o patrimônio da nação.
Ele deve ser responsávelpelaguardae transmissão da herança, é ele quetem como
umadesuas prerrogativas, como um deseuspoderes e, ao mesmo tempo, como
uma de suasobrigações, a aquisição, a guarda e a transmissão do patrimônio
nacionaLSea palavra patrimônio estáligada,desdea Antiguidade, a um universo
0

de significação emqueao ato de transmitir urna herança, .um legado, associa-se à


ideiadequequem recebe deve cuidar, devezelar por aquilo que recebeu, para que
urna futura eotitratransmissão sefaça, garantindo a perenidade do patrimônio
ao· longo· do tempo, esses sentidos serão reapropriados e ressignificados pelos
Estadosconstitucionais e burgueses. É o Estado agora o responsável por zelar
pelaherança recebidado passado, pelopatrirnônio deste ente coletivo que é a
nação; e consequentemente a preservação deste patrimônio garantiria a própria
perenidade epermanência no tempo desta nação e deste Estado. O patrimônio
cultuado etransmitido coletivamente garantiriaaidentidade, a semelhança
notempo destanaçãoe desua organização política. Opatrimónio artístico,
cultural ehistórico da naçãogarantia suaprópria legitimidade enquanto entidade
autónomaesua perenidade notempo. O património que fala da morte, da

204. Ver: BORGES, Maria ElizaLinhares(org.). Inovações, coleções, museus. Belo Horizonte:
Autêntica, 2014; FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves e VIDAL, Diana Gonçalves. Museus:
dos Gabinetes de Curiosidades à museologia moderna. Rio de Janeiro: Fino Traço, 2005.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR

perda, passa a falar também da continuidade, da permanência, da imortalidade


da nação e de sua identidade°.
Como algo que se transmite do passado, o patrimônio se relaciona com o
mesmo universo semântico da palavra memória, pois ambas seriam algo- que
se transmite, que vem desde o passado e que se manifesta ou continua a existir
no presente. Vinda da palavra grega mnemis, a palavra memória, assim como
a palavra patrimônio está relacionada com o universo da conservação, com o
universo da reprodução do que teria existência em outra época. A memória
conservaria a lembrança, a transmitiria ao presente, a faria reviver entre os
homens de outros tempos. É preciso lembrar que durante muito tempo o
memorável também esteve ligado ao universo masculino. Aqueles feitos e fatos
dignos de ficarem na memória, de serem motivo de algum tipo de registro ou
de inscrição, eram perpetrados ou eram realizados pelos grandes homens; as
memórias femininas enfrentaram inúmeras dificuldades para se inscrever, para
ser registradas. A memória que merecia ser cultuada era a do pai, era a memória
do patriarca, aquele que simbolizava e resumia toda a história da família, do
clã, da linhagem: todos eram a sua descendência, a sua continuação. A própria
memória paterna era uma espécie de patrimônio familiar. Seu nome, sua fama,
sua reputação, seu génio, seu heroísmo, seu prestígio, sua fortuna, se transmitiam
a todos de sua família, marcavam a todos os seus pósteros, definiam lugares e
posições para aqueles que dele descendiam?0é.
Quando Pierre Nora, no texto em que cunhou a expressão lugares de
memória, fala da emergência, no século XX, de uma ordem social que põe em
risco as memórias, que não favorece a sua transmissão, em que as memórias já não
são vividas, já não são portadas por seus agentes, em que prevalece a história, está,
mais uma vez, acionando esse universo de significações que articula memória e
perda, memória e morte. Esta precarização das memórias estaria na base do que
poderíamos chamar a expansão do processo de patrimonialização nas sociedades
ocidentais e sua posterior expansão para todas as sociedades contemporâneas,
à medida que o processo de integração econômica e cultural impulsionado pela
expansão capitalista conquista, praticamente, todas as fronteiras do globo. As
nossas sociedades seriam vítimas de uma ansiedade cada vez maior diante da
velocidade com que as transformações sociais, culturais e espaciais ocorrem. Esta
angústia diante do constante desaparecimento dos referenciais e dos suportes
materiais das memórias teria levado à própria valorização e a emergência do que
seriam novas formas de patrimônio como o genético ou natural, o imaterial e o
intangível. Contraditoriamente, uma sociedade que durante séculos apostou na

205. Ver: CHOAY, Françoise. A alegoria dopatrimónio. São Paulo: Unesp, 2001; PAULA, Zueleide
Casagrande de. Polifonia do patrimônio. Londrina: Eduel, 2012.
206. ABREU, Regina. Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A
Editores, 2003; GODINHO, Paula. Usos da memória e práticas do patrimônio. Lisboa:
Colibri, 2012.
154 TECELAO DOS TEMPOS

materialidadecomo garantia de perenidade, uma sociedade cuja cultura veio a


tornar-se, nomundo moderno, cáda vez mais materialista e realista, enfatizando
tudo aquiloque podia ser visto, testemunhado e tocado como garantidores
dacontinuidade, daperenidade e da verdade, se vê na busca de encontrar no
invisível, no intangível,no simulacro, no imaterial, aquiloquepoderia garantir
a perpetuidade, aherança de sua própria existência como civilização e cultura,
mesmoqueesseprocessotenhasido desencadeado pelas chamadas civilizações
ou pelos povos e culturas não ocidentais, quepassaram areivindicar, a partir do
processomaciço de descolonização e de constituição de novas nacionalidades no
pós-segunda guerra mundial,junto a órgãos como a UNESCO; o financiamento
e o investimento em processosdepreservação de universos culturais,,depráticas
e sáberes vistostomotradicionais, de concepções, valores efazeres ameaçados de
extinçãojustamentepelo impactoda ocidentalização nestes ·povos e culturas?7.,
A noção de. lugar dememória remete ainda à ideia de perda, à ideia de
mortecomo sendo aquela quepreside e explica a constituição de uma tendência,
em nossas sociedades, de investir na montagem, na construção e na instituição
de lugares para lembrar. O. processo de, patrimonialização crescente de tudo
na:sceria,dessa·emergência de uma ordemsocial cada vez mais desrespeitosa
em relação à tradição,que rejeita e contesta toda e qualquer herança, que
investe no futuro,quevaloriza o novo,.o jovem, o.-moderno, o progresso, que
quer ternasmãosa·constmção denovos,ououtrostempos. Não é preciso dizer
que esseprocesso descrito por Nora, recebeu no :Brasil, com Gilberto Freyre, a
denominação de processo de declínio da sociedade patriarcal. Essa. sociedade
poucorespeitosa emrelação à.tradição; àherança, à memória, aos .costumes, ao
sagrado,aosvalores universais, eternos e perenes, era tambémuma ordem social
desrespeitosa em relação ao pai, aopatriarca, às figuras masculinas de poder.
Ordemsocfalonde osjovens se envergonhavam dos velhos, que não queriam ou
nãopodiamreceber e transmitir suas memórias. Ordemsocial que não permitia
a transmissão da herança, pois ·empobrecia e levava 'à- falência econômica os
patriarcas aristocráticos poucoà.feitoseadaptados ao mundo das mercadorias e
do dever e haver; que não permitia:,que os filhos recebessem a herança política,
dado que,pelo menos para alguns, o regime republicano veio significar o
ostracismo, nem mesmo a herança emtermos devalores e dementalidade, pois
- os novos.tempos faziamdos-velhos patriarcas.caturras que nada de aproveitável
para avida nanovasociedadeurbana eindustrial podiam ensinar"", Os anos
vinte do séculopassado, o pós-primeira guerra,tantona Europa como no Brasil,
sãomarcados por iniciativas de homensligadosa essaantigaordem estamental,
207.NORA, Pierre (org.).Leslieux demémoire1:Ré publique, Nation I-II. Paris: Galimard, 1997;
PELEGRINI,Sandra de CássiaAraújo e FUNARI, PedroPaulodeAbreu. O que épatrimónio
culturalimaterial. São Paulo: Brasiliense,2008; BARBAS,Stela Marcos de Almeida Neves.
Odireito aopatrimóniogenético. Coimbra: Almeidina, 2006;
208. Ver: FREYRE, Gilberto. Região e tradição.Riode Janeiro: José Olympio, 1941;
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 155

aristocrática ou escravista, no sentido da criação daquilo que Gustavo Barroso


significativamente chamou, ao criar o Museu Histórico Nacional, em 1922, de
instituições e lugares voltados para o "culto à saudade0?. Este parece ser um
tempo em que consciências e sensibilidades saudosistas, de um lado e de outro
do Atlântico, - bastando para isso lembrar o movimento saudosista encabeçado
em Portugal por Teixeira de Pascoaes -, emergem com intensidade, apostando
e investindo na criação, sob o símbolo da perda, sob o imaginário da herança,
sob os fantasmas, tão concretos e materiais, da morte, da ruína e da destruição,
trazidos pela guerra, aguçados pela espetacularização da morte masculina, da
morte de muitos pais, de muitos patriarcas, partilhados como um sentimento
coletivo de orfandade, tendo como efeito a intensificação dos investimentos em
lugares para lembrar, levando não apenas à crescente patrimonialização, como
à crescente monumentalização?"", O Estado, assumindo talvez o lugar de pai
substituto, de patriarca, trata de tentar sublimar esta orfandade coletiva, usando a
própria guerra e seus mortos como pretexto para criar novos espaços de memória,
fazendo ampliar-se o patrimônio nacional, investindo na elaboração de uma
herança cívica a ser deixada para as futuras gerações. Mesmo diante do corte
radical na história nacional trazido pela guerra, mesmo diante dos traumas e
cicatrizes que esta deixou, o Estado trata de fechá-las, de cauterizá-las investindo
na monumentalização dos próprios mortos, tornando-os uma entidade coletiva,
os desindividualizando: o monumento ao soldado desconhecido, ao morto sem
rosto, ao homem sem nome ou herança a transmitir, se torna, curiosamente,
aquele que transmite para as gerações vindouras uma especial herança, a do
amor, dedicação, devoção, desprendimento, sacrifício e heroísmo em nome da
pátria: a herança do civismo, que permite a continuidade da nação, do Estado
nacional. Morte anônima, mas morte que não foi em vão, que não deixou de
transmitir uma herança, a herança de seu exemplo, a herança do caráter exemplar
de sua morte?l',
Nessa discussão surge, pois, outra noção cujos significados também exigem
uma reflexão para saber com que universo semântico, simbólico e imaginário
se relaciona: a noção de monumento. Monumento é uma palavra que também
provém do latim monumentum, termo que deriva do verbo monere, que tem
como raiz a expressão indo-europeia men, que designa toda operação de
pensamento, toda operação mental. A palavra monumento se refere, portanto,
a uma atenção do pensamento para algo que ocorreu no passado, atenção que
é solicitada por algo da ordem do visível. O monumento, portanto, é algo de

209. Ver: BARROSO, Gustavo et ali. Anais do Museu Histórico Nacional, vol. X. Rio de Janeiro:
Ministério da Educação e Cultura, 1959.
210. Ver: SÁ, Maria das Graças Moreira de. Estética da saudade em Teixeira de Pascoaes. Lisboa:
Instituto de Cultura de Lisboa, 1992.
211. Ver: CATROGA, Fernando. Memória escrita, história e cultura política no mundo luso-
brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2012.
156 TECELAO DOS TEMPQ;

ordenLsensorial; .Iiotadamente visual, que chama a atenção para que· se pense


em algo ou alguémque ficou nmpassado, em .algum evento ou personagem
que deveser lembrado. O monumento, ao mesmo tempo em que remete ao
planodo sensível, de algoque deve serpercebido, que,.·principalmente, deve
ser visto, remete;também ao plano do inteligível,do mental, Já que este artefato
materialdeve provocar o pensamento, fazê-lo intencionalmentevoltar-se para
algo ·que.se,passou, que se perdeu,. para alguémcquejá.morreu, cuja perda vem
aser, ao mesmo tempo;Jembrada e de· certa forma anulada pela existência: do
monumento:· Os monumentos; no mundomoderno,tendem a ser duplamente
subsumidos pelas categorias da memória e dopatrimônio, pois.eles tendem,·ao
mesmo tempo, a seconstituírem emsuportes·ma:teriais, em.·ícones, em-lugares
que evocam e convocamas memórias e.que simbolizam e exprimem o que seda
.qm,pâtrimônio e um legado cultural; histórico· ou artístico de um dado povo,
nação,região,localou civilização, comotambém são eles mesmos, quanto a
suamaterialidade,dignosde memorização e de patrimonialização. Ao mesmo
tempo emque reméteriam a eventos,,feitos,fatos e homens do passado, são eles
mesmos, rio presente; enca:rnaçãode dádasmemórias, são uma 'das modàlidades
• ·dopatriniônioartístico ehistóricó212 •
• No entanto, como dizíamos, se seguirmos as·observações feitas.pelo texto
de Pierre Nora, vivemos, notadamente após a Segunda Guerra Mundial e
especialmentedepois dos anos .oitenta do:séculovinte, uma reconceituação da
noção' de patrimônio, namedida em que.esta se amplia para abarcar não apenas
bens materiais concretos (obras de arte, edifícios,monumentos, objetos,vestígios
materiais, textos), mas também os chamados bens 'imateriais ou intangíveis
(como os sa:beres,,e fazeres· ditos tradicionais, elementos da chamada cultura
oral ou popular como lendas,·mitos, canções, anedotas, anexins); o ,chamado
patrirtiônio,natural {fauna, flora; paisagens) e o património genético (com a
descrição recente do.genomahumano)213;·Neste momento começa a tornar-se
questionávelo próprio uso da palavrapatrirriônioparanomear·o que se torna
cada vez mais desmaterializado, sujeito a constantes modificações, rearranjos e
:inclusive.passível de desaparecimento e-0e desinvestimento 'afetivo, emocional,
culturale estético pôr parte-das:sociedades,ou comunidades a que ·pertence. _ j
Selevarmos·em,contaos universossemântico,'simbólico eimaginário:que são
mobilizados pela palavra património,ela se tornadeuso cada vezmais equívoco
e problemático em nossosdias:comoiremosfalar de herança, de legado, de
algo que deve virdo passado,serzelado no 'presente e retransmitido aofuturo
numa época,numa cultura e numasociedade onde as mudanças culturais, de

212. Ver:KNAUSS, Paulo e ALTA, Marize.Objetos do olhar: história da arte'. São Paulo: Rafael
M

Copetti,2015;RIEGL,Alois. O cultomodernodosmonumentos. SãoPaulo: Perspectiva,


2014.
213..Ver:FUNARI,Pedro Paulo.Patrimóniohistórico ecultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2006;
LEITÃO,HaroldoCamargo. Patrimóniohistórico e cultural. São Paulo: Aleph, 2002;
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 157

valores, de hábitos, de costumes, de significações são cada vez mais velozes? Se


até recentemente a ideiade património estava associada à criação ou instituição
de espaços de pedra e cal, ao tombamento, ou seja, ao reconhecimento oficial
de que um dado espaço, de que um dado bem imóvel que deveria ter o direito
de propriedade privada limitado ou extinto para que este bem viesse a se tornar
um bem público e fosse mantido sem modificações, como este conceito de
patrimônio pode ser utilizado para tratar de manifestações culturais, de matérias
e formas de expressão que têm como suporte apenas os corpos humanos, mortais
e passageiros, as vozes e os gestos humanos, que são tão precários, que residem
apenas nas mentes dos homens e mulheres. Se a noção de patrimônio se relaciona
com ideias como a de conservação e preservação, como poderá ser utilizada para
tratar de manifestações culturais que não têm como ser impedidas ou proibidas
de:semodificar, de se alterar, de sofrer ressignificações, de sofrer reorganizações,
reordenamentos, até mesmo de vir a desaparecer? Será que o fato de que a partir
do Decreto 3.551, de 04 de agosto de 2002, no Brasil, pode-se registrar uma
manifestação cultural no Livro de. registro das celebrações; no Livro de registros
desaberes; no Livro de registro dasformas de expressão e no Livro de registro dos
lugares, irá garantir que uma dada forma de celebração venha a deixar de existir
por ausência de quem veja nela sentido e dê a ela significado, que dados saberes
não desapareçam por falta de quem se interesse em aprendê-lo e retransmiti-lo,
que dados lugares venham a ser destruídos ou utilizados de forma completamente
distinta do que seria seu uso dito tradicional?
Estando associado, todo tempo, ao universo da perda, da morte, e, por
outro lado, à ideia da necessária transmissão de uma herança, de um legado,
que impeça a descontinuidade entre o passado e presente, que faça o passado
comunicar e entregar ao presente o que de mais grandioso produziu e permitiu
- tal como foi também pensada a história, que deveria dar testemunho, fazer
memorável o passado -, a noção de patrimônio se vê desafiada quando a perda,
a morte; a passagem do tempo, parecem se dar de forma tão veloz, tão constante,
que a herança parece se perder, que o legado parece não ter como ser repassado
paraas novas gerações, a preservação e a conservação parecem impossibilitadas
pelo ritmo em que as mudanças acontecem, fragilizando as memórias, fazendo-
-as ser ameaçadas por uma históriaque parece inexoravelmente caminhar para
um futuro completamente diferente do passado. Neste momento, o discurso da
memória e do patrimônio parece ganhar tons reacionários, quando não reativos.
No mínimo torna-se nostálgico, saudoso e lamuriento, sempre a lamentar a
perda ou o perigo de desaparecimento em que se encontraria o património, seja
aquele chamado de patrimônio da humanidade, esta categoria inventada pelo
Iluminismo e que teve o condão de tornar objetos, fatos, memórias, monumentos,
personagens que pertenceram a culturas, civilizações, sociedades· singulares
e particulares em um universal, dando a eles contornos coletivos; seja aquele
chamado de patrimônio histórico e artístico ou aquele chamado de patrimônio
158 :TECELÃO DOS.TEMPOS

cultural, surgido com a· generalização,ao longo do século" XX,·· da· categoria


antropológicade cultura, ·que caminhou justamente,no sentido de questionar.a
• içlêiade>hum.anidad_e;dequestionaras-ideiasuniversaisde,civilização ecultura,
ede afirmara diversidade ea:múltiplicidadedas formas culturais humanas.. Os
discursosemtorno damemória e do patrimóniose alargam para incluir, cada
vezmais, todos os gru pos humanos,principalmente aqueles que estiveram, por
·niuitoteínpo,.excluídosdasatividades.de,registro, de inscrição,· de memorização,
de monumentalização e de patrimoriialização.Agora'se busca ouvir as memórias
ednsérir>no,patrimônio seja da humanidade, seja .no patrimôriio nacional,
regional oulocal,seja no património cultural, formas ematérias de expressão
bastante diversificadas, vindas das. camadas.populares; dos chamados grupos
tradicionais, das chamadas minorias étnicas, geracionais, ,profissionais .etc.:Mas
essa patrimonialização generalizada, essa memorizaçãoemexcesso parecem
estarsempreobsedadas pelo espectro da perda, damorte, do desaparecimento
e todas as.suas outras figuras comoo esquecimento,a deturpação,,aalteração.
Parecehaverumaverdadeira obsessão por:assumir olugar do pai, a tarefa do pai,
numa sociedade de pais cada vezmais frágeis e ausentes. Todo mundo parece
quererlegar, constituirumaherança,acumular um patrimônio para. as futuras
.• gerações/©NG's; .cehtrosde. memória e documentação,arquivos, investem em
ações de memorialízação· e patrimonialização;· sempre tendo como-horizonte a
possibilidade·do desaparecimento, do esquecimento daquilo que•guardahl ou
registram214. •
O que quero defender nestetexto é que;para fugirmos deste universo de
· •significí:'tções que atribuímos a-noções ·como de memória· e patrimônio, talvez
tenhamos que recuperar, ,pormais estranho,que. possa parecer, o universo
seri)ântko, simbólico . êeimaginário.qtie desde a>.Antiguidade girou em tomo
da n9çãodeinatrimônio.. Esse universo de. significações me parece, inclusive,
mais condizente comaforma como os historiadores hojepensam e lidam com
as categotiasda;memória e dopatrimônio,·Serião vejamos: ·hoje a,historiografia
tende arecusara ideia deque a memória seja·um resgate ou.uma recuperação
do passado,que a memória seja•·uma· herança· ou, um-legado que nos chega
; pronto e acabado,vindo de tempos anteriores. Hoje tendemos. a recusara ideia
. de que a memória seja umailas moda1idades da·história, que amemória consiga
estabelecerumacontinuidadeentrepassado ·e presente, por mais ·que suas
·operaçõesiseÇlirijamnesta;direção-"•Seoschistoriádoreshóje•tendem a pensar a
memória comouma construção, comouma criaçãofeitaapartir do presente e
porelecondicionada,sesabemos queas memórias não são a transmissãopura
•• e simples, deurnpa5,sâdo:para,um,presente;·seasconceheniós como elaborações
. .. '
. ' .
214. Ver:COSTA,EverardoBatista da. Cidadesda patrimonialização global. São Paulo:
Humanitas, 2015;SCOCUGLIA,JovankaBaracuhy Cavalcanti.Imagens da cidade:
patrimonialização,cenáriosepráticas sociais.João Pessoa: UFPB, 2010.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JCNIOR

feitas a posteriori e que significam uma reinvenção, uma condensação, uma


seleção em relação ao que se passou, se sabemos que a memória é seletiva e
sintética, que ela reinventa as temporalidades, os eventos e os sujeitos, penso
que este conceito talvez esteja hoje muito mais próximo do universo semântico,
simbólico e imaginário ligado ao matrimónio, pois, afinal, este era um ofício,
uma prerrogativa, um poder e um dever ligado à gestação, a geração de algo ou
alguém novo, para o futuro. O ofício da memória está longe de significar a simples
transmissão de algo que aconteceu. Ele é da ordem da criação, da invenção,
da gestação de novas e diferentes versões para o que é lembrado, recordado.
Secomo diz o ditado popular, recordar é viver, a memória tem a ver com o
universo simbólico e imaginário ligado à vida e não à morte, ligado ao ganho e
não à perda. A memória, embora possa falar de algo ou alguém que morreu, o
faz para dar-lhe nova vida, para fazer com que venha a ter presença-entre nós.
Embora a memória possa falar do que se perdeu, o faz para reencontrá-lo, para
redizê-lo, para recontá-lo e assim o tornando efetivo entre os contemporâneos,
mesmo surgindo modificado, em nova versão. A aposta na memória não visa
apenas dar conta de uma ausência, mas visa constituir uma presença. Nós,
historiadores sabemos, porque também é assim que se passa com nosso ofício,
que não noslembramos do passado por causa dele ou para ele; o fazemos porque
esse lembrar é uma ação, é um agir, é uma intervenção no presente, que. vem
acompanhada de um horizonte de expectativas em relação ao futuro. Embora
pareça ser um discurso apenas retrotenso, o discurso da memória é tambémum
discurso protenso: visa, como todo discurso, atingir metas, objetivos, segue uma
dada estratégia que tem o presente e o futuro como temporalidades215.
O mesmo se pode dizer acerca da noção de patrimônio. Hoje tratamos
de usar a história para contestar qualquer formulação ou uso romântico e
naturalizado da noção de patrimônio, seja ele adjetivado como da humanidade,
nacional, regional, local ou mesmo cultural, seja ele patrimônio histórico,
artístico, genético, natural ou classificado como material, imaterial. e/ou
intangível. Sabemos que todos os objetos, bens. móveis e imóveis, saberes e
fazeres, manifestações e expressões artísticas e culturais, matérias e formas de
expressão recobertas pela categoria do patrimônio foram produto, em algum
momento, de seleção, de atribuição de sentido e significado, foram produto da
ação de agentes sociais e políticos que as vieram selecionar, destacar, colecionar,
organizar, classificar, atribuir sentidos que eles não portavam naturalmente.
Sabemos que o patrimônio não nasce de-geração espontânea. Tudo o que é
classificado como patrimônio tem um nascimento, é produto de um ato de
gestação, de criação, de invenção, ato sempre acompanhado de interesses

215. Ver: BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins fontes, 1999; HALBWACHS,
Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006; BOSI, Ecléa. Memória e sociedade:
lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983.
160 TECELÃO DOS TEMPOS

políticos, económicos, ideológicos etc. Portanto, creio que a própria noção de


pattimôniQ.parece estar hoje mais relacionadaaouniverso·semântico, simbólico
e imaginário evocado, sugerido pelapalavramatrimónio, já que é nesse universo
qtiese'fazem.presentes noções.como ade nascimento, criação, gestação, geração,
parto,afiliação.Indo mais adiante com a metáfora, podemos dizer que, hoje,.nós
historiadores sabemos quetudo oque é nomeado de património foipartejado
emdadomomento por alguma instituição, em meio a dadas correlações de força,
em dados contextos, obedecendo a dadas estratégias, visando atender a dadas
demandas políticas, simbólicas, imaginárias, fruto da ação de dados agentes com
. interesses .econômicos,.,sociais e culturais específicos; O ·patrimônio, tal como
concebem hoje os praticantes das ciênciassociais, assim como o matrimónio
é produto de uminvestimento, desde uminvestimento simbólico em torno de
expectativas, afetos, de preceitos éticos, de valores, de concepções. políticas,
passandopor investimentos no campo político,.mobilizando alianças,.adesões,
.partilhamento de ideologias e de utopias; até investimentos no campo econômico,
jáque muito do que. hoje se nomeia· de patrimônio também visa atender a fins
econômi.cos. O turismo de eventos, o. turismo histórico e artístico, o turfsmo
, arqúitetônico e urbanístico, o turismo paisagístico e naturalista, têm levado a
quequase todas as cidades· e administrações municipais·. invistam· na criação
de espaços patrimoniais,invistam na criação de monumentos e de artefatos
dcônico.s para atrair.os investimentos· desta que é uma das maiores ,indústrias
denossotempo.
: Não:temOs·nenhuma dúvida de que os chamados patrimônios da
humanidade; .que continuam.sendo definidos e institucionalizados por
organismosinternacionais como a UNESCO, atualizando a concepção
universalista e iluminista de património, mais do que reconhecerem uma
herança ou um legado vindo do passado, definem novas realidades, alteram o
presente e abrem a possibilidade denovos futuros para aqueles espaços; bens
e expressões culturais que são patrimonializados. Taisartefatos e espaços, tais
manifestaçõese expressõesattísticas,e culturais.passam a ser objeto de proteção,
que éuma noção associada ao universo feminino e,portanto, ao universo do
matrimôóio. Esses bens eexpressões:considerados patrimônio da humanidade,
embora em tese devamficar intocados, devam ser preservados dadestruição,
do ·desaparecimento,·com a· própria garantia de. que, em. última· instância,. as
próprias entidades.internacionais devem garantir os recursos necessários para
sua conservação, sabemos que essas expressões. artísticas e culturais e esses
espaços só permanecerão efetivamente vivos, só continuarão fazendo parte da
vida· sociaJ 'Se. conseguirem adquirir significados para as comunidades, a que
pertencem. A velha ideia de um patrimônio empalhado, preservado em formo1,
parado. no tempo; parece estar sendo superada pela.ideia de que é patrimônio
da humanidade aquilo que para ela tem significado no presente, que é assim
considerado pelo menos poraquela parte da humanidade que estámais próxima
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 1

e pratica o espaço ou as manifestações que forem assim definidas. Ao invés de


pensar o património como coisas mortas, a exigência hoje é que efetivamente
elas se tornem coisas vivas, sendo portadas, realizadas, praticadas, vivenciadas.
experienciadas não apenas por meia dúzia de aficionados e especialistas, mas
para parcelas ou grupos significativos de uma dada sociedade.
O chamado patrimônio histórico e artístico nacional; assim como o regional
ou local, sabemos nós, é fruto de investimentos políticos e simbólicos quase
sempre do Estado, e de instituições oficiais a ele ligadas, ações amparadas por
dadas redes de intelectuais, especialistas, eruditos e demandadas por dados
grupos específicos que se veem representados naquilo que foi escolhido para
representar esta identidade espacial. A própria ideia de representação, de
simbolização remete, pois, à ideia de simulação, de teatralização, de fabricação,
de invenção, de instituição destes espaços, objetos e obras de arte. Elas são fruto
de eleição, de escolha e, muitas vezes, são fruto de produção deliberada, são fruto
de encomendas, de demandas, de projetos que advêm do próprio Estado ou de
dados grupos no interior da sociedade. O patrimônio efetivamente se constitui, se
acumula, se coleciona, mas não necessariamente numa temporalidade que seria
o passado, embora será a este tempo em que tudo que é eleito como patrimônio
histórico irá ser remetido. O patrimônio histórico se acumula, se constitui por
uma ação que ocorre no presente e que visa o futuro. O mesmo ocorre com o
patrimônio artístico, que a ele poderá ser acrescentado a qualquer momento
algo que foi criado e gestado no presente.
As novas categorias que vieram a ser incorporadas ao universo do
patrimônio tornam ainda mais difícil relacioná-lo com o universo do legado,
da herança, da perda e da conservação. Normalmente aquilo que era definido
como patrimônio da humanidade, patrimônio nacional ou patrimônio histórico e
artístico se constituía de uma dada materialidade, possuía uma realidade tangível,
era da ordem da empiricidade; portanto, da ordem do sensível, notadamente do
visual, tal como implícita na própria noção de monumento. Esse caráter material
e empírico seriam garantidores de sua continuidade, de sua perenidade, de sua
preservação através do tempo. Ao emergir e firmar-se, desde pelo menos os
anos cinquenta do século passado, a ideia de patrimônio imaterial ou intangível,
muito recentemente definitivamente implantada entre nós, significa que
estamos diante da desmaterialização do patrimônio, estamos diante de formas
deexpressão humanas, de saberes e fazeres, de práticas e rituais, cujo suporte
empírico é apenas os próprios corpos dos homens, suas vozes, seus gestos, suas
mentes. Expressões culturais comumente nomeadas através dos conceitos de
cultura popular e de tradições, que durante muito tempo tiveram na inscrição
através da escritura de especialistas, de folcloristas, do etnógrafo, o que seria o
registro de sua existência e a garantia de seu não desaparecimento, quando esse
ato mesmo de traduzi-las para a escrita já as modificava irremediavelmente,
são agora registradas em livros oficiais, registradas como patrimônio nacional
162 "TECELÃO DOS TEMPOS

ou
dahumanidade.Masesse registropoucopodefazer contra asmodificações,
as mudanças,as criações no campo cultural,a gestação do novo que continua
'Ocorrendonosmeiospopulares:Oregistro'."doacarajécomo·patrimônio imaterial,
que implica em descrever ummodo tradicional de fazê-lo, não impedirá que
elesejafeito usandoo liquidificadorou·omultiprocessador e que tenhamos em
breveredes nacionais de venda de acarajés pré4abr-icados; como ocorre com o
pãodequêijo216•
Se no título do.textoJaço urna referênciaauma canção bastantepopular
deLamartineBabo eMário Reis,,Isto élá corrtSantoAntônio,foi,porque escrevi
essaconferênciano momento de ocorrêm:iadas festasjuninas, festas que são,
quase sempre,associadas aoNordeste, sendo definidas como umpatrimônio
cültural·nordestino, .quando sabemos que as· festas· juninas ocorrem em. todo
Brasil e possuem características'muito,peculiares em·vários lugares. As festas
junüias: são, portanto, diversas emúltiplas, eseu uso para a construção de uma
identidaderegionaléfruto de dados investimentos políticos e intelectuais sobre
os quaisos historiadoresdevem se debruçar e devemproblematizar.Além.disso,
sempre queocorremasfestas juninas noNordeste,tenho que ouvir o ·discurso
lamurientodaperdadastradições,· damorte daverdadeirafesta, da deturpação
comercial, mercantil emidiática dasfestas;tenho que conviver coma nostalgia
do queseriamasverdadeiras festas juninas, baseadapretensamente.em tradições
trazidas empriscas eraspelosportugueses, simbolizadaspelosanto casamenteiro,
pelo santodorminhoco e que carrega .um.carneirinho e pelo santo responsável
pelaschaves doparaíso. No entanto,quando·consulto os escritos dosfolcloristas
do começo do século XX; daqueles queparticiparamda invenção do que seria.a
culturanordestina, eis que encontroomesmoenunciado de•queasfestas,juninas
estavammorrendo,estavamsendodeturpadas eadulteradaspela vida em cidades.
O mesmo ocorre como carnaval, com o cotdel,quemalhavia nascidoe já estava l
vaticinado a se perder, a morrer. É comum encontrarmos relatos, quando se
.trata de manifestações culturais, de que elas não são mais as mesmas. Mas elas
morreriamse continuassemsendo asmesmas,porque cristalizadas,•.fossilizadas
perderiamo interesse para aquelesque as :praticam. Se as, festas juninas, não
tivessemsetransformado,ajuveniude não<:ontinuariafrequentando comtanta
animaçãoa festacomofazem em minha cidade.natal: Campina Grande.
Para mim, este caráter mutáveLquetêm>as manifestações culturais e
artísticas; este caráter descontinuo quetêmasmemórias e mesmo aquiloque é
nomeado deHpílttiniônio .nada: tema vereom o: universo semântico, simbólico
ou imaginário ligado à perda,à morte, à herança, alegado, mas tem a ver com
o universodacriação,da criatividade, dainvenção,da geraçãoe gestação da
novidade,dadiferença - portanto, tem a ver com a vida, com a potência da

216. IPHAN.Oregistro do património imaterial: dossiê final. Rio de Janeiro: Edições Iphan,
2012.-
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÜNIOR 1

vida: o que se transforma é o que está vivo; só os mortos não se transformam,


se degradam, apodrecem. Não se trata de aceitar o novo por ser novo, nem toda
novidade é aceitável só por ser novidade, mas a crítica que porventura se faça
ao que emergiu de novo, de diferente, para mim não deve ser feita em nome
da defesa de uma herança, de uma tradição, de um legado, de.um patrimônio
que devem ser resgatados, defendidos, preservados a todo custo, até porque
sabemos que na origem da herança, do legado, está o poder, está a prerrogativa,
está o privilégio de alguém. No caso do sentido antigo da palavra patrimônio,
estava o poder do pai, do patriarca, do masculino e de todas as instituições que
o encarnavam, o legitimavam e o reproduziam. Por isso, concluo dizendo que
podemos fazer a crítica, inclusive, àquilo que emerge de novo em nome de uma
aliança que visa o futuro, crítica que não impeça, mas que estimule a criação, a
geração, a gestação, o nascimento, o vir à luz de novas expressões da memória
e da história. Podemos lidar com aquilo nomeado de patrimônio no sentido de
abri-lo a novos afetos, a novos significados, a novas experimentações, fazê-lo
vivo e disponível para novas conexões, para outros usos, para diversificados
modos de circulação e apropriação por parte da população. Um historiador que
incentive práticas de patrimonialização que não empalhem, mas que espalhem
pelo social aqueles bens ou expressões patrimonializados. Um historiador
casamenteiro que, como o santinho português, estabeleça mais alianças que
separações, mais encontros que desencontros, mais conúbios de que distinções
e afastamentos, que em nosso campo esteja mais disposto a encarar as memórias
e seus artefatos como da ordem do matrimônio do que dopatrimônio, embora
isso de matrimônio, à primeira vista, seja lá com Santo Antônio.
Capítulo 8

As sombras brancas: trauma,


esquecimento e usos do passado

No romance do escritor português José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira217,


publicado em 1995, a população de uma cidade é acometida por uma epidemia
de cegueira branca, uma cegueira luminosa, como se suas vítimas estivessem
mergulhadas num mar de leite. No romance do escritor angolano José Eduardo
Agualusa, O Vendedor de Passados218, publicado em 2004, Félix Ventura, um
negro albino e uma lagartixa (osga), apelidada de Eulálio, vivem sobre a sombra
de uma casa, fugindo ambos do contato com o sol, que incomoda aos olhos por
sua intensa claridade e que ameaça ulcerar a pele destes dois seres noturnos.
Já no romance do escritor moçambicano Mia Couto, Um rio chamado tempo,
uma casa chamada terra?", publicado em 2003, a personagem Miserinha já não
vê brancos nem pretos, tudo para ela· é acinzentado, tudo para ela é mulato,
não enxerga nenhuma cor. Ora, parece que a cegueira, que a dificuldade de
ver diante do excesso de luminosidade, que a dificuldade de perceber cores, se
constitui em um tropoliterário recorrente, que se mostrapresente tanto na obra
do escritor contemporâneo, mais conhecido e laureado de Portugal, quanto na
obra de dois dos mais expressivos escritores das antigas colónias portuguesas
na África, que fariam parte do grupo de escritores cujos trabalhos literários são
convencionalmente agrupados sob a designação de literatura pós-colonial.22º
Parecemos estar diante de certa regularidade imagético-discursiva a solidarizar
a produção literária da antiga metrópole e das ex-colônias. Por que uma

217. SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
218. AGUALUSA, José Eduardo. O Vendedor de Passados. Rio de Janeiro: Gryphus, 2004.
219. COUTO, Mia. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Companhia
das Letras, 2003.
220. Ver: HAMILTON, Russel G. A literatura dos PALOP e a Teoria Pós-Colonial. ln: http://
www.casadasafricas.org.br/site/img/upload/665414.pdf.Acesso em l5de outubro de 201 O.
166 TECELA0-005 TEMPOS

temática comoa da dificuldade dever, de emcergar, de delinear a realidade do


mundo exterio.r parece.cumpliciar a produção literária portuguesa, angolana e
moçambicana? O processodecolonização e descolonização, a perda das antigas
colônias por,parte de Portugal, as guerras pela independência, as ,guerras civis
quelhes seguiram eoprocessodeconstrução nacionalemAngola e,Moçambique
teriamàlgo a.ver.com,oaparecimentorecorrente destas imagens literárias que
remetem a um adoecimento da visão,, ao apagamento súbito ou progressivo da
capacidade de perceberas formas darealidade circundante, a fuga em encarar
a.realidade·sem o amparo,das:sombras?
A antropóloga brasileira Carolina Cantarino chama a atenção para. um
aspecto que póde se constituir numa primeira explicação para esta recorrência
temática naprodução literária, tanto da antiga metrópole quanto das suas ex-
colônias. Em artigo em que trata,justamente, da chamadaliteraturapós-colonial,
ela afirma queos processos de colonização· e descolonização marcaram· não
apenas os países colonizados,mas tambémos países colonizàdores. Acolonização
nunca foi um fato externo àsmetrópoles üµperiais, estando inscrita ,nas suas
próprias culturas, assim como as .culturas imperiais também se inscreveram
nas culturas dos .colonízados.221 Trabalhando teórica e pontualmente a noção
deinscrição, utilizada pela antropóloga brasileira neste artigo, o filósofo de
nacionalidade portuguesa nascido em Muecate,Moçambique; erri 1939, José Gil,
em uma desuasmais recentes obras, publicadaem2004 - mesmo ano; portanto,
da publicação doromance de Agualusa.-,PortugâlHoje: o medo de.existir222, sob
à inspiração:de _seu professor na França, Gilles Deleuze,.nos apresenta reflexões
conceituais e históricas quetalvez possam nosatix:iliar a entender estarecorrência
do toposliteráriodacegueira e .suas variantes na produção literária, tanto da
metrópole, Portugal, .como de suas colônias,.somente tornadas independentes na
décadade 1970, constituindo-se, portanto, este império e este domínio colonial
,,no maifduradouro:em toda história domundo moderno; já que durou quase
cincoséculos.
Nesse'livro,José GiLvai tratar do que seria a verdadeira obsessão dos
portugueses pelo passado, à produção· e· O consumo constante .de obras
memorialísticas e históricas por parte da população de Portugal, fato que, no
entanto, nãogarantiriaa verdadeira insérição do passado, seja na consciência
coletiva dos portugueses, sejamesmono inconsciente individual dos indivíduos
que aí habitam.Aínadaseinscreverianavidasocial ou noplano artístico. Talvez
porisso, diz ele, os estudos mais sólidos eni Portugal· e com maior tradição
sejamaqueles que se referem-à história; numa-vontade,que; segundo ele, ·seria
desesperadadeinscrever, de registrarparadarconsistência ao que tende a

221. CATARINO, Carolina."Ficção pós-colonial retrataconflitos contemporâneos"São Paulo:


Ciênciae Cultura, n. 59,abril-junho 2007.
222• . GIL,
.•
José. PortugalHoje:
'
o medode
.
existir. 6ed. Lisboa:RelógioD'Água,2005.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 167

desvanecer-se constantemente. Embora sejam escritos reiteradamente,·eles não


se inscrevem, numa espécie de amnésia coletiva. Os diversos e recorrentes usos
'do passado feitos pelos portugueses nasceriam da incapacidade que eles teriam de
inscrever, de registrar duradouramente os acontecimentos. Para José Gil, Portugal
se constitui no país da não-inscrição e sem inscrição nada verdadeiramente
acontece e sem acontecimento não há verdadeiramente história, nem mesmo
historiografia. Mas o que José Gil está chamando de não-inscrição? Ele cita
exemplos para que fique mais claro: Portugal seria o país onde um ministro se
aproveita ilegalmente de uma lei para não pagar impostos para voltar à tona
incólume, meses ou anos depois; a mancha que em outros lugares acabaria
definitivamente com a suacarreira política, que ficaria definitivamente inscrita na
consciência coletiva, em Portugal pode ser a oportunidade para ter a notoriedade
capaz de lançá-lo a novas e mais venturosas empreitadas políticas. Qualquer
semelhança com o Brasil, a maior e mais viçosa ex-colônia portuguesa, talvez não
seja mera coincidência. Seríamos também um país da não-inscrição? Lançando
mão de umgrafito escrito ao longo da parede deuma escadaria de Santa Catarina,
que desce para o elevador da Bica, em Lisboa, ele dirá que em Portugal, portanto,
"não há drama, tudo é intriga e trama; ou seja, nada de verdadeiro acontece, os
fatos se sucedem, são contados, são narrados em profusão e o próprio excesso
de narrativas torna os eventos fugazes, rapidamente esquecidos. Portugal teria se
negado a inscrever, por exemplo, em sua consciência coletiva, os quarenta e oito
anos de regime salazarista, assim como os séculos de colonialismo,de violências,
atrocidades e rapinas coloniais. O imenso perdão e o esquecimento dos crimes da
ditadura, o apagamento do passado português, trazido e proposto pela própria
revolução de 25 de abril de 1974, estendeu-se sobre o domínio colonial na África.
A independência das colônias marcaria o apagamento de todo o passado e a
criação de relaçõespolíticas, econômicas, culturais e diplomáticas com as antigas
. colônias como se nada tivesse acontecido anteriormente. Portugal seria o país
onde sempre se passa a borracha sobre o que passou, em que a escrita sobre
o passado, contraditoriamente, serve para mitificá-lo, torná-lo pouco nítido,
servepara apagá-lo em seus contornos mais ásperos e bicudos. Lembra-se em
demasia para produzir o esquecimento. O tom saudoso e nostálgico com que
se tende a abordar o passado português e o passado colonial dá a essepassado e
ao próprio presente, que aparece ora como continuidade ou em contraste com
aquele passado longínquo, a forma de fotografias desbotadas, amareladas, em
tom sépia. Como a personagem Miserinha, do romance de Mia Couto, tanto
passado quanto presente e futuro aparecem acinzentados, nebulosos, envoltos
embrumas e mistérios, como a-figura do Encantado rei Sebastião, que ainda
um dia, quem sabe, retornará das trevas.
José Gilvai utilizar nessa obra, para caracterizar o que seriam a realidade
social, cultural epolítica doPortugal contemporâneo, imagens quesão bastante
próximas daquelas que vão aparecer com recorrência no discurso literário
168 TECELÃO DOS TEMPOS

portuguêse desuas ex-colónias. Para o filósofo que, como a maioria dos


escritores da literatura denominada de pós-colonial, é,um migrant writer, tem
umaidentidade cindida entre aterra onde nasceu,na África, e sua,formação
educacional e suaidentidadenacional europeia, a cultura do medo, o constante
clima de repressão, as vexações económicas e culturais da época da ditadura
salazarista, elementos que poderíamos estender, sem problemas, à realidade
das colônías;·teriarn gerado nos portugueses uma espécie de branco psíquico
ou· histórico. A negação pura e simples do- real, sem o necessário trabalho
simbólico e imaginário;que segundo Lacan seria fundamental para haver a sua
inscrição emtermos sociais e culturais,portanto, humanos, faz com que este
aflore aqui e ali em sua, face mais misteriosa e indomável. Quando o luto não
veminscrever noreal as perdas sofridas, quando algo que passou e se perdeu
não sofre o trabalho do luto, o morto e a mortevirão assombrar os vivos sem
descanso; como o personagemDito Madano; dolivro de Mia Couto, que parece
estar morto, emtorno do qual, todos se reúnem para o funeral, mas que teima
emnão morrer,comunicando-se emsonhos e através de cartas com o neto que
quernomear como seu sucessor e continuador de sua linhagem e tradições -
um defunto a que atéa terra arenosade Chão do Luar-recusa o enterramento,
tornando-se impermeável a cada tentativa de cavar-se a ·cova que receberia o
corpo dopatriarca morto.
Afaltadeliberdades democráticas, a ausência de espaço público, a ausência
de tempos e espaços ·coletivos, a fragmentação social, o isolamento provocado
pelo medo do outro, um provável.espião, tornavam a vida dos portugueses,
pordefinição, obscura, sombria, 'já que todos buscavam -não ser percebidos,
identificados,todos se --faziam assim .modestos, humildes, despercebidos,
reservando;,talvez, como aconselhado para um povo católico, a inscrição da
existência na eternidade muda-das- almas. Não poderíamos dizer que, nas
colônias/onde o - convívio 'entre. culturas e· línguas estranhas, a vida isolada de
muitos nomeiorural, aprocura de fugir da dura repressão para todos aqueles
que clandestinamente-lutavam contra o domínio colonial, também não seria
motivador deuma vida levada nas sombras, na obscuridade? Ele vai ainda usar
sigriificàtivamente otermô "sombra brancà' para:caracterizar o que seria a falta
deideias claras entre -os -portugueses, o que seria asua esperteza estúpida,-_ o
constante saltar de uma.ideia a. outra, articulandonum mesmo contexto ideias
pertencentes a regimes deconsciência diversos. ParaJosé Gil, as consciências
portuguesasviveriam noquechamadeestado de nevoeiro, como-se-uma constante
eintermitenteneblinadelasse apoderasse e as corroesse. O branco psíquico
inconsciente iriaesfarelando,fragmentando aconsciência em mil bocados, cada
um deles,noentanto,plenamente consciente no seu campo próprio.
Mas o que seriaresponsável, em último caso, por esta dificuldade em
inscreversocial, política e culturalmente-os eventos, o que obliteraria a capacidade
de inscriçãodos acontecimentos na vida portuguesa, o que seria responsável
DURVAL MUN IZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 169

por esse desejo coletivo de esquecimento, por essa busca pelo branco e não
'pela "clareza? Para José Gil, a não-inscrição tem como causa um trauma, a
não-inscrição seria um mecanismo social e individual que os portugueses
• desenvolveram ao longo de sua história para lidar com os grandes traumas
coletivos e individuais que vivenciaram. O trauma223 bloqueia a inscrição, seja no
• 'inconsciente seja na consciência, tanto em termos individuais, quanto coletivos.
O trauma podeconvocar o esquecimento, convocar à obliteração da expressão,
ele pode provocar a incapacidade de dizer, de fazer ver; de representar, ele pode
gerar o bloqueio da capacidade inventiva, poética, criativa dos indivíduos e
. das coletividades. A inscrição implicaria ação, afirmação, decisão com as quais
os indivíduos conquistariam autonomia e sentido para as suas existências.
• Os portugueses, por causa do salazarismo, aprenderam a irresponsabilidade,
reduzindo-se a serem crianças grandes, adultos infantilizados. Os sucessivos
traumas históricos representados pela expulsão em massa de árabes e judeus da
península, a Inquisição, a morte do rei D. Sebastião e a subordinação à Espanhana
épocade Felipe II, a perda das colônias nas Índias e a subordinação à Inglaterra,
a invasão napoleônica e a fuga da família real para o Brasil, a perda desuamais
·próspera colônia com a independência do Brasil, o ultimatum inglês do final do
século XIX, a saída em massa de sua população para outros países arrastada pela
miséria e pela fome, a aventura colonial africana para onde migraram milhares
de portugueses, o salazarismo e a sua queda com a Revolução dos Cravos,
a. descolonização na África e o retorno de mais de oitenta milportugueses
• vindos daquele continente, bem como o choque representado pelaentrada na
Comunidade EconômicaEuropeia seriam grandes traumas que aliados a uma
sucessão de pequenos traumas cotidianos teriam levado aestefastio de inscrição.
Não tenho sequer condições de avaliar ajusteza dessa leitura que José Gil faz
do que seria o ser português que, chama atenção, como entidade coletiva unitária
nãopassaria também de mais uma das inúmeras ficções que constituiriam a
cultura portuguesa. O que me interessa é tomar essas imagens e esses conceitos
que,feitos para pensar o existir português, hoje, surpreendentemente, guardam
grande similaridade com temas e imagens que são recorrentes na literatura
tanto portuguesa quanto africana, algumas delas ressoando também imagens
que costumam ser associadas ao próprio ser brasileiro, inclusive por nossa
historiografia, para, tomando as obras literárias citadas, tratar mais detidamente
. da.temática proposta para esse texto, que articula conceitos que aparecem nas
reflexões tanto do filósofoafro-lusitano, como direta ouindiretamente constituem
esta literatura, como: as noções de trauma; esquecimento, história, memória,
e articulandotodos esses aspectos à reflexão sobre os próprios usos dados ao
passado nessas sociedades e nesses textos, que inegavelmente guardaminterface

223. Para a discussão psicanalítica da noção de trauma ver: FERENCZI, Sandor. Diário Clínico.
São Paulo: Martins Fontes, 1990.
,TEC'ELÃO DOSTEMPOS

com arealidade brasileira. 'O · que pretendo interrogar é até que ponto essa
,,recorrência dôtoposda:'.cegueira,,deuma,cegueirabranca,. de wna·dificuldade
de enxergartrazida pelo excesso declaridade, essa dificuldadeemvercores que
aparecetanto noromancedeSaramago, comonos de José Eduardo Agualusa
eMia Coutonão seriamexpressões literárias daquilo que o filósofo José Gil
chamadedificuldade de inscrição? Até que ponto essa literatura que buscafalar
.darealJdádeconteinporânea'de:cadaum·de seuspaíses não teria encontrado,um
problema comum,talvez causadopelo.passado tambémpartilhado na colonização
porcolonizadorese colonizados,que seria essa dificuldade de inscrever histórica
e psiquicamente:aosacontecimerttos que esta relação colonial deu origem?Não
seria essaliteratura praticada tanto na antiga metrópole quanto nas,· antigas
colónias, marcadaspor uma constante reflexão emtorno dopassado, em torno
dosacontecimentos passados e presentes, tentativas· de inscrever artisticamente
estarealidade,. superando, assim, o silêncioproduzido.pelo.trauma representado
.pelos,processos de colonização, descolonização, •independência e formação
dasnovas nacionalidades? Essa literatura não seria a tentativa de superar e, ao
mesmotempo, formas de·constatat e inscrevera,presença do branco psíquico;-do
nêv:oeiro;da;sombrabranca de quefalaGil, no interior dessas sociedades? Não
representariamessas obras:dadas formas de uso do passado.quevisamtratar dos
· trallmas·eésquedmentQsproduzidos.pelaexperiência·colonialdas populações da
metrópole e das cólôrtias? Diartte rdessas obras,gostaria de interrogar-sobre que
usos;são.feitos- do passádo.e-como .esses usos.representam a tomadade posição
diante darealidadede seus países, por partede autores, quase. sempre gerados
fisicamenfoêformados culturale educacionalmente, inclusive linguisticamente
, nas-várias:situaçõesde embarâlhamentó; hibridismo,negociação, nomadismos e
destérritórializações,possibilitadâspelarealidàde·colonial,notadamente aquela
gestada nosmoldes:portugueses, onde nunca houve a-segregação racial oficial
1
1
.e.onde;a,formação de elites inestiças,-indusive com acesso acargos tanto nas
,colônias'.como:nametrópolefoi constante. Esses homens, àsvezes dilacerados
entreuniversosculturaisdiversos, como a sua tribo nomeiorural, a cidade
colonial e a cidade dametrópole, divididos entre.o que nomeiam de suastradições
culturais,as mestiçagens culturais promovidas. pela colonização e os influxos
de modernidade e cosmopolitismo vindos da Europa, tornam-se escritores que
parecem·comungar com a mesma'preocupação que.pareceterisido constante na
produçãoliterária ehistoriográfica da metrópole: a·questão das identidades, sejam
elasétnicas,de género e,principalmente, nacionais.Aquelesque Portugalnomeava
deintegrados, queeramosdescendentes de portugueses; mesmo mestiços, e •os
-:negros ,i:friçanos.açulturados que·viviam em,suas .colônias; ·que em casos corno
odeMoçambique,nãopassavam de5%dapopulaçãoautóctone, foram osque
deramorigem a futura elite dirigente destes países-quando·de suas independências.
:Indusive;deles é que saem.os grandes nomes da produção literária local, sendo,
portanto, homens que se formaramneste entre-lugar de africano europeizado, de
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 171

negro branqueado, sendo, portanto, compreensível que essarealidade traumática


coloque para eles a questão da identidade seja coletiva, nacional, seja individual,
étnica, geracional, de gênero, como um tema de reflexão premente.
Neste texto, irei trabalhar inicialmente apenas com o livro de José Eduardo
Agualusa, O Vendedor de Passados. De sobrenome bastante poético, o autor, no
entanto, não é apenas, como este afirma, filho de águas lusas. Ele, poder-se-ia
dizer, é um crioulo, identidade ou exemplo de identidade problema que ele
gosta de assumir e representar em seus livros, pois sua famíliatem ascendências
portuguesas pelo lado paterno, brasileiras e angolanas pelo lado-materno e,
mesmodentro de Angola, está presente em váriasregiões, embora tenha-nascido
no planalto central· do país, na província de Huambo. Estudou agricultura e
silvicultura em Lisboa, já morou em Olinda e Rio de Janeiro, e divideseutempo
entre Luanda, Lisboa e viagens ao Brasil, o que faz da sualiteratura, inclusive
no quediz respeito à linguagem que utiliza, uma espécie de mestiçagem dos
diversos falares da língua portuguesa: sua obra seria uma representação da
.lusofonia. Agualusa, que nasceu em 1960, estava com pouco menos de l4 anos
quando-explodiu a guerra pela independência de seu país. Ele se tornouadulto
presenciando as várias matanças que os vários episódios e os vários momentos
daguerra civil em Angola proporcionaram. Amiséria da população angolana; as
atrocidades cometidas pelas diferentes facções que lutavampelo poder no país,
inclusive no interior do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA),
que controla politicamente o país desde a independência, a corrupção endêmica,
sãotemas permanentes em seus escritos: Mas o que quero privilegiar aqui é como
Agualusa aborda o passado, que usos faz dele e, ao mesmo tempo, que usos do
passado ele atribui à população angolana que viveria não apenas em constante
busca do que· seriam suas tradições anteriores à chegada dos portugueses, em
nome das quais o Estado angolano investe na produção deeventos e atividades
dememória, mas também em busca do passado tanto da época da colonização
quanto da época mais recente, após a independência, quase sempre sonegados ou
:desvirtuados pelas intensas lutas políticas, ideológicas e militares que dividiram
o país e pela censura constante feita pelo regime colonial ou por aquelesurgido
com a independência. Contraditoriamente, este afã em busca do passado parece
testemunhar a ocorrência entre os angolanos daquilo que o filósofo José Gil
chama de-sombra branca ou de não-inscrição; ou seja, essa frenética busca pelo
passado parece revelar como este foi sendo vítima de constantes esquecimentos,
coletivos, individuais e até oficiais, como tende a denunciar o autor em suas
obras. O tema da memória, constantemente retomado pelos seus conterrâneos
epelas obras do escritor, segundo ele mesmo, demonstra a enorme necessidade
que seus patrícios teriam do que chama de mentira necessária; ou seja, a ideia
dapertença a um passado comum.
No livro aqui tratado, o personagem principal Félix Ventura, um negro
albino, é significativamente um vendedor de passados, um alfarrabista, que
172 TECELÃO DOS TEMPOS

herdouumaenormequantidade de escritos e livros de seu pai, e que ganha avida


vendendo para seus dientes uma história ·de vida, uma biografia, criando uma
genealogianobiliárquicapara quem o contrata. Seus clientes são membros da
nova elite angolana, daburguesia ascendente, que têm um futuro promissormas
falta-lhes um passado digno e que, emmuitos casos, não seja comprometedor.
Seriamempresários, ministros, fazendeiros, camanguistas, generais em busca
de ancestraisilustres, nomes que ressoem nobreza e cultura. Muitos destes
personagens, envolvidos com o passado colonial ou em crimes cometidos na luta
pela independência e nas várias guerras que a·sucederam procuravam.·limpar
o seu passado, procuravam, inclusive,árvores genealógicas que os .levassem a
descenderde heróis nacionais, ·sererri vistos como legítimos angolanos, tendo
como tiaslegítimas~bassanganas, avôs com o porteilustre de um Machado de
Assis, de um Cruz e Sousa, de um Alexandre Dumas. Ele próprio se nomeia
de-vendedor de sonhos, embora nacidadefosse conhecido como traficante de
memórias,já quevendiaaos clientes o passado que sonhavam para si, entregando
a eles amarelados documentos, fotografias em cor sépia de avôs, bisavôs, de
senhoras dotempoantigo, reportagens-de velhosjornais atestando a existência
daquelafamília e suas ações embenefício do país, há bastante tempo.
Olivro é narradopeloestranho companheiro de morada de Félix Ventura,
umalagartixa de parede, uma osga chamada Eulálio, que já fora humano em
-outras encarnações, que já tivera,portanto, um passado humano, com o qual
sonhaquandocai anoite, sonhos queagitam a sua vida e lhe retiram do tédio da
condiçãoatual, talvez para indiciar que ter memória seria um atributo que nos
tornahumanos,queindicia anossa própria humanidade. Este caráter ambíguo
e misterioso de Eulália, que ressaltaria o que no humano existe de animal, esta
indefinição defronteiras e, portanto,de identidade entre o homem e a natureza,
que por vezes queremos -ignorar, aparece- como uma temática recorrente na
literatura africana chamada· de pós-colonial. Nesta literatura, constantemente
a história e aJantasiase misturam-sem que as fronteiras entre elas sejam bem
• nítidas; o factual e o imaginário se entrelaçam, assim como aquilo que seria da
ordemdo racional e do irracional, aquilo que para aliteratura latino-americana
foi chamado derealismo-mágico.Através desse personagem, o autor introduz
também outro elementomarcante nessa produção literária que é o exercício
constanteda reflexãosobre o próprio ato de narrar, sobre as suasconsequências;
ou seja,oexercícioda meta-narrativa. Há num livro que é uma narrativa sobre
umpassado,uma reflexão sobre o próprio caráter criativo - do ato de narrar o
passado, sobrecomo o passado é inventado narrativamente, como ele é, inclusive,
documentado, sustentadoporindícios,como ahistória de uma vida se inicia
pelaescolhadeumnome epelo articularem tornodele de uma memória, de
um conjunto de eventose rastros que configurama sua trajetória no tempo.
EmboraEulálio sejaum animal,seu olhar eatéoseu riso são humanos, é ele que
acompanhao desenrolar da tramadoromance, quea entremeia com a narrativa
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 173

de suas próprias memórias, com a narrativa do seu passado humano que retorna
em flashes quando algum evento o convoca.
A-trama se inicia coma chegada deum estrangeiro à casa de Félix Ventura
para comprar não apenas um passado, mas toda sua documentação falsificada.
Depois de titubear diante do novo encargo, o de falsário, Félix Ventura. lhe
atribui um nome, José Buchmann, e todo um passado de descendente de
um avô pertencente a um grupo de emigrados bôeres, que teriam vindo se
fixar- na província de Huíla, no sul do país, para criar gado e cultivar a terra
e aí teria conhecido e casado com uma descendente de colonos madeirenses,
Marta Medeiros, com a qual teria gerado dois filhos, o mais novo, Mateus, teria
casado com uma artista americana, a pintora Eva Miller, com quem tivera esse
único filho. Ainda lhe entrega toda a documentação solicitada: um bilhete
de identidade, um passaporte, uma carta de condução, onde constava ser ele
natural da vila de São Pedro da Chibia, ter 52 anos e ser fotógrafo profissional.
Acompanhando essa documentação, uma pasta com várias fotografas. Numa
delas, bastante gasta, via-se um homem enorme, com umar absorto, montado
num boi-cavalo, seria Cornélio Buchmann, o avô; noutra, um casal abraçado
às margens do rio Chimpumpunhime seriam seus pais. Vai então inventando
uma narrativa para o passado daquele homem que recém batizara, articulando,
assim como fazemos nós historiadores, uma narrativa com objeto e materiais
que servem como documento ou testemunho, como, diriam alguns de nós,
como evidências ou como provas da realidade; da veracidade daquele passado
que era narrado:

Devia ter sido, José, então com onze anos, a fixar aquele-instante. Mostrou-
- lhe um antigo número da Vogue com uma reportagem sobre caça grossa na
África Austral. O artigo reproduzia uma aquarela com uma cena da vida
selvagem - elefantes banhando-se numa lagoa - assinada por-Eva Miller.
Poucos meses depois daquela foto, o rio correndo sereno para seu destino,
·_ o capim alto em meio à tarde solene, Eva partiu para a cidade do Cabo,
numa viagem que deveria durar um mês, e nunca mais regressou. Mateus
Buchmann escreveu a amigos comuns na África do Sul, pedindo notícias
da mulher, e como nada conseguisse, confiou ao filho aum empregado,um
velho pistoleiro cego e foLà procura dela.224

Neste passo, Félix Ventura cessa a narrativa e deixa aberta o restante da


trama. Qual não é sua surpresa, ao saber pelo próprio José Buchmann, que ele
deu continuidade à procura que seu pai iniciara pelo paradeiro de sua mãe, o
que ó levou até a cidade do Cabo, depois a cidade de NovaYork, onde encontrou
não só uma Eva Miller, queteria morado nestas duas cidades, como encontrara

224. AGUALUSA, José Eduardo. Op. Cit. p. 42.


174 TECELÃO DOS TEMPOS

nacidade africanaaquarelas por elaassinadas e o anúncio de sua morte. Na


cidade americana, chegaraaté a visitar-o apartamento cheio de espelhos onde
teria levado uma vida solitária; ou seja, a -identidade ,fictícia nãosó de José
Buchmann, masdasuamãe, vai ganhando contornos de veracidade. O autor
parecequererdizerque as fronteiras entre a ficção e arealidade, quando setrata
de passado, não sãomuito nítidas.Mas o quex:hama mais atenção é a própria
busca empreendida por Buchmann em torno de certificar-se da veracidade de
umpassado que deantemão sabe ser uma invenção. A.necessidade.de.acreditar
·n:este passado inventado contrasta com o seu silêncio sobre o próprio passado
sobre o qualse recusa afalardesde oinício.
Sóquando. no final dó livro, -esse passado é revelado, só-quando toda a
violência e dramaticidade dele vêmà tona, por mero acaso, é que esse silêncio
em torno dele e a buscapor substituí-lo por outro fará sentido. Esse passado
traumático; que é obliterado, que se procura esquecer,·que sobre ele sequer se
falaparaquenão venhase inscrever por insuportável.que é; contraditoriamente,
é eleque dá origema uma proliferação de relatos sobre o passado, que de tão
verossímeis terminampor vir ocupar olugardaquele passado que efetivamente
ocorreu. Esses passados suplementares, esses passados fictícios, sejamaqueles da
literatura, sejamaqueles das 'memórias; sejam aqueles da historiografia oficial,
visam ·suplementar o vazio deixado por passados que, de tão traumáticos, não
se •consegue ounão sepode contar, não se pode inscrever nas consciências
ou mesmo no inconsciente dos indivíduos. Assim como essas narrativas vêm
,preencher o brancodasfolhas de papel, vêmtambém preencher o branco psíquico
ou histórico, como diria José Gil, que e caráter traumático da história de Angola
produziu nas·consdências e·sensiõilidades de seus habitantes. Inventam-semuitas
históriascoletivas e iridividuais,,:algumas tão semelhantes à realidade que, por
absurdas que sejam,elas passam a se realizar, a ser a própria realidade.
Um·exemplodisso seria o. livro de memórias que Félix Ventura escrevera
para umMinistro de Estado, significativamente intitulado de A Vida Verdadeira
deum Combatente, cuja publicação prometia dar outra consistência a História
do país, servindode referência para· futuras obras que tratassem da luta de
libertação nacional. Embora ele tivesse sido, nos anos 1970, apenas baterista
da banda de rockOsInomináveis - nome bastante sugestivo em· um livro que
'lida com. o .caráter. artificial. das identidades -, estivesse mais interessado em
mulheres de que em política, tivesse fugido para Portugal antes do começo da
guerrapela independênciae aívividona pele do Mestre Marimba, curando mau
olhado, inveja, doenças da alma, garantindosucesso no amor e nos negócios a
quem com ele se consultasse, notadamente às·mulheres,que não saíam de seu
consultório e o cobriam de-presentes, é ele queakança enorme sucesso com este
negócio e retornarico aAngola, onde adquire uma rede de padarias, Padarias
União Marimba. Alçado à vida pública, ao achegar-se a algumas estruturas de
.poder para legalizar·seus negócios, em pouco tempo já frequentavà casas de
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 175

ministros e generais, sendo nomeado dois anos depois Secretário de Estado para
Transparência Económica e Combate à Corrupção e, posteriormente,Ministro
da Panificação e Laticínios. Em sua verdadeira história de um combatente,
no entanto, ele contará outra história que lhe. daria a imagem de um patriota
exemplar, de um verdadeiro descendente do sangue da família de Salvador
Correia Sá e Benevides:

Para a História ficará a verdade que Félix fez o Ministro contar: em mil
novecentos e setenta e cinco, desiludido com o rumo dos acontecimentos; e
porque se recusava a participar de uma guerra fratricida, o Ministro exilou-se
em Portugal. Inspirado nos ensinamentos doavó paterno, umhomemsábio,
profundo conhecedor das ervas medicinais de Angola, fundou emLisboa
uma clínica dedicada às medicinas alternativas africanas. Regressou à pátria,
em mil novecentos e noventa, finda-a guerra civil, com o firme propósito de
contribuir para a reconstrução do país; Queria dar ao povo o pão nosso de
cada dia. E foi isso que fez.7é

'Mas a essas memórias propositadamente adulteradas com objetivos


políticos, à história oficialfabricada para legitimar aqueles que estão no poder,
indiciadas no livro, ainda, pela suspeita de que o presidente em exercíciofosse
um sósia, um duplo do verdadeiro, memórias e histórias quetambémlevam ao
esquecimento e apagamento do passado efetivamente acontecido; vêm sesomar
aquelas memórias e aquela história não-inscritas e não escritas; sequer ditas ou
admitidas pelo trauma, pelo medo, pela dor. Exemplo desse tipo de memória
eraaquela que carregava consigo o homem agora nomeado de José Buchmann
que, aofinal da narrativa do romance, tem sua verdadeira identidade revelada
por um ex-agente de Segurança do Estado, agora transformado em ex-gente,
-- um mendigo, que mora nos esgotos da cidade, onde ainda guarda as fichas de
todos aqueles a quem, em sua época, espionara para o regime. Vestindo uma
agora suja e esfarrapada camiseta do Partido Comunista da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas, Edmundo Barata dos Reis é a própria encarnação da
débâcle da utopia socialista e do socialismo real, além do próprio declínio dos
ideais comunistas que sustentaram o governo encabeçado por Agostinho Neto,
oVelho. José Buchmann era, na verdade, Pedro Gouveia, pai de Angela Lúcia,
também fotógrafa e; por coincidência, amante de Félix Ventura. Pai e filha há
muitos anos não se encontravam e se reconhecem assim que se veem na casa
doalfarrabista. Pedro Gouveia participara da tentativa de golpe de Estado,
capitaneada pelo próprio Ministro doInterior do governo Agostinho Neto; Nito
Alves, no dia 27 de maio de 1977, que ficou conhecido como Fraccionismo,
ao qual se seguiu uma dura repressão que levou a execução de quase 15 mil

225. AGUALUSA, José Eduardo. Op. Cit. p. 141.


176 TECELÃO DOS. TEMPOS

pessoas.?Quando Pedro Gouveia descobre naquele mendigo que encontrara


por acaso nasruasdeLuanda, o homem ·que torturou a sua mulher, a também
pintora e poetisa Marta Marinho, até que ela desse à luz prematuramente à
sua filha e depoismorresse, e encontraem seu esconderijo as fichas da polícia
"política, o persegue como revólver empunho até a casa de Félix Ventura, onde
ele própriojá o havia levado. É quando, pressionado o ex-agente de segurança,
narra os seguintes acontecimentos:

- Aconteceu hámuito tempo,não é verdade? No tempo das lutas. -Aponta


para Angela. -Acho que a menina ainda nem era nascida. A Revolução estava
·empérigo. Um bando de miúdos, uma-cambada de pequenos.burgueses
irresponsáveis; tentou tomar-o poder pelaJorça. Tivemos de ser duros. Não
perderemostempo comjulgamentos, disse o Velho em seu discurso à Nação, e
nãoperdemos(estafrase realmente foiditapor Agostinho Neto num discurso
através dos,meios de comunicação) ... Este tipo, o Gouveia, julgou que lá por
ter nascido em Lisboa cons.eguia escapar. Telefonou ao· cônsul de Portugal,
senhor cônsul, sou português,estou escondido em tal parte, venha salvar-me
por favor, e já: agora minha mulher, que épreta mas espera um filho meu.
Ah!Ah! Sabeo que fez o cônsul português? Foi buscá-los os dois e a seguir
entregou-os em minhas mãos. Ah! Ah!Agradeci muito ao cônsul português,
disse-lhe, o camarada é umverdadeiro revolucionário (lembrando que
Portugaljá viviaumregime nascido da Revolução dos Cravos), .... e depois
fuiinterrogar a rapariga; Ela aguentou dois dias. Às tantas pariu, ali mesmo,
umamenininha, assim; deste tamanho, sangue, sangue, quando penso nisso
o quevejo ésangue. O Mabeco, um:mulato lá do Sul ... cortou o cordão
com um canivete e depois acendeu o-cigarro e .começou a torturar a bebê,
queimando-a nas costas e no peito. Sangue, pópilas!, sangue pra caralho, a
rapariga, a talMarta, com .dois olhos quepareciamluas, custa-me sonhá-la,
· di:bebê,aos gritos, o cheiro de carne·queimada. Ainda hoje, quando deito e
adormeço,sinto aquele cheiro, ouço o choro da criança..227

O que o ex-torturador não sabia équea menina que ele pensava não ter
nascido,na época do ocorrido, era na verdade·a bebê torturada por Mabeco,
Ângela Lúcia; a filha de Pedro e Marta, que estática ouvia a narrativa medonha
de comofora violentada ainda criança, violência que deixara cicatrizes que
aindacarregava no corpo e naalma. Diante da incapacidade do pai de puxar o
gatilho emataro responsável pelamorte de sua mãe,Angela arrebata-lhe a arma
e disparasemdó contra o ex-agentedapolícia.

226. Ver: FUSO, José. Angola, 27 anosdepois... Golpefraccionista. In: http://www.angonoticias.


com/full_headlines.php?id=5480. Acesso em 15 de outubro de 2010.
227. AGUALUSA, José Eduardo. Op. Cit. p. 167-16_8.
DURVAL MUNLZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 177

Traumas como esse não podem ser esquecidos, não podem passar pela
não-inscrição, porque com isso a sombra branca, a doença da cegueira social só
tenderá a crescer, como parece nos dizer os livros de Saramago, Agualusa e Mia
Couto. Os historiadores, embora não deixem de ser, hoje, vendedores de passado,
quase sempre, a preço vil, devem fazê-lo não a serviço do branqueamento,
da limpeza, da assepsia do passado, como vemos recorrente acontecer na
mídia, nos meios de comunicação de massa. Estamos assistindo, nestes dias
que correm, à aposta na amnésia social, na capacidade que parece infinda da
sociedade brasileira em esquecer, em não inscrever na consciência coletiva, no
espaço público, nas memórias, os fatos e feitos pouco abonadores de nossas
elites dirigentes. Os historiadores devem ser agentes do luto social, aqueles que
expõem o sangue derramado e o cheiro de carne calcinada para que elesclamem
·novamente contra a injustiça e o crime que os produziram. A história deve ser
o trabalho com o trauma para que ele deixe de alimentar a paralisia e o branco
psíquico e histórico, e possa levar à ação, à criação, à invenção, à afirmação da
vida naquilo que ela tem de beleza. Talvez por isso todos os personagens do livro
de Agualusa manejem uma dada técnica de representação ou uma linguagem,
através das quais se podem criar novos mundos, novas realidades, novas formas
para o mundo e para a vida. A fotografia, a pintura, a capacidade de narrar,
de escrever aparecem como possibilidades de simulação de novas realidades,
inclusive para o passado, realidades que alimentem o desejo de vida e não o desejo
reativo de morte. Só a criação, só a afirmação através da arte, do conhecimento,
da linguagem faz dos homens humanos, faz com que se inscrevam e escrevam
o mundo e a si mesmos nele. Talvez ele aponte uma· maneira de fazer história
distinta daquela representada pela guerra, pelarevolução, pelos embates políticos
e pelas disputas territoriais que muito infelicitaram o século XX e que foram
responsáveis pela morte de mais de 500 mil pessoas nas últimas décadas da
história angolana. Talvez, como Nietzsche, esteja nos alertando para os perigos
da história para a vida.
Capítulo 9

A necessária presença do outro, mas qual


outro?: reflexões acerca das relações entre
história, memória e comemoração.

A palavra comemoração vem do latim commemoratione, declinação de


commemoratio, que remete, por sua vez, ao verbo memorare, que significa trazer
à memória, fazer recordar, lembrar228• A palavra comemoração tem, no entanto,
um sentido quase imperativo, ou seja, o lembrar, o recordarganha aí um sentido
de necessidade, quase de obrigação. A comemoração seria a necessária evocação
de uma memória, ela estaria ligada a fatos, a atos e a pessoas memoráveis,
atos ou pessoas não só dignos de ser trazidos à lembrança, mas que deveriam
ser lembrados, que não poderiam ou não podem deixar de ser recordados. A
ligação entre comemorar e lembrar, entre comemoração e memória, é não só de
natureza etimológica, como de natureza política ou mesmo de natureza ética,
desde a própria formulação da palavra na antiguidade. A comemoração está
relacionada diretamente com os usos sociais, culturais e políticos da memória,
é uma das modalidades não só de sua veiculação, mas de sua elaboração, de sua
produção. O ato comemorativo não só se constitui num momento em que se
instaura um dever de memória, não só se constitui como um momento em que
a lembrança é voluntariamente convocada, mas também se constitui como um
momento privilegiado para a proliferação· de memórias, para a elaboração de
versões daquilo ou daquele a que se comemora.
O tema da comemoração, os sentidos sociais e políticos que as comemorações
podem adquirir, já vêm sendo tratados com certa frequência pelos historiadores.
Outra preocupação de certo modo já suficientemente contemplada em nossa
área é a da relação entre a própria produção historiográfica e as efemérides ou
datas comemorativas, também chamadas de datas históricas. O papel que o
discurso historiográfico deve desempenhar perante as memórias e diante das

228. CUNHA, António Geraldo. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4 ed. Rio de
Janeiro: Lexicon, 2010, p. 164.
180 TECELÃO DOS TEMPOS

datas· ou eventos definidos como memoráveis e comemoráveis tem sido objeto


de:produção acadêmica com certa regularidade. O primeiro passo importante
que sedeu nestedebatefoi o da própria separação entre as noções de história e
memória, foi avançarnosentido de estabelecer distinções entre o papel social e
os usos dasmemórias e o papel social e usos da história?". Enquanto o discurso
damemóriatende a estabelecer o sentido de continuidade, de identidade entre
passado e presente,pelo menos quando as memórias não sãovítimas de traumas,
o discursoda história temsocialmente atarefa deestabeleceras descontinuidades,
as· diferenças entre essas temporalidades. Enquanto as memórias estão mais
diretamente ligadas às experiências, às vivências individuais e coletivas, a
história- é um discurso que deve olhar com senso crítico e distanciamento
para essas experiências, para essas vivências, mesmo que não possa estar delas
completamente alijada.Enquanto a memória alimenta a possibilidade da volta
dealgo quejá passou, mesmo que saibamos ser impossível essa volta, a história
não cessa deafirmar o carátermutável, passageiro das experiências e das relações
sociais. Ahistória é umdiscurso que obedece a regras definidas pelas instituições
historiadoras, obedece a uma disciplina, expressa um lugar profissional. A:
história não respeita as memórias, não as reproduz simplesmente, mas as viola,
as ressignifica, as reelabora a partir dessas regras que lhes são estranhas?3o,
Nesse seritido, se· consideramos que as comemorações estariam
relacionadas ao campo da memória, seriam uma das maneiras da produção
e reelaboração dasmemórias, a história só pode ter, em relação ao ato
comemorativo, a mesma postura de distanciamento crítico, de aproximação
diferenciadora que mantém em relação às memórias. Embora não possamos
negarqueas efemérides, que as datas comemorativas têm servido de incentivo
pata a produçãohistoriográfica, que emtorno de dadas comemorações se adensa
a produção- de textos, de livros, a realização de eventos acadêmicos por parte
dacomunidade de historiadores, o que se espera desta produção é que tome a
comemoração como oportunidade para por em questão os próprios discursos e
práticas que assustentam, legitimam e constituem. O historiador, quase sempre,
viriaestragar o prazer da festa, viria azedar o bolo, colocar defeitos na empada,
envenenar o repasto dos convivas que partilhamda ocasião solene. O historiador
teráque lidar criticamente, principalmente, comoutro sentido que está associado
àideia de comemoração, ou seja; comemoração como celebração, como' ato
solene, sentido que aremete para o campo do sagrado; que tende a fazer da
comemoração um ato de sacralização. Seestamos de acordo que um dos usos

229. Ver: CATROGA,Fernando. Memória, história ehistoriografia. Rio de Janeiro: FGV, 2016;LE
GOFF, Jacques.História e memória. Lisboa: Edições 70, 2000; ABREU, Regina. Afabricação
do imortal. RiodeJaneiro:Rocco, 1996.
230. Ver: CERTEAU,Michel de. A escrita da história.2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2016;ALBUQUERQUEJR., Durval Muniz. História: a arte deinventar o passado. 2 ed.
Curitiba: Prismas, 2017.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 181

privilegiados da história em nosso tempo é justamente aquele que faz dela um


discurso dessacralizador, um discurso laicizador, um discurso que abriu mão da
épica como modelo narrativo e que tende, cada vez mais, a ir buscarna sátira
seu modelo de construção de enredo e de inteligibilidade daquilo que narra,
torna-se um contrassenso uma comemoração satírica, daí porque o discurso do
humor, da caricatura, da paródia, da ironia não se coaduna com o discurso da
comemoração??', A comemoração tende, justamente, a apagar o senso crítico.
A comemoração convoca a adesão aos sentidos, aos discursos, ao imaginário,
à simbologia que a justifica e a constitui. A comemoração convoca o discurso
épico, o discurso que busca heroificar, quando a historiografia, em nossos
dias, deixou de buscar ou criar heróis, ou pelo menos, busca agoraheroificar
personagens pertencentes às camadas populares, àqueles anteriormente dela
excluídos como sujeitos: Mennochio não me deixa ser chamado de Pinóquio". A
comemoração tem um sentido religioso, no sentido que convoca ao agrupamento,
a formação de certa harmonia ou certa disposição coletiva em torno de dados
enunciados e de dados rituais. As comemorações têm, por isso mesmo, uma
enorme importância na construção da coesão social, elas são nucleares na
constituição, veiculação e legitimação daquilo que Benedict Anderson chamou
de comunidades imaginadas, como a nação, a região, a localidade233• Nesse
contexto, o discurso historiográfico deve soar como uma música desafinada,
como um discurso que vem fazer desafinar o coro dos-contentes. Creio haver
consenso entre os historiadores de que o papel a ser exercido pela historiografia
quando das .comemorações é o de problematizar as versões oficiais; os discursos
e práticas que as sustentam e reproduzem, é procurar evidenciaras estratégias
políticas e discursivas que sustentam uma dada comemoração, que interesses
representa aquilo que se comemora e com que interesses se comemora, sempre
trazendo a público a pergunta incômoda: o que se comemora é realmente digno
de comemoração? Há realmente motivos socialmente relevantes para que sefaça
dada comemoração?
A comemoração, desde a Antiguidade, é tanto da ordem do ritual cívico-
político, como da ordem do ritual mundano ou familiar, da ordem da festa. A
comemoração pode, portanto, entrelaçar e extrapolar a separação moderna entre
o público e o privado. Embora haja comemorações preferencialmente do âmbito
doméstico ou privado, elas costumam ganhar um caráter público. Ao mesmo
tempo em que a comemoração remete a uma dimensão religiosa, sagrada, em
que possui uma dimensão de culto, de celebração de algo ou alguém memorável,

231. Ver: WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX São Paulo:
EDUSP, 1992.
232. Referência ao personagem estudado pelo historiador Carlo Ginzburg ver: GINZBURG,
Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
233. Ver: ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras,
2008.
182 • TECELÃO .DOS TEMPOS

algo ou alguém que não sepode ou não se deve esquecer, que traz uma dada
memória ao presente para ser objetodereinscrição, de reinvenção consagradora,
elatambém remete a uma dimensãodessacralizadora, profanadora, na.medida
emque se convoca a festejar, Sabemos que a própria origem etimológica da
palavrafesta, do latimfestivus, contemplava essa dupla acepção, essa tensão
entreoreligioso e o pagão?". Festa podia tanto ser uma celebração de caráter
religioso, como uma celebração visando demonstrar alegria pelas colheitas ou
por-dados episódios da vida-familiar como o nascimento e o matrimônio. Se, em
sua dimensão religiosa, o comemorar e o festejar remetem a demonstração de
reverência, derespeito, dereconhecimento àquilo ou àquele que se comemora,
• dando um caráter de seriedade e de atenção concentrada ao.·evento comemorativo,
a 'dimensão profana e-pagã do comemorar, do-festejar, remete à demonstração e
exteriorização daalegria, do contentamento, a criação de situações de .riso e de
diversão;ouseja, quando aatençãose desvia, quando a concentração se dispersa,
quando o sentido eos sentidos se alteram.Essa dimensão profanaparece sempre
estarpresente no ato comemorativo, constituindo-se em seu ·devir perigoso.
Todacomemoração pode extrapolar os limites, sair do controle, pode romper
as fronteiras, pode transbordar. Embora a festa seja também da ordem do ritual,
aocontráriodos rituais cívicos oureligiosos, a festa está mais aberta·e.sujeita à
criatividade, àinvenção, a atravessamentos,a extemporaneidades235•
Creio que esses-aspectos da relação entrehistória, memória e comemorações
dequetrateiatéagora,não se constituem emnovidades para a comunidade dos
.historiadores.'Retornando; no entanto, à etimologia da palavra comemorações,
encontramos outro sentido a ela associado, que tem. passado despercebido e
sobre oquaLcentrarei minhas reflexões daqui·para diante, neste texto, visando
contribuirpara refletir sobre o problema do comemorar de um ângulo ainda
. · pouco ,abordado. Compõe as palavras comemoração e comemorar a· raiz
latinacomes, que significa companheiro; ou seja, a comemoração não é apenas
trazer à memória, fazer ·recordar e lembrar algo ou alguém,"é fazê-lo com um
companheiro, com alguém. A comemoração é, de saída; um ato coletivo, urna
ação que só se pode realizaracompanhado, uma açãoque convoca e exige a
presençade um outro: Nesse-sentido, não há- a possibilidade de se comemorar
sozinho, nãohácomemoração naausência de um outro, indispensável para
•. que.ela ocorra. Acomemoraçãoexigea participação coletiva, embora em época
deintenso individualismo e narcisismo, como éa nossa, em que- a identidade
individual se intensifica comonunca,diferentemente do sentido necessariamente
coletivo das identidades nas sociedades antigas onde surgiu a palavra, possa

234. CUNHA,António Geraldo. Op.Cit., p. 290.


235. MAFRA, Rennan.Entre oespetáculo,afesta e a argumentação. Belo Horizonte: Autêntica,
2008;MEYER,Marlise e MONTES,MariaLúcia.Redescobrindo o Brasil: afesta na política.
São Paulo: T. A.Queiróz, 1985.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 183

encontrar-se alguém com sua parede de somligado, de pé, num posto de


gasolina, bebendo cerveja, sozinho, visando comemorar uma vitória, também
personalíssima: o fato de ter finalmente comprado a sua Pajero Full.
Portanto, podemos nos perguntar: que consequências tempara a
relação entre história, memória e comemoração o fato de que esta. última
seja preferencialmente uma atividade coletiva, uma-atividade que implica a
presença do outro? Costumamos, por exemplo, pensar a atividade da memória
e a própria faculdade da memória como apanágio do indivíduo. Costumamos
atribuir à memória um papel fundamental na construção e manutenção da
própria identidade individual. A historiografia que, pelo menos desde o pós-
segunda guerra mundial, descobriu as memórias, notadamente as memórias
orais, trouxe como uma de suas novidades o que seria o ressurgimento do
sujeito, em contraposição à e detrimento daquela historiografia que privilegiava
as estruturas, sujeito quase sempre encarnado por indivíduos, inclusive
retomando a ideia clássica presente na historiografia do dezenove do indivíduo
excepcional, singular, embora agora não mais pertencendo às elitessociais, mas
aos deserdados e marginalizados social e politicamente. No século XIX, muitas
comemorações de datas históricas e cívicas, aquelas instituídas e legitimadas
pelo Estado, que eram consideradas momentos privilegiados de celebração do
passado, da memória da nação, dos feitos do povo, que serviam, justamente,
de momentos obrigatórios de lembrança de dados eventos e personagensque
teriam contribuído para a construção e glória de dada nação, estavamcentrados
em algumas figuras e personagens individuais. Muitas dessascomemorações
serviam para monumentalizar dadas figuras de destaque, os heróis nacionais, os
gênios e benfeitores da pátria. Elas visavam tornar presente dado perfil heroico
que serviria de modelo de subjetividade para as novasgerações,para os homens
do presente.
Há nas comemorações do século XIX, e porque não-nas comemorações
atuais, uma certa tensão entre o fato de que comemorar é um atocoletivo e que,
muitas vezes, se articula em torno de uma figura individual,promovendo como
modelo de subjetividade esse existir solitário que, se levado ao extremo, impediria
o próprio ato comemorativo. Mas o que quero destacar é que, se levarmos em
conta esse sentido coletivo do comemorar teríamos; justamente,-dereconsiderar
essaprópria centralidade que o indivíduo tem quando se trata de pensar a noção
de memória. Para tratarmos da relação entre memória e comemoração, temos
que destacar e trazer à baila a dimensão coletiva das memórias, o fato de que as
memórias são construções sociais, são construções que se dão no diálogo entre os
indivíduos, entre as gerações, entre os diversos grupos sociais, entre as distintas
condições de gênero de etnia, de identidade etária etc. O ato comemorativo
não evoca apenas o disparate das memórias individuais, isto impossibilitaria a
comemoração. O ato de comemoração convoca a construção de uma memória
coletiva, requer o partilhamento coletivo de enunciados, imagens, concepções,
184 TECELAO DOS TEMPOS

fatos, personagens. Acomemoraçãose realiza justamente para vir a criar esse


sentido coletivo do lembrar. Comemora-se para que uma memória partilhada
coletivamentepossaganharcorpo e sentido. Por isso, costumam ser as instâncias
coletivas de distribuição de sentido, comooEstado, a Igreja, o sindicato, que
promovemascomemorações, que investemna construção dessa memória
sustentada por t:oletividades. A comemoração 'implica um estar junto que, nas
sociedades demassa como a nossa, só se torna·possível·pela atuação dos meios
de comunicação,com a veiculação da propaganda, com o chamamento oficial;
porisso mesmo, as memórias construídas pelas comemorações tendem a se
tornarem memórias oficiais, memórias estereotípicas, das quais desaparece a
dimensão crítica.
As memórias construídas pelas comemorações tenderão. para o heroico,
para o épico, tendem a ser inscritas; ·tendem a· materializar-se. através de
modelos narrativos adequados à afirmação do :caráter solene e sagrado daquilo
que é trazido à memória; que é recordado, que é lembrado. Como visam ser
partilhadas por, um coletivo; sustentadas por uma dada coletividade, por -um
·conjunto.depessoas,,asmemórias trazidas à bailapelas comemorações tendem a
construir e enfatizar.aquilo que seria-consensual, que promoveria o :apagamento
dasdiferenças e dissensões no interior do corpo social. Uma das motivações
.que leva, as comunidades humanas a comemorarem seria, justamente, este
papelagregador,construtor da coesão social que elas exerceriam.Para isso, as
memórias evocadas nas comemorações, embora costumem ser memórias de
dados grupos e setores da sociedade, seja um particular, um singular que, no
.entanto; tende aser universalizado. Esta éoutra importante marca das memórias
comemorativas: elasuniversalizamo que é um particular, elas tomam como
pertencente a todos.lembranças quese referema dadas classes, grupos; etnias,
·gênero·emparticular.Aatividade das instituições comemorativas é, justamente,
ade universalizar memórias.que pertencem a uma parcela da sociedade, quase
sempredeseus grupos dominantes;..tornando-as memórias de todos, :memórias
de umacomunidade imaginada.
No entanto, ofato de que o comemorar exige a presença de um outro, de
um companheiro, a presençaincontornável da:alteridade, faz da comemoração
uma oportunidadepara que também se explicitem os conflitos e contradições que
atravessamasociedade. Talvezsejaesse aspecto quefaz das comemorações um
objetodeinteresseparaos historiadores, queas coloca como campo privilegiado
deanálise por partedos historiadores que seinteressam- pelos processos de
fabricação,veiculação e utilização das memórias. Nas comemorações, costumam
explicitarem,;seastensões que atravessam uma dadasociedade, num dado tempo.
Sendo ummomento privilegiado para a construção de memórias ·coletivas,
momento privilegiado para quese faça oinvestimento na construção de um
discursohegemónico, umdiscursoque vindo de um particular se generalize
para o todo social,acomemoração será,por issomesmo, um momento intenso
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 185

de disputas, de lutas por transformar cada memória particular em. memória


coletiva. Na busca da construção de uma versão consagrada para dado evento
elou para a biografa de dado personagem, o momento da comemoração,
à data ou período comemorativo pode abrir uma quadra de discussões, de
enfrentamentos, de altercações, de disputas entre versões distintas,entrevisões
divergentes acerca daquilo que se comemora. Essas disputas em tomo do objeto
da comemoração, bem como as lutas que travamaqueles que querem se constituir
em sujeitos da comemoração, interessam de perto aos historiadores, constituem
matéria de interesse para a historiografia. A relação que deve ser-estabelecida
entre o historiador e os momentos comemorativos é, justamente, de atenção
para os ruídos de sentido, para as divergências enunciativas e políticas, para as
disputas pela hegemonia simbólica; política, econômica que ocorrem quando
das comemorações.
Podemos dizer que as comemorações, como rituais bons parapensar, incitam
o pensamento, como signos requerem interpretação, significação e sentido. O
historiador deve estar atento para os sentidos que se digladiam emtorno de uma
dada comemoração. Nem sempre aquilo que se comemora tem o mesmo sentido
para aqueles que participam da comemoração. O ato de comemorar, como toda
"atividade humana, está aberto à múltipla significação, convoca sentidos eabre a
possibilidade da divergência e da disputa; Se o comemorar exige um companheiro,
nem sempre os companheiros concordam, embora osentido originário da palavra
comes, enfatizasse esta dimensão da companhia e da camaradagem, notadamente
da camaradagem masculina, já que a sociedade romana pensava o espaço
público, espaço privilegiado das comemorações cívicas e políticas, dos grandes
desfiles militares, como um espaço masculino por excelência, sendo a amizade
masculina um sentimento privilegiado, os camaradas não deixam de divergir,
não deixam de entenderem o que se comemora; porque se comemora e para que
se comemora de forma diferente. O historiador das comemorações é, portanto,
aquele que se pergunta sobre os sentidos que teria uma dada comemoração em
dada época, que sentidos divergentes circularam acerca do que era comemorado,
é aquele que problematiza, torna problemático o objeto da comemoração, que o
disseca em seu processo de construção, mapeando os interesses convergentes e
divergentes que constituíram o processo de emergência de dada efeméride, de
dadoobjeto e sujeito a ser comemorado. O historiador é aquele que explicita
e tentacompreender o caráter agonístico que têm as comemorações. Elas se
constituem como momentos privilegiados de encenação da vida social, de
encenação dos laços sociais, quase sempre pensados como laços comunitários,
por isso mesmo, se constituem também como momentos privilegiados para a
observação das relações de poder, das contradições e tensões que também são
imanentes às relações sociais. As comemorações podem ser tomadas como
momentos privilegiados da dramaturgia do social, como momentos em que um
coletivo se encena para si mesmo para se constituir como tal. A comemoração
186 . TECELÃOJJOS TEMPOS

temsemprealgo deteatral, deexposição pública deumenredo, de uma narrativa


que seria,quasesempre, a narrativadaprópriaexistência da vidaemsociedade,
da vida coletiva emblematizada pelopartilhamento de dadas heranças, de dadas
memórias comuns. Umteatro ,onde se evoca a cena de um tempo contínuo a
uniro passadoao presentede uma dada comunidade imaginada.
Os historiadores das comemorações têm, justamente, que pôr em questão
'esse tempo contínuo, esse apagamento das descontinuidades temporais que
odiscurso comemorativo tende a fazer.:Nas comemorações; também _estão
presentes e se tonflitam; assim como se articulam, distintas temporalidades.
Acomemoração do final da Segunda Guerra.Mundial não terá o mesmo
sentido paraaqueleque esteve lá; que delaparticipou, que representa e.encarna
aquelatemporalidade e para aquele que só a conhece através :das narrativas
memótialísticas e históricas. No filmeRapsódia em agosta236; o cineasta japonês
AkiraKurosawa trata do conflito entre as memórias de distintas geraçõesde
japonesesacerca do bombardeio nuclear das cidades de.Hiroshima e Nagasaki.
Sendo oato de comemorar pertencente ao campo da memória, ele também
está sujeito à 'dialética entre o lembrare o esquecer que marca toda .atividade
memorialística. Quando das comemorações•não· apeRas há lembrança, há
também esquecimento. Ascomemorações só se tornam possíveis não apenas
porque oshomensrecordam, mas também porque os homens.-esquecem. O
esquecimento é imanenteao ato de lembrar e, portanto, ao ato de comemorar237•
O historiador tentará perscrutar aquilo que está sendo olvidado para que a
comemoração aconteça, por isso .tende a colocar água no chope ou no vinho
que embala a festa comemorativa. As comemorações dos quinhentos anos de
chegada dos portugueses às terras:americanas só foram possíveis porque·muitos
dos aspectos pouco dignos de comemoração desse evento, notadamente quando
.visúalizadosa•partirdos,valorese concepçõesvigentes em nossotempo, foram
esquecidos, foram,iridusive, ressignificados; dotados de novos sentidos. Sabemos
que o· discurso historiográfico foi um dospromútores destas ressignificações do
que seriao evento inaugural-de nossa história: Ahistoriografia dos anos trinta do
século passado,contribuiu·para que a violênciado processo decolonizaçãofosse
apagada,sendoa históriada nação significada apartirdo topos daharmonização,
daconciliação, doencontro dastrêsraçasformadoras. Mas,ao mesmo tempo,
sabemos que; quando dessascomemoraçõesiastensões e conflitos entre·as.várias
versões e interpretações-da-história do paísseexplicitaram deforma contundente.
O,augé.das,çomemorações, ·realizadas na cidade de Cabrália,nosulda Bahia, fez
• • explodirten·sões que atravessam a sociédaâe brasileira, desde tensões étnicas,até
tensõesdeclasse.O presidente darepública Fernando Henrique Cardoso, um
sociólogo partícipe da escolade sociologia paulista, um estudioso·das:relações

236. Rapsódia em agosto. Direção: Akira Kurosawa.MGM Distribuidora, 1991.


237. GAGNEBIN, Jean-Marie. Lembrarescrever, esquecer. São Paulo: Editora34, 2016.
DURVALMUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 187

escravistas, um dos formuladores dateoria da dependência, teve que desembarcar


nas solenidades a partir de um helicóptero, cercado por todo um aparato de
segurança, falar para uma plateia de escolhidos,de privilegiados, enquanto no
entorno da cidade, nas rodovias que davam acesso ao local da comemoração,
representantes de movimentos sociais, trabalhadores rurais sem terra, lideranças
indígenas, lideranças do movimento negro eram impedidos de comparecer às
comemorações, barrados da festa, com o uso de gás lacrimogêneo, cassetetes,
bombas de efeito moral, disparos com balasde borracha eincursões da cavalaria.
Enquanto isso, historiadores escreviam textos, davam entrevistas, promoviam
eventos em que o caráter excludente não só da sociedade brasileira, comotambém
das próprias versões da história do país, que era veiculada naquela oportunidade,
assim como das próprias. comemorações, da programação comemorativa feita
para celebrar a data, era explicitado. Ou seja; a comemoração dos quinhentos
anos do descobrimento do Brasil, que colocou em debate a própriaideia de
descobrimento, surgindo versões em que o conceito de invasão substituía
essanoção, serviram para encenar, talvez como nenhuma outra, as próprias
- contradições da sociedade brasileira. Desde a caravela que não conseguiu navegar,
que não conseguiu sair do lugar, até uma solenidade composta majoritariamente
por uma minoria de· pessoas pertencentes às. elites sociais, a maioria branca e
masculina, cercada por um forte aparato de forças repressivas, apavorada com
a presença de um grande contingente de pessoas das camadas trabalhadoras,
negras,indígenas, que eram vistas como ameaça e tratadas a pauladas epontapés,
aparece como. a dramatização das dissensões e dos conflitos que-atravessam o
tecido social do país e serviu para explicitar as próprias concepções políticas e
avisão do país e do povo que os grupos assentados no-poder de Estado naquele
momento partilhavam.
A comemoração, como um ritual, constitui uma narrativa, é atravessada
e constituída por um enredo; é uma forma de fazer ver e de dizer o passado.
A comemoração conta, dá a ver, põe em cena, torna visível, materializa-dadas
memórias, dadas versões e visões do passado. A comemoração é demiúrgica, ela
cria no próprio ato a realidade a que pretensamente se refere.Embora aponte
para um passado, para uma realidade que seria seu referente, a comemoração
cria; ne> presente, esse passado a que se refere e torna realidade aquilo sobre o
quefala. A comemoração, assim como a narrativa histórica, cria efeitos de real,
apoia-se em vestígios, em testemunhos, em outras narrativas 'que chegam do
passadopara construirversões verossímeissobre o que teria ocorrido, apropria-
se de e constrói monumentos, elabora e ressignifica documentos, visando
presentificar uma ausência, tornar tangível, imagens e enunciados vindos de
outros tempos??°, A comemoração tomada como uma narrativa é passível de

238. Ver: BARTHES, Roland. "O efeito dereal" In: Orumor dalíngua. 2 ed. São Paulo: Martins
Fontes,2004, p. 181-190
TECELÃO DOS.TEMPOS

leituras, podeser suporteparauma investigação hermenêutica, pode ser.tomada


como um discursodoqualse pode interrogar a sintaxe e a semântica. Pode-se
analisarosenunciados,imagens,símbolos, práticas rituais, performances_ que
compõem oevento comemorativo como elementos que constituem um texto,
que servem para inscrever e escrever dadas leituras dos eventos .e personagens.
Comemorar é dizer algo, é expressar uma mensagem, é, como vimos, partilhar
dàdas&,igriifi:cações.,Acomemóração postula tornar inequívoca, pública e aceita
umadadainterpretaçãodo que se passou.
Acomemoração é, por fim, um dos usos que se pode fazer do passado, é
uma das •modalidades de enunciação e de ritualização daquilo que se. costuma
chamarde cultura histórica;Acomemoraçãoapresenta dadasleituras·da história,
• se constitui, ela mesma, umadada formade sepensar e tratar o que seria a
• matériahistórica: ocarátertemporal de todas_ as coisas. As comemorações,
notadamente aquelas .que se voltam·para as chamadas datas ou efemér:ides
históricas,,'são sustentadas;,alimentadas.e, ao mesmotempo, produzem e
constroem dadas leituras da história, Ahistória,tal como costuma ser.praticada
quando das ·comemorações,ctende .à mo·dalidade que Nietzsche nomeou de
monumental.É uma história entendida ·como narrativa que ,visa construir e
instituirmonumentos, eventos-monumentos e pessoas-monumentos???.A
,palavra monúmento;cetimologicamente falando, remete à ideia de um- artefato,
de umaparato quevisa provocar através da presença uma dada memória, uma
dada herança; uma.dada lembrança. Omonumento dirige-se à visão,. ele busca
através do estúnulo visuaHazer que algoou alguém seja recordado: Ele tem um
caráter intencional, ele visa intencionalmente provocara lembrança,a recordação.
A história:monumentalpensa ae-scrita·dahistória como sendo voltada para trazer
à cena, colocar diantedoleitor umpassado que deve ser lembrado e cultuado, A
:hiStóri_ografia·,do século XIX,essa historiografia da monumentalização, partilha
as mesmas regras deprodução dos discursos comemorativos, da comemoração
moderna, surgidacoma RevoluçãoFrancesa, que instituiuum calendário
cívico,que instaurou um conjunto de datasa serem lembradas eomo sendo
instauradoras·de.uma novaJemporalidade, que oato revolucionário viera fundar.
Ela sepensa:comomonumento,-ela'.se.pensa como criadorade,umavisão perene
e definitiva do-passado, daí porque:toda contradição e toda dissensão é afastada
dessa memória. Nenhum monumentoadmite rachaduras, sob ,pena de vira se •
tornarruína. Omonumentopressupõeoaparar arestas, olapidar, o dar-forma a
·-- um:coµj.unfo.harmônico,·o.'.eqilllibrarforças e formas; o estetizar e-harmonizar
aquiloquese fazver e aquiloquese diz.

239. Ver: NIETZSCHE, Friedrich."Dautilidade e desvantagens dahistória para a vida". In:


Consideraçõesextemporâneas5 ed.SãoPaulo:Nova Cultural, 2004, p. 22-34.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 189

Se hoje a historiografia rompeu com o que seria a história-monumento, se


consideramos que nossoofício hojeopera, comofazia o filósofoalemão no campo
da filosofia, às marteladas, então nossa relação com os discursos comemorativos
deve ser atravessada pela suspeição e pela derrisão. Os historiadores se colocam
como demolidores das versões cristalizadas, petrificadas, naturalizadas, do
passado. Os· monumentos nos servem hoje como documentos, pois devem ser
interrogados em seu processo de elaboração, quanto aos interesses e relações
de poder, os saberes e as distintas versões que mediaram sua elaboração. O
historiador é um profissional das ruínas, que descobre entre os· escombros
fagulhas de esperanças que brilham ainda sob camadas de pó e cinza, como
diziaWalter Benjamin"", pois sabe quetodo monumento deculturao étambém
de barbárie. Sob a pele clara dos monumentos corre muito sangue e pus. Os
historiadores são escafandristas das memórias, buscando sob as superfícies
plácidas das memórias as correntes que as agitam, os detritos depositados nas
profuridezas e desvãos do tempo. A tarefa dos historiadores é a de quebrar
. os monumentos para com seus cacos comporem outras figuras remendadas,
alerquinais, frankensteinianas do passado, Abrir brechas nos monumentos para
que o presente possa respirar e o futuro possa aí se insinuar.Tornar porosas as
realidades monumentais, para que possamvazar outros- sentidos para os tempos.
O historiador é aquele profissional que come e mora trabalhando, no sentido
de que, quando das comemorações, vozes divergentes e dissidentes possam ser
ouvidas. É suatarefaacabar com o uníssono, o carátermonologal que os discursos
comemorativos tendem a assumir. Aproveitaras comemorações, as festas,para
abri-las à diversidade de vozes, à diversidade de memórias, à diversidade de
. versões. Pluralizar as comemorações é afirmar cadavezmais o sentido primeiro
da própria palavra, do próprioato de comemorar; ouseja, afirmara comemoração
como oportunidade para o encontro com o outro, como momento departilha,de
convivência coma alteridade, momento de camaradagem, mas também-momento
de afirmação da diferença. de interpretação. O historiador deve questionar,
pois, a comemoração como mecanismo de construção de identidade e ressaltá-
la como momento de afirmação da alteridade. A historiografia, que durante
muito tempo também foi presidida pela lógica identitária, contribuindo para a
afirmação das identidades nacionais, que se mostraram mortais, que no século
XXfoi motivo de matanças e genocídios inenarráveis, deve voltar-se para tornar
comemorável a diversidade, a alteridade, a multiplicidade,a tolerânciaemrelação
ao.diferente, ao estranho, ao estrangeiro, ao distinto, ao distante, ao dissidente,
ao minoritário. Se comemorar sempre é um ato-coletivo, se deve envolver pelo
menos duas pessoas, que para haver comemoração não necessariamente deva
: haver a anulação da diferença entre estes dois seres, que a alegria sejainstaurada

240. Ver: BENJAMIN, Walter. "Teses sobre o conceito de história" In: Obras Escolhidas I: magia
e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232.
190 TECELAO DOS TEMPOS

não pelo encontro dosemelhante, mas ser motivada pelo .encanto do diferente,
quepossa a comemoração existir.semque para:isso seinstaure uma necessária
unidade, ,unànimi_clade, urna homogeneidade de,visões sobre o que é objeto ou
sobre o sujeito da comemoração. Que as comemorações não pressuponham
sempreapresençade umoutro que partilha da mesma .condição social, étnica,
•• de,gênero, de. geração, profissional, quenão implique na partilha da mesma
visão da memóriaou dahistória, inas que este outro.possa advir de condições
esituações sociais eculturais diversas e que possa divergir das versões que
pretendem ser consagradas.Fazer da comemoração profanação e não .culto,
·fazer da comemoração divertimento enão solenidade, fazer da comemoração
: momento de reinvenção do passado e não,de.cristalização e de.estereotipização
doque sepassou.
Capítulo 10

Entregar (entregar-se ao) o passado de


corpo e língua: reflexões em torno do
ofício de historiador

A ficção dá olhos ao narrador horrorizado.


Olhos para ver e para chorar.
(Paul Ricceur. Tempo e narrativa, tomo III,
p. 327)

Os cadáveres apresentavam uma diferença dependendo se vinham das


,câmaras de gás pequenas ou grandes. Nas pequenas, amorte era mais rápida
e fácil. Parecia, vendo seus rostos, que as pessoas estavam adormecidas: de
olhos fechados, apenas a boca, numa parte das vítimas, ficava deformada,
uma espuma misturada com-sangue aparecendo nos lábios. Os corpos,
cobertos de suor; Antes de expirar, haviamurinado e defecado. Os cadáveres
provenientes das grandes câmaras de gás, onde a morte demorava mais a
chegar, haviam conhecido uma atroz metamoi:fose, tinham o tosto todo
preto, como se tivessem sido queimados, os corpos ficavam inchados e azuis.
Tinham os maxilares tão trincados. que era impossível abri-los para acessar
as coroas de ouro, às vezestínhamos que arrancar os dentes verdadeirospara
lhes abrir a boca.241

e Esse é um. trecho do relato de um dos dois homens que saíram vivos de
Treblinka, um dos campo de extermínio construído pelos nazistas nà Polônia
ocupada. Chil Rajchman escreveu esse relato assim. que conseguiu fugir de
Treblinka, após a insurreição do campo, no dia 02 de agosto de 1943, vagando de
esconderijo em esconderijo, ameaçado todo tempo de ser capturado ou morto.
O relato, que intitulou Eu sou o últimojudeu, nasce da urgênciade testemunhar,
241. RAJCHMAN, Chil. Eu sou o últimojudeu - Treblinka (1942-1943). Rio de Janeiro: Zahar,
2010, p. 88.
TECELÃO DOS TEMPOS

dedeixarpor escrito :uma: narrativa sobreas·atrocidades que vira e das quais fora
obrigado a participar. Sem saber do paradeiro daqueles que com ele fugiram,
semterconhecimento que Abraham Bombatambém sobreviveria para cpntar
o quefoi Treblinka, ameaçado de ser morto a qualquer momento,• Raj chman
: escreve essetextoporque era preciso que outros soubessem, que omundo ficasse
sabendo dos horroresque testemunhou.Era preciso entregar, com. urgência, e
correndotodos os riscos, como fizerammuitos outros judeus, um testemunho,
uma memória;um.çonhecimento;. uma-informação, um relato, uma narrativa
sobre um real êaótico e feroz que se apossou de,suavida e da vida de milhões de
pessoas de seu povo:Era preciso; com ouso·da escrita; recursotão importante na
ciiltura·do·povojudeu,.tentarJazer ·esse-real inimaginável e indizível passarpelo
fio dalinguagem, setornar cenas e imagens, se tornar eventos, se tornar realidade
para todos aqueles que .não presenciaram,o que ele presenciou. Entregar esse
textopara o mundo, mesmo que fosse a última coisa.que fizesse em vida, era uma
formadepagara enorme dívida que contraíra com seu povo,ao participar de seu
massacre, como única forma de permanecer vivo.Selecionado, logo na chegada
ao campo, parafazer parte do queos nazistas chamavam de "Kommandos
judeus, que realizavam todas as operações necessárias para o extermínio dos
queali chegavam e para a arrecadação detodos os bens que traziam, inclusive de
parte de:seus corpos, por mentirsaber cortar cabelos, ele.se tornou tonsurador
das mulheres que seguiam para as câmaras de gás, depois ajudante dos dentistas
quearrancavamas corroas de metal das bocas dos cadáveres gaseados, depois
carregadorde corpos para o enterramento nas valas para; finalmente, participar
do desenterramento dos cadáveres.para a queimanas fogueiras destinadas afazer
desaparecer todos .os vestígios>do que ali se passara, para reduzir os corpos a
cinzas, espalhá-laspelo solo e com ela adubar a plantação de árvores destinada
ao encobrimentodefinitivo do crime ali perpetrado. .(\pagamento proposital
do acontecimento,· dafostória, .empresa de desrealização, de soterramento dos
indícios, dos rastos, dos sinais, de obscurecimento da evidência. Por isso era
urgenteo seu gesto, o seu testemunho, ele iana contramão do que estivera
fazendo no ano e meio que passou em Treblinka: afirmação da rebeldia e da
. resistencia da vida, dapotência do vivo diante da grande empresa da morte e
.do esquedmento,.sua outraJace.
Comosabemos,nasúltimas décadas, diantedaemergência, por um lado, de
uma historiografianegacionista, que contesta a existência das câmaras de gás e a
realidade dachamada"soluçãofinal, apartirdo queseria ainexistência deprovas
materiais de sua ocorrência e, por outro,diantedachamada "virada linguística",
quetrouxeo tema da escritadahistória, da relação entre discurso e realidade,
entre realelinguagem,parao centro dasdiscussões no campo da historiografia,
a
o Holocausto, soluçãofinal e mesmo o estatuto do testemunho ·e da imagem
tornaram-seobjeto deum intenso e acalorado debate entre os historiadores, onde
posiçõ;es extremadas con\rivem·:con1 posições' mais matizadas e -Conciliadoras.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 193

Creioque o relato de Chil Rajman, bem como o documentário que recentemente


inspirou, intitulado Treblinka242, nos ajudará a rediscutir alguns dessestemas e,
principalmente, chamaratenção para um aspecto ausente de todaessapolêmica,
aspecto bastante relevante e quase sempre negligenciado, quando não silenciado
pelo discurso historiográfico: a presença do corpo, dos corpos que sofrem, na
narrativa dos eventos históricos. Creio que o debate se movimenta em meio a
··falsas -questões, a desencontros conceituais nunca. discutidos; a injustificadas
êàtegorizações pejorativas daqueles que, em muitos casos, possuem posições
divergentes. Creio que o relato. do sobrevivente de Treblinka, convoca, acima
de tudo, e adespeito desse debate no interiordo campo historiográfico,que
reflitamos sobre qual o lugar do historiador e do saberhistórico na sociedade
contemporânea, sobre qual o papel do ofício do historiador na atualidade,sobre
qual olugar do historiador na cidade, sobre a finalidade sociale política de
nossotrabalho, sobre os usos do passado edahistória. Afinal, o que entregamos
à sociedade que nos remunera, que nos forma, que nos emprega, quenos dá,
"ainda, um lugar de fala privilegiado? A que nos entregamos quando assumimos
esseofício, quando nos decidimos nos tornar historiadores?

1. O real existe

Por incrível e até hilário que possa parecer, historiadores hoje escrevem
textos para-afirmar que o real existe.A negaçãofeita de.queas câmarasdegás e
a solução final, a chamada Shoah, tenham existido; por parte de negacionistas
comoRobert Faurisson, um professor de literatura da-Universidade de Lyon,
seria um indícioperigoso da perda do real pelos historiadores. Os-negadonistas
são então aproximados dos .chamados céticos, ·narratívistas, pós.-rnodernos,
sem que· nunca se discuta e defina essas categorias classificatórias que,por
,problematizarema-relação entre discurso e realidade; entre linguagem e referente,
se veem lançados na fogueira como proto~fascistas, queimados vivos por terem
abdicado do chamado "princípio da realidade" que, como todo princípio absoluto
e dogmático, deve ser seguido sob pena de heresia,excomunhão e até suplício. 243
Nesse debate, os· negacionistas, no entanto, não abrem mão da noção de
real, muito pelo contrário, acreditam que do reaLsó existe uma versão possível,
adeles,e cobram daqueles que defendem a existência do que negam; as. provas
materiaisque sustentariam essaexistência. Cinicamente, sabedores deque
essas provas foram propositadamente destruídas, como se fossem -positivistas
empedernidos, seguem cobrando que se prove materialmente; e não através de

242. Treblinka.Direção: Sérgio Tréfaut. Duração: 1h01m. País: Portugal. Distribuidor: Faux.
Ano: 2016.
243. Ver,por exemplo: GINZBURG, Carlo. "O extermíniodos judeus e opriricípio da reàlidade''.
In: MALERBA, Jurandir. Ahistória escrita: teoria ehistória da historiografia. São Paulo:
Contexto, 2006, p. 211-232.
194 TECELÃO DOS TEMPOS

testemunhos,que as câmaras de gás existirame que corposforam nelas gaseados.


o
Para negacionismo,orelato de ChilRajchman, assim comoas cinco fotografias
queforamtiradasdedentro da câmarade gás do crematório V do campo de
Auschwitz,emagosto de1944, por um membro do "Kommando judeu" .do
campo, mostrandomulheresnuas a caminho da câmara de gás e,. depois, seus
corposgaseados sendo incinerados,sãofabricações,são mentiras dejudeus, não
correspondem àrealidade, não são cópias fidedignas. e verdadeiras do_ real.244
Os negacionistas, portanto, -obedecem e-cobram_ plenamente, a observância do
chamado "princípio darealidade", não abrem mão do real, achando •que ele só
, .póde ser; afirmado ou:falseado,de uma só vez, que ele tem uma verdade.única,
uma essênciaabsolutadaqual eles têmo domínio. Nãoadmitemverossin1ilhança,
hão. admitem conhecimento indiciário, riãoadmitemconhecimento por:dedução,
não admitem que os .historiadores preencham ·as lacunas_ inevitáveis da- sua
documentação pot:sqposfções ,amparadas na experiência e no conhecimento
prévio. Eles exigem asprovas. Se :são inquiridos sobre o ·desaparecimento-de
·,-milhões,;de corpos;-· onde"estão, ·como·desapareceramsem deixar rastros; •onde
, foram· parar comunidades inteiras .de :judeus que simplesmente. evaporaram,
desconversam; afinal;. o-que São corpos, o que têm ·sido .os corpos para as
narrativas historiográficas, nelas eles também.não evaporam; não se ·gaseificam?
O ·que se ;quer são provas materiais da existências das câmaras de gás, são· elas
queimportam nas discussões. Corpos, apenas um estorvo com que osnazistas
tiveram quelidarequeos'nagacionistas também têm que contornar.Eles estão
..mortos, eles sedecompuseram, eles não sãomais reais, o que importa ·então?
:Daridoptossegi.timentoao extermínio perpetrado pelosnazistas, os negacionistas
querem exterminaratéa memória desses .corpos;·.desses nomes, dessas vidas.
Expurgá-los dahistória como seus.algozes:também pretenderam.
No quepareceser o extremo oposto; os historiadores judeus, como Pierre
Vidal-Naquete Carlo Ginzburg, abrem as baterias não•só contra os negacionistas,
os assassinos da·meniótia; como·os'.denomina o primeiro,, mas também-contra
- todos;caquêles quese.colocariam contra ochamado "princípio da realidade':
contraa existênciada realidade e do real- (eles estão convencidos de que existe
alguém que.nega a:existêneia do·reâl),.contra aqueles,que reduziriam o mundo
aosdiscursos,que seriamcéticos, :que problematizariam, o estatuto • da .prova
no•campo historiqgráfico; que:dariam-,margem;:tarnbém; para· que a negação
, da Shoahpudesse•ocorrei:;245.iNessitcampo,:como é comum ·entre-histo'riadotes,
a confusão efalta de precisão conceitualprevalecem. Confundem-sereal e

244. Ver, por exenfplo,·o:.pretenso.desmentido•:da-.alitoria,do füário.de,Anne Frank levado a


efeitoporFaurisson:FAURISSON, Robert. Quemescreveu o diário de .Anne Frank. Pórto
Alegre:Movimento, 1990.
245.- Ver, porexemplo:GINZBURG,Carlo.Relaçõesdeforça: história, retórica, prova. São Paulo:
Companhia dasLetras,2002 e VIDAL-NAQUET,Pierre. Os assassinos da memória: o
revisionismona história.São Paulo: Papirus, 1988.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 195

realidade; realidade e empiria, realidade e "coisa em si'; prova e evidência,prova


e testemunho etc. As oscilações e contradições de posição no interior de um
mesmo texto se sucedem, as mudanças de posições e argumentos se estabelecem
entre-textos e entrevistas,a citação corroborativa detrechos de autorestrazem o
desmentido para aquilo mesmo que se quer afirmar. A pretexto de combaterem
o que chamam de relativismo; sem caírem no positivismo negacionista,oscilam
entre o dogmatismo e a ambiguidade de posições.
Carlo Ginzburg, o mais exaltado dos inimigos dos relativistas e céticos,
como ele próprio se define, em texto significativamente intitulado "O extermínio
dos judeus e o princípio da realidade" abre as baterias contra o grande ogro do
debate em torno do estatuto da narrativa historiográfica, o crítico- literário e
historiador norte-americano, Hayderi White. Como um detetivelondrinense ou
um inquisidor mor, Ginzburg sai à cata dos indícios, dos sinais, dos rastrosque
levem a se entender a posição de White, que levem a ser descoberta avetda:deira
motivação de seu crime de lesa-historiografia. O que, em sua vidacpregressa,
em seu· passado, nas beiradas de seus textos, dava sinais de que sua posição
epistemológica se devia a posições políticas protofascistas, portanto, inimiga dos
judeus? Sua posição em defesa de que a historiografia utiliza recursos retóricos e
de que o que valida um texto historiográfico seriasua eficácia discursiva, devia-
se a sualeitura do idealismo italiano, aos elogios que fizera a Benedetto Croce,
que, por seu turno, fora amigo de Giovanni Gentille, queaderira ao fascismo
e-defendera o porrete como um instrumento civilizacional. Não se sabe se
White leu Gentille, nunca o citou, mas o historiador dos emblemas e sinais,
pode conjecturar que-White lera Gentille e logo suas posições relativistas.seriam
facistoides. Não importa que Ginzburg nãodiscuta nunca o pensamento mesmo
de White, mas a desqualificação moral do inimigo, tal como fazia os nazistas
com os judeus, estava feita. Ao final do texto, depois de passar por suspeitas de
~complôs-judeus, e por complôs historiográficos, por uma ou duas testemunhas,
portropos e Auschwitz, a conclusão do texto, apoiada no filósofo italianoRenato
Serra, é peremptória e muito esclarecedora: "Mas a realidade ("a coisa em si")
existe'?46 Espanto geral!
Creio que é preciso. aclarar algumas coisas nesse debate de surdos. Real e
realidade são conceitos e, portanto, comotal,não são óbvios,nem sempre se está
falando da mesmo coisa ao utilizá-los. Há diversas concepções acercado real e da
realidade, como opróprio texto de Ginzburg dá aentender, embora ele ache que
sóa dele tem validade, pois, caso contrário, cairíamos no pior dos pecados; que
nos levaria diretoao inferno: o relativismo, mesmo que, também, ele nunca se dê
a0 trabalho de dizer- o que entende por isso. Real erealidade, por seu turno, não
são a mesma coisa, não são conceitos intercambiáveis, como apareceem muitos
textos que enfrentam esse debate. Euprefiro partirda distinção feita por Jacques

246. GINZBURG, Carlo. O extermínio dos judeus e o princípio da realidade. Op. Cit., p. 226.
• TECELÃO.DOS TEMPOS

Lacanentreoreal,como aquilosobre o qual nãotemos controle, como aquilo


que nos acontecesem que possamos impedir outer sobre ele domínio, como
· o puro acontecimento,como aquilo.,que :Nietzsche nomeou de intempestiv:o, e
realidade, comoumaelàboração.humana•do,real,-como umaleitura do real; como
uma construção imaginária, simbólicae conceitual do ,real.247 O Holocausto,
a solução final, as câmaras de gás, foramo realinimaginável, que aconteceu,
que •ocorreu; .que se apossou/da vida das comunidades judaicas. O, relato de
Treblinka,feito porChil Rajchman, éa tentativa de.transformar em realidade
· para o mundo, para outros .que alinão estavam, .aquele real ,monstruoso;. O
• real:é· caos, é intênsivo;.·é inforrp.e;· é desordenado,, como dirá Gilles Deleuze.248
• Como; :não:suportamos viver .e e.ncarar :a dimensão caótica e· inesperada rlo
real, tratamos de domá-lo, de dar a ele regularidade e organização através do
imagmário;dosimhólico;,dos ·conceitos.,Domesticamos, o quanta possível, a
fúriadoreal,transformando-o em realidade;atravésdosdiscursos,.dos códigos,
dosrituais,dos costumes,das práticas reguladas e regulares. O. grande,desafio
colocadopelo real deTreblinkaparaChilRajchman, como para.todo judeu que
, escapou'dos campos de extermínio,foi o-de definir com que linguagem; comque
• imagens;:,tomquecsímbolos,, corri que conceitos, com querecursos narrativos,
tornar realidade para os outros aquela experiência extrema que viveu? Como
·•comu,niqr.aos outros uma,experiência que•dificilrnente podia ser partilhada
;é:om·o outro?,,Como·cmnunicar.,aooutro algo indizível; inimaginável;calgo de
- difícil entendimehto?.Logó no início doJongo·dm:umentáriofeito pelo cineasta
francês ClaudeLanzmannsobreaShoah,mesmotítulo do filme; Simon Srebnik,
um dos dois sobreviventes do Gampo:de, extermínio de Chemno; · na época um
menino de 13 anos, percorrendoo que sobrara do campo, ainda. se ind_agava
como entender o quese passara· ali e ele,vivera? Comodizer aooutro, como
transformaFesse realem realidadepara umoutro,seele seria, emgrande medida,
,aiÔda.inc01npreensível·para.quem o viveu??49
- · . Omais•estrariho:naàfinnação de'Ginzbµrg é-tomar a.realidade pela "coisa
• ,em sf;'Mesmo entre,áspas;: isto :é -confundir realidade:com empiria e-reduzir,
· ,tanto:o-:rêal,: quantoa,realidade à êlimensão empírica; ao estado de· coisa;,como
se o.real e realfdadeiiãofossem:e9mpostaspormuitas:dimensões não empíricas,
.como:àspróprias obras de-historiador feitas:porele,deixam entrever. A realídade
éinse parável dedimensõesimagináriasesimbólicas,a realidade só seorganiza
no planodalinguagemedoconceito,oquenão significa negarouduvidardesua
247. Ver:LACAN,Jacques."O simbólico, o imaginário e oreal" In: Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro:
JorgeZahar,2005,p. 11-53;NIETZSCHE,Friedrich Segunda consideração intempestiva.
RiodeJaneiro:Relume-Dumará, 2003.
248. Ver: DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. São Paulo: Editora34, 1999; Diferença e Repetição.
Rio de Janeiro: Graal, 1988. •• • • • •
249. Shoah.Direção: Claude Lanzmann. Duração:,94 e 26m. País: ·França. Distribuição:· Bretz
Filmes e IMS. Ano:1985.
DURVALMUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 197

dimensão empírica. Só que teríamos uma visãomuito pobre e redutiva, tanto do


• real, quanto da realidade, se os reduzíssemos a dimensão _empírica. Sem se dar
conta,o inimigo fidalgal dos negacionistas termina por levar a água ao moinho
deles; ao reduzir a realidade ao plano do material e ter, do material, uma visão
-bastante pobre, depois das descobertas da físicaquântica, da nanorealidade,
da relatividade. Quando os negacionistas pedem provas materiaisda existência
das câmaras de gás estão -reduzindo a- materialidade a uma de suas dimensões
e sendo empiricistas, tal como alguns historiadores ingleses se orgulhamde se
'proclamar. 250 Mesmo o real naturaltem dimensões não propriamente empíricas,
como o som, a temperatura, o vento,·omagnetismo, a gravidade,queno entanto
atuam concretamente sobre nossas vidas e nossos corpos. A realidade humana é
composta de-ideias, pensamentos, memórias, emoções, valores, cuja empiricidade
é, -no mínimo, indireta, mediada por nossos corpos, gestos, ações e reações: Nem
mesmo a filosofia, hoje, partilha da ideia da existência de uma coisa emsi.251 No
mundo humano, a coisa é sempre mediada pelo olhar de um sujeito, ela é sempre
parao ·outro, ela nunca é em si. A realidade é umaleitura do mundo; o que não
significa cair no relativismo,justamente porque existem instâncias sociais que
regulam o que é permitido e proibido ser dito, ser visto e ser encarado, como
realidade e como verdade sobre a realidade, em cada contextohistórico e social.
O grande equívoco das discussões com os negacionistas é colocar-se
no mesmo plano epistemológico deles ao se afirmarem realistas,semque
saibamos direito o que isso significa. Se ser realista é advogarque o real existe,
todos somos realistas, o problema está na horade se dizer o que é o real; aí as
,dissenções aparecem,·justamente porque o ser do. real não pode ser decidido
por uma, recorrência a ele mesmo, dizer o ser do real depende de uma
operação de significação e de uma operaçãopolítica, dependeda construção
de reàlidades politicamente motivadas. O relativismo não ocorre; não porque
O real e a realidade tenham. uma única .verdade, essencial, que algum discurso
metodológica e teoricamente adequados é capaz de capturar,mas porque existem
- instâncias de controle social, instituições, centrais· de distribuição desentido
que policiam o que pode ou não ser tomado como verdade, admitido como
realidade. Como vai afirmarMichel de Certeau, o negacionismonão temguarida
-entre a -comunidade de historiadores não pelo fato de não serem realistas, eles
o são,mas porque o discurso historiográfico é produto de um lugar, no caso, a
universidade, que recusa esse tipo de interpretação do quesepassouna Segunda
Guerra Mundial?°?Robert Farisson, mesmopertencendo àuniversidade,não

250. Ver, por exemplo: THOMPSON, Edward P. "As peculiaridades dos ingleses" In: NEGRO,
Antônio Luigi e SILVA, Sérgio (orgs.). As peculiaridadesdos ingleses e outros ensaios: 2 ed.
Campinas: Unicamp, 2012, p. 75-179.
251. Ver: LEBRUN, Gerard. "A aporética da coisa emsi"In: SobreKant. SãoPaulo:Iluminuras,
2012.
252. Ver: CERTEAU, Mkhel de. "A operação historiográfica''. ln: A escrita da história. 2 ed. Rio
198 TECELÃO DOS TEMPOS

- - -
- -
pertence à comunidadede historiadores,ondenãoseria admitido,:não apenas por
violarasregrasteóricas emetodológicasdooficio, mas por violar seus princípios
éticos.Eletem sofrido inúmetos-prócessosnajustiça por causa de suas posições,
• rr1ostrandp'queasinstituiçõesquelegitimamuma:dada·verdade sobre o reaLda
solução final nãoadmitem suasversões.É, aí, noplano da política dos saberes,
que o enfrentamento aeles deve sefazer.

2. Tudo é discurso?

. No entanto, do outro fado desse debate,:também me parece que certas


. _ confusões conceituais seinstalam. Umpequenotex:to, escrito por Roland Barthes,
publicadoem1968na revista - Communications, torna o semiólogo. francês um
dos alvos principais dos historiadores que: saem emdefesa do -que :chamam .de
princípioda realidade. O texto sefatititlavaD,efeito de real e defendia.o caráter
.retóri_co.do·discursôhistoriográfico; mesmo ele estando caracterizado-por- sua
·' ambição- r~alista:;253.0 ::historiador ab_usaria do uso de um.tropos-linguístico
- pàrtkular, a hipotipose, encarregado de 'fpôr as coisas sob os olhos dos ouvintes",
renunciando declaradamente - às :injunções do código retórico, _buscando_ a
representaçãopura e simples do-real; procurando fazer o relato nu daquilo que
foi,apelandopara acitação do anedótico, queapontaria para esse fora do discurso,
quedenotaria oque efetivamente ocorreu.A enunciação deixa de ser creditada
- e legitimada pelaobservânciados códigos retóricos, e-passa_ a ser creditada e
legitimada pela reníissão·a·um referente, confundido com o significante, que
recusa, porsuavez,a significação ou o sentido.Ohistoriador padeceria de uma
ilusão referencial, já que; expulsando-o significado do signo, ele-colaria o referente
ao sigrtlficafitee pretenderia queo discurso fosse capaz de, ser uma cópiado
próprio referente,ou afalado próprioreferente, ocultando-0 lugar de sujeito da
enuriciaçãoocupàdo pelo historiador. - ,
Roland Barthes, criadordo que chamou de,semiologia, crítico· literário
e·filósofofrancês, jáse interessava pela análise do discurso da historiografia
desde. pelomenos,o início dos anos e::inquenta, quando os-historiadores·sequer
pareciam: ter descoberto que escreviam :e que precisavam refletir sobre a escrita
da história. Seusegundolivro, publicado - em: 1954;-foi'dedicado· a: fazer uma
análiseestrutural,de que é pioneiro no.que tangêàtrítica,litçrária; do discurso
do grandenomedahistoriografiafrancesado séculoXT, JulesMichelet,sob qual
tentara-.escreveruma:tesede doutorado•nuncaconeluída, 254:Em 1967, O discurso
- da história é: otítulode.um-texto ·que publica-numa revista chamada Informação

de Janeiro: Forense Universitária,2002, p. 65-119.


··BARTHEStRolartdJ.fO·:efeito:de-real''.-ln: :O/rumor'da'.lfngua. São Paulo:-.Martins Fontes,
2004,p.181-190.
254. BARTHES, Roland.Michelet. SãoPaulo: Companhia dasLetras, 1991.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 199

sobre as ciências sociais, onde já aparece o polêmico conceito de efeito de realpara


definir o que seria uma regra e umtraço marcante a caracterizar o discurso da
historiografia.255 Creio que esse conceito também implica uma confusão entre
as noções de real erealidade. Ora, se o real é opuro acontecimento, é o que não
cessa de devir, se o real é aquilo contra o qual nada podemos, é o intempestivo,
'ele é, por definição, o que escapa a -toda representação, o que o imaginário e o
simbólico tentam incessantemente conter, domar, sem conseguir ter sucesso.
Portanto, todo discurso, mesmo o realista, não podeproduzir efeitos dereal, mas
efeitos de realidade, se quisermos seguir a terminologia barthesiana.
Mas o grande ogro a ser combatido pelos historiadores, sob pena dele se
alimentar de suas carnes e levar a historiografia à morte, é o crítico literário e
historiador norte-americano Hayden White. Embora ele nunca tenha negado
a existência do real ou dito que o discurso historiográfico e o discurso literário
seriam a mesma coisa, é essa a imagem que comumente se reproduz dele e
de seus textos, no geral, pouco lidos, no entanto, muito comentados. Essas
afirmações advém de uma leitura apressada - suspeito que mais de uma falta
de. leitura -, de um texto cujo título induz a pensar o texto historiográfico
como tendo o mesmo estatuto e obedecer às mesmas regras do texto literário:
Otexto histórico como artefato literário, que forma parte do livro Trópicos do
discurso?"° No entanto, o literário de que trata o texto não se refere à literatura,
no sentido moderno do termo, como romanceou gênero ficcional, mas nomeia
toda forma de representação figurativa, a dimensão poética e retórica de toda
narrativa, de todo relato, o fato de que a narrativa histórica; como todo relato,
é tropológica, se utiliza de figuras de linguagem, e essecaráter tropológico
define várias escolhas que o historiador fará ao narrar, escolhas que, quase
sempre, ocupam uma espécie de estrutura inconsciente da narrativa: a escolha
de enredo, de tipos de argumentação e de implicações ideológicas. Mesmo as
tão debatidas e controversas escolhas teóricas e de método estariam conectadas
com a maneira como· o historiador prefigura, visualiza, através dos trapos, a
realidade que pretende abordar. Realidade que, por ser figurativa, tropológica,
jamais poderia ser igualada ao real, pois o real, no sentido lacaniano do termo,
é anterior a qualquertipo de figura, a qualquer tipo de representação.
Acusado de fascista, acuado pelos historiadores que o infirmam demilitar no
mais absoluto relativismo, inclusive ético,White é obrigado a encarar o espinhoso
temado Holocausto. Em texto intitulado Enredo e verdade na escritadahistória,"
na mesma linha seguida por Barthes, ele vai argumentar que há uma "inexpugnável
relatividade em toda representação histórica", pois ela é feita mediante o uso da

255. BARTHES, Roland. "O discurso da história" In: O rumor da língua, p. 163-180.
256. WHITE, Hayden. "O texto histórico como artefato literário". In: Trópicos do discurso: ensaios
sobre a critica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994, p. 97-116.
257. WHITE, Hayden. "Enredo e verdade na escrita da história" In: MALERBA, Jurandir (org.).
Op. Cit., p. 191-210.
'200 - _ TECELÃO DOS.TEMPOS

linguagem e a relatividade da representação é'umafunção da-próprialinguagem.


a
Aodescrever eventospassados, linguagemos constroemnarrativamente,os
'significam.e:rião,aperrasos repõem:tal·como·aconteceram: Muitas vezes; parece-
me que ele possui uma imagem do discurso historiográfico.que ainda remete aos
.- .-•pressupostos.dopositivismo,da,historiogrãfiado,séculóXIX,;emboraisso.possa
ter sidoinduzido pelo próprio debate,,jáque os que o contestam parecem ainda
ter uma visão derealerealidade, de verdade rnuito,próximas do positivismo.
Aéxigêircia e a crençade Carlo Ginzburg de que o discurso do ·historiador está
baseado emprovas é um exemplo dessa proximidade com-uma concepção de
discurso, científico ainda obediente ao_ paradigma - positivista. A ·dificuldade,
apontadapelo próprioWhite, dos historiadores abandonarem o modeloliterário
dorealismoparece reforçar o que estou afirmando. Violando o· próprio texto
aristotélico, Ginzburg vai defender, em artigo intitulado Sobre Aristóteles_ e .a
história, mais uma vez,que as provas antesde serem incompatíveis com aretórica,
corn,âdimensãóJigu.rativa da linguagem, com a dimensãotropológica do discurso,
tal. c9rnodefendia White, constituem.q,seu,núdeo fundamental:258 Ginzburg diz
-seguir· a argumentaçãcrpresente no liv:ro·Retórica~de Aristóteles. 259 O problema é
.· que.Ginzburgtràdunomo prova oque;emAristóteles, aparece sob o·conceito
de evidência.Mesmo concordando que o,historiador- não utiliza, na.maior- parte
• do tempo, as provas1técnicas; como ,faz.o discurso jurídico,: a prova necessária,
como chamou Aristóteles, mas.utiliza fundamentalinente o exemplo-e o-signo -
que são do campo do provável, do.Neróssímil;-vai traduzir ton tekmerion: como
prova,quando a;palavra tekmerion :tem o sentido de presunção, de: algo ·que é
.presumido; nãohá nesse termonenhuma ideiade certeza. Tekmeria remete-àação
de conjecturar sobre o invisível a partir do visível, do rasto, do·traço {ichnos),
sendo esse o sentidode:evidência: conexões válidas entre signos,·entre sinais; entre
restos,geralmentéapoiadasno·conhecimento comum; coletivo,já que a produção
do.sentido- se. faz- apoiada numa, .comunidade concreta·e-de significação. Essas
conexões seriam vistas como naturais· enecessárias,sem que·impliquem, como
,quer.Ginzburg,emcertezas,- nem.emprovas,-no:sentido positivista do termo, pois
elas são do:campo das convenções,~·dos,acordos coletivos·de ,sentido, fadados a
se modificarem,permanentemente. Aevidêncianão se evidencia por si mesma,
• ela;nasce,de,umam:aneira·.deser, :de .uma vidência; que éhumana, conceitual,
histórica,situadanotempo e no espaço, nointerior de umadada cultura. Não éa
emsi,o
"coisa objeto,oreal,arealidade,a empiriaque seapresentamdiante dos
iôlbos e·seímpõ.emsedutores·em·seus:corpinhosde.signos erastros aohistoriador,
é o olhar do historiador que constróiaevidência,apartir desua cultura e dos
saberes prévios quepossui.

258. GINZBURG, Carlo. Sobre Aristóteles eahistória,maisumavez.In: Relações deforça:


história, retórica,prova, p.47-63. .
259. ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo:Martins Fontes,2012.
DURVAL MUNIZ DEALBUQUERQUE JÚNIOR 201

Acusado de defender a posição de que um discurso sejustifica e seJegiti:ma


por sua eficácia e não por atingir ou buscar a verdade, de construir um mundo
textual ·autônomo, que não possui nenhuma relação demonstrável com· a
realidade extratextual a que se refere, Hayden White encara; então, o desafode
pensar a "solução final':a partir de suas posições. Creio que seu texto terminapor
cair em-uma aporiaao não discutir noções corno ade real e verdade. Voltaa uma
imagem bastante ultrapassada do que .fazem os historiadores: a narrativa como
contêiner neutro dofato histórico, garantido pelo uso de uma linguagemnormal
e ordinária, o que. seria o selo de urna· postura realista. Os eventos históricos
deveriam consistir e manifestar um amontoado de estórias "reais" ou "vividas",
que seriam apenas descobertas ou extraídas de evidências e dispostas 'diante
doleitor. Afirma então o óbvio - embora não o seja para muitos historiadores
-, os·eventos, os fatos, são declarações factuais e como declaraçõesfactuais são
entidades linguísticas, necessitam da linguagem para existirem, para adquirirem
organização e enredo, para que façam sentido. Os eventospertencem à ordem
do discurso. Mas só a ordem do discurso? Talvez aí é que oautor parece militar
num beco sem saída.
Para ele, quando se trata do nazismo e da solução final, aquestão que se
coloca é:

[...] existe algum limite sobre o tipo de história que pode ser contada de
maneira responsável sobre esse fenómeno? Podemesses eventos ter seus
enredos responsavelmente elaborados em quaisquer modos, símbolos,tipos
de enredo e géneros que nossa cultura fornece parafazer sentido sobre o
passado? As naturezas donazismo e da solução final colocamlimitesabsolutos
no que pode ser verdadeiramente dito sobre eles?260

Ouseja, para ele os limites sobre a representação adequada ou aceitável


a ·ser dada ao Holocausto, não seriam definidos pela própria realidade, pelo
próprio· evento, como pressupõem os realistas, mas por instâncias éticas e
políticas, pela própria comunidade de historiadores, que aceitariam ou não
. - dadas-formulações· sobre esses eventos. Seria aceitávelvazarem, num enredo
satírico, num enredo cómico, os eventos da solução final? Ele não-deixa, no
entanto, de tomar a fidelidade,ao registro.factual como um critério para avaliar
narrativas que competemsobre o mesmo evento. Com base nos registros factuais
disponíveis,pode-se criticar, classificar, entender dadas narrativas, avaliando sua
compreensibilidade e coerência de argumentos. Mas os relatos não consistem
apenas em relatos factuais, a produção de sentido no texto historiográfico não
se dá apenas pela citação do arquivo; ela faz parte, apenas, da etapa inicial do

260. WHITE, Hayden. "Enredo e verdade na escrita dahistória" MALERBA, Jurandir (org.).
Op. Cit., p. 192.
:TECELAO.D05 TEMPOS J

trabalho dohistoriador: q.,produção da crônica, Um texto historiográfico não se


• ui:deapenas_coma;firmaçôesfactuais;,que ele nomeia•de proposições existenciais
singulares (o isto.ou esteexistiu emtal época),,nem :apenas com-argumentos,
mas comelementosretóricosepoéticosatravésdosquais o que seria uma lista de
eventosganha trama,são entramados,tornam-se enredo, tornam-se umaestória.
As narrativas não competem apenas quanto aos eventos, quanto a existência
empírica,factualdeles(como parece ser aluta'dosnegacionistas),.mas,sobre.os
arranjos deenredo que os dotam de significado. E.conclui, "a não ser.que uma
•.estódàthistórlcâforapresentadacomouma-representaçãoliteraldoseventosreais,
nãopodemoscriticá-lacomo sendo verdadeira ou não aos fatos.da.questãd'. . Mas
verdade é o mesmoqueliteralidade? Se, como ele mesmo a.firma,.os eventos são
.tonstnições narrativas,:comofalar emeventos.reais?·Não falta aíuma discussão
sobre. .tomque noção de yerdade· e de real se está operando? A. exigência ,de
literalidade sedirige ao reaL ouarealidade,que é leitura <lo real, -tentativa de
representa-lo?A literalidade nãose dirigiria à ,empiria,. não se ,dirigiria:ao real,
ao ·factual,.ao acontecimental, massim àsua organização narrativa?
• Essa busca• da.Jiteralidade dos ·discursos ou das ·representações do
Holocausto; à:recusa da dimensão.poética e retóricada linguagem,na abordagem
,dessàtem:ática,leva a extremos que quase significam a proibição de.que sediga
• qua.lquercoisa sobre esse evento, alojado no campo do indizível, do inimaginável,
do•incomensurável: Muitasvezes,embusca de uma não violação do testemunho
daqtieles.·,que sobreviveram à Shoah,retorna-se auma postura positivista que
;:pressupõe:que, ostestemunhos,de:vemfalarpor;si mesmos ou não· devem sofrer
• ,qualquerLinterpretação ou elaboração estética;,porque isso equivaleria a·violar
• os testemunhos e estetizar o horror Contraditoriamente, astestemunhas que
•fizeram um enorme esforço para rompero silêncio sobre o evento monstruoso
de que fizeram parte,.,silencio que os nazistas tentaram ,produzir, ·se veem
movamenteJadadasaó silêncio.O escritor e psicanalista Gérard Wajcman e a
• • • dítita.literária ÉlizabethPagnoúx; juntamente como cineasta Claude Lazzman,
defendem o caráter iniroagináveLda,Shoah;,sua.impossibilidade de· se· tornar
imagem,de vir, portanto,a sercomunicada."Em reação a·uma exposição. de
fotografias deAuschwitz, organizada pelohistoriador da arte • Georges • Didi-
'Huberman,sque'. depõís,itá•publicar;o.:livro Jmagens-a.pesar âe :tudo/62·acerca·de
. cincdfot,QgramasJêitosno interior docampo deAuschwitz -que seriam um dos
• pôtkós·regiStrosemimagem de corpos gaseificados.e sendo incinerados·em um
campode extermínionazista -,foiduramentecriticado,acusado de estetizar o
horror,fetichizando religiosamente,sacralizando asimagensdasolução final, o
' . .

261. WAJCMAN,Gérard. L'Objet dusiecle.París:Netdier,'1998; '.'De la croyance photographiqÚe''.


In:LesTempsModernes,LVI, 613,2001; PAGNOUX, Élizabeth. "Reporter photographeà
Auschwitz". In: Les Temps Modernes, LVI,613, 2001.
262. DIDI-HUBERMAN,Georges.Imagens apesardetudo. Lisboa: KKYM, 2012.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 203

que só poderia ser a expressão de uma perversão. Waj.chman defende o caráter


irrepresentável do Holocausto, mesma posição de Pagnoux, que seopõe a
qualquer leitura dostestemunhos sobre a solução final, porusurparem o estatuto
do-testemunho; Essailusão.referencial;essa ilusão·deliteralidade; emesmouma
falta dereflexão acerca da memória oudo testemunho, faz o cineasta Claude
Lanzmann opor-se a qualquer possibilidade de se realizar filmes acercados
'campos de'extermínio. Denunciando a confusão feita pelo cinema, notadamente
o hollywoodiano, entre as imagens dos campos de concentração;existentesem
profusão, e dos campos de extermínio, dos quais os cincofotogramas saídos de
Auschwitzsão os únicos existentes, propõe-se a fazer um filme querecusa o que
seria todo o arquivo anterior de imagens. AssimcomoWajcman,Lazzman remete
o arquivo de modo exclusivo para a noção deprova (curiosamenteassim como
Jazem os negacionistas) mas; ao contrário desses e, inclusive;de Carlo Ginzburg,
para recusar-se terminantemente a pensar o testemunho como prova. Recusando
também a produção de qualquer conhecimento sobre esse fenômeno;já que acha
que só há ·conhecimento mediante prova, afirma. que não se precisa provar aquilo
que carece de prova, posição tautológica e pirronista."? Em um filmeque dura
-- mais. de nove' horas, ele submete as testemunhas e sobreviventes dos· campos
de extermínio a perguntas .que vão modulando as respostas que ele já trazia
prontas e, no entanto, o filme é vendido corno o registro davoz da testemunha
semqualquer interferência, notadamente, sem qualquer interpretação. ou
estetização. O cineasta, e suas tradutoras e equipe técnica, participam diretamente
da produção das memórias, suas presenças condicionam os testemunhos,,suas
perguntas osdirecionam, mastudo isso é negado, em·nome do registropuro do
arquivo, da literalidade do relato.

3. Corpos a pesar em tudo

Creio que o livro de Georges Didi-Huberman e os cinco fotogramas de que


eletrata, bem como o relato de Chil Rajchman, aliado ao filmedé Sérgio Tréfaut,
podem ajudar a recolar as questões que venho tratando atéaquide uma outra
maneira,,e propor .respostas um pouco distintas das que vêm senso dadas pelos
dois lados desse debate. Creio que eles ajudam a nuançar·e refletir sobre dadas
,:questões; notadamente sobre a questão do lugar do real na narrativa histórica.
Creio, no entanto, que mais do que ajudar. a constatar a presença ou não do real
nanarrativa, esses discursos me permitem tematizar uma grande ausência em
todo esse debate, em ambos ospolos da discussão, a ausência de umadimensão
que constitui o real mesmo dos homens, da vida humana, do serdo homem:
aexistência do corpo, a materialidadedos corpos, a empiricidade dos corpos,
a factualidade e literalidade da presença corporal. Considero que, além dessa

263. LANZMANN, Claude. Shoah:vozes efaces do Holocausto. São Paulo: Brasiliense, 1985.
TECELÃO DOS TEMPOS

• • 'discussão-sobre o êstàttitodo real no discurso histórico, o evento \'solução final"


nos permite pensaroprópriolugarsocial doofício de historiador, sobre o que
o historiador entrega para asociedade, qual o-seu papel como .profissional. e
comopartícipe de uma dadasociedade,vivendo um dado presente etendo que
se posicionaremseuinteriora partir das habilidades e saberes que seu ofício
lhe possibilita adquirir, o que seria, por fim, refletir sobre, a dimensão ética e
políticada narrativa histórica, .imediatamente ·colocadas em questão por um
evento como aShoah.
·; • o·filme:de S·érgio.Tréfaut, '.freblinka, à primeira vista; parece comungar da
mesma suspeita diantedàimagem·de seu colegaLanzmann. 'O filme não oferece
uma imagemrealista do.campo de extermínio;,não.teatraliza asimagens, nem
lançamãodo arquivo deimagens sobre os campos de concentração comofaz, por
exemplo,o filmeAlista de Schindler, do· cineasta:Stiverr Spielberg;26'.1 Sua ênfase,
como nodocumentário·déLazzman,-é.na,fala, no testemunho. As.imagens são
repetitívas,e'desfocadas, todas parecem 'estar envoltas. por uma neblina. Elas
vão e retornamcomo presas em' um dreulo, rião constituindo uma narrativa,
umenredo,uma temporalidade linear. Elas são fragmentárias e surreais. Elas
apenas parecempontuar ou ilustraro relato, o testemunho de Chil • Rajchman,
,que é narrado •em off, porumconcerto devozes. No entanto,. ao contrárfo .do
longodocumentáriodo cineastafrancêsClaude Lazzman, o filme do ·cineasta
brasileiroenfatiza uma •dimensão .dotestemunho.e,das-testemunhas que está
ausente em Shoah: o corpo; Durantemais de nove horas, o que vemos enfatizado
em Shoah:éapenas o.relato;otestemunho;.Ossobreviventes ou testemunhas.que
• 'depõem não têm seus corpos em destaque, não havendo nenhuma imagem"que
:remeta ao sofrimento, ao.dilacer-amento edestruição,dos corpos que constitui
a'Üimensãoprincipaldoevento -"soluçãp finál". Nisso, o documentário não fica
. nada a dever em relação às narrativas·historiográficas sobre o Holocausto, que
escondem o desastre dos corpos :sob cifras,, números, dis·cussões ·racionais de
• , mótivaçôes, causas,· consequências, ·contextos; etc. .Assim como· tazzmann; os
historiádoressão-capazes·de.sairccom o,aventàllimpo de sangue da·narrativada
Segunda Guerra, umevento que significouatortura, amutilação, o sofrimento, o
·dilaceraínento,.crextermíniQ:de milhões de corposhumanos. Ofilmedo cineasta
brasileiro enfrentaessa aporia dodiscurso historiográfico, pois o relatode Chil
,RaJchman é,acompanhado'.de imagens de corpos,inclusive em sua nudez,:,de
corpos confrontadoscom a máquina,aprisionados em umtremque osleva
para a morte. •
Mas oprópriorelatodeRajchman, como acontece com.muitos·depoimentos
presentes nodocumentário francês, estã:eentradona·hecatombe sofrida-pelos
corpos, no sofrimento,na dor, nos espancamentos,nodepauperamento,no

264. • ALista deSchindler.Direção:Steven Spielberg. Duração:3h e 15m. País: EUA. Distribuição: .


Universal Pictures.Ano: 1993.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR
205

sangramento, na putrefação e na -incineração. dos corpos. Mas enquanto as


imagens do documentár.ionãoduplicamou sublinham as imagens que aparecem
nos relatos, delas fugindo, produzindo sua ausência da narrativa .imagética da
película, o filme docineasta paulista sublinha e centraliza no corpo orelato
que seouve em off,já que o próprio relato de Rajchmanse articula emtornodo
sofrimento corporal e psíquico trazidopelomassacrea que assiste,·sofrimento
de seu·próprio 'corpo e dos corpos de seu povo.Aocontrário dos testemunhos
presentes no documentário. de Lanzmann, o testemunho de ChilRajchman é
um testemunho escrito ainda durante o evento, atravessado por imagens que
relampeiam em instantes de perigo, para usar umaimagembenjaminiana."As
imagens de seu·relato não possuem o distanciamento e nãosão feitas da longa
-elaboração e da seleção do arquivo que compõem os testemunhos que ouvimos
emShoah. Ele não sabe sequerse outros sobreviveram como ele, elese julga o
'último-judeu, ele pode ser. a testemunha única, o único a poder falar sobre o
eventoinimaginável. Seu relato não possui o apoio do arquivo,nãosofre oefeito
dos filtros do tempo.-As imagens que estãopresentesnotrecho:dorelatocom
que abriessetexto nunca se fazem presentes nas narrativas historiográficas. Se
lermos a farta bibliografa acerca da Segunda Guerra Mundial;possivelmente
nunca saberemos que os corpos ,que eram gaseificados nas câmarasde gás
.menores apresentavam uma aparência completamente distinta daqueles que eram
-gaseificados nas "grandes câmaras. de gás. Dizer isso seria praticar, o voyeurismo
do horror? Seriafetichizar os cadáveres ouos corpos dos mortos? Seria produzir
-jmagensperversas, conclamando um prazer ouum gozo mórbido? Seria estetizar
o genocídio, a dor,o sofrimento, o desastre corporàl?
Creio que a discussão levada a efeito. pela obraImagens apesarde tudo, do
historiador Georges Didi-Huberman, dá respostas a algumas dessas.indagações.
Sem cair na :mistificação realista do arquivo,sem tomaroscinco fotogramas
feitos por um membro do "Kommando judeu" de Auschwitz, como sendo
uma cópia do· real, como sendo um dado empírico, uma prova,, uma coisa em
si,como sendo a realidade, ele não deixa de considerar que essas imagens nos
'interpela, elas emergem corno um desafio; uma tarefa euma·possibilidadepara
os historiadores. A imagem de arquivo convoca .os historiadoresrao contrário
doque pensamLanzmann, Wajcman e Paignaux, para que se=deixem afetar e
interpelar pelo fragmento de realidade; pela irrupçãodo real e, principalmente,
peloefeitode imaginação e emoção que elas sign:ificam.Sabendo·queo arquivo
não é umreflexopuro e simples do acontecimento; ele não possuiliteralidáde; ele
não éapura e simplesprova da realidade.Ele é prova não no sentido moderno
"do termo; mas no sentido antigo, aquele sentidopresente no texto aristotélico e
ignorado por Ginzburg: a prova como provação, como o provável,·como o que

265. Ver: BENJAMIN, Walter. "Sobre o conceito de história"In: O anjo da história. 2 ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2016, p. 11.
;TECELÃO DOS TEMPOS

põe àprova e ·se:põêà,prova,:'tomo.--0 que se prova, se experimenta. O.arquivo


nospõeàprova, pois elenos afeta, nos emociona e comociona. Ele deve ser
elaborado mediante recortes -incessantes; mediante uma,montagem cruzada
comoutros arquivos. Embora o arquivo exijaasua permanente reconstrução,
- -· ele sempreserátestemunho dealgo, por ser parte do, acontecimento,, por ter
impresso,nele,rastros e marcas indeléveis do real do qual proveio.A lógica da
prova, com a qualoperam tanto.os negacionistas, quanto os realistas, é aquela -
- centra,da na noçãodefalsificação, de certeza·e verdade por constatação, quando
alógica da prova que deve, oriep.tar o historiador, deve _serc:a da·verificação, a
de por àprova qualquerinformaçãoouqualquerversãoque nasça do arquivo.
Ohistoriadorproduz os documentos, mudando-os de lugar, e de estatuto, mas
issonão desqualifica o arquivo.No caso da Shoah, o historiador tem que tentar
conciliara destruição dos vestígios; com a·memória indestrutível da,destruição
dos corpos..
Creioque, paraas discussões que estouJazendo.aqui, para -as·discussões -
queo textode Didi-Hubermaninstaura, otextomais importante de Barthes
não é nenhumdessestextos sobre odiscurso do historiador,- postumamente
,,reunidosnoJivro.Or,umo,:dalíngua,mas sin:folivro que ele dedicou a análise do
discursO'fotogrãfico; intitulado A câmara clarct.2661Nesse livro,,Barthes-intróduz
um conceitoqueme parece mais adequado para nós pensarmos a relação entre
realediscurso, reale significação, do que O-conceito de efeito de real, que me
pareceremeter maispara a construção discursiva de realidades: o conceito
de punctum. Para Barthes, umafotografia ·é produto;· como todo discurso, da
.observância de regras, de códigos ,de ,gênero, de época e de estilo, de códigos
. estéticos; sofre injunções econômicas, pólíticas;morais, religiosas, ideológicas; é
fruto detodaumamontagem, de toda uma preparação; é fruto de um ponto de
· - vista,-de um.enquadramento; .de um enfoque, de umamoldura que ele,nomeia
de studium. Noentanto, o discursofotográfico não escapa da intrusão< do
• '. inesperado, do não planejado; do não enquadrado,.dó não focalizado;dairrupção
·, do acontecimento,:que 'Seria; justamente, o que ele nomeiade punctum. Creio
_.que esse.eleinénto:não.esperado,tiãodeseja:do, que pode irromper na fotografia,
- ·quepoderiscar. e deixar sua marca no 'espaço dofotograma; sem qualquer-espera
ou planejamento, eu chamaria,dedrrupção.do-reâl.{) real em seu devir, em - seu
movimento incessanteé capturado, por um instante, peloclique da ·máquina
:sfotogiáfica.Assim·como. a queda, nãoplanejada,da atrizYonáMagalhães 'na
sequência final do filmedocineastaGlauberRocha,Deus e o1Jiàbo na .Terra do
sol,7°que nãofoi excluídaporele namontagemdo filme:irrupção inesperada
dorealno interiordo discurso fílmico.

266. BARTHES, Roland. Acâmaraclara. Rio deJaneiro:Nova Fronteira, 2017.


267. Deus e o diabo na terra do sol. Direção: GlauberRocha.Duração: Ih e 50m. País: Brasil.
Distribuição:HebertRichers. Ano: 1964.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 207

Creioque na narrativatestemunhalde Chil Rajchman e no filmeTreblinka é


ocorpo,a presença do corpo que remete, que indicia esse real de onde foipossível
emergir as representações, o imaginário, as imagens, o, relato ·que elaboram. O
corpo, essaúltima fronteira do humano, o corpo vivo que resiste, que luta contra
amorte, que arranca não se sabe deonde energia e potencia para-defender e
afirmar a vida; O corpo que risca e marca esses relatos com manchassdesangue,
suor e pus. Corpo que resiste a ser reduzido-à condição de lixo, de monte de
esterco, como afirmavam os nazistas. O .sobrevivente deAuschWitz, Felip Müller,
lembra--se, no· depoimento que presta a Lanzmann, de que os nazistas faziam
questão de desumanizá-los, chamando-os de porcos, ratos, cães,animalizando-
0s, O que.:parecia justificar a seus próprios olhos aquilo que faziam. Lembra-se
deque os membros dos "Kommandos judeus" eram proibidos de se ·referir.aos
corpos como vítimas ou cadáveres, eles deviam ser nomeados defiguras: Arecusa
denomeá-los como corpos humanos era o ,início da tarefa deapagamento, de
destruição dos vestígios deixados pela matançagenocida. Se ovestígio é resto, ele
possuia singular condição de;aomesmotempo, indiciar a destruição esobreviver
aela. Ele não é a realídade, porque essa nasce da narrativa que se faz,inclusive
com o usoda imaginação, para dar sentido e significadoao que restou. Elenão
é o real em sua inteireza, mas um cristal de tempo; um suporte,· uma matéria
onde ele deixou impresso seu rastro. Quando os historiadores fazem os corpos
desaparecerem de seus relatos, eles não estariam completando o apagamento
dostraços deixados pelo real em sua superfície, por mais realista que sejasua
pretensão, de· seus relatos, de suas narrativas? Que "consequências políticas e
·éticas têm.para nosso ofício esse apagamento? Tiraro corpoforadamarrativa,
nãofigurá-los narrativamente,· não· é transformá-los· em figuras ausentes-como
queriam os nazistas? É a discussão com que encerrarei esse texto.
Tratando também do Holocausto, Paul Ricreur defende que é justamente
na abordagem de eventos como .esse que o historiador não pode adotar .uma
mera postura realista e racionalista. Para tratar de um evento como esse éque
se faria indispensável que o historiador assumisse o caráter fi:gurativo,,portanto,
poético. e· retórico·, de· seu discurso, que assumisse que a· historiografia é uma
refiguração do.tempo, do passado, e que, portailto, a decisão sobre que figura,
sobre quetipo de figuração e de enredo se,escolherá paraarticularnarrativamente
um eventocomo esse é de·sumaimportância ética e política. Diante do horror,
diante das vítimas, o-historiadornão-poderiafazer·um discurso·pretensaménte
neutro, irónico, dessacralizador, distanciador.Se o historiador deveabster-se
departicipar da comemoração, da sacralização, da idealização e deificação dos
vencedores, não devefazer deseu discurso louvação, não pode trataras vítimas,
osperdedores desse mesmo modo.Com .eles, o historiador deve ·expressar
proximidade e solidariedade, aproximação afetiva e efetiva. Se ohorror seria o
avessoda admiração,se a execração seria o negativo daveneração,.6histotiador
deveriaadotar outra posição em relação às vítimas queforam feitas pelahistória.
;TECELÃO DOS TEMPOS

põe àprova e ·se:põêà,prova,:'tomo.--0 que se prova, se experimenta. O.arquivo


nospõeàprova, pois elenos afeta, nos emociona e comociona. Ele deve ser
elaborado mediante recortes -incessantes; mediante uma,montagem cruzada
comoutros arquivos. Embora o arquivo exijaasua permanente reconstrução,
- -· ele sempreserátestemunho dealgo, por ser parte do, acontecimento,, por ter
impresso,nele,rastros e marcas indeléveis do real do qual proveio.A lógica da
prova, com a qualoperam tanto.os negacionistas, quanto os realistas, é aquela -
- centra,da na noçãodefalsificação, de certeza·e verdade por constatação, quando
alógica da prova que deve, oriep.tar o historiador, deve _serc:a da·verificação, a
de por àprova qualquerinformaçãoouqualquerversãoque nasça do arquivo.
Ohistoriadorproduz os documentos, mudando-os de lugar, e de estatuto, mas
issonão desqualifica o arquivo.No caso da Shoah, o historiador tem que tentar
conciliara destruição dos vestígios; com a·memória indestrutível da,destruição
dos corpos..
Creioque, paraas discussões que estouJazendo.aqui, para -as·discussões -
queo textode Didi-Hubermaninstaura, otextomais importante de Barthes
não é nenhumdessestextos sobre odiscurso do historiador,- postumamente
,,reunidosnoJivro.Or,umo,:dalíngua,mas sin:folivro que ele dedicou a análise do
discursO'fotogrãfico; intitulado A câmara clarct.2661Nesse livro,,Barthes-intróduz
um conceitoqueme parece mais adequado para nós pensarmos a relação entre
realediscurso, reale significação, do que O-conceito de efeito de real, que me
pareceremeter maispara a construção discursiva de realidades: o conceito
de punctum. Para Barthes, umafotografia ·é produto;· como todo discurso, da
.observância de regras, de códigos ,de ,gênero, de época e de estilo, de códigos
. estéticos; sofre injunções econômicas, pólíticas;morais, religiosas, ideológicas; é
fruto detodaumamontagem, de toda uma preparação; é fruto de um ponto de
· - vista,-de um.enquadramento; .de um enfoque, de umamoldura que ele,nomeia
de studium. Noentanto, o discursofotográfico não escapa da intrusão< do
• '. inesperado, do não planejado; do não enquadrado,.dó não focalizado;dairrupção
·, do acontecimento,:que 'Seria; justamente, o que ele nomeiade punctum. Creio
_.que esse.eleinénto:não.esperado,tiãodeseja:do, que pode irromper na fotografia,
- ·quepoderiscar. e deixar sua marca no 'espaço dofotograma; sem qualquer-espera
ou planejamento, eu chamaria,dedrrupção.do-reâl.{) real em seu devir, em - seu
movimento incessanteé capturado, por um instante, peloclique da ·máquina
:sfotogiáfica.Assim·como. a queda, nãoplanejada,da atrizYonáMagalhães 'na
sequência final do filmedocineastaGlauberRocha,Deus e o1Jiàbo na .Terra do
sol,7°que nãofoi excluídaporele namontagemdo filme:irrupção inesperada
dorealno interiordo discurso fílmico.

266. BARTHES, Roland. Acâmaraclara. Rio deJaneiro:Nova Fronteira, 2017.


267. Deus e o diabo na terra do sol. Direção: GlauberRocha.Duração: Ih e 50m. País: Brasil.
Distribuição:HebertRichers. Ano: 1964.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 207

Creioque na narrativatestemunhalde Chil Rajchman e no filmeTreblinka é


ocorpo,a presença do corpo que remete, que indicia esse real de onde foipossível
emergir as representações, o imaginário, as imagens, o, relato ·que elaboram. O
corpo, essaúltima fronteira do humano, o corpo vivo que resiste, que luta contra
amorte, que arranca não se sabe deonde energia e potencia para-defender e
afirmar a vida; O corpo que risca e marca esses relatos com manchassdesangue,
suor e pus. Corpo que resiste a ser reduzido-à condição de lixo, de monte de
esterco, como afirmavam os nazistas. O .sobrevivente deAuschWitz, Felip Müller,
lembra--se, no· depoimento que presta a Lanzmann, de que os nazistas faziam
questão de desumanizá-los, chamando-os de porcos, ratos, cães,animalizando-
0s, O que.:parecia justificar a seus próprios olhos aquilo que faziam. Lembra-se
deque os membros dos "Kommandos judeus" eram proibidos de se ·referir.aos
corpos como vítimas ou cadáveres, eles deviam ser nomeados defiguras: Arecusa
denomeá-los como corpos humanos era o ,início da tarefa deapagamento, de
destruição dos vestígios deixados pela matançagenocida. Se ovestígio é resto, ele
possuia singular condição de;aomesmotempo, indiciar a destruição esobreviver
aela. Ele não é a realídade, porque essa nasce da narrativa que se faz,inclusive
com o usoda imaginação, para dar sentido e significadoao que restou. Elenão
é o real em sua inteireza, mas um cristal de tempo; um suporte,· uma matéria
onde ele deixou impresso seu rastro. Quando os historiadores fazem os corpos
desaparecerem de seus relatos, eles não estariam completando o apagamento
dostraços deixados pelo real em sua superfície, por mais realista que sejasua
pretensão, de· seus relatos, de suas narrativas? Que "consequências políticas e
·éticas têm.para nosso ofício esse apagamento? Tiraro corpoforadamarrativa,
nãofigurá-los narrativamente,· não· é transformá-los· em figuras ausentes-como
queriam os nazistas? É a discussão com que encerrarei esse texto.
Tratando também do Holocausto, Paul Ricreur defende que é justamente
na abordagem de eventos como .esse que o historiador não pode adotar .uma
mera postura realista e racionalista. Para tratar de um evento como esse éque
se faria indispensável que o historiador assumisse o caráter fi:gurativo,,portanto,
poético. e· retórico·, de· seu discurso, que assumisse que a· historiografia é uma
refiguração do.tempo, do passado, e que, portailto, a decisão sobre que figura,
sobre quetipo de figuração e de enredo se,escolherá paraarticularnarrativamente
um eventocomo esse é de·sumaimportância ética e política. Diante do horror,
diante das vítimas, o-historiadornão-poderiafazer·um discurso·pretensaménte
neutro, irónico, dessacralizador, distanciador.Se o historiador deveabster-se
departicipar da comemoração, da sacralização, da idealização e deificação dos
vencedores, não devefazer deseu discurso louvação, não pode trataras vítimas,
osperdedores desse mesmo modo.Com .eles, o historiador deve ·expressar
proximidade e solidariedade, aproximação afetiva e efetiva. Se ohorror seria o
avessoda admiração,se a execração seria o negativo daveneração,.6histotiador
deveriaadotar outra posição em relação às vítimas queforam feitas pelahistória.
• ·.TECELÃO DOS TEMl'()S

Pari!'-Ricreur, a ficção,o imaginário, a dimensão poética e retórica de nos.so ofício


teriaumaenorme importância nahora,de entregar, de fazer passar parao presente
· a experiênciadolorosa e tremenda .das vitimas, ena· luta contra· o indizível e o
inimaginável.Ser capaz de produzir emoção, ser capaz de produzir afeto,seria a
tarefafundamentalnahoradese criar solidariedade entre o presente eas vítimas
do passado,"Nãoé possível frieza eneutralidade diante detantos corpos em
sofrimento.-E;xpor os corpos em seu,dilaceramento-é uma-forma de fazerefeitos
éticos e pdlíticos.Seatarefa do historiador é pintar cenas, é colocar debaixo dos
olhos como algo aconteceu, sé é·contar o que·se passou, o rec.urso às imagens, o
recurso às figuras narrativas é o instrumento privilegiado do historiador diante
. ·da figura· morta .e apagada,que o nazista queria fazer dos .corpos dos judeus. A
. história deve retomarde sua origem comum na·epopeia, não a sua capacidade
_de presernar·a -memória· do, glorioso,· do ,admirável,· mas sim· a memória do
sofrimento na escala doscorpos. Ao invés da fama.duradoura, a·durabilidade
dadrtfârnia. A ficção aserviçode produzir o inesquecível; Só não se esquece
daquiloquese sentiu, que setocou profundamente.Ao invés-da busca .da prova
judiciária, daprovaentendida comoalgo material que encerra uma discussão e se
constitui emuma.cetteza, pensar a prova como aquilo pelo·qual-se,passa, na qual
se éposto à prova. ·Mais do que umamera narrativa explicativa, argumentativa
e informativa, o texto do historiador, assim como uma aula de história, deve
ser uma experiência, deve colocar o leitorou assistente à prova, deve fazê-lo
provar aquilo sobre-o qual se fala e, assim, ele,se,tornará inesquecível. E não há
provaçãodo mundo que não-passe-pelo corpo. Como fazer da historiografia
umaprova obliterando o corp.o, esse traço do real que teima em se manifestar?
• Ahistoriografiadevenascerdoencontrode corpo e língua com o passado, com
aquilo. que numgesto inicial nomeamos de passado.
Emseu texto,em dado momento, Didi-Huberman diz·que a tarefa do
historiàdoté '.1fazerpassar, entregar algo à comunidade, oferecer à comum medida
da'1inguagem humana; uma palavra·-para sua experiência; por mais defectível
oudisjunta quesejaem comparação com o real vivido","? restabelecendo,
assim, a função de:ligação da:,linguagem.,Manusear em conjunto a palavra e
o silêncio, a falta eo resto, oimpossível e oapesar de tudo, o testemunho e o
arquivo, não opondo o arquivoao testemunho,aimagemsem imaginação à
palavra inimaginável,a prova à verdade, o documento histórico ao-monumento
imemorial. Creio que, se quisermospensar sobre qual é a marca do ofício de
historiador,qualasua funçãosocial, devemos atentar .principalmente para um
dosgestos referidos porDidi-Hubermanno trechoacima: o de entregar algo à
comunidade. Apalavraentregarvem do latimintegrare, que significava refazer,
reunir o queforaseparado,fragmentado. Integrarevem da .raiz integer, que se

268. RICEUR,Paul.Amemória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007.


269. DIDI-HUBERMAN,Georges. Op. Cit.p. 42.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 209

referia a íntegro, inteiro, não tocado, mesma raiz que de onde advém o verbo
tangere, que significa tocar, alcançar.No espanhol, essa-raiz resultouna palavra
enterar, se enterar, ou seja, se informar; saber das coisas, Podemos dizer que o
ofício do historiadortem a função social de tocar, de alcançar as subjetividades
daqueles que compõem a sociedade a que pertence. Ao invés de falarem apenas
à razão de seus concidadãos, o historiador deve ser aquele capaz de tocar, de
afetar, de alcançar emocionalmente e imaginativamente quem comparte com
ele-o seu tempo. Seu trabalho é um trabalho de refazimento; de reunião dos
fragmentos, dos restos, dos rastros que nos chegam do passado, reunindo o
que foi separado, fragmentado, para que façam seritido e seja sentido por seus
contemporâneos. O historiador é alguém queinforma os seus parceiros devida,
que faz eles saberem de que algo ocorreu. Mas, acima de tudo, é alguém que
-os :toca, os mobiliza, os retira da apatia através da empatia com os humanos de
todos os tempos. O historiador é alguém que entrega e se entrega o/ao passado.
Seu trabalho envolve um trabalho com a linguagem, mas também um trabalho
com o corpo. A relação do historiador com o arquivo não é apenas uma relaçao
intelectiva, mediada pelo conceito, mas uma relação sensível, mediada pelos
seus sentidos, por sua corporeidade. São os corpos a pesar em tudo, numa
paráfrase a Didi-Hiberman. O arquivo não é apenas lido, mas é também vivido.
A frequentação do arquivonão é apenas da ordem cognitiva, mas também
sensível, imaginativa e emocional. Diante de um arquivo, como o constitmdo
pelos testemunhos do Holocausto, coloca-se para o historiador não apenas um
desafio conceituai, mas também um desafio sensível. Ser afetado por essearqmvo
e utilizá-lo para afetar o outro. A forma como se é afetado tem implicação no
tipo de narrativa que dele se fará, de como com ele afetará aos demais. Será uma
postura distanciada, realista, racionalista, a melhor forma de fazer passar para
os outros, de entregar à comunidade uma experiência desse arquivo? Se o real
e puro-acontecimento, um contato com o real que possibilitou o arquivo nao
implica a coragem de se expor, de uma exposição à surpresa dos encontros e
experimentações davida? A tarefa do historiador é entregar versões da realidade,
reunindo seus fragmentos através do uso da narrativa, o que implica amalgamar
a experiência do arquivo e o relato. A dimensão política do ofício de histonador e
construir narrativamente versões do passado e entregá-las para ouso público, n °
presente. É constelar imagens do passado com imagens do presente, produzindo
no choque dialético alguma iluminação, algum esclarecimento. O historiador, se
faz obra de sensibilidade, não pode abrir mão dos corpos e nem de seu corpo,
Creio que, se a historiografia sobre o golpe de 1964 não foi capaz de afetar
suficientemente a sociedade brasileira que, insensibilizada, volta apedir o retorno
da ditadura militar, é porque tornou a tortura um mero conceito abstrato, sO
uma palavra, na medida em que se recusou a trazer para a narrativa 'os corpos
sendo torturados, os corpos feridos, violados, violentados, esmagados, mortos,
seviciados, incinerados, afogados, desaparecidos, vilipendiados, humilhados. Os
TE CELÃO DOS TEMPOS

textos não-produzirama experiência, o .experimento,· a prova.do que seria ser


,torturado. Commedo·de'empenharemseuspróprios corpos; emocionalmente
sensíveis, na construção desses relatos, construiu~seumahistoriografia insensível,
um discurso historiográfico incapazdeentregaràsociedadeumrelatoaberto aos
encontros inesperados e doloridos com o real, queumdiapossibilitoua existência
dos corpos.esmagados edoloridos quedeixaramseus rastrosna documentação,
mas que se ausentam da narrativa histórica; Ocofício do historiador, mobiliza o
usodalinguagem,da narrativa, mobiliza o usodo arquivo, misto de. linguagem
e materialidade,· de linguàgem e rastros de gestos e ações, de sofrimentos e
peripécias emquese empenharam os corpos, mobiliza o uso do próprio corpo
do historiador, sua-sensibilidade e sua imaginação; sua memória e sua intelecção.
:o, ofício de historiador implica entregar umpassado e entregar-seao passado
de corpo e língua.
PARTE III

O ENSINO DE HISTÓRIA
Capítulo 11

Regimes de historicidade:
como se alimentar de narrativas temporais
através do ensino de história.

O historiador francês François Hartog elaborou o conceito de regimes


de historicidade para nomear as maneiras como dadas sociedades em dados
momentos perceberam, pensaram e se relacionaram com o tempo, paraindicar
como elaboraram e articularam, através de suas narrativas; as categorias de
passado, presente e futuro, para descrever a maneira como dado indivíduo ou
agrupamento humano se instaurou e se desenvolveu no tempo.27ºNesse texto,
no entanto, farei o que pode ser tomado como um uso irônico dessa categoria,
explorando um sentido presente na palavra regime, não só nalíngua portuguesa,
mas que remete à origem etimológica dessa palavra.
Regime deriva da palavra latina regimen que significava regra, orientação,
governo, comando, ordenamento.271 É evidente que a noção de regime de
historicidade está ligada àideia de regramento, de ordenamento, de orientação; ou
seja, seria uma codificação que regeria a relação com o tempomantida pordado
individuo ou por dada coletividade emuma determinada época e sociedade.Mas
na língua portuguesa, a palavra regime também se refere aum modo peculiar de
alimentação, com fins terapêuticos ou estéticos, um regramento, uma ordenação,
uma orientação, um comando ou um governo na hora de se alimentar, visando
alcançar um dado objetivo, uma dada meta, envolvendo urna planificação do
que se vai ingerir como alimento, em um dado lapso de tempo.
Ora, mas que relação haveria entre a obediência a um regime alimentar
com o ensino da história, com a relação entre o ensinar história· e as questões
do tempo e da narrativa? O, que ganharíamos, em termos analíticos; fazendo

270. HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo


Horizonte: Autêntica, 2013.
271. CUNHA, António Geraldo. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4 ed. Rio de
Janeiro: Lexikon, 2010, p. 553.
214 TECELAO DOS TEMPOS

essedeslocamento paródico da categoria regimes de historicidade na hora de


tratarmos da "questão da docência eni história no ensino escolar? Talvez seja
ponto pacífico entre nós, historiadores, que o regime alimentar possui uma
historicidade, que nem sempre os humanos comeram os mesmos .alimentos,
nem sempre os coordenaram, organizaram e hierarquizaram da mesma maneira,
que aolongo dotempo foi sendo introduzida, com o processo de tecníficação
da agricultura e de mdustria:lização, uma variedade de novos alimentos, que
complexifcaram e transformaram nossos regimes alimentares. Talvez, também,
sejamos unânimes em admitir que as regras, os códigos, os ordenamentos
que definem· o conjunto de alimentos que ingerimos, que constituem .o que
:chamamos de regime alimentar,não só foramvariáveis aolongo do tempo, como
podem ser·àlterados até mesmo em termos da vida dos indivíduos. Também
podemos ádmitir que existem pedagogias atuando através de distintas centrais
de disttil;mição de sentido visando ensinar, disseminar, introduzir e induzir a
que sejam adotados, em dada época elugar, dados regimes alimentares.
Opróprio espaço escolar veioa tornar-se, através do oferecimento da
merenda, umlocal de ensino de dado-regime alimentar, sem falar nasnoç:ões
dehigiene, alimentação e nutrição,que podem estar presentes nos conteúdos
ensinados no espaço escolar, inclusive nas aulas de-história.. 272 Mas não é. por
essavia analítica que gostaria de seguir. O caminho que trilharei nesse texto
partede algumas imagens que compõemo agregado sensível que constitui um
conceito central nouniverso doespaço escolar, o conceito que nomeia aquele
que deve ser o sujeitopara o qual se dirige todo-o ensino escolar; aquele que deve
estar, pelo menosteoricamente, no centro das -preocupações de toda prática de
ensino: o aluno.
Apalavra aluno deriva do verbo latino alere, que se referia a ação de
àlimehtar, nutrir, sustentar,:crescer. O alumnus era a criança de peito, o lactante,
o nutriz. O aluno seria, pois, aquele que se nutre da palavra, da narrativa do
mestre,do preceptor, do professor, assimilando e transformando o que ele lhe
oferecia para experimentar. Essaorigem etimológica·da palavra aluno está bem
deacordo com os sentidos originais .dapalavra educar, que entre outros sentidos,
que exploraremosmaisadiante, possuía o de criar uma criança, nutrir, fazer
crescer.77?
Ora, o que deve almejaro professor,seja de história ou de outra qualquer
disciplina,senãover o crescimento deseus alunos, seudesenvolvimento, seu
fortalecimento? O quebuscamos senãoquenossos alunos assimilem o saber
quelhes oferecemos, que nossos alunosexperimentem aquilo de que ainda não
provaram,doqualnão fizeram prova?Essaspalavras que remetem ao universo

272. MONTANARI, Mássimo; FLANDRIN, Jean-Louis. História da .alimentação. São· Paulo:


EstaçãoLiberdade, 1998.
273. CUNHA, António Geraldo. Op. Cit., p. 30.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 215

da alimentação continuam povoando a cultura escolar, seu vocabulário, sem que


nos apercebamos e saibamos do porquê.
Se o educador, na origem latina do termo, educator, educatoris, é aquele que
nutre, aquele que cria, ensinar, daraulas, exercer a docência sempreimplicará na
escolha de quetipodealimentação, deque regime alimentar você disponibilizará
para seus alunos, qual a quantidade, qualidade, regularidade, qual aforma, qual
o conteúdo, qual a ordem, qual a distribuição, qual a sequência, qualo saber
e qual o sabor do que você irá disponibilizar para que experimentem, para
que deglutam, para que ingiram, para que assimilem, para que sedeliciem.i
Dependendo do que oferece o educador, os alunos poderão ter ou não o apetite
estimulado, eles poderão se quedar saciados ou insatisfeitos, empanturrados e
até empanzinados, quando não envenenados: Educar, assim como alimentar,
implica em escolhas do que oferecer e de como apresentar o, escolhido, disso
dependendoo maior ou menor apetite dos comensais.
Um regime alimentar implica a escolha de dado rol de alimentos e sua
organização na forma de um cardápio, ou seja, sua disposição nummodelo
narrativo, que é o da lista, o da carta, remetendo para a etimologia latina da
palavra, que articula o termo charta (papel, lista) com o termo daps (banquete
em honra aos deuses), ou seja, o cardápio como a lista em papel dos alimentos
que-seriam servidos no banquete em honra a um deus, apresentados em ordem
de entrada, na sequência em que seriam disponibilizados para a degustação dos
partícipes do banquete.275 Ora, no caso do educador, é também fundamental a
escolha do que vai oferecer a seus alunos, assim como a definição da ordem, de
qual o ordenamento, de qual a trajetória, de qual o percurso, de qual curso que
eles seguirão. Um curso, como o próprio sentidoda palavra indica; deve ser uma
trajetória articulada em um dado lapso de tempo, implica o ordenamento de
conteúdos, de procedimentos, de práticas e discursos. em uma dada ordenação
temporal.76
Se somos educadores, se somosprofessoris, no sentido latino do termo,7
na área de história, ou seja, se adotamos essa profissão, se-aprofessamos, se dela
falamos e a ela nos dedicamos, se cultivamos o saber nessa área do conhecimento,
se a ela devotamos nossos esforços, precisamos,antes de mais nada,saber que
regime oferecemos a nossos alunos, que regime de historicidadeoferecemos
como experiência, como experimentação, como prova, como alimento para
nossos alunos. Nutriremos que concepções sobre o tempo, sobre o passado,
sobre o presente e sobre ofuturo? Que concepções de temporalidadepossuímos
e· vamos lhes oferecer? Como elaboramose articulamos narrativamente as

274. CUNHA, António Geraldo. Op. Cit., p. 235.


275. Idem, p. 127.
276. Idem; p. 196.
277. Idem, p. 523.
TECELÃ.O DOS TEMPOS

as
atual,mostrar diferenças do mundo,levar, conduzir, guiar alguém no sentido
de externalizartalentos que possuía, pqtencialidades, virtualidades. que trazia
inscritascomo possibilidade em seu ser."%'
. Oensino de históriatema finalidade óbviade fazer o aluno realizar a
experiência deir paraforade seu tempo.A narrativa histórica é, nos termos de
, Mich:êhFoucaglt;úmaheterocronia,ou seja,apossibilidade de.se experimentar
um outro tempoque habita como parte e, ao mesmo tempo, como fora do
tempo presente."Umaaula de histói:ia propõeuma·atividade hastanteJúdica
(e meespantaquemuitos professores levem os alunos a.considerarem história
. umamatéria chata) que é adebrincar de sair<lenosso.tempo e dar um passeio
porpaisagens e tempos, ,por.cenários e cenas, .com personagens· e .pessoas que
constituírame habitaram outroS':tempos..
• •::Uma aula dehistóriadeveser capaz de proporcionar ao alunouma espécie
de a.yentura,gastronômica; ou seja,.permitirque·os, alunos provem de um
tempoque nunca experimentaram, sintam o sabor de outros tempos. A aula de
história,como o romance-histórico, como o.filme haseado:em fatos=reais; como
o videogamedetemáticahistórica, deve permitir a experiência fascinante de
· sàída.do tempo,:de,àbandono. de seu regime de historicidade, de temporalidade,
, para experimeritaroutros.regimes de historicidade e de temporalidade. A saída
• Jmagiriáriédo presente, que·um texto. ou ,uma .aula de história.proporcionam,
permite.que sê tome distância em relação ao presente. O professor•de história
deve convidar os alunos a se postarem,imaginariamente no passado e olharem
de lá,comose fosse defora, o nossotempo, o..presente. Como dizia Michelet, 283
o professor de história deve Ievar,seus,alunos a atravessar o rio da-morte, deve
conduzir seus alunos parafora de simesmos,de seu tempo, de sua c:.:ultura, de
seusvalores, deseus costumes, provocando neles a sensação deestranhamento,
a vivencia,por um tempo, dacondição de estrangeiros, contribuindo assimpara
a formaçãodepessoasmais tolerantes .em relação ao diferente, ao estranho,:ao
estrangeiro, menos xenófobas e preconceituosas.. ·
Aaulade história,como dequalquerdisciplina, deve implicar para o.aluno
um sair de si,-um confrontar~se·com outras,possibilidades de serhumano, de·ser
sujeito,de serhomem, de ser mulher, de ser masculino, de ser feminino, de ser
social, de serpolítico,de ser ético,• de· ser estético. O aprendizado da variedade
. e da çliver:sidade:humanascno.:tempo é uma tarefa precípuado professor de
história, queestá na :escola. não apenas,;,para ensinar· dado conteúdo, cumprir
umdado currículo: a finalidade precípua do .ensino da:história é a formação
devalores, éa produção desubjetividades, é: a constr:Ução de ,sujeitos capazes
de convivercom a diversidadee a diferença, como que,,não é faniiliâr.· Porisso

is. CckRÀ»tonto Geraldo. O. cu.. p.235.-.


282. FOUCAULT,Michel.O corpoutópico, as heterotopias. SãoPaulo: N-1, 2013.
• c2:83. ··;, MIÇHELWP, Jules, Afeiticeira, Rio de Janeiro:,Zahar, 1976.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 219

o professor de história nem sempre agrada às famílias, o quedeve ser tomado


como um elogio à sua ação. Não terá valido a pena um curso de história,um ano
estudando história, uma aula de história, se o aluno não tiversido minimamente
deslocado de seu lugar, abalado em suas certezas, se ele não for minimamente
desterritorializado, distanciado do que julgava ser sua identidade,seu si mesmo.
O professor de história é um deslocador e, nisso, é um educador; ele
desloca os alunos de suas .temporalidades para que, através da experimentação
deoutros tempos, eles possam retornar a seus tempos transformados; Comseu
discurso crítico, o professor de história deve sercapaz de produzir uma crise
em seu aluno; ou seja, uma separação momentânea, o afastamento:·daadesão
aosvalores, costumes, formas de pensar; ideologias, estruturas que constituem a
ordem-de seu presente. E o professor de históriasó alcançaráisso se levar-a sério
e atentar para o fato de que o ensino é sempre e, acima de tudo; uma questão
de dieta, ouseja, o que é oferecido, em que quantidade, com que qualidade, em
que momento e em que lugar.
Sim! O ensino, ·como a dieta,tem uma relação privilegiada com o espaço,
assim como com o tempo. A palavra dieta, que sereferia ao regramento no
comer e nobeber no dia a dia, terminou por nomeartambém o recinto onde se
fazia as refeições, os banquetes e, como podemosver através da.obra de Platão;284
na Grécia, o banquete, a hora da comida, era também um momento em que os
cidadãos discutiam questões filosóficas e políticas fazendo que, pormetonírnia,
a palavra dieta nomeasse .urna assembleia política. Ou seja; a dieta implicava
não apenas o alimentar-se de um dado repasto, como o alimentarase de dadas
ideias, de dadas opiniões políticas. Era o banquete um espaço dialógico onde a
dialética das ideias permitia não apenas o contato com o sabor dos alimentos,
mas com o saber que ali circulava. Daí porque a língua portuguesa guarda ainda
a proximidade etimológica existente entre.essas duas palavras.
Em nossa língua, embora o uso seja raro, a palavra saber pode ser usada
. para· se referir a sabor e não apenas a conhecimento, ·algo pode saber amargo
ou doce, pode saber salgado ou apimentado.285 Creio que o ensino de história
também implica essa mistura entre sabor e saber, entre dieta, no sentido daquilo
. que é oferecido, para experimentação e no sentido de um dado lugar para a
discussão deideias filosóficas e políticas. A escrita, como o ensino da história,
são inseparáveisdo lugar em que se realizam, seja o lugarinstitucional, espacial,
temporal, profissional, de classe, de gênero, de etnia, ·etário, de fala, etc. Ensinar
históriaimplica escolher um lugar de onde falar, não só a escolha de um tempo
e de um espaço dos quais falar. Afala do professor está sempre situada, tenha
consciência ele ou não de sua situação. Ela implica nãoapenas a escolha de uma
dada maneira de exposição, de apresentação do que fala, da qual vai depender

284. PLATÃO. El banquete. Madrid: Gredos,2015.


285. CUNHA, António Geraldo. Op. Cit., p. 573.
TECELAO DOS TEMPOS

inclusiveoefeito estético, o seu sabor, .dimensão · importante ,e quase ,sempre


na
. negligenciada atividadedeensino,mas também a escolha- de um dado-lugar
e
• político ético parase situar, uma :tomada-. de- posição; -uma :localização. nos
embates no planodasideias, no planopolítico e no campodos valores. Toda fala
é umaescolha delugares,todaaula é a_ reà:lização de uma-situação.
± Muitas vezes as aulas de história sãoum.fracasso, ·pois o professor escolhe
sesituar-seem tempospolíticos, éticos,em defender valores e costumes que
implicam ooferecimentoaos alunos da vivências de-tempos muito.alijados e
- distantesdaqueles em que elesviver1i:É importahte;-que o professor-traga.para
asala deaula as experiências-temporais-que viveu. Muitas vezes o.professor.de
>füistóriasecesquecéde que; naquela sala; ele é a própria encarnação do _passado,
queelepodenarrar, como participante que foi, ·:e:v.entos que-,viveu· e,que já
constituemo passadopara seus alunos.. Eles-tenderão a· ficar_ fascinados. por
terem um contanto com tempos quenão.chegam até eles através dos relatos-do
material didático, mas sim um.passado vivido, experimentado, saboreado por
• ,:seuptôprioiprcíféssor.'
Assim comoaaula de história:deve .ser esse ex.erdcio-de chamar o aluno
.•a sáirde s.eu·teJI1po e·ir-ao .encontro de ,outras,temporalidades,.todo-professor
devesercapazde fazer a travessiaentre .os· tempos que o constitui e. oHempos
:que,;tonstitúíram·:eisão representados pelos valores,- ideias e práticas •de seus
.,. alunos. 0.rcQnvivio ·com as· múltiplas - temporalidades que :são representadas
pelosdiversos atores que convivem no ambiente escolar deve ser explorado pelo
professordehistória,que pode fazer daqueles tempos quetestemunhana-escola
o seumaterialdidático.Afinal,ahistórianasceu como gênero narrativo na antiga
Grécia,como umrelato do:que ·eratestemunhado, do que era visto·pelo-histor,
,:um relatoverossímilpor ter nascidocda investigação, do ·gesto de ir ver para
contar. O ,professor de.história não,,pode ser c:ego aos regimes de historicidade
•qtieconstituemoespaço'em.que atua,.quese manifestam através dos atores do
espaço escolar,que se ,materializam.nos .objetos_ e práticas que configuram· o
cotidiano da escola.
Éprecisoqueoprofessorde históriaatente para e retome· o -sentido
-. etintol<Sgkô/da palavra escola.,A palavra· escola vem. do grego -skholé, cque se
referiaa um espaçovital,aum espaço devida onde se praticava oócio,ou seja,
umespaçoondeos homenslivresdesfrutavam de sua liberdade, espaqo·onde
afirmavam oseuserlivreao pensaremeagiremlivremente; umlugar, portanto,
dediscussãolivre,espaço deaprendizagematravés da experimentação do ser
livre, espaçodeaquisição de saber semnenhum constrangimento externo, lugar
de escolhae eleição,lugardeocupação deumhomemlivre do-trà.b'alho .servil. 286

286. CUNHA,AntónioGeraldo.Op. Cit. p. 258.


DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 221

A escola moderna, nascida com asociedade disciplinar e burguesa, está bem


distante dessa concep.ção do espaço escolar grego. A escola se tornou lugar de
adestramento de corpos e mentes conforme os costumes e valores de urna dada
sociedade, das expectativas e: injunções econômicas e políticas, mediadas pelo
Estado e pelo mercado. Fazer da escola um espaço de liberdade, pelo menos um
espaço de práticas de liberdade, é um desafio para todos os agentes escolares,
notadamente para professores e alunos.
O professor de história pode escolhertornar as suas aulas um momento
de exercício da liberdade no pensar, no fazer, no escrever, um momento de
aprendizagem da liberdade pelo exercício do afastamento das verdades e poderes
de seu tempo, pelo questionamento dos discursos e instituições que conformam
aordem que nos encontramos, como pode escolher fazer de suas aulas um
momento de exercício da ordem, da disciplina, da autoridade, do pensamento
dominante. A aula de história pode ser um espaço de contra-hegemonia ou um
lugarde reposição de costumes e valores pertencentes a tempos muito recuados.
O .professor de história, embora deva ter consciência de que o anacronismo é
inerente ao viver e ao escrever a história - existem outros tempos, de antanho,
existem imagens e práticas que vêmde outros tempos habitando o nossotempo,
embora a escrita da-história, na medida em que trata do passado a partir de
um olhar que é presente, não deixa de ser anacrônica -, não deve aspirar a ser
anacrônico; mas sim a ser ucrônico, ou seja, capaz de criar relatos temporais,
narrativas atravessadas pela imaginação sobre outros tempos, alimentando
não a adesão e o aprisionamento conservadora uma dadaimagem do tempo,
mas abrindo a possibilidade dos alunos pensarem outras formas para o tempo,
presente e futuro. A aula de história deve ser um espaço de abertura, para a
simulação e vivência, para a experimentação e a degustação de outros tempos
idos e possíveis.
Afinal, o que seria uma aula de história senão esse lugar· de convivência
com relatos e imagens sobre temporalidades, como o-espaço de oferta de um
dado regime de historicidade, uma dada maneira de ordenação do temporal que
permitaaos alunos se liberar das prisões de seu tempo, dastemporalidades que
os constituíram elhesforam ensinadas fora do espaço escolar? É preciso retomar
osentido da escola como um espaço em que· se está e em que se vai, .que se
frequenta por vontadelivre, assim como fazer da docência um espaço defruição
e diversão, tanto no sentido do prazer que deve estar presente e proporcionar,
como no sentido de ser um lugar de. divergência, de mudança de sentido, de
deslocamento em relação à rotina, ao cotidiano da vida e do pensamento.
A apresentação dahistória tem em si mesma oencanto deser uma quebra
darotina, a aventura de vivenciar mundos diferentes do nosso. Tem a seufavor o
efeito da quebrada normalidade, do já visto, dito e pensado. Comose pode fazer
deumaatividade como essa algode rotineiro e maçante? É preciso fazerdaaula de
históriauma experiência efetivade viagem a outros tempos (e quem não gosta da
: i222 .ÍECELAO DQS .TEMI'Qi

viajare deviajarnotempo?).Só omais medroso eaferrado sedentário, só o mais


conservador pode resistiraofascíniodeumaviagemnotempo,encontrando-se
comoutrosmundose outros personagens.E preciso, portanto,que.r.etomemos
o sentido primeiro daprópriapalavra aula. Essapalavra, já existente no latim,
comoderivação da palavragregaaulé, referia-sejustamenteaumespaço,a um
pátioou aum anexo de umpalácioou da corte, .... onde:as pessoas~se,reuniam
· para discutirdados assuntos.Mais tarde, na:IdacleMédia; passou,a ser. o espaço
ondesereuniamos estudantes. Portanto, falaremsaladeaula é redundante pois
·à aula' é,:efu·sea,sehtidóoiiginal,;o;espaço:onde·. se,discute·ou·onde.se.reali,zâ o
api;eridlzacl9:cle: tun:,dàdo sabef:28"'lsso:sighifiea,que;a; aula. é.um aconte.cimento
•.. espaço-temporal.Ela ocorre e preenche.umtempo e um·espaçotelaé aviv.ênçia
• de um tempoem um ·dado, espaço,:ela. é ,materializada ao acontecer·em :dado
· .lügar.e·ern dado,momento.
•· JJ>ensa'.lêa:,aüla: como acontecimentó é pensá-la fundamentalmente como
ialgoqtié c;leve significar, umcorte, unia: rnptura,sum deslocamento emrelação à
, ·.·rotina;;ao:costurile;;aocotidiano; Umaatila; em seu sentidoforte,-cortaa vida de
a quem vivenciou em momentos distintos;,marca quem nelaviveü;,faz·do.espaço
· emque aconteceuum novo lugar.Aaula de história implica, portanto,c·deslocar
. os alunos de seuslugares, de seus.espaços,, para vivenciarem lugares e espaços
outros·définid()~por,regras~.éódigos,leis,normas;instituições, formas de governo, .
.Jjâ.bitos;·côStUJnés;formas_de pensar; rela:ções·econômicas e sociais, concepções
éticll.;Seestéticasldiversas:e'difereritesdaquelasque-enfor:mam:o presente.
Um regime, seja ele ~linientar ou ·ae historicidade;· implica ·urna 'dada
ordem• espaçfal,::umada:da distribuição eordenamento de elementos; uma
certahierarquia,umadadadispersão eumadadaordem que define os próprios
· • tontor11ôs deurria'.'dadâ figura, de,.tima.dadaforma/de·uma dàda ·configuração
•.• tem,porâkO professot;de.históriaéâquele que faz osalunos.entrarem.em:-contato
•.. corn. ()Uttasformas/com outras.figuras;·com ,outros desenhos do·terrtpo,·-com
outrastmagense:cohfiguraçõestemporais;Um:a,aula ·de:história se·efetiva quando
esse espaço se'transfigura em.um momentp,cdevivencia e experimentação de·
•. outrasformasdotempo,de outrasarquiteturastemporais. Uma auladehistória
medievalquese efetiva, queé efetiva, atualiza oespaçoeotempodo medievo
em plenaaula, fazendo esse espaço devir medieval, devir umcastelo ouuma
choupanade camponês.Paraisso,oprofessordispõehojede refinadosrecursos
tecnológicos,masnempor issopode ,abrir:mão ,do:mais: refin:âdo. recurso
tecnológicoque tem aseu dispor:anarrativa.
Oqueé umaaulasenão umanarrativaqueconstrói,quefabula,que inventa
tem pos,e espaços? NaAntiguidade,o quefaziadaaulaum espaço específico
nopalácionãoeramassuas paredes,nern,seu-;móhfüário; mas·as·discussões,
as atividadesintelectuaisqueaíocorria m.Daíporqueanossalíngua passou
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 223

sabiamentea confundir, ametonimizar a sala e a atividade-que nelase realiza; falar


de aula é falar de uma atividade de ensino quedá sentido, que dáumconteúdo
e uma existência especial a um ·espaço. Era o uso da linguagem, o uso da fala,
eram asdiscussões que tornavamum dado espaço numa aula. A existência de
uma aula dependia da narrativa que a materializava.
Esquecemos, talvez, que dar aula é narrar, que a história é-um relato, quea
historiografia é umgênero narrativo e; tal como o espaço daaula; dependente da
narrativa para existir. O professor de história, se não tem capacidade narrativa, se
não tem habilidade emrelatar, em contar, não só não consegue dar existência ao.
passado, à historiografia, à história, como não consegue fazer a aula de história
·existir. O aprendizado do ensinar história, mais do que uma-questão de acúmulo
de conteúdos e a aquisição de informações, é o aprendizado da habilidadeem
enredar, em formular- um relato, com todos os elementos queo constituem e
sãoindispensáveis para quefaça efeito de conhecimento, deconvencimento e de
afecção, emborasem erudição, sem conhecimento não haja bom relato.
Narrar, contar; relatar, desde a Antiguidade, tem o sentido de. tornar
conhecido algo pela palavra e pela imagem,dado o caráter retórico etropológico
da linguagem; ou seja, desdeos gregos que se sabe que a linguagem é figurativa.
Seu-uso, em qualquer forma de relato; implica a utilização e produção de imagens.
A linguagem implica uma prefiguração do mundo, dependendo· do tipo de
tropos linguístico que, usamos (embora quando Hayden White" trouxe esse
conhecimento para o campo do relato historiográfico tenha provocado muitas
reações). Eu gostaria que os professoresde história soubessem que suas aulas
também constituememrelatos, em narrativas, quepodem atéser desencontradas,
ineficientes, confusas, mal estrutura:das, falhadas; mas são narrativas. Que suas
.aulas, portanto, implicam na produção de imagens, principalmente imagens do
tempo. Dependendo das figuras delinguagem de quefazemuso, surgem distintas
figurações do tempo; do passado, do presente, do futuro, da história.
Uma aula de história; como narrativa em prosa que é; deve conter alguns
elementos fundamentais, que implicama tomada dealgumasdecisões por parte
do autor da fala, com consequências não somente na configuraçãoda aula mesma,
mas dastemporalidades e da historicidade que irá apresentar, expor, relatar,
professar para seus alunos. Assim como· num regime ou numadieta alimentar,
a presença ou ausência· de dados elementos, sua distribuição ou organização
no tempo e no espaço, sua hierarquização e ordenamento na apresentação faz
enorme diferençanotipo detemporalidade e historicidade. que são oferecidas
para serem experenciadas pelosalunos.

288. WHITE, Hayden.Meta-história: a imaginação histórica do séculoXI. São Paulo:Edusp,


1992; Trópicosdo discurso: ensaios sobre a crítica. da cultura. 2 ed. São Paulo: Edusp, 2014.
224 TECELAo,pos TEMPOS

';": Como narrativa,umaaula de história deve definir .que tema irá tratar, se
o narradorseráoprofessor ou alguém imersona próprio evento (pode ser o
casodeele estar nosdoislugares), que tipo de;enredo, · que gênero de trama: ele
adotará (romance,comédia,tragédia,épica, drama, sátira,. cronica, conto, fábula),
sabendoque,se não fizer .uma escolha '.ptoposital,. afará sem ter·. copsciência
disso ousimplesmente escolherá repassar.o ern:edo tal como o recebeu do livro,
• do professor, darevista,:do-j.ornal; da mídia, do senso comum. Organizar uma
aula dehistória éorganizaro relato emtorno de um tempo, de.um evento, eisso
.· irnplicá a decisão deconstruirseu próprio enredamento, suaprópria versão para·
o evento ou reproduzirversões já prontas, quepodem e devem ser confrpntadas,
facilitando o .aprendizado por .pa.r.te ·dos·.alunos_cde que .não existem,.verda;des
definitivas,não existem certezas absolutas; não•só na historiografia:,. como:em
:.qualquer.ciência.
Umaboa maneira decombater o .estereótipo da· história como_ um
amontoado dementiras édiscutir com-os alunos como.se constroem socialmente
, e culturàlmenteasverdades:, a quem elasinteressam e.a-quem servem. Uma aula
de-história, como uma ,narrativa, implica· na definição de um., acontecimento,
. deum eventoparasertratado,a clareza .sobre o tempo e o espaço em que:esse
ocorre euma discussãosobre os traços que s.ingularizam e definem essarelação
,espaço-tempo: Implica a escolha de personagens, quais serão trazidos para. a
frenteda'cena e,guáis serão deixados nos-bastidores, escolha ética e política que
implicadar a narr:àtiva uma dada focalização. Como na fotografia, no cinema
óffnàtelevisão;escólhemos.onde colocamos,o foco de.luz de nossa narrativa.
Todo atonarrativo é constituído e explicita um regime de visibilidade e
um regimededizibilidade, implica . urn.regime,de·.luz ,que incide. iluminando
etrazendoàcenadados elementos e. personagens e ,desfocando, ·.apagando e
produzindo o esquecimento de outros personagens e elementos datrama:289 A
· aula dehistoria"é-urriatrania,.só se.realiza se traz a-cena, ·se encena, ·sexoloca à
frentedos alunos urna: dada configuração,uma dada encenação do-passado. O
professondefüstóriaeficiente é aquele que,ao narrar, faz seus alunos visualizarem,
imaginarem,experimentaremcomo sonhoe realidade, ao mesmo ·tempo; as
cenasque constrói com sua capacidade narrativa.Um professor de·históriatem
que ser,acima de tudo, umbom contador déhistórias; um ,bom.narrador, um
sujeitode discursocapaz deintroduzir emdadosmomentos da trama:da ·aula
osdetalhesanedóticos,os traçoscuriososdopassado, que terão nãosó o efeito
deatrair aatençãodosalunos,mas terão o condão deaproximá-los do tempo
narrado,produzindo o efeito •de yerossirnilhan.ça,a "aquilo· que· Roland Barthes
nomeoudeefeitodereal."?"A escolhadoanedótico,dos detalhes, dos aspectos

289. DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.


290. BARTHES, Roland.O efeitodereal. In: O rumor dalíngua. SãoPaulo: Martins Fontes,
2004.-S
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 225

mais cotidianos que vão sernarrados éum elemento fundamental nosucesso


de uma aula de história. Assim como a escolha dos recursos didáticos,dos
'documentos, das, imagens que serão utilizados,a escolha do que vai ser contado
é indispensável para a montagemde uma aula de história.
Na construção da trama que constituLa aula de história é também
importante a:definição do argumento, das ideias políticas, filosóficase éticas
que vão presidir a exposição. A dimensão teórica, filosófica, conceitual de
umaaula de história se manifesta desde a escolha do tema; do tempo e espaço,
dos -personagens a seremabordados,;mas é totalmente inseparável do tipo-de
problematização que se pretende apresentar, do tipo de discussão que se propõe
· aos alunos.Damesmaforma que aescritadahistóriaéinseparável da elaboração
deum problema, a aula de história também o é. Deve-se ir paraa aula sabendo
que tipo de discussão se irá propor, sob pena da aula não acontecer, já que,
comovimos, desde a Antiguidade a aula é o espaço de discussãolivre·de ideias.
Não se trata de pensar-o problema, a discussão como transmissão de ideias já
prontas- aí temos doutrinação, prescrição, dogmatização,nãohá efetivamente
discussão. O professor deve propor aos alunos temas e problemasparao debate,
para a dialética das-ideias; onde aparecerão as-pré-noções, os<preconceitos, as
• formulações do senso comum, os estereótipos que o professor precisa questionar.
Mais doque a escolha de umaforma de causação, como écomuma qualquer
narrativa, ele deve se preocupar com. os modos comoos eventos ocorreram,
suas condições de possibilidade, a forma de articulação. que adquiriram nos
vários relatos, nos documentos, nasfontesquedeles-dão testemunho. A aulade
história deve ser sempre um exercício de meta-história, ou seja, uma reflexão
sobre o escrever; o fazer historiografia eo ensinar história. A aula de história-deve
implicar uma reflexão sobre o próprio ensino da história comoum momento
de construção do próprio passado, como um momento deinvenção de versões
sobre os tempos, momento também filosófico e teórico denossa produção.
A presença da teoria e .da política no ensino da história tambémsefazna
escolha que fazemos dos conceitos, das palavras que vão funcionar comonós
de articulação·da.trama histórica e datrama narrativa. O professorde historia,
como o historiador, lida com conceitos da vida cotidiana, os conceitos que
configuram, dão sentido e articulam, que pertencem edão inteligibilidade à
própria temporalidade, à própria historicidade· de que ele trata, Os eventos
humanosjá nos chegam esó nos chegam através de documentos; detestemunhos,
derelatos, onde os conceitos já se fazempresentes. Ao contrário do quemuitos
pensam, o; conceito não é estranho e ausente dahistória comoacontecimento e
muito menos dahistória como relato. O conceito não é umacréscimo deluxo
feito pelohistoriador ao passado, retirando-os de autores e livros;· o conceito
já configurou a própria trama do ocorrido. Seriao mesmo que o thefseparar
osalimentos que serve dosconceitos que os designam e os nomeiam, que os
destacam e dão qualidades.
226 TECELÃO IX>S,TEMPO;

Quandoresolvemos abordarem sala de aula o dito descobrimento do


Brasil oufalardo processo de povoamento, ·estamos usando. dois.conceitos
bastantecontroversos e que. significam claramente narrar. a história de .nosso
país dopontode vista do colonizador. Da mesma-forma que escolher tratar da
Colóniaou doImpério significa escolher não apenas períodos históricos, mas
duasformasde governo, definidas·por dois conceitos distintos,que,atribuem
sentidosparticulares e politicamente interessados a .essas épocas históricas. Toda
auladehistóriadevepassar peladesnaturalização dos conceitos, dos nomes, nada
inocentes, que nomeiam os eventos de:que se vai tratar. Chamar o ocorrido em
1964 de golpeou âerevolúçãofazuma.enorme diferença e ela-deve ser explicada
aosalunos.Se o presidente Fernando Collor.resolveu nomear. triunfalmente
seu governo de NovaRepública, devemos abordar criticamente essa nomeação.
A aula de· história implica, portanto, em fazer- escolhas. conceituais,· que são
escolhasteóricas,filosóficas e políticas; O ato de nomear, de classificar, de definir,
de significar é urna atividade de· saber mas também de poder, de domínio. A
nomeação.é,•aomesmo tempo, uma indicação, uma assinalação e.uma tomada
de posse sobreaquilo que é nomeado.
Uma das tarefas precípuas do:historiador e do professor de histórica é a
problematização, a discussão em torno de como o passado é relatado,nomeado,
imaginado,apresentado. Se dar aula de história significaa própda discussão
do regime de historicidade·vigente é porque ela implica em se discutircomo se
organizaesenomeia, como sesignificaotempo;opassado, o histórico. Os modos
de argumentação que serãoonúcleo das discussões que o professor .vai propor
como aula:nascem das escolhas teóricas e conceituais que fizer. Mas. uma aula é
'acima de tudoa escolha de uma estratégia discursiva, de-objetivos a alcançar e
de recursos discursivos para alcançá-los. Quando se colocam os tais objetivos no
plano deaula,eles não estão aliparaapenas cumprir um rito burocrático.. Todo
discursovisametas, mesmo quando em-sua desorganização nãoprevênenhuma,
alguma-há de àtingir; nem que seja a deJracassar emseu intento de comunicação. A
.··dimensãoestràtégica do:discursoenglobaasuadimensão política, ética e estética.
Definidostemae problema, recortados conceitos e enunciados, adotado
dadomodo deargumentação, é a estratégiaque iráarticular todas essas peças do
jogo discursivo.Aoseelaboraruma aula, éfundamental sabero que esperamos
alcançarao seu final, quetipode discussão iremos propor, que imagens do
tempo edo evento de que vamos-tratar queremos produzir, que efeitos e afetos
pretendemosproduzirem nossosalunos. Da mesma maneiraque a escolha de um
regimealimentarbuscaprovocardados efeitos nocorpode quem alimentamos,
aescolhadedadosconteúdos históricos, dedados temas, problemas, conceitos,
enunciados, argumentos, devemvisar produzir dados efeitos nas mentes, nas
subjetividadesde quemensinamos. Aestratégia discursiva que adotamos deve
levarem conta, inclusive, osafetos, as afecções, as emoções, as comoções que
vai provocar em quem escuta.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 227

Devemos romper completamente com a imagem racionalista do ensino que


o pensava como direcionado apenas à razão, à consciência. Quando elaboramos
uma aula, evidentemente devemos pensar no que nela vai ser motivo de reflexão,
de pensamento, que mudanças nas formas de pensamento queremos alcançar,
mas isso não acontece apenas apelando para a consciência: Nós, humanos, somos
racionalidade mas também emoção, sentimento, afeição, inconsciente. A aula não
falará apenas com a consciência, ela será bem mais efetiva se provocar emoções,
se levar o aluno a sair de si no sentido de se comover, mover seu pensamento,
mas também seus sentimentos, para longe daqueles que tinha inicialmente
a respeito de dado tema. A capacidade de impregnação, de subjetivação, de
fazer efeito de uma aula está na razão direta de sua capacidade de seduzir, de
encantar, de fascinar, de emocionar, de comocionar quem a. presencia. Fazer
o aluno frequentar um outro regime de historicidade é levá-lo não apenas a
experimentar, mas a vivenciar uma nova maneira de pensar, mas também de
sentir, de figurar, de imaginar o tempo. Uma aula· deve alimentar a razão, mas
também a imaginação, a emoção, deve convocar a memória; inclusive a afetiva
sobre uma dado tempo.
Afinal, o sentido primeiro da palavra ensino remete a esse ato de produzir
marcas em alguém. Sabemos, por nossas experiências pessoais, que nossos
melhores professores, aqueles que chamamos de mestres, foram aqueles que nos
marcaram de forma definitiva, no pensamento, no. corpo e na subjetividade. A
palavra ensino vem da contração das expressões latinas in + signare, que possuía,
justamente, o sentido de pôr marcas em outrem e, por extensão, pôr marcas
nas coisas, assinalar, indicar, designar, mostrar as coisas, torná-las legíveis. Daí
por que, em espanhol, a palavra ensefzar significa mostrar, apontar, indicar,
assinalar.291 Ou seja, a palavra ensino remete à propriedade que a linguagem
tem de indiciar as coisas, de apontá-las, de mostrá-las,de indicá-las, de torná-las
legíveis através das marcas particulares de designação que atribui a cada ente que
compõe o mundo humano. O ensino seria, portanto, essa atividade quase que
fundadora do mundo na medida em que indiciaria as entidades componentes
da realidade sublunar e humana, as nomearia, dotando-as de um sentido e de
um significado, permitindo que sejam ditas e lidas.
Todo trabalho de ensino seria, portanto, um trabalho de apontamento, de
direcionamento, de indicação de como se deve ler as coisas, quais os sentidos
que devem ter. Ensinar é apontar coisas e sugerir definições e maneiras de leitura
para elas. O ensino da história seria, portanto, o trabalho de construção, antes
de mais nada, das entidades histórica, a construção de um repertório de temas,
de eventos, de acontecimentos, de personagens, de períodos, de problemas,
que constituiriam o que chamamos de história. Em seguida, à escolha desse

291. REAL ACADEMIA ESPANOLA. Diccionario manual y ilustrado de la lengua esparola.


Madrid: Espasa- Calpe, 1950.
TECELÃO pos TEM!'aõ

repertório,viriaa escolha das maneiras de significá-Jos, de torná~.los-legív_eis,


compreensíveis emsuasingularidade e diferença enquanto evento e enquanto
temporalidade,de articulá-los narrativamente,de torná-Jos relato. Mas o passo
seguinte seriaaescolha damaneiracomoesserelato sobre as entidades escolhidas
produziriamarcas em outrem, :que estratégia narrativa deveria ser.escolhida para
que essasentidades uma vez aFticuladas num relato pudessem.marcar; deixar
marcasemoutras pessoas.
Oensino, através daaula, deveria-constituir um espaço-de seleção de
. entidades, de conexão narrativa 'delas;-visando um efeito e um afeto nos alunos
que a frequentassem. O espaço do ensino, a aula, seria um,-lugar de vivência
deexperiências, não apenas de recepção de conteüdos, de experimentação.de
mundos,de tempos,dehistoricidades, para além de um lugar burocrático _de
cumprimento de tarefas. A experiência de :ensino deve· ser marcante para ser
efetiva,deve deixar assinalada em nosso corpo, em nossa mente e em nossa
subjetividadeasua ocorrência, o seu acontecimento. Ensinar é marcar e decifrar
marcas. O ensino de história deve ser capaz de construir marcos.. e.-marcas e de
torná-loslegíveis, sejam os deixados pelo tempo, pelas ações dos homens, sejam
aqueles elaborados·e deixados-pelos próprios. historiadores.
Oensino de história,pensadodessa forma, romperá com-a visão do tempo
homogênea evazia de que falava Benjamin:292, com o tempo do historicismo. O
tempocomo uma linha, como um varal ondese vão pendurando os eventos
até que eles terminem por preencher todas as lacunas- e· vir a- saturar essa linha
.de:ternporali:dàde. Ele-.oferecerá imagens diveFsifi.cadas do tempo, mas sempre
tempossignifr0ativos,atempos heterogêneos e cheios de sentido, de significação,
saturadode vivências, experiências, sentimentos e emoções. Um tempo não
apenas cronológico,mas um tempo qualitativo, um tempo saturado de outros
tempos,de fragmentos, derestos, de imagens, de estilhaços de outros tempos
novamente vivenciados, experimentados como "agoras" O maior desafio, mas
tambémamaioralegria paraum professor de história; é quando ele toma efetiva
adifícil, complexa, mas linda imagem .construída por Benjamin ·em seu texto
sbbre·-,9: conceito de história; ou seja, consegue. construir um ·tempo· saturado
de "agoras" em que fagulhas .de esperança do passado voltem a brilhar ·num
instantedeperigo, oua bela analogia criada por Georges Didi~Hubennan293 do
historiadorcomo aquele que valoriza afrágil luz nascida do encontrode amor
dos vagalumes.
Agrande auladehistóriaé aquela em que os alunosfascinados veem
êintilara•sua.frentecpequenos,fragmentos de tempos outros-transformados em
"agoras"pela técnica emagianarrativado professor; quando eles veem a sala

BENJAMIN, Walter."Teses sobre a filosofia da histórià'.In: KOTHE, Flavio; FERNANDES,


' 292.
Florestan. Walter Benjamin: sociologia.São Paulo: Ática, 1985. . •
293. DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dosvagalumes. Belo Horizonte: UFMG;2014.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JCNIOR 229

ser povoada por pequenos pirilampos detempo, que fagulham,que esvoaçam,


que brilham e queimam, ao mesmo tempo, em seus olhos, em suas mentes, em
seus sentidos. Transformar o passado num agora implica mostrar sua conexão
com o que é vivido, nopresente, pelos alunos; implica em estabelecer conexões
entre os tempos, não para estabelecer meras continuidades, mas para encontrar
os pontos de semelhança e os pontos de rachadura, produzindo no colocarlado
a fado imagens de tempos diversos aquilo que Benjamin chamava de imagens
dialéticas, que se tornavam construtoras de dadas imagens do tempo ao se
constelarem. Uma aula de história se efetiva quando o professorexpõe acepipes
em um banquete para alunos; que vêm assim matar a sua. fome de· saber.
Se o objetivo do ensino é pôr marcas em outrem, é marcar o aluno; não se
pode ignorá-lo na relação de aprendizagem e de produção do conhecimento.
Ensinar não pode ser uma via de mão única; uma simples oferta de algo que vai
nutrir o estudante de informação e conhecimento. Uma aula, como a própria
origem da palavra indicia, deve basear-se numa atividade de discussão, de
partilhamento de ideias, de emulação entre distintas posições. Se educar é
conduzir alguém para fora, é estimular o aluno a uma aventura para fora dos
conhecimentos que possui e que, ao mesmo tempo, o constituem e delimitam,
o ato educativo também deve implicar a saída do próprio professor de seu lugar,
um deslocamento de suas verdades e certezas, uma saída de si para ir aoencontro
de seu aluno, para tentar forjar, com ele, um terceiro elemento instruído, como
chamará o filósofo Michel Serres."%
Se o ensino de história tem como finalidade-a produção de certo regime de
historicidade; sua compreensão e sua mudança, isso só poderá ser alcançado se
forem levados em conta todas as temporalidades representadas por cada aluno.
Cada partícipe de uma aula de história é produto e carrega consigo um feixe de
temporalidades. Será ao saber conectar esses tempos vividos com outrostempos
trazidos pelas fontes, pelos livros, pelas imagens, que o professor de história se
transformará num construtor de temporalidades e-fará os alunos assimilarem o
que é básico no ensino de história: a própria percepção da historicidade de todas
as coisas, de como elas constituem e definem a própria vida de cada um ali, como
a história está presente nas roupas que cada um veste, nos gestos que realizam,
nos costumes que trazem para a escola, nas palavras e gírias que usam, naquilo
que comem, na forma como se comportam, nas ideias e opiniões que emitem.
Há algumas décadas que se descobriu que tudo aquilo. que julgávamos
universais não passavamde singularidades universalizadas. Aciência e o ensino
ainda devem buscar a construção de generalizações, mas sem esquecer que elas
partem do singular. Oprofessor de história tem em sua aula a matéria prima
de trabalho, tudo à sua volta, inclusive ele mesmo, têm aqualidade que define a
historicidade: a qualidade de ser temporal. Tempos diversos habitam oambiente

294. SERRES, Michel. Filosofa mestiça: les tiers-instruit. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
230 TECELÃO DCJS JEMPoS

escolar, e bastaria o trabalharcomestasdiversastemporalidades para que o


ensino dahistóriasefaça presente.
o
Aquilo que FrançoisHartog chamouderegime de historicidade não éum
meroconceito, uma abstração. Ele évivido,da mesmaJorma,que nosso.regime
• alimentarnãoésó ocardápio ouareceitado nutricionista. Elesetransforma
emcorpo, emcarne, em sangue, emexcrementos, ele se transforma emvida e
târhhém,nos ma:ta;:.O:regime ,de, historicida:detàmbém • é vivido; é. encarnado,
marca os corpos, os constitui; osformata, os disdplina; o regimede,historicidade
fazpensarotempodeuma dadamaneira e com ele se relacionar; Dá,ritmo às
• nossas.p:tividádes 1t1ais ,banais; se:materiáliza .em •nossas.·narrativas,. sejam· de
cunho literário,filmico, pictórico,teatral, jornalístico,,midiático, .econômic_o,
• sociológi!io/historiográfico.O,regime-de ·historicidade.nutre todas:,as· çoisas
com dadasregrns·.parase·viver.e.pensaro tempo,.ele alimenta nossas.nostalgias
. e.esperanças; .configura e.·delineia nossas experiências e.nossas expectativas.
• Seo ensinoimplica..em deixar marcas ·subjetivas ,nos alunos, ,.devemos
rep.epsar,pr6furidametite.ahistórla que vimos.ensinando. Diante:da:conjuntura
· atu;ákdo:pzjs;dajgnorância de.nossa história,,que vemos .desfilar .pelas ruas,
.emcmariifestações qµe reúrrem,,,pretensamente, o;.que seriam,.nossas,elites
ecóriômicás,êlJantedosucesso·de.umaliteratura.devulgarização,históricaescrita
- por:,Jornalistas:eprofüsion:áis .não•habilitados na. disciplina, diante dosucesso
• 'que·as vetsões;rnidiáticas'dopassado conseguem amealhar entre ocpúblico, os
historiadoreseprofessores dehistóriadeveriam se perguntar o :queanda·errado
• çomâ:histo'riogràfiaque se.,produz,e.que se ensina. Observando esses usos que
.•sefazemdahistória, do passado,. me, parece que. o • elementocdiferenciál, em
.· ·telação ~qu:ilo,que ptoduzimos;na acaôernia e àquela. história •que ·ensinamos
na escola, estánacompreensão de que os relatos sobre o passado não. devem
remeter,objetivaratingirapenas a consciência, a .racionalidade,, a •inteligência.
'I'alyez;o qu:e:faça OêSUcessodestas ,narrativas :de· cunho histórico,talvez o que
facilite aassimilaçãodesse tipo ·deJiteratura· histórica,·. talvez o queexplique
que aspessoas se âlimentem avidamente .dessa. produção extra-acadêmicae
extraescolar, deglutindo pratosque para.nós ,historiadores ·parecem,' muitas
vezes,indigestos, éofato de que eles sãoescritos, eles são vazados em uma
n<'\.rtatiy,a.,que'sédirigetambém àssensibilidades,aos,afetos,·elasvisruncomover,
despertaremoções.
. s.(Q ráçion~stno .exacerhado:dahistoriogra:fiaacadêmica, sua'inabilidade em
afetar,emproduzirafetoseemoções, parecereduzirdrasticamenteo seu efeito.
Os'lii:stoiiadorest}prefessores dehistória,continuam racionaliza.ndote~licàndo,
portanto, apaziguando emseus efeitos os crimesmais hediondos ·cometidospela
humanidade.Ahistoriografia se tornou,no Ocidente, um• discurso .d&luto e da
sublimação,procurando rapidamentetamponaras feridas, fazê-las·dcatrizar,no
sentido depossibilitar novamente a vida e, talvez, nesse seu medtóriõ âfàapostou
na
sempremais produçãodo esquecimento do que na produção da memória.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 231

Contraditoriamente, a escritae o ensino da história tornaram-se empresas


de justificação dos grandes crimes edramas vivido pela humanidade,apostando
na construção de versões do passado voltadas mais para superar o trauma do
que para representá-lo. Enquanto vamos ao cinema para. assistir, a um filme
que trata da história de uma famíliajudia durante a Segunda GuerraMundial e
saímos, pelo sofrimento que assistimos, pelas emoções que vivemos, com uma
dimensão mais exata do que foi o drama humano do Holocausto, nas aulas
de história sobre esse conflito o aluno terá acesso a uma síntese racionalizada
em que a tragédia humana representada por essa guerra éexplicada através da
apresentação de suas motivações, de seus principais eventos,deseus resultados.
No máximo, em meio ao textoficaremos sabendo que morreram 85milhões-de
pessoas, transformando em cifra, em número, uma tragédia humana da qual
o aluno não tomará consciência porque não a terá sentido. O historiador e o
professor de história são capazes de sair da abordagem da Segunda Guerracom
seus aventais totalmente brancos.
A pesquisa- e o ensino - da história devem. proporcionar uma verdadeira
• experiência com o passado para os alunos, e só há experiência quando
vivenciamos algo em todas as nossas dimensões. Se a nossa vovó genocida,
pôde preparar o seu cartazinho, talvez junto com seus netinhos, desejando que
os militares tivessem matado todos os comunistas em 1964, levando-o para a
avenida e expondo-o sentadinha como se estivesse .em um convescote, em,uma
tertúlia, é porque essa anciã jamais vivenciou, de nenhuma maneira, o que éter
um filho torturado, ter uma filha assassinada ou um neto desaparecido."?°
Os historiadores fogem, por medo ou pudicícia, de falar dos corpos. Os
personagens históricos não têm corpos, como, aliás, os professores e alunos, na
escola, não devem ser seres corporais, não devem ter desejo ou sexualidade,
devem ser corpos decapitados, só levarem e disponibilizarem a cabeça para ser
entulhada de conteúdos, para não ficarem com a cabeça vazia. Diantede corpos
sensíveis, de corpos vibráteis, de corpos desejantes (ainda mais na adolescência)
o professor finge que dialoga apenas com cabeças, com cérebros, esquece que o
saber que fica é aquele que corta, é aquele que marca.
Se ensinar é marcar, se ensinar história é produzir marcas temporais, é
. discutir e fazer ver as marcas que o tempo deixa em nossos corpos, em nossas
vidas e nas nossas sociedades, o ensino da história deve ser capaz de exporferidas,
de remexer traumas, de expor a carne sangrando, os. corpos em sofrimento, os
homens em comoção. Não podemos continuar produzindo gentefrígidadiante
da dor passada, gente insensível à dor do outro, gente incapaz de se colocar no

295. Referência a uma fotografia que circulou nas redes sociais emque, numa das manifestações
emfavor do impedimento da presidente Dilma Rousseff, uma senhoraportava um cartaz
-onde estava escrita uma frase em que lamentava que todos os comunistas não tivessem
sido mortos pela ditadura iniciada com o Golpede 1964.
lugar enotempo dooutro, incapazes de imaginare sentir a dor lancinante da
peú,fa.âeunienteamado.Sea.escolaéolugarda produçãode subjetividades, é
o lugar da produçãode humanos.Que humanos queremosproduzir?,deveser
a perguntaprincipal.
. Desejamosproduzirseresfrios, calculistas e racionais, emseu ódio e em
seu crime, como foi amáquina nazista, ou queremos produzir pessoas sensíveis,
capazes devivenciare se,solidarizar com a dor do outro? Para isso, -0 ensino
dehistória seria um excelente·instrumento, permitindo .que ,vivenciemos e
compreendamos as ·dores·alheias;mas; para tanto, será preciso oferecera nossos
• ;atunos.•outro tipo de:álimentação.histórica, · talvez alimentos• mais intragáveis,
mais amargos,paraque estabeleçam outras relações com o. tempo,. com. o seu
• teajpo;,quenãoseja uma. relaçãode boçalignorância .e insensibilidade.
Osfascismos estão nas ruas,o fascismo sorri com .seus ·dentes:ávidos de
sangue em cada recantodo país. É preciso que o ensino de histórfa atue no sentido
de mostrarque ofascismo não foi apenas um regime localizado em um .dado
,país,etempo,•mas·um anacronismo·que•nãodeixa de nos:obsedar;·está a nossa
volta,ele é um regime que deglutimos e que muitos excretam todos os dias, em
cadauma de·suas relações, em cada uma de suas ,palavras. Contra,a violência
do fascismo cotidiano,a violência das imagens, de .seus crimes que .devem ;ser
expostas paraquevoltem a sangrar. O regime de. historicidade em que vivemos
exigequesirvamos nas aulas de história alimentos:que provoquem.repulsa e
vómito,jáque sãoessassensações que vivemos todos osdiasao frequentar as
redes sociais.
Capítulo12

Por um ensino que deforme: o futuro da


prática docente no campo da história

Mesmo que não aceitemos designar anossa condição histórica como sendo
pós-moderna, como enunciam autores de tradição filosóficas tão distintas como
Jean-François Lyotard, David Harvey e Fredric Jameson296, mesmo que não
consideremos apossibilidade de estarmos deixando de ser modernos, ou de que
jamais fomos modernos, como defende Bruno Latour"7, devemos nos interrogar
sobre o lugar, no futuro, das instituições sociais que surgiram com o mundo
moderno e que continuam ainda entre nós? Se aceitamos que, como, enuncia
Gilles Deleuze", estamos deixando a sociedade das disciplinas,tão bem analisada
por Michel Foucault299, e vivemos agora uma sociedade do controle, que papel
ainda podem exercer as instituições as quais aquela sociedade disciplinar deu
origem? A que mutações-estão sujeitas para continuarem a-funcionar em nossa
sociedade? Se estamos em uma nova configuração histórica, a que mutações estão
.submetidos os lugares de sujeito, as identidades, as subjetividades, neste novo
tempo e a que modalidades de processos de subjetivação estamos submetidos?
Entre todas as instituições que a modernidade fez emergir; entre todas
aquelas que a sociedade disciplinar proporcionou a constituição, a escola é
uma das mais exemplares, entre outros motivos por ser destinada à produção
de conhecimento, à produção de subjetividades, à produção de sujeitos, à

296. LYOTARD, Jean-François. A Condição Pós-Moderna. 7 ed. Rio de Janeiro:José Olympio,


2002; HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1992; JAMESON,
Fredric. Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. 2 ed. São Paulo: Ática,
1987.
297. LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. Riode Janeiro: Editora 34, 1994.
298. DELEUZE,Gilles. Post-scriptumsobre as sociedades de controle. In: Conversações. Rio de
Janeiro: Editora 34, 1992, pp. 219-226.
299. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 33 ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
234 ·TEGELÃO DOS:TEMPC6

construçãoe veiculação deidentidades, à<definição .de - lugares de sujeito., A


escola é uma dasinstituições sociais modernas que continua existindo entre nós,
nestestemposdecrise damodernidade.Instituiçãoque ainda goza. de_prestígio
social,secomparada com outras instituiçõesmodernas,.-como o .maniçômio
e a prisão,cadavez maiscontestados e defrontados com propostas imediatas
deextinçãoou reformaradical.Aindanão ,se ;i:t;nagina a: possibilidade deuma
sociedade sem escola, como -já achamos possível vivermos sem manicômios.
- -_- Cornó é'<.ntt;'.lç:terística·dasinstituições sociais, a escola, quase sempre, nos aparece
naturalizada,comose sempretivesse existido, comose não- fosse uma criação
sociaLe histórica recente, -como se não-fosse pensável o seu desaparecimento.
Aomesmo tempo,vozes detodosos lugares da sociedade enunciam acriseda
escola.e, comotarnb#m é comum-na história das-instituições modernas,-propõem
'ª sua urgente enecessária reforma._
• • :•Nesta anunciada crise âa instituição escolar, um tema que se debate, cada
. vezcorn maior vigor,é o lugar do professor-.. ComoJica oprofessornessarealidade
escolar queparecetornar-secadavez mais hostil às suas pretensões,de ensinar,
sero
• de sujeito da formação dos alunos? Atravessada e-sitiada .por. mudanças
económicas,políticas,sociais e culturais diversas, a escola, e com ela a profissão
docente, talcomofoi definida na modernidade, parece estar em processo ,de se
inviabilizar, ou, no mínimo, de perdera importância ea centralidade socialque
já teve. O desprestígio social do _professor, .da profissão docente, talvez .tenha
antecedido o própriodesprestígio social da escola, do ,ensino escolar. Talvez
tenhasidoum dos primeiros indícios: de que a instituição escolar já não gozava
da irrestritalegitimidade social que:àinda seacreditava possuir. 'Este desprestígio
do
social professor rião se materi_aliza - apenas na redução progressiva de sua
remuneração,em todos os níveis de ensino, mas.no próprio desprestígiff da
profissão,na perda de status, de valor simbólico da profissão na vida social.
• • Caberia,portanto, perguntar-se: o,que provoca esta crise da instituição
e
escolar por extensãoda profissão docenté? Se a.crise da sociedade moderna
implicou numa criseda escola, por que isso ocorre? E, diante desse quadro,
caberiaainda indagar se ainda ê possível ser professor ou que futuros .possíveis
a
aguardam profissão docente? Tentarei - nésse texto esboçar algumas análises
e levantar algumas possíveis respostas para essas questões; Questões' difíceis,
notadamente para -nós historiadores, que por muito.tempo fomos .treinados
paraignorarmos o..tempo presente, nos refugiando no passado,- que seria
pretensamente uma temporalidadeconcluída, fechada, da qual poderíamos
apanharumaverdadedeconjunto.Fomosaconselhados .sempre a -tnão nos
aventurarmosna análise do presente, porque,esteainda está em-fluxo, este ainda
está em movimento,::estamosmisturados,e implicados.nele, e isso dificultaria a
pretensaabordagemobjetiva e distanciada destarealidade. Princípio da alienação
doshistoriadores, regra g_uéfacilitava a estes profissionais se tornarem agentes
da legitimação justamente dos poderesdopresente,ela deve ser abandonada
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 235

para que possamos ter uma função social que não seja ada conservação e da
manutenção do status quo. Adesnaturalização do presente, a suacolocação numa
perspectiva temporal, a sua conexão aos devires; é-a nossa tarefa. Enunciar os
pontos de fuga, os-pontos de sutura, as virtualidades que habitam nosso tempo,
pode seruma dastarefas que ainda temos a cumprir.
A escola moderna foi ideada como uma instituição que deveria formar
o cidadão burguês, que deveria educar sob os princípios darazão, quedeveria
explorar as potencialidades das. faculdades humanas para tornar o homem· um
ser superior,sendo capaz de torná-lo um ser livre, dono de simesmo, consciente
de si, da natureza e dasociedade que o cercava. A escola tinha, seja na versão
iluminista, seja na versão romântica, a tarefa humanista de fazer do homem o
senhor do mundo-e de- si mesmo. Aí se 'devia transmitir. o saber queiria fazer
a criança sair de seu estado de menoridade e atingir o estado. de maioridade,
pelo domínio racional do mundo, superando os mitos, as mistificações, as
superstições,o estágio pré-'científico de domínio do mundo e dasociedade. A
escolaprometia preparar cidadãos, pessoas_que amassem a pátria; que amassem
a espécie, que estivessem dispostas a sacrificar-se em,nomedo-bem público, em
nome de sua pátria, em nome da humanidade. A escola surge, pois, como uma
maquinaria destinada a produzir sujeitos; a produzir subjetividades, a produzir
corpos treinados e hábeis, a produzirformas de pensamento e de sensibilidade
-adequados à ordem social burguesa.-A escola surge como uma das-instituições
destinadas a disciplinar corpos e mentes, a disciplinar o próprio saber, sua
produção e transmissão. A escola surge como local de produção de subjetividades
serializadas e massificadas, ao mesmotempo em que prometia formar indivíduos.
Nascida do processo de solapamento da centralidade dafamílianoprocesso
de- educação da criança, nascida do processo de governamentalização que leva
o Estado a interferir, cada vez mais, na vida doméstica, a substituir muitas das
atribuições antes reservadas a pais, preceptores, tutores, governantas, amas,
etc., a escola assume tarefas que; à medida que a sociedade se complexifica cada
vezmais, quese massifica, coma entrada deindivíduos pertencentes atodas as
camadas sociais, não pode mais atender.Embora seja mantida, em nível dos
discursos,a responsabilidade das famílias em relação àeducação dascrianças, à
medidaqueela se torna umatarefa de Estado; leva a-um afastamento progressivo
dos pais da escola e à crescente entrega da educação dos filhos ao aparato
escolar, quetende a se expandir para atendê-las cada vez mais precocemente,
desresponsabilizando os paisdetal tarefa - processo que atinge todas as camadas
sociais. A chamada criseda escola pública se dá, justamente, no momentoem
que osfilhosdas camadaspopulares adquirem o direito e as condições mínimas
denela ingressar. Elitista em sua formulação, pensadapara a formação das elites
dirigentes; embora desde o começo o discurso a destine ao povo, aescola se vê
inviabilizada quando grupos sociais com valores, comportamentos, hábitos,
costumes os mais diversos vêm aí se encontrar.A cultura escolar, uma cultura
·6 TECELÃO DOS "IEMPOS

marcadaporvalores burgueses,porvalores de classe média, sevê confrontada


comalunos que têmcomportamentos, valores, costumes,.formas de _ser,.cada
vezmaisdifíceis deconviver pacificamente. Os :conflitos• entre_ pessoas _cóm
concepçõessobre o mundo bastante diversas, comexperiências de vidabastante
diversificadas, tornam-se inevitáveis. ,Mesmo nas.,escolas:privadas,- nas .escolas
onde o púbico é mais homogéneoquando se refere à origem social,o choque
vai sedar,principalmente, com os professores;· originários quase ,sempre,de
outra realidide·social;n:f medida em·_que-o desprestígio da profissão atrai para
elapessoas das camadaspopulares. O desnível-social entre: alunos e professores
daráorigem a uma inversão da hierarquia de poder.tradicional na sala de aula.
Numa sociedade da mercadoria,do espetáculo, do status sinalizado por símbolos
• - externos de riqueza, o professor proletarizado ·vai,.cada: vez .mais,· destoar. de
• sua,dientela;-:Pensada.comodnstituição:·disciplinadora, a escola passa,a_yiver
uma criseda disciplina. As atitudes de delinquência, .tal·como entende,Michel
• de.,Cet:teau3?0; vêm cada,yezmais habitar o espaço ordenado, disciplinadoda
sala·. de aula.O alunorebelde,mal comportado, o aluno problema,torna-se
uma norma,e não uma anormalidade, uma anomaliaa·ser cercada, r:eprimida,
. •·_ ·- ex;.tirpada:\Os sistemas 'dassificatórios que, imperavam na escola,_ apanágio-de
___, todainstituição moderna,seus códigos internos·de-funcionamento,;seus· códigos
que marcavamfronteiras, queinstituíam hierarquias, que definiam inclusões
e,exclusõe_s~--que deciQiam,oprêmio e•apunição, que definiam excomunhões
e comunhõ,es/·patecení entrarem ruína. A· escola, - uma instituiçãovoltada a
reproduzir eensinar a ordem,se vêtomada pela desordem. E no meiodestas
mutações; atônito,oa,genteprincipalde toda estamaquinaria, o responsável ,pela
aplicação,quase sempreirrefletida e mecânica,destes códigos, ·o professor,- que
vê!sua:•a.utorida:de,tradicional contestada, que vê sua centralidade no processo
ensino-aprendizagemquestionada.
NasêidadO diséurso humanis.ta,. do.pensamento -político liberal, -a :escola
- é'inicialmente pensada como: uma atividade inerenteàs atribuições do Estãdo,
:que·.deve:,preparar'a·.élite dirigente que ·vaLocupar os postos da administração
pública,que deve ser.racionalizadae·gerida profissionalmente. A burocratização
--- do;Estadoatnódéruo;como-definiu Weber301, depende da formação de técnicos
; pelo ensinoescolar. Estetambém deve,•-jáno começo do séeulo XX,', prover de
mão-de-obra especializada as empresas capitalistas em expansão cada vez mais
acelerada.Inicialmentepensadacomouma instituição distanciáda dosintêresses
imediatosdocapital,ao longodo século XX ·as escolas se tornaram.lucràtivo
ramodenegócios,em quepoderosasempresas vieram atuar. As.boas intenções
definidasno projetoquedeuorigem à escola moderna se,veem assim atravessadas

300. CERTEAU, Michel de. A InvençãodoCotidiano. Vol. 1. Petr6polis: Vozes, 2000.


301. WEBER Ética Protestante e o Espíritodo Capitalismo. São
, Max.A Paulo: Companhia das

Letras,2004. - -
DURVALMUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR

porinteresses mercantis, ·que a tornam um simples investimento, tanto da parte


do empresário, como, emmuitos casos, por parte dos próprios alunos, que ali
vão buscar apenas um título que lhes dê acesso ao mercado de cargos e funções
no Estado, nasempresas ou nas profissõesliberais, sem que a preocupação seja
primordialmente com a aquisição de saberes e habilidades.
No Brasil, uma sociedade-profundamente hierárquica e excludente, aescola
foi, durante muito tempo, um privilégio de classe, de etnia edegênero. A escola
estava destinada à formação de uma dada elite que se dizia branca, notadamente
dos ;homens filhos destas elites. Pensar que. só a partir dos anos cinquenta. do
século XX o .ensino começa: a se massificar no Brasil, a chegar à zona rural,
outra realidade comumente excluída, a ser acessível às mulheres, a dar acesso
às- camadas médias e alguns. elementos da. raça negra, que ainda lutamhoje
em dia por pleno acesso a ela, dá a medida do caráter excludente desta escola.
Normalmente se lamenta. a perda de qualidade do ensino público no Brasil,
mas poucas vezes se diz queisso ocorreu,justamente, quandoeste deixou de ser
voltado para a formação das elites sociais. Este processo nós estamos assistindo
nas Universidades, em nossos dias. Da mesma formanão podemos deixar de
associar o declínio do prestígio social da profissão de professor, como-processo
de feminilização da profissão, notadamente, no ensino básico, ou ao fato desta
profissão ter passado a ser demandada,preferencialmente, por pessoas advindas
dos setores declasse média baixa ou mesmodos setorespopulares. Isso gera uma
espécie de círculovicioso: por ser umaprofissão desqualificada nomercado de
trabalho, ela atrai, no momento do acesso através dos exames, pessoas advindas
das camadas populares, que tiveram uma formação escolardeficiente, e essas
podem demandá-la, justamente, por seu menor prestígio.
• Numa sociedade onde a informação circula emabundância através de várias
centrais de. distribuição de sentido, em que a produção de subjetividades e de
sujeitos, em que a produção de identidades se vê cada vez mais descentrada da
escola, em que as mídias, as tecnologias de informação, a circulação eletrônica
dosaber, a própria diversidade das possibilidades de experimentação e de
aprendizado trazidas pela vida urbana, cada vez mais complexa e diversificada,
o. espaço escolar tradicional foi, cada vez· mais, um espaço • desinvestido· de
significação, de desejo, de sedução para os alunos e, mesmo, pata professores,
muito desmotivados· e quase sempre encarando o. ensino comoumamera
obrigação, um trabalho assalariado como outro qualquer: alienado, tedioso,
repetitivo, massificado, pouco criativo, uma tarefa que dela setenta livrar o
mais rápido possível. O desencantamento da escola; o desinvestimento social na
vida escolartraz para seu interioralunos e professores desmotivados, perdidos,
sem objetivos claros, preocupados apenas com a chancela queesta oferecepara
investimentos futuros na vida: seustítulos e prebendas quepassam sero fim em
si mesmo da vida escolar. A escola é cada-vez mais um espaço desinteressante,
um espaço que revelatoda a engrenagem disciplinar que a fundamenta, sem
1
238 TECELÃO J:JOS-JEMPOS

ôferécétcen::t co.nttapartidanenhuma .compensação· simbólica,. imaginária, .para


o.seuexistir. Aescola,como váriosprojetos modernos, diante de.,seu ;aparente
fracasso, poucasalternativastema oferecer.
Mas seráque aescola é mesmo umfracasso, será mesmo que ela estáem
ºr
·•·êrisê?;.W):icheLFoucâúlf3 ,,,aoiestudar··a.'prisão, . outra..instituição moderna, vai
chamar atençãopara ofato de quedesdequesurgiu a prisão é contestada.quanto
• à suaeficácia,quantoàsua capacidade deatender a seus objetivos. Desde que a
prisãqemergiucomdJorma.privilegiadade.punirno.Qcidentequejáse.enuncia
o seufracasso e sepropõe asuareforma. Mas, nos alerta Eoucault,. que reside,
· jüstamente; no :seualegado·-fracasso a'funcionalidade da:prisão, a sua· razão de
• existir,oseu sucesso em reproduziras.relações depoder,aordem social da:qual
surgiu.A prisão,ao contráriodo que trombeteiam:osdiscursosque a·legitimam
desdeoprincípio, não está destinadaàquelesque caem .em suas grades.Aprisão,
•· ernhora,,prometareCyperar te ressodàlizar'êiqueles-que vêm;para seuinterior,
nunca foicapaz de fazê-loe, no entanto, sua existência é· pouco contestada,
• justamente porque suafüncionàlidàde se destina propriamente.a quem está-no
seu exterior: ela serve paraamedrontar, para fazer a ordem eo,poder funcionar
juntoàqueles:,que àinda estão,fora dela,'Aameaça de ir ,para prisão paira,sobre
todos nós e..nos:fazadótar.atitudes ,conforme.a ordem,social requer.
·,,.Talvez,,possamos'pensarque.ofracassoda·escola também.sejasfuncional à
cSocieda:de em·,que,vivemos;:embora todos os discursos,políticos,·,pedagógieos,
c'rriidiáticos;ctratem·a escola ·e seu bom funcionamento como uma verdadeira
•··panaceia.que :Vai ·resolver· .os.•mais<diversosproblemas ,sociais. ,Realmente,
parecemos acreditarquea educaçãoescolarresolveria os.problemas•sociais,;os
, problemas políticos, os problemas de cunho moral e ético,pelos quais passamos.
l)amesmafotmaquereceitamosotrabalho como um poderoso. antídoto contra
o que consideramosserem,os problemas de nossa ·sociedade,·sempre fazemos o 0

mesmocoma educação. Embora sàibamos que a escola que.temos não.agrada


a ninguémqueestádentro dela,continuamos contraditoriamente ·achando
,que:êla'é:a,solução,paraosproblemas·dequem-dela:está.exduído;·Nurtca'nos
. pe;g:ill,itamos se essaforma de funcionamentoda escola não é·adequada a esta
ordemsocial produtorade hierarquias,<de 'desigualdades, de• exclusões, ,de
segmentações',que;témos:,:ra1vez o.estado social em que· nós·vivemos tivesse
dificuldadede se r;eproduzir ·se·a,escolafosse diferente do que é.
-Talvez,por mais contraditórioque possa parecer, a primeira atitude que
•·nóspróféssote$·possàmostomarpara:mo'dificar as.formas emanefras de ensinar
sejaquestionarmos aprópriaescola, o ensino escolar, aescolarização;seja a
problematização daprópriaideiadeformaçãoescolar que naturalizamos. A
próprionoçãode formaçãodeveserproblematizada, comofazMichel Serres>.

o2.
303.
FoüCkürrMtchet. o. c.
SERRES,Michel.Diálogosobre a Ciência, a Cultura e o Tempo. Lisboa. Instituto Piaget,
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 239

Conceito de matriznaturalista, surgidocom Rousseau"noséculo XVIII, anoção


de formação, ainda no século XIX, será transposta para o campo do humano, para
o campo do saber, levandopara eles umraciocínio evolucionistaquecomeçava a
surgir no campo da historia natural e que seria apropriado por campos de saber
tão distintos como a. biologia, a economia, a sociologia e a história. Essa ideia,
que aparece ainda em Lineau em-seu estágio inicial, como aquilo que dá uma
ordem às espécies animais e vegetais, que as organizam como árvores, como
ramificações nascidas de raízes e troncos comuns, que está presente na própria
semente, promessa de desenvolvimento posterior, degerminação de um ser que
vai se formar, ganhar forma progressivamente, com o tempo, vai aparecer com
força privilegiada no discurso pedagógico e psicológico. Torna-se consenso a
ideia de que somos seres que se formam; que ganham forma com o tempo, a
ideia de que cabe ao processo educacional; que cabe à escola, e nela. ao professor,
dar forma a esta matéria disforme; esta matéria plástica, esta matéria infante,
que é a criança. A escola seria assim lugar de modelagem decorpos e espíritos,
de construção de perfis, de personalidades, de caracteres, de almas e mentes".
A formação é comumente pensada como o processo pelo qual a criança
seria socializada, integrada· á ordem social, assimilaria os códigos sociais e
culturais hegemônicos. A formação escolar mostraassim, de saída, sua dimensão
conservadora. Formar-se seria incorporar os valores da ordem burguesa que se
tornava vitoriosa. A educação é pensada como formação, desde pelo menos o
final do século XIX, substituindo a educação pensada como instrução, como
mero acúmulo de saberes, como. a memorização e aquisição de uma grande
quantidade de informações, como erudição, que será criticada pornão atender
imediatamente o interesse sociale concentrar-se na dimensão intelectual da
educação, negligenciando aspectos como a educação física oua educaçãotécnica,
voltada para o trabalho. A educação pensada como formação vai se propor a ser
uma educação integral, que dá conta de todos os aspectos da vida, que prepara
física, mentalmente, moralmente o futuro cidadão. Apanágio da vitória final da
ordem burguesa, a educação como formaçãopretende moldar os sujeitos para que
se incorporem perfeitamente à ordem social. Quando isso não ocorre,aparecerá
o que se chama de fracasso escolar, e o aluno marcado com essa identidade será
cercado por uma maquinaria de práticas e discursos da pedagogia, da psicologia,
que visam corrigi-lo, recuperá-lo, discipliná-lo, puni-lo,visando seu sucesso e
seu retorno à ordem escolar.
A noção evolucionistadeformação tem como característica central pensar
aeducação como umprocesso contínuonotempo, como um processo contínuo
no espaço social. A escola queforma, forma para a sociedade daqualprovém, a

1997.
304. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Confissões. Lisboa: Edipro, 2007.
305. Ver: LARROSA, Jorge. Pedagogia Profana. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
·240 . TECELÃO DOS TEMPOS

• es·cola:seêólocacorrioum:espaçode,continuação,'dereprodução'daordem.social,
•.dotemposocialemqueestá situada. Emboramuitaspedagogias quese nomeiam
decríticas tenham pensado a instituiçãoescolarcomoumlugar ondesepoderiam
formar agentes críticos da realidadesocial, sujeitosdescomprometidos com a
ordemvigente, sujeitos capazesdetransformar a realidade social, esbarravam
. na própria aporiade se pensar, llffia pedagogia.crítica: uma pedagogia crítica é
• possível?Comouma maquinariade práticas e discursos que visam enformar
ou formaralguém, como um conjunto de prescrições pode levar alguém aser
crítico, se acríticanasceda possibilidade de ser deseducado;,mal educado, da
êapaddade de sé' deformàr, de propor e adquirir.novas formas de subjetividade
etn:destornpasso comas modelizaçõessubjetivas,assubjetividadesprêt.:.à-porler,
como dizRolnik,que a escola, que osmodelos pedagógicos·nostentam ensinar?
Porissovenho aquipropor que.precisamos deum professor,quedeforme
enãoquéfornie;.umprofessor que ponha em questão, primeiro em sua,própria
vida, emsua práticase discursos, os códigos sociais em que foLformado.
'Prófessotque·pense-nensinar-como uma.atividade deautotransformação, como
uma atividadediáriade mutação do .que considera ser sua subjetividade, sua
• identidade,seu Eu.O ensinarcomo aab,er.tura para se deixarafetar pelas forças e
•matérfas:sôciaisqueo;convocamaelaborar-se·permanentemente; a escrevera si
mesmo, acuidarde simesmo,numa atividade ética que pressupõe abrir~se para
o outro, para o diferente, para o estranho, ·para o estrangeiro,,para o não-'sabido,
o não-pensado, o não-valorado. ·Ensinar não. como uma,atividade centrada na
. transmissão' devêidades;·do que é.a·certeza, o aceito, ojá pensado; o consensual,
o que'sedácomoinqtiestionáveL Ensinar como.o ato de se abrir para.questionar
as certezas,as verdades, o aceito, o consenso, o.que-não se questiona:Ensinar
· pensado rião como urriaati½dadeque,supôe uma hierarquia, uma desigualdade
de saberentre professor e aluno, mas como uma atividade relacional; ·em que
·alurios-e,professor têmo que .aprender um com o outro.
Oensino que"âeforma seria aquele que investe na· desconstrução do.próprio
ensino escolarizado, rôtihizado,,:massificado, :disciplinado, -:sem - criatividade,
•. ·• monótono, oensino profissional,o ensino obdgatór'io, o ensino como máquina
de salvação ou demoralização. 0 ensino que deforma é aquele'que aposta-em
formasnovas, maneiras novas de praticar as relações deaprendizagem. Ensino
em quenão.teria lugar a rotina, ·a mesmice, a homogeneidade-dos· saberes e
procedimentos, emque a disciplina ouas disciplinas não seriam o fundamental,
masacriatividade,a capacidade depensar coisas novas, de formular novos
conceitos,de praticar atividades ;destótinizadas,túdicas,:atividades capazes de
estimulara sensibilidade,práticaseformas de pensamento capazes de oferecer
às criançasmatérias e formasde expressão.·•para-elaborarem subjetividades,

subjetivaremdistintasformas
•' . . ~ '
de sedizer
.
Eu. Talvez·· esse ·ensino, pa:ta,:existir,

.. 306. ,;;.:ROLNfl</SU:ely.';C4rtograji4SeritímentaH PcirtoAlegre:Sulina, 2006.


DURVAL MUN IZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 241

tenha que começar por acabarcom a instituição escolar. Como todainstituição


moderna, a escola vive sua crise terminal. As reformas não conseguirão, como
nunca conseguiram, modificar sua estrutura, que tendea tornar-se cadavez mais
desinteressante, insuportável, desinvestidade valor, de sedução, de desejo. Ela se
torna, cadavezmais, o que é emessência:um aparelho burocrático, umlugar de
rotina, uma repartição pública; e nós sabemos o quanto existe de criatividade e
deinvestimento subjetivo numa repartição pública. A escola está se. tornando,
como previra Kafka"7,afrontado com a burocratização da sociedade,um lugar
de zumbis, de professores e alunos autômatos, que não sabem direito por que
estão ali, mas que apenas executam rotinas, como peças de uma grande máquina
que, assim como na fábrica moderna,não sabem sequer qual o produto final que
estão produzindo. A desmotivação, a falta de adesão às atividades escolares, a
falta de se colocar à-disposição para o que aí ocorre, demonstra claramente essa
robotização da atividade escolar.
O ensino que deforma é aquele queinveste na desmontagem dos sujeitos,
dos modelos de subjetividades; das identidades dos que chegam à escola, tanto
de professores como de alunos. É aquele que questiona, descontinua os valores
que formam a sociedade circundante. Um ensino queproblematiza as verdades
que constituem nossa realidade, que põe em questão as verdades que articulam
as imagens de sujeito que cada um tem de si mesmo; É· um ensino que desorienta,
que desmonta, que torna problemática a relação de sipara consigo mesmo e
para com os outros, com a sociedade de que participamseus agentes. Um ensino
que não fornece certezas, verdades, mas que cria dúvidas, instaura o impasse,
põe em questão odogma e o que é tido como natural,justo, certo, belo, bom. O
ensino que desvaloriza os valores, que tenta pensá-los como produtos de dados
interesses e que eles têm uma história. Um ensino que desarrumao arrumado,
quegera a indisciplina no pensar e no agir. Para isso a escola deveria não ter
medo de rebeldia e de contestação; mas é tudo que seus agentes temem. Os
agentes da vida escolar adoram o aluno quieto, disciplinado, certinho, autista,
catatónico, deserotizado. O aluno padrão, que não se singulariza, aquele que
não se importa de ser apenas mais um, uma cifra, um número de matrícula, um
nome a mais na lista de chamada. Os agentes escolares adoram alunos que não
querem aparecer, que não querem se destacar, ou que se destacam por serem
obedientes, por seguirem todas as ordens, por não reclamarem, por serem bem
adaptados à culturaescolar.
Considero que o papel do professor na sociedade que, há de vir, se ainda
terá algum, está sendo irremediavelmente modificado. Oprofessorvaiperdendo
a centralidade no processo ensino-aprendizagem, que pelo menos pensava ter
na modernidade, paraassumir uma função auxiliar ou coadjuvante. O aluno

307. A crítica de Kafka à burocratização moderna encontra-se, por exemplo, em: KAFKA, Franz.
O Processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
TEGELÃO·DOS IEl\.1POS

assumeagora acentralidadedo seupróprio processo de aprendizagem. Tendo


• • • àsuadisposiçãoumsem número de.centrais,de distribuição·de saberes, o aluno
não dependemais tantoda escolaparasocializar-se,ter acessoa informações
· econhecimentosquepode adquirir com.:a,ajuda·.crescente••.de.máqµinas e
mídias.Oprofessorquenãoseatualiza, que não estáa par do que ocorre
nessescontextos midiáticos,rapidamente torna-se..um. professor.obsoleto,. \lill
professor tãoamarelado comosua ficha de .aula;.que .costuma,repetir.'.todos os
anos para seus alunos,que tenderão a -considerá-lo. uma•,relíquia:da:natureza,
como o celacanto. Nesteaspecto,nossoscursos urtiversitários ,de Licenciatura
podemserchamadosdefábricas de ,celacantos, porque· foFmam ,professores·já
completamenteobsoletos, professorespara uma sociedade..que,não·existe.mais,
paraumaescola que sóos admiteporque·é maisatrasada do.:que, eles próprios.
. Esse círculo viciosoestápondofim à escola eàprofissão docente. •Licenciandos
que':já são educadosdeforma obsoleta, :ao chegarem,,às escolas. ,constatam
desiludidos edesestimulados quesãomuitoinovadores e criativos-para a escola
·:qué:renconttam/Aten4ência·équerapidamente incorporem a culttrraesc.olar;-se
esqueçam dos modelos moderninhos qµe aprenderam·nas -a:ulas-:de· Pratica de
·Erísino·e·seconformerrràs•.demandase regras dessa cultura escolan:rotineira, e
quetem:poucohtgarparao.professor.contestador,ou<inovador.:A· maneira:como
:.os prôfessoresdehjstórfa,.utilizam osli.vros didáticos ·é.um exemplo,significativo
disso.A pósouviremdurante sua graduação inúmeras críticas aouso dolivro
didático c;;orn;q.:rnateriàl único e exdusivopara·o ensino·da história,·ao chegarem
·."às escolas, pressionados pela cultura escolar que consagraoclivrodidático como o
;1ínicoeprinêipalrecurso:didático a ser usado,,passam a reproduziressaatitude,
atéporqueela é mais fácil, elaevita maior.trabálho para. um-,profissionaLjá
. normalp1ente'.s9btecarrega:do.;por··diversostumos·tle·tràbalho.
- Vive-se nopaís a ilusãode que aescola será salva ·pela 'inversão ·de
ínáiOt<V:Olume.c.de recursosnopagamento de salários ·para :os professores -e. no
• a:pa::relha:mentó'emóélerrtização;dos.'espaços'físicosdas escolas; Da mesmáforma
que se consideraqueospresídios de segurançamáxima, ·éom•câmerasde vídeo
paravigiarospresos e combloqueadores de ceh.:ilares vão resolver,,O'problema
i'dàsFpriS.õesi,Nã.<>1resolverão;:porque.. oproblema,estánas ,próprias instituições,
.• I)'áS concepçõês: módernas•,que as ·forjaram. e :as·,,sustentarn. • A escola ,não é :só
· êoristituídatle,paredes; máquinas,:.:funcionários,,professores e,alunos::Aoescola
um
éumacultura, conjunto de concepções filosóficas, políticas,. pedagógicas,
.éticas;:,ec()119ri;licas,~jurídiças,• ·que ,a\instituem•e;cons.tituem. A: escola é ·uma
redederelaçõeshumanascomtodas asdimensões que estas compreendem.
Aumentarsalários não égarantiade professores maisengajados navidaescolar,
maismotivados,mais criativos,menos dóceis. emrelaçãó à: cultura:escola:r. Talvez
mais bem pagos elessetornem,na verdade, mais dóceis, mais conformados,
maisadaptados à ordem, mais rotineiros, mais satisfeitos com o statusquo. Os
o
melhoresequipamentosem nadamodificarão ensino se suaconcepção não se
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 243

modificar, pois depende do uso que deles seráJeito, Uma boa biblioteca numa
escola não é garantia de melhor ensino, seos professores e os alunos não se
dispuserem a fazer um uso criativo e singular dela.
Nunca pensamos porque o Estado, as elites, aqueles que dominam
apresentam a escola como sendo a salvação para todos, embora. a-abandonem
muitas vezes a um.estado de penúriafinanceira; Isso demonstra que a escola não
os incomoda; queaescola tem se comportado bem em seupapel de reproduzir a
ordem, de reproduzir a exclusão social, de reproduzir-os preconceitos e conceitos
que sustentam esta ordem social. Talvez por isso mesmo não tenha atraído a
atenção, tenha sidorelegada ao segundo plano; Não porque secomportemal, seja
um perigo para o poder e para a dominação como certos discursos advogam. As
esquerdas sempre adoraram a escola e a educação, considerando-as formas de
libertação e de produção da consciência crítica. Nos países em-que conquistaram
o poder de Estado,investiram maciçamente em educação, escolarizaram toda
a população, fazendo de toda rede de ensino uma fabulosa maquinaria de
reprodução ideológica dos regimes. Nesses países, como nos nossos, as escolas
também têm se comportado muito bem, têm desempenhado seu papel de
reprodutoras da ordem, de fabricadoras desubjetividadesmassificadas eem série,
corpos e mentes dóceis e a serviço dos regimes, seja de que extração política
seja. Talvez por isso sejam esquecidas, abandonadas, deixadasentregues ao seu
cotidiano rotineiro e empobrecido emtodosos aspectos. Já que não incomodam,
para que se preocupar com elas? Os· professores mal pagos não continuam
desempenhando o seu papel de não questionar a sociedade? Sua negligência
justificada pela remuneração insuficiente, sua faltade empenho, sua pouca
criatividade, seu baixo investimento subjetivo. em suas atividades, não fazem
tudo continuar como está? Então, para que se preocupar com eles? As atitudes
dos professores legitimamaté o pouco que ganham, então para que dar a eles
remuneração digna, se eles não desempenham dignamente as atividades quelhes
.são conferidas? Os professores esperam ter melhores salários para melhorarem
como professores e sendo ruins legitimam que os salários sejambaixos. Os
alunos são ruins porque os professores e a escola são ruins, eassim se justifica
que assim continuem, já que tanto os professores quanto a administração da
escola terão um álibi para continuarem ruins,já que os alunostambém o seriam;
a culpa seria, portanto, deles. Esse jogo· de empurra· demonstra a falência da
instituição escolar e a necessidade de que pensemos· outras formas de educar,
outras formas de ensinar, outras formas de sermos professores e alunos, talvez
livres da escolarização; dessa instituição moderna em vias dedesaparecimento.
Capítulo 13

Fazer defeitos nas memórias: para que


servem o ensino e a escrita da História?

Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas


leituras não era a beleza das frases, mas adoença delas.
Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor,
esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse· um sujeito: escaleno.
- Gostar de fazer defeitos na frase é muito saudável,
o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
pode muito que você carregue para o resto da vida um
certo gosto por nadas...
E se riu.
Você não é de bugre? - ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em estradas -
Pois é nos desvios que encontra as melhores surpresas e os
araticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seuidioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
gramática.
(Mundo Pequeno - Manoel de Barros)"0%

308. BARROS,Manoelde. O Livro dasIgnoranças. São Paulo: Record, 1997.


246 TECELÃO DOS TEMPOS

AHistória, quando surgiu comouma modalidade de conhecimento, como


um gênero narrativo, na Grécia Antiga, devia atender a duas funções: memorizar
os feitos humanos, os acontecimentos grandiosos e extraordinários que esses
fossemcapazes de realizare servir de exemplo, servir deguia para as ações futuras.
Articuladaa uma concepção do humano que o considerava como universal e
imutável, esperava-seque, em circunstâncias idênticas, os homens tendessem a
repetir os mesmoserros e acertos, tendessem ase comportar do mesmo modo.
A História evitaria que oshomens viessem a cometer os mesmos equívocos por
falta deexemplos e modelos a seguir."? Como bem expressará o tribuno e escritor
romano Cícero, a História seria a mestra da vida, memorizando e exemplificando,
cumprindo assim tanto uma função política, já que os assuntos relativos às
formas de governar, à maneira como chefiar, como dirigir os cidadãos em dados
momentos decisivos, como numa ocasião de guerra ou de ameaças externas -
assunto predominante dos relatos históricos - quanto uma função moral, já
1quetratava.depôrem discussão os valores,os princípios, os comportamentos,
os costumes, asleis, os conceitos, as paixões e os sentimentos que dirigiam e
explicavam as ações ·humanas, em .dados momentos, em dadas situações. A
História realizava não só uma avaliação política e moral das atitudes tomadas
por aqueles considerados dirigentes das cidades, submetendo-os à valoração da
justeza de·suas ações; mas também avaliava a moralidade, a justiça e a sabedoria
políticadasatitudes e das crenças dos cidadãos daprópria cidade a que pertencia
o histor e dos dirigentes e povos das cidades, dos impérios e reinos amigos ou
inimigos. A História cumpria assim o desígnio de educar as futuras gerações,
de educar moral e politicamente as futuras elites dirigentes, transmitindo
experiênciae sabedoria para os futuros governantes. O histor era alguém que,
tendo presenciadodados acontecimentos significativos, dava deles testemunho,
procurando extrair ensinamentos, avaliando criticamente as ações ali realizadas,
procurando extrairdos eventos as suas verdadeiras motivações, para que, a partir
desses exemplos, houvesse o aperfeiçoamento das artes de governar, de fazer a
guerra, de distribuir justiça. A História ocupava-se aí dos acontecimentos do
presente, seu recursoao passado se dava na medida em que este ajudava a tornar
inteligíveis os eventos extraordinários que o narrador presenciava, e dirigia-se
aofuturo,na medida em que sejustificavapelas memórias e pelos ensinamentos
que transmitia. Feita para educar e moralizar, a História atingiria melhor seus
objetivos setambémconseguisse deleitare seduziros espíritos, se ela conseguisse,
atravésda beleza de sua narrativa, através do estilo em que era vazado o relato,
prender a atenção da plateia que a escutava ou daquele que se dedicava à sua
leitura. O histor deveriater uma preocupação estética, pois da beleza do relato,
da arte com que este era urdido, da. destreza com que· o narrava, do movimento
eda vivacidade do texto· dependia seu sucesso, dependia sua capacidade de

309. HARTOG, François.OEspelho deHeródoto. Belo Horizonte: UFMG, 1999.


DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 247

seduzir ouvidos e almas. A felicidade na escolha das palavras, das figuras, das
imagens, a capacidade de fazer o evento narrado colocar-se à frente do ouvinte
ou do leitor, a capacidade de encenar, de pôr em cena, de pôr diante dos olhos
algo ausente, era decisiva para que o texto histórico conseguisse impregnar no
espírito de quem o ouvia ou lia a mensagem que queria transmitir. Como um
sinete em uma placa de cera, o relato histórico deveria produzir impressões
profundas no espírito de quem o escutava ou de quem o lia, devia ser capaz de
deixar nele impresso, marcado, impressões indeléveis, ensinamentos e exemplos
para jamais ser esquecidos. O relato histórico devia impressionar, deleitar,
memorizar, educar e moralizar.31º
A História, que por muitotempo foi considerada um gêneroliterário, uma
arte, embora devesse ter compromisso com a verdade, nas palavras, de Tucídides
"devesse ter a preocupação em contar como as coisas se passaram, extraindo
delas lições", vai ser designada como sendo uma ciência ainda no século XVIII
com os pensadores iluministas. Mas será no início do século XIX que, em
grande medida, a prática historiográfica passa a obedecer a regras distintas
daquelas que presidiram a escrita da História, desde a Antiguidade Clássica,
com o deslizamento e alteração de sentido do topos história magistra vitae.
Em 1810 é criada na Universidade de Berlim a primeira cátedra de História,
entregue mais tarde a Leopold von Ranke, dandoinício assim à profissionalização
do ensino e da escrita da História, tornando-a um saber universitário, com
aspirações à científicidade e a serviço de objetivos e funções que serão traçados
pelo Estado que promove, avalia e fiscaliza a docência e a produção na área.
A profissionalização do ensino e da escrita da História na· Prússia faz. parte de
um processo de modernização administrativa, de reforma do Estado, que se
seguiu à derrota para as tropas napoleônicas. A invasão pelas tropas francesas,
a derrota nos campos de batalha fizeram com que as elites prussianas avaliassem
a necessidade de reformar não apenas o preparo militar de suas tropas, como
também defendessem a necessidade de se preparar subjetivamente tanto as
tropas como toda a população, de onde essas eram recrutadas, para que elas
demonstrassem maior disposição na hora de lutar e defender o que essas elites
definiam, agora como sendo a nação. A adoção do ensino da História, não
apenas na Universidade mas nas escolas públicas surgidas, justamente, a partir
da Revolução Francesa, passa a ser visto como um ingrediente indispensável,
como nos diz Benedict Anderson," para a criação desta nova comunidade
imaginada, a nação, comunidade que deveria vir a substituir as, solidariedades
e as relações comunitárias locais, em grande medida destruídas com o fim dos
vínculos feudais e com a concentração crescente da população nas cidades, com

310. HARTOG, François. Os Antigos, oPassado e o Presente. Brasília: UNB, 2003; MOMIGLIANO,
Arnaldo. As Raízes Clássicas da Historiografia Moderna. Bauru: EDUSC, 2004.
311. ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras: 2008.
'248 - TEC.ELÃO DOS TEMPOS

1
o desenvolvimentoda economiamercantile industrial. Constituir cidadãos,que
amassema nação,quesedispusessemsubjetivamentea viver e a morrer pelo
queagora senomeia de pátria, passa a seratarefa a sercumprida pelo ensino e
pelaescritadaHistória.
• • ·• ,,/A\Históri~ tontinua:·sendo_ pensada-e,praticada,. majoritariamente, .como
históriapolítica; agora,no entanto, como a'histó.tiados Estados·nacionais; .como
ahistória daquelesque encarnam e representam o governo das nações. :Tal
comonaAntiguidade, a históriacontinua tendoum caráterde exemplaridade,
elacontinua sendopensadacomotendoum caráter. pedagógico, acentuado,
agora porqueiráintegrar os,·curriculos.·de ·.instituições. de. ensino,-·tornar-,,se-á
matéria escolar. Elacontinua visando educar e -moralizar, sendo que agora. visa
formarcidadãos,mascidadãos que não habitam e não,são· representantes ou
dirigentes políticos de cidades,-mas de nações. A História .passa.:a ser ,história
nacional,história dos grandesfeitos e grandes fatos:que no decorrer.do.tempo
- manjfestatama.nacionalidade ou o que se chamaentão de espírito -ou .alma
- nacional e.teriam contribuído para a.emergência, legitimidade e glória de cada
riagão:Ma.s,;diferentemente do que-ocorria na Antiguidade, a: História,falaagora
prefere11ciâhnerite·:do.passado e não do presente. Passado visto como acabado
• e separado do presente;,ser-vindo, no entanto;-para explicá-Jo e para inspirar as
ações daqueles quesãoresponsáveis por dirigir e, portanto, por fazer a -história
de cadanação. A História visa,· portanto, construir o cidadão patriota,:aquele
queamasuanação,quetem orgulho de sua nação .portudodegrandioso,que
elàfoi,capázdéfazer,erepresentar-no passado; que se inspira na vida e nas ações
daqueles que, no passado, foram responsáveis ·pela sua constituição,-,sua -defesa
e seugoverno: os heróis nacionais, que ,c-onstituem o .panteão da pátria, onde
devemser buscados os exemplos de montlidade, :de· coragem, •de;grandeza e
desabedoria.A História passaa ser assim um•.instrumento.·-na-·construção• e na
reamalização _das·identidàdes,riacionais, na elaboração e .reprodução de dadas
narrativasdanacionalidade, das metanarrativas da• nação, que' sustentarão e
da.fão:sJJ.p,orte:aonov.o domínio burguês que se instaura.
Assim comona Antiguidade, a ,História - continua tendo .a função -de
moralizar,deensinarvalores,defornecer modelosde conduta; de orientar a ação,
no sentidodo aperfeiçoamentohumano. Além.deeducar; deformar cidadãos; a
históriadeve agoracivilizar,conceito j á-,existente entre-0s antjgos; mas que·ganha
uma centralidade euma importânciadecisiva nummundo que, desde século
XVI,ampliou-se cadavezmais,como conhecimentode novas terras e-de novas
popula.ções,;que-v:iu emeygirmovas faces.do hurnano:que nemsempre agradaram
ouforamconsideradas suficientementecivilizadas. A'.História-torna::.-setambém
- :a natrativa-,que,a.vàlia efüscute o·aperfeiçoamento dos costumes humanos, tal
como propugnada e praticada por Voltaire,aindano século XVIII. A História se
torna,alémde história da nação, história dacivilização, a narrativa da progressiva
dos
melhoria costumeshumanos, saber que oferece orientações de conduta eque
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 249

oferece exemplos de bons e maus costumes, que sanciona ou elogia as atitudes e


os -valores daqueles que foram personagens dos eventos históricos.
Embora na historiografia do século XIX possamos encontrarautores que
se destacam pelo estilo da escrita, embora possamos encontrar entre os clássicos
deste século grandes narradores, a preocupação com acientificidade, em dotar o
saber histórico de ummétodo que garantissea sua cientificidade, que levasse esse
saber a tornar-se rigoroso e metódico, irá sobrepor-se às preocupações estéticas
e estilísticas que acompanhavam a produção-historiográfica na Antiguidade; e
mesmo a produção erudita pós-renascentista. 0 caráter retórico da historiografia
passa a ser negligenciado, quando não explicitamentecombatido em nome
da cientificidade e da veracidade que deveria presidir o saber histórico. O
historicismo alemão, a escola metódica alemã, capitaneada por Leopold von
Ranke, vai se preocupar em dotar a história de um método que fosse capaz de
garantir que se chegasse a narrar o passado tal como ele efetivamente fora. O
método heurístico, apoiado na crítica documental, na análise da documentação
presente nos arquivos oficiais, serviria para estabelecer a versão correta, veraz,
definitiva para cada evento. Os chamadosfatos históricos, fatos únicos, singulares,
irrepetíveis, excepcionais, grandiosos, quase sempre envolvendo razões de
Estado, deveriam ser organizados cronologicamente e dispostos numa linha
do tempo que tinha como fio condutor o progresso da civilização. e a história
nacional. A História passa a ter, assim, a função de dizer a verdade sobre o passado
da civilização e da nação, servindo de inspiração para os homens do presente que,
com ela, aprenderiam lições, que por ela seriam convencidos de dadas versões
para o que seria a nação e o progresso, como deveriam comportar-se enquanto
cidadãos, que ideias, valores e costumes deveriam professar, praticar e cultivar.
No século XX, a Escola dos Annales e as várias vertentes do marxismo farão
a crítica a esse modelo historiográfico, definido como positivista; como a prática
de uma história historicizante, de uma história événementielle, ou de uma história
de "tratados e batalhas". Os historiadores, interpelados tanto pelas grandes
transformações históricas, pelas grandes tragédias humanas que pontuaram
o século passado, quanto pelas ciências sociais emergentes, pelasmutações
no campo dos saberes com a presença crescente e marcante da sociologia, da
economia, da antropologia, da linguística e da psicanálise, vão ter que. buscar
novas formas de atuação e de legitimação para a existência do saber histórico.
Tendo agora de concorrer no interior da Universidade, no campo académico,
com novos saberes, sequiosos por espaços de poder, tendo sofrido um enorme
abalo em seu prestígio por não ter sido capaz de prever ou de diagnosticar a
_grave.crise econôrnica, social; política e moral que se abatera sobre a Europa e,
porextensão, sobre todo o mundo ocidental, que culminou com asduas guerras
mundiais, a História terá que não só adotar novos pressupostos, alterar suas
regras de produção, como terá que buscar refazer seu prestígio social abalado,
se propondo a assumir novas funções; a ter um novo papel na nova realidade
250 -.TECEI.AO 005.J"JõMPOS

partejadapela Primeira·Guerra.Mundial. A vitória. da Revolução:_.Bolchevique


naRússia, como umadasconsequências imediatas deste conflito, a expansão
domovimento comunistainternacional, faz domaterialismo histórico uma
possívelrespostaaestacrisedelegitimidade da História.que seria; na verdade, a
crise da historiografiaburguesa, dahistoriografiapositivista, que acompanhava
.. aprópria crise de sua classe e domodo de produção ,que esta representava.
Coincidentemente,seráno ano deuma grave. crise· sistêmica do- capitalismo,
1929, que os historiadores franceses Lucien Febvre e Marc Bloch lançam o
primeiro número daRevistados Annales, emtorno da qualirádesenvolver-se
não sóummovimento derenovação das regras que presidiam a.produção do
saber histórico, como searticulará uma defesapública da disciplina, prop.ondo
paraa escrita eo ensino da história um novo pap.el:social.
Tanto omarxismo quanto a Escola dos Annales vão procurar. afastar a
•·HiStótia da,rriilitâncianacionalista·emque se vira envolvida no ·século .anterior.
Os traumascausados pelas guerras; que Jiveram na exacerbação do sentimento
. ·nacfonal.umdossêusêlementos desencadeadores,fatão que tanto.os'historiadores
marxistas, que têm no internacionalismo um de seus pressupostos - embora
muitostenham naufragado nas águas nacionalistas - quantoos historiadores
•que se,articµlam·emlorno da.Reyista dos 'Annales, • cujas-lideranças chegaram
aparticipar diretamente dos.horrores·da'Primeira Guerra,. como membros do
·exércitofrancês; vindo.Maré: Bloch a serassassinado como membro_da.resistência
francesa e como judeu pelos nazistas, quando daSegunda Guerra, se afastemde
uma historiografia queselegitimava como construtora, veiculadora e promotora
'dosentimerito•riacional,Acusada por artistas do porte do poeta Paul Valéry de ser
o maisperigoso,produto quea químicadocérehro,humanojáproduziu; atacada
portodos:os ladosporliteratos;· políticos e· por praticantes de outras 'ciências
sociais, peloque seriasua conivência coma,guerra,,por sistematkarnente ter dado
destaque e grandezaàsbatalhas, aos generais,aos tratados que a elas se seguiam,
às conquistas territoriais de caráter-imperialista, porter, sustentado e legitimado o
colohialistnó'eurppeu,que levouaos choques entre as próprias nações da Europa,
choques:que desembocaram nos cohflitos mundiais, a História terá ·que ter seu
presfígio,:sodal.restabélecido através. de' uma reavaliação doseu valor-para a
sociedade, ,pará a vida'.lmmana; valor-que havia sido posto em 'questão aindano
• • finaldo século XTX por Nietzsche,que indagavada ·utilidade.e das desvantagens
da História,tal como pensada pelohistoricismo e romantismoalernão, para a
vidahumana.?"?Deforma quase premonitória,o filósofo alemão havia chamado
a atençãoparaos perigos de uma História praticada como monumentalização
do passado, como antiquariato ecomo crítica de todos os-valores, ·aliada' a um
nacionalismoagressivo,militantee militarista.

312..Ver:NIETZSCHE,Friedrich. Escritos sobre a História. São Paulo: Loyola, 2005.


DURVALMUNIZ DEALBIJQUERQUE JÚNIOR 251

Por outro lado, a Primeira GuerraMundial significa tambéma perda da


centralidade que. a Europa tinha no: capitalismo. internacional. A emergência
de uma nova potência económica e política, osEstados Unidos, aemergência
da América como o novo farol da civilização.mundial,Jeva ao questionamento
da História eurocêntrica e etnocêntrica escrita até então. 0swald Spengler,em
livroque se tornou rapidamente um best-seller, aindanos anos vintedo século
-passado, O Declínio do Ocidente,313 falava da necessidade deserever o que chama
de o modelo ptolomaico da historiografia europeia, quetomava aEuropa como
ocentro da história universal, considerando todas as outras civilizações como
satélites de seu processo histórico. Aprópria ideia de história universal; uma
história evolucionista contada a partir da Europa, será profundamente abalada
pela emergência de ·novos.atores históricos de importância mundialcomo: a
URSS; o-Japão e a China, com a descolonização da Ásia.e<da. África:-no-pós-
Segunda Guerra, que leva ao surgimento de novas nações, que reivindicam,
muitas vezes seguindo o próprio modelo de comunidades nacionais ensinado
pelos colonizadores, a construção de urna história nacional quebuscareconectar
opresente com temporalidades eformações sociais. anteriores à colonização
europeia, construindo, assim, uma história descentrada da Europa. A ideia
de história universal, de história_ das civilizações, também será abalada pelas
narrativas-sob a diversidade cultural dospovosfeitas pela etnografia, campo de
saber que ganha grande destaque, notadamente no pós-Segunda Guerra com a
.obra de Levi-Strauss. Será dele urna das mais duras críticas não só à etnografia
evolucionista; ,que se apoiava na ideia da existência de estágios civilizacionais,
que hierarquizava raças e culturas a partir de noções como selvageria, barbárie
e civilização, mas também à ideia de história universal, à históriada civilização,
que colocava a Europa como centro do processo histórico. Chega a considerar
a História o mito do nosso-tempo, ao defender a existênciadecontinuidades
e de. estruturas milenares que seriam as responsáveis pelo ordenamento das
sociedades humanas; estruturas atemporais. A Históriatratariada temporalidade
do acidental, do consciente, do aparente, a etnografia daria contado regular,
do inconsciente; do estrutural, do·permanente,o que definiria a nossa própria
humanidade. Essa recusa da História será característica desta geraçãoque viveu
efoitraumatizadapelas guerras.314
Os historiadores marxistas desenvolverão, nesse contexto,novas maneiras
de dar sentido, de justificar a escrita, o estudo e o próprio ensino da História.
Não podendo abrirmão dahistoricidade de todas as formações sociais, de todos
os acontecimentoshumanos,pressuposto nuclear do materialismo histórico; os
marxistas tendem a ver, como jádisse mais acima, a crise de legitimidade da
historiografia como sendo fruto da prática de uma historiografia ideológica,

313. SPENGLER, Oswald. The Decline oftheWest. NewYork: Oxford II, 1991.
314. LEVI-STRAUSS, Claude.OPensamentoSelvagem. Campinas: Papirus, 2005.
252 _TECELAO:DOS TEMPOS

de uma historiografiaburguesa, uma :historiografia a serviço da Teprodução


da sociedade capitalista e de todas as suasinjustiças. O-primeiro passo para a
superação desta crise seria aadoção, por partedoshistoriadoresdo método
correto, doúnicométodo capazderomper como positivismo e com avisão
ideoló_gfcaque este representava; ó-único.método 'Científico capaz de desvendar
osverdadeirosmotores doprocesso histórico(o modo de produção e as
contradições declasse que lhesãoinerentes): ométodo .materialista histórico
e-'dia:létko.,Aaplicaçãodesse ,rriétodojrn.plicava-.em 'deslocar a centralidade
do\polífü:or,pelo menos do político,eiltendido.como a ação do Estado e de
.. seus agentes, paradarlugar à centralidade das relações:econômicas.e-sociais.
Mudança quetambémserá defendida pelaEscola dosAnnales, ,que se organiza
emtornode uma revista que- tem coma subtítulo: Economia e Sociedade. A
expansão acelerada docapitalismo;'.a crise:sistêmica e as consequências. sociais
.desâsb.·osàs-trazidas:pelacrise;de 1929 e, no caso do historiadores dos Annales,
o trauma trazido.:.pelos. acontecimentos .políticos· recentes,desde aPrimeira
.Guétra.até a invasão daFrança pelos nazistas,fazem com que se recuse·-o
políticocomo sendooterrenoprivilegiado doshistoriadores. Os·historiadores
marxistasnão recusarão o político mas, aocontrário, darãolegitimidade àprática
da história;pelo-papetpolítico que .esta pode·tlesempenhar ao ser estudada
:corretameI1.te;usando-seo·métódo adequado,·aopoder·desvendar osmistérios
da realidadedo presente, poder ajudar a compreender como se deu a formação
(d6,ctjntem.p,orâneo,-.apreendendo· o sentido do processo histórico, para-nele
poder-se atuarcom maior efetividade..A História, com o marxismo,.torna-se
· • um saber militante, quetemcomo papel ·desvendar a.verdade dos fatos passados
e cortsti:ufr d.futúro,-encohtrandoi· quase .sempre, o.modo 'de produção e a luta
de classescomo o cerne verdadeiro•dos acontecimentos. 'A História passa a ter
o papel de formar,hegelianamente, consciências,:tetá o papel-de desalienar; de
,pemiitir,que os.sujeitos históricosadquiramconsêiência; tomem conhecimento
do que efetivamente se passa a·sua·volta, de,queforças.inconscientes movem a
ordem social,as suaspróprias açõesi AºHistória,esctitaa partir-do materialismo
históricoromperia com a ideologia burguesa que sustentaria as versões da
história deturpadaspor interesses _:da. dasse,:pondo, a,nu,,suas -•contradições ·e
inverdades, permitindo que, aparelhados··com nsaber:histórico; tendo a histór-ia
namão, ossujeitos queseconstituíamnessepróprio processo de polítização e
, -desülfeii;.rção·ttazido pelo áprendizadodà:-histór,ia,,pudessematuar no sentido de
mudar a própriahistória,·de acelerar e,predpitar,seµ movimento na direção da
novaordem socialdesejada,uma ordemsocialmaisjusta, mais humana e mais
fraterna, sem exploração e sem miséria.Aescrita eo ensino dá História, para
osmarxistas,sejustifica eselegitimapor ajudar noprocesso de preparação das
condições subjetivas para a realização da revolução. A prática da História feita
·pelos historiàdtm;sm,arxístas,terá,grande:importância.ao,trazer para o campo da
históriaoutrosatores,outros agentes,ao trazerascamadastrabalhadoras para
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 253

o cerne da história, na medida em que defendem que é o trabalhoque institui


o social e-define o próprio humano. As lutas econflitos sociais,os movimentos
'sociais, inicialmente. também representados por.suas lideranças e. por seus
partidos, numa espécie de reduplicação da lógica dahistoriografiaque criticavam
-que também centrava a história emgrandes homens e nas instituições e, mais
recentemente, rompendo.com essa visão e trazendo paraanarrativa-his.tórica
todos os personagens representativos dos chamados "de baixo, de todos os
vencidos, de todos aqueles que constituem o que seriamas camadas sociais ditas
subalternas - tornam-se .a - temática privilegiada ·dessa historiografia e motivo
para sua legitimidade social.
- Os historiadores dos Annales, embora se recusem a subordinara'História
• a um papel militante,· não deixam de reconhecer.o. caráter políticoda História,
tendo permanecido sempre a nação como. sendo o horizonte de sua :produção.
O próprio Fernand Braudel, em suas últimas obras, volta a tomara França e a
nacionalidade francesa como referência.?"° Creio que a formacomo pensamos
hoje para que serve a História, qual a função social que tem o escrever, o
- estudar e o ensinar História, advém, em grande medida,das.reflexões.feitas
pelos historiadores dos Annales, desde os livros pioneiros de Febvre e Bloch,316
até aqueles ·publicados a partir da. década de sessenta do século passado, sob o
impacto dos· movimentos de contracultura, das revoltas estudantis, com seu
'ápice no maio de 1968, com o descrédito crescente do marxismo, notadamente
em sua visão oficialdos Partidos Comunistas, com as ameaças deextermínio
da humanidade pela Guerra Fria e a corrida armamentista, com o impacto das
últimas guerras dedescolonização como as guerras daArgélia e do Vietnam,
coma centralidade das discussões em tomo do papel que alinguagem,aimagem,
-- a comunicação, as tecnologias audiovisuais têm para a -construção do que
chamamos de realidade e para a elaboração, veiculação e-guarda das próprias
memórias,. na medida em que os meios de, comunicação de massa· passaram
ater uma presença. decisiva em todas as sociedades. A esses acontecimentos,
veio acrescentar-se a débâcle dos regimes ditos socialistas do leste europeu, as
.mudanças estruturais no capitalismo, a chamada globalização, como que David
. Harvey317 chamou de compressão espaço-temporal, levando a, uma circulação
mais intensa de capitais, informações, produtos e formas culturais,,populações,
e a emergência do que se vem chamando de pós-modernidade,,.que se constitui,
no plano do pensamento, como uma crítica aos pressupostos iluministas que
estiveram na base de muitas formas de pensamento no Ocidente. E a partir
dessas e de muitas outras mudanças significativas no próprioprocesso histórico

315. BRAUDEL, Fernand. Identité dela France. 3 vols. Paris: Champs, 2009.
. 316. FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Lisboa: Presença, 1989; BLOCH, Marc. Apologia
da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro:Jorge Zahar,2002.
317. HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. SãoPaulo: Loyola, 1992.
254 TECELÃO DOS TEMPOS

e de mudançasparadigmáticasno campo do conhecimento que devemos refletir


sobre para que servea História hoje, que utilidade social pode ter o produzir. e
oensinar osaberhistórico emnossos dias.
. .· __';Aprenciemoseom os historiadores dos·:A:nnales que a-História seJaza-partir
do presente epara o presente. Ao contrário•do·que ôefendiam -osnistoriadores
vinculadosàs escolas -metódicas,:o· passado não faz sentido em si mesmo ·e não
estádesconectado do contemporâneo.Opassadonão possui uma verdadeJechada
em simesma,masestá sujeito apermanente reelaboração de sua inteligibilidade
:.a parti( dasSquestõ_esrdas.perguntas, dos problemas. que lhe são formulados a
- •. partir:das preOcupaçõés, das condições históricas,dopresente em que esteé
. intetrqgad,o;estüdado,-analisado,:ensinado.AHistóriaproduzirá-versões distintas
paraopassado, otratará sob novas perspectivas;,lhe,dará novas abordagens à
medidaqueas próprias transformações· históricas_ assim requeiram: O passado,
portanto,éelaborado, pensado, tratado.na:sua•relação diferencial com o presente,
-ele,.existex;iesta\escava,ção qlie,.seJaz a·partirdo contemporâneo; buscando a
construção daslinhas de separação, dasfronteiras,·dós marcos-que separam as
duastemporalidã.des. Uma dasfunções sociais da História é construir.opassado,
.· -· é dotar a sociedade deumavisão do tempo·que-vá alémdaquilo que se define e
se pensa comopresente. A História serve para·que possamos realizar, -no plano
doconhecimento,no plano do pensamento, no plano do imaginário, no plano
damemória,aquiloque não podemos fazer no plano da realidade e da empiria:
sairmos do presente, nos ausentar _dessa temporalidade que nos cerca, olhar esse
tempodefora, ter comeleuma relação dedistanciamento, deestranhamento, ter
dele uma visão perspectiva. A:Histórianos permiteatravessar o rio,.dos-tempos,
comodizia Jules Mkhelet;• o historiador,, tem o. compromisso em:atravessar o
• riô da morte;, tem-um compromisso comos mortos;ern,trazê-los novamente a
,vida,,ipara que_suas.ideias;.·suasações,seus..:gestos. continuem ,repercutindo-no
presente, instaurando umdiálogo tensoe diferencial comotempo e os vivos·que
somos.A História tema'importantefunção-de desnaturalizar o tempo presente,
defazê-lo diferiremrelação aopassadoeao futuro, no mesmo momento que
tornaperceptível comoestas temporalidadesseencontram, comO"elas só existem
emaranhadas, articuladas emcada instanteque passa,.em cada evento que ocorre.
A Históriaservepara que se percebao ser do:presente:como· devir, ·como parte
deum processo marcado /pelas. ruptu,ras:e;descontinuidades;-masctambémpor
continuidadesepermanências.A escrita e oensino daHistória nos convidam
a fazer umaviagemparaforadonossotempo, nospropõem que recuemos até
o passadoedeláolhemospara oquepensamossernosso presente, podendo
ter assimumavisão diferenciada, uma visãocomo que de fora, uma visão _que
.pebiiítevê-losobn;ovos»côntornosi:A História-epossui,·assim,esta:funçãolúdica
de brincarmosdesair dopresente, detentarmosimaginar como viviam, como
sentiam,comopensavam oshomense mulheresdo passado. A História nos
a
permite, pois, relativizaçãodetudo aquiloquedefine nossotempo, permiteo
DURVAL MUNLZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 255

aprendizado de que aquilo que somos éapenas uma forma de ser entre muitas,
nos permite saber como chegamos a ser o que somos e que esta forma ou estas
formas-não são as únicas possíveis. A História nos possibilita entender o presente
como diferença e ao tempo como diferenciador,nos permite perceber que o
ser do tempo se diz na diferença. Portanto, uma das tarefas.contemporâneas da
História é o ensinar e o permitir a construção de maneiras de olhar o mundo,
de perceber o social, de entendera temporalidade e a vida humana. A História
nos: ensina a desnaturalizar, ter um olhar perspectivo, atentar para as diferenças
e relativizar nossos valores e pontos de vista.
A História, desde a Antiguidade, desempenhou o papelque é comum a todos
aqueles saberes que, na modernidade, foram agrupados sob o nome de. Ciências
Humanas, que é o de formar subjetividades; o de produzir a própria humanidade
daqueles que são definidos como humanos. A História, quando se torna matéria
escolar, explicita esse papel de formadora de sujeitos, esse papel de construtora
de formas de ver, de sentir, de pensar, de valorar, de seposicionarno mundo.
Embora tenda a ser desqualificada socialmente, porque seria um. saber queseria
desprovido de uma utilidade imediata, não seria uma tecnologia a serviço da
fabricação de artefatos, a História possui a utilidade de produzir o artefatomais
complexo e o artefatomais importante da vida social: o próprio serdo humano, a
subjetividade dos homens. Quando, muitas vezes, somos interpelados com certo
ar. de despre:fo sobre para que serve o que ensinamos e o que escrevemos, devemos
responder que a História serve paraproduzir subjetividades humanas; serve-para
humanizar, serve para construir e edificar pessoas, servepara lapidar e esmerilhar
espíritos, serve para fazer de um animal um erudito,um sábio, um ser não apenas
formado mas informado; de um ser sensível fazer um ser sensibilizado. Fabricar
pessoas no mundo. de hoje, como em tantas outras épocas, não é tarefadas mais
fáceis. Mas que tipo de pessoas a História se propõe a formar hoje? Que modelos
de subjetividade são veiculados ou devem ser veiculados, deforma majoritária,
pela historiografia e pelo ensino da História?
A. História implica o aprendizado da alteridade, o aprendizado da
possibilidade da existência de outras formas de sermos humanos; o aprendizado
daviabilidade de outras maneiras de se comportar, da existência de outrosvalores,
de outras ideias, de outros costumes que não aqueles dos homens e mulheres
contemporâneos. A História permite o aprendizado da tolerância para com o
diferente, com o estranho, com o distinto, com o distante, com o estrangeiro.
Para isso, a historiografia contemporânea aprendeu com a antropologia e com a
etnografia a recusar a concepção iluminista de naturezahumana: uma natureza
universal, tendente a se desenvolver na direçãode umtelos predefinido, em que
dadas formas de existência seriam tomadas como formas inferiores daquela que
seria a forma· superior e paradigmática.
O diálogo da História com aantropologia, com a etnografia e coma
psicanálise levou não somente a que se desse importância e destaque à própria
, TECELAO.DOS.TEMPOS

diversidadedasformasdevida,dostipos deorganizaçãosocial,dosvalores,dos
costumes, doshábitos,das práticas e dos símbolosqueinformarama vida social
dassociedadesdo passado, notadamente entre:associedadesque pretensamente
viveriamnuma pré-história em J;elaçãoiàqueles;,;que ;viveriam .na história,.-mas
• tàm:bêrrfàidiversidade.tonstitúinte das.sociedades.eculturas,donosso.. presente,
. donossotempo. AHistória nosensina aprestaratenção ao Outro, _a _medir
nossa distância e nossa diferença emrelaçãoaele, não para recusá-lasou para
construiruma hierarquia entre elas, mas paraaceitá-las emsua distância e
diferença mesma. Foi preciso que a historiografiHompessecom o historicismo
esuabusca de descobrir sempre o mesmo rosto'<lohum;mo, em qualquer época
e· lugàr; .projetando sobre o passado• a ,definição :do'humano ou- o, rosto ·que era
dito éon;io himiano: no:presente;-para;· consfatada,a:: diferença, pro-curar anulá- •
la,repondo asemelhança, fazendodo personagem do passado umde nós; ,pelo
a
menos promessa de ser nofuturoumdenós ou defini-lo como um serainda
emdéfcit, emdefidênciaem relação ao estágio decivilização.que o presente e a
.· sociedade e acultura da qualfalavao historiadonrepresentaria, para,diagnosticar
· 'que:qs.personi!gensdopassadcràindaviviam·emestado·deselvageria, debarbárie,
ainda viviamna menoridade,aindaviviamnaalienação, naiffconsciência, eram
:retardatárioi,·.atrasados;·tradicionais;conservadoresranormais,•anômicos,·etc.
A História nos permite acompanhar a,·.genealogia.·do humano em ·:sua
· diversidadeenão emsua identidade, nos permite fazer a arqueologiadas:práticas,
:.'das.relações e·dossâberes·que produziram,diferentesformas de se·ver,de.se dizer .
·e,de serhumano.AHistória que, -durante. muito. tempo,· esteve :comprometida
ocom princípiodaidentidade,que seapoiava eme apoiava discursos quese
preocupavam em traçar-uma.identidadeientre•o;passado e. o presente; entre:o
serdo passado eum serdo .presente, seja :entre O' ser: da cidade, do-Estado; :da
• ,nação; db_ povo)'da ·raça;mos dias de hoje tem ·o ·compromisso- em identificar,
descrever, compreender.e explicar a alteridade,não para desfazê-la, para :anulá-
la, mas para prodarnar·o direito de sua existência eo necessário respeito que
aeladevemos devotar. AHistória, - como formadora-de subjetividades, é um
• - saber: e urna· prática•faseparável -de discussões.:éticas.;e,,políticas: O ensino e.a
• escr;ta dá Histótia:im,plicam sempre .act:omada·de posição política ea defesa de
valores,mesmoquando não se.está atento,p:ara:estes·aspectos; A História que se
escreviae .se.,ensinava emnome•da·•identidadetda,corrstrução.dojdêntico;· que
fazia adiferença retornarà semelhança,tal como;requerido pelo:p.ensamento
platónico e hegeliano,pareceterhoje afunçãosocialdenosensinara conviver
com a diversidade,comamultiplicidade,arespeitaraalteridade, a diferença
queé a condição mesmadomundoemque vivemos.
. ,)'Sea·liistoriqgráfütbrasileira;•defonnâhastantepeculiar;·pensou a identidade
.nacionaL.airavés da constatação,. das diferenças internas que dilaceravam a
• . ,-n;:tçãor-seo qiscursoctlá:ideritídade,rto,\BrasilJez·da-mistura; dà;mestiçagem, um
princípiode identidadeque, portanto, jánasce,emgrandemedida, ancoradanum
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 257

paradoxo, jáque proclamava o misturado, omestiço, portanto, o não idêntico


a si mesmo como princípio de nossa identidade, identidade figurada por um
verdadeiro oximoro, hoje não éapenas o Brasil ou as sociedades nascidas das
conquistas coloniais europeias que se constituem como sociedades misturadas,
múltiplas, diversas. Todos-os países; inclusive osmais refratáriosà integração
com outros povos, sofrem hoje, pelas injunções do processo de globalização,
essa· diversificação e complexificação crescentes, não só da constituição étnica
de suas populações, como também de suas organizações sociais e dos aspectos
culturais. A História tem, portanto,-umimportantepapelaexercernesse mundo
onde, a alteridade,a multiplicidade e a diversidade sociale culturalexigemum
preparo subj etivo para a convivência com o diferente, sem o que. temos:eteremos
crescentes manifestações ·de intolerância, xenofobia,-até mesmo a revivência
-de discursos eugenistas e segregacionistas e de práticas de agressão, violência
e extermínio. Saber. aceitar e conviver com a diferença,aceitar a opinião e o
pontode vista -difer.erite como tendo direito àexistência;,significa a formação de
··subjetividades melhores preparadas para a convivência democrática.
A História serve para formar não apenas subjetividades, masparaformar
cidadãos, membros da convivência pública, membro doespaço público
preparados para viver numa realidade. constituída pela agon:ísticados interesses e
opiniões divergentes. A História forneceargumentos, informações, apreparação
para o aparecer em público, o ser em público, .o ,ser em sociedade, que irá
defrontar-se com a divergência. A- HistóriaJoi; por muitotempo,inquirida
acerca do uso que fazia de artifícios e. recursos retóricosporque, à semelhança
do discurso jurídico e do discurso político,.ahistória é um discurso que constrói
enredos, quetrama fatos e que, para isso,organiza e expõe argumentos quevisam
convencer o ouvinte ou o leitor de dadasleituras da realidade, de dadas verdades
sobre o tempo e o mundo, do acerto e da justeza de dadasposições políticas
e morais. A História forma, pois, pessoas preparadas para, argumentar, para
_defender ideias em,público, para comparecer ao mundo público emdefesa de
dadas teses e convicções;apanágio das sociedades democráticas contemporâneas.
A História nos fala dos mortos, ela noslembra, portanto, do nosso caráter
mortal, da finitude queé condição mesma da nossa existência, aquiloque, para
Heidegget,318 definia, a própria condição do ser humano, um ser para a morte.
Mas, ao mesmo tempo, a História é-uma das maneiras encontradas pelos homens
de lidar com sua condição de mortal,foi uma das maneiras que oshomens
inventaram de tentarvencer amorte, de coritinuarvivendo apesarde ter morrido.
Entrar para aHistória passou a seruma forma de se tomar imortal, inesquecível,
de continuarvivendo através de feitos, defatose deideias. PhilippeAriés?vai
sereferir à luta.que cada vez maior número de grupos sociais vaiempreender,

318. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petr6polis:Vozes,2006.


319. ARIÉS, Philippe. O Tempo da História. Lisboa: Relógio D'Água, 1992.
·258 . TECEI.ÃODOS,TEMPOS

no séculopassado,reivindicando o dir.eito·de,figurar,na história,de escrevera


própria História.
AHistória como sabersurge na sociedade.grega, pride a imortalidade era
çorisegui~aàttavés,do:renom!!-qlJe.se.conseguia:'navida.pública,•atravésdafama
que se construíaem vida e quese deixava após.morrer, de preferência através
de umatoheroico,a serviço da cidade. Fama;,renome,:fi:car.. na memória,.eram
,apanJgios:dos·ddadãos;·dos homens livres e:gregos, aqueles:que efetivamente
contavam nasociedade. As mulheres, àsq-ianças; aos estrangeiros eaos.escravos
• não esta:.va,resetvado um higar,na fama ou na memória; portanto,tambénflhes
,falta-yá'.·il;nilugarnaHistqria. A f:Iistpriâlabuta entre a memória e-o esquecimento,
entrea a morte e vida, entre o. que.foi e o que é, embusca do que será.A História
nospreparasubjetivamente para aceitar annitUde;namedida emquenos-fala que
um
tudo diase acaba,umdia tudopassa, osmaiores .e mais poderosos impérios
.u:rn::diaêntramemruína, e só as ruínas ficampara deles dar testemunho.
Temos uma grande ,dificµldade. ein àcêitar nossa condição - mortal e ia
condiçãotemporaldetodas as coisas, qualidade temporal de todas as coisas que
éo objeto mesmo·do,saber histórico. Temos atendência,talvez pela formação
religiosaque costumamosreceber,de buscaraeternidade dascoisas. Temos
a tendência asermos, porisso mesmo, conservadores, reativos. às: mudanças
·e,transformaçôes. ,Queremos ,garantir que o•futuro,,geráuma-.contimiidadedo
pres·e;nte;,'quando com ele estamos -sâtisfeitos. A História nos .permite·fazer o
apre:ndizado\'damúdança:como::condiçãomesmada nossa-existência e·.de,todas
. as coisas. ºAHis,tória--serv:eipara formar.'·stibjetividades menos-reacionárias.às
transformações,às rupturas, às :descontinuídades;ao. caráter, finito, de todos
os entes. AHistória nos. permite,fazer--o,aprendizado • da,-perda, do 4uto,,-o
aprendizado danossaprópria condiçãode seres·temporais, ·.o àprendizado da
. êfemeddade':das coisàs,-Nietzsche..chamoua·atenção para.que-este poderia ser
• umdosperigosque uma cultura:contatnirrada:de História·póderiatrazer-para a
vida, ouseja, aconsciênciada finitude,:do:caráter.passageiro de todos os nossos
feitos poderia levaros humanos à inação; -a-desejarem o nada,-.a tomarem-se
• . niilistas,paralisadospeloque setia,.o sem:sentido-,da,,existência,, pela ruína
- prometidaparatodos os mais sofisticadosmonumentos que os homens·viessem
erguer. Creioquenada estáisento de perigos.Tudo navidahumana é perigoso.
O próprioNietzsche vaidizer oquãoperigososeriatambém praticarmos uma
' ·História que;descéinhete'o devir; que:ínonumênfalizasse o·passado e entulhasse·
opresente comseusmonumentos.AHistória,aonos preparar paraconviver
coma finitude,pode nosfalarda urgência dopróprioviver,pode noslevar a
• -· vilôtizarmos:-o_,tempo',.quetemos;
-.AHistórianãodeve ser avalorizaçãodopassado em detrimento do
.~presentefn;ão.podemos..;serhojeaquelas,frguras,de..-histoi:iadores.tão comunsna
literaturaeuropeiadofim do séc_uloXIX/e.iúítio:"do,séculoXX:. um ser exilado
de seu tempo,umsersolitário, porserincompreendido pelosdeseu tempo,
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 259

incapazde manter com elesqualquer comunicação, jáque os vê como pouco


merecedores deatenção, como seres vulgares e corriqueiros, semamesma glória
doshomens que encontra nas páginasda história; um serapegado a tudo que
foie que se esquece ou dá de·ombrospara·aquilo que.ocorre em-seupresente;
um ser fechado emsua biblioteca ou quepassadiasa chafurdar arquivos,onde
se: esmera' e sente enormeprazerao .esmagar tra.ças e baratas quedevoram seus
. preciosos documentos;- um ser mais apaixonado porNapoleão ou porCésardo
'que. peloparceiro ouparceiraquelhe aguarda emsua volta-dapesquisa;AHistória ·
pode, dependendo da forma como é escrita e ensinada, nos levar avalorizar o
tempo presente, a vida presente, nos Jazer perceber a necessária intensidade
• com que temos de viver a vida, que devemos valorizá-la, não ficando.alheios em
relação ao que nela se passa,procurando nela intervir, procurandoatravésdela
conformar um sentido e um significado para a existênciaquejá não estará dado.
A História contemporâneajánão mais pressupõe a existência deum sentido
cimanente, de uma .teleologia inscrita no próprio processo histórico.Sabemos
hoje que a história terá os sentidos que nela colocarmos; Se a vivência, se a
.experiência 'da historiddade, da temporalidade sópode ser individual; os sentidos
. que atuam na históriatambém partem dos indivíduos, mastornam-secoletivos,
transcendem a esfera da.individualidade ao se encontrarem; se,conflitarem, se
• articularem, se associarem,·coexistiremnavida emsociedade. Mas esses·sentidos
nunca estão ·dados, eles:são uma construção social sempre, porque quando o
indivíduo define seus objetivos, define que sentido quer dar a .sua existência
e o faz dentro de condições, sociais e culturais .dadas, Os indivíduos fazem
escolhas e inventam escolhas, mas sempre.a partir de limites e possibilidades
• .estabelecidos pela ordem social. A História serve, portanto, para quepossamos
fazer o aprendizado de:como podemos dar sentidos diversos edistintosdaquilo
'que nos é imposto como sendo nosso destino e o destino da humanidade. A
História nos ensina que os humanos marchamsobre aterra errantes, serri destino
prévio traçado mas que,por isso mesmo, podem traçar para· si mesmos todos
os destinos-possíveis. AHistória, aoJocalizar asinúmeras formas de resistência
humana que. realizam um sentído dado para suas vidas-· epara ahistória;ao
.trazer para a cena personagens .que se singularizaram, que se destacaram, •que
se tornaram conhecidos, que foram registrados, escritos, nomeados, punidos,
castigados porque tentaram dar sentido diversos· a sua existência eao mundo,
que se rebeleram contra Deus, a natureza, o destino, a ordem, o sistema,as
. estruturas, contratodas as instituições ecategorias que definiram ao longo da
História o queseriao necessário e o irrecorrível da existência dos homens, essa
História nos propk:ia o-aprendizadoda liberdade,da necessária e constantefota
pelaliberdadeque, afinal, é o sermesmode sua existência. A História serve para
que possamos.formar-subjetividades mais livres, maisdesejosas, preparadas e
dispostas a empreender a luta permanente. e diuturna em busca do. ser livre,
serque só existe enquanto prática permanentemente afirmada e retomada. A
''TECELÃO DOS TEMPOS

História quepraticamoshoje,aoquestionar opoder,aexploração, a dominação,


ao denunciar asformas de escravidão,·de·-repressão,· devigilânda, disciplina .e
. controleque nos :constituÍr;;\m',exortstituíramnossa história:como humanos,
o
-· nosensina o desejar, pensar e :o praticar a:1ibe1,'!:lade.:.Liberdade não como
aspiraçãometafísica, comoutopiaque realiza.;a si::mesma, ,mas como. prática
conctetw.hist0ticamente isituada e possíve.l,,J:;iberdade como ·luta· constante;
comoconquista que seJaz e-seperde,tq,do o tempo;:Já:que,a liberdade navida
• em sociedade serásemprerelativa; aliberdade :decada.umacaba:onde·começa
a dooutro,espaçosde liberdadeconquistadostàbertosesituados dentro de,uma .
'ô_i:denJq~e,sempre·-os,:veni:limitar,ereduzir..
Parafraseando o poeta Manocl de·Barros/eu•:diriaque a História tem hoje
. a missão defazerdefeitosnas 1nemórias;• deJazer:as memóriascerrarem, já que
aHistóriatem umarelação diferencial e conflituosa.em relação às memórias,
• notadamente,aquelas memórias que. se:tornam• oficiais, monumentalizadas,
-· ctistaliz'âdâs, rribtivo.,de.comemorações'e' efemérides. Apesquisachistórica visa, .
,attaveyda:.êrítica;afastar.;,sédasversões ç:onsagradas do passàdo;Jazendoaparecer
seusdefeitos,seuspontosde sutura, fazendo aparecer as co:;turasmalfoitas, os nós
• <forçà,dos;.()s pontos.deesgarçamento dastecituras do-passado.Os historiadores •
devemfazerasmemórias errarem, nosentidodequeelas devem ter.seus sentidos
deslocados, devemter seuslugares de inscrição alterados. -0,historiador-tem a
tarefadedesfazer osenredos :dessasmernórias;-retramá-las fazendo o que Paul
• Neyne éhamou de um· inventário das:diferenças;.,32º Ohistoriador;contemporâneo
é aquelequepenteia as ·histór-ias·oficiais .a:-:contrapelo,. tal·como ·aconselhava
Walter BenjaIJ?,in'.3:~A'História nos.dias.de.hojetemconsciênciade que seujogo
se fazentrea lembrança e o;esqueêimento/A História serve para.que se produza
:oesquécirilento'de:dadas-versôesdo passado;;.'de dadas memórias: à-História se
lembra também para prod:uzir:O'esqueé:imentoi O,historiador/nos dias de hoje,
não sededica a cilltuaras:memórias; iSabe,:que-<;leveter:·com elas ·uma•-relação
.nieq.illda··pela.,problematização;,pela:interrpga,ção,:•,pelo,questionamento. O
historiadordesfazasmemóriaseas refaz. usando.oaparato conceitualaprendido
. • em· suafformação:.As•niemórias são desfeitas-para,seremrefeitas no discurso-do
historià'dot;•0dii;-curso:conceituéU)'.dis_curso:competente,Jegitimado-socialmente
paraviolarasmemóriase fazê-lasfalar, :m.uitasw:ezes,.aquilo que nãoquiseram
dizer, pelo menos,conscientemente.Ohistoriadornãoéaquelequese deleita
coma beleza dasmemórias, mas éaquelequesefascinaquandoestas adoecem,
quando elas entramem estadofebril edeliram, quandoemergemcom·os sentidos
alterados, quando devémcomofalaoutra:AHistóriafazasmemérias entrarem
emcriseparaquepartejemnovossentidose novossignificados. O historiadoré

320./VEYNE,Paul. OInventário dasDiferenças. Lisboa:Gradiva, 1989.


321. BENJAMIN,Walter. "Teses sobreaHistória".In:ObrasEscolhidas I:Magia,técnica, arte e
politica.São Paulo:Brasiliense,1996..
DURVAL MUNIZ DE :ALBUQUERQUE JÚNIOR 261

aquele ·que infunde novas vidas àquelas memórias;oàquelas, narrativas:dopassado


que ameaçam morrer por repetição, porrecorrência, por cristalização.
A historiografia contemporânea não temmais pejoem admitir que uma das
funções daescrita e do ensino da história é nos deleitar, é nosdar prazer, é nos
divertir, no duplo sentido da palavra; ouseja, nos tirarda rotina, retirarnossos
sentidos-do entorpecimento trazido pela repetição das mesmas experiências no
cotidiano, como o de nos levar a mudar a trajetória de nossas.maneiras de ver,
de pensar, de agir. Paul Veyne? defende que a prática da escrita e do ensino
de História se justificapelo prazer que esta oferece aquem fazou a quemlê ou
escuta. A dimensão artística, a dimensão retórica, poética, literáriade nosso
oficio volta aser:valorizado, numa sociedade em quea crítica àcentralidade do
- trabalho e à necessária utilidadeinstrumental de todasas coisas vem sendofeita.
Se não devemos abrir mão do caráter científico denossadisciplina,:científico
no sentido de ser um saber metodizado, que obedece a .regras de produção
coletiva e institucionalmente definidas, que implica o aprendizado de um saber
- fazer,isso não pode implicar o desconhecimento de que nosso oficiotem como
resultado final a produção de uma narrativa. As tecnicàlidades pedagógicas,
por exemplo, não podem elidir o fato de que uma boa aula de história está
assentada na. capacidade do professor em urdir uma boa.narrativa, emlevar
'OS alunos a construírem sentidos e significados para dados·textos,,para dados,
relatos já tramados. A História teria,assim, mais esta função social: a de nos fazer
aprender a narrar,a contar história,a enredarfatos, atividades:humanizadoras,
porexcelência. Aprender a contathistórias, aprender areunirpalavras em frases e
com elas fazer sentido para um outro, é um passo decisivo em nosso processo de
humanização,por isso mesmo todasascomunidadeshumanas contamhistórias,
.narram eventos para suas crianças. O ensino da História, nos anos iniciais da
formação de qualquer pessoa, tem também essà função do aprendizado da arte
de contar, da arte de narrar. E, por que não,aprendercom a História a produzir
beleza com a narrativa; produzir deleite e prazer estético com ouso das palavras
e com o·uso dos eventos-do passado.
A prática da historiografia, assim como a da poesia; requer o andar por
desvios, requer o· provocar desvios em relação às verdades consagradas e
solidificadas sobre o passado, pois é nos<lesvios que se encontram as maiores
surpresas e,diz o poeta, os araticuns mais doces. O historiador hoje' é ,aquele
que· desvia e desencaminha• o sentido já consagrado, ele profana todos os
ídolos,dessacraliza o que há de mais sagrado. Espero que esse texto, assim
como o Padre Ezequiel fez com Manoelde Barros, faça um limpamentonos
receios que os aprendizes doofído de historiador têm ainda emromper com
dados condicionamentos, com dadas visões,com dados esquemas prévios de
interpretação da história; que.funcionam-sempre como portos seguros, como

322. VEYNE, Paul. Como se escreve a história.Brasília: EDUNB, 1998.


•·,TECELÃO.DOS TEMPOS

- ·:gat~tiâ:s.êpnriâaeJC.POSição.a9perigodeinventar.o;novo/deinventaro passado
apartirde novospressupostos, abordando-o a partir de pontos de vistaainda
• ríão Ccm'sâgtá'dMejim,.danão~aceitos;p1enamente.pilospares;_'ifalve2:, e isto.pode
.·ser.iri,~yitãvel·.paraaqueles::que·.praticam-um·ofício como_ onosso, vocês possam
se sentirprofissionais quecarregampara oresto,da vi<la; como os poetas,certo
gostopornadas. Pensem muitas vezes que aquilo :quecfazem .poucodnteressa
paraos outros,pouca Utilidade tem:_para,p:socia1; Mas, nessashoras em que as
incertezasassaltam,bastapensar no enorme prazer subjetivoque essa prática
'lhes·dá, "e:~$tarãojustificados,:Caso:tião:sintamesse praz.er,do .e no ofício; ·es.tão
apenasnolugarerrado, nãoéo ofício .que deve.mudair,,mas,vocês_.que devem
rrmdarpeiofíi;:i1:>:'-Não':adianta,;nessas:-horas;:,estar:colocand0.defoito,no ofício,
vocês é que não:foram.feitos:.·para·de,ou-por:ele,ou-.:quem .,sabe;:foram·feitos
defeituosamente.
Capítulo 14

De lagarta a borboleta:possíveis
contribuições do pensamento de Michel
Foucault para a pesquisano campo do
ensino- da história.

Vários, como eu semdúvida, escrevem


para não ter mais rosto. Não me pergunte
quem sou e não. me diga para permanecer
o mesmo: é uma moral de estado civil:
ela rege nossos papéis. Queela nos deixe
livres quando se trata de escrever (Michel
Foucault. A arqueologia do saber, p. 20)

Há um uso recorrente do pensamento de Michel Foucault nos estudos no


campo da Educação, na abordagem do espaço escolar, na análise das atividades
de ensino, -que leva ao império de umcerto niilismoentre os educadores e
professores. Nesses estudos, o Foucault "caixa de ferramentas" aparece, quase
sempre, com o mesmo rosto, aprisionado em um dado momento de seu percurso
filosófico, reduzido a alguns de seus livros, de seus textos, a; alguns de seus
enunciados e conceitos. Nesses estudos prevalece o Michel Foucault historiador
do poder, do poder disciplinar, o genealogista das técnicas de adestramento dos
corpos, o filósofo dos processos de sujeição, aquele que mostrou asaproximações
entreo espaço escolar e as formas arquitetônicas e institucionais dos presídios,
das casernas, dos conventos e-dos manicômios; Esse uso-dos ditos eescritos de
Foucault, tão comum na academia, faz dele umautor que teria-um pensamento
homogêneo, que teria-produzido um sistema fechado de pensamento, cujas
categorias teriam pretensões universais, podendo ser retiradas do contexto da
análise que fez e transplantadas para a análise de qualquertema, em qualquer
época e espaços. l:Jm dosintelectuais mais antiacadêmicos é transformado, assim,
no provedor de maisum jargão académico, cuja obra é tomada em conjunto,
como se ele não tivessefeito a crítica da própria noção de obra. No máximo,
<2.64 TECELÃO DOS·TEMPOS

ela édividida emtrêsfaseste.sta11ques e',lineares, -como.·se ele não tivesse feito a


crítica aessa concepçãolinear, etapista e historicista do tempo. Embora tenha
.çhâniado,,aten_çãq para as armadilhas dafunção ··autor, o: caráter regulador • e
repressor que exercia na ordem do discurso, os ditos foucautianos ·(igrejinha
• cque ·ele..nimca;pretendêu·fundwe possiyelmente:cdetestària,:reservando .para
elaseu riso de mofa) o tomam comoesse autor unitário, centradoem tomo
de dad,qs ternas. e :prÓcédimentos. O seu livrode antimétodo, A Arqueologia
do saber, aqueleque escreveupararesponder às :inúmerasincmppreensões em
- torno de seu livro anterior, As palavras e as coisas,•quefogona.introdução traz
a .âdvedênciaquetdloco •em-epígrafe/livro.que eleaban:donou e foi·para longe
dele assim que escreveu, é toma.do.como•maisrnmc.tnanual de metodologia,
convocando todos a :;1prertdece reproduzü\,seus cortceitos abstratos e, nesse
· caso, deshistoricizados, usando-os como "ferramentas .conceituais" para suas
pesquisas, buscando ''.encaixar'.' ,seu_ tema;. suas preocupações no verdadeiro
çipoalcortceituaLqueâiemerge: regularidades discursivas,formaçõesdiscursivas,
• modalidàdesenu.nciativas;:enunciádo, Junção enunciativa, arquivo,. a.priori
·históriéô;arqueologia do saber..'No;entanto, muitos desses conceitos jamais
voltaram: a ser utilizados pelopróprio Michel Foucault em suas pesquisas
posteriores.
Maso que é maispreocupantenesseuso que·sefaz,dopensamento de Michel
o
Foucaulté fato de reduzi-loaoautor do poder, da· disciplina; doadestramento
e
dos corpos dassubjetividades. NoBrasil, isso talvez se deva ao fato de que a
obrâile-Foucaultqué•primeirotevea111placirculação entre nós ter sido seu livro
sobre a:sprisões,J!igiarê punir, editado em plenavigência: do regime autoritário
e,significativamente,transformado por umsubtítulo inexistente em sua edição
original francesa: "umahistória . da viõlência,.nàs pr-isões': .krecepção--dessa
ôbradéFóútault-entre nósfoi facilitada,talvez,porser -nela-que a-presença ·do
• inârxismomq:pensamento•do·--filósofocfranêêsémais detectável: noções caras
aomarxismocomo classee ideologia .tparecem'.de,modo .singular nesse texto
do triilitantci.tló Grupo de Intervenção sobre asPrisões (GIP). É nesse ,livro
que a escolasurgecomo um :espaço ·disciplinar, .como um espaço· destinado
a produção de corposúteis e dóceis,corposdestinados a serem mão-de-obra
paraocapital e soldados-cidadãos para,os:Estadosnacionais. A escola, desde
suaarquitetura, seriaa materializaçãodo que,éle nomeou· de >panoptismo,
um dispositivo,talcomoelecompreendiaesseconceito,constituídoporuma
maneiradeorganizaçãoespacial, de gestãodoscorpos,porum conjunto de
saberes ede relaçõesdepoder,porum conjuntodepráticas e denormas, por
• uma organizaçãopiramidaldosolhares e dosgestos, queproduzia umaforma
particulardegoverno das criançaseadolescentes.
Tornou-se comum, no campodaEducação, arealizaçãodepesquisas para
. confirmarastesesque sêr-iam'de-MidíêLEquca.tilL Múdam~seapenas as escolas
pesquisadas,operíododapesquisa, o recorteproposto, mas a conclusão já
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 265

está dada de saída: a escola disciplina, a escola produz corpos dóceis; a escola
é panóptica, a escolaadestra. Não importam os aspectos que se. estude - o
currículo, as pedagogias docentes, o, material. didático, a relação· da escolacom
o Estado, alegislação escolar, as reformas do ensino, as políticaseducacionais,
a relação professor-aluno, o planejamento escolar, a orientação educacional,
as, práticas culturais e de lazer nas escolas, a violência escolar, o. ensino de
conteúdos específicos como a educação física ou o ensino religioso, as questões
de gênero etc -a imagem que se constrói da escola é muito próxima daquela que
o marxismo construiu, notadamente o marxismo althusseriano: a escola como
aparelho ideológico do Estado, como lugar onde se reproduz adominação, a
exclusão, como lugar de saberes. que reproduz poderes; lugar da produçãode
uma subjetividade neoliberal, espaço de adoçãode políticas neoliberais, espaço
de produção dos corpos disciplinados. Eu me pergunto sempre, ao participar
de-bancas de julgamento de teses e dissertações na área daEducação, na área
do ensino, como aquele mestrando ou doutorando,como aquela professora vai
retornar à escolae vai exercera profissão docente depois de praticamente concluir
que a escola não é o melhor lugar para se estar, que a escola não é umlugar em
que se possa criar algo de novo? Com que estímulo alguém vai para a sala de
aula· sabendo que ali é um dispositivo de; reprodução da ordem? Comoalguém
vai investir sua existência numa tarefaque parece inglória, amplificando, ainda
mais, o martírio pelos baixos salários, pelas infindáveis jornadas de trabalho,
pelo controle do patrão ou doEstado?
Mas esse rosto de Michel Foucault éapenasumdos muitos:que ele construiu
para si, na vida e no pensamento. Se. Foucault foi um autor significativo. para
a filosofia· contemporânea por historicizar os seus conceitos, por ir buscar. no
arquivo suas matérias de reflexão, como tratar Foucault e sua obra de maneira
a-histórica? Como não perceber que o autor de Vigiar e punir não é o mesmo
autor da História da sexualidade II: o uso dosprazeres? Comotomar os conceitos
elaborados por Foucault e dar a eles validade universal, se eles estavam enraizados
historicamente em um dado momento, não apenas da história europeia; mas
dahistória do próprio pensamento e da vida de seu autor? Como se pode
transformar um filósofo antissistemático num sistema de pensamento fechado e
abstrato, com foros de metodologia científica? Devemos desconfiar mesmo das
continuidades que o próprio Foucault diz encontrar emseu percurso, quando
fala de suaobra retrospectivamente, em dadas entrevistas, pois dependendo do
momento em quefala, da obra queacaba de lançar e quer promover,dependendo
de quem o entrevista e em que situação, esses elementos de continuidade se
modificam: quando lança Vigiar e punir, a relação do homem com o poder teria
sido a constante de suasobras; quandolança História da sexualidade I: a vontade
de saber,teria sido a questão do como constituir-se em sujeito que sempre o
teria preocupado; já quando aparece os dois últimos volumes-da História da
sexualidade, teriam sido os modos de relacionar o si consigo mesmo, a produção
• 266 TECE!oÃO DOS TEMPOS

um
de sujeitoéticoque atravessariatoda asuaobra. Como ele próprioalerta,
poucoantesda passagemquetranscreviemepígrafe,num suposto-diálogo com
um:çrfüçQ·,,..,um'diálogo,,,.como era comum em-seus textos, atravessado·pela
· • ironia•2, elenuncapermaneciao:mesmo, por fasopouco lhe interessava o. quej á
havia escrito, não possuía nenhumcompromisso.com wpróprios conceitos que
formulava,os abandonava, os recusava,osreformulava. Ele estavainteressado
em deslocar-se em relação ao. que.já fize1:-a;c da imagem quejáJaziam dele e de
seu:pens;unento. Ele estava sempre interessado noque ia Jazer, não.no.· que
frzera,,·ele:b:uscava.sempre,ir·para longe:de si'rnesmo, produzir novos .rostos.
Ele tinha piazer-:emxontrariar, e em contradizer-se, ele .adorava surpreender,
: . tâ,usar;iilçômodp;.não·se,deixaraprisionar pelo nomeque jáfizera, pelostemas
que játratara.Tornar Foucault um autorsistemático eacadémico étraí-lo, é
tornar-se o çríticn.chato, quelhe .pergunta, inquisidor, notexto brincalhão de A
., arqueologia do saber- que muitostransformam numtexto sério ·e;aborrecido,
... numa "caixade ferramentas": .
• • ,. .::..:.você não,está.seguro·do,que ·diz? Vai novamente mudar,- deslocare se em
relaçãoàs questões quelhesão colocadas,dizer queas objeções não apontam
realmente parao lugar,emquevocê se pronuncia? Você se preparapara dizer,
ainda uma vez,que você.:nuncafoi aquilo que.em você se.critica? Voêê já
arranjaasaída que lhepermitirá; em seupróximff"livro, ressurgir .em outro
lugar e..zombar, como o- faz agora: não, não, ·eu_ hão estou onde você me
espreita,mas aqui de onde o observo-rindo.

•: No livtorecenteroente·publicado pélofilós.ofoRobertoMachado;.quefoi aluno


'earn:.igffde'FoUcahlt,'onde.registra•as.memóriasdesuiramizade:e;convivênciacom
. ofilósofo·francês;,há umapassagem que diz muitO'de comei Foucaulteraavesso a
certo academicismo, a certo pedantismo. universitário; como ele. não tolerava ser
• :enquadrado:pelospoderes e saberes circulantes no mundo da academia. Num jantar
oferecido porMachado,em seu apartamento/em dado.,momentó ''um professor
lheperguntou pomposamente de onde,ele·.Jalava;,querendo·. que ele· exibisse os
princípiosqueautorizavamou legitimavam a sua,rnaneirade pensar': ·Foueault então
respondeu:"Daquidessa cadeira" Umdos capítulosde seulivro sobre Foucault
• foi s.ighJpcà:tíyamente intitulado: "Cobraqueperde a pele" Umpensadorsem pre
emmetamorfose,umhomem fugindodequalquerrostificaçãodefinitiva,umser
capazde encararas :destérritorializações:. físicas esubjetivasinerentesà condição
cóliteíJ)porânea;>ulll desapegadoi como-.o 'define:Roberto;Máchado; mas acima ·de
tudo umintelectual criativo,quenãotemia ainovação,a mudança,que fugia-do
lu:garcom11m,;dasxonsagrações,âêfinitivas;,quexhegouaf4gir>'em,algunsescritos,
dopróprionomedeautor,quebuscou,em muitas situações,oanonimato, o risco,
operigo dodesconhecido,que nuncatemeuromperfronteiras e limites.rno.rais,
políticos,epistemológicos,nopensamento navida. e
DURVAL MUNIZ DEALBUQUERQUE JÚNIOR 267

Creio queo que primeiropodemos aprender comMichel Foucault é essa


atitude diante da vida e do conhecimento:nuncaquererrepetir outros ourepetir-
se. Buscar, onde se está, em que situação estiver, em queinstituição se encontrar,
a criação do novo, do diferente; do-diverso. Evitar odogmatismo eopensamento
fácil e assertivo. Manter distância das verdades estabelecidas,gesto que aprendeu
com Nietzsche, desconfiar dos poderes, gesto que aprendeucomMarx, tomar
distância e manter-se crítico em relação a qualquer versão de si mesmo,.gesto que
aprendeu com Freud, ser crítico em relação a qualquer pretenso fundamento do
mundo, da realidade, qualquer ontologia essencialista; gesto que aprendeu com
Kant. Valorizar os acontecimentos; as práticas, a materialidadedo mundo, gesto
que aprendeu com a fenomenologia. Prestar atenção aos cortes; às rupturas, às
descontinuidades, aos deslocamentos, aos deslizamentos, gesto que aprendeu
Com Ganguilhem, com Ba:chelard, com DumeziL Levarem contaasestruturas, as
continuidades delonga duração, as recorrências, gesto·queaprendeu com Levi-
Strauss, com Braudel, com o estruturalismo. Tomar o sujeito e o objeto como
construções práticas e discursivas, como produtos de contingênciashistóricas,
como frutos de relações de saber e poder.
Como o pensamento de um autor como Foucault pode contribuirpara as
pesquisas no campo do ensino da história, sem cairmos no niilismo-de cátedra,
queassola os trabalhos feitos a partir de seus escritos, no campo da Educação,
niilismo de· cátedra do qual um diafoi acusado, por um filósofo brasileiro, que
se prendeu, mais uma vez, a umaspecto de seu.trabalho para dar um veredicto
final sobre seu pensamento? Creio que devemos, antes de mais nada, alterar nosso
modo de nos relacionarmos com o pensamento, com a obra de dados autores.
Não devemos ter uma relação de subserviência,-de reprodução, defidelidade
a dadas formas de pensar. Nem mesmo Foucault foi fieLa si mesmo. Devemos
manter uma relação criativa com os pensadores·que chegam a nossas mãos; Não
se trata de repetir: conceitos, debuscar aprender as definições dos conceitos e
aplicá-los no estudo de dados objetos. Como deixa explkita a dérnarchefilosófica
de Foucault; os conceitos devem nascer da própria prática de pesquisa; devem
nascerdo arquivo. Oarquivo está povoado de conceitos, os conceitos não são
apenas as palavras difíceis e arrevesadas encontradas nas páginas de dados livros.
Os conceitos são-históricos e estão na históriaporqueorganizamaspráticasdos
homens, suas relações e instituições,no cotidiano. Os conceitosvão às ruas, às
praças; às escolas e aos banheiros. Apropriar-se do pensamento de um autor não
é reproduzir trechos inteiros de seus escritos em inumeráveis citações e notas
de rodapé,não é a cada passo. do texto trazer um conceito, o que mais atrapalha
anarrativa do que ajuda, não é memorizar seus conceitos e sair repetindo nas
falas e nas aulas. Apropriar-se dopensamento de um autor é apropriar-se do
movimento. de seu pensamento, é ter o olhar educado pelas formas de seu
pensamento, éolharpara os sujeitos e objetos com a visada que ele te permitiu
• formar. Opensamento.de-MichelFoucault foi produto do encontro comtodos os
TECELÃO D0S·I_EMI:'05

- •áµtor~!$;qµeeti,1}i:,questão::de:citaracimatfoLainda-_produtodatroca deideias e
·,.rnesIUq'clp;â.nt~gonfsmos:comimpor.tantespensadoresde•seutempo;com-quem
.foão;d~ixpu,de-iprendet:iSartre;'Althusser;··LacanrDerrida, Deleuze,· Guattari,-
Lyotard, Bourdieu,Virílio etc; eles configuramseu próprio pensamento,sem
que ele precise osestarcitandotoda hora.
---~tNesse,,s:êntido,háalgun~pro.cedimentosque podemosaprender;comelena
hora de se fazer pesqtiisá;indusive,.no.campodo,ensino:da:hístória;-Ao-:inv:és de
,paitirmqs,:deumàdadaJmagem·da.eséola,umaimªgem:datadahistoricamente,
• uma,.irn,ag~rn,11ascjda·:do,estudo-deuma/dada;,,so.ckdade, .presente-emalguns
de seus escritos,ir àescola, tomá-la comoumarquivo, comoum espaço onde
resistênciasepráticasdecriação podemestaracontecendo. Afilosofia de Michel
.-_ \EóiiêaÚlté,un.ja::filosofia.dapráticae'darelação. .Todapesquisa; para-ele, começava
0

. com uma problematização,comumproblema concernente aopresente, indo,


então, embuscade fazer o percurso arqueológico?em termos desaberes, e o
peréursg geneálógico,em termos de poderefü-•que;configuraramhistoricamente
'esse·,dado/presel}.te~<As··problemáticas:sempre""passavamJpelas·.seguintes
•·questões:._ qüais. àcs práticas efetivas que.aí.ocorrem,: -sejam ..elas--discursivas ·ou
• . não discursivas?Já que,para ele, os discursos erammateriais epráticos,elesnão
.·étal'll (iaoi:delll de i.un simbólico ou•de:uriJ:.imaginário imatetial;.quais,astelações
queconfigur}tn:l_;l:!ssa dada,realidade;,sejam•elas :deTonhecimento ou de.,poder?·
. Ouseja,numapesquisa sobre o:·ensino_ dehistória, implicase perguntar: •que
.•· práticas: configuramesseensino? Quetipo:·de.relações·elas.estabelecementre os
agentes,escolª1'es?_Cômo essas·práticas,e,relações·se conectam_.com os-saberes e
os poderes que as sustentam?
- <:Uescritas•~ssás;práticas e relações ~- Foucault;iiãotinhamenhumavergonha
de descrever,talvez porisso tenha secdito..um :?positivistaJeliz" ..:: .há ·de se
,perguhtãJ;-pelaarqueologia-e··.genealogia·que:as:constituíram.·•como.,as";Práticas
atuaisno campo do..ensino,da:histôriaatualizam ourompem.com dadas práticas
Justotic.ameritêrecorrehtês?,Como··essaspráticas'S,€:reladonam,.com-umarquivo,
com um repertório de performances, de saberes,com modelos, • com µguras
pertencentesa outros momentoshistóricos? Q-que,háiie.efêtivamente.diferente no
,que:sê'faz::e'msâladeaula/quarido-,se:.ensinâhistória;-hõjê?.Dequerepertórios,'de
,:que.àrqmvps,:~equetextos;tie;que.saheres·essaSpráticas·a.dvierameque mudanças
0e•ri.tptt11;as:podemts,igrtificat?-Gomo·se,deú,oc,aprendizado;tlessas:maneiras de,,se0

ensinarhistória?Emqueinstituiçõesesseaprendizadosedeue, portanto,quais 'OS


poderesque estiveramenvolvidos naconfiguraçãodessasmaneiras de ensinar? Que
• discursos participarame participam daconfiguraçãodossaberes ensinados pelos
·,:pro~essõreidê'.hist6ría?c€onro:esses:saberesforamacessàd,os.e'COmoserelacionarn
entre si?Que instituições moldamapráticadosprofessoresde história?Quais as
~,•norm~$iqt1ài.S',Osrêódigos,:, qµais,as:J:,eis,'<:quãis:.os'costumes,'quais·as·tradições'que
configuramessaspráticas? Quaisosusosquesefazdosaber histórico em salade
Paraqueeparaquem
aula? seensinahistórianocotidianoescolar?
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 269

Nesse sentido, é fundamental a observação das práticas concretas efetivadas


no cotidianoescolar. Não ter a respeito delas nenhuma imagem a priori, buscando
detectar o que nelas há de criativo, de resistenteàs modelizações e normalizações
imperantes no espaço escolar. Pesquisas que partem de umpressuposto muito
articulado podem terminar por encontrarsempre o queprocuram. Parece-me
ser esse o grande pecado das pesquisas feitas no campo da Educação a partir
do pensamento de Michel Foucault; como também acontececomaquelas
inspiradas pelo materialismo histórico, vai-separa o campode pesquisa com
uma. pré-figuração teórica· do campo que inibe apercepção de algo distinto do
que previamente se supõe. Ora, o procedimento de pesquisa seguido por Foucault
era o oposto disso; era da pesquisa, era- do arquivo que-os problemas. surgiam,
que os conceitos emergiam, que as hipóteses se elaboravam; já que considerava a
pesquisa um momento em que o pesquisador perdia-se de si mesmo; enfrentava
o desconhecido, aventurava-se para além dos limites estabelecidos. O momento
de pesquisa era uma deriva, uma viagem, umaaventura a terras estrangeiras,
na direção do fora-do já sabido, do já pensado. Parafraseando o quediz acerca
da história em certa passagem de seu texto intitulado "Nietzsche, a genealogia
e ahistória, podemos dizer que, para ele, uma pesquisa no campodo ensino
da história, como qualquer atividade de investigação; só será efetiva na medida
em que reintroduzir o descontínuo no próprio ser de quem investiga. Éum mal
começo pesquisas que se iniciam cheias de certezas e pressupostos, que não são
movidas pela curiosidade acerca do desconhecido.
Além das práticas, é decisivo mapear os discursos que circulam naaula
de história, verificar as coerências e incoerências entre discursos e práticas.
Submeter os discursos dos agentes,sejam eles alunos, professores ou dirigentes,
a uma análise que não se atenha apenas a seus enunciados, àquilo que dizem,
mas tomando, como propunha Foucault, os discursos como materialidade,
investigando a proveniência e a emergência deles. Investigar aque formações
discursivas-eles pertencem. Uma aula de história-mobiliza temas, enunciados,
conceitos pertencentesa distintas formações, discursivas, a distintos arquivos.
O professor, em sua fala, articula temas, enunciados e conceitos que provêm do
livro didático, da sua formação universitária, mas também aqueles presentes
nosjornais, nos meios de comunicação de massas, nas revistas especializadas
ou não; no cinema, nas redes sociais, na Bíblia ou no material impresso de sua
denominação religiosa, no senso comum, etc.Por isso Foucault escolheu utilizar
a noção de saber e não a noção de ciência pois; ao contrário daepistemologia,
seus estudos se dedicavam a pesquisar as condições históricas de emergência de
saberes que nãoadquiriram, necessariamente, o status científico, sem deixarem
de terrelações com o conhecimento científico. Esse caráter compósito da aula
de história faz com que optar por um pensamento como o de Foucault tenha
muito, mais pertinência, na hora de se escolher uma orientação teórica, do que
a escolha de autores-no campo da epistemologia da ciência.
-TECELÃO DOS.aTEMPOS

Como.historiadores,é importante verificar as condições históricas que


possibilitaramqueesses temasaemergissem, · em:que .condições; históricas
dadosenunciados passarama circular .no ·campo da ·educação escolar, em que
momento, emquecontexto, em que situação dados conceitosapareceram e
foramdeslocados para o campodo ensino dehistória. Não se trata de pesquisar,
se
apenas, o ensino dehistória serve ·omnão,paraaformação:daddadania,- mas
investigar emque momento e em·. que condições: históricas essa.relação; que
: nã<féde:,ni,odo-nenhum obrigatória entre cidadaniae.ensinode história,,que é
cón.titígented;Iistótica,{oi:estabelecida, Que relações:de poder,.que instituições,
• qtj.e,disci_iitsoS;Aue'saberes·produziram.e,ssa.relação.necessária'entre, ensino de
história e éidadan.ia?''E o:rnaisJmportante: com: quais ,conceitos'de ensino e de
cidadaniaestá seoperando aqui? Falar em·ensino ,e em· cidadania não-é·falar
de conceitos óbvios, de,,objetos neutros· é: inocen~s;.há uma carga política em
. comosedefine cada umdesses.conceitos. Somente abrindomão de qualquer
ideiade essencialidade,de inerência,de pettinêntiaxdesde:sempre, deliteralidade
desses termos se podefazerumapesquisainspiradano pensamentmdeMichel
. Foucault. Tudoéhistórico, imanente,contingente. Ü<ensirto de.· história:rião
é essencialme nte voltado paraa construção .da :ddadania,·ilão, há: nenhuma
rêla:çãQ 1t!cinerê.ricia,-.depertinênciaobrigàtóriaentre·esses-dois termos; Não há
. ,neiihQJTHtliterà,:lidade.sequer na noção de·ensinode:história: O ensinar história
.podesigrlifiqtr.~ ser.diversas' coisas;Basta irparaa escola·everificar a pragmática
, que,esse •çonceito recobre para seter certezadisso. É possívelque,em'.algumas
aülas\dehist.ória; o que menos s.e·ensine :seja algo,parecidocom:isso. Hoje, há
professores de história ensinando até avida eterna,contradiçãototalcom aideia
mesmade historicidade. ·'
• • ·. •-:Umá'.pesquisa'in,spirâda· no'pensamento•de-Michel Eoucault se inicia :pela
completa desnaturalização do objeto; . Não . existem.:objetos,dados,, prontos,: à
esperado pesquisador.Não existem objetos pertinentes ou impertinentes a uma
• dada área do conhecimento;isso é mera repartição de competências no campo
dos saberes,frutodas relações depoder que atravessam o campo.'A delimitação
deum objeto, sua definição,é um golpe de forçanointerior inesgotáveldo
arquivo,do a priorihistór4co>Elêjá-nasce:corno.uma operaçãoq,olítica e implica,
. portanto, .efeitbs de poder. Os pesquisadores no campo do ,.ensino ,da.história
. sabem de todasaslutas queforam necessáriasparaque esse campo de objetos
emergisse, sedelineasse,se afirmasse, selegitimasse.Háquemainda torça a cara
,·4iatitê·dag"'pe$quisas:nesse-carnpo,,diante'de,suapr;ópria-existência/Sa:bemos:dos
enfrentamentose posições divergentes nó;interiordo. próprief·campo e assim; é.
emtodos os demais.Os objetossão criaçõeshumanas, são criaçõesrealizadas ..
no interiorda linguagemespecíficadecadacampodoconhecimento, através
dorecortede dadasséries dediscursosedepráticas.O objeto é apenas um
· arranjoparticulardeséries,umponto para :oride.-convergem,distintas :séries.
Sim, séries,poisométodo depesquisa que podemosnomearcomosendo o
i ,. . .- -- - - ·- ..
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 271

de Foucault seria o método serial. Que tipos de sériespodemos distinguirem


uma dada realidade? Muitas, quase infinitas,por isso fazemos escolhas.Um
objeto pode serrecortado através deuma sérietemática,ouseja,o objetopode
emergir apartirda escolhadeum dadotema e da exploração da conexão desse
tema com temas coexistentes e correlatos. O tema ensino conecta-se com o
tema história, com o temalivro didático, com o tema estratégiaspedagógicas,
com o tema aprendizado etc. Um objeto pode ser recortado através deum série
enunciativa ou discursiva, um conjuntodedocumentos,·de.·discursos-que se
utilizam do mesmo enunciado. Todos os discursos que contêm o enunciado:o
ensino de história se dirige à formação da cidadania; o ensino dehistória visa
formar.seres.críticos; o ensino de história serve paraformar.cidadãos tolerantes
com a diferença; o ensino de história visa formarindivíduos conscientes etc.
Um objeto pode.ser recortado através de uma série conceitual,·os discursos e
práticas que se. articulam em .torno de um dado conceito: educação popular,
pedagogia crítica, currículo, narrativa docente·etc. No entanto,omais comum
éque os objetos conectem distintas séries: temáticas, enunciativas,conceituais.
Além da investigação das séries que compõem um dado objeto; é fundamental
analisarquais as estratégias presidiramesse recortedeobjeto. Foucaultconsidera
que os recortes de objetosão;desde o princípio; átitudespolíticas, implicam um
posicionamento estratégico no interior do campo de pesquisa,: das instituições,
do pensamento, do próprio saber. Recortarobjetos de pesquisa é inseparávelde
,assumir posições políticas, éticas, estéticas;·epistemológicas.
Uma pesquisaque tomao pensamento deMichel Foucaultcomo inspiração
há, .também de adotar uma postura muito distinta em relação à noção de
sujeito, de agente das ações a que estuda. Ao contrário de eliminar o sujeito,
do queo acusam dadas .leituras, Foucault elimina o sujeito como· um a priori
dos acontecimentos,do pensamento,·da história. O sujeito não vem antes do
que pensa, do-que diz, do que vê, do que faz. O: sujeito é uma resultante de suas
práticas e de seus discursos. Não há um sujeito professor de história antes que
ele entre em sala de-aula e assuma esse lugarde sujeito previamente configurado,
codificado e legitimado. Uma pesquisa no campo do ensinoda história começaria
mal se naturalizasse a figura do professor, se não o percebesse ·como um lugar
desujeitosocial e culturalmente produzido. A noção de lugar desujeito é
fundamental no pensamento foucaultiano: ela nos permitehistoridzaras figuras
de sujeito, pensar como .elas se forjamsocial efüstoricamente, nos permite fugir
da ideia moderna eburguesa do sujeito como indivíduo,como portadordeuma
alma ou de um espírito individual, solipsista, fechada em si mesma; o sujeito
psicológico e racionalista, o-sujeito como uma consciência soberana e anterior
a suas práticas e seusdiscursos. O lugar de sujeito professor de história existe
socialmenteporqueemergiu emum dado momento preciso, ele foi criado a partir
de dados discursos e práticasque o reivindicaram; configuraram e legitimaram,
de dadasdecisões institucionais; eleimplicatoda uma codificação, seja legal, seja
272 TECELÃO DOS, TEMPOS

consuetudinária,que antecedem o momento emque algum indivíduo.wenha •


dele se investir.Ninguém é professordehistória antes de assumir .esse lugar de
sujeito e,aofazê-lo, issoimplicaassumir direitos·.e: deveres para-ele.estabelecidos
·.•·.legaLe,-cOst:µm~iramente;:implica·assuminuna--:cultura.de,sselugar;.uma-cultura
escolar que o define,controla e possibilita.Quando se chega a uma·escolapara
assumiresselugar, existem nãoapenas dâdasobrigações, deveres e direitos.que.o
configuram,como existem tPCpeéfàtivas,to.da uma cultura;:escolar.que pressiona
· rio-sentido de que o professor novato venha corresponderaoque se espera de
umprófessordefüstória.Imàgensdeprcrifessordehistóriajá.circulam;.narrativas
. já:desctevem,.figuram., definem o que seria uní ·bom prófessorde,história.-·Mas
·essêlugar;estãrâpermanenternenteem jogo, estará:permanentementese-repondo
e,se refigurandopo/dja a -dia.em· sala de aula, através de•·práticas e discursos,
. atrav:és·çlasrelaçoes·gue estabelece"comoutroslugares de-sujeito. a1idistrihuídos:
alunos;i"dii:etores,:supervisores;pedagogos;· chefes .de disciplina, etc: Os lugares
de·.sµjeito·pressiqriam.no.·sentido·.de uma dadá:;regularidadede·ação, :de prática,
• • porrestarem;assentãdos não; só.numa daâa regulamentaç.ão·e :codificação;,mas
por:estârem.cohfigura'dos"por uma ·dada.cultura, .uma dada. simbologia,·uma
dadapragmática,umdado imaginário, umadada narratividade. O sujeito é
e
um lugardeprática um lugar de fala,situado .em um dadoespaçoe tempo
espécífiêOs:·O.sújêitô.ésituaci.onal,cpragi;náticoiN..elacional. Oser-sujeito:implica
estabelecerrelações de agenciamentoe/ou deobediência a algoou alguém; o s.er
sujeito implica assumir tíPia-'dada,práticay-realizar uma.dada ação,• estar, sujeito
at.im· dado evento;ser sujeito é situar-seemfacedealgooualguém na condição
de.agente,.e/ou .paciente..
Asnoções de processos desujeição edeprocessos de subjetivação,
• desertvolvidos:nos,últirrtos anos devidadé Miéhel Foucault,implicam em pensar
as ,subjetivida<;les/os -sujeitos .como ,fabricações -históricas; sociais e· culturais.
Os,stijeitos não são o ponto de ,partida ·.dos acontec:irnentos:mas as ·resultantes
deles:;No,percurso>de. ;so.ciàlização. de cadaum denós agem processos·• de
sujeição,processos quenos fazem subjetivar, intemalizar,.incarporarostód~gos
sociais, a ordemdominante. .'.A noção·de inc::orporação•taqui essencial·porque
0

ocorpo,ao contráriodoque ocorre .commuitos;:outros,,pensadores, tem. em


Foucault uma posição central em'.suas análises.'.'Para,·ele;·-o\corpo. é. a superfície
sobre a qualse inscrevemahistória coletiva e '.afüistória •p.essoàl.,As-pesquisas
. , nocampodoensinodahistóriaque se apoiammas·Jor.múlações .foucatiltiana~
. devemestaratentas para as..dimensões;c.orporais,,.desejantes,1ibidinais,- eróticas,
• •>ética.s,'ê;-est~ticas,,çlas·.práticas~docentesediscerites,cQuando.Foucault.privilegia •
asrelaçõesemseusestudos, elenãoseesquecedequequalquerrelação humana
põe emjogoosnossoscorpos.Elenãoesqueceque nossos corpossãovibráteis,
e
ouseja,afetam sedeixamafetarpelapresençade outros corpos,humanos ou
nãohumanos.Onde estão doiscorposemrelaçãoaí estãopresentes o poder eo
em
desejo,demodoinseparável. Assimcomo Nietzsche,o poderé inseparável
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 273

da vontade, do desejo, o desejo de poder e o poder dodesejohabitam todas


as :relações humanas. O corpo do professor, assim como o corpo doaluno, é
erótico. Aqueles que acham que, ao se proibirde falar de género esexualidade
na escola expulsarão o erotismo,adimensão libidinalda relação entre professor
e aluno, estão redondamente enganados; 'Porque essa dimensão existe-é que as
discussões em torno de uma ética profissional se fazem necessárias e urgentes,
sem repressões e escamoteamentos. O professor continuaráemitindosignos
de gênero, continuará propondo modelos de masculinidadeoufeminilidade,
continuará encarnando dada sexualidade, falando ou não disso em sala de
aula. O fato do professor ser um corpo erótico não faz deleum abusador ou um
estuprador em potencial - senão todos nós o seríamos - massim alguém que
precisa. tomar consciência disso para estabelecer travamentos éticos naquilo
que faz.
Um dos aspectos comumente negligenciados nas pesquisas em torno do
ensino, e com o ensino da história não é diferente,diz respeito, justamente, às
performances corporais nele envolvidas. Dá-se muita atenção .às .narrativas,
aos. discursos, como se eles se reduzissem ao que é dito, ao seu conteúdo, às
suas dimensões semióticas e significantes. Em uma aula de história há outras
semióticas em ação que podem. contribuir para o aprendizado· ou para o
desinteresse em torno da matéria. Independente do que diz, a voz doprofessor é
um índice quepode fazer enorme diferença na hora do ensino. Uma voz agradável
ou desagradávelaos ouvidos, urna-voz alta ou baixa, rouca ou estridente, pode
estabelecer ou não onecessár-ioclima de empatia,de disponibilidade subjetiva
para o aprendizado dos alunos. Umprofessor pode alcançar enorme sucesso pela
capacidade de sedução, de encantamento de sua voz. O timbre, o ritmo, a dicção,
a musicalidade de uma voz é uma semiótica a-significante em operação em uma
aulade história, podendo ser decisiva para o sucessoou não da empreitada. Não
é apenas-o que se diz o que importa, mas como se diz, daí porque não faz sentido,
para Foucault, separar forma de conteúdo. Um professor que domina muito o
conteúdo pode ser um fracasso comoprofessor por causa de sua performance
emsalade aula. Toda atila é dramatúrgica,teatral, ela envolve todo o corpo e sua
capacidade de produzir afetos. Umprofessor pode encantar, seduzir, maravilhar
devido muito mais como performatiza aaula, do que propriamente pelo que
ensina. Adimensão estéticadeve ser levada em contana hora de se avaliar
oporquê do sucessode um dado professor. Desde aestética de seu próprio
corpo, incluindo como se veste, como se ornamenta, como gesticula, como se
desloca, como fala, como ri, como produz rostos de assentimento, simpatia,
raiva; descontentamento, admoestação, até a estética: de sua aula, a forma como
expõe amatéria, os recursosque utiliza, a organização que dá a escrita no
quadro,a estética do material que apresenta em sala de aula; Deveríamos levar
mais em conta o fato de que avaliamos sempre se uma dada aula foiagradável
ou não, se um professor nos agrada, se a disciplina é de nossoagrado. Agradar
274 TECELA0-005 TEMPOS

não temnecessariamente a ver com o conteúdo transmitido, com a eficácia da


argumentação, coma racionalidade da ·aula; ela tem muito mais a ver com as
·.• dim.értSõ'.es inco11sdentes;.desejarttes; estéticas, eróticas, performáticas da au1a.
Quando se for tratardasnarrativasemsala de aula, lembrar-se de que, desde a
Antiguidade,os tratados de retórica chamavama'atenção para o fato de que a
sucessode uma narrativa, de seusargumentos;·quesua capacidade de convencer,
passa por suacapacidade de comover; mobilizar emoções, de produzir afetos.
Aeficácia de úm discurso passa_ pela- performance de ,quem o emite, passa .por
comoinveste todo o seu corpo,investe, inclusive, suas paixões naquilo que diz.
Um professorque repetemecanicamente, sem interesse, deforma monótona um
dadodiscurso,dificilmente atrairá alguém:para,o que ensina. Quando os alunos
dizem quea aula de história échata,·semteremconsciência, estão dizendo .que a
auladesenhâ1..lll1afiguraachatada; sem·atrativos; sem reentrâncias,sem relevos
iriteress'ántes, s_em cbnp.guràções e desenhos·atrativos.
Ora, essa dimensão . desejante, libidinak.erótica, estética do trabalho do
professor, exigindo dele um. reflexão ética sobre os limites de práticas e de
discursos que devempresidir sua atuação; nos remete paraa outra dimensão da
• formação· das subjetividades e dos ,sujéitos,?segundo o pensamento de Michel
Foutault~ os processos de subjetivação. Eles .implicam.os investimentos que os
sujeitos, consciente ouinconscientemente,fazem na elaboração de si mesmos.
Alémde sermos produzidos pela sujeição aos códigos sociais, aumadada-ordem
social, somostambém produtodos investimentos que fazemos na constituição
de nósmesmos.Quando decidimos ·estudar., história; quando decidimosler dado
autor, quando preferimos assistiras aulas de dado professor, quando escolhemos
um orientador, um temade pesquisa,quandodecidimos fazer curso de dada
línguaestrangeira,quando tomamos a decisão de dominar a informática, estamos
disparando processos de subjetivação, numtrabalho de .. construção de si por
simesmo. Nos processos de subjetivação se podem dar as singularizações,· as
a
resistências, criação dos espaços de liberdade em relação a ordem dominante.
Isso não significa,segundoFoucault, quea resistência não se faça presente
tambémnosprocessos desujeição. Para Foucault, a resistência é imanente a
toda relaçãode poder,a possibilidade de resistir éo quefaz dela uma relação. Se,
numa dada relação, qualquerpossibilidadede resistência é impossibilitada, não
se estariadiante de umarelação depoder, masde uma situação de subjugação,
. de escravidão. Numa pesquisa :no campo do "ensino da história seria muito
importantemapearos processos de subjetivação que esse ensino, que as aulas
de históriasãocapazes depossibilitar.Asaulas de história estariam oferecendo
matérias de expressão para queos alunospossamfazerpassar os seusdesejos,
possamconstruircomessa matéria territórios.existenciais,,para-habitar?
A reaçãoqueassistimosàpresençado ensino dahistória nas escolas;o
medo pânico, asposturasreativasquevemosdiante da presença do discurso
:doshistoriáddres:no;espaço:púbHco;devern~seaopotencial:desterritorializante
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 275

desse conhecimento. O professor de história, ao trazer seus conhecimentos


para· a sala de aula, tende a acabar com a ideia de eternidade, naturalidade e
infinitude dos territórios existenciais que os alunos e seus pais habitam. Ao
falar do tempo, ao se colocar aolado do caráter corrosivo do tempo, ao afirmar
a finitude de todas as coisas, de todas as dominações, de todosos impérios, de
todas as verdades, de todas as crenças, de todos os deuses, de todos os valores,
o professor de história seria o relativista em pessoa, aquele que desencava tudo
o que há de diabólico nas coisas,já que diabólico é tudo que separa, segmenta,
divide, dispersa. O professor de história, mesmo proibido de discutir valores, vai
continuar sendo umincômodo emsala de aula, pois os valores entrarão com ele
pela porta adentro, na maneira como se veste, na maneira como age, na maneira
como se coloca em sala de aula, na maneira como estabelece relações com seus
alunos. É uma falácia ignorante achar que valores, moral, ética seaprendem
através de sermões e discursos paternos; O pai que faz um sermão no almoço e
contradiz o que disse em cada gesto que faz no restante do dia, está produzindo
distintas possibilidades de apreensão de valores, apresentando distintos modelos
de subjetividade. Uma direita, quase sempre corrupta e hipócrita, falando de
valores é urna contradição em termos. Mesmo queapresente apenas a crónica
dos fatos, o professor de história transmitirá aos alunos a ideia de mudança no
tempo, de temporalidade com que trabalha, e, isso, para subjetividades reativas
e reacionárias, conservadoras, que não. querem saber demudanças, que temem
as transformações, já será apavorante.
Michel Foucault, pelo contrário,foi um pensador que não temeu a mudança,
que não se incomodava em tornar-se diferente de si mesmo, todo o tempo. Seja
em sua vida pessoal, seja no pensamento, Foucault se arriscava, lançava-se ao
desconhecido, produzia deslocamentos constantes em relação ao que havia
pensado e como havia vivido. É totalmente inadequado tomar um dado momento
de sua trajetória, o rosto que desenhou nesse momento, e escolhê-lo para
representar a totalidade do que pensou e do que foi. A maior lição deixada pelo
professor Foucault é que pesquisar e ensinar vale a pena se, a cada vez, o ensinar e
pesquisar nos tornar diferentes do que somos, nos desencaminhar, cortar nossas
continuidades e semelhanças. O pensamento de Foucault é atravessado por uma
constante inquietação, por uma alegria em produzir o diferente, por um riso
cortante e itônicodiahte das figuras do mesmo, do repetitivo, do rebarbativo, do
dogmático, das certezas e verdades perenes, dos valores eternos, das dominações
com pretensões universais e atemporais. Foucault possuía uma enorme alegria,
até uma crueldade, em desentocar os poderes lá onde eles se escondiam, mesmo
numa simples aula de um professor de história. Aí, vários poderes .e saberes
estão atuando, encarnados no próprio corpo de quem ensina ou de .quem é
ensinado, em cada gestoe prática que realizam, em que discursoque proferem.
A rebelião, a resistência, a singularidade, a criatividade, a transgressão, processos
de subjetivação também aí estão colocados. Aí se misturam as narrativas das
.276 .. TECELAO DOS TEMPOS

falas, dossinais, dos ícones, dos signos a-sigriifiqmtes, a-retórica dos discursos e
a retóricados gestos. Diferentes e·clistintas,semióticas se articulam e produzem
oinesperado,fazememergiro não -previsto.
MichelFoucault foium homem e um pensador das .metamorfoses,
um homem quenão gostava de seu próprio corpo,de seu próprio rosto, um
e
homem de calvalisa reluzente; de óculos de 'aros grossos, de gestos largos,
devoz metálica eenvolvente,ohomem ·das blusas de.gola rolê, do alisar pelos
imaginários nacareca brilhante,do.:tiso.largo, ·dos,olhos doces· e ternos, ,um
homossexual que tinha,inicialmente, enorme vergonha de•-seus desejos, que
tentoualgumas vezes o suicídio,:que, esteve muito perto de enlouquecer,. um
:. ,p.rófessc,>i\encàntador;capaz dehoras de falaclaraeatraente, um polemistaferoz,
• um homem de coragem diante~dequalquerforçabruta, umhomem irreverente.
Michel Foucault, talvez ele.concordasse com essa imagem, foi uma lagarta que
se metamorfoseou em borboleta,não parando nunca de devir outro, um ser
esvoaçante, de muitas e furta-:-cores, mimetizando-se em cada ambiente que
chegava, interessadoemtodasas coisas.que apareciam à sua frente, borboleteando ·
entre umtemae outro, entre um tempo é outro,.entre uma disciplina e outra,
. entrêum rosto.e.outro. Michel Foue::ault, aquelafagartadepoucopelo do início da
vida,enrólada:.sobresi mesma, arrastandossenumamelancoliasem fim, tornou-
• seumadasmais belas borboletas do.-pensamento. do séculó XX. Foi graças ao
-pensamento,que.pôdeJevantar voos cada vezmais corajosos, foigraças ao poder
metamorfoseante de seu ensino e de sua pesquisa.que.se tornou uma mariposa
noturna, corajosamente afrontando a ameaça de todas as Luzes, o sol negro da
linguagem,como o definiuMkhel de Certeaur:por uma figura de linguagem de
que tantogostava: o oximoro,por trazer a contradição internalizada. Por fim,
. , ele se tornou cinzas, incineradopor seuprópriofogo, pelo çiesejo de alturas, de
novos ares, de experimentações do indizível e do invisível.
• \Masele,continua, ainda; a,oferecet-às suas pintalgadas asas para quemquiser,
com ''ele;::alçar voós,::desenhar nos ·ares,novas:figurações de si· e .dos outros; Ele
'llOs ensinou :caminhos, -se de ensino é do que se trata, mas-nos ensinou; acima
. detudo, aleveza do.pensamento/a beleza da palavra, o sopro da· criatividade.
Borboleta,ele nunca quis ser seguido.ou copiado,.ele quis ensinar a voar, com
asprópriasasas.Ele ensinouque perisar,pode ser leve; desde quese façapor si
mesmo, sem amarraçõesa sistemas e conceitos prontos.Elequerapenas,como
uma borboleta, polinizarosnossospensamentos eos nossos sentime_ntos,.nos
ensinar a olharde umoutromodo, fazeras nossasantenasse voltarempara outras
• direções/e pousarem em-muitos-Jugares distmtos,desde que exalem aromas de
vida e nãoocheirode mortedofascismo, dopoder soberanoeda ordem. Que
sejamosborboletase não lagartas, arrastando-nosporterritóriosfixos egastos,
na hora deensinarepesquisarhistória. Parafraseando opoeta:voar épreciso,
viver nãoépreciso!
7
• Os textos ·aqui reunidos .formam uma constelação
simultaneamenteerudita e .pôlêmica, ferina e-generosa; que
podeserlidode trás para frente, ·de frente para trás, com
pés calcados no presente, com olhos .no passado ou como
projeto de uma história futura. Cada capítulo é um,convite
à ruptura com a tradição que oprime o cérebro dos vivos, é
uma incitação à vigíliaque se sobrepõe ao sono dogmático,
- -- é um·thamado que desafia a acomodação acadêmica. O:livro
é tanto um descaminhocomouma travessia, tanto,.para o
-iniciante na matéria como, para o experiente pesquisador e/
ou professor. ComO tecelão dos tempos nos confortamos e
nos deslocamos, -sentimos ;prazer e:identificação, medo ou
repulsa, jamais. indiferença . Por quê? Porque Durval não é
apenas,um intér:prete do nordeste, do Brasil ou da. história,
ele éun1:intérprete·davida.

Temístocles César

9 7 l, 9 9 1 6 f, 'f\

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