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(novos ensaios
·•r
O Tecelão dos Tempos
(NOVOS ENSAIOS DE
TEORIA DA HISTÓRIA)
- .• .
1 • .
Durval Muniz de-Albuquerque Júnior
São Paulo
2019
mnlermeios
€II ARTES LAOS
. Editora lntermelos
Rua Cunha Gago, 420 /casa 1 -Pinheiros
CEP 05421-001 --São Paulo - SP - Brasil
Fones: [11] 2365-0744 -94898-0000 (Tim) - 99337-6186(Claro)
www.intermeloscultural.com.br
•
O TECELÃO DOS TEMPOS(NOVOS ENSAIOSDE. TEORIA.DA HISTÓRIA)
•
Editoraçãoeletrónica, produção Intermeios -- Casa .de Artes e Livros
• Capa Lívia Consentino Lopes Pereira
Revisão Érica Castro
•
CONSELHO EDITORIAL
VincenfM. ·colapietro (Penn.Staté U.niversify)
Daniel Ferrer (ITEM/CNRS)
Lucrécia D'Alessio Ferrara (PUCSP)
Jerusa PiresFerreira(PUCSP)
.Amálio·Pinheiro (PUCSP)
Josette·Monzani (UFSCar)
Rosemeire Aparecida Scopinho (UFSCar)
llana Wainer (USP)
• Walter Fagundes Morales (UESC/NEPAB)
·lzabel Ramos de AbreuKisil
Jacqueline Ramos.(UF.S)
Celso Cruz (UF.S) --in memoriam
·Alessandra Paola Caramori(UFBA)
Claudia Domnbusch (USP)
Barbara Arisi '(Unila)
Nikita Paula(Ancine)
9 PREFÁCIO
13 APRESENTAÇÃO
165 Capitulo 8.As sombras. brancas: trauma, es.quecimento e usos .do passado
233 Capitulo 12. Por um ensino ·que .deforme: o futuro da prática docente
no·campôda,história.
245 Capítulo 13. Fazer defeitos nas.memórias: para que servem o ensino e a
escritada história?
1
PREFÁCIO
TEMíSTOCLES CEZAR
Notícia verdadeira.
1. "Eu projeto a história do futuro". WHITMAN, Walt. "To a historian" (1855), Leaves ofgrass.
TheNew American Library: New York, 1960, p. 32-33.
2. Gilberto Gil, Ofim da história; Parabolicamará, WEA, 1991.
3. ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. A "invenção do nordeste eoutras artes. São Paulo:
Cortez, 1999, A partir daqui me referirei ao autor-apenas pelo seu prenome: Durval.
4. https:/ /gl .globo .com/ rnirio-grande-do- norte/ no ticial grupo-carmin-es treia-esp etaculo-a-
invencao-do-nordeste-em-natal.ghtml
• 10 TECELAO DOS TEMPOS
Ensaio eficçãohistórica
10. STAROBINSKI, Jean. "É possível definir o ensaio?", Doze ensaios sobre o ensaio. Antologia
Serrote. São Paulo: IMS, 2018, pp. 12-26. Ressalte-se que nenhum dos 12 ensaios reunidos
nessa coletânea tratam especificamente sobre o ensaio na história ou na historiografia.
11. BLANCHOT, Maurice. Michel Foucault tel que je l'imagine. Paris: Éditions Fata Morgana,
1986, pp. 46-47.
12. "Sou um homem completo tendo os dois sexos do espírito''. apud BARTHES, Roland .
Michelet. Paris: Seuil, 1995, p. 7.
1 12 • ; TECELÃO DOS TEMPOS
·'Às/aosleitoras/es.
A infracão à ortodoxia:
2
. - . .
15. LUKÁCS,Georgvon."Sobrela esencia ylaforma del ensayo. Una carta a Leo Popper" In:
Elalmaylasformas.Barcelona: Grijalbo,1970, p. 226-242; BENSE,Max. "Sobre el ensayo
y su prosa"In: Cuadernosdelos seminaries permanents. Ensayosselectos. México: UNAM,
2004, p.24-31; ADORNO,Iheodor.Oensaiocomo forma.In:Notas de literatura LRio de
Janeiro: TempoBrasileiro,1973, p. 15-45.
16. LUKÁCS,Georg von. Op. Cit,p.226-227.
17. • >.V:ei:{Wa'l'I'l.~"ili,ayden;;Metahistória: aimaginaçãohistóiicá:dasécüldXIX.•SãoP,a'ulo:,E(iusp,
2008.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNJOR 15
. .-.,
ao próprio fazercientífico da história, não::apenas,sobre a· teotia,que• a orienta,
massobre aforma queresse saberpode vira assumir, da qUa:l:a.teoria é apenas
•-·umiêfos/eleinentosi ·Pretertdemos·realizar.-nesse livro .o que Max'Bense nomeia
de"ensaiosdefineza intelectual;ou seja, aqueles quese desenvolvema partir
depreocupaçõesaxiomáticasedefinitóriassobre :um terna .determinado; que
• ·· correspori:dé nuna ciência --: rto,caso, a,dência da:história,.tendo uma especial
a
inclinaçãopara lógica, paraa razão queanalisa, decompõe,desgrana a matéria
quesustém navariaçãoexperimental.Não praticamos, no entanto, análises
:que;\de1tão abstratas, pretendemestar a salvodo tempo e do contexto. em· que
•. 'foram'.tfeitas. ·
O ensaísta,portanto, levaemconta,desaída, o carátertemporalda escrita
edarecepção.Como diz Lukács,"cada época constituirá a '.era-:que·requer, e
sóosqueseguemdemaneiraimediata creemqueossonhos dos pais hão sido
mentirasquese devemcombatercomas novasverdadespróprias""?, com as
. . ·verdádes.,doprésentei"Oada-ensaio,.escrevecom letras visíveisjunto a seu título
• .·, as-.palavras:.poriocasião, de.2,3oPortanto,não há naforma ensaio nenhuma
, ',,pretens:ão.,a uni,vers:alidâde erin.temporalid.ade-<laqúiloque,. áfirma. O ensaio
desafiao dogma e aortodoxiapormostrarque as cerite:tas são históricas e
situadas num dado tempo. Dirigindo-se diretamente ao.historiadores, o filósofo
húngaro noslembradeque "os fatos estão aLe·sempre .está .contido tudo neles;
porém, cadaépocanecessita de outrosgregos, de -outra-·IdadeMédia, de:outro
iRenasdmeittd?1 '.0mseja/osfatos são ·o:qtie são,, mas a,elaboração narrativa, a
formaquecadaum vaiganhar, dependedotempo em que aquele-que espreve
··.se:situa.e:das,necessidades,-<las'.qúestões,,das,perguntas.qmetesse tempo lança a
esseseventos passados.Oensaio par.te.:cla:pressupdsição danão.,identidade entre
_;pensamentoecoisa,entre conceito,imagem,narrativae empiria. O .conteúdo
doensaio nãoéacoisaemsi,assimcomonahistoriografia não é a,reâ.lidade
. • ,:ddpa:ssâdoem,sLmesma,::masrns·<imagens e·enunciados ·elaborados como uso
dalinguageme,nela,dosconceitos.
Aforma queesseseventosadquirirão nopresente,portanto, .não é uma
· •.;,quéstão'securl'dá,ria'ouwenorj·deladepende ~o.moitão,aparecer, quesignificados
. •.· adquirirão,que efeitos de ordemepistemológica, pülítica 'e, ética exercerão.
. • , •• Con.óluLbukács:que,o;ensaio é·um,juízo,.,mas que o essenciaLnelenão éa,sentença
senãoo processodojuízo. Numa obraondepretendo que os -historiadores
• reflitam sobreoprocesso de produção dosjuízos que.emitem, das verdades que
. enunciam, das narrativas queconstroem sobre o passado, nada.mais-adequado
• ·:dcrque,á':form,.atensaio;·p.õísj.ustamente ela:,convoca essa·Teflexão sobre o ,modo
• O quetem que ser dito não o deve ser como uma máxima firme, como uma
lei,senão será melhor considerado ante a mirada inteligente do leitor numa
espécie de variação incansável do produto terminado, e isso sucederá de tal
modo que, por umlado,responda a demonstração experimental de·umafeto
• .37. ;;,BENS.E,MrubQp:Cit./p,31. •.
38. Idem,ibidem,p. 24.
·39.. ,1?\':QORNQ;'.:rheõdor;;,Qp;•cit;,p.. 39.·
40. Idem,ibidem, p.40.
41. •.AD@RNO/Iheó'dor.Op,,Cit.,p-;:41, •
1
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE. JÚNIOR 21
. ·, .
umateleologia noensaio.Mas porteros conceitos comoseu meio específico,
osensaios quecompõem esselivronãosereduzem a sua :dimensãofotmal,·eles
•·... ·l:l'.p'enasffão-séadéquànütt,UI1:-prelenso.:putismo:científico:<4ue;corisidera,qualquer
:,prt9'.cí,lpaçãó1..éxpressiv:apresentena~expos<ição··uma· ameaçaa-ohjetividade. O
., . queno fundoaindase defende,muitas vezes,emnossocampo, éumapretensa
eliminaçãodapresençadosujeito naquiloqueescreve,umaideiade objetividade
quepressupõeapossibilidade da adequaçãoperfeitada formaàempiricidade, que
ela tenta expressar.Naalergia contraas formas,diziaAdorno,consideradascomo
atributosmeramenteacidentais,oespíritocientíficoacadémicoseaproximado
. j\dbtÜsoispítitc(êl.Qgniáticói41:0s ldeâi:sde:pureza e:asseio; ,Ce>lllpartilhados tanto
pelose de
mpreendimentos umafilosofia veraz -,a:ssinr como; diria.eu, ;de--uma •
• historiografiaveraz ,.,/âfet-idasJân:tq:por.:v.alo.r.eséternos:quantó' por •mna:ciência
•· . sólida,inteiramente organizadae semlacunas,etambémpor inna-ar.teintuitiva,
desprovidadeconceitos,trazemasmarcasdeumaordem repressiva." Alguns
--'s.dos;colegàs que;emitiran'llopi;niões,sobre·o•merilivro precedente màl escon:deram
seudesejoderepressão,deproibiçãodotexto e do queneleeradito.
o
Alguns criticaram próprio .car'áter cfpagme.r.1:tár.i-0 •do-liw:o;- nifato .de ·ser
• composto pordiversostextosescritos emmomentos e em. comtextostdistintos.
···.,.,;EssHiv'ro.terá•O'mesmáfot:~âtot:Masé cai;actensticá·do.,ensaio•·serfragmentário,
. . ;;nqque:afitma·a-:víilldàdeAo,.estudo,dasip,gulai;idade em :detrimento daJotalidade.
Aliás,oensaioapostaquenofragmentose pode .ter1.'dis.tintas. visões· do todo.
SegundoAdorno, o ensaio não segueasregras do jogo da ciência e dateoria
· torganizâdas;:;s:~gurido,as..quais a ordemtlas,:coisas seria:@• mesmo:que··ar.ordem
• _. dasideias."Oensaio,ao invés de:s.er:rédu:tivo, é,prdlifecante,.,ofereceHd@;distiJntas
-.'. versõesde.ummésmo:pr9hlemaàmedida.queoobser.v:a·de.distintoslµgares. Ele
leva emcontaoprincípiodanão-identidadeentre o quetse diz :e,aquiloa- que o
.·-,discm:so:se-refere)P.arâ,rt\dornp,. ,o:,ensài<i,é;:~usta:mente;.aJornia,-adequada.para
• ··.,co:nfi.gurar,~qúil,o;que,é,füstórico,·.êfêmeroepassageiJ:1p,,4uase.sempre·tgnorâdos
pela filosofia. Aovalorizar oindividual eodiverso contidono concéito, o ensaio
• secolocacriticamentecontraoconceitoinvariávelno tempo, ele·quer;expressar
otransitório.Oensaio incorpora oimpulso arttissistemáti:co,,em . seu.. próprio
,:módÓ1de·q,rôced.e:r.:e:,afirma,o)qaráte-r,históricoile.:qüalquer11.~flexãcir p:ottanto,
,,:àfirmaridó::9\pensaniento;como-:es.tando:sempre.:em,aberto,•,inconcl!isivo.49
f·;NO$/en.saios,,qtie'.'.C0Iilpõem esse füv.ro;; levo em conta que ,os -conceitos
.. nãoguardam sentidosúnicos esãopassíveisde diversasleituras. Comonos
"o
. diz Adorno: ensaiopercebeque aexigênciade defünições, esttitas, ser,ve-há
• • mt1ito-;te.:rpp6ip~fª:êliriúnar;:rnMianteiillanipülações:;que::fixam,os~·sigrtificados
• conceituais, aquele aspecto irritante e 'perigoso das coisas, ·que vivem nos
conceitos""" Irritação e diagnóstico de perigoso não faltaramdiantede meus
ensaios de-teoria da história.
Esse livro está intitulado de O tecelão dos tempos, não apenaspelastemáticas
queaborda em suas três partes: a escrita da história, os usos do passado e o ensino
da história, para as quais· essa imagem-tem pertinência, mas porque a forma
ensaio, em que·estãovazados os textos que o compõem,.também guarda relação
com a prática da tecelagem. No ensaio,como nos fala Adorno, o pensamento não
avança num contínuo, num sentido único; emvez disso, os vários momentos que
compõem o ensaio se entrelaçam como num tapete. 51 No ensaio, a densidade do
pensamento depende da tessitura narrativa, da forma que ele assume. A força
de uma obra historiográfica depende de como é tramada narrativamente. No
ensaio, elementos discretos, separados entre si, são reunidos em umtodo-legível,
em que cadalinha temporal, cada evento, como um nó numa trama, se arranjam
emumdado enredo, sem que se partade nenhum andaime ou estrutura prévia."
Quem acredita que ahistória possui apenas uma lógica, uma racionalidade, uma
estrutura própria, que se encontra fora daquela que é forjada pelo historiador,
verá com desconfiança a afirmação de que a configuração da história é narrativa,
que seus elementos se configuram no movimento de sua exposição. Essa
configuração se dá em um .campo de forças no qual um· dos elementos serão as
formas anteriores dos eventos. O ensaio acaba com a: ilusão cartesiana de que
conhecer é simplificar o mundo, reduzindo-o a modelos abstratos e· a conceitos
generalizadores. No ensaio, já dizia Adorno, o que se enuncia é a necessidade de
se abandonar todas as pretensões à completude e à continuidade. O ensaio, ao
invés de aplainar a realidade, expõe a suas fraturas. A descontinuidade é essencial
ao ensaio, na medida em que assume o conflito, inclusive o confronto deideias,
como a própria condição de existência do mundo humano."
Portanto, os ensaios que se seguem procuram seguir as linhas de fratura e
de disputas em torno de temas que são de relevância no campo das discussões
em torno da teoria da história. Num primeiro momento, tratam-se de distintos
ângulos a questão da escrita da história, a questão da temporalidade, a relação
com o arquivo, apresença .do sujeito, do corpoe da vida, do biográfico, a crítica
historiográfica. Num segundo momento, aspectos diversos ligados aos usos
do passado são apresentados: a questão do património, o museu, a memória,
as comemorações, a experiência corpórea no arquivo. No terceiro momento,
'reflexões em torno do ensino da história: para que serve, a quem se dirige,
como deve ser praticado, segundo que pressupostos. Neles, ensaio reflexões que
A ESCRITA DA HISTÓRIA
t
1
1
Capítulo1
54. MELO NETO, João Cabral de. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
55. CERTEAU, Michel de. "A operação historiográfica". In: A Escrita da História. 2 ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 65.
56. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 1998.
·TECELÃO DOS- TEMPOS
'.
o
ausente, . . . saberhistórico
.: ~. . . ,....parecepartilhar
. . '
douniversoculturalem
. que as
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 29
.:,
' : ' ..
asúltimas floresda esperançaque, emboramurchasejásem perfume,ainda
teimam empermanecerbalançando sobovento :dos :tempos;,ainda.tremulam
; comobandeirasque simbolizaram, queforam oescudo ea ·heráldica, ·,que
,:marcharam àfrentedos exércitosde vencidos detodosostempos° Ohistoriã:dor
·,,·k~tcéat:piélêinv.quefaomesmctte:rnpo,·chôra.éfouvaos:mortos;que.numgestode
,_ ~~~i-;iJ1hà.par.arcotn:os .quese-foram,·-os·veste:de·novó•para:um ato;inat;1gural,.os
faznovamentevir para ocentroda sala,pa.ra·ifrente1do.cortej0, osJazlevantar a
• (:front.e e'.!tOY!llllehte,fa.laremrvodferar.em};imprecarem;,readquirin:ào o ,direito à
ea
fala dirigirseupróprioe nterro,asimularemocontrole·sobrea:versão desua
própria vida,dasuaprópriamemória. A carpintaria dopassado, portanto, é obra
do historiador,eleé o carpina:que;,:de posse·dos escombrQs que o passado deixou,
submete-osa um trabalhodecorte, de.rejuntátnentorde·limagem,.de aparas,.,de
0
:encà:b(e,e;apiumo;que:os'·põem,novamente:parafüncionar:comoacessoaoque
foi, como portaou janelaporondepodemosespiar omádentrar ·a dramaturgia
dostemposidos.Ohistoriadoré umpadeiroque, com aparas· das· àtitúdes,.dos
costumes,dasaçõesdas massas,fazfermentar novas ·imagens ·dos·tempos,:que
. servemdealimentoparanossos sonhosdecontinuidade, par.amossa 'fome de
identidade, para nossa:;inarüção:de'.!SeI'.itidos,para·vida,::para o:estarmoKaqui na
a
.· terra,para nossaexistênciafinita eilimitada.Ahistória podeser :delicioso
:·ipã<trque,_.alimenta'.no.ss'a,s"vaidádes;.nos.sa:onipotência;mossos.;;preconceitos,
e
queexplica justifica nossasdesigualdades e diferenças,.mas pode·ser também
olicor amargoquetragamosparanosdarmos conta de·nossas,veleidades, de
,nossos crimes, de nossasjnjÜstiças; de·,nossasAgnomínias, · de ,tudo,o,que nos
• ·, i'~arga,a.eJtistêrii::ia.;iridividua:Leicõletiva,.",,Historiador:. os:wiínheiro do:tempo,
•taquele,.qú,ê:tréJ;z:par,a;nossoslábios.a::possll:>ilidade de experimentarmos;mesmo
• /t1ué,,difereQéialmentei qs;sáb:ores;··sabei:es,.e,ódores .de·outras)gen:tes, ·de ·outros
· ·::;lµgáres;·de,oq,trasJo:rm:a,scde:\tida '.Soêial•··e'culturali 'fSempre o:pirão de farinha
• , :qa;ihistótiâ?'ft?l:ar.inha!tnoída;;pelosrmoinhos,,do,;tempó;<:grãos •,minúsculos ,de
,_ temposquepodemvir afazerliga,podemvira se espessarem; a·engrolarem;, a
, ; ise,es.caldàrem;.·sôb,.a·àtiyjdtde,,concentradarvigor.osa, da. pá.•do• históriador. Pá
feitadeletras,habilidadenarrativa, vórticedalinguagema..tragar,,niisturar e
conectartodos estesgrãosdetempo,linguagem aproduziratransubstanciação
doselementosque captura,experiências humanasreexperimentadas,provas
novamenteprovadas,o estranhoqueseencontra,osentido que setransporta,
,.•metáforas;;a;fazer :cttrâh·sitót.enfre,o:,i:,rtdizívelre .O.'.'ÔÍZível,,,o •ontem e ohoje, o
<a+;5igrHfi~ahte\e::o·,s.ignifiçado,:'iO"Teaquecer;'do...e.squecido ·dando<tmvarnente
caldo, fazendovir àtona, emergir,borbulhardepósitosde tempo,camadas de
. . .. . .
. . . .
,sua paixão trágica ,pela desgraça, pelo sofrimento, pela morte. Quenão .deixe
· cle falar das, injustiças, das misérias,'. da exploração, mas que seja capaz .de ver
que aí também há o riso, a alegrfa,afelicídade. Tudo o que desejo é que os
leitores deste texto sejamfelizes praticando o ofício de historiador; fazendo dele
a maior.arte que -pode ser·pratic:ada.por cada umdenós, arte bembrasileira,
a de. driblar comluta, resistência, determinação, coragem, sabedoria e saber
todas assituações, forças, relaçõessociais edepoder, as formulações culturais e
simbólicasque nos tentamfazer desistir da vida ede nela serfelizes.Ao poder,
ao capitalismo interessa pessoas infelizes, deprimidas, melancólicas porque
• submissas, submetidas, derrotadas e prohtas a comprar amais nova drogaque
• o mercado oferecer. Façam deseu ofício sua droga diária, faça ·da.história e .da
arte de tecer o passado seu'Prozacdetodasas,horas e, commuitoámor·ehumor,
vocês resistirão à fábrica dedeprimidos que se tornoua sociedade burguesa.
Resistam encantando a vida, ·dando• a ela arte e astúcia'. Tomem ciência de que
só fazendo da vida e dahistória uma arte, tanto comofazem os.mtistas ou como
fizemos todos quandomeninos, é que seremos felizes. Quevocês sejam, "como
•·historiadores, artistas earteiros,é tudo o que desejo paraaprendizes defeiticeiro
no atelier ·dafostória. • •
•- •Capítulo2
. . . .-, - .. .
de suasperorações, seusdiscursos eestratégias retóricas. Desde o início,os
personagenshistóricosnão têmcorpos sensíveis,,possuem.apenas.a lógica·de.suas
··,;·1::tationà:tizà~ões{dé'se1.1.5..prpjetos;;de:suas,estratégias'.IDilitares; são máquinas de
: ·, • guerra.Dessescorpos se quis deixar registrp.;das destrezas e,cnão das dores;. das
coragensenãodos e
desesperos,das valentias nãodos medos,dos destemores e
.. : . .•'.c1n·ão.de1seüftremores;:(das.•a~tlfoias ·e·nãoidàs.angústias; das,racionalidades ,e. não
- daspaixões.Ahistoriografiapreferiu deixardesseshomens suas lendas e não
•· • : • suasfendas, suaslidas e nãosuasferidas,•seus eventos e· não· seus aSofrimentos,
• , .'/'. :: se,us.:p~~sanienfos':não seus sentimentos.Como uma :escrita masculina, como
• : \1ima:,escôtaid-e homens::para·homens,:a.historiogràfiai,ai-nda hoje, deve 'V.irar o
rosto para arealidadefrágil eprecária dos corpos, ,deve<a:bstrair. arsensibilidade
dascarnesparamelhor destacar (}.failhantismo>das ideias;. ·das .decisões, .dos
• \manél.a'hlerttos{Oomo:urnà·escrita·que não·é feita:sobre mulheres e .que-não é
para ser ouvida:; Jidase ;apFeciada,:pol'·.m:i.tlheres,.~·histol'.iqgrafia.deve. manter o
pudordiantedalágrima, dopânico, do,gritode\doi--e;de pavor .daqueleshomens
que nela comparecemcomoagentes esujeitos. Desses homens interessa.que se
guardea não o
fama, odrama,quese lembre nome, não a fome, quese narre a
ação, nãoamutilação,quedeles qque o:que ,perdura'.; nâo'a,Joucura,-a·tortura,
·. .·ã.tetifüra·72: - • ,: '•; • •
___ _ .
' ·(_ -. ' <. ' ;, - • • --
,....... ...' .
.·
• .·• .
72. Verpara a historiografia da Antiguidade:HERÓDOTO. História. Brasília:UNB, 1988;
'.ff:0-CfDlDES:'.,Históriá:d4 guerra do -Peloponeso<füasíÍia: VNB, 199'9;-POLlBIOS;História.
Brasília:UNB,1985;SAHLINS,Marshall. Históriae cultura: apologias a Tucídides. Rio de
Janeiro: JorgeZahar,2006;HARTOG, François. •O. espêlh0:4e•f!er.ódoto:;Belo:Horizonte:
,f--UFMG;1999.i1v1J:>MIGLIÀ-NO;Arrlâldo.Afrafzes,dásslcai,da.histçr,iagràfiatnQdetna..Bauru:
• .: i '·Y1?f?.{!SC; 2.00f;,;J(lLY, '.fábio:'D.uai:te.(prg.)',:Hlstória e,retprlca:::ensàios,,sqbre~histdri9grafia
antiga.São Paulo: Alamec!a,:2007,
DURVAL MUNIZDE ALBUQUERQUE JÚNIOR 41
73. Sobre a'relação entre história:e dominação, vet: 10D0ROV, Tzvetan. AconquistadaAmérica:
a questão do Outro. SãoPaulo: Martins Fontes,2003;SAHLINS, Marshall. Ilhas de história.
Rio de Janeiro:Zahar, Wll; GRUZINSKI, Serge;, AS::quatro,partes do:mundo: história de
uma mundialização. São Paulo: EDUSP; 2014; SAID, Edward. Cultura e imperialismo, São
Paulo:.Gompanhiadas 1:etràsí'l995;MBEMBE,,Achille::Saír.dagrande noite;ensaiosobre
a África descolonizada. Ramada: Pedago, 2014; PAZ, Octávio. O labirintoda solidão...São
• Paulo: Cosac&Naify, 2014; GALEANO, Eduardo. Espelhos: umahistória quase 'Universal.
.Porto Alegre: L&PM, 2016; COUTO, Mia. Um rio chamado tempo,uma casa chamada
terra. SãoPaulo: Companhia das Letras, 2003;,AGUALUSAi:José-Eduardo.:Teotia,geral do
esquecimento.RiodeJaneiro: Foz, 2012; ANTUNES,António Lobo.Asnaus. RiodeJaneiro:
Alfaguara Brasil, 2011.
74. Sobre arelaçãoentre história,género e minorias,ver:BUTLER, Judith. Quadrosdeguerra:
quando a vida épassível de luto? Riode Janeiro: CivilizaçãoBrasileira, 2015; HARAWAY,
Donna etali. Antropologiado ,ciborgue: .as vertigens do pós-humano.BeloHorizonte:
Autêntica,2009;RAGO,Margareth e GIMENEZ,Aloísio.Narrar opassado, repensar a
.história: Campinas: UNICAMP,:2000;,MBEMBE, ·Achille. ;crítica da razâo negra.Lisboa:
.Antígona;-2014; ,MAYER, • Hans. Os marginalizados. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989;
.CORBIN,·-Alain. Lesfilles de: noceóParis: Flamarion,2015;: STERNS,··Peter.Hístór.la das
' 'te/ações çle gênero: .São Paillo:-,Contexto,'.2007; CIXOUS, .Hélene; Le•'tire de, la :Medusa.
• Paris: .Gàlilee,,201 O; DURAS, Marguerite;BattQgem contra óFadficô. São José: ARX, -2003;
• WOOLF;,Virgínia: Odando::iimâ biogtafia:Belo Hôrizonte: Autêntica; 2015;.USPECTO R,
. Clarice.Perto docoração selvagem. Rio de Jarteiro:·Rocco; f998. •
• TECELAO DOS TEMPOS
1993; CARDOSO, Ciro Flamariort. Ensaios racionalistas. Rio de Janeiro: Campus, 1988;
MALERBA, Jurandir (org.). A velha história: teoria, método e historiografia. Campinas:
Papirus, 1996; WEHLING, Arno. A invenção da história: estudos s.obre o historicismo.
Niterói: EDUFF, 1994; DIEHL, Astor António. Vinho velho empipa nova: o pós-moderno
e ofim da ·história. Passo Fundo: EDIUPF, 1997; REIS, José Carlos. História da consciência
histórica ocidental contemporânea. Belo Horizonte: Autêntica, 2013; NOVAIS, Fernando.
Aproximações: estudos de história e historiografia. São Paulo: Cosac Naify, 2005; FAUSTO,
Boris.Memória e história. São Paulo: Graal, 2005; CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis:
historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003; DE DECCA, Edgar. Pelas margens:
outros caminhos da história eda literatura. São Paulo: UNICAMP, 2000.
77. Sobre a relação entre historiografia, linguagem, poética é ficção, ver: RICOUER, Paul: Tempo
e narrativa I: a intriga e a narrativa histórica. SãoPaulo: Martins Fontes, 2010; BARTHES,
Roland. Oprazer do texto. 2ed. Lisboa: Edições 70, 1988; BARTHES, Rolartd. O rumor da
lingua. 3 ed. São Paulo: Martins-Fontes, 2012; RANCIERE, Jacques. Os nomes da.história:
ensaio depoética do saber. São Paulo: UNESP, 2014; CHARTIER, Roger. A história ou a
leitura do tempo, Belo Horizonte: Autêntica: 2009;ANKERSMIT, F.R; A.escrita da•história.
Londrina: EDUEL, 2012; WHITE, Hayden. El texto histórico como artefacto literário.
Barcelona: Paidós, 2014; CERTEAU, Michel de.A escrita da história. 2 ed. Rio de Janeiro:
Forense-Universitária, 2008; VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Lisboa: Edições 70,
2008; LIMA, Luiz Costa. História,ficção, literatura. SãoPaulo: Companhia das Letras, 2002;
HANSEN, JoãoAdolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora; São Paulo: Hedra,
2006; ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de; História: a arte de inventar o passado. Bauru:
EDUSC,2007.
.44 'TEC:ELÃODOS TEMPOS
79. Ver: GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais. São Paulo: Gompanhia das Letras;
•Relações.deforça. São Paulo: Companhia das Letras, 2002; Os andarilhos do bem. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988; Amicro-história e outros ensaios. São· Paulo: Difel, 1989;
GINZBURG, Natalia. Aprop6sito de lasmujeres. Louisville: Lumen, 2017; Léxico familiar.
Louisville:Lumen, 2016; La ciudad y la casa. Louisville: Lumen, 2017; Todosnuestros ayeres.
Louisville: Lumen, 2016; DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Kafka: por uma literatura
menor. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
80. Ver, por exemplo: SCHOPENHAUER, Arthur. As dores do mundo.São Paulo: Edipro,2013;
HEGEL, G. W. E. Filosofia do direito.São Paulo: Loyola,2010; PROUDHON,Jean-Pierre.
La pornocratie.New York, Smashwords, 2010; MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Critica
da educação e do ensino. São Paulo: Moraes, 1978; NIETZSCHE, Friedrich. A genealogia
da moral. São Paulo: Brasiliense, 1987.
81. Ver: NIETZSCHE, Friedrich. Onascimento da tragédia. São Paulo: Companhia das
'•·:rECELAO DOS.TEMPOS
.·· 85. Ver,por exemplo: VEYNE, Paul. !]legia erótirn romana. São Paulo: UNESP, 2015; ARIÉS,
Philippe e BÉJIN, André (orgs.), Bexuàlidades ocidentais. São Paulo:' Brasiliense, 1982;
··,FOUGAULT, 'MkheLHistória:da sexualidade 2: o uso dos prazeres. 7 ed. São Paulo: Graal,
1994; RODRIGUEZ,Rocío. Sodomía e Inquisición:elmiedo al castigo. Conesa: Ushuaia
ediciones. 2015; NAPHY, William. Born tobe gay: história da homossexualidade: .-Lisboa:
'· Edições '70, 2006,
• 86. Ver;•por exemplo,VAINFA.S,Ronàldo..(org.). Confissões da Bahia:-Santo Oficio dalnquisição
de Lisboa.SãoPaulo: Companhia das Letras, 1997.
87. Ver, por. exemplo:· LARA, SilviaHuno'ld..Camposdaviolência: escravos ecsenhores na
capitania doRio de Janeiro. São Paulo: Paz e Terra, 1988; REIS, Liana Maria. Crimes e
escravos na capitania de todosos negros(Minas Gerais, 1720-1800).SãoPaulo: Hucitec, 2008;
: MOTTA,-JoséFlávio. porposescravos,-vontades. livres,: São-Paulo: Fapesp/Annablume, 1999;
GOULART, JoséAlípio. Dafuga ao suicídio: aspectos de rebeldia doses.cravos no Brasil. Rio
deJaneiro:Conquista,1972; MATTOSO, Kátia Queirós. Serescravo no Brasil (sec. XVI-XIX).
••• PetróptHis:.Vozes; 2016.
·• .TECELAO.DOSTEMPOS
CUNHA,Maria Clementina Pereira da. "Não tá sopa": sambas e·sambistas no Rio deJaneiro
(1890-1930). Campinas: UNICAMP, 2016; PARES, Luís Nicolau, Aformação do candomblé:
história e ritual da naçãojeje naBahia. 2 ed. Campinas: UNICAMP)'2007,
92. BARRENO, Maria Isabel; HORTA,•Maria Teresa e COSTA, Maria Velho da. Novas cartas
portuguesas. Alfragide: Dom Quixote,2010.
.TECELÃO DOS;rEMPOS
'-'êensibili~ª.qé,idos!lêitore;Jn:otadamente,:dasc:leitoras;para'iazer,o::efeito.pólítico
. que desejavam - o despertardas mulheres portuguesaspara :sua :i:ondiç.ão. de
opressão,deexploração,demisériamaterial,sexual eafetiva -, oJivroreconre a
e :íês\râttgiá~J1.g:tátiyas'.inov;~'doms?;que,-põetn,em;questão:não1apenas:.os;valores
. •.• masculinosquehegemonizam acultura asociedade,comoas formas1iterárias e
. ,,·e,na1'tíi~i:yas.:qJ;l~'ás;3,;êpródtiziame:,repunham'no.pr.óprio:ato:de:esorever. .
' o
Desde tituloda obra,elase faz pelacitação do:ar:quivo:,asNovas, Gartas
Portuguesastomam comotexto matricial,como pretexto,umconjuntode cinco
cartas,pretensamenteescritasporumajovemfreiraenclausuradanoconvento
deBeja,MarianaAlcoforado, dirigidasaumnobrefrancêsporquemteria se
•.• ,;a.paixon(q:9;:~;que·.'a,p'areçer,pn..:publicadas'.na'·,França;·_em: 1669,, com,:chtítúlo "de
·.. 'LetttesV)ort,ygt,iÚs>'..Ü<;)liÍ:aJ;ríticatlitérátia::serdividind9:.,quanto_à autoria das
cartas, entreumsujeitofeminino,a própriaMariana, eumsujeitomasculino,
de
Gabriel-Joseph Guilleragues,elascausaramgrandeimpactotanto noséculo
. ···:XV;JI;:qu$ito'!nosrséêtjlosis,~guintesrsendmtràduiidas.':e-,püblicadas em. várias
línguas,apontodefazerdaenclausuradade .:B,eja um -mito literário -da.cultura
· · ., portuguesa.Em1969, apareceram ,re·efüta'dastem Portugal,numa . edição
.. · \bil,ú,lgue~::eopi/Jtâdt,tçã.o\qga:1e1ewEugênio,,deAndrade,ie:soho:título.'de,Gar.tas .
a
Portuguesas".Nelas, imagemfemininaque emerge éo estereótip.o:daémülher
•·>_;f/ãgih:s.ólitáda/aba,ndonad_a~Arítimaidesua;pâixão;'.suplicante·e;submissaºdiante
de seuhomemamado,alternandoadoraçãoeódioem relação aoobjeto .de. seu
·>:amor;<,Etitrt!J.oia:mone·i<devoção'-a'um,amado,;.queipartiu,para.não:rnaiscvoltar,
•· .. ••·énibótlftivesstpa't:.tjlhá'dd#o.:.inesmo.sentimento,.elcrpõe,em~discurso,sua,paixão
avassaladora,seudesejodeposse econquista, o quefaz ·com,que:.d cavâlheiro
dê ChamiU)t;fJ.ija:áióda'tiliji~ de,seu e::ontato. tEssas:.cartas_e ·o per,sonagem ·que
-.·.,as;'esc:reve:1Sã.o>torrrii:das~pêfas:..:ttês:.autoras·,como' materfal·~pata-:.o trabálho . de
montage m edesmontagemque fazememrelação a essaimagem dofeminino,
doimagináriomasculinoemtornodocorpo,dodesejO.,'iiios sentimentos·· e·••da
escritafemininas. Aescritabarrocadas cartàs:deMariana permite· a construção, .
\por' ,p:ârte)lâ~drê.S:iM:ariasfde::um:liv.ro'd:narcacj.o;;pelq.::excesso, .pelas,inúmeras
0
· ·'dQbntfe';yólµta~IJ.a,àãtiYâs,istilístie;as·e.subjetiv:as;que•constituem:pe.rsónagens,
cenárioseeventos.ComodiscuteGillesDeleuze,no barroco, adiferença se
. instaura pela pelo
dobra, plissadodas formasantesconsideradasclássicas. o
•Od1a01e~tâ,l,:jd;~l.lpetfi6ia,l;::toinados\<::,omoiatiiíbutos;iioffeminino;.comparecem
·\aqufJ:i9i'rfl?:~findplosdilosôficos,,e:.nart~tiv:osraotno;,a'.dimensão.:polítita:·que
tomaa criação dodiferentenaespessuramesma dasuperfície dalinguagem,
a
quetoma plasticidade dasformascomoum princípio ontológicoque vê na
da
possibilidade criação dointeiramenteoutroa partirdaforma consagrada,
t-,:.· .,. ',/:./ ' .... •.. ', ~ 1 ''
,c.-,·-:,·_1_
----------------- ·.... ' ' ' '
_,.,rele\!:à:flte:atopô.siçãdfréijte-ê•trãsfáltoé,ba:bmque,c.onstituem~os'meridümos•que
• • •.:1estrutqram;no$s'os'Cotp:ôsfApenasMikhailiBakhtiil~~ ,iu.m .critko:literário;'•deuao
baixo corporalumestatuto histórico.Amaioriadenossos..colegas;não.consideram
relevantesaberdahomossexualidadede .seuSêperson~gens;ou .dos. autores que
:.:ánàlis.artl:fpara': ·eriteli4erêttr,:suas .·óbras e·:suastações,. omfazem ;,disso .apenas
motivodeescândaloe rebaixamentodooutro, ·embora;,a. :heterossexualidade
•• }s~Já,Í)aturàljzàda;estonítâ.a,'fü._IDOelementoconstituinte e:relevanteda vidados
· •:.sujéitq~{qUé?sãóibi(?gtâfidos·e:ána:lis-aclos,•0,quemlguémfaz,:corn·,seu traseiro
parecenãoter nenhumarelevância,embora o quelaz;:comcseuTalo •ou seus
genitaispareçaserfundamental._
· ·-•· "i,-:',l;ogo'nQ,.primeiró:texto1quê:Compõe'o1ivro,, intitUlada de tPritneira Garta .
, •-;m'+tº./,_!ifueifafüb'ém\iripv'if.eitt~sgtidemma,forma: canônica.,denumeração,
.\batrocamen.tei:éd6bràn.do,p,riúmer6i·se-afirmao•;valotdossentimentos;o valor
.· ,• .fip.á'ip'aii:ãor\<>?valotidcf,p1ath,mna:: consti;,1.,1ção.rla..,escrifa1,d0Jiv:ro.·· Ao:-iniciarem
;,:umà'obra;quertem!i.unidàrQ,.Sen,tidq;:polítiçOfque. consideramuma.intervenção
.. ,rpública:,em'defesa:\dain1udáqça".da1condição;;das.m.ulheres,ao construírem :um
. ··àe,x:tq:qtie~visápr<lâuiitci1Pvas:suj)jetividadesfemininas,emPortugal, as,autoras
·,êílãct.irrv;estehU:iumfüisc;uisrnriiilitante; racionàiizante;• dirigido·às,consciências,
elasnãonegam,masafirmamdesaída,que oque dáespecificidadeaotexto, o
\que,singg.làtiZâ1llll,'te~c\{~émulheres;ruttt~xto,es:crito.no.feminino:équede não
a
nega, nãorecalca, pretexto dacientificidade,daracionalidade,daseriedade,
dorigor,formasatribuídasaomasculino, aspaixões,adimensão sensível, os
sentimentosquepresidemtantoa idaaoarquivo, como afeitura danarrativa.
- /Elas.tõlôéam:se:~te.:xto:rio'.ih:terstítio:de•:dua:s.p:a:ixões/d&dois:sentirirentos _!.,um
• -' di.J;i_gfüo·aq;àrq].llvbfa:t,t·,passa,do:.r''O,séntimertto: de.nos_talgia;-,e::>outro:dirigido
ao
aofuturo, fazerfuturo-osentimentodevingança,quenão deixa de·· se
ligaraopassado,deseconstruirapartiresobre umpassado. Damesmaforma
quese sentenostalgiadealgoque passou,dealgoausente, anostalgiasendo a
---~,·-··)'•. ·<•:·,, '-<: • ; ,-:·.·' • - • • •
n {li? ssoo.ocoo.morto.o.rsr-cosA. o»
• · ·'O'\Telb'ci;''9,pj'.Gi~,;,p;;.$.·. .,. _, . • • •
DURVALMUNIZDE ALBUQUERQUE )ÚN1OR 53
· :-·'.'contiriíiai;,:nessàl<iêfé.sa:;patéti.ca.1de.,1Jma,dâdaim~gem:,.da':biel'ftifréida:de,.do·· rigor,
• -•- • .. ' . _., 1 ,·
três
fizeramas Marias: uma interrogação,uma dúvida,umaescavação,uma
procura permanente no interior da próprialinguagem. Não setrata de repor o
,· , binarismodasidentidades de gêri:ero; de acrescentar;o que setia identificado com
o femininoemdetrimentodomasculino,mas de ultrapassar, essa clivisão;ir para
<i14111<dela.:,ffomàr á:forruniho':como/o:i:tórtice·do .sentido fixado no masculino,
fazê-lo fluirsemumaoutrafixação num -pretensofei:riinino essericializ.ado,
vê-locomoaperdiçãodo serpensadoe dito comomasculino, "ooculto onde
se o
omistério escondeu", buracovazio poronde escapatodas as-paralisias do
- cSentt4ç;:::totfos:0,s.-sig1füicados.'-binârios.;e,cristâlizados:na • dicotomia de lugares
.--.'.de:)gênerq:'-É;:preciso,escrever':história•das.sensibilidades, mas,acima ·de.tudo/ é
precisodeixarpassarnesses escritos.novas :se:rrsibilidâdes,êé preciso.materializar
.. _ noJe#õ:histotio.grâficaessanoya:maneira·de.entrar em contatocomo·arquivo,
, ~dé'fâier'.áekusp".criativo,\defaz.er;d-eleuso ·pólítico,:ético e,estético. Não adianta
..·,a.clidô~ar.:Ínais~urri:cam.pó:àfüistotiografü:1,para·ele.continuar'Se,r:egendopelas
mesmasregrasditasobrigatórias,universais, ,irrecorríveis,sinescapáveis ., que
<fütàn:i;tornôise·deve esctever._afüistória;,porque,:assim,é quesempre's.e·pensou
, ozrnun:âkdomrnado- e·hegemonizado por:um--masculino~que:também ,sempre
se quisestáticoesoberano,sempre se quis•comoJruto do !dever. Nãotomemos
- nosso ofício comodever, como dívida, mas como dispêndio; como alegria, como
_. prazer dagestação,dopartode um corpo,escrito.Gapaz de afetar,- de seduzir; de
- atrair,de marcar,defazerefeito, de,-seduzir, 'de c:onquistar,,de emocionar, defazer
. arrepiar os corpos,de bolinar os espíritos ,dos ,leitores:
'·;,sRisó•b~eve,deixamos'sobre'ascoisas;.iretornando:deonde:nuncafôramos .. E
assimnosexpomosumasàs outras, c-Ohtando-nos,talvez .um.homem;sim,
porémde nósnemsempre os homens,maso nossoespaço vazio, anossa
,,'.daiidade:sufocante,a voragem;ide;tudo_ o.:que tocamos,. a~nossa·corrstante
• <descobêrta dos,contornosimprêéisOs,'clos pei:fisexatoS;;da'dureza,das formas.
De tidizes fluida, demimv.idroe de. tLmilhano:,(mosto, mastro); De.mim
desejo: o corpo àdescoberta doj:,razer eapaixão queme engana;deimediato,
• :,:des~jo(e;eu,sobrea,paixão,como,seap:ossuíssetódanumlongo actodeamor
semesperma mas meu suco.
Possívelseráser-se mulhersemser fruto?"0?
A poética doarquivo:
as múltiplas camadas semiológicase
temporais implicadas na prática da
pesquisa histórica.
104. TORGA, Miguel. "Arquivo". In:Diário, vols. XIII a XVI. 5° ed. Alfragide: Dom Quixote,
2011, p. 28.
. :J'ECELAO:DOSTE:MPOS.
107. Ver: NAXARA, Márcia Capelari. Cientificismo e sensibilidade romântica. ,Brasília: -UNB,
'2004.
108. Ver: ROUSSEAU, Jean-Yves. Os fundamentos da ,disciplina arquiv{stica;: Alfragide:.Dom
Quixote, 1998; POULOT, Dominique. Museu e museologia. Belo Horizonte: Autêntica,
2013;.RAMOS, Francisco Régis Lopes. Adanação doobjeto: o museu no ensino da-história.
,TECELÃO· DOS f!,:MPOS
.• ··•·~;()iiófubate.1ststêmática;à<serts1\jilidade,an:tiquária.e;ià:erudi:ção,,ro.mântica,
·• ':\ha.:tstêirâidaiçiêjitifiiâçã9;da,histoti:ografià,,,se'fazpresente:mesmo:em um.cdtiço .
....· ·•·.,uct:histôtíçismo•io'moh:Milóstif0~füiêdr-i'oli:Nietzsche:quando;;em.seuc!:famado
textoDa utilidadeedesvantagemdahistóriapara avida, criticao quechamade
e
históriasantiquária monumental".Emnomedaafirmaçãodavida, da vontade
depotência,Nietzschevaialertarparaoperigo queseriapara a existência esse
cumularo presente coma
presençadopassado, esseapegoàs coisas grandiosas
realizadaspelosantepassados,essaadoração aosmonumentos de épocaspassadas
pois,segundo ele,esse apego passadoinibiria acriaçãodonovo, levariaao ao
niilismona medidaemque,ao considerarmos quetudo de.:grandioso,,,que -se
poderia fazerjáteriasidofeito,isso levaria. a·.:uma .vida: descrente "em nov.as
• possíveis grandezas. Omitodo progresso,em gue.-vamos sendo .educados na
. . ;,irifülêt.rtiélàüe;va{levando .a um 'desprezo:eurrta.i.t'fsensibilida:de crescentes diante
<:do;que,vem;do;,pa:ssi~.o~rárádóxalmente;:mesmo;entre.os:historiadores.
.si
2.Soberanosdocumentos, sobradostempos..
,.><f'•.XD:histcinàdrif::fihhl;rnente tememm~OS:O':queprocura/oque:veio encontrar:
\.\odocktiênJo/Baç9·:t:etn~torio;álbunidâle,mbrança1,Fragmentoide presença de um
tempoquesefoi.Muitas vezes,a simpleschegada dodocumento,trazido.. pelas.
mãosdeum operador técnicodo ·aJquiv:ofdispara,wna,eno.rmeemoção..Todo
ocorpodohistoriador secomove,aoabriraquelacarpetaamarelada, amarrada
0/por:,cord:õ:~s,:téssêeados:e'1-desbôtarlos; ·ao. retirar·de seu,interior,a;.folha::depapel,
o a
afotografia, jornal, partitura,oroteiro, a eatta; há,muito ;tempo:desejados.
Umafelicidadeo invade,umprazerindescritível se 'apossa de seu ,corpo• ao
,::toêâr:.o únêsmó:.qp.jêtp!que:,pertencewao '.súj eito-q_ue~inspiraisua curiósidade e
1::sua:âf~içãô:;Ws'.1ve:les;Caoler{o:.qÚeneleestá,;escrito/lágrimasteitnam em,:a:tlorar
nos olhos,
tendoqueescondê-lasdaqueles que ;estão; em <'mesas;ptóximas,
·?tefu,e~g§O,,~u,temêrosa 'de,:p.ôr.,,vperdeno:\documefito;,mancha.rido';O::Com,suas
'mãos:emtjcio11ââas;'suada.s/:trêmúlas;{füjicültarido •reproduzi~lonatela de seu
. ,,ce>,tp.putàp,ó,i';:(;)ritras:Vezes':i"umenorme;praze-r,,uína,;sát.isfação;s'uhia;sensaçãode
:.plerutii,4e;'de'tjever:cuiaj.pndo·s·e.instaur~à•médida··quevemos,atravésMa,.câmara
digital,uma massadocumentalmudar desuporte e devfr<outra·•ndinterior•· de
')1Ó~S0'~onjpµtii:dof{O'üeséjo1id~.posse;de.complétude;tle:,p1enitude;,se.vêatendido
poressaacumulaçãodocumental, mais-valiadohistoriador. Noentanto,na •.
horadeescrevera introduçãodamonografiadefinaldecurso,nomomentoda
discussãometodológicaquedeve
'' ,,.
·~/ ;., ,\ • . .
abrira esçritadafdissertação/e:iatesef dó-livro,
•' .
. ; ';: . .<Gh.i,pé\;ó;,ArgosÇ.2004.... · • •
109. '}NIEiZSêHE;.cfrié'élrith/í:Wa ,utiliélàrle-.·é',desvantagem: dài-hisforia".p ara a Vida". ,ln:
• • , .•.• · :i:J.;Con#derqça~'E~té171pdt4n~ás,:Q,fPénsàdores;.:vôLJfr5IêfüSãaRaulo{Ndvà.'Cultural, :1991,
,}\P.f:22';'34,, e •
'DURVAL MUNIZ DEALI\UQUERQUE.JÚNJOR 61
" 2z..z',52ames.as«sr
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 63
A carta, por. ser um· texto aberto ·ao. mundo; por a ele se referir, para éle
apontar, já convoca desaída o domínio designosque estão noexterior do
documento, do texto; para queele:faça sentido. Precisamoss.aberquem é o Lobato
·referido.logo na primeirafraseda carta, paraque toda ela ganhe:sentido, O nome
Lobato é umsigno,que não pertence apenas à economia de signos dessa missiva;
vamos encontrá-lo em meio ao mundo literário, editorial, empresarial, cultural
de São Paulo e do Brasil, desdeo início do século XX. Apenas a presença de seu
nome faz comquediferentessérie de signos, vindas do exterior do texto, venham
atravessar essa missiva, podendo ser .utilizada e mobilizada, ·como documento,
no momento de.se escrever diferentes histórias:história daliteratura brasileira,
histótia da imprensa, história editorial no país, história dolivro e da leitura,
história económica,história cultural eintelectual, etc. O signo "meus versos,que
não teriam sido publicados, crucial para a-interpretação da carta, ganha.sentido
na medida em que amissiva é enviada porManuelBandeira, um signomaior da
•• poesia brasileira, desde·o"início do século XX.No encontro entre os signos.que
se distribuem sobre a folha do papel eaqueles que constituíam distintos regimes
no interiordaquele tempo e daquelas sociedade e cultura; a interpretação-.vai
serealizando. Aquilo que,normalmente, os historiadoresxhamam de articular
.texto e contexto, sedá pelo acoplamento de signos documentais comsignos
contextuais. Na simples existência,.da carta, .na sua· chegada -até nós/ diferentes
camadas temporais se articularam: otempo da escrita da carta por/Manuel
Bandeira, que nela se registra com o signodata, 24 de setembro de 1923; o
tempo da leitura por Mário.de Andrade; que supomos; serum tempo próximo
daquele, o tempo desituação da carta; o tempo-que permaneceu .guardada,
que nos distancia daquela situação,ou seja, o tempo de arquivo.No próprio
texto da carta há a indicação de outras temporalidades: otempo do primeiro
compromisso empublicar os versos, por parte de Lobato, "há mais de um ano,
seguido de outros momentos em que reafirmou esse compromisso,: sendo que o
último "não datavaainda de um mês",além do tempo imediato em que "acaba de
roer a cordà'. O historiador'lida com essamultiplicidadedetemporalidades eas
• :articú.la:numa narrativa,que·parte.do encontro delas·comoseu·próprio tempo.
Noentanto, em qualquerdocumento como qual o, historiador trabalhe,
·funcionam.outros regimes de.signos; operam outras.-semiologias, que-remetem
a outras temporalidades que vêmsendo sistematicamente negligenciadas no
trabalho de interpretação documental realizado pelos historiadores: A história
da disciplinarização do saberhistórico, ao longo dos últimos dois séculos,
• implicou a repressão·e o recalque de,dadas sensibilidades, de dadas habilidades,
de dadas práticas, de dadas competências no ·campo da escrita historiográfica.
A acusação sistemática à sensibilidade antiquária e erudita, relegadas a uma
espécie de pré-história da disciplina, acusadas de ·pouca cientificidade; fez
. com que nós, historiadores, perdêssemos a acuidade parapercebermos e
interpretarmos os.signos e, com eles;aastemporâlidades que emanam do próprio
·:::.•:rECELÃQ-'DpS.JllMPOS
#E±EE±±E±.a±te
própriamaterialidadedas coisas,dosobjetos,idos 11101.mmentos,. das·ru.ínas, .dos
gestos,ele i nos
mpõepensaraprópriadimensãode presençadopassado.. que
±±±E5E±.±±±±252±37±:
•• •. .•
.•,•Ftl6.)i-RA1'-l~É'tLi;,pp91div,o'.ri'./s.óbreÔ'tátátêrldadêrtc1aliistóri.ta'ihfaMWL'ERBAtJurandir, ('org.).
.. -Liçõesde história I: i{êamírjho:d,j,êiênÍ:iitw1.,longo?sêculoXIX,,: p. 14-16.
117. PaulRicaeurdivideotrabalhodo historiádoremtrês.fases: a, documenteµ;, ada ·e:,icplicàção/_
• i\'···co,mpréensãqi!.tda·represerit,atãóhistoiiadoni,iportahtp;a·etapáido;arquivohseparada•do
·•• ,>.•monierito .epist~ni'ól9gkó'do'ti.âbalho':-doJ1,is.toriador.:Michetdé Certeau:taníbém:divide a
: • :.•• • '/PPer~çii.q;bisJ<?tiográticaeD1,trêsmo.rnentos:.0Jugar,-à'disciplinae a escrita; pouco falàri:do
!'..·):,domofueptQÂ,ó'arqJlivo;qUe~uppmõs.ê~farnomomento'dirdis'c;iplina:Ner:\RIGCEúR;'Pául.
1. • ,-;{A;fne'ff.lprjarfrhis,tóri,ti;tógsqueci-Ím11.to,,CaJ!1pinas:'Eâitotaila.UNIGAMP;;20.07; ·cERTÉÂU,
Michel de.A escrita dahistória.:2ed.Rio deJaneiro:Forense, .,
Universitária,2002.
DURVAl:·MlJNIZ:DE AI;BUQJJERQUE JúJ:,..rJOR 69
122. Ver:ARÓSTEGUI, Julio. Apesquisahistórica: teoria e método. Bauru: Edusc, 2006, p. 23-24.
.·.- TECEbÃ0eOOS·'.fl,M.POS
própriaespéciehurnana;,+tal:-como\foi~âfirmâ'do:por~pehsadoresitão:díspares
,; comoi;t\tistóteles.e'Nietzs,dhê/,.à0l)iedicia+.que,(se•telactonam ,cóm::o,mundo,.
.· coin,ahvida,,com;seu;pfóprió:.tor,po; a:trav:és ·do.1símholo;:da. repréSefit?~ão, da
mediaçãodasvárias formasdelinguagem,doimaginário,damemória -queda
assimignorado,poiso:Coht.eitd}é,;uma.:,das:•protlµções;;humartas·µestinadas
ser
adarsentidoaomundoeao humano.A produçãoconceitualtambém é •
. ·..·, mar~adt:peht:te.rnporálídird.e em queocorre,o;prqp.rio:tempo•émm1conceito,
: .·., uina!di:irtérl~ãõ.â\Jtt_rata.Hàemstêricia:sô:-ela:b.orai:laexapturádaconceitualmente.
• Nos documentos,noarquivo,nãoapenas sefaladetempos, •mas se·élabo-ram
conceitospara otempoeconceitostemporais.
• Seopesquisadortememmãosa DescriçãodasMinas GeraisdoBrasil,
documentoqueteriasidoredigidopor AntoineBlem,comerciante francês
radicadoem Lisboa,no anode1732,nelepoderá leraseguintedescrição de
VilaRica: • ·• • • •
DURVALMUNIZ .DE.ALBUQUERQUE·JÚNIOR 73
123. BLEM, Antoine. ."Descrição das-Minas• Gerais do Brasil". Apud FURTADO, Jünia Ferreira.
• Oráculos dageografia Iluminista: Dom Lufsda Gunhaf!.Jean-13aptiste BourgqignonD'Anvi/le
naconstruçãoda cartografia do Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2012, p.386.
124. KOSELLECK,Reinhart. Op. Cit.
. " .. TECELÃO .oos,,TEMPOS
t ' ,
ttempo
startes.:±z24851%
eda própria o história.Obcecadosemenxergar tempoos historiadores
\:iião·se)Ípercebeni~tlos.~sp~ç;ô.~iiliâ.i:un:esquédm~ntoide,que-'OS•signos:temporais
são inseparáveisdeumalocalização;eles se'deposit8.lll na.:superfície:do-mundo,
•. •·•· · .• das coisas, dos corpos. Otemposó éperceptívelatravés -da:Sirnarc;as.que::deixa
• \nape.lld,p;mtmc;lç{Osrêsto~i:asct\iírté\SJí)S:y.ésJígios/ossinàis,.ns·monumentos e
documentos possuem l:µtléiqimensão ~spaçial;:.O;arqttlvo,:possui:uma:arquitetura
-enãoapenas emseuprédio,emsuas instalações. O arquivoéuma rede de
•:;sigri◊~/~le.garihir;~eàtidó:éfaz:s_ep,tidóàmedída:que'télaeiona;,organiza,·dispõe,
.. ·'côrfola:êioriJn:•:separa~fcipõe/:dássifita;rerdena{di$pOtúb'liiza;·'.úma,:,'dadarmassa
\;.sígx:iica};_doêumênfab.'Preciç:up~dos's.obrernanéita eom:a\diacr,oniatrlo.ar.quiyo,
• •... ,.. {i1,1ose.$quecémôsde;$has'$1ncronfasea~sincronías.A':>.,.a:rquivoi;,ao:mesmcHe~po,
'.',,iúirúrsu~~ssão'ê":úma~di§pósiçâóSdé'telementost:B.ar.quivofa:z:sentido:nãoapenas •
· p:elo:,qü/!Põe;eittsuç~s~ão;_,,rna:s.p:elo,qtre;attitdla numa Tede;;:Essa;.cegueira,para
.jfdiniensã1:r:ê.spâéial{dóia~quivo;:·,en,ql!?ntq,:çqp:jID1toi,dei:signos;:vai··estendei~se
•.áo:'dàc;uq1:énto:,:à0,S elerrientds:ilip;guís.tico$,econteituais;, O·documehtOj\antes·de
0
- . , •. :Jâlai\de:mri,terjlpóté11tnrespa:çofele~~,e:~paciâliz~~ãóde1sígnos;':Quantos-.de,nós
o
pensamos livro,a folhadepapel, a fotografa,o filme,o vídeo,amúsica.como
~-., ,· : ;espàçós?tBnidotUtrierjto;F)os1,Uh::nvseu',-Coi'pO'm:m,çortj'Unto~,de,,signos,qq.espor
, ·'. · ::e1e-sê:·âisti:ibtiern·e'néle1se-:ielàdona;m\Quartt0s:deiil0S;'ao'e"lltrar entumarquivo
eteremmãosafolha de umjornal,prestamosatençãonalocalizaçãoda notícia,
dacoluna,dacrónica,dacharge,dafotografa,queremete m ao nosso tema,
• ·,<,riffplhà:iioijotnàí,~suíl,tbrtelação-:conJ,asI,ou.tras nótídas;,matéi;.ias;{ilustrações,
anúncios,presentesnamesmapágina?Quantos denós nosinterrogamos que
· •.•• rededesignificadosaqueleconjuntodematérias,designosproduz?Quantosde •
.•.,;.:11.ús.prest~os:atençãq:ina•Iilarcação:'.a:'{ápis·,o:u:canétà'foita., p.or,~gum,leitor em
. _·;dã:da.·m:a1étia,?·:A:J,guêiri'sélembtà3>tletei- ,e,,anotar ;quem·.são•o.'diretor,to :éditor,
• ,:':;o, propriêtãrio.. dtljornâl ?,1:·E,'no/entantp;•,fadmissÓ.:faz. sentido;}sala:damente e
·• • ' fornâdb:siün;tbiljiJtltoim:uma·tiedé';de·~lement9s/Al'guém;selembra.'de obser.var ,
o
• . •· .. que jornaltemclarasmarcasdeixadasporumainundação? E, no entanto,
todosessessignossão signostemporais, •in:Ôiciam::aihistória' diqüêle .próprio
',do.cu:i:nentó,e do arquivoque oabriga.
. Desde PaulRiceur,pelomenos, aprendemosqueatem poralidade
·•·\~ortsti'mdW;peló,hístodãdorpão.;correspondenematttemp,o,éósmico;.aostempos
'.-'<Í.lmatuteza;,rtem,áM~mpo,me.~ânico;tronolqgi.co;.convencional·dcr#.~cnologias
•· .. de:iné;dií3:ção>ido,,te~po,.·'nem•s,nlÜito;roenos•.s.a:o:.tempo,sübjeliv9,;:ao:tempo
• ,,,,;psicôl9gi;to,·essefep:ipp;
,:.;..-,·:
' -
qu$:litativo,.vtv.encial:4o·qual;já:Jalav.a'Santo;½,-gostihho125,.
o
125. RICOUER,Paul.Entre otempovividoe tempouniversal:otempo histórico. In: Tempo
• ' • -,:enartafiva"'::.Tq:mo'IlJ:;D;unp,i,nas:•P~pirl)s, ,l99Z.,.p:'179:~216, •
-· E>URVAUMUNIZ "DE 'ii\:LBUQUERQUE'JÚNJOR 75
··•"Nesse;poerna;:o.espaçodo:sertão·nãoé'ditoaptrnasnaquiloquesobre'ele·se
diz. Eleé significado,justamente,por sua pobreza,porsuafome,porsuaausência
• deriquezafüiHnguagem:'Masô',poetaJ1ãofüzisso•apena:s,,dirétamertteatravés.da
,'.,: ;_;,,tlâí-t~J;;::~oêtica;,;@.S'Írtl!1gerí~;.que,con:sttókpéla,1disp:os-ição,das,.palavrf;),Si',;Il)aS
- : . atravésdas própriaspalavrasqueutiliza.Oespaçodosertãonão é_apenas,dito
por essepoema,ele se mostra,elefazpresença,elefazsignonesse poema. É
, • i :._-: ·.;)coµ,i-utpà\1ü4gq~gemtr~#tlcr,'.coinida,~paJ!gt;íela~,umà·gaIJ.gasem:sustança.que,ele
··--·••··i;:::bpro,eiità'.,li'gú.rar.osertã-~::·~J11stóriaidó_Sertã0:éa_próprfa,nistória'de::umaJm,gua
• . · • r,;;:êstàn<iâ<là'.:r'ÍqJêtnpo:por' càusa:;q~·,um:detteto, doMarquêsdePombal",uma
, ;_•" línguafilhadascatedrais fik:J(ôgicas;,.tão;p<1µ:co:môdernas1quanto outra~·:catedrais.
. : , •.· '+{trrniJiI}:gua;_quei,êPêlame~m~::,Úm:mai.caâot,te~por.aL,.eomo•em,outr,as,Jantas
o
obras sobre sertão,o tempodosertão éopassado, éumtempoestancado,
parado,atrasado,anacrónico,até nostemposverbais.Osertãoéumdesertão,
,_.·,_;:µi:clt1sive,~m1s\:láfünh?iemtde;linguagén1;'j;)Ois,essanasceup.ara.nomeàr1o·vazi9,
o o o
vácuo, nulo, sem,onada.Odesertão,emseupróprionome, énegação de
· : : ;\: il1qrÜiJf~·:desn6me;i0·sertãó'é no11J.etnória?seu,tempo:éo d,r:presen-ç:a é.terna do
nada,daduraçãodaausência.
:• , \'>:;Mas·i~,.espiêlàlizj\:ção,.nJ>'eiriteti~r:do Cdoeume:n.toTsnão,se dá •apenas ,pela
disposiçãodeseuselementos,ela tambémsedánaJkópr-ia:tropologia,comque se
"·· • . . arquiteta otexto.Todalinguageméfigurativa,elaoperautilizando-sedetropos
i :. , ,_ • • • •;,Jµ:iguístieos , :i:rltz:et:queos histpri;);dores;tanib'ém~faziamissõ,(oko:grandepecado
• ;< :\ dh:qgroklªY4~tfw:hitil~~f.que;;parece•se~limt!litar-da:carne.dosprofis,sionais, do
ramo-,elaopera lançandomãodefigurasde linguagem.Ora, aprópriapalavra
;,<'.'t:tfõfto'.,r'éi:pête:tái-translíitj..ota.. ;giró,",à,mudan.ç.a·,de lµgar. 0s'tropos{deslocam• o
:·•.·.~J:senti4ói;:alte~am,õ-i~ignifioadq·po;çjústap:esição;·,aproximação,,s,ii;bsfituição,
. omissão,daspalavras.Nãose constróiumacena do ;passado• sem :.o r:ecurso
ametáforas,sinédoques,metonímias,catacreses,oximoros,antonomásias,
• :.· ,(;pefüfrasesúeµpsesibipérboles,"etc. ,Cada.uma·,dessas figuras;implica, u,.ma;dada
• · • disposiçãodoselementos, não sótextuais,mastambémvisuais e ,sonoros,
que tambémoperamcomessa tropologia. Um·doc:umehto é um e.spaço,.'.COm
suas marcas.e signos, el,e.cóntémJ~1,1guagensv4ue ::também, '.a: depender de'.que
, linguc)-ge,111,for;Jem·s~as,:próp:rias:regras ide espacialização; a depender de .cada
época.Todosessesregimesdeespacializaçãotambémimplicamdadosregimes
de temporalização. ·-· < • • • . • . · . . .
.. :·,_ \~Oj~1a.ssÚrt;çomoe:xistero;conc~pçõ_es,tempoí:aisprevalec;,entes :em.1im dado 0
:,.sei)]\z'4ldê~avá:de~et;,pa,ra,aptm1s':estí;lI'j.era:tudo,uma.questãoHe'distânç(a;,era
apenasumaquestãodeposição noespaço.Azul, porisso mesmo,,era:agora ,uma
questão não apenas dedistanciaespacial, mas afetiva,subjetiva.Azul era agora
tudoqueseviacomoinalcançável.Azuleraumanostalgia,asaudade pacificada
de algosabidamenteperdidopara sempre.Azul, :er:a,'-p:qrtanté;,um:a questão, de
.. ·p.ôesia,·;étaeurtrestâdq çle~p,c,esía>Devemospensar.tnes$as.coisas,qúartdo formos
,.·, .. ao arquivo,ele
. - '-. --
que
-
é-o"nossomundo" ,' •
·Capítulo·4
1Rar.os:,-primeiro•movimento
• '
. i.s:;t1~~9eique;'actnasãerem:f:~9nt~rupl~ranvqutros :oll)os',tristes::e,..orvâlhados,,que,
·. , aomesmo tempo que osobservavacom cUàféMão)devotacla irnlhos:queridos;j á
ofazianum tomde despedida,poishaviamnascidoparadelelogoseasilarem,
, ',,-qaiçeratti•"dêstiJ:tados.:à;iretn de.enco~tro-.àquele outro·par~de:olhosi·que.agora
novamenteos mirava.Nasceramdestinados ao·tiânsito,·•nasceram· destinados
a seremcomopontesqueligassemduasalmas eestabelecessem·•entre,·elas. • a
• /ÇOI'ilµil~cãçã,õ132. • • • , .. .. . .•
:•· . • •...i;iQüe~:os'fêi,p.á'Sçet{qtrerrúis.iípd~içm,q,trpela/prüneiravez·em,a.Igo•chamado
. envelope,quem osfez viajaratravésdoquesouberam Chamar-se mala -postal,
jogadosemum porãode navio, aossaltos e solavancos do mar, os costumava
..-··•· çh;µfjr'.pó't':trcês:mo.mest.par.ete,4tte)evarído;êm::conta-:01,tamanho·e·a_aparência
·.,,:''CJ.H~ipp~súianfha:vi~cqqllelés,éhamaclos·de-:ca:rtas,·Jâ:lve,zpor·seujêito,digamos,
mais feminino,poisder-tà.madFl~/alongadás;.;cheias.·de· curvas ·e reentrâncias,
; ·,.: m.:'iüs,J:hgkpsitp;,,S'éf:Ppre•,'extens\il,S,i<}l.Wcâs,;yezes·iiriham.c:nàstido em vários dias
parto de dolorido,febril,angustiado.Haviaaqueles a .que. chamava•.dé:postais,
.·'mú,ifg:111füt~1Péutós:.de;ci>rpo,.·corpo•'mais:adensador·•Corpo,já seni.ipr.eenchido
.. por caracterese imagensque nãohaviamsido alicolocadaspelo ,demiurgo •que
·:•.'co~',criá-r'â/pâtecejigo)d~stinados\àile:var,µm,,tecado'.,mais br.eve,rmais rápido.
a Talvez diferençanosnomes adviessedopróprio fatodeque as chamadascartas
nasciam quasesempreemcasa,erammaisdomésticas, talvezporissotambém
..•. •le.yª"s~~rt,linórtiêttéinifiiriój;Jih>s,difO's,pti.stl:lis;:rriáis.mascú:linos;éamenGOntrados
equasesemprepreenchidosna rua, muitas vezes àspressas,emmuitas ocasiões
nas mesas decafé oumesmo nobalcãodaprópriaagência decorreios.Havia,
noentanto,entreeles,umtal"Diário queeratratado comtantadeferência e
•.•mimos :gúe·:e.hf·deot:'.atj_s:3,r:íéi\íme:Iêirhtódos.:Esteiditd',\lDiár.ió''.re.ra :composto ,de
... ·.siP~<f\i:~nos:':pe~a-ç9s(de;papêl,,pequenas-,ano.tações,a;;que·0,demiargQ-êhamava
·• -:_. dê,~ilhetes/$,.:ê~se,ditdJDiátio~:p:pÔeta?;pareéia:,.resé.J.War,suas•confiss.ões:mais
· íntimas, seussentimentosedesejos mais:seeretos; parecia, em·certos,momentos,
segredar-lhesao ouvido, ·em. sussurros _quase inaud-iveis ,para ele mesmo, em
. longos profundos sus e piros,asdoresmisteriosasque lhe atravessavamaalma.
4- Masnão podiamqueixar-se davida, pois comomesmocarinho com que
::eranttraJa'do.s ;ao.mascer,,-comc o ,111esma;afeto:-:çQm;.que ,foram,geradosr,er.am
· rftel)idos'eirt:fte'.ti::a~,portµgues:asf!D,epois':de,seremJogados ,deumlado para ;o
. outro,desemisturarematoda uma raléchamadadecorresporidência;/depois •
' desacolejaremdentrodeuma ,saçola;;transp-ortada<pOr::um:hom:em:'chamàdo
carteiro, terminavamporserrecebidas po.:r;,àquélas, mãos.ansiosas-erec~püvas,
:..•it.'9il%'as'lib~rtávan;rçla\pt:isâo·'t10·tã1,env.elQpe;éeµtão:-ôlh0s·pressurosos,percoiriam
, comexpectativae curiosidadeseuscorposde papehe:letra;t.levando~.os Hµasesao • •
132.'Anarrativaque se faz nesteparágrafoenosseguintes baseia-senasinformações contidas
' .• ,j,.. :;pb'fivrci:G~~TILHQ,:Çiüillieimé'.~é,(o;g.}f3rit6ni-0..Nób{ê.;,cpt-responaê~tia:Gsboá:1N,8M, · • .
··:·•i;,,-;,;1982( "· 0•' • • • • • • • • • • '• ,. ,.,
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DURVAL MU NIZ DE AlBQQUERQUE,JÚNIOR 81
• '
. i.s:;t1~~9eique;'actnasãerem:f:~9nt~rupl~ranvqutros :oll)os',tristes::e,..orvâlhados,,que,
·. , aomesmo tempo que osobservavacom cUàféMão)devotacla irnlhos:queridos;j á
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, ',,-qaiçeratti•"dêstiJ:tados.:à;iretn de.enco~tro-.àquele outro·par~de:olhosi·que.agora
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• /ÇOI'ilµil~cãçã,õ132. • • • , .. .. . .•
:•· . • •...i;iQüe~:os'fêi,p.á'Sçet{qtrerrúis.iípd~içm,q,trpela/prüneiravez·em,a.Igo•chamado
. envelope,quem osfez viajaratravésdoquesouberam Chamar-se mala -postal,
jogadosemum porãode navio, aossaltos e solavancos do mar, os costumava
..-··•· çh;µfjr'.pó't':trcês:mo.mest.par.ete,4tte)evarído;êm::conta-:01,tamanho·e·a_aparência
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mais feminino,poisder-tà.madFl~/alongadás;.;cheias.·de· curvas ·e reentrâncias,
; ·,.: m.:'iüs,J:hgkpsitp;,,S'éf:Ppre•,'extens\il,S,i<}l.Wcâs,;yezes·iiriham.c:nàstido em vários dias
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.·'mú,ifg:111füt~1Péutós:.de;ci>rpo,.·corpo•'mais:adensador·•Corpo,já seni.ipr.eenchido
.. por caracterese imagensque nãohaviamsido alicolocadaspelo ,demiurgo •que
·:•.'co~',criá-r'â/pâtecejigo)d~stinados\àile:var,µm,,tecado'.,mais br.eve,rmais rápido.
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nasciam quasesempreemcasa,erammaisdomésticas, talvezporissotambém
..•. •le.yª"s~~rt,linórtiêttéinifiiriój;Jih>s,difO's,pti.stl:lis;:rriáis.mascú:linos;éamenGOntrados
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nas mesas decafé oumesmo nobalcãodaprópriaagência decorreios.Havia,
noentanto,entreeles,umtal"Diário queeratratado comtantadeferência e
•.•mimos :gúe·:e.hf·deot:'.atj_s:3,r:íéi\íme:Iêirhtódos.:Esteiditd',\lDiár.ió''.re.ra :composto ,de
... ·.siP~<f\i:~nos:':pe~a-ç9s(de;papêl,,pequenas-,ano.tações,a;;que·0,demiargQ-êhamava
·• -:_. dê,~ilhetes/$,.:ê~se,ditdJDiátio~:p:pÔeta?;pareéia:,.resé.J.War,suas•confiss.ões:mais
· íntimas, seussentimentosedesejos mais:seeretos; parecia, em·certos,momentos,
segredar-lhesao ouvido, ·em. sussurros _quase inaud-iveis ,para ele mesmo, em
. longos profundos sus e piros,asdoresmisteriosasque lhe atravessavamaalma.
4- Masnão podiamqueixar-se davida, pois comomesmocarinho com que
::eranttraJa'do.s ;ao.mascer,,-comc o ,111esma;afeto:-:çQm;.que ,foram,geradosr,er.am
· rftel)idos'eirt:fte'.ti::a~,portµgues:asf!D,epois':de,seremJogados ,deumlado para ;o
. outro,desemisturarematoda uma raléchamadadecorresporidência;/depois •
' desacolejaremdentrodeuma ,saçola;;transp-ortada<pOr::um:hom:em:'chamàdo
carteiro, terminavamporserrecebidas po.:r;,àquélas, mãos.ansiosas-erec~püvas,
:..•it.'9il%'as'lib~rtávan;rçla\pt:isâo·'t10·tã1,env.elQpe;éeµtão:-ôlh0s·pressurosos,percoiriam
, comexpectativae curiosidadeseuscorposde papehe:letra;t.levando~.os Hµasesao • •
132.'Anarrativaque se faz nesteparágrafoenosseguintes baseia-senasinformações contidas
' .• ,j,.. :;pb'fivrci:G~~TILHQ,:Çiüillieimé'.~é,(o;g.}f3rit6ni-0..Nób{ê.;,cpt-responaê~tia:Gsboá:1N,8M, · • .
··:·•i;,,-;,;1982( "· 0•' • • • • • • • • • • '• ,. ,.,
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DURVAL MU NIZ DE AlBQQUERQUE,JÚNIOR 81
.. . · . ·. • .
·-••>atenção:,porfsua;foisie~aêâesbliição:AritóríioNobrePElesseriam,uma.raridade
a um
pordocumentarem vidade homemque viveu no passado, porserem aquilo
, ,:que"sohrmfdesta,vida:}pôr,'\iiremde-um outro.tempwpor-.terem sido.aquilo que
-._ .. ·:restôt.r,ç.'e:Utnà·vida:quefoLutnyetdàdeiro-nauftágio.'fües:corneçaram _então até a
sesentirem importantese,ouvindo a: voz que-já; lhes,era:familiar-falar·commuita
comoçãodaquelequejá morrera eque os havia :dado nascimento,:começaram a
entenderprofundamente osignificadode seremraros.Não eram ,raros•:apenas
por serem opouco queescaparada destruiçãoentre tud0-_-quepertencera e que
remetia àvida eà obradaquele poetamortoque, ficaramsabendo, comesse único
livrotornara-se uma referência n:~-po.esiade·seµ-país; não-etatn rnrns. apenas-por
escaparemdadestruiçãoinexoráveltrazidapelotempo; eram rarostambémpor
seremoque ficou de umarelaçãoafetivaque desconfiavam,mas agoratinham
certeza,diante dacomoçãode quemportantotempo osguardava, tinha ,sido
tambémrara, especial, distinta. Ohomem aquem oestranho chama deAlberto
de Oliveira,queétambém nomeado depoeta, ao guardá-los por tantotempo
naquelagavetaescura,fez com:;que -'eles;;se :to:r;nassem_ ,raros. Descobrem-se,
:,;assim.,,pédaços'rle;urrúpassadcxainda·Vivendono-presente,,sentem então-o p.eso
em
dosanos seuspróprios corpos, tomamconsciênciade quesãorarosporque
• carregam namaterialidade dopapel e da:tinta_ que os.compõem, nas mais-de
• três milpáginasesborrachadas, talcomodisseraodemiurgo, a 'espessura. do
·, t!JPr.óptió ;têr):lp_o;'descéibreni:c_,setestemuiihos deixàdúspor,uma época,.descóbrern
. que,emmeio adestruiçãogeneralizada de seussemelhantes - pois sobre.isso
,;-cmnversaridongàmente;aqueles.doisfüomens .,.. - eles:escaparam, eles estavarn:ali,
•· :1quàse:s()zinhos;.nataréfade indi0iar,paraso:presehte o que foraesse:passado;-Eles
,;erarn:,iarOS]iorque·descobrem:tam.bém quemão·,era:comum,que:dois,homens
mantivessemnum curtoespaçode tempo -'>-afinal timham:sido criados em
'•".apenas'Jrêsanos;\entre'J'.890.e1'893;·:quan:do:,o\demiurgo,decidiu·inter-romper
suaprodução -umacorrespondênciatãoconstante e com oconteúdo que
,,parec:iam;,carn:gar.::Pois',ja tinham,ouvido; o tal"Alberto falar no cuidado com
• :;que:'eles:deverfam:sei'ittátà<los;Semp.re,parecerido--pelotomdesua:vozquehavia
-• medd:.e_ plidor:etn'torriá;;los:pú'.b1icos,6mmosttá'~los:para,,outras-pessoas.r-Eles
eram assim,raros,tantopelaquantidade,quanto pelaqualidade, pelo conteúdo
que traziam.Eramrarospor teremescapado ·da.-.destruição 'generàlizada;,por
viremdeoutrotempo, porestaremligadosà vidae ao nome de um criador e
• - A:le-.um,recepiortarribênr'diferentes;_especiais;,homens de,nome na-sociedade e
- ,hó'te,njpo_de:_que'Jaziam,parte;,Eràm.rarospor fimip:orserem'documentos,por
:constituírem~úm:arqúivothàmado:de:-privado;'fntimo,,,pessoal,,bi<;>grâfico~-Pºr
,:desçobriremfi3'.través:.$lªquelasconversa· que escutam;. ·que eram,documentos - e -
,-,arquivós;que.,difiéihnente:v.inham-a:,público.·e,quedificilmente,eram·conservados
na sociedadea queosdoischamamdeportuguesa. Quedam, no fim daquele
dia, satisfeitos e enfatuados com,a-sua própria ,importância;.chegam quase a se
_ • _, ,sentirem.nôbres:como o seu demiurgo. _
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 83
Rotos: segundomovimento
· um
um ditopesquisadorsedebruçasobre nós,osdocumentos,quandofrequenta
arquivo,elenãoofazdestituído de suas-outrasfaculdades; ele não.ésó:razão
0
22#±E±E#±Es?
""""C.a,,» isess.sses»d«soe
dequealgo denósseperdiairremediavelmente,deque,sedesaparecêssemosde
E±±±±E±±EE±27
quechegaraporúltimoànossa convivência, quejátraziaescrita,documentada,
umaespécie deameaçaànossaexistência.Nela,emtommuitosério,quase
·•· . oficial,bemdiferentedaformaíntima e carinhosa comque costumava dirigir- •
seaquemochamavade"meuAlberto", "meu irmão", "meuamigo, Purinho,
.7#%#s
1', /\4ifytf\!écque'tlelllí51\sj@',a;,pata,Ííão"'1/ia,",n,.;10:,eteí<r,ile;quo,pí:in<;ijialmente
• • • • • •;;-p\tid}~D°Iâr:fó:'?:':yiessê:c~,.p:(1bliG01\pots~;-st:gundorelenisso;,l;ignificaria.:a:,sua>''ruína
.:,niotal:}e;;e*gii:que,;fi(lS'lÔSSemos·•a,ele'!cieyolvi.dos135iC.om.o>dá·para"adivinhar,
..·•:<oC::Sr;,Í\lberto,riã&;ob.edeceus!aOi;p.edid,o;i:tâlv.ez..,p,o:r,quétHv:éssemo~Ypara·::ele••·uin .
valormuitomaiordoque ochorosoe revoltadopoetaparisinopodiasupor.
:•·N~:o:_:.sàbêrnos.,se.o:'faliNobrevoltou'.:à;insis.tir·a:i.este·,pe·dido;se,,Afüerto;t-tev.e,que
nosdefenderbravamentedoexpatriamento,o certoéquenosmanteve emseu
•···, :·:,ppq~ti,é.úibp(a;rt11s:tQJ'.t~efia,ddoc.3i'vivermasiso:rli:bras:de;:uma,:éômoda:Jechada
• • •· ·.·_YaJcihav~i~talv:ez,p.ót,;t.amb.é~:;jü,Jgâr.,qué.éra,rnos:rnesmo.tão:ameaçadores,à,,sua
moralcomopareceuseràmoraldenossodemiurgo. •· . • ..
• • '·
#E±EE±s±a
. traseiras.iEntre O$ dóIS.tratollfs,e:u:ma:conversa,que;;bisbilhoteiros como·som0s -
• .iffi.nãl,.p,orgue:,só.bsíÍi\o.s. pesquisadóres-podem'se servir de m:ós·par,a bisbilhotar a
· • .• · ·: vida,opassadodosoutros;nósnãopodemos tambémdarnossasbisbilhotadas? .
•• -ficamosaescutar.Orumodaconversa nosdeixoumuitopreocupados, umfrio
,;' ({ '
demorte
.
..• . percorreu
. nossasco
' .
lunas,osdoisseconfessavammuito.velhos,
•. • ·'. •. •. . .
• •
diziam- .
' •
- •. ·:\--~~-~-.:t:.:· .\.
'.º,DURVAL- MUNIZ DÉ.ALBUQUERQUEJÚNIOR 87
/.:~,tíJd:dé·cbn~er,rçã,o;'a:adµltenlç,ãó'que,ali,háivia·sido·féita;'ÂS'tart,asvôltar.all,1~.assim,
desiludidas como destinodos taisdocumentos.Descobriram que.assim. i:::omo
' ' •.• sãoproduzidos.pormãoshumanas,estãosujeitosaserempor elas :destru.ídos A
±E±E2±±±±.±±2±±±3
? - :(ll:Ú:>act1.r1te-cetâ:4e.;v-erda.detéo~ios·;hom!:!I'l..S'.'·;Ma.sragota;,punham"'Se'-a,i:efletir:
. ·• ...•?c9itto:'b·d0,C:umentoj,99:e;~er;gararttiületac.esso;ivendad_e;-à•realidade;.pode . ser
,. ; _.'•:,~têstérrnw.ho,ô,o::qúecsç,.pas,s9,u,~corn(\)1)0dés,€r;evidêncüi,;dndício,,átrav:~s·.doi,qual
o
se reconstitui passado,seeles mesmosnecessitam serreconstituídos, pensados
, ••• ·,;_,qµanto;às:operà,ções:qu'éo:s:.;pro:d:uziram,,se·eles-mesmos;São.artefatos·fabi;:icados
•. · ·.• ·}fp.6-r:pp,~rações:ide'ras~ta/silen~iament9,;idísto1;ção,,encobrimento;.ap3:gamento?
• . . :··· {(:fonioi:S:àber9...que,ho.uve:teahnente;.verda;deirá:mentei:entre,A.ntónioée'Alberto
· sejá na escrituraprimitivadenossoscorposelejá i:isara:de,disfarces;p ara:falar
.~,'iúl~seus:sentimentos,·qué~prêferiu:•Gha:mar.de:~Jissô''-;;5e'depoisne>s·quis•·de-vólta,
: ••••• : A'ãlv.ez.paranofdestrúir;is~:tüdo,o:qúe:Albetto.nos:·promete,de:futuro·ésermos.
publicadas aos pedaços,aos fragmento.s;..âdi:ilterá.das, éheias de escórias feitas por
• • ·':\umJrmão';vélh~:~ari:o:r.ilista?:Agóra,enterido hem :por:que somos-taros, -embora
/)latnhém::éntertcl~os:.,mêlhótJâil)4a.:po:çque$.Omqs,rntos1F.. • •
,;:fR-esto;s;.'ter:ç~iro,movunento.:.
que
±5os entrenóssechamavampostaisouviramtudoaquiloapreensivos.
')Eutt~/il~s';,~pep.a;sum,Já,tjv~t~essaéXp'êriêntià·de:•sêrrêtinfüo:i:le:seu·esconderijo,
., enviadoao quechamavamdeperiódicoparaa talpublicação.Ele não'ch_t;gara a
• )yér'.~,1:~sajtaqd',llétomc/fi.cou,sfuitsilhü~ta;qefp-oisde:setpassada,pela.tahmáquina
. deimprimir,poislogofoidevolvidoàsuacondiçãodeprisioneiro. Todoshaviam
-escutado naquelamanhã, com.·ctfrta.~sperança,,cf:Alb·erto':dizer·<\º .Gt:iHherme
%r±7
sendoa talpublicaçãofeitapelohomem quedemonstravaterporelestantoafeto
eapego, queos guardaraportodaumavida, nãodeveriapadecer dos mesmos
problemasquemaculavamatalpublicaçãodascartas,nãoseriado modocomo
:-Vi:iliisa:êãhavani:derelataifMasesté~rtttisias111i;rlqgo'Se"àJ;refeceqe-detilugara,maus
presságios, quandoo ouviramfazerasseguintesressalvas:que eramdocumentos
::% ':-JfüÇ.t-piétaçã.9{d.et:ifrariµ9,o,:qué:em:rrúiitos;passos,;etaquase'linguagem:dfrada139,
revivendome mórias e:reconstitrundO'am\,i~ntes.inteiramenté'délidos:p.elo.tempo.
Principalmenteessa palavra, '-'delidos'i':causou--lhes .frio,nas -colunas;,fobassim
•- quese sentiram,delidos,eessenome nãodeviasignificar boà::coisa:;<,De-um•só
i golpe,ficara m sabendoque,se chegassemaver aluzdapublicação, nãoseriam
· ••.•... t> _;, i,~di>s\;le,$',a\ter.,é,sa:so,rte/Assitti-:e-0mo:as,caí:tM1J>assariàm·p:orJirtvpio,cesso' de
,,, • ,.,__:sel~çaÔiddgµà1nã;oJábic1U1;quàisos,.cfitériús;üu·sejar~!guns,-i>.utalveza;mai0ria
::·-d~lês:.,ç<lritmtiáriàmAevando,suai\ii:da~deatmári9;·dele:não,;5aidam-é,''emboràotal
• ,:· ·: ,át!ii~dó:lê\faS$ecÓ nojüé1d~cônrôda:;-:elesn:ão;-se;seritiaminada iê:ômodos.,naquela
. ·si14!içãohFibátarri,_sàheíido·àinda-..;que::otAlbertoacompanhatia:. itpublicação-
' : delesdenotas'cexplk'àtiVas,,que~ajtrdasseµr na -interpretação. de dados: trechos
ele
que disseseremmais delicadoseescritos disfarçadospor umalinguagem
• • • ·•·:qi.fr~élà:il\'Íá:S/01_eôitaraméom!seus:cârtõêsi-;~lbeit0:lião,esta'ria',assim'quetendo
• _-;ürt,d,uzir,ªqüe1es;:queo~Jeiiam~a:.e:htehder'idadas;pas-s_agens'tia,maneira:que seria
• maisinteressanteparaele?Ao seproporaexplicardadaspassagens dos escritos
deNobre,passagensdisfarçadas,Albertonãopoderia aelasacrescentarnovos
·-i-@sfarçés{;igt~gàr,-,s,ehffdos•'•e;'~ighífié:ados{que:a:li rião• se;;encóhtravanil"·Eles,já
0
140. Referência a ROSA;.Jbão .Guimarães.· Grande Ser.tão: veredas,:1 Sa •.ed.. Rio· de Janeira:-José
·;·Olympio, 1982.
141. Informaçõesipresentes em: .CASTILHO, GüHherme de ·(otg.). António:Nobre:
correspondência, op. cit., p. 21 e 22, Ver. também: D'OUVÉIRA, AlbertoiProsa e·.versos:
páginas escolhidas. Lisboa: Aillaud, 1919.
~- - . ' -.. ' . ' .. :·- :. . . . .•• e<··
.
%E#E • :·
._ • Rastos:quartomovimento .
·-Ilílilliiili~'
,gµàrdarii,com,tàrito girfohoce•tiésv.elo,portantos,an:GlS·estave;.mórt0143, Jl}eus não
.••.• llieid°T~.arrrr•P~•~rttre~,s*àt-~•que~e propus&anaquela • o·"
, .1,.• ..:
·.,.•< --. <~?;~.--~ :.~ -·.. ·_. '.'. .
: ..: . ·,._;;
" fez.z2sr-vaoos
: 143.Todaa é a sumáriasinformações
cena imaginada partirdas dadaspor:CASTILHO,Guilherme
' "-- \>/, icte (tjrg;}>4~t~11iá-Nol:Íre:_éórr,ew&nâê.noia,,·p:··io.. • , •
;:,:
'DURVAL MUNIZ DE AtBUQUERQUEJÚN10R 95
· Guilherme de(org.). António Nobre: correspondência, p. 10e ll, onde ficamos sabendo da
•', ordem para a'destruiçãó de-toda corresportdência·:dé António Nobre,
'147. Informações,•presentes ..em:'.CAS'ITLHO, Guilherme· •de (wg.). António Nobre:
correspondêneiarop:•cit.,.p. 12.
98 :··TECELAO•'DOSTEMPOS
- · éla,ainda;ca,u_s~inci:ômódo,-:ela•.~iridafüterpela, :aindapede-sentidorexplicação,
ela aindaconvocasignificado, quando écolocada sob osolhosde alguém. Essas
cartas,adulteradas ouadúlteras,ainda marotas, safadaspelotempo e pelos
homens,piscamparanós,pedemdeciframento, porque são da ordem daquilo
queumtal Saussurechamou de signo".Signoque se desdobrariaemdois.termos
queestariampresentes mesmo em nossos corpora,agora quase•,c,1-pagadQs: um
. significanteeum significado. Sim, continuamos· a ser significantes pois, .mesmo
. tendonossos corpora ardidos emchamas, essas _êópias,cesses•simulacros::doque
fomos,que agora circulam sob aforma.e.oriome.de•livrn, possuemde-,nós-uma
figura,uma imagem,quecontinuamaconvocaros parceiros dossignificantes: os
significados. Mesmoessesrastosdoquefomos·continuam-exigindo significação,
continuam atingindocorpos, mentes, sentidose consciências, continuam
/afetarido,:iazeiido .:.efeito;:ao ·:_serem'.conternplados,didos por aqueles quese
dispõemaencará-los.Elescontinuam a ter mistérios adesvendar, agora mais
,airida;'depôtstletôdas,as:.périp.écü1s·porque,pàssaramatéchegaraessacondição
·-livrescà:.\EleS·çotitinuaÍri:a-s~r esfin.ges·ell'libuséa.de-quem decifre.seus,segredos.
•MasÇ·sabemqs:ªgora-;,esta,é:umatarefa!ihfindll.,._sempre.novos.sertHdos·poderão
seratribuídos aessesrastros.Dizemque háuns taisseguidores deum chamado
., ,pitrágjgrna'ú?,d.iêiáriõ{deve·seruma,seitanu,rdigíãotque)desdeamais remota.
antiguidade,são capazes de através de rastros-reconstituir., a imagem ;completa,
e
inteira perfeita dealgo oualguém,doanimalqueosproduziu, que osdeixou
·'.üradv-ertidamente,acfpass11r:por,iiadó-lugar,-em um,dado momento149 •. Um.tal
a
Zadig era capaz de ver imagemde um camelo, talqualmente, diria Rosa, ele
era,- sóbastando deparar-se com·suas marcas 'deixadas ·na areia 150. Há inclusive
um um
personagemde romancechamado 0Nom~~da·Rosd15!:que•só.atrav:és dos
-· ràstros:deixâdós. por t1m cavalo:que'fµgira,de:um mosteiro foi.capaz de,saber o
,:seu:paradeiroiMas,.,afi.rtâl;\êle'.eraidisdpµlo.cdeA.r1stóteles;do métodoindutivo
0
%E±E-E±
. , •···•.Jêsío,s:t:Ílf<ll.Íéat<i$jtorn~1nqWâté,ós,sitj1plésirástros.da:existência,quedeixamos,
guardariamem seuinterior pelomenosos rostosdaqueleque noscriouedaquele
±.±s:.
o nos tornamos seujeitão, permitiríamosvê-losatravés de·nó.SdllóSseríamos
umaespéciedejanelasobreaqual,aonosdebruçarmos,enxergaríamososperfis
"±...reorar««v.
· · . • ·•.·,-füinhayoz;'a~p?,~o'aútprtdoiteitô/l'Ràtrativas;'alénrde'desenhatemrostos;,perfis,
•.· figurasde delinearem sujeito, personagens,tambémsãofeitas devozes. Fui.. ,eu
,~qt1~;'de$a~.d'ihícittdessêt~~O,i~Ot1v'õqueLvtiCê$/dp,cumentos; eos coloquei.para.
fuieu,comogostamde
falar, dizermuitosdemeus colegashistoriadores,que
E deixeivocêsfalarem, quefizdevocêsospersonagens centrais desse texto; 'que
avocêsum humano,
dei rosto postoqueporhumanosforamcriadosesão .ecos
.i:1de'v:oz~s··e;s~rnbrás'.dçto.stos,que,$~ipei'der,am,nopassado:Masvocês.pensàram
\qu,et~nham:o,.iorttrôl~!do);iueaqfüsé:dizía?i.Róis:·estavarmbastante;enganados.
iAo-,çonttárid,qo.,q11e:<::osfuma;.dizeriajgµns1de'.tneus.:colegas,,.·documento:,não
·-··•falcú,docuqientctfiãopen~#doeumep,tótlão.mo,stra;doc.umentonãoidemonstra,
documento nãodesmente,documentonãodesvela,documento não resgata,
:,docume11to'não.:diz,na:da,qu:e.:frâo:sejaatrav~s-:detum:auutra-vozo;avoz.de·quem
• '.ôscc9nsult:à,1:ósélê;,;os,,/4lâlisa1:o.s:•rebóttâ-;<,DSJatt1buksentido.e,significado.•,·o .
• ,: · ,doc;:i.ur).erltozapaiece;no)texto;quartdo:o,autot,ássi:tn~o permite;mo)conte,xto··• de
<argumeptâ~ã:9-qrt'e.él~,ipi:fpara,natrama.,ria.:r;.Ú\tiva.,,qué:ele;·.enreda1.0,documento
nãofazsentidoemsimesmo,só fazsentidonessa relação (;011F.O.OUtl'Oi.COmo
··:Jjz;iqüi;:;êiô:,bistoriaâot;:,,que,.itifunde:'vídàraôs:doéumerttos,que.,analisa1',faz·,.a
· .,.-transfüsãoede;san.gue,p~re,que,se:reanimerni:que(>S,tornam,humanos.·É•eleque •
, ;faznovamenleii'dôcwnentct,sigfiifiGar,·:queJaz ós: rostos'que:estes,documentos
. •' <desehhâmem.t1;!J;ços.rápidôs:ou:.ex.cessivos;,novainent~ganhar:sn1ovirnento:·Mas·
· •· . ·e_rttão;c:voêê.,esteve'.âfaze1úfi.t~ão?·1É,pos~fvêl:,qu~;a1gum,,,frfê(até:fhum,ano exísta
sema suacapacidadedeimaginar,criar,inventar, construir? Etudo issopode
1setich~mado:deficctonã:,r;iHá'.ficção maiondoJ1ueidizer~se;que,,os,documentos .
·.,·•fizerâmwe.r;:queiosdoéumentos,.dísse~am;equeosrlocumentos:,revelararrto.,real,·.
,,.,qúe,os"do.ci,i01efitós1ôbt;igaram.a'.quealgó,fossê··ditó?Não- sei:sewoêês1nõtarani,
0
.;f.,.
•·:
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 101
. .
\.:,qu'ê:teVêqt1aseAue,sucessoabsolutoi·Ela,começouna-própriàformacomoYocês
: Jotàrn,.esçritas,;pélo"demturgo;\usaridoJinguagem' cifrada;,e'\fitarido-pronun,ciar
certaspalavras,registrarpossíveis emoções e acontecimentos.Porissooarquivo
· ·-.eFosxdo.cumet1tos~são:1,astcqfídiçõe$:de;;,passibilip..âde:;detqµé:i hajà>discui;so:'do
historiador;afinal,senãotivessem sobrado devocês aquelaspálidasemutiladas
cópias, eunão poderia tersequerescritoessetexto em queo rosto ,de-voéês
figuroucomopersonagemprincipal. Foi a so mbra ide:v.otêst,proj etada: à-partir
,.-sdaçiti'êle'>p~quenó-simulacrovqúe-:de-.vocês;sobraram;,quetme·.permitiu, ..c.omo
a
historiador,esculpire darrosto vocêsnessetexto,imaginarsuas dores,sabores
as
edissabores,Mas sucessivasoperaçõesde apagamento,de esquecimento, de
• · ·•:~ilenêiânierttoiêjlJe'foram'.Gôhstitutiv.as,'dew:ocês.mesmos;.'!.Cotno documento e
• :• .· ccomof::(rqu~voç,·n1e:,,i111põemrliniites.:"Até. pot-inotivos,:étic9s,não :possodr além
deafirmações daordemdaprobabilidade,da possibilidade, nãoposso mais do
quefazer de meutextoumainterrogaçãoeuma suspeita.Mas,afinal, não éisso
'tambérl;1,.papehioitext:O'histotiQ'gráficQ? • •
Vouacabaresse textopregando uma peça emvocês,fazendo-lhes uma
. • rsm:,presa,rcotn<rlahtas que:::vocês.;:dot:ilmentás;:.pregam ..e'.,fazem:na.gente.:Nocês
·sabian;uqué-':hãoJsão.fo:úníco(:testétnU;tiho:que;ficóµ<do,forte·:seritimento:)que
Nobre
António devotou aAlberto de Oliveira?Nãosabiam?Pois fiquemsabendo.
• ~ .• ·N essa;rnesma ,época,:errt\Paris?Nbbre·1compôs,,.um{poema,.em: ,homenagem, a
• Oliveira.Essepoemacausou noamigo português amesma reação que parec;e-ter
.-• ,:càusa:domuitas:•de'vocês:.·éleúcou·preocupado,çom.a:repercussão,·que poderia
.•:.·terapubliq1ção.. dess.e:poema/esc:re:veuao,a.migo,di.zendo.:que ternia,que:fossem
vitimasdefalatório edecalúnias. Nobrerespondeu-lh eumtantoquanto
magoadocomoscuidadosdoamigo, disseque publicaria opoema seguido
.. 0de;nbtas"expliliativa:s;,onde~deixatia,eS'.cla:r.eêida,amatureza,'(10s;sentimento que
• . tnutria;pefo homenageàdo,:sentim~htO:.tã()'-PtlrO'ê-heloéquéde:veria·-sermoti..:vo·.de
publicidade.Disseque,seelequisesse,modificaria certas passagens' do poema 154
.;N~ots'iib.etnosrsêíiss~/foiJeitô.FO,que,•sabeI.JJ0sJé.que••ele,teà:lmenteipú6licouo
• :poemà.. na· prime.íni::e'diçãttde.:seú ;únkó?livro;o".Só;-:mas,sem·.as·.devitlas•.notas
.·,e.xplitàtiv'a$;:ffüó:Sàbemos;sé:'oi$to.'geroli:"desagr;ádo·a>Albe1to~,se·:deu origem:ao
falatório eàscalúnias que esséJemia:; seporissoou por ter,rompido a-rela,ção que
• mantíhharcoi:n{o;;;:1ütôr?dê'.:Ral_a_vrasiioucas,LNobtetetirôu,o,,poema da:segtmda
·•·.. ,etlíçã'dtdolivro.Mais um episódio desilenciamento,deapagamentodamemória
dealgo,daquiloquese passara entre osdois que, sabemos,poderia levara ruína
moraldeambos,mas doqual nada mais sahemos; Tueiam'o:po·ema e:reconhecetão
.o tom, o estiloe estarãodiante,talvez, dosmesmosdisfarces que deram v:i:da.a
,_: .
'
e
todosvocês
'.' '
quepermitiramque
;, .· eu escrevesse este,text.o:.
Terças-Feiras
Ao Alberto
:O que;@igia!énêontrar nostpgulà.t".O'qúe:'.pudesses,er;generalizáveLAtravés do
, · •. usodacomparação,encontrarosparalelismos, assemelhanças, as rçgularid;ides
fazeraapreensão queseria
edeles do do
essencial, que seria característico e
• - caracterizador daquele determinadogrupo _dejpess?ªt e, ao mesmo- tempo,
--·observàr suâ singillaridáde enquarito grupo; pótque afinahe tratava de abordar
'.,gruposseletos,gruposescolhidos porpossuírematributos que :osdesta,cavam
dos demais,já queessas ·eram sodedâdes·ari,stoçrãticas,i.ónde- a,distinção-,e a
:.:hie~atq4i~-s~consfituí?P.1·~nr:prindpi~S::fuíidamentais·na'definiçãoida·ordem
social.Eraimportanteobservar oquefazia Ul'p: ctado:grgp,o,'l)er;ooeso;'distinto,
·' ., os fraç6s.--quen;ata.á1étn"da$ipessoas:queo,çomp\inham;:;1proiin1ava.m a todos.
Aprosopografiaé, pois, ,umrdos,têneros-:do. biogi:.âfrco; :uma 1maneira
•. . ;,Jde narrar vidas, de descrever ·a trtjetória :de,,pessoa~,;.ãrticu.lando vida, e
temporalidade.Este carátertemporaldobiográficoedo pro.sopogtáficoc.é·o que
os aproximadogénerohistórico, quando esse surge na Antiguidade.Obiográfico
o mesmoquando
e prosopográfco, nãotinhamuma preocupaçãoem colocar-
da eram um
se comoauxiliar história, dadomodelodeprodução damemória
.,que; Hi>t.t\in'.t9i:tornavª~-se/Wná :ro~te;d~:Cinjortnações ·e.,pofüa,ser · s.ubrnetido à
interpelação porparte dospraticantes dogénerohistórico. No entanto;•,devido.ao
·•ii'.(tátátérida·õrct~rn16d¼leri{qÜe,e!Iier.gep}/:esses,,gên:eros de,esGrit,a.da,memó.ria
adardestaque
.· ·: , e dopassado tendem ao que vãoconsiderar ser da.ordem 'do
, .exce_pâqnal;:da:orG"em,i4J;yri1e,tn.9ráV~fo-no•s·.entido.de ~lgo~extraordiriário, único,
. •• ;:graridip'sotü':qné ,vlflt!tíá ser retido pelamemória, pela··escrita; ·seria aquilo
nas que, pessoas edos
vidasdas gruposprivilegiados, seriam .:da-,ordem do
·~ · dnonuin~ntàJ,,,<!.q~:e'~t~#d,iqo:r.:.qmp·hl.go '.que chama a atenção'pelagrandiosidade,
·;-pel;úÍ;llpóµênciij)p~lamignitttde,;pelo,tamanhoacima-do·comum.e·do normal.
: Esta metáforaespacialdograndioso, a ideiada prevalência necessáriado grande
·:,_sobre·ç'peqµenb1tmhâ,.réla~o:direta-colii.üma:ordérii:'aristocrátii:a,senhoriale
a
: escravista, com própriaideiado imperial, como sendoaquele queprevalece,
quesedestaca, que suplantaosdemais porsuaprópriadimensão, porsua própria
constitiyçãot,potsua·co1J1p:l~içâo. ' - ; -·
o
- Por isso géneroposopográficopraticamentedesaparece durantea Idade
'• ::·· .:iJvi~diai'Jto~s,e,riibbra'~,í'prevaleçamsodedaddtambém'.:decurthoatistocrático.e
c'S'errhàrí~J}ji;grân:çlidsid,âde,,,funponêh'cia; a'.ma.gríitude·qüe·()s..antigos).tribuíam
· <1".dado,s•;homens;fa,:setÍs'foi_tos·,e tSêus .:,gestos,<forn~m-sé;agora':idiminutos . e·
insignificantes diante damagnificência egrandiosidade do Deuscristão, de
• :-·:seti§'.-'.dé§Jg11ios\e':clê'·súas ,a_çõêsi Ni(J?-resénça.41btumadorá':do único/do ·um,
-·iédtii~s?;o-"interess~·p·é1iloutro;:suas.v.iâa&e-seuidestfüóst:To'dasas:vfdas._a:gora
. • ,Üíé<lêi!Fse pofiSliâirêláçãoiõ'm,u,<iivinot-por.:s.ui{proximüfade•·ou''distância ·em
:·•. ·:. ,tel~ção.a.-seus,<laiilirutôsia suamensagem, a ·sua palavra;,Bor issoas narrativas
de vidasse ,conc~ntram. emi,tratafd~queles,;,q~e,:Dele:. estiyeram,01,i.restivessem
-:,· i .•.
. :.• ,. ((~-
·-'.DURVAL.MUNIZ:DEALllUQUERQUEJÚNJOR 107
. +gênero biográfico . .onde se. narra um sujeito em sua dissolução em .Outro, :em
que senarra não a -cbnstituição de umasubjetividade, masasua conversãoem
umasubjetividade outra, delealijada, é a:.na:trãtiva,da nadifrcação,de uma vida,
uma vida que se entrega adesígnios,·.• a desejos, avontades,•a:c:imperâtivos que
, não•.vêm-dela mesma, éa,narrativacuriosa de•umdesfalecimento.desi, de uma
renúncia de umsi mesmo, de umaperda de .si no Outro.
.~JECELÃQ>D,QS TEfylfOS
Mesa
· • ";Je11us;,.êQfu:oxsagrado;:AMda;mí$tica,ttpltioeaqéTeresade.cÁvila,,éinarrada por
• -... elamesma, comoumamaneirade testemunharos esforços que.ewpre!:!ndeu
paraordenarsuaalmaeseuespírito,comoumamaneira de organizarum si
hnesmosingularqueganhasentido,noentanto,naprópriabuscadeseentregar,
....· de servirdeinstrumentoprivilegiadodamanifestaçãode umestranho, deum
Outro."%Naohánocasodamísticanenhumapossibilidade parase praticara
· ·_ .• . • prosopografia, poisessasnarrativas tratamdeconstruir um serquejáse define
I. ' • ';pela s~gwirld~â~jridjtjgual::p'é!ir'.diferençaradicâl dasua relação como sagrado,
. J_pela"excep'ç,ionálida'de dà·tarera:e·da:insp~r_ação;que.o:acompanhar•Pelromaneira
-'lÍiliêa'Côm;4u~,<>'iS:ehhori~~le,serpânifesta:ffe'Iiattatiya;mística:fabulaum,sujéito
• tiam,~~t<:lírfgid,ó:,ê.v~lta.d,oJ?aÍ:c{Deµ~;<1J1gS;quera:ssim•tomo·.prop,orá.as:religíões
reformadas,mantémcom ele umarelaçãoespecial,individual e íntima,portanto,
nãogeneralizáveloupossíveldesertomadacomo modelodeaçãocoletiva.As
narrativasdevidasmísticassão umdosacontecimentos.que:deram•'origern::à •
noçãodeindivíduonasociedadeOcidental.Emborasejaaindaa narrativa:.de
:· vidasquesóganham sentido na relaçãocomo Outro,quebuscamnessevazioe
nessaquestãoque éapresençaausentede Deus darse ntidoasua própria presença
••• nomiundp;fjá;o•%faz~nt.·anundarido/a:püssibilidade·Jl:e:camfrrho'S.~Singulares, ••
>mêlhii:dUai~,;ptópriosi·q11efogeµi·dos·-~~ortes dêfihidos p.êla,lgreja;pda·teologia
:iforma:lizadã'éditá'Científica;,São·vida:s,que·j.~não_obedecetn.í:ipenas.ànegrasi;às
<, < •<'ordens;c>inàsfazem suas própriasregrase procuramteraUÍ)iaordenação;espe«ífic.a.
• '-':Se:ràin'ârrati:va;p9s9ppgráfit,üteve,,seu.nastedouro;e..,períódo,•áureoi,na
,..:Ant.igüida:de;'elã:tetâunia-:enorníe.difiitúlâã~é'.de-conviver;comesse:p:rocesso,de·
.:::emetgêrii::ià,/;la:idéia'. de'.infüvídµo:ííamqdemid.rde·,.ao,coríttário doque•ocorrerá
.1:(;omairf~rr-âfi'va.•,bjqgr.áfica:quetitnbo_tc~sofr.t.4mut~ç<les:em;.suas:regras;..nadará.
/:·,comoitl111",pebce•;enilsuasi~guas::nessa~;;,sádêdad:.es\detídei:itidades·;,irffü\dduais..•
: .· ·iEmbárãiõ\té:xtq,,p.os:Ópç;gtáfico,,cortsti:uisse0petfis,dridiW'duàlizados,;;.o que'se
,...,:qllériaifr~;•,aO::eôtnpàr!llósp.ertcontra.rc:r~ghlat'.iq,ade$,'-r.egras:e,:bâlizamentos
:·'êticosi;)IllÓraísf,f~lig1osos,':Jr.Õlíti_C:os.:que:dotassern .O$ .homepstdas .elites,ae ,uma
,'.çertã:honi9geneidade,\os.\submetesse,,,a;.umú;lá'do.,,módelo:1dé;subjétivictâde,,O
,_que;s,e:s~uscaya(Ilão-,efa;•çesenhar''átfiguta~do.dndivíduo;masido:cidâdão,·que
EEEaE;ase,E-
dosujeitoondesebuscaencontraraquiloqueofazserdiferente,enquantoo
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• DUllVAL"MUNIZDfaAtBUQUERQUE JÚNIOR 113
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• DUllVAL"MUNIZDfaAtBUQUERQUE JÚNIOR 113
·,-.,; ;grupq~)iô~:iai$,v"êtrf:µ~ttimeritó,'das~agê,neiasesttUtüi:a,is.fÁhistória:,semnqmes e
:sefu.kõst9:.das;~\1Ôrgagensrestrlttwiis'daiiá(õlµg.ar-a,umá·:f?:istoriqgr.afia e:rn-qµeo
E3E±±E±33±±E3±3±52
, pioneirosemcolocarcomo questãoa escrita dahistória, masnãoparareivindicar
ou
_ osdireitos dosindivíduos dosagentes ·etn súá:\~S.ttjtµt:a,•mas,para- afirmar a
':_:preV.álên:çià -~ci'.:'instifüiçâ,Q/d,g\t11gar,tda 'estrüttir~,pródutora·e-J>.fganizadoraido
zcr
- :~s:túél;ante,$,é·()t,,i::táifo$.c0s·ni:ilit1apJes·daqgel~sata.schaviam tetdmâdo ·a palaYra;que·-
_;estav:a;e~çarçetàd~ p~las';instituJçq_esI-µ:riiyets.it~dàs,rpelorpatti.dós.e: sipdicatps,
-,e>au,tori~-~a:s:a:pen,as,pàra'. :seus.1)1Mi.1,~rins;MasJ1üem'>tend_e;áJet:J'lesse.ar.tigo'de
1
,\Gette.àíta,r,eafüth,aç_ãoilfa,:velna,tese/liqeiijidãdibe11tla4eiieic1çãod.0Jàdi\líduo
oudoexercíciodeumalivre expressãodapalavra,uma palavraquenasceria
- desubjetividadesindividuaiseas expressaria,queseriam a·e)$:pressão-:de0 .uma
-~:v;e-idadir".interi0í;;aêÇa'dâ~militcµitef,desG0nhece~.fatR>::<;ie que.:Certeau, é membro •.
#±±e:.=.#.==
. ,_ ê,ida~:prin~fü~f~J!qú~stõ'es;;Syps::estüdós ·t!tt1Qgrâfi~ôs,.e: ahtropôlqgicos•- d.e>Levi- •
. ,,.:strau.ij;'?t_qüe.der~forma.ao•.que.se:nome-0üdeestruturalismo antr-opológico,
',h,âwittn,:qµesüonârlo.·.a,uiüvers_àlidade·:da,càt~gor-ia:-Homen:i;,se,havia:posto-·em .
• ; - q~ij(tã:07a;·,p.ossi~\lid.ad~;>pJJrtantotdá-históda-;ser,a,biografia'·desse- B;ornem,-,a
_ ,:narré1tiva:tôritínµl_d~,-·sµaJorl)j:~,çãp~,de:sµa:çivili,'?a,ção;,deseu,progr:esso,<dasua
s:..±.±:
,}dê'fah1g,;:quê,ijã.;.li'~yia,desçenJr,aço'a:tcon§êi~rlda daJ)rjgemida'maiorc;parte, de
EEE±EE±E±AE
··-\liyr~s,rde;ij_túilqú~i::\determinaç~o'.iéstr9-tural:oü;que.~s~jamr~gentes,.em,·tup.trJ.ra
;JCO:JJ,1pléJâ,"çpm a-5i~str-u.tuí:asici)mp~êlespt{>.pho~sei;.cotisid~rayam. Ele nãonega o
_·, fato quehaveriaaí uma
descontinuidade,umaruptura, masadvogaque essa sedá
. ):d,~~l~caj'id9;;eilídàiiclo\defor:n1a{di,stinta1corn{estrütura~·pi:évié\Sixístentesrcomo
·_ ,·!á\:ê}trut~rai'àaiiliitguªge1To,'A9.ueles:e·stt1d;,t11tes;,que--,p1thayam:-frases·em'tnUros
: e paredes,queportavam cartazes éfaixa.s;"queffazian1iÜ).termináveis, discursQs,
. / _-_:· ...,_:.,-:;.:é.-.-:->- \' ' ~- ' ·- •
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E3E±±E±33±±E3±3±52
, pioneirosemcolocarcomo questãoa escrita dahistória, masnãoparareivindicar
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174. FOUCAULT, Michel.Eu Pierre Riviêre, que degolei minha mãe,minha irmã e meu irmão.
8ed. Rio de Janeiro: Graal, 2007.
• 'FECELÃO :·POS TEMPOS
o eo
,... oexplica, implica mata,que tem como possibilidade o ·módelo.· literário
. dasnarrativas decrimesmonstruosos.Talvezseja graças·a esses folhétos·baratos
decapasazuisqueRivierepossa terarquitetadoseu crime, mastambémseu
questão
texto,ficando a irresolvidadequalgesto concebeuprimeiro. Alexina ou
• HerculineBarbin"nem mesmosabedireitoo que·-~\ seu sexo equívoco. do q\lâl
• .• gozou numa espécie de limbo identitário, gozo ITO, iüdeter~inado; nrnnãoslugar,
. . · :'. novaziodeEuque parecetambémtersido ·osegozos-místicostle,torpos como
odeTeresadeÁvila,ao sercolocado diante:da'·cobrança:pbr umaldéntidade •
. • ;:1ndiyídual;iêla1tiõRríUiçi1deffazer,de,seu·sexo·íridice:deideritidade,··•prefere a
•.. ·. morte,talvezporquesó ela, como diziam os:místicosrpr.-0métia o:definitivo gozo
. daperdadesimesmo,dodescaminho de si noOutro, estafusão com um Outro
queo vaziodamortetrazia.Mas,antesdemorrer, escreve .umdiárioondenarra
,;sui,viâa•;''es,Ctita,N9,,gr:áfi~a;f~ita,,tião/para,enunciar;:qina:sdmento;forrnação·.•e
constituiçãoconscientedeumsujeito racional, mas paranarrar um sujeitoque
' S(}'êqúiVC!P;l,i que~rraü}uê.~e:dilac~ra·em dúvidas,,queise:compraz e sente',prazer
ou
emnãoser ninguém não saberquem é, narrativafque.enuncia para·.breve.a
• • ·;.l,morteide,ii:m<~prpo;que:já'.;estava.mortcúdesde qqe:.a• turnba;de.uma ,categoria
• . ;<;çlassifiçât?fia,:9;jêlo-congelar?corp~vque:nem·sâberdireito;quenome.tem,que
'SêX(?'p'óSS(ti;,úffi,,s*jeit<fquese,constitllLrta,ªertva.e,no··,delírio:dos.códigos.que
";p9fifuno;a.Êtisionarn·e;~atagLSearnotte·é,setp:preoquê]nter:rnmpeàbiografia,
quasesempre,dirá Certeau,elaestáemseucomeçoe • é'Uffi\SeU. pressuposto. •
. ·•· <Querrts~ põêa·biqgrafar;,ou quem,,sep15~.a:se autóbiografar, :cóloca o biografado
:\ôWâ<SKtrtesttío.hô;JÜgar·dóm10rto;pois·paràµaver•biografia:'éspreciso•partir do
•tpressµp(?stô'de•que·:a•vf,dá:.qu:êse•bi9grafaa.éabou;·nerihurri·novo,episódio virá
a aser ela acrescentado. É eletambémque, porsuavez,lembrará que a morte
é acompanheirae inimigadodiscurso dohistoriador. Discurso que.lida com
osmortosapretextodeconjurar aprópria morte.Odiscursodo historiador
•· ·<•:e.nunçia;;,póisfQe'sa:ída;:~falfçomo,o\discurs9"biqgtâfico,·.·a .condição de,morto, .
de passado,dealguémquejápassou, de seus personagens,.mesmoquando se
·.·• ·.•;encontramfyi.yqs:;Enttax,para/à,,história;;é;,C.Uriosamênte,,mbrreregártharem
• ·· eternidade,talcomo prometiaa entrega místi<:a.
. •·•sEm,tdd<J,s;.e~s_esexempJos;,,o:·gestó.biográfico,pérmitido e,convQcado;hoje ·
e para pelahistoriografiaéaqueleque dispersao sujeito,quenão fazdele o
·',riúdêotlé2s~rititl<>fü<!··s.eu,própr:io·e~istfr;;de.:suas;ptóprias·,açõ.es, Ofü1div.íduo
'exíst~·parpJ,.si!fJttravt:ssâ.dó:-e,ultrapassádopelas.estrutüras;que.o rnôldam ··e ·o
transformampermanentemente.Narrar,umavidà.hoje.:.implica narrar,as suas
··,·r~lâçõeid~sentel~'àf:l,ÇàS,eidifetenças.com,ou.tros,s,ejamesse:outmoshumanos
mais
' ou as diversasestruturas sociaisque osmoldam e:>cortdicibnam;··. Se. o
• :bipg'i'áfi.cê);h;pj~ll))pltçaem.auscultar:comoumáfigura:de.sujeitos.e:desenha·em
185. GINZBURG, Carlo. História Noturna. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 10.
TECELÃO DOS TEMPOS
um dado autor e uma dada obra, que são por ele considerados perigosos e
• ameaçadores para a historiografia e para os fins políticos e sociais que o discurso
historiográfico-deve atender. Tentarei descrever certos procedimentos retóricos
e analíticos adotados por Ginzburg em seus textos de crítica historiográfica e
• mostrar a proximidade com procedimentos da mesma natureza presentes nos
discursos jurídico e inquisitorial.
Tanto em Os Andarilhos do Bem como em História Noturna, Ginzburg
vai tratar de um procedimento retórico estratégico do discurso inquisitorial e
judiciário: a submissão da variedade das manifestações das crenças populares,
da diversidade dos rituais, das distintas formas de pensar ede praticar o culto
a um só conceito, a um só esquema explicativo, a uma noção que congrega
um conjunto de significados, que simplifica, caricaturiza e estereotipa aquelas
pessoas, crenças e práticas que são consideradas heréticas; fora da ordem,
estranhas, indefiníveis, incompreensíveis, pertencentes a tradições culturais
exóticas, bizarras e atrasadas. Simplificar e homogeneizar o inimigo a combater,
encontrar por toda a parte o mesmo rosto quando se trata de detectaro agente
ameaçador, unificar uma dispersão, ordenar e hierarquizar o que parece caótico,
reduzir o oponente a meia dúzia de traços, a uma definição sumária, criando
uma situação de antagonismo maniqueísta, uma situação de conflito onde só
podem existir duas posições possíveis: ou se está dentro ou se está fora, ou se
está a favor ouse está contra aquela posição definida como sendo a ortodoxia,
a norma, a verdade, a realidade. A estratégia da estereotipia, da criação de um
sujeito inimigo homogêneo e unitário, funciona quando se trata de simplificar
a complexidade da realidade, dos debates, quando se trata de ter como meta a
desqualificação do oponente, a descaracterização do outro, sua completa anulação
ou derrota. Quando o outro é visto como ameaça, quando a diferença é vista
como desvio, quando a diversidade de pontos de vista é pensada como intolerável
e inadmissível, se está no caminho de um julgamento do outro que caminha na
direção de sua punição, de seu castigo ou de seu extermínio.
Considero que no momento em que Carlo Ginzburg se coloca no papel
de crítico da historiografia, ele adota, de saída, essa estratégia de redução da
diversidade e singularidade daqueles que pensam diferente dele. Através da
adoção de epítetos como pós-modernos, narrativistas ou céticos, Ginzburg
reduz adiversidade de posições desses autores, desconhece a singularidade de
suas contribuições para o campo da prática e do pensamento sobre a história,
construindo uma situação artificial de polarização entre suas posições e as
posições dos autores contra os quais fala, aos quais, muitas vezes, sequer nomeia
e a cujas obras pouco se dá o trabalho de citar e comentar. Ele adota a estratégia,
muito presente no discurso jurídico e inquisitorial,-dehomogeneizar seu alvo de
ataque, de construir através de um conjunto sumário de traços e posições um
sujeito oponente, ao qual se deve vencer através da argumentação, do ataque às
suas posições, normalmente bastante resumidas e caricaturadas. Em entrevista
TECçLAO DOS TE.MPOS
O que quero dizer é que havia vários Foucaults e um-deles era muito, muito
brilhante, mas,no meu entender, pouco original. Sob este ponto de vista,
188. Ver: Mesa-Redonda em 20 de maio de 1978. In: PERROT, Michele (Ed.). L'impossibleprison.
Recherches sur lessysteme pénitentiaire au XIXe siêcle. Paris: Seuil, 1980, p. 40-56.
189. Ao ser colocado diante das duas categorias com as quais Isaiah Berlin distingue os
intelectuais - raposas e porcos-espinhos - Ginzburg admite estar mais para porco-espinho
do que para raposa. Ver: PALLARES-BURKE, Maria Lúcia. Op. Cit. p. 284.
132 ,TEC!,'LAO DOS TEMJ'C6
sentença, sem que nenhumargumento seja áduzido para ,que se,chegue, a tal
veredicto. Foucaultqueda, condenádoporcharla.tanismo sem que saiba ou que
saibamos oqueteriafeito para ser assim considerado.. Numa v:ersão kafkiana da
justiça, ousemelhantea algumas condenações realizadas .pelo Santo· Ofício,. o
· herege resta perplexo,perante seujulgador;semsáber-direito do,que.está sendo
acusado, o quefez para merecer a tipifi:caçãa p.enalde quelhe acusam, o que foi
que teria escrito oúfeitopara receber a infame designação. A categoria-charlatão
é brandida como os inquisidores brari<liam;categorias como bruxaria;feitiçaria
diabólicaou sabá, enquadrando o comportamento do outro, suas maneiras de
ser epensar,paradesqualificá-las e permitir-o esquecimento, o ,soterramento, a
negaçãodo sere da verdade do outro, negar o direito à diferença, à alteridade,
ao desacordo e à diversidade: ·.Foucault, como as bruxas, deveportar, a partir
desse:i:lia;a,marcainfainanteemsuas•vestes,·a,mácúla em seu nome; o:estigma
desenhado afogoem sua calvatesta .e ter seus escritos:queimados, lançados no
novoíndex,paraquenovos charlatãesnãosevenham aproduzirnamoralizada
emoralizante êidadedos historiadores. 1hompsontorna:-se, assim, cúmplice na
difamação.Porjáter idolutar ao la:do·dasfalanges celestes,Jala agora pela boca
doitaliano que, não demoraem admitir, em'tornarpara si a sentença _exarada
pelo outro: sim, Foucault foi· um charlatão;um escritor de frases de.efeito; um
. ,pràticantê:da retórica vazia; ·E.nosso históriadorâtaliano que,:nesta ·peça e neste
passo, acaba·de nos dar um exemplo do:que.considera ser uma-retórica cheia,
. :plena;,um-discurso carregado·de· substância,..,um--discurso consistente, 'bate o
.martelo •·.edecreta•.que Foucault deve ser desmascarado, deve ser descascado
: como 'Ul11a;cebola,, até que dos· vários ;F.oucaults-: existentes ·.restasse,apenas o
• -Foucaü:lt~quemerecia ser preservado,•<depois que cumprisse .a pena·e fosse
. · submetido a umlongo período deexpiaçãodesuas faltas. O Foucault agressivo,
o .Foucaultegocêntrico, o ·Foucaultmaníacor o Foucault superestimado - talvez
sejaesteseucrime, ser superestimado -, o Foucault notade rodapé devia,.após
confessar epurgartodosesses pecados no Purgatório intelectual.de,Bolonha ou
da Califórnia, sernovamenteadmitido_na.ordem dos historiadores; onde: havia
lugar.apen~paraó.Eoucaultbr,ilhante;quase,translúcidocomoos anjos e:como
outros defensorese partidários dasLuzes, comoo já ,angélico historiador.dos
costumes emcomum eo historiadordasbruxasefeiticeirasdo bem.
Essemesmo tipodeestratégica retórica,inquisitoriale judiciária, elevai
usar para•se livrar, comfacilidade,dedoisoutrosautoresque considera serem
responsáveis pela emergência, no interiordahistoriografia contemporânea, do
quechama detesescéticas, baseadasnoqueseria areduçãodahistoriografiaà sua
dimensão narrativa ouretórica: FriedrichNietzsche ePaul de Man. Na introdução
aolivroRelações deForça,""aobuscaras raízes doqueseria o relativismocético
AHistóriaEscrita:teoria históriadahistoriografia.
J u ra n dir. S ão P aul o : C o n tex to ", 2 0 0 6 ,
p.211-232.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JCNIOR 139
chamariam a atenção para o fato de que o topos ou os tropos dão forma ao que
aconteceu, dando-lhe um sentido particular, construindo-o de uma-dada forma,
impossibilitando que recuperemos o evento como efetivamente aconteceu, tarefa
impossível até para quem fez parte dos eventos, que tende a ter uma visão parcial
e limitada do que está ocorrendo e que, em casos como estes, talvez não tenha
nem tido tempo de entender o que se passava, antes que fosse morto.
O texto segue então, com um item em que convoca o que podemos dizerque
seria o topos nuclear em toda sua obra, para acompanharmos o tema do texto, sua
verdadeira obsessão: o extermínio de judeus pelo nazismo e a sua negação por
parte da historiografia dita "revisionista". É importante que retenhamos o nome
deste primeiro inimigo a combater, pois disto se tirará consequências-muitos
interessantes ao longo do texto: "os revisionistas" - Ginzburg e suas categorias
sempre precisas. Ele lembra que outro historiador judeu, Pierre Vidal-Naquet, já
havia estabelecido omesmo liame que eleagora tentava fazer, entre os massacres
de judeus ocorridos na antiguidade e narrados por Flavius Josefus e o extermínio
promovido pelos nazistas no século XX. Mas, para Ginzburg o que é importante
não é apenas a analogia entre os eventos, mas urna questão- de método que eles
levantam para os historiadores: a questão do testemunho. Nos: dois episódios
narrados por Josefus e pelo monge anônimo de Saint-Denis após o massacre,
restam sempre duas testemunhas, o que estaria de acordo com a tradição jurídica
tanto hebraica quanto romana, que exigiam o relato de duas testemunhas para
que fosse reconhecida uma questão em juízo. Ginzburg lembra, no entanto, que
o discurso historiográfico obedece a regras e fundamentos epistemológicos que
nem sempre coincidem com aqueles que presidem o direito. Um historiador
nunca recusaria um testemunho, mesmo sendo solitário. Procuraria, sim,
estabelecer o valor dotestemunho submetendo-o a uma série de confrontos; ou
seja, procuraria construir uma série que incluísse ao menos dois documentos. Ou
seja, em poucas linhas saímos do uno para a exigência do duplo, que ainda há
pouco havia sido negada, e a diferença em relação ao direito se desvanece. Após
afirmar que o direito e a história possuem regras e fundamentos epistemológicos
distintos, chegando a dizer que estaria forade moda aanalogia entreo historiador
e o juiz que define a validade dostestemunhos, recua de forma significativa para
dizer que a conexão entre prova e verdade, preocupação nuclear dos juízes; dos
tribunais, dos inquisidores, do direito, continua sendo uma questão que a história
não pode facilmente colocar de lado. Significativamente, Ginzburg associa juiz,
tribunal, testemunho, prova, verdade e historiografia. Talvez venha daí o seu
gosto pelos julgamentos e sentenças, como veremos a seguir.
A seguir, num breve item que se inicia novamente com a convocação
de Pierre Vidal-Naquet e seu combate aos "revisionistas", que agora ganham
um rosto e um nome, Robert Faurisson, vai tratar do que seria a. descoberta,
por parte dos historiadores, de que eles escrevem entre aspas. Naquet, que
perdeu a mãe em Auschwitz em 1944, teria razões morais e políticas para se
140 TECELÃO DOS TEMPOS
• .de·,vihteanos: devida intelectual com .Giovanni Gentile. • Espero que você, leitor,
não perca nenhumlance desta trama que estamos começando a desvendar:
os personagens são obscuros,mas a luzda razão começa a cair .sobre. eles.
• €oritinuemos:. Gtoce,aótraçát:tumquadro retrospectivo,de sua vida intelectual.
0
como qualquer acusador, como qualquer juiz ou inquisidor pode dar o veredicto
acerca das motivações secretas, escabrosas, das posições céticas, pós-modernas,
narrativistas, subjetivistas de White. Elas não estão na sua obra ou no seu
pensamento, que nem merecem análise, mas na sua vida, nas suas posições
políticas e morais. Como se retomasse o topos do complô, com que iniciou o
texto e que vitimou milhares de judeus, ao longo da história, o historiador, judeu
e de esquerda, descreve um verdadeiro complô armado por pensadores idealistas,
neo-idealistas e fascistas para destruir a cientificidade da história, questionar o
princípio da realidade, pois assim poderiam continuar perpetrando seus crimes,
sem temerem o testemunho da história, sem temerem a verdade histórica, a
realidade histórica que um dia viria à tona pelo trabalho paciente e diligente de
um historiador materialista, realista, científico, objetivista, verista, factualista -
desculpem a lista de conceitos sem definição, são apenas os possíveis antípodas
dos lugares de sujeito imaginados por Ginzburg - tal como faziam agora os
revisionistas, que ameaçavam apagar a memória do Holocausto.
Se vocês leitores acompanharam o argumento do texto, ele é de uma
clareza, de uma limpidez, de uma precisão, surpreendentes: White leu Croce,
Croce leu Gentile, Gentile foi fascista; embora não se saiba se White leu Gentile,
como estava familiarizado com o neo-idealismo italiano através de Croce e
seus sequazes, e estes com certeza leram Gentile, e este, além de fascista foi
simpático ao modernismo, logo como White também escreveu textos simpáticos
ao modernismo e a Croce, ele é fascista. Isto equivaleria a dizer leitores que -
duvidando um pouco da inteligência e argúcia de vocês, que não devem ser tão
pronunciadas como as de Cario Ginzburg -, partindo dos indícios que ele mesmo
forneceu, poderíamos pressupor - se isto é permitido - ou concluir através de
insinuações, como faz Ginzburg e como costumam fazer todos que querem
caluniar alguém sem correr o risco de ter que, aí sim, comparecer aos tribunais
para prestar contas do que disse: Gramsci leu Gentile, Gentile leu Marx, Ginzburg
leu Gramsci e diz ter retornado a ler Marx, como Ginzburg leu Gramsci que leu
Gentile, que foi adepto do fascismo, logo não só Gramsci mas o próprio Ginzburg
são também suspeitos de fascismo, até provem ao contrário. Ou melhor, ainda:
Stalin leu Marx, Pol Pot leu Stalin que leu Marx, logo Marx é responsável pelo
genocídio no Camboja cometido por Pol Pote seus sequazes do Khmer Vermelho
ou, no mínimo, pelos crimes de Stalin. Isso é o que se chama lógica dedutiva.
Como vemos, ela resulta num primor de análise quando a aplicamos à história,
quando a utilizamos para interpretar indícios e sinais deixados pelo passado.
Termina seu inquérito, o seu arrazoado, tentando corrigir White e dar a
ele lições sobre a tolerância e a defesa do direito à discordância, tudo o que ele
próprio não parece exercitar ao longo de seu artigo. E conclui, com palavras
que considero reveladoras, elas dão a pensar mais sobre ele mesmo, do que
estaria disposto a aceitar: "quando as divergências intelectuais e morais não
são coligadas em última análise a verdade, - ou seja, só existe uma verdade e
146 TECELÃO DOS TEMPOS
Ginzburg parece estar de posse dela - não há nada a tolerar" Daí talvez advenha
o tom de intolerância e de caça às bruxas que se espalham pelos seus artigos
quando se trata de discordar de outros historiadores. Embora atribua a White,
por inspiração de Gentile, uma concepção moral da verdade que, apoiando-
se na ideia de eficácia, seria semelhante à do cacetete como força moral, é ele
que não cansa de distribuir bordoadas em todos aqueles que julga não estar de
acordo com a verdade e com a moral, por não estarem de acordo com sua visão
ou versão da verdade e sua concepção de moral. Se isso for ser tolerante, o que
será a intolerância?2º2 Que eu saiba, a tolerância não era algo que costumava
preocupar os inquisidores quando esses perseguiam bruxas e hereges: o fato de
estarem do lado da verdade, da moral e do bem justificava e deixava a consciência
tranquila em relação a tudo o que faziam. Quando a crítica historiográfica se
apoia em tais pressupostos, quando se torna mera avaliação moral, em termos
de bem e de mal, nós sabemos que a única coisa que dela não podemos esperar
é o esclarecimento de ideias e conceitos, ela não passa de combustível para a
fogueira das vaidades que ameaça queimar a todos os hereges que venham a
discordar dos sacrossantos dogmas reinantes.
202. GINZBURG, Carlo. "O extermínio dos judeus e o princípio da realidade". In: MALERBA,
Jurandir (org.). A História Escrita: teoria e história da historiografia, p. 224.
PARTE II
USOS DO PASSADO
Capítulo 7
ou ofício que seria destinado ao pater, ao pai. Enquanto o matrimônio era urna
palavra que remetia ao universo dos dons ou obrigações femininas, a palavra
patrimônio remetia às prerrogativas ou privilégios masculinos. No entanto,
o que me interessa nessa relação, o que me fez partir dessa aproximação para
tratar da questão da relação entre memória e patrimônio, é a própria noção de
temporalidade que estava presente nestes dois conceitos, é a direção temporal
divergente proporcionada pelo sentido cultural dado pelos romanos aos dois
termos. Enquanto o matrimônio estava associado ao ofício ou ao poder; portanto,
ao dom, à prerrogativa e, ao mesmo tempo, à obrigação materna de gerar filhos,
ao dever materno de dar a Roma novos cidadãos, a palavra patrimônio estava
associada ao ofício ou ao poder, portanto, à prerrogativa e, ao mesmo tempo, à
obrigação paterna de constituir e deixar herança para seus filhos, seja ela herança
econômica, pecuniária ou em forma de propriedades, seja herança política,
permitindo o acesso dos filhos, notadamente aos homens, a cargos, dignidades
e honrarias, seja a herança de um nome de respeito, de fama, um nome coberto
de glórias e de heroísmo2º3•
Enquanto a realização de um matrimônio, mesmo envolvendo um homem
e uma mulher, visava acionar o poder e a obrigação, o dever feminino de gerar,
de gestar, de criar os filhos, constituindo-se, portanto, numa aposta no futuro,
sendo o matrimônio uma aliança celebrada visando à construção de um futuro,
à construção de uma família com a geração e a criação da prole, num tempo que
ainda estava por vir, o termo patrimônio aplicava-se para nomear algo que já
tinha existência, que já estava constituído no presente e que se deixava para os
filhos em caso de morte do pai. O patrimônio podia-se deixar como herança.
Representava, portanto, algo que vinha do passado, que fora conquistado,
amealhado, adquirido, no passado, pelo chefe da família, pelo patriarca e que,
no presente, se transmitia a seus herdeiros legítimos, a seus descendentes ou a
seus escolhidos, aqueles para quem, em testamento, havia resolvido transferir
aquilo que por direito lhe pertencia. Portanto, enquanto a palavra matrimônio
remete ao ato de criar, de gestar, de gerar o novo, o infante, de dar vida a novos
seres e a uma nova realidade, no futuro, a palavra patrimônio remete a algo que
vem do passado, que se recebe ou se transmite por herança, algo que nasce da
acumulação, da atividade, do trabalho, da guarda, da conquista, da aquisição
em um. dado período de tempo. Enquanto o matrimônio remete a um tempo
que é da ordem do intensivo, o patrimônio remete a um tempo que é da ordem
do extensivo. Enquanto o matrimônio remete ao fazer história, o patrimônio
remete à memória.
203. Ver: CUNHA, António Geraldo. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4 ed. Rio
de Janeiro: Lexicon, 2010, p. 415 e 482.
DURVAL. MU NIZ DE ALBUQUERQUE JÚN IOR 151
204. Ver: BORGES, Maria ElizaLinhares(org.). Inovações, coleções, museus. Belo Horizonte:
Autêntica, 2014; FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves e VIDAL, Diana Gonçalves. Museus:
dos Gabinetes de Curiosidades à museologia moderna. Rio de Janeiro: Fino Traço, 2005.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR
205. Ver: CHOAY, Françoise. A alegoria dopatrimónio. São Paulo: Unesp, 2001; PAULA, Zueleide
Casagrande de. Polifonia do patrimônio. Londrina: Eduel, 2012.
206. ABREU, Regina. Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A
Editores, 2003; GODINHO, Paula. Usos da memória e práticas do patrimônio. Lisboa:
Colibri, 2012.
154 TECELAO DOS TEMPOS
209. Ver: BARROSO, Gustavo et ali. Anais do Museu Histórico Nacional, vol. X. Rio de Janeiro:
Ministério da Educação e Cultura, 1959.
210. Ver: SÁ, Maria das Graças Moreira de. Estética da saudade em Teixeira de Pascoaes. Lisboa:
Instituto de Cultura de Lisboa, 1992.
211. Ver: CATROGA, Fernando. Memória escrita, história e cultura política no mundo luso-
brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2012.
156 TECELAO DOS TEMPQ;
212. Ver:KNAUSS, Paulo e ALTA, Marize.Objetos do olhar: história da arte'. São Paulo: Rafael
M
215. Ver: BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins fontes, 1999; HALBWACHS,
Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006; BOSI, Ecléa. Memória e sociedade:
lembranças de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983.
160 TECELÃO DOS TEMPOS
ou
dahumanidade.Masesse registropoucopodefazer contra asmodificações,
as mudanças,as criações no campo cultural,a gestação do novo que continua
'Ocorrendonosmeiospopulares:Oregistro'."doacarajécomo·patrimônio imaterial,
que implica em descrever ummodo tradicional de fazê-lo, não impedirá que
elesejafeito usandoo liquidificadorou·omultiprocessador e que tenhamos em
breveredes nacionais de venda de acarajés pré4abr-icados; como ocorre com o
pãodequêijo216•
Se no título do.textoJaço urna referênciaauma canção bastantepopular
deLamartineBabo eMário Reis,,Isto élá corrtSantoAntônio,foi,porque escrevi
essaconferênciano momento de ocorrêm:iadas festasjuninas, festas que são,
quase sempre,associadas aoNordeste, sendo definidas como umpatrimônio
cültural·nordestino, .quando sabemos que as· festas· juninas ocorrem em. todo
Brasil e possuem características'muito,peculiares em·vários lugares. As festas
junüias: são, portanto, diversas emúltiplas, eseu uso para a construção de uma
identidaderegionaléfruto de dados investimentos políticos e intelectuais sobre
os quaisos historiadoresdevem se debruçar e devemproblematizar.Além.disso,
sempre queocorremasfestas juninas noNordeste,tenho que ouvir o ·discurso
lamurientodaperdadastradições,· damorte daverdadeirafesta, da deturpação
comercial, mercantil emidiática dasfestas;tenho que conviver coma nostalgia
do queseriamasverdadeiras festas juninas, baseadapretensamente.em tradições
trazidas empriscas eraspelosportugueses, simbolizadaspelosanto casamenteiro,
pelo santodorminhoco e que carrega .um.carneirinho e pelo santo responsável
pelaschaves doparaíso. No entanto,quando·consulto os escritos dosfolcloristas
do começo do século XX; daqueles queparticiparamda invenção do que seria.a
culturanordestina, eis que encontroomesmoenunciado de•queasfestas,juninas
estavammorrendo,estavamsendodeturpadas eadulteradaspela vida em cidades.
O mesmo ocorre como carnaval, com o cotdel,quemalhavia nascidoe já estava l
vaticinado a se perder, a morrer. É comum encontrarmos relatos, quando se
.trata de manifestações culturais, de que elas não são mais as mesmas. Mas elas
morreriamse continuassemsendo asmesmas,porque cristalizadas,•.fossilizadas
perderiamo interesse para aquelesque as :praticam. Se as, festas juninas, não
tivessemsetransformado,ajuveniude não<:ontinuariafrequentando comtanta
animaçãoa festacomofazem em minha cidade.natal: Campina Grande.
Para mim, este caráter mutáveLquetêm>as manifestações culturais e
artísticas; este caráter descontinuo quetêmasmemórias e mesmo aquiloque é
nomeado deHpílttiniônio .nada: tema vereom o: universo semântico, simbólico
ou imaginário ligado à perda,à morte, à herança, alegado, mas tem a ver com
o universodacriação,da criatividade, dainvenção,da geraçãoe gestação da
novidade,dadiferença - portanto, tem a ver com a vida, com a potência da
216. IPHAN.Oregistro do património imaterial: dossiê final. Rio de Janeiro: Edições Iphan,
2012.-
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÜNIOR 1
217. SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
218. AGUALUSA, José Eduardo. O Vendedor de Passados. Rio de Janeiro: Gryphus, 2004.
219. COUTO, Mia. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Companhia
das Letras, 2003.
220. Ver: HAMILTON, Russel G. A literatura dos PALOP e a Teoria Pós-Colonial. ln: http://
www.casadasafricas.org.br/site/img/upload/665414.pdf.Acesso em l5de outubro de 201 O.
166 TECELA0-005 TEMPOS
por esse desejo coletivo de esquecimento, por essa busca pelo branco e não
'pela "clareza? Para José Gil, a não-inscrição tem como causa um trauma, a
não-inscrição seria um mecanismo social e individual que os portugueses
• desenvolveram ao longo de sua história para lidar com os grandes traumas
coletivos e individuais que vivenciaram. O trauma223 bloqueia a inscrição, seja no
• 'inconsciente seja na consciência, tanto em termos individuais, quanto coletivos.
O trauma podeconvocar o esquecimento, convocar à obliteração da expressão,
ele pode provocar a incapacidade de dizer, de fazer ver; de representar, ele pode
gerar o bloqueio da capacidade inventiva, poética, criativa dos indivíduos e
. das coletividades. A inscrição implicaria ação, afirmação, decisão com as quais
os indivíduos conquistariam autonomia e sentido para as suas existências.
• Os portugueses, por causa do salazarismo, aprenderam a irresponsabilidade,
reduzindo-se a serem crianças grandes, adultos infantilizados. Os sucessivos
traumas históricos representados pela expulsão em massa de árabes e judeus da
península, a Inquisição, a morte do rei D. Sebastião e a subordinação à Espanhana
épocade Felipe II, a perda das colônias nas Índias e a subordinação à Inglaterra,
a invasão napoleônica e a fuga da família real para o Brasil, a perda desuamais
·próspera colônia com a independência do Brasil, o ultimatum inglês do final do
século XIX, a saída em massa de sua população para outros países arrastada pela
miséria e pela fome, a aventura colonial africana para onde migraram milhares
de portugueses, o salazarismo e a sua queda com a Revolução dos Cravos,
a. descolonização na África e o retorno de mais de oitenta milportugueses
• vindos daquele continente, bem como o choque representado pelaentrada na
Comunidade EconômicaEuropeia seriam grandes traumas que aliados a uma
sucessão de pequenos traumas cotidianos teriam levado aestefastio de inscrição.
Não tenho sequer condições de avaliar ajusteza dessa leitura que José Gil faz
do que seria o ser português que, chama atenção, como entidade coletiva unitária
nãopassaria também de mais uma das inúmeras ficções que constituiriam a
cultura portuguesa. O que me interessa é tomar essas imagens e esses conceitos
que,feitos para pensar o existir português, hoje, surpreendentemente, guardam
grande similaridade com temas e imagens que são recorrentes na literatura
tanto portuguesa quanto africana, algumas delas ressoando também imagens
que costumam ser associadas ao próprio ser brasileiro, inclusive por nossa
historiografia, para, tomando as obras literárias citadas, tratar mais detidamente
. da.temática proposta para esse texto, que articula conceitos que aparecem nas
reflexões tanto do filósofoafro-lusitano, como direta ouindiretamente constituem
esta literatura, como: as noções de trauma; esquecimento, história, memória,
e articulandotodos esses aspectos à reflexão sobre os próprios usos dados ao
passado nessas sociedades e nesses textos, que inegavelmente guardaminterface
223. Para a discussão psicanalítica da noção de trauma ver: FERENCZI, Sandor. Diário Clínico.
São Paulo: Martins Fontes, 1990.
,TEC'ELÃO DOSTEMPOS
com arealidade brasileira. 'O · que pretendo interrogar é até que ponto essa
,,recorrência dôtoposda:'.cegueira,,deuma,cegueirabranca,. de wna·dificuldade
de enxergartrazida pelo excesso declaridade, essa dificuldadeemvercores que
aparecetanto noromancedeSaramago, comonos de José Eduardo Agualusa
eMia Coutonão seriamexpressões literárias daquilo que o filósofo José Gil
chamadedificuldade de inscrição? Até que ponto essa literatura que buscafalar
.darealJdádeconteinporânea'de:cadaum·de seuspaíses não teria encontrado,um
problema comum,talvez causadopelo.passado tambémpartilhado na colonização
porcolonizadorese colonizados,que seria essa dificuldade de inscrever histórica
e psiquicamente:aosacontecimerttos que esta relação colonial deu origem?Não
seria essaliteratura praticada tanto na antiga metrópole quanto nas,· antigas
colónias, marcadaspor uma constante reflexão emtorno dopassado, em torno
dosacontecimentos passados e presentes, tentativas· de inscrever artisticamente
estarealidade,. superando, assim, o silêncioproduzido.pelo.trauma representado
.pelos,processos de colonização, descolonização, •independência e formação
dasnovas nacionalidades? Essa literatura não seria a tentativa de superar e, ao
mesmotempo, formas de·constatat e inscrevera,presença do branco psíquico;-do
nêv:oeiro;da;sombrabranca de quefalaGil, no interior dessas sociedades? Não
representariamessas obras:dadas formas de uso do passado.quevisamtratar dos
· trallmas·eésquedmentQsproduzidos.pelaexperiência·colonialdas populações da
metrópole e das cólôrtias? Diartte rdessas obras,gostaria de interrogar-sobre que
usos;são.feitos- do passádo.e-como .esses usos.representam a tomadade posição
diante darealidadede seus países, por partede autores, quase. sempre gerados
fisicamenfoêformados culturale educacionalmente, inclusive linguisticamente
, nas-várias:situaçõesde embarâlhamentó; hibridismo,negociação, nomadismos e
destérritórializações,possibilitadâspelarealidàde·colonial,notadamente aquela
gestada nosmoldes:portugueses, onde nunca houve a-segregação racial oficial
1
1
.e.onde;a,formação de elites inestiças,-indusive com acesso acargos tanto nas
,colônias'.como:nametrópolefoi constante. Esses homens, àsvezes dilacerados
entreuniversosculturaisdiversos, como a sua tribo nomeiorural, a cidade
colonial e a cidade dametrópole, divididos entre.o que nomeiam de suastradições
culturais,as mestiçagens culturais promovidas. pela colonização e os influxos
de modernidade e cosmopolitismo vindos da Europa, tornam-se escritores que
parecem·comungar com a mesma'preocupação que.pareceterisido constante na
produçãoliterária ehistoriográfica da metrópole: a·questão das identidades, sejam
elasétnicas,de género e,principalmente, nacionais.Aquelesque Portugalnomeava
deintegrados, queeramosdescendentes de portugueses; mesmo mestiços, e •os
-:negros ,i:friçanos.açulturados que·viviam em,suas .colônias; ·que em casos corno
odeMoçambique,nãopassavam de5%dapopulaçãoautóctone, foram osque
deramorigem a futura elite dirigente destes países-quando·de suas independências.
:Indusive;deles é que saem.os grandes nomes da produção literária local, sendo,
portanto, homens que se formaramneste entre-lugar de africano europeizado, de
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 171
de suas próprias memórias, com a narrativa do seu passado humano que retorna
em flashes quando algum evento o convoca.
A-trama se inicia coma chegada deum estrangeiro à casa de Félix Ventura
para comprar não apenas um passado, mas toda sua documentação falsificada.
Depois de titubear diante do novo encargo, o de falsário, Félix Ventura. lhe
atribui um nome, José Buchmann, e todo um passado de descendente de
um avô pertencente a um grupo de emigrados bôeres, que teriam vindo se
fixar- na província de Huíla, no sul do país, para criar gado e cultivar a terra
e aí teria conhecido e casado com uma descendente de colonos madeirenses,
Marta Medeiros, com a qual teria gerado dois filhos, o mais novo, Mateus, teria
casado com uma artista americana, a pintora Eva Miller, com quem tivera esse
único filho. Ainda lhe entrega toda a documentação solicitada: um bilhete
de identidade, um passaporte, uma carta de condução, onde constava ser ele
natural da vila de São Pedro da Chibia, ter 52 anos e ser fotógrafo profissional.
Acompanhando essa documentação, uma pasta com várias fotografas. Numa
delas, bastante gasta, via-se um homem enorme, com umar absorto, montado
num boi-cavalo, seria Cornélio Buchmann, o avô; noutra, um casal abraçado
às margens do rio Chimpumpunhime seriam seus pais. Vai então inventando
uma narrativa para o passado daquele homem que recém batizara, articulando,
assim como fazemos nós historiadores, uma narrativa com objeto e materiais
que servem como documento ou testemunho, como, diriam alguns de nós,
como evidências ou como provas da realidade; da veracidade daquele passado
que era narrado:
Devia ter sido, José, então com onze anos, a fixar aquele-instante. Mostrou-
- lhe um antigo número da Vogue com uma reportagem sobre caça grossa na
África Austral. O artigo reproduzia uma aquarela com uma cena da vida
selvagem - elefantes banhando-se numa lagoa - assinada por-Eva Miller.
Poucos meses depois daquela foto, o rio correndo sereno para seu destino,
·_ o capim alto em meio à tarde solene, Eva partiu para a cidade do Cabo,
numa viagem que deveria durar um mês, e nunca mais regressou. Mateus
Buchmann escreveu a amigos comuns na África do Sul, pedindo notícias
da mulher, e como nada conseguisse, confiou ao filho aum empregado,um
velho pistoleiro cego e foLà procura dela.224
ministros e generais, sendo nomeado dois anos depois Secretário de Estado para
Transparência Económica e Combate à Corrupção e, posteriormente,Ministro
da Panificação e Laticínios. Em sua verdadeira história de um combatente,
no entanto, ele contará outra história que lhe. daria a imagem de um patriota
exemplar, de um verdadeiro descendente do sangue da família de Salvador
Correia Sá e Benevides:
Para a História ficará a verdade que Félix fez o Ministro contar: em mil
novecentos e setenta e cinco, desiludido com o rumo dos acontecimentos; e
porque se recusava a participar de uma guerra fratricida, o Ministro exilou-se
em Portugal. Inspirado nos ensinamentos doavó paterno, umhomemsábio,
profundo conhecedor das ervas medicinais de Angola, fundou emLisboa
uma clínica dedicada às medicinas alternativas africanas. Regressou à pátria,
em mil novecentos e noventa, finda-a guerra civil, com o firme propósito de
contribuir para a reconstrução do país; Queria dar ao povo o pão nosso de
cada dia. E foi isso que fez.7é
O que o ex-torturador não sabia équea menina que ele pensava não ter
nascido,na época do ocorrido, era na verdade·a bebê torturada por Mabeco,
Ângela Lúcia; a filha de Pedro e Marta, que estática ouvia a narrativa medonha
de comofora violentada ainda criança, violência que deixara cicatrizes que
aindacarregava no corpo e naalma. Diante da incapacidade do pai de puxar o
gatilho emataro responsável pelamorte de sua mãe,Angela arrebata-lhe a arma
e disparasemdó contra o ex-agentedapolícia.
Traumas como esse não podem ser esquecidos, não podem passar pela
não-inscrição, porque com isso a sombra branca, a doença da cegueira social só
tenderá a crescer, como parece nos dizer os livros de Saramago, Agualusa e Mia
Couto. Os historiadores, embora não deixem de ser, hoje, vendedores de passado,
quase sempre, a preço vil, devem fazê-lo não a serviço do branqueamento,
da limpeza, da assepsia do passado, como vemos recorrente acontecer na
mídia, nos meios de comunicação de massa. Estamos assistindo, nestes dias
que correm, à aposta na amnésia social, na capacidade que parece infinda da
sociedade brasileira em esquecer, em não inscrever na consciência coletiva, no
espaço público, nas memórias, os fatos e feitos pouco abonadores de nossas
elites dirigentes. Os historiadores devem ser agentes do luto social, aqueles que
expõem o sangue derramado e o cheiro de carne calcinada para que elesclamem
·novamente contra a injustiça e o crime que os produziram. A história deve ser
o trabalho com o trauma para que ele deixe de alimentar a paralisia e o branco
psíquico e histórico, e possa levar à ação, à criação, à invenção, à afirmação da
vida naquilo que ela tem de beleza. Talvez por isso todos os personagens do livro
de Agualusa manejem uma dada técnica de representação ou uma linguagem,
através das quais se podem criar novos mundos, novas realidades, novas formas
para o mundo e para a vida. A fotografia, a pintura, a capacidade de narrar,
de escrever aparecem como possibilidades de simulação de novas realidades,
inclusive para o passado, realidades que alimentem o desejo de vida e não o desejo
reativo de morte. Só a criação, só a afirmação através da arte, do conhecimento,
da linguagem faz dos homens humanos, faz com que se inscrevam e escrevam
o mundo e a si mesmos nele. Talvez ele aponte uma· maneira de fazer história
distinta daquela representada pela guerra, pelarevolução, pelos embates políticos
e pelas disputas territoriais que muito infelicitaram o século XX e que foram
responsáveis pela morte de mais de 500 mil pessoas nas últimas décadas da
história angolana. Talvez, como Nietzsche, esteja nos alertando para os perigos
da história para a vida.
Capítulo 9
228. CUNHA, António Geraldo. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4 ed. Rio de
Janeiro: Lexicon, 2010, p. 164.
180 TECELÃO DOS TEMPOS
229. Ver: CATROGA,Fernando. Memória, história ehistoriografia. Rio de Janeiro: FGV, 2016;LE
GOFF, Jacques.História e memória. Lisboa: Edições 70, 2000; ABREU, Regina. Afabricação
do imortal. RiodeJaneiro:Rocco, 1996.
230. Ver: CERTEAU,Michel de. A escrita da história.2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2016;ALBUQUERQUEJR., Durval Muniz. História: a arte deinventar o passado. 2 ed.
Curitiba: Prismas, 2017.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 181
231. Ver: WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX São Paulo:
EDUSP, 1992.
232. Referência ao personagem estudado pelo historiador Carlo Ginzburg ver: GINZBURG,
Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
233. Ver: ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras,
2008.
182 • TECELÃO .DOS TEMPOS
algo ou alguém que não sepode ou não se deve esquecer, que traz uma dada
memória ao presente para ser objetodereinscrição, de reinvenção consagradora,
elatambém remete a uma dimensãodessacralizadora, profanadora, na.medida
emque se convoca a festejar, Sabemos que a própria origem etimológica da
palavrafesta, do latimfestivus, contemplava essa dupla acepção, essa tensão
entreoreligioso e o pagão?". Festa podia tanto ser uma celebração de caráter
religioso, como uma celebração visando demonstrar alegria pelas colheitas ou
por-dados episódios da vida-familiar como o nascimento e o matrimônio. Se, em
sua dimensão religiosa, o comemorar e o festejar remetem a demonstração de
reverência, derespeito, dereconhecimento àquilo ou àquele que se comemora,
• dando um caráter de seriedade e de atenção concentrada ao.·evento comemorativo,
a 'dimensão profana e-pagã do comemorar, do-festejar, remete à demonstração e
exteriorização daalegria, do contentamento, a criação de situações de .riso e de
diversão;ouseja, quando aatençãose desvia, quando a concentração se dispersa,
quando o sentido eos sentidos se alteram.Essa dimensão profanaparece sempre
estarpresente no ato comemorativo, constituindo-se em seu ·devir perigoso.
Todacomemoração pode extrapolar os limites, sair do controle, pode romper
as fronteiras, pode transbordar. Embora a festa seja também da ordem do ritual,
aocontráriodos rituais cívicos oureligiosos, a festa está mais aberta·e.sujeita à
criatividade, àinvenção, a atravessamentos,a extemporaneidades235•
Creio que esses-aspectos da relação entrehistória, memória e comemorações
dequetrateiatéagora,não se constituem emnovidades para a comunidade dos
.historiadores.'Retornando; no entanto, à etimologia da palavra comemorações,
encontramos outro sentido a ela associado, que tem. passado despercebido e
sobre oquaLcentrarei minhas reflexões daqui·para diante, neste texto, visando
contribuirpara refletir sobre o problema do comemorar de um ângulo ainda
. · pouco ,abordado. Compõe as palavras comemoração e comemorar a· raiz
latinacomes, que significa companheiro; ou seja, a comemoração não é apenas
trazer à memória, fazer ·recordar e lembrar algo ou alguém,"é fazê-lo com um
companheiro, com alguém. A comemoração é, de saída; um ato coletivo, urna
ação que só se pode realizaracompanhado, uma açãoque convoca e exige a
presençade um outro: Nesse-sentido, não há- a possibilidade de se comemorar
sozinho, nãohácomemoração naausência de um outro, indispensável para
•. que.ela ocorra. Acomemoraçãoexigea participação coletiva, embora em época
deintenso individualismo e narcisismo, como éa nossa, em que- a identidade
individual se intensifica comonunca,diferentemente do sentido necessariamente
coletivo das identidades nas sociedades antigas onde surgiu a palavra, possa
238. Ver: BARTHES, Roland. "O efeito dereal" In: Orumor dalíngua. 2 ed. São Paulo: Martins
Fontes,2004, p. 181-190
TECELÃO DOS.TEMPOS
240. Ver: BENJAMIN, Walter. "Teses sobre o conceito de história" In: Obras Escolhidas I: magia
e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 222-232.
190 TECELAO DOS TEMPOS
não pelo encontro dosemelhante, mas ser motivada pelo .encanto do diferente,
quepossa a comemoração existir.semque para:isso seinstaure uma necessária
unidade, ,unànimi_clade, urna homogeneidade de,visões sobre o que é objeto ou
sobre o sujeito da comemoração. Que as comemorações não pressuponham
sempreapresençade umoutro que partilha da mesma .condição social, étnica,
•• de,gênero, de. geração, profissional, quenão implique na partilha da mesma
visão da memóriaou dahistória, inas que este outro.possa advir de condições
esituações sociais eculturais diversas e que possa divergir das versões que
pretendem ser consagradas.Fazer da comemoração profanação e não .culto,
·fazer da comemoração divertimento enão solenidade, fazer da comemoração
: momento de reinvenção do passado e não,de.cristalização e de.estereotipização
doque sepassou.
Capítulo 10
e Esse é um. trecho do relato de um dos dois homens que saíram vivos de
Treblinka, um dos campo de extermínio construído pelos nazistas nà Polônia
ocupada. Chil Rajchman escreveu esse relato assim. que conseguiu fugir de
Treblinka, após a insurreição do campo, no dia 02 de agosto de 1943, vagando de
esconderijo em esconderijo, ameaçado todo tempo de ser capturado ou morto.
O relato, que intitulou Eu sou o últimojudeu, nasce da urgênciade testemunhar,
241. RAJCHMAN, Chil. Eu sou o últimojudeu - Treblinka (1942-1943). Rio de Janeiro: Zahar,
2010, p. 88.
TECELÃO DOS TEMPOS
dedeixarpor escrito :uma: narrativa sobreas·atrocidades que vira e das quais fora
obrigado a participar. Sem saber do paradeiro daqueles que com ele fugiram,
semterconhecimento que Abraham Bombatambém sobreviveria para cpntar
o quefoi Treblinka, ameaçado de ser morto a qualquer momento,• Raj chman
: escreve essetextoporque era preciso que outros soubessem, que omundo ficasse
sabendo dos horroresque testemunhou.Era preciso entregar, com. urgência, e
correndotodos os riscos, como fizerammuitos outros judeus, um testemunho,
uma memória;um.çonhecimento;. uma-informação, um relato, uma narrativa
sobre um real êaótico e feroz que se apossou de,suavida e da vida de milhões de
pessoas de seu povo:Era preciso; com ouso·da escrita; recursotão importante na
ciiltura·do·povojudeu,.tentarJazer ·esse-real inimaginável e indizível passarpelo
fio dalinguagem, setornar cenas e imagens, se tornar eventos, se tornar realidade
para todos aqueles que .não presenciaram,o que ele presenciou. Entregar esse
textopara o mundo, mesmo que fosse a última coisa.que fizesse em vida, era uma
formadepagara enorme dívida que contraíra com seu povo,ao participar de seu
massacre, como única forma de permanecer vivo.Selecionado, logo na chegada
ao campo, parafazer parte do queos nazistas chamavam de "Kommandos
judeus, que realizavam todas as operações necessárias para o extermínio dos
queali chegavam e para a arrecadação detodos os bens que traziam, inclusive de
parte de:seus corpos, por mentirsaber cortar cabelos, ele.se tornou tonsurador
das mulheres que seguiam para as câmaras de gás, depois ajudante dos dentistas
quearrancavamas corroas de metal das bocas dos cadáveres gaseados, depois
carregadorde corpos para o enterramento nas valas para; finalmente, participar
do desenterramento dos cadáveres.para a queimanas fogueiras destinadas afazer
desaparecer todos .os vestígios>do que ali se passara, para reduzir os corpos a
cinzas, espalhá-laspelo solo e com ela adubar a plantação de árvores destinada
ao encobrimentodefinitivo do crime ali perpetrado. .(\pagamento proposital
do acontecimento,· dafostória, .empresa de desrealização, de soterramento dos
indícios, dos rastos, dos sinais, de obscurecimento da evidência. Por isso era
urgenteo seu gesto, o seu testemunho, ele iana contramão do que estivera
fazendo no ano e meio que passou em Treblinka: afirmação da rebeldia e da
. resistencia da vida, dapotência do vivo diante da grande empresa da morte e
.do esquedmento,.sua outraJace.
Comosabemos,nasúltimas décadas, diantedaemergência, por um lado, de
uma historiografianegacionista, que contesta a existência das câmaras de gás e a
realidade dachamada"soluçãofinal, apartirdo queseria ainexistência deprovas
materiais de sua ocorrência e, por outro,diantedachamada "virada linguística",
quetrouxeo tema da escritadahistória, da relação entre discurso e realidade,
entre realelinguagem,parao centro dasdiscussões no campo da historiografia,
a
o Holocausto, soluçãofinal e mesmo o estatuto do testemunho ·e da imagem
tornaram-seobjeto deum intenso e acalorado debate entre os historiadores, onde
posiçõ;es extremadas con\rivem·:con1 posições' mais matizadas e -Conciliadoras.
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 193
1. O real existe
Por incrível e até hilário que possa parecer, historiadores hoje escrevem
textos para-afirmar que o real existe.A negaçãofeita de.queas câmarasdegás e
a solução final, a chamada Shoah, tenham existido; por parte de negacionistas
comoRobert Faurisson, um professor de literatura da-Universidade de Lyon,
seria um indícioperigoso da perda do real pelos historiadores. Os-negadonistas
são então aproximados dos .chamados céticos, ·narratívistas, pós.-rnodernos,
sem que· nunca se discuta e defina essas categorias classificatórias que,por
,problematizarema-relação entre discurso e realidade; entre linguagem e referente,
se veem lançados na fogueira como proto~fascistas, queimados vivos por terem
abdicado do chamado "princípio da realidade" que, como todo princípio absoluto
e dogmático, deve ser seguido sob pena de heresia,excomunhão e até suplício. 243
Nesse debate, os· negacionistas, no entanto, não abrem mão da noção de
real, muito pelo contrário, acreditam que do reaLsó existe uma versão possível,
adeles,e cobram daqueles que defendem a existência do que negam; as. provas
materiaisque sustentariam essaexistência. Cinicamente, sabedores deque
essas provas foram propositadamente destruídas, como se fossem -positivistas
empedernidos, seguem cobrando que se prove materialmente; e não através de
242. Treblinka.Direção: Sérgio Tréfaut. Duração: 1h01m. País: Portugal. Distribuidor: Faux.
Ano: 2016.
243. Ver,por exemplo: GINZBURG, Carlo. "O extermíniodos judeus e opriricípio da reàlidade''.
In: MALERBA, Jurandir. Ahistória escrita: teoria ehistória da historiografia. São Paulo:
Contexto, 2006, p. 211-232.
194 TECELÃO DOS TEMPOS
246. GINZBURG, Carlo. O extermínio dos judeus e o princípio da realidade. Op. Cit., p. 226.
• TECELÃO.DOS TEMPOS
250. Ver, por exemplo: THOMPSON, Edward P. "As peculiaridades dos ingleses" In: NEGRO,
Antônio Luigi e SILVA, Sérgio (orgs.). As peculiaridadesdos ingleses e outros ensaios: 2 ed.
Campinas: Unicamp, 2012, p. 75-179.
251. Ver: LEBRUN, Gerard. "A aporética da coisa emsi"In: SobreKant. SãoPaulo:Iluminuras,
2012.
252. Ver: CERTEAU, Mkhel de. "A operação historiográfica''. ln: A escrita da história. 2 ed. Rio
198 TECELÃO DOS TEMPOS
- - -
- -
pertence à comunidadede historiadores,ondenãoseria admitido,:não apenas por
violarasregrasteóricas emetodológicasdooficio, mas por violar seus princípios
éticos.Eletem sofrido inúmetos-prócessosnajustiça por causa de suas posições,
• rr1ostrandp'queasinstituiçõesquelegitimamuma:dada·verdade sobre o reaLda
solução final nãoadmitem suasversões.É, aí, noplano da política dos saberes,
que o enfrentamento aeles deve sefazer.
2. Tudo é discurso?
255. BARTHES, Roland. "O discurso da história" In: O rumor da língua, p. 163-180.
256. WHITE, Hayden. "O texto histórico como artefato literário". In: Trópicos do discurso: ensaios
sobre a critica da cultura. São Paulo: Edusp, 1994, p. 97-116.
257. WHITE, Hayden. "Enredo e verdade na escrita da história" In: MALERBA, Jurandir (org.).
Op. Cit., p. 191-210.
'200 - _ TECELÃO DOS.TEMPOS
[...] existe algum limite sobre o tipo de história que pode ser contada de
maneira responsável sobre esse fenómeno? Podemesses eventos ter seus
enredos responsavelmente elaborados em quaisquer modos, símbolos,tipos
de enredo e géneros que nossa cultura fornece parafazer sentido sobre o
passado? As naturezas donazismo e da solução final colocamlimitesabsolutos
no que pode ser verdadeiramente dito sobre eles?260
260. WHITE, Hayden. "Enredo e verdade na escrita dahistória" MALERBA, Jurandir (org.).
Op. Cit., p. 192.
:TECELAO.D05 TEMPOS J
263. LANZMANN, Claude. Shoah:vozes efaces do Holocausto. São Paulo: Brasiliense, 1985.
TECELÃO DOS TEMPOS
265. Ver: BENJAMIN, Walter. "Sobre o conceito de história"In: O anjo da história. 2 ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2016, p. 11.
;TECELÃO DOS TEMPOS
referia a íntegro, inteiro, não tocado, mesma raiz que de onde advém o verbo
tangere, que significa tocar, alcançar.No espanhol, essa-raiz resultouna palavra
enterar, se enterar, ou seja, se informar; saber das coisas, Podemos dizer que o
ofício do historiadortem a função social de tocar, de alcançar as subjetividades
daqueles que compõem a sociedade a que pertence. Ao invés de falarem apenas
à razão de seus concidadãos, o historiador deve ser aquele capaz de tocar, de
afetar, de alcançar emocionalmente e imaginativamente quem comparte com
ele-o seu tempo. Seu trabalho é um trabalho de refazimento; de reunião dos
fragmentos, dos restos, dos rastros que nos chegam do passado, reunindo o
que foi separado, fragmentado, para que façam seritido e seja sentido por seus
contemporâneos. O historiador é alguém queinforma os seus parceiros devida,
que faz eles saberem de que algo ocorreu. Mas, acima de tudo, é alguém que
-os :toca, os mobiliza, os retira da apatia através da empatia com os humanos de
todos os tempos. O historiador é alguém que entrega e se entrega o/ao passado.
Seu trabalho envolve um trabalho com a linguagem, mas também um trabalho
com o corpo. A relação do historiador com o arquivo não é apenas uma relaçao
intelectiva, mediada pelo conceito, mas uma relação sensível, mediada pelos
seus sentidos, por sua corporeidade. São os corpos a pesar em tudo, numa
paráfrase a Didi-Hiberman. O arquivo não é apenas lido, mas é também vivido.
A frequentação do arquivonão é apenas da ordem cognitiva, mas também
sensível, imaginativa e emocional. Diante de um arquivo, como o constitmdo
pelos testemunhos do Holocausto, coloca-se para o historiador não apenas um
desafio conceituai, mas também um desafio sensível. Ser afetado por essearqmvo
e utilizá-lo para afetar o outro. A forma como se é afetado tem implicação no
tipo de narrativa que dele se fará, de como com ele afetará aos demais. Será uma
postura distanciada, realista, racionalista, a melhor forma de fazer passar para
os outros, de entregar à comunidade uma experiência desse arquivo? Se o real
e puro-acontecimento, um contato com o real que possibilitou o arquivo nao
implica a coragem de se expor, de uma exposição à surpresa dos encontros e
experimentações davida? A tarefa do historiador é entregar versões da realidade,
reunindo seus fragmentos através do uso da narrativa, o que implica amalgamar
a experiência do arquivo e o relato. A dimensão política do ofício de histonador e
construir narrativamente versões do passado e entregá-las para ouso público, n °
presente. É constelar imagens do passado com imagens do presente, produzindo
no choque dialético alguma iluminação, algum esclarecimento. O historiador, se
faz obra de sensibilidade, não pode abrir mão dos corpos e nem de seu corpo,
Creio que, se a historiografia sobre o golpe de 1964 não foi capaz de afetar
suficientemente a sociedade brasileira que, insensibilizada, volta apedir o retorno
da ditadura militar, é porque tornou a tortura um mero conceito abstrato, sO
uma palavra, na medida em que se recusou a trazer para a narrativa 'os corpos
sendo torturados, os corpos feridos, violados, violentados, esmagados, mortos,
seviciados, incinerados, afogados, desaparecidos, vilipendiados, humilhados. Os
TE CELÃO DOS TEMPOS
O ENSINO DE HISTÓRIA
Capítulo 11
Regimes de historicidade:
como se alimentar de narrativas temporais
através do ensino de história.
as
atual,mostrar diferenças do mundo,levar, conduzir, guiar alguém no sentido
de externalizartalentos que possuía, pqtencialidades, virtualidades. que trazia
inscritascomo possibilidade em seu ser."%'
. Oensino de históriatema finalidade óbviade fazer o aluno realizar a
experiência deir paraforade seu tempo.A narrativa histórica é, nos termos de
, Mich:êhFoucaglt;úmaheterocronia,ou seja,apossibilidade de.se experimentar
um outro tempoque habita como parte e, ao mesmo tempo, como fora do
tempo presente."Umaaula de histói:ia propõeuma·atividade hastanteJúdica
(e meespantaquemuitos professores levem os alunos a.considerarem história
. umamatéria chata) que é adebrincar de sair<lenosso.tempo e dar um passeio
porpaisagens e tempos, ,por.cenários e cenas, .com personagens· e .pessoas que
constituírame habitaram outroS':tempos..
• •::Uma aula dehistóriadeveser capaz de proporcionar ao alunouma espécie
de a.yentura,gastronômica; ou seja,.permitirque·os, alunos provem de um
tempoque nunca experimentaram, sintam o sabor de outros tempos. A aula de
história,como o romance-histórico, como o.filme haseado:em fatos=reais; como
o videogamedetemáticahistórica, deve permitir a experiência fascinante de
· sàída.do tempo,:de,àbandono. de seu regime de historicidade, de temporalidade,
, para experimeritaroutros.regimes de historicidade e de temporalidade. A saída
• Jmagiriáriédo presente, que·um texto. ou ,uma .aula de história.proporcionam,
permite.que sê tome distância em relação ao presente. O professor•de história
deve convidar os alunos a se postarem,imaginariamente no passado e olharem
de lá,comose fosse defora, o nossotempo, o..presente. Como dizia Michelet, 283
o professor de história deve Ievar,seus,alunos a atravessar o rio da-morte, deve
conduzir seus alunos parafora de simesmos,de seu tempo, de sua c:.:ultura, de
seusvalores, deseus costumes, provocando neles a sensação deestranhamento,
a vivencia,por um tempo, dacondição de estrangeiros, contribuindo assimpara
a formaçãodepessoasmais tolerantes .em relação ao diferente, ao estranho,:ao
estrangeiro, menos xenófobas e preconceituosas.. ·
Aaulade história,como dequalquerdisciplina, deve implicar para o.aluno
um sair de si,-um confrontar~se·com outras,possibilidades de serhumano, de·ser
sujeito,de serhomem, de ser mulher, de ser masculino, de ser feminino, de ser
social, de serpolítico,de ser ético,• de· ser estético. O aprendizado da variedade
. e da çliver:sidade:humanascno.:tempo é uma tarefa precípuado professor de
história, queestá na :escola. não apenas,;,para ensinar· dado conteúdo, cumprir
umdado currículo: a finalidade precípua do .ensino da:história é a formação
devalores, éa produção desubjetividades, é: a constr:Ução de ,sujeitos capazes
de convivercom a diversidadee a diferença, como que,,não é faniiliâr.· Porisso
';": Como narrativa,umaaula de história deve definir .que tema irá tratar, se
o narradorseráoprofessor ou alguém imersona próprio evento (pode ser o
casodeele estar nosdoislugares), que tipo de;enredo, · que gênero de trama: ele
adotará (romance,comédia,tragédia,épica, drama, sátira,. cronica, conto, fábula),
sabendoque,se não fizer .uma escolha '.ptoposital,. afará sem ter·. copsciência
disso ousimplesmente escolherá repassar.o ern:edo tal como o recebeu do livro,
• do professor, darevista,:do-j.ornal; da mídia, do senso comum. Organizar uma
aula dehistória éorganizaro relato emtorno de um tempo, de.um evento, eisso
.· irnplicá a decisão deconstruirseu próprio enredamento, suaprópria versão para·
o evento ou reproduzirversões já prontas, quepodem e devem ser confrpntadas,
facilitando o .aprendizado por .pa.r.te ·dos·.alunos_cde que .não existem,.verda;des
definitivas,não existem certezas absolutas; não•só na historiografia:,. como:em
:.qualquer.ciência.
Umaboa maneira decombater o .estereótipo da· história como_ um
amontoado dementiras édiscutir com-os alunos como.se constroem socialmente
, e culturàlmenteasverdades:, a quem elasinteressam e.a-quem servem. Uma aula
de-história, como uma ,narrativa, implica· na definição de um., acontecimento,
. deum eventoparasertratado,a clareza .sobre o tempo e o espaço em que:esse
ocorre euma discussãosobre os traços que s.ingularizam e definem essarelação
,espaço-tempo: Implica a escolha de personagens, quais serão trazidos para. a
frenteda'cena e,guáis serão deixados nos-bastidores, escolha ética e política que
implicadar a narr:àtiva uma dada focalização. Como na fotografia, no cinema
óffnàtelevisão;escólhemos.onde colocamos,o foco de.luz de nossa narrativa.
Todo atonarrativo é constituído e explicita um regime de visibilidade e
um regimededizibilidade, implica . urn.regime,de·.luz ,que incide. iluminando
etrazendoàcenadados elementos e. personagens e ,desfocando, ·.apagando e
produzindo o esquecimento de outros personagens e elementos datrama:289 A
· aula dehistoria"é-urriatrania,.só se.realiza se traz a-cena, ·se encena, ·sexoloca à
frentedos alunos urna: dada configuração,uma dada encenação do-passado. O
professondefüstóriaeficiente é aquele que,ao narrar, faz seus alunos visualizarem,
imaginarem,experimentaremcomo sonhoe realidade, ao mesmo ·tempo; as
cenasque constrói com sua capacidade narrativa.Um professor de·históriatem
que ser,acima de tudo, umbom contador déhistórias; um ,bom.narrador, um
sujeitode discursocapaz deintroduzir emdadosmomentos da trama:da ·aula
osdetalhesanedóticos,os traçoscuriososdopassado, que terão nãosó o efeito
deatrair aatençãodosalunos,mas terão o condão deaproximá-los do tempo
narrado,produzindo o efeito •de yerossirnilhan.ça,a "aquilo· que· Roland Barthes
nomeoudeefeitodereal."?"A escolhadoanedótico,dos detalhes, dos aspectos
294. SERRES, Michel. Filosofa mestiça: les tiers-instruit. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
230 TECELÃO DCJS JEMPoS
295. Referência a uma fotografia que circulou nas redes sociais emque, numa das manifestações
emfavor do impedimento da presidente Dilma Rousseff, uma senhoraportava um cartaz
-onde estava escrita uma frase em que lamentava que todos os comunistas não tivessem
sido mortos pela ditadura iniciada com o Golpede 1964.
lugar enotempo dooutro, incapazes de imaginare sentir a dor lancinante da
peú,fa.âeunienteamado.Sea.escolaéolugarda produçãode subjetividades, é
o lugar da produçãode humanos.Que humanos queremosproduzir?,deveser
a perguntaprincipal.
. Desejamosproduzirseresfrios, calculistas e racionais, emseu ódio e em
seu crime, como foi amáquina nazista, ou queremos produzir pessoas sensíveis,
capazes devivenciare se,solidarizar com a dor do outro? Para isso, -0 ensino
dehistória seria um excelente·instrumento, permitindo .que ,vivenciemos e
compreendamos as ·dores·alheias;mas; para tanto, será preciso oferecera nossos
• ;atunos.•outro tipo de:álimentação.histórica, · talvez alimentos• mais intragáveis,
mais amargos,paraque estabeleçam outras relações com o. tempo,. com. o seu
• teajpo;,quenãoseja uma. relaçãode boçalignorância .e insensibilidade.
Osfascismos estão nas ruas,o fascismo sorri com .seus ·dentes:ávidos de
sangue em cada recantodo país. É preciso que o ensino de histórfa atue no sentido
de mostrarque ofascismo não foi apenas um regime localizado em um .dado
,país,etempo,•mas·um anacronismo·que•nãodeixa de nos:obsedar;·está a nossa
volta,ele é um regime que deglutimos e que muitos excretam todos os dias, em
cadauma de·suas relações, em cada uma de suas ,palavras. Contra,a violência
do fascismo cotidiano,a violência das imagens, de .seus crimes que .devem ;ser
expostas paraquevoltem a sangrar. O regime de. historicidade em que vivemos
exigequesirvamos nas aulas de história alimentos:que provoquem.repulsa e
vómito,jáque sãoessassensações que vivemos todos osdiasao frequentar as
redes sociais.
Capítulo12
Mesmo que não aceitemos designar anossa condição histórica como sendo
pós-moderna, como enunciam autores de tradição filosóficas tão distintas como
Jean-François Lyotard, David Harvey e Fredric Jameson296, mesmo que não
consideremos apossibilidade de estarmos deixando de ser modernos, ou de que
jamais fomos modernos, como defende Bruno Latour"7, devemos nos interrogar
sobre o lugar, no futuro, das instituições sociais que surgiram com o mundo
moderno e que continuam ainda entre nós? Se aceitamos que, como, enuncia
Gilles Deleuze", estamos deixando a sociedade das disciplinas,tão bem analisada
por Michel Foucault299, e vivemos agora uma sociedade do controle, que papel
ainda podem exercer as instituições as quais aquela sociedade disciplinar deu
origem? A que mutações-estão sujeitas para continuarem a-funcionar em nossa
sociedade? Se estamos em uma nova configuração histórica, a que mutações estão
.submetidos os lugares de sujeito, as identidades, as subjetividades, neste novo
tempo e a que modalidades de processos de subjetivação estamos submetidos?
Entre todas as instituições que a modernidade fez emergir; entre todas
aquelas que a sociedade disciplinar proporcionou a constituição, a escola é
uma das mais exemplares, entre outros motivos por ser destinada à produção
de conhecimento, à produção de subjetividades, à produção de sujeitos, à
para que possamos ter uma função social que não seja ada conservação e da
manutenção do status quo. Adesnaturalização do presente, a suacolocação numa
perspectiva temporal, a sua conexão aos devires; é-a nossa tarefa. Enunciar os
pontos de fuga, os-pontos de sutura, as virtualidades que habitam nosso tempo,
pode seruma dastarefas que ainda temos a cumprir.
A escola moderna foi ideada como uma instituição que deveria formar
o cidadão burguês, que deveria educar sob os princípios darazão, quedeveria
explorar as potencialidades das. faculdades humanas para tornar o homem· um
ser superior,sendo capaz de torná-lo um ser livre, dono de simesmo, consciente
de si, da natureza e dasociedade que o cercava. A escola tinha, seja na versão
iluminista, seja na versão romântica, a tarefa humanista de fazer do homem o
senhor do mundo-e de- si mesmo. Aí se 'devia transmitir. o saber queiria fazer
a criança sair de seu estado de menoridade e atingir o estado. de maioridade,
pelo domínio racional do mundo, superando os mitos, as mistificações, as
superstições,o estágio pré-'científico de domínio do mundo e dasociedade. A
escolaprometia preparar cidadãos, pessoas_que amassem a pátria; que amassem
a espécie, que estivessem dispostas a sacrificar-se em,nomedo-bem público, em
nome de sua pátria, em nome da humanidade. A escola surge, pois, como uma
maquinaria destinada a produzir sujeitos; a produzir subjetividades, a produzir
corpos treinados e hábeis, a produzirformas de pensamento e de sensibilidade
-adequados à ordem social burguesa.-A escola surge como uma das-instituições
destinadas a disciplinar corpos e mentes, a disciplinar o próprio saber, sua
produção e transmissão. A escola surge como local de produção de subjetividades
serializadas e massificadas, ao mesmotempo em que prometia formar indivíduos.
Nascida do processo de solapamento da centralidade dafamílianoprocesso
de- educação da criança, nascida do processo de governamentalização que leva
o Estado a interferir, cada vez mais, na vida doméstica, a substituir muitas das
atribuições antes reservadas a pais, preceptores, tutores, governantas, amas,
etc., a escola assume tarefas que; à medida que a sociedade se complexifica cada
vezmais, quese massifica, coma entrada deindivíduos pertencentes atodas as
camadas sociais, não pode mais atender.Embora seja mantida, em nível dos
discursos,a responsabilidade das famílias em relação àeducação dascrianças, à
medidaqueela se torna umatarefa de Estado; leva a-um afastamento progressivo
dos pais da escola e à crescente entrega da educação dos filhos ao aparato
escolar, quetende a se expandir para atendê-las cada vez mais precocemente,
desresponsabilizando os paisdetal tarefa - processo que atinge todas as camadas
sociais. A chamada criseda escola pública se dá, justamente, no momentoem
que osfilhosdas camadaspopulares adquirem o direito e as condições mínimas
denela ingressar. Elitista em sua formulação, pensadapara a formação das elites
dirigentes; embora desde o começo o discurso a destine ao povo, aescola se vê
inviabilizada quando grupos sociais com valores, comportamentos, hábitos,
costumes os mais diversos vêm aí se encontrar.A cultura escolar, uma cultura
·6 TECELÃO DOS "IEMPOS
Letras,2004. - -
DURVALMUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR
o2.
303.
FoüCkürrMtchet. o. c.
SERRES,Michel.Diálogosobre a Ciência, a Cultura e o Tempo. Lisboa. Instituto Piaget,
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 239
1997.
304. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Confissões. Lisboa: Edipro, 2007.
305. Ver: LARROSA, Jorge. Pedagogia Profana. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
·240 . TECELÃO DOS TEMPOS
• es·cola:seêólocacorrioum:espaçode,continuação,'dereprodução'daordem.social,
•.dotemposocialemqueestá situada. Emboramuitaspedagogias quese nomeiam
decríticas tenham pensado a instituiçãoescolarcomoumlugar ondesepoderiam
formar agentes críticos da realidadesocial, sujeitosdescomprometidos com a
ordemvigente, sujeitos capazesdetransformar a realidade social, esbarravam
. na própria aporiade se pensar, llffia pedagogia.crítica: uma pedagogia crítica é
• possível?Comouma maquinariade práticas e discursos que visam enformar
ou formaralguém, como um conjunto de prescrições pode levar alguém aser
crítico, se acríticanasceda possibilidade de ser deseducado;,mal educado, da
êapaddade de sé' deformàr, de propor e adquirir.novas formas de subjetividade
etn:destornpasso comas modelizaçõessubjetivas,assubjetividadesprêt.:.à-porler,
como dizRolnik,que a escola, que osmodelos pedagógicos·nostentam ensinar?
Porissovenho aquipropor que.precisamos deum professor,quedeforme
enãoquéfornie;.umprofessor que ponha em questão, primeiro em sua,própria
vida, emsua práticase discursos, os códigos sociais em que foLformado.
'Prófessotque·pense-nensinar-como uma.atividade deautotransformação, como
uma atividadediáriade mutação do .que considera ser sua subjetividade, sua
• identidade,seu Eu.O ensinarcomo aab,er.tura para se deixarafetar pelas forças e
•matérfas:sôciaisqueo;convocamaelaborar-se·permanentemente; a escrevera si
mesmo, acuidarde simesmo,numa atividade ética que pressupõe abrir~se para
o outro, para o diferente, para o estranho, ·para o estrangeiro,,para o não-'sabido,
o não-pensado, o não-valorado. ·Ensinar não. como uma,atividade centrada na
. transmissão' devêidades;·do que é.a·certeza, o aceito, ojá pensado; o consensual,
o que'sedácomoinqtiestionáveL Ensinar como.o ato de se abrir para.questionar
as certezas,as verdades, o aceito, o consenso, o.que-não se questiona:Ensinar
· pensado rião como urriaati½dadeque,supôe uma hierarquia, uma desigualdade
de saberentre professor e aluno, mas como uma atividade relacional; ·em que
·alurios-e,professor têmo que .aprender um com o outro.
Oensino que"âeforma seria aquele que investe na· desconstrução do.próprio
ensino escolarizado, rôtihizado,,:massificado, :disciplinado, -:sem - criatividade,
•. ·• monótono, oensino profissional,o ensino obdgatór'io, o ensino como máquina
de salvação ou demoralização. 0 ensino que deforma é aquele'que aposta-em
formasnovas, maneiras novas de praticar as relações deaprendizagem. Ensino
em quenão.teria lugar a rotina, ·a mesmice, a homogeneidade-dos· saberes e
procedimentos, emque a disciplina ouas disciplinas não seriam o fundamental,
masacriatividade,a capacidade depensar coisas novas, de formular novos
conceitos,de praticar atividades ;destótinizadas,túdicas,:atividades capazes de
estimulara sensibilidade,práticaseformas de pensamento capazes de oferecer
às criançasmatérias e formasde expressão.·•para-elaborarem subjetividades,
,·
subjetivaremdistintasformas
•' . . ~ '
de sedizer
.
Eu. Talvez·· esse ·ensino, pa:ta,:existir,
307. A crítica de Kafka à burocratização moderna encontra-se, por exemplo, em: KAFKA, Franz.
O Processo. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
TEGELÃO·DOS IEl\.1POS
modificar, pois depende do uso que deles seráJeito, Uma boa biblioteca numa
escola não é garantia de melhor ensino, seos professores e os alunos não se
dispuserem a fazer um uso criativo e singular dela.
Nunca pensamos porque o Estado, as elites, aqueles que dominam
apresentam a escola como sendo a salvação para todos, embora. a-abandonem
muitas vezes a um.estado de penúriafinanceira; Isso demonstra que a escola não
os incomoda; queaescola tem se comportado bem em seupapel de reproduzir a
ordem, de reproduzir a exclusão social, de reproduzir-os preconceitos e conceitos
que sustentam esta ordem social. Talvez por isso mesmo não tenha atraído a
atenção, tenha sidorelegada ao segundo plano; Não porque secomportemal, seja
um perigo para o poder e para a dominação como certos discursos advogam. As
esquerdas sempre adoraram a escola e a educação, considerando-as formas de
libertação e de produção da consciência crítica. Nos países em-que conquistaram
o poder de Estado,investiram maciçamente em educação, escolarizaram toda
a população, fazendo de toda rede de ensino uma fabulosa maquinaria de
reprodução ideológica dos regimes. Nesses países, como nos nossos, as escolas
também têm se comportado muito bem, têm desempenhado seu papel de
reprodutoras da ordem, de fabricadoras desubjetividadesmassificadas eem série,
corpos e mentes dóceis e a serviço dos regimes, seja de que extração política
seja. Talvez por isso sejam esquecidas, abandonadas, deixadasentregues ao seu
cotidiano rotineiro e empobrecido emtodosos aspectos. Já que não incomodam,
para que se preocupar com elas? Os· professores mal pagos não continuam
desempenhando o seu papel de não questionar a sociedade? Sua negligência
justificada pela remuneração insuficiente, sua faltade empenho, sua pouca
criatividade, seu baixo investimento subjetivo. em suas atividades, não fazem
tudo continuar como está? Então, para que se preocupar com eles? As atitudes
dos professores legitimamaté o pouco que ganham, então para que dar a eles
remuneração digna, se eles não desempenham dignamente as atividades quelhes
.são conferidas? Os professores esperam ter melhores salários para melhorarem
como professores e sendo ruins legitimam que os salários sejambaixos. Os
alunos são ruins porque os professores e a escola são ruins, eassim se justifica
que assim continuem, já que tanto os professores quanto a administração da
escola terão um álibi para continuarem ruins,já que os alunostambém o seriam;
a culpa seria, portanto, deles. Esse jogo· de empurra· demonstra a falência da
instituição escolar e a necessidade de que pensemos· outras formas de educar,
outras formas de ensinar, outras formas de sermos professores e alunos, talvez
livres da escolarização; dessa instituição moderna em vias dedesaparecimento.
Capítulo 13
seduzir ouvidos e almas. A felicidade na escolha das palavras, das figuras, das
imagens, a capacidade de fazer o evento narrado colocar-se à frente do ouvinte
ou do leitor, a capacidade de encenar, de pôr em cena, de pôr diante dos olhos
algo ausente, era decisiva para que o texto histórico conseguisse impregnar no
espírito de quem o ouvia ou lia a mensagem que queria transmitir. Como um
sinete em uma placa de cera, o relato histórico deveria produzir impressões
profundas no espírito de quem o escutava ou de quem o lia, devia ser capaz de
deixar nele impresso, marcado, impressões indeléveis, ensinamentos e exemplos
para jamais ser esquecidos. O relato histórico devia impressionar, deleitar,
memorizar, educar e moralizar.31º
A História, que por muitotempo foi considerada um gêneroliterário, uma
arte, embora devesse ter compromisso com a verdade, nas palavras, de Tucídides
"devesse ter a preocupação em contar como as coisas se passaram, extraindo
delas lições", vai ser designada como sendo uma ciência ainda no século XVIII
com os pensadores iluministas. Mas será no início do século XIX que, em
grande medida, a prática historiográfica passa a obedecer a regras distintas
daquelas que presidiram a escrita da História, desde a Antiguidade Clássica,
com o deslizamento e alteração de sentido do topos história magistra vitae.
Em 1810 é criada na Universidade de Berlim a primeira cátedra de História,
entregue mais tarde a Leopold von Ranke, dandoinício assim à profissionalização
do ensino e da escrita da História, tornando-a um saber universitário, com
aspirações à científicidade e a serviço de objetivos e funções que serão traçados
pelo Estado que promove, avalia e fiscaliza a docência e a produção na área.
A profissionalização do ensino e da escrita da História na· Prússia faz. parte de
um processo de modernização administrativa, de reforma do Estado, que se
seguiu à derrota para as tropas napoleônicas. A invasão pelas tropas francesas,
a derrota nos campos de batalha fizeram com que as elites prussianas avaliassem
a necessidade de reformar não apenas o preparo militar de suas tropas, como
também defendessem a necessidade de se preparar subjetivamente tanto as
tropas como toda a população, de onde essas eram recrutadas, para que elas
demonstrassem maior disposição na hora de lutar e defender o que essas elites
definiam, agora como sendo a nação. A adoção do ensino da História, não
apenas na Universidade mas nas escolas públicas surgidas, justamente, a partir
da Revolução Francesa, passa a ser visto como um ingrediente indispensável,
como nos diz Benedict Anderson," para a criação desta nova comunidade
imaginada, a nação, comunidade que deveria vir a substituir as, solidariedades
e as relações comunitárias locais, em grande medida destruídas com o fim dos
vínculos feudais e com a concentração crescente da população nas cidades, com
310. HARTOG, François. Os Antigos, oPassado e o Presente. Brasília: UNB, 2003; MOMIGLIANO,
Arnaldo. As Raízes Clássicas da Historiografia Moderna. Bauru: EDUSC, 2004.
311. ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras: 2008.
'248 - TEC.ELÃO DOS TEMPOS
1
o desenvolvimentoda economiamercantile industrial. Constituir cidadãos,que
amassema nação,quesedispusessemsubjetivamentea viver e a morrer pelo
queagora senomeia de pátria, passa a seratarefa a sercumprida pelo ensino e
pelaescritadaHistória.
• • ·• ,,/A\Históri~ tontinua:·sendo_ pensada-e,praticada,. majoritariamente, .como
históriapolítica; agora,no entanto, como a'histó.tiados Estados·nacionais; .como
ahistória daquelesque encarnam e representam o governo das nações. :Tal
comonaAntiguidade, a históriacontinua tendoum caráterde exemplaridade,
elacontinua sendopensadacomotendoum caráter. pedagógico, acentuado,
agora porqueiráintegrar os,·curriculos.·de ·.instituições. de. ensino,-·tornar-,,se-á
matéria escolar. Elacontinua visando educar e -moralizar, sendo que agora. visa
formarcidadãos,mascidadãos que não habitam e não,são· representantes ou
dirigentes políticos de cidades,-mas de nações. A História .passa.:a ser ,história
nacional,história dos grandesfeitos e grandes fatos:que no decorrer.do.tempo
- manjfestatama.nacionalidade ou o que se chamaentão de espírito -ou .alma
- nacional e.teriam contribuído para a.emergência, legitimidade e glória de cada
riagão:Ma.s,;diferentemente do que-ocorria na Antiguidade, a: História,falaagora
prefere11ciâhnerite·:do.passado e não do presente. Passado visto como acabado
• e separado do presente;,ser-vindo, no entanto;-para explicá-Jo e para inspirar as
ações daqueles quesãoresponsáveis por dirigir e, portanto, por fazer a -história
de cadanação. A História visa,· portanto, construir o cidadão patriota,:aquele
queamasuanação,quetem orgulho de sua nação .portudodegrandioso,que
elàfoi,capázdéfazer,erepresentar-no passado; que se inspira na vida e nas ações
daqueles que, no passado, foram responsáveis ·pela sua constituição,-,sua -defesa
e seugoverno: os heróis nacionais, que ,c-onstituem o .panteão da pátria, onde
devemser buscados os exemplos de montlidade, :de· coragem, •de;grandeza e
desabedoria.A História passaa ser assim um•.instrumento.·-na-·construção• e na
reamalização _das·identidàdes,riacionais, na elaboração e .reprodução de dadas
narrativasdanacionalidade, das metanarrativas da• nação, que' sustentarão e
da.fão:sJJ.p,orte:aonov.o domínio burguês que se instaura.
Assim comona Antiguidade, a ,História - continua tendo .a função -de
moralizar,deensinarvalores,defornecer modelosde conduta; de orientar a ação,
no sentidodo aperfeiçoamentohumano. Além.deeducar; deformar cidadãos; a
históriadeve agoracivilizar,conceito j á-,existente entre-0s antjgos; mas que·ganha
uma centralidade euma importânciadecisiva nummundo que, desde século
XVI,ampliou-se cadavezmais,como conhecimentode novas terras e-de novas
popula.ções,;que-v:iu emeygirmovas faces.do hurnano:que nemsempre agradaram
ouforamconsideradas suficientementecivilizadas. A'.História-torna::.-setambém
- :a natrativa-,que,a.vàlia efüscute o·aperfeiçoamento dos costumes humanos, tal
como propugnada e praticada por Voltaire,aindano século XVIII. A História se
torna,alémde história da nação, história dacivilização, a narrativa da progressiva
dos
melhoria costumeshumanos, saber que oferece orientações de conduta eque
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 249
313. SPENGLER, Oswald. The Decline oftheWest. NewYork: Oxford II, 1991.
314. LEVI-STRAUSS, Claude.OPensamentoSelvagem. Campinas: Papirus, 2005.
252 _TECELAO:DOS TEMPOS
315. BRAUDEL, Fernand. Identité dela France. 3 vols. Paris: Champs, 2009.
. 316. FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Lisboa: Presença, 1989; BLOCH, Marc. Apologia
da História ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro:Jorge Zahar,2002.
317. HARVEY, David. Condição Pós-Moderna. SãoPaulo: Loyola, 1992.
254 TECELÃO DOS TEMPOS
aprendizado de que aquilo que somos éapenas uma forma de ser entre muitas,
nos permite saber como chegamos a ser o que somos e que esta forma ou estas
formas-não são as únicas possíveis. A História nos possibilita entender o presente
como diferença e ao tempo como diferenciador,nos permite perceber que o
ser do tempo se diz na diferença. Portanto, uma das tarefas.contemporâneas da
História é o ensinar e o permitir a construção de maneiras de olhar o mundo,
de perceber o social, de entendera temporalidade e a vida humana. A História
nos: ensina a desnaturalizar, ter um olhar perspectivo, atentar para as diferenças
e relativizar nossos valores e pontos de vista.
A História, desde a Antiguidade, desempenhou o papelque é comum a todos
aqueles saberes que, na modernidade, foram agrupados sob o nome de. Ciências
Humanas, que é o de formar subjetividades; o de produzir a própria humanidade
daqueles que são definidos como humanos. A História, quando se torna matéria
escolar, explicita esse papel de formadora de sujeitos, esse papel de construtora
de formas de ver, de sentir, de pensar, de valorar, de seposicionarno mundo.
Embora tenda a ser desqualificada socialmente, porque seria um. saber queseria
desprovido de uma utilidade imediata, não seria uma tecnologia a serviço da
fabricação de artefatos, a História possui a utilidade de produzir o artefatomais
complexo e o artefatomais importante da vida social: o próprio serdo humano, a
subjetividade dos homens. Quando, muitas vezes, somos interpelados com certo
ar. de despre:fo sobre para que serve o que ensinamos e o que escrevemos, devemos
responder que a História serve paraproduzir subjetividades humanas; serve-para
humanizar, serve para construir e edificar pessoas, servepara lapidar e esmerilhar
espíritos, serve para fazer de um animal um erudito,um sábio, um ser não apenas
formado mas informado; de um ser sensível fazer um ser sensibilizado. Fabricar
pessoas no mundo. de hoje, como em tantas outras épocas, não é tarefadas mais
fáceis. Mas que tipo de pessoas a História se propõe a formar hoje? Que modelos
de subjetividade são veiculados ou devem ser veiculados, deforma majoritária,
pela historiografia e pelo ensino da História?
A. História implica o aprendizado da alteridade, o aprendizado da
possibilidade da existência de outras formas de sermos humanos; o aprendizado
daviabilidade de outras maneiras de se comportar, da existência de outrosvalores,
de outras ideias, de outros costumes que não aqueles dos homens e mulheres
contemporâneos. A História permite o aprendizado da tolerância para com o
diferente, com o estranho, com o distinto, com o distante, com o estrangeiro.
Para isso, a historiografia contemporânea aprendeu com a antropologia e com a
etnografia a recusar a concepção iluminista de naturezahumana: uma natureza
universal, tendente a se desenvolver na direçãode umtelos predefinido, em que
dadas formas de existência seriam tomadas como formas inferiores daquela que
seria a forma· superior e paradigmática.
O diálogo da História com aantropologia, com a etnografia e coma
psicanálise levou não somente a que se desse importância e destaque à própria
, TECELAO.DOS.TEMPOS
diversidadedasformasdevida,dostipos deorganizaçãosocial,dosvalores,dos
costumes, doshábitos,das práticas e dos símbolosqueinformarama vida social
dassociedadesdo passado, notadamente entre:associedadesque pretensamente
viveriamnuma pré-história em J;elaçãoiàqueles;,;que ;viveriam .na história,.-mas
• tàm:bêrrfàidiversidade.tonstitúinte das.sociedades.eculturas,donosso.. presente,
. donossotempo. AHistória nosensina aprestaratenção ao Outro, _a _medir
nossa distância e nossa diferença emrelaçãoaele, não para recusá-lasou para
construiruma hierarquia entre elas, mas paraaceitá-las emsua distância e
diferença mesma. Foi preciso que a historiografiHompessecom o historicismo
esuabusca de descobrir sempre o mesmo rosto'<lohum;mo, em qualquer época
e· lugàr; .projetando sobre o passado• a ,definição :do'humano ou- o, rosto ·que era
dito éon;io himiano: no:presente;-para;· consfatada,a:: diferença, pro-curar anulá- •
la,repondo asemelhança, fazendodo personagem do passado umde nós; ,pelo
a
menos promessa de ser nofuturoumdenós ou defini-lo como um serainda
emdéfcit, emdefidênciaem relação ao estágio decivilização.que o presente e a
.· sociedade e acultura da qualfalavao historiadonrepresentaria, para,diagnosticar
· 'que:qs.personi!gensdopassadcràindaviviam·emestado·deselvageria, debarbárie,
ainda viviamna menoridade,aindaviviamnaalienação, naiffconsciência, eram
:retardatárioi,·.atrasados;·tradicionais;conservadoresranormais,•anômicos,·etc.
A História nos permite acompanhar a,·.genealogia.·do humano em ·:sua
· diversidadeenão emsua identidade, nos permite fazer a arqueologiadas:práticas,
:.'das.relações e·dossâberes·que produziram,diferentesformas de se·ver,de.se dizer .
·e,de serhumano.AHistória que, -durante. muito. tempo,· esteve :comprometida
ocom princípiodaidentidade,que seapoiava eme apoiava discursos quese
preocupavam em traçar-uma.identidadeientre•o;passado e. o presente; entre:o
serdo passado eum serdo .presente, seja :entre O' ser: da cidade, do-Estado; :da
• ,nação; db_ povo)'da ·raça;mos dias de hoje tem ·o ·compromisso- em identificar,
descrever, compreender.e explicar a alteridade,não para desfazê-la, para :anulá-
la, mas para prodarnar·o direito de sua existência eo necessário respeito que
aeladevemos devotar. AHistória, - como formadora-de subjetividades, é um
• - saber: e urna· prática•faseparável -de discussões.:éticas.;e,,políticas: O ensino e.a
• escr;ta dá Histótia:im,plicam sempre .act:omada·de posição política ea defesa de
valores,mesmoquando não se.está atento,p:ara:estes·aspectos; A História que se
escreviae .se.,ensinava emnome•da·•identidadetda,corrstrução.dojdêntico;· que
fazia adiferença retornarà semelhança,tal como;requerido pelo:p.ensamento
platónico e hegeliano,pareceterhoje afunçãosocialdenosensinara conviver
com a diversidade,comamultiplicidade,arespeitaraalteridade, a diferença
queé a condição mesmadomundoemque vivemos.
. ,)'Sea·liistoriqgráfütbrasileira;•defonnâhastantepeculiar;·pensou a identidade
.nacionaL.airavés da constatação,. das diferenças internas que dilaceravam a
• . ,-n;:tçãor-seo qiscursoctlá:ideritídade,rto,\BrasilJez·da-mistura; dà;mestiçagem, um
princípiode identidadeque, portanto, jánasce,emgrandemedida, ancoradanum
DURVAL MUNIZ DE ALBUQUERQUE JÚNIOR 257
- ·:gat~tiâ:s.êpnriâaeJC.POSição.a9perigodeinventar.o;novo/deinventaro passado
apartirde novospressupostos, abordando-o a partir de pontos de vistaainda
• ríão Ccm'sâgtá'dMejim,.danão~aceitos;p1enamente.pilospares;_'ifalve2:, e isto.pode
.·ser.iri,~yitãvel·.paraaqueles::que·.praticam-um·ofício como_ onosso, vocês possam
se sentirprofissionais quecarregampara oresto,da vi<la; como os poetas,certo
gostopornadas. Pensem muitas vezes que aquilo :quecfazem .poucodnteressa
paraos outros,pouca Utilidade tem:_para,p:socia1; Mas, nessashoras em que as
incertezasassaltam,bastapensar no enorme prazer subjetivoque essa prática
'lhes·dá, "e:~$tarãojustificados,:Caso:tião:sintamesse praz.er,do .e no ofício; ·es.tão
apenasnolugarerrado, nãoéo ofício .que deve.mudair,,mas,vocês_.que devem
rrmdarpeiofíi;:i1:>:'-Não':adianta,;nessas:-horas;:,estar:colocand0.defoito,no ofício,
vocês é que não:foram.feitos:.·para·de,ou-por:ele,ou-.:quem .,sabe;:foram·feitos
defeituosamente.
Capítulo 14
De lagarta a borboleta:possíveis
contribuições do pensamento de Michel
Foucault para a pesquisano campo do
ensino- da história.
está dada de saída: a escola disciplina, a escola produz corpos dóceis; a escola
é panóptica, a escolaadestra. Não importam os aspectos que se. estude - o
currículo, as pedagogias docentes, o, material. didático, a relação· da escolacom
o Estado, alegislação escolar, as reformas do ensino, as políticaseducacionais,
a relação professor-aluno, o planejamento escolar, a orientação educacional,
as, práticas culturais e de lazer nas escolas, a violência escolar, o. ensino de
conteúdos específicos como a educação física ou o ensino religioso, as questões
de gênero etc -a imagem que se constrói da escola é muito próxima daquela que
o marxismo construiu, notadamente o marxismo althusseriano: a escola como
aparelho ideológico do Estado, como lugar onde se reproduz adominação, a
exclusão, como lugar de saberes. que reproduz poderes; lugar da produçãode
uma subjetividade neoliberal, espaço de adoçãode políticas neoliberais, espaço
de produção dos corpos disciplinados. Eu me pergunto sempre, ao participar
de-bancas de julgamento de teses e dissertações na área daEducação, na área
do ensino, como aquele mestrando ou doutorando,como aquela professora vai
retornar à escolae vai exercera profissão docente depois de praticamente concluir
que a escola não é o melhor lugar para se estar, que a escola não é umlugar em
que se possa criar algo de novo? Com que estímulo alguém vai para a sala de
aula· sabendo que ali é um dispositivo de; reprodução da ordem? Comoalguém
vai investir sua existência numa tarefaque parece inglória, amplificando, ainda
mais, o martírio pelos baixos salários, pelas infindáveis jornadas de trabalho,
pelo controle do patrão ou doEstado?
Mas esse rosto de Michel Foucault éapenasumdos muitos:que ele construiu
para si, na vida e no pensamento. Se. Foucault foi um autor significativo. para
a filosofia· contemporânea por historicizar os seus conceitos, por ir buscar. no
arquivo suas matérias de reflexão, como tratar Foucault e sua obra de maneira
a-histórica? Como não perceber que o autor de Vigiar e punir não é o mesmo
autor da História da sexualidade II: o uso dosprazeres? Comotomar os conceitos
elaborados por Foucault e dar a eles validade universal, se eles estavam enraizados
historicamente em um dado momento, não apenas da história europeia; mas
dahistória do próprio pensamento e da vida de seu autor? Como se pode
transformar um filósofo antissistemático num sistema de pensamento fechado e
abstrato, com foros de metodologia científica? Devemos desconfiar mesmo das
continuidades que o próprio Foucault diz encontrar emseu percurso, quando
fala de suaobra retrospectivamente, em dadas entrevistas, pois dependendo do
momento em quefala, da obra queacaba de lançar e quer promover,dependendo
de quem o entrevista e em que situação, esses elementos de continuidade se
modificam: quando lança Vigiar e punir, a relação do homem com o poder teria
sido a constante de suasobras; quandolança História da sexualidade I: a vontade
de saber,teria sido a questão do como constituir-se em sujeito que sempre o
teria preocupado; já quando aparece os dois últimos volumes-da História da
sexualidade, teriam sido os modos de relacionar o si consigo mesmo, a produção
• 266 TECE!oÃO DOS TEMPOS
um
de sujeitoéticoque atravessariatoda asuaobra. Como ele próprioalerta,
poucoantesda passagemquetranscreviemepígrafe,num suposto-diálogo com
um:çrfüçQ·,,..,um'diálogo,,,.como era comum em-seus textos, atravessado·pela
· • ironia•2, elenuncapermaneciao:mesmo, por fasopouco lhe interessava o. quej á
havia escrito, não possuía nenhumcompromisso.com wpróprios conceitos que
formulava,os abandonava, os recusava,osreformulava. Ele estavainteressado
em deslocar-se em relação ao. que.já fize1:-a;c da imagem quejáJaziam dele e de
seu:pens;unento. Ele estava sempre interessado noque ia Jazer, não.no.· que
frzera,,·ele:b:uscava.sempre,ir·para longe:de si'rnesmo, produzir novos .rostos.
Ele tinha piazer-:emxontrariar, e em contradizer-se, ele .adorava surpreender,
: . tâ,usar;iilçômodp;.não·se,deixaraprisionar pelo nomeque jáfizera, pelostemas
que játratara.Tornar Foucault um autorsistemático eacadémico étraí-lo, é
tornar-se o çríticn.chato, quelhe .pergunta, inquisidor, notexto brincalhão de A
., arqueologia do saber- que muitostransformam numtexto sério ·e;aborrecido,
... numa "caixade ferramentas": .
• • ,. .::..:.você não,está.seguro·do,que ·diz? Vai novamente mudar,- deslocare se em
relaçãoàs questões quelhesão colocadas,dizer queas objeções não apontam
realmente parao lugar,emquevocê se pronuncia? Você se preparapara dizer,
ainda uma vez,que você.:nuncafoi aquilo que.em você se.critica? Voêê já
arranjaasaída que lhepermitirá; em seupróximff"livro, ressurgir .em outro
lugar e..zombar, como o- faz agora: não, não, ·eu_ hão estou onde você me
espreita,mas aqui de onde o observo-rindo.
- •áµtor~!$;qµeeti,1}i:,questão::de:citaracimatfoLainda-_produtodatroca deideias e
·,.rnesIUq'clp;â.nt~gonfsmos:comimpor.tantespensadoresde•seutempo;com-quem
.foão;d~ixpu,de-iprendet:iSartre;'Althusser;··LacanrDerrida, Deleuze,· Guattari,-
Lyotard, Bourdieu,Virílio etc; eles configuramseu próprio pensamento,sem
que ele precise osestarcitandotoda hora.
---~tNesse,,s:êntido,háalgun~pro.cedimentosque podemosaprender;comelena
hora de se fazer pesqtiisá;indusive,.no.campodo,ensino:da:hístória;-Ao-:inv:és de
,paitirmqs,:deumàdadaJmagem·da.eséola,umaimªgem:datadahistoricamente,
• uma,.irn,ag~rn,11ascjda·:do,estudo-deuma/dada;,,so.ckdade, .presente-emalguns
de seus escritos,ir àescola, tomá-la comoumarquivo, comoum espaço onde
resistênciasepráticasdecriação podemestaracontecendo. Afilosofia de Michel
.-_ \EóiiêaÚlté,un.ja::filosofia.dapráticae'darelação. .Todapesquisa; para-ele, começava
0
falas, dossinais, dos ícones, dos signos a-sigriifiqmtes, a-retórica dos discursos e
a retóricados gestos. Diferentes e·clistintas,semióticas se articulam e produzem
oinesperado,fazememergiro não -previsto.
MichelFoucault foium homem e um pensador das .metamorfoses,
um homem quenão gostava de seu próprio corpo,de seu próprio rosto, um
e
homem de calvalisa reluzente; de óculos de 'aros grossos, de gestos largos,
devoz metálica eenvolvente,ohomem ·das blusas de.gola rolê, do alisar pelos
imaginários nacareca brilhante,do.:tiso.largo, ·dos,olhos doces· e ternos, ,um
homossexual que tinha,inicialmente, enorme vergonha de•-seus desejos, que
tentoualgumas vezes o suicídio,:que, esteve muito perto de enlouquecer,. um
:. ,p.rófessc,>i\encàntador;capaz dehoras de falaclaraeatraente, um polemistaferoz,
• um homem de coragem diante~dequalquerforçabruta, umhomem irreverente.
Michel Foucault, talvez ele.concordasse com essa imagem, foi uma lagarta que
se metamorfoseou em borboleta,não parando nunca de devir outro, um ser
esvoaçante, de muitas e furta-:-cores, mimetizando-se em cada ambiente que
chegava, interessadoemtodasas coisas.que apareciam à sua frente, borboleteando ·
entre umtemae outro, entre um tempo é outro,.entre uma disciplina e outra,
. entrêum rosto.e.outro. Michel Foue::ault, aquelafagartadepoucopelo do início da
vida,enrólada:.sobresi mesma, arrastandossenumamelancoliasem fim, tornou-
• seumadasmais belas borboletas do.-pensamento. do séculó XX. Foi graças ao
-pensamento,que.pôdeJevantar voos cada vezmais corajosos, foigraças ao poder
metamorfoseante de seu ensino e de sua pesquisa.que.se tornou uma mariposa
noturna, corajosamente afrontando a ameaça de todas as Luzes, o sol negro da
linguagem,como o definiuMkhel de Certeaur:por uma figura de linguagem de
que tantogostava: o oximoro,por trazer a contradição internalizada. Por fim,
. , ele se tornou cinzas, incineradopor seuprópriofogo, pelo çiesejo de alturas, de
novos ares, de experimentações do indizível e do invisível.
• \Masele,continua, ainda; a,oferecet-às suas pintalgadas asas para quemquiser,
com ''ele;::alçar voós,::desenhar nos ·ares,novas:figurações de si· e .dos outros; Ele
'llOs ensinou :caminhos, -se de ensino é do que se trata, mas-nos ensinou; acima
. detudo, aleveza do.pensamento/a beleza da palavra, o sopro da· criatividade.
Borboleta,ele nunca quis ser seguido.ou copiado,.ele quis ensinar a voar, com
asprópriasasas.Ele ensinouque perisar,pode ser leve; desde quese façapor si
mesmo, sem amarraçõesa sistemas e conceitos prontos.Elequerapenas,como
uma borboleta, polinizarosnossospensamentos eos nossos sentime_ntos,.nos
ensinar a olharde umoutromodo, fazeras nossasantenasse voltarempara outras
• direções/e pousarem em-muitos-Jugares distmtos,desde que exalem aromas de
vida e nãoocheirode mortedofascismo, dopoder soberanoeda ordem. Que
sejamosborboletase não lagartas, arrastando-nosporterritóriosfixos egastos,
na hora deensinarepesquisarhistória. Parafraseando opoeta:voar épreciso,
viver nãoépreciso!
7
• Os textos ·aqui reunidos .formam uma constelação
simultaneamenteerudita e .pôlêmica, ferina e-generosa; que
podeserlidode trás para frente, ·de frente para trás, com
pés calcados no presente, com olhos .no passado ou como
projeto de uma história futura. Cada capítulo é um,convite
à ruptura com a tradição que oprime o cérebro dos vivos, é
uma incitação à vigíliaque se sobrepõe ao sono dogmático,
- -- é um·thamado que desafia a acomodação acadêmica. O:livro
é tanto um descaminhocomouma travessia, tanto,.para o
-iniciante na matéria como, para o experiente pesquisador e/
ou professor. ComO tecelão dos tempos nos confortamos e
nos deslocamos, -sentimos ;prazer e:identificação, medo ou
repulsa, jamais. indiferença . Por quê? Porque Durval não é
apenas,um intér:prete do nordeste, do Brasil ou da. história,
ele éun1:intérprete·davida.
Temístocles César
9 7 l, 9 9 1 6 f, 'f\