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PESQUISA HISTÓRICA EM PERSPECTIVA

VOLUME I

Organização:
Maria Larisse Elias da Silva
Ana Elizabete Moreira de Farias
Tatiana de Carvalho Castro

Amplla Editora
Campina Grande, novembro de 2023
2023 - Amplla Editora
Copyright da Edição © Amplla Editora
Copyright do Texto © Os autores
Editor Chefe: Leonardo Pereira Tavares
Design da Capa: Amplla Editora
Diagramação: Higor Brito
Revisão: Os autores

Pesquisa histórica em perspectiva – Volume I está licenciado sob CC BY-NC 4.0.


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2023
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FICHA CATALOGRÁFICA A SER INSERIDA

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2023
PREFÁCIO
SUMÁRIO
CAPÍTULO I - O PROCESSO CRIMINAL DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX
BRASILEIRO COMO (TAMBÉM) UM “TEATRO DE APARÊNCIAS” ................................. 9
CAPÍTULO II - A “PALLIDEZ DA MORTE ANDAVA IMPRESSA EM TODOS OS
SEMBLANTES”: EMOÇÕES FÚNEBRES DURANTE A CRISE EPIDÊMICA DA
CÓLERA-MORBO NA PARAHYBA DO NORTE (1855 - 1856) ........................................... 26
CAPÍTULO III - O CEARÁ DAS SECAS E DAS ÁGUAS: DISCURSOS
ANTAGÔNICOS E REALIDADES ADVERSAS PERANTE O ADVENTO DAS
FERROVIAS ENTRE 1870 E 1910 ........................................................................................... 40
CAPÍTULO IV - PESTE, FOME E MISÉRIA: DOENÇAS NA PARAHYBA DO NORTE
DURANTE A SECA DE 1877-1879 .......................................................................................... 55
CAPÍTULO V - O “FANTASMA” DO “HEROÍSMO”: ESTRATOS
HISTORIOGRÁFICOS PARA ALÉM DA HISTÓRIA “OFICIAL” DE CAJAZEIRAS-PB .. 72
CAPÍTULO VI - O INSTAGRAM COMO FONTE HISTÓRICA: ANALISANDO O
DISPOSITIVO DA MATERNIDADE EM PERFIS DE MULHERES – MÃES...................... 88
CAPÍTULO VII - ENTRE O CLERO E O “POVO”: LUSTOSA DA COSTA E UMA
NARRATIVA DOS “ILUSTRES” DE SOBRAL..................................................................... 102
CAPÍTULO VIII - COMO SE LÊ E COMO SE ESCREVE PESQUISA HISTÓRICA
SOBRE O ESPIRITISMO NO BRASIL .................................................................................. 114
CAPÍTULO IX - UMA EXPERIÊNCIA MODERNA: A ORIGEM DA LEITURA
POPULAR DE CINEMA......................................................................................................... 124
CAPÍTULO I
O PROCESSO CRIMINAL DA SEGUNDA METADE DO
SÉCULO XIX BRASILEIRO COMO (TAMBÉM) UM
“TEATRO DE APARÊNCIAS”
THE CRIMINAL CASES IN THE SECOND HALF OF THE BRAZILIAN 19TH
CENTURY AS (ALSO) A “THEATER OF APPEARANCES”
DOI:

Elimar Cosme do Espírito Santo*

* Bacharel e mestre em História pela Universidade Federal de São João del-Rei – UFSJ – e atualmente doutorando
em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF. E-mail: elimar.csanto@gmail.com. Orcid:
https://orcid.org/0000-0002-2773-2311.

RESUMO ABSTRACT
Os processos criminais são, grosso modo, um The criminal cases are a document in which two
documento no qual duas partes – a acusação e a parties – the prosecution and the defense – try to
defesa – tentam impor uma versão de um fato impose a version of a criminal fact considered as
criminoso considerado como tal pelo Estado, such by the State, permeating testimonies,
perpassando testemunhos, julgamentos, etc. A judgments, etc. The definition of crime and even the
definição de crime e mesmo o alcance do recurso à scope of recourse to justice as an adequate way of
justiça como forma adequada de resolver disputas resolving disputes vary according to time and
variam conforme a época e sociedade. Por isso, society. Therefore, we must take into account the
devemos levar em conta os percursos de paths of modernization and expansion of the legal
modernizações e expansões da máquina jurídica, machine, as well as knowing the criminal and
bem como conhecer os códigos criminais e procedural codes of each era, which allows us to
processuais de cada época, o que permite apreender apprehend a little of the definitions of crimes and
um pouco das definições de crimes e punições punishments according to the space-time cut, as well
conforme o recorte espaço-temporal, assim como da as of the process structure itself. Among some of the
própria estrutura do processo. Entre algumas das research possibilities of criminal sources is the
potencialidades de pesquisa das fontes criminais investigation of official discourses of a society or the
está a investigação dos discursos oficiais de uma functioning of justice, as well as the social
sociedade ou do funcionamento da justiça, assim performance of different groups. Based on these
como da atuação social de diversos grupos. A partir questions, this chapter was written, aimed at
destas questões foi escrito o presente capítulo, highlighting the potential of criminal cases as
voltado para o objetivo de evidenciar as historical sources and also carrying out some case
potencialidades dos processos criminais enquanto studies that allow us to see these elements in a more
fontes históricas e, também, realizar alguns estudos practical way.
de caso que nos permitam ver de forma mais prática
estes elementos. Keywords: Criminal cases; History; Methodology.

Palavras-chave: Processos criminais; História;


Metodologia.

9
1. INTRODUÇÃO
As primeiras reflexões acerca deste assunto foram feitas ainda durante minha graduação
em História1, quando produzi uma primeira versão deste texto para ser entregue como trabalho
final de uma disciplina e também para apresentar em um evento acadêmico. Até então, eu já
tinha feito alguns estágios e comunicações orais de eventos usando a documentação criminal, a
qual gostava muito de ler e pesquisar academicamente, mas após certa experiência empírica
tinha passado a ambicionar um conhecimento também teórico acerca da mesma. O que eram,
para quê serviam e por quem/para quê foram produzidas? Quais os procedimentos e debates
metodológicos? Lembro que, munido deste fascínio e curiosidade, iniciei as leituras e reflexões
teórico-metodológicas a respeito, mas logo fiquei preocupado em não dar conta da
complexidade do debate e das questões nele colocadas. Contudo, hoje já no doutorado possuo
um pouco mais de maturidade acadêmica para fazer não só um balanço acerca dos debates
metodológicos desta fonte, mas tentar contribuir um pouco também com algum avanço e/ou
ajuste.
Os objetivos principais deste breve texto são: 1) destacar rapidamente o que são
consideradas como fontes criminais para o labor historiográfico, enfocando aquelas
correspondentes ao recorte de 1830 a 1930; 2) tecer reflexões acerca dos usos metodológicos
das mesmas; 3) alinhavar estas reflexões com breves estudos de caso que exemplifiquem os
pontos defendidos. Sendo usado parte dos estudos de caso feitos na minha dissertação de
mestrado (SANTO, 2023), na qual analisei os processos criminais de Formiga/MG
correspondentes ao recorte temporal de 1841 a 1871.

2. PRIMEIRO PASSO: O QUE SÃO AS TAIS FONTES CRIMINAIS


O uso do plural no título da seção não foi por acaso. Isso porque, apesar de ser mais
comum usarmos a definição mais genérica de “processos criminais”, “processos-crime” e coisa
do tipo, as fontes criminais se dividem em diversos procedimentos feitos em delegacias de
polícia, tribunais e etc. Assim, antes da década de 1830 tínhamos, por exemplo, os livros de
querela, as devassas.2 Outra fonte muito usada para esta época e também para as do Império e
da Primeira República é os livros de rol de culpados. Havendo também os processos criminais
propriamente ditos, entre outros procedimentos do tipo. Para o presente capítulo serão estes

1 Feita entre 2015 e 2019 na Universidade Federal de São João del-Rei – UFSJ.
2No livro de Ivan Vellasco (2004) o autor, que trabalhou com o recorte temporal do século XIX, faz uma detalhada
descrição acerca das tipologias das fontes criminais.

10
últimos, geralmente mais numerosos nos arquivos históricos do período selecionado e mais
visados por historiadores, o foco da reflexão.
Quanto às definições, primeiro vejamos um pouco do que que são os atos que em tese
dão origem a estes documentos: os crimes e as criminalidades, sendo citados dois textos que nos
ajudarão a começar nossa reflexão. No primeiro a ser citado, a historiadora Keila Grinberg
destaca que o crime é o ato proibido cujas definições e punições são previstas no Direito Penal
de uma época (GRINBERG, 2012, p. 122).3 Boris Fausto (1984, p. 9), por sua vez, trabalha
também com esta noção, vendo o crime como um fato individual e comentando também sobre
a criminalidade, entendida como “o fenômeno social na sua dimensão mais ampla”.
Por outro lado, a primeira autora citada destaca que os processos criminais são “relativos
a atos criminosos considerados como tais pelo Estado, cujas definições variaram ao longo do
tempo”, e seu “percurso nas instituições policiais e judiciárias” (GRINBERG, 2012, p. 123-126).4
Fausto (1984, p. 21), por sua vez, também nos ensina que o processo-crime é uma fonte oficial
originada na justiça a partir de um crime, marcada pela atuação de personagens (acusação,
defesa, funcionários jurídicos) cuja atuação girava em torno do objetivo de produzir uma versão
final, verdadeira, do ato, que culminasse em condenações ou absolvições das partes envolvidas.

3. O TEATRO, AS APARÊNCIAS E ALGUNS EXPERIMENTOS DE ANÁLISE


De forma resumida, um processo criminal era, então, um procedimento inicializado após
um evento considerado criminoso, envolvendo a apuração do que ocorreu, ouvindo
testemunhas, acusados e vítimas, promovendo julgamentos. Devido a este fato, a construção de
um documento do tipo reunia uma série de fatores que devem tanto ser considerados pelos
historiadores como inclusive problematizados também. Tais fatores influenciavam não apenas
as decisões e os julgamentos, mas inclusive o que era ou não falado pelas partes (acusação,
defesa, testemunhas, autoridades, etc.).
Primeiro vejamos um pouco de onde vinham tais questões. O processo criminal dos
períodos imperial e da Primeira República5 reúnem em sua construção os interesses de a)
acusação e defesa que, por vezes, distorciam a realidade social a fim de obterem vitória face ao

3Como a autora também destaca em seu texto, o historiador que fizer análises a partir das fontes criminais devem
consultar os códigos penais e processuais da época analisada, para assim ter ideia do que era crime durante a
mesma (Grinberg, 2012, p. 124).
4 Sobre o percurso de um crime nas esferas da polícia e na justiça, ver análise de Carlos Ribeiro (1995).
5A seleção deste recorte visa não afirmar que os autos criminais desta época são únicos, mas sim fazer um recorte
que situe melhor no tempo a reflexão e, assim, evite uma discussão genérica demais.

11
oponente; b) a esfera da polícia e a da justiça, que podiam ser usadas com fins de repressão e
dominação social, mas também podiam ser apropriadas e usadas pelas populações como forma
de atacar inimigos ou obter vantagens pessoais; c) testemunhas que, por vezes, podiam ficar
temerosas quando se viam diante de interrogadores e, assim, tentarem dizer o que achavam
que deveriam, para não se comprometerem. Assim como podiam exagerar detalhes do
ocorrido; d) os objetivos de dominação por parte da justiça e Estado brasileiro da época.6
Antes de mais nada, é importante reforçar que não existem fontes ideais ou sem lacunas.
Os processos criminais as possuem e isso também ocorre com todas as outras fontes
historiográficas. No caso dos primeiros, vale também ressaltar que o que o presente texto
objetiva não é uma preocupação com verdades absolutas7, o que Sidney Chalhoub e explica
muito bem que não deve ser o foco.8 Assim como não é propor que inventemos histórias a partir
das fontes. Mas sim explorarmos de forma explícita e não apenas pontual as possibilidades
analíticas derivadas do fato de que tanto as populações como os funcionários jurídicos podiam
ter sua atuação na arena judicial afetada por seus interesses, medos ou pressões. Criando,
assim, distorções e histórias fictícias.9

6 Até porque, como nos ensina Ivan Vellasco (2004), naquele momento o Estado Brasileiro estava se construindo
e, com isso, construindo as formas de a Ordem que tentavam impor conseguir negociar com as populações.
7Sobre a questão da “verdade”, ver os capítulos “A observação histórica” e “A crítica” em na obra de Marc Bloch.
Em momento-chave, Bloch (2001, p. 78) mostra como mesmo nos mais voluntários testemunhos não se enfoca
mais o que o texto objetivava mostrar. Mas sim vale entremear em seus conteúdos e perceber os dados adicionais
que não foram planejados expor. Ou seja, mais que analisar a vida de santos medievais, investigar a partir de tais
relatos “as maneiras de viver ou de pensar particulares às épocas em que foram escritas”. O que deixa o historiador
mais livre apesar de ainda sim só conhecer a história com base em seus vestígios.
8Sidney Chalhoub (2012, p. 36-41) assinala que a análise de processos criminais não deve ser feita com fim de
desvendar exatamente o que se passou, o que não é possível pelo fato de esta fonte ter versões construídas sobre
o fato originário, interessadas em impor uma verdade. Assim, deve-se analisar o conteúdo usado na construção
das versões, das entrelinhas e supostas mentiras, das contradições de uma versão confrontada com a outra. O que
permite penetrar no contexto cotidiano e de lutas sociais de uma dada sociedade e época.
9 Mariza Corrêa (1983, p. -26, 40-41, 301-306), em livro que analisa as “representações jurídicas de papéis sexuais”

por meio dos processos de homicídio entre homens e mulheres tramitados entre 1952 e 1972 em Campinas/SP,
rechaça o uso das fontes criminais para análises sociais pelo fato de vê-las como muito distorcidas pelos
manipuladores técnicos (advogados, promotores e juízes). Por isso, a autora enfatiza como os autos criminais são
uma fábula construída a partir das versões do fato original, o qual é irrecuperável. Sendo que, devido às distorções
produzidas pelos funcionários jurídicos, as relações concretas que antes emaranhavam-se em tal fato estavam
perdidas. Sendo que tal perda ocorria porque a construção dos autos do processo simplifica e despolitiza o fato
originário, retirando dele as situações complexas e ambíguas ocorridas no mundo social. Tudo isso para no final
do processo haver apenas duas versões: a acusação e a defesa. O presente capítulo segue a perspectiva de
historiadores como Sidney Chalhoub (2012) e Boris Fausto (1984), que concordam com parte dos postulados de
Corrêa, mas assinalam que os autos criminais são sim úteis para uma análise não apenas dos discursos e
funcionamento da justiça, mas também da sociedade e indivíduos que os produziram. Até porque, ainda assim as
perspectivas de Mariza Corrêa são de grande importância principalmente por demonstrar como na arena judicial
ocorriam pressões e conflitos de versões que influíam diretamente na construção dos autos.

12
Ao considerarmos isso como pressuposto básico da análise, nossa reflexão se torna mais
matizada ao passarmos a considerar, para além dos elementos sociais que se pode extrair da
fonte, as questões de quais interesses ou pressões poderiam (ou não) atuar no cotidiano
judiciário local ou mesmo no decorrer de uma única causa criminal. Ou seja, como as pessoas
atuavam nesta espécie de teatro, tentando aparentar pertencimento a valores socialmente tidos
como corretos ou mesmo tentando reforçar que de fato viviam tais valores em seus cotidianos.
Assim como, por vezes, se apropriando destas representações10 em benefício próprio. Ou seja,
o historiador não deve se preocupar em ser um detetive que atesta a veracidade ou mentira de
uma versão ou detalhe, mas analisar estes elementos e versões em detalhes de forma a
descortinar as possibilidades ocorridas e fatores diversos a elas ligados.11
Prosseguindo com a discussão, convém comentar melhor sobre o “teatro de aparências”,
que se liga à questão metodológica das possibilidades mencionada anteriormente. É importante
trazermos para a análise a influência, pressão e tensão entre diversos elementos: sociais,
econômicos, políticos, culturais, entre outros. Mas também as contradições, imprevistos, não-
automatismos, táticas e iniciativas dos agentes históricos. Daí, inclusive, a importância de
considerarmos os dados demográficos, políticos e administrativos, culturais (modelos de
conduta, etc.), econômicos. Dados, os quais, são indissociáveis entre si.
Além disso, devemos lembrar que nem tudo é relativo no que se refere às versões do fato
originário (o crime), havendo certezas a se extrair dos autos. Contudo, é preciso nos atentarmos
para as pressões citadas; os jogos de desejos, dissimulações e medos; as manipulações dos
grupos que se pretendiam dominantes expressos por meio dos agentes judiciários e da
estrutura dos processos criminais e das leis. Assim, deve-se problematizar, cruzar histórias e
versões, como nos ensina Chalhoub (2012).
Façamos alguns breves exercícios analíticos envolvendo uma personagem em
específico12: Ana Monteira, vulgo Aninha Sem Beiço. Em outubro de 1843, Umbelina Rosa da

10A menção às representações remete aos conceitos debatidos por Roger Chartier (2002a e 2002b) acerca das
representações, apropriações e lutas de representações. O uso desta tríade conceitual possibilita a análise das
representações que alguns dos personagens atuantes na arena judicial tinham de si próprios, dos demais e
inclusive como viam e se relacionavam com os modelos de conduta, com o Estado, a justiça e os agentes de ambos.
Assim como a forma como os dois últimos viam e se relacionavam com as populações locais. Mais que isso, sendo
possível detectar como ocorriam as relações entre tais representações, o que perpassava as apropriações e lutas
realizadas entre elas.
11 Como nos ensina Sidney Chalhoub (2012).
12 Exercícios realizados em minha dissertação de mestrado (Santo, 2023).

13
Conceição13 peticionou informando que “estando mansa e pacífica em sua casa, acontece porém
que Ana Monteira14, por antonomásia a Sem Beiço, no dia de ontem, 24 [de outubro de 1843],
pelas quatro horas mais ou menos entrou de poder absoluta em sua casa”, bem como “dando-
lhe facadas com um ferro que mostrou ser canivete e somente lhe feriu em o braço esquerdo,
mas que amostra os sinais na face esquerda e no pescoço quase na artéria e outra no peito”,
estando este ferimento “no mesmo lado”, tendo a acusada deixado para trás “um lenço e um
rosário”. Disse mais que a acusada costumava ser revultosa [sic] como a vizinhança sabia, tendo
assinado termos (provavelmente de bem viver)15 e não cumprido.16
O corpo de delito, feito no dia 26, corroborou haver ferimentos superficiais17 e em
seguida a acusada foi presa em flagrante delito.18 A primeira testemunha19 disse que, estando
em casa da ofendida, “viu entrar a ré pela porta da queixosa dizendo eu bem disse que você me
havia de pagar” e que a acusada vinha “trazendo na mão um ferro que parecia canivete ou ferro
de faca e nessa ocasião ela testemunha saiu para fora gritando que acudissem a queixosa [...]”.
Em relação a este último ponto, chama atenção como podia se tratar de um indício de
convivência em vizinhança, na qual os vizinhos dariam apoio uns aos outros. Mas também
vigilância, já que talvez alguns soubessem o que acontecia nas casas uns dos outros.
Entre as testemunhas há mais de uma menção de que havia várias pessoas na casa da
ofendida e lá teria entrado a indiciada para agredi-la. Ou seja, o ajuste de contas proposto por
Ana teria sido às vistas de várias pessoas e não em segredo, e que ela teria calculado que não
haveria problema em ser na frente de todos. A quinta testemunha20, por sua vez, disse saber
que as duas mulheres tinham inimizades e que a acusada tinha o costume de insultar.

13Moradora na Vila Nova da Formiga, não sabendo ler e escrever. Acervo do Fórum de Formiga,
AFF/LABDOC/UFSJ, PC 08-23, fl. 2.
14Crioula, 27 anos, natural da Vila de São Bento de Tamanduá, moradora na Vila Nova da Formiga há 11 anos, vivia
de coser de vez em quando e lavar roupa, casada, não sabia ler e escrever. Ibidem, fl. 1, 7v.
15A este respeito, vide a definição dos “termos de bem viver” presente na obra de Eduardo Martins (2003), os
eram, dizendo de forma resumida, feitos pela justiça imperial com o intuito de punir os indivíduos considerados
desviantes dos bons costumes, incluindo os considerados vadios e desordeiros. Estas palavras nos ajudam a
entender um pouco melhor o que era a tal justiça, e quais eram seus objetivos em relação às populações.
16 AFF/LABDOC/UFSJ, PC 08-23, fl. 2.
17 Ibidem, fl. 3.
18 Ibidem, fl. 3v.
19 Ana Elia das Mercês, parda, casada, 25 anos, natural da Cidade de Sabará, vive de sua agência, aos costumes disse
nada, não sabia ler e escrever. Ibidem, fl. 4v.
20Antônio Alves da Rocha, branco, 42 anos, negociante, casado, natural da Vila de Tamanduá, morador na Vila de
Formiga há pouco tempo, aos costumes disse nada, sabe ler e escrever. Ibidem, fl. 6v-7.

14
Em interrogatório, Ana disse que não morava no Largo do Ferro como a ofendida e,
perguntada “se conhece as pessoas que juraram com ela neste processo”, disse “que conhece
todos há muito tempo” e que “tem inimizade com a queixosa” (AFF/LABDOC/UFSJ, PC 08-23, fl.
7-7v). Inimizade talvez forte a ponto de ir até a vizinhança da queixosa agredi-la. Em seis de
novembro de 1843 a acusada foi condenada à prisão e livramento21, o que foi sustentado pelo
juiz municipal22, mas em sessão do Tribunal do Júri de 11 de abril de 1844 os jurados
responderam que a ré não fez os ferimentos.23 Sendo ela absolvida e a ofendida condenada nas
custas até o lançamento e a municipalidade nas custas acrescidas.24
Comparemos a atuação de Ana Monteira aqui, como indiciada de um crime que teria
cometido contra outra mulher, com outro em que foi testemunha. Assim, será usado o caso em
que Israel José da Costa25 teria ferido Maria Justina, vulgo Formiguinha26, com uma faca de
ponta na Rua dos Quartéis (Vila Nova da Formiga), no dia 5 de agosto de 1848. Segundo a
primeira testemunha27, estando em casa de Ana Monteira, “ouviu ele testemunha a dita Maria
Justina chamar pela dita Ana Sem Beiços, que mora paredes-meia, pedindo que lhe acudisse,
que o Israel estava lhe dando pancadas”, ao que Ana, “de dentro de sua casa, pedindo ao dito
Israel que não fizesse desordem, o qual não atendeu, continuando as mesmas pancadas”. O
depoente informou que, “porque ele [o indiciado] não atendesse ao pedido da dita Aninha, a
mesma pediu a ele testemunha que com ela fosse para acudir a sua vizinha”. É possível
evidenciar como, precisando, a ofendida teria pedido a ajuda da vizinha. O que se conecta com
o outro processo, quando Ana teria agredido Umbelina e uma conhecida gritado pelos vizinhos.
Podemos ver, então, as questões de solidariedade.
Quando analisamos um processo criminal é possível fazermos diversos cruzamentos,
tanto de suas histórias centrais como também entre as próprias versões de uma única história.
Cruzemos, então, as histórias dos dois processos. Primeiro, vislumbrando o que disse a
testemunha do segundo caso, sobre Aninha rogar ao acusado que “não fizesse desordem” e, não

21 Ibidem, fl. 9v.


22 Ibidem, fl. 10.
23 Ibidem, fl. 20.
24 Ibidem, fl. 20v.
25Brasileiro, natural da Vila Nova da Formiga, Vive do ofício de sapateiro e às vezes se ajustava como camarada,
solteiro, 24 anos, sabe ler e escrever. AFF/LABDOC/UFSJ, PC 14-11, fl. 32-34.
26 Não sabia ler e escrever. Ibidem, fl. 46.
27João Francisco Alves, vulgo Vavau, pardo, 27 anos, Vive de andar justo como camarada, natural da Vila de
Tamanduá, residente na Vila Nova da Formiga, aos costumes disse nada, sabe ler e escrever. Ibidem, fl. 3-6v.

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atendida, esforçando-se para salvar a vizinha. Segundo, lembrando como, no outro caso, a
mesma personagem, Ana, teria invadido a casa de um desafeto (ao menos a rixa a ré chegara a
confirmar) para a agredir e a “fazer pagar”.
Feito o cruzamento, vejamos o que dele emergiu. Neste caso, surge aqui uma variável,
não tão provável, na qual as testemunhas podiam estar inventando aquilo para dizer o que
acreditava ser correto de dizer ali na arena judicial. Ou talvez até por não se lembrar o que
Aninha teria dito. Todavia, apesar de esta variável ser menos provável, ainda assim podemos
extrair aspectos importantes dela, já que ela sendo verdade mostraria a existência local desta
questão das solidariedades e conflitos em vizinhança. No caso de ser apenas uma invenção, de
todo modo mostraria como localmente isto era minimamente plausível, mesmo que não tivesse
ocorrido com Ana Monteira, já que esta mentira para ser minimamente aceita precisaria se
ancorar em práticas costumeiras do local. Ou seja, neste caso foi feito um cruzamento de duas
histórias e, selecionando uma variável considerada pouco provável, ainda assim foi possível
fazer novos cruzamentos a partir dela e extrair os elementos comuns.
Voltando ao cruzamento das duas histórias dos dois processos, uma variável mais
provável, e que acaba se ligando à reflexão anterior, é que no local onde estes personagens
viviam fosse comum este tipo de resolução de pendências, mas que não seria sempre. Tanto
que Ana não acharia correto o acusado fazer aquilo com a vizinha dela, com quem muito
provavelmente teria relações próximas e de ajuda mútua, mas ela, Ana, quando achou
necessário, teria adotado esta forma para confrontar e punir uma oponente. Assim como
podemos conjecturar que talvez estes acertos de contas violentos ocorressem inclusive entre
pessoas que eram amigas, não apenas entre inimigos declarados.28
Com isso, a partir deste cruzamento foi possível perceber principalmente que
provavelmente havia esta vida comunitária repleta de embates e até agressões, mas apenas
quando era julgado necessário e justo, vide o exemplo de Ana. Mas também de tentativas de
apaziguamento e ajuda mútua entre os que tinham amizade e convivência. No que a justiça em
expansão29 insistia em se meter, ou era usada para resolução, ou apropriada para consecução

28Um caso nesta foi aberto em maio de 1860 para apuração de uma situação ocorrida na Rua do Sapé, em Formiga.
Segundo a participação do inspetor de quarteirão, ele foi “chamado para conter o dito barulho” ocorrido entre
Carolina Bernardina e Luzia Maria da Conceição. As quais disseram no decorrer do processo, assim como as
testemunhas também disseram, que eram amigas e, por estarem embriagadas, não se lembravam de terem brigado
e causado a desordem. AFF/LABDOC/UFSJ, Processos criminais: CX. 23A-4, fl. 4-4v.
29Ivan Vellasco (2004) analisou em uma de suas obras a construção e expansão do aparato judiciário brasileiro no
pós-Independência destacando, principalmente, as “seduções”, ou seja, as negociações empreendidas por este com
as populações inclusive pobres de forma a atraí-las para participarem e, consequentemente, legitimarem a
estrutura que era construída. Enquanto Vellasco trabalhou com a cidade mineira de São Joao del-Rei entre fins do
séc. XVIII e o ano de 1888, Deivy Carneiro (2019) estendeu um pouco a discussão analisando a também mineira

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de vantagens e vinganças por parte dos personagens, como se verá posteriormente. A quarta
testemunha foi nossa personagem Ana Monteira30, a qual não acrescentou muitos detalhes,
apenas comentando a briga entre Israel e não só Maria Justina, mas em outra ocasião com uma
mulher chamada Maria Júlia. Ao que os vizinhos, incluindo ela, Ana, teriam tentado separar.
Vejamos um cruzamento de versões de um mesmo fato.
No dia 22 de outubro de 1842 o inspetor de quarteirão Francisco Rodrigues de Souza
participou ao “Ilustríssimo Senhor Subdelegado Chefe de Polícia” que, “no fim da Rua do Sabão”,
Vila Nova da Formiga, “assassinaram a Francisco das Chagas, [vulgo] Gago, e se acha[va] já presa
a mulher do mesmo”, por ordem do delegado de polícia, “por ser [a dita mulher] indiciada”.31 A
esposa do ofendido era Luíza Maria da Conceição, acusada de ser mandante do crime. O
executor, por sua vez, teria sido José dos Santos Leão, que confessou o ato, e com o qual a
indiciada teria relações amorosas.
Ambos os réus foram julgados e condenados à pena de morte32, apesar de terem
recorrido à Imperial Clemência e terem o perdão negado pelo Imperador. Leão foi enforcado
em praça pública, enquanto Luíza teve sua execução adiada ao afirmar estar grávida.33 Havendo
grande controvérsia e acusações de a ré estar caçoando da justiça imperial, foram feitos dois
exames e a gravidez confirmada.34 Todavia, devido às dúvidas, foi ordenado que se esperasse
para ver o que aconteceria (caso estivesse grávida mesmo a barriga cresceria).35 Mas, tempos
depois, Luíza teria fugido do cárcere.36

Juiz de Fora entre as décadas de 1850 e 1940, destacando como a justiça seduzia até certo ponto, enquanto
conseguia satisfazer os anseios das populações. Quando isso cessava, ocorrendo no final do período analisado,
havia um rearranjo nas relações entre ela e a população.
30Crioula forra, 33 anos, vive de sua agência, casada, natural da Vila de Tamanduá, residente na Vila Nova da
Formiga há anos, aos costumes disse nada, não sabia ler e escrever. Ibidem, fl. 10v-13. Os outros elementos deste
importante caso serão analisados posteriormente.
31 AFF/LABDOC/UFSJ, Processos criminais: CX. 08-31, fl. 2.
32Sendo esta condenação de pessoas livres algo raro para o local e época, conforme nos mostra Vivian Chieregati
Costa (2020).
33 AFF/LABDOC/UFSJ, Processos criminais: CX. 08-31, s/p.
34 Ibidem.
35 Ibidem.
36 O processo aberto contra José Leão e Luiza terminou sem dar notícia do destino da personagem. Contudo,
Leopoldo Corrêa (1993, p. 108-111), em livro sobre Formiga e as cidades vizinhas, nos trouxe a pista de que Luiza
teria fugido da cadeia após ser constatado que ela tinha forjado a gravidez. E que o juiz municipal que julgou a
causa, Pedro da Costa Fonseca, foi processado por prevaricação em 1847 e, entre as acusações contra ele
proferidas, estaria uma supsota negligência no caso de Luiza. A partir desta pista, fui aos bancos de dados do acervo
criminal de Formiga e, por sorte, consegui localizar o tal processo contra Fonseca e nele de fato consta tal acusação
sobre a fuga da personagem. Todavia, não há nenhuma menção de que a gravidez fora falsa, contudo já temos a
informação de que a fuga ocorrera.

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Primeiramente, focaremos na questão de Luiza ter ou não feito tudo o que foi acusada.
O interesse aqui não é provar que a personagem fez ou não isso, mas fazer um cruzamento das
versões e extrair os elementos que emergirem. No primeiro caso, de ter feito o que foi acusada,
a ação da personagem envolveria algumas possíveis táticas37 de atuação escolhidas para
atender a seus interesses ou se salvar da forca: eliminar o marido, convencer pessoas a tal,
gravidez (fosse verdadeira ou falsa), fuga do cárcere. No segundo caso, de Luiza ter sido acusada
de algo que não vez, é possível comentar sobre os elementos que teriam sido mobilizados para
incriminar a personagem, os quais evocariam a representação do bom marido versus esposa
desonesta que, desrespeitando o estado de casada, seduzia muitos homens para conseguir o
que queria.38
Por outro lado, podemos vislumbrar uma terceira e uma quarta vias de reflexão,
percebidas a partir de um cruzamento dos dois eixos citados: a) o fato de que a ré tendo ou não
cometido os delitos, para comprovar sua culpa ou incriminá-la injustamente os pontos
considerados mais eficazes pelos acusadores foram aqueles relacionados à sua conduta, ao que
uma mulher deveria ou não ser. Ou seja, em um jogo de pesos e contrapesos em que a figura
feminina e sua conduta eram o centro da queda de braço entre as representações minimamente
comuns naquele local; b) a fuga e, por isso, diferentes formas de Luiza tentar se salvar ou
triunfar diante de suas ambições. Em relação ao ponto b), um fato consistente é que a fuga
ocorreu, assim como a personagem recorreu a exames médicos e até à clemência do Imperador.
O que nos mostra, primeiro, como a personagem mobilizou formas diferentes para tentar obter
sucesso em seus objetivos: sejam aquelas consideradas criminosas, para se livrar do marido ou
da forca (incluindo a fuga da prisão), seja, no caso de tentando se salvar de uma acusação injusta
ou de apenas tentar não ser executada pelo o que teria feito, se apropriou dos veículos oficiais
de escala macro como a Imperial Clemência ou, de forma local, a justiça e médicos com o fim de

37A menção às táticas evoca um conjunto de conceitos desenvolvidos por Michel De Certeau (1998, p. 92-97), no
qual o autor trabalha as questões dos usos, estratégias e táticas. Os quais, resumidamente, referem-se no primeiro
caso à forma silenciosa e astuciosa que alguém incorpora e ressignifica o que lhe é imposto, para fins novos e
estranhos aos originais. As estratégias, relacionadas a tudo isso, visam impor modelos e lugares enquanto as táticas
objetivam manipular e jogar com estas imposições, de forma a criar algo estranho ao objetivo original. Enquanto
as estratégias partem de um próprio e têm autonomia capaz de planejar o futuro contra as adversidades, as táticas
não têm o próprio e autonomia para se manterem e preverem as circunstâncias futuras, sendo necessário jogar
com as imposições a elas feitas. O que nos auxilia na percepção de como se dava socialmente a atuação de certos
indivíduos e grupos.
38Acerca dos modelos comportamentais exigidos às mulheres nas épocas colonial, imperial e da Primeira
República brasileiras ver os trabalhos de Ronaldo Vainfas (1997), Sefora Sutil (2020) e Rachel Soihet (1997).

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comprovar o estado de gestação e, por isso, a impossibilidade ao menos temporária 39 de ser
enforcada. Sobressaindo, então, o dado da forte atuação feminina seja para autodefesa como
para obtenção de vantagens tidas como ilícitas.
Por tudo isso, vemos como em alguns dos documentos é possível e importante
problematizarmos as variáveis que surgem a partir de uma mesma versão do crime. Até porque,
o personagem que falava como acusado, vítima ou testemunha podia, principalmente no
terceiro caso: 1) acreditar no que falava; 2) estar mentindo, tentando dizer o que achava que
deveria dizer no teatro de aparências, distorcendo por interesse próprio ou pressão de outrem
ou mesmo para se proteger; 3) a justiça, por seu escrivão e outros agentes, estar distorcendo e
manipulando o conteúdo dos autos ou induzindo respostas por meio de coação psicológica ou
quem sabe física.
Há, contudo, limites: uma pessoa certamente não poderia mentir o quanto quisesse e
criar histórias mirabolantes sobre si ou seus desafetos. Exemplo disso reside nas pessoas que,
apesar de não serem casadas na Igreja, viviam como casadas e, tendo “fama de casados”, eram
reconhecidas e legitimadas socialmente como tais.40 Ou seja, a sociedade oitocentista era uma
sociedade em que, assim como as aparências eram mesmo vitais, o pertencimento e
reconhecimento social também o eram.41 As aparências, assim, não agiriam sozinhas, não sendo
possível simplesmente inventar o que quisesse, já que o reconhecimento social seria
importante para que tal invenção surtisse efeito. Além disso, as testemunhas e demais
envolvidos podiam sentir medo de serem presas ou incriminadas por mentirem ou,
possivelmente, no círculo social em que se inseriam seria desonroso mentir explicitamente.42

39 Segundo o artigo 43 do Código Criminal de 1830 (Souza, 1858, p. 26. Grafia atualizada), mencionado no processo,

“[n]a mulher prenhe não se executará a pena de morte, nem mesmo ela será julgada, em caso de a merecer, senão
quarenta dias depois do parto”.
40 Segundo Silvia Brügger (1995, p. 113-118), ao menos entre 1750 e 1850 o casamento tinha como grande valor
o “status social de casado”, o qual garantia os mesmos direitos legais que os casados e mais se temia perder do que
cometer o pecado da “união ilícita”. Além disso, a autora acrescenta que inúmeras pessoas preferiram se
apresentarem socialmente como casados por terem dificuldades na ocasião do matrimônio. Assim, poderia ser,
segundo Sheila Faria, a quem Brügger cita, as uniões consideradas ilícitas e vistas como forma de criar uma
situação de fato que induzisse à dispensa eclesiástica e ao casamento como mal menor. Diante disso, a autora
evidencia histórias de pessoas que viviam como casadas e, em situações-limite como a morte, buscavam
regularização por meio dos “casamentos de consciência”. O objetivo era corrigir os pecados antes do Juízo Final e
proteger os direitos materiais da prole. Além disso, buscava-se a cerimônia secreta a fim de evitar ao casal a perda
do status social de casados até então usufruído.
41Roger Chartier (2002ª e 2002b), quando discorre acerca das representações, menciona a necessidade de elas
serem reconhecidas pelas outras pessoas. As palavras do autor serão discutidas no capítulo dois.
42 Deivy Carneiro (2019, p. 108), analisando crimes de ofensas verbais, destaca a importância, em pequenos bairros

de Juiz de Fora (entre 1854 e 1941), da honra para manter ou melhorar relações pessoais. Sendo que a honra
servia também para gerar distinções sociais e maximizar ganhos. Além disso, a fofoca mantinha ou arruinava tal
reputação, haja vista que a última dependia tanto da pessoa quanto da opinião alheia sobre ela.

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Todavia, aparentar pertencimento aos discursos comportamentais tidos socialmente
como corretos era necessário inclusive para aquelas pessoas que de fato assim fosse. Uma vez
que quaisquer danos ou suspeitas à honra de uma pessoa eram desastrosos43 e, no caso
feminino por exemplo, vemos com frequência mulheres que, mesmo vítimas, tinham suas
honras e condutas mais analisadas que os réus homens. Deve-se lembrar, também, que
frequentemente nos autos criminais as testemunhas diziam saber “por ouvir dizer” ou “por ser
público e notório”. Assim, histórias transmitidas oralmente por vezes acabariam distorcidas de
várias formas. Então, a iniciativa da distorção não pode ser atribuída unicamente à iniciativa
dos depoentes. Por tudo isso, devemos não ignorar as contradições entre versões ou forçar uma
coerência inexistente, mas sim incorporá-las de forma explícita à análise, cruzá-las, confrontá-
las e extrair os elementos possíveis.
Mas a partir de tudo isso é necessário esmiuçar um pouco a análise: o como, por que e
para quê por trás das ações, pressões, mentiras e etc. Isso quando possível de se fazer. Assim
como o que tal análise por possibilidades diz do universo mais amplo em que as questões se
inseriam. Ou seja, o esforço analítico deve ancorar-se fortemente no que a fonte diz e no
contexto em que ela foi produzida. Um dos principais desafios para trabalhar com os processos
criminais, todavia, é conciliar as incertezas e as potencialidades/certezas da fonte. Ou seja, nem
relativizar demais44, nem problematizar pouco e explicitar pouco os procedimentos
metodológicos. Como se vê até agora, não há uma receita para analisar a fonte. Havendo, na
verdade, tensões com as quais precisamos, e devemos, lidar.
Lembrando que, como a burocratização e estruturação do Estado avançavam, talvez de
fato a justiça ainda mais incisiva e presente assustasse e diante dela pessoas sentissem a
necessidade de atuar no teatro de aparências e satisfazer o que demandava45 ou ao menos o
que achavam que ela demandava e, por isso, às vezes acabavam deixando escapar certas coisas
embaraçosas.46 Por outro lado, como mostra Ivan Vellasco (2004), o aparato judiciário também
se tornou forma de obter vantagens e evidenciar distinção social ou adesão aos modelos

43 A este respeito ver os trabalhos de Deivy Carneiro (2019) e Séfora Sutil (2020).
44 Marc Bloch (2001, p. 89) comenta como o ceticismo não é tão profícuo para análises científicas na História.
45 Como ressalta Mariza Corrêa (1983).
46Apesar de todas as distorções empreendidas, inclusive pelos escrivães quando estes transcreviam as falas dos
personagens, não era raro que alguns elementos escapassem. Um exemplo foi analisado por mim e Sefora Sutil
sobre um caso ocorrido em 1862 em São Thomé das Letras/MG. Neste processo, Angélica Maria do Espírito Santo
queixou-se de Manoel Domingues Diogo Chaves, acusando-o de tentar “comprar a honra” (palavras da queixosa)
de sua filha. Durante o depoimento de Angélica, uma série de palavras de baixo calão acabou sendo transcrita pelo
escrivão, apesar do fato comum de expressões do tipo serem censuradas tanto pelos falantes quanto pelos
escrivães, sendo alegadas questões de honra e decoro como motivo para tal (Sutil; Santo, 2021).

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considerados corretos. Assim como, se a justiça coagia e seduzia a ao menos aparentar adesão
a valores, ela talvez assustava e, com isso, possivelmente havia os que preferiam falar o mínimo
e serem logo liberados, como ressalta Boris Fausto (1984).
Um outro desafio é, então, que tal documento não tinha o objetivo de descrever a vida
das testemunhas e autoridades. Mas sim de fornecer elementos que comprovassem a culpa ou
inocência das partes acusada e ofendida. No entanto, neste caso das testemunhas e autoridades,
o historiador pode ainda assim coletar elementos interessantes, seja ou não nas entrelinhas.
Haja vista que as testemunhas, por exemplo, iam depor, diziam o que sabiam sobre o caso, por
vezes tentavam atender expectativas, manter aparências ou obter vantagens e por diversas
vezes deixavam escapar elementos sobre suas vidas.
Para dar um exemplo, temos o caso em que Antônio de Oliveira47 teria ferido Rita Maria
de Jesus48 com um “caxerenguengue” na Rua do Sapé, Vila Nova da Formiga, no dia 19 de março
de 1846. Na abertura do corpo de delito foi dito que a ofendida “presente se achava, pedindo
justiça, em razão de ser pobre e muito miserável”. No final do exame foi atestado que o
ferimento poderia resultar em aleijão ou impossibilidade de trabalhar por um mês.49 Neste
ponto destaca-se um indício das expectativas de pessoas pobres à justiça local, talvez depois de
um certo avanço da expansão e enraizamento social da mesma.
Um exemplo equivalente é o de Maria Gaspar que, no Distrito dos Arcos (Termo de
Formiga), teria procurado o inspetor de quarteirão para informar que em, 26 de julho de 1844,
foi roubada pelo “aleijado Silvestre” [José de Figueiredo]50 e que este estava fugindo para fora
do distrito e que ela queixosa “exigia de mim [do inspetor] ordem para ser preso o dito
[acusado]”.51 O que mostra: também uma expectativa da personagem à justiça; como ela foi até
ali não só pedir, como exigir que seu prejuízo fosse evitado. Como se vê, a personagem feminina
neste caso estaria desempenhando um papel de atriz ativa do processo de estruturação judicial.
Isso enquanto, em outros casos, a sociedade local e os projetos de poder/conduta as

47 Brasileiro, 60 anos, nascido em Congonhas do Campo, morador há dez anos na Vila Nova da Formiga, vivia de
seu negócio de venda, mas há um ano deixou de negociar, sendo também oficial de alfaiate, solteiro, não sabia ler
e escrever. AFF/LABDOC/UFSJ, PC 13-03, fl. 4-5v, 19v-20v.
48 Brasileira, nascida na Aplicação de Santo Antônio do Monte (Termo da Vila de Tamanduá), moradora há dez ou
onze anos na Vila Nova da Formiga, vivia de fiar algodão e lavar roupas, solteira, não sabia ler e escrever. Ibidem,
fl. 3v.
49 Ibidem, fl. 2-2v.
50 Casado. AFF/LABDOC/UFSJ, PC 10-11, fl. 2.
51 Ibidem, fl. 2-2v.

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constrangiam a não ir ali, tanto que não eram sequer ouvidas em alguns casos mesmo quando
eram ofendidas.52
Voltando ao caso de Rita Maria de Jesus, a segunda testemunha53 relatou que estava “em
casa de Joaquim Cardoso desmanchando um capado para o mesmo [...]”. O que nos fornece um
exemplo de dados a extrair dos autos, a partir de um dado não solicitado à testemunha, como
neste caso sobre a criação de porcos e processamento caseiro das carnes. O que, por sua vez, se
conecta ao fato de esta ser uma atividade econômica importante para a região na época (Paiva,
1996). Além disso, no segundo interrogatório do réu, este disse que a ofendida se feriu sozinha
ao tentar tirar da mão dele um “caxerenguengue”, ao que a ele foi perguntado “que ideia ligava
ele réu” a essa palavra. Tendo respondido “que era uma faquinha velha de cozinha sem ponta e
que, por isso, é que ele a chamava caxerenguengue”.54 O que nos mostra mais um outro
elemento a extrair do processo e que, inclusive, não se enquadraria naquela questão dos
cruzamentos entre histórias e versões. Sendo, então, um dado da vida cotidiana local que
escapou às distorções e manipulações da arena judicial e seus agentes.
Vale também sublinhar que o procedimento metodológico de cruzar as versões de um
fato relatadas pelos personagens e daí extrair o que houver em comum pode ser útil. Contudo,
não devemos fazer afirmações como “o personagem fez”; “o personagem era criminoso”, etc.
Devemos, assim, ter o cuidado de nos referirmos aos personagens e questões ocorridas não de
forma a relativizar em excesso o que ocorreu, mas sim de não aceitarmos logo de cara os
discursos proferidos pelas pessoas que falavam nos autos. Logo, se no início de um caso uma
mulher era chamada de criminosa, não soa adequado que o historiador se refira a ela como “a
criminosa fulana”, o que incorreria em aceitar já de início que a versão da acusação que estava
correta. Sendo que ao historiador, neste caso, interessa mais analisar a construção dos autos,
das versões, os elementos sociais ali presentes. Deve-se ainda assim problematizar as versões,
extrair os dados possíveis, deixar claro quem disse o que o historiador está destacando.
Inclusive a repetição é, em alguns casos, possível de analisar e problematizar.

52Em minha dissertação de mestrado cada um dos três capítulos foi estruturado em torno de um caso que serviu
de eixo das discussões. O primeiro momento trouxe como centro um caso ocorrido em 1865 em Formiga/MG, no
qual José Manoel Soares acusou o tenente coronel José Ferreira Pires de tentar seduzir Maria Thomasia Soares,
esposa do primeiro. Entre os aspectos por mim analisados, havia o fato de Maria Thomasia (a vítima da suposta
tentativa de sedução) sequer ter sido chamada a prestar depoimentos (Santo, 2023).
53Luís Pontes, 50 anos, vive de lavoura, viúvo, natural do Arraial do Desterro (Termo da Vila de Tamanduá),
morador na Vila Nova da Formiga, aos costumes disse nada, não sabia ler e escrever. AFF/LABDOC/UFSJ, PC 13-
03, fl. 8-8v.
54 Ibidem, fl. 19v-20.

22
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O primeiro fato que se vislumbra é que a metodologia a ser aplicada aos processos
criminais requer princípios mínimos, mas não deve ser unívoca, já que estes possuem
heterogeneidades e homogeneidades; elementos imprevistos; dados existentes em um
processo e não em outro; informações suprimidas ou acrescentadas a gosto do escrivão ou das
autoridades. Logo, um dos desafios é: 1) evitar a criação de uma história fictícia, artificial, de
explicações mecânicas, pouco problematizadas ou teatrais, que tragam personagens artificiais,
como bonecos de cera; 2) evitar, também, criar uma história sensacionalista que
instrumentalize anacronicamente o passado a serviço do presente. Apesar de ser difícil, de fato,
que em alguns momentos o historiador não se choque com certos crimes descritos nos autos. A
problematização das fontes tem de ser dosada, pois um excesso pode acabar demolindo a
cientificidade da análise historiográfica e tirar dela a conexão com a realidade.
O historiador deve se preocupar não em julgar qual versão estava correta, assim como
não deve ignorar contradições entre as versões. E sim deve compará-las, cruzá-las, extrair e
problematizar os elementos mais sobressalentes, mas também ler nas entrelinhas e confrontar
os aspectos menos visíveis ou mais espinhosos de analisar. A análise por meio de um processo
criminal nos mostra, também, como a polícia, justiça e seus agentes manipulavam ou tentavam
manipular as populações. Mas também como estas, mesmo as mais marginalizadas, também
sabiam se defender e, claro, manipular e se aproveitar mesmo das armas e discursos usados
pelas autoridades e advogados.

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Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

VELLASCO, Ivan. As seduções da Ordem – Violência, criminalidade e administração da


justiça. Minas Gerais, século 19. São Paulo: ANPOCS/EDUSC, 2004.

FONTES PRIMÁRIAS
AFF/LABDOC/UFSJ – Acervo do Fórum de Formiga/MG. Em catalogação pelo Projeto Fórum
Documenta feito no Laboratório de Conservação e Pesquisa Documental
(LABDOC)/Universidade Federal de João del-Rei (UFSJ), Campus Dom Bosco. Processos
criminais: 08-23, 14-11, 23A-4, 08-31, 13-03 e 10-11,

SOBRE O AUTOR
Elimar Cosme do Espírito Santo: Bacharel e Mestre em História pela Universidade
Federal de São João del-Rei/MG. Doutorando pela Universidade Federal de Juiz de Fora/MG e
especializando em Arquivologia pela Faculdade de Venda Nova do Imigrante/FAVENI. E-mail:
elimar.csanto@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2773-2311.

COMO CITAR
SANTO, Elimar Cosme do Espírito. O Processo Criminal da Segunda Metade do Século XIX
Brasileiro como (também) um ‘Teatro de Aparências’. In: SILVA, Maria Larisse Elias da; FARIAS,
Ana Elizabete Moreira de; CASTRO, Tatiana de Carvalho (Orgs.). Pesquisa histórica em
perspectiva, v. 1, Campina Grande: Amplla Editora, 2023, p. xx-xy. DOI:

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CAPÍTULO II
A “PALLIDEZ DA MORTE ANDAVA IMPRESSA EM
TODOS OS SEMBLANTES”: EMOÇÕES FÚNEBRES
DURANTE A CRISE EPIDÊMICA DA CÓLERA-MORBO
NA PARAHYBA DO NORTE (1855 - 1856)
THE “PALIDNESS OF DEATH WAS IMPRESSED ON EVERY FACE”:
FUNERAL EMOTIONS DURING THE EPIDEMIC CRISIS OF CHOLERA-
MORBO IN PARAHYBA DO NORTE (1855 - 1856)
DOI:

Laércio de Araújo Sousa Júnior *


* Mestre em História Social. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio. E-mail:
laercioaraujojr@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5861556682017914.

RESUMO ABSTRACT
No presente capítulo veremos como a epidemia de cólera In this chapter we will see how the cholera epidemic of
de 1855-1856 impactou profundamente o cotidiano da 1855-1856 profoundly impacted the daily life of the
população da Parahyba do Norte. Iremos entender como population of Parahyba do Norte. We will understand how
foi dada uma resposta conjunta contra a crise, na forma de a joint response to the crisis was given, in the form of
rituais coletivos que demandaram grandes esforços collective rituals that demanded great emotional and
emocionais e cognitivos. Em momentos críticos, de medo e cognitive efforts. In critical moments of fear and social
desorganização social, as comunidades buscam a disorganization, communities seek the safety of family
segurança das estruturas familiares ou as explicações structures or political and religious explanations that
políticas e religiosas que forneçam uma promessa de provide promise of efficacy and meaning to chaos.
eficácia e significação para o caos. Os reverendos e os Reverends and doctors agreed that excess emotions were
médicos concordavam que o excesso de emoções era relevant to someone contracting the disease. We will
relevante para alguém contrair a doença. Analisaremos os analyze the sermons of the Reverend Joaquim Antônio
sermões do reverendo Joaquim Antônio Marques, vigário Marques, vicar responsible for the parish of Nossa Senhora
responsável pela freguesia de Nossa Senhora das Neves da das Neves in the City of Parahyba, delivered during the
Cidade da Parahyba, proferidos durante a crise epidêmica. epidemic crisis. The priest ministered spiritual help and
O sacerdote ministrava socorros espirituais e procurava tried to exhort the population not to fear illness and death.
exortar a população para não temer a doença e a morte. But at the same time he expressed in his sermons: horror,
Mas ao mesmo tempo ele expressou em seus sermões: fear, sadness, grief and hope. Emotions felt by someone
horror, medo, tristeza, aflição e esperança. Emoções who lived up close the drama of one of the biggest
sentidas por alguém que viveu de perto o drama de uma epidemics in the country so far. When researching
das maiores epidemias ocorridas no país até então. Ao emotions in history, we deal with trying to understand a
pesquisar sobre as emoções na história, lidamos com a series of feelings, their attitudes and their meanings. The
tentativa de compreender uma série de sentimentos, suas objective of the chapter is to try to better understand the
atitudes e seus sentidos. O objetivo do capítulo é tentar emotions that surround the epidemic context, the death of
entender melhor as emoções que envolvem o contexto thousands of people in a short period of time and the
epidêmico, a morte de milhares de pessoas em um curto subsequent mourning.
espaço de tempo e o luto subsequente.
Keywords: Funeral Emotions; Epidemic; Cholera;
Palavras-chave: Emoções Fúnebres; Epidemia; Cólera; Attitudes towards Death; Paraíba.
Atitudes diante da Morte; Paraíba.

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1. INTRODUÇÃO
A cólera foi a doença epidêmica do século XIX por excelência. Nenhuma outra
enfermidade pode ser comparada com ela em termos dos impactos emocionais diretos na
sociedade oitocentista da Europa e das Américas (ROSENBERG, 1992, p. 112; DINIZ, 1997, p.
72). As doenças epidêmicas fornecem uma excelente chave interpretativa para compreender
elementos sociais, econômicos, culturais e político-administrativos de uma determinada época.
Uma epidemia evoca respostas em todos os setores da sociedade, os valores e as atitudes de
uma comunidade são desnudados. As pestilências nos lembram que os seres humanos não
escapam da ansiedade, do indeterminado, da doença, da morte (ROSENBERG, 1992).
Segundo Ariosvaldo da Silva Diniz, uma epidemia desencadeia e acentua conflitos,
mobiliza sentimentos e emoções. Na sociedade oitocentista a cólera criou um “clima de medo,
catástrofe e desordem” sendo usada ideológica e politicamente “como meio de recompor a
harmonia social”. Nas palavras de Diniz: “além do caráter de sofrimento e infelicidade” a cólera
“foi construída socialmente como mito pelo qual os grupos dominantes expressaram sua
coerção e coesão na organização social” (DINIZ, 1997, p. 9).
A primeira cidade brasileira atingida pela epidemia de cólera-morbo foi a capital da
província do Pará, em maio de 1855. Até o final do ano a enfermidade já havia se espalhado do
Amazonas ao Rio Grande do Sul e se estenderia pelo Império ao longo de 1856, fazendo
aproximadamente 160 mil vítimas fatais (em uma população de cerca de 8 milhões de
habitantes). O norte agrário (atual Nordeste) foi a região do Brasil que proporcionalmente
perdeu mais vidas para a cólera durante o período. A maior parte do obituário foi ocupada por
escravizados, libertos e livres pobres (COOPER, 1986; DAVID, 1993; DINIZ, 1997; ALEXANDRE,
2020).
De acordo com a historiografia local, a cólera-morbo difundiu-se pela Parahyba no final
do mês de dezembro de 1855, vinda do interior pernambucano (PINTO, 1910; CASTRO, 1945;
PINTO, 1977; ALMEIDA, 1997; DINIZ, 2011; MARIANO & MARIANO, 2012; SILVA & MARIANO,
2016; DÔSO, 2019). Na época, as chuvas tinham sido abundantes, os principais rios estavam
cheios e as autoridades da província lidavam com um surto de febre amarela no porto da Cidade
da Parahyba (atual João Pessoa). Em cerca de seis meses a cólera vitimou milhares de pessoas
em vários pontos da província paraibana, que foi aquela que contou (de acordo com os dados
da época) com a maior quantidade proporcional de óbitos durante o primeiro surto da doença
em terras brasileiras.

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O pico epidêmico impediu a realização de vários rituais fúnebres: seja pelo aumento do
número de enfermos, pela falta de religiosos para atender aos chamados de dezenas de fiéis, a
disseminação do medo do contágio, as proibições legais (criminalizando as encomendações em
igrejas, por exemplo) ou pela desorganização do cotidiano. Além do medo da contaminação
cadavérica, os contemporâneos apavoravam-se por estarem diante de uma enfermidade
desconhecida, que parecia ceifar vidas indiscriminadamente. Em suma, diante da epidemia, a
população foi confrontada “a cada passo ou com a morte, ou com o perigo. Aqueles que ontem
enterravam, hoje são enterrados e, por vezes, por cima dos mortos que na véspera haviam posto
na terra” (DELUMEAU, 2009, p. 176).
A epidemia de cólera de 1855/1856 acabou rompendo com alguns rituais importantes
para efetivação plena, do que Philippe Ariès, chama de morte domada, ou inviabilizando para
muitos indivíduos os rituais fúnebres próprios de uma boa morte (ARIÈS, 2012). Parte dos
enfermos na hora da morte não tinham a solidariedade de amigos e parentes; outros morriam
em hospitais e eram assessorados por médicos, e não por padres; dificilmente recebiam o
acompanhamento de irmandades e vários foram enterrados em covas coletivas. A crise
humanitária provocada por uma epidemia é dramática, aterrorizante e traumatizante. Causa
impactos econômicos, políticos, sociais e emocionais que vão além das mortes diretas e do luto
subsequente (ROSENBERG, 1992).
O campo da História das Emoções, vai além dos elementos puramente psicológicos das
emoções (atos isolados ou irracionais, focados no indivíduo), procurando observá-las sob uma
perspectiva complexa e entrelaçada na qual os aspectos cognitivos, sociais e culturais (e
também individuais) das emoções são inseridos no tempo e no espaço (FREVERT, 2011, p. 24;
LOPES, 2017). Porém, temos acesso a elas apenas por meio de discursos, traços codificados e
narrados.
As emoções culturalmente elaboradas precisam ser consideradas em relação as suas
práticas, nuances e particularidades históricas, elas traduzem um modo de existir, de
experimentar a si mesmo, de ser sujeito (KELTNER; HAIDT, 2001; ŠVEC, 2018). O objetivo do
artigo é tentar entender melhor as emoções que envolvem o contexto epidêmico, a morte de
milhares de pessoas em um curto espaço de tempo e o luto subsequente. A reconstrução das
formas passadas de comportamento afetivo e emocional não são um fim em si mesmo, também
podem ser vistas como uma história do nosso presente, já que, os sentimentos do passado
podem nos ensinar sobre as especificidades da nossa própria maneira de gerenciar e vivenciar
nossas emoções (ŠVEC, 2018).

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2. “QUAL NÃO FOI O NOSSO TERROR E ESPANTO À VISTA DO CARACTER
MEDONHO COM QUE A PESTE INVADIU DE NOVO ESTA PACIFICA CIDADE,
E SE APRESENTOU ALTANEIRA EM NOSSOS LARES?!”: EMOÇÕES
FÚNEBRES E RELIGIOSAS DIANTE DA EPIDEMIA DE CÓLERA NA
PARAHYBA
A irrupção da cólera na província paraibana seguiu a sequência dramática e teatral de
que fala Rosenberg. Segundo Charles Rosenberg, após a revelação progressiva e o
gerenciamento da aleatoriedade, o terceiro ato de uma epidemia é a negociação de uma
resposta pública. Uma epidemia tem como característica a pressão gerada pela comunidade
para uma resposta categórica, imediata e decisiva contra a crise. As interdições efetivadas
durante o drama epidêmico constituem rituais e ritos coletivos que demandam esforços
emocionais e cognitivos. Podemos citar como exemplos, as quarentenas, as proibições de
encomendações e sepultamentos em igrejas, a supressão do badalar dos sinos, a ausência dos
cortejos fúnebres, a cremação de corpos, a confecção de fogueiras extemporâneas. As
procissões, os jejuns, as vigílias, as penitências demonstram a solidariedade coletiva e
reafirmam a crença religiosa da comunidade. Tanto as medidas religiosas quanto as
providências recomendadas pela ciência comprometiam-se em gerenciar a aleatoriedade
epidêmica e controlar a difícil realidade (ROSENBERG, 1992, p. 285).
Considerar que a cólera tinha sido enviada pela divindade como punição aos pecados
individuais e coletivos não implicava na inconveniência de tentar tratar, prevenir e explicar
empiricamente a enfermidade. Diante da crise, as preces, procissões, penitencias e ações
temporais (como as medidas apregoadas pelos higienistas) eram empregadas
corriqueiramente na tentativa de dirimir o mal. Os reverendos e os médicos concordavam que
o excesso de emoções era relevante para alguém contrair a doença. Os clérigos poderiam
explicar as razões morais da cólera por meio dos mecanismos fisiológicos; assim como os
médicos, com igual facilidade, expressavam suas teorias etiológicas por meio de concepções
moralistas amplamente aceitas naquela sociedade oitocentista (ROSENBERG, 1992, p. 114).
Durante a epidemia de cólera de 1856, as procissões de penitência cruzavam as cidades:
geralmente, ia na frente uma grande cruz de madeira envolta em um pano branco; as matracas
cortavam o silêncio; o padre em túnica alude, uma veste alva colocada por cima da batina, e
estola preta ia entoando cânticos e orações em latim com uma voz soturna; os fiéis clamando a
misericórdia divina, caminhavam descalços e colocavam pedras, madeiras, barricas sobre a
cabeça; os penitentes vertiam sangue devido aos açoites dos azorragues e das disciplinas
(laminas de ferro, dentadas, com cerca de 10 centímetros, presas a cordões), que “cortavam as

29
carnes sem piedade” (PINTO, 1910, p. 120). Os fiéis que iam para as procissões e vigílias pediam
pelo fim da epidemia, rogavam o auxílio dos santos, em uma tentativa de aplacar a ira divina.
Segundo Jean Delumeau, as procissões eram uma súplica pública e coletiva de uma
comunidade diante de um perigo tão significativo quanto o da peste, uma situação-limite. Uma
massa anônima (composta por clérigos e leigos, magistrados e simples cidadãos, religiosos e
confrades de todos os hábitos) participa da liturgia, ora, roga, implora, canta, arrepende-se e
geme (DELUMEAU, 2009, p. 212 - 220). Os flagelos, as trocas de santos, as lamentações, os
benditos, as preces, os círios e luzes tinham o objetivo de chamar a atenção, aplacar a ira e
clamar a misericórdia da divindade. Segundo Claudia Rodrigues, “o que estava implícito nessas
explicações religiosas da epidemia era a quebra de um pacto entre os homens e a divindade; as
atitudes deveriam, portanto, ser tomadas no sentido de restabelecer este pacto” (RODRIGUES,
1997, p. 47).
As orações, recorrentemente, eram consideradas um meio para aplacar a ira divina e
minorar a epidemia. A obediência aos preceitos da vida religiosa poderia proteger o fiel, que
seria menos predisposto a contrair a cólera se vivesse uma vida sem pecado. Para a concepção
cristã, a cólera seria “uma flecha mandada por Deus”, a enfermidade ceifaria “de preferência, os
indivíduos pecadores que se entregavam aos excessos das paixões e dos gozos brutais”, assim,
as principais vítimas seriam por exemplo, os bêbados, as prostitutas e aqueles que
frequentavam os “antros de pecado e vício” (DINIZ, 1997, p. 89). Pregava-se o arrependimento
e o reconhecimento de que a epidemia era uma punição pedagógica e necessária enviada por
Deus para o aperfeiçoamento dos cristãos (RODRIGUES, 1997, p. 44 - 45).
Na biografia que o médico Antônio da Cruz Cordeiro1 escreveu (publicada em 1866) a
respeito da vida e obra do reverendo Joaquim Antônio Marques2, ele cita as ações do padre

1 Antônio da Cruz Cordeiro, nasceu em 1831, na povoação de Guarabira, no interior da província da Parahyba do
Norte. Foi estudante da Faculdade de Medicina da Bahia, onde se doutorou em 1856. Ainda enquanto acadêmico
de medicina atuou na linha de frente do combate à epidemia de cólera de 1855-1856, em Salvador. Foi cirurgião-
mor da Parahyba, chefe da Enfermaria Militar da província, médico do Hospital da Santa Casa de Misericórdia da
capital paraibana por mais de 30 anos, cirurgião do Corpo de Saúde do Exército, atuou como voluntário durante a
guerra do Paraguai. Além de médico foi um destacado político local, poeta, jornalista e biografo. Seus escritos foram
reconhecidos dentro e fora do Império. É patrono da cadeira de n° 10 da Academia Paraibana de Letras. Morreu
na cidade do Recife, em 17 de fevereiro de 1894 (CASTRO, 1945; MARIANO, 2015; SILVA & MARIANO, 2016;
SOUSA JÚNIOR, 2023).
2Joaquim Antônio Marques nasceu em 1813, em uma estância localizada na freguesia do Estreito, na província do
Rio Grande do Sul. Filho de um pernambucano e de uma gaúcha, fez seus estudos primários na terra em que nasceu.
Em 1830, foi sozinho para Pernambuco, viver com sua avó paterna, Dona Izabel Thereza de Jesus, que detinha
posses, ao contrário dos pais. Estudou no Lyceu do Recife e no Seminário de Olinda. Sendo ordenado presbítero
em 1837. Foi padre interino da igreja de São Frei Pedro Gonçalves, na cidade do Recife. Assumiu a paróquia de
Nossa Senhora das Neves, da capital da província paraibana, por meio de concurso feito em 1846, tomando posse
em 15 de agosto daquele mesmo ano. Foi vereador da Cidade da Parahyba. Ocupou o cargo de vigário da capital
paraibana durante quase vinte anos. Vitimado por estupor, morreu em 19 de maio de 1866, aos 53 anos. Foi

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diante das várias crises epidêmicas de cólera e de febre amarela (ocorridas localmente entre
1850 e 1862). Menciona os momentos em que o religioso ia levar o sacramento aos enfermos,
as procissões, as trocas de santos das igrejas e expõe trechos dos sermões do padre. Em um dos
sermões, o vigário, afirma que os sacrifícios, o jejum, as mortificações, a penitencia, “foram as
invencíveis armas, de que todos se serviram para aplacar a cholera do Senhor” (MARQUES,
Apud, CORDEIRO, 1866, p. 260). O padre, em um de seus sermões, afirmou que “a peste é um
castigo do céu contra a ingratidão daquelles, que se esqueceram dos mandamentos de Deus e
de sua Esposa a Santa Igreja” (MARQUES, Apud, CORDEIRO, 1866, p. 300). Em tal sentido, o
historiador Guillaume Cuchet afirma que o pregador oitocentista era “um leão no púlpito e um
cordeiro no confessionário” e deveria ser ao mesmo tempo “médico” e “juiz” (CUCHET, 2020).
O médico paraibano, Antônio da Cruz Cordeiro, compara o padre Joaquim Marques com
“o anjo da consolação que voava sem cessar” por todos os recantos da paróquia, a fim de
“derramar o suave bálsamo da esperança” no âmago daqueles que contorciam nas vastas
agonias da enfermidade. O vigário Marques dirigiu fervorosas preces à Virgem das Neves pela
extinção do flagelo da cólera “que martyrisava e debastava” a população da capital, em 1856,
quando o “enviado extraordinário do reino da morte vinha em missão especial à terra da Santa
Cruz, cortar os fios preciosos da vida e transformá-la em um vasto cemitério”, o religioso
prostrava-se aos pés do altar, dirigindo fervorosas preces aos céus no intuito de “aplacar sua
ira” (CORDEIRO, 1866, p. 120).
Segundo Ediana Ferreira Mendes, os escritos de Cruz Cordeiro foram influenciados pela
apologética romântica do cristianismo de François-René de Chateaubriand. O escritor francês
inaugurou uma nova fase na literatura, sendo referência fundadora para o movimento
romântico, privilegiando o sentimental em detrimento do racional. Para Chateaubriand, após o
caos revolucionário de 1789, a humanidade ficou ávida de fé e das consolações religiosas. Ele
buscava restituir a influência que a religião cristã exercia sobre a sociedade (MENDES, 2007).
A obra de Chateaubriand, leva a marca das tensões entre um entusiasmo fomentador de
violências políticas e de dissolução social, e o entusiasmo pelo belo e pelo sagrado (LEGOY,
2020). O médico paraibano se apropriou do discurso do escritor francês em defesa do
cristianismo, recorrendo aos argumentos de Chateaubriand a miúde ao longo dos seus
trabalhos.

sepultado no cemitério Senhor da Boa Sentença (CORDEIRO, 1866; Diário de Pernambuco, nº 217, 09/10/1837,
p. 3; A Ordem, nº 14, 19/11/1849, p. 1; O Publicador, nº 1114, 28/05/1866, p. 4; O Publicador, nº 1122,
07/06/1866, p. 4; Gazeta da Parahyba, nº 138, 23/10/1888, p. 3).

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Para Cruz Cordeiro, o caminho do progresso era a aliança entre a ciência e a religião.
Para que a humanidade fosse salva da ignorância, os homens deveriam cultivar as ciências e as
artes “no que ellas tem de mais maravilhoso”, deveriam consagrar-se também as sublimidades
que “a religião christã nos oferece” (CORDEIRO, 1856, p. 116). Para ele, a tábua de salvação
durante a crise epidêmica eram as “cândidas azas da religião” (CORDEIRO, 1856, p. 123).
Segundo o médico, “a devoção religiosa desde então desenvolveu-se entre nós de uma maneira
assaz fervorosa”, a população buscava as igrejas com a mesma ânsia que procurariam uma
“gotta d’agua nos desertos” (CORDEIRO, 1856, p. 137 - 138).
Durante o período epidêmico os templos ficavam continuamente abertos e recebiam as
pessoas aflitas que iam prostrar-se aos pés da cruz. As romarias e procissões de penitência se
sucediam nas horas do crepúsculo. Os penitentes empunhando velas e vestidos de crepe
manchavam vagarosamente pelas ruas tortuosas das cidades e vilas do Império do Brasil. De
acordo com Cordeiro, a primeira impressão sentida ao ver o “lúgubre aspecto d’essa multidão”
de fiéis era um calafrio por todo o corpo, ao mesmo tempo em que uma mística “tristeza
acompanhada de saudades” se apoderava do espectador. Muitas mulheres “desvalidas”
passaram a morar nas igrejas, que ficavam abertas dia e noite. Elas temiam ser atacadas pela
peste e tinham medo de morrer “desamparadas no isolamento de suas casas” (CORDEIRO,
1856, p. 150 - 155).
As igrejas eram frequentadas particularmente durante as noites “pela maior parte dos
habitantes d’esta cidade”. Via-se “uma multidão de moços ajoelhados orando com fé e
resignação”, iam “vestidos de dó” (ou seja, vestidos em trajes de luto), com modesta
simplicidade que revelava “a tristeza que lhes vai pelo coração” (CORDEIRO, 1856, p. 156 - 157).
Após o fim da epidemia, o mesmo povo que obstruía as ruas em procissões se recolhia “interior
de suas casas”, a multidão desapareceu como que “por encanto”. Poucas pessoas se
encontravam nas igrejas, a não ser algumas “pobres mulheres que se deixaram ficar a porta dos
templos” e que “só agora” estavam se acordando do “êxtase religioso” (CORDEIRO, 1856, p. 140
- 141).
Para o historiador Guillaume Cuchet, a sensibilidade moderna remexeu nas práticas
espirituais, de modo que promoveu um jogo dialético: uma “evolução social” poderia conter
algo de “religioso” e uma “evolução religiosa” poderia abarcar e refletir modificações sociais.
Cuchet estuda as renovações da afetividade religiosa de matriz católica na sociedade francesa
oitocentista. Ele diz que era uma religião tradicional e comunitária em que Deus ao mesmo
tempo enviava as catástrofes e protegia contra elas (CUCHET, 2020). O catolicismo assistiu ao
desenvolvimento em seu seio de uma nova afetividade, do tipo “romântico”. No século XIX,

32
ocorrem mudanças na “pastoral do medo”, que acabam por desconstruir paulatinamente a
imagem de Deus como um juiz temível.3
Segundo Chuchet, durante o século XIX, o Deus da ira começa a dar lugar a um Deus pai
misericordioso. A “pastoral do medo” encontra progressiva degenerescência, apesar de seus
contrastes e limites. O inferno se torna menos amedrontador e a crença no purgatório se
renova. O culto aos mortos e os rituais de luto ganham novas roupagens. O imperativo do
batismo em bebês também se abranda. O culto marial, ou seja, a adoração à Virgem Maria,4
cresce bastante, especialmente entre 1820 e 1880 (CUCHET, 2020). A religião desempenhou
um papel notável na história das emoções do século XIX. O clero tinha grande influência na
sociedade, na cultura e nos diversos domínios da vida humana. A religião estava presente em
todas as etapas da vida: lazer, sociabilidade, sexualidade, emoções estéticas, atitudes diante da
morte. Cuchet diz que: a afetividade religiosa era feita tanto de emoções pela religião quanto de
emoções acolhidas, moduladas e transformadas por ela (CUCHET, 2020, p. 513 - 515).
O arcebispo da Bahia, Dom Romualdo Antônio de Seixas, dizia que reconhecia a “mão de
Deus” na epidemia de cólera, a divindade estaria manipulando a doença de maneira tão
extraordinária que dificultava a descoberta de suas causas, de sua natureza e da sua
identificação pela ciência médica. Para o religioso, os pecados variados, como desacatos, usura,
profanações, fraude, calúnia e a violência, seriam os motivadores da ira divina contra a
humanidade. Seria a “vingança de Deus contra os pecados humanos” (DAVID, 1993, p. 88 – 89).
No Pará, diversos periódicos locais conclamavam a população para a realização de ofícios
religiosos, objetivando “aplacar a ira dos céus e diminuir a devastação produzida pela
epidemia” (BELTRÃO, 2004, p. 270). Na província do Espírito Santo eram realizadas missas em
homenagem a São Sebastião, pedindo a esse santo, protetor das doenças, que os livrassem da
peste. Os atos penitenciais ocorreram não somente em Vitória, mas em diversas localidades
onde a cólera esteve presente. Em Carapina, no interior da província capixaba, foi realizado um

3Segundo Cuchet, esta é uma noção tomada de empréstimo de Jean Delumeau. A “pastoral do medo” é definida
como um discurso culpabilizante que atribuía maior importância à dimensão do pecado em detrimento daquela
do perdão. Para Cuchet ela foi sendo paulatinamente substituída por uma “pastoral da sedução”, que inspirava
mais tranquilidade. Seria uma pastoral “neobarroca”, baseada nas emoções e na evocação dos fins últimos e da
salvação. O “Deus de amor” ganhou a primazia definitivamente em relação ao “Deus terrível”. (CUCHET, 2020).
4 Alguns dos motivos do aumento da devoção marial no século XIX, podem ser: as epidemias de cólera que
aumentaram o fervor religioso; o crescente número de aparições marianas que disseminaram a medalha
milagrosa; a definição do dogma da Imaculada Conceição, em dezembro de 1854, pelo Papa Pio IX. Tal fenômeno
ocorreu concomitantemente com o “cristocentrismo da piedade”, que foi marcado pelo desenvolvimento da
devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Devem ser interpretados em conjunto, pois são elementos da “pastoral da
sedução”. (CUCHET, 2020).

33
ato religioso com o “objetivo de implorar o auxílio da Mãe de Deos para livral-os do flagello que
os ameaçam” (FRANCO, 2015, p. 106 - 107).
As rezas, preces e procissões ocorriam antes, durante e depois do aparecimento dos
surtos epidêmicos. Na Europa, durante a peste negra, São Roque foi o santo a quem a população
recorreu buscando a sua intercessão a Deus, assim como no Ceará, durante a epidemia de cólera
de 1862 (DELUMEAU, 2009, p. 149; ALEXANDRE, 2010, p. 185 - 193). As procissões de
penitências era uma das formas de purgar os pecados. As pessoas suplicavam, oravam,
cantavam, gemiam, acendiam velas, se flagelavam na expectativa de que Deus abrandasse a
fúria, ouvisse seus lamentos e afugentasse a epidemia. As orações, ainda que insuficientes para
a cura, eram consideradas um meio apropriado para aplacar a ira divina (DELUMEAU, 2009, p.
79 - 110).
Na freguesia de Nossa Senhora das Neves da Cidade da Parahyba, o vigário Joaquim
Antônio Marques, em seu sermão de agosto do ano epidêmico de 1856, pregou sobre a
devastação causada pela cólera-morbo. O pároco descreveu vivamente as misérias causadas
pelo flagelo. Apesar de afetado pela doença, o religioso não se recolheu em sua residência para
tratar da moléstia, mas continuou na sua missão de visitar os enfermos e “soccorer as almas”.
O vigário acabou prostrado no leito de um enfermo que visitava e ali permaneceu sendo cuidado
durante alguns dias até se reestabelecer (CORDEIRO, 1866, p. 140 - 141).
Diz Cordeiro que “na administração dos sacramentos e officios divinos” o vigário
Marques “não se fazia esperar. Sem temer o frio e a chuva, os ardores do Sol e o contágio das
moléstias lá ia ele onde os deveres religiosos o chamavam” (CORDEIRO, 1866, p. 109 – 110).
Um desses deveres religiosos era o sacramento da extrema unção, que era levada ao leito dos
moribundos com a função de dar a alma o último contato íntimo com Deus. Ministrado a
qualquer hora do dia ou da noite, em meio ao sol quente ou durante uma intempérie, inclusive
em tempos de epidemia. Além dos sacramentos, o pároco costumava declamar “aos ouvidos do
moribundo o bálsamo suave da consolação, e com suas palavras tocantes [...] derrama naquela
alma [...] a fé e a esperança de eterna salvação” (CORREIO MERCANTIL, n° 156, 06/06/1868, p.
3).
Em sermão proferido em agosto de 1856, o vigário da freguesia de Nossa Senhora das
Neves da Cidade da Parahyba destacou que o “horrível flagelo” da cólera foi mandado por “um
Deus ultrajado” que anunciou sua “indignação e vingança”. Os temores e castigos teriam origem
nos crimes e iniquidades da humanidade, nomeadamente: os homicídios, latrocínios,
profanações, perjúrios e transgressões aos mandamentos da Igreja Católica. Ele continua “qual
não foi o nosso terror e espanto à vista do caracter medonho com que a peste invadiu de novo

34
esta pacifica cidade, e se apresentou altaneira em nossos lares?!”. Joaquim Antônio Marques diz
que: famílias inteiras foram prostradas no leito da morte, sem terem “muitas vezes quem lhes
ministrasse o alimento”. Cadáveres eram todos os dias levados para a sepultura e a “pallidez da
morte andava impressa em todos os semblantes”. Segundo o religioso “ás galas e os prazeres”
deram lugar ao “luto e as lagrimas”, a percepção que ele tinha era que “tudo se aniquilava, que
tudo ia se acabar” (MARQUES, 1856, p. 258 - 266). Diz o pároco que: vimos um melancólico
silêncio envolto na dor, no luto, nas lágrimas que se apoderaram “desta risonha cidade”. Os
sinos pararam de badalar, só eram ouvidos o “medonho ruído dos funéreos carros, que ao triste
jazigo conduziam os inanimados cadáveres” ou então os “passos desordenados dos afanosos
trabalhadores que em seus ombros levavam a sepultura as victimas do cholera” (MARQUES,
1856, p. 232 - 235).
Diante de tal contexto, os fiéis paraibanos imploraram ao Bom Jesus da Agonia,
promovendo uma procissão de penitência e percorreram as ruas da capital vestidos de saco e
cilício. Para o vigário, no meio de uma “aluvião de desgraças” ouvia-se uníssono o brado da
“misericórdia”. Em suas palavras: o “cilicio, o jejum, as mortificações, a penitencia, foram as
invencíveis armas, de que todos se serviram para aplacar a cholera do Senhor”. Ainda no
sermão ele diz que “o Deus de bondade, volvendo seus misericordiosos olhos” deixando de lado
a “espada de sua ira, e então nos outorga a paz, a abundância” e a vida (MARQUES, 1860, p. 260).
O pároco segue o sermão falando sobre a “phiantropia”, a doçura, a sabedoria, a justiça, a
mansidão e o amor de Jesus Cristo. Portanto, indo ao encontro com o que Guillaume Cuchet
chama de “cristocentrismo da piedade” e “pastoral da sedução”, que ganharam espaço no
catolicismo do século XIX (CUCHET, 2020).
Como já foi dito, segundo Charles Rosenberg, assim como os médicos expressavam suas
teorias etiológicas por meio de concepções moralistas, os clérigos poderiam explicar as razões
da cólera por meio dos argumentos médicos, como é o caso dos miasmas (ROSENBERG, 1992,
114). Em tal sentido, o vigário Marques proferiu uma “Breve Exortação”, dirigida aos
paroquianos por ocasião da invasão da epidemia de cólera-morbo na província da Parahyba,
em 1856. Para o vigário, a doença seria causada também por “incógnitos miasmas”. O religioso
chamava os fiéis a “reconciliar-vos com Deus n’este tempo de quarentena”. Ele condenou os que
deixaram cadáveres dos “paes, filhos, amigos, consortes” insepultos, nas províncias do Pará,
Bahia e Pernambuco; pedindo para que o mesmo não ocorresse na Parahyba. As pessoas
deveriam se lembrar que “não sepultando os mortos teria cada vez mais de infeccionar a
atmosfera”. O sacerdote ministrava socorros espirituais e procurava exortar a população para
não temer a doença e a morte (MARQUES, 1856, p. 299 - 302).

35
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A epidemia de cólera de 1855-1856 impactou profundamente o cotidiano da população
da Parahyba do Norte. Na tentativa de aplacar a doença ou extinguir a ira divina (conclamando
a misericórdia dos céus) foram entoados benditos, realizadas procissões de penitências e
vigílias. Elas demonstram a solidariedade coletiva e reafirmam a crença religiosa da
comunidade. Para o Vigário Joaquim Antônio Marques, Deus teria castigado os seres humanos
pelos pecados; mas ao mesmo tempo, ele clamava pela misericórdia da Virgem Maria e pelo
amor de Jesus Cristo. Era a pastoral do medo que ia paulatinamente perdendo espaço para a
pastoral da sedução.
Ao mesmo tempo em que os religiosos usavam explicações consideradas na época como
sendo científicas (como é o caso das emanações miasmáticas), os médicos advogavam causas
morais e religiosas como recurso explicativo para a doença. O excesso de emoções e os miasmas
cadavéricos eram percebidos pelos médicos e pelos religiosos como sendo algumas das causas
da doença (o que contraditoriamente fazia com que os indivíduos temessem também os
defuntos e os coléricos). Além do medo da contaminação cadavérica, os contemporâneos
apavoravam-se por estarem diante de uma enfermidade desconhecida, que parecia ceifar vidas
indiscriminadamente. Tal processo foi observado através dos Sermões do vigário Joaquim
Antônio Marques, que como vimos estão repletos de emoções fúnebres (luto, tristeza,
esperança, amor, aflição, dentre outras).

REFERÊNCIAS

FONTES
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biográfico: o vigário Joaquim Antônio Marques e algumas de suas peças oratórias. Paraíba:
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MARQUES, Joaquim Antônio. Panegyrico de Nossa Senhora das Neves, 1856. In: CORDEIRO,
Antônio da Cruz. Estudo biográfico: o vigário Joaquim Antônio Marques e algumas de suas peças
oratórias. Paraíba: Tipografia Liberal Paraibana,1866, p. 232 - 235.

MARQUES, Joaquim Antônio. Sermão do Senhor Bom Jesus da Agonia, 1856. In: CORDEIRO,
Antônio da Cruz. Estudo biográfico: o vigário Joaquim Antônio Marques e algumas de suas peças
oratórias. Paraíba: Tipografia Liberal Paraibana, 1866, p. 258- 266.

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Carolinae Philologica, n. 3, p. 43-56, 2018.

38
SOBRE O AUTOR
Laércio de Araújo Sousa Júnior. Mestre em História Social pela Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro. Graduado em História pela Universidade Federal da Paraíba. Membro
do Grupo de Pesquisa Sociedade e Cultura no Nordeste Oitocentista. Lattes:
http://lattes.cnpq.br/5861556682017914. E-mail: laercioaraujojr@hotmail.com.

COMO CITAR
SOUSA JÚNIOR. Laércio de Araújo. A “pallidez da morte andava impressa em todos os
semblantes”: Emoções fúnebres durante a crise epidêmica da cólera-morbo na Parahyba do
Norte (1855 - 1856). In: SILVA, Maria Larisse Elias da; FARIAS, Ana Elizabete Moreira de;
CASTRO, Tatiana de Carvalho (Orgs.). Pesquisa histórica em perspectiva, v. 1, Campina
Grande: Amplla Editora, 2023, p. xx-xy. DOI:

39
CAPÍTULO III
O CEARÁ DAS SECAS E DAS ÁGUAS: DISCURSOS
ANTAGÔNICOS E REALIDADES ADVERSAS PERANTE
O ADVENTO DAS FERROVIAS ENTRE 1870 E 1910
CEARÁ OF DROUGHTS AND WATERS: ANTAGONICAL DISCOURSES
AND ADVERSE REALITIES FACING THE ADVENT OF THE RAILWAYS
BETWEEN 1870 AND 1910
DOI:

Joelson Ramalho Rolim *


Ana Elizabete Moreira de Farias **
* Graduado em História. Universidade Federal de Campina Grande (UFGC / CFP - campus Cajazeiras/ PB).
Especialista em Docência e metodologias ativas do ensino superior (Pós- Graduação lato sensu pela UNIFIC –
FACULDADES INTEGRADAS DO CEARÁ e CPROFES – Centro Regional De Profissionalização, Educação Superior,
Cultura e Inovação. Baixio/ CE). Professor na EMEF Coronel Humberto Bezerra e na EEMTI Monsenhor Horácio
Teixeira (ambas localizadas em Baixio/CE). E-mail: joelsonramalho@hotmail.com. Orcid: https://orcid.org/0009-
0004-6623-1626
** Graduada em História pela UFCG, Mestra em História pelo Programa de Pós-Graduação em História – UFPB.
Professora Efetiva na área de História da Prefeitura Municipal de Baixio-CE. E-mail: anaelizabete82@gmail.com.
Orcid: https://orcid.org/0009-0008-9408-9347.

RESUMO envolto da narrativa da seca? Diante esse


contraponto, quais impactos às estradas de ferro e os
trens iriam condicionar uma ruptura com o passado
O sertão sempre foi movido por um elo de interesses
obsoleto e preparar pequenas localidades para um
da classe política, uma vitrine de poder juntos às
cenário de desenvolvimento e prosperidade no eixo
oligarquias no final do século XIX e início do século
da economia e da sociedade? A partir de tais
XX. Como também, regimentou historicamente um
inquietações, desenvolvemos uma revisão
berço de produções bibliográficas envolto da
bibliográfica em torno do tema.
compreensão da formação territorial e populacional
pautado nesse perfil. Logo, o “discurso da seca”
Palavras-chave: Seca; Ferrovias; Água; Progresso;
consolidou abertura para formulações e tramas
História do Ceará.
políticas no propagandear e ilustrar um sertão
carente, sofrido, deslocado e mergulhado numa
desolação voraz e implacável pelo fenômeno seca. ABSTRACT
Por outro lado, concomitante ao cenário exposto,
mecanismos foram criados para regimentar The "Sertão" (the most arid region of Brazil) has
investimentos e cauterizar o colapso da fome e da always been driven by a link of interests of the
miséria, melhorar os aspetos de sobrevivência no political class, a showcase of power alongside
apelo em angariar frentes de trabalho, através de oligarchies at the end of the 19th century and the
obras estruturantes e aquisições (infraestrutura beginning of the 20th century, as well as being a
hídrica como por exemplo: os açudes, infraestrutura historically established birthplace of bibliographical
urbana e principalmente ferrovias a serem productions involved with the understanding of the
ramificadas pelos sertões) pelas forças provincianas territorial and populational formation based on its
do Ceará junto ao governo central. Com isso, por que profile. Therefore, the “dry season speech”
regiões como Jaguaribe e Crato (ambas no Ceará) consolidated the openness to political formulations
vislumbraram outras perspectivas enquanto o and plots propagandizing and illustrating it as a
enredo político era nutrido pela promiscuidade no deprived, suffering, displaced Sertão plunged into

40
voracious and relentless desolation due to the other perspectives while the political plot was
drought phenomenon. On the other hand, nourished by promiscuity within the narrative of the
concomitant with the exposed scenario, mechanisms drought? Given this counterpoint, which impacts on
were created to regulate investments and to railways and trains would condition a rupture with
cauterize the collapse of hunger and poverty, the obsolete past and prepare small localities for a
improving aspects of survival in the attempt of scenario of development and prosperity on the axis
raising work fronts, through structural constructions of the economy and society? Based on these
and acquisitions (hydro infrastructure such as : the concerns, we developed a bibliographical review
dams, urban infrastructure and mainly railways to be around the topic.
branched through the backlands) by the provincial
forces of Ceará alongside with the central Keywords: Drought; Railways; Water; Progress;
government. With this being said, why did regions History of Ceará.
like Jaguaribe and Crato (both in Ceará) glimpse

1. INTRODUÇÃO
No final do século XIX e início do século XX, o sertão tornou-se um vínculo alicerçado dos
interesses das elites oligárquicas e pelos agentes das forças governamentais pelo envolto da
narrativa da seca. O período era de mudanças e algumas iriam ocorrer nessa plataforma
estrutural das redes relacionais que sustentava as relações de poder. Nesse sentido,
compreender o território do sertão e suas características sociais e econômicas, formação
populacional e o enredo da sobrevivência (pelos desvalidos e famigerados, famintos e
despossuídos) conduzirá para vários cenários naquilo que foi conceituado por “inventivo/
imagético” formulado e defendido por Albuquerque Jr (2011).
Este artigo propôs analisar o cenário construído por esses agentes políticos no período
acima estabelecido. Como também, discutir o avesso antagônico (que foi escondido e
distanciado pelos discursos consolidados pelos poderosos) de um Ceará que se deleita,
também, pelas águas, mananciais e contornos fluviais (propriedades agrícolas com expressivo
desenvolvimento econômico e agrícola). Concomitante, ao surgimento das frentes de trabalho
(dos acordos, financiamentos e ofensivos investimentos para angariar obras estruturantes por
todo Estado), aos fluxos migratórios e enraizamento territorial nos mais diversos complexos
urbanos (de Fortaleza ao hoje denominado Centro-sul, de Sobral à Baturité, da vila de Aracati
para o vale do Jaguaribe – do Iguatu ao Icó e posteriormente ao Cariri cearense, dentre outros
conglomerados), destacando o trem como fator ora revolucionário no desenvolvimento à
economia, por criar novas rotas de povoamento e interiorização dos sertões, pelos dramas,
traumas e sofrimentos existentes na construção das estações e linhas ferroviárias.
A seca, por sua vez, tornou-se uma condicionante na configuração dos debates no campo
da política, que postularam lacunas no eixo econômico e evidenciaram graves conjunturas no
âmbito social no Nordeste, em especial o sertão.

41
Diz a respeito Frederico de Castro Neves ‘Não se sabe ao certo que espécie de
informações ele possuía previamente sobre o Ceará ou sobre a seca, a não ser que a
mortalidade entre a população local era muito alta e que as doenças se haviam
propagado de forma impressionante’. Provavelmente foram essas notícias que
motivaram o envio dele como correspondente. O horror gerava curiosidade. As
referências à seca no Nordeste durante o século XIX estiveram vinculadas às crônicas
naturalistas, caracterizadas por recorrer a esse horror para narrar o inenarrável:
famílias inteiras morrendo de fome, pais vendendo os filhos, comendo-os,
abandonando-os. Mulheres vendendo-se por um prato de comida, prostituindo-se.
Corvos comendo crianças exauridas. Corpos sem sepultura abandonados pelos
caminhos. Todas as imagens infernais foram utilizadas para descrever o que acontecia
no Nordeste nas épocas de seca (SECRETO, 2020, p. 35).

É evidente que existe um lastro de aspectos favoráveis no ato das calamidades expostas.
Logo, esse sentido aparente formulará um reflexo político satisfatório que atenderá as
estratégias de uma minoria (historicamente detentora dos poderes de mando político) perante
uma agenda que vai bradar na cúpula do governo central: “(...) É o ‘Discurso da Seca’ (...) Veio
inesperadamente, porém no momento certo enquanto fornecedora da “matéria-prima” de uma
nova estratégia político-discursiva.”. (GALVÃO, 2019, p. 78). É válido salientar que esse enredo
elucida tramas, omissões e artimanhas no espectro do poder concentrado no que tange à fala e
a operacionalização dos esforços governamentais. Como também, evidencia exploração e
sofrimento, isolamento e distanciamento dessas elites para com os dilemas, angústias e
carências enfrentadas pelo sertanejo.
Nesse sentido, relacionando os cenários econômicos, sociais e principalmente à esfera
política, no que tange ao formato de apresentar “vender/ propagandear” o “Norte” e à província
do Ceará ao governo central, perante os fatores da calamidade, sofrimento e desolação.
Entende-se que “[...] A originalidade de sua perspectiva radica-se na visão “holística” dos
problemas do Brasil [...]. Elementos como defesas hídricas, alimentação, salários, trabalho e
acesso à terra foram combinados a fim de construir uma solução para a questão das secas no
Brasil. (SECRETO, 2020, p. 34).
Logo, é importante observar que “(...) a construção de um quadro de miséria, horror,
mortes, convulsão social, etc., trazidos, segundo esses segmentos dominantes da região, pela
seca (...) que era o de um Norte discriminado na partilha do “bolo” do orçamento do governo
central (...)” (GALVÃO, 2019, p. 17). Diante da devastação anunciada pelos discursos da seca
(especificamente no Ceará entre 1870 e 1950), será que existe uma uniformidade entre as
regiões do mesmo estado? Tudo é sertão de seca e fome? Ou outro Sertão existe? Um Sertão
com chuva e abundância? E como a fatia do “bolo” é recebida pela elite a população?

42
2. A INSERÇÃO DAS ESTRADAS DE FERRO NO PANORÂMA DA SECA
Em meio a esse antagonismo enraizado no discurso da seca, surgiram às estradas de
ferro (às ferrovias, o trem - especificamente nas regiões do vale do Jaguaribe, centro-sul e cariri
cearense) que tornaram-se vínculo de disputas políticas ao ponto de proporcionar
transformações e mecanismos na economia como, por exemplo, as frentes de trabalho e
escoamento da produção agrícola.

As estradas de ferro exercem uma influência espantosa sobre a civilisação,


augmentando as relações políticas, comerciaes e industriaes entre os Estados (...); ellas
não só contribuem para o progresso da nação como constituem a cadea que ligará todos
os estados, tornando completa a communhão, e indissolúvel a Federação” (ARANHA,
2006, p. 197).

Partindo desse cenário, é importante problematizar o processo de quebra de “verdades


consolidadas” em torno de narrativas alicerçadas nos discursos políticos pelas elites
oligárquicas que destoam de um cenário heterogêneo e múltiplo, no que tange, à diversidade
das características no semiárido, especificamente no Ceará. Como os políticos apresentavam
um drama regional (da província do Ceará - na sede do governo central) vinculado a escassez,
ao sofrimento causados pela seca? E, concomitante ao antagonismo desse discurso, quais os
papeis de cidades como Jaguaribe e o Crato - ambas localizadas no Estado do Ceará - que
evidenciavam prosperidade e riqueza oriundas da presença das chuvas, rios/mananciais e
expressiva atividade agrícola?
Assim, analisar o impiedoso fenômeno da seca numa propositura da sobrevivência do
sertanejo em meio a sua saga (ALBUQUERQUE JR, 2011).

Como as secas eram um fenômeno periódico, construir estradas de ferro em nome do


combate aos seus efeitos se tornava fácil. (...) Quer dizer, à construção de estradas de
ferro por motivo da seca podia ser justificada em nome de seu baixo custo, isto para não
falar nas justificativas já conhecidas, de que fornecia trabalho ‘útil’ aos ‘flagelados’ e
prevenia contra secas futuras. Ademais, como estas eram um fenômeno periódico,
justificava-se construir estradas de ferro no momento em que esse fenômeno ocorresse
pensando na prosperidade que adviria nos anos em que ele não se manifestasse
(ARANHA, 2006, p. 100).

Essa investidura proporcionaria uma notória presença de investimentos financeiros


canalizados em várias localidades pelos sertões. Bem como, articularia e confirmaria
expectativas de mão de obra e empregos (para os que eram assolados pelos resquícios da seca)
oriundos dos fluxos migratórios que iriam formar novas composições de formação
populacional e territorial, principalmente em lugarejos distantes de centros expressivos
econômicos. Portanto, às linhas férreas (ao lado de outras obras relevantes apresentadas nesse
artigo) levaria socorros à população assolada pela seca, impulsionaria e dinamizaria o

43
surgimento de povoados e vilarejos em torno do centralismo político e dos latifúndios dos
oligarcas.

3. ALGUNS ASPECTOS DA SECA


O sertão está inserido numa redoma histórica de carências e dependências por parte das
elites políticas que norteavam suas narrativas, entrelaçados aos interesses de poder que
atravessaram gerações. Assim, o fator seca e as complicações sociais oriundas (miséria e fome,
escassez e vulnerabilidade dos flagelados, retirantes/ migrantes) dessa nefasta horda esteve
entre os principais elos de sustentação dos debates dessas elites oligárquicas que dominaram
os sertões (especialmente o Ceará), entre o final do século XIX e início do XX. No caso do fator
de migração, é importante destacar que: “(...) Na seca de 1877-1879, a cidade de Fortaleza,
com aproximadamente 25 mil moradores, recebeu 114 mil retirantes que transformaram
a cidade na capital de um “pavoroso reino”... (THEÓPHILO, 1997; NEVES, 2000, p. 48, apud,
SECRETO, 2020, p. 35).
Sobre isso, na perspectiva de Rubismar Marques Galvão existia um sentido plausível
nesse debate, que “Era o de fazer com que todos acreditassem que o Ceará era o lugar em que a
miséria grassava numa dimensão colossal, sem igual no Brasil. Elabora-se e difunde-se o
“discurso do coitadinho” (GALVÃO, 2019, p. 82).
Essa chaga (fatores naturais, estiagens, ausência de águas, etc.), foi condicionada ao
surgimento das estradas de ferro, construção de açudes (bem como: criação de celeiros e silos),
novas projeções urbanas e constituição de cidades, articulação geográfica e ligamento/
estreitamento de território via comunicação e transporte dentre outras instâncias, propiciaram
“saídas” para endossar o panorama entre os que detém o poder e os que são conduzidos para
um destino traçado aos interesses de terceiros. Assim, “(...) a elite do Norte estava agora munida
de um eficaz recurso de sensibilização para o drama que afetava toda a região. E o mais
importante: ele, agora, unifica os interesses da região”. (GALVÃO, 2019, p. 78).
Portanto, enaltecer essa composição iria compor uma sustentação entre um dilema que
esfacela os modos de vida do sertanejo, vislumbra saídas para ação política perante artimanhas
e negociatas, angaria liberação de recursos/ investimentos a serem priorizados, sensibilizando
na gravidade dos fatos, ramificando uma visibilidade unitária do drama exposto pela fome.

Povo que chora compridas lágrimas, que tem expressões de miséria e dor estampadas
no corpo e no rosto, e parecem ser sempre os mesmos. Rostos construídos ou
desconstruídos pelo pincel da fome e da seca. Região composta de quadros de horror
que suscitam pena, solidariedade e até revolta, mas também causam repulsa, medo,
estranhamento e preconceito (ALBUQUERQUE JR, 2011, p. 280-281).

44
Esse cenário é vivenciado pelos sertanejos, principalmente os vivem nas regiões
isoladas, sem expressão econômica (especificamente no que é hoje denominado Centro-sul
cearense) distante da capital da província (Fortaleza) e outras cidades litorâneas
economicamente robustas, como é o caso de Aracati e Sobral. Porém, era comum ocorrer um
fluxo de fuga/ retirada em decorrência da escassez das chuvas e impactos na produção agrícola.
Acerca disso, “Cada crise agrícola era seguida por uma onda de retirantes-emigrantes
que saíam dos sertões em direção ao litoral e deste, às vezes, para fora das províncias
atingidas pelas secas em busca de melhores condições de vida. (...)” (CSECRETO, 2020, p.
36). Contudo, surge uma propositura favorável nas articulações junto ao governo central e
condizente aos desígnios das elites “A seca de 1877-1879 obrigou a elite do Norte, em especial
a do Ceará, a se reinventar, (...) futuro promissor desde que aqui o governo central realizasse os
investimentos necessários em obras tais como porto, ferrovias, etc.(...)” (GALVÃO, 2019, p. 78).
Salienta-se, portanto, que o processo migratório iria compor um leque de regiões que
iriam despertar esse alento em propiciar sobrevivência e abranger um eventual cenário de
trabalho. Logo, “Antes de resolver-se pela emigração dever-se-iam esgotar as
possibilidades de reter os trabalhadores no território cearense. Tais possibilidades
estavam determinadas pela expansão das obras públicas, já que “repugnava a ideia de
socorros diretos”, como chegou a dizer o presidente da província do Ceará” (SECRETO,
2020, p. 43).
Com isso, evidencia um processo transitório da população de áreas vulneráveis para
áreas que possibilitariam mecanismos de sobrevivência. Ora, “(...) levar socorro rápido a essas
populações do interior e nada mais eficaz nesse momento do que construir caminhos de ferro,
que não só levariam esses socorros como serviriam de frentes de trabalhos para essas
populações”. (GALVÃO, 2019, p. 98). Embora, essa ramificação fosse um requisito urgente, o
debate parlamentar comtemplaria essa busca para sustentar e solucionar um drama notório.

E como não poderia deixar de ser, o mote para tal reivindicação era o mesmo quando
se tratava de reivindicar estradas de ferro em nome da seca com todas as suas
desgraças. Senão vejamos ‘quando um povo, nu e faminto, atormentado pela
calamidade de uma secca, nefando epílogo de todos os males junctos, tiver necessidade
de recorrer ao governo, a quem se devem apresentar todas as desgraças públicas, em
última alçada: esteja o telegrapho na sua terra, para levar longe as suas angústias; e o
governo do paiz, se quiser conservar sua honra, acudirá prontamente (ARANHA, 2006,
p. 119).

É importante analisarmos que o discurso político reverbera e canaliza pressa e urgência


na captação de recursos junto a capital do império. Logo, se faz necessário compreender que

45
essa estratégia foi muito bem-sucedida na província do Ceará, ou seja, endossar os agravantes
que a seca estaria revelando era uma forma de atrair melhorias e frentes de trabalho.
Portanto, identificar seus agentes e atribuir celeridade no discurso e angariar obras,
edificações e volumosos recursos financeiros seriam uma prerrogativa que impulsionaria e
amenizaria os efeitos da calamidade provocado pela seca e proporcionariam melhorias na
qualidade de vida do sertanejo. Fazendo jus a essa estratégia, “(...) Agora se pede ferrovias para
a região utilizando o forte argumento de que elas são o instrumento mais eficaz para salvar os
“desvalidos” da seca. (...)” (GALVÃO, 2019, p. 95).
Com isso, identifica-se um novo roteiro de perspectivas que é consolidado na “(...)
compreensão de viverem um novo tempo, no qual a chegada da Estrada de Ferro auxiliava na
amenização dos efeitos provocados pelas secas e garantia emprego à população, sobretudo aos
mais pobres”. (CORTEZ, 2006, p. 123).

4. OS TRENS E A SECA: UM CONTRAPONTO POSSÍVEL?


Embora possamos identificar que as classes políticas (mesmo desvencilhando-se de suas
raízes em localidades interioranas/ sertanejas) angariavam altos cargos em suas províncias e
prestígio perante a corte imperial, essa busca por um pacote de melhorias nas estruturações de
obras para suas regiões e o abastecimento de seus correligionários economicamente não estava
no crivo de prioridades.
Em meio ao voraz e implacável ‘discurso da seca’, é válido salientar que “A sciencia e os
factos têm demonstrado que o remedio para os males da secca está nas estradas de ferro e na
construção de açudes. É uma questão que tem sido largamente discutida, e sobre a qual hoje
não ha duas opiniões.” (Castro Carreira, apud, GALVÃO, 2019, p. 96). Portanto, pode-se dizer
que

No Ceará, a implementação de ferrovias foi iniciada ainda no período monárquico, no


ano de 1870, quando se firmou a primeira diretoria para a construção dos trilhos no
Estado, presidida por Thomaz Pompeu de Sousa Brasil, sendo no ano de 1873
inaugurada a estação Central em Fortaleza.50 A Estrada de Ferro de Baturité, como ficou
conhecida, seria construída em três etapas. A primeira partia da capital em direção a
cidade de Baturité, trecho que foi concluído em 1882. Terminada esta fase, e após uma
pausa de cerca de oito anos51, foram estendidos os trilhos até a região sul cearense,
especificamente à cidade do Crato, que teve sua inauguração em 1926 (CORTEZ, 2006,
p. 34).

Contudo, essa estrada de ferro impulsionaria novos anseios, ao tempo que seu traçado
iria cruzar o território cearense, ligando e dinamizando áreas de comércios consolidados
(Maciço de Baturité/ Fortaleza/ Aracati) aos que hoje engloba a região do Centro-Sul (Iguatu/
Icó/ Lavras da Mangabeira – gerando ramificações com o Estado da Paraíba: canto de feijão

46
(hoje Santa Helena), Antenor Navarro (hoje São João do Rio do Peixe) e Sousa) até o Cariri
(finalizando o trecho na cidade do Crato), permitindo aproximações e relações comerciais com
o vizinho Estado do Pernambuco.
Contudo, devemos enaltecer uma maior publicização e abrangência no que tange às
urgências constituídas em torno da província do Ceará, ou seja, um apreço entoado em volta da
seca por deputados e ministros propiciou um aporte de forças de outras províncias do Norte e
do Sul consolidando o foco e atenção para essa província. Assim, “(...) – o Ceará se saiu muito
bem. (...) na luta pela implantação de ferrovias. E conseguiu, ainda no Império, não uma, mas
duas: a encampação e o prolongamento da Estrada de Ferro de Baturité (EFB) e a implantação
da Estrada de Ferro de Sobral (EFS). (GALVÃO, 2019, p. 61).
No entanto, algumas considerações devem ser enaltecidas acerca da chegada dos trens,
especificamente na província do Ceará, como também da implantação das estações, percursos/
enraizamento pelos sertões e toda estrutura acoplada nesse magnífico elo transformador
social, econômico e político. É válido salientar que a figura representativa do trem configura um
novo ritmo propiciado pela metamorfose capitalista na Europa e em países como os Estados
Unidos da América, por exemplo. Portanto, “Idealizado na Inglaterra e bastante utilizado a
partir da Revolução Industrial, o trem passou a ser o objeto de desejo de todos os países que
tencionavam algum progresso para seu desenvolvimento econômico. (...)” (CORTEZ, 2006, p.
33).
Haja vista, que ocorrem novas composições no cenário social e político por onde quer
que os trilhos rasguem territórios e surgissem estradas de ferro, ou seja, um objeto
impulsionador de encantamento capaz de elevar o patamar de um lugar/ uma região e
confrontar os modos arcaicos de locomoção e deslocamento (de produção/ pessoas nos moldes
rurais de tração animal) com uma componente representativo da modernidade e do progresso,
da pujança do desenvolvimento acelerado era um ciclo que abrangeria as relações econômicas
entre os países progressistas.
À medida que essa revolução expandia por algumas regiões do Brasil, em específico no
Estado do Ceará, podemos compreender que um novo ciclo vingaria na percepção e narrativa
das elites que buscavam alicerçar essa conjuntura que o trem seria o canal favorável e atingível
para compor e sanar os dramas originados pelas secas. Ora, “(...) Nada era mais identificado,
nas primeiras décadas do século XX, com o moderno do que o trem. (...) O trem não era só o
condutor, para o sertão do Ceará, da “boa nova”, mas era em si o signo mais avançado da
modernidade que adentrava por esses sertões. ” (GALVÃO, 2019, p. 145).

47
Porém, é importante mencionar que o trem compõe essa abertura para estancar os
graves impactos perante os desvalidos e flagelados (uma opção viável para resolver obstáculos
causados pela escassez de chuvas) que se deslocam em busca de oportunidades para
sobrevivência seja no litoral ou onde surgiam rumores da instalação de frentes de trabalho em
algum canteiro de obras pelos sertões.

Entretanto, deixam claro que nunca foram construídas estradas de ferro com tanta
disponibilidade de mão-de-obra e a um custo tão baixio. Sob esse aspecto, o flagelo
representava um momento propício às construções ferroviárias (...) Ocorre que não se
compreenderia, do ponto de vista da lógica do capital, investimentos em projetos
ferroviários cujo objetivo era levar gêneros para populações ‘famintas’ ou servir de
meio de transporte para essas mesmas populações” (ARANHA, 2006, p. 96).

Por mais que o trem fosse um vínculo para o progresso é importante consolidar outras
possibilidades no que tange a estruturação do formato urbano e paisagístico que estava
vinculado em sua redoma de prerrogativas a elevação citadina, isso é, transformaria os
costumes, os ritmos, hábitos, comportamentos com o expandir dos novos tempos. No que
compete ao fato econômico, o trem dinamizaria um novo formato de percepção do tempo no
deslocamento de pessoas, aproximação na distribuição de mercadorias (numa intensa
agilidade, até então desconhecida) entre as regiões distantes (das zonas litorâneas aos
lugarejos isolados/ distantes do território), no abastecimento e elevação da produção agrícola
no cenário de exportação e ligação com os portos e ancoradouros.
Contudo, “O trem (...), sobretudo no interior do Estado, e que rapidamente foi
identificado como algo que traduzia o progresso. Permitindo uma sinfonia nova, ainda que
inicialmente confusa, mas que pouco a pouco passa a compor o cotidiano social urbano
(CORTEZ, 2006, p. 105 e 106). Essa relação adequa uma relação de causa e efeito no espaço e
tempo, nos ciclos produtivos e na percepção das dinâmicas locais.
O fato é que existiam atropelamentos, acidentes e mortes em proporções elevadas nos
trechos de áreas urbanas em decorrência do tráfego de maquinários (vagões, locomotivas,
animais e pessoas),

Em 1874, os desastres de estradas de ferro custaram a vida, na Inglaterra, a 1249


pessoas, sendo 1165 homens e 84 mulheres, ao passo que os dos carros occasionarão a
morte de 1528 pessoas, sendo 1313 homens e 215 mulheres. Deve notar-se,
relativamente aos desastres de estradas de ferro, que 799 victimas, ou mais da metade
do numero total, foram mortas circulando a pé pelas linhas. A proporção dos
passageiros mortos é de 1 para 2274, 881; porém, realmente, apenas houve um morto
para 5.556.284 por causas imputaveis ás companhias sendo o maior numero victimas
de sua propria imprudencia. Em 1875, conta-se somente para 3.000.000 1 passageiro
morto por desastre de que as companhias foram responsaveis. Relatando os casos
dados, e intuindo para cada passageiro uma viagem media de 16 kilometros apenas, vê
se que houve um passageiro morto para cerca de 480 milhoes de kilometros donde
resulta que uma pessoa, viajando continuamente dez horas por dia com a velocidade de

48
48 kilometros por hora, so occorreria uma probabilidade de morte em 2749 anos nas
estradas de ferro inglesas” (Jornal do Commercio, 15 de agosto de 1877, apud, REIS,
2015, p, 235-236).

Ao tempo que as estações (às linhas férreas, os trechos e ramais) eram cravadas pelos
sertões. Paralelo ao progresso comercial, os vínculos e frentes de trabalho, aproximação e
consolidações da formação populacional mediante os fluxos migratórios e demais segmentos.
É importante mencionar que concomitante há essa pujança trazida pelos trens a inabilidade da
convivência com os trilhos trariam alguns agravantes, tais como: colisões, batidas, mortes,
acidentes, atropelamentos e mutilações de animais e pessoas.
As locomotivas trariam cotidianamente novas composições no arquétipo social perante
o intercâmbio de localidades ocorreria um dinamismo na composição comercial com à chegada
de novas mercadorias as localidades distantes dos grandes centros urbanos, tais como:
vestimentas e calçados, utensílios e artefatos domésticos, materiais impressos (revistas,
jornais), etc.

O comércio, antes das estradas de ferro e dos telégrafos, seguia norma em harmonia
com os transportes. (...) Parte do ano, ou melhor, durante a estação invernosa, nenhum
movimento se operava: e as lojas que nem todas se abriam regularmente nessa fase,
eram antes pontos de palestra, de jogo de gamão e rodas políticas, cujos assuntos se
comentavam com tardança imposta pelos recursos dos transportes. As
correspondências e jornais, veículos únicos das novidades, andavam dias e dias pelas
estradas a fora, até aos seus destinos, onde chegavam com atrasos enormes; ainda
assim, eram lidas, ou melhor, devoradas, e as notícias tinham um sabor de novidade tão
perfeito como se fossem da véspera. (CORTEZ, 2006, p. 70)

As linhas férreas não extinguiria os moldes de trabalho, relações comerciais e meios de


locomoção outrora há essa revolução, ou seja, alguns trechos e ramais sofreriam sérios
agravantes de operacionalização comercias mediante ao períodos chuvosos, onde rios
transbordavam provocando danos nas produções agrícolas, surgindo os duradouros alagadiços
nas estradas, atoleiros (principalmente em solos denominados massapê, barro, e outros),
enchentes causariam danos com rompimento de açudes, barreiros, etc. Tudo isso atingiriam
essa dinâmica promovida pelos trens permitindo que alguns fluxos (comerciais e
deslocamento) fossem mantidos ao estilo tradicional.
Porém, existia uma pauta forte que tramitava no antagonismo dessa vertente, ou seja,
era comum ocorrer resistência e enfrentamento nas sessões de parlamentares que
contrariavam essa narrativa de expor o lado sombrio do discurso da seca. Na verdade, existia
incidência de chuvas no território cearense comprovando que não era seco em todo espaço
geográfico e que existiam predominância de áreas férteis. Logo, “[...] não ha calamidade hoje,

49
senhores, [...]. Em differentes zonas da província tem havido chuvas abundantes e até
inundações. (...)” (Deputado Rodrigues Júnior, apud, GALVÃO, 2019, p. 87).
De modo que essa prática tornava-se uma composição factual perante as representações
de outros estados, que também buscavam recursos financeiros e estrutura, mediante aos
interesses regionais. Contando que, “(...) chuvas abundantes têm caído no Ceará e de que “[...]
ao menos por amor á verdade, eu peço ao governo imperial que de ora avante, quando abrir
estes créditos não diga mais – para a Sêcca – diga – para a inundação – a sêcca no Ceará está
acabada, [...]” (Senador Teixeira Júnior, apud, GALVÃO, 2019, p. 87).
Por mais que, esses parlamentares manifestassem o contraditório ao que era
amplamente sensibilizado, eis que surge uma chave (um xeque-mate) na visão desses homens:
“Mas afinal de contas como acabar com tudo isso? Para parte significativa dos senadores só
quando a seca acabar. Mas como acabar com a seca? No plenário, o senador Junqueira tem a
resposta na ponta da língua: “esta sêcca só ha de acabar por decreto”. (GALVÃO, 2019, p. 88).
O traçado dos trilhos de Fortaleza/ Baturité seguindo até o Crato - Cariri do Estado
(estendia um trecho com aproximadamente 599 km de extensão) deveria compor estudos
detalhados da engenharia: entendimento espacial dos biomas, conhecimento acerca dos fluxos
dos rios, compreensão das épocas de estiagens, etc. Assim, “(...) entre um trecho ferroviário que
só teria alguma utilidade em tempos de seca e um outro que ligaria duas regiões de ‘fertilidade
prodigiosa’ (o vale do Jaguaribe e o do cariri), o lógico é que a escolha recaísse sobre este último.
(...)” (ARANHA, 2006, p. 63).

Enquanto esta ficava às margens do rio Jaguaribe e era de uma ‘fertilidade excepcional’
para não falar que constituía a ‘parte mais populosa da província’, aquela era ‘inculta e
incultivável’. (...). E se não bastasse constatar que a área percorrida pelo prolongamento
da estrada de Baturité era ‘incultivável’ e ‘desabitada’ – existindo um único município
na extensão de 40 léguas -, havia de considerar que esse prolongamento enfrentaria
dificuldades técnicas, uma vez teria de atravessar nada menos de seis rios, que
desapparecem no verão, mas que durante o inverno hão de destruir, pela
impetuosidade de suas águas, todas as obras d’arte, todas as pontes que se fizerem para
dominar suas vastas correntes (ARANHA, 2006, p. 61).

Portanto, o traçado das rotas ferroviárias atenderia o jogo de interesses políticos já


elencados nesse artigo. Diante os estudos técnicos elaborados pela engenharia surgiriam novos
desafios e complexidades no ato de observar os elementos geográficos, o solo, localidades onde
pudesse usufruir dos recursos hídricos (não apenas para os trabalhos nas linhas férreas. Mas,
pela possibilidade de expansão de produtos agrícolas, ou seja, esses trechos não deveriam ser
distantes das fazendas e latifúndios). Como também, observar os tipos de vegetações

50
justamente para utilização da madeira para utilização de confecção de dormentes (para os
trilhos, por exemplo).
Essa realidade era comum na proposta de enraizamento pelo território cearense. Logo,
o fato da percepção dos fatores naturais e das possibilidades que a engenharia, a capitação de
recursos, as relações próprias da conjuntura políticas, a condução de mão de obra e chegada de
famílias de vários lugares do sertão para os acampamentos para possibilitar trabalho eram
desafios contínuos. No entanto, essa realidade fértil, abundância de água, predominância de
rios consolidaria uma nova conjuntura na percepção da realidade geográfica, ou seja, nem tudo
era seca, lamentação, desolação e escassez. O caso do Vale do Jaguaribe é um exemplo de como
existiam áreas ricas daquilo que é a maior estima e riqueza do sertão: a água.
Assim, entende-se que o caso de Crato (localizada no Cariri cearense), região que é
alicerçada nessa gama de riquezas naturais, que desenvolveu práticas agrícolas de relevância
concomitantes a inauguração da estrada de ferro em 1926 (finalizando a construção do
entroncamento Baturité – Crato) englobando interesses políticos para aquisição de estruturas
junto aos parlamentares, possibilitando horizontes para com os avanços tecnológicos –
revelando um futuro de progresso e sacramentando o fim de um passado antiquado. Como
também, “(...) Pretendia-se com a execução de grandes obras, como a edificação de uma ferrovia
e de açudes, empregar os flagelados que migravam para outras cidades, principalmente para a
capital (...).” (CORTEZ, 2006, p. 28). Portanto,

existia uma cidade que estava quase isenta de todo o sofrimento provocado pela falta
de água. De fato, a localização geográfica da cidade do Crato, suas características
climáticas e possibilidades de culturas foram importantes fatores de atração de pessoas
de outras partes da província, ou de fora dela, a partir, sobretudo, da segunda metade
do século XIX. Sertanejos que fugiam dos efeitos provocados pela seca e chegavam em
busca de trabalho numa região que (...) mesmo em períodos de grandes estiagens
permanecia apresentando uma vegetação verde 33, encontravam na plantação de cana-
de-açúcar, na criação de animais e no trabalho nos engenhos muito serviço (CORTEZ,
2006, p. 30).

Bem como, predominava um outro aspecto no fortalecimento identitário da classe


política do Crato em elevar o padrão da cidade que passaria a ser chamada de “capital da cultura
letrada” “(...) os homens e mulheres envolvidos neste movimento, a elite intelectual da cidade,
eram médicos, padres, jornalistas, professores, farmacêuticos, membros da Guarda Nacional –
tenentes e coronéis – e alguns que desempenhavam cargos políticos”. (CORTEZ, 2006, p. 56).
Contudo, o Cariri cearense engloba um cenário antagônico ao que era divulgado e
anunciado pela classe política nas mais variadas plataformas, ou seja, podemos afirmar que essa
região era considerada um verdadeiro cinturão de possibilidades. Logo, o Crato ““(...) que a
cidade tinha atributos naturais – como fontes e vegetação verde durante a maior parte do ano

51
que a tornavam uma localidade especial em relação as demais áreas do Estado.” (CORTEZ, 2006,
p. 29).
Assim sendo, percebe-se outra característica importante, como uma região rica em
recursos hídricos, era comum encontrarmos ramificações das bacias, encontros de leito dos
rios, áreas de fornecimento para os anseios agrários, novos possibilidades tecnológicas que
iriam elevar essa cidade com maior vigor e eficácia “[Crato] Acha-se em óptimas condições, para
ser abastecida com excellente agua potavel das nascentes do Grangeiro ou do Batateira; para
ser illuminada à luz electrica, etc. Presta-se facilmente a uma rêde de esgotos...” (CORTEZ, 2006,
p.29).
Contudo, podemos afirmar que ao tempo que o Crato era uma região privilegiada de
recursos naturais, fato é que “(...) nas épocas de seca o trem se mostrou muito eficiente porque
transportava alimentos e chegou a transportar água do Crato para Fortaleza”. (AQUINO, apud,
CORTEZ, 2006, p. 133). De forma que, o fator das ferrovias propiciaria elevadas contribuições
para a economia (o comércio diversificado) através das mercadorias e das feiras que surgiriam
em torno do centro da cidade, onde o trem trazia passageiros, frutas, verduras, artefatos
diversos que eram produzidos na região, permitindo o escoamento para a capital do Estado.

Entre os produtos que mais saem pela via férrea, em Crato, destacam-se:
mamona, farinha de mandioca, rapadura, peles, torta de algodão, gipsita, cereais
e algodão beneficiado. Recebemos pela mesma estrada: produtos
manufaturados, querosene, gasolina, ferragens, etc (CORTEZ, 2006, p. 108-
109).

Com isso, percebe-se que nesse mesmo território existiam cenários satisfatórios ao
comércio, expansão de mercados e dinamismo nas produções agrícolas mediante aos fatores
hídricos que foram fundamentais na elevação da economia e integralidade com outras
localidades.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse artigo foi desenvolvido para ampliar e contribuir no aporte de produções
historiográficas e oportunizar debates vindouros acerca do fenômeno seca com a chegada do
trem (estradas de ferro no Ceará) entre o final do século XIX e início do século XX.
Contextualizando seus enredos e tramas políticas originadas pelos discursos, interesses e
privilégios contornados pela esfera das oligarquias rurais e dos parlamentares que detinham
representatividade e poder perante os interesses que alimentavam suas conjunturas de
domínio. Ao tempo que essas narrativas depreciativas e homogêneas (haja vista, que o Ceará
era propagado com um berço de escassez, miséria, fome e desolação) ganhavam espaços e

52
sensibilização dos parlamentares das outras províncias junto ao governo central, ou seja,
vender/ propagar o Ceará no intuito de angariar vínculos de estruturação financeira nos
canteiros de obras espalhados pelo território cearense, vincular à primazia do progresso e do
desenvolvimento emplacado na pujança do trem e compreender o processo de ramificação
pelos sertões seria uma grande proeza da engenharia.
Nessa condição, analisar o fator do surgimento de povoados, vilarejos e aglomerados
urbanos estava alinhado com um processo de migração de flagelados que buscavam sobreviver
e escapar dessa projeção catastrófica da seca, isso é, às estradas de ferro acopla uma saída real
para fornecimento de mão de obra e eventualmente mudança no padrão social e econômico das
cidades. Portanto, esse artigo atribuiu novas perspectivas acerca de uma análise historiografia
sobre a gama de circunstâncias que seca moldou no sertão. Bem como, a expansão estabelecida
pela marcante presença do trem no Ceará e seus fatores de movimentação populacional,
formação urbana/ paisagística e populacional, etc. Logo, compreender um discurso que afronta
uma visão homogênea sobre regiões prosperas e ricas em abundância de água é algo que
sempre incomodou, ou seja, nem tudo é seca, sofrimento, dor, fome e escassez.

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. – 5.ed. –
São Paulo: Cortez, 2011.

ARANHA, Gervácio Batista. Trem e imaginário na Paraíba e região: Tramas político-


econômicas (1880-1925). Campina Grande: EDUFCG, 2006.

CORTEZ, Ana Isabel Ribeiro Parente. Memórias descarriladas: o trem na cidade do Crato.
Fortaleza: UFC, 2008.

GALVÃO, Rubismar Marques. Ferrovias no Ceará: suas tramas políticas e seus impactos
econômicos e culturais (1870-1930). Dissertação (Mestrado em História), Universidade
Federal de Campina Grande: Campina Grande, 2019.

MACIEL, Gustavo. Negociantes, mercadores e caixeiros portugueses no Ceará no século


XIX: a formação da comunidade mercantil lusitana de fortaleza e a provincialização do
comércio cearense. 1799-1870. Niterói: UFF, 2017.

REIS, Ana Isabel Ribeiro Parente Cortez. O espaço a serviço do tempo: a estrada de ferro de
Baturité e a invenção do Ceará, 2015.

SECRETO, María Verónica. A seca de 1877-1879 no Império do Brasil: dos ensinamentos


do senador Pompeu aos de André Rebouças: trabalhadores e mercado. História, Ciências,
Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 27, n.1, jan.-mar. 2020, p. 33-51.

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SOBRE OS/AS AUTORES/AS
Joelson Ramalho Rolim. Graduado no curso de Licenciatura plena em História.
Universidade Federal de Campina Grande (UFGC / CFP - campus Cajazeiras/ PB). Especialista
em Docência e metodologias ativas do ensino superior (Pós-Graduação lato sensu pela UNIFIC
– FACULDADES INTEGRADAS DO CEARÁ) e CPROFES – Centro Regional De Profissionalização,
Educação Superior, Cultura e Inovação. Ano de conclusão: 2021. Especialista em Gestão escolar
e planejamento educacional (Pós-Graduação lato sensu, pela FASP- PB/ Cajazeiras -PB), Ano de
Conclusão: 2013. Especialista em Capacitação em criação de empreendimentos econômicos
locais sustentados (pela Fundação Cearense de Pesquisa e Cultura- FCPC/ UFC. BNB/ ETENE),
Ano de Conclusão: 2012. Professor Efetivo, lecionando na EMEF CORONEL HUMBERTO
BEZERRA (Baixio- CE), ministrando os componentes curriculares de Geografia, Ética e
Empreendedorismo (na modalidade de eletivas no ensino integral). Professor Contratado
(Temporário, desde 2008), junto à CREDE 17 (Coordenadoria Regional de Desenvolvimento da
Educação, situada na Cidade de Icó- CE), lecionando na EEMTI MONSENHOR HORÁCIO
TEIXEIRA (Baixio- CE), ministrando o componente curricular de História (com ênfase em
História Geral e do Brasil). E-mail: joelsonramalho@hotmail.com. Orcid:
https://orcid.org/0009-0004-6623-1626. Contribuição de autoria: Interpretação, escrita e
revisão crítica.

Ana Elizabete Moreira de Farias: Graduada em História pela Universidade Federal de


Campina Grande, mestra em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal da Paraíba e Professora Efetiva da Prefeitura Municipal de Baixio. ORCID:
https://orcid.org/0009-0008-9408-9347. E-mail: anaelizabete82@gmail.com. Contribuição de
autoria: Interpretação, escrita e revisão crítica.

COMO CITAR
ROLIM. Joelson Ramalho; FARIAS, Ana Elizabete Moreira de. O Ceará das secas e das águas:
Discursos antagônicos e realidades adversas perante o advento das ferrovias entre 1870 e
1910. In: SILVA, Maria Larisse Elias da; FARIAS, Ana Elizabete Moreira de; CASTRO, Tatiana de
Carvalho (Orgs.). Pesquisa histórica em perspectiva, v. 1, Campina Grande: Amplla Editora,
2023, p. xx-xy. DOI:

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CAPÍTULO IV
PESTE, FOME E MISÉRIA: DOENÇAS NA PARAHYBA
DO NORTE DURANTE A SECA DE 1877-18791
PEST, HUNGER AND MISERY: DISEASES IN THE NORTHERN
PARAHYBA DURING THE 1877-1879 DROUGHT
DOI:

Serioja Rodrigues Cordeiro Mariano*


Rayane de Lima Brasil**
*Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História-UFPB; Líder do grupo de pesquisa
Sociedade e Cultura no Nordeste Oitocentista. E-mail: serioja.mariano@academico.ufpb.br. Orcid:
https://orcid.org/0000-0001-6010-0001.
** Graduada em História pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: rayanebrasil25@gmail.com.

RESUMO ABSTRACT
Este artigo tem como objetivo analisar as condições de This article aims to analyze the health and hygiene
saúde e higiene da população da Província da Parahyba, conditions of the Province of Parahyba population, during
durante a chamada “Grande Seca” de 1877-1879. A década the so-called 1877-1879 “Great Drought”. The 1870s were
de 1870 foi marcada por um longo período de escassez de marked by a long period of lack of rain and endemic and
chuvas e de doenças endêmicas e epidêmicas, além da crise epidemic diseases, in addition to the agricultural economy
na economia agrícola. Outros fatores levaram à falta de crisis. Other factors led to a lack of food and to a
alimentos e ao aumento generalizado da fome. Nesse widespread increase in hunger. In this context, the
contexto, o governo desenvolveu, segundo os discursos da government developed, according to the discourses of the
época, uma série de políticas públicas de combate à seca e time, a series of public policies to combat drought and
à miséria, mas em alguns lugares esses auxílios foram poverty, but in some places this aid was insufficient. The
insuficientes. A falta de recursos hídricos bem como a lack of water resources and the slowness of direct action of
morosidade da atuação direta da administração pública, na the public administration, regarding the distribution of
distribuição de gêneros alimentícios e medicamentos, food products and medicines, intensified the scenario of
intensificaram o cenário de “peste, fome e miséria”, “pestilence, hunger and misery”, mainly in the countryside,
principalmente no interior, provocando um intenso fluxo causing an intense migratory flow of dwellers and,
migratório de retirantes e, consequentemente, o aumento consequently, the increase of various diseases to the
de diversas doenças para as regiões mais próximas da regions closer to the capital, such as Brejo and the Province
capital, como o Brejo e o Litoral da Província. Na Coast. In preparing this text, for better understanding of
elaboração deste texto, para uma melhor compreensão da the theme, we used the New Cultural History as a
temática, utilizamos a Nova História Cultural como aporte theoretical contribution, based on the Health and Diseases
teórico, a partir da História da Saúde e das Doenças, bem History, as well as some sources, such as newspapers that
como algumas fontes, a exemplo de jornais que circulavam were circulating at the time, statistical maps,
à época; mapas estatísticos; correspondências; ofícios; correspondences; letters of notification; reports, among
relatórios, entre outras, o que nos permitiu compreender others, which allowed us to realize the social, cultural,
as transformações sociais, culturais, econômicas e políticas economic and political transformations that occurred
ocorridas durante o contexto da Seca (1877-1879). during the Drought context (1877-1879).

Palavras-chave: Doenças; Parahyba do Norte; Retirantes; Keywords: Illnesses; Parahyba do Norte; Dwellers;
Seca. Drought.

1Esse artigo faz parte dos resultados obtidos na pesquisa desenvolvida na Iniciação Científica.

55
1. INTRODUÇÃO
Somente há ramos, não há pasto, e nem lavouras, que dêem esperança de melhoras à
sorte da pobreza, que está já magra, e quase a morrer de fome. Todos os dias chegam-
me motins de pessoas, velhas, e crianças, caídas de fraqueza e fome. (Villa de Patos,
abril de 1877, AHWBD, Cx. 062-1879. Grifos nossos).

Abril de 1877, na Vila de Patos, no interior da Parahyba, os relatos davam conta de uma
situação calamitosa: muita fome, miséria e doenças. Essa narrativa faz parte da carta enviada
pelo vigário Manuel Cordeiro da Cruz, ao Presidente da Província da Parahyba, o Dr. Esmerino
Gomes Parente, a qual relata o sentimento de angústia e desespero em que se encontravam os
habitantes daquela região. No mesmo documento, o padre pede providências ao governo, pois
a economia agrícola estava em ruínas e a população das vilas e freguesias agonizava e fugia para
outras localidades.
José Américo de Almeida no livro A Paraíba e Seus Problemas, publicado em 1923, traz o
seu olhar acerca da situação da Parahyba durante o período conhecido como “a grande seca” de
1877 a 1879, e chama a atenção para as doenças que estavam assolando a Província: “as
infecções palustres, o beribéri, a anasarca, as febres perniciosas, o escorbuto, a varíola, e outras
entidades mórbidas (...)”, (2012, p.161 [1923]). Essa informação, sobre o aumento de
enfermidades no período da estiagem, pode ser observada, também, no Relatório do Presidente
da Província, o Dr. Esmerindo Gomes Parente, em 01 de maio de 1878, no qual afirma que em
algumas localidades têm se desenvolvido “febre de mao caráter” e a “bexiga”, que se
espalhavam feito rastilho de pólvora com o grande número de imigrantes que chegavam do
interior e lotavam as ruas da capital (RELATÓRIO, 1878, p. 10-11). Nesse deslocamento de
pessoas que fugiam da estiagem, alguns lugares como o Agreste, Borborema e, principalmente,
a Zona da Mata Parahybana foram os que mais receberam imigrantes provenientes do Sertão,
e de outras Províncias vizinhas, como o Rio Grande do Norte e o Ceará.
A economia entrou em um processo de decadência e a situação só piorou com a falta de
chuvas. O sistema de plantação, colheita e pastagem foi diretamente afetado, provocando assim,
um quadro de fome, sede e de diversas doenças em várias localidades do antigo Norte. A
situação das finanças era precária. Com o aumento populacional na capital e a economia em
declínio – o algodão e o açúcar -, os governantes pediram ajuda ao governo central e a outras
Províncias que não estavam passando por essa crise para conter “esse terrível flagelo” causado
pela seca (RELATÓRIO, 1878, p. 12). A ajuda do Governo Central veio em forma de algumas
medidas emergenciais e paliativas, como os Socorros Públicos. Cada Província atingida pela

56
estiagem ficava responsável pela criação de uma Comissão de Socorro Público que atuava na
organização e distribuição de mantimentos e medicamentos (ARAÚJO, 2018, p. 11).
Ao longo desse processo migratório, nos dois primeiros anos da seca, só na capital da
Parahyba, “e em seus arredores, havia entre 30 e 35 mil retirantes1. Esse quantitativo era maior
do que a soma da população total da Cidade da Parahyba (24.714) e de Alhandra (4.884),
equivalente a catorze vezes o número de escravizados da capital em 1872”, assevera Lucian de
Sousa Silva (2019, p. 80). Esse fator colaborou para uma série de problemas, e as autoridades
públicas não estavam preparadas para lidar com a gama de indigentes que chegavam dia após
dia e, muito menos, com a complexidade da elaboração de um plano emergencial que atendesse
às necessidades básicas de alimentação, saúde, moradia e trabalho para socorrer toda a
população atingida pelo flagelo da seca.
É importante deixar claro que na história da Parahyba, desde o período colonial,
ocorreram episódios historicamente relatados de seca. Albuquerque Júnior (1988), em Fala de
astúcia e de angústia: a seca no imaginário nordestino. De problema à solução (1877-1922),
aponta que em outros momentos a Parahyba sofreu com as estiagens. Lúcia Guerra Ferreira
(1993), em Raízes da indústria da seca: o caso da Paraíba, traz uma abordagem sobre o
desenvolvimento em torno da administração da “indústria da seca”, que se consolida no regime
republicano, e das propostas criadas para sanar o problema da seca. Outro aspecto notado pela
autora diz respeito à prática do assistencialismo entre as elites oligárquicas e latifundiárias, que
são fortalecidas através do fornecimento de auxílios como moradia e alimentação aos
flagelados/retirantes da seca para obtenção e controle da mão de obra e manutenção da
hegemonia política (FERREIRA, 1993, p. 25).
Mas a seca de 1877 a 1879 teve uma proporção maior, por quê? O que a fez ganhar
tamanho destaque, historicamente falando? Seria porque afetou, de uma maneira dramática, a
economia da Província, inclusive os produtos de subsistência? Para Albuquerque Júnior, além
da crise interna, com o prolongamento da estiagem, as exportações de açúcar e algodão
sofreram, também, com a crise que estava acometendo a economia mundial, ou seja, “(...) a
queda de preços, tanto do açúcar quanto do algodão, (...) deve-se à grande depressão, que afetou
a economia mundial de 1873 a 1896” (ALBUQUERQUE JR, 1988, p. 27).

1Segundo o Dicionário do Folclore Brasileiro, de Câmara Cascudo, o retirante era “o nome dado ao sertanejo que
deixava o sertão, expulso pela seca prolongada. Continua em uso. Apareceu pela primeira vez na imprensa, ao
redor da seca de 1877, noticiando as ondas de milhares de retirantes que emigravam, exaustos de recursos,
procurando ‘refrigério’ no litoral, viajando para o extremo Norte” (1998, [1954], p. 778.).

57
Na chamada crise dos três anos, 1877, 78 e 79, algumas doenças epidêmicas voltaram a
grassar na Província: a febre amarela, varíola, cólera. Em 1878, a varíola assolou a capital da
Parahyba e algumas províncias vizinhas, como o Ceará (DAVIS, 2002, p. 100). Segundo Nereida
Soares Martins (2019), nesse contexto, outra enfermidade teria acometido a população de
retirante, a cegueira noturna causada pela falta de vitamina A no organismo.
Trata-se, pois, de um cenário de crise que fica claro ao analisarmos a documentação com
os relatos dos poderes públicos que temiam uma desorganização social, com o crescimento
demográfico na cidade da Parahyba e as doenças que se alastravam. A fome era tão grande que,
na cidade de Pombal, segundo os relatos da época, ocorreram casos de canibalismo, “a retirante
Donária dos Anjos que matou uma menina e depois devorou o seu cadáver vorazmente” (LEAL,
1989, p. 197, [1954]2. Uma situação de penúria, de desespero, que atacava todas as classes sem
distinção, diz o jornal A Opinião, (1878, p. 2). Um flagelo que durou três anos “devastou a
Província e prossegue com todo o seu cortejo de miséria e vexações” (O PUBLICADOR,
09/05/1879, p. 2).
Portanto, a partir do exposto, este artigo tem por objetivo analisar as condições de saúde
e higiene na Província da Parahyba, no contexto da seca de 1877 a 1879. Dando seguimento, foi
feito um mapeamento sobre as principais doenças que acometiam a população e as práticas
terapêuticas da época. Além disso, investigamos a atuação das autoridades públicas, nas
medidas emergenciais, como a criação da Comissão de Socorros Públicos.
Segundo Sandra Pesavento, quando nós historiadores lidamos com qualquer
fonte/documento histórico, buscamos "decifrar a realidade do passado por meio das suas
representações", que só são possíveis "acessar através de registros e sinais do passado que
chegam até ele" (2005, p.42). Nesse viés, utilizamos como fonte de pesquisa alguns jornais que
circulavam na década de 1870: A União Liberal (1878-1879), A Opinião (1878), Echo Escolástico
(1877-1878), O Retirante-CE (1877-1878) e O Liberal Parahybano (1879-1889).3 Compondo o

2Donária dos Anjos teria saído de Piancó, fugindo da seca, e se instalado em Pombal.
3Disponíveis nos acervos virtuais da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional
(https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/); e do CCHLA, Jornais e folhetins literários da Paraíba no século
XIX (http://www.cchla.ufpb.br/jornaisefolhetins/acervo.html).

58
corpus documental, analisamos também: os Mapas Estatísticos e Relação4; as
Correspondências5; os Relatórios de Presidentes de Províncias, entre outros.
Compreendemos que as doenças fazem parte da história, em quadros individuais ou
epidêmicos, e os grupos sociais, a cada época, atribuem significados e sentidos a essas,
interagindo em contextos e de formas distintas (PIMENTA, 2018). Essa relação entre doenças e
grupos sociais no decorrer do tempo produz diversos significados simbólicos através das
crenças, dos costumes, da moral e da política. Ou seja, as doenças são mais que alterações
biológicas do estado de saúde dos seres e, dessa forma, não podem ser entendidas unicamente
enquanto entidade biológica, mas enquanto um fenômeno sociocultural (Nascimento &
Carvalho, 2004).

2. A SITUAÇÃO VAI PIORANDO DA CAPITAL...NAS RUAS VEEM-SE


AMBULANTES NUS E SEM FORÇAS PARA IMPLORAREM UMA ESMOLA...
No primeiro ano da seca, em 12 de agosto de 1877, o Presidente da Parahyba, o Dr.
Esmerino Gomes Parente, apresentou à Assembleia Legislativa a situação do quadro nosológico
da Província. Na ocasião, registrou que havia “apenas uma vítima de febre amarela”, porém,
“sete pessoas de uma mesma família, provenientes do sertão, foram assoladas pela varíola”.
Temendo que a bexiga se alastrasse, o governo logo tratou de conduzi-las para “uma pequena
casa alugada”, seguindo as medidas de isolamento e tratamento. Para o Presidente, outra
medida preventiva seria reformar o Lazareto da Restinga, área de isolamento e quarentena,
muito utilizado nas epidemias de febre amarela (1850) e cólera (1856 e 1862). Um espaço
destinado a cuidar daqueles que viessem a contrair essas doenças epidêmicas (RELATÓRIO,
1877, p. 36).
Ainda no mesmo Relatório, o Presidente apresentou os primeiros registros de mortes
causadas pela varíola, entre 1º de maio e 12 de agosto do respectivo ano, tendo falecido
74 pessoas, a maior parte, “vindas de fora, não vacinadas” (Relatório, 1877, p.37). Podemos
levantar algumas questões interessantes sobre a sua fala, já que ele também informa sobre o

4Tinham a função de registrar o movimento de entrada e saída, além de informar o número de mortos e os que
continuariam em tratamento, das enfermarias e dos hospitais da Parahyba. Assim como as Relações que serviam
para identificar a lista completa dos municípios, núcleos coloniais, turma de trabalhadores ocupados em obras
públicas ou dos hospitais que recebiam as cargas de alimentos, roupas, remédios homeopáticos, itens de higiene e
limpeza. Arquivo Histórico Waldemar Bispo Duarte, em João Pessoa-PB.
5Eram enviadas principalmente pelos vigários e padres de cada vila ou freguesia, os quais relatavam sobre o estado

daquele local, como a saúde da população desvalida ou solicitando o fornecimento de novas sacas de alimentos e
remédios. Essa documentação se encontra no Arquivo Histórico Waldemar Bispo Duarte, em João Pessoa-PB.

59
envio “não só de remédios para debelar o mal, como lympha vaccinica para preveni-lo”
(RELATÓRIO, 1877, p. 37).
Acreditamos que era importante, para um Presidente da Província, ressaltar a atuação
“enérgica” do governo em meio a um período de crise, uma vez que a oposição estava alerta
para fazer as críticas, como pode ser constatado no jornal Echo Escolástico (1877-1878), na
edição do dia 19 de setembro de 1877. Um mês após a apresentação do Relatório, feita pelo
presidente Esmerino Gomes, o jornal tece duras críticas e aponta o caos que imperava na
Parahyba: a devastação causada pela seca, os “horrores e misérias que se ver no interior, [...], a
fome em todo seu horrível poderio e nudez”. Assim como a “péssima administração”, em se
tratando do combate à seca naquele ano: “Todos falam, todos discutem, interpela-se o governo,
acusam-se os membros das Comissões de socorros, mas ninguém faz nada” (ECHO
ESCOLÁSTICO, 19/09/1877).
Outro fator primordial eram os desvios de recursos que eram destinados aos socorros
públicos e a outras providências assistenciais. Havia denúncias de fraudes e roubalheiras com
as verbas públicas dirigidas ao combate à fome, colocando em risco a sobrevivência de milhares
de pessoas afetadas pelo flagelo e, também, a negligência com a saúde pública da Província em
geral. Pauta essa que O Echo Escolástico também não perdoou e apontou tais irregularidades.
Essas irregularidades também podem ser percebidas em outras Províncias, a exemplo
do Rio Grande do Norte. Segundo Araújo, “É importante destacar que algumas comissões
praticavam irregularidades e muitas vezes desviavam os recursos que serviriam para comprar
alimentos e medicamentos destinados à população flagelada pelos efeitos da seca” (ARAÚJO,
2015, p. 11).
Na Parahyba, os anos 1870 já se iniciaram com uma epidemia de varíola que grassava
pela Província. Ao assumir a presidência, em 21 de maior de 1876, o Barão de Mamanguape, no
seu relatório, alerta para o fato de que “a moléstia que maior número de vítima tem feito até
hoje é a varíola”. O Barão solicitou, com urgência, para que fossem enviados medicamentos e
“dietas específicas” para atender às localidades mais afetadas, como: Alagoa Grande, Ingá,
Souza, São João do Cariri e Piancó. Diz que na capital, algumas pessoas faleceram em
decorrência da “bexiga”, porém, no interior, o número de óbitos foi bem maior do que na capital.
O presidente acredita que essa baixa na capital se deve à vacinação anterior, mas que havia três
meses sem vacinar porque a lympha era de péssima qualidade (RELATÓRIO, 1876, p. 10-12).
Uma situação que só vai piorar com a crise gerada pela estiagem e o grande número de
retirantes que se aglomeravam nas ruas da cidade da Parahyba.

60
Para assistir os acometidos pela varíola, foi criado o Hospital dos Variolosos. Fundado
no prédio do antigo Colégio de Educando e Artífices, no sítio Cruz do Peixe, distante mais de um
quilômetro do centro da cidade, era administrado pelo Major Carlos Ribeiro Pessoa de Lacerda,
sob a responsabilidade do médico Abdon Felinto Milanez (MARIANO, 2020). A ideia era evitar
que os doentes afetados pela cólera, sarampo, varíola, febre amarela, entre outras doenças,
estas consideradas perigosas, transmitissem as “affecções contagiosas”. Por essa razão, era
essencial separar, isolar, segregar os enfermos em hospitais distantes dos centros urbanos, “o
isolamento consuma-se assim em exclusão de si mesmo” (REVEL; PETER, 1976, p. 148).
Serioja Mariano aponta alguns problemas sobre o plano de vacinação contra a varíola,
entre eles, a recusa por parte da população que desconhecia o processo de inoculação do pus
variólico, visto que “muitos não voltavam para terminar o tratamento, pois temiam ser
contaminados, e o pus se estragava” e acabavam recorrendo aos tratamentos terapêuticos
compartilhados através de receitas e indicações como as “dietas de mingaus” (MARIANO, 2020,
p. 175).
A homeopatia também era utilizada no tratamento dos variolosos, como é evidenciado
na seção referente ao Expediente do Governo, do jornal A União Liberal (1878-1879). No dia 28
de fevereiro de 1879, houve a compra de “três ambulâncias com medicamentos homeopáticos
para o tratamento dos indigentes afetados de varíola e outras moléstias que se iam
desenvolvendo nas comarcas do Ingá e Bananeiras e na villa de Cabaceiras” (A UNIÃO LIBERAL,
28/02/1879). Ao todo, as três ambulâncias custaram centro e quarenta e nove mil réis
(149$000) aos cofres públicos, a quantia deveria ser paga na praça do Recife de Pernambuco
(A UNIÃO LIBERAL, 28/02/1879).
Diante do surto de varíola e com o aumento populacional na capital, podemos observar
o número de mortes entre os anos de 1878 e 1879. Como é possível verificar no Quadro I, houve
um aumento superior, equivalente a vinte vezes a mais do que as 74 mortes em 1877. A
documentação consultada nos permitiu um olhar não restrito apenas na Capital, que registrou
550 mortes só em 1878, e 433 mortes em 1879.

61
Quadro 1 – Número de mortes pela varíola nos principais hospitais da Província entre 1878 e 1879

ANO 1878 1879 ENFERMARIA DOS VARIOLOSOS – CRUZ DO PEIXE (CAPITAL)


MÊS MAI-SET JAN FEV MAR ABR MAI JUN JUL AGO SET OUT TOTAL
FALECIDOS 550 67 47 59 47 38 34 - 91 - 50 983
ANO 1878-79 1879 HOSPITAL VARIOLOSOS – SANTA RITA
MÊS AGO-JUN - - - - - - - - - - TOTAL
FALECIDOS 102 - - - - - - - - - - 102
ANO 1878 1879 HOSPITAL DA CIDADE DE AREIA
MÊS AGO-DEZ JAN FEV MAR ABR MAI JUN JUL - - - TOTAL
FALECIDOS 37 - 1 2 10 4 3 3 - - - 60
ANO 1878 1879 HOSPITAL SÃO PEDRO – MAMANGUAPE
MÊS JUL AGO SET - - - - - - - - TOTAL
FALECIDOS 81 139 74 - - - - - - - - 294
SOMA TOTAL DOS FALECIDOS 1.493
Fonte: Quadro elaborado e adaptado por nós com base nos dados coletados nos Relatórios de Presidente de
Província de 1879 e nos Mapas Estatísticos de Movimento da enfermaria e dos hospitais que atendiam os
variolosos na Capital, Santa Rita, Areia e Mamanguape (1878-79). Arquivo Histórico Waldemar Bispo Duarte,
Caixa – 062 (1879).

Com o agravamento das doenças e o aumento dos casos de varíola, foram criados novos
espaços para atender a esses enfermos. Em 1879, existiam “uma pequena enfermaria” e
hospitais destinados aos variolosos em Santa Rita, Mamanguape e Areia. No Mapa de
Movimento do Hospital de Variolosos da Freguesia de Santa Rita, entre 15 de agosto de 1878 e
30 de julho de 1879, houve um total de 446 pessoas infectadas, das quais 102 acabaram
falecendo. Já no Hospital da Cidade de Areia, em 1878, foram registradas 37 mortes; em 1879,
examinamos que houve uma diminuição no número de óbitos, pois foram 23 mortes. Isto nos
leva a concluir que os casos de varíola nas regiões do Brejo se deram em menor proporção do
que no litoral, notadamente na cidade da Parahyba. Por fim, temos a estatística do Hospital de
São Pedro, em Mamanguape, com 294 falecidos só no ano de 1878, infelizmente não foi possível
encontrarmos a taxa do ano seguinte.
Diante da fome e da miséria, os governos provinciais criaram as Comissões de Socorros
Públicos, que ficavam encarregadas da distribuição de alimentos, remédios, roupas e itens de
higiene. Embora houvesse uma série de problemas envolvendo a queda da renda orçamentária
dos cofres públicos e as acusações de desvio de dinheiro, como já mencionamos, administrar
inúmeras Comissões era uma tarefa mais complexa do que imaginamos.
Vejamos na manchete sobre a Seca, do jornal O Retirante (CE), que se posicionava a favor
dos retirantes, do dia 19 de dezembro de 1877, que indicava os dados estatísticos populacionais
das oito províncias do Norte afetadas pela seca: Piauí (150.000), Ceará (700.000), Rio Grande
do Norte (117.000), Parahyba (400.000), Pernambuco (200.000), Alagoas (50.000), Sergipe
(30.600) e a Bahia (500.000). Perfazia, assim, um total de 2.147.000 pessoas que necessitavam

62
da assistência do governo, só na Parahyba, havia cerca de 400 mil habitantes (O RETIRANTE-
CE, 19/12/1877). Ou seja, o governo não estava preparado para dar conta de tantos pedidos de
socorros, faltava não só dinheiro, mas também planejamentos e gestão eficazes para a
distribuição e uma reserva estratégica de estoque em cada município, além de investimentos
em obras hídricas, disposição de novos médicos e enfermeiros para socorrer a população do
interior.
Além disso, as sacas de alimentos fornecidas pela Comissão de Socorros não eram
calculadas em longo prazo, e muito menos para socorrer toda a população de cada freguesia ou
vilas. Um relatório enviado pelo juiz de Direito da Comissão da Comarca de Souza explicava que
a dinâmica de distribuição dos alimentos era feita apenas uma vez na semana ou
quinzenalmente, e deveria ser entregue ao chefe de família, que possuía um cartão de
autorização para controlar o número de beneficiados e evitar roubos (Comissão da Comarca de
Souza, AHWBD, 13/04/1878). No entanto, eram constantes as reclamações sobre o atraso do
transporte com as cargas a serem entregues à população flagelada. Há relatos do mau estado
de conservação em que chegavam as carnes, o que por si só agravava ainda mais o sistema de
distribuição dos socorros, que impedia a população de ter uma alimentação saudável e
adequada, o que acarretava, também, muitas enfermidades.
Outro fator intrigante é que não há muitas informações sobre o abastecimento ou
fornecimento de água potável. Acreditamos que eram feitos o racionamento da água e o seu uso
nos pequenos açudes de propriedades particulares. Como é apresentado no Quadro II abaixo,
nem todos os municípios recebiam de uma vez as cargas de gêneros alimentícios, nos piores
cenários, demorariam meses.
Quadro 2 – Relação do número de cargas dos gêneros alimentícios que se costumava remeter quinzenalmente às
diferentes Comissões de Socorros em 05 de abril de 1879

ARROZ BACALHAU CARNE FARINHA FEIJÃO MILHO Nº DE


LOCALIDADES
(Sacas) (Barricas) (kg) (Sacas) (Sacas) (Sacas) CARGAS
Alagoa do
4 6 300 50 8 8 40
Monteiro
Alagoa Grande 4 6 300 50 8 8 40
Alagoa Nova 4 6 300 50 8 8 40
Araruna 4 6 150 40 4 4 30
Areia 26 24 1.500 280 30 30 200
Bananeiras 6 10 300 60 10 10 50
Belém 2 4 150 28 2 2 20
Borborema 4 8 300 54 8 8 44
Cabaceiras 4 6 150 40 4 4 30

63
ARROZ BACALHAU CARNE FARINHA FEIJÃO MILHO Nº DE
LOCALIDADES
(Sacas) (Barricas) (kg) (Sacas) (Sacas) (Sacas) CARGAS
Campina
24
Grande 26 1.500 280 30 30 200
Independência 4 6 150 50 4 4 40
Ingá 4 6 300 50 8 8 40
Mamanguape 20 20 450 26 24 30 180
Patos 4 6 300 50 8 8 40
S. Luzia do
6
Sabugy 4 300 50 8 8 40
São João 10 10 4.500 70 10 14 60
Serra da Raiz 2 4 150 28 2 2 20
Teixeira 4 6 300 50 8 8 40
TOTAL 136 164 11.400 1.306 184 194 1.154
Fonte: Quadro elaborado por nós com base nos dados coletados na documentação da Tesouraria da Fazenda da
Parahyba, em 05 de abril de 1878. Arquivo Histórico Waldemar Bispo Duarte, Caixa – 062 (1879).

Nesta Relação, as 18 Comarcas receberam uma dieta “premiada”, pois se compararmos


com outras relações de cargas, a mais comum continha apenas o arroz, a farinha e a carne seca,
conhecida como “ração dos indigentes”, e que “servia, apenas, para prolongar a agonia da
população” (ALMEIDA, 2012 [1923], p. 167). São alimentos não perecíveis, e nessa dita dieta
“premiada” perecermos a ausência de frutas e verduras, ou seja, uma dieta considerada “pobre
em proteínas e vitaminas, nutrientes fundamentais para evitar doenças como beribéri e
escorbuto” (ARAÚJO, 2018, p. 8).
A chegada dos retirantes, flagelados e desvalidos6 à capital desencadeou a preocupação
não só do governo, mas também dos médicos e higienistas da época. Segundo Chalhoub (1996,
p. 29), a massa de populares em um só espaço aglomerado, como os cortiços, analisados pelo
autor, oferecia riscos à saúde dos mais abastados e inquietação da ordem pública, pois, eles
eram considerados como um “perigo de contágio”, já que os locais que serviam como moradia
ou alojamento “seriam focos de irradiação de epidemias” e de insalubridade. Dessa forma, o
discurso baseado na teoria miasmática, ocorrida através da exalação de substâncias advindas
de animais, vegetais e humanos em estado de decomposição, ou ainda, em locais com multidões
de pessoas infectadas, ganhava cada vez mais espaço dentro da sociedade assim como a
influência dos governadores nas ações de caráter civilizador e nas imposições higiênicas,

6 Em outras Províncias do antigo Norte agrário esses termos como: “desvalidos, retirantes e flagelados”, eram
utilizados, principalmente pelas autoridades públicas, no sentido de estigmatizar essa população, “[...] pois,
flagelado quer dizer pessoa que vive em péssimas condições de vida e desvalido é o que não tem valia, amparo,
poucos recursos para a sobrevivência, pobre [...]” (Araújo, 2018, p.3).

64
propostas pela Junta Central de Higiene Pública, que foram surgindo nesse contexto (Chalhoub,
1996, p. 35).
Apesar do forte discurso pela adoção de um “modelo higiênico ideal”, com regras a serem
cumpridas, promovendo “estratégias de segregação e disciplinarização [...], diante de uma
conjuntura de crise, a população deveria ser policiada e esse controle social era fundamental,
dentro das medidas político-administrativas, para o bom funcionamento e segurança da
sociedade” (MARIANO, N., 2015, p. 123). Cabe sinalizar que o estado sanitário da maioria das
Províncias estava longe de oferecer e sofrer tais mudanças. A falta de um planejamento para a
criação de um sistema de saneamento básico, de água potável e de drenagem pluvial contribuía
para a proliferação de diversas doenças e sintomas como a diarreia, náuseas, vômitos, febre,
cólera, entre outros (CASTRO, 1945, p. 244).
Como podemos ver, o discurso médico e higiênico atribuía qualquer doença de caráter
infectocontagioso aos pobres e retirantes que chegavam em “estado de miséria” com seus
“hábitos anti-higiênicos”, contaminados por diversas doenças. Essa imagem dos retirantes não
representava o ideal da Província, que pretendia ser “moderna” e “civilizada”, e, para isso
acontecer, a educação e a higiene deveriam caminhar juntas na ordenação dos espaços público
e privado, pois “tinham o intuito de construir um programa civilizador, já que a instrução era
vista como um instrumento propagador de transformações e progresso” (MARIANO, N., 2015,
p. 261).
Os problemas de insalubridade na Capital eram amplamente discutidos nos Relatórios e
ofícios médicos da época. Para o Dr. Antônio da Cruz Cordeiro, um dos principais médicos que
atuava na Província no século XIX, o estado sanitário de alguns espaços, como a Cadeia Pública
e demais localidades cercadas por pântanos, era péssimo: “onde se acumulam detritos vegetais
em putrefação, cujas emanações deletérias muito devem contribuir para o desenvolvimento das
febres, obstruções e anemias” (Ofício Nº674 da Santa Casa da Misericórdia, AHWBD,
10/07/1877). Entre as medidas de prevenção apontadas pelo médico estavam: a distribuição
de novas roupas e cobertas, além da criação de novos espaços/celas arejados para evitar a
aglomeração e proliferação de doenças. O médico ainda alertava para os problemas do hospital
da Santa Casa, que iam além das péssimas condições de higiene como a falta de verbas e de
estrutura para atender aos casos de doenças infectocontagiosas como a sífilis e a varíola.
No Brasil de meados do século XIX, o saber médico estava se institucionalizando e a
medicina era exercida pelos médicos e cirurgiões licenciados. Havia também os práticos, ou
seja, os curandeiros, barbeiros-cirurgiões, boticários e sangradores. Este último grupo de
práticos era composto por escravizados, livres e mulheres conhecidas como rezadeiras

65
(PIMENTA, 1998, p. 353). Os métodos de cura utilizados pelos práticos populares envolviam,
entre outras práticas, as aplicações de sanguessugas e lançamentos de ventosas (PIMENTA,
1998). Outra característica atestada sobre os terapêuticos populares é que embora fossem
oriundos de classes sociais menos privilegiadas, seus serviços eram requeridos por pobres e
ricos, uma vez que dominavam diversos métodos de curas para tratar de moléstias como
“pernas inchadas, cancros, carbúnculos, moléstias dos olhos, surdez, escrófulas, e ainda faziam
nascer cabelo” (PIMENTA, 2004, p. 79). Na Paraíba Oitocentista foi indiscutível a presença de
práticos, como apontado na dissertação de Wuendisy Fortunato (2020), em “Artes de curar em
confronto? Disputas, ofícios e práticas de cura na Paraíba Imperial (1870-1880)”.
Existiam ainda os métodos terapêuticos baseados na alopatia, que agia “pelo contrário”
no organismo, sendo produzidos em farmácias e laboratórios, e que seriam difundidos em larga
escala a partir do século XX; e a homeopatia, medicamentos originados da criação de elementos
de origem vegetal, mineral ou animal; como consta no quadro III, a seguir. O método
homeopático, no século XVIII, foi sem dúvidas “a terapêutica mais corrente, muito mais
divulgada e de grande fama em todas as camadas populares” (CASTRO, 1945, p. 293). No
entanto, existia uma disputa de saberes com a institucionalização da terapêutica homeopática,
que poderia ser praticada por “vigários, [...], professores, políticos e pobres agricultores, que
mal sabiam ler, e até mães de família” (CASTRO, 1945, p. 295). Tais saberes colocavam em xeque
a produção e reprodução do saber médico-oficial, que teciam críticas à propagação e atividade
dessa terapêutica realizada pelos homeopatas. O saber médico era constituído por “uma
estratégia de manutenção de poder” (MARIANO; MARIANO, 2022, p. 259). No Quadro III,
podemos visualizar a lista de medicamentos homeopáticos utilizados no tratamento dos
retirantes da seca que estavam internados no hospital de Mamanguape.
Na documentação consultada, averiguamos uma maior aceitação, a partir da década de
1850, e principalmente em 1870, da homeopatia e a sua utilização por parte dos médicos, ou
não, que atuavam na Pararyba. Isto é retratado nas documentações oficiais do século XIX e nos
jornais da época, que noticiavam o envio de ambulância com medicamentos homeopáticos para
o tratamento da cólera e varíola (MARIANO; MARIANO, 2022). Durante a seca, o trabalho dos
homeopatas também passou a ser utilizado, é o que consta no rendimento orçamentário, da
Villa de Bananeiras, em 1878, em que foi solicitada a contratação de “dois curandeiros, um
homeopata e outro alopata” (Comissão de Socorros da Villa de Bananeiras, AHWBD,
26/08/1878).

66
Quadro 3 – Relação dos medicamentos homeopáticos “necessários para os doentes do Hospital de São Pedro” na
Cidade de Mamanguape em 1879

MEDICAMENTOS EFICÁCIA
Bálsamo apodeldoc indicado para tratar contusões, cãibras e dores reumáticas
Bolas contra a diarreha constipante intestinal
Emplasto anodino (Boerhaave) ação calmante e analgésico
Espírito de sal-amoníaco ação expectorante
Espírito odontálgico contra dor de dente aguda
Éter sulfúrico ação antiespasmódica/calmante
Manná comum para problemas intestinais; purgante
Pastilhas de angico indicado para tratar a bronquite e inflamações pulmonares
Pílulas ante-boubaticas contra lesões de pele causadas pela bouba
Pílulas ante-cibum para digestão, tomar antes do almoço
Senne ação laxativa
Sulfacto de quinino puro contra anasarca e febres intermitentes
Tintura de centeio espigado contra hemorragias, paralisias intestinas e mielite crônica
Fonte: Quadro elaborado por nós a partir dos dados coletados no Relatório da Secretaria do Hospital de S. Pedro
em Mamanguape, no ano de 1879. Arquivo Público Waldemar Bispo Duarte, Cx.062- (1879); e adaptado com
base nas informações contidas sobre o método e eficácia dos remédios no Dicionário de Medicina Popular do Dr.
Chernoviz (1890).

As condições de saúde se tornaram cada vez mais precárias conforme o crescimento


demográfico e o amontoado de pessoas sem assistência necessária, o que proporcionou um
aumento no número de doenças infectocontagiosas, e aquelas causadas pela exposição
excessiva ao sol e ambiente seco, ou seja, as respiratórias, de pele, desidratação, fome e
digestiva. Portanto, os tratamentos alopáticos, homeopáticos e outras artes de curar foram
fundamentais para aliviar o sofrimento dos retirantes.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Seca de 1877-1879 ficou marcada pelo cenário de doenças, sede, fome e morte,
levando inúmeras pessoas a realizarem uma migração “forçada” para outras localidades ou
Províncias vizinhas, como o Rio Grande do Norte, Pernambuco e Ceará, em busca de melhores
condições de vida e saúde. É notório destacar que por mais que existisse e fosse fornecida a
assistência aos desvalidos, ela não foi o suficiente, pois, em cada núcleo/comarca e vilas, vemos
negligência política aos pedidos constantes de novas remessas, que eram distribuídas em pouca
quantidade ou faltando diversos itens, a exemplo de higiene e remédios.
Em relação às medidas higiênicas criadas e impostas, a reorganização e urbanização da
capital foram consideradas uma etapa crucial pelos médicos e inspetores de higiene. Mas
existiam outras pendências, lugares que não tinham uma boa estrutura como o péssimo estado
da Cadeia Municipal, dos prostíbulos, vilarejos e núcleos coloniais, além do hospital da Santa
Casa, que atendia a inúmeros enfermos.

67
Ao longo do texto, observamos como as autoridades públicas caracterizaram a “grande
seca” como um “problema nacional”, e chamaram a atenção para diversas dificuldades
enfrentadas como a falta de água, saneamento básico, construções de reservatórios hídricos,
além de alimentos e medicamentos. A partir de fevereiro de 1880, a situação lentamente voltava
à sua “normalidade”. Os surtos epidêmicos estavam sob controle, as chuvas caíam novamente
e as produções agrícolas começavam a prosperar. Os cofres públicos da Província se
reergueram lentamente. Enquanto alguns retirantes começavam a regressar para as suas
terras, com a desesperança vivida nos três anos seguidos de seca, outros se estabeleceram no
Litoral e no Brejo parahybano.

REFERÊNCIAS

Fontes
CARTA DA VILLA DE PATOS, Enviada pelo vigário Manuel Cordeiro da Cruz para o Presidente
da Província da Parahyba, o Dr. Esmerino Gomes Parente, abril de 1877. Arquivo Público
Waldemar Bispo Duarte, Cx.061-B (1875-1878).

COMISSÃO COMARCA DE SOUZA, Socorros Públicos, 13 de abril de 1878. Arquivo Público


Waldemar Bispo Duarte, Cx.061-B (1875-1878).

COMISSÃO DE SOCORROS DA VILA DE BANANEIRAS, 26 de agosto de 1878. Arquivo Público


Waldemar Bispo Duarte, Cx.061-B (1875-1878).

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1875].

MAPPAS Estatísticos de Movimento dos Pacientes da Enfermaria dos Variolosos da Cruz


doPeixe, 1879. Arquivo Público Waldemar Bispo Duarte, Cx.062 (1879).

MAPPAS Estatísticos de Movimento dos Pacientes do Hospital dos Variolosos em SantaRita,


1878-1879. Arquivo Público Waldemar Bispo Duarte, Cx.062 (1879).

MAPPA GERAL, demonstrativo de movimento geral da Enfermaria de Santo Antonio, abril-


dezembro de 1878-1879. Arquivo Público Waldemar Bispo Duarte, Cx.062 (1879).

Mappas Estatísticos de Movimento dos Pacientes Infectados pela Varíola no Hospital da Cidade
de Areia, 1878-1879. Arquivo Público Waldemar Bispo Duarte, Cx.062 (1879).

OFFICIO N°674, da Santa Casa da Misericórdia enviado ao presidente de província Dr.Esmerino


Gomes Parente. Arquivo Público Waldemar Bispo Duarte, Cx. 061-B, 10/07/1877.

RELATÓRIO, da Secretaria do Hospital de S. Pedro em Mamanguape, no ano de 1879.Arquivo


Público Waldemar Bispo Duarte, Cx.062 (1879).

68
RELAÇÃO, Comarca de Mamanguape solicitando o envio da relação de medicamentos enviados
ao Del. Juiz de Direito Dr. José P. Figueiredo, da Comarca de Mamanguape. Arquivo Público
Waldemar Bispo Duarte, Cx.061-B (1875-1878).

TESOURARIA da Fazenda da Parahyba, em 05 de abril de 1878. Arquivo Histórico Waldemar


Bispo Duarte, Cx. 062 (1879).

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O Retirante (CE), Ceará, 19 de dezembro de 1877. Disponível em: memoria.bn.br. Acesso
em 15 de agosto de 2023.

Relatório dos Presidentes de Província da Paraíba do Norte


Relatório apresentado à Assembleia Legislativa Provincial da Parahyba do Norte, pelo
presidente Esmerino Gomes Parente, em 12 de agosto de 1877.
Relatório com que o Exm. Sr. Dr. Esmerino Gomes Parente passou a administração da Província
ao 1o. vice-presidente, Dr. José Paulino de Figuerêdo, em 1 de março de 1878.
Província da. Officio com que o Exm. Sr. vice-presidente Dr. José Paulino Figueiredo passou a
administração da Província ao Exm. Sr. Dr. Ulysses Machado Pereira Vianna no dia 11 de março
de 1878.
Relatório apresentado à Assembléa Legislativa Provincial da Provincia da Parahyba do Norte
pelo presidente, Exm. Sr. Doutor Ulysses Machado Pereira Vianna, em 1º de janeiro de 1879.
Relatório com que o Exm. Sr. 2o vice-presidente Padre Felippe Benicio da Fonseca passou a
administração desta Província ao Exm. Dr. José Rodrigues Pereira Junior, em 12 de junho de
1879.

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SOBRE AS AUTORAS
Rayane de Lima Brasil, Graduada em História pela UFPB. Membra do Grupo de Pesquisa
Sociedade e Cultura no Nordeste Oitocentista. E-mail: rayanebrasil25@gmail.com. Contribuição
de autoria: Concepção, análise, interpretação dos dados, escrita e revisão crítica.

Serioja Rodrigues Cordeiro Mariano: Doutorado em História; Professora do


Departamento e do Programa de Pós-Graduação em História da UFPB; Coordenadora do Grupo
de Pesquisa “Sociedade e Cultura no Nordeste Oitocentista”. ORCID: 0000-0001-6010-0001 E-
mail: serioja.mariano@academico.ufpb.br

Contribuição de autoria: Concepção, análise, interpretação dos dados, escrita e revisão


crítica.

COMO CITAR
MARIANO, Serioja Rodrigues Cordeiro; BRASIL, Rayane de Lima. Peste, fome e miséria: doenças
na Parahyba do Norte durante a seca de 1877-1879. In: SILVA, Maria Larisse Elias da; FARIAS,
Ana Elizabete Moreira de; CASTRO, Tatiana de Carvalho (Orgs.). Pesquisa histórica em
perspectiva, v. 1, Campina Grande: Amplla Editora, 2023, p. xx-xy. DOI:

71
CAPÍTULO V
O “FANTASMA” DO “HEROÍSMO”: ESTRATOS
HISTORIOGRÁFICOS PARA ALÉM DA HISTÓRIA
“OFICIAL”7 DE CAJAZEIRAS-PB
THE “GHOST” OF HEROISM: HISTORIOGRAPHICAL STRATES BEYOND
THE “OFFICIAL” HISTORY OF CAJAZEIRAS
DOI:

Maria Larisse Elias da Silva *


* Graduada em História pela Universidade Federal de Campina Grande, Mestra em História pela Universidade
Federal da Paraíba e Doutoranda em História pela Universidade Federal Fluminense. E-mail:
lawrenceelias1996@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5478-9321.

RESUMO ABSTRACT
O objetivo deste artigo foi analisar a feitura The objective of this article was to analyze the
memorialística em torno de dois personagens memorialistic narrative surrounding two characters
relacionados ao “morticínio eleitoral” em Cajazeiras- connected to the "electoral massacre" in Cajazeiras-
PB, os irmãos Antônio Joaquim do Couto Cartaxo e PB, the brothers Antônio Joaquim do Couto Cartaxo
João do Couto Cartaxo, com o intuito de compreender and João do Couto Cartaxo, in order to comprehend
o modo como o pano de fundo do crime político how the backdrop of the political crime was used to
serviu para endossar a promoção de uma história endorse the promotion of an "official" history about
“oficial” em torno das famílias tradicionais da cidade. the traditional families of the city. We used as
Utilizamos como fontes um discurso memorialista de sources a memorialistic speech by Mozart Aderaldo,
Mozart Aderaldo, publicado no Instituto Histórico do published in the Historical Institute of Ceará, and two
Ceará e duas notícias de blogs online. Para tanto, online blog articles. To achieve this, as a
como recurso metodológico apoiamo-nos na análise methodological approach, we relied on discourse
do discurso com o intuito de (re)construir a teia analysis with the aim of (re)constructing the political
política em torno da promoção da imagem heroica web surrounding the heroic image promotion of the
dos irmãos Cartaxo no pós-“morticínio eleitoral” em Cartaxo brothers in the aftermath of the "electoral
Cajazeiras. massacre" in Cajazeiras.

Palavras-chave: “Morticínio eleitoral”; História Keywords: “Electoral massacre”; Political history;


política; mito do heroismo; Cajazeiras. myth of heroism; Cajazeiras.

1. INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é analisar a feitura memorialística em torno de dois personagens
relacionados ao “morticínio eleitoral” em Cajazeiras-PB, os irmãos Antônio Joaquim do Couto
Cartaxo e João do Couto Cartaxo, com o intuito de compreender o modo como o pano de fundo

7O termo “oficial” está entre aspas por ser visualizado como pertencente às narrativas que pautavam-se em
premissas positivistas para se constituir em uma dada sociedade.

72
do crime político serviu para endossar a promoção de uma história “oficial” em torno das
famílias tradicionais da cidade.
O “morticínio eleitoral” em 18 de agosto de 1872 em Cajazeiras, na Província da Paraíba
do Norte, tem sido pouco trabalhado pela historiografia paraibana – seja a considerada
“clássica” ou estudos mais atuais. Por um lado, isso justifica-se pelo fato de que as fontes em
torno do caso, até o presente momento, foram pouco exploradas ou mesmo desconhecidas e
inacessíveis aos novos pesquisadores.
Por outra perspectiva, acreditamos que ainda há um certo distanciamento da produção
do conhecimento histórico com relação aos acontecimentos protagonizados nas regiões de
divisa, como foi o caso do conflito político em Cajazeiras (representada pelo ponto vermelho) –
região de Alto Sertão da então província – que fazia divisa com a então Província do Ceará
(representada pela sequência de pontilhado) (ver figura 1).
Figura 1 – Mapa da Província da Paraíba e seus limites com a Província do Ceará.

Fonte: Acervo Raro Leilões. Disponível em:


https://www.acervoraroleiloes.com.br/peca.asp?ID=5624720. Acesso em: 21 jul. 2023.

Esse conflito político que esteve ausente, até pouco tempo, nas produções
historiográficas1, tratou-se de um confronto protagonizado em uma manhã de domingo,

1É importante mencionar que o referido conflito foi citado pela primeira vez na historiografia paraibana na obra
de Segal (2017), quando esta desenvolveu uma pesquisa de mestrado sobre a atuação dos deputados provinciais
paraibanos. A segunda menção, e dessa vez uma pesquisa de mestrado inédita sobre o tema defendida em
dezembro de 2021 e publicada em janeiro de 2022, intitulada “Para além dos ‘fatos’: o ‘morticínio eleitoral’ em
Cajazeiras-PB (1872-1877)”.

73
quando políticos, agentes da administração (local e provincial) e votantes reuniam-se para
eleger o novo quadro de vereadores locais.
O município estava cheio de gente de vilas das redondezas, pois o dia da eleição era um
momento para reencontrar velhos amigos, reafirmar os laços de compadrio e cultivar as redes
de sociabilidade. De acordo com Silva (2022), A manhã ensolarada daquele dia 18 concedia ao
patamar da Igreja de Nossa Senhora da Piedade, a padroeira local, um brio especial. As crianças
com suas mães, os escravizados acompanhantes, o padre, o juiz de paz e os representantes
políticos preenchiam as imediações da Igreja, na Rua da Matriz, assim como na Rua Joaquim de
Souza e no Beco do Pinheiro.
Acreditava-se que aquele dia seria apenas mais um domingo tranquilo, permeado por
uma votação, boas risadas e estimados encontros no município de Cajazeiras. No entanto, para
a decepção dos contentes, antes do meio-dia o cenário mudou. A chegada do bando capitaneado
pelo tenente João Torquato de Figueiredo e pelo sicário João Pires Ferreira logo assustou os
participantes daquele momento de tranquilidade (SILVA, 2022). Com as armas empunhadas e
sobre a cela de seu cavalo, o conservador João Pires Ferreira deixou claro que não existiria
acordo que pudesse intermediar a vitória dos liberais naquele pleito do recém-emancipado
município de Cajazeiras. Sendo assim, os homens armados que o acompanhavam acabaram
fragilizando o momento de alegria e os transeuntes ficaram assustados, temendo um possível
confronto entre as partes envolvidas na eleição.
O cenário não demorou muito para agravar-se. Bastou o bando de Pires e Torquato
avistar a comitiva de João Cartaxo, representante liberal daquela região, vindo da direção da
vila de Cachoeira, que o conflito começou. Primeiro, com ofensas e ameaças de que ali os liberais
não reinariam; depois, com o primeiro disparo que foi suficiente para eclodir um dos
derramamentos de sangue mais dramáticos conhecidos na história da Província da Paraíba.
Bastou o primeiro tiro para perder-se de vez o clima amistoso que pairava pelo patamar
da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Piedade. Muitos homens do bando de João Pires foram
atingidos, assim como os parceiros que seguiam João Cartaxo. Ele mesmo não escapou de ser
atingido e, junto ao seu escravizado de nome Ignácio, veio a falecer depois de ser alvejado e
tombar de seu cavalo diante daquele lugar “sagrado” e da porta da casa de sua mãe, a viúva Ana
Josefa de Jesus.
O bando conduzido por João Pires, no momento da fuga, achou por bem alvejar as portas
das casas que se localizavam nas proximidades da Igreja Matriz, a fim de espalhar o terror e o
caos até mesmo naqueles indivíduos que não fizeram parte da cena conflituosa no patamar.
Aquele domingo, marcado pela violência empreendida pelas facções políticas e com

74
participação de parcela da sociedade cajazeirense, configurou-se para os novos estudos em
História Política no Brasil como o dia em que colocou o sertão da Província da Paraíba no mapa
do Império. Dito isso, este artigo tratou de analisar discursos memorialistas e narrativas de
blogs, publicados nos séculos XX e XXI, que contornam as figuras de Antônio Joaquim e João
Cartaxo como sendo ilustres cajazeirenses dignos de todas as homenagens que a história de um
povo lhes pode oferecer. A metodologia adotada foi a análise do discurso com o apoio de
bibliografia sobre o tema.

2. A FIGURA PÚBLICA DE DR. CARTAXO: O PRINCÍPIO DA MITIFICAÇÃO?


Cajazeirense de nascença, o bacharel em Direito Antônio Joaquim do Couto Cartaxo
(Figura 2) foi um personagem de personalidade perspicaz na história política da então
freguesia de Cajazeiras – principalmente no tocante ao chamado “morticínio eleitoral” que, para
além de ser um acontecimento local, refletiu sobre cultura política do império.
Figura 2 – Antônio Joaquim do Couto Cartaxo.

Fonte: Acervo Raro Leilões. Disponível em:


https://www.acervoraroleiloes.com.br/peca.asp?ID=5624720. Acesso em: 21 jul. 2023.

Poucos são os registros documentais que retratam, especificamente, o perfil de figura


pública de Dr. Cartaxo. Assim, utilizamos da crônica literária para analisar – por meio do crivo
metodológico do campo da História – qual olhar foi produzido acerca desse cajazeirense, bem
como os esquemas mentais em torno da época a qual ele esteve inserido (séc. XIX e XX).
Para tanto, é preciso dizer que a análise desse entendimento social impresso nas linhas
da crônica intitulada “Antônio Joaquim do Couto Cartaxo” (1957), de Mozart Soriano Aderaldo2,
deu-se por meio de recursos científicos que distanciam a presente análise historiográfica do
chamado gênero literário, como é o caso da crônica em tela.

2Nascido em 1917, o maranhense Mozart Aderaldo bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade
de Direito da Universidade Federal do Ceará em 1940 e foi casado com Ana Cartaxo, com quem teve cinco filhos.

75
Assim, faz-se necessário explicitar que a crônica de Mozart Aderaldo (1957) foi escrita,
inicialmente, para compor o discurso do referido autor na solenidade de inauguração do retrato
de Dr. Cartaxo no Fórum Dr. Ferreira Júnior, na cidade de Cajazeiras, em 23 de fevereiro de
1957. Apesar de o autor não possuir origem cajazeirense, é importante mencionar que o
bacharel maranhense era casado com Ana Cartaxo Aderaldo, cajazeirense, e recebeu o convite
para pronunciar o discurso sobre Dr. Cartaxo pelo prefeito da época, o sr. Antônio Cartaxo
Rolim (UDN)3 – ambos do tronco genealógico dos Couto Cartaxo.
Situar o leitor no referido contexto é significativo para que se perceba que as escolhas
narrativas de Mozart Aderaldo não foram desinteressadas, pelo contrário. Em sua crônica, ao
mencionar que:

Os elementos que a crônica registrou acerca do dr. Antônio Joaquim do Couto Cartaxo,
apesar de escassos, deixam transparecer, todavia, os traços psico-fisionômicos de um
ilustre cajazeirense, cuja personalidade, por todos os títulos, agora começa a se
fazer conhecida das novas gerações, num legítimo preito de justiça (ADERALDO,
1957, p. 222, grifo nosso).

Por meio do estrato acima, fica evidente que Aderaldo interessou-se por enfatizar que
Dr. Cartaxo era uma figura muito importante, um sujeito de caráter ilustre para a cidade de
Cajazeiras não apenas pelos seus títulos, mas também pela sua personalidade de “homem
justo”, que “lutou pela justiça” – fazendo menção a sua atuação no caso jurídico e social do
“morticínio eleitoral”. Isso lembra, por sua vez, a difusão do personalismo político crescente
durante da década de 1950, como sendo, portanto, uma prática da cultura política da época.
Pois, naquele momento o país vivenciava disputas de anseios, conflitos, desentendimentos
entre partidos e isso acarretava a promoção de jogos de interesses que movimentavam a cena
eleitoral (CODATO, 2002).
Essa instabilidade política não era latente apenas nas capitais, mas se fazia presente
também nos extremos regionais, como era o caso de Cajazeiras, no interior da Paraíba. Por isso,
exaltar a figura de Dr. Cartaxo como um homem que “lutou pela cidade”, que foi “um político
justo” dizia respeito a proteção de uma memória que, de certa forma, poderia continuar “viva”,
ou seja, representada, pela parte da linhagem familiar que compunha os quadros da política
cajazeirense na época. Mas isto é assunto para outro artigo.

3 Pertencente ao tronco genealógico Cartaxo-Rolim (famílias oligárquicas de Cajazeiras), Antônio Cartaxo Rolim
foi prefeito entre 1955 e 1959, além de exercer o papel de empresário, banqueiro e agropecuarista, conforme
ressaltou o historiador José Rocha (2011).

76
Cabe-nos atentar, portanto, ao discurso de Mozart Aderaldo em torno da figura pública
de Dr. Cartaxo, o que ele ainda mantinha vivo por meio de suas palavras? Frisando uma
dedicação veemente do personagem à cidade de Cajazeiras, ele enfatizou que:

Portador de diploma de bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais conquistado em escola


antiga e afamada, vemo-los depois em sua terra natal, certamente lutando por sua
emancipação política, objetivo alcançado em 1863 [...] cabendo-lhe a honra insigne
de ocupar, pela primeira vez, na história do Termo Judiciário, o cargo de juiz togado de
Cajazeiras (ADERALDO, 1957, p. 223, grifo nosso).

No trecho acima, percebe-se a ênfase dada pelo cronista ao esforço que, segundo ele,
empenhou Dr. Cartaxo para a emancipação da vila de Cajazeiras que, à época, era dependente
da Comarca de Sousa, também no Alto Sertão da província. No entanto, o que se sabe – até então
e em âmbito documental – sobre o desmembramento é que ele se deu por um movimento da
província, em que a Lei Provincial4 nº 92, de novembro de 1863 promulgou a separação e
elevou Cajazeiras à categoria de município.
Não há nenhum documento histórico que comprove, por sua vez, a participação de Dr.
Cartaxo no processo emancipatório – o que se tem são narrativas que, de geração em geração,
reproduzem-se por meio da oralidade e repetem, como um mantra, essa suposta atuação deste
durante a emancipação da cidade no corrente ano.
O que se tem de comprovação histórica é a sua participação enquanto representante5 de
sua mãe no Poder Judiciário e algumas notas documentais, como foi o caso de sua participação
como deputado provincial da Paraíba no ano de 1862 pelas fileiras do Partido Liberal, além de
juiz municipal (SEGAL, 2017), fator que corrobora, em partes, com o estrato da crônica de
Mozart Aderaldo.
Segal (2017) pontuou que Dr. Cartaxo chegou a ser deputado provincial pelo Ceará,
porém, não tomou nota para maiores informações. Assim, na busca por aprofundar o
entendimento político em torno deste personagem, empreendemos uma busca e foi localizado
um documento do Memorial da Assembleia Legislativa do Ceará (MALCE), em que consta a
lista6 denominada “Deputados provinciais e estaduais eleitos e suplentes convocados. 1835 a
2015”.

4A referida fonte pode ser consultada na Coleção de Leis Provinciais da Paraíba do Norte ou nos Relatórios de
Presidente de Província da Paraíba.
5 Tal afirmação foi comprovada por meio do processo-crime do “morticínio eleitoral” em Cajazeiras, datado
inicialmente em 1872. Para maiores informações, ver: “Processo-crime de homicídio, s/n, Comarca de Cajazeiras,
1872, 965p.”
6Para maiores informações, ver: https://www3.al.ce.gov.br/phocadownload/deputadosnahistoria.pdf. Acesso
em: 28 ago. 2023.

77
Nesta lista, organizada em ordem alfabética, consta o nome de Antônio Joaquim do Couto
Cartaxo. Todavia, não há uma descrição informando se ele foi eleito mesmo ou suplente
convocado. Também não há informações acerca do período de posse, atuação ou mesmo do
partido o qual esteve ligado. Tal argumento da legislatura na então Província do Ceará vem a
confirmar-se apenas com o historiador Hugo Victor Guimarães e Silva (1952), o qual datou o
período de 1878-1879 como sendo o da atuação de Dr. Cartaxo no legislativo cearense.
Mozart Aderaldo (1957, p. 223) mencionou que Dr. Cartaxo “[...] foi eleito deputado
provincial da Paraíba, para a legislatura de 1864-1865...” Esta informação confirma-se por Celso
Mariz (1987), porém, de acordo com os dados apresentados por este autor, Dr. Cartaxo não
participou de outra legislatura e nem avançou para o Senado. Isso mostra, por sua vez, que o
capital político do cajazeirense era limitado quando se tratava de circuitos mais altos na
projeção da política imperial.
É notável, por sua vez, a tentativa de Mozart Aderaldo (1957) em demonstrar o quão
nobre e incorruptível era o caráter de Dr. Cartaxo, pois, ao comentar um trecho de Silva (1952)
acerca de uma carta que ele teve acesso entre o personagem e o Barão de Aratanha acerca de
um pedido do primeiro sobre um emprego para o filho, Aderaldo (1957, p. 224) fez questão de
enfatizar que “[...] sua inabalável honestidade, manifesta em honrada pobreza, a despeito dos
altos cargos exercidos e das oportunidades que se lhe ofereceram de enriquecer com rapidez à
custa dos negócios públicos...”
Mais adiante, o memorialista utiliza de suas palavras para enfatizar ainda possível
relevância de Dr. Cartaxo para a então vila de Buriti (atual município de Mauriti), uma vez que,
na narrativa do escritor, ele ajudou na autonomia administrativa do local na década de 1891 do
corrente ano (ADERALDO, 1957).
O que ele não informou, portanto, é que Dr. Cartaxo era irmão de Ana Cordulina Cartaxo
Dantas7, a esposa do Capitão Miguel Gonçalves Dantas de Quental (figura 3) herdeiro do sítio
Buriti8 Grande que deu origem à vila de Buriti. Essa rede relacional e matrimonial chama a

7É válido ressaltar que alguns escritos sobre a história de Mauriti descrevem a grafia do nome como sendo Ana
Carolina Cartaxo Dantas, no entanto, de acordo com estudos historiográficos anteriores, como a pesquisa de Silva
(2022), é possível afirmar que a irmã de Dr. Cartaxo chamava-se Ana Cordulina – quando casou-se abdicou do
sobrenome Couto pelo Dantas de seu esposo.
8De acordo com os dados obtidos na plataforma do IBGE e prelo histórico administrativo da Prefeitura de Mauriti,
diversas terras foram desmembradas durante o século XVII na região que hoje compreende os municípios de
Mauriti e Milagres. Ali existiam tribos que vivem às margens dos rios e lagoas que cortavam a região – inclusive
aldeamentos dos Tapuias. Com a virada para o século XVIII, marcada pela chegada de portugueses à região bem
como a concessão das sesmarias para a cultura da plantação e povoamento da região, desmembraram as terras e
no leito do Riacho dos Porcos, o sr. José Lobato do Espírito Santo se instalou e lá dividiu a região em pequenos
sítios, entre eles, o sítio Buriti Grande que por meio das várias sucessões hereditárias chegou ao comando do
Capitão Miguel Gonçalves Dantas de Quental. Para maiores informações, ver:

78
nossa atenção ao dar ênfase à ideia de que os arranjos políticos estavam intrinsecamente
relacionados, também, ao familismo no século XIX – fator reforçado pelas historiadoras Linda
Lewin (1993) Serioja Mariano (2005), ao discutirem as teias familiares na Paraíba oitocentista.
Figura 3 – Coronel Miguel Gonçalves Dantas de Quental.

Fonte: Acervo do site Ramos de uma grande árvore. Disponível em:


http://ramosdeumagrandearvore.com/portfolio/miguel-goncalves-dantas-de-quental-cartaxo/.
Acesso em: 14 set. 2023.

A primeira enfatizou que a posse de terra estava combinada com as redes familiares por
meio de linhagem de prestígio, ou seja, a manutenção do dentro de um mesmo grupo (LEWIN,
1993). A segunda autora, por sua vez, discutiu que esse familismo comum no século XIX foi
fundamental para firmar a posição social de muitas famílias por meio do sustentáculo da
solidariedade doméstica (MARIANO, 2005).
Tais perspectivas complementam-se e conduzem-nos a crer que as ações de Dr. Cartaxo
não eram puras e simplesmente estigadas pelo amor à terra e ao povo, mas sim, ao poder
constituído pela teia familiar em que estava inserido e que, de certa forma, a partir da influência
política de seu cunhado, o Capitão Miguel Dantas, poderia auxiliar em novos voos políticos na
então Província do Ceará.
Esse “apadrinhamento” político recebido por Dr. Cartaxo pela parte de Miguel Dantas
ficou visível por meio das relações de troca de favores entre os dois personagens,
principalmente quando o cajazeirense ocupou a vaga de deputado provincial pelo Ceará, entre

https://cultura.sobral.ce.gov.br/files/agent/21587/hist%C3%93rico_de_mauriti_-_cear%C3%81_-_brasil.pdf. e
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/ce/mauriti/historico. Acesso em: 14 set. 2023.

79
1878 e 1879, e pela Paraíba na primeira Constituinte Republicana, - momento em que ele atuou
em nome da povoação de Buriti, conquistando a sua elevação à categoria de vila já nos anos de
18909 -, e, logo após, conquistando a vaga de Deputado Federal, já na República, com apoio da
força política da família Dantas do Cariri cearense.
Pelo que foi discutido, tendo como base a rara bibliografia que menciona a atuação de
Antônio Joaquim do Couto Cartaxo, foi possível construir uma perspectiva historiográfica em
torno deste personagem e sua atuação como uma figura pública do Período Imperial que não
poupou esforços em exercer diferentes práticas políticas para alcançar suas ambições
particulares – que era o reconhecimento político.

3. O MITO DO “HERÓI” DE CAJAZEIRAS: A FIGURA DE JOÃO CARTAXO


Com base em todo endosso historiográfico apresentado até aqui, já podemos afirmar que
o Dr. Cartaxo, como era conhecido no mundo político, não era daquelas figuras que agia sem
presunção ou inocência. Muito pelo contrário, ele sabia aproveitar as diferentes oportunidades
que surgiam para impulsionar os seus interesses – muitas vezes – marcadamente individuais.
A partir disso, discutiremos agora o modo como se constituiu a sua narrativa mítica em
torno do fato político conhecido como “morticínio eleitoral”, que ceifou a vida de seu irmão, o
João Cartaxo. Para tanto, faremos uma rápida análise de um elemento simbólico instalado
atualmente na cidade de Cajazeiras (figura 4).
Figura 4 – Placa monumental em homenagem à João Cartaxo.

Fonte: Acervo pessoal da autora. Acesso em: 14 set. 2023.

9 Dados retirados do Decreto nº 51, de 27 de agosto de 1890.

80
A figura 4, apresentada acima, é um dos marcos simbólicos no que tange as
representações políticas na história de Cajazeiras difundida pela família Cartaxo, bem como
pelos cronistas e memorialistas locais. Pois, ela tomou como parâmetro histórico o fatídico dia
em que aconteceu o chamado “morticínio eleitoral”, em 18 de agosto de 1872, para expressar a
significância que a família Cartaxo da linhagem de Cajazeiras projetou acerca do vitimado João
do Couto Cartaxo.
Na imagem, reproduzida já no ano de 2023, nota-se duas placas nas cores bronze e azul
contando um pouco do histórico da família Couto Cartaxo. Entre os elementos já discutidos até
aqui, inclusive acerca da figura pública de Antônio Joaquim, vemos o destaque para o encontro
entre as duas famílias “Albuquerque” e “Couto Cartaxo”, e a ênfase na desenvoltura política de
Dr. Cartaxo. Logo abaixo, nas últimas linhas da primeira placa, há uma menção da participação
do então prefeito Dr. Epitácio Rolim junto à família na confecção do monumento.
Além disso, do lado direito do monumento, é possível notar o desenho de um guerreiro
branco, com trajes e boa vestimenta, erguendo algo que tem por escrito “viva o Partido Liberal”
– o qual João Cartaxo era coligado – direcionado ao horizonte ilustrado pelos raios de sol que
vislumbrava um possível novo amanhã conquistado pelo Cartaxo em questão. Ao lado direito
do cavaleiro que representava João Cartaxo tem uma espécie de papiro que carregava o
seguinte escrito: “João Cartaxo sacrificado e esquecido e o patrono da cidade de Cajazeiras 18-
08-1872.” A presente atribuição deu-se por vários motivos, entre eles, o interesse por parte da
família Cartaxo em resguardar a sua relevância para a cidade a partir da figura mitificada, que,
nas palavras de quem pagou pela pintura, mesmo com todos os esforços e “sacrifícios” no dia
do conflito eleitoral, tornou-se um personagem que foi (supostamente) esquecido na história
da cidade. No imaginário familiar, este personagem foi como uma espécie de entidade que
sacrificou a vida em favor da sociedade cajazeirense.
Tudo isso fez (e ainda faz) parte de uma tentativa de construção de uma memória local
que aponta a família Cartaxo como sendo contribuinte para a emancipação da cidade, uma vez
que seu representante lutou com a própria vida contra os supostos forasteiros (visualizados
como vilões); além do fato de que houve (e ainda há) o esforço por parte deste grupo familiar
em “manipular” o fato histórico do dia 18 de agosto, com o intuito de criar uma memória para
a sociedade cajazeirense a partir do “mito do herói da cidade”. Sobre esse tipo de prática, a
historiografia já discutiu que “[...] No Brasil, desde cedo, se buscou construir manipulações
consideradas dominantes, tais como: a do descobrimento destas terras, com a polêmica
descoberta acidental ou intencional...” (BALLAROTTI, 2009, p. 202), E esse dilema em torno do
monumento não começou recentemente, como pode ser visto a seguir.

81
No ano de 2011, o blog ParlamentoPB reproduziu uma notícia do Diário do Sertão –
conhecido jornal que circula no Alto Sertão paraibano – intitulada “Prefeitura de Cajazeiras
destrói monumento para fazer rotatória”. Na ocasião do dia 22 de abril de 2011, foram
entrevistados: o historiador José Antônio de Albuquerque, a representante dos Cartaxo, Maria
Cartaxo Rocha (Dona Dadinha), o representante do SCTrans10 de Cajazeiras, à época Marcos
Túlio, e o vereador Marcos Barros. Para este texto, trataremos apenas do relato do historiador
e da representante da família Cartaxo.
A notícia girou em torno da remoção do monumento de João Cartaxo, construído pela
família Cartaxo, em um dos pontos centrais da cidade, a Avenida Comandante Vital Rolim. Os
redatores do jornal Diário do Sertão apresentaram uma nota introdutória da notícia: “A
prefeitura de Cajazeiras destruiu esta semana o único monumento histórico da cidade, que
homenageava o mártir João do Couto Cartaxo, que morreu defendendo a "Terra do Padre
Rolim” (PARLAMENTOPB, 22 abr. 2011, online, grifos nosso). A ênfase dada logo no início da
notícia em torno da figura e atuação de João Cartaxo, mostra que o próprio jornal havia
comprado a ideia simbólica pregada pela família Cartaxo, de que um único sujeito defendeu
com a própria vida a terra do “ilustre” Padre Rolim no conflito do dia 18 de agosto de 1872.
Isso demonstra que quando existe um dado conflito, grupos sociais utilizam da
ocorrência histórica para constituir uma narrativa que corresponda aos seus interesses e
ideologias políticas. Tal movimento foi visualizado com relação à figura de Tiradentes, assim
como com as narrativas acerca do(s) processo(s) de independência(s) do Brasil (BALLAROTTI,
2009).
Mas, continuando a análise das falas dos entrevistados pelo jornal acerca do que
achavam sobre a retirada do monumento, atemo-nos à fala do historiador José Antônio de
Albuquerque: “O professor José Antonio definiu como um ‘ato insano’, pois, o monumento
era um patrimônio histórico do povo de Cajazeiras. ‘Foi um crime contra a história de
Cajazeiras, porque destruíram o monumento do único herói da cidade’, disse o historiador
indignado.” (PARLAMENTOPB, 22 abr. 2011, online, grifos nosso)
Vejamos que o mito em torno do ‘único herói’, reforçado por um historiador pertencente
a uma das famílias ligadas à fundação da cidade (os Albuquerque), reforça a tentativa de criação
de um imaginário coletivo tendo como pano de fundo o “morticínio eleitoral”. A afirmação de
José Antônio, por outro lado, avigora a manutenção de uma rede de solidariedade entre os
Albuquerque e os Couto Cartaxo que perpassa gerações, seja em nome da manutenção de uma

10 Sigla da Superintendência de Trânsito de Cajazeiras.

82
influência nas diferentes relações de poder que se constituem na sociedade cajazeirense, ou
pelo desejo de imortalizar as ações do representante de um grupo político – João Cartaxo – na
narração de feitos heroicos que constituíram a cidade de Cajazeiras até hoje.
Ao enfatizar que a retirada do monumento foi um crime contra a própria história da
cidade, nota-se que o pano de fundo do “morticínio eleitoral” serviu não apenas às disputas
políticas no Período Imperial, mas corroborou também para a promoção de disputas políticas
complexas internas à cidade de Cajazeiras no século XXI, servindo como munição para o grupo
dos Cartaxo que duelavam pela prevalência de um imaginário familiar que ainda resvala sobre
o poder local.
Isso soa mais evidente com a fala da representante da família Cartaxo, a dona Dadinha,
que em seus 80 anos de idade – à época – ainda lutava pela preservação dessa memória tão
valiosa para o seu grupo familiar.

Dona Dadinha conta que a perseguição dos Abreus contra a família Cartaxo vem de
muito longe. De acordo com ela, tudo começou quando um dos blocos onde hoje está
localizado a Coca-Cola (próximo à Avenida Comandante Vital Rolim) recebeu o nome
de seu pai. Ao entrar na prefeitura, o atual deputado estadual e então prefeito,
Vituriano de Abreu, vendeu o prédio que levava o nome da família. “Ele mandou
jogar a placa de bronze com o nome de meu pai no lixo, foi a primeira vez que fomos
desrespeitados”, relata Dona Dadinha. Em seguida, a família se reuniu e fez uma
homenagem a João do Couto Cartaxo. Dessa vez uma placa foi posta na Praça da
Igreja Nossa Senhora de Fátima e conforme Dona Dadinha a condecoração
também foi arrancada. A família inconformada resolveu então que faria uma praça,
com bancos e um monumento para guardar a memória do cajazeirense, na
esperança de que desta vez os direitos fossem respeitados. “E agora, pela terceira
vez, nossa família está passando pelo desconsolo de ver a Praça João do Couto
Cartaxo, que foi construída por nós mesmos, ser destruída com o maior descaso”,
contou Dadinha. (PARLAMENTOPB, 22 abr. 2011, online, grifos nosso).

Pelo que foi exposto acima, primeiro percebe-se que a mudança do local da placa-
monumento não aconteceu apenas uma vez e não foi o único ato cometido pelo Poder Municipal
de Cajazeiras com relação à família Cartaxo. De acordo com a narrativa da entrevistada, havia
desavenças políticas com outro grupo político local, os Abreu, e isso costumeiramente resvalava
nessa tentativa de criação de uma memória familiar obstruída.
Em segundo lugar, houve uma segunda tentativa de “guarda da memória” de João
Cartaxo, que mais uma vez foi frustrada após ser arrancada da praça em que aconteceu o
“morticínio eleitoral”. E o último acontecimento que violou esse “direito à memória” foi a
destruição da Praça João do Couto Cartaxo.
Diferente da narrativa do historiador José Antônio, o olhar de dona Dadinha sobre essa
sequência de acontecimentos que afetaram a sua memória familiar não dissimulou, por sua vez,
a memória da cidade, mas sim, a memória da família – que por possuir uma tradição de

83
pertencimento com relação ao lugar – que sentia tais ações como um acontecimento traumático
mais uma vez. E que se repetia em decorrência de desavenças políticas daquele momento, por
meio das mudanças do monumento (figura 5).
Figura 5 – Monumento a memória de João Couto Cartaxo na Praça da Cultura.

Fonte: Retirada do Blog ‘Cajazeiras de Amor’. Disponível em:


https://www.cajazeirasdeamor.com/2014/08/o-heroi-joao-do-couto-cartaxo.html. Acesso em: 14 set.
2023.

A figura 5, retirada do blog “Cajazeiras de Amor”, fez parte de um texto escrito pelo
historiador cajazeirense, José Antônio de Albuquerque, intitulada “O herói João do Couto
Cartaxo”, na referida página em 20 de agosto de 2014. Na imagem, é possível perceber que em
2014 já existia o monumento em homenagem à João Cartaxo, no entanto, a placa que o
acompanhava era diferente das atuais.
Em se tratando da simbologia das placas, para cada uma dela, aparentemente, foi
construído uma narrativa para endossar o vislumbre simbólico que ela carregava. Assim, nas
palavras de José Antônio, a tensão supostamente desencadeada por João Pires Ferreira foi como
“[...] Um tiro na liberdade e outros nos corações do povo de Cajazeiras.” (CAJAZEIRAS DE AMOR,
2014, online).
Esse tipo de comentário acerca de acontecimentos históricos lembra, por sua vez, que a
construção de imaginários se dá por meio da afirmação de significados e as respectivas funções
que um determinado fato operacionaliza em uma localidade, como foi o caso em Cajazeiras. Em
um trecho muito esclarecedor, José Murilo de Carvalho (1990, p. 10) salientou que “[...] É por
meio do imaginário que se pode atingir não só a cabeça mas, de modo especial, o coração, isto
é, as aspirações, os medos e as esperanças de um povo.”

84
Repetidas propagações de uma narrativa que, passando de geração em geração,
apontaram o tenente João Cartaxo como um herói, faz-se perceber que mesmo morto e
enterrado, o personagem supracitado continuava sendo peça-chave para a insistente afirmação
de que a sociedade cajazeirense possuiu um mártir e os valores evocados por ele deveriam ser
lembrados e reforçados como parte de uma identidade coletiva do recorte geográfico em
questão. Assim, como ferramenta essencial para tal feito, Carvalho (1990, p. 10-11) afirmou que
“[...] Os mitos podem se tornar elementos poderosos de projeção de interesses e aspirações.”
Entre elas, a própria manutenção de uma narrativa hegemônica e cristalizada que representava
poder sobre a história de um povo.
O texto em questão possui outros aspectos muito significativos e que rendem boas
análises, no entanto, o objetivo deste tópico é discutir apenas os elementos em torno da
projeção heroica em torno do tenente João Cartaxo, dada por diferentes sujeitos sociais
pertencentes à história de Cajazeiras.
Conforme discutido até aqui, percebe-se que houve (e ainda há) uma tentativa de criação
de uma “memória coletiva” em torno de um membro da família Cartaxo, que, além de ter
ajudado na fundação da cidade, também atuou no processo “emancipatório” ao defender com o
próprio sangue aquelas terras sertanejas da freguesia de Cajazeiras. Esse “excesso de memória”
pode revelar, por sua vez, uma certa “incompletude da história”, pondo em xeque a história
“oficial” de Cajazeiras.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo das análises historiográficas em torno dos mais diferentes temas presentes em
nosso cotidiano, percebemos que há uma intrínseca relação entre as vivências dos grupos
sociais e as construções narrativas que propagam. Isso não foi diferente quando aconteceu o
crime político chamado “morticínio eleitoral”, lá nos idos de 1872, e não se fez singular nas
histórias que procederam após o acontecimento.
Com isso, foi possível perceber que homens ligados ao conflito integraram a constituição
de uma memória a partir da tensão política que perpassa gerações e grupos familiares, como é
o caso dos Cartaxo e Albuquerque.
Por meio de uma narrativa cristalizada em que Antônio Joaquim do Couto Cartaxo foi
pintado como o buscador da justiça e seu irmão, o tenente João Cartaxo, a grande vítima de um
crime que tirou a sua vida; percebemos que há uma tentativa de manutenção do poder político
(e de uma memória histórica) que utiliza da atuação desses personagens para sobreviver, ainda
hoje, na teia relacional e política da cidade de Cajazeiras.

85
Compreendemos, portanto, que a tentativa de uma história única acerca desses
personagens faz parte de um jogo político em que a história dita “oficial” da cidade fica rendida
aos grupos tradicionalmente pertencentes à fundação e desenvolvimento de Cajazeiras, por
isso, acham-se no direito de construir memórias e relegar as narrativas e/ou ações que não
coadunem com os interesses particulares.
Além disso, a mitificação de um “herói” para a cidade deixa de levar em consideração
que outros personagens, que não carregavam o sobrenome Cartaxo, fizeram parte das
diferentes lutas que aconteceram neste sertão. E nem leva em consideração, por sua vez, que os
“heróis” e “homens justos” pactuavam com regimes de opressão, como foi o caso da escravidão
no século XIX.

AGRADECIMENTOS
O Presente trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES/Brasil).

REFERÊNCIAS
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– Ano LXXI, série Discursos, 1957, p. 219-226. Disponível em:
https://www.institutodoceara.org.br/revista/Rev-apresentacao/RevPorAno/1957/1957-
AntonioJoaquimCoutoCartaxo.pdf. Acesso em: 22 jul. 2020.

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Cajazeiras, 20, agosto. 2014. Disponível em: https://www.cajazeirasdeamor.com/2014/08/o-
heroi-joao-do-couto-cartaxo.html. Acesso em: 22 set. 2023.

BALLAROTTI, Carlos Roberto. A Construção do mito de Tiradentes: de mártir republicano a


herói cívico na atualidade. Antíteses, v. 2, n. 3, p. 201-225, 2009. Disponível em:
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CODATO, Evandir. Personalismo político nos anos cinqüenta. Revista de História Regional, v.
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familiar no Brasil. Imprensa da Universidade de Princeton, 1993.

MARIANO, Serioja Rodrigues Cordeiro. Gente opulenta e de boa linhagem: familia, política e
relações de poder na Paraíba/familia, política e relações de poder na Paraíba. Tese (Doutorado

86
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SEGAL, Myraí Araújo. Espaços de autonomia e negociação: a atuação dos deputados


provinciais paraibanos no cenário político imperial (1855-1875). Dissertação (Mestrado em
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SILVA, Hugo Victor Guimarães e. Deputados Provinciais e Estaduais do Ceará – Assembleias


Legislativas (1835-1947). Fortaleza: Editora Jurídica LTDA, 1952. Disponível em:
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SILVA, Maria Larisse Elias da. Para além dos “fatos”: o morticínio eleitoral na freguesia de
Cajazeiras, província da Paraíba do Norte (1872-1877). São Paulo: e-Manuscritos, 2022.

SOBRE A AUTORA
Maria Larisse Elias da Silva: Graduada em História pela UFCG, Mestra em História pela
UFPB e Doutoranda em História pela UFF. Membro do Grupo de Pesquisa Sociedade e Cultura
no Nordeste Oitocentista (UFPB/CNPq) e do Núcleo de Estudos de Migrações, Identidades e
Cidadania (NEMIC/CNPq). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5478-9321. E-mail:
lawrenceelias1996@gmail.com. Contribuição de autoria: Concepção, análise, interpretação dos
dados, escrita e revisão crítica.

COMO CITAR
SILVA. Maria Larisse Elias da. O “fantasma” do heroísmo: estratos historiográficos para além da
história “oficial” de Cajazeiras. In: SILVA, Maria Larisse Elias da; FARIAS, Ana Elizabete Moreira
de; CASTRO, Tatiana de Carvalho (Orgs.). Pesquisa histórica em perspectiva, v. 1, Campina
Grande: Amplla Editora, 2023, p. xx-xy. DOI:

87
CAPÍTULO VI
O INSTAGRAM COMO FONTE HISTÓRICA:
ANALISANDO O DISPOSITIVO DA MATERNIDADE EM
PERFIS DE MULHERES – MÃES
INSTAGRAM AS A HISTORICAL SOURCE: ANALYZING THE DEVICE OF
MATERNITY IN PROFILES OF WOMEN – MOTHERS
DOI:

Rosemere Olimpio de Santana *


Ana Maria Oliveira dos Santos **
*Professora Associada da Universidade Federal de Campina Grande. email:
rosemere.olimpio@professor.ufcg.edu.br. Orcid: https://orcid.org/0009-0003-5280-9143.
** Graduanda do curso de História da UFCG e bolsista do Projeto de Iniciação Científica sobre maternidade nas
redes sociais. E-mail: ana.m.oliveira@estudante.ufcg.edu.br.

RESUMO ABSTRACT
Atualmente são inúmeros os espaços na mídia Currently, there are countless spaces in contemporary
contemporânea que direcionam o que deve ou como se media that direct what should or how the maternal body
deve compor o corpo e o sujeito materno. Mais do que and subject should be composed. More than providing
orientar, esses espaços também reforçam e ajudam a guidance, these spaces also reinforce and help to produce
produzir um lugar materno. São outras formas de educar, a maternal place. These are other ways of educating, since
já que os processos educacionais e formativos estão, cada educational and training processes are increasingly being
vez mais, sendo exercidos também em outros espaços de carried out in other cultural spaces. Therefore, we were
cultura. Sendo assim, nos interessou problematizar de que interested in problematizing how a maternity device is
maneira um dispositivo da maternidade é operationalized by the media, how by producing these
operacionalizado pelos meios midiáticos, como ao spaces aimed at the objectification of subject-mothers,
produzir esses espaços voltados para a objetivação dos ways and possibilities of meaning for motherhood are also
sujeito-mãe, também se produz maneiras e possibilidades produced. To do this, we analyzed public profiles focused
de sentidos para a maternidade. Para isso, analisamos on the topic of motherhood on Instagram and which are
perfis públicos voltados para o tema da maternidade no widely known, such as @Lua de Barros, @Flavia Calina,
Instagram e que são amplamente conhecidos, como @Lua @Elisama Santos, @Isa Minantel and @Canto Maternar.
barros, @Flaviacalina, @Elisamasantos, @Isaminantel e The vast majority of posts refer to the difficulties of
@Cantomaternar. Em grande maioria as postagens se motherhood, as well as the possible disappointments that
referem as dificuldades da maternidade, bem como, as are produced due to the romanticization attributed to it.
possíveis desilusões que são produzidas devido a We were interested in analyzing how both subject-
romantização atribuída a mesma. Nos interessou analisar mothers and maternal modalities actively participated in
de que maneira tanto sujeitos-mães, como modalidades the normative constitution of the device in question,
maternas participaram ativamente da constituição objectifying and being objectified by it, regulating and
normativa do dispositivo em questão, objetivando e sendo being regulated by it. To build a theoretical-
objetivados por ela, regulando e sendo regulados por ela. methodological base, we worked with texts about gender,
Para a construção de uma base teórico-metodológica, mothering, feminism and digital media. Therefore, we
trabalhamos com textos sobre gênero, maternagem, problematize the fields of enunciation and subjectivation
feminismo e mídias digitais. Logo, problematizamos os that serve a device that tends to re-signify itself based on
campos de enunciação e subjetivação que atendem a um social and cultural changes.
dispositivo que tende a se ressignificar a partir das
mudanças sociais e culturais. Keywords: Maternity device; educational practices; media
spaces.
Palavras-chave: Dispositivo da maternidade; práticas
educativas; espaços midiáticos.

88
1. INTRODUÇÃO
Atualmente são inúmeros os espaços na mídia contemporânea que direcionam o que
deve ou como se deve compor o corpo e o sujeito materno. Desde os cuidados com a saúde até
mesmo quais os sentimentos que seriam oportunos nesse momento. Esses discursos permeiam
o nascimento da criança até os primeiros cuidados e se estendem ao longo da primeira infância.
Mais do que orientar, esses espaços também reforçam e ajudam a produzir um lugar materno.
São outras formas de educar, visto que o conceito de educação deve ser ampliado, já que os
processos educacionais e formativos estão, cada vez mais, sendo exercidos também em outros
espaços de cultura.
Para Rosa Fischer a mídia além de meio vinculador de informações é também “produtora
de saberes e formas especializadas de comunicar e produzir sujeitos” (FISHER, 2002, p. 61),
não só transmite informação, mas tem uma ação pedagógica. Sendo assim, problematizamos de
que maneira um dispositivo da maternidade é operacionalizado pelos meios midiáticos, como
ao produzir esses espaços voltados para a objetivação dos sujeito-mãe, também se produz
maneiras e possibilidades de sentidos para a maternidade?
Para isso, analisamos perfis públicos voltados para o tema da maternidade no instagram
e que são amplamente conhecidos, como @luabarrosf, @Flavia Calina, @elisamasanntosc, @Isa
Minantel e @cantomaternar. A escolha desses perfis na plataforma do Instagran se deu não só
pela popularidade dos mesmos, mas também por alguns critérios: todas mulheres que estão à
frente desses perfis só começaram a estudar e a produzir conteúdo sobre educação e
maternidade após serem mães, outro critério foi o fato de serem perfis profissionais, ou seja,
essas mulheres oferecem mentorias, cursos, orientação e até produtos em suas redes, por
valores nem sempre acessíveis. Em grande maioria as postagens se referem as dificuldades da
maternidade, bem como, as possíveis desilusões que são produzidas devido a romantização
atribuída a mesma.
Não é novidade a discussão em torno da maternidade enquanto construção social e
cultural, no entanto como coloca Françoise Thebaud (1986), historiadora francesa autora de
vários trabalhos sobre a maternidade “há um domínio da história das mulheres ainda a ser
explorado, pois a maternidade, seja desejada, seja recusada, está no centro das definições
culturais e históricas do feminino, traduzindo o papel que se espera das mulheres na
sociedade”. Mas, para além da importância no âmbito da história das mulheres, as pesquisas
em torno da maternidade e da maternagem são importantes também para se problematizar a
dinâmica do gênero no trabalho e nas estruturas da divisão sexual-social.

89
No entanto, mesmo com o crescimento da discussão em torno dessa temática, ainda são
carentes as discussões na história, talvez por essa associação quase ideológica em que a
maternidade é uma essência natural do feminino. Badinter (1985) em uma de suas produções
mais conhecida que propôs desmontar o histórico esquema de pensamento que inventou o
ideal da realização da mulher na maternidade questiona o que se chama de “ideologia
maternalista” e o desejo feminino de “ser mãe”.
No campo da pesquisa histórica temos então uma temática que merece maior espaço e
atenção, bem como, uma fonte de pesquisa que merece ser melhor utilizada entre os
historiadores que são as redes sociais.

2. MATERNIDADE E INSTAGRAM COMO POSSIBILIDADES DE PESQUISA


O Instagram se tornou uma das plataformas digitais mais acessadas e por isso, assumem
hoje também o espaço de disseminador de opiniões, dentre os recursos que possui, as imagens,
não só transmitem informações, mas, captam a atenção dos internautas, além disso, possibilita
produzir lives, publicar textos e muitas outras funções, tornando a disseminação dos discursos
sobre a maternidade e tantos outros possíveis. É nesse “território digital” que muitas mulheres
se sentem à vontade para falar de suas experiências, como a “maternidade real” que implica
desmitificar o ideal de mãe perfeita, bem como a romantização da maternidade.
Analisamos assim, como os perfis, se auto apresentam, ou seja, como investem em uma
identidade, seja ela mais profissional ou mais intimista com o seu público, tendo em vista uma
intencionalidade performática. Por isso, organizamos os perfis pesquisados seguindo os
seguintes critérios: @isaminatel é um dos perfis que mais investem em marketing e propaganda
com o objetivo de vender os cursos ofertados, analisamos as postagens, como elas são pensadas
e como o público recepciona. O perfil de @cantomaternar é um dos que investem nas discussões
biologizantes e naturalistas. Essa retomada discursiva, se difere do discurso que acompanhou,
principalmente as falas médicas da metade do século XX, pois se ampara no empoderamento
do corpo feminino que estaria justamente se libertando da indústria médica, já que defende o
parto natural, amamento exclusivo sem fórmulas, por outro lado, se ampara nas pesquisas mais
recentes da neurociência apostando na conexão infantil. O perfil @Luabarros também aciona a
importância da conexão com os filhos, mas investe no poder do feminino e da sua
ancestralidade apelando para o sagrado feminino e o potencial desse corpo. Embora, apresente
falas feministas e um posicionamento político não conservador, esse discurso também valoriza
a ideia do feminino como um corpo privilegiado e especial. Já o perfil @Flaviacalina se organiza
por outros critérios. Embora, discuta questões como criação com apego, educação não violenta,

90
educação Montessoriana, a administradora do perfil investe na exposição e vinculação do seu
cotidiano familiar com os quatros filhos e marido fora do Brasil. Flaviacalina quase sempre
aparece em suas postagens e vídeos como uma mulher e mãe dedicada, que ama cuidar de seus
filhos e de sua família, que assume várias atividades da casa, sempre feliz e agradecida a Deus.
E por fim, o perfil de @Elisamasantos que se difere dos demais, no sentido em que a
administradora do perfil vincula em suas postagens as questões sociais e culturais da
desigualdade social, principalmente entre os indivíduos negros.
Segundo Souza (2020, p. 52) “Crianças e mães representam uma importante parcela do
mercado capitalista, gerando o consumo de produtos e serviços cada vez mais lucrativos”.
Diante dessa possibilidade surge com mais destaque a atuação de serviços que se voltam para
a preparação dos pais ou cuidadores com relação aos cuidados com a criança. Não se trata de
uma preocupação apenas física, mas de uma condução pautada no respeito e no afeto guiadas
pelas teorias da disciplina positiva ou parentalidade positiva.
Os perfis do Instagram analisados em alguns pontos confirmam essa perspectiva, uma
vez que além de serem produzidos por mulheres-mães partiram da experiência vivenciada
pelas mesmas no decorrer da maternidade. Grande parte desses perfis assumem a
responsabilidade que elas teriam referente à saúde e ao bem-estar de seus filhos, assim como
da família e porque não como aponta Alves (2005) até mesmo da continuidade da vida no
planeta já que estariam educando pessoas melhores para o mundo. Logo as plataformas digitais
se tornam eficientes pedagogias culturais de subjetivação da mulher, que aprende como tornar-
se mãe.
A pesquisa analisou os perfis já mencionados, a princípio foi produzido uma
apresentação de cada perfil com suas principais abordagens e objetivos, também foi realizado
um monitoramento das publicações diárias dos perfis no decorrer de vários meses, já que esta
pesquisa foi fruto do PIBIC/UFCG/CFP. As postagens foram analisadas, assim como os
comentários. Vale salientar a quantidade de postagens, muitos perfis publicavam até três vezes
ao dia, gerando assim, um número expressivo de documentos. No entanto, percebemos que
além das postagens vinculadas no Instagram, os perfis também promoviam lives, postagens nos
stories, vídeos vinculando a plataforma do Youtube.
Por se tratar de postagens públicas, todos os perfis são públicos e podem ser acessados
sem a necessidade de nenhum cadastro ou senha, mesmo assim, submetemos o projeto ao
comitê de ética, sendo aprovado.

91
3. ANALISANDO OS PERFIS
Observamos assim, que as mensagens divulgadas nos perfis analisados correspondem a
discursos vinculados à essencialização do cuidado, especialmente vinculada às tarefas de
gestar, parir, amamentar, educar. E mesmo que essas postagens busquem base em discursos de
várias áreas como a medicina, a psicologia e educação para serem legitimadas, ainda
direcionam como sujeitos responsáveis pela criação das crianças as mulheres. No entanto, não
podemos negar que os perfis também apresentam a necessidade de uma educação parental, ou
seja, que esse cuidado deve ser compartilhado.
O perfil de @cantomaternar, administrado Maíra Soares, mulher branca que mora na
Espanha com a sua filha, é um dos que mais associa em suas postagens a imagem feminina a
criação dos filhos, ao ser questionada por uma das seguidoras, ela explica que seu público é
majoritariamente de mulheres e que por isso fala diretamente a elas. Acreditamos que se o
objetivo é aliviar as mulheres mães do peso de educar sozinha, deveria ser justamente o
contrário. Maíra Soares conhece a vivência de mães solo, já que a mesma é divorciada do pai da
criança. Como exemplo, segue a postagem na qual é colocada a importância do revisitar a
infância dos cuidadores, em especial das mães, para que certas atitudes não sejam
reproduzidas.
Figura 1 – Imagem no perfil Canto Maternar.

Fonte: INSTAGRAM. @cantomaternar, 18/03/2023.

Nesse post específico ela reforça a necessidade de curarmos as feridas do passado


enraizadas na nossa criança interior, reforçando a ideia dos perfis de Instagram como
reguladores de corpos e de modelos de agir, principalmente quando evoca em suas falas a auto

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regulação e vigilância de si e de suas ações baseadas nos discursos de criação. Ainda na legenda
ela divulga o seu curso como meio para que esse público majoritariamente feminino que
consome seu conteúdo consiga atingir o modelo de “boa mãe” preconizado. Através dos
comentários é possível perceber a procura pelo curso pela quantidade de mães que colocam a
“palavra-chave” que demonstra o desejo de adquiri-lo. Em outra postagem no mesmo perfil,
Maira Soares, vincula um vídeo no qual aponta uma série de comportamentos que indicariam
que a criança necessita de conexão. Junto ao vídeo segue a seguinte legenda:

Como pais conscientes, precisamos agir como tradutores e investigar o que pode estar
por trás do comportamento da criança. Na educação tradicional, os pais acabam
focando em corrigir o comportamento, mas muitas vezes não entendem o que a criança
está tentando comunicar (de forma inconsciente). Uma criança que tem chorado
demais, que nos pede atenção o tempo todo, que não para de falar ou de fazer perguntas
ou que anda grudenta, por exemplo, pode estar querendo dizer: estou sentindo sua
falta, me sinto distante de você, não sinto que estamos conectados. Inibir o
comportamento sem olhar para a origem dele pode facilitar a vida dos pais, mas não
ajuda essa criança. Na verdade, ela acaba se sentindo desamparada, né? Sua dor não é
vista e ela acaba desistindo de pedir por conexão (se tornando uma criança mais
boazinha e fácil, porém com essa sensação de desamparo interna) ou insistindo e sendo
rotulada de criança impossível ou terrível por conta disso. Esse texto e vídeo te fizeram
pensar diferente sobre o comportamento do seu filho ou da sua filha?
(@cantomaternar, 18/03/2023)

Figura 2 - Trechos de comentários.

Fonte: INSTAGRAM – canto maternar, 26/03/2023

93
Mesmo que a administradora aponte que muitos comportamentos, vistos como
indesejados, são consequências da falta de conexão com os pais ou cuidadores, o vídeo mostra
o tempo todo a figura da mulher cuidando e acalentado as crianças. Vários comentários surgem,
apontando como a postagem as fizeram se sentir mais culpadas. A administradora da página
responde a alguns desses comentários, explicando que a ideia é solucionar o problema a partir
da escuta do comportamento da criança. Mas, o comentário mais emblemático é de uma mãe
que afirma cumprir com todos os requisitos de atenção e mesmo assim, o filho apresenta
comportamento de dependência, Maira responde apontando que isso pode ser
“responsabilidade” da mãe, já que a criança pode se comportar assim devido a insegurança ou
carência da mesma. Em muitos outros comentários em que as mães se identificam com o
conteúdo da postagem e perguntam como conseguir essa conexão, a resposta é o link para a
inscrição do curso: “Mentoria materna”.
E é nesse contexto que o corpo da mulher-mãe é gestado para a manutenção de uma
biopolítica, ao mesmo tempo em que parte desses discursos também são validados
positivamente, pois possibilitam um olhar mais sensível para o sujeito infantil.
Para Badinter (2011) estaríamos investindo em uma nova valorização da maternidade,
diferente da que aconteceu no Estado moderno no qual houve um descentramento do papel do
pai em proveito do da mãe, que passa a ser central, para um ideal de “boa mãe” no qual a autora
chama de “tirania da mãe perfeita”.
Para podermos compreender os discursos contemporâneos que produzem o que
chamamos aqui de sujeitos-mãe, é importante que possamos analisar os referenciais históricos
que fizeram emergir o dispositivo da maternidade. Tal dispositivo só foi possível a partir de
contingências sociais, culturais e econômicas específicas e não por uma questão natural
pertencente aos corpos femininos.
De acordo com Marcello (2003), a maternidade funciona como um dispositivo e, como
tal, “em um determinado momento, teve como função principal responder a uma urgência”
(FOUCAULT, 2000a, p. 244); seu despontar, por motivos políticos, econômicos, filosóficos e
sociais, teve “uma função estratégica dominante”.
Por isso, ao final do século XVIII, no ocidente, garantir a vida de uma criança
representava produzir cidadãos que seriam a riqueza do Estado. Logo, para que as crianças
sobrevivessem seria necessário um investimento na construção de uma família consolidada e
principalmente das mães. Nesse sentido, era importante não só os discursos que envolvessem
os cuidados com a criança, mas também o que promovesse o sentimento de amor e
responsabilidade nas mães, afinal, ela seria peça importante do biopoder. Seguindo essa lógica,

94
ao assumir um lugar tão vital, era necessário gerir cada vez mais a atuação do sujeito materno
e isso implica cada vez mais investimento discursivo sobre o ser mãe.
Assim, essa politização do discurso materno acaba que retomando os discursos
biologicistas em torno da ideia de que existem hormônios que favorecem a ligação da mãe com
seu bebê (a teoria da vinculação), o que converge para a “renaturalização” da maternidade
Alves (2015, p. 8).
Esse movimento produzido a partir dessa politização é apropriado e amplamente
compartilhados na maioria dos perfis que pretendem falar de criação com apego, criação neuro
compatível, criação positiva, criação com afeto e muitos outros termos, assim, como os perfis
que direcionam para a figura da mãe. Retomando a postagem acima de Maira Soares,
percebemos então, que embora ela afirme que não se trata de culpar as mães já que o cuidado
não corresponde apenas a ela, em muitos outros momentos, investe nesta ligação materna
biologizante, excluindo muitas vezes, os outros agentes desta parentalidade, e tornando a mãe
insubstituível nos cuidados com as crianças, principalmente na primeira fase da vida.
Alargando a discussão para as demais influenciadoras temos o perfil @flaviacalina, ela é
uma das maiores influenciadoras digitais que tratam sobre o tema maternidade com 3 milhões
de seguidores no Instagram e mais de 7 milhões no Youtube, ela é mãe de quatro crianças e à
medida que mostra o seu dia a dia com seus filhos aborda também questões relacionadas ao
respeito com as crianças e à educação Montessori.
A influenciadora aposta em um dos pontos principais da criação com apego que é o
estabelecimento de um vínculo com a criança, sendo mãe de quatro filhos ela sempre está
dialogando sobre as individualidades de cada um e a importância de entendê-los e respeitá-los
enquanto os cria através de métodos vistos por ela como sendo mais amorosos. O seu discurso
é baseado no amor e na calma como soluções para uma maternidade leve, Calina procura
sempre demonstrar em seu um semblante tranquilo e quase nunca fala sobre as dificuldades
que enfrenta enquanto mãe, seu modo de maternar aparentemente perfeito foi tão validado por
seus seguidores que acabou se tornando o curso “ganhe o coração de uma criança”, ofertado
para compra em seu Instagram e voltado para a formação de pais que querem criar seus filhos
com conexão e respeito. Além disso, Flavia Calina conta com uma série de produtos que levam
a sua marca, como pijamas e livros.
No entanto, nem sempre suas postagens são tão validadas. Em um vídeo postado no
Instagram, enquanto a Flávia lava a louça, aparece uma série de frases: “eu não consigo fazer
mais nada além do serviço de casa”, “eu continuo fazendo as mesmas tarefas repetidamente”,
“tendo crianças, tudo leva muito mais tempo”, “eu não consegui ter tempo pra fazer nada”. No

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decorrer do vídeo, os filhos dela vão aparecendo e ela sugere inverter a narrativa da
maternidade para: “meu maior chamado agora é amar meus filhos”, “que alegria poder criar um
lar seguro e feliz para minha família”, “esse momento é uma oportunidade de conexão com
meus filhos”, “meu dia foi gasto amando e cuidando dos milagres que Deus me confiou”. Segue
a legenda:

E se mudássemos a narrativa da maternidade? Sim, temos direito de reclamar e de nos


sentir cansadas, não apreciadas e muitas coisas mais…Mas… gostaria de trazer um
outro olhar, uma outra perspectiva. Palavras são importantes e o que dizemos para nós
mesmas pode mudar nosso sentimento com relação a maternidade e afazeres do dia. E
se trocássemos: “não consegui fazer nada hoje” por “passei meu dia cuidando e amando
meus filhos”. E se trocássemos: “todos os dias tenho que fazer as mesmas tarefas!” por:
“que alegria poder criar um lar seguro e feliz para minha família”. As vezes não nos
damos conta que as simples tarefas do dia a dia causam um grande impacto na vida de
nossos filhos agora e no futuro. Vamos fazer um exercício? Que narrativa você poderia
mudar hoje? (@flaviacalina, 21/03/2023)

Figura 3 - Trechos de comentários.

Fonte: INSTAGRAM – Flávia Calina, 21/03/2023

As postagens indicam a insatisfação de algumas seguidoras, já que elas apontam o lugar


privilegiado da influenciadora, já que a mesma é uma mulher branca que mora fora do Brasil e
divulga a sua casa e o acesso a diversos bens e serviços aparentemente de alto valor financeiro,
bem como a produção romantizada da maternidade, já que a mesma produz em suas redes
representações de uma família unida, em que a mãe é a grande responsável por cuidar, orientar
e educar as crianças, bem como, manter a casa organizada. Assim, a circulação desses discursos
nas redes sociais digitais reflete-se nas experiências das usuárias e na percepção sobre seus
próprios papéis sociais, enquanto mulheres e mães. A influenciadora retoma o discurso da boa
mãe da década de 1950, em que a mulher se dividia em todas as funções da casa, inclusive

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educar os filhos e se manter sempre agradecida e feliz. Toda essa suposta rotina é
incansavelmente explorada em suas redes sociais e outros canais, principalmente no YouTube.
Já o perfil de @luabarrosf difere dos dois anteriores, contém pouco mais de 100 mil
seguidores e também dialoga com as questões do maternar ligadas à figura feminina ao tempo
que traz discursos feministas sobre a importância do autoconhecimento e do cuidado de si e de
sua saúde, ela compartilha os seus sentimentos e vivências a partir de uma perspectiva
feminista. Lua Barros, mulher parda e baiana, tem quatro filhos, é educadora parental e além
do trabalho em seu perfil coordena a Rede Amparo que tem a proposta de cursos para
aprendizagem socioemocional. Em suma, as suas falas vão do discurso feminista a
ancestralidade biológica que deveria ser resgatada. Um dos cursos que ela oferece intitulado A
barca, vai um pouco nesse sentido, um retiro só para mulheres. A influenciadora apresenta: “A
Barca foi a forma que encontrei de praticar as disciplinas da Inteligência Emocional, campo de
estudo que me interessa profundamente no meu ofício, com outras mulheres”.
Figura 4 - Publicação.

Fonte: INSTAGRAM – @luabarros, 08/12/2022

Próximo ao perfil de Lua Barros temos o de @elisamasantoscs, administrado por


Elisama Santos, mulher negra e baiana, é pós graduada em saúde mental e autora best seller de
um livro sobre educação não violenta além de ter também outros livros sobre o tema da
educação e de ter lançado recentemente um romance, ela aborda a questão da maternidade de
maneira diferenciada, pois enxerga o maternar como dispositivo atravessado por questões

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sociais e étnicas e, a partir disso, proporciona discussões mais sensíveis sobre o tema atrelando
também falas feministas que dão vasão ao empoderamento da mulher negra.
Figura 5 - Publicação.

Fonte: INSTAGRAM – @elisamasantos – 10/06/2023

Assim como ela apresenta no post, seus questionamentos aparecem em muitas outras
publicações, evidenciando os lugares de privilégios e, portanto, dialogando com muitas outras
mulheres que não poderiam exercer um modelo de maternidade propagado, pois não contam
com redes de apoio, e muitas nem mesmo com o básico, como escola, moradia, saúde e
alimentação. Além disso, Elisama se posiciona criticamente nas questões que envolvem política,
mostrando seu posicionamento feminista, bem como, político. Os perfis de @Lua barros e
@elisama santos são próximos neste aspecto da crítica política e de posturas mais firmes
quando se fala de desigualdade de gênero e raça.
Já no perfil de @isa.minatel gerido pela psicopedagoga Isa Minatel, é dos perfis o que
mais investe no marketing e venda de seus cursos. Ela publicou dois livros sobre educação
infantil, atua com cursos pagos para pais e professores, suas discussões giram em torno da
maternidade consciente, parentalidade positiva e educação montessoriana. Dentre todos os
perfis a Isa traz de maneira mais forte os discursos empreendedores ligados à educação das
crianças, em suas falas ela associa os modos de educar e criar ao posterior sucesso dessas
crianças em suas vidas adultas. Também oferta soluções infalíveis para acabar com a birra em
um curso de sete dias. Recentemente registrou sua marca educacional “Disciplina do

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Equilíbrio”. Em seu perfil ela se apresenta como produtora de “conteúdos que mudam a vida”
a partir do conhecimento dos temperamentos e da Programação Neurolinguística (PNL) e
Montessori. Observamos que seu perfil ao longo da pesquisa tem se tornado cada vez mais
como canal de propaganda para seus cursos, se referindo pouco sobre sua experiência pessoal
materna. Não vincula em sua rede aspectos políticos ou feministas, a maternidade está muito
mais ligada a algo objetivo, a métodos para maternar que sendo seguidos garantirão a eficácia
na criação do filho assim como no desenvolvimento cognitivo do mesmo. Assim, como Flávia
Calina, Isa Minatel é uma mulher branca, bem-sucedida na área, que não aborda questões
sociais, de classe ou raciais ao falar de seus cursos e da maternidade.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora, tenhamos muitas problematizações a serem feitas e analisadas, a pesquisa e
discussão realizada até aqui nos permitiu analisar os múltiplos aprendizados a que se
submetem as mulheres sobre “modos de existência, sobre modos de comportarem-se, sobre
modos de constituir a si mesmos” (FISCHER, 2002, p. 154). Nesse processo é produzido um
poderoso “dispositivo pedagógico”, tecnologias que ajudam a produzir o eu materno. E mesmo
que esses discursos estejam amparados em pesquisas e questões sociais consideradas
importantes como a educação e a criação das crianças e as inúmeras denúncias em torno de
violências físicas e morais nesse processo, entendemos que, junto a esses objetivos se forja
também um conjunto de regras que a mulher deve seguir, um número “de operações que deve
investir sobre seu corpo e suas ações, um domínio de prescrições às vezes meticulosamente
descritas que precisa realizar, uma gramática que deve reproduzir emerge, transformada e
convertida, a mãe”. (ALVES, 2015, p. 11)
Atrelado a todas estas questões observamos também como os marcadores sociais são
importantes no posicionamento do maternar de cada perfil pesquisado. Para Leite (2021) é
necessário desmoralizar e politizar este debate acerca do cuidado no maternar. Assim, se
queremos democratizar o cuidado, é urgente que se faça, então, uma crítica à despolitização das
relações de cuidado e dos afetos que estas engendram e, “sobretudo, à sua consequência: a
exclusão, no debate público, de valores, linguagens e preocupações que se estabelecem a partir
das posições das mulheres nas relações de cuidado” (BIROLI, 2018, p. 68).

REFERÊNCIAS
ALVES, Karina Mirian da Cruz Valença. A subjetivação da mãe naturalista como modelo: a
maternidade como efeito das pedagogias culturais. Revista Periódicus, 2ª ed. Nov. 2014 / abri.

99
2015. Disponível em
<https://periodicos.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/12880/9189> Acesso
em 09 de mai. de 2021.

BADINTER, Elisabeth. O conflito: a mulher e a mãe. Rio de Janeiro: Record, 2011.

BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Trad. W. Dutra. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

BIROLI, Flavia. Cuidado e Responsabilidades. In: BIROLI, Flavia. Gênero e Desigualdades:


limites da democracia no brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 52-88. Edição do Kindle.

FISCHER, Rosa Maria Bueno. O dispositivo pedagógico da mídia: modos de educar na (e pela)
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FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro (RJ): Graal, 2000a.

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SOBRE AS AUTORAS
Rosemere Olímpio de Santana: Doutora em História pela Universidade Federal
Fluminense, Mestra em História pela Universidade Federal da paraíba e Graduada em História
pela Universidade Estadual da Paraíba. Professora Associada da Universidade Federal de
Campina Grande. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Gênero, sexualidade e subjetividades
(UFCG/CNPq). E-mail: rosemere.olimpio@professor.ufcg.edu.br. Orcid:
https://orcid.org/0009-0003-5280-9143. Contribuição de autoria: Concepção, análise,
interpretação dos dados, escrita e revisão crítica.

Ana Maria Oliveira dos Santos: Graduanda do curso de Licenciatura em História da


Universidade Federal de Campina Grande e bolsista do Projeto de Iniciação Científica sobre
maternidade nas redes sociais. E-mail: ana.m.oliveira@estudante.ufcg.edu.br. Contribuição de
autoria: Concepção, análise, interpretação dos dados e escrita.

COMO CITAR
SANTANA, Rosemere Olímpio de; SANTOS, Ana Maria Oliveira dos. O instagram como fonte
histórica: analisando o dispositivo da maternidade em perfis de mulheres – mães. In: SILVA,
Maria Larisse Elias da; FARIAS, Ana Elizabete Moreira de; CASTRO, Tatiana de Carvalho (Orgs.).
Pesquisa histórica em perspectiva, v. 1, Campina Grande: Amplla Editora, 2023, p. xx-xy. DOI:

101
CAPÍTULO VII
ENTRE O CLERO E O “POVO”: LUSTOSA DA COSTA E
UMA NARRATIVA DOS “ILUSTRES” DE SOBRAL
BETWEEN THE CLERGY AND THE “PEOPLE”: LUSTOSA DA COSTA
AND A NARRATIVE OF THE “ILLUSTRS” OF SOBRAL
DOI:

Ana Elizabete Moreira de Farias *


* Mestra em História pela Universidade Federal da Paraíba e Professora Efetiva na área de História da Prefeitura
Municipal de Baixio-CE. E-mail: anaelizabete82@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0009-0008-9408-9347.

RESUMO ABSTRACT
A historiografia de Sobral-CE é permeada por The historiography of Sobral-CE is permeated by
discurso e imagens que tentam atestar a sua discourse and images that attempt to attest to its
singularidade a partir da importância dada aos seus uniqueness by emphasizing the importance
personagens “ilustres”. Padres na sua grande attributed to its 'illustrious' figures. These figures are
maioria e/ou pessoas ligadas diretamente a Igreja predominantly priests and/or individuals closely
Católica. Historiadores, cronistas e memorialistas connected to the Catholic Church. Historians,
enfatizam a centralidade dos “pastores de almas” na chroniclers, and memoirists emphasize the
construção das suas narrativas. Nesse sentido, ao centrality of the 'shepherds of souls' in the
analisar o livro “Clero, Nobreza e povo de Sobral” do construction of their narratives. In this sense, when
autor Lustosa da Costa, buscamos apresentar uma analyzing the book 'Clergy, Nobility, and People of
“outra” possibilidade de pensar o “distinto” Dom José Sobral' by author Lustosa da Costa, we aim to present
Tupinambá da Frota, o “salvador” da cidade e seu an 'alternative' possibility of considering the
“arqui-inimigo”, o jornalista Deolindo Barreto. A 'distinct' Dom José Tupinambá da Frota, the 'savior'
narrativa é uma tentativa de criar laços de of the city, and his 'arch-enemy,' journalist Deolindo
afetividade em torno de algo que ultrapassa o Barreto. The narrative is an attempt to forge bonds
narrável, se convertendo em um convite a of affection around something that transcends the
interpretações múltiplas. narratable, becoming an invitation to multiple
interpretations.
Palavras-chave: Sobral; Narrativa; Clero; Jornal.
Keywords: Sobral; Narrative; Clergy; Newspaper.

1. INTRODUÇÃO
Ao iniciar as pesquisas sobre a história de Sobral (figura 1), logo nos deparamos com a
sua ligação intrínseca com a Igreja Católica e seus “ilustres” padres. Historiadores,
memorialistas, cronistas, todos colaboram para a disseminação da ideia de uma historiografia

102
clerical1, uma forma de retratar e narrar a cidade a partir do que a torna “única, distinta e
realmente memorável” – o espaço, mas, sobretudo, seus homens.
Figura 1 – Mapa de localização da cidade de Sobral/CE

Fonte: Oliveira, Sales & Diniz (2017).

Esses intelectuais, a exemplo de Lustosa da Costa, tentam construir a sua narrativa a


partir dos fatos e homens “inesquecíveis”, partindo da cidade e suas peculiaridades, num
movimento que faz das práticas sociais do cotidiano o marco estratégico do situar-se na e para
além de Sobral, numa complexa tecitura entre passado-presente-futuro. Em outras palavras,
entre o que deve ser lembrado ou esquecido, aclamado ou silenciado em seus textos e narrativa
da cidade, numa constante “batalha” entre o bem e o mal.
Nas palavras de Albuquerque Júnior (2008), essas tramas, ou seja, as relações que se
estabelecem entre a organização do espaço (Sobral) e dos discursos e imagens, só são possíveis
mediante as conectividades entre o cenário, a cena e seus espectadores (passivos ou não).
Assim, “[...] um espaço é feito de natureza, de sociedade e de discurso” (ALBUQUERQUE JÚNIOR,
2008, p. 108).
Tais discursos e imagens, que interagem com a sociedade e a natureza, são construídos
pelos grupos de sujeitos ligados diretamente à Igreja. Esses indivíduos são, em sua grande
maioria, padres e/ou membros leigos dessa mesma instituição. Grupo de intelectuais católicos
que, como afirma Rocha (2017), pensavam, ou melhor, concebiam a “cidade ideal”, aquela

1No texto “A fabricação historiográfica mística em Sobral (1922 - 1991)”, Rocha realiza essa discussão de forma
mais detalhada. Para nós, o relevante é o papel desempenhado pelos padres no processo de construção da
imagética e dos discursos sobre a cidade.

103
dotada de qualidades sagradas, cuja participação resiliente e “modernizadora” de seus padres
contribuíam para conferir maior autoridade moral diante de seu povo, ao passo que tentava
sobressair-se às demais cidades do interior do Ceará – notadamente o Crato2.
É nesse sentido que as figuras de Padre Sabino Guimarães Loyola, do Bispo Dom José
Tupinambá da Frota, entre outros, aparecem como integrantes dessa “fabricação da cidade”.
Para Rocha (2017, p. 19), eles passam a ser “[...] modelos a serem seguidos pelos habitantes de
Sobral. Eram modelos de comportamento que deveriam ser seguidos, ou, pelo menos,
respeitados”, e, como tal, devem forjar o espírito de nobreza da sociedade sobralense.
Nota-se que as relações que se estabelecem na cidade também são permeadas por
tensões e conflitos entre aqueles que intencionam adentrar mais profundamente nas malhas da
política local. Não é papel deste artigo problematizar ou questionar tais tensões e seus
desdobramentos, o que queremos é apresentar e discutir “outra” alternativa de pensar a cidade
de Sobral. Dessa feita, a partir da ideia de cidade-saudade de um nome específico da literatura
local, Lustosa da Costa, e de como sua narrativa serviu para “consagrar” a imagem de
determinados personagens como “salvador” e/ou “inimigo” da cidade.
Entre cronistas e memorialistas, um nome nos chama atenção. Lustosa da Costa,
anteriormente citado, aparece para nós como o “primeiro cronista exclusivo de Sobral”. Aquele
que, nas palavras de Silveira (2020), foi responsável por criar uma “simbiose” entre sua
literatura e os discursos de uma historiografia eclesiástica sobralense3. Simbiose que coaduna
com a saudade que só o pertencer é capaz de criar, que só a memória/ficção pode construir tão
intensamente.
É nesse sentido que Lustosa da Costa se apresenta como principal interlocutor dessa
narrativa que intercala e interliga a “Igreja”, a “política” e seu “povo” como temas-
sustentáculo/síntese de uma ‘Sobral dos padres”, que emergem como verdadeiros “pastores de
almas”. Sua obra busca nos oferecer indícios de uma cidade marcada pelo conservadorismo 4.
Conservadorismo que é retratado por Costa como prática arraigada dentro da instituição
católica, cujos personagens dos seus livros são bem representativos.

2 Lustosa da Costa, no livro “Clero, nobreza e povo de sobral”, chama nossa atenção para essa disputa de qualidades

entre as duas cidades, tendo à frente Dom José Tupinambá da Frota por Sobral e o Dr. Quixadá – Raimundo Quixadá
Felício - pelo Crato.
3Rocha (2019) nos apresenta a produção das mais importantes e influentes obras da historiografia local referente
às relações que se estabelecem entre a Igreja e a cidade.
4 Termo que
o próprio Lustosa da Costa utiliza no livro que foi analisado, e que em nada corresponde as discussões
empreendidas pela academia.

104
Para tanto, como forma de descrever essas práticas e personagens, Lustosa da Costa
reúne anedotas retiradas de jornais, das lembranças da infância e das conversas com seus
conterrâneos5 para traçar a trajetória dos “ilustres” sobralenses, num misto de “consagração“
dos homens e suas histórias, ao mesmo passo que tece, através de comentários ácidos, críticas
às posturas por eles adotadas.
Tendo uma vasta gama de obras publicadas – memórias, crônicas, ficção – sobre a cidade,
Costa nos apresenta um conjunto discursivo e imagético que procura, através da sua narrativa
sobre o passado, a suposta “nobreza” da sociedade da qual se sente parte e principal divulgador.
Uma narrativa que se traduz e se faz saudade e memória a cada linha escrita. Uma saudade que
o permite construir uma estreita relação com o ausente (espaço) e a presença
(memórias/lembranças).
Por esse motivo, ao longo do artigo buscaremos entender como os “padres-fundadores”
de Sobral são retratos na literatura de Lustosa da Costa. Mais especificamente, como Dom José
Tupinambá da Frota aparece no livro “Clero, Nobreza e povo de Sobral”, bem como o seu “arqui-
inimigo”, Deolindo Barreto.

2. ENTRE A CIDADE E A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA: APROXIMAÇÕES


ENTRE AUTOR E LEITOR
Sobral, mais que cidade, é doce recordação que persiste em mim. Por tudo isso repito:
Sobral não é só cidade, é uma lembrança que ouço chorar baixinho (COSTA, 1982, p.
73).

Jornalista por formação, Lustosa da Costa teve boa parte da sua carreira vinculada ao
rádio e ao jornal. No entanto, o que nos chama atenção é que sua escrita ultrapassa qualquer
tipo de engessamento, uma vez que sua vasta obra configura-se como uma tentativa de
(re)construção de uma memória, carregada de intencionalidades. Sua técnica textual supera as
práticas de invenção e criação que o jornalismo estimula, para lançar suas bases numa possível
historicidade.
Historicidade que não pode e nem deve ser encarada como isenta de motivações. Por
isso, em “História Cultural da Impressa – Brasil – 1900-2000”, a autora Marialva Barbosa lança
alguns questionamentos sobre a (re)construção dos cenários e de alguns personagens
singulares que proporcionaram a dotação de sentido aos “exuberantes simbolismos” do
jornalismo no Brasil. Tomando como base da sua argumentação, a autora utiliza textos escritos

5Paraibanos de nascimento, Costa construí sua literatura a partir da identificação cultural e afetiva com a cidade,
alimentada pelo tempo e pela ausência.

105
por Nelson Rodrigues e João do Rio para discutir o empirismo jornalístico na construção
midiática da trajetória da impressa brasileira.
A autora nos permite trazer essa discussão também para Lustosa da Costa,
especificamente quando afirma que:

Ao narrarem o seu texto sob forma de memória ou de crônica, como fazem Nelson
Rodrigues e João do Rio, torna-se possível a eles, como construtores de mensagens,
apresentarem a situação vivenciada como real, ao mesmo tempo em que externam
opiniões e juízos de valor sobre o acontecimento que se antepôs às suas narrativas
(BARBOSA, 2007, p. 51)

Mesmo não se considerando historiador6, a narrativa de Lustosa da Costa tenta articular


e aproximar o leitor do cotidiano da cidade e dos homens, mediante fontes e referências aos
“padres-historiadores” – Monsenhor Linhares; Padre João Mendes Lira; Padre Francisco Sadoc
de Araújo e o próprio Dom José Tupinambá da Frota. Por esse motivo, sua obra, nos dizeres de
Melo (2013, p. 149), tenta mostrar uma “[...] simbiose sutil entre quem escreve, o que se escreve
e sobre o que se escreve”.
Vale ressaltar que as narrativas, quaisquer que sejam, trazem marcas singulares, uma
vez que são alicerçadas em fatos anteriores à escrita do texto. Por isso, a narração implica uma
variada gama de identificações – entre o autor e o acontecimento/fato; entre o leitor e o
acontecimento/fato; e entre o autor e o leitor. E por ser “o único cronista exclusivo de Sobral”,
Costa se destaca, já que lança mão de personagens efetivamente humanos e identificados como
parte constitutiva da história da cidade, explicitando a aproximação de autor e leitor junto aos
eventos e homens de Sobral.
“Não é um romance”, inicia assim Costa (1987, p. 15) a justificativa do seu livro,
ressaltando que o texto não serve como painel sociológico, mas como um compilado de
“estórias”7 da sociedade de Sobral, dos padres, juízes e jornalistas e suas disputas pela
construção de uma narrativa hegemônica – numa clara tentativa de reforçar o discurso da
cidade “distinta” e moderna.
Publicada em 1982, sua obra ”Clero, Nobreza e povo de Sobral” dedica-se a contar
anedotas de três figuras ilustres da cidade – Dom José (figura 2); José Sabóia e Deolindo Barreto
(figura 3). Ao longo do livro, o leitor depara-se com fotos, recortes de jornais, cartas8 que

6 Ver Costa (2010).


7“Estória” é o termo usado por Costa para descrever os “causos” e histórias que permeiam sua narrativa datada,
nesse caso específico, na década de 1980. Porém, para fins linguísticos, usaremos história com “h”.
8A rica documentação trazida por Lustosa merece ser melhor analisada pela historiografia. Explorar as fotos, as
cartas, os jornais, visando ampliar a discussão sobre as fontes e as narrativas sobre a cidade, numa produção
historiográfica que possibilitem novas perspectivas de ver e falar sobre Sobral.

106
passam – ou tentam – dar “validade” ao que se escreve. Esse cuidado em
referenciar/reverenciar as fontes, possibilita um certo grau de “legitimidade” sobre o que se
pretende narrar, ao mesmo tempo que transparece um certo “cuidado” com a narrativa que
realizou em seu livro.
Vejamos trechos do livro para melhor exemplificar:

Durante mais de 50 anos, para sermos mais exatos, durante oito como vigário geral e
43 como bispo, Dom José moldou Sobral à sua imagem e semelhança. Voltando de Roma
com visão europeia, tornou-se, pouco a pouco, o modernizador da cidade. Controlava
tudo. E justiça se lhe faça: ainda hoje o que ele construiu, serve a Sobral e à região norte
do Ceará (COSTA, 1982, p. 21).

Boa parte das histórias narradas no livro se passam durante as décadas de 1920 e 1930,
o que mostra claramente as tensões em torno do clima de mudança que ganhavam espaço no
Brasil durante esse período, junto à intelectualidade brasileira. A Semana de Arte Moderna de
1922 conduzia e ampliava o debate em torno de uma identidade nacional, na busca pelos
alicerces da nacionalidade brasileira que rompesse com o tradicionalismo do passado e que
abrisse possibilidades para as múltiplas e heterogêneas tendências da
construção/entendimento de uma sociedade que desejava e ansiava pelo “novo” (MARIANO,
2018).
Novo que estava relacionado com as transformações no espaço geográfico, com as
construções encabeçadas por Dom José e que ganharam centralidade nos discursos em torno
da narrativa da historiografia eclesiástica. Nas palavras de Rocha (2017, p. 196, grifos meus),
“Dom José e o grupo que o cercava se aliam às forças em prol de uma perspectiva de progresso
que, segundo o seu discurso, seria benéfico para a cidade”.
No entanto, um leitor desatento pode não perceber o que se encontra nas entrelinhas
deste discurso, a saber: as disputas políticas para manter a influência de Dom José – e por
extensão, da Igreja – na vida política, social e cultural da cidade. Influência que encontramos no
livro de Lustosa, e que, em alguns momentos, revelam o choque entre o moderno e o
conservador, entre o progresso e o retrocesso.
Ao longo do livro, Lustosa da Costa traz recortes de alguns dos principais jornais de
circulação na cidade de Sobral, a exemplo do “Correio da Semana”, vinculado diretamente aos
interesses da Igreja Católica, tendo à frente Dom José como principal representante e o jornal
“A Lucta” de Deolindo Barreto, crítico e “mártir” do jornalismo cearense no Brasil República9.

9 Ver SANTOS (2005)

107
No livro, as duas personalidades aparecem como representantes do clero e do povo da cidade
– a nobreza ficou a cargo do juiz José Sabóia (que não será analisado aqui).
Figura 2 – Dom José Tupinambá da Frota

Fonte: Costa (1982).

Figura 3 – Deolindo Barreto

Fonte: Costa (1982).

108
No decorrer do livro, Costa (1982) busca mostrar o protagonismo dos “fabricadores de
Sobral”, tendo à frente, pelo clero, Dom José que muitas vezes foi retratado como uma pessoa
conservadora e totalmente afeita aos processos do patriarcalismo tão enraizado na sociedade
brasileira. Descrição que não “casa” com a imagem por ele divulgada no livro – figura 2 – que
aparenta ser bondoso, benevolente e que não demonstrava imponência na sua fisionomia, o que
nos faz questionar a importância da imagem numa evidente dissociação da caracterização feita
pelo autor.
Corroborando com este questionamento sobre a figura 2 e sua utilização no livro, o leitor
pode observar o próprio sumário, que tem seu primeiro capítulo dedicado ao padre. Nele,
Lustosa nos traz indícios da personalidade de Dom José, ressaltando algumas características
como: político, polêmico, repressor e bairrista. No mesmo sumário, outras qualidades
aparecem: piedoso e humilde.
Tanto a imagem quanto a escrita de Costa, nos mostram uma tentativa de reforçar a
importância de Dom José para a construção de uma narrativa que o coloca como o “salvador”
da cidade e dos homens. Nas palavras de Freitas (2005, p. 262, grifos meus) “As narrativas que
falam do salvador Dom José, constroem um perfil de herói responsável pela construção da
bem-aventurança na cidade com firmeza nas suas ações, mostrando experiência, prudência,
sangue-frio, comedimento e moderação.”
Com relação ao “piedoso e humilde” bispo, talvez o que realmente esteja em jogo é a
relação de “intimidade” entre Lustosa da Costa e o Dom José. Intimidade que pode ser lida em
vários trechos do livro e que são enfatizados por Silveira (2020), quando busca analisar a
estrutura da literatura do nosso autor. É assim que a narrativa do passado “nobre” de Sobral
ganha força e notoriedade.
Para Silveira (2020, p. 509), “o fato é que, os temas “Igreja” e “Política” estruturaram a
literatura de Lustosa da Costa, seja nas memórias, nas crônicas miúdas ou na ficção (...) não são
inocentes ou frutos do acaso”. É uma formação discursiva que busca consolidar o passado e os
seus homens dentro do que torna a cidade e seu povo – em especial os padres – motivo de
orgulho, de identificação e de pertencimento.
Já no caso do jornalista Deolindo Barreto, arqui-inimigo do Bispo e por extensão da
sociedade sobralense, a caracterização feita pelo autor é bastante significativa: polêmico e
provocador. Aqui, a figura 3 já demonstra uma relativa aproximação com essas qualidades, uma
vez que busca demonstrar altivez e uma certa imponência, numa clara demonstração de “força”
contra aqueles que não estão abertos ao questionamento da ordem estabelecida, e tentam, a
todo custo, silenciá-lo.

109
Silêncio que é rompido a partir das palavras escritas no seu jornal, “ferramenta
ideológica” de declaração de “guerra” contra a Igreja e o “salvador”. Por esse motivo, é
imprescindível atentar para o fato de que:

jornais constituíam os meios de comunicação privilegiados, buscavam inúmeras formas


de penetrar e difundir em diferentes territórios culturais e políticos da cidade,
assumindo o papel de responsáveis pela formação de opinião pública, de veículos
renovadores dos sentidos das práticas de leitura e de espaços para a ampliação de
leitores e consumidores (SANTOS, 2005, p. 64).

Dessa maneira, o jornal “A Lucta” passa a ser o principal canal de crítica de Dom José e
seus partidários. E Deolindo Barreto se destaca justamente por representar o epicentro dessa
disputa de narrativas, uma vez que se distancia da “cumplicidade” entre aqueles que faziam
parte do círculo mais próximo ao Bispo.
Em meio as muitas disputas entre Dom José e o jornalista Deolindo na impressa
sobralense, o round sobre o carnaval foi uma das mais icônicas, porque demonstra claramente
a batalha entre o “sagrado” e o “profano”. No início da década de 1920, os dois personagens,
tendo os respectivos jornais – Correio da Semana e A Lucta - como porta voz das divergências
de opinião, expressaram seus descordos da seguinte forma:

Pelo carnaval do ano passado, correu a notícia de que os padres não dariam comunhão
às senhoritas que fossem aos bailes de carnaval. Como o carnaval hoje em dia vem
sendo considerado a única coisa séria neste país, manifestamos a nossa estranheza a
esse ato e, por isso, novas perseguições desencadearam-se sobre as nossas cabeças. Não
recuamos, enfrentamos aquele regime do crê ou morre, perdemos alguns assinantes e
algumas amizades, mas tivemos o prazer de, no dia seguinte, não vermos repetida a
esdruxula proibição (COSTA, 1982, p. 28 apud Jornal A Lucta, 15-11-1922).

Até onde se pode notar, essa querela continua ainda no ano seguinte, com novas
publicações da Diocese: “Não podem servir de madrinha, nem são dignas da absolvição
sacramental ou da Sagrada Comunhão, as senhoras que se apresentem com vestes
transparentes ou demasiadamente curtas, braços nus e colo descoberto (COSTA, 1982, p. 28
apud Jornal Correio da Semana 02-06-1923).
Para entender o papel do jornal “A Lucta”, Santos (2005) chama atenção para o que ele
busca trazer de “novo” para a sociedade, ou seja, mostrar as contradições da narrativa
hegemônica da Igreja.

O jornal A Lucta foi criado com propósito de ser o remédio para os males da sociedade
sobralense. O primeiro editorial informava que estava entrando na arena política com
a esperança de dias melhores. Numa escrita cheia de sentimentos, clamava por novos
adeptos. Onde seria a verdade, a luz para sanar os problemas sociais (SANTOS, 2005, p.
171-172)

110
Há muito a ser dito sobre a obra de Lustosa e seu papel no questionamento/reforço
sobre a narrativa da cidade. No entanto, a Sobral que se sobressai na narrativa parece viva
através dos seus relatos sobre o passado. Passado de recordação e memória. Passado de
memória e saudade. Apesar das imagens construídas na narrativa, é possível perceber a relação
que se estabelece entre o autor e os personagens por ele citado.
Lustosa da Costa tenta insistentemente restituir ao presente o passado idealizado a
partir das imagens, dos fatos e da memória. Memória que, nas palavras de Le Goff (2003),
ultrapassam a “prisão” do mundo racionalizado pelo “caminho certo” e linear da temporalidade
histórica, uma vez que encontra na narrativa as possibilidades restituir a centralidade das
construções históricas.
Cidade que é campo de colisão entre o que é novo e o que é velho. Cidade que é feita de
sonhos e desejos, mas também de tensões. Nas palavras de Le Goff (2003, p. 167), o “’antigo”
pode ser substituído por ‘tradicional’ e ‘moderno’ por ‘recente’ ou ‘novo’ e porque qualquer um
dos dois pode ser acompanhado de conotações laudatórias, pejorativas ou neutras”. Ou seja, a
cidade-narrativa pode ser entendida com termo amplo e múltiplo, já que não se esgota no
espaço geográfico, mas revela-se nos espaços de luta, desejos e utopias.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A narrativa, seja ela histórica ou não, precisa de um certo envolvimento emocional para
que se transforme em algo que una leitor e autor em um misto de cumplicidade e
(re)conhecimento do passado/presente. É uma tentativa de criar laços de afetividade em torno
de algo que ultrapassa o narrável. Nesse caso, especificamente, a cidade de Sobral e seus
“ilustres e distintos” habitantes.
Padres, jornalistas e juízes figuram entre os que compõe a narrativa/escrita de Lustosa.
A Igreja, os embates públicos, as campanhas de difamações e a construção das imagens e
discursos se sobrepõe, ao passo que interligam seus personagens numa batalha entre o que
pode ser considerado “sagrado e consagrado” e o sempre presente “perigo do comunismo”
daqueles que não estão dispostos a falar “amém”.
Ao dar notoriedade à Dom José e Deolindo Barreto, Lustosa da Costa abre possibilidades
de interpretações múltiplas para os historiadores de formação. Ao afirmar, “não sou
historiador”, ele nos propõe um desafio: leiam a documentação, criem uma narrativa – histórica
– e busque se desvencilhar do que escrevi.

111
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SILVEIRA, Cid Morais. O “fazedor de Sobral”: reflexões sobre o espaço literário em Lustosa da
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Pós-Graduação em História do Brasil da UFPI. Teresina, v. 9, n. 2, jun./dez. 2020. Disponível em:
https://revistas.ufpi.br/index.php/contraponto/article/view/12599 Acesso em: 14 ago. 2023.

112
SOBRE A AUTORA
Ana Elizabete Moreira de Farias: Mestra em História pelo PPGH/UFPB, Graduada em
História pela UFCG. Professora Efetiva na área de História da Prefeitura Municipal de Baixio.
ORCID: https://orcid.org/0009-0008-9408-9347. E-mail anaelizabete82@gmail.com.
Contribuição de autoria: Concepção, análise, interpretação dos dados, escrita e revisão crítica.

COMO CITAR
FARIAS, Ana Elizabete Moreira de. Entre o clero e o “povo”: Lustosa da Costa e uma narrativa
dos “ilustres” de Sobral. In: SILVA, Maria Larisse Elias da; FARIAS, Ana Elizabete Moreira de;
CASTRO, Tatiana de Carvalho (Orgs.). Pesquisa histórica em perspectiva, v. 1, Campina
Grande: Amplla Editora, 2023, p. xx-xy. DOI:

113
CAPÍTULO VIII
COMO SE LÊ E COMO SE ESCREVE PESQUISA
HISTÓRICA SOBRE O ESPIRITISMO NO BRASIL
HOW TO READ AND HOW TO WRITE HISTORICAL RESEARCH ON
SPIRITISM IN BRAZIL
DOI:

Leonardo Bruno Farias *

*Doutorando do curso de História. Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. E-mail:
leonardo.farias.873@ufrn.edu.br. Orcid: https://orcid.org/0009-0001-7660-5036.

RESUMO ABSTRACT
O Espiritismo foi/é palco de muitos textos que são Spiritism was the stage for many texts that are
apresentados, lidos e vivenciados, tanto na prática de presented, read and experienced, both in common
comuns quanto na reflexão daqueles que detém as practice and in the reflection of those who deserve
estratégias de escrita. Escrever tem um peso grande the writing strategies. Writing has a great weight in
na produção sobre esse objeto, e demarca fronteiras the production of this object, and demarcates
discursivas, como novas narrativas, demarcando, discursive boundaries, like new narratives,
questionando, problematizando, assim, as práticas, demarcating, questioning, problematizing, thus,
longe de qualquer senso comum, inserindo-se novas practices, far from any common sense, inserting new
letras e lentes. Problematizar os espaços em que o letters and lenses. To problematize the spaces in
Espiritismo é apropriado e quem dele se apropria. which Spiritism is protected and who appropriates
Eis algumas questões que aqui tentamos refletir. it. Here are some questions that we try to reflect on
here.
Palavras-chave: Espiritismo; escritas discursivas;
narrativa histórica, pesquisa histórica. Keywords: Spiritism; discursive writings; historical
narrative, historical research.

1. O QUE SE ESCREVE
O que é uma escrita? O que é um leitor? Onde se lê? Como se lê? São questões que
pensamos, quando nos debruçamos, a respeito de como se escreve e de como se lê Espiritismo
no Brasil. Podemos experimentar múltiplos olhares e incursões sobre o pensar, problematizar
e pesquisar o Espiritismo, como objeto de estudo das Ciências Humanas e perceber suas
diversas mudanças paradigmáticas ao longo dos últimos anos e como isso foi apropriado pela
escrita acadêmica, dita oficial.
O ato de escrever faz-se em enquanto sedução. O ato de ler faz-se enquanto relação. Ler
o que está escrito é estar em contato com sua trama discursiva. Escrever sobre o que leu é
manter o contato, agora do outro lado, o lado de quem trama também seu discurso. Escrita e

114
leitura se apresentam, assim, enquanto práticas discursivas (FOUCAULT, 2008). Escrever e ler
se faz múltiplo pelo leitor e pela escrita? Ou será por experimentação epistemológica reservada
ao abrir de um leque em outras novas possibilidades de escritores e leitores, nunca concluídos,
entretanto, mantidos “vivos” pela ação da sedução de sua narrativa (histórica) e seu espaço de
leitura chartierniano?
Novos espaços, novos lugares em pesquisa, foi o que nos apresentou a disciplina, sobre
o Espiritismo, no Brasil e no mundo. Elas demonstram que ainda há muito a se buscar e se
descobrir sobre o objeto em seus novos espaços (na Internet, por exemplo), numa
hipertextualidade, enquanto textos que trazem agregados outros conjuntos de informações na
forma de blocos de textos, palavras, imagens ou sons, que compõem o universo digital,
aumentando a cada dia; e uma interdisciplinaridade (Grupos de Pesquisas, por exemplo), que
demonstra a necessidade do convite à outras áreas do conhecimento, e das discussões de
vanguarda, que estão compondo as pós-graduações e que esse objeto exige.
Convidamos e, quem sabe, seduzindo o leitor a adentrar conosco um pouco dessa
narrativa, possamos realizar a leitura dessa escrita, com consciência de que sua compreensão
só se dará ao ver como o leitor construirá essa compreensão que ele mesmo escreverá como
sua própria leitura (HAROLD, apud ZILBERMAN, 2001).

2. O QUE SE LÊ...
Chartier (1999) nos diz que há muito a História Ocidental e seus historiadores
consideram o vínculo entre impressão, publicação e leitura, unicamente, pelos critérios da
invenção de Gutenberg. Seria uma condição basilar, um marco histórico, para a criação de
leitores e para o desenvolvimento de uma atividade de publicação mais encorpada. Não é de se
surpreender que a prática de publicação, mesmo não sendo “nova”, adquiriu um “novo” fôlego,
produzindo a possibilidade de formar novos leitores, novas editoras, novos escritores,
compondo assim, novos espaços, e ampliando seus campos, na medida em que aumenta suas
conexões. Mesmo diante do controle ferrenho do Estado que queria controlar o que se lia,
passando inclusive a responsabilizar os escritores por seus escritos, o fato é que
escrever/publicar e imprimir alcançou patamares, nunca antes vistos, mesmo diante do alto
analfabetismo que versava nas sociedades, tanto europeias como tupiniquins.
Os livros são instrumentos muito importantes para o conhecimento humano. Segundo
Chartier (1999), a primeira grande revolução que o livro causa no cotidiano das pessoas
consiste no longo processo que leva um número crescente de leitores a passar de uma prática
de leitura necessariamente oral, na qual ler em voz alta era indispensável para a compreensão

115
do significado, para uma leitura visual, puramente silenciosa. Embora ambos os estilos de
leitura estivessem coexistidos na Antiguidade grega e romana, foi durante a Idade Média que a
habilidade de ler em silêncio foi conquistada pelos leitores ocidentais. Restrita, a princípio, aos
escribas monásticos, tal capacidade chegou às universidades durante os séculos XII e XIII e
tornou-se prática comum entre cortesãos e aristocratas laicos a partir do século XIV. Essa
tendência continuou após Gutenberg, até que mesmo o mais humilde dos leitores conseguiu
adquirir um estilo e uma habilidade de leitura que não mais exigissem a oralização. Pode-se ver
uma evidência, ao contrário, dessa evolução nas sociedades ocidentais de hoje, nas quais as
pessoas são consideradas iletradas não somente pelo fato de não poderem ler de modo algum,
mas também pelo fato de só serem capazes de entender um texto quando o leem em voz alta.
A capacidade de ler silenciosamente marca uma ruptura fundamental nos hábitos das
pessoas, pois, a partir do contato silencioso com o texto, possibilitou-se a leitura “ao gosto do
freguês”, ou seja, permitiu-se até uma leitura mais rápida, especializada, pois, agora se poderia
escolher uma leitura particular e, assim, aprofundar-se mais em um determinado assunto, como
também manter uma relação mais íntima com o texto, ao ponto de poder dar-se ao luxo de grifar
(em nossos próprios livros, diga-se de passagem) aquilo que mais interessa em um texto de um
autor. Essa primeira revolução, segundo Chartier (1999), precedeu, portanto, a revolução
ocasionada pela impressão, uma vez que difundiu a possibilidade de ler silenciosamente (pelo
menos entre leitores educados, tanto eclesiásticos quanto laicos) bem antes de meados do
século XV.
Com isso, na década de 80 do século XVIII, uma proliferação de vários fatores contribuiu
para um crescimento da leitura em países como Suíça, Inglaterra, França e Alemanha, com a
criação de Sociedades de leitura: bibliotecas, clubes do livro e bibliotecas de empréstimos. Essas
sociedades possibilitaram o acesso a periódicos e livros sem ter de comprá-los, em
consequência do aumento considerável da produção de livros ocasionada pela criação da
prensa e o aumento considerável no número de jornais em circulação. Nesse sentido, é
considerado como a segunda revolução na leitura ainda durante a era da impressão de
Gutenberg e antes mesmo da industrialização. (CHARTIER, 1999)
No caso do Brasil, chamamos a atenção para uma presença mais francesa, e sua
contribuição na formação desses leitores e escritores, que “propiciando a instauração e a
organização de novas instituições (…) abriram as portas da cultura brasileira para a sociedade
europeia...” (WOLF, 2021) E ao nos debruçarmos a respeito de como o Brasil cria lentamente,
mas com constância, o contato com seus impressos dá as condições técnicas para a imprensa

116
crescer, no século XX em diante, principalmente com o expandir dos jornais impressos. (WOLF,
2021)
À vista disso, não demorou muito para que ao ser trazido para o Brasil da Europa, o
Espiritismo ganhe força através dos livros e outros tipos de impressos que passam a circular
no país. Sua influência também chega a outros escritores, que mesmo não sendo adeptos do
Espiritismo, passam a escrever “temas espíritas”, como são os casos de Machado de Assis, ao
publicar, em 1881, a trajetória de um defunto autor que nos impressiona pela exposição irônica
e bastante crítica e um tanto amarga que faz de sua vida, Memória Póstumas de Brás Cubas,
como também as obras de João do Rio e Coelho Neto, que informam a “respeito das percepções
dos mesmos a respeito de um assunto, não só importante na tessitura sociocultural brasileira,
mas, particularmente, na conjuntura na qual se articula a produção desses autores”. (ISAIA,
2006).
Assim, como os autores, citados acima, tomam o Espiritismo como referência, e essa
mesma referência chega à Academia, ainda no Século XIX, propiciando um campo para
pesquisas, em que “diversos estudiosos da época procuraram utilizar abordagens científicas
para investigar aspectos do psiquismo humano, que hoje estão vinculados com a
espiritualidade, como a mediunidade”, por exemplo, alargando o interesse pelo assunto e
seduzindo novos leitores e escritores que vão contribuir e/ou consumir novas áreas como
Psicologia, Psiquiatria, segundo Pimentel (2014),
Não sem alguns incômodos nas conexões com a Religião, como, por exemplo, a Igreja
Católica e seus defensores, como, por exemplo, o cônego Luiz Gonzaga do Monte, que expressou
seus posicionamentos sobre questões debatidas internacionalmente e que afetava a Igreja
Católica, tais como “o liberalismo, o comunismo, o nazismo, à Maçonaria, O Rotary Club, bem
como em relação a temas ligados à ciência, como a Biologia, a Medicina e o Espiritismo”. (LOPES,
2021); ou outra, como o próprio Espiritismo.
Muito embora, Allan Kardec deixasse claro, que o Espiritismo, “não é contra a religião e
que acredita que o conhecimento do Espiritismo pode, na verdade, fortalecer a crença do
indivíduo em sua crença particular. (...), isso se dá na medida em que o que estava oculto no
passado vem à tona com o Espiritismo, pelos liames da razão” (BARROS, 2019); e ao direcionar
suas produções para seus leitores, levando-nos a responder, ainda e sempre, a pergunta “o que
é um leitor?” Podemos ter como resposta que “é também a pergunta sobre como os livros vão
parar nas mãos daquele que os lê, como é narrada a entrada nos textos”. (PIGLIA, 2006)
Inclusive, proporcionando suporte para que outras áreas pudessem ser alcançadas por
um público leigo, que se baseava nesses autores literários para compreendê-las um pouco

117
melhor, como exemplo, a Homeopatia, a qual Marques (2021) nos diz que a “segunda metade
do século XIX, houve uma profunda ligação entre homeopatia e espiritismo no Rio de Janeiro”,
e, “unindo-se ao mercado terapêutico da cura existente no período, curandeiros, sangradores,
médicos, mesmeristas, os espíritas atraíram o povo para sua doutrina...” Desse modo, a medida
em que atraia novos escritos e novos leitores, provocava a ação dos magistrados brasileiros,
numa tentativa de se controlar o que se lia e o que se escrevia no Brasil, compondo a
“reafirmação da necessidade das práticas espíritas permanecerem como transgressão às leis
punitivas” e todos os processos enfrentados por esses autores e praticantes nos rigores da Lei,
segundo Adriana Gomes (2021), compondo outros textos que compunham novos leitores que
percorriam agora os caminhos das letras jurídicas, como também a Medicina e, que através de
seu ramo psiquiátrico escreveu e apresentou “vários pontos de contato e conflito” como o
Espiritismo, havendo “um acirrado confronto entre eles em torno da 'loucura espírita'”, que
tinha em suas produções os mesmos aspectos que a igreja, a saúde e a segurança institucionais:
“curar”. Nessa perspectiva, nos diz Almeida (2020), foi legado, assim, para todos nós, no
presente, um conjunto arquivístico, feitos por processos-crimes, prontuários médicos, bulas e
encíclicas, bibliografias etc., que é rico e que está à espera de novos leitores, novos escritores,
novos pesquisadores, pois as impressões já fizeram seu “dever de casa”, segundo Carvalho
(2021) compondo seus múltiplos acervos, tanto dentro, quanto fora das casas espíritas.
Como podemos perceber, a história da leitura e da escrita do Espiritismo no Brasil se faz
entre os que a compuseram, e, ainda, a componham, mas não sem estabelecer suas narrativas
e lugares de fala.

3. PESQUISA HISTÓRICA SOBRE O ESPIRITISMO NO BRASIL


Allan Kardec (2015), em “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, inicia a mensagem “Os
Bons Espíritas” dizendo que “o Espiritismo, bem compreendido e bem vivenciado, leva o
homem a possuir as qualidades descritas para o homem de bem. Essas qualidades
caracterizariam o verdadeiro espírita”. A chave do texto está na relação teoria e prática
(compreensão e vivência) e conclui o parágrafo destacando que “o Espiritismo não cria uma
nova moral, ele apenas facilita aos homens a compreensão e a prática da moral do Cristo.
Oferece uma fé sólida e traz o esclarecimento para aqueles que duvidam ou vacilam”. E em outra
obra “O Livro dos Espíritos”, Kardec (2013), logo na Introdução orienta, “para designar coisas
novas, são necessárias palavras novas”. Temos aí, então, o nosso panorama.
Entre a teoria e a prática necessárias a esse exercício, está o fato de que elas devem estar
bem orientadas e, ao escolher essa orientação, saber-se, de antemão, o que as também

118
atrapalham, e, isso também perpassa as escritas, que se escolheriam para escrever sobre elas.
É preciso não ter apenas um lugar de fala, para não se correr o risco de unilateralidade, porém,
saber minimamente sobre o que se fala. Ao estarmos em uma sociedade como a nossa, temos
que ter consciência do exercício da exclusão, interdição, e nos diz Foucault (2008), “sabe-se
bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer
circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa”. Na busca de uma
neutralidade (possível), coube à Academia, essa autoridade e, definir os paradigmas que seriam
adequados e oficializados. Continua Foucault (2008), “Tabu do objeto, ritual da circunstância,
direito privilegiado ou exclusivo do sujeito que fala...” e que ao construir seus discursos
percebe-se que “- isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo
que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder
do qual nós queremos apoderar”. Escrever e ser lido é, portanto, o feedback necessário à
averiguação e encaminhamento.
A invenção dos leitores de um lado, tendo o Espiritismo como seu guia e do outro a
Academia, tendo como leitores àqueles que atribuem um novo significado, em suas leituras
próprias, demonstram quão claro está a composição que não para de crescer, em novas obras,
e esperam por novos paradigmas. Por isso que, “as interdições que o atingem revelam logo,
rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder”. (FOUCAULT, 2008).
“Importante implicação da proposta ricoeuriana de retomar a consciência da
narratividade histórica foi a de colocar entre colchetes o determinismo, a ideia de que os
caminhos da história já estão de alguma maneira traçados e que os homens teriam de se
resignar a seguir em pontilhado” (RICOEUR, apud BARROS, 2011). Eis uma possível resposta:
“A Narrativa, ao trazer no seu cerne as escolhas dos personagens que a habitam e que
entretecem juntos o seu enredo, mostra-nos uma história na qual as decisões são tomadas na
própria história, e não antes dela ou em algum ponto exterior...” (RICOEUR, apud BARROS,
2011) Realizar essa narrativa, segundo nossas escolhas, nos daria a certeza de que fazê-la nos
levaria a adquirir uma competência que é denominada de “compreensão prática” para Ricoeur
e nos levaria à “dominar a trama conceitual no seu conjunto, bem como cada termo na qualidade
de membro do conjunto.”
Portanto, temos que “a linguagem faz parte da grande distribuição das similitudes e das
assimilações. Por conseguinte, deve, ela própria, ser estudada como uma coisa da natureza. (…)
suas leis de afinidade e de conveniência, suas analogias obrigatórias”. (FOUCAULT, 2007)
Quem escreve e quem lê, a partir da relação “compreensão” e “vivência” da leitura tem
que ter consciência de que “este ensino que se volta para a vida, conforme fica implícito na

119
análise de Paul Ricoeur, não se dirige a quaisquer tipos de elites ou de privilegiados intelectuais,
mas a qualquer ser humano...” (BARROS, 2011)
Falar de análise do discurso é, “falar em heterogeneidade (...) é sabido que, sob nossas
palavras, ressoam palavras-outras, palavras de outros sujeitos, pois o discurso é da ordem do
repetível e essa repetição não remete apenas àquilo que foi dito anteriormente pelo sujeito do
discurso, no presente e no passado”. (INDURSKY, 2001)
Só imitamos quem admiramos, nos diz a sabedoria popular, e isso constrói uma
experiência de leitura e escrita, pois está voltada ao mundo de fora de mim. Assim, segundo
Tuan (2013), “ver e pensar claramente vão além do eu”, o que nos ajudam a construir nossos
espaços de leitura e escrita.
O Espiritismo foi/é palco de muitos textos que são apresentados, lidos e vivenciados,
tanto na prática de comuns (os ordinários [CERTEAU, 1994]) quanto na reflexão daqueles que
detém as estratégias de escrita. Escrever tem um peso grande na produção sobre esse objeto, e
demarca fronteiras discursivas, como novas narrativas, demarcando, questionando,
problematizando, assim, as práticas, longe de qualquer senso comum, inserindo-se novas letras
e lentes.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
...o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror, aquele ao qual era preciso
submeter-se, porque ele reinava, era o discurso pronunciado por quem de direito e
conforme o ritual requerido; era o discurso que pronunciava a justiça e atribuía a cada
qual sua parte; era o discurso que, profetizando o futuro, não somente anunciava o que
ia se passar, mas contribua para a sua realização, suscitava a adesão dos homens e se
tramava assim com o destino. Ora, eis que um século mais tarde, a verdade a mais
elevada já não residia mais no que era o discurso, ou no que ele fazia, mas residia no
que ele dizia: chegou um dia em que a verdade se deslocou do até ritualizado, eficaz e
justo, de enunciação, para o próprio enunciado: para seu sentido, sua forma, seu objeto,
sua relação a sua referência. (FOUCAULT, 2008, p. 15)

Essa citação poderia ser a conclusão enquanto considerações finais, pois ela encerra
para nós o que se fez com o leitor, com a escrita e com o texto ao longo desses últimos anos.
Entendemos que um objeto quando se torna documento para o historiador assim que
ele o escolhe como tal, ele tanto ganha um novo patamar de existência e visão, quanto corre o
risco de apenas “dizer”, de agora em diante, não mais possível “fazer” ou “ser”, ou seja, a teoria
suplantando toda possibilidade prática, pois a compreensão basta, não necessário sua vivência
para alargar ou aclarar mais essa compreensão.
É preciso escrever, pois parafraseando o poeta Fernando Pessoa, “viver é preciso,
escrever não é preciso”, e, sem o leitor que dá sentindo a tudo isso e que para ele isso tudo é
feito, poderá ler onde quiser sem olhos vigilantes (novamente) sobre o que lê.

120
A disciplina trouxe, portanto, mais inquietações do que certezas. Todavia, assim, como
ela que não deu a última palavra, mas nos levou enquanto peripatéticos, termino aqui, leitor,
soltando tua mão, e deixando que leias agora sob tua lente. Afinal, é de narrativas que vivemos
e significamos o passado e o presente.
Somos, letras, sílabas e textos; somos ordem, discurso e narrativa; somos espaços,
lugares e paisagens; somos experiências, sabedorias e vidas; percebendo como Ricoeur,
segundo Barros (2011), que a função da História é, não mais tanto enfatizada, a “Mestra da
Vida”. Não para estadistas e políticos, mas para o “próprio ser humano que vivencia
cotidianamente o desafio de viver”.

REFERÊNCIAS
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SOBRE O AUTOR
Leonardo Bruno Farias: Doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Professor do Curso de Direito. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em História Regional
e Saberes Locais - UFCG/CNPq. ORCID: https://orcid.org/0009-0001-7660-5036. E-mail:
leonardo.farias.873@ufrn.edu.br. Contribuição de autoria: Concepção, análise, interpretação
dos dados, escrita e revisão crítica.

122
COMO CITAR
FARIAS, Leonardo Farias. A apropriação da escrita sobre o Espiritismo no Brasil - uma
prática/escolha de pesquisa. In: SILVA, Maria Larisse Elias da; FARIAS, Ana Elizabete Moreira
de; CASTRO, Tatiana de Carvalho (Orgs.). Pesquisa Histórica em perspectiva, v. 1, Campina
Grande: Amplla Editora, 2023, p. xx-xy. DOI:

123
CAPÍTULO IX
UMA EXPERIÊNCIA MODERNA: A ORIGEM DA
LEITURA POPULAR DE CINEMA
A MODERN EXPERIENCE: THE ORIGIN OF POPULAR CINEMA
READING
DOI:

Tatiana de Carvalho Castro*


* Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da UFF. Integrante do laboratório ESCRITHAS. E-mail:
tccastro6@gmail.com Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5721-1552

RESUMO ABSTRACT
Este trabalho busca analisar o surgimento da prática This work seeks to analyze the emergence of the
de leitura de cinema no mercado de circulação de practice of reading cinema in the North American
ideias norte-americano entre a passagem dos séculos market for the circulation of ideas between the 19th
XIX para o XX. A popularização das fan magazines and 20th centuries. The popularization of fan
possibilitou que o cinema hollywoodiano se magazines enabled Hollywood cinema to develop
desenvolvesse e ganhasse um sólido espaço de and gain a solid space of acceptance and circulation
aceitação e circulação em diferentes países – e, em in different countries – and, in particular, in Latin
especial, na América Latina. A prática popular e America. The popular and recreational practice of
recreativa de ler revistas ilustradas no final do século reading illustrated magazines at the end of the 19th
XIX permitiu também que os primeiros century also allowed the first cinematographers to
cinematógrafos ganhassem uma parceria com o gain a partnership with the publishing market.
mercado editorial. Outro fator importante Another important factor corresponded to the
correspondeu ao impacto dessa leitura popular entre impact of this popular reading among societies –
as sociedades – sendo ela rica ou pobre. Este trabalho whether rich or poor. This work aims to present this
visa apresentar essa prática como uma continuidade practice as a continuity of the Short Stories of the
das Short Stories do século XIX e, também, o nome 19th century and, also, the name of the first
das primeiras revistas idealizadoras de cinema, na magazines that created cinema, in which small
qual circulavam pequenas narrativas interligadas à narratives linked to the Seventh Art circulated and in
Sétima Arte e na qual ajudaram a popularizar a which they helped to popularize fan reading that, in
leitura de fã que, no século XX, se consolidou ao lado the 20th century, consolidated itself alongside
de Hollywood. Hollywood.

Palavras-chave: história e cinema; mercado Keywords: history and cinema; publishing market;
editorial; revistas ilustradas; modernidade. illustrated magazines; modernity.

1. O MERCADO EDITORIAL DE REVISTAS NO SÉCULO XIX E O SURGIMENTO


DO LEITOR MODERNO
Mudanças significativas no padrão cultural entre o final do século XVIII e o início do XIX
transformaram a percepção e o modo de observação do indivíduo moderno. Como aponta

124
Crary1, o sujeito observador do século XIX é um indivíduo visível e cercado por novos estímulos
visuais - fotografia e cinema - e, ao mesmo tempo, solitário na sua percepção. Diferente das
experiências do tempo moderno, os contemporâneos do XIX passaram por uma reformulação
significativa no seu meio, aprimorando as experiências da modernidade em diferentes esferas
socioculturais.
Crary referenciou as décadas de 1820 e 1830 como o marco inicial na produção do novo
tipo de observador, um observador que será mais profundamente reconhecido no século XX em
diante ele tange o consumidor das novas técnicas de visibilidade: vídeos, cinema e fotografias
(CRARY, 2012, p. 12).
O século XIX permitiu pensar o tempo da reprodutibilidade técnica do século XX2, a
presença e a permanência de uma nova arte e a sua precisão nas construções representativas.
O leitor e o espectador de cinema do século XX são os herdeiros do XIX, uma vez que o cinema
- que encontrou seu auge apenas no século XX - nasce da fotografia e das pinturas em meados
do século XIX. Ele chega para aprimorar ainda mais o olhar moderno. É importante ressaltar
que o olhar construído no XIX impactou significativamente na história do cinema e na história
das revistas de fãs.
Para além de uma combinação entre câmera fotográfica, luz e visão humana, o cinema
permitiu que um mercado editorial - integralmente voltado para o público das massas - surgisse
e ajudasse no desenvolvimento do mercado cinematográfico nas décadas seguintes. Trata-se de
uma construção recíproca entre dois setores que se encontram no campo cultural: as revistas
ilustradas e o cinema. Uma união que perdurará por todo século XX e será o espaço de
surgimento de vários nomes de atores, atrizes, cronistas, estúdios cinematográficos e práticas
de fãs.3
É importante ressaltar que as revistas modernas, tal qual conhecemos, também
representam uma verdadeira herança do século XIX. Ao longo de todo século, a potencialidade

1 No capítulo “A Modernidade e o problema do observador” da obra “Técnica do observador”, o crítico de arte


Jonathan Crary descreve como o século XIX foi fundamental para consolidar a visão do sujeito moderno para o
cinema. O autor descreve o surgimento da percepção de observador, ou seja, as técnicas que antecederam a câmara
de fotografia. Crary aponta que a visão humana sempre esteve receptiva às artes, mas que no século XIX essa visão
sofreu uma intensa transformação de percepção, devido ao avanço da fotografia e da vida moderna. Ver: CRARY,
2012.
2Walter Benjamin acreditava que a era da reprodutibilidade técnica, no século XX, prejudicava a permanência da
essência das artes como eram antes do avanço das técnicas de imagem e filmagem. Na visão do autor o cinema,
especialmente o cinema hollywoodiano, distorcia a compreensão das artes clássicas, portanto, não podia ser
considerado essencialmente o cinema como uma arte, mas sim uma reprodutibilidade do seu tempo e do seu povo.
Ver: (BENJAMIN, 2008).
3 Práticas de fã: coleção de álbuns de fotografias, recortes de revistas e a “leitura de fã”, que corresponde às crônicas

de cinema que passaram a existir no início do século XX.

125
da leitura recreativa esteve presente, abraçando diferentes temas e gostos, ajudando a moldar
uma política do olhar4 e uma sociedade solitária na sua leitura e, ao mesmo tempo, consciente
e altamente vigilante.
Os primeiros periódicos surgiram como um amparo ao conhecimento e à informação,
contribuindo para transformar espaços de sociabilidades e o habitus de um povo.5 As revistas
permitiam que sujeitos comuns se atualizassem das últimas notícias de acontecimentos globais;
curiosidades de povos e sociedades antigas; ciência; moda e estilo de vida. Com o tempo, o
mercado editorial de revistas, na Europa e nas Américas, passou a contribuir para a genealogia
da alma moderna, transformando o mundo e adotando um papel fundamental para os estudos
do século XIX e XX.
O mercado editorial consolidado de revistas surgiu na Europa, por volta de 1810, berço
da leitura recreativa, dos folhetins e até mesmo dos famosos cinematógrafos. Como bem
escreve Renato Costa (1998), o cinema foi uma novidade que o mundo conheceu
simultaneamente com o rádio e a psicanálise, trata-se de uma manifestação simbolicamente
cósmica do avanço moderno em sentidos intelectuais, artísticos e de observação. Paralelo ao
desenvolvimento do mercado fílmico, aprimora-se o campo editorial da leitura recreativa de
espetáculos. Os primeiros periódicos circulavam entre um público culto e altamente
alfabetizado, limitando um amplo acesso, uma vez que o conteúdo em si já limitava o interesse
das massas. As primeiras revistas tinham por obrigação fornecer informações efêmeras e pouco
detalhadas sobre o mundo das artes, política, moda, ciência e religião. Podendo ser
consideradas pequenos livros, porém com um investimento menor e com tiragens regulares.
O intuito das revistas era oferecer entretenimento, mas não o mesmo lazer da leitura de
um livro ou um jornal informativo. As revistas nasceram com uma personalidade propriamente
moderna e voltada para o público que experimentava a modernidade que o século XIX
construía.
Contudo, foi nos Estados Unidos, em meados de 1830 que as revistas adotaram uma nova
personalidade e um objetivo ainda maior. Com o avanço da alfabetização nas camadas mais

4 Michel Foucault ao descrever o “olhar do poder” atribui ao surgimento do jornalismo e a consolidação da


imprensa a construção da “política do olhar”, referindo-se a indivíduos que estavam constantemente atentos e
vigiando os acontecimentos e a vida alheia. O autor também se refere ao século XIX como o espaço de surgimento
das sociedades vigilantes. A leitura popular contribui consideravelmente para a construção do olhar do sujeito
moderno ao oferecer um entretenimento onde ele pode vigiar o que está acontecendo no mundo, no cinema e no
meio cultural em geral. Ver: (FOUCAULT, 2022, p. 339).
5 Entende-se por habitus uma prática teórica de análise do comportamento de uma determinada sociedade dentro
de um recorte de tempo. O habitus refere-se as interferências culturais e sociais que moldam a percepção do
indivíduo e a sua participação nas relações de poder. Para compreender o conceito, ver: (BOURDIEU, 1989).

126
desfavorecidas da sociedade e a chegada do padrão de vida moderno, o mercado editorial de
revistas dos EUA apostou na recepção e circulação da short story, popularmente conhecidas
como “contos”. As short stories permitiram o acesso das massas à leitura ficcional e não-
ficcional, e a ampliação do mercado editorial de revistas.
Durante séculos os contos constituíam unicamente a forma que a prosa ficcional
assumia. Segundo Peter Hutchinson, no início do século XIX escritores britânicos já
costumavam escrever fábulas e alegorias que inspiravam os leitores e os escritores
independentes norte-americanos em pequenos textos (HUTCHINSON, 2022, p. 1).
Os contos eram naturalmente curtos e adotavam uma linguagem mais acessível. As
revistas também se apresentaram como um espaço de desenvolvimento para escritores e
escritoras que não tinham recursos suficientes para publicar um livro (HUTCHINSON, 2022, p.
2). Este é o caso do escritor Edgar Allan Poe (1809 - 1849) que moldou boa parte da sua
trajetória autoral na publicação de contos em revistas. Poe foi um dos expoentes das short
stories nos Estados Unidos. Na década de 1820, o autor do consagrado O Corvo, publicado pela
primeira vez em 1845, publicou dois livros de poemas, em 1830 o autor publicou o seu terceiro
livro, contudo, não alcançou um retorno financeiro significativo. Em 1831 Poe foi contemplado
no concurso Philadelphia Saturday Courier, não recebeu nenhum prêmio, mas a revista publicou
todos os cinco contos que o mesmo havia submetido. Em 1833 Poe venceu novamente um
concurso realizado pelo seminário Baltimore Saturday Visiter, o que proporcionou
reconhecimento e aceitação crítica por parte do mercado editorial de revistas.
Poe representa uma nova versão de escritores modernos e pessimistas imersos neste
novo mercado editorial norte-americano cuja circulação se ampliará ainda mais no século XX.
O uso das revistas, como um viés de difusão pedagógica, permitiu que o modelo democrático
norte-americano alcançasse os habitus de leitura recreativa por boa parte da América Latina e
Europa.
No decorrer do século XIX, as short stories se popularizaram por todo território norte-
americano e trouxeram consigo o avanço de um novo estilo de vida literário: a leitura popular
moderna e o alcance das massas ao mercado de circulação de ideias. Segundo Brooks, quando
se tratava de renda, muitos autores não tinham muitas escolhas senão abraçar a causa das
revistas.

Com a disseminação da educação popular, multidões começaram a ler e acolheram as


formas mais efêmeras de escrita, enquanto as revistas eram quase o único recurso dos
autores americanos em um tempo quando as leis de direitos autorais não os protegiam.
Muitos dos melhores deles foram forçados a escrever para as revistas, pois não podiam

127
ganhar a vida escrevendo livros, e essa foi uma das razões pelas quais o conto se tornou
favorito na América (BROOKS apud HUTCHINSON, 2022, p. 10)

Assim, podemos dizer que o século XIX marcou a difusão da leitura moderna por todo
território dos Estados Unidos, contribuindo para a formação de sujeitos mais sensíveis e
conscientes do seu tempo. O crítico Norman Holmes aponta que o florescer dos contos, a era
dos jornais e das revistas norte-americanas contribuíram com vigor para sustentar o
surgimento de uma literatura nativa dentro do país no século XIX (HUTCHINSON, 2022, p. 10).
Os contos e a leitura de revistas chegaram no século XX com uma ampla aceitação do
público e profundamente incorporados no hábito cultural norte-americano. Com o crescimento
do mercado cinematográfico, as revistas adotaram uma nova personalidade de escrita, algo
voltado especialmente para as telas e pronta para desenvolver um novo público leitor, os
leitores espectadores. Assim como o mercado editorial de revistas, o cinema encontrou um
terreno extremamente fértil nos Estados Unidos. O seu desenvolvimento é consideravelmente
maior no Novo Mundo do que no seu lugar de origem, a França.
Na passagem do século XIX para o XX, o movimento migratório entre Europa e EUA
contribuiu consideravelmente para o desenvolvimento da cinematografia moderna. Podemos
citar o exemplo da Universal Pictures, um dos mais antigos estúdios de criação ainda em
operação. A Universal foi fundada pelo imigrante alemão Carl Laemmle por volta de 1912,
período correspondente ao processo de industrialização do cinema norte-americano - os
antecedentes dos Nickelodeons6 e espetáculos de rua. E neste início de construção cultural e de
relações, as revistas tiveram um papel fundamental: a construção do sentido de fã e de novo
sujeito receptor. As revistas prepararam os indivíduos para o que encontrariam nas telas,
narrativas melodramáticas, engraçadas e românticas. Assim como as short stories, os filmes
eram curtos e ficcionais.
O proletariado moderno, grupo no qual ocupava boa parte dos leitores das short stories,
era escasso de tempo, portanto, a leitura corriqueira, de fácil compreensão e de fascínio ganhou
espaço muito rapidamente no novo cenário do mundo Ocidental. Segundo Richard Hoggart, um
dos aspectos da vida cultural da classe trabalhadora é marcado pela circulação da literatura

6Corresponde a uma forma primitiva de sala de cinema que antecedeu o cinema tal qual conhecemos nos dias de
hoje. Os Nickelodeons correspondiam a atrações de teatro comumente vistas em um pequeno lugar coberto por
uma lona ou pano. O termo “nick” remete-se a nickel (moeda). Esta era uma prática de entretenimento
predominantemente presente nos hábitos da população com menor poder aquisitivo. As apresentações eram
rápidas e com pouca técnica de linguagem de cinema. Os Nickelodeons corresponderam ao cinema popular e de
massa, no qual, anos depois, entre 1912 e 1918, se constituiu no mercado cinematográfico de Hollywood. Para
compreender os Nickelodeons e a origem da prática popular do cinema norte-americano, ver: (MERRITT, p. 25,
2004).

128
popular sobre a vida cotidiana. Atribuindo uma ênfase especial ao pormenor humano, situações
que podem ou não ser dramatizadas (HOGGART, [s.d.], p. 145). O cinema também era
profundamente apreciado pela classe trabalhadora. Especialmente por transferir um
sentimento de familiaridade devido ao teatro e às leituras populares.7
Logo nos primeiros anos do século XX, as short stories contribuíram para o surgimento
de uma nova prática literária popular no país: o movie stories.8 Narrativas ficcionais e semi-
ficcionais que adotavam a personalidade do cinema, abandonando o método de escrita
narrativa do século XIX e construindo um novo gosto popular, um gosto que envolvia, em uma
única experiência, a leitura e o cinema.

2. O ESPECTADOR OBSERVADOR NORTE-AMERICANO E UMA NOVA


DIVERSÃO POPULAR
Nas regiões mais pobres das grandes cidades, o grande grupo de assalariados
correspondia ao maior público do primeiro cinema - o Motion Picture, ou Picture Plays. A classe
trabalhadora norte-americana do início do XX, cuja monotonia consumia a alma compartilhada
por um imenso sentimento de frustração, encontrava uma nova alegria, esperança e inspiração
nas telas. Essa proximidade da massa e, ampla circulação, é fortemente marcada pelo histórico
do país, que, diferente da Europa, fundamentou-se por uma democracia que defendia a
participação das diferentes classes sociais no desenvolvimento da Nação, portanto, não
distinguia a cultura e o acesso a mesma como um delimitador de classes.
Segundo Mariângela Machado, as imagens em movimentos, como identidade de uma
sociedade moderna e potencialmente progressista, surgiu no continente europeu, mas não teve
o mesmo caminho que o Motion Picture norte-americano, pois uma situação diversa da
sociedade europeia do final do século XIX e início do século XX, apresentava uma acentuada
distinção entre as classes, demarcada também nas manifestações culturais com estigmas de
“alta” e “baixa” cultura. O cinema era pouco consumido pelo proletariado europeu quando
comparado com o proletariado norte-americano (MACHADO, 2009, p. 77).

7 Muitos produtores do primeiro cinema norte-americano, no início do século XX, procuravam, por meio das
revistas de fãs, roteiristas e escritores que sabiam escrever com facilidade dramas cotidianos, não importando o
gênero (comédia ou drama), mas que valorizasse a vida comum e dos hábitos mais naturais. Tais estratégias
ajudavam o público leitor a se familiarizar com o cinema. Ver: (The Photoplay Market, 1921, p. 34).
8 Textos curtos ficcionais e semi-ficcionais que envolviam narrativas no gênero de drama, comédia e mistérios. Foi
popularmente importante para construir o sentido de fã dos leitores e também para construir a figura do
leitor/espectador. Para compreender melhor o surgimento das Movie Story ou Films in Story Form, Ver: (MCLEAN,
2003).

129
Figura 1 - Capa do periódico Moving Picture World

Fonte: Archive.org. Disponível em:


https://archive.org/details/movpicwor77movi/page/n3/mode/2up?view=theater Acesso: 13 de set de 2023.

O cinema norte-americano foi consolidado primeiramente pela massa para em seguida


consolidar-se como uma indústria. O acesso, culturalmente falando, no começo do século XX,
permitiu que o Motion Picture se transformasse no cinema industrial - que se desenvolveria no
decorrer de todo século XX. Como aponta Machado, “Nos Estados Unidos, desde o princípio, o
cinema foi aclamado como um veículo livre de qualquer tradição, distante da mácula da cultura
européia.” Essa capacidade de diferenciar-se da Europa, como “arma cultural” e não como uma
“ferramenta” puramente progressista, fez toda diferença nas décadas seguintes.
Diferente dos ricos e da alta burguesia norte-americana, cuja alegria de viajar era algo
real e alcançável, o proletariado, que também adorava uma fuga da rotina, se restringia apenas
ao trajeto da casa para a fábrica/fábrica para casa, porém, encontrava na Motion Picture um
alívio, mesmo que rápido, profundamente reconfortante. Era o que estava ao alcance de quem
não possuía tempo e muito menos dinheiro. Mais uma vez se distinguindo do cinema Europeu,
cuja narrativa espetaculosa provava para a burguesia emergente a grandiosidade positivista da

130
modernidade, o cinema norte-americano surgiu para nutrir os desejos e as necessidades do
povo americano.
Teatros e Shows de Vaudeville, apesar de fornecer um suporte para o desenvolvimento
da Motion Picture no início do século XX, não estavam ao alcance do proletariado por dois
fatores: o alto preço dos ingressos; e o tempo de espetáculo, finalizando muito tarde e
comprometendo o horário de sono de quem precisa estar na fábrica logo pela manhã.
Além de fornecer um amplo espaço de reconforto e alegria, o cinema também possuía
uma missão educadora às pessoas mais pobres. O trabalhador assalariado vai ao cinema, onde
a visão do conhecimento é ampliada e ilimitada. Um exemplo alegórico que podemos encontrar
nas páginas das revistas de cinema da época ilustra com precisão a importância do Motion
Picture no cotidiano do proletariado e na formação do espectador moderno:

Uma esplêndida ilustração dos benefícios educacionais pictóricos é a do garotinho,


criado em ambientes pobres, tendo pouca associação com pessoas de língua inglesa,
sem oportunidade de leitura e pouco conhecimento das ruas. Mas ele poderia dizer
como os trilhos de aço foram feitos. Ele sabia sobre invenções elétricas e aeronáutica.
Ele entendia a vida na cordilheira e tinha opiniões sobre a arquitetura chinesa. Ele
estava familiarizado com o mecanismo de moinhos e minas. Ele descreveu várias cenas
dos romances de Dickens, a Revolução Francesa, "A Cabana do Tio Tomás", o bem-estar
naval e a História Sagrada, da maneira mais vívida. Ele tinha visto bons filmes, levado
impressões mentais duradouras e adquirido uma educação muito mais ampla e
abrangente do que a que está recebendo atualmente em uma escola primária onde o
professor é incompetente e não há nada para fazer. Lições interessantes para uma
criança de mente ativa e imaginativa (The Motion Picture Story Magazine, 1911, p. 124).

A arte de movimentar-se é uma marca essencial para o funcionamento do novo mundo


moderno, urbanizado e acelerado, na passagem do século XIX para o XX, o movimento não era
apenas simbólico - expressado pelo movimento das imagens, que constituem o filme - o
movimento foi o que permitiu o amplo desenvolvimento fabril nos EUA nas passagens dos
séculos.
A eletricidade permitiu o aprimoramento do aparelho Kinetoscope como também o
desenvolvimento urbano e o surgimento de grandes fábricas, cuja interferência promovia uma
disputa por espaço urbano cada vez maior. O proletariado norte-americano ganhava corpo
assim como os mecanismos de entretenimento. O Motion Picture que, inicialmente, não tinha a
mesma personalidade dos filmes pós-1920, se desenvolveu muito rapidamente e teve uma
ampla aceitação pelo espectador moderno que já estava familiarizado com os primeiros
projetores de imagens que se moviam, assim como também com a leitura dramática, engraçada
e de mistérios.
Outro fator fundamental condiz com os primeiros filmes se adequarem à realidade do
trabalhador, não apenas financeiramente como também no quesito escassez de tempo. Estamos

131
falando de filmes curtos, mas capazes de reunir muitas risadas e admirações. Filmes curtos e
de fácil absorção, assim como também rostos e personalidades em diferentes títulos, mas
facilmente reconhecíveis.
O principal aliado do Motion Picture foi o mercado editorial de magazines de short
stories. O filme moderno adaptou as shot stories do século XIX para uma nova realidade: a do
espectador moderno do século XX. Isso permitiu que o mercado editorial de revistas ilustradas
ampliasse o olhar para novos horizontes. Era necessário pensar uma nova estrutura para as
revistas de cinema, mantendo pequenas crônicas, ilustrando o material e fornecendo
explicações fundamentais para adequar o leitor ao novo estilo de leitura popular.
Trata-se de revistas de consumo de massa, com muitas ilustrações e narrativas de fácil
absorção, envolvimento e compreensão. A leitura das revistas de Motion Picture se enquadrou
por completo no campo da diversão e das emoções, outros títulos se distanciaram por trazer
uma discussão mais técnica do cinema. Nos primeiros anos de circulação, o corpo editorial se
preocupava em trazer uma qualidade narrativa que o público leitor já conhecia das short stories,
o intuito de familiarizar o leitor transitório, do século XIX com o novo leitor do XX, é bastante
evidente. Muitas dessas novas crônicas ficcionais trazem na sua essência a influência do que já
circulava nas telas e podiam ser sentidas por meio da leitura.
Dois importantes gêneros se desenvolveram neste contexto: o drama e a comédia
cinematográfica. Narrativas épicas que englobavam histórias da bíblia e antigas civilizações
também fazem parte deste começo, assim como também as crônicas de mistério e crimes mal
resolvidos, uma herança direta dos folhetins europeus do século XIX. Além do cenário ficcional,
as primeiras revistas de cinema também foram responsáveis por introduzir no leitor moderno
a presença física, porém quase sobrenatural, de astros e estrelas. Personagens que se
apresentam em crônicas específicas sobre curiosidade e fofoca, potencializando no leitor uma
vontade de vigiar e admirar aqueles sujeitos.
Três dos principais exemplares de revistas de Motion Pictures que fundamentaram este
novo mercado editorial - no qual contribuíram fortemente para a inclusão dos filmes no hábito
de leitura do proletariado - foram: Motion Picture Magazine, que iniciou sua circulação em Nova
Iorque no início de 1911; a Movie Pictorial, cujo início se deu em Chicago em 1914; e a Movie
Magazine, que entrou em circulação na Califórnia em 1915. Apesar de se aproximarem em
diversos segmentos e linhas de estrutura narrativa, essas revistas trouxeram no seu corpo
editorial marcas específicas e fundamentais para compreender o surgimento da “leitura de fã”,
assim como também um mapeamento eficaz do espaço de circulação das primeiras leituras de

132
cinema nos Estados Unidos e como essa circulação das revistas de Motion Pictures
fundamentaram e ampliaram o mercado exibidor para as décadas seguintes.
Figura 2 - Páginas do periódico Movie Pictorial.

Fonte: Archive.org. Disponível em: https://archive.org/details/moviepictorial1914-10-


01/page/n11/mode/2up?view=theater Acesso 13 de set de 2023.

Entre 1912 e 1918, surgiram no mercado editorial a Photoplay, cujo espaço de circulação
foi amplo e bastante aceito pelo público leitor; e Cine-Mundial - uma variação da revista
californiana, Moving Picture World para atender as necessidades linguísticas dos demais países
da América. A Cine-Mundial foi o canal encontrado pelo mercado exibidor norte-americano e
pelo mercado editorial para ampliar o domínio cultural da linguagem cinematográfica
hollywoodiana na América Latina e nos países ibéricos da Europa. Ela foi produzida e
distribuída em Nova Iorque e alinhava-se aos interesses dos empresários do cinema que, neste
período, já haviam entendido que o cinema era uma necessidade não apenas cultural como
também econômica.
Neste caso, a prática da leitura recreativa de cinema, aos moldes norte-americanos,
amplia-se para diferentes partes do mundo, constituindo assim, a prática de assistir filmes da
indústria de Hollywood e contemplar-se no divertimento literário das revistas de fãs, ou fan
magazines. Este trabalho fez um panorama sobre o surgimento do mercado editorial de cinema

133
nos Estados Unidos, como ele se consolidou e como expandiu entre a classe trabalhadora e os
modernos.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No século XX a “leitura de fã”, relacionada ao cinema, se multiplicou e Hollywood
consolidou-se como uma indústria do entretenimento e como um modelo padrão de estética
para outras empresas cinematográficas espalhadas pelo globo. A prática da leitura popular do
cinema ajudou a popularizar o mercado de exibição e a troca entre EUA e demais países,
especialmente com a América Latina.
As short stories permitiram as revistas de cinema construírem narrativas ficcionais e
semi-ficcionais sobre o universo de Hollywood, astros e narrativas fílmicas e,
consequentemente, popularizar a circulação não apenas da leitura como também o hábito de
assistir filmes. A “leitura de fã” também proporcionou uma ligação sensível e emocional entre
espectador e a cultura cinematográfica – hábitos da antiga Hollywood e tudo que envolveu o
mundo do cinema. Podemos dizer, em outras palavras, que a consolidação do cinema de
Hollywood se deu por meio da circulação de impressos especializados assim como, o
fortalecimento do mercado editorial de cinema se deu através da popularização e massificação
dos filmes hollywoodianos.

REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre; TOMAZ, Fernando. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1989.

COSTA, Renato da Gama-Rosa. Os cinematógrafos do Rio de Janeiro (1896-1925). História,


Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 5, p. 153-168, 1998.

CRARY, Jonathan. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XX. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2012.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 8ª ed. São
Paulo: Martins Fontes, 1999.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 13ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2022.

MACHADO, Mariângela. A formação do espectador de cinema e a indústria cinematográfica


norte-americana. Sessões do imaginário, v. 14, n. 22, p. 77-87, 2009.

MERRITT, Russell. Nickelodeon theaters, 1905-1914: Building an audience for the movies.
Hollywood: Critical concepts in Media and Cultural studies, v. 1, p. 25, 2004.

134
SOBRE A AUTORA
Doutoranda em História Social no Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Federal Fluminense - UFF. Mestre em História Social (Universidade Federal
Fluminense - UFF). Licenciada em História (Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG).
Integrante do laboratório ESCRITHAS: Escritos Críticos, Teóricos e Historiográficos sobre as
Américas e do laboratório LEGES: Laboratório de Estudos de Gênero e Subjetividades - UFF. No
momento desenvolve pesquisa sobre o cinema brasileiro, representações do feminino em
impressos do século XX, estudos de gênero e relações culturais entre Brasil e Estados Unidos
no início do século XX. Tem interesse na área de História Contemporânea com ênfase em Brasil
Republicano, história das mulheres, estudos culturais, autoria no cinema, impressos e história
e cinema. Bolsista CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível Superior). E-
mail: tccastro6@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5721-1552

COMO CITAR
CASTRO, Tatiana de Carvalho. Uma experiência moderna: a origem da leitura popular de
cinema. In: SILVA, Maria Larisse Elias da; FARIAS, Ana Elizabete Moreira de; CASTRO, Tatiana
de Carvalho (Orgs.). Pesquisa histórica em perspectiva, v. 1, Campina Grande: Amplla
Editora, 2023, p. xx-xy. DOI:

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