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SERTÕES ONTEM E HOJE: HISTORIOGRAFIAS, CULTURAS E REPRESENTAÇÕES

Organização:
Paula Rejane Fernandes
Beatriz Alves dos Santos

Amplla Editora
Campina Grande, dezembro de 2023
2024 - Amplla Editora
Copyright da Edição © Amplla Editora
Copyright do Texto © Os autores
Editor Chefe: Leonardo Pereira Tavares
Design da Capa: Amplla Editora
Diagramação: Juliana Ferreira
Revisão: Os autores

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ISBN: 978-65-5381-168-3
DOI: 10.51859/amplla.soh683.1124-0

Amplla Editora
Campina Grande – PB – Brasil
contato@ampllaeditora.com.br
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2024
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Catalogação na publicação
Elaborada por Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166

S489

Sertões ontem e hoje: historiografias, culturas e representações /


Organizadoras Paula Rejane Fernandes, Beatriz Alves dos Santos. – Campina
Grande/PB: Amplla, 2024.

Livro em PDF

ISBN 978-65-5381-168-3
DOI 10.51859/amplla.soh683.1124-0

1. Sertões - Nordeste - História. 2. Historiografia. I. Fernandes, Paula Rejane


(Organizadora). II. Santos, Beatriz Alves dos (Organizadora). III. Título.

CDD 981.3

Índice para catálogo sistemático

I. Sertões - Nordeste - História

Amplla Editora
Campina Grande – PB – Brasil
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www.ampllaeditora.com.br

2024
Apresentação
Os artigos aqui reunidos representam frutos das pesquisas desenvolvidas
pelos discentes, turma 2022, do Programa de Pós-Graduação em História (PPGHC)
do Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN). Neste programa, que tem a História dos Sertões como área
de concentração, os sertões são pensados no plural, pois, permitem que cada
pesquisador, em diálogo com as fontes de pesquisa e com a historiografia, possa
delimitar e construir seus sertões possíveis, abrindo caminhos que nos levem a
sertões de ontem e de hoje.
Este livro simboliza o encontro dos discentes com os sertões, dentro e fora
do PPGHC. Cada capítulo carrega consigo os afetos e as interpretações dos autores
de como veem, pensam e vivem os sertões em suas fontes. Mais que uma coleção de
artigos, este livro representa o desenvolvimento das pesquisas acadêmicas que
outrora eram apenas projetos. Na reta final do curso de mestrado do PPGHC, os
sertões são aqui escritos por cada autor, que são tocados pelo tempo, pelo espaço e
pelos simbolismos do universo sertanejo.
Aqui, por meio dos artigos, encontramos 10 (dez) caminhos por meio dos
sertões. Por entre os caminhos, podemos encontrar os usuários do Laboratório de
História do CERES (LABORDOC); conhecer uma família de pardos no sertão do
Seridó; visualizar a construção do personagem Chico Bento como representante
sertanejo; refletir a respeito do ciclo folclórico do Bom Jesus Conselheiro; além de
podermos analisar a presença de ciganos no sertão; ou ainda adentrar no campo do
audiovisual, observando o hibridismo religioso no filme O Pagador de Promessas; é
possível, ainda, ler sobre um vigário holandês que lutou pelos trabalhadores das
frentes de emergências; ou ainda adentrar pelas bodegas e, com isto, percebe-las
enquanto espaço de venda e construção de sociabilidades; sem esquecer de um
sertão de luta, estudando os projetos hídricos que trariam a redenção para os
sertanejos; e finalizando nossa caminhada atravessando os sertões dos intelectuais
e das cartas enviadas com a finalidade de pedir.
Ao leitor que caminha conosco, desejamos que faça uma boa leitura e,
principalmente, que se inspire a continuar os caminhos já abertos ou que venha a
criar seus próprios caminhos de encontro com os sertões.
Sumário
CAPÍTULO I - O LABORATÓRIO DE DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA (LABORDOC)
ENQUANTO ESPAÇO DE PRÁTICA HISTORIOGRÁFICA: UMA ANÁLISE SOBRE SEUS
USOS E USUÁRIOS .............................................................................................................................................................. 9

CAPÍTULO II - PARDOS E PARDAS NO SERTÃO DO SERIDÓ: O CASO DA FAMÍLIA


"GOMES DE OLIVEIRA" (SÉCULOS XVIII-XIX) .............................................................................................. 20

CAPÍTULO III - ALÉM DE UM PERSONAGEM: A HISTÓRIA QUE RESIDE NO


SERTANEJO CHICO BENTO ....................................................................................................................................... 32

CAPÍTULO VI - O CALDEIRÃO DOS MITOS: O REPRESENTAR SERTANEJO ATRAVÉS


D’O CICLO FOLCLÓRICO DO BOM JESUS CONSELHEIRO (1950) ............................................. 42

CAPÍTULO V - MOVÊNCIAS CIGANAS NOS SERTÕES: VIVÊNCIAS E HIBRIDISMOS ......... 51

CAPÍTULO VI - LUGARES DE FÉ: SERTÃO E HIBRIDISMO RELIGIOSO EM O PAGADOR


DE PROMESSAS (1962) ................................................................................................................................................ 63

CAPÍTULO VII - UM VIGÁRIO NO SERTÃO DA VELHA AUGUSTO SEVERO: PADRE


PEDRO NEEFS E SUAS DENÚNCIAS SOBRE AS CORRUPÇÕES NAS FRENTES DE
EMERGÊNCIAS DE 1980. ................................................................................................................................................75

CAPÍTULO VIII - O SURGIMENTO DAS BODEGAS PELOS SERTÕES BRASILEIROS. ....... 84

CAPÍTULO IX - ÁGUAS DA REDENÇÃO: SALVACIONISMO E CONSERVACIONISMO


NO DEBATE ACERCA DA PROPOSTA DE ERRADICAÇÃO DA CARNAÚBA NO VALE
DO AÇU ..................................................................................................................................................................................... 97

CAPÍTULO X - ESCREVO-LHE PARA PEDIR QUE... : VINGT-UN ROSADO E AS CARTAS


PARA SOLICITAR............................................................................................................................................................... 110
Capítulo I
O LABORATÓRIO DE DOCUMENTAÇÃO HISTÓRICA
(LABORDOC) ENQUANTO ESPAÇO DE PRÁTICA
HISTORIOGRÁFICA: UMA ANÁLISE SOBRE SEUS USOS E
USUÁRIOS
DOI: 10.51859/amplla.soh683.1124-1
Ana Laura de Souto Lira 1
Paula Rejane Fernandes (Orientadora) 2

1. INTRODUÇÃO
O Laboratório de Documentação Histórica (LABORDOC) é um centro de documentação
localizado em Caicó, Rio Grande do Norte, que tem como objetivo preservar a memória e a
história dos sertões seridoenses. Criado em 1998, o LABORDOC vem se constituindo como um
acervo documental basilar para a realização de pesquisas em História dos Sertões. Seu acervo
é composto por documentos que abrangem desde o século XVIII até a atualidade, incluindo
registros de cartórios, jornais, fotografias, mapas, entre outros.
Além disso, o LABORDOC tem funções acadêmicas importantes. O Laboratório é
utilizado por estudantes e pesquisadores para a realização de pesquisas em História dos
Sertões e para a produção de novas narrativas e representações sobre a região. Neste caso o
Laboratório cumpre sua função de apoio às atividades de ensino e pesquisa, tendo seu espaço
utilizado para a prática historiográfica.
A importância de estudar os usos e usuários do LABORDOC reside no fato de que esses
documentos são utilizados por diferentes grupos para a produção de novas narrativas e
representações sobre os sertões seridoenses. Além disso, a análise dos usuários do LABORDOC
pode fornecer informações valiosas sobre a evolução da sociedade e suas necessidades
específicas em relação à preservação da memória e da história.
Nesse sentido, este artigo tem como objetivo descrever o LABORDOC, seus usos e seus
usuários, a fim de contribuir para a compreensão da importância desse centro de
documentação como um espaço de prática historiográfica.

1 Mestranda em História dos Sertões pelo Programa de Pós-Graduação em História do CERES/UFRN. E-mail:
ana.laura.105@ufrn.edu.br.
2 Docente do Departamento de História do CERES e do Programa de Pós-Graduação em História do CERES/UFRN,

Mestrado em História dos Sertões. E-mail: paulafdes@gmail.com.

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Para tanto, metodologicamente nos apoiamos no esquema conceitual de Roger Chartier:
apropriação, representação e circulação. Entendermos o Labordoc como um texto que é
apropriado de diversas maneiras por seus usuários, os pesquisadores. Estes, ao se apropriarem
do Labordoc, interpretam e analisam os documentos e, a partir deles, produzem representações
que são postas em circulação por meio de suas pesquisas.
Com essa finalidade, utilizamos como fontes de pesquisa as solicitações realizadas pelos
usuários do LABORDOC. Foram examinadas um total de 213 solicitações. Nosso intuito foi
analisar de que forma os usuários do LABORDOC aplicam a prática historiográfica ao utilizar o
acervo documental. Ao considerar o usuário como um participante ativo e peça fundamental da
instituição, foi importante indagar sobre a identidade desses usuários e como eles aplicam a
prática historiográfica.

2. OS USOS E USUÁRIOS DE ARQUIVO


Os estudos de usuários de Arquivos fazem parte de uma linha de pesquisa ainda pouco
explorada pela Arquivologia e muito menos pela História. Fazemos tal afirmação, pois, ao longo
de nossa pesquisa realizada em artigos de revistas especializadas, como a Revista Acervo e a
Revista Ágora, em dossiês temáticos voltados para os estudos de usos e usuários Arquivos, são
encontrados poucos trabalhos acadêmicos em comparação a outros temas.
Além disso, esses trabalhos são, em sua maioria, análises exploratórias sobre o perfil dos
usuários, com foco em suas necessidades e demandas de informação. Nestes casos, os estudos
de usuários realizados em instituições públicas têm como principal objetivo verificar se as
necessidades informacionais dos usuários estão sendo atendidas de forma satisfatória, visando
melhorar os serviços e produtos oferecidos e avaliar a qualidade do atendimento prestado.
Neste artigo, não temos como foco principal apontar soluções para as demandas desses
usuários. Nosso objetivo é compreender como os usuários do LABORDOC exercem a prática
historiográfica, se apropriando de um patrimônio documental que preserva memórias e produz
representações sobre os sertões seridoenses. Por esse ponto de vista, essa é uma temática
relevante para observar a evolução da sociedade. Isso porque podemos entender como
diferentes grupos utilizam os arquivos e quais suas necessidades específicas.
Os primeiros estudos expressivos voltados para investigar os usuários de arquivos
foram realizados na década de 1960 e, mesmo até meados da década de 1980 (Lobato e Rocha,
2019, p. 2). De acordo com o Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística, usuário é toda
“pessoa física ou jurídica que consulta arquivos. Também chamada "consulente, leitor ou
pesquisador” (Arquivo Nacional, 2005, p. 169).

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Partindo dessa definição, entende-se que o usuário é movido pela necessidade de obter
uma informação e que busca satisfazê-la através da consulta em arquivos. Podemos
complementar que: “O usuário de alguma instituição arquivística ou de algum serviço de
arquivo é aquele que interage com vistas à busca de documento ou de informação contida em
documentos, em quaisquer das fases do ciclo documental” (Lobato e Rocha, 2019, p. 3).
Além disso, é preciso dizer que existem usuários presenciais, aqueles que se dirigem
fisicamente ao acervo, e usuários remotos, aqueles que interagem com a documentação através
de meios digitais. Também é preciso classificar os usuários internos ou externos. Os usuários
internos são aqueles que fazem parte da entidade produtora da documentação, já os externos
são aqueles que não integram a entidade produtora dos documentos, mas que buscam o arquivo
para realizar pesquisas.
Em relação aos usos dos arquivos, a literatura sobre o tema em sua maioria fundamenta-
se nas classificações propostas por García Belsunce (1980), as quais adotamos neste trabalho.
Nesta proposta há três tipos de usos: o uso prático, o uso popular e o uso acadêmico.
Em primeiro lugar temos o uso prático que está ligado aos usuários de órgãos públicos
e empresas privadas, ou seja, aqueles que produziram os arquivos, utilizando-os para tomar
decisões administrativas ou jurídicas. Já o uso popular está ligado a população em geral, que
busca nos arquivos respostas para questões pessoais ou profissionais. É importante destacar
como o uso popular dos arquivos pode contribuir para a construção de uma identidade cultural,
pois, tendo suas demandas atendidas, esses usuários também acabam agregando
conhecimentos sobre a história, o espaço e a comunidade em que estão inseridos.
Em terceiro lugar temos o uso acadêmico, tradicionalmente caracterizado pela busca de
fontes de pesquisa para a realização de trabalhos acadêmicos. Neste caso, os historiadores
aparecem como os principais usuários.
Nesta pesquisa, trabalhamos com duas dessas classificações de uso: o uso acadêmico e o
uso popular. A classificação dos usuários será o usuário externo, presencial e remoto. Além
disso, utilizamos como fontes de pesquisa as solicitações realizadas pelos usuários do
LABORDOC. Ao todo foram analisadas 213 solicitações.
Este levantamento de fontes foi realizado em duas etapas. A primeira deu-se
presencialmente, buscamos as fichas impressas mantidas no Laboratório. Verificamos que,
utilizando apenas as fichas impressas teríamos um recorte temporal limitado. Por isso, na

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segunda etapa, outra parte das fontes foi coletada através do acesso ao e-mail antigo do
LABORDOC, com autorização da atual Coordenadora3.
Considerando as solicitações com data informada, o recorte temporal será o período
compreendido entre 2019 e 2022. É importante ressaltar que algumas dessas fichas não
possuem data definida, mantendo-as na categoria de solicitações sem data informada. É
importante ressaltar também que as solicitações analisadas não estão em um mesmo modelo.
Foram selecionados quatro tipos de solicitações que foram analisadas individualmente e depois
agrupadas, de acordo com dados em comum. Destes dados, apenas seis serão analisados: curso,
cidade, estado, instituição, finalidade e solicitação de acesso (tipo de documento solicitado).
Além disso, aproveitamos também as solicitações por e-mail e as solicitações realizadas pela
área pública do sistema ACERVUS4, das quais podemos analisar quais os tipos de documentos
solicitados e quais as finalidades indicadas pelos autores dos e-mails.

3. ANÁLISE DO PERFIL DOS USUÁRIOS DO LABORDOC


A partir da análise das nossas fontes, visualizamos que das 213 solicitações temos 59
(27,7%) sem data informada; 83 (39,0%) do ano de 2019; 31 (14,6%) do ano de 2020; 20
(9,4%) do ano de 2021 e 20 (9,4%) do ano de 2022.
Em relação a quantidade de usuários por estados, observamos que das 213 solicitações,
temos 55 (25,8%) usuários do estado do Rio Grande do Norte - RN; 1 (0,5%) usuário do estado
da Paraíba - PB; 1 usuário (0,5%) do Distrito Federal - DF; 1 (0,5%) usuário do estado do Rio
de Janeiro - RJ; e 4 (1,9%) usuários do estado de São Paulo - SP. 151 (70,9%) usuários não
informaram a qual estado pertencem. Também não identificamos nenhuma solicitação de
usuários vindo de outro país.
Analisando a distribuição dos usuários por instituição obtivemos os seguintes
resultados: em 126 solicitações (59,2%) os usuários não informaram a instituição de ensino a
qual pertenciam. 42 (19,7%) eram da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Campus
CERES - Caicó. 39 (18,3%) eram da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte - UERN. 4
(1,9%) eram da Universidade Federal de Campina Grande - UFCG. 1 (0,5%) era da Universidade
Federal da Paraíba - UFPB e 1 (0,5%) era da Universidade Estadual do Piauí (UESPI).
Em relação a quantidade de usuários por curso, obtivemos as seguintes informações:
observa-se que 44 (20,7%) usuários são do curso de Licenciatura em História; 2 (0,9%)

3 A professora Ane Luise Silva Mecenas Santos é a atual coordenadora do LABORDOC. Possui Doutorado em
História, Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).
4 O sistema ACERVUS gerencia os acervos museológicos, artísticos e históricos da UFRN.

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usuários são do curso de Bacharelado em História; 5 (2,3%) usuários são do curso de Mestrado
em História dos Sertões (PPGH/CERES); 1 (0,5%) usuário do curso de Administração, 1 (0,5%)
do curso de Geografia e 1 (0,5%) do curso de Ciências Contábeis. Das 213 solicitações
analisadas, 159 (74,6%) não informaram o curso.
Diante dos resultados, considerando o perfil acadêmico dos usuários do LABORDOC, a
pesquisa depreende que a maioria dos usuários são historiadores em formação, sobretudo os
discentes do curso de licenciatura em História. Outro dado que explica a maioria dos usuários
do LABORDOC serem do curso de Licenciatura em História é a finalidade de cada solicitação.
As finalidades das solicitações foram agrupadas em quatro categorias: trabalho
acadêmico ligado a componente curricular; estudos genealógicos; trabalho de conclusão de
curso (monografia, dissertação, tese); outros e não informado. Essas categorias não foram
inventadas, elas já estavam presentes nas fichas como uma opção de múltipla escolha que seria
marcada pelo usuário na hora do preenchimento.
No caso dos e-mails, foram inseridos em cada categoria aqueles que possuíam o nome
da categoria no assunto ou na descrição da mensagem. Aquelas que não possuíam foram
colocadas na categoria “não informado”.
A análise obteve os seguintes resultados: 64 (30,0%) tinham como finalidade realizar
trabalho acadêmico ligado a componente curricular. 45 (21,1%) tinham como finalidade
estudos genealógicos. 5 (2,3%) tinham como finalidade realizar trabalho de conclusão de curso
(monografias, dissertações e teses). 25 (11,7%) não informaram a finalidade da pesquisa. 74
(34, 7%) se enquadram na categoria outros. Nesta categoria foram indicados: pesquisa no
fundo do MEB, pesquisa nos assentos de casamento da Paróquia de Sant'Ana de Caicó; pesquisa
de pós-doutorado sobre trabalho têxtil no Brasil.
Além das finalidades das solicitações, pudemos analisar também os tipos de documentos
solicitados. Os tipos de documentos mais pesquisados são respectivamente os inventários, as
habilitações de casamento, as ações cíveis e as monografias. Estes documentos pertencem,
respectivamente, ao Fundo da Comarca de Caicó e ao Fundo do Curso de História.
Sendo assim, compreende-se que os documentos mais pesquisados fazem relação à
história familiar dos usuários, à prática historiográfica e à escrita de histórias com temas
relacionados aos sertões seridoenses.
Em estudos de usos e usuários, é notável o uso predominante de fundos e coleções de
origem pública, em grande parte provenientes do período colonial. Isso pode estar relacionado
à acessibilidade dos acervos preservados, já que a facilidade para realizar consultas pode
influenciar na escolha dos temas de pesquisa, especialmente quando se trata de acervos

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organizados e digitalizados. Essa é uma área relevante que pode ser melhor explorada em
futuras pesquisas.
Os usuários do LABORDOC seguem este mesmo perfil, considerando que a maioria dos
documentos solicitados para fins de pesquisa genealógica pertencem ao Fundo da Comarca de
Caicó e que parte desta documentação se encontra digitalizada e está sendo disponibilizada aos
poucos pelo ACERVUS.

4. ESPAÇO DE PRÁTICA HISTORIOGRÁFICA: O USO ACADÊMICO DO


LABORDOC
A relação entre usuários de arquivos e prática historiográfica é fundamental para a
construção do conhecimento histórico. Os arquivos são fontes primárias de informação que
permitem aos historiadores e pesquisadores acessar informações valiosas sobre o passado.
Para realizar pesquisas, neste caso estamos falando de pesquisas históricas, os
historiadores precisam fazer escolhas teórico-metodológicas que orientem o desenvolvimento
de sua produção historiográfica. Uma opção é buscar a documentação em arquivos, para que
sirvam de fontes históricas na elaboração do trabalho científico.
Essa é uma prática fundamental quando se trata de garantir a fidedignidade de
informações. O uso dos documentos de arquivo, a posteriori, fundamenta-se na utilização das
fontes como prova, registro de uma informação autêntica e confiável, na reconstituição de
memórias que são representadas a partir das análises feitas pelos pesquisadores/
historiadores (Lobato e Parrela, 2022, p.5).
No caso do LABORDOC, pontuamos novamente que o mesmo é classificado como Centro
de Documentação. Adotamos as definições de Viviane Tessitore (2003), para entender que se
classifica também como uma entidade de memória híbrida:

A aquisição, o armazenamento e o processamento técnico desse acervo possuem


características biblioteconômicas, arquivísticas e/ou museológicas devido à própria
diversidade do material reunido – diversidade que é, ao lado da especialização temática,
a marca distintiva dos Centros de Documentação, e que está presente também em suas
atividades referenciadoras. (Tessitore, 2003, p. 15).

Reforçamos que o LABORDOC desempenha sua função como centro de documentação


ao adotar uma política de preservação que abrange a coleta, registro, organização, descrição e
divulgação de sua documentação. Dessa forma, o acervo é disponibilizado para o público com
objetivos educacionais, culturais e científicos, incluindo ensino, pesquisa e extensão.
Os Centros de Documentação são especializados em uma área específica de
conhecimento. No caso do LABORDOC, o próprio nome já indica a área especializada:

14
Laboratório de Documentação Histórica. A especialidade não limita o uso do LABORDOC apenas
aos historiadores, como ficou evidente na análise do perfil dos usuários. De acordo com Castro
e Gastaud (2017):

Esses espaços, independentemente da temática a que se dedicam, são guardiões de


determinada memória e se configuram como instituições de pesquisa. Isto significa que
os espaços devem ser pautados por procedimentos técnicos e organizacionais a fim de
que os pesquisadores interessados em consultar seu acervo possa facilmente recuperar
a informação ou as fontes de pesquisa de que necessitam. (Castro e Gastaud, 2017, p.
272).

No que diz respeito a sua configuração como instituição de pesquisa, a partir da análise
do perfil acadêmico dos usuários, a maioria dos pesquisadores são acadêmicos do curso de
graduação em História do Campus de Caicó - CERES. Esse indicativo difunde o LABORDOC
enquanto um espaço de prática historiográfica.
Para entender o perfil e as necessidades dessa parcela dos usuários, os acadêmicos de
Licenciatura em História, tomaremos como base o Projeto Pedagógico do Curso de História do
CERES do ano de 2012, visto que as solicitações de usuários, foram preenchidas quando este
PPC estava vigente.
Com base neste projeto o Curso de História do CERES-Campus de Caicó conferia aos
egressos, separadamente, duas habilitações: Licenciatura ou Bacharelado. De acordo com a
estrutura curricular, o curso de Licenciatura em História do CERES tem uma duração mínima
de 04 anos (08 semestres), integralizando ao longo desse período disciplinas obrigatórias,
optativas, estágios supervisionados e atividades acadêmicas complementares.
Nosso foco é analisar como os usuários se apropriam do patrimônio documental do
LABORDOC. O perfil dos usuários são os discentes do curso de Licenciatura em História e a
necessidade desses usuários é realizar trabalhos acadêmicos ligados a componentes
curriculares. Os componentes curriculares mais citados nas solicitações são Introdução ao
Estudo da História, Paleografia e Arquivologia. O objetivo é entender como os usuários se
apropriam do conhecimento e das técnicas aprendidas nessas disciplinas para interpretar e
compreender os documentos históricos.
De acordo com o Projeto Político Pedagógico do Curso de História do CERES, os objetivos
específicos da formação de um historiador habilitado para atuar no ensino fundamental e
médio são:

Habilitar profissionais capacitados para desempenharem funções no âmbito do ensino


fundamental e médio tanto das escolas públicas quanto das particulares [...] Qualificar
profissionais com a formação teórico-metodológica necessária à execução de projetos
sociais que levem em conta a memória regional [...] Garantir que o processo de ensino-
aprendizagem integre as atividades desenvolvidas entre a Universidade, as escolas e a

15
comunidade [...] Habilitar profissionais capazes de investigar as ações humanas que se
desenvolveram ao longo do tempo, atuando criticamente diante de seu objeto de
estudo. (UFRN, 2012, p. 19).

Sendo assim, o desenvolvimento de competências e habilidades da formação de um


historiador são desenvolvidos através do uso do LABORDOC. Neste caso o Laboratório cumpre
sua função de apoio às atividades de ensino e pesquisa, tendo seu espaço utilizado para a prática
historiográfica. Como essa prática é realizada?
Na disciplina obrigatória de Introdução ao Estudo da História, com auxílio do docente e
também dos bolsistas, o patrimônio documental do LABORDOC é apropriado pelos usuários
como fonte histórica. Assim, já no primeiro semestre do curso os discentes passam a entender
como um documento pode ser reconhecido como fonte histórica, analisando aspectos como o
contexto temporal em que o documento foi produzido; relacionar o documento a um objeto de
estudo histórico; verificar a autenticidade deste documento, assim como sua proveniência, ou
seja, quem produziu, quando e onde produziu e como este documento chegou ao Laboratório.
Ao analisar esses aspectos, os discentes em formação inicial se familiarizaram com a
prática historiográfica cotidiana do processo de trabalho dos historiadores. Essa proximidade
entre historiadores em formação e arquivos é extremamente necessária no desenvolvimento
de análise e interpretação da documentação.
Já a disciplina de Paleografia, optativa para a Licenciatura, é desenvolvida integralmente
no espaço físico do LABORDOC. Os principais fundos utilizados para este fim são o Fundo da
Comarca de Caicó e o Fundo Luciano Alves da Nóbrega, por possuírem documentos de
temporalidade mais distante; os discentes aprendem as propriedades materiais do suporte em
papel e o conteúdo textual deste documento, e principalmente aprendem as técnicas de
manuseamento dos instrumentos utilizados nas transcrições paleográficas: fichas de
transcrições, lupas e dicionários técnicos.
No contexto da paleografia, os estudantes são desafiados a decifrar e interpretar
manuscritos antigos, desenvolvendo habilidades de leitura e compreensão de escritas
históricas. Assim, eles estão se apropriando do conhecimento e das técnicas da paleografia para
interpretar e compreender a documentação do LABORDOC. Ao se apropriarem desta disciplina
de paleografia, os estudantes não apenas aprendem as técnicas e métodos de leitura de
documentos antigos, mas também aplicam seu próprio conhecimento e perspectivas para
interpretar e contextualizar esses textos, fazendo conexões com a História e trazendo novas
abordagens e interpretações para os documentos.

16
Ademais, a disciplina de Arquivologia é classificada como complementar e optativa para
a Licenciatura. Neste componente curricular os discentes também já tiveram seu primeiro
contato com a documentação e passam a trabalhar com a conservação preventiva e catalogação
de documentos.
Assim, neste componente curricular são abordados conceitos da Arquivologia, bem
como as relações com outros campos científicos, como a História, a Biblioteconomia e a
Museologia. Além disso, são estudados os aspectos profissionais técnico-científicos da área, a
legislação e a ética ao tratar os arquivos. Através desta disciplina, os discentes se apropriam da
documentação para possível compreender como os documentos são preservados e como as
informações contidas neles podem ser acessadas e utilizadas, através da instrumentalização de
práticas arquivísticas.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da análise do perfil dos usuários do LABORDOC, podemos evidenciar que, a
contar do ano de 2020, todas as solicitações foram feitas a partir de canais digitais, e-mail ou
pelo sistema ACERVUS. Além disso, pode-se perceber que há uma redução no número de
solicitações a partir do ano de 2020, fato que pode ser explicado pela chegada da pandemia do
covid-19.
Neste período, os usuários não podiam ter acesso presencial ao LABORDOC, sendo
atendidas apenas as solicitações feitas por e-mail ou outros meios de comunicação, por
exemplo, o WhatsApp. Além disso, a equipe do LABORDOC esteve reduzida durante todo esse
período compreendido entre 2020 e 2022, contando apenas com a contribuição de uma
bolsista, a coordenadora e o vice coordenador. Há que se destacar também o uso da internet
como facilitadora neste período pandêmico.
O uso da internet criou novas demandas e expectativas para os historiadores na
realidade contemporânea, influenciando a forma como realizam suas pesquisas em arquivos.
Agora, o processo de busca pode ser realizado por meio digital. Essa demanda fica evidente
quando se tem um aumento de solicitações realizadas por e-mail ou redes sociais. Mesmo após
a pandemia e a abertura do LABORDOC para pesquisas presenciais, ainda há preferência pela
solicitação digital, criando novas demandas para quem faz a gestão desse acervo. Se conhecer
o usuário presencial já é um desafio para as instituições arquivísticas, mais desafiador será
conhecer o usuário remoto.

17
Concluímos também que a categoria de finalidade que mais se destaca é a realização de
trabalhos acadêmicos ligados a componentes curriculares, o que evidencia o uso acadêmico da
documentação do Laboratório,
Ao longo do tempo, a relação entre historiadores e arquivos tem se desenvolvido e se
reconfigurado. A prática historiográfica vem acompanhando as transformações nos espaços
dos arquivos, a inclusão de novas tipologias documentais, a ampliação do acesso aos
documentos, os avanços tecnológicos e as novas concepções teóricas da gestão documental.
Todas essas transformações permitiram uma maior proximidade entre historiadores e
arquivos e essa proximidade possibilita uma melhor compreensão da história e do patrimônio
cultural, visto que os arquivos salvaguardam documentações específicas de um recorte
espacial.
Através da necessidade de realizar trabalhos acadêmicos ligados a componentes
curriculares, os usuários do LABORDOC aprendem que os documentos são criados com a
intenção de registrar informações e que a partir do levantamento de uma problemática de
pesquisa esse mesmo documento pode ser usado para outros fins. Esta compreensão permite
que esses usuários desenvolvam as habilidades necessárias para utilizar ferramentas de
pesquisa e métodos de análise para investigar as fontes históricas de forma crítica. É a partir
do contato com o patrimônio documental que os historiadores são incentivados a fazer
perguntas, levantar hipóteses e buscar evidências para sustentar suas interpretações.
Em suma, a apropriação do patrimônio documental do LABORDOC através das
disciplinas citadas contribui significativamente para atender aos objetivos de formação de um
historiador.
Sendo assim, através da análise e interpretação do patrimônio documental do
LABORDOC, os professores em formação adquirem conhecimentos teóricos e metodológicos
que são essenciais para a prática docente. Eles aprendem a selecionar e utilizar fontes
documentais relevantes para o ensino de História, desenvolvendo habilidades para elaborar
atividades e materiais pedagógicos que promovam a compreensão dos conteúdos históricos
pelos alunos.
Além do mais, os discentes também têm a oportunidade de estabelecer conexões entre
a teoria e a prática, integrando as atividades desenvolvidas na universidade com as escolas e a
comunidade. No futuro próximo, em suas aulas eles podem realizar pesquisas, projetos e
atividades que envolvam a coleta, análise e interpretação de documentos históricos em parceria
com o LABORDOC, promovendo a interação entre a academia e a sociedade.

18
REFERÊNCIAS
ARQUIVO NACIONAL (Brasil). Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 2005. 230 p.

CASTRO, Renata Brião de; GASTAUD, Carla Rodrigues. O que são centros de
documentação? O caso do Centro de Documentação do Centro de Estudos e Investigações em
História da Educação. Revista Linhas. Florianópolis, v. 18, n. 37, p. 263-282, maio/ago.
2017.

CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. São Paulo: Difel, 1990.

LOBATO, Ana Paula Ribeiro; PARRELA, Ivana. Estudo de usos e usuários acadêmicos de
História no Arquivo Público Mineiro. Ágora: Arquivologia em Debate, Florianópolis, v. 32,
n. 64, p. 01-22, jan. 2022.

LOBATO, Ana Paula Ribeiro; ROCHA, Eliane Cristina de Freitas. USOS E USUÁRIOS DO ARQUIVO
PÚBLICO MINEIRO EM AMBIENTE DIGITAL E PRESENCIAL. Ágora, Florianópolis, v. 29, n. 58, p.
1-16, jan. 2019.

TESSITORE, Viviane. Como Implantar Centros de Documentação. São Paulo: Arquivo do Estado
de São Paulo, 2003. 52 p.

19
Capítulo II
PARDOS E PARDAS NO SERTÃO DO SERIDÓ: O CASO DA
FAMÍLIA "GOMES DE OLIVEIRA" (SÉCULOS XVIII-XIX)
DOI: 10.51859/amplla.soh683.1124-2
Mara Gabrielly Batista de Macêdo 1
Helder Alexandre Medeiros de Macedo 2

1. INTRODUÇÃO
As páginas muito antigas de um documento judicial, amareladas pelo tempo e corroídas
por traças, nos revelaram informações valiosas sobre um homem pardo chamado José Gomes
de Oliveira, que viveu durante 52 anos e morreu de cólera na Freguesia do Seridó. Este
documento se trata dos autos do seu inventário post-mortem 3, que mostram, além do
patrimônio que possuía, os seus herdeiros, os seus credores e os seus devedores, nos
possibilitando uma análise sobre sua família e outras relações próximas.
Desde 2020, ainda na graduação, estamos tendo contato com vasta documentação
eclesiástica (assentos de batismos, casamentos e óbitos) e judicial (inventários) que menciona
pessoas qualificadas4 como pardas, e, partindo do interesse de entender quem eram e o que
significava ser assim registrado na localidade do Seridó, diversos estudos foram sendo
desenvolvidos. O projeto de pesquisa “História das mestiçagens nos sertões do Rio Grande do
Norte por meio de um léxico das qualidades (séculos XVIII-XIX)”, coordenado pelo professor
Helder Alexandre Medeiros de Macedo, especificamente no Plano de Trabalho “Genealogias de
pardos na Ribeira do Seridó (séculos XVIII-XIX)”, foi o grande catalisador para o progresso
desses esforços.
Assim, a pesquisa em andamento sobre a representação5 de pardos e de pardas da
Freguesia do Seridó (XVIII-XIX) no Programa de Pós-Graduação em História do CERES – PPGHC

1 Mestranda em História dos Sertões pelo Programa de Pós-Graduação em História do CERES/UFRN. Bolsista
CAPES. E-mail: maragbmacedo@outlook.com.
2 Docente do Departamento de História do CERES e do Programa de Pós-Graduação em História do CERES/UFRN,

Mestrado em História dos Sertões. E-mail: helder.macedo@ufrn.edu.br


3 Em palavras simples, é um processo judicial feito quando ocorre o falecimento de uma pessoa, em que se

registram todos os bens, direitos e dívidas.


4 Qualidade/calidade/calidad, segundo Paiva (2015), é um termo/conceito latinizado, possivelmente, pelo filósofo

romano Cícero. As qualidades diferenciavam, hierarquizavam e classificavam os indivíduos e os grupos sociais a


partir de origem e/ou do fenótipo e/ou ascendência deles. Por outro lado, é preciso atentar para não confundir
qualidade com cor. Pelo que aparece nas fontes consultadas por Paiva (2015) a cor era baça, enquanto a qualidade
era parda, e isso parece ter prevalecido nas Américas espanhola e portuguesa até o século XVIII.
5 Os escritos do historiador Roger Chartier (1990) sobre práticas de leitura no Antigo Regime geraram uma

reflexão teórica acerca das representações que nos inspiraram no presente trabalho. Temos que as representações

20
- Mestrado em História dos Sertões, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN,
que também acontece sob orientação do Professor Helder Macedo, de onde advém ainda o
presente artigo, é fruto das investigações iniciadas no projeto mencionado.
Na dimensão destes escritos, objetivamos analisar o caso da família Gomes de Oliveira,
buscando entender o que significava, ou não, ser pardo, e como foram forjadas essas
representações no sertão6 do Seridó. Além de José Gomes de Oliveira, conseguimos rastrear
outros dos seus parentes, o que foi feito com respaldo nos instrumentos metodológicos do
paradigma indiciário, de Carlo Ginzburg (2007), do método onomástico, de Carlo Ginzburg e
Carlo Poni (1987), em diálogo com uma abordagem micro histórica inspirada nas obras de
Giovanni Levi (2016).
Antes de apresentarmos alguns dos membros desta família parda, é fundamental que
expliquemos o espaço em que suas vidas floresceram, e do que se tratava a Freguesia da
Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó. Esta Freguesia foi fundada em 1748, em um território
sertanejo localizado na porção centro-sul da Capitania do Rio Grande, avançando para as
fronteiras da Capitania da Paraíba. Conforme Macedo (2011), as motivações para a sua criação
surgiram pelo fato de ser interesse da Igreja Católica racionalizar o seu território, porque, para
as demandas daquele momento, a vasta Freguesia do Piancó já não era suficiente. Desse modo,
essa necessidade se tornou ainda mais clara quando Dom Frei Luís de Santa Teresa, bispo de
Pernambuco, baixou ato em Olinda, com data em 20 de fevereiro de 1747, determinando que o
padre Manuel Machado Freire, em visita aos curatos do Icó e do Piancó, realizasse suas divisões
com o fito de criar novas freguesias.
Então, em 15 de abril de 1748, com sede na Povoação do Caicó, o padre “Visitador Geral
dos sertões da parte do Norte”, Manuel Machado Freire, desmembrou da Freguesia de Nossa
Senhora do Bom Sucesso do Piancó a unidade noviça administrativo-religiosa chamada de
“Santa Anna”, cujos limites seriam a ribeira das Espinharas, das suas nascentes até a foz
(Macedo, 2011). A Freguesia do Seridó produziu muitos registros que hoje são fontes para
buscar compreender a sociedade daquele passado. Embora não tenhamos os documentos
anteriores ao ano de 1788, sobreviveram ao tempo alguns livros como os que utilizamos neste

são construções elaboradas a partir da realidade, mas não são naturais, carregam interesses e estratégias para que
os indivíduos possam dar sentido ao mundo que compartilham.
6 O “Sertão” foi erigido como categoria pelos colonizadores para designar, inicialmente, espaços desconhecidos,

isolados, inacessíveis e perigosos, locais que seriam afastados do litoral e do controle da Coroa, sendo espaços
constituídos sob a ideia do “outro” (Amado, 1995). Considerando, portanto, que o domínio da escrita no período
colonial era, nomeadamente, dos abastados, homens e brancos, quando nos propomos a investigar quem eram as
pessoas pardas, estamos tratando de uma representação de um “outro”.

21
trabalho. Neste sentido, foram fundamentais os quatro livros de assentos de batismos7; os três
livros de casamentos8; e, por derradeiro, dois livros de assentos de óbitos9, e a fonte judicial,
como o citado inventário post-mortem (1856) do Fundo da Comarca de Caicó, que se encontra
sob a custódia do Laboratório de Documentação Histórica (LABORDOC) do Centro de Ensino
Superior do Seridó (CERES) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Além
disso, utilizamos os bancos de dados10 construídos no software “Microsoft Access” com base em
muitos destes documentos para realizar o cruzamento de dados.
Sabemos que muitas produções historiográficas de intelectuais seridoenses11,
publicadas durante o século XX, tinham tom elogioso sobre a herança portuguesa, evidenciando
esse sujeito histórico universal, branco e masculino (Macedo, 2020; Medeiros, 2022). Na
atualidade, felizmente, contamos com diversos trabalhos acadêmicos12 que apresentam outros
sujeitos que não apenas os homens brancos, mostrando, por exemplo, como as pessoas de
qualidade parda fizeram parte do processo histórico que transcorre no sertão do Seridó.
Embora nestes trabalhos existam algumas descrições genealógicas e menções às pessoas
qualificadas como pardas, há espaço ainda para maiores estudos, porque além da pouca
quantidade de produções com este foco, notamos lacunas sobre como foi forjada a
representação destes indivíduos.
Neste sentido de contribuir com as discussões sobre o assunto, optamos pelo estudo da
família Gomes de Oliveira em razão de haver considerável quantidade de dados disponíveis. A
família aqui estudada, contudo, não se confunde com a família homônima, majoritariamente
branca, que vivia na região do Sítio Algodão ou nas proximidades da Conceição, que atualmente
é a cidade de Jardim do Seridó/RN. Assim, esclarecemos que o nosso objetivo é analisar como
essa família parda é qualificada ao longo de três gerações13, sendo observada, de modo geral, a

7 (1803-1806, 1814-1818, 1818-1822 e 1825-1831), que contêm 4825 registros, no total.


8 (1788-1809, 1809-1821 e 1821-1834), que possuem 1691 registros, ao todo.
9 (1788- 1811, 1812-1838), que apresentam, unidos, 2249 óbitos registrados.
10 Grande parte das informações desses documentos foram transformadas em fichas, formando uma série de

bancos de dados construídos no software “Microsoft Access”, produzidos e idealizados pelos historiadores
Muirakytan Macêdo e Helder Macedo, com auxílio de bolsistas e outros pesquisadores ao longo de anos, equipe
esta a qual somamos.
11 Nas obras de José Adelino Dantas (2008), José Augusto Bezerra de Medeiros (2002) e Olavo de Medeiros Filho

(1981; 2002), e notamos, em maiores ou menores graus, omissões sobre trajetórias de pardos no Seridó.
12 Dentre elas citamos as dissertações: “Tropas pagas e ordenanças: perfil social dos militares da capitania do Rio

Grande (séculos XVII-XIX)” de Maiara Silva Araújo (2019); “Vastas e ermas: mulheres não brancas no sertão do Rio
Grande (Seridó, séculos XVIII e XIX)” de Maria Alda de Medeiros (2022); “Neste mesmo chão, outros passos:
indivíduos não-brancos nos sertões do Rio Grande (Ribeira do Acauã, Totoró, séculos XVIII-XIX)”, de Matheus
Barbosa (2022); e o livro “Outras Famílias do Seridó: Genealogias mestiças no Sertão do Rio Grande do Norte
(séculos XVIII-XIX)”, de Helder Alexandre Medeiros de Macedo (2020).
13 Os pais José Gomes de Oliveira e Tereza Maria de Jesus, a filha Ana Maria de Jesus casada com (c/c) Francisco

José de Oliveira e o neto José Gomes de Oliveira c/c Maria Tereza de Jesus.

22
manutenção da qualidade de pardos que ora aparecia expressa, ora era abreviada em “p.” na
documentação, conforme explicaremos na sequência.

2. OS MAIS ANTIGOS GOMES DE OLIVEIRA ATÉ AGORA ENCONTRADOS


Aos 24 dias do mês de abril de 1845, envolto em uma roupa mortuária de cor branca,
jazia o corpo do mais antigo José Gomes de Oliveira apenas com o sacramento da extrema-
unção, como foi informado pelo Vigário Manoel José Fernandes (Paróquia de Sant’Ana de Caicó
(PSC). Casa Paroquial São Joaquim (CPSJ). Livro de Óbitos (LO) n° 3. Freguesia da Gloriosa
Senhora Santa Ana do Seridó (FGSSAS), 1838-1857, f. 34v.)14. Em seu assento de óbito, foi
registrado no espaço lateral do registro, chamado de “averbação”, as iniciais “P.V.”15, que
acreditamos se tratar da abreviação de “pardo viúvo”. Falecido com aproximadamente 93 anos,
pai de, pelo menos, sete filhos16 e já com vários netos, José Gomes de Oliveira gerou muitos
descendentes de qualidade parda, e transmitiu para outros tantos o mesmo nome que
carregava: “José Gomes de Oliveira”, tal qual o personagem de Gabriel García Márquez (2019)
em sua obra “Cem anos de Solidão”, José Arcadio Buendía de Macondo.
O José Gomes de Oliveira que iniciamos a falar neste texto sobre o seu inventário não se
confunde com este. Aquele era seu neto e contava com 35 anos quando o seu avô faleceu. Pelas
fontes que possuímos, não sabemos se no dia final esteve presente no sepultamento do seu
parente, mas aquela era uma época em que as inumações aconteciam dentro das igrejas (Santos,
2011) e, podemos crer que, em sendo católico, em algum momento deve ter ido oferecer suas
orações pela alma de seu avô, de sua avó, Tereza, e de sua mãe, Ana Maria, que partiu
precocemente.
Os seus avós aparecem na documentação como os mais antigos membros da família. A
avó, Tereza Gomes de Oliveira, também de qualidade parda, abreviada, faleceu em 8 de julho de
1838 de moléstias nervosas, aos 90 anos, sendo, curiosamente, sete anos mais velha do que o

14 Optamos por, a partir deste ponto, apresentar a referência da fonte de modo abreviado, utilizando como base
esta.
15 Salientamos que, nem sempre, a abreviação “P.” indicava a qualidade parda. Em muitos casos podia se tratar de

“Preto” ou “Preta”, conforme podemos inferir dos estudos, dentre outros, de Macedo (2020), Medeiros (2022) e
Santos (2022). No presente trabalho, através do cruzamento de dados, entendemos que para o presente caso dos
Gomes de Oliveira a abreviação na averbação indicava a qualidade parda.
16 Ana Maria de Jesus c/c Francisco de Oliveira (PSC, LC 1788-1809, f. 60v); Eugênio Gomes de Oliveira c/c

Francisca Guedes dos Santos Carvalho (PSC, LC 1809-1821, f. 68v-69); Manoel Gomes de Oliveira c/c Clemência
Monteiro da Costa (PSC, LC 1809-1821, f. 122); Narcisa Pereira de Araújo c/c José Álvares dos Santos (PSC, LC
1809-1821, f. 77v-78); Francisca Maria c/c José da Silva (PSC, LC 1809-1821, f. 31); José Gomes de Oliveira Júnior
casado Isabel Maria da Conceição (PSC, LC 1788-1809, f. 62v) e Maria Leonarda c/c Alexandre Ferreira de Carvalho
(PSC, LC 1788-1809, f. 96v).

23
seu marido (PSC, LO 1838-1857, p. i.). A origem deste longevo casal é incerta17. Em seus
assentos de óbito não foi possível inferir se nasceram na Freguesia do Seridó ou se vieram para
cá em determinado momento.
O fato é que alguns de seus filhos aparecem expressamente como pardos, sendo o caso
de José Gomes de Oliveira Júnior, que contraiu casamento em 1800 com a também parda Izabel
Maria da Conceição (PSC, LC 1788-1809, f. 62v), e de Ana Maria de Jesus, casada em 24 de
fevereiro de 1800 com Francisco José de Oliveira (PSC. LC 1788-1809, f. 60v).
A qualidade, em outros casos, aparece abreviada em “P.” na averbação, como é o caso da
filha Francisca Maria, casada em 1813 com José da Silva (PSC, LC 1809-1821, f. 31v). Há outros
que aparecem sem menção à qualidade, como é o caso da filha Maria Leonarda, casada em 1803
com Alexandre Ferreira de Carvalho, aparece sem menção de qualificativo (PSC, LC 1809-1821,
f. 96v).

3. FILHA E MÃE DE UM JOSÉ GOMES DE OLIVEIRA


Da segunda geração dos Gomes de Oliveira, damos destaque para a trajetória de Ana
Maria de Jesus, uma mulher parda seridoense, filha desse casal mais antigo e mãe de José Gomes
de Oliveira, o neto. Sua qualidade foi expressamente atribuída quando contraiu casamento na
Matriz do Seridó, em 1800, com Francisco José de Oliveira, também pardo, natural da Freguesia
de Pombal, capitania da Paraíba do Norte (PSC. LC 1788-1809, f. 60v).
Como teria sido a vida dessa mulher não-branca na Freguesia do Seridó? O trabalho de
mestrado de Maria Alda Jana Dantas de Medeiros18 (2022) alçou um relevante voo sobre
algumas experiências de mulheres no Seridó setecentista e oitocentista e nos ajudou a refletir
sobre a trajetória de Ana Maria de Jesus. Medeiros (2022), apresentando novas representações
sobre o feminino no sertão, reconheceu que havia diferenças marcadas na condição feminina, e

17 O doutor em economia, Hélio de Sousa Ramos Filho, durante o I Encontro de Genealogia de Santa Luzia/PB
ocorrido em 29 de abril de 2023, informou que haveria uma relação de parentesco entre os Gomes de Oliveira e os
Gomes Vilela. O capitão Domingos Gomes Vilela, sesmeiro de terras no Rio Grande em 1742, teria se envolvido
romanticamente com uma parda, de nome desconhecido. José Gomes de Oliveira era sobrinho de Domingos Gomes
Vilela, um homônimo do capitão mencionado. Este indício pode ser importante para futuros desdobramentos, mas,
por enquanto, ainda não foram frutíferas nossas buscas no sentido de confirmar estas informações.
18 Maria Alda Jana Dantas de Medeiros atualmente é professora substituta do Departamento de História da UFRN-

CERES/Caicó da área de Teoria e Metodologia da História, e escreveu a dissertação “Vastas e Ermas: Mulheres Não
Brancas no Sertão do Rio Grande (Seridó, séculos XVIII e XIX)” (2022), apresentada ao mestrado em História pelo
Programa de Pós-Graduação em História da UFRN-CERES, que menciona vivências de mulheres diversas (índias,
africanas, pretas, mamelucas, cabras, crioulas, mulatas, mestiças e pardas) no espaço sertanejo estudado pela
autora. Dividido em quatro capítulos, o trabalho se desenvolveu com base em fontes sesmarias, eclesiásticas e
judiciais, por meio de um cruzamento quantitativo e qualitativo das documentações.

24
que os lugares ocupados por mulheres brancas, proprietárias de terras e ricas eram distantes,
e diferentes dos universos das mulheres pobres e não-brancas.
Além disso, de modo geral, havia uma ideia de que a mulher deveria viver enclausurada,
dedicada ao lar e à família, sofrendo, neste processo, com altas exigências morais para atingir o
ideal feminino. Considerando que a Freguesia do Seridó comportava um espaço sertanejo com
condições climáticas que, muitas vezes, pioravam a situação de pobreza e instabilidade
populacional, essa conquista de um padrão elevado era, de fato, muito difícil ou mesmo
inatingível (Medeiros, 2022).
No caso de Ana Maria, o pouco que sabemos de sua vida está ligado à sua religiosidade
como católica: casando uma única vez, batizando os seus filhos, enterrando-os em grande parte
ainda na infância19 e, por fim, falecendo, deixando o assento de seu óbito com o registro de que
teria recebido todos os sacramentos. Teria sido Ana Maria uma mulher que rompeu com os
padrões impostos àquela altura na sociedade colonial? Pela documentação que tivemos acesso,
não podemos afirmar isto. Ao contrário, pareceu dedicar sua vida aos filhos, sobrevivendo até
a idade adulta apenas20 José Gomes de Oliveira, que herdou o mesmo nome do avô. Era uma
existência dura, na lida rural.
No assento de batismo de José, em 1804, indicava que o lugar dessa cerimônia iniciática
havia sido na Fazenda Sabugi (Paróquia de Sant’Ana de Caicó (PSC). Casa Paroquial São Joaquim
(CPSJ). Livro de Batismos n° 1. Freguesia da Gloriosa Senhora Santa Ana do Seridó (FGSSAS),
1803-1806, f. 32.). Considerando as secas e as dificuldades sociais, era comum haver mudanças
de localidade em busca de melhores condições. Talvez tenha sido o que aconteceu, visto que no
assento de batismo de seu filho Simão, em 1805, há o registro que a família era moradora do
Sítio Santa Cruz. Esta mesma indicação de residência se repete em 1810, no assento de óbito de
uma filha de nome Maria, falecida aos três anos de idade por afogamento, e em 1814, no assento
de batismo de Manuel, indicando que esta família viveu pelo menos nove anos nesta mesma
localidade.
Podemos dizer que há muitas fontes que mencionam Ana Maria, mas são normalmente
batismos e óbitos das suas crianças. Não temos grande diversidade em suas informações, talvez
por ter vivido pouco. Ana Maria, com então 40 anos de idade, deixou os seus pais, o marido

19 Foram quatro filhos dos pardos Ana Maria e Francisco José falecidos ainda crianças: o recém-nascido Manuel
faleceu em 1803, sem indicação de qualidade (PSC, LO 1788-1811, f. 96.); José, falecido com dois anos incompletos
em 1803, enterrado com mortalha de cassa preta, com qualidade na averbação “P.” (PSC, LO 1788-1811, f. 97.);
Maria, párvula com três anos, mais ou menos, falecida em 1810, afogada em um poço de água (PSC, LO 1788-1811,
f. 135v.); e o párvulo Manuel, de qualidade na averbação “P.”, falecido em 1819, com 6 anos de idade, de feridas
nas faces (PSC, LO 1812-1838, f. 47v.).
20 Até o momento nossas pesquisas não indicaram outro filho do casal que chegou até a idade reprodutiva.

25
Francisco e o filho José nessa existência terrena para encantar-se no ano de 1822, por moléstia
da barriga (PSC, LO 1812-1838, f. 62.). Assim como seria o seu pai no futuro ano de 1845, sua
qualidade parda foi abreviada na averbação com “P.”, e foi sepultada na Matriz do Seridó,
recebendo o seu descanso eterno envolta em hábito mortuário de cor branca.

4. JOSÉ GOMES DE OLIVEIRA, O NETO


Nasceu em 02 de abril de abril de 1804, o rebento José Gomes de Oliveira, filho do casal
de pardos Ana Maria e Francisco José de Oliveira. Depois de alguns filhos falecidos, José foi
aquele que resistiu às durezas de uma vida rústica. Em seu assento de batismo não há
identificação de qualidade (PSC, LB 1803-1806, f. 32.). O texto do assento de seu batismo nos
revelou que os seus padrinhos eram José Gomes de Oliveira e Francisca dos Santos e
Vasconcelos.
O seu padrinho José Gomes de Oliveira seria o seu avô? Ou o seu tio homônimo? Não
fomos capazes de determinar através dos cruzamentos de dados. Do mesmo modo, não
encontramos, até o presente momento, maiores informações sobre Francisca dos Santos e
Vasconcelos. Em que pese isto, é de conhecimento comum que os padrinhos eram escolhidos
de modo especial e, muitas vezes, estratégico, pois isto reforçava os laços entre estas pessoas,
criando alianças úteis na vida terrena e um parentesco espiritual.
Os anos se passaram e o jovem José Gomes de Oliveira contraiu matrimônio na idade de
22 anos, no dia 27 de novembro de 1826, na Matriz de Sant’Ana, com Maria Teresa de Jesus,
sendo a qualidade na averbação “P.” (PSC, LC 1821-1834, f. 78v.). Os frutos desta união logo
apareceram. No Livro de Batismos nº 4 achamos algumas informações sobre suas primeiras
filhas. A primogênita, também assinalada com abreviação “P.” na averbação, de nome Ana,
nasceu em 08 de outubro de 1827 e foi batizada em 11 de novembro de 1827, sob a benção dos
padrinhos Manoel Joaquim Pereira, solteiro, e Clemência Monteiro, casada (PSC, LB 1825-1831,
f. 84.). A segunda, chamada de Alexandrina, nasceu em 13 de janeiro de 1829, com qualidade
abreviada em “P.” na averbação, sendo os padrinhos escolhidos João do Rego Toscano
Bitancourt e sua mulher, Maria Teresa, moradores da Freguesia do Seridó (PSC, LB 1825-1831,
f. 136.).
No ano seguinte, em 19 de novembro de 1830, nasceu a terceira, de nome Carolina, de
mesmo modo com abreviação “P.” na averbação, sendo os seus padrinhos José Joaquim de Santa
Ana, casado, e sua filha Maria Carolina, solteira, com batismo realizado em 26 de dezembro de
1830 (PSC, LB 1825-1831, f. 227.). Os demais filhos apareceram no rol dos herdeiros do
inventário de José Gomes de Oliveira (Laboratório de Documentação Histórica (LABORDOC).

26
Fundo da Comarca de Caicó (FCC). 1º Cartório Judiciário (1º CJ). Inventários post-mortem. Cx.
341. Inventário de José Gomes de Oliveira. 1846.). Ao todo, foram 1121 crianças, mas não foi
possível perceber, somente por esta fonte judicial, se todos foram qualificados ou se o foram
como pardos. O seu inventário, como informado ao início, é uma rica fonte para investigação.
Ele nos indica que, mesmo diante de uma vida com muitos sacrifícios e privações, foi construído
um patrimônio22 ao longo da vida.
Mas, afinal, o que queria dizer ser uma pessoa parda nesta época e neste lugar sertanejo?
Responder a esta pergunta não é tão simples quanto parece, pois ser pardo podia comportar
muitos significados. Medeiros (2022) aprofundou o estudo sobre os termos utilizados nesta
identificação e hierarquização de seridoenses, sobretudo mulheres, buscando seus significados,
usos e critérios de atribuição desses vocábulos no Seridó setecentista e oitocentista. Em seu
trabalho, foi analisada a trajetória da indígena Damiana Tavares, filha legítima de Leonardo
Tavares e Joana Maria, naturais da Freguesia de Açu. Em 1814, Damiana Tavares casou com o
pardo e escravo Manoel Vicente na Capela dos Currais Novos. Neste registro, a sua qualidade
foi registrada expressamente como “índia”, mas não foi indicado o seu status de liberdade, ou
seja, se era escrava, livre ou liberta. Conforme foi explicado pela autora, os descendentes do
casal formado pela índia Damiana e pelo pardo Manoel foram todos qualificados como “P.”,
provável indicativo da qualidade “parda”. Nesta situação, a autora entendeu que o emprego
dessa categoria se relacionou com o fato de os filhos serem frutos de uma união mista.
Sobre a família Gomes de Oliveira, não conseguimos rastrear se realmente se trata de
uma mistura entre pessoas de qualidades diferentes e, se realmente foi, qual tipo de
miscigenação seria, ou quando havia acontecido23. Contudo, podemos afirmar que é uma
qualidade muito recorrente e não notamos variações entre estas três gerações. Ou seja, todos

21 Ana Maria de Santa Ana, viúva; Alexandrina Manoela da Conceição, c/c Francisco Gomes De Oliveira; Clementina
Maria da Conceição, c/c João Oliveira da Costa; Valentino Gomes de Oliveira, solteiro; Maria José de Jesus, c/c
Manoel Batista Colação; Barnabé Gomes de Oliveira, solteiro; José Gomes de Oliveira, solteiro; Ana de idade de 20
Anos; Francisca, de idade de 17 anos; Manoel, de idade de 16 anos e Josefa, de idade de 13 Anos.
22 Deixou em dinheiro um conto e trinta e dois mil réis, além de ouro (colar, par de argolas grandes e par de

argolas), totalizando 34 mil e 400 réis. Pelos demais bens que estavam listados no documento, cremos que podia
ter sido vaqueiro. Suas terras de criar ficavam no Sítio Boa Vista, possuindo roçado e curral. Tinha gado, cavalo, e
alguns instrumentos de ferro, latão e de couro. Sua casa, no valor de 300 mil réis, era de tijolo e barro. A escrava
Joaquina de idade de seis anos, foi avaliada em 400 mil réis. Devia ativamente a Manoel Salviano do Rego; a quantia
de 900 mil réis; a João Nogueira a quantia de 1960 reis; a Salustino Soares de Brito, 6 mil réis; a Manoel Soares de
Brito 800 réis; a Joaquim Alves mil e trezentos réis; a Antônio Alves dos Santos, mil oitocentos réis. Como deixou
filhos ainda menores, precisou que fosse indicado um curador, alguém que pudesse administrar os seus bens e
orientar os seus filhos. A pessoa escolhida para esta importante missão foi o Sr. Inácio Gonçalves Vale, certamente
alguém que a família depositava confiança.
23 Seriam os antepassados dos Gomes de Oliveira brancos que se misturaram com indígenas? Indígenas que se

misturaram com negros? Ou negros com brancos? As três matrizes? Quando? Como essas pessoas eram vistas
socialmente para além de suas qualidades? Em sendo uma pesquisa inicial ainda não podemos responder
categoricamente a estas perguntas.

27
os três, em algum momento, aparecem como pardos nos documentos. Teriam sido os
antepassados mais recuados pessoas escravizadas? Em alguns casos, como o estudado pelo
professor Roberto Guedes24 (2008) sobre a cidade do interior de São Paulo, Porto Feliz, entre o
século XVIII e meados do século XIX, ser pardo poderia indicar, ou não, um distanciamento
geracional maior em relação ao cativeiro, isto é, em alguns casos, ser pardo indicava que
antepassados teriam sofrido com a escravidão, mas já havia conquistado a liberdade ou
estavam próximos desse status.
No tocante ao Seridó, notamos nos registros a presença de pessoas registradas como
pardas e, ao mesmo tempo, com a condição25 de cativo. A título de exemplo, podemos
mencionar o registro do matrimônio do casal de pardos João e Ana, escravos do Tenente
Antônio Teixeira da Fonseca, morador na Fazenda Angicos, tendo o casamento ocorrido em
29/05/1822, às 8 horas, com celebração do Padre Manoel Teixeira da Fonseca, na Fazenda
Malhada da Areia (FGSSAS, LC 1821-1824, f. 13v/14). Assim, entendemos que, em regra, na
Freguesia do Seridó ser pardo não significava, necessariamente, ser livre ou estar próximo de
uma alforria.
O próprio José Gomes de Oliveira apresentado neste tópico era pardo, livre, e
proprietário de uma “escravinha crioula” de nome Joaquina, com idade de seis anos, como
constou em seu inventário. Ou seja, estamos diante de uma sociedade muito complexa, com
muitas hierarquias e mudanças acontecendo ao mesmo tempo. José, assim como todos nós, não
podia fugir do contexto em que sua existência se desenrolou. Sofreu, inclusive, com a epidemia
de cólera26 que foi comum à sua época e faleceu aos 52 anos desta doença, constando na lateral
do seu assento de óbito a iniciais “P.C.” (que cremos ser a abreviação de “Pardo Casado”).

24 Roberto Guedes é um escritor e pesquisador experimentado da temática da escravidão e mestiçagens, sendo


atualmente Professor Associado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Associado e Membro
Permanente do PPHR da UFRRJ, e membro colaborador do PPGHIS da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Seu livro publicado em 2008, “Egressos do Cativeiro: trabalho, família e mobilidade social (Porto Feliz, São
Paulo, c. 1798-c.1859)” partiu da sua tese de doutorado em História social, apresentada no ano de 2005, realizada
no programa de pós-graduação da UFRJ. Além deste livro, tem extensa publicação sobre temas relacionados ao
trabalho e à mestiçagem, sendo alguns dos mais recentes: “Filhos de brancos, bastardos e mamelucos em famílias
mestiças (São Paulo, séculos XVI e XVII)” (2017) e “Escravidão e mestiçagens: mamelucos, mulatos e alguns pardos
entre mil e um índios forros” (2023), que escreveu juntamente com Silvana Godoy.
25 As condições/condiciones são uma categoria fundamental para se compreender como se dava a “nomeação” das

pessoas. Por um lado, podiam ser confundidas com “estado” e significar boa ou má condição; se rico, pobre, nobre
ou plebeu (PAIVA, 2015). Porém, para os fins da presente pesquisa, temos que as condições jurídicas possíveis a
um indivíduo eram: livre, escravo e forro (ou liberto).
26 Conforme Alcineia Santos (2011) os relatórios provinciais indicavam que o Rio Grande do Norte sofreu com a

moléstia das bexigas e do sarampo desde 1856 a 1880, o Norte foi acometido com as duas maiores epidemias de
cólera.

28
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O propósito deste artigo, como apresentado anteriormente, era o de problematizar o uso
das qualidades pardo e parda e suas possíveis representações na Freguesia do Seridó, tema de
nossa investigação do mestrado, a partir de uma abordagem micro histórica. José Gomes de
Oliveira, o pai, Ana Maria de Jesus, a filha e José Gomes de Oliveira, o neto, nos ofereceram
através dos seus documentos a possibilidade de vislumbrar uma realidade histórica maior,
ainda que tenham ficado muitas indagações, sobre ser pardo no Seridó.
Neste sentido, a abordagem da Micro História nos permite reduzir a escala de
observação, focando os nossos estudos sobre três gerações, mas não apenas com o objetivo de
traçar fragmentos biográficos, porque através dessas trajetórias somos capazes de, do micro,
atingir o macro. Afinal, de acordo Giovanni Levi (2016), com estas análises podemos elaborar
perguntas diferentes que permitam uma maior compreensão da realidade da sociedade que
estudamos. Isto não quer dizer que pretendemos com estes esforços, necessariamente, recusar
as grandes narrativas, mas, ao contrário, perceber simplificações e lapsos a serem preenchidos,
com foco em fatos e pessoas que não foram consideradas em análises de caráter universal.
No caso da família de pardos Gomes de Oliveira, percebemos que era bastante numerosa
e alguns de seus membros, como foi a situação de José Gomes de Oliveira, o neto, acumulou
certo patrimônio inventariável. As trajetórias analisadas através dos cruzamentos de dados nos
mostraram que essas pessoas se aproximavam do mundo dos brancos, mas, como vimos, seus
casamentos aconteceram com pessoas igualmente qualificadas como pardas, e seus filhos
também, em geral, assim foram qualificados, quando não tinham a qualidade omitida.
Observamos também que, embora as pessoas estudadas fossem livres, ser pardo, no Seridó, não
indicava necessariamente uma vida longe do cativeiro.
Desse modo, observando a conjuntura, e outros casos27, claramente, esta qualidade
indicava que não eram pessoas consideradas brancas socialmente. Lançamos a hipótese que,
no caso dos Gomes de Oliveira, ser pardo podia estar atrelado à miscigenação, embora ainda
não possamos afirmar categoricamente a origem dos membros mais antigos.

27Como o caso já mencionado de Damiana Tavares e o pardo Manoel, analisado por Alda Medeiros (2022) e o do
índio Tomé Gonçalves casado com a parda Maria Egipciaca estudada por Helder Macedo (2011).

29
REFERÊNCIAS
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Revista on-line . 31 janeiro 2011. Disponível em:
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279f. Dissertação (Mestrado em História dos Sertões) - Centro de Ensino Superior do Seridó,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Caicó, 2022.

MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas famílias do Seridó. Brasília: Centro Gráfico do Senado
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30
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PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e
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SANTOS, Alcineia Rodrigues dos. O processo de dessacralização da morte e a instalação de


cemitérios no Seridó (séculos XIX e XX). 2011. 300 f. Tese (Doutorado em História) -
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SANTOS, Matheus Barbosa dos. Neste Mesmo Chão, Outros Passos: Indivíduos Não-Brancos nos
Sertões do Rio Grande (Ribeira do Acauã, Totoró, Séculos XVIII-XIX). Orientador: Helder
Alexandre Medeiros de Macedo. 2022. 195f. Dissertação (Mestrado em História dos Sertões) -
Centro de Ensino Superior do Seridó, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Caicó,
2022.

31
Capítulo III
ALÉM DE UM PERSONAGEM: A HISTÓRIA QUE RESIDE NO
SERTANEJO CHICO BENTO
DOI: 10.51859/amplla.soh683.1124-3
Damião Marcos Pereira Silva 1
Fábio Mafra Borges (Orientador) 2

1. INTRODUÇÃO
No ano de 1961, o quadrinista brasileiro Maurício de Sousa, para agregar dinâmica às
suas HQs, criou o personagem Chico Bento, um caipira paulista, que a princípio mais parecia
uma versão mirim do Jeca Tatu, personagem do escritor Monteiro Lobato. Segundo o
quadrinista, a inspiração para o aparecimento, em suas produções, de uma figura do interior de
São Paulo é devida ao seu tio-avô que o envolveu, quando criança, de interesse através das
histórias sobre vida no campo. Após o falecimento do tio-avô, as histórias seguiram sendo
contadas pela tia-avó, viúva do falecido, durante as visitas feitas por Maurício de Sousa à
propriedade rural de seus tios-avôs (Sousa, 2017, p. 90). Após a criação, a estreia de Chico
Bento, enquanto produção para ser comercializada, não demoraria muito para acontecer.
De acordo com Mauricio de Sousa, a primeira aparição do personagem caipira ocorreu
pela Coopercotia, antiga revista nacional que tratava de assuntos relativos ao mundo rural
brasileiro, de interesse dos paulistas envolvidos com a Cooperativa Agrícola de Cotia (Sousa,
2017, p. 90). No entanto, Chico Bento estreou nesta revista como um personagem coadjuvante
frente a outros dois personagens caipiras, por nomes de Hiro e Zé, responsáveis por serem os
verdadeiros protagonistas das tirinhas da Coopercotia no início do século XX. Atualmente, a
revista Coopercotia já não está mais em circulação, mas de acordo com o acervo do jornal Diário
da Noite (RJ), a estreia oficial de Chico Bento, enquanto um personagem de HQs, ocorreu no dia
13 de fevereiro de 1963. Posteriormente ao momento de sua estreia, foi possível averiguar
outras ocorrências da figura de Chico Bento em matérias publicadas pelos periódicos de O
Jornal (RJ), entre os anos de 1960 e 1974, e A Tribuna (SP), entre os anos de 1970 e 1979.
Em 26 de agosto de 1982, após dividir várias edições com os personagens titulares da
Turma da Mônica, Chico Bento conquista sua própria revista, nascia a Turma do Chico. Com a

1 Mestrando em História dos Sertões pelo Programa de Pós-Graduação em História do CERES/UFRN. Bolsista
CAPES. Email: damiaomarcos90@gmail.com
2 Docente do Departamento de História do CERES. E-mail: fabio.mafra@ufrn.br

32
criação da revista, o personagem do interior paulistano teve as suas narrativas aprofundadas e
as menções ao seu lugar social tornaram-se cada vez mais recorrentes, a ponto de percebermos
com mais nitidez que o personagem Chico Bento é resultado de uma construção histórica em
movimento e que dialoga com o conceito de sertão. Dito de forma simples, ao analisarmos as
nossas fontes, foi possível propor como hipótese central do nosso trabalho, a ideia de que o
personagem Chico Bento é fruto de uma série de transformações que historicamente puderam
produzir um efeito de adequação deste personagem para com seu público, de modo que sua
figura fosse conduzida a deixar de representar somente uma criança sertaneja a partir de um
estado de personagem figurante - para não dizer antagônico, frente a Hiro e Zé - até se tornar
um personagem protagonista de suas próprias histórias.
Foi lendo estas ditas histórias que chegamos à nossa pergunta central da pesquisa que
estamos desenvolvendo no mestrado: o que explica o êxito editorial do sertanejo Chico Bento,
personagem da Mauricio de Sousa Produções?! Portanto, baseado por toda essa historicidade
que carrega a imagem do personagem Chico Bento, nosso principal objetivo, com esta produção
acadêmica, é analisar de que forma as HQ’s da Mauricio de Sousa Produções construíram a
imagem dessa criança caipira e adaptaram às suas produções editoriais, trabalhando com um
personagem na condição de sertanejo, até que ele se tornasse uma figura protagonista, em
escala nacional e internacional, no mundo dos quadrinhos. Ao executarmos essa análise,
pensamos também sobre a relação entre o personagem Chico Bento e o contexto histórico de
sua criação, entre os anos de 1961 e 1964, a partir de duas tirinhas de jornais, republicadas,
pela Mauricio de Sousa Produções, na revista Chico Bento 50 anos. Ao tentarmos compreender
o personagem Chico Bento e a sua trajetória durante o regime ditatorial brasileiro buscaremos
discutir, sobretudo, a imagem sertaneja que as histórias da Maurício de Sousa Produções
difundiram sobre o que de fato seria uma criança sertaneja, ao longo de algumas histórias em
quadrinhos publicadas por esta empresa.
Portanto, o objetivo do presente artigo reside em entender de forma mais detalhada
como a empresa Mauricio de Sousa Produções se posicionou politicamente durante o período
ditatorial. Isto é, através de personagens como o sertanejo Chico Bento, a MSP sofreu represália
em suas produções ou cresceu ainda mais o seu patrimônio durante esse período, a partir do
talento para fazer negócios de Maurício de Sousa em consonância com seu time empresarial?!
De acordo com a intelectual Thaïs Flores Nogueira Diniz, a Mauricio de Sousa Produções foi a
editora brasileira de revistas em quadrinhos que mais vendeu HQ’s durante os anos setenta
(Diniz, 2015, p. 90). Como Mauricio de Sousa conseguiu crescer tanto com uma profissão
artística no período ditatorial? Logo, a falta de respostas aprofundadas sobre essas e outras

33
perguntas representam uma série de lacunas que dificultam não só o estudo da história da
Mauricio de Sousa Produções, mas também a análise do personagem Chico Bento, com o qual
trabalhamos. Por essa razão, convém observarmos o caminho do êxito editorial do personagem
Chico Bento a partir de um olhar crítico sobre o contexto histórico que atravessou a construção
do nosso personagem entre os anos de 1961 e 1964.

2. A HISTÓRIA QUE NÃO ESTÁ NOS QUADRINHOS


Francisco Antônio Bento, mais conhecido como Chico Bento, é famoso por suas
aventuras na roça. Ele sempre encantou o seu público pela sua vida simples no campo,
roubando goiabas do sítio do Nhô Lau, nadando na lagoa com seus amigos, passeando com a
sua namorada Rosinha e, até mesmo, tendo dor de cabeça durante as aulas com a dona Marocas,
sua professora. Não é à toa que para alguns apreciadores da editora Mauricio de Sousa
Produções, ele é o personagem mais querido dos leitores da Turma da Mônica. Isto fez com que
ganhasse seu núcleo próprio de personagens, que deram vida a “A turma do Chico Bento”. De
acordo com a editora MSP, ele foi construído inspirado sobretudo em lembranças que Mauricio
de Sousa tinha da sua infância no interior. A versão apresentada pelo próprio Mauricio de Sousa
nos leva a crer que assim como o personagem Chico Bento, o seu tio-avô nadava em rios, corria
em campinhos, roubava frutos dos pomares, e brincava com seus amigos em Santa Isabel (SP).
Contudo, além de seu tio avô, Mauricio de Sousa idealizava o personagem Jeca Tatu ao pensar
nas referências necessárias para criar o seu personagem do interior.

Um dois anos antes, vi que a Cooperativa Agrícola de Cotia tinha uma revista. Bati à sua
porta e ofereci uma historinha de página inteira que se passava na zona rural. Achei que
combinava, eles gostaram da ideia e então criei uma história cujos protagonistas eram
Hiroshi e o Zezinho, mais tarde rebatizados para Hiro e Zé da Roça. O Chico Bento
aparecia como coadjuvante, o bobão com o qual eles aprontavam. Achei que estava mal
aproveitado, o Chico merecia mais, tinha potencial para se tornar uma versão mirim do
Jeca do Tatu, famoso personagem de Monteiro Lobato. Fiz algumas melhorias e assim
ele ganhou a própria tirinha nos Diários. (Sousa, 2017, p. 90)

Foi assim que em 1963, o personagem Chico Bento estreou na sexta tira do Hiro e Zé,
publicada na revista Coopercotia, hoje fora de circulação. No acervo do jornal Diário da Noite
encontramos a tira que marcou o surgimento oficial do personagem, datada de 13 de fevereiro
de 1963. Nela, o personagem Zé diz que o carnaval está chegando e pergunta a Hiro do que ele
iria se fantasiar, e qual seria a sua fantasia. Hiro responde que iria se fantasiar de samurai. Zé
continua o diálogo e diz que iria se fantasiar de gaúcho. Então, quando perguntam ao terceiro
personagem que aparece na tirinha, ele responde: “Ahm…Acho que vou me fantasiar de
caipira!”. Nascia no mundo dos quadrinhos o personagem Chico Bento, e a partir de então sua

34
figura passaria a participar de várias outras tiras de Hiro e Zé, que eram os personagens
principais na época. Ou seja, Chico Bento foi construído apenas como um personagem
coadjuvante com o adjetivo de bobão, com o qual Hiro e Zé aprontavam, zombavam e se
aproveitavam.
Imagem 1: Chico Bento 50 anos (ed. Panini), de 2012.

Porém, como Chico Bento teve grande aceitação por parte do seu público, Mauricio de
Sousa entendeu que se tratava de um personagem com bastante potencial e que deveria ocupar
um lugar de mais destaque ser melhor aproveitado. Após algumas melhorias no personagem, a
primeira história na qual Chico Bento foi o protagonista foi publicada pelos Diários Associados
no ano de 1964. Na tirinha, Chico Bento diz ao Zé da Roça que estava fugindo de casa para morar
com a sua avó, pois tudo o que a mãe dele cozinhava, para as refeições de sua família, era
estragado por excesso de cebola. Ouvindo o lamento de seu amigo, o personagem Zé pergunta
o que ele estaria levando naquela bolsa que carregava. Respondendo a Zé da Roça, Chico Bento
diz que a sua mãe lhe pediu para entregar aquela bolsa somente a sua avó. Apesar de não ter
certeza sobre a mercadoria que carregava, Chico Bento conclui o diálogo dizendo que achava
que eram batatas. Ao final, a história nos mostra a ingenuidade do Chico Bento, pois a sacola
que carregava, a pedido de sua mãe, estava cheia de cebolas.
Ao longo das histórias nas quais Chico Bento é o protagoniza, é perceptível que existe o
interesse em repassar ao público uma maneira simples de ver a vida e amar a natureza. Assim,
Chico Bento foi conquistando cada vez mais apreciadores e depois de várias participações nos
HQs da Mônica e do Cebolinha, conquistou a sua própria revista, que estreou em 26 de agosto
de 1982. Contudo, o que suas primeiras aparições no mundo dos quadrinhos não nos deixam
perceber, foi por qual razão Mauricio de Sousa decidiu criar esse personagem tal como ele se
apresentou em suas primeiras tirinhas, ao longo dos anos sessenta no Brasil.

35
Imagem 2: Chico Bento 50 anos (ed. Panini), de 2012

É de suma importância lembrarmos que o ano de 1960 marcaria o fim de um período de


alto crescimento da economia brasileira, fruto da política nacional desenvolvimentista do
governo Juscelino Kubitschek. O Brasil estava em ritmo superior a qualquer outro país latino-
americano, ficando atrás apenas de países europeus, como a Alemanha, que havia se
recuperado rapidamente após a derrota na Segunda Guerra Mundial. Quando pensamos no
contexto da década de sessenta do século XX, é imprescindível lembrarmos que algumas
consequências geopolíticas da Segunda Guerra Mundial pairavam no ar, de modo a tocar o
Brasil. Nesse momento histórico mundial, tínhamos o nome de Jânio Quadros (PTN) como
nosso representante presidencial (Queler, 2019). Jânio Quadros foi eleito democraticamente
através do voto popular, sendo o sucessor de JK. Durante o seu breve governo, entre 1960 e
1961, seu vice era João Goulart (PTB).

36
Na mesma época em que se desenrolaram esses eventos, Mauricio de Sousa tinha sido
contratado recentemente pelo jornal Folha de São Paulo. Desde quando era repórter policial no
Deic, Maurício de Sousa conviveu com artistas, sendo três de seus amigos policiais desenhistas,
que tinham seus trabalhos publicados na Zaz Traz. Certa vez, quando se reencontraram na
Editora Continental, Lyrio Aragão, Gedeone Magola e Waldir Igayara enfatizaram a qualidade
artística de Mauricio de Sousa, e o convidaram para participar da Associação de Desenhistas de
São Paulo, criada no início da década de 1950 (Sousa, 2017). Essa associação, através da reunião
de desenhistas no edifício Martinelli, buscava promover uma maior valorização das produções
artísticas nacionais frente a produções estrangeiras. Após participar de algumas reuniões da
Adesp e Jânio Quadros assumir a presidência da república em 1961, Mauricio de Sousa aderiu
a causa, chegando a ocupar o posto de presidente da associação:

O ambiente político nunca tinha sido tão favorável à nossa causa. Em Janeiro de 1961
Jânio Quadros assumira a Presidência da República prometendo atender nossas
reivindicações. Fomos a Brasília levar a nossa petição. Não demorou muito para que um
assessor de Jânio nos procurasse em São Paulo. Nesse encontro, pediu que a entidade
fizesse um estudo sobre o mercado de quadrinhos, mostrando o percentual de histórias
estrangeiras e quanto o país gastava em dólar para comprar esse material. Jânio iria
usar esses números para defender o sistema de cotas que ampliaria a presença nacional
no mercado”. (Sousa, 2017, p. 73).

No entanto, tomando conhecimento desses fatos e temendo as possíveis retaliações por


parte da Doutrina de Segurança Nacional, Moacir Correa, o redator chefe do jornal Folha de São
Paulo, decidiu convocar Mauricio de Sousa para uma reunião particular. Após interrogá-lo
sobre a sua posição política e questionar sobre a sua inserção na Adesp, a reunião chegaria ao
seu desfecho de uma forma inesperada para o desenhista recém contratado (Sousa, 2017). De
acordo com os relatos de Mauricio de Sousa, percebendo o perigo que representaria ter o seu
nome como um dos seus funcionários, Moacir Correa decidiu demiti-lo do jornal Folha de São
Paulo.

A notícia se espalhou. O Estadão passou a se referir a mim como comunista. Na Folha,


deixei de existir. Imediatamente entrei numa lista negra da imprensa. Nenhum jornal
ou revista de São Paulo poderia usar meus desenhos. Pararam de atender minhas
ligações. Se falavam comigo, era apenas para dizer que não iam comprar mais nada.
Virei um proscrito. Depois de perder o emprego, agora eu perdia qualquer possibilidade
de ganhar dinheiro como desenhista na capital. (Sousa, 2017, p. 74).

É no estado de um pai desempregado e sem perspectivas de conseguir um outro


emprego no campo artístico que Mauricio de Sousa, no dia 25 de agosto de 1961, recebe a
notícia que Jânio Quadros renuncia repentinamente ao cargo de presidente da República
(Sousa, 2017). Com a sua renúncia, João Goulart assumiria a sua cadeira, se tornando o vigésimo
quarto presidente do Brasil, governando este país entre 1961 a 1964. Não conseguindo lidar

37
com os conflitos políticos e ideológicos do seu tempo, tal como o governante Jânio Quadros,
João Goulart renunciaria ao seu cargo de presidente e os militares assumiriam o poder por meio
de um golpe de estado, concretizando os interesses da Doutrina de Segurança Nacional,
instituindo assim ditadura militar no país.
De acordo com o professor de ciência política Nilson Borges (2003), a história tem
demonstrado que o exército brasileiro participou da maioria dos nossos processos de crises
políticas, incluindo os golpes. Na década de sessenta, setores militares buscaram reforçar cada
vez mais a sua autoridade pública, de modo a ser eficiente na neutralização de movimentos
sociais, especialmente nos anos de 1950, com o início da industrialização brasileira e o processo
de urbanização. Para alguns grupos sociais da nossa sociedade, ainda hoje permanece como
uma boa solução a ideia de que é dever dos militares salvarem o país (Borges, 2003). A criação
da Escola Superior de Guerra demonstrava que em nosso país, havia a instauração de um
discurso que difundia um medo coletivo com relação ao comunismo. Mas quando começou de
fato a propagação da ideia que o Brasil deveria se preocupar com uma segurança nacional?
Nilson Borges nos responde:

Faz-se mister assinalar que já em 1930 aparecia nos discursos militares, principalmente
nas palavras do general Góes Monteiro, a expressão segurança nacional. Segundo ele, o
Estado deveria "estabelecer, em bases sólidas, a segurança nacional, com o fim,
sobretudo, de disciplinar o povo a obter o máximo de rendimento em todos os ramos
da atividade pública, adotando· os princípios da organização militar, contanto que seja
isentada do espírito militarista" (Trevisan, 1985, p. 38). Na realidade, o conceito
moderno de Segurança Nacional somente vai aparecer após a segunda grande guerra,
mas nos anos 1930 já havia uma preocupação dos militares brasileiros em formar uma
mentalidade que sobreponha a tudo os interesses da pátria. (2003, p. 20)

A Doutrina de Segurança Nacional se instituiu mundialmente a partir dos Estados


Unidos, durante a guerra fria. Na lógica da Doutrina de Segurança Nacional, o controle de
informações e a violência militar produzem ordem no Estado, neutralizando o comunismo.
Obviamente, a Doutrina de Segurança Nacional Estadunidense visava uma aliança
interamericana, promovendo um maior controle geopolítico dos Estados Unidos na América
Latina (Borges, 2003). Como já afirmamos acima, a guerra a partir do conflito ideológico com o
comunismo poderia se dar tanto internamente como externamente. No caso do Brasil, uma
guerra ideológica interna já atravessava este país, e antes de 1964, segundo os que promoveram
o golpe de 1964, uma resposta se fazia necessária em decorrência de uma possível revolução
comunista, que para eles já estaria em curso a partir da posse de João Goulart, alinhado à
esquerda.
No Brasil, a Escola Superior de Guerra promovia cursos para diversos segmentos sociais,
onde os grupos alinhados à direita poderiam aprender a exterminar o comunismo do país. Os

38
cursos eram sediados no Rio de Janeiro, sob a busca pelo binômio de segurança e
desenvolvimento. A Doutrina de Segurança Nacional chegou a ser aplicada até mesmo nas
escolas, através de disciplinas como Moral e Cívica, Organização Social e Política do Brasil e
Estudos de Problemas Brasileiros (Borges, 2003). Quando estudamos a construção do
personagem Chico Bento a partir desse recorte temporal, percebemos que não só ele, mas todos
os outros personagens da Turma da Mônica, que tinham Mauricio de Sousa como seu pai,
buscavam fazer com que este artista tivesse uma outra oportunidade no mercado de trabalho
artístico brasileiro, por meio de uma segunda contratação pelo jornal Folha de São Paulo, que
decidiu aceitar as publicações de Mauricio de Sousa por mais uma vez. E para isso, uma escolha
política deveria ser tomada, de maneira que Mauricio de Sousa buscasse se distanciar do seu
passado, agarrando de vez essa outra oportunidade de trabalho.

Não precisei de meio segundo para responder ao José Geraldo que não queria nem ouvir
falar daquilo, pois eu jamais colocaria ideologia nas minhas histórias. Nunca fui de
esquerda ou de direita, assim como meus personagens. Na infância, quando a polícia
destruiu a gráfica da barbearia do meu pai, eu já tinha aprendido que o engajamento
político podia gerar problemas sérios. A lição definitiva veio na presidência da Adesp,
que me fez perder o emprego na Folha e ser banido da imprensa. No futuro, sobretudo
a partir de 1964, os críticos diriam que os personagens da turminha eram alienados,
que o mundo podia cair que eles não assumiriam posições. Sim, é isso mesmo. Eles são
crianças, não fantoches ideológicos. (Sousa, 2017, p. 17)

Então, entre o bloco alinhado à esquerda, e o bloco alinhado à direita, Maurício de Sousa
procurou seguir o trem da história, como afirmaria categoricamente no programa Roda Vida
em 1989, sustentando o seu discurso ao longo de toda a sua carreira no mundo dos quadrinhos.
Mesmo recebendo outras propostas da Adesp, para retornar a liderança do movimento de
nacionalização dos quadrinhos, Mauricio de Sousa não voltou atrás, condenando os seus
personagens a uma eterna fuga do comunismo, visando sua carreira pessoal. O personagem
Chico Bento foi construído em 1961 permeado por um contexto histórico hostil para com o
campo artístico e demasiadamente bipolar, entre os civis brasileiros.
Para Mauricio de Sousa, não se posicionar politicamente frente à ditadura militar no
Brasil, sobretudo a favor de movimentos sociais promovidos pela esquerda, se mostrou como
uma solução para os seus empreendimentos dentro do mercado da indústria de quadrinhos, ao
longo da década de sessenta. Portanto, é possível concluir que a atitude empresarial de
Mauricio de Sousa em despolitizar e distanciar seus personagens de posicionamentos que
pudessem ser interpretados como comunismo, cooperou para a construção de um maior
público leitor do personagem Chico Bento, resultando em seu êxito editorial. A neutralidade e
o distanciamento do personagem Chico Bento a respeito de assuntos sociais o fizeram vender
histórias em quadrinhos aos opositores das pautas sociais à esquerda, os quais em comparação

39
aos apoiadores das reivindicações sociais promovidas por este grupo político no Brasil,
detinham um maior poder aquisitivo.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por mais que não seja tão nítido para os apreciadores de quadrinhos em geral, foi
observado que todo esse apreço que construímos em torno do nome de Mauricio de Sousa nos
conduziram a não perceber que a sua empresa também faz parte de um sistema que alimenta a
indústria cultural brasileira. Procurando ser franco em nossas palavras sobre o cartunista
Mauricio de Sousa, por meio de nosso texto convidamos os nossos leitores para um exercício
importante, isto é, tirá-lo de todo e qualquer pedestal por um momento. A quebra dessa imagem
endeusada que se tornou a pessoa de Maurício de Sousa para os quadrinhos nacionais, foi um
passo indubitável para uma boa análise crítica a respeito das suas produções para o universo
HQ, o que inclui a presente análise sobre o personagem Chico Bento.
Obviamente, desfazer todo esse culto em torno de Mauricio de Sousa requer perceber
um detalhe importante, ou seja, reconhecer que acima de tudo Mauricio de Sousa é um
empresário. Se hoje não dispomos de muitas informações a respeito da vida de Mauricio de
Sousa, da sua empresa, e de alguns de seus personagens, isso é fruto de sua postura enquanto
um exímio homem de negócios. Mesmo nos dias de hoje, onde as mídias facilmente desbravam
e desconstroem as privacidades de pessoas públicas, Mauricio de Sousa ainda é uma pessoa da
qual nós sabemos muito pouco. Além disso, o pouco que sabemos sobre a sua pessoa provém
de seu próprio olhar em consonância com seu departamento de marketing, que recentemente
começou a publicar algumas obras sobre o fundador da Mauricio de Sousa Produções, bem
como de seus principais personagens.
Portanto, através do fragmento de uma pesquisa em fase de construção, promover um
outro olhar a respeito da figura sertaneja, buscando assim entender que se existe uma imagem
em nosso inconsciente quando pronunciamos esse substantivo, é em decorrência de uma
construção histórica que nos foi colocada, de modo que não conseguimos visualizar algo além
do que um personagem alheio a questões políticas como Chico Bento, representando os
sertanejos em histórias em quadrinhos. O exercício de escrever sobre histórias em quadrinhos
e sertões, me levaram a crer que estamos em outros tempos, onde o silêncio é ouvido, e não
ignorado enquanto agente histórico. Então, se pudéssemos deixar uma mensagem para os
nossos leitores para quando os seus olhos estiverem próximos das referências deste trabalho,
nós poderíamos concluir com a seguinte proposição: não se deixe levar pelas imagens que

40
provém dos centros, pois a partir da história, é possível compreender as entrelinhas que
retratam as margens, até mesmo através de meras páginas de um gibi.

REFERÊNCIAS:
BORGES, Nilson. A Doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA,
Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (org.). O Brasil Republicano: o tempo da ditadura -
regime militar e movimentos sociais em fins do século xx. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003. Cap. 1. p. 13-43.

DINIZ, Thaïs Flores Nogueira, and Camila Augusta Pires de Figueiredo. História em quadrinhos
no Brasil: traduzindo a História. Blucher Arts Proceedings 1.1 (2014): 87-101.

FERREIRA, Jorge. O governo Goulart e o golpe civil-militar de 1964. IN: FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano - Vol. 3 - O tempo da
experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964: Terceira
República (1945-1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

MEDEIROS, Leonilde Servolo de. O regime empresarial-militar e a questão agrária no Brasil. IN:
FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano. Vol 4. - O
tempo do regime autoritário: ditadura militar e redemocratização - Quarta República (1964-
1985). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

QUELER, Jefferson José. O governo Jânio Quadros: entre a política e o personalismo. IN:
FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano - Vol. 3 - O
tempo da experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964:
Terceira República (1945- 1964). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

SOUSA, Mauricio de. Mauricio: a história que não está no gibi. Rio de Janeiro:
GMT, 2017. 300 p. SOUSA, Mauricio de. Mauricio: o início. São Paulo: MWF/Martins Fontes,
2015.

SOUSA, Mauricio de. Memórias do Mauricio. Barueri: Panini Books, 2016. 210 p.

41
Capítulo IV
O CALDEIRÃO DOS MITOS: O REPRESENTAR SERTANEJO
ATRAVÉS D’O CICLO FOLCLÓRICO DO BOM JESUS
CONSELHEIRO (1950)
DOI: 10.51859/amplla.soh683.1124-4
Arthur Ebert Dantas dos Santos 1
Joel Carlos de Souza Andrade (Orientador) 2

1. INTRODUÇÃO
Diferentemente do que o senso comum costuma reproduzir, o Sertão, ou os muitos
Sertões, não se resumem, apenas, na região Nordeste do Brasil. Muito além de um espaço físico,
palpável, os Sertões3 transpassam a mera definição geográfica de espaço4 a partir do momento
em que estes podem ser considerados, e organizados, através das inúmeras práticas, ritos,
discursos, sujeitos, dizibilidades e visibilidades que se encontram, se misturam e, também, se
afastam. A costumeira prática de associar a seca, estiagem, pobreza, miséria, aos Sertões, foi
desempenhada durante muito tempo através dos desdobramentos da campanha, indireta, de
“Criação do Nordeste5”, empreendida por forças e instituições detentoras do poder discursivo
advindas das regiões Sul e Sudeste do Brasil, em meados das décadas de vinte e trinta do século
XX.
A referida campanha mobilizou, e se aproveitou de movimentos culturais, ações de
natureza estatal, históricas condições climáticas, além de discursos e figuras, consideradas
estereotipadas, para criar um espaço, de natureza simbólica, que sintetizasse em fronteiras
físicas, perfis sociais e práticas culturais uma vivência, uma sensibilidade, impossível de ser
condensada. Tal criação, o Nordeste, dispondo de tamanho valor simbólico, permeia

1Mestrando em História dos Sertões pelo Programa de Pós-Graduação em História do CERES/UFRN. Bolsista
CAPES. E-mail: arthur.ebert40@gmail.com.
2Docente do Departamento de História do CERES e do Programa de Pós-Graduação em História do CERES/UFRN,

Mestrado em História dos Sertões. E-mail: joel.andrade@ufrn.br.


3 Considerando a polissemia de alguns termos, isto é, a existência de mais de um significado para uma mesma

palavra, neste artigo, os conceitos estarão em itálico sempre que seu sentido for aquele utilizado por algum campo
do saber.
4 Enquanto discussão comum do campo da Geografia, neste artigo o sentido de espaço estará relacionado às

simbologias, práticas, ritos e principalmente representações características de uma região ou povo.


5 Abordado pelo Historiador Durval Muniz Albuquerque Jr. em sua obra A Invenção do Nordeste e outras artes

(1999), a ideia de uma “Criação do Nordeste” parte do princípio de que a região Nordeste, até então referida como
região Norte do Brasil, não existia até meados das décadas de 20 e 30. Partindo de um Discurso de Alteridade, esta
teria sido criada a partir de uma campanha mobilizada por diversos setores da sociedade brasileira.

42
culturalmente o imaginário popular da sociedade brasileira através das inúmeras produções
literárias, acadêmicas, musicais e artísticas.
Esse espaço, ainda hoje considerado enquanto lugar de disputa, dado os inúmeros grupos
que disputam seu poder político e simbólico, é berço de inúmeras faces da sociedade brasileira,
sendo a mais enigmática e que é mais referida ou associada quando se fala em Nordeste, a do
sertanejo. Entretanto, ainda que em uma vaga conceituação possa-se definir este último
enquanto indivíduo que habita os sertões, faz-se necessária uma análise mais profunda acerca
das representações, ritos e práticas que compõem o processo de criação dessa imagem do
“homem dos sertões”. Diante desta inquietação, o presente artigo pretende-se como um sucinto
estudo acerca da “maneira de representar” o sertanejo a partir da obra O Ciclo Folclórico do Bom
Jesus Conselheiro (1950) do professor e pesquisador José Calasans.
Compreendendo a magnitude de tal proposição, demasiada complexa e extensa para ser
abordada de maneira holística em uma única produção, assim como a imensa variabilidade de
perfis que podem sem compreendidos enquanto sertanejos, o referido estudo limitar-se-ia à
comparação sociológica e cultural do indivíduo que habita os sertões nordestinos com o
surgimento, ou nascimento, do chefe-mor do Arraial de Canudos, Antônio Vicente Mendes
Maciel, ou apenas Antônio Conselheiro na referida obra.
A escolha pelo Conselheiro está baseada na recorrente prática de ser representado
enquanto um dos dois perfis simbólicos que, na lógica dialética estabelecida pelo sociólogo
Eduardo Diatahy, representariam o sertanejo, sendo estes o Cangaceiro e o Beato. Abordaremos
assim, o campo religioso dos Beatos. Dessa forma, o mote principal desta pesquisa leva em
consideração a centralidade que a Religiosidade Popular ocupa no imaginário cultural dos
grupos que habitam os sertões, estando esta presente no cotidiano de tais grupos.

2. A REPRESENTAÇÃO CONSELHEIRISTA
Com o findar da Santa Guerra deflagrada em Canudos, quando os últimos corpos
estavam sendo retirados, assim como as degolas sofridas por grande parte dos “canudenses6”
remanescentes, se iniciaria o processo de ressignificação da imagem do líder espiritual do
Arraial. A representação de Antônio Conselheiro, aquele que por muito tempo perambulou
pelos sertões do norte do Brasil arrebatando multidões com suas pregações, construindo
Igrejas e Cemitérios, defendendo a então caída Monarquia e atacando a recém-proclamada
República, foi submetida a complexa dinâmica de folclorização, onde, através da ação de

6Conceito utilizado pelo autor para se referir aos habitantes do Arraial de Canudos. De acordo o Oxford Languages
(2023) pode ser referenciado como “relativo a Canudos/BA ou o que é seu natural ou habitante”.

43
rememoração por parte dos sertanejos que sobreviveram à Guerra de Canudos, intelectuais que
a estudaram, e discursos difundidos por entre Caatinga a dentro, sofreria a infusão de
elementos e características que, originalmente, não pertenciam ao indivíduo primordial.
Nascido em 1830, no município de Quixeramobim, interior do Estado do Ceará, Antônio
Vicente Mendes Maciel viveu uma vida que não se diferenciava muito daquela que era comum
ao homem que habitava os sertões. Dada as condições econômicas de sua família, seu pai,
Vicente Mendes Maciel, foi um conhecido comerciante naquela região, o jovem Antônio Maciel
teve acesso a uma rica instrução custeada por seus progenitores que desejavam a carreira de
sacerdote para o filho. Recusada a proposta de seus pais, Antônio Vicente Mendes Maciel
passaria pelas mais diversas situações que o levariam a se transformar no chefe-mor do Arraial
de Canudos. Com grande impacto em sua vida podemos citar a morte de seu pai, a falência do
comércio familiar, a traição e o abandono de sua esposa. Tais acontecimentos contribuíram com
a decisão do jovem Conselheiro de peregrinar pelos sertões do Norte buscando catequizar e
pregar a palavra de Deus, onde, posteriormente, através de tal motivação religiosa, o mesmo
fundaria o Arraial de Canudos com a ajuda de seus fiéis seguidores, contagiados pelas pregações
do Conselheiro.
Ainda durante o combate contra a República, inúmeras foram as imagens construídas e
propaladas pela mídia que objetivavam produzir um único Conselheiro. Um indivíduo que
reunisse características que pudessem ser utilizadas pelos jornais para justificar o escabroso, e
descomunal ataque do Exército contra um simples ajuntamento de sertanejos no interior do
Estado da Bahia. Fanático, sebastianista, monarquista, místico, religioso, os títulos arrendados
pelo chefe de Canudos aumentavam a cada nova edição especial dos jornais, como é o caso dos
periódicos O Paiz e a Gazeta da Tarde7, perdurando, inclusive, após sua morte e consequente
derrota dos “canudenses” frente os muito bem municiados soldados republicanos. Essa
permeação dos “muitos Conselheiros” no imaginário popular da sociedade brasileira será
analisada de maneira exaustiva, principalmente em meados das décadas de 40, 50 e 60, dado o
crescimento de interesse nas pautas relativas ao Folclore brasileiro.
Considerado como um dos maiores pesquisadores sobre a Guerra de Canudos e seus
personagens, o historiador, advogado e escritor José Calasans Brandão da Silva publicou no ano
de 1950 a obra O Ciclo Folclórico do Bom Jesus Conselheiro, onde, através da criação de três

7A escolha e Análise Discursiva sobre tais jornais faz parte da lógica empreendida na seguinte obra: SANTOS,
Arthur Ebert Dantas dos. Entre Canhões, Cruzes e Palavras: representações da Guerra de Canudos na imprensa
do Rio de Janeiro (1896-1897). Monografia (Trabalho de conclusão de curso – Licenciatura em História) –
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Mossoró, 2021.

44
etapas, ou ciclos, o autor abordou sobre a construção dos inúmeros perfis sociais e simbólicos
associados ao Antônio Conselheiro partindo da análise de discursos de populares e intelectuais,
as chamadas peças folclóricas. Em suas três etapas, respectivamente, a Fase do Apostolado, a
Fase da Campanha e a Fase do Messianismo-Conselheirista, Calasans se utilizou das narrativas
referentes aos feitos e acontecimentos que permearam a vida de Antônio Maciel buscando
analisar e demonstrar de que maneira tais representações e apreensões advindas destes
eventos contribuíram com a construção do Ciclo Folclórico. Naquele momento, tal obra foi
considerada como inovadora no campo de estudos sobre Canudos ao considerar que grande
parte das obras publicadas sobre o assunto tratou, principalmente, sobre os acontecimentos e
a linha cronológica da Campanha, deixando, muitas vezes, os participantes em segundo plano.
Ainda sobre a obra de José Calasans, é interessante denotar que, ao trazer a discussão
para o campo do Folclore, o autor permite assim a inclusão das inúmeras representações do
Conselheiro de Canudos como imagens que compõem o imaginário cultural da sociedade
brasileira e, principalmente, dos, até então, sertões do Norte do Brasil 8. Tal possibilidade de
enriquecimento do Folclore Nacional considera o cenário intelectual das décadas de 40 e 50
quando as discussões sobre o assunto estavam em alta puxadas por pesquisadores como
Câmara Cascudo que se utilizaram de tal campo para contribuir com a cultura brasileira através
da “institucionalização” de mitos, lendas e estórias típicas de cada região. A ideia de utilizar o
Folclore enquanto elemento de “enriquecimento cultural nacional9” é corroborada pelo
historiador Albuquerque Jr. (1999, p. 92) quando este afirma que: “O folclore seria um elemento
de integração do povo nesse todo regional. Ele facilitaria a absorção dessa identidade regional
pelas camadas que se buscavam integrar à nova sociedade em gestação”.
“Elemento de integração”, “identidade regional”, termos que se relacionam
principalmente quando se leva em consideração a capacidade de se atribuir sentido, práticas,
imagens, representações a determinado povo ou grupo. A exploração das múltiplas identidades
do Conselheiro por Calasans, principalmente através da análise de discursos com tipologias
diferentes proporciona a possibilidade de pensar a representação do sertanejo nordestino a
partir dos elementos e costumes que foram atribuídos ao Antônio Conselheiro. É a identificação
do singular através do desmanche do plural. Passemos à análise.

8 Importa ressaltar que até o início da década de 20 do século XX, a região que atualmente é denominada de
Nordeste do Brasil era referenciada enquanto Região Norte.
9 Ainda da obra A invenção do Nordeste e outras artes (1999), a citada oração refere-se às discussões folclóricas

que ganharam espaço em meados das décadas de 40 e 50 do século XX no Brasil. Àquela altura, os principais
estudiosos do Folclore consentiam em afirmar que a construção e manutenção do Folclore de um país contribuía
para o fortalecimento de sua cultura.

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3. A REPRESENTAÇÃO SERTANEJA
De acordo com o sociólogo Eduardo Diatahy B. de Menezes (2012), a linha de
representação do sertanejo nordestino persiste sobre uma lógica dialética, quase que
maniqueísta, onde, existem dois lados que juntos compõem o indivíduo que habita os sertões.
Nessa lógica, o primeiro lado seria o do Cangaceiro, o outro, em oposição ao primeiro, seria o
do Beato, ou religioso. Dois lados de uma mesma moeda, o Bem e o Mal. Esta linha de raciocínio,
intitulada pelo Diatahy enquanto Dialética do Rifle e do Rosário, é bastante referenciada, ainda
que não com este conceito, em diversos estudos, representações e comparações.
A presença do Sagrado e do Profano permeiam o imaginário popular da sociedade
brasileira sempre que nomes como o de Lampião e o de Padre Cícero são citados. Logicamente,
tal Dialética foi mais referendada, no que tange a sua aplicação empírica, durante os séculos XIX
e XX, período em que os Movimentos Messiânicos e o Cangaço ocorriam com mais intensidade
no sertão nordestino. Ainda que esta dualidade não tenha ocorrido de fato, pelo menos não fora
do campo simbólico, as representações criadas durante tal período contribuíram para a fixação
da imagem do sertanejo ora cangaceiro, ora beato. Este, de seu nascimento até sua morte,
apenas poderia se enquadrar em um desses padrões, não existiria outro caminho a ser seguido.
Sendo neste ponto que entra o Conselheiro, que por sua vez decidiu seguir o caminho dos
Beatos.
A religiosidade, principalmente a dita popular10, está presente na maior parte da vida
dos sertanejos. A expressão da fé sertaneja acontece em diversos momentos do dia a dia destes
indivíduos, sendo uma de suas principais práticas a penitência, o fim do sofrimento e a busca
pela salvação no pós-morte. Em sua obra Cangaceiros e Fanáticos (1963), o marxista Rui Facó
afirma que, dado contexto de intensa miséria, aliada a fome, doenças e outras condições de
extremo sofrimento, os sertanejos se apegavam a religião visando alcançar os louros da vida
eterna. Entretanto, grande parte destas práticas de culto ao sagrado eram feitas no íntimo de
suas casas.
Uma das principais problemáticas existentes, no que tange a expressão e auxílio
religioso para com a população pobre ainda no século XX, é a ausência de capelas, igrejas e
templos no interior dos Estados que pudessem ser frequentados pelos camponeses. Os
sertanejos deveriam recorrer às rezas, ritos e orações popularmente difundidas, ou se

10O termo aqui refere-se à dicotômica relação entre Cultura Popular e Cultura Erudita. Para um melhor
entendimento, ver as obras: GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.;
THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em Comum: Estudo sobre Cultura Popular Tradicional. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988.

46
aproveitar da passagem de freis, beatos e padres quando da passagem destes devido às Missões.
Abrindo assim margem para a atuação de indivíduos que, mesmo sem ter qualquer tipo de
conexão oficial com a Igreja Católica, eram bem acolhidos pela população dado o grau de
conhecimento que estes detinham sobre a ritualísticas sacerdotal. Como exemplo deste tipo de
indivíduo, temos Antônio Conselheiro. Consideremos a seguinte citação:

Compreende-se por que naquele cenário de dificuldades e de desesperança dos


desafortunados, e à medida que se adensa, nos sertões, o contingente demográfico,
tenham surgido pregadores religiosos-místicos, cada vez mais populares, a partir de
meados do século XIX, desde o Ceará até a Bahia, em todo o sertão Nordestino.
(Freixinho, 2003, p.65)

Como citado anteriormente, Antônio Conselheiro representa um dos lados da Dialética


do Rifle e do Rosário, sendo o lado do religioso, do místico, do Beato. Dessa forma, representar
o sertanejo a partir da vivência e imagem que o Conselheiro simboliza é tarefa possível.
Partindo dos Ciclos Folclóricos apresentados por Calasans, pode-se relacionar as experiências e
elementos que relacionam os indivíduos que habitam os Sertões ao errante chefe do Arraial de
Canudos. Comecemos com a Fase do Apostolado.
A Fase do Apostolado refere-se, principalmente, aos primeiros momentos de vida e de
errância do Conselheiro. Quando este decidiu largar sua vida enquanto Antônio Vicente Mendes
Maciel e se entregar por completo à tarefa de catequizar os sertões já como Antônio Conselheiro.
A exposição feita por Calasans nesta etapa é muito mais focada no cotidiano do indivíduo. No
individualismo existente. Associa-se então a relação do sertanejo para com o religioso. A intensa
busca pela salvação já destacada por Facó (1963), assim como o apego do sofrido camponês
para com a imagem do salvador e o papel desempenhado pela Igreja no controle e subversão
das massas. Constrói-se então o primeiro aspecto representativo das massas camponesas que
habitavam os sertões da então região Norte do Brasil. A caracterização, o fenótipo, fora bastante
influenciada pela presença do Sagrado no dia a dia dessa população. A imagem, carregada de
estereótipos, e atrelada ao fanatismo, desses grupos foi aferida pelo pesquisador Nilton
Freixinho em sua obra O Sertão Arcaico do Nordeste do Brasil: Uma releitura (2003), e pode ser
conferida através da análise da seguinte citação:

Via-se ao longo das estradas, em torno de capelas que eram construídas, ou reparadas,
místicos sertanejos, portando improvisadas e rústicas cruzes de madeira, conduzindo
orações ensacadas, a tiracolo, vestindo grossas túnicas e usando rústicos gorros, ambos
com aplicações de motivos bíblicos. (Freixinho, 2003, p. 65)

47
A preocupação em estabelecer uma possível lógica quanto a aparência, o fenótipo e a
indumentária destes grupos afetados pelo aspecto religioso é aparente em tais estudos. A
descrição feita na citação acima pode ser aplicada em inúmeros grupos como é o caso de
Canudos e do próprio Conselheiro que, de acordo com as descrições da mídia jornalística à
época da Guerra, usava nada mais que chinelos e uma túnica velha11. Têm-se então uma
construção a respeito dos hábitos e ritos destes grupos.
Seguindo por entre o Ciclo Folclórico, chegamos à Fase da Campanha. A ocorrência de
conflitos violentos, e em muitas das vezes, armados, tornou-se comum em movimentos
considerados como Messiânicos, ou Místicos. A Guerra de Canudos, o Contestado, Juazeiro e o
Caldeirão do Beato José Lourenço, são exemplos de eventos violentos onde, em sua grande
maioria, as forças sertanejas entraram em choque com a força policial institucional local, e
nacional. O Cangaço e seus desdobramentos também são considerados como uma violenta onda
de crimes, ainda que muitos pesquisadores defendam a natureza da Luta de Classes como
motivadora para as condutas dos cangaceiros. Vejamos:

Entre meados do século XIX e começos do século XX, sucedem-se em cadeia movimentos
de rebelião de pobres do campo, de norte a sul do País. Assumem as mais diversas
características. Seus pontos culminantes são Canudos (1896-1897), Contestado (1912-
1916) e o Caldeirão (1936-1938). Apesar da especificidade de cada um, liga-os um traço
comum sobressalente: o choque aberto entre a religiosidade popular e a religião oficial
da Igreja dominante. No nível cultural de desenvolvimento em que se encontravam as
populações rurais, mergulhadas no quase completo analfabetismo e no obscurantismo,
a sua ideologia só podia ter um cunho religioso, místico, que se convencionou chamar
de fanatismo. Sob esta denominação têm-se englobado os combatentes de Canudos ou
do Contestado, do Padre Cícero ou do Beato Lourenço: fanáticos. Quer dizer, adeptos de
uma seita, ou misto de seitas, que não a religião dominante. (Facó, 1972, p.39)

A Guerra de Canudos (1896-1897) pode ser considerada atípica dado o grau de


comprometimento dos seguidores de Antônio Conselheiro e também pela resistência do Arraial
frente as investidas da República sobre Monte Santo. É interessante aqui, denotar a
representação construída através dos atos executados pelos sertanejos durante os conflitos
destacados. Percebe-se a existência de uma natureza fervorosa, rude, porém rígida e forte. A
persistência dos grupos de camponeses em se colocarem e agirem ferozmente contra seus
algozes chamou atenção, inclusive do autor de Os Sertões (1902), Euclides da Cunha, levando-o
a proferir a seguinte frase: “O Sertanejo é, antes de tudo, um forte.”. Destaca-se também a
coragem, ou de acordo com a Gazeta da Tarde (1896), loucura, dos “canudenses” quando estes:
“(...) vinham morrer cortando a facão as praças. Nunca vi tanta ignorância. Traziam imagens e
cruzes, chamando ao Conselheiro meu bom Jesus.”.

11 Gazeta da Tarde, 29 de janeiro de 1897, Edição: 00029.

48
A última das etapas do Ciclo Folclórico, a Fase do Messianismo-Conselheirista, de certa
forma, mantém relações explícitas com a primeira. Esta diz respeito, principalmente, a natureza
Messiânica e Sebastianista da Guerra de Canudos, como também do Conselheiro. A crença
Sebastianista no retorno do Conselheiro do mundo dos mortos inspira-se nas lendas que
contavam sobre o retorno de D. Sebastião da ilha onde este estaria encantado. Seu retorno,
assim como o do antigo rei de Portugal, simbolizaria o triunfo sob seus inimigos e a libertação
de seu povo. Ainda que a lenda esteja de acordo com alguns dos preceitos básicos do
Cristianismo, como a recompensa no pós-morte, vale ressaltar o alto grau de difusão na
sociedade brasileira, principalmente sertaneja, que tal lenda alcançou. Diante de tais
apreensões, têm-se, então, a construção, através de elementos, práticas e costumes, de uma
parcela do povo sertanejo ligada ao lado do Rosário, na Dialética apresentada por Diatahy.

4. CONCLUSÃO
O processo de criação e atribuição de uma determinada representação ao espaço
compreendido e nomeado como Sertão Nordestino é, talvez, infinito. Como afirmado
anteriormente, inúmeras são as imagens, práticas, ritos, discursos e outros elementos que são
atribuídos aos sertões nordestinos e que, dada sua intensa utilização, passam a integrar e
permear o imaginário popular e cultural de determinada sociedade. Sendo indiscutível a
associação de determinadas representações a essa área pois, assim como afirma o historiador
Durval Muniz (1999), o efeito causado pelos estereótipos na “criação do Nordeste” foi de suma
importância para a construção de tal representação, assim como das dizibilidades e
visibilidades deste espaço. Logo, a crença de que os sertões nordestinos são habitados por
determinados grupos que, perdidos, ou parados em seu próprio tempo, detém as raízes da
cultura brasileira, onde, em oposição ao litoral, exercem a função de guardiões dos primeiros
hábitos.
Destarte, a partir da análise empreendida com a comparação dos elementos existentes
nas Etapas do Ciclo Folclórico, aliada ao foco sobre o Religioso da Dialética do Rifle e do Rosário,
percebe-se que grande parte da cultura sertaneja foi, e ainda é influenciada pelas práticas do
Sagrado. A crença na recompensa pós-morte levou à deflagração de movimentos que, ainda
hoje, mais de um século após a Guerra de Canudos, se fazem presentes no imaginário popular
da sociedade brasileira. Entretanto, assim como dito na introdução deste curto artigo, a tarefa
de explicitar e apreender todos os elementos das representações atreladas ao mundo sertanejo
pode ser considerada como uma tarefa holística. Tal mundo ainda precisa ser mais explorado e

49
desbravado pelos pesquisadores que se atrevem a se perder por entre as veredas que cortam a
Caatinga em busca dos Conselheiros, Lampiões e Padres Cícero.

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A Invenção do nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez,
2011.

CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.

FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos: gêneses e lutas. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1963.

FREIXINHO, Nilton. O sertão arcaico do nordeste do Brasil: Uma releitura. Rio de Janeiro: Imago,
2003.

GAZETA DA TARDE, 27 nov. 1896, p. 1.

GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

MACEDO, José Rivair. Belo Monte: uma história da Guerra de Canudos. 2. Ed. São Paulo:
Expressão Popular, 2011.

MENEZES, Eduardo Diatahy de. Ariano Suassuna e o imaginário popular do sertão. Fortaleza:
Revista do Instituto do Ceará, 2012, p. 73-88.

SANTOS, Arthur Ebert Dantas dos. Entre Canhões, Cruzes e Palavras: representações da Guerra
de Canudos na imprensa do Rio de Janeiro (1896-1897). Monografia (Trabalho de conclusão de
curso – Licenciatura em História) – Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Mossoró,
2021.

SILVA, José Calasans Brandão da. O Ciclo Folclórico do Bom Jesus Conselheiro: Contribuição ao
Estudo da Campanha de Canudos. Salvador, BA: Tipografia Beneditina LTDA, 1950.

THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em Comum: Estudo sobre Cultura Popular Tradicional.
São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

50
Capítulo V
MOVÊNCIAS CIGANAS NOS SERTÕES: VIVÊNCIAS E
HIBRIDISMOS
DOI: 10.51859/amplla.soh683.1124-5
Italo Leonardo de Lima Queiroz 1
Lourival Andrade Junior (Orientador) 2

A modernidade estruturou uma modelação dos espaços e seus habitantes, pautada nos
interesses coloniais dominantes. Sendo assim, as estruturas funcionavam para garantir o
enriquecimento de uma elite colonial que se localizava inicialmente na Europa, mas que na
medida em que os processos colonizadores se consolidavam, espalhou-se, sobretudo, para os
continentes americano e africano, nos quais, subjugaram povos, espaços e relações para
garantir a supremacia cultural, política, econômica e social das Coroas Europeias (Miceli, 2022).
Nessa perspectiva, a cultura moderna se construiu traçando uma narrativa sobre o “eu
e o outro”, ou seja, o eu civilizado versus o outro bárbaro. Essa dualidade atravessou diversos
âmbitos das sociedades que sofreram influência do dito mundo ocidental, a exemplo da
modelação territorial, na religiosidade, na linguagem, sendo diversos aspectos que a cultura
europeia colocou como opostos, um sendo um padrão a ser seguido e valorizado, o outro
evitável e civilizável (Miceli, 2022).
Dentro dessa lógica dominante da modernidade, ainda assim existiam alguns grupos que
divergiam do estilo de vida moderno, como é o caso dos ciganos, que viviam de forma destoante
daquilo que era proposto enquanto civilidade, que, portanto, passaram a ter os sertões
brasileiros como ambientes de refúgio.
Os sertões no Brasil, significaram, nesse sentido, um ambiente de acoberta para os
indesejados, inclusive os ciganos. É essa relação que pretendemos discutir brevemente neste
artigo, abordando questões como um hibridismo cultural, entre os ciganos e alguns grupos
sertanejos, fazendo análises, sobretudo, bibliográficas que levantam algumas discussões sobre
essa temática, que é algo pouco explorado pela historiografia.

1 Mestrando em História dos Sertões pelo Programa de Pós-Graduação em História do CERES/UFRN. E-mail:
italoleonardo45@gmail.com.
2 Docente do Departamento de História do CERES e do Programa de Pós-Graduação em História do CERES/UFRN,

Mestrado em História dos Sertões. E-mail: lourivalandradejr@yahoo.com.br.

51
1. O LUGAR DA ERRÂNCIA: SERTÃO
O que são os sertões? Essa pergunta acompanha um elevado grau de complexidade se
pensarmos as diferentes construções históricas e historiográficas para esse conceito. É um
termo que acompanha a história da humanidade desde o período moderno, no seio das grandes
navegações e da colonialidade, para referir-se a um determinado espaço, onde havia uma
dinâmica própria e um cotidiano específico. Segundo a historiadora Janaína Amado (1995), no
Brasil, o termo está presente desde meados do século XVI, usado por cronistas e viajantes para
descrever algumas regiões do território, os quais os mesmos observaram e mencionaram em
seus textos:

No conjunto da História do Brasil, em termos de senso comum, pensamento social e


imaginário, poucas categorias têm sido tão importantes, para designar uma ou mais
regiões, quanto a de "sertão". Conhecido desde antes da chegada dos portugueses, cinco
séculos depois "sertão" permanece vivo no pensamento e no cotidiano do Brasil,
materializando-se de norte a sul do país como sua mais relevante categoria espacial:
entre os nordestinos, é tão crucial, tão prenhe de significados, que, sem ele, a própria
noção de "Nordeste" se esvazia, carente de um de seus referencias essenciais (Amado,
p. 145, 1995).

Nesse sentido, o uso popular da categoria sertão se tornou algo inerente à cultura
brasileira, sobretudo se pensarmos esse entendimento relacionado a algumas regiões do país
que adotaram o termo para designar algo crucial em sua cultura, como é o caso do nordeste e a
cultura sertaneja que emana dos ditos sertões (Albuquerque Júnior, 2014). Como analisar o
Nordeste sem citar os sertões? Em algumas situações do cotidiano, as pessoas utilizam sertões
como sinônimo de nordeste, obviamente que advém de uma concepção estereotipada da região,
entretanto, nos mostra que é primordial saber o que são os sertões nordestinos.
Vale destacar que sertões não existem enquanto espaço geográfico específico e que
apresentem uma vegetação própria: “O sertão não se qualifica, do ponto de vista clássico da
geografia, como um tipo empírico de lugar, isto é, ele não se define por características
intrínsecas de sua composição ou do arranjo de seus elementos numa paisagem típica” (Moraes,
p. 01, 2003). Notadamente, os sertões se concretizam enquanto representações de um espaço
e de uma determinada população, que apresentam uma cultura própria, mas que foram
designados assim enquanto sertões e sertanejos ao longo da história.
Sendo assim, esses espaços e essas populações que o ocupam, são construções sociais e
históricas, que podem variar de acordo com o tempo e o espaço em que se analisa, todavia

52
apresentam elos em comum, o sertão é tido como o distante da civilidade, o espaço que a
alteridade3 habita.
Os sertões foram definidos ao longo da história por diversas pessoas e grupos sociais
distintos, sejam eles cronistas, responsáveis por mostrar as características do território em
exploração para a Coroa Portuguesa, no caso do Brasil, ou positivistas do século XIX,
preocupados em analisar as particularidades da vegetação e das populações que habitavam os
espaços entendidos enquanto sertão. Um exemplo primoroso dessa fabricação cultural no
Brasil, se passa no livro “Os Sertões”, publicado em 1902, escrito pelo jornalista e escritor
Euclides da Cunha, em que com o objetivo principal de narrar os eventos envoltos da “Guerra
de Canudos”, acaba construindo também toda uma análise sobre os sertões baianos,
apresentando o território e a população local.
Além de grupos heterógenos, essa invenção sobre os sertões, atravessou as diversas
áreas do conhecimento, sejam elas a historiografia, a literatura, a botânica, a antropologia e
entre outras, como também, o entendimento popular. Todas elas com o intuito de entender o
espaço que se constrói como os sertões e também as ditas populações sertanejas, que habitam
esses lugares. Portanto, isso contribuiu para que a categoria sertões ganhasse diversos
significados ao longo da história, pois as diversas explicações sobre esse espaço criaram
representações distintas entre a população.
É por toda essa diversidade em sua construção, que está a dificuldade em responder à
pergunta inicialmente postulada (O que são os sertões?), além disso precisa haver um cuidado
ao responde-la, pois podemos generalizar sujeitos e espaços e construir estereótipos, que
inclusive, afetam os sertões em seu cotidiano. Nesse sentido, os sertões, no plural, denotam que
existem vários, com dinâmicas, grupos e dinâmicas próprias e que para analisarmos,
precisamos compreender as especificidades de qual ou quais sertões queremos analisar.
Gerar uma unidade em torno da categoria sertão, causam os problemas de uma história
única em que indivíduos, situações e territórios passam por um processo de uniformização, em
que todos são tratados de uma mesma forma, aquela que se construiu enquanto uma
representação acerca do sertão, sobretudo, os sertões nordestinos

Os perigos de uma história única marcam os discursos produzidos sobre o semiárido


brasileiro. A região Nordeste do Brasil tem sido vista, ao menos desde finais do século
XIX, tanto pela literatura, como por médicos sanitaristas, historiadores, jornalistas,
sociólogos e economistas (Lima, 1999), ora como zona pobre, com base em visões

3 Por alteridade, entende-se a partir do conceito sociológico que identifica o outro, aquele que é diferente da cultura

ocidental dominante. E nessa perspectiva, é possível compreender a relação entre os sujeitos pertencentes a essas
diferentes culturas, de um lado aquela que se caracteriza enquanto hegemônica, do outro a que é identificada como
uma minoria social.

53
deterministas sustentadas por abordagens nas quais a desertificação, a seca, a fome e a
miséria são encontradas invariavelmente juntas (Barker e Gilbertson, 2000), ora como
região diaspórica, argumentação pautada por características ambientais de deserto (a
caatinga e o semiárido) e pelos episódios de seca. Estas tratativas deram forma a um
rígido e poderoso corpo discursivo no qual o chamado “sertão” é apresentado como
homogêneo, estático, isolado, degradado e pobre, apesar de historiadores como
Capistrano de Abreu terem ressaltado a mobilidade como característica dos
campesinatos na região. O poder desigual no mundo do século XX marcou como, por
quem e quantas histórias são contadas sobre as populações que vivem no “Nordeste
seco” (Albuquerque Jr., 2011). Este poder deu habilidade a poucos de não só contarem
a história dos habitantes do semiárido e das caatingas nordestinas, mas de fazê-la sua
história definitiva (Souza, p. 39- 40, 2015).

Dito isso, percebemos a fabricação de um sertão seco, pouco diverso, em que seu
cotidiano é pautado por uma unidade. Esse estereótipo gera preconceitos diversos que
desaguaram e desaguam em ações maléficas para os sertões no geral, com ênfase nos sertões
nordestinos, uma vez que o último enfrenta problemas históricos devido às imagens que se
consolidaram ao seu respeito, por exemplo, as faltas de ações e políticas públicas e
investimentos envolvendo a região.

2. OS CIGANOS NOS SERTÕES: REFÚGIOS E TROCAS


Levando em consideração o que foi acima discutido, quando queremos escrever uma
História4 dos sertões ou que se passa nos sertões, é importante deixar claro de quais ou qual
sertão está em discussão, para isso é necessário evidenciar recortes, espaciais e temporais, a
fim de se entender em que tipo de sertão e população dita sertaneja se tinha no tempo e no
espaço que se delimitou.
É nessa perspectiva que pretendemos analisar brevemente a relação que os ciganos
estabeleceram com os sertões, discutindo alguns documentos oficiais datados do ano de 1761
que narram ações envolvendo os grupos ciganos e os espaços sertanejos, junto a isso,
discutiremos a bibliografia que tratou sobre a temática.
Os sertões nos territórios que hoje conhecemos como Brasil, historicamente, se
constituíram enquanto um espaço dos indesejados, dos vadios, dos bárbaros, dos degredados,
foram considerados a antítese da civilização, aquilo que tinha que ser superado. O projeto
colonizador, inicialmente, delimitava o sertão enquanto um ambiente inexplorado, no qual a
civilidade e o padrão de vida europeu não chegara. Seguindo essa lógica, aquilo que a corte
portuguesa traçava como ameaçador, sujo, desarmônico era expulso para os sertões, a distância
desses problemas do litoral era a normalidade pretendida

4 O texto: Ensaio sobre diversidade historiográfica: como escrever (e reconhecer) histórias dos sertões a partir de
novas e “velhas” epistemologias, escrito pelo historiador Evandro do Santos, apresenta uma discussão mais
abrangente sobre esse assunto.

54
Finalmente: se foi erigido como categoria pelos colonizadores e absorvido pelos
colonos, em especial pelos diretamente relacionados aos interesses da Coroa, "sertão",
necessariamente, foi apropriado por alguns habitantes do Brasil colonial de modo
dialeticamente oposto. Para alguns degredados, para os homiziados, para os muitos
perseguidos pela justiça real e pela Inquisição, para os escravos fugidos, para os índios
perseguidos, para os vários miseráveis e leprosos, para, enfim, os expulsos da sociedade
colonial "sertão" representava liberdade e esperança; liberdade em relação a uma
sociedade que os oprimia, esperança de outra vida, melhor, mais feliz. Desde o início da
história do Brasil, portanto, figurou uma perspectiva dual, contendo, em seu interior,
uma virtualidade: a da inversão. Inferno ou paraíso, tudo dependeria do lugar de quem
falava (Amado, p. 149-150, 1995).

Em um primeiro momento, os sertões que nos interessa para construir a narrativa que
almejamos, são esses tidos como um espaço aberto aos sujeitos indesejados no processo de
colonização brasileira, entendendo que na análise da longa duração, as heranças coloniais são
perceptíveis ainda no Brasil do século XX.
Nos primeiros contatos entre os ciganos e a América Portuguesa, portanto, esses sujeitos
adentraram os sertões. Seus modos de vida divergentes do padrão europeu fizeram com que
eles fossem degredados de Portugal para as suas respectivas colônias e chegando nelas,
expulsos para o mais distante possível dos litorais, onde o processo colonizador caminhava a
passos largos (Moonen, 2011).
Para os portugueses e os colonos, os sertões significavam em certa medida uma ameaça,
para os ciganos, significava conforto. Era a possibilidade de se distanciar daqueles que os
subalternizavam, era a condição adequada para exercer sua itinerância sem demasiadas
desavenças, constituía-se enquanto um espaço adequado e possível para exercer sua cultura
sem grandes empecilhos. Sendo assim, os sertões para os ciganos desde o contato deles com o
que hoje é o Brasil sempre foi um lugar familiar, um refúgio, moradia, no mais era uma garantia
de sobrevivência.
O espaço dito sertanejo “casou como uma luva” aos interesses cotidianos dos povos
ciganos, constituindo-se como um espaço de movências, os sertões dialogam com o ir e vir dos
romani. A dinâmica do sertão como um espaço do degredo, do indesejado, possibilitou uma
vasta troca cultural para grupos subalternizados, incluindo os já citados, que pautando a sua
sobrevivência a partir do nomadismo, não enfrentaram extremas dificuldades nas dinâmicas
propostas pelo espaço sertanejo.
Em alvará publicado em 1761, a Coroa portuguesa pretendeu regulamentar a vida dos
ciganos com o intuito de castrar algumas atividades exercidas por esses grupos, encaradas
pelos dirigentes portugueses como maléficas

que fendo-me prefente que os Siganos, que defte Reino tem ido degradados para o
Eftado do Brafil vivem tanto á dispofiçaõ da fua vontade, que ufando dos feus

55
prejudiciaes coflumes com total infracçaõ das minhas Leys, caufaõ intolerável
incommodo aos moradores, çommettendo continuados furtos de cavallos, e efcravos, e
fazendo-fe formidáveis por andarem fempre incorporados, e carregados de armas de
fogo pelas eftradas, onde com declarada violência praticao mais a feu falvo os feus
perniciofiííimos procedimentos (Decretos, p. 01, 1761).

No trecho, são mencionados alguns delitos cometidos pelos ciganos que fizeram com que
necessitassem da regulamentação de um alvará para que fossem tomadas algumas medidas
frente a isso. Posteriormente, são elencadas punições contra os ciganos que forem pegos
cometendo tais delitos no citado Estado do Brasil. Entre as punições, estão o ato de proibição
de seus mecanismos de trabalho, e junto a isso o ensinamento de técnicas de serviço do trabalho
comum, afim que esses jovens ciganos do sexo masculino, aprendam os trabalhos comuns na
colônia e sirvam aos interesses coloniais. Entretanto, em outro documento publicado no mesmo
ano, o então governador de Pernambuco declara:

se entrarem pelos sertões a fim de se evadirem das devidas obediências e a mais que
ponto se devem sugeitar a ajuntar regularidade e a reduzirmos a vida [...] obrarem ao
contrario sofrerão as irreversíveis penas que lhes correspondem pela transgressão pela
mencionada lei. (Lobo da Silva, p. 02- 03, 1761)5.

De acordo com o trecho, os ciganos adentraram os sertões para fugirem das


punições aplicáveis aos seus delitos, demonstrando a proximidade que os ciganos
estabeleceram com esses espaços, utilizado como uma forma de resistência de fugir das
políticas aplicadas pelos colonizadores aos membros de sua comunidade.
Algo que merece nota é a incredulidade de muitos autores em discutirem os sertões
como um espaço importante para trocas culturais, entendendo esse lugar como um ambiente
dinâmico e diverso e que conta uma História própria, um exemplo disso, podemos encontrar na
obra de Peter Burke, “Hibridismo cultural”, onde, em um tópico intitulado “A metrópole e a
fronteira”, o autor discute a importância dos grandes centros urbanos e suas fronteiras como
espaços onde trocas culturais e hibridismos acontecem, mas esquece de mencionar os sertões,
os espaços além dessa fronteira:

A importância dos portos como locais de encontro cultural é notável - a Veneza do


século XV. a Lisboa e a Sevilha do século XVI, a Amsterdã do século XVII e assim por
diante. Nos séculos XVII e XVIII, os portos de Nagasaki e Cantão eram locais importantes
de troca cultural entre a Europa e a Ásia. Mesmo na era da aviação, a importância de
Nova Orleans e de Liverpool como pontos de encontro de tradições musicais europeias
e africanas é obvia (Burke, p. 71, 2010).

A ideia do autor é coerente, entretanto, ela é incompleta, pois por diversos motivos que
já foram ressaltados, os sertões estabeleceram e estabelecem um importante espaço também

5 A ortografia utilizada é idêntica à da fonte de pesquisa.

56
para as trocas culturais, o exemplo citado acima, retrata um aspecto do contato entre ciganos e
sertanejos, mas existem situações diversas entre outros grupos étnicos com trocas distintas.
A presença dos ciganos nos sertões proporcionou o contato com grupos denominados
sertanejos, que são compreendidos como aqueles que vivem no sertão e isso desenvolveu um
fenômeno que Burke (2010) conceituou como hibridismo cultural, onde houve trocas entre
ambos os grupos a partir do contato. Logo, “[...] devemos ver as formas híbridas como o
resultado de encontros múltiplos e não como o resultado de um único encontro, quer encontros
sucessivos adicionem novos elementos à mistura, quer reforcem os antigos elementos (Burke,
p. 31, 2010)”, nesse sentido, o cotidiano nos sertões possibilitou diversas trocas culturais entre
esses grupos.
O espaço em comum, ocupado por ciganos e grupos diversos de sertanejos, construiu o
meio pelo qual as trocas culturais puderam se estabelecer. A vivência desenvolveu o
entendimento do que era útil ou não nessas trocas, e onde os grupos envolvidos construíram
diferentes formas de se apropriar dessas trocas, pautados no meio em que sobreviviam e os
contatos que se apresentaram no decorrer dos processos de expansão da colonização, no qual,
como já foi mencionado, conseguimos analisar suas consequências na longa duração

Sempre que ocorre uma troca cultural. podemos falar metaforicamente de uma "zona
de comércio", como o faz o historiador da ciência Peter Galison em um estudo do que
ele chama de "subculturas" da física do século XX, no qual descreve estas zonas como
espaços onde "dois grupos dessemelhantes podem encontrar uma base para o
entendimento mútuo"; trocar itens ao mesmo tempo em que discordam sobre a
importância do que é trocados. Que a troca possa ter significados diferentes para os
diferentes grupos envolvidos é uma questão importante que reaparece em outros
campos de pesquisa, notadamente no estudo da conversão religiosa. Como no caso do
"mal-entendido tácito" discutido supra (Burke, p. 70, 2010).

Em se tratando de sertões nordestinos, os períodos de estiagens ligados aos projetos


governamentais de seca e da falta de políticas públicas para as populações sertanejas,
desenvolveu nessas comunidades hábitos de nomadismo forçado, em que a falta dos viveres
devido as secas, os obrigava a percorrer longas distâncias em busca do que fosse essencial para
suas sobrevivências. Essa prática era dificultosa para eles, pois para praticar o nomadismo é
necessário desenvolver algumas habilidades.
Os ciganos, em contrapartida, foram grupos que historicamente desenvolveram o que
podemos chamar de nomadismo estruturado, já que esses povos, por interesses próprios,
acabaram adquirindo inúmeras habilidades diante desse modo de vida, para que pudessem
percorrer suas longas distâncias e arrancharem-se em espaços diversos sem enfrentarem
bastantes percalços.

57
Quando citamos essa estruturação dos grupos ciganos, tratamos das habilidades com
animais que são utilizados como meio de locomoção, como por exemplo, cavalos,
conhecimentos de medicina natural, importante para o tratamento de determinados enfermos
causados pelas andanças, facilidade em encontrar alimentos e aguçadas técnicas comerciais.
Tudo isso possibilitou e possibilita aos ciganos um melhor desempenho em situações de
itinerância.
Nesse contexto, podemos analisar a importância das trocas culturais entre ciganos e
sertanejos na itinerância para ambos os grupos, sobretudo dos sertanejos que fugidos dos
intemperes naturais e enfrentando as problemáticas governamentais, encontram no
nomadismo estruturado uma solução para aquele problema.

No Brasil, notadamente no Nordeste, pode-se panoramicá-los em duas grandes


vertentes: Os ciganos que adotaram o modo de vida nordestino, em contrapartida aos
nordestinos, que adotaram o modo de vida cigano. Afinal de contas, dificilmente será
encontrada uma forma mais eficaz de fugir da miséria, provocada pela seca
intermitente, que adotar a itinerância bem estruturada. Assim, o modo de vida cigano
adapta-se, como uma luva, aos pedidos constantes de socorro dos sertanejos, que nunca
são satisfatoriamente atendidos pelos poderes públicos, já que manter as situações
sócio-estruturais como sempre estiveram, servem ao projeto semi-inconsciente das
oligarquias no Poder, sejam as facções latifundiárias locais, que mantém um sistema de
quase servidão, sejam as mercantis-industriais do sul do país que necessitam de um
exército de reserva. Assim, sob determinado e coerente ponto de vista, pode-se mesmo
afirmar que a miséria do nordestino é propositadamente mantida (Senna, p. 79, 2005).

Vale pontuar que, os sertanejos assim que as condições permitiram, abandonaram as


práticas nomádicas, pois não é algo inerente à sua cultura e sim uma necessidade em alguns
casos provisórios. Nesse sentido, trocar com os ciganos um processo estruturado de movência,
os ajudou nos períodos em que necessitaram dessas locomoções diárias, semanais ou mensais
variando de um grupo para outro, de região para região e afins.
Nesse sentido, a presença dos ciganos no espaço sertanejo e o contato com quem ali
habitava possibilitou uma adaptação e um ambiente de trocas mútuas, os quais ambos os
grupos desenvolveram formas eficazes de resistir e se adaptar ao meio em que viveram ao
longo da história do Brasil. Afinal, a adaptação é parte crucial do processo de trocas que findam
no que entendemos como hibridismo cultural: “Uma reação comum a um encontro com outra
cultura, ou com itens de outra cultura, é a adaptação, ou empréstimo no varejo para incorporar
as partes em uma estrutura tradicional” (Burke, p. 91, 2010).
Nesse sentido, essas trocas culturais podem ser entendidas a partir de dois vieses: a) “A
adaptação cultural pode ser analisada como um movimento duplo de descontextualização e
recontextualização, retirando um item de seu local original e modificando-o de forma a que se
encaixe em seu novo ambiente” (Burke, p. 91, 2010) e b) onde a mudança do espaço no qual se

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vive originalmente, bem como dos grupos com quem se estabelece contatos, faz com que os
grupos inseridos em outras sociedades recontextualizassem sua cultura.
Essa adaptação e as trocas possibilitaram diversas familiaridades entre os ciganos e os
sertanejos, além do espaço em comum - os sertões - e as trocas a partir da itinerância de ambos.
Sendo assim, é possível identificar vários traços da cultura cigana, o que demonstram a
qualidade dessas trocas e que elas aconteceram em diversos períodos para que sua existência
seja visível durante o tempo mais recente, séculos XX e XXI

No correr desse processo, essa interação sincrética de valores revela-se, mais


claramente, nas elaborações estéticas dos reisados, das cheganças, dos fandangos, dos
maracatus e de outros folguedos. Os instrumentos musicais e as fantasias ciganas
marcam fortemente a ludicidade nordestina. Até mesmo os enfeites dos cangaceiros,
como os que se encontram nas roupas das mulheres, nos chapéus dos homens, nas
armas e nas bandoleiras, de mostrar, possivelmente, as influências incorporadas
(Senna, p.156- 157, 2005).

A partir dessa perspectiva, percebemos que essas trocas atingiram outros aspectos das
culturas ciganas e sertanejas, estando presentes em ritos e danças, além de produções
artesanais e vestimentas. Demonstram que essas trocas não estiveram restritas a contatos
esporádicos, mas fizeram parte do cotidiano desses grupos em determinados momentos,
sobretudo no período colonial e imperial, uma vez que os sertões eram em sua grande maioria
o espaço dos degredos

A ação conjugada das itinerâncias manifesta-se nas teatralizações dos saltimbancos e


mamulengos, além dos vistosos circos ciganos que vagueiam pelo Brasil,
principalmente nas regiões setentrionais. Os filmes cinematográficos, exibidos nos seus
picadeiros cobertos de empanadas ou cercados com simples panos de roda, levam,
costumeiramente, esse entretenimento a lugares que nunca tiveram casa de exibição
ou, então, deixaram de ter, como efeito de uma face da globalização.

Sentir-se cigano, portanto, e estar permanentemente inserido em um cenário artístico,


mesmo que esta arte não se encontre dissociada da existência cotidiana (Senna, p.157,
2005).

Senna (2005), portanto, ressalta alguns aspectos dos grupos mencionados que são frutos
de um hibridismo cultural gerado por um longo processo da presença cigana nos sertões. Esses
contatos nos sertões, sobretudo nordestinos são bastantes frequentes, diversas rotas
estabelecidas pelos ciganos traçam diversas regiões do que se entende enquanto sertões
nordestinos.
Uma pesquisa publicada no ano de 2004, intitulada “Comunidade Cigana de Sobral:
Aspectos linguísticos e etnográficos relativos à mobilidade geográfica, natureza e tempo”,
reuniu diversos pesquisadores da área de linguística que se propuseram a mapear e estudar
uma determinada comunidade cigana de Sobral, que no período da pesquisa, final do século XX

59
e início do XXI, já estava sedentarizada, mas que carregavam uma vasta memória do período
em que praticaram cotidianamente o nomadismo.
Em determinado momento da pesquisa, em um dos capítulos intitulados “Estudos
interpretativos”, em um dos seus tópicos: “A rota habitual do grupo no nordeste do Brasil”, o
linguista Domênico Sávio Rocha Cavalcante (2004) constrói uma narrativa a respeito das rotas
percorridas pelos grupos ciganos através dos relatos orais obtidos a partir de entrevistas
estruturadas com os líderes da comunidade cigana pesquisada, as quais essas entrevistas são
disponibilizadas na integra nos primeiros capítulos do trabalho e são importantes fontes de
pesquisa, a exemplo deste trecho

Com base nos dados fornecidos pela Secção 1 - Dados do Entrevistado, podemos traçar
neste primeiro momento algumas das rotas trilhadas por nossos ciganos. Eles saíam do
norte da Bahia, passavam por Petrolina, em Pernambuco. De lá, resolviam ir até Sergipe,
acampando em Aracaju. De Aracaju retornavam a Juazeiro da Bahia. Saindo novamente
da Bahia, passavam por Petrolina e seguiam para o Piauí, do Piauí vinham até Sobral,
no Ceará. Às vezes, também passavam pela Paraíba, e de lá vinham para o Ceará
(Cavalcante, p. 163, 2004).

São notadamente regiões que surgiram em torno do que se entendia enquanto sertões,
afastados do litoral, com exceção de Aracajú. Percebemos ao longo dessa pesquisa que são
comuns essas rotas no sertão nordestino e que esses grupos mantiveram contatos com outros
grupos ciganos que também percorreram a região. Essas rotas tinham entre outros motivos
estabelecer o comércio, e além disso, o autor (2004) cita um antigo comércio praticado pelos
ciganos, o de animais:

Os ciganos passam a residir em Sobral, Ceará, em julho de 1936, período em que ainda
viajavam bastante por força da necessidade de manterem o comércio de animais que
lhes garantia a sobrevivência. E assim, levados pelos interesses comerciais, faziam uma
rota, saindo de Sobral para Massapê, onde passavam longas temporadas (um, dois, três
meses). De lá, seguiam para Santana do Acaraú. Mais tarde, iam para Morrinhos, de
Morrinhos para Marco, e daí tomavam a direção de Bela Cruz, passavam também por
Cruz. De outras vezes, saíam de Sobral e iam por Coreaú, passando por Moraújo, por
Granja, e de Granja iam até Camocim (Cavalcante, p. 164, 2004).

As andanças ocorreram em grande escala na região do Ceará, o que provavelmente


trouxeram esses ciganos em suas circularidades para o Rio Grande do Norte e demais estados
próximos, devido à proximidade com o estado. São citadas cidades do sertão cearense as quais
ganharam a presença de grupos ciganos ao longo do século XX, correspondendo a parte da
primeira metade e da segunda metade, o que demonstra uma presença frequente e consolidada
desses grupos nas regiões mencionadas:

60
Dois atestados e mais uma série de vistos, emitidos em 1954, comprovam a passagem
dos ciganos nas seguintes localidades do Ceará: Uruoca (atestado em 18/03/..),
Campanário (visto em 31/03..), Sobral (atestado em 19/04/..), Santana do Acaraú (visto
em 27/04..), Granja (visto em 23/07...), Marco (visto em 19/10/..), Bela Cruz (visto em
23/10/...) e Acaraú (visto em 03/11 /..). Já em 1970, os atestados e vistos comprovam
a passagem dos ciganos e visto em 12/03/...), Campanário (visto em 28/02/ ..), Bom
Príncipe (visto em 03/04/…..), Martinópoles (visto em 23/04/..), Cruz (visto em
16/05/..), Acaraú (visto em 28/05/ ..), Parazinho (visto em 03/07/ ..), Marco (atestado
em 05/07/...), Coreaú (visto em 22/07/ ..) (Cavalcante, p. 165, 2004).

Lugares que em sua maioria, portanto, se municipalizaram, mas localizam-se em regiões


ditas ou entendidas enquanto sertanejas, seja pela distância em quilômetros do litoral, ou pela
cultura e populações que se desenvolveram nessas localidades.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do artigo, portanto, percebemos a familiaridade e a presença dos ciganos nos
sertões, com ênfase, nos sertões ditos nordestinos. A existência dos ciganos nesse espaço
culminou em processos complexos de hibridismo cultural e adaptação, sobretudo, quando
relacionados às populações sertanejas aqui existentes. Isso demonstra que os sertões para os
ciganos foram espaços adequados a sua vivência, no período da colonização, representou fuga
de instituições violentas e coercitivas que pautavam o processo colonizador como hegemônico
e etnocentrado.
Nessa perspectiva, construímos uma discussão sobre essas relações entre os ciganos e
os sertões, explorando sobretudo a pouca bibliografia existente que aborda a questão em suas
narrativas, mesmo que de forma pouco enfática, pois é um tema pouco discutido nas produções
historiográficas. Isso se deve pela dificuldade de encontrarmos fontes que apontem para essa
temática e forneçam possibilidades de problematizações como a que foi abordada no texto.
Em suma, elencamos a estruturada passagem dos ciganos nos sertões nordestinos,
utilizando-se de fontes e textos que permeiam a questão. Em pesquisas futuras, pretendemos
levantar novas problemáticas e interlocuções com a temática, aprofundando o conhecimento
sobre os sujeitos e os espaços abordados e corroborando com as produções historiográficas
sobre a ciganidade.

REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Distante e/ou do instante: “sertões
contemporâneos”, as antinomias de um enunciado. In: FREIRE, Alberto (Org.). Culturas dos
Sertões. Salvador: EDUFBA, 2014. p. 41-57.

AMADO, Janaína. Região, sertão, nação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 8, n. 15, 1995, p.
145-51.

61
BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. São Leopoldo: UNISINOS, 2003.

CAVALCANTE, Domênico Sávio Rocha. A rota habitual do grupo no nordeste do Brasil. In:
BESSA, José Rogério Fontenele. Comunidade Cigana de Sobral: aspectos linguísticos e
etnográficos relativos a mobilidade geográfica, natureza e tempo. Sobral: Edições UVA, 2004.

MICELI, Paulo. História Moderna. São Paulo: Contexto, 2022.

MOONEN, Frans. Anticiganismo: os ciganos na Europa e no Brasil. 3. ed. Recife: Edição


Revista e Atualizada, 2011.

MORAES, Antônio Carlos Robert. O Sertão: um outro geográfico. Terra Brasilis. (p. 01- 09),
Janeiro de 2003. <Disponível em: http://journals.openedition.org/terrabrasilis/341>.

SENNA, Ronaldo. A Seda Esgarçada: configuração sócio-cultural dos ciganos de Utinga. Feira de
Santana: UEFS, 2005.

SOUZA, Rafael de Abreu e. Globalização, consumo e diacronia: Populações sertanejas sob ótica
arqueológica. Revista Latino-Americana de Arqueologia Histórica. Volume 9, Número 2, Julho,
Dezembro 2015, ISSN 1981-5875.

PORTUGAL. LEIS, DECRETOS, ETC (1603-1761). [Alvará providenciando a regulamentação da


vida e empregos dos ciganos no Brasil]. Lisboa [Portugal]: Chancellaria mór da Corte e Reino,
1761. 4 p. Disponível em:
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_obrasraras/bndigital1467/bndigital14
67.pdf. Acesso em: 10 Sep. 2023.

SILVA, Luis Diogo Lobo da. [Aviso a Jerônimo Mendes da Paz informando das novas ordens
régias sobre os ciganos e tratando do modo como as mesmas devem ser executadas na capitania
de Pernambuco]. Recife, PE: [s.n.], [12/07/1761]. 4 p. Disponível em:
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_manuscritos/cmc_ms618_28_47/cmc_ms618_28_4
7.pdf. Acesso em: 10 Sep. 2023.

62
Capítulo VI
LUGARES DE FÉ: SERTÃO E HIBRIDISMO RELIGIOSO EM O
PAGADOR DE PROMESSAS (1962)
DOI: 10.51859/amplla.soh683.1124-6
Beatriz Alves dos Santos 1
Lourival Andrade Junior (Orientador) 2

1. CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS
Em 1962, Anselmo Duarte dirigiu o filme O Pagador de Promessas3, inspirado na obra
dramaturga homônima de Dias Gomes.4 O longa foi gravado em 35mm, com duração de 1h31
min, em preto e branco. A trama nos apresenta a saga de Zé do Burro, personagem de Leonardo
Villar, um homem de uma cidade do interior da Bahia que, no auge do desespero para salvar a
vida do seu burro atingido por um raio, fez uma promessa para Santa Bárbara. Caso o milagre
fosse cumprido e seu burro Nicolau vivesse, Zé faria uma peregrinação até a Igreja de Santa
Bárbara em Salvador, carregando uma cruz pesada como a de Cristo e a depositaria no templo
religioso. Assistimos as agruras de Zé junto a sua esposa Rosa, personagem de Glória Menezes,
dedicado em cumprir sua promessa e enfrentando todos os obstáculos que se interpõem ao
pagamento do seu juramento à Santa Bárbara.
Apesar da obra se passar majoritariamente em cenário urbano, com exceção apenas das
cenas iniciais que se passam no sertão, possibilita observarmos aspectos das práticas híbridas
religiosas e das compreensões a respeito de uma história dos sertões. Buscamos discutir as
noções a respeito de hibridismos religiosos, a partir das práticas católicas e candomblecistas
que se cruzam no filme, além das representações sertanejas, postas a partir da trajetória de Zé
e Rosa na capital baiana. Tecemos, outrossim, um debate que pauta como as obras
cinematográficas levam para suas telas questões que perpassam o meio social.

1 Mestranda em História dos Sertões pelo Programa de Pós-Graduação em História do CERES/UFRN. E-mail:
beatriz.santos.118@ufrn.edu.br
2 Docente do Departamento de História do CERES e do Programa de Pós-Graduação em História do CERES/UFRN,

Mestrado em História dos Sertões. E-mail: lourivalandradejr@yahoo.com.br.


3 O PAGADOR de promessas. Direção: Anselmo Duarte. Produção: Francisco de Castro; Oswaldo Massaini. Estúdio

Cinedistri. Distribuição: Lionex Films Inc; EMBRAFILME. 1962. YouTube, 1 vídeo. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=oyYDcXD-SqI. Acesso em 25 de junho de 2023.
4 Em 1988 a Rede Globo exibiu uma adaptação da obra de Dias Gomes no modelo de minissérie, que foi ao ar entre

os dias 5 a 15 de abril deste ano. A obra seguiu o roteiro da peça original de Dias Gomes e teve direção de Tizuka
Yamasaki. Em 1998 foi lançado um filme, como adaptação da minissérie, dirigido também por Tizuka Yamasaki. O
filme de 1998 encontra-se disponível na plataforma de streaming do Globoplay: <https://globoplay.globo.com/o-
pagador-de-promessas-o-filme/t/Ftkc65fVxW/>. Acesso em 13 de outubro de 2023.

63
As representações do catolicismo e do candomblé – que dialogam, se mesclam e até se
confundem, por parte do protagonista – evidenciam a malha das relações híbridas que
permeiam as práticas religiosas e sociais dos sertões. Para sustentar nossa discussão,
analisaremos o filme trazendo recortes de cenas, em imagens apresentadas ao longo do debate,
dialogando com os conceitos de sertões, representações e hibridismo religioso. As discussões
aqui postas, surgem como fruto de um recorte dentro da pesquisa de mestrado que desenvolvo
como discente no Programa de Pós-Graduação em História do CERES/UFRN, Mestrado em
História dos Sertões.
O uso das obras cinematográficas como fontes históricas nos permitem pisar no terreno
das representações através das imagens, de modo que visualizamos e analisamos não apenas o
que está posto como produto final em nossas telas, mas também todo o aparato que conduziu
à produção, em seu percurso gestacional. O historiador ao analisar filmes opera um trabalho
minucioso de dissecação das etapas que envolvem a obra fílmica, observando-a também como
uma fonte que reflete a sociedade que criou e consumiu tal obra (Rosenstone, 2010, p.29-30).
Em primeiro momento, estabelecemos o percurso metodológico de consulta e em quais
acervos as obras referidas estão disponíveis. Atualmente, com a difusão das plataformas de
streaming, tal como Netflix, e sites de hospedagem de conteúdos digitais, como o YouTube, o
acesso às mídias se popularizou, permitindo a recuperação e distribuição de mídias. Filmes que
outrora ficaram resguardados às prateleiras de locadoras, bancas de DVDs, ou mesmo às
exibições originais em cinemas, podem ser vistos em qualquer lugar, a qualquer momento, nas
telas de smartphones ou notebooks. Em nosso caso, consultamos a obra de Anselmo Duarte, com
ótima qualidade de imagem e som, disponível gratuitamente na plataforma YouTube. Feita esta
etapa, de localização da obra, assistimos na íntegra, tomando notas a respeito do roteiro e da
sequência de cenas. Os comentários são tecidos também, sempre que possível, fazendo pontes
e estabelecendo ligações entre a obra analisada e outras obras já vistas, ou lidas.
A partir da fonte fílmica, procuramos refletir os aspectos que se apresentam diretamente
para o público expectador como referências, ou influências, de outras obras clássicas do cinema,
da dramaturgia, ou mesmo da literatura. É possível ainda, avaliar além das influências estéticas
de outras obras, percebendo também as discussões e debates que permeiam o mundo social e
acadêmico, representadas nas telas. O percurso da análise escrita de um filme consiste em
colocar em prática as reflexões e críticas próprias, alinhavando com as discussões propostas
por outros autores que analisaram a mesma obra, sustentando-se, todavia, nos pressupostos
teórico-metodológicos historiográficos. É preciso levar em conta, ao usar a obra
cinematográfica, que o filme em si vai além do próprio conteúdo (Ferro, 2010, p.47), resultando,

64
em seu fim, um produto fruto de um recorte do diretor, que compreende a escolha dos planos
de imagens que serão filmados, das músicas que serão incluídas na trilha, além de explicitar o
ponto de vista de um determinado evento. Para Marc Ferro (2010, p.40-43), uma mesma
temática pode ser apresentada de formas divergentes, como exemplo, o autor apresenta os
filmes “Dias de terror em Kiev” e “Unir-se”, que retratam os embates entre o exército branco e
o exército vermelho; a diferença, contudo, está no ponto de defesa de cada um dos longas,
enquanto o primeiro apresenta o exército vermelho como terrorista e responsável pela guerra,
o segundo filme foca nas questões dos ativistas e das vitórias obtidas pelo exército vermelho.
Assim, portanto, há que se pensar que as representações balizadas, perpassam os jogos de
poderes que se estabelecem a partir dos discursos empregados (Chartier, 1990).

2. HIBRIDISMOS, DEVOÇÕES E SERTÕES


A primeira cena da obra de Anselmo Duarte (1962) apresenta um ritual Candomblé, que
podemos identificar como um Candomblé de Caboclo. Além da presença de atabaques,
observamos que se trata de um ritual em que os participantes usam vestimentas e
indumentárias que remetem aos orixás e aos caboclos5, conforme a imagem 01. Neste ritual,
ainda na mesma cena, observamos um altar com a imagem de Santa Bárbara, dentro do terreiro,
e Zé do Burro ajoelhado fazendo sua promessa. É válido anotar, ainda, que Santa Bárbara é
frequentemente associada à orixá Iansã, a entidade dos ventos, relâmpagos e trovões.
São essas relações de associação, as quais alguns autores chamam de sincretismo, que
tratamos aqui como hibridismo religioso, pois avaliamos ser um processo que aglutina
elementos distintos dentro de um mesmo campo, produzindo uma nova expressão. Trazemos
aqui a discussão de hibridismo cultural proposta por Nestor García Canclini (2008) que, embora
seu trabalho se debruce sobre os padrões de sociabilidades do mundo moderno, partindo das
premissas de um mundo globalizado e tecnológico, nos permite aplicar o conceito no campo da
religiosidades, porque entendemos que a discussão abrange os “processos socioculturais nos
quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar
novas estruturas, objetos e práticas” (Canclini, 2008, p.xix).
No caso das religiões afro-luso-ameríndias, como Candomblé e a Umbanda, a exemplo,
percebemos aspectos de crenças e ritos diferentes dialogando e convivendo nos mesmos

5Caboclos são entidades que são consideradas de origens indígenas. Quando os médiuns incorporam um espírito
de um caboclo, costumam se adornar com itens que remetem à essa entidade, como cocar, maracás, e arco e flecha.
Para ver mais sobre: PRANDI, Reginaldo (Org.). Encantaria brasileira: O Livro
dos Mestres, Caboclos e Encantados. Rio de Janeiro: Pallas, 2004.

65
espaços sagrados. É comum que em terreiros de Umbanda e Candomblé hajam figuras de santos
católicos, e até a mesmo a prática de proferir orações comumente católicas, como o Pai Nosso e
a Ave Maria. A malha social-religiosa se apresenta com suas relações tão híbridas, mescladas,
de modo que Zé do Burro, mesmo não sendo adepto das religiões afro-luso-ameríndias,
participou de um ritual de Candomblé de Caboclo, para poder fazer seu pedido à Santa Bárbara.
Observemos as duas imagens a seguir e quais elementos elas nos trazem:
Imagem 1: Candomblé de Caboclo.

Fonte: captura de tela feita pela autora em 30 de junho de 2023.

Na imagem de número 01, observamos os médiuns do terreiro vestidos com os trajes


ritualísticos do candomblé, as saias, vestidos e adereços que representam os orixás,
simbolizando que ali está a manifestação energética de orixás como Iansã, Oxum, Nanã, dentre
outros do panteão ritualístico. Usamos as setas amarelas para melhor identificarmos as
imagens em primeiro plano, em que vemos três pessoas, sendo: a primeira e a segunda,
equivalente ao centro e à esquerda, dois orixás; e a terceira pessoa, localizada à direita, uma
médium vestida de caboclo. Identificamos, visualmente, ser a terceira pessoa um caboclo pelo
uso de uma saia com penas, um cocar e uma lança adornada com fitas e penas; trajes usuais das
entidades caboclas nos terreiros em geral de Umbanda e Candomblé de Caboclo que podemos
visitar pelo Brasil. Esta imagem foi escolhida por evidenciar o tipo de ritual que Zé frequentou
em sua cidade de origem.
Na cena recortada em questão, observamos a manifestação das entidades em seus
respectivos médiuns, enquanto outros médiuns da casa tocam os atabaques com as mãos. Todo
o ritual é dançado e cantado, ritmado com palmas, toques e músicas que saúdam e evocam os
orixás e entidades para ali estarem. Podemos pensar, ainda, que o fator musicado e dançante
dos rituais de matriz afro-brasileira, seja um aspecto contribuinte para a adesão popular, saindo

66
das religiões mais dogmáticas que seguem um ritual litúrgico sequencial. Os terreiros, por sua
vez, encarnam dinâmicas mais flexíveis que variam de acordo com seus dirigentes, se unindo
por seus aspectos mais amplos, como a incorporação por parte dos médiuns, o uso de bebidas
e cigarros pelas entidades, os pontos cantados que são entoados, o uso de palmas e
instrumentos como tambores e atabaques para ritmar, além de outros elementos sagrados que
caracterizam o culto, como os pontos riscados, as oferendas e os rituais de iniciação e hierarquia
dentro da família de santo. Os pontos mais específicos ficam a cargo da maneira como cada mãe
ou pai-de-santo foram instruídos por seus antigos mestres a conduzir o ritual, como a ordem
de incorporação, as falanges espirituais que trabalham no terreiro, ou mesmo a forma de se
fazer as oferendas.
Pensamos ser essa possibilidade mais flexível e dinâmica que convidou Zé do Burro a ir
fazer suas preces e promessas direto em um terreiro, além, evidentemente, das relações
híbridas que esse culto carrega, como citamos, de incorporar santos e elementos do culto
católico em seus espaços sagrados. Na imagem 02 a seguir, podemos analisar um pouco mais
desses fatores.
Imagem 2: Zé fazendo a promessa para Santa Bárbara no terreiro.

Fonte: captura de tela feita pela autora em 30 de junho de 2023.

Esta imagem é um recorte que faz parte da mesma cena da imagem anterior, que abrem
os primeiros minutos do filme. Enquanto as filhas de santo dançam, um homem se ajoelha em
um espaço ao lado, em frente a um pequeno altar que contém a imagem de Santa Bárbara ao
lado de duas velas acesas. São duas esferas religiosas opostas, que agora coexistem no mesmo
ambiente: o catolicismo e o candomblé. Esta segunda foi duramente repreendida pela primeira
nos anos de formação do Brasil, enquanto colônia e império; e, mais tarde, já no seio da
República, outras manifestações de matrizes afro-brasileiras, como a Umbanda, também foram

67
duramente perseguidas, não apenas pela igreja, mas também pela força policial, como nos
aponta Lísias Nogueira Negrão (1996, p.67-77). Desde a colônia as expressões religiosas que
iam de encontro ao culto católico, eram enquadrados como feitiçarias e heresias (Vainfas,
1995). Nos anos que se seguiram, o estigma seguiu sendo fortalecido e perdura até hoje, o
cenário, porém, mostra uma abertura e um crescimento de adeptos aos cultos como Candomblé
e Umbanda, a que atribuímos, entre outros fatores individuais, por parte de sua maior aceitação
às diferenças dos sujeitos e suas subjetividades.
Levantamos o debate dos hibridismos religiosos também para reafirmar como essas
vertentes tão distintas em seus valores e crenças, se misturam no seio dos terreiros. Os rituais
de matrizes afro não rejeitam os símbolos católicos, ao contrário, preservam a presença de
santos, velas, rosários e outros signos da indumentária católica. A fé, neste sentido, vai além do
espaço sagrado em que está sendo cultuado, a relação dos fiéis com o sagrado é capaz de fundir
elementos de religiões diferentes em prol de alcançar seus resultados, como é o caso do nosso
protagonista.
A câmera fecha e na imagem seguinte já observamos o homem de calça, chinelo de couro
e camisa de botão, acompanhado por uma mulher, carregando uma imensa cruz de madeira em
seu ombro. Com o passar das cenas, percebemos que o homem que carrega a cruz é o mesmo
que estava no terreiro rezando para Santa Bárbara: Zé do Burro. As cenas seguintes vão
mostrando a Via Crúcis de Zé do Burro, seguido por sua esposa Rosa, que atravessam por solos
secos, riachos e litorais, até chegar em Salvador/BA.
O fim da peregrinação de Zé é na Igreja de Santa Bárbara, na capital baiana. O casal, que
chega no destino final de madrugada, encontra as portas do templo fechadas. A partir disso,
passamos a assistir um evidente contraste entre o casal, símbolos do sertão, e as dinâmicas da
cidade grande. A vida boêmia da cidade funcionava em seu ritmo frenético, com homens de
paletó, mulheres de vestidos e bem maquiadas, e fuscas rodando nas ruas loteadas de
construções coloniais. Enquanto Zé e Rosa, por sua vez, usavam roupas simples, de chinelos,
sem pertences, se apegando unicamente a sua fé e ao objetivo de cumprir a promessa.
Um outro casal também nos é apresentado logo neste início, uma mulher de nome Marli,
e um homem, a quem chamam de Bonitão. O casal, sobretudo Bonitão, impactam de forma
decisiva a vida de Zé e Rosa e contribuem para o seu desfecho da trama. Marli e Bonitão
encenam um relacionamento boêmio, vivendo nos bares e casas noturnas, com o homem sendo
a típica figura do cafajeste, que toma o dinheiro da esposa, bate nela e sai em busca de outras
mulheres, enquanto a obriga a sustentá-lo e a ganha com discursos românticos. Em
contrapartida, temos Zé e Rosa, que mesmo com todas as dificuldades, cansaços e má vontade

68
da mulher em estar ali, seguem juntos. Marli e Bonitão subvertem a lógica que atribui ao
sertanejo ser um homem “macho”, sisudo, que é arrimo do lar e que não aceita sustento por
parte da mulher. Bonitão reverte essa lógica: enquanto Zé, sertanejo, é apresentado como um
homem inocente, bondoso e leal aos seus propósitos, o homem da cidade é violento,
mulherengo e alega que é função da esposa bancar seus gastos.
Essas representações evocam a figura do sertanejo como um homem idealizado,
honesto, simples, apegado aos valores e virtudes cristãs, com uma certa inocência diante das
intenções dos homens da grande cidade. O homem sertanejo representado por Zé do Burro
simboliza um sertão quase intocado pelo tempo, “como pertencendo a um outro tempo, como
sendo um espaço anacrônico, (...) em dissonância com o tempo da cidade, do litoral, do
progresso, da contemporaneidade”, como nos apontou Durval Muniz de Albuquerque Junior
(2014, p.43). Zé é o pedaço do sertão dentro da cidade, é a figura que não se encaixa, que destoa
do que a vida urbana oferece.
Os dois casais têm suas vidas cruzadas quando Bonitão os vê a noite na igreja e oferece
ajuda. O homem propõe levar Rosa para descansar em uma pousada, enquanto Zé ficaria
vigiando a cruz, para não ser roubada. Vencida pelo cansaço e com o consentimento de Zé, Rosa
aceita a proposta e segue com Bonitão para um hotel. Reclamando das condições de vida e do
longo percurso que encararam, a mulher encontra no boêmio um ombro para aliviar suas
angústias e passa a noite com o rapaz. Ao amanhecer do dia, a mulher corre arrependida em
busca do marido que passou a noite sozinho na igreja. Na igreja, Rosa encontra Zé dormindo no
chão, embaixo da cruz, enquanto a cidade já estava acordada e as ruas se movimentavam
freneticamente.
Com o dia claro, o devoto finalmente encontra o padre e explica da sua promessa: seu
amigo Nicolau havia sido atingido por uma árvore e que caiu em um dia de chuva, e por não se
curar de forma alguma, foi no “candomblé de Maria de Iansã” e fez uma promessa para
Iansã/Santa Bárbara, para que curasse o seu amigo e, em troca, levaria uma cruz pesada como
a de Cristo até aquela igreja.6 O padre, atônito, pergunta se a promessa foi feita para Iansã, ao
que Zé responde “a Santa Bárbara, é a mesma coisa”.7 O clérigo se irrita com a resposta e rebate
que esse tipo de comparação entre santos e orixás foi uma estratégia dos escravos, mas que
jamais seriam a mesma coisa. A tensão aumenta ainda mais, quando o padre descobre que

6 Cena a partir do minuto 00:21:20, na minutagem do filme O Pagador de Promessas (1962), disponível na
plataforma YouTube.
7 Cena a partir do minuto 00:25:20, na minutagem do filme O Pagador de Promessas (1962), disponível na

plataforma YouTube.

69
Nicolau é um burro e não um ser humano. Zé é acusado de ter feito uma promessa ao demônio,
com base na feitiçaria do candomblé, de ridicularizar o sacrifício de cristo e de ter a pretensão
de se igualar ao filho de Deus.
A notícia de um sertanejo pagador de promessas logo se espalha pela cidade e cai nas
mãos da imprensa sensacionalista que, ao saberem que o juramento de Zé incluía repartir suas
terras com outros moradores, criaram manchetes que o colocavam como defensor da reforma
agrária. Várias matérias jornalísticas foram lançadas, alçando Zé do Burro como o “doido que
queria ser Jesus”, além de se aproveitam do seu desconhecimento do caso, para criar manchetes
falando de um “novo cristo” que carregou uma cruz para defender a realização da reforma.
As acusações do padre e as manchetes que passam a circular sobre Zé, o tiram do papel
de homem inocente e honesto que assumira em contraste ao Bonitão, e o alçam ao patamar de
um indivíduo sem noção, que quer ser um novo cristo, que zomba do sacrifício feito pelo filho
de Deus e que, além de tudo, comunga com ideais políticos de esquerda, por supostamente
defender uma reforma agrária. O sertanejo, neste caso, é imbuído de personalidades que os
outros o atribuem, segue sendo um desconhecido, ora inocente, ora perigoso, mas sempre
distante do que vivem na cidade. O sertão assim foi posto, durante muito tempo, pela literatura
e historiografia clássica: ora como o lugar da barbárie, da selvageria, ora como o lugar
idealizado, em que o homem sertanejo representava os valores mais puros originários, por
estarem intocados pela civilização e que, apenas conquistando esse lugar, esse povo,
alcançaríamos a construção da nacionalidade brasileira (Mader, 2008).
Afligido pela não aceitação da sua oferta por parte do padre, e todas as pessoas que
constantemente o interpelam para saber mais detalhes da promessa, Zé implora para que a
igreja aceite sua cruz. Com a recusa veemente da igreja católica, as baianas do candomblé
oferecem acolhida ao beato, para que ele deposite a cruz como uma oferenda a Iansã no
“Candomblé de Menininha” – em referência ao importante terreiro de Mãe Menininha do
Gantois, uma das ialorixás mais famosas e respeitadas do Brasil. Apesar de ter feito a promessa
em um terreiro, Zé nega a proposta e diz que seu juramento foi para entregar diretamente na
igreja de Santa Bárbara e anuncia que dali não sairá.

70
Imagem 3: Candomblecistas convidam Zé para ir ao Terreiro do Gantois.

Fonte: https://jesuitasbrasil.org.br/2012/08/27/cine-forum-do-ccb-exibe-longa-o-pagador-de-promessas/.
Acesso em 13 de abril de 2023.

Na imagem acima observamos o momento em que as filhas de santo convidam Zé para


ir ao Terreiro do Gantois, diante de mais uma tentativa de entrar na igreja. A cena se torna
emblemática quando percebemos o jogo de imagens feito pelo diretor, Zé ao centro, com
aspecto de cansado, curvado com o peso de carregar uma cruz maior que seu corpo, rodeado
por mulheres que compartilham também uma crença em uma poderosa entidade capaz de
prover necessidades. A forma como os elementos são dispostos na fotografia nos remete às
representações que são feitas sobre o calvário de Jesus: cansado, ferido, faminto, carregando
uma cruz e sendo acompanhado por aqueles que partilhavam da sua fé.
Outra cena que nos chama bastante atenção, é quando acontece a procissão de Santa
Bárbara. O percurso das ruas é seguido por devotos e fiéis de todas as partes, sem restrições,
mas quando chegam às portas da igreja, o padre não permite que nem Zé e nem as baianas
candomblecistas entrem no templo.8 Mesmo sendo devotos da santa, são impedidos de entrar
na missa por partirem de uma religião diferente. Notamos uma divisão espacial do que seria
entendido como sagrado e profano na ótica do padre, que dialoga com o proposto por Mircea
Eliade (1992, p.29), em que a porta seria o limiar entre os dois mundos, uma vez que as
candomblecistas, Zé e todo o cosmos social que ali orbita, podem ficar nas escadas da igreja,
mas não podem adentrar no templo.
Concordamos com a visão de Soleni Fressato (2011, p.7), quando comenta que as teorias
de Eliade não se encaixa quando analisamos algo dentro do aspecto da “religiosidade popular
baiana”. Dilatamos o que a autora chamou de “religiosidade baiana”, para englobar todo o

8 Cena a partir do minuto 00:45:05, na minutagem do filme O Pagador de Promessas (1962), disponível na
plataforma YouTube.

71
aspecto das religiosidades afro-luso-ameríndias, que sacralizam espaços fora de seus templos
quando fazem, por exemplo, suas oferendas em rios, mares, encruzilhadas e demais espaços
que lhes são oportunos e necessários. Na trama, os personagens que ficam de fora da missa
transformam as escadarias em seu próprio lugar sagrado. As devoções não são interrompidas
por não estarem no limite da porta para dentro. As candomblecistas lá continuam com seus
cantos, os capoeiristas também ali permanecem. E Zé continua com sua fé e com a decisão de
concluir a sua promessa.
Aqui apontamos ainda que Zé, enquanto o sujeito que representa o sertão, simboliza
ainda como esse lugar, o universo sertanejo, engloba o hibridismo religioso. Não só a promessa
de Zé foi feita dentro de um terreiro, como o protagonista também encara com mais
naturalidade a importância da fé e do sagrado em detrimento do espaço em que se professa, do
que o próprio padre. Para Zé, a fé e a devoção não mudam, esteja ele em um terreiro ou uma
igreja, enquanto para o clérigo, apenas a fé católica é válida e aceita.
Apesar de muito insistir e implorar que aceitasse seu sacrifício, o padre recusa Zé e sua
promessa. A fé de Zé não é protagonista, diante do lugar em que sua promessa foi feita. Visto
como um subversivo que queria ser Cristo e propagar a reforma agrária, Zé foi denunciado por
Bonitão, acusado de ser um rebelde que estaria ameaçando a integridade da Igreja de Santa
Bárbara. A polícia chega à igreja e em uma confusão generalizada, Zé finda sendo atingido por
um tiro e morre na escadaria da igreja, sem ter cumprido a sua promessa de depositar a cruz
dentro do templo.
Imagem 4: Zé morto, carregado pelos capoeiristas.

Fonte: captura de tela feita pela autora em 13 de abril de 2023.

Em uma das cenas mais simbólicas do longa, os negros capoeiristas e candomblecistas


colocam Zé em cima da cruz, como se fosse o corpo de Cristo desfalecido, que agora fora morto
novamente, mas pela polícia e pelas mãos da sua própria religião. Enquanto Rosa chora sozinha

72
nas escadas, os capoeiristas levam a cruz igreja à dentro e finalmente, o sertanejo pode cumprir
sua missão: entrou na Igreja de Santa Bárbara carregando consigo a cruz, agradecendo por seu
burro Nicolau ter sido salvo.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Buscamos analisar neste trabalho, como as questões do hibridismo religioso e das
representações do sertão aparecem no Pagador de Promessas (1962) de Anselmo Duarte, de
modo que pudéssemos refletir o filme como uma fonte que engloba não apenas o seu produto
final, mas um escopo de debates que ficam postos nas entrelinhas. Usamos recortes de cenas,
aqui colocados como imagens, que nos possibilitaram perceber símbolos e detalhes que
construíram as cenas e nos deram bases para pensar os hibridismos e as representações.
Em nossas análises, percebemos que a fé é o que move Zé do Burro; o sagrado o cerca e
o acompanha não apenas dentro do espectro católico, mas também das religiões de matriz afro-
brasileiras. O candomblé, aqui, ao mesmo tempo que antagoniza com a igreja, também caminha
próximo a ela em suas festividades e celebrações. É a fé na cura e no milagre que faz Zé deixar
sua casa, sua cidade e sua vida particular, para honrar um compromisso que assumiu com uma
entidade poderosa, que curou seu burro Nicolau. É também a fé que desenha o percurso da vida
deste sertanejo, que fez a sua própria via crúcis, saindo do seu lugar, atravessando impropérios
e chegando até o seu calvário. A fé que se manifesta, acima de tudo, como um fenômeno híbrido,
que aglutina bases do candomblé e do catolicismo, gerando uma fé que, para o protagonista,
tem sua essência no divino, no sagrado, na força de Santa Bárbara, ou de Iansã, independente
do templo e do espaço em que se cultuam.
As culturas populares, como a capoeira e a literatura de cordel, ou o “ABC”, estão
presentes também na trama e ocupam lugares de importância em torno da peleja de Zé. Os
capoeiristas e poetas estão orbitando também esse espaço do sagrado, que, junto a Zé na
calçada da igreja, o incentivam e procuram soluções para o ajudar em sua promessa. O sertão
está presente na trama, mesmo que a narrativa se passe nas ruas de Salvador/BA, pois as
representações do ser sertão estão para além de uma delimitação espacial. O sertão de Zé do
Burro é o sertão da fé, do sagrado, que é transportado no âmago do seu ser mesmo que ocupe
uma espacialidade diferente da sua de origem. É a fé, junto as manifestações das culturas
populares, que movem o enredo de O Pagador de Promessas (1962).

73
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. Distante e/ou no instante: “sertões
contemporâneos”, as antinomias de um enunciado. In: FREIRE, Alberto (Org.). Culturas dos
Sertões. Salvador: EDUFBA, 2014.

CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas. Tradução: Ana Regina Lessa; Heloísa Pezza
Cintrão. 4 ed. São Paulo: EdUSP, 2008.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre práticas e representações. Algés, Portugal: DIFEL
– Difusão Editorial S. A. 1990.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. A essência das religiões. São Paulo,


Martins Fontes, 1992.

FERRO, Marc. Cinema e História. Tradução: Flávia Nascimento. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra,
2010.

FRESSATO, Soleni Biscouto. Duas faces da religiosidade baiana: sincretismo e intolerância.


Reflexões em O Pagador de Promessas. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH •
São Paulo, 2011.

MÄDER, Maria Elisa. Civilização, barbárie e as representações espaciais da nação nas Américas
no século XIX. História Unisinos, São Leopoldo, 12(3), setembro/dezembro, 2008. p.262-270.

NEGRÃO, Lísias Nogueira. Entre a Cruz e a Encruzilhada. São Paulo: EdUSP, 1996.

PRANDI, Reginaldo (Org.). Encantaria brasileira: O Livro


dos Mestres, Caboclos e Encantados. Rio de Janeiro: Pallas, 2004.

ROSENTONE, Robert A. A história nos filmes, os filmes na história. Tradução: Marcello Lino. São
Paulo: Paz e Terra, 2010.

VAINFAS, Ronaldo. A Heresia dos Índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.

FILMOGRAFIA

O PAGADOR de promessas. Direção: Anselmo Duarte. Produção: Francisco de Castro; Oswaldo


Massaini. Estúdio Cinedistri. Distribuição: Lionex Films Inc; EMBRAFILME. 1962. YouTube, 1
vídeo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=oyYDcXD-SqI. Acesso em 25 de
junho de 2023

74
Capítulo VII
UM VIGÁRIO NO SERTÃO DA VELHA AUGUSTO SEVERO:
PADRE PEDRO NEEFS E SUAS DENÚNCIAS SOBRE AS
CORRUPÇÕES NAS FRENTES DE EMERGÊNCIAS DE 1980.
DOI: 10.51859/amplla.soh683.1124-7
Ana Sara Cordeiro de Almeida 1
Juciene Batista Felix Andrade 2

1. INTRODUÇÃO
Em 1979, o Vigário holandês Padre Pedro Neefs3 é transferido para a cidade Augusto
Severo-RN45, trazendo consigo um discurso de Reforma Agrária para a cidade e melhoria para
as populações rurais. Uma das melhorias foi reivindicar que os trabalhadores das frentes de
emergências6 recebessem os pagamentos atrasados e que os não alistados fossem inseridos no
programa.
Sabemos da atuação do Padre Pedro Neefs por meio das matérias jornalísticas
encontradas em periódicos do Rio Grande do Norte, a exemplo do Jornal Diário de Natal 7 e O

1 Mestranda em História dos Sertões pelo Programa de Pós-Graduação em História do CERES/UFRN. E-mail:
saracordeirorn@gmail.com.
2Docente do Departamento de História do CERES e do Programa de Pós-Graduação em História do CERES/UFRN,

Mestrado em História dos Sertões. E-mail: juciene.andrade@ufrn.br.


3 Peter Marinus Maria Neefs nasceu em 1929, na cidade de Breda, Holanda. Atuando como pároco no Rio Grande

do Norte na cidade de em Apodi-RN. Em 1979 assumiu os serviços religiosos da paroquia de Augusto Severo,
passando a defender as causas dos mais necessitados. Na cidade, seu serviço tomou grande proporção,
principalmente, por defender a reforma agrária. Para um maior conhecimento, ler: FERNANDES, Saul Estevam.
Entre discursos e ações, resistência e apoio: Padre Pedro Neefs e o processo de formação política no Oeste Potiguar.
In: XVI Semana de Humanidades. Natal-RN: EDUFRN, 2008.
4 Homenagem feita a Augusto Severo de Albuquerque Maranhão, aviador e deputado federal pelo Rio Grande do

Norte entre os anos de 1893-1902. Augusto Severo era irmão de Pedro Velho, líder político da oligarquia
Albuquerque Maranhão. A cidade localiza-se no Oeste Potiguar do Rio Grande do Norte, mais precisamente no
Médio Oeste Potiguar, estabelece limites atuais, com as seguintes cidades: Janduís, Caraúbas, Upanema e Triunfo
Potiguar.
5 Em 1991, por meio de um decreto municipal, a cidade de Augusto Severo teve seu nome mudado para Campo

Grande, nome mantido até os dias de hoje. Porém, destacamos que para a finalidade desta pesquisa, optamos por
nomear o nosso recorte temporal por Augusto Severo, pois, é assim que a cidade é nomeada em nossas fontes de
pesquisa bem como no recorte temporal investigado por nós.
6 Trabalhadores e trabalhadoras que trabalhavam em políticas públicas durante os períodos de secas no Nordeste,

estas políticas eram conhecidas como frentes de emergências, os trabalhos eram em obras de construções e
reparos em açudes, poços de água, reparação de estradas.
7 Periódico fundado no ano de 1939, por Aderbal de França, Djalma Maranhão, Waldemar Araújo e Rivaldo

Pinheiro, sob a denominação de “O Diário”. No ano de 1945 o jornal passa a englobar o grupo de jornais Diários
Associados S/A, somente no ano de 1947 que passa a ter como nomenclatura Diário de Natal. O jornal foi extinto
em 2012. Para mais informações ver: Disponível em:
<http://repositoriolabim.cchla.ufrn.br/handle/123456789/1456>: acesso em: 18/07/2023.

75
Poti, disponibilizados para consulta e pesquisa na Biblioteca Nacional Digital8. Estas fontes nos
dão margem para uma análise do período (1980), de como a partir da fala do Padre os rumos
jornalísticos enfatizaram a seca e as precariedades decorrentes das frentes de emergência. O
discurso do Vigário foi se caracterizando como um estopim para que outras questões entrassem
em cena sobre a cidade. Pelas publicações, acompanhamos o Padre Pedro pelo ano de 1980,
período que iniciou seus trabalhos paroquiais em Augusto Severo e, onde se destacou como
atuante nas lutas por igualdade social, procurando debater publicamente as falhas das frentes
de emergências na cidade de Mossoró-RN.
A espacialidade em que as atividades rurais são exercidas, em suma, são atreladas ao
universo sertanejo, assim como aponta o geógrafo Antonio Moraes (2003) ressaltando que
“uma acentuada localização não-urbana delimita e unifica o universo sertanejo, marcado pela
ruralidade e pela vida agrária e extrativa” (p. 4). Este sertão de Augusto Severo é uma
espacialidade em que seus habitantes ainda mantêm ligações com o mundo rural, seja
mantendo atividades agrícolas em períodos chuvosos, seja pelas atividades pesqueiras.
Para uma análise metodológica nos apropriamos da Análise de Discurso colocada por
Michel Foucault (2008), pois ao nos aprofundarmos nas fontes jornalistas pôde-se perceber
como há nos discursos e enunciados a eminencia de poderes existentes, e que devemos buscar
entender a quais personagens os discursos buscam informar. As edições analisadas como fontes
neste artigo, são do período de 1980, recorte temporal de nosso artigo. A partir da análise das
fontes, percebemos como os discursos dos jornais trataram as denúncias do Padre, e como
outros discursos surgiram a partir disso.

2. O DISCURSO INICIAL: PADRE PEDRO VAI A MOSSORÓ


Peter Marinus Maria Neefs chegou ao Brasil, em 1952, a convite de um grupo de padres
do Sagrado Coração de Jesus, em Recife, para dar continuidade aos estudos no seminário
religioso. Regressando a Holanda, em 1957, para sua ordenação e celebração da primeira missa
como padre, voltando ao Brasil dois anos depois. Possivelmente, na tentativa de se integrar à
sociedade e a cultura brasileira da época, passou a utilizar a tradução do seu nome em
português, atendendo assim, pelo nome de Padre Pedro Neefs. Após retornar ao Brasil, foi
trabalhar na cidade Beberibe-CE, onde realizava atividades pastorais, em 1964 foi transferido
para Apodi-RN, na cidade manteve grande apoio às causas dos trabalhadores rurais, ajudando
os mais pobres, criando um centro de produção agrícola e se destacando popularmente. O

8 Periódicos disponíveis para acesso e pesquisa na Hemeroteca Digital. Disponível em:


https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/. Acesso em: 05/09/2023.

76
vigário foi alvo de questões políticas, ocasião em que houve circulação de boatos de que seria
candidato a prefeito na cidade, como consequência dos falatórios, Padre Pedro Neefs foi
“afastado pela diocese de Mossoró dos trabalhos como pároco da Paróquia de São João”
(Fernandes, 2008, p.5), em Apodi9.
Em 1979, foi encaminhado pela Diocese de Mossoró para o município de Augusto Severo,
onde passou a desenvolver atividades paroquiais, sendo estas guiadas pelo pensamento da
Teologia da Libertação10. Instalado na nova paróquia, Padre Pedro estabeleceu laços de
sociabilidade com o sindicato rural da cidade, procurando debater na região assuntos sobre
questões agrárias e pobreza, desenvolveu grupos de jovens, que também se interessavam por
assuntos sociais.
Vale ressaltar que o ano de sua chegada em Augusto Severo é marcado por um contexto
de seca, sendo assim, não era dos melhores momentos para a população rural da região. Tendo
em vista que havia uma estiagem e as frentes de emergências estavam abertas e, instalados no
município, os espaços de trabalhos, eram compostos pelas seguintes construções: de açudes,
pequenos barreiros, e reparos em açudes. Com as precariedades dos trabalhos, logo as
atividades vinculadas aos problemas das frentes seriam destaques. O mal pagamento aos
trabalhadores e trabalhadoras foram pautas denunciadas pelo sacerdote no jornal Diário de
Natal:

Emergência escraviza em Augusto Severo: Vigário Denúncia injustiças e corrupção

“Quando chegar o dia do pagamento do Plano de Emergencia, em Augusto Severo vai


correr sangue. O povo está morrendo de fome e revoltado com as injustiças praticadas
contra quatrocentas famílias de trabalhadores que, de uma maneira absurda, foram
cortadas do programa. São pessoas famintas, que precisam, pelo menos, serem tratadas
como gente”. A grave advertência, seguida de denúncia de irregularidades no Plano de
Emergência, beneficiando ricos proprietários do Município, foi feita a Comissão de
Assuntos Regionais do Senado, o vigário da paróquia de Augusto Severo, ped. Pedro
Neefs, que disse na presença de Lavoisier Maia já haver comunicado o fato ao Governo
do Estado e pedindo providências. [...] O pe. Pedro Neefs deseja que os erros existentes
no programa sejam, realmente apurados, “mas que os pobres e famintos agricultores
não sejam os prejudicados com a medida”. Esclareceu o vigário da paróquia de Augusto
Severo que está sendo observado, pelo menos naquele município, o Plano de
Emergência tornando os grandes proprietário mais poderosos e os pobres agricultores
mais miseráveis, escravizados. (O Diário de Natal, Natal, 28-06-1980).

O título da manchete no periódico é chocante, enfatiza que na cidade de Augusto Severo


a situação dos serviços de emergências era análoga à escravidão, por não pagarem os

9 A paroquia de São João e Nossa Senhora da Conceição em Apodi pertence a Diocese de Mossoró-RN, situada no
Alto Oeste Potiguar.
10 Movimento sócio eclesial da Igreja Católica que teve efervescência na década de 1960, este movimento se

caracteriza pela defesa aos oprimidos e necessitados.

77
trabalhadores devidamente e terem serviços corruptos. Padre Pedro Neefs realizou críticas ao
Programa de Emergência11, afirmando que os recursos que deveriam ser destinados aos
trabalhadores, estavam sendo usado para benefício dos donos de terras. A exploração dos
trabalhadores rurais pelos proprietários de terras assegurava o enriquecimento deste e o
empobrecimento daqueles.
É importante destacarmos que os serviços de inscrições e pagamentos dos
trabalhadores e trabalhadoras desse período, estavam sob orientação técnica do Instituto de
Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER-RN), ficando também com a responsabilidade
de orientar os donos das terras inscritas nos Programas de Emergências – tendo em vista, que
algumas construções de açudes eram em terras privadas - e os trabalhadores rurais, e pelo
Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS), para assim, colocarem em prática
os programas de emergências.
Estes programas destinados aos trabalhadores rurais, muitas vezes eram ineficazes e
não conseguiam suprir as necessidades sofridas no período. É o caso descrito em pesquisas que
se aprofundaram sobre os programas emergenciais no período que compreende os séculos XIX
e XX, dentre elas, citamos a pesquisa do historiador Frederico de Castro Neves (1995) sobre os
campos de concentrações presentes no estado do Ceará, no período de 1915 e 1932. Os campos
eram espaços decadentes e desumanos, utilizados para afastar os flagelados dos espaços
urbanos.
As questões colocadas por Padre Pedro Neefs fizeram com que o programa de
emergência, de 1980, fosse palco de escândalos no Estado do Rio Grande do Norte e na própria
cidade de Augusto Severo. Neste cenário de embates, vieram à tona discussões que envolviam
denúncias de corrupções e de atrasos de pagamentos que os trabalhadores estavam sujeitos.
Por ser uma figura religiosa na cidade de Augusto Severo, representante do catolicismo na
região, seu posicionamento reverberava de uma forma distinta dos proprietários rurais e
políticos, deste modo, sua opinião e posicionamento em prol da população rural possibilitava a
circulação de discursos nos periódicos da época.
Pode-se observar nos estudos historiográficos como os periódicos são fundamentais
para se entender os discursos em períodos passados, principalmente no que tange as
circulações de informações presentes nos jornais sobre as secas, muitos escritores escreviam

11 Programas de cunho emergencial, desenvolvidos em períodos de estiagens nas regiões do Nordeste. Nestes
programas, os trabalhadores e trabalhadoras eram inscritos nas obras, como: poços, reconstruções de paredes, e
no conserto de estradas de acesso a parte rural dos municípios, construções que ocorriam nas comunidades rurais,
sítios e fazendas.

78
nas colunas dos jornais para informar como estavam as situações de suas cidades. Na seca de
1877, os periódicos favoreceram divulgações a respeito dos sertões, do Norte e da seca, esta
última descrita como fator destrutivo para o Norte12. Em contrapartida, a imprensa exerceu um
papel discursivo que favoreceu as elites do Norte, como salienta o historiador Durval Muniz de
Albuquerque Júnior:

Graças à intensa campanha que é desenvolvida pela imprensa local, inicialmente, e


nacional, posteriormente, que explora as imagens de miséria, de desespero, morte e dor
que estavam ocorrendo nessa área, durante essa estiagem. A imprensa contribui,
portanto, para demonstrar à própria elite nortista que a seca era um tema capaz de
mobilizar a opinião pública não só das províncias por ela diretamente afetada, como de
todo país. (Albuquerque Júnior, 1995, p. 117).

Os discursos presentes nos periódicos possibilitaram que os “problemas das secas”


fossem vistos nacionalmente, além, de explicitar que os temas das estiagens tocavam as
opiniões públicas. As notícias expostas no Diário de Natal e O Poti, referentes à viagem de Padre
Pedro a Mossoró-RN para participar da reunião dos senadores - que tinha como intuito discutir
soluções relacionadas as estiagens -, fizeram com que as mazelas de Augusto Severo viessem a
ser conhecidas publicamente.
O Diário de Natal também colocou em circulação as expectativas que os ouvintes
políticos tinham na tribuna de senadores, que ocorria em Mossoró, conforme a matéria
publicada pelo jornal, os senadores presentes no local esperavam que todos os oradores ali
estivessem dispostos a exigir mais recursos para financiar os programas emergenciais em suas
próprias terras. Entretanto, o discurso de Padre Pedro Neefs, de acordo com o relato, fugiu do
esperado pelos senadores:

Os oradores se sucediam na tribuna, colocando com firmeza suas reivindicações, mas


numa linguagem moderada. Até que um homem vestindo camisa xadrez e calça caqui,
de quase dois metros de altura e pele clara, queimada pelo sol, pediu do fundo do
recinto, a palavra. A primeira impressão dos senadores foi a de que mais de um
proprietário da região iria reclamar contra a falta de recursos nos bancos para os
financiamentos dos programas especiais. Qual não foi, porém, a surpresa, quando o
orador, num português carregado, passou a defender o trabalhador sem-terra. Era o
padre Pedro Neefs, vigário do município de Augusto Severo, a 150 quilômetros de
Mossoró, que se deslocara para o local da reunião, tão logo soube que passaria por ali
uma caravana de senadores. (Diário de Natal, Natal, 15-07-1980).

Impressionando a todos por defender os trabalhadores sem-terra em seu discurso, já


que o momento com os senadores haviam muitos proprietários de terras que reivindicavam
por melhorias para suas propriedades. Observando as características do homem que pediu a

12Até a década de 1930 referia-se ao Nordeste como Norte, foi somente na década de 1970 que ficou definido a
delimitação regional como Nordeste.

79
palavra na tribuna, ninguém havia desconfiado que ele iria se opor aos interesses dos grandes
proprietários locais. Quebrando as expectativas dos senadores, Padre Pedro realizou um
discurso defendendo os interesses dos pobres.
Tendo em vista o contexto da matéria, com o acréscimo de uma imagem do padre à
notícia no jornal, podemos considerar que a introdução de uma imagem do vigário na mesma,
só aumentou o alcance da repercussão e circulação de discursos que envolviam as frentes de
emergência na cidade de Augusto Severo-RN, divulgando o personagem que ousou ir ao
encontro dos senadores que estavam reunidos em assembleia e detalhar os problemas de
corrupções. Abaixo, a fotografia do Padre Neefs contida na reportagem publicada no Diário de
Natal:
Figura 1: Padre Pedro Neefs (1980)

Fonte: Diário de Natal, (1980).

A imagem acima foi colocada juntamente com a matéria. Nela percebemos o vigário com
uma camisa xadrez e alguns outros sujeitos ao fundo da imagem, gesticulando com as mãos,
explicando como se encontrava a situação do Programa de Emergência em Augusto Severo. A
partir dessa denúncia do Padre Neefs, as questões que envolveram as frentes eram colocadas
cada vez mais em pauta.
Após a denúncia do Padre sobre o Programa de Emergência, políticos da cidade vieram
a público expor suas impressões sobre a situação crescente de desigualdades encontradas na
cidade, com destaque, é claro, para a zona rural de Augusto Severo. No mês de julho o ex-
prefeito Miguel de Brito, e também proprietário de terra, denunciou e culpou os serviços
técnicos da EMATER-RN, discorrendo a favor dos trabalhadores e trabalhadoras rurais e
proprietários, que muitos estavam se encontrando em estado de miséria:

80
Também proprietário rural do Município, “Miguel de Chagas” – como é conhecido
popularmente – entende a necessidade de serem adotadas as devidas providencias para
o caso, pagando, o que é devido aos trabalhadores e efetuando o recadastramento, “a
fim de tranquilizar os trabalhadores rurais e proprietários do Município de Augusto
Severo, povo sofrido”. (Diário de Natal, Natal, 03-07-1980).

O ex-prefeito, Miguel de Brito, popularmente conhecido pelo apelido de “Miguel das


Chagas”, apelou as autoridades governamentais, inicialmente preocupado com a situação da
cidade, expondo a condição do “povo sofrido” de Augusto Severo. É importante frisarmos que
inicialmente essas preocupações vieram do Padre da cidade, porém, não ficou apenas no âmbito
religioso, foi se alastrando e dando possibilidade de divulgação de outros sujeitos, como no caso
de Miguel de Brito, isto é, os discursos foram também adentrando em pautas de interesse dos
setores políticos.
Nesse sentido, é necessário deixar evidente que os discursos possuem uma finalidade
(Albuquerque Júnior, 1988), que podem ser problematizados a partir de irrupções de seus
sentidos (Foucault, 2008). O discurso apresentado por Miguel de Brito, expõe como a figura
política estava utilizando do momento de calamidade e caos das frentes emergenciais, talvez
inspirado no movimento realizado pelo padre, para assim agradar os populares e futuramente
se reeleger na cidade. Essa relação por nós estabelecida, considera que os discursos são
intencionais, cheio de significados, posicionamentos e que buscam atender os objetivos fins de
quem os enuncia.
As repercussões das queixas expostas nos jornais, fazem a EMATER-RN tentar reverter
a situação, indo a público “A EMATER promete agora que pagará trabalhadores que já passam
fome [...] todos os trabalhadores rurais inscritos no Plano de Emergência receberão até a data
em que ocorreram os cortes nas propriedades [...]” (O Diário de Natal, Natal, 10-07-1980). As
acusações vindas do Padre e do ex-prefeito da cidade, colocaram pressões nas instituições,
fazendo com que as mesmas pagassem os pagamentos atrasados dos trabalhadores rurais.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
De antemão, frisamos que os resultados deste artigo são preliminares, considerando que
o mesmo é resultado de parte do que nos propomos a estudar em nossa pesquisa de dissertação
do Mestrado em História dos Sertões. É importante salientarmos que as fontes utilizadas neste
artigo fazem parte de nosso quadro de documentações analisadas por nós, na referida pesquisa
acima citada, trabalho este que se encontra em desenvolvimento. Todavia, é possível mapear
alguns resultados iniciais a partir de nossas reflexões.

81
No ano de 1980, as frentes de emergências na cidade de Augusto Severo repercutiram
em determinados jornais de envergadura do Rio Grande do Norte, abordando temas que
expunham as denúncias de corrupções dentro dos programas realizados em prol do combate à
seca e, criticando os rumos dos recursos que, acabavam por favorecer os proprietários de
terras. O jornal o Diário de Natal relatou, no período de junho de 1980, sobre a figura de padre
Pedro Neefs, não falando sobre festividades religiosas, mas sim, que o mesmo ousou em ir até
onde os senadores estavam reunidos, na cidade de Mossoró, para apresentar as mazelas dos
programas de emergências e defender os trabalhadores inscritos sem possuírem terras.
A conduta do Padre Pedro Neefs colaborou para que outros discursos viessem à tona,
caso especifico do ex-prefeito da cidade Miguel de Brito, que foi a público também descrever
como a frentes de emergências se encontravam no período de julho, em um viés diferente, pois
o mesmo era proprietário e político e, talvez motivado pela fala do Padre em Mossoró e na
repercussão que se deu a partir disso, buscou relatar suas próprias impressões.
O Diário de Natal apresentou aos leitores as impressões que os senadores e todos que
estavam presentes no momento da fala do vigário em Mossoró, o mesmo foi descrito como um
homem alto e tendo uma fala “carregada”, já que era holandês, e que não era um proprietário
de terra defendendo seus interesses particulares, mas que estava defendendo os interesses dos
sem terras, dos trabalhadores que não eram pagos. Os discursos presentes nos jornais nos
proporcionam entendermos que a partir da matéria sobre os questionamentos do Padre Pedro
Neefs, os problemas das frentes na cidade de Augusto Severo ficaram visíveis aos olhares
regionais e políticos. Isso foi possível devido à circulação dos discursos do padre no e pelos
periódicos, assim, relembrando que as matérias propagadas versavam sobre os relatos em
torno das precariedades das frentes no Oeste Potiguar e, até mesmo como os órgãos
responsáveis iriam reverter os problemas relatados nas denúncias.
Por fim, compreendemos que o lugar privilegiado do padre, dentro de uma sociedade
em sua maioria católica, deteve um peso e visibilidade mais amplo para as discussões que
englobam os trabalhos nas frentes emergenciais no município de Augusto Severo, entre os anos
de 1979 e 1980. Assim, percebemos como os discursos enunciados pelo padre Pedro Neefs
foram importantes para o período, pois a partir dele, os trabalhadores rurais sem terras
conseguiram ter voz, e nisso, novos movimentos se deram na cidade, um desses movimentos, é
do sindicato rural da cidade. Mas essas questões serão apresentadas futuramente em outro
trabalho.

82
REFERÊNCIAS
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nordestino – de problema à solução (1877 – 1822). Dissertação (Mestrado em História).
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83
Capítulo VIII
O SURGIMENTO DAS BODEGAS PELOS SERTÕES
BRASILEIROS.
DOI: 10.51859/amplla.soh683.1124-8
Raimunda Francinete de Souza 1
Antonio José de Oliveira 2

1. INTRODUÇÃO
Este artigo é o resultado de uma pesquisa que venho desenvolvendo sobre as bodegas
no Bairro João XXIII, na cidade de Caicó, Rio Grande do Norte. À luz das bibliografias e de forma
panorâmica, vou discutir um pouco sobre a importância desses estabelecimentos pelo
território brasileiro e suas especificidades regionais. Essas discussões, são frutos do primeiro
capítulo da minha pesquisa de dissertação do curso de mestrado História dos Sertões do
Programa de Pós-Graduação em História do Centro de Ensino Superior-CERES-UFRN. A
pesquisa versa sobre o papel social das bodegas no sertão/cidade de Caicó na década de 1980.
Esse referencial bibliográfico foi selecionado mediante buscas no banco de dados do Portal
Periódicos da Capes, da Scielo e do Google Acadêmico, como também coletados na Biblioteca
do CERES-Caicó e acervo particular da pesquisadora. Por se tratar de um tema não muito
pesquisado no âmbito regional, se fez necessário lançar mão de outros trabalhos sobre o tema
em várias regiões do país, daí, o porquê o título deste artigo e o porquê dos trabalhos que vamos
apresentar não contemplar apropriadamente o recorte temporal da pesquisa e nem o sertão
enquanto conceito, mas quanto espaço de surgimento das bodegas.
Segundo o Dicionário de Houaiss (2003), a etimologia “bodega” vem do latim apothēca,
no sentido de despensa, e do grego, apothḗkē, no sentido de depósito, adega, armazém (de
víveres). Diante dessa variedade de sentidos, encontramos outros termos para o vocábulo,
como taverna movível (Silva; Bluteau, 1789), pequeno armazém de secos e molhados, comida
grosseira, coisa suja, porcaria, imundice (Ferreira, 2010). Essa polissemia é perceptível ao
depararmos com as produções historiográficas encontradas pelo território brasileiro sobre as
bodegas. Nos trabalhos historiográficos que se segue a discussão, no tocante à Região Nordeste,
encontramos, frequentemente, o termo “mercearia” para significar uma bodega.

1 Mestranda em História dos Sertões pelo Programa de Pós-Graduação em História do CERES/UFRN. E-mail:
raimunda.emmfs@gmail.com.
2 Docente do Departamento de História do CERES e do Programa de Pós-Graduação em História do CERES/UFRN,

Mestrado em História dos Sertões. E-mail antonio.oliveira@ufrn.br.

84
As antigas bodegas dos sertões tinham o balcão de madeira ou alvenaria que separava o
freguês das mercadorias. Continham garrafas de bebidas, tranças de alho e rolos de mortadela
ornamentando as estantes. Ficavam à mostra, a balança de dois pratos sobre o balcão, sacas de
açúcar, de feijão, farinha, de arroz e pilhas de rapadura dispostas sobre o chão ou em prateleiras
de madeira. A baleira giratória com as guloseimas, as broas, os pães, as cocadas, o papel de
embrulho e tantos outros artigos destacavam-se facilmente na paisagem das antigas bodegas,
como diz o Jessier Quirino3, “isso é cagado e cuspido paisagem do interior”. Estas paisagens
materiais e particularidades das bodegas já não são tão comuns nos sertões, ficando na
memória apenas as representações do que um dia elas foram. O conceito de representações
pode ser entendido neste trabalho, “como uma forma de enxergar o mundo e, sobretudo, o
passado” (Pesavento, 2006, p. 49). E, nesse sentido, buscamos rememorar as antigas bodegas
discorrendo um pouco sobre sua história e essas peculiaridades.

2. OS PRIMEIROS SINAIS DE URBANIZAÇÃO E AS BODEGAS NOS SERTÕES


DO BRASIL
A historiografia brasileira destaca que os primeiros núcleos urbanos foram erguidos na
faixa litorânea da Colônia Portuguesa, por serem pontos estratégicos para atender aos
interesses mercantis da Coroa, os quais estavam voltados à exploração da madeira e a produção
açucareira. Em relação ao sertão, o movimento dos bandeirantes e as missões religiosas,
atrelados aos interesses políticos e econômicos dos colonizadores, promoveram a ocupação e
o povoamento gradativamente. Esse povoamento, se efetivou pelos caminhos do gado, dos
pousos e sobretudo pelas feiras, espaços em que eram transacionadas diversas mercadorias.
Para Manuel Correia de Andrade, "dá-se nas feiras um verdadeiro encontro entre a
cidade e o campo e é nelas que os comerciantes, ligados ao abastecimento das grandes cidades,
adquirem os produtos agrícolas a serem consumidos” (Andrade, 1998, p. 118). O comércio local
é realizado entre o campo e a cidade em feiras quase sempre semanais, numa relação de troca,
em que a população do campo se abastece dos produtos da cidade. Melhor dizendo, o campo
produz, a cidade produz e o excedente é comercializado entre ambos. Nesse processo de
acumular e vender, podemos considerar que as bodegas podem ter sido iniciadas como
armazéns, muito comuns no campo, onde se estocavam os produtos agrícolas de safras
abundantes.

3Arquiteto, compositor, poeta e intérprete, natural de Campina Grande, Paraíba. Autor de vários livros, sendo
primeiro Paisagem de Interior, Edições Bagaço, 1996.

85
Francisca Williane Barros da Silva (2013), no trabalho: Hábitos e práticas de consumo
representados pelas bodegas no sertão quixadaense (1960-1980), é o mais recente sobre a
historiografia das bodegas no Nordeste. A autora justifica sua pesquisa mencionando a bodega
como principal ponto de comércio popular, espaço onde ocorriam diversas trocas sociais, para
além das mercantis. Ela faz um percurso histórico sobre as bodegas remetendo ao período
colonial o surgimento desses pequenos estabelecimentos comerciais. Ela observa que “uma vez
trazida para o Brasil pelos colonizadores e imigrantes europeus, ao adentrar, sobretudo a
região Nordeste, utilizava-se de tal expressão para fazer referência a lugares onde se vendiam
comidas e bebidas alcoólicas” (Silva, 2013, p. 28), atribuindo a este lugar, uma espécie de lugar
sujo e mal frequentado.
Após fazer esse percurso histórico, a autora apresenta a etnografia das bodegas do
Ceará, apresentando os conceitos e enfatizando a funcionalidade e importância delas no
contexto urbano de Quixadá. Destaca o cotidiano nesses espaços de convivência através das
memórias e história de vida dos moradores da referida cidade e aborda os desafios que o
comércio das bodegas vivenciou na década de 1960 com a chegada dos supermercados. Por fim,
Silva defende que as bodegas convergem para diferentes interesses e que elas eram lugares de
sociabilidades.
Nesse percurso de pesquisa, encontramos no trabalho do geógrafo Lincoln da Silva Diniz
(2004), As bodegas da cidade de Campina Grande: objetos de permanência e transformação do
pequeno comércio no bairro de José Pinheiro, pontos semelhantes ao da autora supracitada. Sua
dissertação de mestrado envolve as bodegas numa perspectiva de permanência e resistência às
mudanças do espaço. Tem como objetivo compreender e analisar a importância das bodegas
para o bairro José Pinheiro da cidade de Campina Grande, no Estado da Paraíba, tendo em vista
que a chegada de novas formas comerciais poderia mudar esse cenário. Assim como a
historiadora cearense, o autor também considera a bodega como um comércio popular de
elevada importância para a sociedade na qual está localizada.
Já para Diniz (2004, p. 11), as bodegas surgiram “onde predominavam práticas
comerciais primitivas (troca, escambos), comuns no início da ocupação dos sertões brasileiros”.
Elas remontam à origem dos povoados, vilas, onde eram realizadas as feiras livres, ou seja, o
“mercado elementar4”. Além de terem atravessado várias temporalidades, as bodegas
desempenharam um papel importante na formação e no desenvolvimento das cidades.

4A expressão é citada por Fernand Braudel em Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII,
os jogos das trocas. Volume 2. Trad. Telma Costa. Rev. da tradução: Maria Ermantina de Almeida Prato Galvão. 2
ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 15.

86
Para Helder Remígio Amorim (2011), na sua dissertação de mestrado, Entre a mercearia
e o supermercado: memórias e práticas comerciais no Portal do Sertão, destaca o aspecto da
economia comercial “transeunte”. Trata-se das relações entre cidade, memória e modernização
através do comércio de alimentos na década de 1970. No seu trabalho, relaciona a origem da
cidade pernambucana de Arcoverde à sua boa localização no interior do estado, por estar em
uma encruzilhada, favorecendo o deslocamento de viajantes. Assim, como ocorreu em outras
localidades, a feira livre foi fundamental na formação da cidade, impulsionando a economia
local e expandindo os espaços.
Para o referido autor, no seu artigo História de vida de bodegueiros: memórias e práticas
comerciais em uma cidade do sertão pernambucano (década de 1970), as bodegas são espaços
onde se comercializam gêneros de primeira necessidade e as relações entre bodegueiro e
freguês não se limitam somente ao econômico, mas ao social. Elas passam a ser um espaço de
convivência e de sobrevivência: “Era por meio delas que habitantes das áreas mais longínquas
do centro compravam ‘o pão nosso de cada dia’” (Amorim, 2011, p. 13). Desse modo, as bodegas
nos sertões do Brasil representam esse produto da ação humana, ocupando espaços e dando
significado a estes. Assim, entendemos que o excedente da agricultura de subsistência foi
levado para os centros urbanos para que fosse comercializado, surgindo as feiras livres como
conhecemos.

Figura 1: Bodega com o nome social de “Mercearia Juvenal”, no Povoado Riacho Pequeno em Belém do São
Francisco/PE.

Fonte: João Kleber, blog Caminho da Feira: A bodega, 21/10/2011

Outras produções historiográficas dão conta que semelhantes acontecimentos podem


ter ocorridos em outras partes do país, mesmo em circunstâncias social, política e econômica
diferentes. Assim, temos o trabalho dissertativo da historiadora paranaense Neli Maria
Teleginski (2012), sobre as bodegas e bodegueiros na cidade de Irati no Paraná.

87
A autora menciona que a cidade paranaense se iniciou como povoado, no final do século
XIX, com a instalação de uma das estações da Companhia São Paulo – Rio Grande Railway
contando com poucas pessoas, entre elas, operários da Companhia, agricultores, comerciantes
e proprietários de mulas, cavalos e cargueiros. Para ela, a presença destes cargueiros e animais,
revela a carência de estradas na região e que foram eles os responsáveis pelo abastecimento
local. Contudo, com a chegada da ferrovia ligando a cidade de Irati aos estados do sul e sudeste,
a vida da população mudou bastante, tendo em vista que o trem “agilizou o transporte e
incrementou as relações comerciais” (Teleginski, 2012, p. 25). Ou seja, o surgimento e
desenvolvimento das cidades estão relacionados a muitos aspectos, mas o que se destaca é o
econômico, independentemente de região.
Ao debruçarmos no trabalho da autora, é possível verificar que no sul do país, a
denominação mais comum para se referir a uma bodega por parte da classe social abastada da
cidade, enquanto estabelecimento comercial varejista de pequeno porte, principalmente de
produtos alimentícios, é a de “armazém de secos e molhados” ou “loja de secos e molhados”.

Esse fato chama atenção porque no vernáculo popular das ruas, estradas e distritos
rurais a palavra bodega era a mais comum e geral para designar estabelecimentos que
vendiam mercadorias variadas, alimentos ou de tudo um pouco, chamadas, talvez mais
pomposamente pela imprensa, autoridades e comerciantes mais abastados, de casas
comerciais ou armazéns (Teleginski, 2012, p. 48).

De acordo com Teleginski (2012), a utilização da expressão “secos e molhados” tem


relação com a influência dos viajantes que percorreram as regiões de Minas Gerais e São Paulo
entre os séculos XVIII e XIX. “A maioria dos pesquisadores desse período define “secos” como
produtos não comestíveis e “molhados” todos os comestíveis” (Teleginski 2012, p. 52).
Contudo, nos dicionários de Língua Portuguesa de Houaiss e Ferreira, se encontra outra versão
para esses termos, em que a palavra “secos” define os alimentos sólidos e “molhados”, os
alimentos líquidos. Nesse caso, as bodegas eram identificadas na câmara municipal de Irati
dentro da categoria de comércio de secos e molhados. O fato é que, essa expressão também foi
utilizada em outras partes do país, como bem menciona a autora, mas foi mais marcante nas
regiões Sul e Sudeste.

88
Figura 2: Armazém de secos e molhados de Guilherme Etzel, Curitiba-PR, sua construção data do século XVIII.

Fonte: Coordenação do Patrimônio Cultural (CPC) do Paraná.

O que se sabe é que no período setecentista, nas freguesias e arraiais das Minas, viviam
multidões de pessoas em intensa atividades econômicas em consequência da descoberta do
ouro, tendo em vista que vários grupos étnicos ganhavam a vida com atividade mercantil, ou
seja, comprando e vendendo mercadorias de todo tipo aos trabalhadores que exploravam a
região aurífera.
Flávio Rocha Puff (2007, p. 01), na sua dissertação de mestrado, Os pequenos agentes
mercantis em Minas Gerais no Século XVIII: perfil, atuação e hierarquia (1716-1755), mostra que
através da atividade mineradora do ouro nas Minas, multidões de indivíduos foram chegando
a essas terras para trabalhar. Então, surgindo a necessidade de abastecer esse “novo mercado
consumidor”, uma rede complexa de pessoas foi envolvida com o comércio, desde os grandes
aos pequenos negociantes.
Segundo o autor, os grandes se estabeleciam nas principais praças comerciais do
Império Português e os pequenos, mais humildes, ofereciam seus produtos em comércios fixos
ou volantes. Sendo assim, o mercado mineiro foi um dos principais responsáveis pelo
fortalecimento do mercado interno da América portuguesa, pois possuía o ouro como uma
moeda de troca importante, um expressivo contingente populacional e uma significativa rede
de produção de alimentos básicos para o povo brasileiro.
Sobre o comércio fixo e volante, Puff aponta que essa divisão foi defendida pela
historiadora Mafalda Zemella, pioneira nos estudos sobre o comércio em Minas Gerais, na sua
tese de doutorado, intitulada “O abastecimento da capitania de Minas Gerais no século XVIII”
no ano de 1951. Segue o pensamento do autor sobre sua tese:

89
Para autora havia dois tipos de comércio nas minas: fixo e volante, sendo fixo o
realizado em espaços formais como lojas, armazéns e quitandas, tavernas, etc, e o
volante ou ambulante, o praticado por mascates, comissários volantes, negras de
tabuleiros, comboieiros, tropeiros, entre outros (Puff, 2007, p. 52).

Ele menciona que outros estudos mais recentes sobre atividade mercantil na América
portuguesa apontaram para outro aspecto, a hierarquização. E essa hierarquia era organizada
pelo grau da capacidade do comerciante de investir para auferir lucros e acumular capital.
Outro fator que influenciava era a localização privilegiada do estabelecimento e a natureza dos
produtos comercializados.
Considerando a organização da pirâmide por esses fatores e a funcionalidade de uma
bodega, podemos dizer que no estudo de Puff, há indícios de que os donos das bodegas faziam
parte do segundo escalão dos pequenos comerciantes de Minas Gerais no período colonial,
tendo em vista que na base dessa pirâmide também existia uma hierarquia.
O autor utiliza a palavra “vendas” e não “bodega” para se referir ao estabelecimento de
venda de comestíveis e bebidas. Como vimos no início deste texto, a palavra bodega apresenta
variações linguísticas e essa é uma delas. Ele diz que os “vendeiros” eram proprietários de
estabelecimentos sem sofisticação, vendiam gêneros alimentícios e bebidas, tinham poucos
recursos para investir, a clientela era de baixo nível social e os estabelecimentos localizavam-
se na periferia dos núcleos urbanos. Estas características elencadas pelo historiador remetem
às de uma “bodega” no interior do Nordeste.
Figura 3: Mineiros em uma venda, século XIX, Thomas Ender, Fundação J. M. Salles.

Fonte: MultiRio/Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro.

Por outro lado, no artigo da historiadora Mábia Aline Freitas Sales (2020), Da taberna
ao tribunal de comércio: pequenos e grandes negócios de portugueses em Belém, sobre a
proeminência dos portugueses no comércio da cidade do Belém no estado do Pará no século

90
XIX, o termo utilizado é o de “taberna”, uma das variações linguísticas da palavra bodega, para
designar os pequenos estabelecimentos que vendiam produtos “secos e molhados”. Na sua
pesquisa, ela utilizou fontes documentais, como relatórios da presidência da província, do
Arquivo Histórico Ultramarino, relatos de viajantes, além de jornais de circulação local, para
tratar os múltiplos espaços ocupados pelos portugueses no tocante às transações mercantis da
capital paraense no período Oitocentista.
Para Sales, no referido período histórico, os portugueses dominavam o comércio no
Pará. “Eles circulavam entre a taberna e o armazém, a cidade e o interior, a exportação e a
importação, o comércio a varejo e o comércio de longo curso, o pequeno comércio ou o grande
negócio que permitia a matrícula no Tribunal de Comércio5” (Sales, 2020, p. 68). Ou seja, eles
possuíam a arte de negociar.
Para contextualizar, Mábia Sales, na página 74 de sua obra descreve como eram as
tabernas: “eram pequenas casas comerciais, geralmente agregadas às casas de morar, cuja
finalidade primeira era vender alimentos a retalho, como manteiga, enlatados, além de
armamento e munição”. A historiadora ainda destaca as diferenças entre taberna, loja e
armazém. Neste último, não se morava, apenas guardava as mercadorias, nas tabernas o foco
eram os itens de alimentação e nas lojas eram as fazendas (tecidos) e quinquilharias (objetos
diversos).
Figura 4: Primeira Taberna do Carananduba (Mosqueiro) Belém-PA no ano de 1954.

Fonte: Foto de Thiago Peralta publicada no Facebook pela página Nostalgia Belém em 10/06/2020.

5Tribunal de Comércio foi criado em 1850 cuja competência era dentre outras funções era “rubricar os livros
obrigatórios do comércio" (Neves, 2005, p. 3).

91
Nesse contexto de povoamento no território brasileiro relacionado aos aspectos
econômicos, em especial para os sertões do nordeste, o livro do historiador Muirakytan K.
Macêdo, Rústicos Cabedais: Patrimônio e cotidiano nos sertões da pecuária (Seridó - Século XVIII)
publicado em 2015, aborda discussões tanto gerais como específicas sobre o comércio, no
período colonial. No ponto de vista geral, foi intenso nos sertões do nordeste. Através das idas
e vindas dos criadores de gado para as feiras, no trajeto até o mercado, iam se formando as
pousadas e os moradores locais vendiam o excedente das suas lavouras e ou produtos
elaborados, nesse caso a farinha e a rapadura.

As vilas e cidades de comércio mais dinâmico forneciam uma série de produtos de que
as populações dos sertões precisavam. As tropas de burros, mulas e cavalos respondiam
por fazer escoar as mercadorias. os artigos chegavam às ribeiras pelos tropeiros-
mascates que comercializavam seus produtos, geralmente permutando suas
mercadorias por produtos da terra, principalmente gado” (Macêdo, 2015, p. 120).

Do ponto de vista específico, Muirakytan Macêdo, na citação acima, destaca a atividade


dos tropeiros-mascates como responsáveis por adentrar às ribeiras, hoje região do Seridó, para
levar as mercadorias que essa população necessitava. De certo modo, podemos considerar que
esta relação comercial pode ter favorecido a cidade de Caicó no destaque de “polo comercial do
Seridó” ou "capital do Seridó”, termo que até hoje é empregado pelos caicoenses. Esse comércio,
inevitavelmente abasteceu de mercadorias as bodegas das vilas, depois cidades dos sertões,
sobretudo, Caicó.
No tocante à historiografia local, as informações encontradas sobre a origem das
bodegas na cidade de Caicó são limitadas. No entanto, na obra História e Memória da Câmara
Municipal de Caicó6, encontramos uma citação de um artigo, que regulamenta os “Pesos e
Medidas” do comércio local, em que há menções às palavras taberna, secos e molhados,
sinalizando uma possível existência das bodegas em Caicó, por volta do Século XVIII, quando
ainda era Vila Nova do Príncipe.

Qualquer indivíduo, que na Vila [que] tiver taberna pública, deverá ter um terno de
medidas, de flandres para molhados, um de pau de quarta a quarteirão para secos,
assim como um terno de pesos de bronze, ou ferro de libra à meia quarta, sob pena de
quatro mil réis pela falta da alguma peça dos ternos, e na falta de moeda prisão a mil
réis por dia. (Medeiros Filho, 2002, p. 285 apud Macêdo et al., 2016, p. 86 – grifos
nossos).

Portanto, a economia da Vila Nova do Príncipe era organizada e regulamentada pela


Câmara Municipal, que era responsável por recolher os impostos. Dessa forma, os edis

6 Organizada pelos professores Muirakytan K. de Macêdo, Almir de Carvalho Bueno, Helder A. Medeiros de Macêdo
e Juciene B. Felix de Andrade com a colaboração de bolsistas do Departamento de História, CERES-Campus de
Caicó, através de um convênio entre Câmara Municipal de Caicó e UFRN, no ano de 2016.

92
(vereadores) organizavam as leis locais, chamadas de “Posturas Municipais” ou “Código de
Posturas”, que fundamentaram a gestão municipal. Nesta Postura Municipal mencionada, os
termos destacados indicam que no período oitocentista havia a presença de taberna, ou seja, de
bodega na terra da gloriosa Sant’Ana.

3. CONCLUSÃO
Iniciamos essa apresentação partindo da etimologia da palavra, abordando períodos de
ocupação e povoamento territorial, percorrendo várias regiões do Brasil para conhecermos sua
origem e as especificidades dos termos como “bodega”, “mercearias”, “armazém de secos e
molhados”, “venda”, “taberna” se apresentam pelo país. Contudo, compreendemos que são
expressões carregadas de histórias e memórias, decorrentes de experiências vividas pelos
indivíduos sociais em diversas temporalidades e espacialidades.
Na figura 5 abaixo, Bodega de Seu Tão, localizada no bairro João XXIII, zona oeste de
Caicó, gerida por Odelson Linhares de Lira, 70 anos de idade. A 40 anos servindo esta
comunidade.
Figura 5 : Bodega de Seu Tão

Fonte: acervo da autora, datada em 03/08/2022.

Outrossim, podemos inferir que as bodegas de outrora estão desaparecendo quanto às


características descritas no início dessa narrativa. Como afirmou Fernand Braudel (2009), as
técnicas se modificam, se aperfeiçoam, se reinventam com os novos padrões da sociedade para
não morrerem. O balcão não limita mais o freguês das mercadorias. A balança de dois pratos
deu espaço para a balança digital; a tira de papel para embrulhar os pães foi substituída pelas
sacolas plásticas e as sacas de açúcar, farinha, arroz e feijão deram lugar aos pacotes de pesos

93
padronizados. A caderneta para anotar o fiado ainda existe, mas concorre com a maquineta para
cartões de crédito ou transferência automática, o pix. No sentido de existência, elas continuam
resistindo e se reinventando pelos sertões brasileiros, exercendo seu papel social de favorecer
o acesso aos produtos de necessidade básica às populações menos favorecidas pelo sistema
econômico vigente no nosso país.

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95
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96
Capítulo IX
ÁGUAS DA REDENÇÃO: SALVACIONISMO E
CONSERVACIONISMO NO DEBATE ACERCA DA PROPOSTA DE
ERRADICAÇÃO DA CARNAÚBA NO VALE DO AÇU
DOI: 10.51859/amplla.soh683.1124-9
Ademar Pelonha de Menezes Filho 1
Antônio José de Oliveira 2

Em sinuoso percurso sempre buscando o norte, o rio Piranhas-Açu nasce na Serra de


Piancó no Estado da Paraíba, adentra as terras potiguares na altura do município de Jardim de
Piranhas e deságua no Oceano Atlântico na circunscrição do município de Macau, Estado do Rio
Grande do Norte. (Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Piancó-Piranhas-Açu, 2006). No seu
baixo curso, onde encontra-se largas várzeas aluviais, predomina a carnaúba — copernicia
prunifera — uma palmeira amplamente explorada e encontrada em todos os Estados da região
Nordeste do Brasil. (Andrade, 2005; Valverde; Mesquita, 1961).
Nas várzeas aluviais do baixo Açu, localiza-se o maior e mais produtivo carnaubal do Rio
do Grande do Norte. Um cinturão verde que atravessa de sul a norte os atuais territórios dos
municípios de Assú, Ipanguaçu, Afonso Bezerra, Carnaubais, Alto do Rodrigues, Pendências,
Porto do Mangue e Macau. (Barros, 1908; Guerra, 1912). A carnaúba que ornamenta bandeiras,
brasões e hinos da maioria das unidades territoriais acima mencionadas, figura no imaginário
popular, nas produções artísticas e intelectuais como elemento identitário. Inserindo-se dessa
forma ao complexo de bens materiais e imateriais que constituem o patrimônio cultural do Vale
do Açu.
Constituindo com outros elementos um importante manancial de recursos naturais, no
qual grupos humanos ao longo da história do Vale do Açu se serviram, a carnaúba orientou a
economia agrária de tal maneira que na perspectiva de Andrade (2005), a palmeira permitiu
significativo acúmulo de riquezas por parte da aristocracia rural, comparável no Brasil ao que
proporcionou as fazendas de café aos seus proprietários.
Todavia, o Vale do Açu, em meados dos anos de 1970, é o espaço norte-rio-grandense
para onde estão voltadas às políticas intervencionistas do estado brasileiro, para o qual,

1 Mestranda em História dos Sertões pelo Programa de Pós-Graduação em História do CERES/UFRN. E-mail:
ademarpmenezes@gmail.com
2 Docente do Departamento de História do CERES e do Programa de Pós-Graduação em História do CERES/UFRN,

Mestrado em História dos Sertões. E-mail: antonio.oliveira@ufrn.br.

97
imperativamente a modernização do mundo rural demandaria a atualização – irrigação,
agroquímicos e maquinarias – do modelo agrícola monocultor. Numa conjuntura de políticas
públicas verticalmente implementadas e operando sob a lógica da globalização, os arranjos
organizacionais locais historicamente construídos são solapados.
Neste contexto, nas linhas que se seguem buscaremos analisar de maneira abreviada o
debate estabelecido em torno da proposta de erradicação da carnaúba, que mobilizou e colocou
em rota de colisão atores sociais diversamente atravessados por interesses múltiplos. Para
tanto, no trato com as fontes lançamos mão do método indiciário, atentando as entrelinhas dos
documentos escritos aqui analisados, focando essencialmente no residual, nos elementos
marginais e pormenores comumente ignorados. (Ginzburg, 1989).

1. A CONTESTAÇÃO CONSERVACIONISTA
Em meados da década de 1970, os rumores acerca do plano de irrigação do
Departamento Nacional de Obras Contra as Secas — DNOCS, que visava à utilização integral das
várzeas aluviais do baixo curso do rio Piranhas-Açu, inquietava agricultores, proprietários de
terras, trabalhadores rurais, produtores de cera de carnaúba, a igreja católica, ambientalistas e
parte da comunidade acadêmica. As preocupações giravam em torno principalmente da
ausência de diálogo com a comunidade local, dos problemas sociais oriundos do projeto e da
erradicação da carnaúba.
A revista RN-Econômico, em janeiro de 1975, destacava em suas páginas: “Querem
erradicar a carnaúba do RN”. A proposta do DNOCS de erradicar a secular cultura da carnaúba
no Vale do Açu, suscitou mobilizações de diversos atores sociais, sobretudo daqueles ligados à
economia extrativa da carnaubeira. Contrário ao projeto, o senhor Celso Paiva Martins, gerente
da firma Mercantil Martins Irmão S. A., argumentava:

Somos taxativamente contrários. Não existe justificativa para se acabar com uma
cultura nativa, apenas para substituí-la por outras, principalmente quando ela é
rentável e é única. Obviamente estamos de acordo com a política do Governo, quanto à
maior produção de alimentos, mas no Rio Grande do Norte existem outras áreas
disponíveis, capazes de ser irrigadas (Querem [...], 1975, p. 46).

Vale ressaltar que a Mercantil Martins Irmão S. A., inaugurou no mês de janeiro de 1975,
a primeira unidade industrial voltada para o refino de cera de carnaúba da região. Esse fato foi
visto com bastante entusiasmo pelos atores sociais ligados à economia extrativa, já que tudo
indicava que o longo predomínio das refinarias cearenses sob os produtores de cera do Rio
Grande do Norte, chegaria ao fim. Nessa perspectiva, a revista RN-Econômico, noticiou a
inauguração da referida unidade, manifestando de certa maneira uma esperançosa expectativa:

98
A cera de carnaúba produzida nos vales do Açu e do Apodi, já pode sair do Rio Grande
do Norte, quando exportada em ponto de ser utilizada pela indústria de transformação
dos países importadores: no dia 25 de janeiro foi inaugurada a primeira unidade
industrial da Mercantil Martins Irmãos S. A., localizada na cidade de Açu, com
capacidade para beneficiar cerca de 10.000 quilos de cera, num dia de operação (RN
Ganha [...], 1975, p. 6).

Na esperança de obter sucesso na luta contra a erradicação da carnaúba, o senhor Celso


Paiva Martins, no dia da inauguração da fábrica, encaminhou ao futuro governador do estado,
Tarcísio Maia, uma nota-apelo assinada por produtores de cera do Vale. A nota assinalava não
existir “justificativa para medida tão absurda”, ainda pedia a suspensão do projeto ou a
realocação do mesmo para áreas de terras menos valiosas à economia do Rio Grande do Norte.
As angústias do senhor Celso Paiva Martins, a respeito dos prováveis prejuízos que a
concretização do plano do DNOCS, causaria ao seu empreendimento e a economia extrativa, se
confirmaram, pois a primeira Unidade Industrial beneficiadora de cera de carnaúba do Vale do
Açu, não sobreviveria à primeira metade da década de 1980. Da mesma forma, a Cooperativa
Agropecuária do Vale do Açu, que também comercializava produtos da carnaubeira, teve suas
atividades bastante prejudicadas. As especulações acerca da erradicação da carnaúba, geraram
instabilidades, incertezas, projetando dessa maneira inevitável insegurança com relação ao
futuro da atividade na região.
Outra voz que se levantou contra os planos do DNOCS, foi a do senhor Edgar Montenegro,
natural do município de Assú, político influente na região e agente ativo na exploração
econômica da carnaúba, lembrava a necessidade de “se traçar um projeto que aponte um
modus-vivendi ideal para a sobrevivência do carnaubeiro e dos outros tipos de cultura”
(Querem [...], 1975, p. 43). Considerar as especificidades ambientais, as estruturas econômicas
e as organizações sociais locais, se faz necessário para a compatibilização de interesses
múltiplos que normalmente envolve um projeto de desenvolvimento regional. "A carnaúba
convive bem com qualquer outra cultura. Que se aproveitem as áreas disponíveis do Vale, que
se faça um projeto a nível da realidade local” (Querem [...], 1975, p. 44), argumentava o senhor
Montenegro.
Diante da alegação que assevera ser a irrigação o “destino do Vale”, o senhor Edgar
Montenegro contra-argumentava dizendo ser necessário “que se estudem as características
especiais da região, que não é toda povoada por carnaubais. Procuremos tecnicamente deixar
a carnaubeira no primeiro andar, produzindo divisas para o Brasil, utilizando a parte rente do
solo para as outras culturas” (Querem [...], 1975, p. 44). Percebemos na argumentação a defesa
da manutenção do consórcio entre a carnaúba e cultivos diversos como opção viável para o
Vale. Não custa lembrar, que a estrutura socioeconômica referida pelo senhor Edgar

99
Montenegro, representa uma construção histórica secular, fruto de interações entre a natureza
e a cultura humana, num processo que se desdobra por via de mão dupla.
Atentando às características geofísicas da região, o senhor Edgar Montenegro, alertava
a respeito de possíveis riscos oriundos da destruição dos carnaubais:

Há inclusive o perigo de uma erosão eólica, pois nos vales há correntes marinhas
profundas. O Vale é também uma espécie de tubulação dos ventos que sopram forte da
costa e o corte das carnaubeiras certamente representaria o perigo de uma erosão
rápida e incontrolável. Não se pode erradicar uma cultura que é a própria vida da terra,
expondo extensas áreas a perigos tão iminentes (Querem [...], 1975, p. 45).

A argumentação do senhor Edgar Montenegro está bem fundamentada a partir de


elementos sociais, culturais, ecológicos e técnicos, denotando seu conhecimento acerca da
região. De fato, durante a segunda metade da década de 1970, o senhor Montenegro
representou uma das vozes locais mais contundentes dentre as antagônicas aos planos do
DNOCS. No entanto, na década seguinte, o mesmo passa a integrar os quadros técnicos do
mencionado órgão, mudando dessa forma sua atitude em relação ao projeto.
No âmbito acadêmico a assistente social e professora da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte – UFRN, Terezinha de Queiroz Aranha teve atuação destacada neste processo,
se opondo vigorosamente aos planos do DNOCS de utilização integral das várzeas do Açu.
Perante representantes do órgão, em evento promovido pela Escola de Agricultura de Mossoró
– ESAM, no dia 8 de julho de 1979, proferiu fortes críticas ao Projeto Baixo Açu. Diante das
vantagens apresentadas que estabelecia a barragem como um sonho do sertanejo varzeano,
asseverava:

As sucessivas notícias divulgadas contrárias a este empreendimento, revelando a


preocupação de grupos políticos, igreja, intelectuais, imprensa e povo, acerca da
dimensão da barragem, da extinção do carnaubal, da inundação de São Rafael, da
submersão de riquezas naturais, da expulsão de mão-de-obra e com a expropriação do
homem que trabalha nas terras do Vale do Açu, sugerem mais pesadelo do que sonho
(Aranha, 1979, p. 8).

Continuando, a professora enfatizou que “muitos estudos poderão dar ainda à


carnaubeira, que muita gente está começando a desacreditar, uma função importante no
desenvolvimento da região” (Aranha, 1979, p. 5). Na sua fala, Terezinha de Queiroz Aranha,
rememora que durante o “1º Simpósio de Desenvolvimento do Vale”, realizado na cidade do
Assú, em janeiro de 1977, os técnicos do DNOCS revelaram que a população só teve
conhecimento das terras a serem irrigadas, após seis meses da publicação do decreto de
desapropriação. Demonstrando dessa maneira, as contradições e a verticalidade do Projeto
Baixo Açu.

100
Ao defender a manutenção da carnaúba, Terezinha de Queiroz Aranha buscou
fundamentar seu argumento a partir de opiniões de técnicos e estudiosos que defendiam a
conservação da carnaúba. Como podemos observar a seguir:

Sobre a carnaúba, que se pretende extinguir, nos fala Guimarães Duque, que a estudou
como planta xerófila: ‘A maior produção de cera é derivada de carnaubais nativos. O
melhoramento dessa lavoura deve dar preferência à conjugação do carnaubal com o
pasto por baixo, aproveitando a madeira para a lenha, a secagem artificial das folhas e
a extração mecânica da cera. Nós temos aproveitado da carnaúba aquilo que ela tem de
menor valor, que é a cera. Nunca ninguém pensou em conjugar o carnaubal em cima
com o pasto por baixo; essa lavoura de dois andares está sendo a salvação de muitas
lavouras tropicais. O leque da carnaúba protege a raiz da carnaubeira contra insolação
e contra a erosão’ (Aranha, 1979, p. 5).

Prosseguindo com sua estratégia argumentativa, a professora destacou de maneira


contundente, a relevante apreciação acerca da carnaúba, realizada pelo pesquisador que
dedicou significativa parte de seus estudos ao Vale do Açu e que aconselhava a não derrubada
dos carnaubais, mesmo que essa acontecesse de forma parcial. A saber:

Outra opinião é a do Dr. Joaquim Inácio de Carvalho, estudioso dos problemas


fundamentais do Baixo Assu, que mesmo reconhecendo que ‘será pela agricultura que
o grande rio Açu, com o seu vale, realizará a missão superior a que está destinado’, diz
que ‘não seria aconselhado cortar; mesmo remotamente, aquelas palmeiras que
resistem às intempéries’ (Aranha, 1979, p. 5 e 6).

Na mesma linha argumentativa, Terezinha de Queiroz Aranha lança mão da opinião de


um antigo funcionário do DNOCS, com relevante experiência no Vale do Açu – resultado de
atuação profissional – que se manifestou contrariamente ao plano de erradicação da carnaúba.
Diz a professora:

Outro que nos informa através de carta sobre essa problemática é o sr. Eurípedes de
Oliveira, antigo funcionário do Dnocs, que construiu o açude Pataxó... Fazendo também
considerações sobre a erradicação da carnaubeira prevista para a implantação do
projeto Baixo Açu, ele destaca: ‘Não há compensação na destruição do carnaubal porque
esse assegura uma renda permanente, ainda maior do que a possível renda com a
cultura de tomate e verduras que, conforme o Plano anunciado, se destinaria às fábricas
de conservas de gêneros alimentícios. Com a erradicação do carnaubal, há a
possibilidade da erosão das terras sedimentadas da várzea pelas grandes alagações’
(Aranha, 1979, p. 6).

No mesmo contexto, se utilizou da legislação vigente, assegurando que a “conservação


da carnaubeira, enfim, é defendida pelo Decreto 81.107, de 22.12.77, do Ministério do Interior,
como matéria-prima para a indústria de celulose, considerada entre aquelas de alto interesse
para o desenvolvimento e segurança nacional” (Aranha, 1979, p. 6). Às controvérsias do Projeto
Baixo Açu, apontadas pelos contestadores ecoaram em muitos espaços de debates, alcançando
abrangência em diversos setores da sociedade.

101
No dia primeiro de maio de 1981 na cidade do Assú, a FETARN e outras entidades civis
e religiosas coordenaram um protesto de trabalhadores rurais contrários à construção da
barragem Engenheiro Armando Ribeiro Gonçalves – primeira etapa do Projeto Baixo Açu. Ainda
na mesma cidade, populares picharam casas, prédios públicos e até a igreja de São João Batista,
claro, com a devida autorização do padre Francisco Canindé dos Santos, com vistas à forte
expressão do descontentamento e a recusa da sociedade local ao projeto agenciado pelo DNOCS.
As pichações que se repetiam em pontos estratégicos da cidade, demonstravam o temor da
população diante das incertezas geradas pelo Projeto Baixo Açu, que na proposta original
projetava a destruição de 22 mil hectares de carnaúba.
“Como poderemos salvar a carnaúba das forças cegas e irracionais que se estão
precipitando sobre o Vale do Açu?” indagou o presidente da entidade ambientalista Associação
Potiguar Amigos da Natureza, o senhor Nestor Luiz dos Santos Lima, na abertura do “I Encontro
Municipal do Baixo Açu: Carnaúba e as Perspectivas de Desenvolvimento do Vale do Açu”,
promovido pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN – Fundação Norte-Rio-
Grandense de Pesquisa e Cultura – Programa de Estudos: A problemática da Seca no Rio Grande
do Norte. O evento aconteceu na cidade do Assú, de 13 a 16 de outubro de 1987, quatro anos
após a inauguração da barragem do Açu.
Diante dos consideráveis impactos de ordem social e ecológica, ao final do encontro,
como forma de chamar a atenção e ao mesmo tempo alertar a todos para as consequências da
devastação das matas nativas, em especial dos carnaubais, os participantes produziram um
documento denominado de “Carta Aberta a População do Vale do Açu”.
A carnaúba representa um elemento importante nas dinâmicas dos arranjos
socioculturais do Vale do Açu. Dito de outra forma, historicamente o desenvolvimento da região
esteve significativamente atrelado a carnaúba. Em alguma medida, isto aparece nos enunciados
das argumentações dos atores sociais que contestavam sua erradicação. A propósito,
contestadores conservacionistas. Com tudo, se faz necessário esclarecer que a corrente de
pensamento predominante, tinha pouca ou nenhuma relação com os princípios ambientalistas
no sentido orgânico da expressão. De certo modo, havia interesses pragmáticos na defesa da
carnaúba, por parte de alguns atores sociais, que se relacionam com a exploração econômica da
palmeira. Em contrapartida, no discurso oficial do DNOCS e dos defensores do projeto, a
mentalidade vigente será outra como veremos na sequência.

102
2. A REDENÇÃO SERTANEJA
O governo brasileiro por meio do decreto nº 7.619, de 21 de outubro de 1909, criou a
Inspetoria de Obras Contra as Secas – IOCS, que tinha a missão de organizar os serviços de
combate aos efeitos das secas. Em 9 de julho de 1919 o decreto nº 13.687 altera a nomenclatura
para Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas – IFOCS. 26 anos mais tarde, por força do
decreto-lei nº 8.486, de 28 de dezembro de 1945, a agência governamental passa a se chamar
Departamento Nacional de Obras Contra as Secas – DNOCS. Responsável por obras de
engenharia e socorro às populações carentes durante as grandes estiagens na região Nordeste
do Brasil.
Mesmo diante das alterações terminológicas e da ampliação em termos estruturais e de
atuação, podemos inferir que a lógica orientadora das ações do DNOCS, perpassa pelos
seguintes aspectos: Enfrentamento do fenômeno natural, agindo essencialmente de maneira
emergencial, sem desenvolver políticas efetivas de combate às desigualdades sociais, o maior
flagelo da região; A crença canônica na açudagem e na irrigação como alternativa salvacionista,
a redenção se daria pelas águas; A ausência de diálogo com o saber local, aliado a uma profunda
depreciação das experiências históricas das comunidades, não permitindo assim, o
aproveitamento e/ou alargamento destas e por último, a incapacidade de pensar soluções que
não dependesse imperativamente da utilização de água.
A luz do exposto, os aspectos acima mencionados formaram o eixo central das
mentalidades dos atores sociais, que se pronunciaram favoravelmente ao Projeto Baixo Açu, em
detrimento da submersão de significativa fração da história, de dados arqueológicos, da
carnaúba e de outras riquezas naturais do baixo Açu.
Favorável ao projeto, o engenheiro agrônomo Estélio Ferreira defendia o
aproveitamento integral dos vales e das áreas aluviais, "em termos de Rio Grande do Norte,
estribada nas necessidades do nosso consumo. Entendo que num Estado que tem pouca área
agrícola, que tem limitações de água, as áreas que têm essa potencialidade devem ser
orientadas para a produção de alimentos” (Querem [...], 1975, p. 43–44). Sem dúvida, um
argumento legítimo, afinal, a despeito de questões outras, produzir alimentos representa uma
necessidade de primeira ordem, uma prioridade ou pelo menos deveria ser.
Para consolidar sua argumentação, o senhor Estélio Ferreira, apresenta uma série de
dados estatísticos: “O Rio Grande do Norte é hoje o Estado que mais cresce, no Nordeste, em
índice demográfico. Mesmo assim, ainda hoje produzimos apenas 30% do que consumimos,
apesar de 60% da população do Estado se fixar na zona rural. É um mundo de gente a não fazer

103
nada” (Querem [...], 1975, p. 44). Vale a pena sublinhar a representação preconceituosa acerca
da população rural, vista em parte, como sendo desocupada. Ora, essa visão simplista do mundo
rural, não pode dar conta das dinâmicas e da complexidade desse universo.
O agrônomo que acredita ser a zona rural “um mundo de gente a não fazer nada”,
também fazia estimativas demasiadamente otimistas, em relação às receitas geradas com a
exploração da agricultura irrigada. "Explorando a Carnaúba, o Vale do Açu carreia cerca de Cr$
22,5 milhões/ano. Se fossem exploradas ali as culturas de consumo, esse rendimento
ascenderia a Cr$ 300 milhões" (Querem [...], 1975, p. 44).
Do mesmo modo, o senhor Eldam Velozo do DNOCS e coordenador da Comissão Especial
Executiva dos Projetos de Irrigação do Rio Grande do Norte – COMIRGA, também projetava
perspectivas excessivamente otimistas em relação aos impactos positivos do projeto. Dentre as
vantagens oficiais apresentadas pelo DNOCS, temos a promessa da geração de 72 mil empregos
diretos e indiretos, em virtude da construção do perímetro irrigado. A produção anual de três
mil toneladas de pescado, 300 mil toneladas de produtos agrícolas, 33 milhões de litros de leite
e 8.400 novilhos para abate.
Perante prognóstico tão promissor todos os meios logo se justificam frente ao resultado
final, tanto que quando indagado sobre a erradicação da cultura da carnaúba no Vale, o senhor
Eldam Velozo se utilizava de argumento econômico para responder:

Fala-se muito na carnaúba. Tenho um dado a revelar: vivendo da carnaúba, que nasce e
cresce normalmente, dispensando o trabalho mais demorado do agricultor, o lucro será
de Cr$ 500,00 por hectare/ano. Com a irrigação, esse lucro tem condições de se elevar
a Cr$ 150.000,00 por hectare/ano. E uma diferença muito grande (Barragem [...], 1979,
p. 27).

Portanto, a erradicação dos carnaubais seria plausível, tendo em vista que a irrigação
valorizaria substancialmente as terras do baixo Açu. A partir da produção irrigada a
rentabilidade por hectare alcançaria patamares elevadíssimos, quando confrontado com o
cenário existente na região. Dessa maneira, na ótica dos tecnocratas a cultura da carnaúba
representaria o atraso regional, o que justificaria sua substituição por atividades agrícolas
modernas capazes de proporcionar maior rentabilidade, alavancando a economia e
melhorando o padrão de vida da população residente na área de influência do Projeto Baixo
Açu, que segundo dados do censo demográfico de 1970, era de 126.053 pessoas. (IBGE, 1970).
Assinalava o senhor Eldam Velozo, “como todo projeto de desenvolvimento, o Projeto do
Baixo Açu objetiva a beneficiar uma área carente. Acho válido porque vamos atender uma
população que necessita, proporcionando até a industrialização” (Barragem [...], 1979, p. 26).
Nas entrelinhas da argumentação evidenciamos resquícios da construção discursiva e

104
imagética que define os sertões do Nordeste brasileiro como sendo o lugar da ausência, da
necessidade, da seca e do atraso. Nesse cenário o sertanejo seria por si só incapaz de
proporcionar seu próprio desenvolvimento ou sair das sombras do subdesenvolvimento nas
quais encontrava-se mergulhado.
Os enunciados oficiais acerca do projeto se estabelecem por um viés salvacionista, ou
seja, a redenção da região se dará exclusivamente pela agricultura irrigada, ancorada na política
de edificação de grandes obras hídricas. No tocante a estrutura econômica existente no Vale, o
senhor Eldam Velozo conduzia sua crítica sob a ótica da fragilidade e da ausência de solidez,
enfatizando que

No Vale do Açu não existe uma atividade econômica sólida, não tendo, portanto,
possibilidade de desenvolvimento mais rápido. Ali se pratica uma cultura de vazante,
altamente insegura, pois depende do nível das águas do rio. Com a barragem vai ser
diferente. A evaporação vai permitir o aparecimento de faixas úmidas de terras, e boas
terras por sinal (Barragem [...], 1979, p. 26–27).

Os defensores do projeto, a partir de uma lógica mercadológica capitalista, avaliaram a


carnaúba única e exclusivamente pelo viés econômico, desconsiderando aspectos de ordem
ecológica, cultural e social. Conduzindo estrategicamente a discussão para o campo econômico,
a erradicação dos carnaubais, reitero, logo se justificaria, afinal a atividade extrativa seria
substituída por uma agricultura tecnológica que possibilitaria maior rentabilidade e garantiria
a produção de gêneros alimentícios, necessários para atender as demandas de uma população
em curva ascendente de crescimento. Pelo menos esse era o argumento oficial.
Além de técnicos do DNOCS, outros atores sociais se utilizam de argumentação
semelhante, ao defender a viabilidade de um projeto que previa a destruição de cerca de 80%
da mata de carnaúba existente na sua área de influência, como podemos observar na fala do
professor Otto de Brito Guerra: “mesmo sabendo que a carnaúba será sacrificada, acho que a
produção vai compensar. O mundo está com fome de alimento e não de cera de carnaúba. Acho
que o Vale merece este projeto. O futuro é quem dirá quem está com a razão” (Barragem [...],
1979, p. 26). A história demonstrou dramaticamente que o mestre não tinha razão.
Reconhecidamente, o professor Otto de Brito Guerra era um entusiasta da agricultura
irrigada. Nesse sentido, podemos incorporá-lo a uma tradição de técnicos e estudiosos que
foram incapazes de pensar alternativas de convivência com o semiárido nordestino, que não se
baseasse no uso exclusivo da água. Paradoxalmente a cultura da carnaúba que oficialmente
pretendia-se erradicar, não depende da irrigação. Ademais, trata-se de uma palmeira nativa que
pode ser perfeitamente consorciada com os cultivos diversos, no Vale do Açu este consórcio foi
praticado amplamente no curso da história.

105
Mesmo admitindo que tecnicamente, não teria condições de manifestar opinião sobre a
questão, o professor Otto de Brito Guerra, manifesta apoio ao Projeto Baixo Açu. “No entanto,”
dizia ele,

posso dizer que a irrigação sempre foi um problema do Nordeste. Distribuir bem a água
sempre foi o objetivo das autoridades ligadas ao problema da seca. Geralmente esses
projetos de irrigação são implantados em áreas pouco povoadas, o que não ocorre no
Vale do Açu. Isto gerou um problema muito sério mas não intransponível (Barragem
[...], 1979, p. 26).

Suplantados os problemas que na sua visão eram sérios, mas não insuperáveis,
assegurava que “se olharem para a população e aproveitarem o pessoal que deve ser preparado
para cuidar do novo solo, dando-lhes assistência permanente e permitindo a que eles não
fiquem entregues a eles mesmos, acho que tudo dará certo” (Barragem [...], 1979, p. 26). Além
do otimismo em relação ao projeto, percebemos a mentalidade salvacionista arraigada em
concepção estereotipada, na qual os homens e mulheres do Vale precisavam ser salvos,
inclusive deles próprios.
Outro aspecto do pensamento do professor Otto de Brito Guerra, era sua crítica aos que
defendiam a construção de pequenos açudes em detrimento das grandes barragens. “Sei que
estou contradizendo muita gente, mas entendo que a construção de pequenos açudes não
resolveria o problema, já que açude pequeno é como amigo infiel: quando mais precisamos dele,
ele falha” (Barragem [...], 1979, p. 26). A crença na grande açudagem como solução para os
problemas do Nordeste brasileiro, orientou a atuação teórico-prática de muitos estudiosos,
técnicos e agências governamentais responsáveis por pensar o desenvolvimento da região.
A efetivação de políticas públicas e as intervenções estatais, estão em grande medida
ancoradas nesse ideário, que estabeleceu os sertões do Nordeste brasileiro como o lugar da
ausência, da indigência e do subdesenvolvimento, uma construção imagética e discursiva, que
parece se retroalimentar, ou seja, produz e ao mesmo tempo se alimenta das deformidades. Na
implementação do Projeto Baixo Açu os aspectos desse fenômeno são evidentes.
Para Moacir Duarte, presidente da Federação da Agricultura do Rio Grande do Norte, “o
projeto é plenamente viável”, continuava argumentando que a “irrigação é imprescindível ao
desenvolvimento agrícola do Baixo-Açu, que tem uma precipitação média da ordem de 570
milímetros mal distribuídos e com grandes flutuações de um ano para outro. Trata-se, também,
de área rural onde predomina o sub-emprego” (Barragem [...], 1979, p. 25). No seu ponto de
vista, o projeto iria influir “sobre a zona potencialmente mais rica do Estado, onde, infelizmente,
sobrevive uma população que ainda se caracteriza pelos seus baixos níveis cultural e
econômico, sem condições de, por si mesmo, superar o atraso secular a que se acha condenada”

106
(Barragem [...], 1979, p. 26). Nesse contexto, a redenção aconteceria pelas águas da barragem
Engenheiro Armando Ribeiro Gonçalves.
De acordo com o senhor Moacir Duarte “este é, muito provavelmente, o mais importante
projeto hidroagrícola formulado para o Rio Grande do Norte, em dimensões grandemente
superiores aos projetos Cruzeta, Pau dos Ferros, Itans-Sabugi e Ceará Mirim” (Barragem [...],
1979, p. 25–26). Confiava que o empreendimento promoveria a “transformação da agricultura
primitiva ali predominante em um sistema produtivo, eficiente, capaz de propiciar, a curto
prazo, a elevação do padrão de vida de seus habitantes” (Barragem [...], 1979, p. 26). A
mentalidade salvacionista fundada numa visão preconcebida sobre a população do Vale do Açu,
representa a pedra angular da argumentação do senhor Moacir Duarte.
Outro ponto exaltado por Moacir Duarte era que o projeto contribuiria, “de forma
significativa, para melhorar o abastecimento das principais cidades do Nordeste, substituindo
importações e propiciando o estabelecimento de agroindústrias” (Barragem [...], 1979, p. 26).
De fato, as agroindústrias se estabeleceram com suas monoculturas de melão, manga e banana
em detrimento da produção de gêneros alimentícios de primeira ordem. Produzir e exportar
frutas tropicais passou a ser a prioridade no Vale. Ao contrário do que apregoavam os
salvacionistas, o cultivo de leguminosas, cereais, tubérculos e hortaliças diminuiu
significativamente, tanto que a região atualmente precisa importar o que outrora produzia.
Em linhas gerais, os atores sociais salvacionistas conduziram suas argumentações por
viés economicista, acompanhado de visões preconcebidas acerca da região, que corroboraram
para a depreciação das estruturas socioculturais locais. Precisamos enfatizar que a exploração
da carnaúba se dava em associação com cultivos diversos – algodão, milho, feijão, batata – como
podemos observar nos “Estudos de Controle dos Impactos Ambientais e de Aproveitamento
Múltiplo do Reservatório ENG.º Armando Ribeiro Gonçalves” realizado na década de 1970 pela
HIDROSERVICE – Engenharia de Projetos Ltda., que estava a serviço do DNOCS.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dentre uma série de dados produzidos pela HIDROSERVICE, havia a estimativa de que
na área de influência do Projeto Baixo Açu, existiriam 18 milhões de carnaubeiras. No plano do
DNOCS, projetava-se a destruição de cerca de 80% das carnaúbas existentes na área de
influência do projeto, ou seja, 14,4 milhões de árvores, das quais aproximadamente dois
milhões, seriam e de fato foram submersas pelas águas do Reservatório Engenheiro Armando
Ribeiro Gonçalves.

107
No entanto, em agosto de 1979 o DNOCS abdicou oficialmente de 91 mil hectares de
terras a jusante do reservatório. (Santos, 2021). Essa faixa de terra corresponde à área na qual
se efetivaria o perímetro irrigado e o projeto de colonização. Um evidente redimensionamento
do Projeto Baixo Açu em relação ao seu desenho original, que incide diretamente na projeção
inicial de erradicação de 14,4 milhões de carnaubeiras ou 22 mil hectares. Portanto, o
extermínio da carnaúba como estava previsto inicialmente não se confirmou, porém, a
construção da barragem propiciou as condições necessárias para a consolidação da agricultura
comercial na região, o que provocou enorme impacto sobre os carnaubais.
Com a modernização agrícola no Vale do Açu, a carnaúba perdeu importância, enquanto
instrumento que outrora possibilitou a produção e o acúmulo de riquezas por parte da
aristocracia rural, não obstante, continua cumprindo uma função social extremamente
relevante, que é a geração de trabalho e renda para as camadas mais pobres da população no
período de estiagem.
No contexto da agricultura que está passando pelo procedimento imperativo da
atualização de seu modelo monocultor, a física e filósofa indiana, Vandana Shiva (2003),
sentencia que, antes de ocupar o solo, a monocultura se estabelece primeiro nas mentes. Ainda
de acordo com a autora, a expansão da monocultura estaria mais ligada à política e ao poder,
do que ao enriquecimento e melhoria da produção biológica. Desenhando um quadro de perda
da biodiversidade, e de devastação da natureza:

As monoculturas mentais geram modelos de produção que destroem a diversidade e


legitimam a destruição como progresso, crescimento e melhoria. Segundo a perspectiva
da mentalidade monocultural, a produtividade e as safras parecem aumentar quando a
diversidade é eliminada e substituída pela uniformidade. Porém, segundo a perspectiva
da diversidade, as monoculturas levam a um declínio das safras e da produtividade. São
sistemas empobrecidos, qualitativo e quantitativamente (Shiva, 2003, p. 17 e 18).

Legitimado pelo discurso do progresso, projetos de modernização do mundo rural


baseados essencialmente na irrigação, têm sido implantados de maneira extremamente
autoritária nos sertões do Nordeste brasileiro, pavimentando novas zonas de conflitos e em
grande medida produzindo verdadeiros desastres do ponto de vista socioambiental. Ademais,
o salvacionismo, o desprezo pelos arranjos socioeconômicos locais e as ideias preconcebidas
sobre a região, caracteriza a mentalidade dos agentes à frente destes processos. A vontade e o
desejo do observador não podem ser a régua para medir a necessidade do observado.

108
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Manuel Correia de. A Terra e o Homem no Nordeste: Contribuição ao Estudo da
Questão Agrária no Nordeste. 2011a edição. São Paulo: Cortez, 2005.

ARANHA, Terezinha de Queiroz. Exposição. In: Projeto Baixo Açu; Painel promovido pela Escola
de Agricultura de Mossoró (ESAM), Departamento de Ciências Sociais, Disciplina de Sociologia
Rural, 8 jul. 1979. Mossoró. Anais [...]. Mossoró: Auditório da ESAM, 8 jul. 1979. p. 1-10.

BARRAGEM do Açu: depois do projeto concluído e obras iniciadas, o “diálogo”. RN-Econômico.


Natal, ano 10, n. 101. p. 24-29, abr. 1979.

BARROS, Domingos. Aspectos Norte-Riograndenses: Dados e informações. In: EXPOSIÇÃO


NACIONAL, 9 dez. 1908. Rio de Janeiro: Typ. do Jornal do Comércio, de Rodrigues & C, 9 dez.
1908. p. 1-37.

BRASIL. Ministério do Interior. PROJETO BAIXO AÇU: Estudos de Controle dos Impactos
Ambientais e de Aproveitamento Múltiplo do Reservatório Engº Armando Ribeiro Gonçalves.
Volumes I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, X, XI. São Paulo: Hidroservice, 1979.

COMITÊ da Bacia Hidrográfica do Rio Piancó-Piranhas-Açu. Lamp Soluções Inteligentes.


Disponível em: https://cbhpiancopiranhasacu.org.br/portal/a-bacia/. Acesso em: 30 ago.
2023.

GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais. trad. Federico Carotti. 1a edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.

GUERRA, Felipe. A carnaúba: sua exploração e seu valor. Boletim do Ministério da Agricultura,
Indústria e Comércio, v. 1, n. 1, p. 80–95, 1912.

IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Brasileiro de 1970. Rio


de Janeiro: Fundação IBGE, fev. 1973.

LIMA, Nestor Luiz dos Santos. “A Carnaubeira em Enfoque Ecológico” In: I Encontro Municipal
do Baixo Açu: Carnaúba e as Perspectivas de Desenvolvimento do Vale do Açu, 13 out. 1987.
Assú. Relatório [...]. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 1987. p. 1-5.

QUEREM erradicar a carnaúba do RN. RN-Econômico. Natal, ano 6, n. 60. p. 43-45, jan. 1975.

RN GANHA usina para beneficiar a carnaúba. RN-Econômico. Natal, ano 6, n. 60. p. 6, jan. 1975.

SANTOS, Jovelina Silva. “Terra por terra, casa por casa”: resistência camponesa em São
Rafael/RN (1979-2000). 2021. 393 f. Tese (Doutorado) - Curso de Programa de Pós-Graduação
em História, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2021.

VALVERDE, Orlando; MESQUITA, Myriam G. C. GEOGRAFIA AGRÁRIA DO BAIXO AÇU. Revista


Brasileira de Geografia, n. 3, p. 455-493, 1961.

109
Capítulo X
ESCREVO-LHE PARA PEDIR QUE... : VINGT-UN ROSADO E AS
CARTAS PARA SOLICITAR
DOI: 10.51859/amplla.soh683.1124-10
Paula Rejane Fernandes 1

Enquanto intelectual, membro de família política influente na cidade de Mossoró e no


estado do Rio Grande do Norte, Jerônimo Vingt-un Rosado Maia ocupava posição dentro do seu
campo político e social que permitia a ele contato com pessoas que ocupavam lugares de poder.
E, em alguns momentos, por meio delas, mediava pedidos de amigos e de conhecidos, a exemplo
dos pedidos de colocação, em outras palavras, emprego. Alguns destes pedidos eram recebidos por
meio de cartas e foram guardada popr Vingt-un Rosado em seu arquivo pessoal.
As cartas para solicitar também fizeram parte da vida e dos arquivos pessoais de outros
intelectuais. De acordo com Paula Virgínia Pinheiro Batista (2008), Capistrano de Abreu foi por
diversas vezes solicitado para mediar ou influenciar pedidos de emprego, de adiantamento da
convocação, adquirir livros, conseguir informações para integrar pesquisas de amigos. A autora
destaca o caso de Noemia Cabral, primeira mulher a compor o quadro de funcionários do Banco
do Brasil no Estado do Ceará. A nomeação para o referido cargo contou com a capacidade que
Capistrano teve de fazer movimentar seus amigos influentes em prol de Noemia Cabral.
No caso de Vingt-un Rosado, encontramos diversos pedidos de emprego. Em alguns
pedidos, o remetente solicitante informava claramente onde pretendia conseguir uma
colocação, geralmente, o lugar solicitado era a Escola Superior de Agricultura de Mossoró
(ESAM). Vejamos os trechos retirados de duas cartas.

Estimado Dr. Vingt-un,

[...]

Dr. Vingt-un, agradeço profundamente a sua atenção em examinar a possibilidade de


atender o meu cunhado [...]2, professor estagiário de Educação Física, lecionando
atualmente em alguns colégios de Mossoró. O desejo dele é vir algum dia também
participar da equipe que compõe a ESAM.

Gostaria muitíssimo que o sr. o entrevistasse e avaliasse as possibilidades do mesmo.

1 Docente do Departamento de História do CERES e do Programa de Pós-Graduação em História do CERES/UFRN,


Mestrado em História dos Sertões. E-mail: paulafdes@gmail.com
2 Optamos por suprimir o nome dos solicitantes.

110
[...]

Mossoró, 26/06/773

Natal, Rn. 23 de agosto de 1979

Prezado Prof. Vingt-un Rosado: meu abraço

Com minhas recomendações respeitosas a Dona América, envio o presente, apelando


para o nobre amigo se interessar pela contrataçãode meu sobrinho, que concluiu o ano
passado o Curso de Engenhariapela nossa ESAM. Trata-se de [...], que é filho do mano [...],
a quemVingt prometeu trabalhar pelo aproveitamento do mesmo, tão logo houvesse
vaga.

Como eu soube da existência de duas vagas aí na ESAM, tomo a liberdade de escrever-


lhe este, solicitando o aproveitamento de meu sobrinho.

Certo de sua atenção, antecipo meus agradecimentos, firmando-me reconhecido,


sempre às ordens.

A prática de solicitar colocação na ESAM deve ser relacionada a forma como era
administrada. De acordo com Ana Maria Bezerra Lucas (1998), a ESAM funcionava como reduto
político da família Rosado, marcado por práticas de apadrinhamento e de clientelismo político.
Deste modo, o espaço público acabava por ser utilizado como se fosse um espaço privado e
mobibilizado para atender as necessidades dos Rosado e dos seus protegidos.
Em algumas cartas ativas é possível ler que o solicitante era Vingt-un. Ele acionava suas
relações com o objetivo de conseguir empregos para pessoas de seu interesse. Na carta abaixo,
escreveu a Paulo de Brito Guerra, agronônomo funcionário do Departamento de Obras Contra
as Secas (DNOCS), com o objetivo de conseguir uma colocação no DNOCS para Everaldo4.

Mossoró, 03 de setembro de 1979.Paulo Guerra,

Apresento-lhe o Tecnologo em Agricultura, [...] que concluiu o curso na Federal do RN


e procura um trabalho, se possível, no DNOCS, onde faz estagio curricular obrigatorio.

É gente da raça do Apodi e deve ser seu parente.Agradeço a atenção que lhe dispensar.

Cordialmente, Vingt-un Rosado.

Em sua correspondência também é possível encontrar cartas cuja temática era o pedido
de alguma informação para complementar pesquisas em andamento. Como a enviada a
Oswaldo Lamartine de Farias, escritor e pesquisador potiguar, especialista em temáticas sobre
o sertão. Os dois nutriram amizade em torno dos livros, do estudo sobre a seca e o sertão.

3 As cartas aqui citadas foram pesquisadas no Arquivo Pessoal de Vingt-un Rosado que ficava na Fundação Vingt-
un Rosado.
4 Optamos por usar nomes fictícios ou apenas suprimir o nome quando se trata de assuntos ligados a solicitações

de emprego.

111
Mossoró, 25 de novembro de 1980. Oswaldo,

O velho José Augusto em “O Seridó” se refere a um trabalho de Garibaldi Dantas sobre


“O Problema da Água no Nordeste”.

Conheço um capítulo da sua “Geografia Econômica do Rio Grande do Norte”: O Problema


da Água no Rio Grande do Norte. Nele Garibaldi afirma que o problema da água no Rio
Grande do Norte é comum ao Nordeste.

Você tem idéia se existe realmente este outro trabalho de Garibaldi? Um abraço afetuoso
meu e da velha para você e Ludi.

Vingt-un

De acordo com Vânia de Vasconcelos Gico (2002), a troca de correspondência entre


intelectuais para pedir informações era uma prática recorrente, principalmente, quando o
remetente morava em alguma cidade longe das grandes bibliotecas e arquivos. A autora diz isto
em referência a Luís da Câmara Cascudo que residiu por toda sua vida em Natal e fazia uso de
suas cartas como forma de conseguir informações para as suas pesquisas. Assim como Câmara
Cascudo, Vingt-un residiu longe dos grandes centros de pesquisa e fazia de sua correspondência
um espaço no qual solicitava ou enviava informações a respeito de pesquisas em andamento.
Sua correspondência também trazia informações sobre a campanha para prefeitura de
Mossoró no ano de 1968. Neste ano, Vingt-un registrou sua candidatura a prefeito pela Aliança
Renovadora Nacional (ARENA) e disputou o pleito com Antonio Rodriguesde Carvalho, vinculado
ao Movimento Democrático Brasileiro (MDB), candidato apoiado politicamente por Aluísio
Alves, então governador do estado do Rio Grande do Norte.
A campanha entrou para o imaginário político de Mossoró como sendo a disputa entre o
Capim e o Touro. Vingt-un era nomeado como sendo o touro, pois, seu nome em francês
significa 215, número que no jogo do bicho corresponde ao animal touro. O candidato Antonio
Rodrigues de Carvalho recebeu a alcunha de capim devido ao seu lugar de nascimento, pois,
havia nascido no sítio Capim Grosso, no município de Upanema. O resultado da eleição foi a
derrota de Vingt-un por 94 votos de diferença. A derrota nas urnas não era descrita pelo
intelectual como sendo algo negativo, pelo contrário, o acontecimento foi apropriado de modo
a ajudar na construção da representação de que era um homem honesto e humilde.

PREÁ – O senhor conhece mais alguém que tenha registrado em currículo haver sido
candidato derrotado a alguma coisa?

VINGT-UN – No meu currículo tem: candidato derrotado a prefeito deMossoró em 1968.


Eu era diretor da ESAM. Vieram umas pessoas de Brasília fiscalizar umas coisas lá na

5 Jerônimo Ribeiro Rosado nomeava seus filhos com o número correspondente a ordem de nascimento. A referida
prática começou com o terceiro filho, a quem deu nome de Tércio Rosado Maia, e findou com o vigésimo primeiro
filho a quem deu o nome de Jerônimo Vingt-un Rosado Maia.

112
Escola. De repente, um empurra a porta da minha sala e diz: – Eu vim lhe dizer uma
coisa. Tudo que você disser eu assino embaixo. Eu perguntei: Por quê? Ele respondeu:‘Eu
nunca vi o sujeito dizer num currículo que foi candidato derrotado’.O meu programa de
governo foi elaborado por Antônio Campos e Silva. Eu ia dizendo a ele o que queria fazer
e ele ia organizando, chegando a mil obras. (Preá, 2003, p. 41)

No arquivo pessoal encontramos um manuscrito redigido em forma de discurso por


América Fernandes Rosado Maia, esposa de Vingt-un, tratando da campanha do ano de 1968
para prefeito de Mossoró. Não tivemos como saber se o discurso foi proferido e quem o proferiu.
Mesmo não tendo respostas para as perguntas, o texto nos permite ler um pouco a respeito das
possíveis práticas realizadas durante a campanha. Vejamos:

A própria verdade é mais profunda.

O próprio Cristianismo mais purificado.O mundo está nascendo de novo.

Esta é a hora do povo, dos oprimidos.[...]

É importante, neste, dia mostrar rumos que correspondam às reais necessidades da


nossa terra e da nossa gente, que se integra também na velocidade desafiadora das
mudanças do mundo atual.6

Diante do mundo em mudança, o discurso ressaltava a necessidade de Mossoró e de seus


habitantes acompanharem as transformações. Para tanto, era preciso que a população votasse
no “Cidadão que afirma que a sua Candidatura ‘Não é contra ninguém, mas a favor de Mossoró’.”
Ao longo do texto, América teceu diversos elogios a Vingt-un, destacando sua retidão na vida
pública e a capacidade de se doar em benefício de outras pessoas.“Nunca descobri nele um gesto
falso, atitude inautêntica, uma armadilha maquiavélica,uma pequena ou grande traição”.
Durante o período eleitoral, alguns eleitores fizeram usos de cartas para expressarem os
seus pedidos que, em caso de vitória, deveriam ser atendidos. Em uma das missivas, uma
eleitora residente na rua Benjamin Constant, bairro Boa Vista, escreveu ao candidato com o
objetivo de solicitar ajuda para superar as dificuldades econômicas pelas quais passava juntamente
com sua família. Após a morte de seu pai, a família começou a ter problemas econômicos que se
agravaram com o fato dela e dos irmãos estarem desempregados. A condição de desempregados
não era por falta ofício. A eleitora informava que tinha o curso de corte e costura, mas não
costurava por não ter dinheiro para comprar uma máquina, e seus irmãos, por sua vez, tinham
“profissão motorista e tratorista mais falta o auxilio de emprego”. “Estamos numa situação que
não podemosir nem votar porque nos falta tudo mesmo como pobre.” Outro argumento

6 Assim como as cartas, o discurso foi pesquisado no Arquivo Pessoal de Vingt-un Rosado.

113
utilizado pela eleitora foi o de que “Acompanhamos vocês a 9 anos e nunca me diriji a pedir
nada”7.
No final da carta, a eleitora da rua Benjamin Constant convidou Vingt-un a visita-la, para
que soubesse onde morava, escreveu o endereço. “Desejava sua presença que tanto sinpatiso
em meu lar pobre recidencia. para o senhor ver melhor nossa pobresa.” Ao final da carta, pedia
que a correspondência fosse mantida em sigilo entre os dois: “pesso que fica entre nós esta
comonicação.”
Além de pedido de emprego, Vingt-un, como candidato à prefeitura de Mossoró, também
pode ler os reclames e solicitações de uma eleitora estudante da Escola Cunha da Mota. A carta
de 7 de outubro de 1968 solicitava melhorias no ensino. “Afim desta somente V. S. quando o sr
assumir a prefeitura de Mossoró lembre do Bairro do Bom Jardim e Barrocas que não tem um
só grupo para nos estudar [...].” Devido a ausência de grupo escolar, a remetente precisou
matricular-se “no grupo Escola Cunha da Mota no Bairro São José” e o seu “irmão que estuda na
Escola de menores no Bairro da Paraiba junto com mais (3) colegas eles vão da Barrocas até
Escola de menores saindo 6. horas da manhã a pé”. Para conhecer as necessidades dos bairros
Barrocas e Bom Jardim, a eleitora convidou Vingt-un para visita-los afim de conhecer a
realidade de perto. No final da carta, afirmou que se caso construísse a escola, os moradores
ficariam devendo um favor ao político. Ao destacar a ideia de favor, supomos que a leitora
entendesse política a partir da relação de dom e contradom. A remetente não pode cobrar e
nem agradecer, pois, Vingt-un Rosado perdeu a eleição para prefeito de Mossoró. Na
campanhade de 1968, o Capim venceu o Touro8.
As cartas para solicitar discutidas aqui nos permitem entender que o lugar ocupado pelo
intelectual dentro do seu campo, seja ele o cultural, o econômico, o político, o social, pode ser
acessada por outras pessoas. Isto é, ao solicitar algo a Vingt-un Rosado, o remetente tentava,
em benefício próprio, fazer uso das relações de poder que Vingt-un poderia movimentar para
atender o pedido que foi feito a ele. Desta forma, podemos entender o intelectual como um
agente político imerso nas relações de poder que estabelecem as regras do campo no qual esta
inscrito. E, na condição de agente político, o intelectual procura, quando solicitado, quando

7 Sobre a trajetória política da família Rosado, ver: FELIPE, José Lacerda Alves. A (re)invenção do lugar: os
Rosados e o “país de Mossoró”. João Pessoa, PB: Grafset, 2001; FERNANDES, Paula Rejane. A escrita de si do
intelectual Jerônimo Vingt-un Rosado Maia: arquivos pessoais e relações de poder na cidade de Mossoró (RN)
–1920-2005. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Espírito Santo. Programa de Pós-Graduação em História
Social das Relações Políticas, Vitória, 2014.
8 Em 1972, Vingt-un se candidata e ganha para vereador. Exerceu o cargo de 1973 a 1977.

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preciso, fazer movimentar as relações de poder presentes no campo para atender aos seus
interesses. Sendo assim, a pesquisa sobre história dos intelectuais contribue não apenas para
entender como o intelectual investigado construiu a si mesmo, mas, também contribui para
investigar bem como entender a formação dos campos, como se dão os jogos de poder, como as
representações são movimentadas. Por meio de tais estudos, conseguimos estudar uma época,
uma dada espacialidade bem como as formações discursivas que circulavam em determinado
período.

REFERÊNCIAS
BATISTA, Paula Virginia Pinheiro. Bastidores da escrita da história: a amizade epistolar entre
Capistrano de Abreu e João Lúcio de Azevedo (1916-1927). Fortaleza: UFC, 2008. Dissertação
(Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal do Ceará,
Fortaleza, 2008.

GICO, Vânia de Vasconcelos. Câmara Cascudo e Mário de Andrade: uma sedução epistolar. In:
Revista do Patrimônio Histórico Nacional. Brasília, nº. 30, p. 110-127, 2002.

LUCAS, Ana Maria Bezerra. O mandonismo da família Rosado em Mossoró – 1917 a 1980. João
Pessoa: UFPB, 1998. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais), Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 1998. Revista Preá, 2003.

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