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MACIEL,Katia A Última Imagem in PARENTE, André (org) Imagem-máquina: A era

das tecnologias do virtual, Rio: Ed.34, 1993.

[253] A ÚLTIMA IMAGEM


Katia Maciel
O cinema é a última imagem.
“Desde o cinema dos primeiros tempos aos últimos filmes mudos, o cinema
parecia haver conquistado domínios imensos, depois, o que ele ganhou? Ele aperfeiçoou
sua iluminação e seu relato, sua técnica: mas no domínio da arte...
“Eu chamo arte, aqui, a expressão das relações desconhecidas e afinal
convincentes entre os seres e as coisas ”. Godard, Histoire(s) Du Cinéma.
Entre os seres e as coisas...
O cinema é o último entre dois. Real e imaginário, sujeito e objeto, o mesmo e o
outro existem ainda que como partes indiscerníveis, na arte cinematográfica.
O cinema, depois da pintura e da fotografia, ainda é o universo de um tipo
determinado de representação ligada à ilusão, e, portanto, é uma expressão da
imaginação. Ora, a discussão do cinema como arte da ilusão sempre teve como
pressuposto antagônico o real. Isto é, ao se discutir se o cinema é ou gera a ilusão em
muitos sentidos, discute-se ao mesmo tempo se ele é ou gera o real em outros sentidos.
Ao manter essa relação entre termos distintos, entre dois, o cinema produz distâncias, ou,
ainda, ele se produz na distância. “Distância” entre a ilusão e o real, entre o imaginário e
o real. A imagem é criada através dessa distância, ela necessita do afastamento, de um
certo intervalo de tempo. O cinema é imagem.
Paul Virilio 1 define o nosso tempo como a Era Paradoxal. Após a Era da Lógica
Formal da imagem ligada à pintura, à gravura e à arquitetura no século XVIII, e a Era
da Lógica Dialética, da fotografia e do cinematógrafo no século XIX, a Era Paradoxal
da imagem se inicia com a videografia, a holografia e a infografia.
A primeira era aparece, segundo Virilio, associada à representação da realidade, a
segunda à representação da atualidade e a terceira ao fim da representação na
virtualidade. Na Eira Paradoxal a imagem atinge a alta definição, não apenas como
resolução técnica, mas sobretudo como substituição do real. A imagem define o real,
portanto o absorve e elimina.
Nesta era o tempo real prevalece sobre o espaço real, a imagem prevalece sobre o objeto
e o virtual prevalece sobre o atual. Tudo fica reduzido ao tempo. No decorrer das eras
passamos da eternidade à instantaneidade. [254] Neste tempo absoluto fundem-se
imagem e objeto em uma realidade virtual.

1
Virilio, P. L'Esthétique de la Disparition.Paris: Galilée, 1980.
A realidade virtual não é o resultado de um registro passado, não está inscrita em
qualquer suporte, não é presentificação de uma ação passada, não é uma presença em
tempo distinto. A realidade virtual é a presença do objeto em tempo real tendo como
único suporte a memória visual.
Se observarmos as eras definidas por Virilio, não como uma linha evolucionista
onde as etapas se sucedem e se eliminam, mas apenas como um encadeamento de
estruturas que prevalecem em tempos definidos, podemos perceber continuidades e
buscar outras possibilidades de articulação entre estruturas de tempos diferentes.
Podemos nos perguntar, por exemplo, que estatuto teria a pintura da Era Formal, e o
cinema da Era Dialética, na Era Paradoxal? Que lugar teriam as imagens em um mundo
onde a produção incessante de clichês produz a não-visão, a não-imagem?
Os clichês, a não-imagem, são fragmentos de imagens sem contexto, não possuem
outra referência senão a própria imagem. Ora, a imagem que não possui mais referente
real ou imaginário é ainda imagem?
A imagem que elimina o referente e se substitui ao real, ainda que como simulacro
de uma presença e de um sentido, inverte a lógica causal do real e de sua reprodução. A
imagem que antecede o real provoca uma fusão objeto/ imagem em um curto-circuito
que implode o real e sua imagem.
Como vemos, toda a indiferença virtual se diferencia muito da condição da
imagem que conhecíamos até então, isto é, de uma imagem que se define a partir de
algum referente.
A imagem do cinema não é indiferente e por isso é ainda imagem, compreendida
como outro, sonho, espelho, fantasia, duplo... No cinema, a imagem imagina. O cinema
silencia, cria ausência, segredo, suportes para a imaginação... para a relação entre dois. É
nesse sentido que o cinema é a última imagem, porque ainda é relação. As próximas
imagens, aquelas digitalizadas, concebidas através de cálculos matemáticos de
computadores, as imagens de síntese, propõem a interação em tempo real. A natureza das
imagens mudou inteiramente.
A grande mudança está exatamente nestes termos: interação/tempo real. A geração
das imagens a partir de cálculos já é um dado há séculos, mas, como afirma Couchot 2, a
velocidade dos computadores suprimiu a distância que separava a imagem do observador
na representação ótica. Desta forma, a imagem numérica responde a qualquer
intervenção ao mesmo tempo em que é gerada. A imagem matricial pode então ser
recriada a cada instante em uma eterna metamorfose. Fim da imagem-relação, da
imagem-meio, da imagem-mídia. A interação impõe o contato imediato, a hibridação, a
2
Couchot, E. Sujet, Objet, Image. In Nouvelles Images, Nouveau Réelorganizado por
Georges Balandier. Paris: Cahiers Internacionaux de Sociologie LXXXII, janeiro-junho
1987.
circulação, a contaminação. [255]
A imagem que tem como suporte o próprio corpo é este corpo. A imagem que não
representa mais o objeto mas o simula é o objeto. Afinal, se a imagem não representa,
não reapresenta a coisa, e se a morfogênese das novas imagens (geradas a partir de uma
linguagem numérica) transformou-se, ou retirando toda a sua exterioridade e tornou-a
parte, tornou-a o mesmo e não o outro, o que nos resta na imagem da imagem? A
ausência, o vazio, a dissolução de todas as distâncias. Resta-nos a falta da imagem na
imagem. Não é à toa que muitas vezes diante de imagens numéricas, ainda que sejam
“belos” fractais, sentimos o vazio. É que, de fato, elas nada representam além desse
vazio.
Sujeito, objeto e imagem não são mais definidos nas suas distâncias, mas na
contigüidade que transforma um em outro numa metamorfose permanente.
As imagens virtuais são aquelas que preexistem ao real e geram realidade. Essas
imagens anulam as distâncias e tocam o tempo, criando o tempo real. Elas anunciam que
atingiram enfim a ambição de toda e qualquer imagem: representar da forma mais
perfeita e verdadeira o real, e destroem assim toda a ideia de representação porque não
mais representam: elas são. Essas imagens não se confundem com o que até então
entendíamos como imagem: reflexo, duplo, ausência, silêncio, segredo, imaginação. Elas
significam, antes de tudo, a falta da própria imagem; ao contrário, significam não-
imagem. A imagem como relação entre dois, como referida a um real possível, na era
virtual, é interação com um real até então impossível, um real que antecede a si mesmo.
O que vemos portanto são não-imagens que se afirmam como as verdadeiras
imagens, por afinal parecerem mais reais, quando, de fato, o efeito da sua ação é a mais
completa desrealização.
Aí está toda técnica, toda velocidade, toda luminosidade, tudo em tempo real a
serviço da não-imagem. A não-imagem é a imagem indiferente, aquela que não nos
concerne, é a encarnação do vazio. E portanto somos absorvidos, aprisionados,
controlados por essa indiferença. Indiferença provocada pela proliferação abusiva de
imagens. Tudo é imagem. Ora, se tudo é imagem, nada é imagem, não há mais coisas e
representações das coisas, mas falsas representações de coisa alguma. E o contexto da
simulação, onde tudo parece ser, mas nada é.
Em relação a este estado de coisas, caberia investigar quais seriam as relações
possíveis entre a imagem e a não-imagem, ou ainda entre a última _ imagem e as novas
imagens, entre o cinema e as imagens de síntese.
Entretanto o processo que vive a arte do cinema é distinto e independente do
processo tecnológico ligado ao desenvolvimento das imagens de síntese, relacionadas
sobretudo às demandas do mecanismo de informação e outros mecanismos
tecnocientíficos. [256]
Serge Daney 3 abre a revista sobre cinema intitulada Trafic com um ensaio, “Um
Journal de l’An Passé”. “Voltam então as perguntas obvias que pareciam que jamais
seriam colocadas. Por exemplo: o cinema é uma arte? Ele seria conservado,
integralmente ou parcialmente? E o que será do que amamos nele? E de nós que nos
amamos indevidamente através dele? E do mundo que ele nos havia prometido e do qual
nos tornamos cidadãos?”
Estamos diante de um cinema que se pergunta se ainda é cinema. Um cinema
diante de suas próprias incertezas. Esta é uma questão que não se vincula, no sentido
artístico, à velha discussão cinema e televisão, e muito menos à questão atual, cinema e
novas tecnologias da imagem. Entretanto, esta questão se desdobra na possibilidade e na
impossibilidade da relação do cinema com as demais produções visuais.
Por outro lado, a atual produção de “novas” imagens não conhece a crise, e muito
pouco ainda a própria crítica. Ao contrário, o uso incessante das imagens de síntese
indica o enorme sucesso dessa nova tecnologia que se apresenta como uma prática
acessível, de grande rapidez e alto nível técnico, embora ainda de custo elevado.
Podemos dizer que vivemos uma época de um absoluto negativo para o cinema e
de pleno positivo para as imagens virtuais; precisamos dessas diferenças para
compreendermos as relações que se estabelecem entre estas duas formas de produção de
imagens.
Torna-se evidente o porquê de determinadas produções cinematográficas terem
sucumbido à influência da era computadorizada, resultando na realização de filmes que
são verdadeiros programas de computador. Alguns realizadores tentaram através da
utilização de novas técnicas criar novos filmes, mas criaram no máximo novos
softwares.
A nova geração de filmes softwares mostra a tentativa de um determinado cinema
de avançar a reboque da nova tecnologia. Esses filmes não fazem cinema, mas apenas
efeitos especiais. É o caso de filmes como Tron: Uma Odisséia Eletrônica ou O
Exterminador do Futuro II, que impressionou pelo uso do programa de modelagem.
Neste processo, cria-se a imagem cinematográfica como imagem de síntese, isto é,
imagens geradas em função de outras imagens, que não possuem qualquer outro
referente real ou imaginário.
Ao se constituir no curto-circuito de imagem a imagem, essa tendência anuncia o
tão decantado fim do cinema, o fim através da proliferação aleatória de imagens sem
presença, sem sentido, proliferação de um cinema sem cinema.
Há todavia outra tendência no uso das novas tecnologias pelo cinema que, ao

3
Daney, S. Devant la recrudescense des vols de sacs à main.Paris: maio 1991.
contrário, potencializa a imagem cinematográfica através da reinvenção da própria
linguagem do cinema. É o exemplo de Peter Greenaway em A Última Tempestade,
utilizando o Hariet e o HDTV para [257] recriar a montagem do quadro no quadro,
utilizando as novas possibilidades tecnológicas para inserir o extra-campo no campo,
seja no som ou na imagem. Neste caso, toda a potencialidade plástica da informação
digital (dada pela estocagem maleável de elementos possibilitada pelo uso de vários
instrumentos que podem criar alterações infinitas) é utilizada como meio para a
realização artística, e não como uma nova estética em si mesma.
Este cinema não é seduzido pela tecnologia, mas, ao contrário, a seduz. Ele se
apropria das imagens virtuais para criar uma versão cinematográfica do virtual. Este
cinema leva às últimas consequências o novo tecnológico, não como um clichê a mais,
mas como possibilidade estética de um novo cinema, de uma nova imagem.
“As gerações futuras descobrirão o cinema com a sua perda” (Serge Daney).
O cinema não é mais o mesmo. E o que dizem, e, sobretudo, o que vemos. Mas, se
tudo se encaminha para um apagamento das distinções entre as imagens, se Raymond
Bellour fala do entre-imagens, como o destino comum a todas as imagens, como imagens
que passam, ou ainda se Daney fala do visual como também um fim das diferenças entre
as imagens; enfim, se parece definitiva uma aproximação máxima entre as artes visuais,
que então o cinema desempenhe o seu papel enquanto a última imagem e empreste sua
substância às novas tecnologias da imagem.
Porque, ainda segundo Daney, a imagem secreta uma certa heterogeneidade que
nos lembra que não estamos sós; a imagem é então a condição de possibilidade da
própria alteridade.
O duplo absoluto ocasionado pelo imediato da interatividade destrói os limites
entre o mesmo e o outro e portanto a ilusão de sermos o duplo, isto é, simultaneamente o
mesmo e o outro. Ilusão real em qualquer imagem de cinema.
Como iludidos que somos e portanto deliberadamente incuráveis (Clement
Rosset)4, nós nos perguntamos: diante da era da simulação, da interatividade, do tempo
real, da visão sintética, da automação da percepção, da não-imagem, o que o cinema se
tornará?
Digital com certeza. Mas este será o fim ou o meio?

4
Rosset, C. O Real e seu Duplo.São Paulo: LPM, 1988.

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