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Folha de S.Paulo - O processo como obra - 13/07/2003 26/11/17 8:08 PM
"Cinema lido"
A esse respeito, um filme de Marguerite Duras (1914-96) é
exemplar. Em "Caminhão" (1977), ela lê o roteiro ao ator
Gérard Depardieu. Essa leitura é entrecortada por planos de
um imenso caminhão azul circulando por estradas. O roteiro
trata de uma mulher que teria ido visitar a irmã no interior e
depois teria tomado uma carona no caminhão e conversado
bastante com o motorista. A mulher e o motorista não são
vistos nunca. Toda vez que Duras cita o caminhão nos vem
logo à mente a imagem do caminhão, esse caminhão azul e
nenhum outro. Ao passo que, quando se refere à mulher,
nenhuma imagem nos vem à mente, ou melhor, vêm várias
imagens, diferentes: com a fala de Duras, estamos
hipoteticamente construindo a personagem, em várias
direções. A imaginação flutua e fica incrivelmente ativa.
Filme excelente para pensar a relação imagem/palavra/
imaginação. Ultimamente [a diretora] Tata Amaral tem se
interessado pelo "cinema lido" ou o "cinema contado". No
ano passado, o adido cultural do Consulado da França em
São Paulo organizou leituras de peças curtas da recente
dramaturgia francesa. Havia um ator para cada personagem e
um esboço de encenação e de interpretação. Muitos dos que
presenciaram essas leituras se perguntaram se seria
necessário ir mais longe. Não só a compreensão do texto era
plena, como a emoção despontava. Uma estranha relação se
estabelecia com o ouvinte/espectador. Como não havia nada
impositivo, como nada estava determinado, era possível se
emocionar, era possível pensar que, se eu fosse o diretor ou o
ator/atriz, daria uma linha diferente a esta ou aquela
personagem ou cena, e justamente esse jogo de
possibilidades, a partir dos estímulos proporcionados pela
leitura dramática, permitia que se tivesse acesso às
potencialidades do texto, e o texto se enriquecia. E isso
criava intensa emoção estética e também proporcionava
considerações várias, por exemplo, sobre tal questão social
ou outra que poderia aparecer sob outro ângulo nesta ou
naquela cena se se tivesse feito outra opção de encenação ou
interpretação.
Laconismo
A estética do esboço não é recente na história da arte.
Lembremo-nos dos comentário do crítico Fénéon sobre os
impressionistas: "No entanto, quanto à técnica, nada de
preciso: as obras desses pintores se apresentavam com um
jeito de improviso; suas paisagens eram pedaços de natureza
vistos de relance, como através de um postigo rapidamente
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Lembrete
Na exposição "A Respeito de Situações Reais" (no Paço das
Artes, em São Paulo, em maio de 2003), a esplêndida
instalação do cineasta português Pedro Costa permite rica
reflexão sobre a relação entre obra e processo de criação.
Sobre duas telas justapostas são projetados copiões do filme
"No Quarto da Wanda". A cada tela corresponde um fone de
ouvido que permite ouvir o som respectivo. A tela da
esquerda só apresenta material gravado em interiores,
enquanto a outra, gravações em exteriores.
Costa gravou 130 horas de material, que, trabalhado pela
montagem, resultou num filme de cerca de três horas. "No
Quarto da Wanda" oferece um leque de significações sobre o
personagem principal, sobre a droga, sobre o bairro
miserável e em processo de destruição pela Prefeitura de
Lisboa, onde sobrevivem e se drogam pessoas focalizadas
pelo filme.
Anos depois, por sugestão dos curadores Catherine David e
Jean-Pierre Rehm, Costa montou essa instalação. Nela, é
impossível -esta é pelo menos a minha opinião, não
necessariamente compartilhada- reencontrar as significações
organizadas pelo filme, e ela não sustenta os discursos sobre
Wanda e a droga que foram motivados pelo filme. Então, o
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que acontece?
Num primeiro momento, podemos dizer que esses copiões
relembram o filme e podem reativar os discursos que ele
provocou. Usar-se-ia então a instalação como uma espécie de
lembrete, mas assim se aproveitaria muito pouco a sua
potencialidade. No entanto algo importante já aconteceu
nesse primeiro momento: é que a instalação não está sozinha
no tempo e no espaço, ela tem uma anterioridade, o filme. E
a relação com a instalação depende do conhecimento pelo
espectador dessa anterioridade. Num segundo momento,
pensamos estar em presença da matéria-prima de que se
originaram o filme e suas significações. Portanto temos de
alguma forma acesso ao processo de criação do filme. Mas
acredito que podemos chegar a um terceiro momento, mais
problemático e instigante: esses copiões já não são mais a
matéria-prima prévia à elaboração do filme, dado que este já
foi realizado, mas são como uma volta da matéria-prima após
a construção das significações do filme.
Esses copiões brutos -ou minimamente trabalhados, é claro
que houve uma seleção nas 130 horas de gravação- que
foram rejeitados ou beneficiados, domesticados pelo trabalho
de montagem, retornam. O retorno do rejeitado que não se
submete ao beneficiamento da montagem. Ele retorna numa
atitude de resistência. Resistência a quê? À obra definitiva e
significativa, e isso bloqueia as significações sobre as quais o
filme definitivo permitia trabalhar. Essa situação é brutal na
sua oposição à obra significativa -e ironicamente provocante.
De fato, a instalação alude a mecanismos de construção:
além do interior/exterior já apontado, as duas telas
justapostas remetem ao ato elementar de montagem: colar
dois planos, o final de um com o início do seguinte numa
sucessão temporal.
O observador participa desse ato: com um fone na orelha, ele
pode olhar a tela correspondente ou a outra, trabalhando a
relação imagem/ som. Mas não se trata propriamente de uma
construção de linguagem, antes de um esboço primário, que
não permite chegar, como o filme, a Wanda, à droga etc.
Ficamos então nessa tensão entre a obra definitiva versus
material bruto, que retorna afirmativo e se recusa a se dobrar
a mecanismos de significação, pelo menos os do filme.
Essas considerações sobre a instalação de Pedro Costa nos
conduzem a outras questões. Desde os primeiros contatos de
Costa nesse bairro lisboeta até a instalação, anos se
passaram. Por outro lado, filme e instalação não se
encontram no mesmo espaço ao mesmo tempo.
Digamos que o "processo Wanda" precisou de tempo para se
desenvolver e não cabe numa unidade espacial. Esse tempo
me parece de natureza diferente do tempo finalista que
precede a feitura de um filme (tantos meses de roteirização,
tantas semanas de pré-produção). Não o espaço temporal
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