Você está na página 1de 5

Improvisação performativa e a arte de Étienne Decroux

Maria Beatriz Mendonça (Bya Braga)


Curso de Teatro – Escola de Belas Artes - UFMG
Professora Adjunta
Doutora em Artes Cênicas– UNIRIO
Atriz, diretora cênica.

Resumo: A criação improvisada pode ser “zona borrosa” mesmo no campo investigativo de
uma “ciência da representação teatral”. A improvisação performativa na arte de Étienne
Decroux, mesmo vivenciada dentro de um caminho técnico com formalização de
repertórios distintos, também expressa traços fugidios da expressividade do performador.
Como dizer desta “maneira” decrouxiana de improvisar? Como criar diálogos com outras
experiências no campo da improvisação cênica? Improvisar com a arte decrouxiana é
revelar um saber específico em uma expressividade de linguagem cênica fronteiriça. Uma
expressão como ela, “borrosa” ou não, necessita de ciências "afetivas" para ser percebida.

Palavras-chave: Improvisação, performatividade, Étienne Decroux, mímica corporal


dramática.

Tomemos o teatro como um lugar para ações extemporâneas. E pensemos na


arte cênica de Étienne Decroux (1898-1991) como um estímulo intenso para a
concretização delas. A arte de Decroux é uma arte para equilíbrios instáveis dos artistas
que por meio dela transitam, e para o gosto do movimento do teatro. Uma ousadia dele foi
dizer: “a mímica corporal não é uma adivinhação, seu problema não é uma aposta”
(DECROUX, 1994: 126), ou “a mímica é uma série de ações presentes” (DECROUX, 1994:
135), e ainda: “se a peça carece do encanto de uma história, onde pode estar seu
encanto? _ Na maneira” (DECROUX, 1994: 144).
O Francês criou seu estilo nas manières que propôs. Colocou abaixo sua casa,
o teatro, e com as próprias mãos buscou sua reconstrução em bases diferenciais1.
“Extravagância!”, dita sobre ele, é expressão que elogia e recusa seus atos. Sua arte para
o ator é proposta vibrátil, intensiva e derrisória de cânones da atuação. Decroux
neutralizou o rosto do ator, aprendendo isso com Jacques Copeau e sua atuação com a
máscara nobre (neutra), e indefiniu a possível personagem que do ser-rosto sairia,
surpreendendo e se diferenciando do mestre. Os procedimentos artísticos de Decroux
devastaram atores sedentos de uma expressão cênica que privilegiasse uma narrativa em
composições de signos linguísticos determinantes, expondo-os a um modo de superação
de seus limites físicos, que sua arte sinaliza, e de seus limites afetivos, sejam eles para
consigo mesmo ou em relação ao próprio teatro vigente por todo o século XX, teatro que
ele viveu e testemunhou. Talvez somente Decroux tenha ultrapassado os próprios limites

1
Com a imagem da “reconstrução com as próprias mãos” enfatizo o caráter de artesania na arte de Decroux.
Cf. MENDONÇA, 2010.
que sua arte ofereceu em seu tempo, tanto na forma corporal quanto em sua intensidade
de vida e expressão. Talvez somente ele.
De todo modo, conversemos um pouco sobre sua maneira. Manière é uma
palavra que possui uma presença significativa no vocabulário decrouxiano podendo ser
considerada uma importante noção artística sua. A palavra “maneira” traz um sentido de
modo e método em que alguma coisa é realizada, ou mesmo fabricada artesanalmente na
arte mímica corporal, seja na experiência da improvisação, seja nas composições
finalizadas. Com Decroux, a “maneira” fortalece uma referência ética importante, proposta
por ele, na relação entre o agir e o pensar, buscando revelar uma qualidade desse
pensamento forjada em um “esforço” e em uma “artificialização” do movimento, mas sem
impor a ela uma finalidade enquanto ação. Mesmo assim, para Decroux, “maneiras” são
“ações produtivas” (DECROUX, 1994: 145). Diz ele:

A maneira de fazer vale mais que fazer [...] Olhe como o mimo se inclina
para pegar uma flor. É isso que importa, pois isso revela algo que nós nos
beneficiamos em saber e não no fato de que uma flor que estava antes no
campo está agora na lapela (DECROUX, 1994: 159) (Grifos meus).

O percurso do ato, o processo do fazer, “valendo mais que fazer”, revela uma
noção de produtividade que transcende a composição de signos legíveis na ação do ator
que possam se referir a um sentido pragmático para a realização da ação, mesmo que
possa ser essa uma ação plena de autenticidade. A ação com a arte de Decroux sinaliza a
possibilidade de desvio de seu sentido e de uma indeterminação em si mesma, e também
da transformação do ator em performador que foca sua experiência artística mais na ação
que necessariamente em um jogo de ilusão. Ainda que Decroux contemple em sua arte, em
suas figurações mímicas corporais, distintas “maneiras” de ação-percurso, elas existem
como caminho. São “ações presentes”. Presença do ator que libera um potencial de
experimentação na via improvisada. Para Jean-Pierre Ryngaert “presença” é:

Uma qualidade misteriosa e quase indefinível, sobre a qual os jurados de


admissão nas escolas de atores talvez cheguem a um acordo, apesar de
ficarem embaraçados para definir os critérios que permitem reconhecê-la.
Ela não existe sempre pelas características físicas do indivíduo, mas sim
em uma energia vibrante, da qual podemos sentir os efeitos mesmo antes
de o ator agir ou tomar a palavra, no vigor de seu estar no lugar. A
presença não se confunde com uma vontade de se mostrar de maneira
ostensiva. (...) se é difícil aprender a ter presença, creio ser possível
aprender a estar presente, disponível, ao mesmo tempo imerso na
situação imediata, e, no entanto, aberto a tudo o que pode modificá-la. De
certa forma, a aptidão para a concentração age sobre a qualidade da
presença (RYNGAERT, 2009: 55-56) (Grifos meus).
Franco Ruffini, falando sobre a dialética entre natureza e artifício, entre técnica e
autenticidade, ou pseudo-espontaneidade, entre controle e abandono da ação e de si,
reconhece em Decroux a noção clara da “presença” do ator como uma proposta
metodológica para a expressão da ação real, ou da ação sincera, assim chamada aqui nos
rastros da “sinceridade” proposta por Copeau (RUFFINI, 2004: 147-156).
Mas, com Decroux, a presença, vigor-de-estar, se faz também “dilatada”, pois o
ator-mimo é “ator dilatado” (DECROUX, 1994: 66), energeticamente e na produção
sensório-visual da ação. A “maneira” de Decroux convoca e envolve toda a existência do
artista, a começar pela dele próprio, solicitando a dilatação das ações para além daquelas
equivalentes ao considerado natural. E ela se encontra “mais ou menos perto da noção de
presença que não representa” (DECROUX, 1994: 150) aproximando-se, portanto, da ação
performativa no campo da “presentação” de um ator (CARLSON, 2005) e de um teatro
performativo (FÉRAL, 2008) que busca escapes na representação. Assim, o ato
performativo com a arte de Decroux surge do engajamento total do artista na ação
realizada por ele, da intensidade de seu investimento no ato improvisado, fora e dentro da
cena, arriscando as próprias subjetividades, como também a recepção do público. Esse ato
surge da experiência de ações fragmentadas, em composições deslocadas e, ao mesmo
tempo, múltiplas no próprio deslocamento, pois também podem descolar o sentido
promovido na ação das partes da figura humana. Além disso, há o aspecto lúdico surgido
no jogo corpóreo e deslizante desta ação performativa decrouxiana.
Brincar com a própria presença e com as ações era uma das propostas
artísticas de Decroux. Brincar com os próprios “retratos” e outros retratos possíveis. Pois o
“retrato” de que Decroux se ocupa, sua mímesis, é para o artista o “retrato do trabalho”
(DECROUX, 1994: 79), ou seja, o “retrato da ação” com a intensidade do artista. Trata-se
de outro modo de retratar, e de produzir retratos.
Vejamos o que Flora Sussekind nos traz como possível definição de teatro a
partir do ato poético de Carlito Azevedo, o poema “Uma tentativa de retratá-la”:

“Por que, pintor, figurar-me uma face/ e sujeitar uma deusa do vazio?” (...)
no texto de Carlito, essa contigüidade espacial, e essa dinâmica de
negações por um lado, recusam a identificação e o retrato como gran finale,
e mantém lacunar o objeto-em fuga, em eco, de toda a perseguição,
complexificam, por outro, nesse processo, o exercício de figuração, que, de
ação direcionada, definitória, em mão única, se converte em um jogo em
que planos descontínuos se produzem e contradizem em um campo
relacional contrastivo. A isso é que talvez se possa chamar aí de teatro.
Nada que se reduza a um conjunto de personae poéticas. Nada que
realmente se aproxime do entendimento convencional do drama, baseado
em diálogos intersubjetivos, figuras empaticamente bem definidas, histórias,
com começo e fim, urdidas como sequências de momentos voltados
teleologicamente para formas diversas de clímax. Nada cuja apreensão
exija imediata exteriorização, encenação, locução. E, no entanto, trata-se
de algo que envolve formas de ver e ouvir, como disse John Cage, numa
2
das muitas definições de teatro ensaiadas por ele . Mas não apenas visão e
escuta. Ou as contradições possíveis entre as imagens óticas e visuais.
Mas algo que demandaria uma “situação de circo”, diria o compositor,
especificando, em seguida, que se tratava, na verdade, de criar uma
situação em que se pudesse contar com uma “pluralidade de centros”
(SUSSEKIND, 2008: 64) (Grifos meus).

O que Decroux parecia motivar em seus estudantes e parceiros artísticos é que


eles se deixassem levar pela performatividade em ação, deixassem “fazer sair a linfa” da
forma3, arriscando um jogo de acontecimento e não, necessariamente e somente, de
representação. Improvisar para ele era viver um alto risco para além do próprio risco da
intensidade de se viver o aqui agora. Um risco de produzir ações “eficazes” (MARINES,
2000), mas não a eficácia efetiva para servir à construção de um modo narrativo em cena
de traço linear e previsível em sua leitura. Diz Corinne Soum, sua última parceira artística:

O teatro será digno deste nome apenas quando o que age recusar obedecer
ao que escreve. Primeiro é necessário improvisar sem mesmo saber sobre o
que, e assim encontrar um tema seguidamente, agir para pensar. [...]
Decroux não nos dava um tema de partida. Citava um poeta, contava uma
lembrança, evocava um momento da vida ou ainda cantava um fragmento
de canção, em seguida dizia: “vá fazer algo”. [...] Ele adorava a essência das
coisas, não a sua explicação, não é por acaso que sua forma literária
favorita era a poesia (SOUM, 2009: 22-23) (Grifos meus).

A ação revelava a atriz em sua intensidade. Não para ser “deusa do vazio”.
Mas, antes de tudo, para ser e fazer. E a improvisação poderia ser jogo com a presença
dela, uma improvisação performativa.

Decroux ainda esclarece sobre o ato criativo:

Eu não pergunto: “para que isso serve?” As coisas que são interessantes
sobre a terra são as que não servem para nada. [...] Eu sou um militante
dessa coisa e preciso ter militantes. Mas, os militantes não são feitos para
enriquecer. [...] Os militantes são necessários. E a questão de saber “para
que serve?” não me interessa, ela me choca (DECROUX, 2003: 72-73).

A improvisação performativa e a arte de Decroux são propostas de


ser/estar/fazer do artista-artesão, ainda que isso se realize motivado por estruturas
corpóreas, criadas em sua arte mimica corporal, para serem repetidas até ficarem
diferentes, e ainda que estejam envolvidas em utopias de luta. Propostas para que? Para,
sobretudo, talvez, existirmos.

2
É importante lembrar que John Cage, em 1965, conversou sobre teatro com Richard Schechner e Michael
Kirby, realizando uma entrevista que foi publicada na Revista The Drama Rewiew (KIRBY, Michael e Richard
Schechner: An Interview with John Cage, in: Schechner, Richard - Michael Kirby (eds.): TDR (Tulane Drama
Review), Vol. 10, No. 2 (special issue), 1965 Winter, 50-72.
3
Orientação dada a Yves Lebreton quando esse era seu aprendiz. Revista Teatar
http://www.teatroduemondi.it/po/indexpo.html , 2002. Acesso em 03/05/2008.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARLSON, Marvin. Performance. Unha introdución crítica. Trad. Manuel F. Vieites. Vigo:
Ed. Galáxia, 2005.

DECROUX, Étienne. Paroles sur le mime. Paris: Librairie Théâtrale, 1994.

_____. L’Interview imaginaire ou Les ‘dits’ d’Étienne Decroux. In: Étienne Decroux, mime
corporel. Textes, études et témoignages. PÉZIN, Patrick (org). Saint-Jean-de-Védas:
L´Entretemps éditions, 2003. P. 55-209.

DE MARINIS, Marco. In cerca dell´attore. Roma: Bulzoni, 2000.

FÉRAL, Josette. Os camiños do actor. Vigo: Ed. Galáxia, 2004.

_____ (a). Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. Conferência no


Encontro Mundial de Artes Cênicas-ECUM. Belo Horizonte, março de 2008.

_____ (b). Por uma poética da performatividade: o teatro performativo. In: Sala Preta,
Revista de Artes Cênicas, nº 8. São Paulo: Departamento de Artes Cênicas, ECA/USP,
2008. P. 191 a 210.

MENDONÇA, Maria Beatriz. Étienne Decroux e a artesania de ator. Tese de Doutorado em


Artes Cênicas apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO. Rio de Janeiro, 2010.

PERLOFF, Marjorie. John Cage’s Living Theatre. Disponível em


http://epc.buffalo.edu/authors/perloff/articles/cage_living_theatre.pdf. Acesso em
23/08/2010.

REVISTA l’Art du Théâtre. Ódio ao teatro. (Trad. Didática Ângela Leite Lopes). Nº 4, Paris:
Actes Sud/Théâtre National de Chaillot, primavera, 1986. P. 12-14.

RYNGAERT, Jean- Pierre. Jogar, representar. Práticas dramáticas e formação. Trad.


Cássia R. da Silveira. São Paulo: Cosac & Naify, 2009.

SCHECHNER, Richard e KIRBY, Michael. An Interview with John Cage. In : SANDFORD,


Mariellen R. (org.). In : Happenings and other acts. Londres: Routledge, 1995. P. 43-59.

SOUM, Corinne. A mímica corporal. Um mundo desconhecido e familiar ao mesmo tempo.


Trad. Intertrans e Nadja Turenko. In: Projeto mímicas. Victor de Seixas (org). São Paulo:
Projeto mímicas, 2009. P. 16-30.

SUSSEKIND, Flora. A imagem em estações. Observações sobre “Margens”, de Carlito


Azevedo. In: PEDROSA, Célia e ALVES, Ieda (org.) Subjetividades em devir. Estudos de
poesia moderna e contemporânea. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008.

Você também pode gostar