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A ntonio Araújo
A
encenação contemporânea vem estabele- O caráter multidisciplinar de cruzamen-
cendo uma forte relação com a perfor- to de diferentes linguagens artísticas, tão axial
mance, sendo contaminada e reconfigu- na performance, é também prática recorrente na
rada por ela. Relação de desconfiança, encenação atual, que se alia, cada vez mais, às
muitas vezes, até mesmo antípoda, em al- artes plásticas, à dança, à música e ao cinema.
guns casos, mas também legítima e complemen- Porém, diferentemente do projeto wagneriano
tar. Utilizamos aqui o conceito mais restrito de de síntese das artes em sua Gesamtkunstwerk, o
performance, associado à performance art, ao encenador contemporâneo coloca lado a lado
invés da noção ampliada com que Richard essas diferentes linguagens artísticas, “presenti-
Schechner vem abordando este termo, no cam- ficando-as” autonomamente.
po dos perfomance studies – incorporando a ele O corpo em risco, colocado em situação-
os rituais, as cerimônias cívicas, a política, as limite, que não representa mais personagens,
apresentações esportivas, entre outros aspectos mas utiliza sua autobiografia como material cê-
da vida social. nico, é outro ponto em comum desse diálogo.
Nesse sentido, o caráter autobiográfico, Como analisa Josette Féral, o performer recusa
não-representacional e não-narrativo, de contra- “totalmente a personagem e [...] [põe] em cena
ponto à ilusão, e baseado na intensificação da o artista ele mesmo, artista que se coloca como
presença e do momento da ação, num aconte- um sujeito desejante e performante, mas sujei-
cimento compartilhado entre artistas e especta- to anônimo interpretando a ele mesmo em
dores – traços característicos da arte performá- cena” (Féral, 1985, p. 135). Ou ainda, na visão
tica – vão orientar as sugeridas aproximações de Jorge Glusberg, “o performer não ‘atua’ se-
com o campo teatral. Segundo Lehmann, “é gundo o uso comum do termo; [...] ele não faz
evidente que deve surgir um campo de frontei- algo que foi construído por outro alguém sem
ra entre performance e teatro à medida que o sua ativa participação” (Glusberg, 1987, p. 73).
teatro se aproxima cada vez de um acontecimen- Ou seja, essa instauração da presença do corpo
to e dos gestos de auto-representação do artista e da pessoa do próprio performer, não mediada
performático” (Lehmann, 2007, p. 223). por instâncias ficcionais, que marcou a cisão
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gerando uma obra em que nem o texto, nem afirmação territorial de suas autonomias, e na
o ator ou a encenação têm caráter epicêntrico. justaposição não-dialogada de suas criações, que
Ou seja, a resultante do espetáculo – como no eles “colaboram”.
caso da performance – reflete uma alternância O teatro contemporâneo, ao deixar apa-
de dominâncias textuais, cênicas, interpretati- rente e evidenciado o seu processo de fabrica-
vas, etc. ao longo de sua apresentação. ção, também estabelece conexão com os aspec-
Contudo, uma diferença pode ser encon- tos de revelação de procedimentos construtivos,
trada na análise distintiva que Renato Cohen presente na performance. Esta, segundo Féral,
faz entre happening – de caráter mais grupal – e “se interessa por uma ação em curso de produ-
performance – de natureza preponderantemen- ção mais do que em um produto acabado”
te pessoal. Nesta última, (Féral, 1985, p. 137). O posicionamento per-
formativo do encenador, nessa medida, o con-
“[...] o trabalho passa a ser muito mais indi- diciona menos para a realização da “obra per-
vidual. É a expressão de um artista que feita”, deixando que o espetáculo apresente em
verticaliza todo seu processo, dando sua lei- cena e em ato o seu próprio processo de feitura.
tura de mundo, e a partir daí criando seu tex- Tal perspectiva se materializa tanto pela expli-
to (no sentido sígnico), seu roteiro e sua for- citação de rastros do processo, pela não-ma-
ma de atuação. O performer vai se assemelhar quiagem dos seus buracos, fissuras e fracassos,
ao artista plástico, que cria sozinho sua obra quanto pela apresentação da obra como um
de arte; [...] Por esse motivo vai ser muito constante e contínuo work in progress.
mais reduzido o trabalho de criação coletiva. Por todas as aproximações acima levanta-
Mesmo quando o artista (no caso, um das e, ainda, tomando como base a abordagem
encenador) trabalha em grupo [...] esse pro- de Féral,1 segundo a qual ela prefere o uso do
cesso se dá por ‘colaboração’ ou por ‘direção’. termo “teatro performativo” ao invés de “teatro
Essa relação [...] vai ser uma relação horizon- pós-dramático”, para se referir à cena contem-
tal, de colaboração” (Féral, 1985, p. 100-1). porânea, resolvemos também nomear esta dire-
ção estreitamente vinculada à performance
É curioso que Cohen já utilize aqui a pa- como “encenação performativa”.
lavra “colaboração” para descrever um modo de Tal tipo de encenação, inclusive, na sua
criação horizontal que seria distinto daquele da busca de negação da representação, chega a se
criação coletiva. É claro que o que ele tem em apresentar como uma não-encenação. Eviden-
mente não é ainda a dinâmica ocorrida no pro- temente, não no sentido pré-meiningeriano, de
cesso colaborativo, o que se evidencia no exem- mera organização material dos elementos, mas
plo por ele apresentado: a parceria entre Robert colocando em crise a capacidade “todo-podero-
Wilson e Philip Glass, na qual este último com- sa” que ela teria de unificar, simbolizar ou in-
põe, separada e independentemente, a música terpretar um texto ou a própria realidade. Ex-
para suas “óperas”. A colaboração, nesse caso, periências de “não-encenações” ou de “mise en
se dá pela equivalência das diferentes criações, scènes precárias” podem ser encontradas nas lei-
isto é, pela não-subjugação da produção musi- turas encenadas, nas encenações improvisadas
cal à vontade e ao discurso do encenador. É na ou construídas a partir de dispositivos impro-
1 Tal abordagem foi apresentada em recente palestra no Encontro Mundial das Artes Cênicas (ECUM)
– 6ª Edição 2008, realizada nas cidades de Belo Horizonte e de São Paulo, em 20 e 27 de março de
2008, respectivamente.
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visacionais, e ainda, nos exercícios cênicos in- Tal discussão leva, necessariamente, ao
conclusos, nos quais o aspecto processual – de problema da unidade, que atravessa, por mais
apresentação do processo, de revelação do de um século, a função do encenador. Ao con-
“movimento-do-fazer”, do “showing doing” trário da perfomance, que não visa ao estabele-
(“mostrar o próprio fazer, no momento em que cimento de um sentido geral ao discurso cênico
se faz”) schechneriano – espelha, sem dúvida, ou à materialização de um ponto de vista sobre
procedimentos performativos. um determinado assunto ou texto, a encenação
Tanto como na performance, a encena- parece, por natureza, convocada a essa compo-
ção performativa pretende provocar a instaura- sição ou articulação do sentido. Pavis busca em
ção de um acontecimento. Segundo Féral, “não Copeau a formulação clássica da noção de mise
contando nada nem imitando ninguém, a per- en scène: “ela é a ‘totalidade do espetáculo cêni-
formance [...] sem passado, nem futuro, aconte- co que emana de um pensamento único, que o
ce, transforma a cena em acontecimento, acon- concebe, o regula e, no fundo, o harmoniza”
tecimento do qual o sujeito sairá transformado, (Pavis, 2008, p. 45). Ainda que o espetáculo
esperando uma outra performance para seguir possa colocar em xeque um posicionamento ou
o seu percurso” (Féral, 1985, p. 135). deixar em aberto a amarração de um significa-
Portanto, o objetivo principal deste tipo do último, o imperativo da constituição de uni-
de encenação é menos a amarração estética do dade parece ser sempre uma espécie de teleolo-
todo, mas, sobretudo, a produção de experiên- gia da encenação.
cia. Busca-se uma interferência no espectador a Bernard Dort sustenta, porém, que essa
fim de que ele seja capaz de “mobilizar sua pró- “vontade de unificação (...) é somente um fe-
pria capacidade de reação e vivência a fim de nômeno histórico” (Dort, 1988, p. 178). Em
realizar a participação no processo que lhe é outras palavras, é preciso se interrogar sobre essa
oferecida” (Lehmann, 2007, p. 224). Esse po- visão do teatro – e da encenação – como arte
sicionamento performativo do teatro, segundo unificada. A unidade artística da representação
Lehmann, abre-lhe, justamente, possibilidades surge com o teatro realista, no final do século
de novos estilos de encenação. Contudo, ainda XIX. Tratava-se, ali, de uma unidade não ape-
de acordo com Féral, nas visual ou cenográfica, mas também do re-
gistro de interpretação dos atores. Essa busca da
“[...] contrariamente à performance, o teatro unidade estilística e rítmica do espetáculo no
está impossibilitado de não colocar, dizer, seu conjunto, de um eixo estético no discurso
construir, fornecer pontos de vista: pontos de da encenação, da conformação de um todo or-
vista do encenador sobre a representação, do gânico e harmônico, é o que veio a configurar a
autor sobre a ação, do ator sobre a cena, do noção de ensemble, que atravessará todo o sécu-
espectador sobre o ator. Há toda uma lo XX.
multiplicidade de pontos de vista e de olha- Contudo, em sua análise, Dort aponta
res [...]. A performance não tem nada a dizer, para uma nova configuração relativa à encenação:
nada a dizer a si mesmo, a capturar, a proje-
tar, a introjetar a não ser os fluxos, as redes, “Constatamos hoje uma emancipação pro-
os sistemas. Tudo nela aparece e desaparece gressiva dos elementos da representação e ve-
como uma galáxia de ‘objetos transicionais’ mos aí uma mudança de estrutura desta últi-
(Winnicott), que só representam as falhas da ma: a renúncia a uma unidade orgânica pres-
captura da representação. (...) Ela não procu- crita a priori e o reconhecimento do feito te-
ra dizer (como o teatro), mas provocar rela- atral como uma polifonia significante, aber-
ções sinestésicas de sujeito a sujeito” (Féral, ta sobre o espectador” (Dort, 1988, p. 178).
1985, p. 136-8).
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O teórico francês opõe, então, a “visão ção”, um produtor de uma rede de motivos cê-
unitária” de Wagner ou de Craig a uma “visão nicos diversos.
agonística”, que pressupõe um combate entre os Inspirada pela performance – e por sua
diversos elementos cênicos para a construção do estrutura de collage e de leitmotive encadeando
sentido, do qual o juiz será o espectador. as ações – a encenação performativa vai colocar
A encenação performativa, nesse sentido, os diferentes fluxos de desejo e de sentido em
vai buscar justamente se libertar da construção conexão, deixando emergir as diversidades,
da unidade, do discurso homogêneo e do sen- habitando em heterotopias e, por fim, desestabi-
tido articulador. Ela procurará se deixar atra- lizará as cristalizações de unidade. Como susten-
vessar por sentidos, por linhas de força, por ta Pavis, no seu recente estudo sobre a ence-
heterogeneidades materiais, discursivas e de nação contemporânea, “a encenação tornou-se
linguagens. Ao invés da “produção de senti- performance, no sentido inglês da palavra: ela
do”, busca-se, como na performance, a “produ- participa de uma ação, ela se encontra em um
ção de presença”, ao invés da “organização sim- devir permanente” (Dort, 1988, p. 37). E, nes-
bólica”, da “homogeneização dos materiais” ou se sentido, a associação – ainda que instável –
da amarração de um sentido, emergem “peda- entre “performance” e “encenação” é um dado
ços de sentido”, possibilidades tateantes de sig- ao qual a cena contemporânea não consegue
nificação, postas em movimento e em contato, mais escapar, pois “uma não vai sem a outra, é
por ação do diretor. Ele, então, funcionaria mais somente a dosagem que varia. É necessário in-
como um operador de fluxos erráticos, um ventar uma performise [junção das palavras ‘per-
“presentificador” de “pedaços de representa- formance’ e ‘mise en scène’]” (idem, p. 40).
Referências bibliográficas
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