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O Espetáculo
Quando se refere ao espetáculo, o filósofo espanhol Eduardo Subirats
salienta sua origem etimológica, do latim specere, cujo significado, ver, remete à
contemplação humana e, por conseguinte, “ao caráter explosivo dessa
representação, sua destinação a ser exibido e instaurado, no sentido específico que,
todavia, lhe é conferido por seu caráter de representação ou duplicação da
realidade”.
Ainda, conforme observa o arquiteto e professor Jorge Caron, o espetáculo
como evento público, vai acontecer desde que determinada ação cênica entre em
contato com sua assistência; a partir daí se estabelece um fenômeno de
intercomunicação entre as partes envolvidas.
Implica, também, em que a ação é fruto de um planejamento e de uma
produção e que o público, nesse momento, é cúmplice da ação proposta. Esta
cumplicidade significa que o público está em condições de decodificar a mensagem
cênica e que se estabelece entre ambos, cena e assistência, uma convenção que
conta de um lado com uma linguagem cênica e de outro com a manifestação do
público que tem, por sua vez, uma linguagem expressiva própria. É nestas
condições, exclusivamente, que podemos definir o espetáculo.
Tomando por base as categorias universais presentes na fenomenologia
peirceana - considerando aqui que os fenômenos são os cenários - é possível
constatar que em sua apresentação ao receptor, o cenário ideal deve transitar em
três níveis: levar a sentimentos sem que se perceba sua existência (primeiridade);
ser percebido ao entrar em conflito com as coisas que existem no espaço cênico
(secundidade); e criar um interpretante, seja ele lógico ou emocional (terceiridade).
Contudo, é importante ressaltar que, em um espetáculo, estes três níveis só
existem em função dos outros códigos da cena. O interpretante é criado em função
do conflito estabelecido entre os códigos cenográficos e os códigos verbais, sonoros
ou gestuais, pois “um espetáculo é composto por vários elementos organizados e
orquestrados de tal forma que o espectador possa apreciá-los no seu conjunto”
A cenografia é um produto que só uma vez será usado; usado para um, e um
só, espetáculo. Não importa se este permanecerá em cartaz um ano ou cem; num
determinado momento tudo terminará e do que aconteceu somente sobreviverá a
vaga, e cada vez mais vaga, lembrança, de algo que foi belo como um amor antigo
do qual somente sobrou uma foto esmaecida, o desenho de um gesto no espaço, a
entonação de um adeus, a vaga rememoração de um som, de uma luz, de um
consenso; flor ressecada entre páginas desbotadas de um livro de poesias
envelhecidas.
O público, durante a realização do espetáculo, experimenta como que um
estado catártico, quando então a crítica ao inverossímil mostra-se irrelevante. Vai se
estabelecendo, portanto, a suspensão da incredibilidade 39 e a cumplicidade gerada
pelo evento e seu público dá forma ao espetáculo. O estado de suspensão
permanece ativado enquanto perdura o espetáculo e, tão logo este se encerra, a
crítica se restabelece. “O espetáculo não existe antes nem depois, realiza-se
durante.”
Antes de qualquer outra argumentação, fique claro: a cenografia pode ser
necessária, mas não é indispensável; elemento acessório liga-se a uma realidade
aparente tentando transformá-la em algo que, ilusoriamente, pretende nos fazer
acreditar numa verdade absoluta (concreta ou abstrata que seja). Verdade
transitória, diga-se de passagem, pois o momento dramático ao qual assistimos está
totalmente dissociado de nossa concretude física, afetando “somente” o onírico de
nossa sensibilidade.
Cenografias possíveis
O deslocamento da linguagem cenográfica para outras áreas de ação além
do palco se evidencia em meados do século XX, com a consolidação dos meios de
comunicação, sua abrangência na difusão de mensagens e a sofisticação dos novos
recursos e tecnologias disponíveis.
Sendo assim, outros eventos de comunicação, associados ao marketing
comercial e cada vez mais presentes em nosso cotidiano, têm se apropriado da
linguagem cenográfica para vender ideias. Apesar deste contexto nem sempre
comportar o espetáculo, ao menos os recursos da cenografia estão presentes nas
construções: o caráter efêmero, a simulação de materiais privilegiando a forma em
detrimento da função, a criação de ilusões.
De alguma forma o fato do cenário ser construído, empregar materiais em sua
linguagem expressiva, permitir o tráfego espacial dos protagonistas, até sugerir um
lugar real, induz uma aproximação. A identificação falaciosa deriva mais do
envolvimento cúmplice que tende a associar a simbologia de um ambiente à
realidade factual de outro. Em outras palavras, que tende a fundir linguagens
autônomas com discursos distintos pelo ato do encantamento.
Nestes momentos, a forma adquire uma significância que transcende a sua
função e os cenários, por terem entre suas atribuições a de qualificar espaços, têm-
se prestado a habilitar visualmente algumas intenções.
No debate “Cenografias: Mídias e Linguagens” realizado em 2002 pelo SESC
de São Paulo, a cenógrafa Daniela Thomas lembrou que a cenografia, tanto no
cinema como na televisão, solicita do cenógrafo um olhar, um conceito
extremamente atento, que “estende-se desde a cor do pires sobre a mesa até o Pôr-
do-sol ao fundo. Exige também decisões sobre sensações, abstrações, “climas”: a
cena é muito quente, fria? Espaçosa, apertada? Qual o conflito? Deve-se pensar no
tipo de sensação que está se buscando criar no espectador”.
Falando de teatro e televisão J.C. Serroni observa que a questão da escala
também merece atenção. Ele ressalta que a luz, a sombra e o desenho da
perspectiva se equivalem, tanto na televisão como no teatro. “A diferença talvez de
construção cenográfica. A escala das cidades cenográficas da televisão é uma
escala real, com igrejas, ruas, casas, praças, etc.”. No teatro, ainda segundo
Serroni, “se possui uma caixa de palco de doze metros por quinze metros de
profundidade com oito metros de altura, por exemplo”.
Para José de Anchieta, a experiência de mais de vinte anos com publicidade
foi uma das melhores escolas de cenografia e direção - uma espécie de dramaturgia
da classe média e do consumo imediato de produtos. Destaca ainda a característica
de produção dinâmica, cuja demanda diária na produção de desenhos de cenários,
equivale à televisão.
O aspecto positivo dessa produção frenética é que todos nós – profissionais
de cenografia e figurino, maquinistas, cenotécnicos, aderecistas, iluminadores e
fotógrafos – púnhamos a mão na massa todos os dias, como qualquer operário.
Experimentávamos tudo o que nos era possível experimentar (...) nos mais diversos
estúdios de cinema preparando e construindo cenários, ao contrário do teatro e do
cinema de longa-metragem, onde hoje fazemos um cenário e o próximo só dali a um
ano ou mais, o que acabava nos fazendo perder o pique e a convivência diária com
o “fazer”.
O deslocamento efetivo da prática cenográfica para além do universo teatral
- Seu ambiente original - implica na produção de novas referências espaciais,
cujos reflexos sensoriais são percebidos em diversos estratos do cotidiano. “A
cenografia vem se expandindo no mundo da moda (...) no mundo dos shows, nos
clipes, nas montagens de exposições (...) e alguns outros trabalhos mais comerciais
como as vitrines, stands, e montagens de passarelas e palcos”45. Os cenários têm
se adequado a ambientar eventos de compra e venda e, buscando potencializar sua
eficácia, utilizam-se inclusive dos momentos de suspensão da incredibilidade para
envolver as mais variadas platéias.
-
Restaurantes, hotéis, saguões de condomínio e alguns empetecados
banheiros de apartamento, quase tudo se organiza e se decora como se fosse um
território em que a fantasia, como se diz, virou realidade. O efeito Disneylândia é
generalizado, a própria realidade vai cedendo espaço aos cenários.
Para avançar a reflexão sobre o panorama da dramatização dos espaços
cotidianos, é importante verificar que papel cabe à cenografia – como mais um bem
de consumo simbólico da indústria cultural – dado a sua característica de mídia
contemporânea; em direção a uma estética de procedimentos na qual o processo se
impõe ao objeto; a forma tende a se impor ao conteúdo.
A informação no campo cenográfico é coisa rara, e isso faz com que o
cenógrafo brasileiro continue aprendendo com acertos e erros do dia a dia (...) O
próprio conceito de cenografia, que durante toda história da cenografia ocidental
sofreu alterações devido a evolução tecnológica e adaptação a novos espaços,
apresenta-se ainda mais confuso. A existência de diferentes conceitos cenográficos
se deve a esta "mania" da cenografia de entrar em um espaço, reconhecê-lo em
suas particularidades e adaptar-se às suas necessidades até adquirir uma
linguagem própria deste sistema. Esta adequação por sua vez, leva a mudança em
seu processo de desenvolvimento, escolha de materiais e técnicas de produção. O
teatro tem uma linguagem própria, o que leva a utilização de técnicas e materiais
próprios para sua linguagem, na mesma situação encontra-se a televisão e os outros
campos de atuação cenográfica. As fases de transição que fizeram com que a
cenografia passasse de arte pictórica a arte plástica; a incorporação da luz elétrica
como elemento comunicacional; o uso de paisagens naturais na fotografia em
movimento do cinema; assim como, a fragmentação da imagem irradiada da
televisão, levaram profissionais e teóricos a discutir o papel do cenário no
espetáculo: sua relação com o espaço, com o ator e com o público. Hoje, a
inexistência do espaço físico parece afastar a cenografia do seu parentesco mais
próximo, as artes plásticas, por existir apenas no tempo, inclusive no tempo real e
presente, a imagem eletrônica é pura duração (...) Isto acaba levando a uma nova
frente de debates sobre o conceito de cenografia.
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