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Resumo: Este artigo apresenta uma reflexão sobre a composição coreográfica, tentando
compreender a coreografia dentro do universo da dança. O itinerário do gesto coreográfico
está longe de ser apenas uma seqüência de movimentos, antes disto, a coreografia faz
referência à dança, na medida em que se efetua no curso de uma presença furtiva que
preenche o traço de movimento, dando ânimo à sua trajetória. O liame coreográfico,
portanto, é o fim de um processo, sempre provisório, que só se apresenta num rastro atrás,
como registro enigmático. É o registro deste enigma, portanto, que nos instiga ao curso
desta reflexão.
Palavras-chave: dança; composição coreográfica; processo criativo;
Astract: This article introduces a reflection about the choreographic composition, trying to
understand the choreography in the dance universe. The itinerary of the choreographic
gesture is far from to be only a sequence movements, before, the choreography make
reference to the dance, when it is effected in the course of a furtive presence that fills the
movement trace, giving animation to its trajectory. The choreographic line, therefore, is the
end of a process, always transitory, that presents itself on a track behind, as enigmatic
register. It is the register of this enigma, therefore, that give us the motive to the course of
this reflection.
Key-words: dance; choreographic composition; creative process;
Introdução
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cinemático. Quem dança sabe que este discorrer cinemático – também chamado de
“coreografia” – é muito mais do que uma série escolhida de movimentos.
A dança fala através dos gestos, mas o que esta fala diz, está longe de se fazer
entender. E nem poderia, uma vez que se ocupa do sensível e não de sua especulação na
faculdade do entendimento. É por isto que o gesto se mantém na sua dimensão mais
primordial, enquanto célula de movimento. Esta célula é uma estrutura léxica que quando
associada a outras células formam as frases de movimento, que por sua vez, quando
dispostas numa composição, descrevem o itinerário coreográfico.
O entrelaçamento entre os gestos, os acentos, as quebras na continuidade
cinemática, as mudanças no plano espacial, as nuanças energéticas, as suspensões,
dentre outras qualidades de experimentação, tecem a sintaxe da coreografia. Sua
composição se aproxima de uma linguagem, na medida em que se organiza como tal.
Todavia, a dança é a forma da síntese por excelência. Sua linguagem, por mais que
se organize em direção a um entendimento nunca deixa de ser uma experiência
enigmática, pois é cheia de vida e variedade. A coreografia é uma forma, de expressar este
caráter enigmático da dança, todavia, a maneira como se negocia o gesto pode favorecer
ou não este caráter enigmático, dando-lhe o status de gesto expressivo, ou de uma mera
ação funcional, quando sua atuação se resume à execução de um passo codificado de
dança.
O gesto expressivo, no entanto, é sempre mais que uma ação codificada, pois nele
engendram-se sentidos que afetam em profundidade a sensibilidade do atuante. Sua
apresentação sempre será nada mais que um esboço, na medida em que a profundidade
revelada na sua apresentação instigar a novas apresentações, num processo inesgotável,
fonte inexorável do processo criativo. O gesto, na coreografia permanece como um fim
provisório, em processo enquanto há atração. É por isto que o gesto, quando visto como
enigma, traz a luz o caráter luminoso do fazer artístico, uma excelência só alcançada,
quando vista mediante a profundidade do processo criativo que provê a constituição
gestual.
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O gesto como enigma, portanto, é o ponto que nos instiga nesta reflexão sobre a
dança. A partir da reflexão sobre o enigma, queremos discursar sobre a coreografia na
dança, tentando se desviar de sua verificação dicotômica, que enquadra, fatalmente, a
coreografia como um produto passível de reprodução na trilha sistêmica da experiência
quadriculada. Qual a atuação da coreografia na dança? O que ela desperta/desvela? A
que ponto a coreografia faz revelar em si a dança? O curso deste artigo pretende dar conta
destas questões.
Se nivelarmos nosso olhar sobre esta perspectiva de verificação pode-se dizer que
a composição em dança é um esforço em cifrar algo que foge aos limites da
representação. Aqui, nos deparamos com um conceito que merece devida atenção.
Segundo Descartes, a representação nunca apresenta o referente, senão sob um ponto de
vista. Daí sua verificação como “idéia” da coisa, e nunca como sendo a coisa em si. A
idéia, enquanto representação de alguma coisa, só pode ser suposta, nunca dada a
princípio. Daí a impossibilidade de comparar uma representação e aquilo que ela
representaria.
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a representação e seu referente, que se mantém intangível (Gaufey, 1996, p. 27). Assim
em processos criativos, como na experiência da dança, as cifras se re-organizam de
maneira ilimitada, seguindo o auscultar de um estímulo que mau se ouve, mas que
mobiliza.
A cifra é aqui verificada como o itinerário gestual, ou seja, uma série de gestos mais
ou menos interligados e/ou suspensos num liame coreográfico. A cifra mantém a dança na
sua dimensão insólita, na medida em que arrebata, não como atuação cinética,
enquadrada nas prerrogativas lógico-funcionais que configuram aquilo que Descartes
chamou de figura, mas como movimentação corporal expressiva, isto é, como algo que traz
a luz possibilidades de sentido, por afetar em profundidade a percepção sensível.
Todavia, a cifra não deixa de ser uma representação. Quando nos lançamos a
organização dos gestos na coreografia, muitas vezes caímos na injunção de tratá-lo na sua
dimensão mais epidérmica, preocupada com uma construção de movimentos agregados
as dimensões simétricas do espaço e do tempo. Neste esforço a dança é negociada como
figura, para garantir a eficiência e a funcionalidade da composição. Quando a produção fica
alheia ao processo, há uma subtração da criação, para garantir a determinação do produto
no compasso instituído. Visto por esta perspectiva, a experiência se reduz a uma relação
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Neste nível de experimentação corporal o artista traz para o real uma dimensão
subjetiva que encerra em si mesmo, sem referência a qualquer outra dimensão, senão a da
própria relação eventual em curso. Aí a composição gestual está dando visibilidade ao que
ainda não tem forma na profusão do espírito. As relações por si mesmas traçaram seu
curso. Um curso que se dá como efeito na apresentação coreográfica, mas que se
constitui, enquanto tal, no processo de um afeto em negociação na criação. Este afeto dá
curso ao que afeta – embora deste, na composição, só tenhamos um breve auscultar.
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Para tanto, não se pode perder de vista a turva visão criativa, imersa em estados alterados
da consciência.
Enquanto o gesto coreografado for operado nesta linha criativa, sua estrutura não
será mais que uma sugestão em ativa propensão de mutação estrutural, mediante as
demandas do atuante que infla o gesto à sua maneira. A energia do movimento corporal
expressivo não pode ser passiva, pois enquanto atuação, sempre caminha em direção à
sua transformação.
Considerações Finais
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Tal como na dança, toda experiência humana está aberta a esta dimensão furtiva e
primordial É sobre este engodo, que a ciência moderna estruturou seu pensamento, como
recurso para instituir seu contorno, seu registro especular.
É preciso ter cuidado ao estruturar esta prática para que ela permita trabalhar num
movimento convergente entre prática corporal e criação, como processos complementares
que dão origem à arte corporal. A técnica em dança deve estar atenta a estas frentes de
trabalho, para dar suporte à experiência do encontro furtivo. É neste encontro que a
espontaneidade emerge, como uma faísca dionisíaca, em meio ao vigor do gesto corporal,
dando vida a coreografia e fazendo-nos confundir dança e coreografia.
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viciado, que a suposta dança, torna-se representação, ou seja, torna-se uma máscara, um
“faz de conta”.
A criação, por outro lado, não é senão uma forma que irrompe do corpo. Assim, se o
meio expressivo não apresenta condições mínimas sobre as quais a criação ganha forma,
perde-se o controle desta mediação, dando origem a conflitos ou à imobilidade. O artista
do corpo não pode prescindir do corpo como meio fundamental de expressão – daí a
necessidade não só do treinamento, mas também deste movimento de organização da
prática corporal, que, num nível estético, produz a composição coreográfica.
Referências Bibliográficas
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Graduado em Educação Física ‐ Licenciatura ‐ pela Unesp ‐ Rio Claro (2001); Mestre em Artes pela Unicamp ‐ Instituto
de Artes (2006); Cursando Doutorado em Educação Física ‐ Área de concentração: Pedagogia do Movimento Humano ‐
na Escola de Educação Física e Esportes da USP. Sempre se interessou pela pesquisa em dança, na sua relação de
diálogo entre a pesquisa científica e os laboratórios de experimentação corporal. Atualmente pesquisa o corpo em
movimento na roda de Capoeira atento às re‐invenções da subjetividade na inscrita da ginga. Tem experiência na área
de Educação Física, com ênfase em Dança, Capoeira, Vivências Corporais e Ginástica Artística, além de trabalhar
também com Natação e Hidroginástica.
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