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– O corpo esgotado –

Do desaparecimento da imagem ao deserto de si

DOUTORAMENTO EM ARTES
Artes Performativas e da Imagem em Movimento

Tópicos em Estudos de Dança

André Joaquim Correia Pita


2019

“Ele pensava ter arquitectado um método para fazer sua boca dizer
tudo o que quisesse.
Queria dobrá-la, trabalhá-la, submetê-la todo dia ao treinamento
respirado;
Torná-la firme, torná-la flexível, dar-lhe músculos pelo exercício
perpétuo.
Até que ela se transformasse numa boca sem fala, até falar uma língua
sem boca...
Como um bailarino que quisesse sempre dançar mais, dançar mais
longe;
Dançar até ao fim, até que não houvesse mais ninguém
no espaço.”

Valère Novarina

“Eu absorvi sem falhar


pelos meus poros
o vento que certamente soprava
sobre a pele de uma pessoa morta.”

Hijikata Tatsumi

2
Resumo: Este ensaio pretende desenvolver um processo de pensamento em torno do
seminário Tópicos em Estudos de Dança, frequentado na Escola Superior Dança ao longo
do Doutoramento em Artes - Artes Performativas e da Imagem em Movimento, e aborda
a produção de duas concepções: corpo esgotado e o deserto da imagem no gesto dançado.
Estas duas concepções são também operações de pensamento que acompanham o
trabalho performativo que tenho desenvolvido e permitem uma reflexão-criação de
algumas linhas de trabalho que constituem o pensamento em torno do papel do corpo no
corpo do actor/artista. Este ensaio permite, não só produzir, mas, também, perplicar estas
abordagens, fazendo um processo de assemblage entre alguns autores/artistas/pensadores
para assim desenvolver modos de saber que habitam o processo/projecto de investigação
em Artes Performativas que estou, embrionariamente, a desenvolver. É dado o foco no
trabalho em torno da dança Butoh, levando o pensamento em torno do corpo como sendo
este um elemento de resistência dentro de um sistema de representação ao próprio gesto
dançado.

Palavras chave: Esgotamento; Imagem; Morte; Informe; Força; Buraco; Virtual; Butoh

Abstract: This essay intends to develop a thinking process around the seminar Topics in
Dance Studies, attended at the Escola Superior Dança during the PhD in Arts - Performing
Arts and Moving Image, and approaches the production of two conceptions: exhausted
body and the desert of the image on danced gesture. These two conceptions are also
operations of thoughts that accompany the performative work that I’m developing and
allow a reflection-creation of some work lines that constitute the research around the role
of the body in the body of the actor/artist. This essay allows not only to produce but also
to perplicate these approaches, making an assemblage process between some
authors/artists/thinkers to develop ways of knowing that inhabit the process/research
project in Performative Arts that I’m, embryonically, developing. It is given the focus on
the work around the Butoh dance, taking the research around the body as being this an
element of resistance within a system of representation of the danced gesture itself.

Key words: Exhaustion; Image; Dead; Formless; Force; Hole; Virtual; Butoh

3
Introdução
Gostaria de começar este ensaio, talvez, pela meta-questão que aqui se desenvolve
e que é, em suma, a de começar o próprio ensaio. Sendo que este ensaio se debruça no
sentido de desenvolver um pensamento em torno do seminário de Tópicos em Estudos de
Dança e que esse mesmo pensamento é embebido da prática artística singular que
desenvolvo ao longo do grau académico vigente, gostaria de poder começar pela questão
mesma do começar. Esta questão está directamente relacionada com uma ideia, ainda que
sempre meio esboçada, de um corpo esgotado, e que coloca, em todo o momento, a
problemática que é, para um artista-investigador performativo, a do começar. Para poder
falar deste começar, sirvo-me de vários autores que pensam “o corpo”, não na sua
capacidade de agir, capacidade de se manter enquanto corpo funcional dentro do
agenciamento1 que o efectua num determinado contexto de movimento, mas, também, na
sua capacidade de se deixar morrer enquanto corpo aberto ao seu próprio gesto suicida,
gesto de quietude, à sua dimensão de resistência como dimensão sensível e que abre o
corpo para outros tipos de intensidades. Para os estudos da dança, sendo esta vista pela
óptica da antropologia, a análise do gesto dançado parece-me extremamente importante.
E, mais importante ainda, ir além da visão antropomórfica do mundo; eis a tarefa, por
assim dizer, antropológica, e sem dúvida gigantesca, que a experiência do deserto, da
intensidade, do virtual, como experiência do modelo da morte, terá também de encetar.
Não no sentido de realizar uma análise da relação significado/significante enquanto
elemento simbólico cultural, ou estruturante de um corpo social, comungado pela
linguagem, mas de fazer uma abordagem do gesto dançado como um modo de fazer-se
pensar o delírio que é pensar o corpo para lá da sua função simbólica e narrativa. Deste
modo, dou privilégio ao olhar em torno da Dança Butoh e do seu fundador, Hijikata
Tatsumi, e para tal irei usar o pensamento de Kuniichi Uno, que me parece fundamental
para poder começar este ensaio. Este pensamento em torno do corpo esgotado está
presente em vários autores de que faço uso, como sendo Peter Pál Pelbart, José Gil, Gilles
Deleuze, André Lepecki ou até mesmo Antonin Artaud, entre outros, e que apresentarei
em diversas notas ao longo do ensaio. Este olhar sobre um corpo esgotado, que

1
“Por definição, todos os agenciamentos são duplos. Por um lado, os agenciamentos são corpos, corpos colectivos, formados,
organizados, corpo geológico, corpo orgânico, corpo político, corpo social. Como em Espinosa, todo o corpo é um corpo colectivo,
um corpo composto de corpos. Como nos Estoicos, todo o corpo é uma mistura de corpos, uma mistura de acções e paixões. Os
corpos podem ser produzidos, recortados, distintos de múltiplas maneiras, segundo o programa e o diagrama. [...] Por outro lado,
os agenciamentos concretos são regimes de signos. [...] Todo o regime de signo é colectivo (grito, glossolalia, rumor). [...] Seja qual
for o regime não são signos em si mesmos, mas em função das suas relações com os corpos e os processos de desterritorialização,
de reterritorialização dos quais são inseparáveis”
LAPOUJAD, David (2017). Deleuze e os movimentos aberrantes. Trad. Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: n-1 (pp.202-203)

4
poderíamos dizer que dança um gesto menor de si mesmo, é uma metodologia de trabalho
artístico para desenvolver uma abordagem ao corpo, mas que não passa por um
pensamento do corpo dançante como sendo meramente um corpo imerso na vida-nua2, a
par com a sua teatralidade e na sua mera actualidade plástica ou semiótica.
Paradoxalmente, este corpo esgotado está imerso no tema da sobrevida3 e, logo, no tema
da morte-vida e abraça a questão, tal como no teatro de Antonin Artaud, de um tipo de
processo peculiar de abstracção das formas estéticas. É este, também, um Atletismo
Afectivo 4 que realiza a morte do corpo do artista, para que este possa devir 5 noutras
formas mais incorporais, dentro de uma espécie de diluição do sujeito com o
agenciamento cénico do qual faz parte. Esta abstracção, sendo geométrica e virtual,
abstracção da morte em vida, enquanto origem paradoxal do começar, advinda dessa
diluição do sujeito, sem sucumbir à vontade de uma depuração de meios da representação,
ou de figuras puras, tende a planificar todo o espaço da actuação, durante o gesto dançado,
numa linha e tende a traçar essa linha sem dimensão superior ao ponto, ou dimensão
inferior ao volume. Esta abstracção, que permite um formismo operativo no informe do
corpo, evoca, no corpo que dança, “imagens que já não são enquadradas num plano ou
ancoradas no espaço arquitectónico, mas que flutuam, deslocam-se como se fossem
pedaços de informação num ecrã.”6 Elas não podem ser apreendidas sob o ponto de vista
de um fundamento e, “de um modo mais geral, colocam o problema de uma acepção
menos fundada do corpo e do movimento”7, da sua origem e do retorno ao corpo como
sendo este o ponto paradoxal de onde a dança se (re)descobre enquanto linguagem
abstracta e (in)operante e (in)operativa dentro de uma determinada cultura. Mas como

2
“Vida-nua, como Giorgio Agamben a teorizou na sua obra «O que resta de Auschwitz» é “a vida reduzida ao seu estado de mera
actualidade, indiferença, disformidade, impotência, banalidade biológica – para não falar na vida besta, exarcebação e disseminação
entrópica da vida nua, no seu limite niilista.”
Conferência proferida no evento “Um mergulho – pensamento, poesia e corpo em acção”, organizado por Vera Mantero no Teatro
São Luiz, em Lisboa, no marco do Festival Alkantara, em Junho de 2006. O texto foi publicado posteriormente na revista digital
Trópico e em versões modificadas em algumas publicações.
PELBART, Peter Pál (2010). “A vida desnudada.” In Leituras da morte. Org. Christine Greiner; Claudia Amorim. São Paulo:
Annablume (p.25)
3
“A sobrevida é a vida humana reduzida ao seu mínimo biológico, à sua nudez última, à vida sem forma, ao mero facto da vida, à
vida nua.”
Id.
4
ARTAUD, Antonin (2006). “Um atletismo da afectividade”. In O Teatro e o Seu Duplo. Trad. Fiama Brandão. Lisboa: Fenda
(pp.147-157)
5
“Os devires são reais, sem que seja real o que se devém. O devir é necessariamente alucinatório, mas exige produzir o novo corpo
que a ele corresponde, os objectos que correspondem a suas alucinações e os conteúdos que correspondem ao seu delírio.”
LAPOUJAD, David (2017). Deleuze e os movimentos aberrantes. Trad. Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: n-1 (p.302)
6
RAJCHMAN, John (2002). Construções. Trad. Margarida Vale de Gato. Lisboa: Relógio D’Água (p.120)
7
Id.

5
pensar este corpo, sem usar, por exemplo, a Dança Butoh como um género referente e
cristalizado numa linguagem que agencia o corpo no seu dizer-se estético e narrativo?
Como articular esse corpo com a palavra e com a voz, sendo que, no caso específico da
voz, ela apenas nomeia a própria significação?8 Como pensar a sua imagem, sendo um
corpo que não pretende representar nada para além do seu re-fazer constante? Poderemos
ainda pensar um certo avesso do corpo para a experiência que fazemos da dança? Em
que, tal como indica David Lapoujad, “não se trata de ultrapassar ou de reverter seja lá o
que for, mas de revirar [...] percorrer a outra face [...] o fora.”9 Não estaremos, ainda,
como também diz Lapoujad, cansados de um “corpo que não aguenta mais”?10 O que
pode sacudir-nos de um tal estado de letargia e lassidão, como questiona também Peter
Pál Pelbart em toda a sua cartografia do esgotamento? Em todo o caso, certamente, na
esteira de Samuel Beckett e Gilles Deleuze, o Esgotado não pode ser confundido como
um simples e mero cansaço do sujeito e do seu projecto enquanto corpo objectivo.

Dominar o começo
Na sua obra sobre Hijikata Tatsumi, Pensar um Corpo Esgotado, Kuniichi Uno
desenvolve um ensaio dedicado à busca do esgotamento e o qual legenda de A pantufa de
Artaud segundo Hijikata. Este pequeno ensaio apresenta o pensamento em torno de um
outro texto que Hijikata escreve em 1971 e onde se descreve o que, para ele, aconteceu
aquando da morte de Artaud. Para Hijikata, Artaud foi encontrado morto sentado ao lado
da sua cama, com uma pantufa na boca. Na realidade, Artaud morreu de um cancro no
ânus, e foi encontrado no dia 4 de Março de 1948, no seu quarto do hospício de Ivry, num
bairro de Paris. Estava então, não com uma pantufa na boca, mas com um sapato na mão,
aos pés da cama. Mas Hijikata descreve a imagem da morte de Artaud como uma
metáfora, em que a pantufa remete para a ideia de uma “última confissão” do corpo. O
Butoh de Hijikata foi profundamente pervertido com as influências que este recebeu das
suas leituras de Artaud, assim como de Jean Genet, entre outros. A metáfora da pantufa
é a imagem de uma confissão que traça o silenciamento do corpo pela aparição da morte,

8
“A Voz, em si mesma, não diz nada, não significa, ela nomeia a própria significação. Isto porque, a filosofia só pode conduzir o
pensamento até ao limite da voz: não pode dizer a Voz.”
AGAMBEN, Giorgio (2013). A Potência do Pensamento. Lisboa: Relógio D’Água (p.29)
9
LAPOUJAD, David (2010). “Deleuze: política e informação?” In Cadernos de Subjetividade, n.12. São Paulo: Núcleo de Estudos e
Pesquisas da Subjetividade, Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica - UCSP (p.165)
10
Refiro-me a: LAPOUJAD, David (2002). “O corpo que não aguenta mais.” In: Nietzsche e Deleuze – Que pode o corpo. Trad.
Daniel Lins. Org. Daniel Lins; Sylvio Gadelha. Rio de Janeiro: Relume Dumará

6
pela morte feita em vida de um outro que nasce. Este nascimento é, também, um outro
modo de fazer o corpo livrar-se do seu organismo, ou como diria Artaud “do genital
inato”. E este segundo nascimento em vida é, para Kuniichi Uno, uma questão sempre
complicada pois é uma maneira peculiar e estética, como novo paradigma, para levar o
corpo a fazer essa última confissão, nessa “busca pelo segundo nascimento e pelo corpo
que exclui os órgãos.”11 Mas como começar?
Como diz Uno, baseado no pensamento de Samuel Beckett, “desde que tu
começas, se não há nada antes de ti, tu não podes nem começar. Mas se já houver algo
antes de tu começares, tu nunca poderás realmente começar.”12 E é este o paradoxo:
começar é estar já no meio, é ser já apanhado no meio13. E isto, porque há sempre um
outro que começa que nós ignoramos e, por tanto, nunca enquanto sujeitos poderemos
dominar a experiência do começo. Mas como diz ainda este autor, “em vez de dominar o
começo, é importante recriar um corpo que tenha o poder de começar, é importante livrar
o corpo da consciência ou do projecto que tenta dominar o corpo.”14 A pantufa de Artaud
é a passagem para a morte, dentro de um projecto produtivo de subjectivação, no
momento em que se percebe “que o buraco onde apodrece o pensamento está reformando-
se na carne que o precede, como um vazio palpitante de terror”.15 Este é o momento em
que a vida e o corpo são a mesma coisa e em que “é preciso descobrir o corpo na sua
própria força de génese, porque o corpo é este lugar existencial único e, além disso,
político, em que se acumulam, reúnem, dobram todas as determinações da vida.”16 Para
Artaud, assim como para Hijikata, a política do começo é o lugar da produção, para “criar
e recriar o começo como algo que se assemelhe a um genital inato”, que deve ser
chicoteado para se fazer ouvir algo como um corpo esgotado. E é pelo pensamento em

11
UNO, Kuniichi (2018). Hijikata Tatsumi – Pensar um Corpo Esgotado. Trad. Christine Greiner; Ermesto Filho. São Paulo: n-1
(p.78)
12
Id.
13
“O interessante nunca é a maneira pela qual alguém começa ou termina. O interessante é o meio, o que se passa no meio. Não é
por acaso que a maior velocidade está no meio. É no meio que há o devir, o movimento, a velocidade, o turbilhão. O meio não é uma
média, e sim, ao contrário, um excesso. É pelo meio que as coisas crescem. Ora, o meio não quer dizer absolutamente estar dentro
do seu tempo, ser do seu tempo, ser histórico; ao contrário: é aquilo pelo meio do qual os tempos mais diferentes se comunicam. Não
é nem o histórico nem o eterno, mas o intempestivo.”
DELEUZE, Gilles (2010). “Um manifesto de menos.” Trad. Fátima Saadi. In Sobre o teatro: Um manifesto de menos; O esgotado.
Org. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (p.34)
14
UNO, Kuniichi (2018). Hijikata Tatsumi – Pensar um Corpo Esgotado. Trad. Christine Greiner; Ermesto Filho. São Paulo: n-1
(p.78)
15
TATSUMI, Hijikata apud. UNO, Kuniichi (2018). Hijikata Tatsumi – Pensar um Corpo Esgotado. Trad. Christine Greiner; Ermesto
Filho. São Paulo: n-1 (p.80)
16
Ibid. (p.79)

7
torno de um corpo esgotado que Hijikata vai formular, através das palavras, o seu Butoh:
“um cadáver que se coloca de pé, arriscando a própria vida.” 17 Esta dança do corpo
esgotado é uma dança onde “as sensações acontecem e passam como sopros de vento no
eu”18. Como indica Uno, é o retorno à infância, que Hijikata obsessivamente deseja para
o seu Butoh, o retorno a uma criança capaz de fazer para si mesma um segundo
nascimento. E para esta criança, ou para este infante, há uma sensibilidade apurada para
com todas as técnicas, ou bioasceses, acopladas ao organismo do corpo, de uma luta
contra tudo o que investe a vida em toda a sua extensão. Como em Artaud, para pensar
um corpo esgotado,

“é preciso acreditar num sentido da vida renovado pelo


teatro, no qual o homem impavidamente se torna o mestre
do que ainda não é e o faz nascer. [...] Além disso quando
pronunciamos a palavra vida, devemos entender que não
se trata da vida reconhecida pela parte externa dos factos,
mas desse tipo de habitação frágil e inquieta na qual não
se tocam as formas.”19

No domínio da linguagem, quando começar se torna a questão, não é apenas o


nascimento de um projecto de corpo que fica interdito. Também a capacidade da fala
enquanto agenciamento de enunciação, que permite o espaço da comunicação, fica
afectada. Isto porque, sem a supremacia de um outro que nasce em vez de mim, “a partir
do momento em que o corpo intervém sobre a linguagem, esta opera desajeitadamente.”20
Mas como fazer? Como fazer nascer essas outras vidas, essas arquitecturas21 gestuais de
um corpo esgotado, ou, como diz Lapoujad “falar sempre por aquele que ninguém pode
ouvir e ver, vozes inaudíveis, corpos invisíveis?”22 Processo em que o corpo se (des)faz
um deserto sobre si mesmo e em que se deixa habitar pelas intensidades mais exuberantes.
Corpo desertado, aberto pelo avesso, lançado na morte que é o gesto de dançar-se,
roubado da sua alma23, como indica José Gil quase em apud de Merce Cunningham, e em

17
Ibid. (p.73)
18
Ibid (p.55)
19
ARTAUD, Antonin (2006). O Teatro e o Seu Duplo. Trad. Fiama Brandão. Lisboa: Fenda (pp.17-18)
20
UNO, Kuniichi (2018). Hijikata Tatsumi – Pensar um Corpo Esgotado. Trad. Christine Greiner; Ermesto Filho. São Paulo: n-1
(p.81)
21
Já no seu livro “The Dance of Life”, Havelock Ellis indica que a dança e a arquitectura são duas artes primárias e essenciais e
acabam por tocar-se.
ELLIS, Havelock (1923). The Dance of Life. Londres: Constable and Company (p.33)
22
LAPOUJAD, David (2017). Deleuze e os movimentos aberrantes. Trad. Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: n-1 (p.224)
23
GIL, José (2002). “O Corpo Paradoxal.” In: Nietzsche e Deleuze – Que pode o corpo. Org. Daniel Lins e Sylvio Gadelha. Rio de
Janeiro: Relume Dumará (p.140)

8
que “todo o enunciado é um agenciamento colectivo de enunciação. E este pode ter sons,
harmónicas, variações tonais inauditas, mas também vozes inaudíveis, murmúrios,
gaguejos; gritos desarticulados, gritos de guerra ou gritos mudos.”24

O esgotamento
O Butoh pode ser legendado, assim como o fez Hijikata Tatsumi, de Dança das
Trevas, e que se faz acompanhar, na sua legenda, da imagem de um grito. Como indica
Hijikata, “o grito (das crianças) estava silenciado na cultura Japonesa de Tohoku, em
1938 [...] por uma espécie de oclusão anal.”25 Hijikata desenvolve toda a sua dança Butoh
em torno da força inumana, do grito para lá do humano, ou aquela força abaixo do homem,
como fragilidade, e, para ele, o desafio da dança é, justamente, jogar com essa
fragilidade.26 O grito de que Hijiakata fala é o grito do fundo dos gestos ritualizados onde
o artista inventa os passos moldados dos seus dias a partir da terra negra onde dançar não
é voar. Este afirma que o mestre da sua dança é a terra negra do Japão que, na sua infância,
o ensinou a desaparecer.27 Este desaparecimento de que fala Hijikata é tido para o artista
como o uso inútil do corpo e que é “o inimigo mais odioso e um tabu para a sociedade da
produtividade.”28 Já Uno indica que, a dança Butoh, “para a qual a fragilidade forma o
núcleo, é também denominada errância.”29 E a fragilidade e a errância são termos pelos
quais Hijikata define a diferença da carne e afirma o seu ponto de vista sobre as noções
de corpo, a humanidade, e a natureza de um longo trabalho solitário e rigoroso para criar
a dança ou recriar a arte do gesto dançado.30 Para a noção de corpo esgotado, temos de
perceber a sua génese enquanto corpo de forças errantes, como a criação de um traçado
que esculpe um corpo desconhecido. Mas o que é, afinal, este esgotamento que faz da
fragilidade do corpo a sua força? Como “ter a força de estar à altura da sua fraqueza, ao

24
LAPOUJAD, David (2017). Deleuze e os movimentos aberrantes. Trad. Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: n-1 (p.224)
25
TATSUMI, Hijikata apud. UNO, Kuniichi (2018). Hijikata Tatsumi – Pensar um Corpo Esgotado. Trad. Christine Greiner; Ermesto
Filho. São Paulo: n-1 (p.33)
26
Ibid. (p.35)
27
Ibid. (p.33)
28
Ibid. (p.211)
29
UNO, Kuniichi (2018). Hijikata Tatsumi – Pensar um Corpo Esgotado. Trad. Christine Greiner; Ermesto Filho. São Paulo: n-1
(p.35)
30
Ibid. (pp.35-36)

9
invés de permanecer na fraqueza de cultivar apenas a força?”31 Como o seu sentido advém
para a linguagem e as coisas das quais ela fala?
No seu ensaio O Esgotado, o filósofo Gilles Deleuze serve-se de Beckett para
pensar o processo de esgotamento, que não pode ser confundido com um simples cansaço.
Para Deleuze,

O cansado não dispõe mais de qualquer possibilidade


(subjectiva) - não pode, portanto, realizar a mínima
possibilidade (objectiva). Mas esta permanece, porque
nunca se realiza todo o possível; ele é até mesmo criado à
medida que é realizado. O cansado apenas esgotou a
realização, enquanto o esgotado esgota todo o possível. O
cansado não pode mais realizar, mas o esgotado não pode
mais possibilitar. [...] O cansaço afecta a acção em todos
os seus estados, enquanto o esgotamento diz respeito
apenas à testemunha amnésica.32

O cansaço faz parte de uma dialéctica do trabalho e da produtividade, em que a


acção, ou o movimento, está em antagonismo para com o descanso e a pausa: descansa-
se para se retomar a actividade. Como indica Peter Pál Pelbart, “o cansaço advém quando
realizamos os possíveis que nos habitavam, escolhendo, obedecendo a certos objectivos
mais do que a outros, realizando certos projectos, seguindo preferências claras. 33 O
possível, como processo, só pode ser a realização: um possível realiza-se ou não e, por
esse processo, adquire uma realidade que por si mesmo não tem.34 No esgotamento do
possível as coisas passam-se de outro modo: há uma dissolução da relação sujeito-objecto.
O esgotamento é pura inacção, pura testemunha amnésia de uma experiência impessoal
do corpo. O esgotamento, para o gesto dançado, é um processo de intensificação do corpo,
mas para nada. Ele é destituído de qualquer teleologia subjectiva. “O esgotamento desata
aquilo que nos liga ao mundo, que nos prende a ele e aos outros, que nos agarra às suas
palavras e imagens, que nos conforta no interior de uma ilusão de inteireza da qual já
desacreditamos há tempos.”35 Em suma: o esgotamento é um desligamento da realidade
empírica, onde o corpo deixa de estar agenciado pela mediação dos dispositivos, como

31
PELBART, Peter Pál (2013). O avesso do niilismo – cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 (p.32)
32
DELEUZE, Gilles (2010). “O esgotado.” Trad. Roberto Machado e Ovídio de Abreu. In Sobre o teatro: Um manifesto de menos;
O esgotado. Org. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (p.67)
33
PELBART, Peter Pál (2013). O avesso do niilismo – cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 (p.42)
34
DIAS, Sousa (2012). Lógica do Acontecimento. Lisboa: Documenta (p.94)
35
PELBART, Peter Pál (2013). O avesso do niilismo – cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 (p.50)

10
exterioridade possível, ou transcendente, que o encerra num estado de cansaço
permanente. O esgotamento é o momento do real36 que é como que o intempestivo, no
avesso da realidade empírica do corpo, que irrompe do seu estado actual já combinado
como possível, e que o tende a absorver, por dentro do agenciamento dos corpos no
espaço e que, no mesmo plano, os redistribui para novas possibilidades. É o movimento
imanente de produzir a variação e a actualização dos possíveis nos corpos agenciados e
de criar intervalos entre outros possíveis virtuais. O movimento toca-se nas suas próprias
linhas de diferenciação e em que a exterioridade do corpo é agora o avesso do seu interior.
Como indica José Gil, brevemente, “a imanência do movimento é a coincidência, a
coalescência de dois pólos tais que a diferença entre eles desaparece, não há sujeito nem
objecto, nem corpo nem espírito diferentes, nem espaço interior, nem espaço exterior,
mas uma imanência.37 Já para John Rajchman, a actualidade de um corpo ocorre sempre
no seio das coisas, tal como a virtualidade se encontra nos seus intervalos e nas suas zonas
de desligamento, de escape e fuga.38 O virtual faz parte da dimensão real do corpo, mas
como zona de indiscernibilidade entre as disparidades do corpo e que introduz a incerteza
na (re)distribuição da realidade.
O corpo esgotado é um corpo que comporta em si um estado vazio, de morte, de
existência espectral, e em que o sujeito aparece sempre já na borda, na zona indiscernível
entre aquilo que já deixou de ser e ainda não é e aquilo que ainda não é, mas que se está
a tornar. O vazio a que se presta o corpo é a combinatória virtual dos possíveis aplicada
sobre o movimento. E é este vazio que mais me interessa no gesto dançado. Isto porque,
pensando sobre a constituição orgânica da composição do gesto dançado, “a
combinatória, deste modo, esgota o seu objecto, mas porque o seu sujeito está
esgotado.”39 O gesto dançado aparece já como um acto de quietude, de mutismo e de
afasia do próprio corpo, do qual o corpo do artista se torna vazio de qualquer conteúdo
ou função simbólica, ou uma correlação entre visível e invisível, que este possa atribuir
às imagens do gesto corporal. Ao recusar o movimento como mera deslocação do corpo

36
“Em todos os casos em que o real irrompe na realidade, arruinando a sua estabilidade, têm sempre lugar certos fenómenos: a
relação do corpo com as coisas e com o espaço transforma-se, os corpos que até aí se mantinham separados das coisas e dos outros
corpos entram de súbito em contacto, senão em contágio.”
GIL, José (2002). Movimento Total – O Corpo e a Dança. Trad. Miguel Pereira. Lisboa: Relógio D’Água (p.192)
37
GIL, José (2010). A arte como linguagem – A última lição. Lisboa: Relógio D’Água (p.27)
38
RAJCHMAN, John (2002). Construções. Trad. Margarida Vale de Gato. Lisboa: Relógio D’Água (p.30)
39
DELEUZE, Gilles (2010). “O esgotado.” Trad. Roberto Machado e Ovídio de Abreu. In Sobre o teatro: Um manifesto de menos;
O esgotado. Org. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (p.71)

11
físico no espaço empírico, o corpo esgotado cria actos de quietude. Estes actos dão-se
porque o corpo esgotado segrega em si mesmo um espaço singular pelo esgotamento dos
invariantes, na variação formal, das combinatórias das partículas que constituem os gestos
e suas nuvens virtuais de sentido. “São aqueles momentos de pausa e retenção nos quais
o sujeito, ao introduzir fisicamente uma disrupção na fluência da temporalidade, interpela
o pó da história”40 Esta é a sua revolução, a revolução das trevas, feita de silêncio e de
actos de quietude, onde o corpo é visitado pelos defuntos de si mesmo. A pausa no “pó
da história” é feita porque o movimento é o próprio esgotado que não pode mais
possibilitar “uma acumulação de eventos históricos que anestesia os sentidos.”41 Deste
modo, evita um “processo colectivo sossegado de repressão sensorial”42 que se possa
aplicar ao organismo que dança, fala, ou tenta expressar-se no espaço comum da
linguagem. “Quando se esgota o possível com palavras, abrem-se e racham-se átomos,
quando as próprias palavras são esgotadas, interrompem-se os fluxos.”43 Para o Butoh, a
dança é o grito de um fundo que sobe à superfície, como delírio da carne, como reacção
catastrófica do seu projecto enquanto material artístico que não se aguenta mais de pé,
para o qual é difícil andar, mexer-se, e onde a imagem capta todo o possível para fazê-lo
explodir como uma exploração das intensidades puras, onde é preciso fazer buracos na
linguagem, já que as palavras e os gestos carecem de uma pontuação de deiscência, desse
desligamento que vem de uma onda de fundo própria à arte.44 Para o gesto abstracto do
Butoh, como corpo esgotado que trabalha o espaço como um parceiro afectivo, “trata-se
de cobrir todas as direcções possíveis, indo, no entanto, em linha recta.”45 Isto porque, no
plano de composição do gesto, ao irromper um fundo múltiplo e indiferenciado, há
igualdade entre a recta e o plano, entre o plano e o volume.”46 É esta linha, como um
sentido do caminhar torto, que Hijikata quer introduzir no gesto dançado do Butoh e em

40
André Lepecki cita a antropóloga e crítica cultural Serematakis em alguns dos seus ensaios. No entanto, faço referência também ao
trabalho da bailarina e investigadora Ana Mira, que os faz acordar na sua tese de doutoramento Silêncio, potência e gesto: um corpo
na dança e com a qual trabalho em alguns seminários de técnicas somáticas.
LEPECKI, André (2001). “Undoing the Fantasy of the (Dancing) Subject: 'Still Acts' in Jérôme Bel's The Last Performance.” In The
Salt of the Earth. On dance, politics and reality. Steven de Belder; Koen Tachelet (Edts.). Bruxelas: Vlaams Theater Instituut (p.2)
41
Id.
42
Id.
43
DELEUZE, Gilles (2010). “O esgotado.” Trad. Roberto Machado e Ovídio de Abreu. In Sobre o teatro: Um manifesto de menos;
O esgotado. Org. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (p.18)
44
Ibid. (p.72)
45
Ibid. (p.84)
46
Id.

12
que se inventa o molde da caminhada a partir da terra sob a qual dançar é outra coisa e
não voar.47 Para Deleuze, esta “consideração do espaço dá um novo sentido e um novo
objecto ao esgotamento: esgotar as potencialidades de um espaço qualquer.” 48 E se o
espaço se esgota, abre-se um outro tipo de espaço, mais peculiar, intervalar, como espaço
qualquer, virtual e potencial sempre por vir, em que o corpo se abre à sua microscopia, à
sua fraqueza implícita. Entramos no universo das atmosferas, das nuvens e das suas
pequenas percepções49 e respectivas microarticulações de sentido.
O esgotamento é um grito do corpo que se refaz sobre si mesmo, como uma grande
nuvem. Esta imagem da nuvem é a da passagem, de um movimento a outro, da disjunção
à envolvência, em que, avançando num campo a abrir-se sempre, compõe o processo de
pensar do gesto dançado. 50 Desenho do mapa da consciência, que precisa os pontos
segundo as necessidades do desejo, em que o traço faz-se ao mesmo tempo que as
modificações do desenho e através das pequenas-percepções corporais. Comunidade do
presente já grávido de futuro e carregado com o passado que tudo conspira e donde se
pode ler toda a série de coisas do universo. E em que “o inconsciente é a faculdade do
intervalo, dos espaços vazios e das distâncias”51. Acho importante poder pensar que este
é também o espaço do corpo de que fala José Gil e que mostra figuras do vazio que
fabricam o campo dos possíveis, como não-inscrição do sentido do gesto dançado, que
suspende o seu final e que se abre ao espaço do inconsciente do corpo. 52 Já para
Alexandre Henz, o esgotamento é um “e” perpétuo do movimento que se engendra a si
mesmo, que abre um espaço de resistência, pois, “no esgotamento há um sim consumado
que passa e está para além do niilismo passivo e do seu grande cansaço.”53 Para Henz,

47
TATSUMI, Hijikata apud. UNO, Kuniichi (2018). Hijikata Tatsumi – Pensar um Corpo Esgotado. Trad. Christine Greiner; Ermesto
Filho. São Paulo: n-1 (p.191)
48
Id.
49
“Segundo Leibniz, as macropercepções são recobertas e formadas por um conjunto de micropercepções. As micropercepções, ou
representantes de mundo, são essas pequenas dobras em todos os sentidos, dobras em dobras, sobre dobras, conforme dobras, um
quadro de Hantai ou uma alucinação tóxica de Clérambault. São essas pequenas percepções obscuras, confusas, que compõem as
nossas macropercepções, as nossas apercepções conscientes, claras e distintas: uma percepção consciente jamais aconteceria se ela
não integrasse um conjunto infinito de pequenas percepções que desequilibram a macropercepção precedente e preparam a
seguinte.”
DELEUZE, Gilles apud. FERRACINI, Renato (2011). “Atuações, Fronteiras e Micropercepções.” In Revista Sala Preta, vol.10. São
Paulo: USP (p.235)
50
GIL, José (2018). Caos e ritmo. Lisboa: Relógio D’Água (358)
51
Ibid. (279)
52
GIL, José (2002). Movimento Total – O Corpo e a Dança. Trad. Miguel Pereira. Lisboa: Relógio D’Água (p.118)
53
HENZ, Alexandre (2010). “Uma política do Esgotamento entre Beckett e Deleuze.” In Cadernos de Subjetividade, n.12. São Paulo:
Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, Programa de Estudos Pós- Graduados em Psicologia Clínica - UCSP (p.79)

13
“o esgotamento é acção e invenção, para nada. Ele pode
constituir órgãos do tacto para muitas espécies de
encontro, ele é a capacidade de dizer sim à vida nas suas
variações. [...] É uma política com a vida que envolve o
intensivo e nela enreda, talvez, uma nova formação
histórica. [...] Uma intensificação para nada, uma
vibração intensiva. Algo da seriedade da criança
dedicada aos brinquedos, a noção de maturidade
referida por Nietzsche: hiatos, peripécias e
deiscências.”54

Da aparição à (re)presentação
Em 1976, Susane Langer define a dança como o surgimento de uma “presença”
ou “aparição”.55 Acho importante poder pensar que a presença de um corpo esgotado
pode ser, paradoxalmente, o momento em que a presença do corpo se dá por uma não-
presença, ou por uma aparição que é lugar da visão, mas como cegueira. Essa presença,
como aquele corpo que já lá não está, dá lugar à produção do próprio nascimento do gesto
dançado. Se o corpo esgotado se abre às suas virtualidades ele “é sem imagem e por
conseguinte sem identidade, pura multiplicidade de movimentos absolutos inseparáveis
em continua variação.”56 A forma paradoxal presença = não-presença é, em si mesma,
uma forma autopoiética, que acarreta espaços paradoxais ou, mais fisicamente, produz
uma nuvem de sentido. Esta é uma gramática onde “os movimentos fundem-se uns nos
outros porque o seu encadeamento directo economiza as articulações, sendo eles próprios
charneiras, articulações, transições.” 57 Para o gesto dançado, e para a revelação que
acarreta a linguagem como articuladora do lugar comum entre os corpos, “temos então a
impressão de ver uma contínua sugestão ou alusão de sentido.”58 A forma abstracta pode
nascer, mas como música calada que se espraia no ar. Esta forma “no ar” é uma forma de
força59 que revela o avesso do corpo, e o apresenta no espaço actual como uma “múmia,

54
Id.
55
LANGER, Susane (1976) “The Dynamic Image: Some philosophical reflections on dance” In Salmagundi. nº 33/34 (pp.76-82)
Disponível em: http://www.jstor.org/stable/40546920
[acesso a 14 Julho de 2019]
56
DIAS, Sousa (2012). Lógica do Acontecimento. Lisboa: Documenta (p.96)
57
GIL, José (2002). Movimento Total – O Corpo e a Dança. Trad. Miguel Pereira. Lisboa: Relógio D’Água (p.201)
58
Id.
59
“O que é uma força? É relação com outra força. Uma força não tem realidade em si, a sua realidade íntima é a sua diferença em
relação às demais forças, que constituem o seu exterior. Cada força define-se pela distância que a separa das outras forças, a tal
ponto que qualquer força só poderá ser pensada no contexto de uma pluralidade de forças.”

14
como instância desmontada, paralisada, petrificada, gelada que testemunha a
impossibilidade de pensar que é a experiência impessoal do pensamento.”60 Para Gil,
estas nuvens de sentido “são antes formas de expressão específicas do sentido enquanto
é dançado, quer dizer, explicitado especificamente na acção própria da clareza que nada
deve à do conceito, mas depende unicamente da qualidade da energia.”61
Por outro lado, Georges Didi-Huberman, na sua quase antropologia da forma
plástica, que se debruça sobre túmulos e objectos literais e minimalistas de alguns artistas
visuais, procura re-colocar a questão da presença como correlacionada com a energia, sob
a ordem da intensidade visual e do lugar da experiência da perda da visão e da sua abertura
a um lugar vazio de interioridade e com uma profundidade não-localizável. Para Didi-
Huberman a presença de uma forma é um trabalho da formatividade, é um trabalho de
processo, do traço da formação a que lhe falta o seu acabamento, que “sugere a função,
mas não a unidade ideal da função. Ela sugere o constrangimento estrutural, mas não o
fechamento ou o esquematismo de uma forma alienada a qualquer tema ou ideia da
razão.”62 Para Didi-Huberman, a presença trata-se mais de um traçado das intensidades
que liga o espaço interno da visão com o espaço externo, sendo este destituído de
referente. Por outras palavras, o traço seria como o olhar pelo interior do corpo, mas sem
o interior da forma, sem uma consciência intencional que faria dele o seu objecto
consistente, de referência, mas que faz da forma do corpo e do seu gesto dançado formas
enquanto tais, e não apenas simples documentos de uma história social.63 Este seria o
espaço do olhar pela presença sem interioridade, que faz do desenho do corpo esgotado
o contorno do silêncio, que se vê perdendo o interior vazio, sem alma, e que “não desenha
uma forma, não traça figuras, mas antes indica a lógica das forças, que podem nascer num
espaço vazio e limitado. Traçado virtual do vazio.”64 Como indica Didi-Huberman,

PELBART, Peter Pál (1989). Da Clausura do Fora ao Fora da Clausura – Loucura e Desrazão. São Paulo: Brasiliense (p.120)
60
DELEUZE, Gilles apud. COSTA, Carlos Couto Sequeira (2002). Caderno de Demónios. Ou os últimos anos de Nietzsche ou a Ilha
dos Mortos. Lisboa: Fenda (p.35)
61
A imagem, como Imago, é já o corpo que não está. Como indica Didi-Huberman, revela uma “perda, ainda que momentânea,
praticada no espaço da nossa certeza visível a seu respeito e é, exactamente a partir daí, que a imagem se torna capaz de nos olhar.”
DIDI-HUBERMAN, Georges (2011). O que nós vemos, O que nos olha. Trad. Golgona Anghel e João Pedro Cachopo. Porto: Dafne
(p.124)
62
Ibid. (p.192)
63
Ibid. (p.200)
64
GIL, José (2018). Caos e ritmo. Lisboa: Relógio D’Água (p.110)

15
Abramos os olhos para experimentar o que não vemos,
o que não mais veremos – ou melhor, para experimentar
que o que não vemos com toda a evidência (a evidência
visível) nos olha, apesar de tudo, como um trabalho (um
trabalho visual) de perda.”65

O que se perde nesta visão como cegueira é um certo desejo de aceder ao interior
das formas, para extrair delas as suas abstracções, preenchendo os intervalos, os seus
vazios; para extrair, em suma: informações das coisas. O desejo ao interior encontra-se
interdito, ele é virtual. O que importa, neste ensaio, é, em todo o caso, pensar a presença
como a imagem 66 que se refere à imagem do defunto que visita o corpo do artista-
dançante, como lugar do vidente, que resulta de um processo singular de esgotamento.
Para o Butoh de Hijikata, nos seus gestos não havia mais espaço onde fosse possível
infiltrar o que é do domínio afectivo ou racional, como próteses ou extensões de uma
experiência empírica do corpo organizado. Assim como corpo não era aquele que ele
possuía. Da mesma forma, os membros e o corpo eram esquecidos.67 E isto, porque, para
um corpo esgotado, a sua presença orgânica não habita o corpo empírico e enquadrado
num espaço euclidiano. Para esta presença, os gestos dançados são como que turbilhões
que deformam o corpo na sua superfície de inscrição; provocam a sua quietude paradoxal,
por entre os movimentos. Eles são como povoações do corpo, “como turbilhões de poeira
levantados pelo vento que passa, em que os viventes rodam sobre si mesmos, pendentes
do grande alento da vida. São, pois, relativamente estáveis e chegam a imitar muito bem
a imobilidade.”68 Estas multidões de forças, que vêm desertar o corpo e o abrem ao gesto
menor e errante de si mesmo, são a vida desse outro que já nasce uma segunda vez. Mas
esse nascimento, do gesto dançado para lá do referente, é a imagem mesma como
assombrada pela morte e pelo seu vazio. É que o vivente não pode coincidir inteiramente
com a velocidade daquilo que o impele, desborda e lhe escapa: o grande sopro ou alento,
ou vento.”69 O vento é o lugar da intensidade abstracta “que resulta do desfasamento ou

65
DIDI-HUBERMAN, Georges (2011). O que nós vemos, O que nos olha. Trad. Golgona Anghel e João Pedro Cachopo. Porto: Dafne
(p.15)
66
“A imagem não se define pelo sublime do seu conteúdo, mas pela sua forma, isto é, pela sua tensão interna, ou pela força que
mobiliza para esvaziar ou esburacar, aliviar a opressão das palavras, interromper a manifestação das vozes, para se desprender da
memória e da razão, pequena imagem alógica, amnésica, quase afásica, ora sustentando-se no vazio, ora estremecendo no aberto.”
DELEUZE, Gilles (2010). “O esgotado.” Trad. Roberto Machado e Ovídio de Abreu. In Sobre o teatro: Um manifesto de menos; O
esgotado. Org. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (p.81)
67
UNO, Kuniichi (2018). Hijikata Tatsumi – Pensar um Corpo Esgotado. Trad. Christine Greiner; Ermesto Filho. São Paulo: n-1
(p.53)
68
BERGSON, Henri apud. PELBART, Peter Pál (2013). O avesso do niilismo – cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 (p.387)
69
Ibid. (p.387)

16
intervalo entre o gesto visível e o movimento subterrâneo, entre a velocidade de um e a
velocidade do outro – sendo o sentido da nuvem de movimento que percorre o em-redor
interno do intervalo (que não tem contorno).”70
A representação do gesto dançado, como aquele que se apresenta retirando, é uma
re-apresentação, que faz da repetição um acto de aparição do movimento. Mas como
indica Jean Luc Nancy, “mais que presença, na realidade, é um estar-com, como o lugar
do espaçamento, e sendo este um doar-se na presença, é uma presentificação como
apresentação de Outrem. Para Nancy, “a pura presença é incompartilhada, presença a
nada, de nada, para nada; não é nem presença nem ausência; simples implosão sem
impressão ou marca de um ser que jamais esteve.”71 Aparição é apresentação da morte,
mas “como quando alguém se apresenta e diz o seu nome.”72 Mas aparição de algo é uma
visão em si, imagem em si, onde, por ela “o nome do outro nunca o nomeia – apresenta-
o. O outro é a falta do seu nome próprio; ou se dá e está nessa falta; ou o seu estar é
emprestado à boca do outro que o nomeia.” 73 A representação, como repetição do
movimento de apresentar-se, encontra o fundamento de possibilidade e de
impossibilidade de doar um estado ao corpo, de uma presentificação sua como aparição,
para se dar a ver enquanto tal. Se realizar o nascimento de um outro corpo em vida remete
para a apresentação de um outro que não remete a mais ninguém que a si mesmo e que,
no mesmo plano, se anula enquanto ser capaz de dominar um começo, de lhe atribuir um
estado, então a representação não simula ou imita, ou, mesmo, apresenta um referente
expressivo de um outro que não está. Isto, porque o corpo que se apresenta, não só está
embebido da linguagem e dos seus avessos intensivos, mas porque “ele existe por isso
mesmo no interior da linguagem, mas como não sentido que constitui o fora dela ou o
seu limite.” 74 Paradoxalmente, esta expressão do movimento que se repete pela sua
diferença é uma expressão unívoca, múltipla, que faz ver o corpo esgotado como um
corpo que constantemente se torna monstruoso. E este monstro constitui o “fora da
linguagem que constitui o seu limite e ao qual corresponde o uso transcendente que se
pode fazer dela, numa espécie de metalinguagem, num uso da linguagem inteiramente

70
GIL, José (2002). Movimento Total – O Corpo e a Dança. Trad. Miguel Pereira. Lisboa: Relógio D’Água (p.126)
71
NANCY, Jean Luc (2000). La comunidade inoperante. Trad. Juan Manuel Garrido Wainer. Chile: ARCIS (p.6)
72
Id.
73
Id.
74
LAPOUJAD, David (2017). Deleuze e os movimentos aberrantes. Trad. Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: n-1 (p.125)

17
voltado para o que só pode ser dito.”75 Porque o corpo do monstro, agora sem alma, psi
ou subjectiva, de proporções gigantescas e inapreensíveis, construído como uma manta
de retalhos sob um plano de imanência que se esquiva à sua organização, feita de pedaços
de outros corpos, sem memória, sem nome, cria uma vida de identidade impossível.76 E
isto porque há algo que faz, em todo o momento, extravasar o lugar central da
representação, fazê-la escapar, deslocar o seu centro contendo-o nos seus limites de
esgotamento, “fazendo do corpo uma possibilidade de negar o mundo e a representação
de si sem se autodestruir.” 77 Como indica José Gil, isto dá-se “porque entre a
representação desempenhada e o referente há interferência, e permite à dança conservar
sempre um elemento que escapa à semiotização.”78 O monstro a que me refiro, dentro da
abstracção, não pode ser visto como um movimento abstracto dentro de um qualquer
código do informe. Isto, porque “não há movimento abstracto, porque o esvaziamento
dos movimentos os torna concretos, o mais reais, o mais despojados de cargas emocionais
e imagináveis possível.”79 Mas o Butoh coloca a dança no limite do corpo esgotado, que
afirma uma certa morte da dança. Paradoxalmente, o Butoh coloca a questão de que o
corpo resiste, no virar do avesso, não como fenómeno, mas como coisa, fisiologicamente
reduzida a uma meada de vibrações, como espectro plástico, para sempre inacabado. Este
é um processo de devir inumano do humano, mas sem rosto, que mostra o seu sujeito
como um dejecto para lá de todo o possível lugar de identificação antropomórfica. “E o
humano aparece, então, como aquilo que resta, um tanto em farrapos, do aracnídeo
atravessado por essa espécie de meteorito cego que é a consciência.”80 Monstro alegre,
anafórico, que se liga de imediato ao ambiente que o rodeia, para lá de toda a vontade
subjectiva, sequer, de ser seja o que for historicamente; está fora da narrativa; não reage
ao real, mas o produz. “Trata-se, portanto, de um momento em que a expressão não é
mais propriamente equívoca, mas unívoca. Enquanto individuação absoluta, o monstro

75
Id.
76
TUCHERMAN, Ieda (1999). Breve História do Corpo e de Seus Monstros. Lisboa: Vega-Passagens (p.135)
77
GIL, José (2002). Movimento Total – O Corpo e a Dança. Trad. Miguel Pereira. Lisboa: Relógio D’Água (p.53)
78
Id.
79
Id.
80
O aracnídeo é a rede traçada em que o humano se instala e que, apartir dela, nas suas bordas, se produz, mas sempre em vias de
nascer.
DELIGNY, Fernand (2015). O aracnídeo e outros textos. Trad. Lara de Malimpensa. São Paulo: n-1 (p.250)

18
constitui o impossível de toda a generalidade.”81 Como diz Lapoujad “abandonamos a
coexistência externa de um espaço-tempo histórico, e entramos na coexistência
intrínseca, uma contemporaneidade de direito num espaço-tempo não histórico.” 82 O
corpo esgotado é um corpo aberto ao seu refazer constante e que “abandona o terreno da
história para se ligar ao plano, muito mais instável, dos devires e das potências.”83 Como
limite da própria linguagem, ao re-apresentar-se, apresenta não só o seu morto enquanto
corpo privado da capacidade de fazer-se aparecer, e, no mesmo plano, o exprimível como
fora ou avesso da sua proposição. Não o inefável fora da proposição, mas a outra face
que constitui o avesso intensivo: visões e audições que não tendem ao grito, mas que são
tensores, como zonas não linguageiras, mas que só a linguagem torna possível.84 Para o
corpo esgotado, este vai formar em si um espaço larvar, de resistência microperceptiva,
para poder criar fissuras, por onde a vida possa brotar para além do organismo, “limites
imanentes que não cessam de se deslocar, hiatos, buracos ou rasgões, dos quais não se
daria conta, atribuindo-os ao simples cansaço, hiatos para quando as palavras
desaparecidas.”85 O pensamento esburacado perde a sua superfície metafísica “enquanto
o corpo desfeito perde a superfície física que o distinguia dos outros corpos e lhe
designava os seus limites próprios à maneira de uma membrana protectora.”86 Este corpo
torna-se esburacado, mas em que os buracos são mais o tempo que o espaço. “Torna-se
inteiramente penetrável, inclusive pelas palavras.” 87 A linguagem que se cria, pela
resistência à representação, faz do começo do corpo a sua impossibilidade;
impossibilidade real para retratar-se no espaço da visão. O corpo nasce, então, desta
operação de espelhamento de forças e o som da voz do corpo (morto) é um som dançante.
É como um desenho do gesto dançado, em que se corta uma forma, mas de gramática
violenta, como um desenho insurrecto do contorno do silêncio, onde “só se escavam
espaços, só se precipitam ou desaceleram tempos, à custa de torções e deslocamentos que

81
JUNIOR, Carlos (2008). “O corpo e o devir-monstro.” In Revista Lugar Comum, n.25-26. Rio de Janeiro: Rede Universidade
Nômade (p.249)
82
LAPOUJAD, David (2017). Deleuze e os movimentos aberrantes. Trad. Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: n-1 (p.230)
83
Id.
84
Ibid.(p.123)
85
DELEUZE, Gilles (2010). “O esgotado.” Trad. Roberto Machado e Ovídio de Abreu. In Sobre o teatro: Um manifesto de menos;
O esgotado. Org. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (p.78)
86
LAPOUJAD, David (2017). Deleuze e os movimentos aberrantes. Trad. Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: n-1
(p.132)
87
Id.

19
mobilizam e comprometem todo o corpo.”88 E, tanto na sintaxe desta gramática, como na
sua forma semântica, assim como no processo de as produzir, assim como na força de
deslocamento que estas produzem ao serem ouvidas, dá-se a poesia do espaço, a do
espaço moído pelas larvas, do espaço-projecção que une o corpo do artista ao corpo do
espaço (espectador) e que faz a própria magia do teatro.89 Para Artaud, trata-se, de certa
maneira, de unir - em virtude de que misteriosas analogias - uma sensação e um objecto,
e de colocá-los no mesmo plano mental, evitando a metáfora.90 Não que haja aqui uma
teologia do impossível de ser dito, ou um misticismo do indizível e do invisível. Mas,
como diz Rajchman “se é verdade que os vazios, as rasuras e as ausências podem ajudar
a virtualizar ou a singular um espaço específico, o projecto virtual nunca se obtém apenas
através do esvaziamento de um espaço ou da via negativa.”91 Trata-se, antes de mais, de
criar um grande corpo larvar, dentro de uma abstracção por excesso, para lá do pré-pós
dizível, como uma geometria dos trajectos das intensidades que atravessam a cena e em
que o que se denomina sujeito falante já não é aquele que fala. Descobre-se numa
irredutível secundariedade, origem sempre já furtada a partir de um campo organizado da
palavra e no qual procura, em vão, um lugar que sempre falta.92

Para uma imagem no deserto


Como indica André Lepecki, quando pensa sobre uma ontologia mais lenta da
dança, e ao pensar estados de esgotamento da dança pós-moderna, este verifica que, no
que corresponde ao bailarino, “ao despojar a dança do bailarino, este pode ser habitado
por outros gestos [...] onde o bailarino pode reclamar outras maneiras de relacionar-se
com o visível [...] e em que o movimento pertence mais às intensidades e menos à
cinética.”93 A intensidade é uma energia que apenas se dá no deserto. E isto porquê?
Porque a intensidade é uma energia não-dinâmica, sem corresponder à relação dunamus

88
DELEUZE, Gilles apud LAPOUJAD, David (2002). “O corpo que não aguenta mais.” In: Nietzsche e Deleuze – Que pode o corpo.
Trad. Daniel Lins. Org. Daniel Lins; Sylvio Gadelha. Rio de Janeiro: Relume Dumará (p.88)
89
GIL, José (2018). Caos e ritmo. Lisboa: Relógio D’Água (p.141)
90
ARTAUD, Antonin (2006). Linguagem e vida – Antonin Artaud. Trad. J. Guinsburg. Org. J. Guinsburg; Sílvia Fernandes Telesi;
Antônio Mercado Neto. São Paulo: Perspectiva (p.152)
91
RAJCHMAN, John (2002). Construções. Trad. Margarida Vale de Gato. Lisboa: Relógio D’Água (p.31)
92
DERRIDA, Jacques (1971). “A palavra soprada.” In A Escritura e a Diferença. Trad. Maria Beatriz Silva. São Paulo: Perspectica
(p.120)
93
LEPECKI, André (2018). Agotar la danza – Performance y politica del movimento. Trad. Antonio Fernández Lera. Alcalá: Centro
Coreográfico Gallego (pp.114-115)

20
energeia aristotélica, que não se deixa apreender num corpo actualizado meramente como
estado de coisa. É dele que ela se produz, certamente, porém excede-o na sua retícula,
que a enquadra, e ao mesmo tempo a excede, supera e transpõe. Poderemos pensar um
corpo esgotado como a abertura do corpo ao seu povoamento num deserto? Ao seu
povoamento que clama por um povo por vir e sempre esboçado e em vias de nascer? Do
qual também nunca, talvez, se venha a comprovar o seu projecto? Que faz das
intensidades a sua forma estética exuberante, sempre em vias de desaparecer, e que faz
do pensamento da pulsão a sua zona virtual de efectuação? Uma dança-mórbida num
espaço a abrir-se sempre e que escapa por todos os lados?
Voltemos a Hijikata, que é aquele que interessa para pensar o corpo esgotado e
para poder pensar a dança Butoh, como sendo esta uma dança realizada por um corpo
doente e que, sendo sensível a si mesmo, se faz diferir. Hijikata escreveu um livro,
intitulado Dançarina Doente, onde aglutina toda a sua poética sobre o corpo. Neste livro
“as palavras parecem estranhas e excepcionais, porque aquilo que acolhem é o que não
pode ser expresso pelas palavras cotidianas, ampliando-se excessivamente.” 94 Neste
livro, Hijikata descreve a falta de gravidade cujo próprio corpo percebe e que lhe ensinava
os gestos de ver rapidamente as formas flutuantes num pensamento efêmero.95 O tempo
das palavras e a sua capacidade de construir imagens é o fora das imagens, a sua
exterioridade, o seu deserto. É o “tempo e o corpo derretidos, num mundo dividido no
infinitamente pequeno, que são revelados pela escrita e retornam ao caos.”96 Como diz
Uno, “o leitor não pode fixar-se numa palavra, numa imagem, numa expressão. A
velocidade e o multidireccional não permitem conceber o texto numa linha estável. Sem
objecto fixo, este livro é apenas velocidade e direcções variáveis até ao atordoamento.”97
Hijikata faz das palavras outro gesto dançado, em que para cada nova palavra esta já está
constantemente invadida por outros corpos virtuais, larvas de palavras, e estes perdem os
seus contornos, penetrados e devorados uns pelos outros. 98 É esta a dinâmica das
intensidades, como uma rajada de vento que trespassa os corpos até ao seu contacto e à

94
UNO, Kuniichi (2018). Hijikata Tatsumi – Pensar um Corpo Esgotado. Trad. Christine Greiner; Ermesto Filho. São Paulo: n-1
(p.52)
95
TATSUMI, Hijikata apud. UNO, Kuniichi (2018). Hijikata Tatsumi – Pensar um Corpo Esgotado. Trad. Christine Greiner; Ermesto
Filho. São Paulo: n-1 (p.82)
96
Ibid. (p.52)
97
Id.
98
Ibid. (p.53)

21
sua mistura. É a questão geral da experimentação ou daquilo que, também, Etiénne
Souriau chama de instauração. Se os virtuais têm tanta importância para este autor, “é
porque nos fazem entrar numa nova dimensão: não mais a dos modos de existência (o
modal), mas a da sua transformação uns nos outros (o transmodal).”99 Deste modo, o
gesto dançado é um gesto de gestos, que carrega em si o seu movimento actual no espaço
empírico, mas que pode ser desertado para se abrir a outros movimentos. Ele é um gesto
que se vai vertendo em outros gestos e dissipando toda a imagem que nele se esboça. E o
tempo do deserto “é um tempo puro que não passa, como um acontecimento que seria
espera de acontecimentos”100 e que suspende o seu final. Este corpo esgotado é o deserto,
mas esburacado para as virtualidades dos seus intervalos, como um processo de
desertificação actual que se confunde com um campo de potencialidades; é um céu
tempestuoso carregado de energia, uma espécie de tempestade abstracta sacudida pelos
ventos.101
A imagem dissipa-se no momento mesmo em que o deserto se repovoa. É o puro
deserto de uma matéria intensiva com as suas conjunções de fluxos e as suas distribuições
de singularidades, as suas populações moleculares que vêm deformar a arquitectura do
corpo orgânico. A diferença, que estas populações instalam no corpo do performer, é
sempre a dimensão de lugar como topos, mas sendo esta numa lógica rizomática em n-1,
ou seja, a sua subtracção enquanto corpo capaz de se afirmar ou localizar num espaço
euclidiano. Como indica José Gil:

“A acção de cortar uma forma num espaço a n


dimensões faz nascer uma outra figura a n-1 dimensões
que contém, virtualmente, a figura e o espaço dos quais
deriva, de tal modo que a Figura Abstracta última
recolhe uma infinidade de outras dimensões que
podemos representar desdobradas sobre um plano.”102

A fim de garantir o sistema do deserto, são necessários gestos-signos e


movimentos fora-do-sistema, que escapem e que permitam às poeiras-unidades destas
populações articularem-se livremente. Ainda como diz Gil, “não devemos esquecer que

99
LAPOUJAD, David (2017). As existências mínimas. Trad. Hortencia Santos Lencastre. São Paulo: n-1 (p. 41)
100
LAPOUJAD, David (2017). Deleuze e os movimentos aberrantes. Trad. Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: n-1 (p.299)
101
Id.
102
GIL, José (2018). Caos e ritmo. Lisboa: Relógio D’Água (p.183)

22
a tendência para construir signos, própria do movimento dançado, nunca chega a
constituir um sistema de signos. Ela aborta necessariamente devido à natureza do gesto
corporal.”103 Poderíamos pensar, também como Artaud, um Teatro Abortado104 ou um
Teatro Vedado105 como lhe chama Uno para com Hijikata. E em que a imagem não é a
criação de um mundo imaginário oposto ao real. Ela é o trabalho que opera dissensos,
que modifica os modos de apresentação sensível e as formas de enunciação ao modificar
os enquadramentos, as escalas, os ritmos, construindo relações novas, larvares, entre a
aparência e a realidade, o singular e o comum, o visível e a sua significação.106 Esta
imagem é o lugar da visão como o olhar do vidente que tem por “objecto a própria
realidade numa dimensão que extrapola o seu contorno empírico, para nela apreender as
suas virtualidades, inteiramente reais porém ainda não desdobradas.”107 O que o olhar do
vidente vê, já não é nem o espaço-bailarino, nem o actor-artista, nem o olho-espectador
nem a imagem em si mesma. É o resíduo de toda a planificação, os restos do aplanamento
e do achatamento do espaço: é a imagem pura perplicada, o seu fulgor e apagamento, a
sua ascensão e queda, a consumação.108 Em suma: uma linha que gagueja e...e...e...e...e...
O deserto é, ainda, uma violência inscrita no corpo e que é exercida pela sensação.
A sensação é o próprio sentido do acontecimento em si, quando o corpo encontra o seu
fora, a sua exterioridade como esgotamento. É o corpo no momento em que é atravessado
pelas forças. “A sensação é uma mestra em deformações, um agente de deformação do
corpo.” 109 O encontro do corpo com a sua fraqueza, sendo como força, é algo mais
patológico, é “quando a experiência pura do espaço nos abraça como choques e não
alguma coisa que admitimos ou representamos para nós.”110

103
GIL, José (2002). Movimento Total – O Corpo e a Dança. Trad. Miguel Pereira. Lisboa: Relógio D’Água (p.126)
104
Refiro-me a:
ARTAUD, Antonin (2006). “Manifesto Por Um Teatro Abortado.” Trad. Regina Corrêa Rocha. In Linguagem e vida – Antonin
Artaud. Org. J. Guinsburg; Sílvia Fernandes Telesi; Antônio Mercado Neto. São Paulo: Perspectiva (p.39)
105
Refiro-me a:
UNO, Kuniichi (2018). “De um teatro vedado”. In Hijikata Tatsumi – Pensar um Corpo Esgotado. Trad. Christine Greiner; Ermesto
Filho. São Paulo: n-1 (p.82)
106
PELBART, Peter Pál (2013). O avesso do niilismo – cartografias do esgotamento. São Paulo: n-1 (p.269)
107
Ibid. (p.49)
108
Id.
109
DELEUZE, Gilles (1981). Francis Bacon – Lógica da Sensação. Trad. José Justo. Lisboa: Orfeu Negro (p.82)
110
LAPOUJAD, David (2017). William James – A construção da experiência. Trad. Hortência Santos Lencastre. São
Paulo: n-1 (p.39)

23
Conclusões
Finalmente, para concluir, podemos pensar acerca das consequências que acarreta
este processo de esgotamento para a consciência do artista que dança um gesto menor de
si mesmo. Para a constituição de um diagrama genético da sua obra e, especialmente,
para este não conseguir, pelo corpo, dizer-se, é necessário um toque da consciência pelos
movimentos do corpo. Não só pelos movimentos na macroestrutura perceptiva, como
talvez em Hubert Godard, mas também por esses movimentos potenciais que colocam a
questão do começar do próprio movimento; de um segundo nascimento em vida. Segundo
Godard, o que nos inscreve no rumo da história são as organizações em torno dos
músculos gravitacionais, ou tonais e que geram o pré-movimento como forma para
compensar desequilíbrios posturais. É este pré-movimento que define a qualidade
afectiva do gesto que se formaliza no espaço/tempo. É na activação destes músculos que
todo o gesto visível está pré-estabelecido. É esta micro-recomposição, que não é
percebida pela consciência em estado de vigília, a que o corpo se acomodou, que rasga o
espaço e muda a experiência do tempo através da qualidade do gesto plástico. Ainda
segundo Godard “são estes músculos que registam as mudanças nos nossos estados
afectivos e emocionais.”111 A filogenia de cada grupo, assim como a força da cultura,
dobram os corpos à medida do tempo, criando neles sedimentos afectivos numa memória
ontológica. Todos os parâmetros que dobram o corpo e o transfiguram, formam uma
rede/substracto de linhas que traçam os movimentos intensivos, ora de fuga, perfuração,
ou resistência à cultura, ora para criar relações que vão “vincular no indivíduo uma atitude
corporal, afectividade e expressividade, sob a pressão flutuante do meio em que está
inserido.”112 Como nos indica ainda Godard, “a mitologia do corpo que circula num grupo
social inscreve-se no sistema postural e, reciprocamente, a atitude corporal dos indivíduos
serve de veículo para essa mitologia.”113 Deste modo, os mitos estão intimamente ligados
aos afectos, que, por sua vez, estão ligados à vivência da corporeidade e à relação do peso
com a lei da gravidade que molda o corpo e define o seu interior como externalidade
comprimida.

111
GODARD, Hubert (1995). “Le gest et sa perception”. In La Danse ou XXeme Siêcle. Org. Marcelle Michel e Isabelle Ginot. Paris:
Bordas (p.14)
112
Ibid. (p.20)
113
Ibid. (p.21)

24
Mas para um corpo esgotado, este recusa qualquer desejo de voar. Este vai ser
esgotado dos seus automatismos e dos seus clichês gestuais, comuns dentro da sua
cultura. Como técnica, o corpo esgotado apenas cria zonas que são tensores pelo
abandono de si ao seu próprio peso. O que este corpo não aguenta mais é deixado ao
esgotamento, ao esgotamento da sua modulação estética num espaço mensurável de
coordenadas topológicas de representação. Se todos os dispositivos contêm em si,
sempre, as suas resistências, que circulam por todos os dispositivos (e não há dispositivo
que não as comporte) o real nasce como um campo interior ao dispositivo da
representação, mas que é também capaz de atravessar os seus limites ou perfurar as suas
extremidades. Toda a linha de resistência comporta esta ameaça virtual: inventar um
contra-dispositivo por contaminação, perfuração ou fuga.114 O desejo deste corpo é já a
anestesia do corpo, como a abertura deste ao se sentir pesar e é pelo continuum do
movimento que ele opera no seu refazer-se constante. Livre de automatismos e em
constante variação, este percorre todos os acordes da sua estrutura interna, fazendo o
corpo esgotado encontrar a sua leveza. Leveza paradoxal pela abertura do corpo por
dentro, até pela sua consciência, agora esburacada, em que o corpo-prótese é
excomungado do espaço de criação, e onde o corpo esgotado compõe uma paródia como
“pré-superfície de inscrição.” 115 É nesta superfície onde, a partir de si, inscreve os
estímulos, para que “se tornem imediatamente desenháveis.” 116 O corpo esgotado
“experimenta o eco emocional das suas imagens e dos seus pensamentos.”117 Ele habita
o espaço perceptivo da dança de si com o mundo, que se torna, nesse encontro, o espaço
da imagem. “O espaço da imagem é feito de matéria-imagem. [...] O espaço da imagem
é o espaço interior tornado espaço estético.”118 É um outro nascimento. Já para Luca
Aprea,

“sentir-se pesar é ter, no instante, uma medida tónica,


dinâmica, espacial, uma prospecção dos contornos
qualitativos do movimento seguinte. Neste sentido,
qualquer pequena mudança de apoio implica uma

114
ALVIM, Davis Moreira (2012). “O que é um contradispositivo?” In Cadernos de Subjetividade, n.14. São Paulo: Núcleo de Estudos
e Pesquisas da Subjetividade, Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica - UCSP (p.83)
115
GIL, José (1996). A Imagem-Nua e as Pequenas Percepções - Estética e Metafenomenologia. Lisboa: Relógio D’Água (p.221)
116
Id.
117
Id.
118
Id.

25
reconfiguração das relações de forças e, portanto, das
projeções virtuais da acção no espaço.”119

Para um corpo esgotado, sentir-se pesar é lança-se para fora numa comunidade
por vir. Este morre, e através de estados de quietude em torno dos seus músculos
gravitacionais, pela recusa de um desejo de movimento aparentemente sempre contínuo,
pode re-nascer do vazio do seu próprio re-enquadramento. O movimento nascendo de
dentro do próprio movimento. Corpo-quadro-volume, num plano flutuante. Corpo
habitando no ar. O espaço do corpo produzido densifica-se. Torna-se elástico. Deserto.
Dobra-se num paradoxo: da densificação nasce o vazio 120 . Do excesso levanta-se a
poeira no ar, “feita de mil dobras imperceptíveis, verdadeira poeira de pequenas
percepções. É desta poeira da percepção que se deve partir.”121 Ao dissipar-se o caos122
da poeira, há o deserto, contendo dentro de si uma multidão fervilhante de figuras e
formas, enxame de abelhas, confusão. E cabe ao “artista ser aquele que povoa o plano de
composição com figuras, anões e gigantes, montanhas de cores, explosões de luz [...] em
que as imagens que ele extrai de si mesmo valem pela intensidade pura, dramática ou
cómica que ele sabe dar ao acontecimento.” 123 Trata-se de fabricar o real, não de
responder a ele, muito menos de o representar ou comunicar através de uma demagogia
da doxa, ou do retrato burguês, social, subjectivo e estético, alicerçado numa interioridade
de estado romântico e solitário. O corpo esgotado é um corpo fora do retrato,
especialmente do retrato social, que contém um movimento sensível a si mesmo e que
durando difere.
Para a consciência, podemos pensar que, no artista, ela já não visa a sua
intencionalidade directamente em direcção ao mundo. Como indica José Gil, a
consciência do corpo abre-se ao mundo microperceptivo do corpo mas “já não como
consciência de alguma coisa, já não segundo uma intencionalidade que faria dela doadora

119
APREA, Ciro Luca (2014). O Toque e a Diferença. Universidade de Lisboa/Faculdade de Motricidade Humana. [tese de
doutoramento inédita]. Portugal
120
GIL, José (2015). Poderes da Pintura. Lisboa: Relógio D’Água (p.32)
121
LAPOUJAD, David (2017). Deleuze e os movimentos aberrantes. Trad. Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: n-1 (p.301)
122
“Define-se o caos menos pela sua desordem que pela velocidade infinita com a qual se dissipa toda a forma que nele se esboça.
É um vazio que não é um nada, mas um virtual, contendo todas as partículas possíveis e suscitando todas as formas possíveis que
surgem para desaparecer logo em seguida, sem consistência nem referência, sem consequência. É uma velocidade infinita de
nascimento e de esvanescimento.”
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (1991). O que é a Filosofia? Trad. Bento Munoz. São Paulo: Editora 34 (p.48)
123
LAPOUJAD, David (2017). Deleuze e os movimentos aberrantes. Trad. Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: n-1 (p.301)

26
de sentido, não pondo um objecto diante de si, mas como adesão imediata ao mundo,
como contacto e contágio com as forças”124 O tempo de deixar afectar-se, o tão aclamado
contemporâneo 125 que irrompe uma certa apatia do estado vigíl de consciência, esse
tempo do real, faz uma certa argamassa metafísica do corpo desabar. Cria-se um corpo
de consciência que faz a consciência ir na direcção do corpo, “para trás”, em que
assistimos à “impregnação da consciência pelos movimentos corporais, que é
acompanhada por uma intensificação notável quer destes quer dos movimentos da
consciência.”126 Esta argamassa do corpo, que desaba, realiza o que José Gil chama de
corpo de consciência, em que, a impregnação recíproca, abre o corpo e a consciência ao
universo das pequenas percepções127. O corpo desprende-se do seu centro e da sua relação
vertical e escapa ubiquamente pelos buracos do corpo esgotado do artista, como se o seu
gesto dançado fosse produzido por um bando de superfícies, agora animado pela sua
anima do espaço do corpo, ubíquo, como sendo o seu espaço estético. Diria, em tom de
delírio, que foi o movimento do bando polifónico que animou o pensamento-em-acção,
dado pela voz do espaço do corpo e em que “o teatro é, ou passa a ser, a arte curiosa de
mostrar alguém que fala.”128
Em conclusão, na criação deste corpo esgotado, gesto e palavra, som e cor, linha,
ponto e volume, poesia e conceito, serão um só numa abstracção ubíqua, numa espécie
de “geometrização da projecção do movimento dançado [...] espaço de coexistência de
todos os movimentos virtuais (espaço de consistência do heterogéneo).” 129 E esta
coexistência, em bando, é um verdadeiro exílio, como um desenho do deserto que o corpo
realiza expressando a sua solidão. Mas o “desenho não constitui uma figura ou uma forma
que o corpo próprio tomaria visto do exterior. Trata-se de um traçado visto do interior.”130
É o nascimento do espaço do corpo, espaço ubíquo de movimento e composição, em que

124
GIL, José (2002). Movimento Total – O Corpo e a Dança. Trad. Miguel Pereira. Lisboa: Relógio D’Água (p.177)
125
O dispositivo performativo, ou a acção do actor/criador, pode ser entendida como “a constante interrupção da cronologia por um
tempo outro”.
AGAMBEN, Giorgio (2008). O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Trad. Vinicios Honesko. Chapecó: Argos (p.10)
126
GIL, José (2002). Movimento Total – O Corpo e a Dança. Trad. Miguel Pereira. Lisboa: Relógio D’Água (p.178)
127
“Imagens-nuas e unidades microscópicas vindas da esfera da linguagem (ritmos, sons); uma vez que, na sua atmosfera, se esboçam
formas que retêm e inscrevem forças.”
GIL, José (1996). A Imagem-Nua e as Pequenas Percepções – Estética e Metafenomenologia. Lisboa: Relógio D’Água (p.104)
128
UNO, Kuniichi (2018). “De um teatro vedado”. In Hijikata Tatsumi – Pensar um Corpo Esgotado. Trad. Christine Greiner; Ermesto
Filho. São Paulo: n-1 (p.84)
129
GIL, José (2002). Movimento Total – O Corpo e a Dança. Trad. Miguel Pereira. Lisboa: Relógio D’Água (p.172)
130
Ibid. (170)

27
“o movimento empírico do corpo visto do interior abre um espaço virtual onde esse
movimento se projecta, não como o de um corpo, mas como o de um plano ou de uma
linha ou de uma figura abstracta (geométrica).”131 E, nesta abstracção, o corpo, exila-se
de si próprio sobre o seu próprio peso. Faz a força relacionar-se com a própria força, o
pensamento resistir ao próprio pensamento, para devir Outro. Entra num caos, abandona
a sua prótese à força da gravidade, outrora construída pela sua relação com as resistências
por ela impostas. Voltamos então à questão do começar: como dominar o começo?
E é este o deserto que Artaud instaura quando fala da alma do corpo que brota de
dentro do corpo132. Esta alma é já um outro que fala a partir de si: persone. E tal como
Artaud, essa persone contém em si o mundo das almas e dos espectros que é instável e
frágil. “Então, às vezes estabelecemos para nós (ou se estabelecem em nós) almas
momentâneas cuja rapidez e a sucessão caleidoscópica contribuem para a ilusão de uma
existência mínima e fraca.”133 E, paradoxalmente, é dessa vida fraca, desses corpos já
quase destituídos de vida e de luz, dessa sobrevida da vida reduzida à sua mera
actualidade, bestialidade, à sua forma esgotada, que pode nascer “uma vida”. 134 É o
momento em que a escrita se torna pintura, pois o traço dessa escrita da vida inscreve
uma violência no corpo e no espaço. Traço que perfura a tela (ou projecta o telos na tela?)
em que o pictograma, o traço, a escrita desenhada, enlouquecida, ressoa e vibra no limite
do glossema, fazendo emergir, eclodir o seu timbre bárbaro. Ainda que esgotada, solitária
e exilada dentro de um espaço comungado, esta vida nos limites, que realiza certas
texturas no espaço, no extremo da sua intensidade, nasce para lá do genital inato. “Às
vezes é no extremo de uma vida nua que se descobre uma vida, assim como é no extremo
da manipulação e decomposição do corpo que ele pode descobrir-se como virtualidade,
imanência, pura potencia, beatitude.135
Para terminar, em tom de síntese, mesmo na existência espectral do corpo, da
morte do espaço e da sua incapacidade de dizer-se, “de algum modo se insinua uma

131
Ibid. (165)
132
Para Artaud, que nega absolutamente a supremacia da representação no teatro ocidental, o surrealismo não é “levar o surreal para
o real, onde ele vai criar bolor e dormir, amontoar-se e depositar-se nas vidraças bem ajustadas dos livros, mas, pelo contrário, é
elevar materialmente o real, até esse ponto em que a alma deve brotar dentro do corpo.”
ARTAUD, Antonin (2007). Eu, Antonin Artaud. Trad. Aníbal Fernandes. Lisboa: Assírio & Alvim (p.63)
133
SOURIAU, Étienne apud. LAPOUJAD, David (2017). As existências mínimas. Trad. Hortencia Santos Lencastre. São Paulo: n-1
(p. 70)
134
PELBART, Peter Pál (2010). “A vida desnudada.” In Leituras da morte. Org. Christine Greiner; Claudia Amorim. São Paulo:
Annablume (p.35)
135
Id.

28
estratégia de resistência. Uma resistência ao presente, como o Butoh de Hijikata. Um
homem, um artista, uma alma, sem qualidades, sem particularidades, sem
substancialidade do mundo onde já nem o biopoder pega.”136 E o espaço de resistência
apresenta sempre o lugar do artista como vidente, como um morto em vida, como “um
homem sem comunidade que, por isso mesmo, chama por uma comunidade por vir.”137
O artista é alguém que viu algo maior que si, algo que o ultrapassa mas que ele terá que
tornar visível através das sensações que cria e junto das Figuras que compõe. Ele cria um
verdadeiro deserto como paisagem para a fabulação de um novo mundo, sensação de uma
“nova terra” – tema caro a Artaud, Hijikata, Deleuze e Guattari – não-humana ou extra-
humana, onde o spatium se faz sentir, por via da dilaceração da experiência vivida. O
rosto, ou a face manifesta da aridez do deserto, devemos configurá-los como paisagem
do mundo Outro ─ o local onde um mundo espácio-temporal alheio, que antecede,
perdura e transborda os limites da existência humana, se dá a ver. Ir além da visão
antropomórfica do mundo, como também já certos movimentos das artes visuais o
fizeram; eis mesmo a tarefa, por assim dizer, antropológica, e sem dúvida gigantesca, que
a experiência do deserto, da intensidade, do virtual, como experiência do modelo da
morte, terá mesmo de encetar. Este é, portanto, um trabalho do olhar sob um
aligeiramento do espaço de actuação: abstracção num teatro de operações-
inexpressionistas. Teatro que é essa topologia dos infernos, que nos olha nessa
inexpressão iminente e constante; não dizer um não-dito sempre mal dito e tentar que este
se cole à obra; à experiência fruitiva ou estética. Um teatro-dança onde se escreve com o
corpo um texto tecido de palavras que grita “o relato da morte desses outros que somos
nós mesmos, num asilo interno; inventar para evitar o homicídio que nos é proposto,
fugindo à narrativa, terceirizada pelos que nos cuidam e amam,”138 e onde se desenha
para lá do humano e do corpo como modelos de processo de subjectivação. Desenho
insurrecto, talvez, que traça espaços desenhados ou desenhos espacializados que
reflectem o hiperbólico e o críptico, o fluxo e o espaço liso. Espaço do olhar que recolhe
“o silêncio, cria o vazio completo quanto ao que há a dizer, absorve todo e qualquer
significado que fosse preso pela fala. Se alguma coisa diz e diz tudo nada dizendo, é um

136
Id.
137
Id.
138
Pelbart refere-se ao escritor Juliano Pessanha através da noção de Heterotanatografia.
PELBART, Peter Pál (2012, Outubro 3). Como viver só. [suporte em vídeo]
Disponível em: https://youtu.be/-8wh6LKLR1Y

29
puro acontecer, contingente e inominável.” 139 Uma passagem num plano desértico e
flutuante, que é uma “passagem para a morte, que não é o nada mas um sobreviver ao
caos.” 140 Espaço onde nascem existências mínimas, como lhes chama Lapoujad, em
acorde de Souriau, em que no cosmos das coisas, há aberturas, inúmeras aberturas
desenhadas pelos virtuais.”141 E essas existências mínimas parecem estar destituídas de
vida, pois “raros são aqueles que as percebem e lhes dão importância; mais raros ainda
aqueles que exploram essa abertura em uma experimentação criadora.”142 E é a cegueira
da sobrevida, cegueira que não é “válida apenas para os virtuais, ela já aparece ao nível
dos fenómenos cuja pura fenomenalidade é perdida ao ver neles a manifestação de uma
coisa existente.” 143 Estes seres que habitam o corpo esgotado pelas suas zonas
imperceptíveis são “seres moleculares que não são seres miniaturizados, mas travestidos,
percebidos segundo os seus fluxos, as suas singularidades, as variações atmosféricas pelas
quais passam e fazem passar os que os cerca.”144
Por fim, resta citar Beckett, que foi aquele que inspirou, em todo o momento, os
pensamentos em torno de um corpo esgotado e dos quais me faço uso neste ensaio:

“A imagem acaba rápido e se dissipa, uma vez que ela


própria é o meio de terminar [...] Quando se diz criei a
imagem é que, dessa vez, terminou.”145

139
GODINHO, Ana (2010). “Como desfazer para si próprio o seu rosto?” In Cadernos de Subjetividade, n.12. São Paulo: Núcleo de
Estudos e Pesquisas da Subjetividade, Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica - UCSP (p.69)
140
Id.
141
LAPOUJAD, David (2017). As existências mínimas. Trad. Hortencia Santos Lencastre. São Paulo: n-1 (p. 44)
142
Id.
143
Id.
144
Ibid (p.306)
145
BECKETT, Samuel apud. DELEUZE, Gilles (2010). “O esgotado.” Trad. Roberto Machado e Ovídio de Abreu. In Sobre o teatro:
Um manifesto de menos; O esgotado. Org. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar (pp.85-86)

30
E, através do esgotamento, levando a aparição do rosto da morte colada à cara,
“cada artista tem o seu modo de fazer aparecer a Figura. É onde se dá a passagem da
possibilidade de facto ao facto, do diagrama ao quadro, do caos à Figura, do acaso à
forma, do acidente à necessidade. [...] A Figura é um conjunto simultâneo de formas.”146

E relembrar, sempre, a expressão de Hijikata: “o corpo que dança é um cadáver


que se coloca de pé, arriscando a própria vida.”147

E, tal como no meu próprio trabalho, esta é a instauração singular de uma estética
da solidão e de uma poética do exílio, povoada pelos gritos dos mortos; dos que ainda
não nasceram. Grito dos mortos que apela a uma comunidade por vir. Essa comunidade
é o socius desterritorializado, deserto onde escorrem os fluxos descodificados de um
desejo já sem falta de nada; um corpo esgotado de tudo e cansado de nada; como um
Corpo-Sem-Órgãos148.

146
PELBART, Peter Pál (1989). “Caos-Germe. Forma e Força na Arte.” In Da Clausura do Fora ao Fora da Clausura. Loucura e
Desrazão. São Paulo: Brasilience (pp.103-107)
147
TATSUMI op. cit. (p.73)
148
Noção que Artaud não cessou de trabalhar e que surgiu com a sua obra radiofónica “Para acabar com o julgamento de deus.” Com
relação ao conceito de Corpo-Sem-Órgãos, ou CsO, “é que, se o desejo passa necessariamente pelos órgãos lhe ocorre não mais
suportar a maneira como eles se organizam. Tudo se passa então como se o desejo, definido como quantidade intensiva, não lograsse
mais fazer os seus fluxos circularem livremente. Daí a criação de um corpo sem órgãos, grande massa indiferenciada, improdutiva,
que rejeita os órgãos ou os desorganiza, que os desorganiza para os distribuir de outro modo. [...] é um agente de desligamento.”
LAPOUJAD, David (2017). Deleuze e os movimentos aberrantes. Trad. Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: n-1 (p152)

31
Referências

AGAMBEN, Giorgio (2013). A Potência do Pensamento. Lisboa: Relógio D’Água

AGAMBEN, Giorgio (2008). O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Trad. Vinicios Honesko. Chapecó: Argos

ALVIM, Davis Moreira (2012). “O que é um contradispositivo?” In Cadernos de Subjetividade, n.14. São Paulo:
Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica - UCSP

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de doutoramento inédita]. Portugal

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Lisboa: Fenda

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DELEUZE, Gilles (2010). Sobre o teatro: Um manifesto de menos; O esgotado. Trad. Roberto Machado, Ovídeo
Abreu, Fátima Saadi. Org. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (1991). O que é a Filosofia? Trad. Bento Munoz. São Paulo: Editora

DELIGNY, Fernand (2015). O aracnídeo e outros textos. Trad. Lara de Malimpensa. São Paulo: n-1

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15 de Julho de 2019

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