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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA – UDESC

MESTRADO EM TEATRO PELO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO


EM TEATRO.

ÀS NOITES DA MATÉRIA – Butoh em vias de Clarice

SAILE MOURA

FLORIANÓPOLIS /SC 2020


SAILE MOURA

Projeto apresentado ao Programa de Pós-


graduação em Teatro da Universidade do
Estado de Santa Catarina, como requisito para
o exame de qualificação de Mestrado em
Teatro, área de concentração Teorias e
Práticas Teatrais, na Linha de Pesquisa
Pedagogias das Artes Cênicas.

Orientadora: Profª. Dra. Bianca ​Scliar Cabral


Mancini

FLORIANÓPOLIS – SC

2020
SAILE MOURA

ÀS NOITES DA MATÉRIA – Butoh em vias de Clarice

Apresentação à Comissão Examinadora de Qualificação, integrada pelos


professores:

Orientadora: __________________________________________________
Profª. Dra. Bianca ​Scliar Cabral Mancini

Membro UDESC: _____________________________________________


Prof. Dra. Luciana Lyra

Membro Externo: ______________________________________________


Prof. Dr. Éden Peretta

Florianópolis, 2020
2

RESUMO

Esta pesquisa procura na obra de Clarice Lispector intersecções com as


instâncias corpóreo-discursivas da dança Butoh. Investigo esboços do corpo
em contato a partir das noções de incompreensão que Clarice desenvolve em
sua escrita. Traço com isso conversas entrelaçando as duas vertentes
poéticas, Lispector e Butoh, para propor instâncias em que o não entender
clariceano mobiliza uma possível dança. Assim, este trabalho concebe práticas
e se debruça sobre a literatura de Clarice Lispector para propor questões éticas
e críticas sobre a expressão do movimento. São estas: Há dança em estados
corpóreos de afetação na leitura? Como improvisar para além da expressão
simbólica e literal do texto lido? Através destas e outras perguntas proponho
leituras sobre o Butoh, acepções de movimentos e modos de manutenção dos
afetos. Tais sugestões pretendem contribuir para as perspectivas críticas sobre
percepção e criação na dança e elaborar uma poética do movimento que
eclode a partir da experiência literária.

Palavra-chave: ​Butoh, Clarice Lispector, dança, literatura, incompreensão.


3

ABSTRACT

This research seeks in the work of Clarice Lispector intersections with the
body-speech instances of Butoh. The search aims at sketches of the body in
relation to the notions of incomprehension that Clarice develops in her writing.
With that I trace conversations intertwining the two poetic strands, Lispector and
Butoh, to propose instances in which the Claricean notion of not understanding
might mobilize a dance. Thus, this work conceives practices and focuses on
Clarice Lispector's literature to propose ethical and critical questions about the
movement expressions. These are: Is there dance in bodily states of affect in
reading? How to improvise beyond the symbolic and literal expression of the
literature? Through these and other questions, I propose readings on Butoh,
meanings of movements and ways of maintaining affections. Such suggestions
are intended to contribute to critical perspectives on perception and creation in
dance and to elaborate a poetics of movement that emerges from literary
experience.

Keywords: ​Butoh, Clarice Lispector, dance, literature, incomprehension.


4

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Escrito e(m) estudos práticos ………………………………………. 31

Figura 2 - Questionamento prático……………………………………………… 34

Figura 3 - Recorte de prática no centro da cidade de Florianópolis ………... 61


5

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ………………………………………………………………….. 6

INTRODUZINDO-SE ÀS MARGENS DOS RIOS ………………………….. 14

REALIZO O REALIZÁVEL E O IRREALIZÁVEL ME FAZ DANÇAR ……. 40

DANÇA CRÍVEL E INCRIÁVEL ……………………………………………… 58

REDUZIR PARA DISPERSAR ……………………………………..………... 68


6

INTRODUÇÂO

Saile, já li sobre começos e tenho aprendido que não se começa,


necessariamente do começo. Aliás; “como começar pelo início, se as coisas
acontecem antes de acontecer? ”​1​. Não, essa frase não é nossa, mas nos
compõe um tanto. É uma frase de Clarice Lispector. É muito provável que você
nem imagine que essa pessoa exista, já que a leitura não era uma prioridade
nessa época, mas, pode confiar, ela mudou muito nossa vida, nosso estar no
mundo, nossos desejos incompreensíveis tomam, cotidianamente, cursos –
nodosa e tortuosamente vitais. Através de sua obra nós nos abrimos dentro de
onde nem percebíamos estar; na Vida​2​.

Ao menino que cresceu no sítio, cuidador assíduo dos animais e, em


vergonhoso contraponto, sequestrador de filhotes de passarinhos, escrevo
essa carta como tentativa de expor-me – a mim, principalmente – e
estabelecer, assim, uma introdução ao que se desenvolve a seguir, nos
capítulos que narram o percurso de uma pesquisa e criação. Esse desejo de
escrita que move os escritos à frente é um modo de manutenção do amor
disperso pela vida inapreensível e, por isso, indispensável. Escrevo-te, Saile
que somos, deste espaço-tempo do qual hoje nós ocupamos. Amando estar.
Ainda que com dores, seus sabores são suculentos – e inapreensíveis.

É inevitável pensar em ti, nesse ​nós mais inseguro e com dúvidas


também descompassadas, e não lembrar do banheiro naquela escola do
ensino fundamental. Aquele sinuoso medo que se produzia ao, na sala de aula,
perceber que não sabíamos o assunto sendo dado. A ida ao banheiro era, a
cada minucioso passo, a grande fuga possível daquela aflição. O ambiente
levemente úmido onde ressoavam vozes de professores e professoras,
também era espaço de minhas caminhadas quase sonâmbulas ao lugar onde
se efetuaria, sem maiores milagres, a – enfim – desonra que eu sentia pelo
deslocamento no ensino.

1
LISPECTOR, 2017, P. 47.
2
“[...] quando pronunciamos a palavra vida, deve-se entender que não se trata da vida reconhecida pelo
exterior dos fatos, mas dessa espécie de centro frágil e turbulento que as formas não alcançam. ”
(ARTAUD, 2006, p. 8)
7

De joelhos no chão gelado, cor de vinho, indo ao marrom, lembro que


você pedia misericórdia, clemência a alguém que pudesse de alguma forma te
livrar daquele “desencaixe epistêmico”. O pedido eu realmente não consigo
apontar com precisão a quem se endereçava, mas, intuo, por tendências de
uma criação cristão, que fossem para o Deus. Naquela época, tão frágeis e
incertos de muitos sentimentos, só poderíamos pedir ao Nada que se
compadecesse do que nos faltou em séries passadas. A cena se repetia, as
idas ao banheiro eram frequentes, mas de alguma forma fomos seguindo. O
que não é de se surpreender dentro do sistema educacional manauara no qual
estamos inseridos. A imagem daquele banheiro ainda é tão presente em nós…
Aqueles beijos trêmulos, de lábios secos, mas pouco envergonhados no chão
quieto e observando incisivo, são cicatrizes. Joelhos no chão seguidos de
beijos no azulejo foram nossa reza silenciosa por algum tempo. Um grande
segredo até então. ​Lábios inebriados beijavam o chão em prece e solidão​. Aos
9 anos contornávamos como dava aquilo, sem tamanha compreensão do que
simbolizava aquela situação e que brechas abririam a partir dali.

Não, eu não sei bem explicitar o sentimento de medo e vergonha


levando-nos àquelas paredes do banheiro, comprimindo-nos no interesse de
sentenciar a ignorância. Não havia abertura de conversa para com a professora
Izolina – era esse seu nome. Talvez ela pudesse nos ajudar de alguma forma,
mas a situação sempre foi mais complexa. Haviam raízes imbricadas,
escondidas à espreita, e algumas eu hoje posso visualizar, observando quieto
e entendendo seus ecos, para que suas presenças dispersem do lugar que não
as pertence.

Os anos foram passando, fomos aprendendo algumas coisas e, acredito


que pela mudança de escola, não viria a ter intimidade com os banheiros que
foram chegando. Estes ficariam sem beijos e pedidos clementes de uma
criança assustada.

Seguimos caminhando. Não sabia, lembra, para onde iriamos? E fomos.


A ideia sempre muito certa de cursar veterinária. Aquele imenso amor pelos
animais. Que saudade da infância, de correr solto na grama e na terra
molhada, alimentar os porcos, nadar no Igarapé desde os dois anos de idade.
Pescar, brincar, trabalhar, crescendo no melhor dos mundos. De repente,
8

entrando na adolescência, encontramos o desejo inesperado pelo Teatro. Uau!


Mal sabíamos que o estranho seria nossa melhor casa.

Hoje estamos melhores. Mesmo! Você não imaginaria, mas nos


tornamos pesquisadores do corpo na cena das artes. Pasme! Nem eu nos
melhores sonhos acreditaria que seria possível, mas reconheço a influência da
mulher de quem falei acima. Também foi o encontro com uma vertente da
dança – isso, dança –, que nos fez e faz acessar mundos nunca antes
pensados por aquele menino que buscava refúgio no banheiro no fundamental.
Trata-se de um modo de estar e mover-se que é sobre a Vida, chama-se ​dança
Butoh​. A conhecemos no segundo ano da graduação em Teatro. Você deve
estar rindo confusamente ao ouvir que atravessamos uma graduação em
Teatro. E nesses caminhos traçados, nas inúmeras tentativas fracassadas de
desistir, ocorrem encontros que nos conectam a terrenos onde no chão, com
cultivo, têm nascido alma em jardim. É intensa a vista. Tem sido, e ah!,
promove vertigens quando em mergulhos súbitos caímos na crueza do ver
desinteressado, “como se olhos não fossem feitos para concluir mas apenas
para olhar”. 3​

Talvez eu esteja escrevendo um tanto diferente para você, para o que


está acostumado a fazer, mas isso – menos do que sobre entender – é para
que você perceba que lugares estamos ocupando. Afinal, ainda hoje me
pergunto que âmbitos discursivos, de conversa, de expressão e exposição
temos tido acesso, sucumbindo com isso um falido destino que nos aguardava
ardentemente para se concluir como já ocorrera ciclicamente. Estamos
ocupando discursos de reconhecimento, de redescobertas de si, de autonomia.
Estamos sabendo a potência de ser um corpo amazônico, de termos raízes
paraenses, de sermos nortistas e filhos dos rios. Há nisso um poderoso
aspecto de aceitação e de perceber-se pertencente. Você ficará feliz e
emocionado, assim como estou daqui concebendo esses escritos.

Para não cair em demasiadas exposições piegas, como bons librianos


emocionados que somos, farei um breve relato situando as circunstâncias que
nos trazem aqui. Como dito acima, no curso de teatro conheci a dança Butoh.

3
LISPECTOR, 1999, p. 81.
9

Segundos relatos de Éden Peretta (2015), é uma dança japonesa que


surge depois da Segunda Guerra Mundial, dentro de um contexto conflituoso,
de muitas perdas e desconhecimentos do povo japonês diante da invasão
estadunidense. As manifestações artísticas, culturais, sociais, em suma, todo o
viver daquele povo se viu sendo posto sobre novos modos de funcionamento
que se baseavam em controles e roubos, não necessariamente materiais, mas
assaltos feitos contra as singularidades e tradições. Diante disso, vertentes
artísticas japonesas se empenharam em resistir às tentativas de soçobrar
vestígios de um tradicional Japão. A partir dessa urgência, o Butoh, que já
vinha se desenvolvendo em anos precedentes através de Tatsumi Hijikata e
Kazuo Ohno, os grandiosos precursores, se enveredou e potencializou-se
enquanto grande força política. Mas isso não é tudo. Há muito mais entorno
desta dança contemporânea japonesa. Acontece que ela é um mistério, um eco
ressoando longe, sempre limítrofe ao que se é possível dizer sobre sua prática.
Porque é a vida. Não quero de alguma forma te isentar de determinada
vivência, mas você se cobrará ​muito intuindo dançar, dançar, dançar, crendo
só assim efetuar-se-á o Butoh, até ir percebendo que está atenciosamente na
vida expondo-se aos afetos e se expondo a ser afetado, é inevitavelmente
tangenciar-se a estados na dança Butoh. Eu não saberia te explicar em exato,
mas percebes em minhas palavras a tentativa de estímulos e movimentos? Me
aproximei de algo especial.

Um dos meios pelos quais esta dança nos chega é através de um livro
glorioso. Quase flutua de tão singelo-esplendor-poético. Trata-se do ​Treino
​ e Kazuo Ohno. Aforismos de aulas que Ohno ministrou pelo
E(m) Poema d
mundo, preciosidades que substancializam a secura dos ossos quando a carne
é posta em revolta. Ohno fala do cuidar da vida, cuidar do que é ínfimo,
restabelecer modos de mover-se mais próximos às instâncias do afeto, do que
mobiliza emoções. Ohno cita: “É melhor penetrar fundo, até o âmago dos
âmagos, mesmo das coisas minúsculas, tratando-as com cuidado. Ainda há
tempo. ” É desse viés que tenho partido rumo aos meandros do Butoh”.​4

A outra fonte onde tenho bebido vitalmente é na literatura de Clarice


Lispector, sobre quem já conversamos no início desta carta. Não que através

4
OHNO, 2016, p. 24.
10

do que diga ela represente o dito, mas refiro-me ao que representa em minhas
instâncias perceptivas, no que percebo minuciosamente. A dor que é sentir a
alegria sem se saber o que fazer disso; o incondicional desconforto em ver a
cegueira a mascar despreocupadamente; deparar-se com uma necessidade
gratuita que causa o pesar suficiente, e nada restringe. Clarice é – e, se essa
carta não possuísse um cunho formal, eu estaria confortável em apenas dizer
que é. Clarice emociona, confunde, cria instâncias perceptivas e, sem dúvidas,
é motor de um vasto campo de incompreensões que nos subsidiam até aqui. É
então o poder de poder ir além do que rege os entendimentos vigentes. As
incompreensões Saile, elas paradoxalmente são nosso chão. Não o não-saber
que nos afligia nas aulas da 3ª série, mas não entender do modo que faça todo
sentido quando não se tem um sentido estrito, do modo que inebria o corpo
atônito em saber que é capaz de não saber o suficiente e nisso tecer
realidades. Isso é sobre uma pessoa “não ficar aflita por não entender; a
atitude deve ser: não se perde por esperar, não se perde por não entender. ”​5​.
Solo fértil de dança e escritas urgentes. Quando não, céu aberto. Quando não,
Nada. E sempre vale a pena poder confiá-las os rumos que se manifestam.

Clarice e Butoh, ambos os mundos se enredam, margeiam-se,


redistribuem-se através de fontes próximas às águas que nos regem.
Possibilitam outros mundos a partir de perspectivas que se tangenciam. São
ensinamentos relacionados ao tato, ao instante do ato, ao estar, ao arriscar-se
às isenções interpretativas. Em suma, ao perceber “tendo cuidado de não
constatar demais e deixar de perceber. ”​6​. Reaprender o potencial do ordinário,
na glória imanente ao ser comido pelo que sem misericórdia circunscreve
linhas afetivas no corpo. Clarice Lispector e a dança Butoh tecem uma relação
nodosa, que me despe do que acredito erroneamente já saber, já ter entendido,
já ter visto no fitar apressado. Parece assim ao que eventualmente ocorre com
Macabéa quando algo irrompe seu trajeto de vida e a recoloca em outras vias:
(explosão)​7​.

5
LISPECTOR, 2004, p. 49.
6
LISPECTOR, 1999, p. 50.
7
No romance ​A Hora da Estrela​, o autor Rodrigo S.M., que é Clarice Lispector, nos apresenta, durante o
desenvolvimento da narrativa, instantes em que, por determinada força irruptiva, o que ocorrera não é
senão um corte substancial na vida de Macabéa, um ​acontecimento segundo algumas conceituações
filosóficas que mais à frente se esboçam.
11

Te escrever essa carta me causa dores – suportáveis. Sinto que poderia


redigir páginas e páginas e não chegar. Será que devo então escrever como
tem sido escrever esse ato?

Não sei em que fase está a lua, mas nosso sol está regendo o mês em
que te escrevo. Estamos prestes a virar ano e isso promove aproximações
alheias. O entre vibratório move-se confortável por essa interferência astral.
Perdão. Por vezes não escrevo diretamente a ti, não como se partisse de mim
a alguém o que escrevo. Por vezes é como estar em transe espelhada; um
descuido e estou vendo o que sei que vejo, contudo, muito desconheço se
decididamente impulsiono entrar num ímpeto impaciente. Ser fitado pela minha
maior representação de mim é um tanto constrangedor. Clarice, tencionando o
que te escrevo, essa noção espelhada, explana sobre isso dizendo: “Espelho?
Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir para sempre em
frente sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe. [...]. Um
pedaço mínimo de espelho é sempre o espelho todo. ”​8 Não percebi, confesso,
o instante em que fui trazido frente ao espelho, mas é que escrever a ti é
inclinar-me a intimidades incomuns, que só poderiam existir nessas
circunstâncias. Sinto que estou perdendo o que te escrevo e essa carta tende a
estar prestes a não possuir destinatário. Estou indo longe, e escrever, tenho
percebido, produz essa luminosidade, aliás, “escrevo pela incapacidade de
entender”​9​. Que instância temporal se instaura aqui senão a própria quimera
justificada na necessidade que impulsinou essa escrita?

Por fim, e não finalmente, quero que saibas que nada aqui pressupõe
conselhos, avisos prévios. Há sempre o risco em intervir nos acasos. Ao que
me é permitido dizer, ainda lerás muito sobre afetividades, dança, corpo,
desconhecimentos, e mais o que se sentir chamado, seja pela curiosidade,
pela necessidade intelectual, pelas cobranças que fará a si próprio pela faltosa
construção de ensino quando na tenra infância. Não fomos criados nem
projetados para estar aqui. Nunca houve essa projeção do aprendizado
continuado. Sobre isso não concedo culpa a ninguém. O que hoje vale notar é
que ocupo falas, pensamentos, articulações próprias perante opressões, que

8
LISPECTOR, 2019, p. 80.
9
LISPECTOR, 2004, p. 182.
12

não me fazem melhor do que alguém, mas me faz melhor para que eu aprenda
– cotidianamente, processualmente –, a admirar o que se constrói aqui dentro
através do reconhecimento de como e onde estou – e estamos. Podendo ter
melhor percepção sobre os estados pelos quais passamos.

Essa carta põe-me desnudo frente aos olhos rigorosamente cristãos.


Não quero que somente me vejam de sexo exposto, mas vejam
intrinsecamente o que ocorreu até aqui para que então finalmente surgisse o
desuso das roupas. Essa carta possui seu ruidoso ar de confissão – e de uma
humilhação que não efetua o sentir-se um rato. O rato é humilhado e sobre isso
não pretendo me estender. Nada que já não esteja imbuído na graça da
incompreensão.

Preciso findar essa interlocução temporal e desejar-te, enfim, que tenhas


boas leituras. Não sei se chegarás a passar pelos engenhos que passei, não
consigo realmente compreender a relação temporal entre nós, sobretudo que
falo de ti, em ti e para ti como se não houvesse uma mínima distância nos
conservando no presente em que estamos, quando não, passados. Só há o
que pude exprimir. Espero que tenhas de mim uma visão responsavelmente
paciente. Perdão pelas confusões emocionais. Escrever essa carta está sendo
como beber um gélido e macio vinho que inebria meu corpo
imperceptivelmente, como a vida acontecendo íntima, despretenciosa, como só
ela sabe ser. ​Não entendo.​ “Existir não é lógico. ”​10​, e escrever não é senão
uma doença e a própria cura.

Um adendo antes de finalizar essa carta: gostaria de propor alguns


apontamentos referentes ao que você irá ler na caminhada. Algumas instâncias
virtuais te mobilizarão dança em seu corpo instigado pela palavra, pelas
incompreensões imbuídas e demais afetos concernentes à literatura de Clarice
Lispector. Para isso, proponho-te esboços de conceitos como ​virtual, devir,
esquizopresença, fenonemenalidade, percepção-participativa​, e de demais
contribuições que se atrelam aos desejos exprimidos em palavras, todos eles
com seus devidos referentes autores e autoras que subsidiam nossos trajetos.
Você por vezes captará o impronunciável, e aí se traça a grandiosa glória que é

10
LISPECTOR, 2017, p. 54
13

escrever margeando o que ocorre internamente sem que se chegue


integralmente ao sentimento pois essa seria sua conclusão.

Sem maiores descrições, finalizando esta comunicação entre nós,


gostaria de dizer somente que, dentre as etapas de estudos que traçaremos,
entre elas surgem a dança virtualizada pela palavra clariceana, mais
especificamente pelas incompreensões de Lispector. Essa chamo por
Introduzindo-se às margens dos Rios​. Posteriormente entramos mais nas
questões do não entendimento como matriz em potencial da dança Butoh que
nos instaura em uma Vida, essa chamo por ​Realizo o realizável e o
irrealizável me faz dançar. ​Por terceiro nos debruçamos sobre a ​Dança crível
e incriável​, o movimento mais deliberado, performático que pediu nascimento
em nossas entranhas. São gritos mudos que ressoarão forte, e de muitas
formas, ou desformando estruturas, e ecoam pela ética de se ter afetado por
Clarice Lispector e a dança Butoh. Não menos importante, por fim nos
enveredaremos por ​Reduzir para dispersar​, práticas perceptivas,
espaço-temporais, o coexistir ético e poético para com essas existências que
manifestam a força da coexistência compositiva no ato de dançar, ler, escrever,
em suma, ​estar.

Dentre esses quatro exercícios de escrituras e pesquisa, somente o


primeiro te será entregue como ​finalizado – ponderando os sentidos do que se
finaliza. Optei por manter os demais exercícios de escrita que estão em curso,
justamente para que novos esboços possam se apresentar nesse encontro que
será a entrega dessa carta. Um grandioso, inquieto, ansioso e, de muita
gratidão, abraço demorado.
14

Capítulo ​1

ÀS NOITES DA MATÉRIA – Butoh em vias de Clarice.

Inicio apresentando uma perspectiva sobre a relação de Clarice Lispector e a


dança Butoh. Após maturar e observar cuidadosamente alguns aspectos da
pesquisa, possibilitar determinados pontos de vistas e desconstruir projeções
previsíveis, entendi que a dança não sai da palavra como sendo um resultado,
uma consequência do dito incompreendido. Logo percebi que haviam
manifestações virtuais em processamento, com isso fui desenvolvendo modos
de traçar a dança que se encontra no campo virtual durante a leitura, intuindo o
entrecruzamento da literatura e da dança, menos que uma sobre a outra, que
culminaria em modulações de pouco espaço às possibilidades experimentais
da relação. Este é um capítulo que aborda a importância da precedência que
coexiste aos agenciamentos práticos da dança, logo, neste capítulo desenvolvo
noções da dança desmistificando o que, a princípio, eu acreditei ser o modo
como ocorria o processamento palavra-dança. No entanto, não se trata
necessariamente de ler para então aquele determinado texto ser coreografado,
é mais traçar reuniões de estados ocorridos na leitura e a manutenção deles
para a abertura de portais na dança Butoh, estados de presença, de intenção,
de desejo, de movimento, de percepção, em suma, de corporeidade
experimentando-se.

INTRODUZINDO-SE ÀS MARGENS DOS RIOS.

Eu gostaria, então, de falar sobre o corpo de uma certa maneira, de


um certo ponto de vista, falar sobre o que se passa entre a dança e o
corpo, sobre o corpo dançante, a dança que descobre o corpo ou
certos aspectos do corpo que são invisíveis no cotidiano. Isso diz
respeito também ao corpo que coloca em questão a dança e a dança
que coloca em questão o corpo. Não se trata somente do corpo de
um dançarino, mas do corpo que é nosso corpo na vida; no entanto
somos obrigados a repensar o que quer dizer esse “nosso”, qual é a
natureza dessa relação, desse pertencimento entre o corpo e nós,
qual o lugar que o corpo na vida que é nossa.​11

11
Kuniichi Uno, ​A Gênese de um Corpo Desconhecido​ [2012], p. 55.
15

O ponto de partida deve ser: “Não sei.” O que é uma entrega total​12​.

O barco saída às 11:30 do porto. Deslocamento leve. A proximidade da


beira agora era dilatada e ficava cada vez menos decifrável. O colorido das
construções e demais barcos já quase não tinham o contorno do que eram. O
silêncio visual, concomitante com o afastamento do barco de onde atracara, ia
gradativamente se estabelecendo. O que antes estava ali ativamente
transitando e sonorizando a paisagem, agora se mantinha imperceptíveis. O
chão, quando o barco ainda atracado, se fazia despercebido pela quantidade
de corpos passantes, passadas confusas e apressadas, se constituiu, na saída,
às 11:30, de longos metros de águas fundas, como só o que é sem fundo com
afinco pode ser. O céu espelhando-se também se apresentava agudo em
vigília atenciosa. As expectativas nos olhos atentos observando fundo a
partida. Como se quisessem guardar detalhadamente o que estava sendo o
deslocamento dentro daquela larga umidade escura.

Algumas pessoas já se acomodavam nas redes, outras em pé


observando quietas. Cabelos esvoaçando desfazendo qualquer penteado que
houvesse sido preparado em excitação à viagem. Redes de cores, panos
grosseiros, sutis e remodelados quando deitado um ou mais corpos. Nem o
vento interferiria mais. Relação de comunidade atualizada na saída conjunta
dos corpos em recepção do que a visão os apresentava ao se lhe ver tomando
distância da cidade. Quase anedótico.

O sentimento de aceitação de que afinal a viagem começara apresentava-se


processando-me, como que saudoso por alguma relação criada quando se
estava ainda à espera de sair. A melancolia leve, sem doer e sem maiores
impressões exprimíveis. Quem estava à espreita da viagem tomando a partida
que se estabelecia, chamava outros para partilhar o que se podia ver, só havia
a oportunidade do testemunho.

A água em princípio bem escura, até o encontro que a divide à outra


densidade, visivelmente de pigmentos barrentos e inquietos e de temperatura
mediana. Parecia morna e de movimentação internamente suave.

12
Clarice Lispector, ​Aprendendo a Viver ​[2004], p. 158.
16

Compartilhávamos movimentações próprias desse trajeto específico


naquela água que era recortada pelo senso de direção do barco a ganhar
velocidade. Cores que decompunham quaisquer expectativas de cores
pressupostas. Aquilo que tinha cheiro do que era, e visualidade do que nem no
melhor dos ângulos alcançaria a dimensão necessária para descrição. “Pouco
a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. ”
(LISPECTOR, 1998, p. 41). Minha percepção expandida e em entrega
despercebida de estar testemunha do que também é, e sou, ​corpo vivo​. A
visualidade que se compunha pelo que os olhos podiam alcançar sem
sucumbir em uma cegueira incomensurável por ter visto para além do que
permite, enquanto descansa generosa, para ser observada em minúcias.

A reunião de corpos ali compartilhava o deslizamento rio abaixo. Vagões


preenchidos de cores interpeladas e ​o sutil estranhamento do novo normal.​ O
rio de cor predominantemente barrento, sem fundo ao fim do horizonte. Longe
voavam aves interpostas nas nuvens branquíssimas e contornadas à imagem
desenhada. O céu mantinha-se em vigília, porém agora mais absorto. A
liberdade de ter-se livre sem o desejo previamente acelerado de entender do
que se trata: “ato que é por si só. ” (LISPECTOR, 2004, p. 38). O vento se
espalhava disponível sem muros que nos deixassem órfãos do movimento
aéreo. E não era contemplação sobreposta ao que fito e passo a possuir por
alguma espécie de captura. Tratava-se da relação de desalojamento receptivo;
quem via quem? Para destacar a relação multidirecional entre sujeitos em
contemplação, recorro ao questionamento elaborado por Jacques Derrida em
O Animal que Logo Sou ​quando o autor se indaga dizendo​: “Quando eu brinco
com minha gata, quem é que sabe se ela passa seu tempo comigo mais do
​ alvez esta relação seja semelhante ao
que eu o faço com ela? ” (2002, p. 20)​. T
que Clarice chama de “um desinteresse manso. ” (LISPECTOR, 2004. P. 97).
Não havia teto. Por mais anedótico que possa ser, minhas anotações são feitas
“pela visão de um mundo enorme que parece fazer uma pergunta. ”
(LISPECTOR, 1999, p. 114), eu a respondo alçando voos que não sobressaem
a vivência.

Removidos da estabilidade costumeira, chegaríamos em terra firme


inebriados. Transferindo-me como que em uma passagem entre a noite para o
17

dia, cuidando que não seja abrupta a saída dessa espécie de crônica
confessional, reitero caminhos já perpassados. Penso em Clarice no texto
Conversa Descontraída: 1972​, no qual a autora alude a imagem dos ciclos da
Natureza ao pintar em palavras a cena: “O dia morrendo em noite é um grande
mistério da Natureza. ” (LISPECTOR, 2004, p. 130).

No destino final da viagem era possível perceber a vertigem no corpo em


terra firme; corpo atravessado pelos balanços do percurso. A percepção e o
entendimento do que procede, no campo da percepção analítica imediata, são
objetivos. Há nesses estados de procedências, que ponderaremos aqui como
atualização​, precedências atritando-se no corpo em segmentos imprevistos,
virtuais, de ​complexos ​problemáticos, ​como definiria Pierre Lévy sobre o
conceito de ​virtual no livro ​O que É Virtual? (1996). Complementando o
interesse na relação ​atual/virtual que se desenvolve, parafraseio Lapoujade
(2017), concebendo o pensamento de que todo presente desliza sobre a
existência espasmódica do passado. Manifestações que, pela passagem
corrida de tempo para possíveis observações totalizadas, muitas vezes são
suprimidas nas vivências cotidianas mais imediatas.

Adentrando mais as perspectivas das precedências em potenciais


atuações, trago a ​Fenomenalidade​, conceito do filósofo francês Étienne
Souriau explanado pelo também filósofo francês David Lapoujade em seu livro
As Existências Mínimas (2017). Relaciono esse termo às brechas que são
abertas, no modo cotidiano de contemplação, pela visualização excedendo-se
da imediatez ao fazer contatos mais aproximados para com uma manifestação
Natural, que possibilita, sobretudo, a percepção de novas realidades, que por
sua vez são potências para o corpo relacional no percurso em viagem de barco
pelos rios amazônicos:

Diante de mim, o que aparece são as árvores floridas,


resplandecendo em um fundo de céu claro e plantas altas. Mas o
fenômeno não é nem a árvore, nem o céu, nem a planta, é outra
coisa: “frescor e autoridade dos matizes; cores que se apoiam umas
nas outras, ao mesmo tempo em oposição; desenho patético de um
pequeno buquê de flores, na extremidade de um galho, contra o azul
turquesa do céu”. (LAPOUJADE, 2017, p. 44)

A visualização de um pôr do sol que desliza paulatinamente no horizonte das


águas em penumbra pelo anoitecer amistoso; a recepção no corpo de um
18

espaço-tempo outro que o da convivência urbanística; a imersão do corpo


naquele espaço de ​pertencimento eminentemente vital – imersão segundo
concepções de mergulho de envolvimento existencial com o que se envolve –,
são ainda registros fenomenológicos de manifestações que se produzem
ínfimas, e pouco dissertativas, na relação que se estabelece com a
espaço-temporalidade exposta no trajeto, e que se engendram de forma
singular no ato da ​experiência ​(Larrosa, 2019). São estados de afetação que
não alcançam o relato senão repensado pelo viés do dito inoperante, pois são
“a alma do momento”. (LAPOUJADE, 2017, p. 44), do contrário, se correria o
risco cair na ​fetichização da experiência como nos alerta Jorge Larrosa em
Tremores: Escritos Sobre Experiência ​(2019).

Não é sobre pensar a precedência enquanto a gênese de algo que se


estende para um futuro presente, mas como outra possível linha concernente
ao campo contextual de afetos emergentes no corpo, outra possível linha no
curso temporal. Linhas de entrelaçamento recíproco que se diferenciam no
caráter próprio de visível e invisível, percepção operante e percepção
inoperante etc., que se interpõe ao corpo atravessado por proveniências e
procedências.

A ​Fenomenalidade não efetua menos interferências no que foi


vivenciado, somente possui outro modo de transição que as noções
fenomenológicas, logo que, “aos olhos de Souriau, porém, a fenomenologia
também não consegue apreender a “alma” do fenômeno [...] (LAPOUJADE,
2017, p. 46). Quando posto a vertigem na chegada do corpo em terra firme
após trajetos feitos por rios, se propõe que visualizemos essa virtualidade da
viagem como também manifestação do que compõe o presente do corpo. O
que se efetua no corpo inebriado possui vias de relação com o instante de
balanço do barco ainda em curso. A fenomenalidade está para o virtual, como
a fenomenologia está para o atual.

Segundo descreve o filósofo Éric Alliez em ​Deleuze – Filosofia Virtual​¸


“uma percepção atual rodeia-se de uma nebulosidade de imagens virtuais que
se distribuem sobre circuitos moventes [...]. ” (1996, p. 50). A realidade
espaço-tempo-afetiva que se manifesta no corpo após a vivência do trajeto
feito, é o que procede a existência virtual que circula intensivamente como
19

canal atuante nas atualizações, estando ambas mais para temporalidades que
se esboçam reciprocamente do que se estabelecem em hierarquização. Essa
passagem de temporalidade que se atravessa entre si, se desenvolve, aqui, a
partir de concepções do que acontece na atualização que resguarda
intimamente outras relações de potências atuantes, logo, as virtuais. É sobre
desorganizar uns pontos de vista de ​começos,​ para que outras perspectivas se
mobilizem e retracem realidades.

O estado de vertigem foi perceptível no meu corpo em terra firme após o


término da viagem, porém, é indissociável ao momento do corpo imerso no
trajeto feito nas movimentações da navegação. Ligando-os, corpo, barco e
água, em uma espécie de tríade que não se fecha estruturalmente, contudo
substancializam de forma elementar estados de presenças coexistentes em
terra firme.

Minha narrativa a partir de uma viagem de barco – que traz o possível


das relações que se estabeleceram nas novas articulações
espaço-temporalidades-visuais – se desenvolve a partir de zonas do
empirismo, beirando perplexidades, “já que escrevo tosco e sem ordem. ”
LISPECTOR, 2019, p. 28). Assim explano a relação de realidades que se
correlacionam, intuindo o contato com ​existências mínimas que entrecortam o
campo da convenção perceptiva de realidade imediata.

O exemplo da viagem e as consequentes reverberações disso no corpo,


está aqui traçando aproximações com a dança mobilizada pela palavra de
Clarice Lispector. É possível perceber na relação de ​corpo em tráfego​, o
devir-dança que se envereda pelas partículas trocadas nas vivências. Não se
trata de uma analogia, mas de composições que se aproximam em suas
atuações. Um trajeto traçado, neste caso feito de barco; uma dança mobilizada
​ por isso,
no ato de leitura de uma linguagem nodosa, ​não entendida, e
complementar porque inacabada. São relações estabelecidas por aspectos de
virtualizações e atualizações que se entremeiam por ​blocos de devir, segundo
o pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari em ​Mil Platôs V. 4 (2012).
Para ilustrar essa relação, que não se estabelece por analogia, proponho o
trajeto em curso e a leitura da palavra de Clarice enquanto ​entidade molecular;
​ finalização do trajeto, a instauração da dança atualizada enquanto ​entidade
ea
20

molar. Gilles Deleuze e Félix Guattari abordam a noção de molaridade


escrevendo que, “o que chamamos de entidade molar aqui, por exemplo, é a
mulher enquanto tomada numa máquina dual que a opõe ao homem, enquanto
determinada por sua forma, provida de órgãos e de funções. ” (DELEUZE e
GUATTARI, 2012, p. 71). Já a entidade molecular, concernente às realidades
virtuais, precedentes às atualizações, são o devir-dança ao qual me referi
anteriormente, pois como destacam Deleuze e Guattari (2012, p. 71): “todos os
devires são moleculares.” Em suma, a realização dessa proposta de
aproximações entre realidades traça a importância da abertura perceptiva às
entidades que compõem relações espaço-temporais, para além daquelas
atualizadas e percebidas por noções concretas molares, logo que, “as relações
espaçotemporais não são predicados da coisa, mas dimensões de
multiplicidades. ” (DELEUZE e GUATTARI, 2012, p. 52), e as multiplicidades
potencializam o que pode o corpo, e, segundo Alliez (1996, p. 49), “toda
multiplicidade implica elementos atuais e elementos virtuais”.

Diante dos termos conceituais de Gilles Deleuze e Félix Guattari, ao


trazer o exemplo de uma viagem de barco e suas relações atuais e virtuais
correlacionadas à dança mobilizada pela palavra, vale ressaltar que as
relações molares e moleculares não se desenvolvem sem estarem
correlacionadas, logo que “nenhum devir-molecular escapam de uma formação
molar sem que componentes molares os acompanhem, formando passagens
ou referências perceptíveis para processos imperceptíveis. ” (DELEUZE e
GUATTARI, 2012, p. 110), isto é, as duas entidades não são dualidades que se
excluem automaticamente na presença da outra, interessa-me portanto a
coexistência e alteridades compositivas.

Ao que tudo indica o empirismo trazido ao texto não expõe um padrão


do que é ou não é o trajeto e pós trajeto em uma viagem de barco​, mas levanta
apontamentos sobre estados virtuais que necessitaram vibrar nas pontas dos
dedos, e como bem reflete Clarice Lispector no conto ​Por Enquanto:​ “com a
ponta dos dedos não se brinca. É pela ponta dos dedos que se recebe os
fluidos. ” (2016, p. 561). Como recebo agora os fluídos virtuais da paisagem
ramificando-me em texto e dança. A tentativa exprimível do vivido ​nada
sobrepõe-se ao todo singular, portanto, há mais dentro do que se vê;
21

perspectivas: de forma que nenhuma anula a existência compositiva da outra.


Esse estado de entrecruzamento temporal, atual-virtual, refere-se ao interesse
de ponderar com noções unívocas do que se percebe em reverberações
atualizadas, onde se entende as movimentações acontecendo diretamente
como única manifestação necessária, ignorando assim àquelas sensações de
uma realidade temporal precedente, onde também há existências traçando
meandros por modulações imperceptíveis, porém não menos reais e não
menos atuantes na presença do corpo convivendo o instante atual. Essa noção
da virtualidade compositiva da dança no ato da leitura, coloca em questão as
condições de uma dança estabelecida como tradução coreográfica de
determinado texto, sobretudo pois, “quando refletimos sobre o tempo, de
repente nos damos conta do modo virtual do tempo, que é irredutível ao tempo
marcado por nossos elaborados relógios”, que é irredutível ao tempo que se
escorre nas extremidades corpóreas aguçando subjetividades imanentes a
cada singularidade de dança Butoh que habita o corpo, e “esse corpo e esse
tempo estão sob a fronteira do visível e do invisível” (UNO, 2012, p. 53)., do
dito e do não dito.

A dança que se mobiliza da palavra ocorre pela evasão do sentido


estrito. Esse modo de se relacionar à interpretação, menos estabelecida por
interesses condutores à determinada ideia prévia é uma preciosidade do
Butoh. Essa imprevisibilidade da dança Butoh foi uma das primeiras noções
que se desenharam nas incipientes experimentações práticas realizadas neste
estudo. Isso pois, quando havia o interesse de dançar, quase que
ilustrativamente as sensações suscitadas pelos sentidos que Clarice exprimia,
a perda das potências do instante era ferrenha. Fui percebendo as realidades
precedentes latentes ao que se agenciava em atualizações movimentadas no
espaço, em suma, “a dança estava por ser descoberta, por ser encontrada,
talvez reencontrada ou reinventada […]”. (UNO, 2012, p. 43), menos que a
partir de aspectos coreografantes – entendendo, neste caso, a coreografia
enquanto uma estruturante dos movimentos na dança.

Não é o agenciamento extensivo que festeja ondulações virtuais


acontecidas no corpo, mas os movimentos de afetos intensivos que
comemoram dançados a relação que se desmembra, ou seja, não é – somente
22

– o corpo submerso no mergulho que pode enunciar ativamente sobre o ato de


mergulhar, mas o que compõe, junto ao corpo, o momento que
antecede-entrecruza o ato de mergulhar. A imersão virtual do corpo no ato.
Segundo Alliez (1996, p. 53), “a percepção atual tem sua própria lembrança
como uma espécie de duplo imediato, consecutivo ou mesmo simultâneo”. O
sujeito que compõe o instante junto ao espaço, junto à incidência de luz, junto
ao vento, junto à presença do presente que produz, e demais existências, atua
como testemunha nos desdobramentos que se interpelam entre as forças
atuais e virtuais. Refiro-me a isso, à correlação compositiva, ao pensar no
modo como a leitura de Clarice se desprende de zonas contemplativas da
palavra para experimentar zonas do inacabamento, como promoções de
multiplicidades do corpo ao contato com uma linguagem relacional. Este
mergulho virtual que antecede a concretude do ato esboça-se aqui como pista
dessa dança a desenvolver-se nos escritos seguintes. Para Alliez (1996, p. 49),
“todo atual rodeia-se de uma névoa de imagens virtuais. ” A névoa virtual
chamo aqui, também – já pode ser–, de dança.

A vertigem do corpo após encontrar-se em plano estável, terra firme,


conversa com a relação de dança que desliza no espaço-temporalidade em
que está inserida, porém, sua atualização no momento está imbuída de
virtualidades dispersadas pelo corpo e tempos precedentes. O estado de dança
aqui intui pontos de vista abrangendo o que se instaura no corpo antes mesmo
de mover-se em dança visível, aquela que virá a ser percebida por quem
observa o gerir externo – não entrando em parâmetros de dança coreografada
ou de cunho experimental. Não se trata de uma abordagem que se desenrola a
partir de atos da memória, sobretudo pois a dança está em vias de devir pela
palavra do dito inacabado. É o que Deleuze e Guattari chamam de antítese da
relação: “O devir é uma antimemória. Sem dúvida há uma memória molecular,
mas como fator de integração a um sistema molar ou majoritário” (DELEUZE e
GUATTARI, 2012, p. 96). Diante disso, nota-se que a virtualidade que me
potencializa os impulsos vibratórios de dançar Butoh, se dá a partir de zonas
de afetação na palavra de Clarice Lispector.

Não se trata de desinteresse em ler começos ou fins, mas de abordar


aqui as continuações, o trilho que virtualmente expõe o trem. Se já passou ou
23

passará é apenas uma questão de disponibilizar-se às incertezas, esperar


atencioso o decorrer incógnito do tempo, projetando nisso o pensamento de
que “não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível
de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada. ” (LISPECTOR,
Clarice, 2019, p. 37).

O estado é menos de inspiração do que de ​crença​. Crença no potencial


do indizível que ​dança e abre outros modos de movências espaço-temporais.
Crença no intangível que tangencia a criação de mundos. Interessa-me a
observação da flor úmida de chuva, com um ponto transparente em sua ponta
prestes a cair. A composição é toda heterogênea, e sei que há nessas imagens
algo prestes a me tomar de uma vida contida. O que vejo é mais do que
resquícios de chuva suficiente.

Acredito na incompreensão de Clarice Lispector não como uma crença


exclusiva no que não entendo, mas a crença que não vigia-me visando com
isso uma penalidade. Minha maior penalidade seria entender e concluir com
isso um pensamento enfim. “Não sei o que estou querendo dizer com isso:
confio na minha incompreensão, que tem me dado vida instintiva e intuitiva,
enquanto que a chamada compreensão é tão limitada. ” (LISPECTOR, 2004,
153). Quando não entendo, não resigno uma atuação cognitiva, não a sucumbo
inerte ao sem-fim das incompreensões, mas, possibilito que corporeidades
leiam os sentidos imprimidos. Explicitar as incompreensões é como vestir um
corpo desnudo que não pediu que lhes cobrisse as coragens. É intempestivo
não compreender e intuir dizer isso por compreensões.

Não danço o que Clarice redige, o que gramaticalmente constrói e


reúne. Danço o que leio intimamente quando possível, o que ela diz nos seus
estados implícitos, o que me captura vertiginosamente nos sentidos
incompreensíveis. Danço meus fracassos interpretativos que dão espaço às
zonas onde percebo o Butoh em vias da emoção. Dançar inebriando pela
crença, que não religiosa, mas própria ao que se crê. Acredito nessa dança
não porque a vejo, ou porque a agencio em transições em um espaço, mas
porque a sinto, e sou atravessado quando as existências da palavra se
oportunizam.
24

É como uma dança que antes de externar-se, antes de ser visualmente


dança, acontece nas modulações virtuais. As realidades imperceptíveis que os
escritos potencializam perceber, o corpo como testemunha da palavra
inacabada, concebendo-se com isso a coexistência das manifestações –
atuais, virtuais, virtuais, atuais – nas quais a dança segue conduzindo-se a
estados múltiplos de verdades existentes no Butoh, como diz Kazuo citado por
Éden Peretta: “Existe verdade mesmo em uma pedra. ” (OHNO apud
PERETTA, 2015, p. 135). A verdade está na pedra porque ali não se instaurou
somente a atualidade, mas precedências que a contornam, a retraçam, e, se
possível, até a furam. A verdade das realidades é possível ao corpo poroso.
Nas linhas perceptíveis excedidas, rumo aos imperceptíveis redistribuídos pelo
não entendimento que Clarice vivência e faz vivenciar como
vida-pesquisador-corpo-alma.

A vastidão do dito está no que não entendo. A retirada do corpo do


tempo cotidiano e usual para a presença nos estados despropositados e
despropositantes, inúteis ao desejo descritivo e causal, onde a materialidade
decanta dos julgamentos que são de costume, para efetivamente - e por que
não também afetivamente - deixar-se ser.

Escrever sobre o que se apresenta potencialmente no mistério da


vivência, por exemplo, é tomar posse de um destino que não se apresenta
como nosso, mas que constantemente está no movimento de. Salvá-lo é
escolher salvar-se através do próprio ato de salvação. Enquanto dançarino,
busco linhas de fuga que redistribuam pontos da organização prevista na vida
expressiva, em deslizes e tombos frente às incertezas. É nas incertezas que
encontro cura dos ​bolbões sociais,​ como se refere Antonin Artaud em ​O teatro
e a Peste (2006). São incertezas imbuídas no dito que não pressupõe
interpretações imediatas e nem pressupõe da dança harmoniosas coreografias
traçadas e retraçadas por uma técnica estabelecida.

A relação da palavra em vias de devir dança aparece aqui pelo viés de


uma ​dança mobilizada,​ que vem se gesticulando ao que se desenvolveu nos
dizeres até este dado momento. Esse conceito de dança possui convivência
tocante com o que foi dito anteriormente sobre a dialógica indispensável da
precedência e da procedência, ponderando com pressuposições e
25

sobreposições que negligenciam envolvimentos de alteridade nas relações,


especificamente da relação, aqui sugerida, por corpo-leitura-que-lê-e-é-lido.

A leitura suscita sensações corpóreas, percepções sonoro-visuais e


ter-se testemunha do ambiente de situação da leitura. Isso a partir do sentido
redistribuído para outros modos de atuação de sentido. Compõe-se assim
paisagens possíveis para o rabiscar dos pés, partindo de processos que David
Lapoujade denomina por ​atribuir alma aos imperceptíveis possibilitados pela
percepção atenta​: “Atribuir uma alma é aumentar uma existência; é a
generosidade de leitura, da visão, da emoção de ver mais ou com mais
intensidade, de ver, em certas realidades, a presença de uma alma. ”
(LAPOUJADE, 2017, P. 69). A intensidade perceptiva ocorre-me enquanto
dançarino no ato de encontro às palavras que margeiam a impossibilidade do
dito explícito em si. Há nessa relação dimensões da dança Butoh, dos modos
de mover-se a partir dos ecos que Clarice faz ressoar em seus textos, como no
romance ​A Maçã no Escuro:

Foi então que levantou a cabeça e fitou o ar com alguma intensidade.


É que alguma coisa branda a insidiosa se misturara a seu sangue, e
ela se lembrou de como se falava de amor como de um veneno, e
concordou submissa. Era alguma coisa adocicada e cheia de mal
estar. Que ela, conivente, reconheceu com suavidade supliciada
como uma mulher que apertando os dentes reconhece com altivez o
primeiro sinal de que a criança vai nascer. (LISPECTOR, 1999, p. 87)

Quando li essa trecho pela primeira vez, o grifei, na tentativa de alguma forma
me assegurar naquilo que dali eu recebia – sem saber o quê. Fui tomado por
uma narrativa que não me demonstrava nada, não me concluía. As
ressonâncias desse texto abarcam leituras que reivindicam estados corpóreos,
sobretudo por enveredar-se pelos desconhecimentos de uma explanação que
não se responsabiliza senão pelo que se imprime. Essa leitura caminhou no
meu corpo aguçando mobilizações virtuais. Como incompreensões vibrando às
corporeidades, após excederem no pensamento lógico. Uno (2012, p. 53) nos
diz que “há uma dimensão que só o corpo pode captar”, e isso está imbricado
nessa leitura compositiva de dança.

Uma das importâncias ao explanar as virtualidades enquanto modos de


atuação da dança Butoh, e estabelecer as precedências de um evento como
zona indispensável, faz atritar noções técnicas que subsidiariam uma dança,
26

porém não exatamente a dança Butoh. Isso pois, desde o seu nascimento no
final dos anos de 1950, o Butoh já parte de desmistificações a respeito de uma
dança pautada em aspectos estritos de como realizá-la. O Butoh é uma dança
contemporânea japonesa criada especialmente por Tatsumi Hijikata
(1928-1986) e Kazuo Ohno (1906-2010). Ambos traçaram perspectivas sobre o
Butoh que redistribuíam noções estéticas, temporais, discursivas e das fontes
onde iriam beber os dançarinos e dançarinas – butoístas, segundo Baiocchi
(1995, p. 19). Para Hijikata sua dança nascia da lama, para Ohno sua dança
nascia da relação do útero materno, o útero materno era o chão onde ele
dançava (Peretta, 2015). Tatsumi e Kazuo se conhecem em meados de 1949,
construindo uma parceria que duraria por volta de 10 anos segundo estudos
realizados por Éden Peretta em sua obra ​O Soldado Nu​ (2015).
Segundo Peretta,
Tatsumi Hijikata formulou um projeto político-artístico de ruptura com
os valores contemporâneos, instituindo uma nova concepção de
dança que tinha como fundamento poético a parte decrépita e
anômala da sociedade. O seu projeto corêutico absorvia a
marginalidade obscura repudiada pelas estruturas de poder para
contrapor-se aos paradigmas de um coletivo social conservador
japonês […] (PERETTA, 2015, p. 86).
Já Kazuo Ohno possuía outras noções prático-teórico-instintivas ao conceber a
dança Butoh. Para ele, a dança era “como uma experiência de geração da
vida. ” (PERETTA, 2015, p. 112). A relação cristã, “que não deve ser
interpretada a partir dos paradigmas de um cristianismo puramente ocidental. ”
(PERETTA, 2015, p. 112), a relação com a presença de sua mãe em seu
corpo, a flor como potencial âmbito de tomadas afetivas (Peretta, 2015), entre
outras manifestações que o possibilitavam leituras de mundos menos pelo viés
da metodologia concisa. Sobre a dança de Kazuo, Peretta (2015, p. 124) cita
que “a sua dança apresenta-se fundamentalmente como um modo de
agradecer e contar à própria mãe a sua tentativa de colocar em ato todo
sofrimento pelo qual ela passou para poder gerá-lo.” Ambas as, breve,
colocações feitas a partir das práticas que foram realizadas pelos precursores
do Butoh apontam ausências técnicas em exercer esse ​fazer-sendo​, pois um
dos princípios que rege o Butoh, desde o nascimento e, presente em muitos
relatos, retalhos, registros deixados por Kazuo e Tatsumi, parte de práticas que
se formulem e se reformulem conforme as necessidades impregnadas no
corpo.
27

A respeito da técnica no Butoh, Maura Baiocchi reitera:


Técnica? Hijikata dançava como se fosse a encarnação dos “deuses
na terra”. Desafiava os seus sentimentos humanos mais apurados,
que tinham sido abandonados e suprimidos no meio do processo
irracional de implantação da estandardização da razão, da
consciência e de todos os aspectos da vida (leia-se americanização)
no Japão e em todo o resto do mundo. (BAIOCCHI 1995, p. 23)
A técnica trazida aqui se baseia no interesse em ponderar de antemão
expectativas de construções metodológicas sobre ler Clarice Lispector e
perceber nisso relações de dança mobilizando-se. No entanto, não se trata em
si de destruição ou abdicação integral das possíveis perspectivas técnicas,
sobretudo pois, como cita Uno (2018, p. 112), “a técnica é indispensável, mas o
butô não poderia jamais ser reduzido à questão de um conjunto de técnicas. ”
Dentro das aproximações que constroem zonas relacionais entre a palavra e a
dança, há sempre modos com os quais os agenciamentos conduzir-se-ão nas
práticas, se metodologias, pedagogias e/ou articulações visando uma
estruturação prévia, no entanto, também há sempre a possibilidade de se
seguir linhas de fuga que determinados meandros requeiram​13​. Dito isso, a
partir de entendimentos sobre a técnica no âmbito do Butoh, situa-se de que os
campos da experimentação, vivência ​e(m) coexistência espaço-temporal e
aberturas às manifestações imbricadas no entrelaçamento do corpo
lendo-palavra-aguçando-dança, são vias onde há a manutenção e
potencialização de um ​pluralismo ontológico​14 ​- expressão citada por Félix
Guattari em conversa com Kuniichi Uno no livro ​Confrontações​ (2016).

O Butoh é uma manifestação que se enuncia pela própria evasão de


sentido (Baiocchi, 1995), o que o torna impossível de ser penetrado por fluidos
em homogênese, sobretudo intuitos maçantes, de pouca ambivalência.
Entender esses aspectos, na prática, se deram pela recepção disponível de
que, em determinada experimentação, meu papel não era o de conduzir um tal
objeto de estudo a suas respostas e conclusões, mas possibilitar o vir à tona
13
Sobre isso me refiro ao que tenho feito durante estudos práticos, concebendo a esses instantes a
necessidade que percebo deles. Não mais me posiciono enquanto quem quer uma dança, enquanto
quem possui um texto, um trecho, uma sensação, uma emoção que precisa ser dançada.
14
O ​pluralismo ontológico é uma expressão utilizada por Félix Guattari em conversa com Kuniichi Uno
em ​Confrontações,​ livro que que também apresenta conversações com Laymert Garcia dos Santos.
Trata-se da perspectiva de que não há um Ser, “dado de uma vez por todas, que atravesse os entes:
existe produção ontológica através dos universos de referência, das práticas sociais, analíticas, estéticas.
” (GUATTARI, 2016, p. 102). Esse ponto de vista contempla a visualização da dialógica Clarice e Butoh
sem que por meios de controle e condução, visto que as manifestações imanentes não são dadas de
antemão por uma noção unívoca.
28

das realidades virtuais que compunham mobilizações de dança nas sensações,


emoções e vontades suscitadas nos ditos clariceanos, concebendo com isso a
potencialização dos virtuais, da dança que se descobre, que se conhece nos
estudos práticos.

Neste estudo, “é possível que eu lhe devolve uma Lispector que para
você é completamente estrangeira. ” (UNO, 2012, p. 51), no entanto, não
haveria chances de conceber Clarice e Butoh senão pelo viés de “ficar o dito
pelo não dito” (GULLAR, 2015, p. 553). São silêncios que de tão profundos e
inaudíveis ecoam quase materiais. O fato de não concluírem-se matéria é a
própria matéria desse estudo. Isso pressupõe cuidado, atenção, ética. E como
é vertiginoso!, pois, “ao tentar explicar essas coisas, o sentido escapa. ”
(OHNO, 2016, p 60). É ínfimo, imperceptível, e move substancialmente mundos
e modos de mover-se.

Paisagens textuais

Quando me refiro à dança virtualizada, é entendendo-a enquanto modo


de redistribuir o processamento palavra-sentidos-aguçando-dança. Buscando o
cuidado de não estabelecer justaposições que hierarquizam uma em relação à
outra, percebo que em âmbito prático a relação entre elas se dá mais pelo
entrecruzamento nodoso do que por encaminhamentos que apontam uma
direção. Tenho pensado práticas que me possibilitem traçar modos,
perspectivas, onde esteja presente a imprevisibilidade inerente, concernente ao
Butoh e Clarice Lispector. Essa presença imprevisível reflete vivências que não
cerceiam o contato do corpo com as palavras clariceanas, pelo viés de
interpretá-las na dança, tampouco ignoram o fato de que“algo está sempre por
acontecer. O imprevisto me fascina”. (LISPECTOR, 2004, p. 154). Busco assim
acessos e não exatamente uma proposição estritamente metodológica. Dito
isso, falarei das ​paisagens textuais.​

Há nos escritos de Clarice, instantes da palavra em que se pode


perceber a presença de visualizações categoricamente envolvidas por
enunciações ​harmonicamente conflitantes – e confidentes.​ O sentimento que
Clarice faz “vibrar no próprio corpo da frase. ” (PRADO JR., 1989, p. 21). Essas
29

enunciações são um dos modos pelos quais Clarice possibilita que o leitor
perca suas garantias e possa, como em práticas busco tateando,
desvencilhar-se de concepções estratificadas. Ou seja, as paisagens textuais
deste movimento de práticas, destaca modos enunciativos onde se percebe
irrupções, ou mesmo ​harmonias conflitantes,​ de sentidos prévios, isto é,
sentidos que dialogam, menos que conservam promoções de conversa.

Quando experimentei​15 a partir do interesse nas paisagens textuais, fui


primeiramente ano texto ​Silêncio​, presente no livro ​Onde Estivestes de Noite.​ A
partir dele fiz alguns destaques:

“É tão vasto o silêncio da noite na montanha. É tão despovoado.”

“Silêncio tão grande que o desespero tem pudor.”

“Desse silêncio sem lembrança de palavras.”

Dentre rabiscos feitos, esses foram alguns destaques ocorridos durante


a leitura para o experimento prático. A percepção de que nos escritos de
Lispector havia essa potencialidade reflexiva foi compositiva ao ato de leitura
que não finalizava no que se apresentava textualmente, ou seja, por vezes eu
percebia que alguns modos de explanar uma visualização, um desejo, sentido,
​ qual se
emoção, se compunha dedilhando um dito que não totalizava a ​coisa a
referia. Quando isso se apresenta como uma possibilidade discursiva evadindo
determinada prática de dança, a forma de relacioná-las não precisa pressupor
uma evocação do movimento a partir de sentidos estritos, pois, as palavras que
Clarice utiliza para compor suas exposições “são tão importantes quanto o
silêncio e o vazio que entre elas se interpõem” (PERETTA, 2016, p. 253), e é
desses silêncios e desses vazios que se constroem os campos de vastidão
e(m) possibilidades do Butoh irromper.

15
As experimentações práticas estão sendo realizadas desde 2019/2 quando ingresso no mestrado.
Conforme a pesquisa foi se desmembrando e alçando outros voos que os pensados a princípio, fui
adentrando modos e metodologias que expunham caminhos menos de controle e previsibilidade. Há
anotações, registros em vídeos e fotografias, tudo feito dentro dos limites de estar sozinho e sala. Após
realizações práticas, análises revendo os materiais produzidos, conversas em orientações com a profa.
Dra. Bianca Scliar, minha orientadora atenciosa, fui notando que a potência de pensar Clarice Lispector e
Butoh não partia de dançar um texto, mas antes ir percebendo como ocorre os estados de ser dançado
por ele. No link a seguir, trago um experimento que me ocorrem as mobilizações da dança Butoh
durante a leitura de ​A Maçã no Escuro (1999), de Clarice Lispector:
https://www.youtube.com/watch?v=tCw49Q-XOJQ&t=136s​. Os registros de práticas estarão mais
presentes no capítulo ​Dança Crível e Incriável​.
30

Para elucidar essa mobilização ocorrida entre a literatura de Clarice e a


dança Butoh, ponderando uma estruturante linear e hierárquica, parto, para
esse momento, do pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari (2012) sobre
​ u seja, “não é apenas o vivo que passa
meios que não são unitários, o
constantemente de um meio para o outro, são os meios que passam um no
outro, essencialmente comunicantes. ” (DELEUZE e GUATTARI, 2012, p. 125).
Isto é, através da busca por uma integrativa relação, é preciso que se ​transite –
transite-se – por estratégias de acesso. Uma das que tenho invocado é a
abertura às paisagens textuais durante a leitura, entendendo-as como
modulações coreográficas imprevisíveis.​ As paisagens textuais esboçam-se no
contato com minúcias presentes no texto, que por sua vez, estão concernentes
ao pensamento de Clarice, quando redigido, não reificar o que o impulsionou.
Quando Clarice cita sobre Martim, personagem do romance ​A Maçã no Escuro,​
que “por dentro ele era um homem de compreensão lenta, o que no fundo é
uma paciência” (LISPECTOR, 1999, p. 91), ela esboça, em meu corpo-leitor,
movências pelo que leio e gosto porque me foi levado antes que eu o
possuísse. Clarice continua dissertando sobre Martim dizendo que ele era um
“um homem com um modo de pensar atrapalhado que às vezes, num sorriso
embaraçado de criança, se sentia intimidade pela própria estupidez, como se
ele não merecesse tanto. ” A dança Butoh está na nessa estupidez do
personagem, da autora, do corpo que lê construindo o que lê, não recebendo
prontamente o lido foi.

O exercício realizado através do ​Silêncio deu-se por leituras do texto,


traçando esse ato não no interesse de entender os discursos articulados ali
presentes, mas ​ler aquele instante​. A recepção das paisagens textuais não
ocorreram por escolhas de trechos com sentidos fugidios, mas em instantes
onde o processo cognitivo descentralizava-se e, alcançava-se com isso,
campos mais vastos dos sentidos das palavras. No instante da leitura, é menos
conflituoso lidar com as relações de sentidos que ali se esboçam, pois, se trata
de ler por estados em que menos se busca possuir o texto através de
entendê-lo. Como Clarice evoca em uma citação mais à frente, trata-se de ler
com um precioso ​desinteresse manso​. Os agenciamentos da dança se
entrelaçam aos passos do corpo imbuindo-se das paisagens remontando-o
31

como um quebra-cabeça de imagens ocultas. As impalpabilidades do texto,


abrem espaço-vivo para que se reivindique movimentos no Butoh, menos que
fazê-los.

Figura 1- Escritos e(m) estudos práticos. Acervo Pessoal.

Após a reunião das paisagens textuais, descansando atenciosamente


diante delas, busquei entender se deveria trazer a materialidade do peso da
vastidão do silêncio para meu corpo como modo de encaminhar ao âmbito
concreto a uma dança que tangenciasse aquela leitura.

​ alavra, de
Para Kazuo Ohno, segundo o texto ​A Dança Entre Carne e a P
Éden Peretta presente no livro ​Treino e(m) Poema (​ 2016), “as palavras sempre
se ofereceram antes como um trampolim do que como uma prisão, isto é, mais
como algo que impulsiona o voo livre do que algo que possa limitar a
experiência subjetiva. ” (OHNO, 2010, p. 241). Quando ocorre o
disponibilizar-se às paisagens textuais, no intuito de deixar que o corpo as
receba não como um discurso coreográfico, ou que precise ser coreografado,
mas mais pela afetação àquelas sensações e sentidos, é necessário renunciar
simulações recorrentes. Com isso, algumas questões como: “de onde parto? ”,
ou, “o que faço da palavra? ”, me ocorreram. Acontece que por não se tratar de
um interesse em configurar uma organização. Eu não busco palavras, sentidos
e emoções num texto para então dançá-los. Há existências que germinam no
encontro entre a palavra e a dança, mas que são pouco exprimíveis. Não
exatamente se trata de dizer onde uma manifestação começa e segue
32

produzindo existência à outra, mas propor buracos que possam tê-las –


palavra-dança – menos por um viés conclusivo do que pela realização de
interpelações. Parti da palavra, das paisagens que dela surgiam, porém é
limítrofe o instante em que ocorre a transição de uma atualização – texto em si
– ao estado virtualizado – sentidos sucumbindo garantias.

O que me ocorreu então nas práticas das paisagens textuais foi a


recepção das paisagens presentes no ​Silêncio,​ no interesse de buscar espaço
de pausa na leitura e possibilidades através de oportunizar o relacionar-se às
incompreensões do texto. Pus-me de pé e, após um tempo parado,
perpassando sensações e contatos tidos com o material lido, tracei
movimentos fora de uma lógica que propusesse uma realização, mas mais a
irrealização do texto lido. A busca é sempre de fracassar a resultante, para que
os percursos tomados não se linearizem em si. Acontece que um percurso
linear é sempre possível e presente, a sua manifestação é uma contraproposta
recorrente, logo, intuir modulações desterritorializadas não pressupõe a
exclusão das territorializações, mas jogar com mais perspectivas que as
previsíveis.

Para dançar no campo da imprevisibilidade era necessário entregar-me


aos meios. A territorialização, segundo o pensamento de Deleuze e Guattari
(2012), produz-se organizando os meios, sendo estes o lugar onde posturas
rítmicas menos deliberadas encontram-se em modulações caóticas. O caos é
justamente a produção dos meios em comunicação, dos ritmos constituindo-se
um no outro, em processo de ​transdução, ​processos onde o princípio do
movimento, da dança Butoh no ato de experimentá-la, se torna uma questão
conflituosa.

O instante de ​começar a dançar,​ enquanto atualização do ato em


movimento, é fundamental para toda a pesquisa. Uma questão que vai,
especula-se, retorna, mais nodosa ou levemente confusa ainda. No entanto,
independente de qual for seu estado, é matéria produtora de horizontes. Falar
sobre esse ​começo,​ onde ​saio da leitura para traçar agenciamentos
reverberados, entrecruzados, atravessados pelas palavras é, diria, dispensável.
O que é crucial mesmo são as tentativas de estar rumo aos começos que só
dizem respeito ao instante em que se move à determinada fragmentação do
33

dito. O começo aqui referir-se-ia a uma manifestação já iniciada


precedentemente, na virtualidade do evento atual. “É que o começo não
começa senão entre dois, ​intermezzo​” (DELEUZE e GUATTARI, 2012, p. 148).
Trata-se de propiciar outros modos de nos relacionarmos com os princípios que
não seguindo a visualização de dado ponto em vias de desenvolvimento como
manifestação inicial, mas notando a “acomodação de intervalos​” (DELEUZE e
GUATTARI, 2012, p. 148) como horizonte do mover-se.
Porém, em âmbito prático, as formulações são outras. Os estados
incipientes são sempre experimentados, possuem, tão disponíveis quanto
possíveis, canais de manutenção dos afetos, um destes pode ser a escrita.
Segundo Gilles Deleuze
“Escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma
matéria vivida. A literatura está antes do lado do informe, ou do
inacabado [...]. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que
atravessa o vivível e o vivido. (DELEUZE, 1997, p. 11)

É imprescindível falar de palavra e dança sem falar, ainda que


brevemente, do ato da escrita, sendo esta uma das potenciais correlações
concernentes às pontes que interligam a dialógica deste estudo. Quando penso
em uma experiência do texto, nela se estão imbricadas construções
perceptivas aguçadas pelo texto, me possibilitando assim, enquanto quem
também se envereda pela escrita, perceber os caminhos que ali potencializam
a palavra, tanto lida para fora dos alicerces de sentidos interpretativos estritos,
quanto a palavra escrita como meio de ​restauração das subjetividades
(Guattari, 2012) e manutenção do Butoh que meu corpo carrega. Entendendo,
com isso, que determinada reunião de palavras comuns, me suscitam sentidos
incomuns, e um dos modos que essa relação se instaura na dança é através
da escrita, e “não é metáfora. A escrita se pratica como a dança, a dança pode
se fazer como ato de escrever” (UNO, 2018, p. 49). As paisagens textuais
produzem estados afetivos, concernentes ao ato da dança, mas também do
exprimir-se em palavras escritas. Escrever esse exercício já me é um guerrear
onde somente ataco-me e me defendo através do que se escreve. Confesso,
“se eu pudesse, deixava meu lugar nesta página em branco: cheio do maior
silêncio. E cada um que olhasse o espaço em branco, o encheria com seus
próprios desejos. ” (LISPECTOR, 2004, p. 157). Implicitamente é isso que
esboço, paulatinamente redescobrindo trechos de mim.
34

Figura 2 - Questionamento prático. Acervo Pessoal.

Um outro momento em que citarei as paisagens textuais em produção


de novos experimentos e explorações do corpo, encontrando palavras
implícitas, é a partir do seguinte trecho, presente no romance ​A Maçã no
Escuro:

As raízes eram grossas e cheirosas naquele fim de tarde – e


provocavam em Martim uma inexplicável fúria de corpo como um
amor indistinto. Faminto que estava, os cheiros o excitavam como a
um cachorro esperançoso. A terra, numa promessa de doçura e
submissão, parecia friável – e Martim, aparentemente sem outra
intenção que a do contato, abaixou-se quase sem interromper os
passos e tocou-a um instante com os dedos. (LISPECTOR, 1999, p.
58).

Esse instante na leitura me concedeu o acesso a momentos transitavam


virtualizados no corpo, de quando cuidando do jardim, regando os vasos, me
ocorre, no escorrer da água pela terra seca rumo ao fundo vazado, o cheiro
úmido do que era a sede. Com isso, escrevo o seguinte texto:

Me é urgente o cheiro da água descendo vívida no vaso


de terra seca. É olfativamente crucial testemunhar essa
manifestação de água molhando como em silenciosos e
vastos cortes um chão desértico. Sinto através do vaso
estarrecido o cheiro de onde nunca estive, reivindico o
que nunca pude assistir; chuva no deserto. Não poderia
guardar somente a mim essa grande glória: sentir o cheiro
da água umedecendo a terra em misericórdia de sede
cotidiana.

O vaso quieto, em resguardo das raízes que o reformam,


está disponível aos raios de sol em impiedosa atenção
35

àquela existência – de vaso. Tudo acontece sem maiores


alarmes, e preciso partir deste estado para expressar o
que é. É que o cheiro da terra se sedimentando na secura
é um estado íntimo, e a mim que sou testemunha, me
cabe falar sentindo o cheiro para que minhas palavras
possam molhar – como possível – esse espaço em
branco que se pressupõe expressão.

O vaso, em sua observação de tartaruga que só cabe a si


mesmo saber da realidade interna de seu casco e nem
por isso observa menos seu exterior, o vaso, se observa,
é pouco. O trabalho maior está em acomodar as raízes
infindáveis. Estas, emaranhando-se por vias
desconhecidas, estão disponíveis ao grande poder que
mesmo de longe esquenta-nos a ponto de secura fatal. O
que pode o vaso senão propor ao grande calor divino sua
mudez úmida de vaso? O que pode o vaso senão
despir-se de sua prévia missão e expor as raízes a
grande morte interna e lenta que é a sede? Também é
palatável sentir imperceptivelmente como a vida acontece
inevitável.

Há vertigem em sentir o disperso cheiro da secura


despindo-se, uma espécie de desconhecer-se de si
através de novas realidades imprevistas. Eu não pedi que
o cheiro molhasse minha secura pessoal. Me sinto
ressoando os ruídos de uma terra agora menos sedenta
de umidade. Qualquer simples ato pode ser fatal se por
descuido e desatenção, a vida se apresentar crua, úmida
e simples. Há obscenidade nisso, suponho. Há
manifestações nesses instantes e são tão precedentes
que mal reconheço meus batimentos cardíacos em uma
espécie humana capaz de conceber uma descrição sobre
sentir o cheiro do que é molhar-se sem pudor e
desconfiança.
36

O mais antigo de mim tem-se fisgado como um distraído


peixe que captura sem maiores esforços a minhoca
perfurada e submersa. Nem era fome sua necessidade
ali. Foi puro deslumbre de vaidade em exercer a
simulação de um estado famélico, sobretudo concernente
somente a peixes e minhocas encontrando-se enfim. Às
vezes morre-se por descuidado vaidoso em que não se vê
mais, senão, pela realidade criada.

Ai! Me dói esse cheiro. Me sinto perturbado. Quando não


posso. Tenho prazos e entregas a fazer, mas me ocorre
urgentemente falar diante do cheiro, melhor do que
expressá-lo, é senti-lo. Mas é produção de fome também.
Não tenho tido substrato para tal necessidade. Me ocorre
de ir agora, no instante desses escritos desejos – de
profundos estados instintivamente primitivos – ir agora
molhar enfim aquela terra quieta em secura, para com
isso saber que estou vivo internamente, mas não quero
simular o que só possui vida quando assumo a gloriosa
gratuidade. Acho que a incidência do sol em mim tem se
mantido permanente. A relva amarela-se à falta de chuvas
suficientes e receber a vida pelo nariz é a maior e mais
crucial redundância de quem é tomado por cheiros
úmidos.

Acontece que Clarice não inspira a escrita, a dança, as criações em


determinados desejos expressivos. Clarice não nos diz palavras belas,
graciosamente articuladas, que demandem fruição e modestas reflexões, ou
até mesmo pode ocorrer todas essas, mas, falando daqui, Clarice expressa o
amor à vida. Amor à vida fugidia se posta sobre atenção mecânica, sobre
interesses altamente justificados, se só concernente a possíveis. Ao amor que
falo é sobre o outro, o que não se sabe tampouco se entende, sobre o meu
obsoleto, mas não obstante inexistente. O outro cheiro, o outro gente, o outro
experienciando uma morte esmagada fazendo-me acessar mortes primitivas de
mim. Clarice diz: “meu caminho não sou eu, é o outro, é os outros. Quando eu
37

puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de
chegada” (LISPECTOR, 2004, p. 66). Por isso ela também diz que escrever é
“uma maldição, mas uma maldição que salva” (LISPECTOR, 2004, p. 179).
Sentir o outro é uma maldição porque sair de si causa desconforto, e salva pois
faz da vida mais vivível que somente tê-la aqui como condição. Clarice expõe a
mim a vida da qual me querem fazer não acessar, porque envolve entrega,
presença, e aceitação do que miseravelmente possui esplendor, se tocado pela
incompreensão. Enquanto dançarino e coreógrafo, me afasto da análise sobre
suas construções linguísticas para entregar-me aos estudos do que está
fisgando meu corpo pela construção do que Clarice chama de ​sensibilidade
inteligente (LISPECTOR, 2004, p. 47). Há tanto nela sobre amor – digo isto,
receoso, sobretudo pelo perigo de cair em leituras piegas do amor romântico –
que Clarice confidencia: “Sou uma pessoa que tem um coração que por vezes
percebe, sou uma pessoa que pretendeu pôr em palavras um mundo
ininteligível e um mundo impalpável. ” (LISPECTOR, 2004, p. 47). F​ez, através
disso, com que aberturas de novas realidades demandassem vida, da vida
cotidiana, e urgências do corpo reconhecendo-se na crueza que se lhe expõe.

As paisagens textuais estão imbuídas nessas percepções porque


demandam de meu corpo noções práticas e menos interpretativas do que leio,
é como se só o instante da relação na leitura valesse um mundo todo. E nele
há espaço para o Butoh. As paisagens não formam uma visualização a se
seguir, mas fundamentalmente apresentam uma visão turva, guiando-se por
uma mão que puxa o corpo somente pelas forças geradas, partindo do
pressuposto de que “a compreensão mal medida é aniquiladora”, (CIXOUS,
2019, p. 144), e a incompreensão, no Butoh que rege esse corpo, é uma
vitalidade. É sempre dificultoso trazer à tona da palavra, descrever como
seriam as ​paisagens textuais nos experimentos que tenho traçado até aqui.
Talvez esse não seja o nome, talvez haja alguma proximidade ainda não
acessada. É um modo dos tanto que se distribuem dentro dos esboços
traçados entre Lispector e Butoh. “Parece-me então impensável falar
cerebralmente dos textos de Clarice quando ela deseja antes de tudo a
receptividade. ” (VARIN, 1989, p. 56). E essa receptividade que está
concernente nas ​paisagens-sentimentextuais​, quando não concebo uma
38

narrativa que me facilita a dança, mas me aproxima, pelo afeto gerado, dos
afetos gerindo os sentidos das frases. Parafraseando Prado Jr, o afeto implica
por si a invenção de um novo modo de deparar-se à leitura, cuidá-lo é cuidar
dos tempos em minúcia, efetuações ambivalentes e promoções de dança
mobilizando-se desde as precedências virtuais. Quando li: “Era pouco o que ele
era agora: um rato. Mas enquanto rato, nada nele era inútil. A coisa era ótima e
profunda. Dentro da dimensão de um rato aquele homem cabia inteiro”
(LISPECTOR, 1999, p. 37), me despertou noções de contato com o ínfimo, o
inapreensível, e, como bem expõe Ohno (2016, p. 200), “Por ínfimo que seja o
envolvimento, ele é capaz de destruir todo o universo, e ele existe até mesmo
dentro de um pedregulho, portanto, trate-o com muito cuidado. ” O rato é o
que? O homem, se se tornara algo, se tornara o que se esse algo fosse um
rato? O que dimensiona então ser rato? Como um rato pode me tomar em uma
leitura tão repleta de outras existências menos repugnantes? O que se fazer
disso? Torno-me sumariamente rato. E nisso há modos de mover-se,
entrepostos e imprevisíveis.
39

Capítulo ​2

Neste capítulo descrevo o que compreendo como o não entendimento


atuante na dança, analisando alguns de seus modos de aparição. A
incompreensão em Clarice é um norte em potencial a este estudo, é o élan,​
intensivo motor para dançar e, concomitante, para estes escritos. Busco
estratégias para lidar com o não entendimento, menos pelos viés de explicitá-lo
do que escrever a partir do estado de suspensão em não saber. Até então
desenvolvo ideias sobre o não entendimento aproximando-as do conceito de
esquizopresença, possível surgimento nessas circunstâncias do texto que não
se conclui e tem nesta instância a própria potencialidade. Tenho me referido ao
não entendimento a partir do que Clarice redige sobre essa vertente em sua
escrita, debruçando-se sobre o que tinha de perspectivas a respeito da tal
ignorância. Além disso busco outra percepção da incompreensão a partir de
um viés mais acidental concernente a instantes de leitura onde se percebe que
ocorreu uma ruptura nos trajetos literários e que se está lidando com
determinado espaço textual exposto como corte, ruptura, ​acontecimento​. Para
esses pontos de vista cito exemplos a partir do que já me ocorrera, intuindo
assim ilustrar as diferenciações. Mais à frente desejo retornar nessas
pontuações sobre o não entendimento e retraçar a forma como lido com elas,
para que sempre esteja sendo feita a manutenção de como isso se expõe no
texto sem perder o potencial poético e afetivo.

Para este capítulo pretendo trabalhar com referências de:

● Georges Didi-Huberman – ​O que Vemos o que nos Olha

● Jorge Larrosa – ​Tremores – Escritos Sobre Experiência


O que me interessa nestas análises filosóficas e críticas é que elas
apresentam noções que descentralizam uma atuação que encaminharia os
processos compositivos de determinada relação. Neste caso, em se tratando
de Clarice e Butoh, e para este capítulo que esboça as incompreensões,
contribuirá com pontos de vista mais abertos e receptivos às realidades
imperceptíveis, que demandam outra lógica que não somente a vigente.
40

REALIZO O REALIZÁVEL E O IRREALIZÁVEL ME FAZ DANÇAR.

Para esses escritos preciso que segurem minha mão, como Clarice –
sendo Rodrigo S.M., em ​A Hora da Estrela – pede, para que se sinta de
alguma forma acolhida sobre o que está prestes a dizer, deixo aqui meu estado
de. Segurando a mão de Clarice, exponho, assim como ela que “estou
tentando escrever-te com o corpo todo. ” (LISPECTOR, 2019, p. 29). E a partir
disso, escrever essa dança das palavras.

Quando me refiro a palavra de Clarice para me debruçar sobre o que me


dança, busco o que em sua literatura expressa entorno da prática de
entendimento e de não entendimento, ou se preferir, compreensão e
incompreensão. Em um texto que rege muitas instâncias desse estudo, Clarice
expõe:

Não entendo.​ Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender.


Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter
fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo.
Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não
como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender.
É uma benção estranha, como ter a loucura sem ser doida. É um
desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em
quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais:
mas pelo menos entender que não entendo. (LISPECTOR, 2004, p.
97).

O modo como esse exercício de recepção do saber atravessa meu corpo se


relaciona com minha dança, especificamente a dança que busco nos meandros
do Butoh, não se dá pelo viés da inspiração, ou do encantamento por si só: ​que
lindo! Há uma presença de inacabamento que é o cerne das sensações
mobilizadas no ato de leitura. Em ​O Soldado Nu (​ 2015), Ohno cita que “a coisa
mais importante não é entender a verdade, mas vivê-la. A verdade é a
existência real, que é experimentada através do corpo. ” (apud PERETTA,
2015, p. 131). Esse experimento da verdade concerne-se ao fazer sem
entender, pois, há nesse fazer uma urgência corpórea muito mais ressonante
do que um motivo que guie o movimento a determinada culminância. Akiko
Motofuji, dançarina japonesa e parceira pessoal e profissional de Hijikata,
citada por Uno, diz que “o importante não é aquilo que fazemos, mas aquilo
que nos motivamos a fazer [...]. ” (MOTOFUJI apud UNO, 2018, p. 39). Não é
41

fácil, tampouco simples conceber essa dança, imaginá-la e/ou redigir sobre ela,
pois, é limítrofe que entremos em âmbitos de descrição e preciso
entendimento. Parafraseando Baiocchi (1995), no prefácio de ​Dança Butoh
Veredas D’Alma,​ diria que é sempre muito difícil entender o Butoh sem que
essa atuação do compreensível não gere concomitantemente modificações
nessa arte de transformação e multiplicidades.
Essa perspectiva na dança Butoh me tomou anos atrás, enquanto fazia
graduação em Teatro pela Universidade do Estado do Amazonas, em 2015,
quando estava conhecendo do que se tratava ​aquela dança japonesa,​ mas
para mais tarde ir percebendo – com dores, mas sabores substanciais – que
não era esse o papel que eu realizaria, o de entendedor de Butoh, mas sim de
um corpo que se emociona nesse modo de mover-se, de portar-se à vida, de
crer no que não se sabe, de confiar no que não se entende porque impulsos
internos vibram ávidos de vitalidade e desejos quando atravessados pelas
realidades incompreensíveis desta dança.
É a partir desse vasto âmbito da incompreensão que Clarice Lispector e
Butoh se tocam nesta presente pesquisa. Assim como na dança Butoh, através
de autores, autoras, dos precursores, pensadores e pensadoras de Butoh que
o esboçam por vias menos da compreensão estrita, possibilitando-me mais
generosidade no estudo, Clarice evoca em seus escritos o não entender como
potencial matriz de sua língua

Hélene Cixous no texto ​Extrema Fidelidade ​presente no livro ​A Hora da


Estrela: edição com manuscritos e ensaios inéditos ​(2019), esboça uma
perspectiva sobre concepções do ​não entender ​no dito clariceano.
Segundo Cixous:
Nos textos de Clarice Lispector, encontram-se todas as lições de
saber, mas de saber viver, não de saber-saber. Um dos primeiros
saberes é aquele que consiste em saber não saber, não só em não
saber, mas em saber não saber, em não deixar-se encerrar num
saber, em saber mais e menos que o que se sabe, em saber não
compreender, sem jamais situar-se aquém. Não se trata de não ter
compreendido nada, mas de deixar-se encerrar na compreensão.
É de suma importância os pontos de vista trazidos por Cixous sobre essa
incompreensão em Clarice, pois, através dessa explanação há uma
reivindicação de atuação do corpo ao texto que lhe é exposto, não mais
apresentado (Larrosa, 2015). Essa relação se constitui intensivamente dentro
42

de estudos da dança Butoh. Minhas dúvidas, que não são dúvidas contrapondo
a busca por – enfim – certezas, mas dúvidas porque me tornam vastidão e
multiplicidades, minhas dúvidas são os aspectos técnicos que aceito como viés
de prática e condução destas. Minhas dúvidas sobre o que leio reivindicam um
corpo não mais como privilegiado receptor dos sentidos, mas sim
corporeidades sentidas, sentimentos vibratórios, instâncias que mobilizam
movimentos de saber não saber, e não somente saber-sabendo sem saber não
ter esse saber que não pelo viés conclusivo, o que enfim encerraria o saber.
Esse pensamento de Cixous está imbricado no desenvolvimento discursivo e
prático da dança Butoh, logo que, “poderíamos dizer que a prática do Butoh
implica um processo alternado de desconhecimento e conhecimento. ”
(BAIOCCHI, 1995, p. 20). Isto é, em ambas vertentes, há a incompreensão
como modo indispensável dentro do que se constrói e reconstrói tanto nos
movimentos do Butoh quanto no vivenciar de uma leitura de Lispector. Quando
postos em proximidade e relações de contato recíproco, vitais às criações de
novas realidades, tanto enveredam-se pelo que se entende, pelo que sabe que
se sabe, quanto pelos desconhecimentos gerando espaço de experimentação.
O que deve haver nas compreensões é não resignar-se no que se interpreta.

Há gestos silenciosos, feitos do contato com as abordagens que Clarice


possibilita, ativações imperceptíveis que sua operação linguística propicia e
que desencadeiam estímulos de performance e composição no ambiente que
compõe minha leitura-dança, sobretudo pois a forma como ambiente e leitura
coexistem se dá na presença do corpo como testemunha das intersecções.
Inerentes às minhas palavras há estados de presença, em resposta ao ser
coreografado pela ambiente-espaço-tempo tecido nas palavras ​não entendidas.​
Não entender demanda movências imperceptíveis, demanda saídas de zonas
conveniente na leitura e demanda conflitos no agir. Este último principalmente
sobretudo pois saber o que fazer a partir de uma conclusão, de um
entendimento dado é quase automático. As nuances são poucas visto que se
segue determinado caminho proposto. Quando não há esse entendimento
prévio, há o ser movido pelo incorpóreo​16​, pelas sensações que surgem ao

16
Segundo David Lapoujade em ​Deleuze, os Movimentos Aberrantes (2015), os incorporais referem-se a
produções de estados que se fazem “na superfície dos corpos, como tantos acontecimentos ou efeitos
que nascem da relação de mistura entre corpos” (LAPOUJADE, 2017, p. 121), em manifestações que se
43

corpo que não entende, mas se emociona no desconhecimento. O que


necessitamos então é saber não entender, como já citado acima por Cixous.

Ao se desejar dançar a partir de premissas de uma dança que se define


pela própria evasão de definição​17​, ou também como refere-se Éden Peretta,
uma manifestação tão singular​18​, ocorrem deslizes de compreensão que sequer
desejam uma explanação objetiva, sobretudo porque o Butoh se apresenta
como modo de desmistificar o lugar de uma dança estritamente técnica e
delimitada coreograficamente. Margeio a despretensão, a inutilidade do gesto e
a força desses caminhos como expoente fator político-artístico, assim como
motor do que se processa nos movimentos dessa dança. Segundo Tatsumi
Hijikata citado por Éden Peretta: “[...] para uma sociedade orientada à
produção, o uso despropositado do corpo, ao qual eu chamo dança, é um
inimigo mortal que precisa ser tabu. ” (HIJIKATA apud PERETTA, 2015, p. 54).
Esse modo de operação que se concerne ao Butoh, também tangencia a
perspectiva que se pode perceber na língua de Clarice Lispector, onde a
incompreensão deforma o funcionamento da utilidade discursiva e subverte
valores informacionais. O que Clarice desenvolve sobre as incompreensões se
apresenta ao meu corpo, se entremeia a ele, como meio de entendimento
daquilo que não sei sobre o Butoh, não sei enquanto definição
conceito-metodológica. Ou seja, o desinteresse objetivo em que se projeta
Lispector é horizonte ao fitarmos perspectivas da dança Butoh.

Assim como em Clarice, o Butoh possui suas instâncias de evasão do


entendimento proposto, realizado através de discursos pedagógicos
redistribuídos das noções estritas, um exemplo disso é a flor dentro das
práticas de Ohno e Tatsumi. A flor no Butoh é uma presença de grande força,
seja no modo pedagógico de apresentar essa dança contemporânea japonesa,
seja para interesses particulares em construção de exercícios cênicos. A flor
caracteriza estados de presença que sucumbem uma realização determinada,
logo que possui no modo como se relaciona com a dança uma própria

correlacionam e coexistem o instante que habitam, como por exemplo eu atuando enquanto
observador das borboletas e sendo tomado pelas realidades que dali se faziam, e as borboletas atuando
nos voos dispersos. Construímos assim composições coexistivas, produção nos incorpóreos.
17
Esse é um dos modos como Maura Baiocchi refere-se ao Butoh no livro ​Butoh – Dança Veredas
D’Alma, 1995.
18
PERETTA, 2015, p. 4.
44

articulação subjetiva. Segundo Peretta (2015, p. 129), “na dança tradicional


japonesa, o corpo é considerado como uma flor efêmera [...]”. E ele segue:

A flor, no discurso estético de Kazuo Ohno, é constantemente citada


como modo de existência ideal, ao qual todo dançarino deveria
aspirar. No plano técnico metodológico de expressividade cênica de
Ôno, a flor aparece inicialmente como uma natural extensão de sua
mão, tornando-se assim, posteriormente, um ponto de contato com o
mundo exterior, uma parte integrante de seu sistema nervoso
corporal, assim como uma antena serviria a um inseto. (Ibidem).

Para Tatsumi “as mãos de Kazuo eram a verdadeira incorporação de uma


rosa” (PERETTA, 2015, p. 55). Menos do que ser uma proposta de
identificação​19​, a flor é um modo de atuação e presença na vida que contrapõe
percebê-la para imitá-la. A flor na mão de Ohno, a lama​20 de onde nasce o
Butoh de Hijikata, são vivências que traçam ​zonas de vizinhança​21 com o que
alimenta o desejo intensivo de mover-se, dizendo assim, o que alimenta a
linguagem gestual incógnita do Butoh.

O não entendimento se concebe por estados de matérias menos


palpáveis que uma explanação interpretada, porém não menos existente. A
condensação dessa realidade incompreendida não se resume no isentar-se às
noções objetivas, mas fazer com que estas deslizem entre si e fracassem
potencialmente os intuitos propositivos. Isso proporciona ao meu corpo
ativações de minúcias, implícitos impulsos que não realizam uma ação, não
efetivam um movimento, mas o enviesam a campos mais vastos do que tange

dançar em ​free style.22

Atravessado pelo cotidiano dentro das demandas econômico-sociais,


que pouco permite transitoriedades exploráveis, meu corpo através da flor, da
palavra, do não entendimento, dos discursos relacionais entre o Butoh e a
palavra inacabada de Clarice Lispector, é movido pelas conduções que essas
19
Uma proposta que parte de relações externas, dicotômicas e analógicas.
20
“Meu butô começa ali, com aquilo que aprendi da lama do início da primavera, não de algo que tenha
a ver com artes performáticas de santuários e templos. Estou claramente consciente de que nasci da
lama e de que meus movimentos hoje são todos construídos sobre ela. ” (HIJIKATA apud PERETTA, 2015,
p. 67).
21
A zona de vizinhança trazida aqui parte do mesmo pressuposto conceitual que Gilles Deleuze e Félix
Guattari articulam para desenvolver e apresentar o conceito de devir, no livro ​Mil Platôs Vel. 4. Se trata
de uma forma de contato que não se relaciona a partir da imitação ou da identificação, mas sim o que
eles chamam de “[...] extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso,
[...] as mais próximas daquilo que estamos em vias de devir [...]”. (DELEUZE e GUATTARI, 2012, p. 67).
22
Essa expressão é muito usado por Ohno em seu ​Treino e(m) Poema como um dos modos propositivos
de aproximar-se do Butoh, do que ele acreditava como dança em suas aulas.
45

propostas mobilizam, linhas de fuga para além do que pressuponho ser dança,
para além do que pressuponho ser belo, para a abertura de brechas na
espaço-temporalidade, para se pensar, inclusive, na criação do que Maura
Baiocchi reflete por uma ​esquizopresença​:

Aqui, esquizo não se designa um louco patológico, mas uma


presença que não aceita restrições, um ​inconsciente produtivo não
interpretante​. Uma esquizopresença ou, também poderíamos dizer,
presença esquizofrênica​, durante seu processo de experimentação e
construção de uma cena ou personagem, lança-se para além da
representação e da interpretação. Ela não apresenta nem interpreta,
experimenta​. (BAIOCCHI, 2007, p. 75).

​ um conceito criado por Maura Baiocchi, que, segundo o


A ​esquizopresença é
artigo ​Presença e Esquizopresença ​(2015)​, d
​ e Wolfgang Pannek, possui
proximidade à concepção de presença associada ao conceito de ​esquizo
​ e Gilles Deleuze e Félix Guattari. A
encontrado no livro ​Anti-Édipo d
esquizopresença se relaciona com a realidade que coexiste e se compõe na
espaço-temporalidade redistribuída de dinâmicas cotidianas. Isso se produz
pelos acessos a instantes perceptivos que não mais competem a estar, por
exemplo, em um ambiente enquanto moradia, mas habitação do lugar,
sobretudo pois nessa relação há a possibilidade de que manifestações
implícitas, antes suprimidas pelo extraordinário​23​, atribuam novas clivagens aos
estados de presença – seja em leitura, seja em dança agenciada visualmente –
e de maior recepção generosa às incompreensões da palavra. Essa relação
que se estabelece, como uma grande maquinaria atravessando-se e
potencializando-se enfim, concebe meios para que percamos as garantias
compreensivas que se busca manter na lógica interpretativa.

Essa concepção concerne-se em ir além das perspectivas de presença


referentes, ou seja, segundo o pensamento de Pannek (2015), às
normatividades sociais, estéticas e morais, fazendo que com que se busque
aproximações com uma ​esquizopresença​. Essa interferência conceitual
agrega-se aqui como parte da reunião afetiva que se produz no inacabamento
do dito clariceano. Esse é um dos modos que traço para dedilhar as
incompreensões de Clarice, pois seus ditos não determinam um discurso e/ou
uma narratividade enfim, são mesmo é geradores das múltiplas noções que se

23
“[...] pois por pura sede de vida estamos sempre à espera do extraordinário que talvez nos salve de
uma vida contida. ” (LISPECTOR, 2004, p. 141).
46

esboçam e potencializam a prática-vivência-trajetória-estudos no Butoh.


Quando refiro-me aos ditos enquanto existências incompletas, não é
pressupondo quantitativamente que são menos atuantes que um dizer que se
encarrega de apresentar uma ideia. Clarice não apresenta nada, mas
possibilita, através de sua fala ética, que do que se escreva ecoe dentro dos
campos de afetação de quem a lê. Quando me refiro ao inacabamento do dito,
é contrapondo-o ao dizer que dentro da encenação, da leitura, em suma, da
realização, de modo analítico, baseia-se prioritariamente em representar os
trajetos imanentes em sua construção, em elucidar quão mais preciso for
àquela visualização que o efetiva, logo, o interesse neste tipo de proposição é
o sentido das palavras apresentadas, e não necessariamente as palavras
sentidas e a partir disso expostas.

O inacabamento do dito não pressupõe a ausência de forças suficientes,


mas o retorno às intensidades, que por sua vez quando se totalizam em uma
escrita conclusiva, diria, são agrupadas em pontos expressivos, restringindo
assim linhas de fuga imanentes ao que subjaz no texto, no trecho, em suma, as
tessituras das incompreensões. Essa característica é própria ao ato de uma
escrita que reivindica seu ato não mais em condicionamento da descrição, mas
que pondera-se em redigir tendo a visualização do horizonte da
incompatibilidade concernente ao que foi vivido e o que disso se processa em
palavras. A aceitação do abismo que há entre o que se presencia no instante e
o que se configura na escrita, no dito, no ato expressivo, é de grande
importância para que se dê margem a estados de atuação da palavra
guiando-se conforme as proximidades para com o afeto que a evoca,
ponderação não representá-lo, o que seria “introduzir uma distância entre a
palavra e o afeto” (PRADO JR, 1989, p. 21). Vale ressaltar que essa dita
aceitação não se refere a um modo genérico enquanto prática, mas parte de
modulações estratégicas específicas de cada postura compositiva de
dançarinos e dançarinas, quanto de escritores e escritoras.

A relação da esquizopresença com o não dito está ao passo que, assim


como a esquizopresença se despe dos artifícios representativos, esse modo de
escrita que não dissimula o evento, se desenvolve pelo experimento de dizê-lo
mesmo sabendo que seu exercício é o de tangenciar aproximações com o
47

afeto impulsionador menos que acessar distâncias críticas. Tanto a


esquizopresença quanto o dito inacabado em Clarice são modos de tangenciar
estados corpóreos do Butoh em contato e encontro com a literatura clariceana.

Esse inacabamento da língua produz paradoxalmente a largueza em


que a dança Butoh pode irromper. Essa relação acontece no entrecruzamento
do dizer que não se explicita pela totalidade da língua, e no corpo que se lê a
partir da linguagem locomovida dos âmbitos de linearidades vigentes. A ênfase
nesse aspecto linguístico em Clarice possibilita instâncias de exploração na
dança Butoh, sobretudo pois, “uma vez que há sempre a linguagem que
domina o centro das instituições que controlam o corpo, será preciso modificar
a própria linguagem. ” (UNO, 2018, p. 49). Essa é uma das manifestações
existentes em Clarice Lispector, e isso é, sem dúvidas, uma das grandes
possibilidades que a faz traçar aproximações para com a dança Butoh. Em
suma, se trata da disponibilidade imanente às zonas inacabadas da palavra,
por exemplo, o modo como Clarice confessa dizendo: “O que te falo nunca é o
que te falo e sim outra coisa”​24​. Clarice não diz só que o que seu dito carrega é
sempre outras realidades que as lidas, mas também concebe uma noção da
linguagem que não se efetua na totalidade do que ocorrera então. Nessa
dialógica palavra-dança, há modulações coreográficas que transitam na tensão
e intenção de enveredar-se – e dançar – pelas tangentes. Esses exercícios de
dançar ​sendo guiado pela vastidão do que se incompreende é, sem dúvidas,
uma incógnita necessária, sobretudo pois, o que se pode levantar em
determinado estudo – isso referindo-me ao que acredito eticamente frente a
essas conduções poéticas – o que se pode levantar são exposições a partir do
que se pôde atravessar, especular, intuir ao se perceber percebendo sem
maiores desejos de capturar o que se percebe em minúcias.

A palavra lendo-me desempenha sobre minha presença – corpórea,


cósmica, relacional –, estágios de exposição​25 e desnudamento​26​. A

24
LISPECTOR, 2019, p. 31.
25
Quando trago aqui a palavra ​exposição​, é referindo-a ao modo como Jorge Larrosa no livro ​Tremores:
Escritos sobre experiência (2019) propõe pensarmos: O sujeito da experiência é um sujeito “ex-posto”.
[...] nossa maneira de “ex-pormos”, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. (Ibidem, p.
26). Mais à frente retorno a essa perspectiva de articulação da experiência de forma mais extensiva.
26
Esse termo refere-se aos automatismos sociais impostos ao corpo como modo de docilizá-lo, logo, o
desnudamento atrela-se ao interesse de redistribuir arquétipos deterministas.
48

disponibilidade para com a palavra e seu campo intensivo de leituras, subsidia


experimentos de si no ambiente, logo que a materialidade do corpo e do
espaço se redistribui do modo de atuação cotidiana para estar-se ao que já
falamos acima sobre testemunhar o ambiente, ou melhor, testemunhar o
presente presenciado. Essas novas relações que se engendram a partir do
texto, em incertezas que produzem desterritorializações sobre um corpo
ocupado, demandam o que o filósofo francês David Lapoujade chama de
percepção-participativa​. Ao comentar a obra do filósofo Étienne Souriau,
Lapoujade escreve: “Para Souriau perceber não é observar de fora um mundo
entendido diante de si, pelo contrário, é entrar num ponto de vista, assim como
simpatizamos. Percepção é participação. ” (LAPOUJADE, 2017, p. 47). Quando
digo que a palavra pelo viés da incompreensão subsidia mobilizações
coreográficas, refiro-me às participações, enquanto corpo-leitor-que-lê-e-é-lido,
o que não pressupõe um desligamento do entendimento, mas sim, disponibiliza
excedê-lo das poucas e disciplinadas clivagens. Quando me ponho leitor é
testemunha do irrealizável, possibilito que atos coreográficos se retracem a
partir de estados relacionais que se expõe ao meu corpo em contato com os
estranhamentos imanentes ao dito.

A percepção-participativa quando posta ao lado de incompreensões


como âmbitos irrealizáveis, e por isso mesmo potências à dança Butoh, é com
intuito de explanar o que – me – ocorre em situações onde os sentidos do texto
requerem de meu corpo outras mobilizações de leitura, produzindo então
estados de atuação no texto que não mais de uma leitura em que se possui o
que se apresenta no dito, mas sim se tem inebriado pelo seu ​não
entendimento. Esse aspecto, quando referente ao Butoh, nos possibilita que as
demasiadas intenções coreográficas se redistribuam do trabalho de controles
do movimento. É a produção de um conhecimento – de si, de si no espaço, das
justificativas utilitárias impregnadas ao fazer arte, das necessidades e
urgências daquele instante – e principalmente a aceitação dessa nova
circunstância. Quando trago aqui a aceitação é modo que encontro de explanar
uma ocorrência onde os pontos que perco no andamento do que seria
coreográfico, estão para linhas de atravessamentos intensivos através do que
leio e que me conduz menos que se faz interpretativo, isto é, que não
49

pressupõe meu posicionamento centralizado de sujeito condutor, mas


conduzindo-se concomitante ao que do texto se ressoa irrealizável.

ESCRITAS E(m) URGÊNCIA – movimento 0947

Na leitura encontro o suscitar da escrita, escrita como salvação de vida,


tal como dita por Lispector quando a mesma expõe: “Eu disse uma vez que
escrever é uma maldição. Não me lembro por que exatamente eu o disse, e
com sinceridade. Hoje repito: é uma maldição, mas uma maldição que salva.
”.​27 ​A escrita, como dita por Clarice, é uma maldição porque envolve
necessidade, urgência, vitalidade. É sempre por vias de pequenos
nascimentos, não intuindo uma diferenciação de nascimentos maiores e mais
poderosos, mas os nascimentos da escrita – esta que falo ao lado de Clarice –,
são sutis, e por isso mesmo possuem uma determinada fatalidade. A maldição
está em ter-se tomado pela ânsia em expôr-se ao presente da palavra,
expôr-se às gravidades que facilmente soçobrariam quem em relutância
quisesse só dizer o que fosse passível de realização. Uma escrita que não
desnuda o mistério, o desconhecimento do que foi vivido, tampouco desfaz
vertigens, mas torna viável – e vivível – habitar nesses âmbitos pelos seus
próprios modos de existência e atuação.

CONTINUAÇÕES INCORRENTES

Tatsumi Hijikata também propunha aproximar a prática do Butoh pelo


entrelaçamento com a palavra, buscando através disso a dissolução do
organismo docilizado. Segundo Éden Peretta:

Hijikata tentava capturar e repropor todo tipo de emoções, paisagens


e sensações, valendo-se de palavras e conceitos, que possuíam para
ele uma fisicidade concreta e, por isso, poderiam proporcionar um
específico estado físico. (PERETTA, 2015, p. 96).

A fisicidade que se refere o autor, poder-se-ia estar como um dos modos de


lidar com o que se desconhece em Clarice, pois, essa espécie de
materialização da palavra não a pressupõe mais maleável, mas faz com que

27
LISPECTOR, 2014, p. 179.
50

tomemos uma palpabilidade que, quando concernente à dança, propiciam


estados também físicos às realidades que impulsionam o movimento. É um
estudo meticuloso, que envolve cuidados constantes para que não se caia no
ato de coreografar – segundos aspectos de organizar em partituras o que diz
determinado texto de Clarice. A matéria da palavra, dos seus âmbitos não
entendidos, tem como cerne modos de margear o texto sem que se siga
centralidades.

Ainda que visualizável, acredito, a relação palavra-dança, pensada pelo


viés de reverberação numa presença corpórea singular, é vertiginosa e pouco
exprimível senão pela especulação. Não penso a leitura e a dança por
articulações estritamente distanciadas e nem partindo de demasiadas
aproximações, mas pelo interesse de tê-las correlacionadas ao corpo;
potências que o acessam pelos acessos de meios, menos que pelo excesso de
centralização. O modo como Clarice expõe, o que ela diz ser uma pergunta, na
última página de ​A Hora da Estrela: “​ Qual é o peso da luz? ”​28​, me possibilita
paisagens de movimentos que pode meu corpo, paisagens que redimensionam
pôr quais novas clivagens posso dançar, através do peso do que não se
responde, a partir do peso do que ilumina. O que há nesse questionamento de
Clarice é a abertura de mundos possíveis da frase, de materialidades que
ressurgem quando se busca ponderar o peso luminoso, as ressonâncias
imagéticas. São realidades que quando pensamos próximas ao corpo, o que
culmina não é senão o dançar na crueza do ato, da emoção, da dúvida.

O não entendimento que me refiro pode bem ser visto como uma
característica relativa. O que é de não entendimento para mim pode ser
completamente compreensível para outros leitores e outras leitoras. No
entanto, a relação que busco para as trocas de partículas moleculares entre a
língua de Clarice e meu corpo dançarino, é a partir das exposições postas
sobre entendimento e não entendimento, compreensão e incompreensão, no
decorrer de seus trajetos literários. Isso não exclui uma outra perspectiva de
não entendimento, que é o modo como Clarice articula a impossibilidade do
dizer dentro de seus escritos, sejam em novelas, contos, romances etc. Para
ilustrar melhor essa segunda abordagem menos delimitativa sobre a

28
LISPECTOR, 2017. P. 110.
51

incompreensão, parto para o contato com as zonas incompreensíveis


suscitadas através de uma leitura a partir do conceito de ​acontecimento.​ Esse
viés de encontro com as incompreensões em Clarice, partem das percepções
tida na leitura de determinado texto, que suscitam no estado corpóreo-afetivo
que irrompe estados condicionados da percepção efetuada pelo corpo. O que
ocorre é o que Félix Guattari esboça dizendo:

Antes da influência desse bloco de sensação, desse foco de


subjetivação parcial, era a cinzenta monotonia; depois, não sou mais
eu como antes, fui arrebatado em um devir outro, levado para além
de meus Territórios existenciais familiares. (GUATTARI, 2012, p.
108).

Esse pensamento de Guattari aborda a irrupção de estados pouco transitórios


no corpo receptor, o que contempla muito o que é possível ocorrer quando
lendo Clarice. Esse corte, essa quebra que há no instante corpóreo pelo
contato com o que gera esse bloco de sensações – no caso deste estudo, a
palavra de Clarice – é a outra articulação de não entendimento que também me
interessa aproximar da dança. O inacabamento de determinado dito de Clarice,
proporciona a quem lê, a vastidão e completude que a autora se refere em
citações anteriores. O ato de entrada em contato com essas zonas inacabadas,
“o que está escrito e o que é para ser lido” (PRADO JR, 1989, p. 26), além de
sucumbir a linguagem ilustrativa e imbuída de significados prévios, propicia
dizeres mais próximos à uma língua na qual os sentidos não me são
apresentados por aspectos de instrumentalização da relação leitor-palavra.
Atenho-me a uma linguagem que não refuta a presença do corpo em cena, em
situação cotidiana de leitura, tampouco nos instantes da dança, mas que gera
clivagens a partir do contato com o que se incompreende – enquanto irrupção
do ​acontecimento na leitura ou o não entendimento em que a autora refere-se
a ele.

David Lapoujade, em duas de suas obras, a primeira delas onde


comenta a obra de Gilles Deleuze, denominada por ​Deleuze: Os Movimentos
Aberrantes (2015), e na segunda, onde aborda a perspectiva filosófica dos
diferentes modos de existências para Étienne Souriau, denominada ​As
Existências Mínimas (2017)​, expõe definições para o ​acontecimento enquanto
um evento de ruptura.
52

Na obra sobre Étienne Souriau, Lapoujade cita: “De acordo com o


perspectivismo de Souriau, o acontecimento consiste em uma ​guinada no
​ asta um instante... para que tudo seja percebido de outro
ponto de vista [...]. B
modo. ” (LAPOUJADE, 2017, p. 63). Para adentrar mais essa perspectiva de
quebra no instante, é imprescindível não trazer aqui uma fala de Souriau citada
por Lapoujade, na qual exemplificando uma atuação ​acontecimental ele cita:
“Ainda há pouco, havia um copo inteiro; agora há esses cacos. Entre os dois há
o irreparável (...), há o quebrar. O que acontece, o fato do fato, isso permanece
irredutível. ” (SOURIAU apud LAPOUJADE, 2017, p. 63). Esse fator que
irrompe o instante, que o desvencilha de sua realidade factível há momentos, é
o que me refiro ao pontuar a outra proposta de não entendimento na obra de
Clarice Lispector, sendo essa concernente às premissas do acontecimento no
instante da leitura que irrompe a realidade. Para essa nova natureza na relação
corpo-leitura – que se dá na incompreensão mais transitória pela literatura de
Clarice e não especificamente em pontuações da autora sobre o não
entendimento – não se presume delimitações prévias, pois como pronuncia
Jacques Derrida (1997, p. 231), no texto ​Uma Certa Impossibilidade de Dizer o
Acontecimento: “Convém lembrar que um acontecimento supõe a surpresa, a
exposição, o inantecipável. ” Em suma, quando penso no não entendimento,
menos por abordagens diretas de Clarice, mas mais por produção de blocos de
sensações que partem de instantes singulares de leitura, atrelo-o a essas
noções de acontecimento postas acima, sobretudo pois assim como o
acontecimento não é remediável, e nem se possui o controle dele, os outros
estados das incompreensões que abrem campos vastos na linguagem de
Clarice Lispector estão no texto e se descolam dele para o corpo-leitor em
determinada relação referente somente ao corpo que as lê – e se tem lido por
elas. É limítrofe falar desses dois aspectos de ​aparição do não entendimento
em Clarice, pois, em ambos há a possibilidade do acontecimento, porém um
está intensivamente ligado a esta guinada na leitura, enquanto o outro – não
entendimento – está de forma mais explícita, que é quando a autora discorre
suas visões dessas ignorâncias e escreve sobre elas, se relaciona intimamente
com elas sem pudor de que tenha alguém fitando-os através das palavras ​Esse
não entendimento que acontece, e sendo assim irrompe os trajetos de leitura
do corpo, são modos que Clarice encontra de rastrear as entranhas do que
53

deseja dizer e sobre essas instâncias não consigo especificar de que forma
estão no texto e nem quais aspectos diretos possuem para que se possa
reconhecer. Essa outra incompreensão não se apresenta na autora explanando
sobre o não entendimento, mas localiza-se às margens do que expõe. Se trata
mais de recepções aguçadas do que buscas perceptivas.

ESCRITAS E URGÊNCIA – movimento 1027

Confesso, me cansa um pouco esse parir explicações do que só é


passível de realidade no próprio instante de leitura, mas como posso querer
que não seja calamitosa essa exposição?

​CONTINUAÇÕES INCORRENTES

Citarei dois exemplos mais práticos para ilustrar melhor a perspectiva


que venho explanando. O primeiro exemplo que trago é o texto ​Diálogo
Desconhecido,​ presente no livro ​Aprendendo a Viver:​

– Posso dizer tudo?


– Pode.
– Você compreenderia?
– Compreenderia. Eu sei muito pouco. Mas tenho a meu favor tudo o
que não sei e – por ser um campo virgem – está livre de preconceitos.
Tudo o que não sei é minha parte maior e melhor: é minha largueza.
É com ela que eu compreenderia tudo. Tudo o que não sei é que
constitui minha a verdade. (​LISPECTOR, 2014, p. 74.)

Para um segundo exemplo, cito um trecho do conto ​Trecho:​

Era absurdo, mas sempre que lhe aconteciam “coisas” ela intercalava
essas coisas com pensamentos perfeitamente fúteis e
despropositados. Quando Nenê ia nascer e ela estava no hospital,
deitada, branca e morta de medo, acompanhou obstinadamente o voo
de uma mosca em torno de uma xícara de chá e chegou a pensar,
dum modo geral, na vida acidentada das moscas. E na verdade,
concluíra, acerca desses pequeninos seres há grandes estudos a
fazer. Por exemplo: por que é que possuindo um belo par de asas
não voam mais alto? Serão impotentes essas asas ou sem ideal as
moscas? Outra questão: qual a atitude mental das moscas em
relação a nós? E em relação à xícara de chá, aquele grande lago
adocicado e morno? Na verdade, aqueles problemas não eram
indignos de atenção. Nós é que ainda não somos dignos deles.
(LISPECTOR, 2016, p. 94-95).

​ ota-se a incompreensão tida pelo que expõe a


Em ​Diálogo Desconhecido n
segunda voz no texto que responde a indagação feita à ela sobre sua
54

capacidade de entendimento. Tudo o que ela não sabe, é, por sua vez, uma
disponibilidade, ou como cita, sua verdade. Nesse texto Clarice expõe o não
entendimento, disserta sobre ele. Essa verdade concebível dentro da
incompreensão como imanência, contraposta a uma compreensão de pouca
vastidão, segundo demandas de ​só saber​, é exposta no texto pela autora. No
outro exemplo dado, o não entendimento é singular, ou seja, é de cada corpo
lendo. Irrompeu enquanto eu lia o ​Trecho e me deslocou dentro da leitura.
Nesse segundo texto trazido, Clarice não explana a incompreensão
enunciando realidades concernentes a ela, mas constrói um modo de
explanação sobre um pensamento que lhe ocorre envolvendo insetos e suas
fortuitas aparições na mente da personagem do conto. Não pressuponho, com
isso, uma análise que pondere aspectos mais e menos poéticos, ou que aponte
diretrizes de um pensamento mais ou menos descritivo. O que trago é que,
juntamente comigo, possa ser possível que se perceba os caminhos que cada
trecho perpassam.

Não intuo através dos textos citados, pressupor a existência do


acontecimento, mas expor a partir de meu registro de leitor, textos que me
acessaram o não entendimento por duas possibilidades; uma do não
entendimento que se apresenta explícito, onde Clarice redige sobre ele, e outra
possibilidade do não entendimento que se faz quando, ao ler o conto ​Trecho,​
por exemplo, a incompreensão a mim surge como ruptura do que se construíra
durante a leitura até o tal trecho de ​Trecho,​ dissolvendo assim possíveis
recepções cômodas da palavra. Em ambas abordagens sobre o não
entendimento, há inclinações ao acontecimento, no entanto, uma delas abre
mais margens para tal estado acidental. E, sublinhando novamente, não
pretendo pressupor o acontecimento, que por si é abrupto, porém tais pontos
de vista buscam aproximar-nos dos modos de contato com o não entendimento
na literatura de Clarice.

O que desejo nessa explanação sobre as modulações das


incompreensões em Clarice, é trazer algumas possibilidades do não
entendimento estar nos textos segundo o que já me ocorrera. Esse escavar da
incompreensão expande as vertentes de atuação da leitura à dança para novos
horizontes, retraçando concomitantemente as zonas perceptivas do corpo que
55

se potencializam ao relacionar-se ao que se apresenta inacabado de sentido –


o que não pressupõe incompletude – e vastamente disponível às novas forças
intensivas de estudo, reflexão, mergulho. Novos ​sangramentos​29 que “fazem
surgir um Universo incorporal, intensivo, não discursivo, pático, em cujo rastro
são desencadeados outros Universos, outros registros, outras bifurcações
maquínicas. ” (GUATTARI, 2012, p. 110). Os dois pontos de vistas sobre o não
entendimento, ou melhor, dados diante do não entendimento, não presume
oposições binárias, mas busca novos focos enunciativos nesse viés da
incompreensão.

Delinear a incompreensão acidental, diferenciando-a de outra que se


apresentaria mais explícita, é um exercício especulativo que requer um
grandioso cuidado ético, pois bastante difícil e periga cair em contrapontos
dicotômicos, que nada contribuem. Acontece que, através do interesse em
condensar a escolha de determinados caminhos, até para que não exerçam
discursos de generalidade analítica homogênea, foi-me necessário esboços de,
como ocorre dentro de minha prática de leitor, a presença do não entendimento
clariceano, sobretudo por ser a matriz dessa dança Butoh que tanto se explora
nos âmbitos práticos da dança quanto da escrita. O que procuro ponderar é a
interferência imprevisível, que pode haver sim em declarações de Clarice onde
se revela mais imediatamente o não entendimento, porém, seguindo as
premissas de acontecimento enquanto guinada, há o não entendimento mais
próximo às rupturas do texto. O não entendimento posto mais explícito ao
corpo-leitor não é menos mobilizador de dança que a outra proposta, são
apenas linhas intensivas que afetam o corpo por meandros diferentes. Não se
trata de sobreposições, de classificações por juízo de valor, mas de vasculhar
os mundos das perspectivas plurais do irrealizável.

Para concatenar as abordagens conceituais sobre o acontecimento, e


através de mais uma definição de sua força atuante, recorro a David Lapoujade
em sua explanação sobre o acontecimento no trabalho de Gilles Deleuze.
Segundo Lapoujade (2015, p. 67-68): “O acontecimento em Deleuze é primeiro
redistribuição das potências [...]. Através do acontecimento, tudo recomeça,

29
“Para Hijikata, que concebia a arte como uma experiência profunda, a dança deveria ter a seriedade
de sangrar. ” (PERETTA, 2015, p. 81).
56

mas de outro modo irreconhecível. ” O ponto de quebra no acontecimento é a


fratura na realidade que se havia disponível até então, se pensando pelo viés
da leitura, o não entendimento-acontecido, não está necessariamente indicado
a determinado direcionamento, mas margeia a palavra literária por contornos
que não se pode configurar classificáveis, indicáveis, justamente por existirem
na dinâmica extemporânea da ruptura.

Quando abordo o não entendimento – não especificando agora seus


modos de imergir no texto, mas pensando o não entendimento em si –
relaciono-o a expressões como ​atravessamentos afetivos,​ ou que nas
incompreensões há a possibilidade do afeto, ser afetado por elas, essa
instância mobilizadora de dança, de escrita, de impulsos criativos. O afeto
dentro do entrelace Butoh e Lispector parte do que articula Guattari (2012, p.
108), sobre o que é para ele o afeto: “[...] o afeto não é uma questão de
representação de discursividade, mas de existência. ” Essa perspectiva me
move na literatura de Clarice, é o que desde os primeiros contatos com a
autora me possibilitou convivências mais relacionais com o que lia, com o
espaço-tempo em que habitava na leitura, em suma, é possibilidade das zonas
​ screve sobre a
perceptíveis mais aguçadas. Clarice, em ​Água Viva, e
incompreensão dizendo: “Mas se eu esperar para aceitar as coisas – nunca o
ato de entrega se fará. Tenho que dar o mergulho de uma só vez, mergulho
que abrange a compreensão e sobretudo a incompreensão. ”​30​. O ato de
entrega que Clarice busca o contato parte da urgência no instante, é de uma
instância de fatalidade famélica muito particular, de fúria, corpo e crueza. A
incompreensão à dança parte desse estado e eu só gostaria de dizer: leia-a e
faça como puder, já será o suficiente. Deixe-se inundar, porém dispondo-se
aos consequentes afogamentos singulares quando não breves mortes.

Nessas circunstâncias irremediáveis é necessário que se dê vazão à


pausa. A ordem do que ocorre não é mais de uma leitura que parte de
determinada página e seguirá até onde está o fim. Há que habitar o lugar onde
se lê, dentro da temporalidade tomando os cursos, a partir da realidade que
agora não se está mais na terra pela força gravitacional, mas pelo que o
próprio afeto da palavra evoca na carnalidade. Pode ser lento e de vísceras

30
LISPECTOR, 2019, p. 73.
57

expostas, ou pode ser um abrupto corte sem maiores preocupações com


alguma consequência sórdida. Por um átimo de tempo, não se sabe mais viver.
É preciso se demorar no encontro, e isso se faz não pelo viés de esquematizar
duras estratégias de registro, menos ainda se resignando atônito. Cada
instante expõe e dispersa suas urgências. Há uma necessidade de envolver-se
àquilo que se gera nas sensações dos não entendimento. Sobre isso, trago
uma dizer deixado por Kazuo Ohno em ​Treino E(m) Poema:​

Quando eu danço, me mexo muito, quase não paro. Mas não pode
ser assim, é preciso parar. [...]. A mãe chama, sabe? Quando se está
se movendo, todos os dias, de repente, uma hora para. A alma para.
Precisa parar. E faz assim, “mamãe. (OHNO, 2010, p. 146).

Ler Clarice também demanda essa suspensão temporal, e não saber o que
fazer daquilo que se tem por comido, é o ato em minúcias pedindo que; se
demore e tome as necessárias distâncias do curso extraordinário.

ESCRITAS E URGÊNCIA – movimento 1152

A solidão é ruidosa, mas nem por isso menos advertida pela apreensão
sorrateira, ao passo que pouco se nota seu princípio. Se é que nisso há
começos e fins. Mal se sabe e já se está imerso em estado cruamente solitário.
Daqui ouço longe, falo minúcias à minha inquietude, transito pelos cômodos.
Por vezes incômodos na tamanha condição que me foi imposta somente
porque eu, despercebido, nasci refém de uma fatalidade que agora preciso
dizer ser minha porque a mim cabe cedê-la espaço.

Intercalam-se decididamente o relógio em sonoridade de roubo,


refutando o tempo e o som do ventilador funcionando dificultoso. Notável
cansaço de produzir vento, quando não há senão reverberação das máquinas
às escondidas. É uma ilusão suportável quando se está em épocas quentes e
sobre isso não há interpelações.

Por entre estou sentado dando conta de que estou só. Tanto percebo a
solidão como é possível sentir-se sem que isso cause dores. Pelo contrário, o
prazer quase se conclui e sorrio. Sigo quieto, pouco surpreso e levemente
desconfortável em ainda não saber estar só. Ainda falo da solidão como quem
58

aprende uma receita e os ingredientes estão todos pela metade do que seria o
suficiente. Há sempre ausências quando se intui falar dos mistérios de vida.

CONTINUAÇÕES INCORRENTES

Capítulo ​3

Neste momento dos estudos, meu intuito é trazer desenvolvimentos mais


práticos, exercícios realizados e as consequentes confrontações culminadas.
Ainda que o que tenho escrito até aqui, acredito, esteja margeando-se por uma
teoria quase demasiada, pretendo cuidar mais para que este capítulo seja o
que mais pondere conceituações que não concernentes ao ato prático, tanto
meu como de outros e outras dançarinos e dançarinas – caso isso tenha
ocorrido nos capítulos anteriores, sobretudo pois tudo o que foi escrito parte da
prática da leitura, da dança, da vivência com Clarice e Butoh. Pretendo
explanar sobre improvisações na dança, com devido estudo e embasamento.
Esse capítulo contará com registros de práticas também como fotografias,
relatos escritos e demais ocorrências.

Para este capítulo pretendo trabalhar de forma intensiva com obras que
esboçam trajetos mais práticos do movimento:

● Maura Baiocchi – ​Dança Butoh Veredas D’Alma

● Christine Greiner – ​Butô. Pensamentos em Evolução

● André Lepecki​ – Exaurir a Dança

● José Gil​ – Movimento Total

● Kazuo Ohno – ​Treino E(m) Poema

● Michel Foucault – ​A Escrita de Si

DANÇA CRÍVEL E INCRIÁVEL.

À princípio, a leitura alavanca processos de improvisação no corpo. Não


se dança no espaço, a partir e através do texto, tendo um modo de realização
59

disso. O que há então é o traçar de improvisações percebendo


cuidadosamente que tocante se aproximara do que foi mobilizado na leitura. É
começar nos meios, retornar não mais ao que pode ter sido um princípio, para
novamente seguir sem que isso pressuponha um retorno, o que há mesmo é
fazer pausas. Convencionalmente, um texto parte das linhas que alimentam
uma cadeia estruturada de coreografia, logo, seria lógico pensar em dançar a
reverberação do contato precedente através de resgates de intenções geradas
no ato da leitura, uma operação relacionada às lembranças da afetação.
Contudo não se trata de um processo que diretamente me interessa nesse
estudo.

Certa vez, em um experimento realizado em sala de prática, após ter


concebido que não se trataria da ocorrência de uma tradução da palavra
clariceana para movimentos no Butoh, fui, na busca por outros modos, no
interesse em separar uma hora do tempo ali em sala somente para ler Clarice.
Como já havia notado em leituras ocorridas em outros espaços, os textos
clariceanos me tomam emocionado, em desconhecimentos e o que mais
reconheço por vitalidades da alma, logo, pensei que ler por determinado tempo
um livro de Clarice – neste dia ​Água Viva – ​me possibilitaria encontros com
afetos e realidades que me mobilizam dança, e, já estando em sala faria uma
experimentação dentro logo das sensações suscitadas na leitura. Ainda que
partindo de uma leitura em um espaço de tempo mais próximo ao externar dos
movimentos, havia um tempo que refutava o espaço do tempo da palavra. Não
digo que não funcionou, ou que drasticamente errei na escolha, não se trata
disso, funcionar ou não funcionar. O que fui notando, e utilizo disso para cuidar
eticamente aos afetos, foi como as forças ali envolvidas se potencializavam ou
não. É que não tem como diretamente explanar os modos de percepção que
surgem fitando os contornos das forças mobilizando realidades ou sendo
sucumbidas por controles externos. Recorro então ao que cita Ohno (2016, p.
50): “O que importa não é simplesmente expressar de modo estreito ou largo, e
sim a relação que se estabelece com a energia, através dos movimentos – é
isso que armazena a força que palpita em seu interior. ” Em suma, nesse
exercício realizado, percebi que, mesmo a leitura tendo sido feita muito próxima
60

ao sair do texto para agenciar movimentos na sala, as palpitações das


afetações precedentes perdia força.

A realidade corpórea desvela-se das convenções quando atravessada


pela palavra que escapa, logo, se pensando essa forma de intensificação da
presença, pelo gesticular virtual da dança, se faz necessário desejar a dança
quando já instaurada, e não criada a partir da palavra. A instauração partir-se-á
da atualização da dança, adentrando não um modo de instauração novo, mas
um modo de instauração redistribuído a partir de modulações virtuais em que
se esboçam movimentos. Em suma, instaurar a dança nos agenciamentos
externos seria:

Fazer existir, mas fazer existir de certa maneira – a cada vez


(re)inventada. [...]. A partir de então, instaurar é como se tornar
advogado dessas experiências ainda inacabadas, seu porta-voz, ou
melhor, seu porta-existência.​ ” ​(LAPOUJADE, 2017, p. 89-90).

Através do instaurar-fazendo-existir o modo de afetar-se com o texto ganha


outras dimensões possíveis de movimento, através de uma realidade
reconfigurada na forma como o dito – ou a impossibilidade dele – se apresenta.
Isso possibilita traçar no corpo dimensões da dança partindo da incerteza. Não
se pressupõe a incerteza como método relativista da palavra não entendida,
mas como o ainda desconhecido que dinamiza perspectivas plurais. Nessa
proposta de incertezas na linguagem que instiga horizontes é possível notar –
digo isso a partir do contato prático – crises no desejo de exprimir os
agenciamentos externados pelo interesse em representar a precedência que o
habita. Peretta (2015, p. 136) cita isso pelo viés do “ponto interno de crise”, e
prossegue, “no qual o “muco”, preso no interior do dançarino, pudesse forçar a
si mesmo para fora de seu sistema habitual [...]”​31​.

Clarice reivindica o mover do corpo, o fazer – instaurar-se – dança,


conceber novas relações e novas realidades quando cita: “Realizo o realizável
mas o irrealizável eu vivo. ”​32 Esse pensamento de Clarice me surge na
lembrança corpórea quando experimentei, no centro da cidade de
Florianópolis, a dança Butoh. Havia um trajeto a ser feito, em um espaço de
travessia constante dos transeuntes. A travessia densa em um espaço que

31
Ibdem.
32
(LISPECTOR, p. 2019, p. 75)
61

quase se liquefez pela incessante passada de corpos que trafegavam


apressados, exprimiu em si uma realidade de intenção de tráfego
perceptivelmente discrepante. Ambiente de rotina, vida semanal, horário que
corre entrecruzando passagens rápidas. Sistematicamente entendível,
internamente instigante. Pensar uma prática de Butoh dentro desse contexto de
centro-cidade, no moinho de circulações descompassadas e de visualidades
constantemente sendo atualizadas pelos corpos que nelas transitam, é não
ignorar que, ainda que em propósitos diferentes – do corpo organizado pela
rotina de trabalho e produção, e do corpo Butoh seguindo intenções –, há no
entre que as diferencia uma potencialidade que pelo espaço de diferença as
relacionam reciprocamente, é o que Lapoujade (2015, p. 108), segundo o
pensamento construído por Gilles Deleuze, expõe por uma ​disjunção inclusiva.

Figura 3 - Acervo Pessoal.


62

Partindo de um contexto político utilitarista, esse modo de atuação do


corpo no ambiente, descompõe arquétipos sobre a presença corpórea e a
dança. Subsidia correlações que potencializam meu estudo Butoh pelo viés de
entender-se inserido enquanto corpo que não pressupõe determinações
estritas e/ou modos de expressão específicos, com isso, seguindo o que
Tatsumi Hijikata acima chamou de ​dança despropositada. ​A partir de ater-se ao
irrealizável como maneira de relacionar-se à dança Butoh, e principalmente
exercendo-a – e sendo exercido por la – naquela situação em espaço de rua,
os trajetos práticos foram desvencilhando-se de pequenas prisões de estar
sendo visto – ou ignorado – por outros e outras, e sem dúvidas,
desvencilhando-se de estranhamentos que compuseram restrições às
experimentações, segundo pensamentos ponderando exaustivamente minha
discrepância àquele lugar e as consequentes sensações de não pertencimento.
Quando me ocorre o irrealizável em manutenção de minha permanência
naquele ambiente, potências da dança se instauram concomitante às
percepções geradas pela transição dos corpos e(m) meu trajeto dançado.

Expor-se às fronteiras nos expõe ao excesso, ao pensar que


particulariza o fazer, o estar, o mover-se. As fronteiras de um espaço que
abarcam sua funcionalidade, atividades diárias e tempo, contrastam veemente
a percepção se se estabelece ali o intuito renunciado de relação-Sendo. Ou
seja, expor-se a sofrer a saída dos segmentos previstos cotidianamente.
Começo da tarde. Carros passavam, pessoas transitavam e
sonorizavam o ambiente. Um dia da semana que seguia seu curso. Sons
diversos, gestos codificados e uma vida que seguia seu curso. Corpo
desorganizado, mãos que internamente atritando-se desejando movimentos
que não somente os premeditados pelos interesses das políticas de
organização dos corpos sociais. O estranhamento exposto em algumas
expressões faciais ou até: “​que porra é essa? ”,​ e ainda “isso é a lacraia? ”,
propuseram possibilidades de contato ao corpo que instantaneamente se
estabeleceram no instante de recepção, como respostas gestuais e energéticas
de uma escuta atenta, embebida pelo estado de porosidade aguçados no
estranhamento ali instaurado.
63

Dentro dessa experiência, no ato de estar dançando, pensar no contexto


que a prática estava inserida, que demandas cotidianamente aquele espaço
urbano fazia circular, e principalmente, se propor no espaço enquanto corpo
que se relaciona com os outros corpos, suscitou ao ato, um estado de
presença e percepção que, após mobilizações ocorridas pelo viver o
irrealizável, se potencializaram tanto nos aspectos de afetar-se por sentir-se
fazedor e pertencente àquela sociabilidade, quanto em potência de atuação – o
instante.
Me senti acuado, assumindo o lugar de um corpo marginal, como se se
tratasse de um bicho estranho e desprezível. Me senti acuado, mas não senti
que precisava recuar. Foi outro estado de sensação. Me senti um rato correndo
entre as passadas das pernas, mas sabia que não me pisariam. Ainda assim,
não hesitavam em ameaçar pisar. Um corpo formado pelas inúmeras
passadas, em relação com um corpo miúdo por ser numericamente um –
desvencilhando-se de noções arquetípicas. Dançar dentro de um contexto que
me expõe e me proporciona estados de estranhamento no corpo e no
mover-me, contribui pôr em prática noções de fronteiras, entremeios, relação e
paradoxo, presença e percepção que racham brechas no pensar o
“mundo-corpo e corpo-mundo. ” (FABIÃO, 2010, p. 323). Este diálogo entre
leitura e mundo, mundo e corpo, afeto e segredo, se estabelece a partir do
desejo ​apaixonado pelo que não foi dito, pelo que reside no desconhecido da
materialidade que Clarice Lispector possibilita na visceral e de preciosas
urgências irrealização, que move a dança nos âmbitos virtuais constituindo
meandros que a tornam força intensiva, atuação que gera catástrofes nos
bloqueios vigentes.
Quando tenho trazido relações como instaurar e criar, atual e virtual,
“não se trata de conciliar contraditórios, mas de criar seres intermediários,
mistos ou medianos para povoar os intervalos. ” (LAPOUJADE, 2017, p. 86).
Povoar, através dessas possibilidades, a dança intervalada nos entremeios do
não entendimento da palavra de Clarice Lispector.

Quando fui para sala de prática, a relação que se dava era menos de
criar a partir de, do que ser movido pelo que Erin Manning chama de “uma
64

constelação de movimentos”​33​, ou “constelações singulares de universos”​34​, em


suma, uma névoa circulante pelos impulsos do meu corpo gestado pelo modo
​ e o amplia aos pontos de percepção em sua
como Clarice ​honra o ordinário35
literatura. Logo, entender que os encaminhamentos se dariam menos por,
primeiramente leitura e posteriormente o vir a ser dança, e mais por
entrelaçamento que correlacionam as duas dimensões. Isso me proporcionou
outras relações de atuação e disponibilidade do dançar, menos subsidiado pela
precisão coreográfica e mais estabelecido em linhas de aproximação da dança
coexistindo à redução perceptiva, pela dispersão de nos múltiplos focos ali
instaurados – sendo testemunha das manifestações que compunham o
instante de leitura.

O movimento deslizante pela sala na temporalidade do que é ínfimo, as


fricções no entrecruzamento tensão-relaxamento, os modos de intenção de
presença do corpo, eram zonas na dança alimentadas pelo que não se entende
na linguagem de Clarice. Pus-me no meio da sala, corpo inútil e
despropositado, buscando agenciamentos e movimentações tangenciadas pela
intenção, pelo ​critério,​ em mergulhar no que é conhecer os meandros do Butoh
no corpo. A palavra de Clarice autorizando que se desautorize as estruturantes
de um corpo que intui dançar movimentos belos​36​ e harmônicos.

Essa dança, que se expõe nesses escritos e que carrega este corpo que
escreve, pode ser desenvolvida pela perspectiva da palavra em vias de
devir-dança, e referir-se à atuação desses dois movimentos – escrito-lido e
agenciado-instaurado – pelo viés de segmentos das linhas não localizáveis que

33
Interlúdio de “Sempre mais do que um”: a dança da individuação. 2015, p. 104. Tradução da profa.
Dra. Bianca Scliar.
34
GUATTARI, 2012, p. 110-111.
35
Expressão utilizada por Richard Schechner no texto ​O que é Performance? (2000) ¸ onde o autor
aborda o potencial expressivo-ritualístico que se pode observar na vida diária.
36
O Butoh se desenvolve politicamente por premissas de subversão do que é socialmente aceitável, não
se direcionando, nesta breve explanação, exclusivamente ao contexto de Pós-Segunda Guerra onde o
Japão viu-se violentamente sucumbindo em estandardizações, mas partindo também de subversões de
estruturas hegemônicas que atravessavam os corpos de Kazuo Ohno e Tatsumi Hijikata antes mesmo da
perda sofrida pela nação japonesa para com os EUA. O que se caracteriza por belo na dança Butoh,
apresenta-se pelo viés de enfatizar o mau gosto, o feio, o corpo deteriorado, expondo que outros modos
de composição da vida são necessários, inclusive, no ato de dançar uma dança que tanto busca relações
de aproximação ao que é vital ao corpo. Hijikata apud Peretta cita: “Escuridão é o melhor símbolo para a
luz. Não existe possibilidade para se entender a natureza da luz se nunca observarmos profundamente a
escuridão. ” (HIJIKATA apud PERETTA, 2015, p. 68).
65

o próprio devir atrela-se em seu funcionamento intensivo. Segundo Gilles


Deleuze e Félix Guattari

Um devir está sempre no meio, só se pode pegá-lo no meio. Um devir


não é nem um nem dois, nem relação de dois, mas entre-dois,
fronteira ou linha de fuga, de queda, perpendicular aos dois. Se o
devir é um bloco (bloco-linha), é porque ele constitui uma zona de
vizinhança e de indiscernibilidade [...] (DELEUZE e GUATTARI, 2012,
p. 96)

Essa relação ​entre-dois na palavra-dança, inerente ao Butoh, conduz os


processos de pesquisa no corpo, até chegar à compreensão – medida – sobre
como são afetados os movimentos no contato com os ditos clariceanos. A
relação palavra-dança; o não entendimento como matriz dos movimentos
despossuídos de automatizações cotidianas; a proposta de desorganização
estrutural-corpórea do Butoh enquanto dança; o dizer para além do possível
em Clarice Lispector, são algumas das manifestações que não constroem as
dimensões do corpo em cena, mas aguçam que ecos ressoam dispondo mais
espaço às verdades de cada corpo.

Um dos grandes fatores de crise nesse estudo da palavra em vias de


devir-dança é o “começo” da dança em sala de prática. Isso é um fato. Cada
vez que me proponho a realizar experimentos partindo dos campos
disponibilizados pelo não-entendimento na palavra de Lispector. Acontece que,
se o desejo de dançar não buscar aproximações com um viés poético, pode
ocorrer facilmente de cair-se nos interesses buscar começos. É sempre um
risco se propor começos, quando a relação temporal determinável de algo não
se presume a partir de uma perspectiva isolada.

O começo não foi uma problemática nas práticas por aspectos


metodológicos. Poderia começar como Ohno começava seus trabalhos,
segundo cita Éden Peretta: “Ono acredita que a dança deva começar
exatamente nos gestos cotidianos, os quais serviriam como porta de acesso a
uma realidade mais profunda. ” (PERETTA, 2015, p. 133). Em outro momento o
autor de ​O Soldado Nu complementa dizendo que“o processo metodológico de
investigação corporal proposto por ele [Ohno] começaria, desse modo, pelo
desvelamento do ​self e pela sua posterior possibilidade de desconstrução. ”​37
No entanto, a relação de começo que penso aqui, seria entender os estados de
37
(Ibdem, p. 139).
66

desejo do corpo ao agenciar contornos à dança acontecendo virtualizada, e


não somente pôr em prática propostas metodológicas – que não as excluo,
mas é possível que se busque outros segmentos para explorar o que pode o
corpo. Não ensaio para ler Clarice Lispector. A dança que se compunha a partir
disso é já indiscernível e emaranhada num processo de ​meios.​

Cito Kuniichi Uno, no livro ​A Gênese de um Corpo Desconhecido,​ com


uma abordagem que estimularia pensarmos o começo do dançar; para dançar
Butoh:

O começo é uma questão sempre complicada. Como começar? Já


que quando você começa, se não há nada antes de você, você não
pode sequer começar, mas já se existe alguma coisa antes de você
começar, você não pode verdadeiramente começar. Em resumo, você
não consegue nunca começar qualquer coisa que seja, é sempre um
outro que começa. Um outro que você ignora começa antes de você,
enquanto você não existia ou quando você ainda não sabia que algo
começava. Você nunca pode dominar o começo. (UNO, 2012, p. 63)

Essa perspectiva de existência precedente ao se pensar o começo na dança,


refere-se primeiramente à relação do Butoh com existências que antecedem
nossa materialidade presente, presença de mortes​38 convivendo no corpo que
dançamos hoje. Como já abordado anteriormente, a dança Butoh, em âmbitos
relacionais para com a palavra clariceana, e mais especificamente às
incompreensões clariceanas, se concebe pela dialógica do atual e virtual, onde
a dança mobiliza-se já no instante em que o corpo se afeta pelo dito implícito,
logo, a virtualização gerando espaço corpóreo já traça vibrações devindo
dança. Se trata de uma dança que está constantemente por ser descoberta,
“por ser encontrada, talvez reencontrada ou reinventada [...]”. (UNO, 2012, p.
43).
Em um determinado dia na sala de prática, após aquecer, me vi na crise
do começo. Dancei de forma mais deliberada, rebusquei na memória instantes
de leituras precedentes e as sensações no momento, estipulei distâncias a
serem traçadas explorando movimentos pequenos, gravei vídeos, os assisti,
dancei músicas no modo aleatório do celular, transitei entre tensões e
expansões dos músculos, até que optei por parar de buscar a dança. Pus uma
cadeira no meio da sala, uma música mais lenta e peguei o livro ​Água Viva, ​de

38
Pretendo em capítulos seguintes, aborda de forma mais atenciosa a morte e a dança Butoh,
contextualizando fatores históricos, éticos, político e artísticos.
67

Clarice Lispector. Meu interesse ali era somente aquela cadeira, os sons da
sala e da área externa se interferindo mutuamente, e estar com aquelas
palavras. Não busquei especificamente uma frase que me tenha acessado
blocos de afetos em leituras anteriores àquele momento, fui passeando pelas
palavras. Em dado momento percebi que algumas minúcias se mobilizavam na
minha presença corpórea ali. Meu interesse havia mudado. Fui então
retornando ao trabalho dos movimentos mínimos, depositando o livro no chão e
deixando que aquele novo ambiente fosse composto por novos modos de
instauração da dança, agora menos querendo-a e mais se pondo querido à ela.
O que estava sendo mobilizado partia de zonas não coreográficas, mas
imbuídas de uma língua que possibilitou o irrealizável como vertente de
atuação. Foi ali, nos mundos entreabertos pelo irrealizável, que me percebi
acessando a inutilidade como potencialidade da dança.

Capítulo ​4

Este capítulo trata de trazer para a pesquisa a relação espaço-temporal


como uma potencialidade indispensável quando pensamos dança, palavra,
escrita, corpo, em conversa. Para isso pretendo, continuando o que foi escrito
nos movimentos anteriores, evidenciar aspectos do espaço e do tempo
atuando na produção de presença do corpo, atrelando sempre essa
possibilidade relacional às incompreensões na literatura de Clarice, logo, sendo
estas a grandiosa matriz que suscita esse coexistir da
corporeidade-espaço-tempo-ambiente, entendendo que quando não se
entende uma determinada situação linguística clariceana, outras instâncias
interpretativas interferem atuantes no pensamento lógico, este não mais
sobreposto. São premissas relacionais da dança testemunhando o
espaço-tempo germinando-se exponencialmente do não entendimento
evadindo-se a percepções e recepções mais aguçadas do lugar onde se
​ e
habita, e não mais, somente, está – enquanto estadia. A partir da ​Redução d
Étienne Souriau, explanada por David Lapoujade em ​As Existências Mínimas​,
penso na ​Dispersão,​ não com intuito de dispersar a atenção, mas tê-la
abrangendo modos perceptivos que o corpo pode exercer, que não somente
68

por sentidos imediatos. A princípio pode ser que essa proposta esteja se
vinculando a uma atenção multifacetada, o que de forma alguma é o que eu
intuo, mas também entendendo que isso se tornará melhor explicitado
posteriormente, principalmente após ter lido ​Sociedade do Cansaço.​ Procurarei
também desenvolver mais perspectivas a respeito da dança pessoal, esse viés
de singularidade imanente ao que tenho percebido no Butoh.

Para este capítulo pretendo trabalhar com tais obras:

● Félix Guattari –​ Caosmose

● Suely Rolnik – ​Esferas da Insurreição

● Byung-Chul Han – ​Sociedade do Cansaço

● Gilles Deleuze e Félix Guattari – ​Mil Platôs V.3


● Hans Ulrich Gumbrecht – ​Produção de Presença.​

Essas obras me contribuem pensar na descentralização do sujeito


provedor das relações que se estabelecem no cotidiano. Penso, juntamente
com esses autores e autora, trazer a coexistência e visualizações que não
somente a de quem vê daqui, mas quem vê da posição de estar sendo
também visto.

REDUZIR PARA DISPERSAR

Como já dito, o dizer de Clarice não se delimita por pressupostos da


narrativas estritas, controladora dos eventos que o impulsionam. Isso
​ q
interessa-me pelo viés de criações de ​subjetividades inusitadas39 ​ ue
alimentam o fluxo corpóreo onde transitam as ramificações do Butoh que
​ la relaciona-se com o que atravessa o seu corpo e a
carrega meu corpo. E
ponta dos seus dedos​40​, para que o exprimir seja exprimir-se junto ao que
nasce​41​. Isso não quer dizer que Clarice não diga o óbvio. E mesmo confessa:
“o óbvio é muito importante: garante certa veracidade. ”​42 Não obstante, o óbvio

39
GUATTARI, 2012, p. 106.
40
Ver página 6.
41
“Não se faz uma frase. A frase nasce”. (LISPECTOR, 2014, p. 179)
42
Ibdem, p 132.
69

que Clarice expõe é o rato ruivo e morto​43​, é o cego mascando chicletes​44​, é o


ovo na cozinha​45​, o leão​46 que lambe a testa glabra da leoa em plena
primavera.

Essas manifestações ordinárias que atravessam os percursos literários


de Clarice, são manifestações no cotidiano que inserem a autora em zonas
relacionais, que transfiguram decursos lineares em eventos de receptividade
plural. Clarice participa da percepção do óbvio pelo cerne da redução, conceito
que Lapoujade, em seu estudo sobre a teoria das existências mínimas de
Étienne Souriau, cita:

Para mostrar a variedade dos modos de existência, Souriau invoca,


de fato, uma redução “existencial”. Mas o adjetivo talvez não
convenha. A redução que ele quer seria antítese exata da redução
fenomenológica, na medida em que se trata de ressaltar, a cada vez,
o ponto de vista expresso por esse ou aquele modo de existência, em
lugar de subordinar todos eles ao ponto de vista da consciência.
(LAPOUJADE, 2017, p. 47).

E ele continua (2017, p. 48) dizendo que “a importância da redução, em geral,


é instaurar um plano que torne possível a percepção de novas entidades. ”
(LAPOUJADE, 2017, p. 48). O óbvio em Clarice se dá através do contato
aquém das interpretações subsequentes ao que se vê – percebe. Ela diz: “[...]
procuro ver estritamente no momento em que vejo – e não ver atrás da
memória de ter visto num instante passado. O instante é este. ”​47 Inclusive este
que escrevo. Em contato com o que está disponível como perceber onde pode
ocorrer a redução. Há na aproximação do ver-em-alteridade-ao-visto,
implosões ávidas – em palavra ou dança, ou melhor, palavra-dança –
sobretudo na maneira em que o que se exprime é da ordem de um tempo
menor​48​. O que leio sobre o rato ruivo e morto, por exemplo, sua presença
repulsiva e calamitosa, apresenta-se a mim pela palavra inacabada, a partir da
narração concatenada pelos engenhos reduzidos de quem sofre o susto.
Quando Clarice diz que é muito mais completa quando não entende, é de se

43
Conto: Perdoando Deus.
44
Conto: Amor.
45
Conto: O Ovo e a Galinha.
46
Conto: O búfalo.
47
LISPECTOR, 2019, p. 79.
48
O tempo menor do que o mínimo de tempo contínuo pensável numa direção é também o mais longo
tempo, mais longo do que o máximo de tempo contínuo pensável em todas as direções. (ALLIEZ, 1996,
p. 55)
70

especular o não entendimento como​49 completude do que se manifesta no dito


e no interesse expressivo da autora.

O plano que Lapoujade cita acima pode ser pensado a partir da


proposição de dois modos de escritas esboçados por Deleuze e Guattari,
sendo o plano de organização e o de composição, que são respectivamente:

Um plano transcendente que organiza e desenvolve formas [...]; e um


plano totalmente distinto, que libera as partículas de uma matéria
anônima, faz com que elas se comuniquem através de um “envoltório”
das formas e dos sujeitos [...] de tal modo que o plano é percebido ao
mesmo tempo que ele nos faz perceber o imperceptível. (DELEUZE e
GUATTARI, 2012, p. 59).

Vale ressaltar que a introdução dessas propostas conceituais não


contrapõe-se, mas são dois tipos de planos com suas devidas intenções de
atuação. A apresentação dos planos de composição e de organização não
intui a exclusão do mais unidimensional em prol do mais plural. Para explicar
melhor a relação dos planos e ilustrar o fato de não serem autoexcludentes
diante da presença do outro, é necessário expor que:

[...] o plano de organização não pára de trabalhar sobre o plano de


consistência, tentando sempre tapar as linhas de fuga, parar ou
interromper os movimentos de desterritorialização, lastreá-los,
reestratificá-los [...]. Inversamente, o plano de consistência não para
de se extrair do plano de organização, de levar partículas para fora
dos estratos [...]” (DELEUZE e GUATTARI, 2012, p. 63).

O plano em que mais me interessa traçar zonas de vizinhança parte das saídas
de fuga e, nota-se, está mais próximo do plano de composição, no entanto,
este não se compõe unilateralmente, logo, a atuação de ambos está mais para
correlações do que contrapontos excludentes entre si.

Penso a redução, a partir da dispersão da atenção​50 no ambiente. Não


me refiro ao dispersar que irrompe o contato, que se atrelaria ao perceber
intuindo melhor desempenho, o que, na verdade possibilita pouco ou nenhum
contato com o que se entra em contato, mas o ​reduzir para dispersar​. Isso está

49
Opto por trazer essa nota de rodapé para explanar melhor a palavra “como”. Deleuze e Guattari
(2012, 70), pensam essa palavra a partir do seguinte viés: “A palavra “como” faz parte dessas palavras
que mudam singularmente de sentido e de função a partir do momento [...] em que fazemos delas
expressões de devires, e não estados significados nem relações significantes. ”, ou seja, o não
entendimento pensado ao lado da completude, a qual também se refere Clarice Lispector em uma
citação anterior [ver pág. 8], estão não enquanto metáfora, mas sim através relações de aproximações
vibracionais.
50
“A atenção é [...] uma forma de conhecimento” (FABIÃO, 2010, p. 322)
71

presente no estado de leitor-testemunha e corpo-lido-pelo-que-lê. Esse ato de


conexão atenta propõe reduções e encaminhamentos aos imperceptíveis.
Assim dizendo, os atravessamentos que a língua de Clarice ​pode fazer​51
emergir, auxiliam reduções no campo perceptivo e dispersões dessa percepção
para outras relações de receptividade do que compõe o instante-presença, ou
como chama Eleonora Fabião, a receptividade que compõe o ​presente do
presente​52​. Após a redução da percepção, a dispersão articula-se
disponibilizando singularmente afetações recebidas pelos pés, dedos, joelhos,
boca, pele etc. Dizendo assim, as interatividades do corpo receptor-fornecedor
de afetos acirram o contato com o que o ambiente – espaço-temporal – dos
outros corpos – humanos e não humanos – podem exercer de potências
subjetivas para além dos estratos. Trata-se do que enuncia Félix Guattari: “São
novas maneiras de ser do ser que criam os ritmos, as formas, as cores, as
intensidades da dança. ” (GUATTARI, 2012, p. 109). O desajuste desse modo
de relação com o espaço-tempo se executa dentro da largueza que Clarice diz
existir no não entendimento como completude.

Essas propostas de percepção aguçada a partir da redução e da


dispersão que estão se desenvolvendo aqui, apresentam a relações a partir do
entrelaçamento palavra-dança, sendo intransponível que o fator espaço-tempo
não esteja veementemente instaurado por outro viés de realidades diferentes
ao que é possível no cotidiano que as confina, sobretudo por serem, essas
novas realidades, compostas através do que se entremeia, se correlaciona, e
não mais se justapõe. Por isso a necessidade em evidenciar o estado de
testemunha existente na leitura de Clarice Lispector e seus ditos por vias de
incompreensão. Como cita Varin (1989, p. 56): “Para lê-la, temos que unirmos
a ela”. E para dançar o Butoh são necessários os estados perceptivos que
corroboram ao gerir do corpo testemunhando as existências que contribuem na
contextualização dos movimentos que não se geram de uma univocidade, mas
de linhas que se potencializam pelo viés do coexistir. Através do testemunhar a
palavra, o ambiente, os movimentos mobilizados no corpo, as sensações,

51
Opto por usar essa expressão para que não sigamos pressupostos da linguagem literária de Clarice
Lispector enquanto um dogma poético, logo que há mutabilidades inerentes dependendo do corpo que
lê.
52
Eleonora Fabião em ​Corpo cênico: Estado cênico, ​2010.
72

sonoridades, minúcias presentificadas, cria-se espaço às realidades. Segundo


Lapoujade (2017, p. 91), “sabemos que a melhor maneira de solapar uma
existência é fazer de conta que ela não tem nenhuma realidade”, logo, o
contrário do que ocorre nos interesses em testemunhá-las a partir de instâncias
perceptivas que singularizam o corpo e concomitantemente a dança que esse
corpo carrega, visto que “qualquer coisa de singular em sua singular
experiência de corpo” (UNO, 2012, p. 56) o faz dançar em ​free style​.

O corpo se compõe e se redistribui pelos processos de redução e


dispersão nas dimensões espaço-temporais em que está inserido. Esses
modos perceptíveis possíveis engendram zonas de potência ao dançar.
Quando me refiro ao corpo, não é objetivamente ao corpo material que se
portaria a uma outra materialidade após relações com os campos perceptíveis
fora da demanda cotidiana. Esse processo de alimento da presença corpórea
subsidia a existência de múltiplas referências de sensações, emoções e afetos
ao corpo disponibilizando caminhos de ​encontro à dança Butoh​53 de cada
corpo.

Essa noção da dança de cada corpo, de Butoh que se despe pelos


modos que cada corporeidade se vê revestida, está para o que cada dançarino
e dançarina encontram de perspectivas e modos de manutenção do ​élan que
os move. Clarice, em uma entrevista concedida a TV Cultura em 1977, em uma
das preciosas exposições que faz, tangencia esse pensar do dançar Butoh a
partir das singularidades, evidentemente, referindo-se ao seu trabalho literário
e a recepção dele em cada leitor e leitora a respeito de entendê-la ou não.
Clarice diz:

Por exemplo, o meu livro ​A Paixão Segundo G.H… Um professor de


português do Pedro Segundo veio lá em casa e disse que leu quatro
vezes o livro e não sabe do que se trata. No dia seguinte, uma jovem
de dezessete anos, universitária, disse que este livro é o livro de
cabeceira dela. Quer dizer, não dá pra entender. […] Ou toca ou não
toca. Ou quer dizer, suponho que me entender não é questão de
inteligência e sim de sentir, de… de entrar em contato. Tanto que o
professor de português e de literatura que era, devia ser o mais apto

53
Tadashi Endo, um dos grandes dançarinos e disseminadores do Butoh atualmente, no vídeo realizado
pelo SESC Paraty, cita que não aprendeu o Butoh, mas sim o conheceu, conheceu o Butoh. Isso ressoa
forte nas concepções prático-teóricas que podemos ter do Butoh. Endo foi aluno de Tatsumi Hijikata e
também de Kazuo Ohno. Seu Butoh pondera cuidados éticos que não o constituam por aspectos
estritamente codificados, por isso é tão necessária sua perspectiva de quem não aprendeu o Butoh, mas
conheceu.
73

a me entender, não me entendia e a moça de dezesseis anos lia e


relia o livro.

Eu particularmente nunca consegui, em anos, finalizar a leitura de ​A Paixão


Segundo G.H. Talvez não tenha ainda a alma pronta, como sugere a autora no
prefácio do livro, que aquela obra só seja lida por pessoas de alma pronta.
Quando no Butoh penso em aproximações às noções práticas do que
seria uma ​dança pessoal não é por aspectos de individuação dessa dança,
logo que, não pressuponho a dança que eu possuo e que é minha dança, mas
uma dança agenciada pela convivência com outras e outros corpos, que, a
respeito de experimentação e prática, concernir-se-ia a trajetória do corpo que
dança.

Segundo Peretta (2015, p. 135), Ohno

Enconraja em seus alunos a perda de suas identidades pessoais para


tornar possível a busca por identidades novas e polimorfas, não
necessariamente humanas, em um processo contínuo de superação
de limites em direção ao desconhecido.

Quando há no Butoh a instância indispensável da trajetória, é possível que


concebemos noções práticas que se enveredam através dos processos que
calcam, potencializam, constroem, reprimem, em suma, relacionam-se a cada
corpo que dança. O Butoh pelo viés de uma dança pessoal – dança, pessoal –
não pressupõe identidades pessoais individualizadas concebendo o dançar,
mas entende-se que, dentro do modo de mover-se no Butoh, dos modos com
que a dança carrega o corpo pelos meandros da Vida, há mobilizações
subjetivas que estão para como cada corpo as recebe, as torna realidade e
existência. Segundo Guattari (2012, p. 11) a subjetividade é “plural, ​polifônica
[…] E ela não conhece nenhuma instância dominante de determinação que
guie as outras instâncias segundo uma causalidade unívoca. ” Logo, esse
modo de visualização do Butoh, por aspectos de singularização da dança que
se esboça de cada butoísta traçando os desconhecimentos imanentes ao que
dança, é também a maneira que encontro de explanar sobre essa dança
contemporânea japonesa sem conduzi-la a uma univocidade que restringiria
perspectivas de abertura às explorações e estudo. Um trabalho pedagógico
não é de todo dispensável, “deve existir para essa abertura e precisamos de
técnicas para realizar a abertura. Mas o que importa está fora do trabalho e da
técnica. ” (UNO, 2018, p. 142). As fontes de onde se beber estão aí dispostas
74

nos estudos já realizados a respeito do Butoh e como muitos eventos se


deram, ou nos registros deixados por Ohno e Hijikata, vídeos, fotografias,
livros, no entanto o processo antropofágico desse líquido partir-se-á de cada
estado corpóreo ao ingeri-lo.

Segundo Deleuze e Guattari (2012, p. 49), “há um modo de individuação


bem diferente daquele de uma pessoa, um sujeito, uma coisa ou uma
substância”, ou seja, um modo de individuação bem diferente da individuação
que indiferencia o corpo das vivências que o compõe, segregando outros
corpos do processo compositivo que se constrói no coexistir. A essa
individuação-não-individualista, o autores dão por relações o que chamam de
movimento e repouso, velocidade e lentidão,​ que “correspondem um grau de
potência. Às relações que compõem um indivíduo, que o decompõem ou o
modificam, correspondem intensidades que o afetam, aumentando ou
diminuindo sua potência de agir […]” (DELEUZE e GUATTARI, 2012, p. 44).
Trata-se de um modo de individuação-não-individualista chamada de
Hecceidade.​ Muitos dos aspectos traçados dentro dessa visualização de Gilles
e Félix me contribui pensar a dança Butoh, e principalmente, tecê-la por linhas
menos que por pontos.

O que me refiro, em suma, é sobre minúcias do afeto e subjetividades


que não cessam de transitar nas instâncias relacionais para com o
corpo-testemunha das realidades que o cercam, e não o cerceiam, logo, estão
em constante construção de novas promoções de estados na dança, em cada
modo com que essa prática ​irrealíza-se.​ Sobretudo pois,

Você é […] um conjunto de velocidades e lentidões entre partículas


não formadas, um conjunto de afectos não subjetivados. Você tem a
individuação de um dia, de uma estação, de um ano, de ​uma vida
(independentemente da duração); de um clima, de um vento, de uma
neblina, de um enxame, de uma matilha (independentemente da
regularidade). Ou pelo menos você pode tê-la, pode consegui-la.
(DELEUZE e GUATTARI, 2012, p. 51-52).

Com essas noções trazidas, busco não desenvolver uma crítica formalista, de
restrição e/ou classificatória, mas expôr uma das visualizações que traço para
lidar com o Butoh sem enviesá-lo pelos aspectos estritamente técnicos,
metodológicos, passíveis de ensinamentos que o disseminariam pelo viés da
reprodução. Com isso viso “renunciar a qualquer possibilidade de simulação,
75

imitação ou mascaramento, colocando em cena a crueza das transformações


profundas” (PERETTA, 2015, p. 28) de cada estado corpóreo-afetivo. Segundo
Peretta (2015, p. 139), “ser realmente “livre”, na proposta de Ôno, significaria,
sobretudo, liberar-se eticamente do pensamento e do desejo individual,
permitindo assim que a “alma sopre a vida dentro da carne.” ” Tangenciar o
pessoal na dança, as individuações deleuze-guattarianas não-individualistas,
partindo de concepções que concernem-se ao afetar e ser afetado, ​velocidade
e lentidão, movimento e repouso​, em minha leitura até então, não constituem
modos que reproduzam automatismos sociais de noções habituais do ego, mas
sim tratam de conceber a dança Butoh pelas dimensões de aspectos
singulares, não individualizados, mas esboçados pela trajetória de cada corpo.

Dentro da noção de ​dança pessoal, singular em seu desenvolvimento e


excitações​, o que está imbricado é o outro, recebê-lo como matriz de grande
potência do que esboço em movimentos quando danço Butoh. O outro que não
some quando danço a partir dos trajetos que tracei, das vielas por onde andei,
mas que está no coexistir em que atuo dançando. É que “Eu é um outro, uma
multiplicidade de outros, encarnado no cruzamento de componentes de
enunciações parciais extravasando por todos os lados a identidade individuada.
” (GUATTARI, 2012, p. 97). Quando penso no Butoh por vias de uma dança
pessoal, é antes a partir e através outros e outras que me compõem, do que de
um eu que dança ensimesmado.

Segundo Deleuze e Guattari (2012, p. 48), “um corpo não se define pela
forma que o determina, nem como uma substância, ou sujeito determinados,
nem pelos órgãos que possui ou pelas funções que exerce.”, mas pelos
processos intensivos que o atravessam, e esse fator de atravessamento do
corpo com o ambiente é indissociável das relações espaço-temporais em que o
corpo atua entre os perceptíveis e os imperceptíveis.

O não entendimento no Butoh é uma importante vertente, pois possibilita


que se pondere discursos estritamente delimitados – e debilitados por
interesses de produção. Kazuo Ohno, em um de seus aforismos presentes no
Treino E(m) Poema (2010), cita o precioso trecho: “Entendi” – mas o que você
entendeu? Não gosto quando me falam assim. Tentem fazer, mesmo sem
76

entender. “Não entendi, mas me emocionei” – é para isso que se dança. ”​54
Essa abordagem do entendimento deslocado dos pressupostos instrumentais,
evidencia outros seguimentos ao se pensar em dança, movimento, afetação. O
percurso e o interesse coreográfico partem para experimentos práticos que
reivindicam modos singulares de atuação do corpo no espaço-tempo.

A interpretação desse corpo coexistido pelo que o atravessa, se constitui


pela perspectiva de individuação-não-individualista pautada no que Deleuze e
Guattari caracterizam por ​velocidade e lentidão, movimento e repouso​. Esses
processos compositivos que geram o corpo a partir de suas próprias conexões
relacionais, designam o que pode esse corpo enquanto canal de afetar e ser
afetado. Segundo Deleuze e Guattari, nós

Não sabemos nada de um corpo enquanto não sabemos o que pode


ele, isto é, quais são seus afectos, como eles podem ou não
compor-se com outros afectos, com os afectos de um outro corpo,
seja para destruí-lo ou ser destruído por ele, seja para trocar com
esse outro corpo ações e paixões, seja para como com ele um corpo
mais potente. (DELEUZE e GUATARRI, 2012, p. 45).

A palavra que Clarice propõe, o modo como relaciona-se às incompreensões,


torna-se em minha dança um atributo para que o corpo encontre processos de
velocidade e lentidão, repouso e movimento a partir do ​saber não saber​. Assim,
adentro os âmbitos das intensidades, velocidades, repousos, afetar e ser
afetado, e relações espaço-temporais com a dança Butoh, como modo de
fitá-lo sem possuir o que pressuponho ver. Por mais que Kazuo Ohno e
Tatsumi Hijikata​55 não trabalhassem a pedagógica do Butoh pelo viés da
individuação na dança, há outra relação de individuação-não-individualista que
se contrapõe, também, aos modos de reprodução dos automatismos sociais
sobre o corpo.

Abrindo estes dois modos de individuação, é possível notar que a


individuação pressuposta por Deleuze e Guattari pode possuir caminhos
inteiramente potentes ao desenvolvimento dessa perda da individualidade que
Ohno e Hijikata se inclinavam, projetando suas conduções práticas para o

54
OHNO, 2016, p. 26.
55
“Tatsumi Hijikata buscava despertar a sensibilidade corpórea valendo-se principalmente de tudo
aquilo que era considerado negativo pela sociedade, visando provocar sensações profundas encobertas
pelas regras sociais e, desse modo, dar vida a um corpo que conseguisse transcendê-las: um corpo não
cotidiano” (PERETTA, 2015, p. 96). Em suma, um corpo não individualizado.
77

surgimento de novos modos de relações polimorfas. Esse modo de dançar


partindo da singularidade que se esboça concomitante ao instante – de forças
e intensidades – em que se dança, contribuem para a ​vacilação idenitária que
presume Tatsumi Hijikata​56​ e Kazuo Ohno nos trajetos do Butoh.

Os esboços trazidos a partir da singularidade, ​o que toca e o que não


toca,​ as noções deleuze-guattarianas, sugerem aspectos distintos no processo
de individuação-individualista, sobretudo pois, contribuem para a compreensão
da redução e da dispersão no campo relacional da dança como processo que
se dá dentro de cada corpo que os testemunha. A
individuação-não-individualizada é ​in-formada a partir da velocidade e da
lentidão, do movimento e do repouso, do afetar e ser afetado. Essa abordagem
sobre a individuação reitera o espaço-tempo como não homogêneo, e sim
possuidor de, parafraseando Félix Guattari, um folheado de realidades
heterogêneas, possíveis, por exemplo, por palavras incompreendidas em vias
de devir uma dança para além do que deve um corpo. Tal perspectiva,
possibilita relações significativas no processo de composição em dança através
do Butoh, desde concepções que vêm “reivindicar a atenção (PRADO JR.,
1989, p. 22) ao espaço e às percepções temporais, quanto às dissoluções dos
automatismos corporais no dançar. Assim, penso - e pratico - a dança Butoh
através desse processo de latência relacional, onde pode estar mais próxima
da proposta metodológica de ambos os precursores do Butoh, que buscam
tomar distanciamento do desejo individual que aprisiona o corpo de existir nas
potências do existir em interdependência.

Peretta (2015, p. 149) contribui dizendo que “Ohno propunha em seus


treinamentos, formas de anulação da individualidade através do amor e da
gratidão, ressaltando a interdependência dos reinos da existência. ” A forma de
tornar deslizante a individuação do corpo, para Kazuo, parte de princípios de
assimilação da vida por aspectos pouco dissertativos, porque constituídos de
“crença fiel no poder da vida, no potencial do amor e da generosidade, bem
como na força do próprio universo. ”​57

56
Hijikata “estimulava a vacilação identitária de seus discípulos valendo-se principalmente de tudo
aquilo que era considerado negativo pelas regras sociais, tais como o erotismo, violência e
criminalidade. ” (Ibidem, p. 146).
57
PERETTA, 2015, p. 136.
78

Através das estratégias de reduzir e dispersar tomamos para si o poder


de perceber e se pôr em corpo relacional. Investimos diante da vida ​a nossa
atenção para o que alimenta o corpo; o outro, humano ou não humano,
existência inteligível, existência ininteligível, palavra, movimento, olhar, toque,
ausência. A redução que disponibiliza o acesso a novas entidades, a dispersão
como aproximação pura​58​. Esses são alguns dos caminhos possíveis a serem
exprimidos sobre a relação de corpo-leitor-que-lê-e-é-lido.

Reflito a dança pelo viés de corpo-leitor-dançarino, partindo de intenções


menos da descrição do objeto do que objetar-me ao que intuo exprimir –
movimento-palavra-dança-escrita. A proposta de dispersar o campo perceptivo
é sobre desconsiderar dinâmicas articuladas na trama receptiva,
engendrando-a através de outras (des)organizações relacionais. Isso refere-se
ao que Kuniichi Uno cita sobre a dança e a organização do corpo, seguindo
premissas de Antonin Artaud, Tatsumi Hijikata e Merleau-Ponty, no capítulo ​A
pantufa de Artaud Segundo Hijikata​, do livro ​Tatsumi Hijikata: Pensar Um
Corpo Esgotado. Segundo Uno, “é a história de um corpo que questiona seu
corpo nascido com todas as funções e órgãos, a mão que toca, o olho que vê,
os pulmões que respiram etc. ” E ele segue, abrangendo também a escrita:
“Essa experiência do corpo é primordial para entendermos o que acontece não
apenas nas artes performativas, mas também na escrita [...]. (UNO, 2018, p.
78), e, complemento, no modo como a leitura dessa escrita suscita a dispersão
perspectivada em múltiplos focos que irrompem o contato pré-determinado com
o espaço-tempo. Em suma, há nessa proposta de dispersar, a abertura do
corpo às linhas contato-perceptivas para com o ambiente, através de meios
menos hierarquizados do corpo, propondo assim mais espaço de vivência e
testemunho à dança mobilizada pela palavra. Em meus trajetos enquanto
leitor-dançarino, reflito minha dispersão no ambiente – estando atravessado
pela palavra que me desnuda das convencionais perceptivas. Parafraseando
Clarice, quero apossar-me do é da coisa onde está minha dança, e aposso-me
a partir de múltiplas possibilidades de chegada a esse ​é​¸ a partir da elevação
da minha potência perceptiva.

58
“Aquilo que é puro não é mais o essencial ou substancial, mas o elementar ou o simples. ”
(LAPOUJADE, 2017, p. 50)
79

A dança Butoh encontrada com e na palavra de Clarice Lispector,


compõe um mundo gestual comum, mas esse comum se conduz por mundos
singularmente incomuns. Segundo a noção de mundos que aborda David
Lapoujade:

O mundo se torna comum pela comunicação entre mundos privados,


não são os mundos que se tornam privados pela privatização de um
mundo inicialmente comum. Em vez de um mundo comum, há uma
multiplicidades de maneiras ou gestos: maneiras de percebê-lo, de se
apropriar dele, de explorar suas potencialidades. (LAPOUJADE,
2017, p. 57).

Os modos de exploração dos mundos privados, articulam-se por estratégias da


redução perspectivada, da dispersão corpóreo-porosa, de ter-se testemunha do
dito não entendido, sabendo não sabê-lo totalizado. Realizando instâncias
realizáveis, movendo-se em viver o irrealizável que produz afeto, que por sua
vez dispõe zonas de emoção e alteridade às existências de outras realidades
que compõe os meandros dos mundos vitalmente inacabados do Butoh e da
linguagem de Clarice Lispector. Em suma, “nessas minhas divagações também
me dei conta do pouco que sabia, e isso resultou numa alegria: a da
esperança”. (LISPECTOR, 2004, p. 132).
80

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UNO, Kuniichi. A Gênese de um Corpo desconhecido. Traduzido por


Christine Greiner, Ernesto Filho. – São Paulo: n-1, 2012.
UNO, Kuniichi. SANTOS, Laymert Garcia dos. ​Confrontações. São Paulo: n-1
edições, 2016.

UNO, Kuniichi. ​Tatsumi Hijikata: Pensar um Corpo esgotado. Traduzido por


Christine Greiner, Ernesto Filho. – São Paulo: n-1, 2018.
VARIN, Claire. ​Clarice, Olho-de-Gato. In: Revista Remate de Males, 1989, p.
55-61.

REFERÊNCIAS CITADAS EM VÍDEO


Entrevista de Clarice Lispector concedida a TV Cultura no ano de 1977:
https://www.youtube.com/watch?v=ohHP1l2EVnU&t=796s
Vídeo de oficina ministrada por Tadashi Endo no SESC Paraty:
https://www.youtube.com/watch?v=h7a59WlXjiU
Experimento prático a partir da conversa entre palavras de Clarice Lispector e a
dança Butoh: ​https://www.youtube.com/watch?v=tCw49Q-XOJQ

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