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SAILE MOURA
FLORIANÓPOLIS – SC
2020
SAILE MOURA
Orientadora: __________________________________________________
Profª. Dra. Bianca Scliar Cabral Mancini
Florianópolis, 2020
2
RESUMO
ABSTRACT
This research seeks in the work of Clarice Lispector intersections with the
body-speech instances of Butoh. The search aims at sketches of the body in
relation to the notions of incomprehension that Clarice develops in her writing.
With that I trace conversations intertwining the two poetic strands, Lispector and
Butoh, to propose instances in which the Claricean notion of not understanding
might mobilize a dance. Thus, this work conceives practices and focuses on
Clarice Lispector's literature to propose ethical and critical questions about the
movement expressions. These are: Is there dance in bodily states of affect in
reading? How to improvise beyond the symbolic and literal expression of the
literature? Through these and other questions, I propose readings on Butoh,
meanings of movements and ways of maintaining affections. Such suggestions
are intended to contribute to critical perspectives on perception and creation in
dance and to elaborate a poetics of movement that emerges from literary
experience.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ………………………………………………………………….. 6
INTRODUÇÂO
1
LISPECTOR, 2017, P. 47.
2
“[...] quando pronunciamos a palavra vida, deve-se entender que não se trata da vida reconhecida pelo
exterior dos fatos, mas dessa espécie de centro frágil e turbulento que as formas não alcançam. ”
(ARTAUD, 2006, p. 8)
7
3
LISPECTOR, 1999, p. 81.
9
Um dos meios pelos quais esta dança nos chega é através de um livro
glorioso. Quase flutua de tão singelo-esplendor-poético. Trata-se do Treino
e Kazuo Ohno. Aforismos de aulas que Ohno ministrou pelo
E(m) Poema d
mundo, preciosidades que substancializam a secura dos ossos quando a carne
é posta em revolta. Ohno fala do cuidar da vida, cuidar do que é ínfimo,
restabelecer modos de mover-se mais próximos às instâncias do afeto, do que
mobiliza emoções. Ohno cita: “É melhor penetrar fundo, até o âmago dos
âmagos, mesmo das coisas minúsculas, tratando-as com cuidado. Ainda há
tempo. ” É desse viés que tenho partido rumo aos meandros do Butoh”.4
4
OHNO, 2016, p. 24.
10
do que diga ela represente o dito, mas refiro-me ao que representa em minhas
instâncias perceptivas, no que percebo minuciosamente. A dor que é sentir a
alegria sem se saber o que fazer disso; o incondicional desconforto em ver a
cegueira a mascar despreocupadamente; deparar-se com uma necessidade
gratuita que causa o pesar suficiente, e nada restringe. Clarice é – e, se essa
carta não possuísse um cunho formal, eu estaria confortável em apenas dizer
que é. Clarice emociona, confunde, cria instâncias perceptivas e, sem dúvidas,
é motor de um vasto campo de incompreensões que nos subsidiam até aqui. É
então o poder de poder ir além do que rege os entendimentos vigentes. As
incompreensões Saile, elas paradoxalmente são nosso chão. Não o não-saber
que nos afligia nas aulas da 3ª série, mas não entender do modo que faça todo
sentido quando não se tem um sentido estrito, do modo que inebria o corpo
atônito em saber que é capaz de não saber o suficiente e nisso tecer
realidades. Isso é sobre uma pessoa “não ficar aflita por não entender; a
atitude deve ser: não se perde por esperar, não se perde por não entender. ”5.
Solo fértil de dança e escritas urgentes. Quando não, céu aberto. Quando não,
Nada. E sempre vale a pena poder confiá-las os rumos que se manifestam.
5
LISPECTOR, 2004, p. 49.
6
LISPECTOR, 1999, p. 50.
7
No romance A Hora da Estrela, o autor Rodrigo S.M., que é Clarice Lispector, nos apresenta, durante o
desenvolvimento da narrativa, instantes em que, por determinada força irruptiva, o que ocorrera não é
senão um corte substancial na vida de Macabéa, um acontecimento segundo algumas conceituações
filosóficas que mais à frente se esboçam.
11
Não sei em que fase está a lua, mas nosso sol está regendo o mês em
que te escrevo. Estamos prestes a virar ano e isso promove aproximações
alheias. O entre vibratório move-se confortável por essa interferência astral.
Perdão. Por vezes não escrevo diretamente a ti, não como se partisse de mim
a alguém o que escrevo. Por vezes é como estar em transe espelhada; um
descuido e estou vendo o que sei que vejo, contudo, muito desconheço se
decididamente impulsiono entrar num ímpeto impaciente. Ser fitado pela minha
maior representação de mim é um tanto constrangedor. Clarice, tencionando o
que te escrevo, essa noção espelhada, explana sobre isso dizendo: “Espelho?
Esse vazio cristalizado que tem dentro de si espaço para se ir para sempre em
frente sem parar: pois espelho é o espaço mais fundo que existe. [...]. Um
pedaço mínimo de espelho é sempre o espelho todo. ”8 Não percebi, confesso,
o instante em que fui trazido frente ao espelho, mas é que escrever a ti é
inclinar-me a intimidades incomuns, que só poderiam existir nessas
circunstâncias. Sinto que estou perdendo o que te escrevo e essa carta tende a
estar prestes a não possuir destinatário. Estou indo longe, e escrever, tenho
percebido, produz essa luminosidade, aliás, “escrevo pela incapacidade de
entender”9. Que instância temporal se instaura aqui senão a própria quimera
justificada na necessidade que impulsinou essa escrita?
Por fim, e não finalmente, quero que saibas que nada aqui pressupõe
conselhos, avisos prévios. Há sempre o risco em intervir nos acasos. Ao que
me é permitido dizer, ainda lerás muito sobre afetividades, dança, corpo,
desconhecimentos, e mais o que se sentir chamado, seja pela curiosidade,
pela necessidade intelectual, pelas cobranças que fará a si próprio pela faltosa
construção de ensino quando na tenra infância. Não fomos criados nem
projetados para estar aqui. Nunca houve essa projeção do aprendizado
continuado. Sobre isso não concedo culpa a ninguém. O que hoje vale notar é
que ocupo falas, pensamentos, articulações próprias perante opressões, que
8
LISPECTOR, 2019, p. 80.
9
LISPECTOR, 2004, p. 182.
12
não me fazem melhor do que alguém, mas me faz melhor para que eu aprenda
– cotidianamente, processualmente –, a admirar o que se constrói aqui dentro
através do reconhecimento de como e onde estou – e estamos. Podendo ter
melhor percepção sobre os estados pelos quais passamos.
10
LISPECTOR, 2017, p. 54
13
Capítulo 1
11
Kuniichi Uno, A Gênese de um Corpo Desconhecido [2012], p. 55.
15
O ponto de partida deve ser: “Não sei.” O que é uma entrega total12.
12
Clarice Lispector, Aprendendo a Viver [2004], p. 158.
16
dia, cuidando que não seja abrupta a saída dessa espécie de crônica
confessional, reitero caminhos já perpassados. Penso em Clarice no texto
Conversa Descontraída: 1972, no qual a autora alude a imagem dos ciclos da
Natureza ao pintar em palavras a cena: “O dia morrendo em noite é um grande
mistério da Natureza. ” (LISPECTOR, 2004, p. 130).
canal atuante nas atualizações, estando ambas mais para temporalidades que
se esboçam reciprocamente do que se estabelecem em hierarquização. Essa
passagem de temporalidade que se atravessa entre si, se desenvolve, aqui, a
partir de concepções do que acontece na atualização que resguarda
intimamente outras relações de potências atuantes, logo, as virtuais. É sobre
desorganizar uns pontos de vista de começos, para que outras perspectivas se
mobilizem e retracem realidades.
Quando li essa trecho pela primeira vez, o grifei, na tentativa de alguma forma
me assegurar naquilo que dali eu recebia – sem saber o quê. Fui tomado por
uma narrativa que não me demonstrava nada, não me concluía. As
ressonâncias desse texto abarcam leituras que reivindicam estados corpóreos,
sobretudo por enveredar-se pelos desconhecimentos de uma explanação que
não se responsabiliza senão pelo que se imprime. Essa leitura caminhou no
meu corpo aguçando mobilizações virtuais. Como incompreensões vibrando às
corporeidades, após excederem no pensamento lógico. Uno (2012, p. 53) nos
diz que “há uma dimensão que só o corpo pode captar”, e isso está imbricado
nessa leitura compositiva de dança.
porém não exatamente a dança Butoh. Isso pois, desde o seu nascimento no
final dos anos de 1950, o Butoh já parte de desmistificações a respeito de uma
dança pautada em aspectos estritos de como realizá-la. O Butoh é uma dança
contemporânea japonesa criada especialmente por Tatsumi Hijikata
(1928-1986) e Kazuo Ohno (1906-2010). Ambos traçaram perspectivas sobre o
Butoh que redistribuíam noções estéticas, temporais, discursivas e das fontes
onde iriam beber os dançarinos e dançarinas – butoístas, segundo Baiocchi
(1995, p. 19). Para Hijikata sua dança nascia da lama, para Ohno sua dança
nascia da relação do útero materno, o útero materno era o chão onde ele
dançava (Peretta, 2015). Tatsumi e Kazuo se conhecem em meados de 1949,
construindo uma parceria que duraria por volta de 10 anos segundo estudos
realizados por Éden Peretta em sua obra O Soldado Nu (2015).
Segundo Peretta,
Tatsumi Hijikata formulou um projeto político-artístico de ruptura com
os valores contemporâneos, instituindo uma nova concepção de
dança que tinha como fundamento poético a parte decrépita e
anômala da sociedade. O seu projeto corêutico absorvia a
marginalidade obscura repudiada pelas estruturas de poder para
contrapor-se aos paradigmas de um coletivo social conservador
japonês […] (PERETTA, 2015, p. 86).
Já Kazuo Ohno possuía outras noções prático-teórico-instintivas ao conceber a
dança Butoh. Para ele, a dança era “como uma experiência de geração da
vida. ” (PERETTA, 2015, p. 112). A relação cristã, “que não deve ser
interpretada a partir dos paradigmas de um cristianismo puramente ocidental. ”
(PERETTA, 2015, p. 112), a relação com a presença de sua mãe em seu
corpo, a flor como potencial âmbito de tomadas afetivas (Peretta, 2015), entre
outras manifestações que o possibilitavam leituras de mundos menos pelo viés
da metodologia concisa. Sobre a dança de Kazuo, Peretta (2015, p. 124) cita
que “a sua dança apresenta-se fundamentalmente como um modo de
agradecer e contar à própria mãe a sua tentativa de colocar em ato todo
sofrimento pelo qual ela passou para poder gerá-lo.” Ambas as, breve,
colocações feitas a partir das práticas que foram realizadas pelos precursores
do Butoh apontam ausências técnicas em exercer esse fazer-sendo, pois um
dos princípios que rege o Butoh, desde o nascimento e, presente em muitos
relatos, retalhos, registros deixados por Kazuo e Tatsumi, parte de práticas que
se formulem e se reformulem conforme as necessidades impregnadas no
corpo.
27
Neste estudo, “é possível que eu lhe devolve uma Lispector que para
você é completamente estrangeira. ” (UNO, 2012, p. 51), no entanto, não
haveria chances de conceber Clarice e Butoh senão pelo viés de “ficar o dito
pelo não dito” (GULLAR, 2015, p. 553). São silêncios que de tão profundos e
inaudíveis ecoam quase materiais. O fato de não concluírem-se matéria é a
própria matéria desse estudo. Isso pressupõe cuidado, atenção, ética. E como
é vertiginoso!, pois, “ao tentar explicar essas coisas, o sentido escapa. ”
(OHNO, 2016, p 60). É ínfimo, imperceptível, e move substancialmente mundos
e modos de mover-se.
Paisagens textuais
enunciações são um dos modos pelos quais Clarice possibilita que o leitor
perca suas garantias e possa, como em práticas busco tateando,
desvencilhar-se de concepções estratificadas. Ou seja, as paisagens textuais
deste movimento de práticas, destaca modos enunciativos onde se percebe
irrupções, ou mesmo harmonias conflitantes, de sentidos prévios, isto é,
sentidos que dialogam, menos que conservam promoções de conversa.
15
As experimentações práticas estão sendo realizadas desde 2019/2 quando ingresso no mestrado.
Conforme a pesquisa foi se desmembrando e alçando outros voos que os pensados a princípio, fui
adentrando modos e metodologias que expunham caminhos menos de controle e previsibilidade. Há
anotações, registros em vídeos e fotografias, tudo feito dentro dos limites de estar sozinho e sala. Após
realizações práticas, análises revendo os materiais produzidos, conversas em orientações com a profa.
Dra. Bianca Scliar, minha orientadora atenciosa, fui notando que a potência de pensar Clarice Lispector e
Butoh não partia de dançar um texto, mas antes ir percebendo como ocorre os estados de ser dançado
por ele. No link a seguir, trago um experimento que me ocorrem as mobilizações da dança Butoh
durante a leitura de A Maçã no Escuro (1999), de Clarice Lispector:
https://www.youtube.com/watch?v=tCw49Q-XOJQ&t=136s. Os registros de práticas estarão mais
presentes no capítulo Dança Crível e Incriável.
30
alavra, de
Para Kazuo Ohno, segundo o texto A Dança Entre Carne e a P
Éden Peretta presente no livro Treino e(m) Poema ( 2016), “as palavras sempre
se ofereceram antes como um trampolim do que como uma prisão, isto é, mais
como algo que impulsiona o voo livre do que algo que possa limitar a
experiência subjetiva. ” (OHNO, 2010, p. 241). Quando ocorre o
disponibilizar-se às paisagens textuais, no intuito de deixar que o corpo as
receba não como um discurso coreográfico, ou que precise ser coreografado,
mas mais pela afetação àquelas sensações e sentidos, é necessário renunciar
simulações recorrentes. Com isso, algumas questões como: “de onde parto? ”,
ou, “o que faço da palavra? ”, me ocorreram. Acontece que por não se tratar de
um interesse em configurar uma organização. Eu não busco palavras, sentidos
e emoções num texto para então dançá-los. Há existências que germinam no
encontro entre a palavra e a dança, mas que são pouco exprimíveis. Não
exatamente se trata de dizer onde uma manifestação começa e segue
32
puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de
chegada” (LISPECTOR, 2004, p. 66). Por isso ela também diz que escrever é
“uma maldição, mas uma maldição que salva” (LISPECTOR, 2004, p. 179).
Sentir o outro é uma maldição porque sair de si causa desconforto, e salva pois
faz da vida mais vivível que somente tê-la aqui como condição. Clarice expõe a
mim a vida da qual me querem fazer não acessar, porque envolve entrega,
presença, e aceitação do que miseravelmente possui esplendor, se tocado pela
incompreensão. Enquanto dançarino e coreógrafo, me afasto da análise sobre
suas construções linguísticas para entregar-me aos estudos do que está
fisgando meu corpo pela construção do que Clarice chama de sensibilidade
inteligente (LISPECTOR, 2004, p. 47). Há tanto nela sobre amor – digo isto,
receoso, sobretudo pelo perigo de cair em leituras piegas do amor romântico –
que Clarice confidencia: “Sou uma pessoa que tem um coração que por vezes
percebe, sou uma pessoa que pretendeu pôr em palavras um mundo
ininteligível e um mundo impalpável. ” (LISPECTOR, 2004, p. 47). Fez, através
disso, com que aberturas de novas realidades demandassem vida, da vida
cotidiana, e urgências do corpo reconhecendo-se na crueza que se lhe expõe.
narrativa que me facilita a dança, mas me aproxima, pelo afeto gerado, dos
afetos gerindo os sentidos das frases. Parafraseando Prado Jr, o afeto implica
por si a invenção de um novo modo de deparar-se à leitura, cuidá-lo é cuidar
dos tempos em minúcia, efetuações ambivalentes e promoções de dança
mobilizando-se desde as precedências virtuais. Quando li: “Era pouco o que ele
era agora: um rato. Mas enquanto rato, nada nele era inútil. A coisa era ótima e
profunda. Dentro da dimensão de um rato aquele homem cabia inteiro”
(LISPECTOR, 1999, p. 37), me despertou noções de contato com o ínfimo, o
inapreensível, e, como bem expõe Ohno (2016, p. 200), “Por ínfimo que seja o
envolvimento, ele é capaz de destruir todo o universo, e ele existe até mesmo
dentro de um pedregulho, portanto, trate-o com muito cuidado. ” O rato é o
que? O homem, se se tornara algo, se tornara o que se esse algo fosse um
rato? O que dimensiona então ser rato? Como um rato pode me tomar em uma
leitura tão repleta de outras existências menos repugnantes? O que se fazer
disso? Torno-me sumariamente rato. E nisso há modos de mover-se,
entrepostos e imprevisíveis.
39
Capítulo 2
Para esses escritos preciso que segurem minha mão, como Clarice –
sendo Rodrigo S.M., em A Hora da Estrela – pede, para que se sinta de
alguma forma acolhida sobre o que está prestes a dizer, deixo aqui meu estado
de. Segurando a mão de Clarice, exponho, assim como ela que “estou
tentando escrever-te com o corpo todo. ” (LISPECTOR, 2019, p. 29). E a partir
disso, escrever essa dança das palavras.
fácil, tampouco simples conceber essa dança, imaginá-la e/ou redigir sobre ela,
pois, é limítrofe que entremos em âmbitos de descrição e preciso
entendimento. Parafraseando Baiocchi (1995), no prefácio de Dança Butoh
Veredas D’Alma, diria que é sempre muito difícil entender o Butoh sem que
essa atuação do compreensível não gere concomitantemente modificações
nessa arte de transformação e multiplicidades.
Essa perspectiva na dança Butoh me tomou anos atrás, enquanto fazia
graduação em Teatro pela Universidade do Estado do Amazonas, em 2015,
quando estava conhecendo do que se tratava aquela dança japonesa, mas
para mais tarde ir percebendo – com dores, mas sabores substanciais – que
não era esse o papel que eu realizaria, o de entendedor de Butoh, mas sim de
um corpo que se emociona nesse modo de mover-se, de portar-se à vida, de
crer no que não se sabe, de confiar no que não se entende porque impulsos
internos vibram ávidos de vitalidade e desejos quando atravessados pelas
realidades incompreensíveis desta dança.
É a partir desse vasto âmbito da incompreensão que Clarice Lispector e
Butoh se tocam nesta presente pesquisa. Assim como na dança Butoh, através
de autores, autoras, dos precursores, pensadores e pensadoras de Butoh que
o esboçam por vias menos da compreensão estrita, possibilitando-me mais
generosidade no estudo, Clarice evoca em seus escritos o não entender como
potencial matriz de sua língua
de estudos da dança Butoh. Minhas dúvidas, que não são dúvidas contrapondo
a busca por – enfim – certezas, mas dúvidas porque me tornam vastidão e
multiplicidades, minhas dúvidas são os aspectos técnicos que aceito como viés
de prática e condução destas. Minhas dúvidas sobre o que leio reivindicam um
corpo não mais como privilegiado receptor dos sentidos, mas sim
corporeidades sentidas, sentimentos vibratórios, instâncias que mobilizam
movimentos de saber não saber, e não somente saber-sabendo sem saber não
ter esse saber que não pelo viés conclusivo, o que enfim encerraria o saber.
Esse pensamento de Cixous está imbricado no desenvolvimento discursivo e
prático da dança Butoh, logo que, “poderíamos dizer que a prática do Butoh
implica um processo alternado de desconhecimento e conhecimento. ”
(BAIOCCHI, 1995, p. 20). Isto é, em ambas vertentes, há a incompreensão
como modo indispensável dentro do que se constrói e reconstrói tanto nos
movimentos do Butoh quanto no vivenciar de uma leitura de Lispector. Quando
postos em proximidade e relações de contato recíproco, vitais às criações de
novas realidades, tanto enveredam-se pelo que se entende, pelo que sabe que
se sabe, quanto pelos desconhecimentos gerando espaço de experimentação.
O que deve haver nas compreensões é não resignar-se no que se interpreta.
16
Segundo David Lapoujade em Deleuze, os Movimentos Aberrantes (2015), os incorporais referem-se a
produções de estados que se fazem “na superfície dos corpos, como tantos acontecimentos ou efeitos
que nascem da relação de mistura entre corpos” (LAPOUJADE, 2017, p. 121), em manifestações que se
43
correlacionam e coexistem o instante que habitam, como por exemplo eu atuando enquanto
observador das borboletas e sendo tomado pelas realidades que dali se faziam, e as borboletas atuando
nos voos dispersos. Construímos assim composições coexistivas, produção nos incorpóreos.
17
Esse é um dos modos como Maura Baiocchi refere-se ao Butoh no livro Butoh – Dança Veredas
D’Alma, 1995.
18
PERETTA, 2015, p. 4.
44
propostas mobilizam, linhas de fuga para além do que pressuponho ser dança,
para além do que pressuponho ser belo, para a abertura de brechas na
espaço-temporalidade, para se pensar, inclusive, na criação do que Maura
Baiocchi reflete por uma esquizopresença:
23
“[...] pois por pura sede de vida estamos sempre à espera do extraordinário que talvez nos salve de
uma vida contida. ” (LISPECTOR, 2004, p. 141).
46
24
LISPECTOR, 2019, p. 31.
25
Quando trago aqui a palavra exposição, é referindo-a ao modo como Jorge Larrosa no livro Tremores:
Escritos sobre experiência (2019) propõe pensarmos: O sujeito da experiência é um sujeito “ex-posto”.
[...] nossa maneira de “ex-pormos”, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. (Ibidem, p.
26). Mais à frente retorno a essa perspectiva de articulação da experiência de forma mais extensiva.
26
Esse termo refere-se aos automatismos sociais impostos ao corpo como modo de docilizá-lo, logo, o
desnudamento atrela-se ao interesse de redistribuir arquétipos deterministas.
48
CONTINUAÇÕES INCORRENTES
27
LISPECTOR, 2014, p. 179.
50
O não entendimento que me refiro pode bem ser visto como uma
característica relativa. O que é de não entendimento para mim pode ser
completamente compreensível para outros leitores e outras leitoras. No
entanto, a relação que busco para as trocas de partículas moleculares entre a
língua de Clarice e meu corpo dançarino, é a partir das exposições postas
sobre entendimento e não entendimento, compreensão e incompreensão, no
decorrer de seus trajetos literários. Isso não exclui uma outra perspectiva de
não entendimento, que é o modo como Clarice articula a impossibilidade do
dizer dentro de seus escritos, sejam em novelas, contos, romances etc. Para
ilustrar melhor essa segunda abordagem menos delimitativa sobre a
28
LISPECTOR, 2017. P. 110.
51
deseja dizer e sobre essas instâncias não consigo especificar de que forma
estão no texto e nem quais aspectos diretos possuem para que se possa
reconhecer. Essa outra incompreensão não se apresenta na autora explanando
sobre o não entendimento, mas localiza-se às margens do que expõe. Se trata
mais de recepções aguçadas do que buscas perceptivas.
CONTINUAÇÕES INCORRENTES
Era absurdo, mas sempre que lhe aconteciam “coisas” ela intercalava
essas coisas com pensamentos perfeitamente fúteis e
despropositados. Quando Nenê ia nascer e ela estava no hospital,
deitada, branca e morta de medo, acompanhou obstinadamente o voo
de uma mosca em torno de uma xícara de chá e chegou a pensar,
dum modo geral, na vida acidentada das moscas. E na verdade,
concluíra, acerca desses pequeninos seres há grandes estudos a
fazer. Por exemplo: por que é que possuindo um belo par de asas
não voam mais alto? Serão impotentes essas asas ou sem ideal as
moscas? Outra questão: qual a atitude mental das moscas em
relação a nós? E em relação à xícara de chá, aquele grande lago
adocicado e morno? Na verdade, aqueles problemas não eram
indignos de atenção. Nós é que ainda não somos dignos deles.
(LISPECTOR, 2016, p. 94-95).
capacidade de entendimento. Tudo o que ela não sabe, é, por sua vez, uma
disponibilidade, ou como cita, sua verdade. Nesse texto Clarice expõe o não
entendimento, disserta sobre ele. Essa verdade concebível dentro da
incompreensão como imanência, contraposta a uma compreensão de pouca
vastidão, segundo demandas de só saber, é exposta no texto pela autora. No
outro exemplo dado, o não entendimento é singular, ou seja, é de cada corpo
lendo. Irrompeu enquanto eu lia o Trecho e me deslocou dentro da leitura.
Nesse segundo texto trazido, Clarice não explana a incompreensão
enunciando realidades concernentes a ela, mas constrói um modo de
explanação sobre um pensamento que lhe ocorre envolvendo insetos e suas
fortuitas aparições na mente da personagem do conto. Não pressuponho, com
isso, uma análise que pondere aspectos mais e menos poéticos, ou que aponte
diretrizes de um pensamento mais ou menos descritivo. O que trago é que,
juntamente comigo, possa ser possível que se perceba os caminhos que cada
trecho perpassam.
29
“Para Hijikata, que concebia a arte como uma experiência profunda, a dança deveria ter a seriedade
de sangrar. ” (PERETTA, 2015, p. 81).
56
30
LISPECTOR, 2019, p. 73.
57
Quando eu danço, me mexo muito, quase não paro. Mas não pode
ser assim, é preciso parar. [...]. A mãe chama, sabe? Quando se está
se movendo, todos os dias, de repente, uma hora para. A alma para.
Precisa parar. E faz assim, “mamãe. (OHNO, 2010, p. 146).
Ler Clarice também demanda essa suspensão temporal, e não saber o que
fazer daquilo que se tem por comido, é o ato em minúcias pedindo que; se
demore e tome as necessárias distâncias do curso extraordinário.
A solidão é ruidosa, mas nem por isso menos advertida pela apreensão
sorrateira, ao passo que pouco se nota seu princípio. Se é que nisso há
começos e fins. Mal se sabe e já se está imerso em estado cruamente solitário.
Daqui ouço longe, falo minúcias à minha inquietude, transito pelos cômodos.
Por vezes incômodos na tamanha condição que me foi imposta somente
porque eu, despercebido, nasci refém de uma fatalidade que agora preciso
dizer ser minha porque a mim cabe cedê-la espaço.
Por entre estou sentado dando conta de que estou só. Tanto percebo a
solidão como é possível sentir-se sem que isso cause dores. Pelo contrário, o
prazer quase se conclui e sorrio. Sigo quieto, pouco surpreso e levemente
desconfortável em ainda não saber estar só. Ainda falo da solidão como quem
58
aprende uma receita e os ingredientes estão todos pela metade do que seria o
suficiente. Há sempre ausências quando se intui falar dos mistérios de vida.
CONTINUAÇÕES INCORRENTES
Capítulo 3
Para este capítulo pretendo trabalhar de forma intensiva com obras que
esboçam trajetos mais práticos do movimento:
31
Ibdem.
32
(LISPECTOR, p. 2019, p. 75)
61
Quando fui para sala de prática, a relação que se dava era menos de
criar a partir de, do que ser movido pelo que Erin Manning chama de “uma
64
Essa dança, que se expõe nesses escritos e que carrega este corpo que
escreve, pode ser desenvolvida pela perspectiva da palavra em vias de
devir-dança, e referir-se à atuação desses dois movimentos – escrito-lido e
agenciado-instaurado – pelo viés de segmentos das linhas não localizáveis que
33
Interlúdio de “Sempre mais do que um”: a dança da individuação. 2015, p. 104. Tradução da profa.
Dra. Bianca Scliar.
34
GUATTARI, 2012, p. 110-111.
35
Expressão utilizada por Richard Schechner no texto O que é Performance? (2000) ¸ onde o autor
aborda o potencial expressivo-ritualístico que se pode observar na vida diária.
36
O Butoh se desenvolve politicamente por premissas de subversão do que é socialmente aceitável, não
se direcionando, nesta breve explanação, exclusivamente ao contexto de Pós-Segunda Guerra onde o
Japão viu-se violentamente sucumbindo em estandardizações, mas partindo também de subversões de
estruturas hegemônicas que atravessavam os corpos de Kazuo Ohno e Tatsumi Hijikata antes mesmo da
perda sofrida pela nação japonesa para com os EUA. O que se caracteriza por belo na dança Butoh,
apresenta-se pelo viés de enfatizar o mau gosto, o feio, o corpo deteriorado, expondo que outros modos
de composição da vida são necessários, inclusive, no ato de dançar uma dança que tanto busca relações
de aproximação ao que é vital ao corpo. Hijikata apud Peretta cita: “Escuridão é o melhor símbolo para a
luz. Não existe possibilidade para se entender a natureza da luz se nunca observarmos profundamente a
escuridão. ” (HIJIKATA apud PERETTA, 2015, p. 68).
65
38
Pretendo em capítulos seguintes, aborda de forma mais atenciosa a morte e a dança Butoh,
contextualizando fatores históricos, éticos, político e artísticos.
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Clarice Lispector. Meu interesse ali era somente aquela cadeira, os sons da
sala e da área externa se interferindo mutuamente, e estar com aquelas
palavras. Não busquei especificamente uma frase que me tenha acessado
blocos de afetos em leituras anteriores àquele momento, fui passeando pelas
palavras. Em dado momento percebi que algumas minúcias se mobilizavam na
minha presença corpórea ali. Meu interesse havia mudado. Fui então
retornando ao trabalho dos movimentos mínimos, depositando o livro no chão e
deixando que aquele novo ambiente fosse composto por novos modos de
instauração da dança, agora menos querendo-a e mais se pondo querido à ela.
O que estava sendo mobilizado partia de zonas não coreográficas, mas
imbuídas de uma língua que possibilitou o irrealizável como vertente de
atuação. Foi ali, nos mundos entreabertos pelo irrealizável, que me percebi
acessando a inutilidade como potencialidade da dança.
Capítulo 4
por sentidos imediatos. A princípio pode ser que essa proposta esteja se
vinculando a uma atenção multifacetada, o que de forma alguma é o que eu
intuo, mas também entendendo que isso se tornará melhor explicitado
posteriormente, principalmente após ter lido Sociedade do Cansaço. Procurarei
também desenvolver mais perspectivas a respeito da dança pessoal, esse viés
de singularidade imanente ao que tenho percebido no Butoh.
39
GUATTARI, 2012, p. 106.
40
Ver página 6.
41
“Não se faz uma frase. A frase nasce”. (LISPECTOR, 2014, p. 179)
42
Ibdem, p 132.
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43
Conto: Perdoando Deus.
44
Conto: Amor.
45
Conto: O Ovo e a Galinha.
46
Conto: O búfalo.
47
LISPECTOR, 2019, p. 79.
48
O tempo menor do que o mínimo de tempo contínuo pensável numa direção é também o mais longo
tempo, mais longo do que o máximo de tempo contínuo pensável em todas as direções. (ALLIEZ, 1996,
p. 55)
70
O plano em que mais me interessa traçar zonas de vizinhança parte das saídas
de fuga e, nota-se, está mais próximo do plano de composição, no entanto,
este não se compõe unilateralmente, logo, a atuação de ambos está mais para
correlações do que contrapontos excludentes entre si.
49
Opto por trazer essa nota de rodapé para explanar melhor a palavra “como”. Deleuze e Guattari
(2012, 70), pensam essa palavra a partir do seguinte viés: “A palavra “como” faz parte dessas palavras
que mudam singularmente de sentido e de função a partir do momento [...] em que fazemos delas
expressões de devires, e não estados significados nem relações significantes. ”, ou seja, o não
entendimento pensado ao lado da completude, a qual também se refere Clarice Lispector em uma
citação anterior [ver pág. 8], estão não enquanto metáfora, mas sim através relações de aproximações
vibracionais.
50
“A atenção é [...] uma forma de conhecimento” (FABIÃO, 2010, p. 322)
71
51
Opto por usar essa expressão para que não sigamos pressupostos da linguagem literária de Clarice
Lispector enquanto um dogma poético, logo que há mutabilidades inerentes dependendo do corpo que
lê.
52
Eleonora Fabião em Corpo cênico: Estado cênico, 2010.
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53
Tadashi Endo, um dos grandes dançarinos e disseminadores do Butoh atualmente, no vídeo realizado
pelo SESC Paraty, cita que não aprendeu o Butoh, mas sim o conheceu, conheceu o Butoh. Isso ressoa
forte nas concepções prático-teóricas que podemos ter do Butoh. Endo foi aluno de Tatsumi Hijikata e
também de Kazuo Ohno. Seu Butoh pondera cuidados éticos que não o constituam por aspectos
estritamente codificados, por isso é tão necessária sua perspectiva de quem não aprendeu o Butoh, mas
conheceu.
73
Com essas noções trazidas, busco não desenvolver uma crítica formalista, de
restrição e/ou classificatória, mas expôr uma das visualizações que traço para
lidar com o Butoh sem enviesá-lo pelos aspectos estritamente técnicos,
metodológicos, passíveis de ensinamentos que o disseminariam pelo viés da
reprodução. Com isso viso “renunciar a qualquer possibilidade de simulação,
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Segundo Deleuze e Guattari (2012, p. 48), “um corpo não se define pela
forma que o determina, nem como uma substância, ou sujeito determinados,
nem pelos órgãos que possui ou pelas funções que exerce.”, mas pelos
processos intensivos que o atravessam, e esse fator de atravessamento do
corpo com o ambiente é indissociável das relações espaço-temporais em que o
corpo atua entre os perceptíveis e os imperceptíveis.
entender. “Não entendi, mas me emocionei” – é para isso que se dança. ”54
Essa abordagem do entendimento deslocado dos pressupostos instrumentais,
evidencia outros seguimentos ao se pensar em dança, movimento, afetação. O
percurso e o interesse coreográfico partem para experimentos práticos que
reivindicam modos singulares de atuação do corpo no espaço-tempo.
54
OHNO, 2016, p. 26.
55
“Tatsumi Hijikata buscava despertar a sensibilidade corpórea valendo-se principalmente de tudo
aquilo que era considerado negativo pela sociedade, visando provocar sensações profundas encobertas
pelas regras sociais e, desse modo, dar vida a um corpo que conseguisse transcendê-las: um corpo não
cotidiano” (PERETTA, 2015, p. 96). Em suma, um corpo não individualizado.
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56
Hijikata “estimulava a vacilação identitária de seus discípulos valendo-se principalmente de tudo
aquilo que era considerado negativo pelas regras sociais, tais como o erotismo, violência e
criminalidade. ” (Ibidem, p. 146).
57
PERETTA, 2015, p. 136.
78
58
“Aquilo que é puro não é mais o essencial ou substancial, mas o elementar ou o simples. ”
(LAPOUJADE, 2017, p. 50)
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REFERÊNCIAS CITADAS