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Clarice Lispector foi fichada pela


ditadura, revela nova biografia
NOVEMBER 21, 2021

Montagem sobre retrato de Clarice Lispector Foto: O Globo

Em , o cartunista Henfil estreou, no jornal O Pasquim, as tirinhas do


Cabôco Mamadô, espécie de coveiro que enterrava, no “Cemitério dos
Mortos-Vivos”, figuras públicas que simpatizavam com a ditadura militar
ou, na opinião do autor, se omitiam diante das atrocidades do regime, como
Pelé, Gilberto Freyre e Elis Regina. Em , sepultou Clarice Lispector, ou
melhor, “Clarisse Lispector”, conforme se lia na lápide. Henfil afirmou que
enterrara Clarice “porque ela se coloca dentro de uma redoma de Pequeno
Príncipe, para ficar num mundo de flores e passarinhos, enquanto Cristo
está sendo pregado na cruz” e chamou-a de “alienada”.

Carta de repúdio:
repúdio:Estudiosos de Carolina Maria de Jesus pedem que
família de Audálio Dantas entregue cadernos da escritora

Documentos descobertos por Teresa Montero, autora da recém-lançada


biografia “À procura da própria coisa”, revelam que a ditadura não
considerava Clarice alienada. A escritora foi fichada pela polícia política. Em
junho de , o Serviço Nacional de Informações (SNI) produziu um
pequeno dossiê sobre ela composto por dois telegramas, cópias de
documentos como as certidões de casamento e de desquite de Clarice, além
de cinco telexes.

Os telegramas, solicitavam os “antecedentes” e “outros dados” da escritora. Já


os telexes relatam, por exemplo, a participação de Clarice em atos públicos,
como a Passeata dos Cem Mil, a maior manifestação popular realizada
contra a ditadura, em  de junho de , no Rio. Após o ato, a escritora
teria se reunido com religiosos, sindicalistas e artistas Colégio Santo Inácio e
discursado sobre “a necessidade de união das classes contra a ditatura”. O
SNI também lembrou que, em janeiro daquele ano, ela dissera, ao jornal
Última Hora, que os estudantes “têm toda razão em lutar por um mundo
menos podre do que este que vivemos atualmente”. E que, em junho de
, ela assinara um manifesto de intelectuais em apoio à política externa
de San Tiago Dantas, chanceler do João Goulart, derrubado pelos militares.
Clarice, cujo marido, Maury Gurgel Valente, era diplomata, fora amiga de
Dantas.

Teresa Montero, a biógrafa, não se sabe o que motivou a ditadura a fichar


Clarice. Ela costumava se manifestar politicamente em sua coluna no Jornal
do Brasil, às vezes de maneira oblíqua. Em janeiro de , sem citar a
oposição à ditadura, escreveu: “eu marcho com eles, eu me engajei”.
Montero afirma que Henfil foi injusto ao acusar Clarice de “alienada”,
contemporiza: lembra que o irmão do cartunista, o sociólogo Herbert José
de Sousa (-), o Betinho — o “irmão do Henfil” cuja volta se
espera na canção “O bêbado e a equilibrista”, de João Bosco e Aldir Blanc —
fora forçado ao exílio. Para Henfil, quem não denunciava a ditadura com
todas as letras, apesar da censura, era omisso.

— Clarice era uma cidadã consciente, preocupada com a justiça social desde
criança, quando conheceu os mocambos (moradias erguidas sobre palafitas em
áreas alagadas) — diz Montero. —Clarice propõe uma reflexão sobre a vida.
Se isso não é político, não sei o que é.

Montero também descobriu que a polícia política do governo Dutra


também fichou Clarice, em . O documento afirma que ela era casada,
alguns de seus livros e que ela tinha “nacionalidade russa”. A escritora
nascera na Ucrânia, durante os conflitos que se seguiram à Revolução Russa.
Montero desconfia que Clarice acabou fichada por ser soviética e judia. O
governo Dutra vigiou de perto os judeus comunistas. Além disso, Clarice era
amiga de notórios comunistas, como Bluma Wainer, mulher do fundador do
jornal Última Hora, Samuel Wainer.

Foto inédita de Clarice Lispector (no canto, de lenço), na Passeata dos Cem Mil. Sentada no chão,
ao lado do dramaturgo Dias Gomes, a escritora ouve discursos de estudantes Foto: Reprodução /
Divulgação

Montero já havia publicado uma biografia de Clarice em , “Eu sou uma
pergunta”, esgotada desde . No esforço de atualizá-la e relançá-la no
centenário de Clarice, no ano pasad, encontrou tanto material inédito em
arquivos públicos (os quais defende veementemente) que acabou escrevendo
uma nova biografia. Entre os achados estão, além do dossiê preparado pelo
SNI, uma entrevista desconhecida de Clarice à TVE, em , e uma
fotografia inédita da escritora na Passeata dos Cem Mil, em que ela aparece
sentada no chão, ao lado do dramaturgo Dias Gomes. Já eram conhecidas
outras duas fotos de Clarice no ato, em que ela aparece ao lado de artistas
como Tônia Carrero e Paulo Autran e Odete Lara.

Em , Henfil disse que se arrependia de ter “enterrado apenas duas


pessoas”: Elis Regina e Clarice. Ela comentou o ocorrido apenas uma vez,
em entrevista ao Jornal das Letras. Disse que ficou “aborrecida”, “mas depois
passou”. E que, se encontrasse Henfil, já sabia o que diria a ele: “Olha,
quando você escrever sobre mim, Clarice não é com dois S, é com C, viu?”.

— Em vez de reclamar “como você teve coragem de fazer isso comigo?”, ela
foi mais contundente: disse “meu nome não é com dois esses” como quem
diz “você não me conhece — afirma a biógrafa.

Pesquisadores contestam fama de


'apolítica' da escritora
Na crônica “Literatura e justiça”, Clarice confessa não saber e aproximar de
um modo “literário” da “coisa social". Explica que seu desejo por justiça era
“tão óbvio e tão básico”, que não conseguia se surpreender com ele. “E, sem
me surpreender, não consigo escrever”, afirmou. “O sentimento de justiça
nunca foi procura em mim, nunca chegou a ser descoberta, e o que me
espanta é que ele não seja igualmente óbvio em todos”.

Num dos texto do livro "Um século de Clarice" (uma das obras sobre a
escritora a ser lançadas nos próximos dias), o ensaísta José Miguel Wisnik
escreve que, em "Literatura e justiça", a escritora dava uma resposta
“estratégica” e “sincera” às cobranças por engajamento. No entanto, segundo
Wisnik, "engana-se, pois, quem pensar Clarice como uma escritora desligada
da inquietude e do fervor social”. Na obra de Clarice, o "social" aparece até
em contos como "Amor", no qual uma mulher de classe média tem uma
epifania após ver um mendigo mascar chiclete e sente náusea ao se lembrar
de que há gente com fome.

Para Júlio Diniz, professor da PUC-Rio e organizador do livro "Quanto ao


futuro, Clarice", é absurdo chamar de alienada uma escritora que criou
personagens como Macabéa, a migrante nordestina de "A hora da estrela", e
Janair, a empregada doméstica negra que habitava o quartinho onde a
narradora de "A paixão segundo G.H" enfrenta a barata.

— Clarice é uma intérprete do Brasil, não no sentido da tradição do


pensamento social em nosso país, mas como uma observadora crítica, às
vezes muito dura, e ao mesmo tempo generosa dos impasses, dilemas e
conflitos da sociedade brasileira — afirma Diniz.

Danielle Ramos, professora da UFRJ recorda um dos textos mais políticos


de Clarice, a crônica “Mineirinho”, de , na qual expõe sua indignação
diante da morte do bandido Mineirinho com  tiros pela policia. Segundo
Ramos, Clarice denuncia a "conivência da população supostamente pacífica
com políticas de extermínio".

— Não é de estranhar que, nas eleições de , a extrema-direita tenha


recuperado esse texto para dizendo que Clarice defendia bandido" — diz
Ramos, que autora de um ensaio sobre a marginalidade na obra da escritora
incluído no livro "Clarice Lispector, uma vida na literatura".

Serviços:
“À procura da própria coisa: uma biografia de Clarice Lispector”

Autora: Teresa Montero. Editora: Rocco. Páginas: . Preço: R


,.

“Um século de Clarice Lispector: ensaios críticos”

Organização: Yudith Rosembaum e Cleusa Rios P. Passos. Editora:


Fósforo. Páginas: . Preço: ,.

“Quanto ao futuro, Clarice”

Organização: Júlio Diniz. Editora: Bazar do Tempo. Páginas: .


Preço: R .

“Clarice Lispector: uma vida na literatura”

Organização: Matildes Demetrio dos Santos e Mônica Gomes da Silva.


Editora: Oficina Raquel. Páginas: . Preço: R .

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